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O Problema da

Autoridade Política
Um Exame do Direito de Coagir
e do Dever de Obedecer

Michael Huemer
O Problema da
Autoridade Política
Um Exame do Direito de Coagir
e do Dever de Obedecer

Michael Huemer
Universidade do Colorado em Boulder

Giácomo de Pellegrini
Tradução

Igor R. & Julio L.


Edição e Notas

Sociedade Aberta
Conteúdo

Prefácio viii

I A Ilusão da Autoridade 1
1 O Problema da Autoridade Política 2
1.1 Uma parabola política 2
1.2 O conceito de autoridade: uma primeira passagem 4
1.3 Ações versus agentes: a necessidade de autoridade 6
1.4 O significado de coerção e o alcance da autoridade 7
1.5 O conceito de autoridade: uma segunda passagem 10
1.6 Um comentário sobre metodologia 13
1.7 Plano do livro 16

2 A Teoria Tradicional do Contrato Social 18


2.1 A ortodoxia do contrato social 18
2.2 A teoria do contrato social explícito 19
2.3 A teoria do contrato social implícito 20
2.4 Condições para acordos válidos 22
2.5 O contrato social é válido? 25
2.5.1 A dificuldade de optar por não participar 25
2.5.2 A falta de reconhecimento da dissidência explícita 27
2.5.3 Imposição incondicional 28
2.5.4 Ausência de obrigação mútua 29
2.6 Conclusão 32

3 A Teoria do Contrato Social Hipotético 33


3.1 Argumentos do consentimento hipotético 33
3.2 Consentimento hipotético na ética comum 34
3.3 Consentimento hipotético e razoabilidade 36
3.3.1 Concordância hipotética como evidência de razoabilidade 36
3.3.2 Pode ser alcançado um acordo? 37

i
CONTEÚDO ii

3.3.3 A validade do consentimento hipotético 40


3.4 Consentimento hipotético e restrições éticas 42
3.4.1 A teoria do contrato de Rawls como uma defesa da autoridade 42
3.4.2 Pode ser alcançado um acordo? 45
3.4.3 A validade do consentimento hipotético, parte 1: o apelo a
resultados justos 47
3.4.4 A validade do consentimento hipotético, parte 2: condições
suficientes para um raciocínio moral confiável 48
3.4.5 A validade do consentimento hipotético, parte 3: condições
necessárias para um raciocínio moral confiável 51
3.5 Conclusão 53

4 A Autoridade da Democracia 55
4.1 Majoritarismo ingênuo 55
4.2 Democracia deliberativa e legitimidade 56
4.2.1 A ideia de democracia deliberativa 56
4.2.2 Democracia deliberativa como fantasia 57
4.2.3 A irrelevância da deliberação 60
4.3 Igualdade e autoridade 61
4.3.1 O argumento da igualdade 61
4.3.2 Uma teoria da justiça absurdamente exigente? 64
4.3.3 Apoiando a democracia através da obediência 66
4.3.4 A igualdade democrática é exclusivamente pública? 67
4.3.5 Respeitando os julgamentos de outras pessoas 69
4.3.6 Coerção e tratando os outros como inferiores 70
4.3.7 Da obrigação para a legitimidade? 72
4.4 Conclusão 74

5 Consequencialismo e Equidade 76
5.1 Argumentos consequencialistas para obrigação política 76
5.1.1 A estrutura dos argumentos consequencialistas para obriga-
ção política 76
5.1.2 Os benefícios do governo 76
5.1.3 O dever de fazer o bem 78
5.1.4 O problema da redundância individual 79
5.2 Consequencialismo de regras 80
5.3 Equidade 81
5.3.1 A teoria da equidade da obrigação política 81
5.3.2 Obediência como custo de bens políticos 83
5.3.3 Obrigação política para dissidentes 86
5.3.4 Particularidade e a questão de bens alternativos 87
CONTEÚDO iii

5.4 O problema da legitimidade 88


5.4.1 Uma explicação consequencialista da legitimidade 88
5.4.2 Abrangência e independência de conteúdo 89
5.4.3 Supremacia 93
5.5 Conclusão 94

6 A Psicologia da Autoridade 96
6.1 A relevância da psicologia 96
6.1.1 Este livro é perigoso? 96
6.1.2 O apelo à opinião popular 97
6.2 O experimento de Milgram 100
6.2.1 Método 100
6.2.2 Previsões 102
6.2.3 Resultados 102
6.2.4 Os perigos da obediência 103
6.2.5 A falta de confiabilidade de opiniões sobre autoridade 104
6.3 Dissonância cognitiva 105
6.4 Demonstração social e viés de status quo 108
6.5 O poder da estética política 110
6.5.1 Símbolos 110
6.5.2 Rituais 112
6.5.3 Linguagem de autoridade 114
6.6 Síndrome de Estocolmo e o carisma do poder 117
6.6.1 O fenômeno da Síndrome de Estocolmo 117
6.6.2 Por que a Síndrome de Estocolmo ocorre? 119
6.6.3 Quando ocorre a Síndrome de Estocolmo? 120
6.6.4 Os cidadãos comuns são propensos à Síndrome de Estocolmo?121
6.7 Estudos de caso sobre abuso de poder 123
6.7.1 My Lai revisitado 123
6.7.2 O Experimento Prisional de Stanford (EPS) 125
6.7.3 Lições do EPS 125
6.8 Conclusão: anatomia de uma ilusão 128

7 E se Não Existir Autoridade? 130


7.1 Algumas implicações políticas 131
7.1.1 Prostituição e moralismo legal 131
7.1.2 Drogas e paternalismo 132
7.1.3 Rent seeking 134
7.1.4 Imigração 135
7.1.5 A proteção dos direitos individuais 136
7.1.6 Tributação e financiamento do governo 138
CONTEÚDO iv

7.2 O caso da ajuda aos pobres 141


7.2.1 Bem-estar e criança afogando 141
7.2.2 A utilidade dos programas antipobreza 142
7.2.3 Os programas antipobreza são direcionados adequadamente?145
7.2.4 Um choque de analogias: criança afogando e assalto para
caridade 147
7.2.5 No caso do acima mencionado estiver errado 152
7.3 Implicações para os agentes do Estado 153
7.4 Implicações para cidadãos particulares 155
7.4.1 Em louvor aos desobedientes 155
7.4.2 A aceitação da punição 156
7.4.3 Resistência violenta 158
7.4.4 Em defesa da anulação do júri (jury nullification) 160
7.5 Objeções em apoio ao culto à regra 161
7.5.1 Todos podem fazer o que desejam? 161
7.5.2 Processo versus substância 163
7.5.3 Minando a ordem social? 164
7.5.4 As consequências da doutrina da independência do conteúdo166
7.6 Uma modesta fundamentação libertária 167

II Sociedade sem Autoridade 172


8 Avaliando as Teorias Sociais 173
8.1 Observações gerais sobre a avaliação racional das teorias sociais 173
8.1.1 A avaliação racional é comparativa 173
8.1.2 A avaliação racional é abrangente 174
8.1.3 Variedades de governo e anarquia 174
8.1.4 Contra o viés do status quo 175
8.2 Uma concepção simplificada da natureza humana 177
8.2.1 Os seres humanos são aproximadamente racionais 177
8.2.2 Os seres humanos estão cientes do seu ambiente 178
8.2.3 Os seres humanos são egoístas, mas não sociopatas 179
8.2.4 A favor da simplificação 181
8.2.5 Uma aplicação histórica 182
8.3 Utopia e realismo 183
8.3.1 O princípio do realismo 183
8.3.2 Prescrição para um anarquismo realista 184
8.3.3 Contra o estatismo utópico 186

9 A Lógica da Predação 188


CONTEÚDO v

9.1 O argumento hobbesiano para o governo 188


9.2 Predação no estado de natureza 190
9.2.1 Considerações da teoria dos jogos 190
9.2.2 Condições sociais que afetam a prevalência de violência 192
9.2.3 Violência entre Estados 194
9.3 Predação em um Estado totalitário 195
9.4 Predação sob democracia 197
9.4.1 A tirania da maioria 198
9.4.2 O destino dos não-eleitores 198
9.4.3 Ignorância e irracionalidade dos eleitores 199
9.4.4 Ativismo: uma solução utópica 203
9.4.5 A mídia: o cão de guarda adormecido 204
9.4.6 O milagre da agregação 206
9.4.7 As recompensas pelo fracasso 208
9.4.8 Limites constitucionais 210
9.4.9 Sobre freios, contrapesos e separação de poderes 215
9.5 Conclusão 216

10 Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 218


10.1 Um sistema de justiça não-estatal 218
10.1.1 Agências de proteção 218
10.1.2 Empresas de arbitragem 219
10.2 Isso é anarquia? 220
10.3 Conflito entre protetores 221
10.3.1 Os custos da violência 221
10.3.2 Oposição ao assassinato 222
10.3.3 Conflito entre governos 224
10.4 Proteção para criminosos 226
10.4.1 A rentabilidade da aplicação de direitos 226
10.4.2 Proteção criminal por governos 227
10.5 Justiça à venda 228
10.5.1 Direito preexistente 228
10.5.2 Baseando a lei na justiça 229
10.5.3 Comprando justiça do governo 230
10.6 Segurança para os pobres 231
10.6.1 As empresas servem os pobres? 231
10.6.2 Quão bem o governo protege os pobres? 232
10.7 A qualidade da proteção 232
10.8 Crime organizado 234
10.9 Proteção ou extorsão? 237
10.9.1 A disciplina da competição 237
CONTEÚDO vi

10.9.2 Extorsão pelo governo 239


10.10 Monopolização 240
10.10.1 A vantagem do tamanho em combate 240
10.10.2 Determinando o tamanho eficiente das empresas 241
10.10.3 Monopólio do governo 243
10.11 Colusão e cartelização 244
10.11.1 O problema tradicional dos carteis 244
10.11.2 Cartelização por ameaça de força 245
10.11.3 Cartelização por negação de proteção estendida 246
10.12 Associações de proprietários residenciais (APR) versus governo 248
10.13 Conclusão 249

11 Justiça Criminal e Resolução de Disputas 251


11.1 A integridade dos árbitros 251
11.2 Manipulação corporativa 253
11.3 Recusando arbitragem 255
11.4 Por que obedecer os árbitros? 256
11.5 A fonte da lei 257
11.6 Punição e restituição 258
11.7 Crimes não compensáveis 259
11.8 Restituição excessiva 260
11.9 A qualidade da lei e da justiça sob uma autoridade central 263
11.9.1 Condenações injustas 264
11.9.2 Excesso de oferta da lei 266
11.9.3 O preço da justiça 268
11.9.4 O fracasso da prisão 269
11.9.5 Reforma ou anarquia? 270
11.10 Conclusão 271

12 Guerra e Defesa da Sociedade 273


12.1 O problema da defesa da sociedade 273
12.2 Defesa não-governamental 274
12.2.1 Guerra de guerrilha 274
12.2.2 A dificuldade de conquistar um território não governado 276
12.2.3 Resistência não-violenta 276
12.2.4 Conclusões 279
12.3 Evitando conflitos 280
12.3.1 Agressão humana natural 281
12.3.2 Terra e recursos 282
12.3.3 Espirais de conflito e disputas entre governos 283
12.3.4 Relações de poder 286
CONTEÚDO vii

12.3.5 A paz democrática liberal 287


12.3.6 Se você deseja guerra, prepare-se para a guerra 290
12.4 Evitando o terrorismo 294
12.4.1 A ameaça terrorista 294
12.4.2 As raízes do terrorismo 296
12.4.3 Soluções violentas e não-violentas 298
12.5 Os perigos da “segurança nacional” 300
12.5.1 O risco de agressão injusta 300
12.5.2 O risco de um desastre global 302
12.6 Conclusão 303

13 Da Democracia à Anarquia 305


13.1 Contra o viés do presente: as perspectivas de mudança radical 305
13.2 Passos em direção à anarquia 309
13.2.1 Terceirização de funções judiciais 309
13.2.2 Terceirização de funções policiais 310
13.2.3 O fim dos exércitos permanentes 311
13.2.4 O resto do caminho 312
13.3 A expansão geográfica da anarquia 313
13.4 A importância das ideias 314
13.5 Conclusão 317
13.5.1 O argumento da parte I 317
13.5.2 O argumento da parte II 319
13.5.3 O argumento deste capítulo 320

Referências 322
Prefácio

Este livro aborda o problema fundamental da filosofia política: o problema de


prestar contas à autoridade do governo. Essa autoridade sempre me pareceu
intrigante e problemática. Por que 535 pessoas em Washington deveriam ter o
direito de emitir ordens para 300 milhões de pessoas? E por que os outros devem
obedecer? Essas perguntas, como afirmo nas páginas a seguir, não têm respostas
satisfatórias.
Por que isso é importante? Quase todo discurso político se concentra em que
tipo de políticas o governo deve fazer, e quase todo mundo – seja na filosofia po-
lítica ou nos fóruns populares – pressupõe que o governo tenha um tipo especial
de autoridade para emitir ordens para o resto da sociedade. Quando discutimos
sobre qual deveria ser a política de imigração do governo, por exemplo, nor-
malmente pressupomos que o Estado tenha o direito de controlar o movimento
de entrada e saída do país. Quando discutimos sobre a melhor política tributá-
ria, pressupomos que o Estado tenha o direito de obter riqueza dos indivíduos.
Quando discutimos sobre a reforma da saúde, pressupomos que o Estado tenha
o direito de decidir como a assistência médica deve ser prestada e paga. Se, como
espero convencê-lo, esses pressupostos estão equivocados, quase todo o nosso
discurso político atual está equivocado e deve ser fundamentalmente repensado.
Quem deveria ler esse livro? As questões abordadas aqui são relevantes para
qualquer pessoa interessada em política e governo. Espero que meus colegas
filósofos aproveitem, mas também espero que alcance além desse pequeno grupo.
Portanto, tentei minimizar o jargão acadêmico e manter a redação o mais clara e
direta possível. Não pressuponho nenhum conhecimento especializado.
Este é um livro de ideologia extremista? Sim e não. Defendo algumas con-
clusões radicais nas páginas seguintes. Mas, embora eu seja extremista, sempre
me esforcei para ser razoável. Eu raciocino com base no que me parecem juízos
éticos de senso comum. Não suponho uma grande teoria filosófica controversa,
uma interpretação absolutista de algum valor particular ou um conjunto de afir-
mações empíricas duvidosas. Isso quer dizer que, embora minhas conclusões
sejam altamente controversas, minhas premissas não são. Além disso, tenho me
esforçado para abordar pontos de vista alternativos de maneira justa e razoável.

viii
Prefácio ix

Considero detalhadamente as tentativas mais interessantes e plausíveis de justifi-


car a autoridade governamental. Quando se trata de minha própria visão política,
abordo todas as importantes objeções encontradas na literatura e na tradição oral.
Sendo a política como é, não posso esperar convencer partidários comprometidos
de outras ideologias. Meu objetivo, no entanto, é convencer aqueles que mantém
a mente aberta em relação ao problema da autoridade política.
O que há neste livro? Os capítulos 2 a 5 discutem teorias filosóficas sobre a base
da autoridade do Estado. O capítulo 6 discute evidências psicológicas e históricas
sobre nossas atitudes em relação à autoridade. O capítulo 7 faz a pergunta, se não
há autoridade, como os cidadãos e funcionários do governo devem se comportar?
É aqui que as recomendações práticas mais imediatas aparecem. A parte II do
livro propõe uma estrutura social alternativa não baseada em autoridade. Os
capítulos 10 a 12 abordam os problemas práticos mais óbvios para essa sociedade.
O último capítulo discute se e como as mudanças que recomendo podem ocorrer.
Desejo agradecer a alguns amigos e colegas que me ajudaram neste livro.
Bryan Caplan, David Boonin, Jason Brennan, Gary Chartier, Kevin Vallier, Matt
Skene, David Gordon e Eric Chwang fizeram comentários valiosos que ajudaram
a eliminar erros e melhorar o texto em vários lugares. Sou grato pela generosidade
deles. Se houver algum erro, o leitor pode procurar esses professores e perguntar
por que não os corrigiram. O trabalho foi concluído com a ajuda de um fellowship
do Centro de Ciências Humanas e Artes da Universidade do Colorado no ano
acadêmico de 2011-12, pelo qual também sou grato por essa assistência.
Parte I
A Ilusão da Autoridade

1
1

O Problema da Autoridade Política

1.1 Uma parabola política


Vamos começar com uma pequena história política. Você mora em uma pequena
vila com um problema de crime. Vândalos vagam pela vila, roubando e des-
truindo as propriedades das pessoas. Parece que ninguém está fazendo nada
a respeito. Então, um dia, você e sua família decidem acabar com isso. Você
pega suas armas e sai para procurar os vândalos. Periodicamente, você pega um,
leva-o de volta para sua casa com uma arma e o tranca no porão. Você fornece
comida aos prisioneiros para que eles não passem fome, mas planeja mantê-los
trancados no porão por alguns anos para ensinar-lhes uma lição.
Depois de operar dessa maneira por algumas semanas, você decide percorrer
o bairro, começando com o vizinho do lado. Quando ele atende a porta, você
pergunta: “Você notou a redução do crime nas últimas semanas?” Ele assente.
“Bem, isso é graças a mim.” Você explica seu programa anticrime. Observando
o olhar cauteloso no rosto do seu vizinho, você continua. “De qualquer forma,
estou aqui porque é hora de cobrar sua contribuição para o fundo de prevenção
ao crime. Sua fatura do mês é de $100,00.”
Enquanto seu vizinho olha para você, sem fazer nenhum movimento aparente
para entregar o dinheiro, você pacientemente explica que, se ele se recusar a
fazer o pagamento exigido, infelizmente você terá que rotulá-lo de criminoso;
nesse ponto, ele estará sujeito a um confinamento de longo período em seu porão,
juntamente com os vândalos acima mencionados. Indicando a pistola no seu
quadril, você nota que está preparado para pegá-lo à força, se necessário.
Supondo que você adote essa atitude com todos os seus vizinhos, que tipo de
recepção você poderia esperar? Cederia alegremente sua parcela dos custos da
prevenção ao crime?

2
1. O Problema da Autoridade Política 3

Não é provável. Com toda a probabilidade, você observaria o seguinte. Pri-


meiro, quase ninguém concorda que os vizinhos lhe devem alguma coisa. En-
quanto alguns podem pagar por medo de prisão em seu porão e alguns podem
pagar por hostilidade contra os vândalos, quase nenhum se consideraria obrigado
a pagá-lo. Aqueles que se recusaram a pagar provavelmente seriam louvados
ao invés de condenados por enfrentar você. Segundo, a maioria consideraria
suas ações ultrajantes. Suas demandas por pagamento seriam condenadas como
extorsão total e o confinamento daqueles que se recusassem a pagar como se-
questro. A sua conduta muito ultrajante, combinada com sua presunção iludida
de que o resto da vila reconheceria a obrigação de apoiá-lo, faria com que muitos
questionassem sua sanidade.
O que essa história tem a ver com a filosofia política? Na história, você se
comportou como um governo rudimentar. Embora você não tenha assumido
todas as funções de um Estado típico e moderno, assumiu dois de seus papéis
mais centrais: puniu pessoas que violavam os direitos de outras pessoas ou
desobedeceu aos seus comandos e coletou contribuições não voluntárias para
financiar suas atividades. No caso do governo, essas atividades são chamadas de
sistema de justiça criminal e sistema tributário. No seu caso, são chamados de
sequestro e extorsão. Em face disso, suas atividades são do mesmo tipo que as
de um governo. No entanto, a avaliação do governo pela maioria das pessoas é
muito mais branda do que a avaliação de você na história. A maioria das pessoas
apoia a prisão de criminosos pelo Estado, sente-se obrigada a pagar seus impostos
e considera a punição dos sonegadores desejável e dentro dos direitos do Estado.
Isso ilustra uma característica geral de nossas atitudes em relação ao governo.
Os governos são considerados eticamente autorizados a fazer coisas que ne-
nhuma pessoa ou organização não-governamental pode fazer. Ao mesmo tempo,
pensa-se que os indivíduos têm obrigações com seus governos que não deveriam
para pessoa alguma ou organização não-governamental, mesmo que agentes não-
governamentais se comportassem de maneira semelhante a um governo. Este não
é simplesmente uma questão sobre a lei, nem sobre que tipo de ações podemos
fugir. A questão é que nossos julgamentos éticos diferenciam bastante entre ações
governamentais e não-governamentais. Atos que seriam considerados injustos
ou moralmente inaceitáveis quando praticados por agentes não-governamentais
geralmente serão considerados perfeitamente corretos, e até dignos de elogio,
quando praticados por agentes governamentais. Daqui em diante, usarei “obri-
gação” para me referir a obrigações éticas, em vez de meras obrigações legais; da
mesma forma para “direitos”.1
1
Alguns pensadores distinguem obrigações de deveres (Hart 1958, 100-4; Brandt 1964). Daqui
em diante, no entanto, uso “obrigação” e “dever” de forma intercambiável para denotar qualquer
requisito ético.
1. O Problema da Autoridade Política 4

Por que concedemos esse status moral especial ao governo e somos justificados
ao fazê-lo? Este é o problema da autoridade política.

1.2 O conceito de autoridade: uma primeira passa-


gem
O que é isso no pensamento moral comum que diferencia suas ações na história
acima das ações de um governo? De um modo geral, dois tipos de explicação
podem ser dadas. Um tipo de explicação é que, apesar das aparências, os dois
comportamentos são diferentes, que o governo não está realmente fazendo a
mesma coisa que o vigilante. Por exemplo, suponha-se que a diferença crucial
seja que o vigilante (você na história) não dá julgamentos justos aos vândalos,
como o governo (em alguns países) faz àqueles em que procura punir. Isso
poderia explicar por que o comportamento do vigilante é menos legítimo do que
o do governo.
O outro tipo de explicação é que os dois agentes são diferentes.2 Ou seja, o
governo pode estar fazendo as mesmas coisas que o vigilante, mas quem executa
faz toda a diferença. Você deve ser condenado na história, não porque não imita
fielmente o governo, mas porque está agindo como um governo, embora não seja
o governo.
É esse segundo tipo de explicação que caracterizo como uma invocação de
autoridade política. Autoridade política (doravante, apenas “autoridade”) é
a propriedade moral hipotética em virtude da qual os governos podem coagir
as pessoas de certas maneiras que não são permitidas a mais ninguém e em
virtude da qual os cidadãos devem obedecer aos governos em situações nas quais
não seriam obrigados a obedecer a mais alguém. A autoridade, então, tem dois
aspectos:

i Legitimidade política: o direito, por parte de um governo, de fazer certos


tipos de leis e aplicá-las por coerção contra os membros de sua sociedade –
em suma, o direito de governar.3
2
Deixo a distinção entre características do agente e características da ação em um nível intuitivo.
“As características da ação” devem ser tomadas de alguma forma para excluir características como
“ter sido executada por um agente desse tipo”. Da mesma forma, “características do agente” não
devem incluir itens como “ser tal que ele executa ações de tal e tal tipo”.
3
Uso “autoridade”, “legitimidade” e “obrigação política” em sentidos técnicos estipulados.
Meu uso de “autoridade” e “legitimidade” segue aproximadamente o de Buchanan (2002), mas
não exijo que obrigações políticas sejam devidas especificamente ao Estado. O alegado direito
de governar do Estado deve ser entendido como um direito de justificação, e não um direito de
reivindicação (Ladenson 1980, 137-9); isto é, permite que o Estado faça certas coisas em vez de
1. O Problema da Autoridade Política 5

ii Obrigação política: a obrigação dos cidadãos obedecerem a seu governo,


mesmo nas circunstâncias em que um não seria obrigado a obedecer ordens
semelhantes emitidas por um agente não-governamental.

Se um governo tem “autoridade”, então (i) e (ii) existem: o governo tem o


direito de governar e os cidadãos têm a obrigação de obedecer.
Ter obrigações políticas não significa apenas que é preciso fazer as coisas que
a lei ou outros comandos governamentais exigem.4 Por exemplo, a lei proíbe o
assassinato, e temos o dever moral de não matar. Mas isso não basta para estabe-
lecer que temos “obrigações políticas”, porque seríamos moralmente obrigados a
não matar, mesmo que não houvesse lei contra isso. Mas há outros casos em que,
segundo a opinião popular, somos obrigados a fazer as coisas exatamente porque
a lei as ordena, e não seríamos obrigados a fazer essas coisas se elas não fossem
legalmente exigidas. Por exemplo, a maioria acredita que somos obrigados a
pagar impostos sobre nossa renda em países que exigem isso legalmente e que
somos obrigados a pagar o valor específico exigido pelo código tributário. Quem
pensa que os impostos são muito altos não se sente autorizado a sonegar uma
parte de seus impostos. Quem pensa que os impostos são baixos demais não
se sente obrigado a enviar dinheiro extra ao governo. E se a lei mudasse para
que o imposto de renda não fosse legalmente exigido, não seria mais necessário
pagar ao governo essa parte da receita da pessoa. Assim, na mente popular, a
obrigação de pagar imposto de renda é uma obrigação política.5
Aqueles que acreditam em autoridade política não precisam sustentar que
a autoridade política é incondicional ou absoluta, nem precisam sustentar que
todos os governos a possuem. Pode-se sustentar, por exemplo, que a autoridade
do Estado depende de respeitar os direitos humanos básicos e de permitir aos
cidadãos um certo nível de participação política; assim, os governos tirânicos
não têm autoridade. Pode-se também sustentar que mesmo um governo legítimo
não pode ordenar uma pessoa, por exemplo, a cometer assassinato, nem que
um cidadão seja obrigado a obedecer tal ordem. Um crente na autoridade pode,
portanto, acreditar apenas que certos governos têm uma certa esfera limitada de
autoridade.
Apesar dessas limitações, a autoridade atribuída a alguns governos é uma
propriedade moral impressionante. Como vimos na Seção 1.1, essa autoridade
impor alguma demanda moral a outros agentes. Meus usos de “legitimidade” e “autoridade”
diferem dos de alguns outros teóricos (Simmons 2001, 130; Edmundson 1998, capítulo 2; Estlund
2008, 2).
4
A obrigação política pode se aplicar não apenas às leis, mas também a outros comandos
governamentais, como decretos administrativos e ordens judiciais. Esse ponto deve ser entendido
por toda parte, embora eu frequentemente fale simplesmente da obrigação de obedecer à lei.
5
A pesquisa do grupo focalizado de Klosko dá algum apoio a essa impressão de atitudes
populares (2005, capítulo 9, especialmente 198, 212-18).
1. O Problema da Autoridade Política 6

explicaria o direito de executar ações de tipos que seriam considerados muito


errados e injustos para qualquer agente não autoritário.

1.3 Ações versus agentes: a necessidade de autori-


dade
Alguém precisa dessa noção de autoridade para explicar a diferença moral entre
o vigilante na Seção 1.1 e o governo? Ou podemos explicar a diferença apelando
apenas para diferenças entre o comportamento do governo e o comportamento
do vigilante?
Na história que a descrevi, havia muitas diferenças entre o comportamento
do vigilante e o de um governo típico; no entanto, nenhuma dessas diferenças
é essencial. Pode-se modificar o exemplo para remover qualquer diferença que
possa ser considerada relevante e, desde que não se converta o vigilante em um
governo, a maioria das pessoas ainda julgará intuitivamente o vigilante com
muito mais rigor do que os agentes do governo que agem de forma análoga.
Assim, considere o fato de que muitos governos fornecem julgamentos justos
por júri para criminosos acusados. O vigilante poderia fazer o mesmo. Suponha
que toda vez que você pegar um vândalo, pegue alguns de seus vizinhos e force-
os a passar por um julgamento. Após a apresentação das evidências, você faz
com que seus vizinhos votem na culpa ou inocência do vândalo acusado e usa o
resultado para decidir se deve puni-lo. Isso tornaria suas ações aceitáveis? Talvez
seu tratamento aos vândalos seja mais justo, mas dificilmente parece legitimar
seu programa como um todo. De fato, você agora adicionou outra ofensa à lista
de suas ações ultrajantes: sua escravização temporária de seus vizinhos para
servir a seu “sistema de justiça”.
Considere outra sugestão. Agentes do governo geralmente prendem pessoas
apenas por infrações às regras explicitamente publicadas – as leis – enquanto o
vigilante as pune apenas de acordo com seu senso interno de certo e errado. Essa
diferença também pode ser removida. Suponha que você escreva uma longa lista
de comportamentos que considere inaceitáveis, além de relatos do que planeja
fazer às pessoas que se envolvem nesses comportamentos. Você publica cópias de
suas listas em um quadro de avisos fora de sua casa. Novamente, isso dificilmente
é suficiente para legitimar seu comportamento.
Uma sugestão mais plausível inicialmente é que seu comportamento é im-
perceptível porque a comunidade não escolheu você para desempenhar esse
papel. Em contraste, nos países democráticos, os cidadãos escolhem seus líderes.
(Esse relato implica que apenas governos democráticos são legítimos; portanto, a
grande maioria dos governos ao longo da história foi ilegítima e a grande maioria
1. O Problema da Autoridade Política 7

das pessoas carecia de obrigações políticas. Essa provavelmente já é uma revisão


significativa do senso comum.) Mas observe que esse relato da diferença entre
o governo e o vigilante é um apelo à autoridade. Não afirma que o vigilante
esteja fazendo algo diferente do que o governo faz; alega que as ações em questão
podem ser executadas por um agente e não por outro. O vigilante não tem autori-
dade para punir criminosos e cobrar impostos porque ele não foi autorizado por
sua sociedade. Examino essa teoria da autoridade em um capítulo posterior. Por
enquanto, o ponto a observar é simplesmente que é necessário alguma motivação
de autoridade.

1.4 O significado de coerção e o alcance da autoridade


A necessidade de uma explicação da legitimidade política surge do significado
moral de coerção e da natureza coercitiva do governo. É importante colocar esses
princípios claramente em foco, a fim de ter uma visão clara do que precisa ser
explicado antes de tentar explicá-lo.
Primeiro, o que é coerção? A seguir, uso o termo “coerção” para denotar o
uso ou a ameaça de uma pessoa de usar força física contra outra pessoa. Quando
falo em forçar uma pessoa a fazer alguma coisa, quero dizer o uso da força física
ou a ameaça de força física para induzi-la a executar a ação desejada. Eu uso
“força física” e “violência” de forma intercambiável. Não vou definir “força física”
aqui; nosso entendimento intuitivo da noção será suficiente para os argumentos
subsequentes, e não confiarei em nenhum julgamento controverso sobre o que
qualifica como força física.
Minha definição de “coerção” não pretende ser uma análise do uso padrão do
termo em português. É uma definição estipulada, destinada a evitar a repetição
da frase “uso ou ameaça de usar força física”. Meu uso do termo difere do uso
comum de pelo menos duas maneiras: primeiro, no sentido comum do termo,
quando A “coage” B, A induz B a se comportar de maneira desejada por A; mas,
no meu sentido, A pode coagir B ferindo fisicamente B, independentemente de
A influenciar ou não o comportamento de B. Segundo, o senso comum considera
uma gama mais ampla de ameaças como coercitivas: no sentido comum, A pode
“coagir” B usando uma ameaça para espalhar rumores maliciosos sobre B. Isso
não se qualificaria como coerção no meu sentido, porque a ameaça não é de
violência. O conceito comum de coerção é útil em muitos contextos; no entanto,
introduzi uma definição estipulada, pois isso permite considerar alguns argu-
mentos importantes e interessantes a respeito da autoridade política, evitando
debates semânticos desnecessários.6
6
Edmundson (1998, capítulo 4) argumenta que o direito normalmente não é coercitivo no sen-
tido comum. Meu uso técnico de “coerção” foi projetado para evitar o argumento de Edmundson,
1. O Problema da Autoridade Política 8

O governo é uma instituição coercitiva. De um modo geral, quando o Estado


faz uma lei, a lei traz consigo uma punição a ser imposta aos infratores. É possível
ter uma lei sem punição especificada por violação, mas todos os governos atuais
atribuem punições a quase todas as leis.7 Nem todo mundo que infringir a lei
será de fato punido, mas o Estado geralmente fará um esforço razoável para punir
os infratores e geralmente punirá um número razoável deles, normalmente com
multas ou prisão. Essas punições têm como objetivo prejudicar os infratores da
lei e geralmente conseguem fazê-lo.
A violência física direta raramente é usada como punição. No entanto, a
violência desempenha um papel crucial no sistema, porque sem a ameaça de vio-
lência, os infratores da lei poderiam simplesmente optar por não sofrer punição.
Por exemplo, o governo ordena que os motoristas parem antes de todos os sinais
vermelhos. Se você violar essa regra, poderá ser punido com uma multa de $200.
Mas este é simplesmente outro comando. Se você não obedeceu ao comando de
parar antes de todos os sinais vermelhos, por que você obedeceria ao comando de
pagar $200 ao governo? Talvez o segundo comando seja imposto por um terceiro:
o governo pode ameaçar revogar sua carteira de motorista se você não pagar
a multa. Em outras palavras, pode ordenar que você pare de dirigir. Mas se
você violou os dois primeiros comandos, por que seguiria o terceiro? Bem, o co-
mando para parar de dirigir pode ser imposto por uma ameaça de prisão se você
continuar dirigindo sem licença. Como esses exemplos ilustram, os comandos
geralmente são aplicados com ameaças para emitir comandos adicionais, mas
isso não pode ser tudo o que existe. No final da cadeia deve surgir uma ameaça
que o violador literalmente não pode desafiar. O sistema como um todo deve
ser ancorado por uma intervenção não voluntária, um dano que o Estado pode
impor independentemente das escolhas do indivíduo.
Essa âncora é fornecida pela força física. Até a ameaça de aprisionamento
exige execução: como o Estado pode garantir que o criminoso vá para a prisão?
A resposta está na coerção, envolvendo lesão corporal real ou ameaçada ou, no
mínimo, empurrão ou puxão físico do corpo do indivíduo para o local da prisão.
Esta é a intervenção final que o indivíduo não pode escolher desafiar. Pode-se
optar por não pagar uma multa, pode-se dirigir sem licença e pode-se optar por
não caminhar até um carro da polícia para ser levado embora. Mas não se pode
optar por não ser submetido à força física se os agentes do Estado decidirem
impor.
Assim, o sistema jurídico baseia-se na coerção intencional e prejudicial. Para
justificar uma lei, é preciso justificar a imposição dessa lei à população por meio de
mantendo a presunção moral contra a coerção.
7
Existem algumas exceções, como leis contra suicídio, alguns tratados internacionais e a
constituição de um governo.
1. O Problema da Autoridade Política 9

uma ameaça de dano, incluindo a imposição coercitiva de dano real àqueles que
são flagrados violando a lei. Na moral do senso comum, a ameaça ou imposição
coercitiva real de dano está normalmente errada. Isso não quer dizer que não
possa ser justificada; é apenas dizer que a coerção requer uma justificativa. Isso
pode ser devido à maneira pela qual a coerção desrespeita as pessoas, procurando
ignorar sua razão e manipulá-las através do medo, ou a maneira pela qual parece
negar a autonomia e a igualdade de outras pessoas.
Não tentarei explicação alguma abrangente de quando a coerção é justifi-
cada. Confio no julgamento intuitivo de que a coerção prejudicial requer uma
justificativa, bem como em algumas intuições sobre condições particulares que
constituem ou não justificativas satisfatórias. Por exemplo, uma justificativa legí-
tima é a autodefesa ou defesa de terceiros inocentes: alguém pode coagir outra
pessoa se for necessário para impedir que ela prejudique injustamente outra
pessoa. Outra justificativa para coerção prejudicial é o consentimento. Assim, se
você estiver em uma luta de boxe com a qual ambos os participantes concordaram,
poderá dar um soco no seu oponente.
Por outro lado, muitas razões possíveis para coerção são claramente inade-
quadas. Se você tem um amigo que come muitas batatas fritas, tente convencê-lo
a desistir. Mas se ele não ouvir, você não pode forçá-lo a parar. Se você admira o
carro do seu vizinho, pode se oferecer para comprá-lo. Mas se ele não vender,
você não pode ameaçá-lo com violência. Se você não concorda com as crenças
religiosas de seu colega de trabalho, tente convertê-lo. Mas se ele não ouvir,
você não pode dar um soco em seu nariz. E assim por diante. Na ética do senso
comum, a esmagadora maioria das razões para a coerção falha como justificativa.
Os Estados modernos precisam de uma explicação da legitimidade política,
porque os Estados modernos geralmente coagem e prejudicam os indivíduos
por razões que seriam consideradas inadequadas para qualquer agente não-
governamental. Isso pode ser ilustrado através de algumas melhorias na história
da Seção 1.1.
Suponha que você anuncie que acredita que uma cidade vizinha está cons-
truindo algumas armas muito destrutivas, armas que um dia poderão ser usadas
para aterrorizar outras aldeias. Para impedir que isso aconteça, você reúne al-
guns moradores de mesma opinião e viaja para a cidade vizinha, onde depõe
violentamente o prefeito, destruindo alguns edifícios e previsivelmente matando
várias pessoas inocentes no processo.
Se você se comportasse dessa maneira, seria rotulado de terrorista e assassino,
e os pedidos de execução ou prisão perpétua provavelmente seriam abundan-
tes. Mas quando o governo se comporta dessa maneira, seu comportamento é
rotulado como “guerra”, e muitos o apoiam. Certamente, muitos rejeitam a ideia
de guerra preventiva. Mas apenas extremistas políticos descrevem soldados ou
1. O Problema da Autoridade Política 10

líderes do governo que os enviam para a batalha como terroristas e assassinos.


Mesmo entre os oponentes da guerra do Iraque em 2003, por exemplo, poucos
chegaram a considerar George W. Bush um assassino em massa ou pediram sua
execução ou prisão. A noção de autoridade política está em ação aqui: a sensação
é de que, seja sua escolha boa ou ruim, o governo é o agente com autoridade para
decidir se vai à guerra. Nenhum outro agente tem o direito de cometer violência
em larga escala para atingir seus fins em algo como essas circunstâncias.
Suponha agora que, em meio a todas as suas outras atividades incomuns, você
decida começar a apoiar a caridade. Você encontra uma instituição de caridade
que ajuda os pobres. Infelizmente, você acredita que sua aldeia não contribuiu o
suficiente para essa instituição de caridade voluntariamente, então você dedica a
extração de dinheiro de seus vizinhos à força e a entrega à instituição de caridade.
Se você se comportasse dessa maneira, seria rotulado como ladrão e extorsio-
nista e seria comum pedidos para aprisioná-lo e obrigá-lo a retribuir pessoalmente
aqueles cujo dinheiro você expropriou. Mas quando o governo se comporta dessa
maneira, seu comportamento é conhecido como conduzir programas de assistên-
cia social, e a maioria das pessoas o apoia. Certamente, existem alguns que se
opõem aos programas de bem-estar social, mas mesmo os oponentes raramente
veem os agentes do governo que administram os programas ou os legisladores
que votam nos programas como ladrões e extorsionistas. Muito poucos exigiriam
a prisão deles ou obrigariam-lhes a pagar pessoalmente os pagadores de impos-
tos. Mais uma vez, a noção de autoridade está em ação: pensamos que o governo
tem autoridade para redistribuir riqueza; organizações não-governamentais não.
Isso deve dar alguma indicação da gama de atividades governamentais cuja
justificativa se baseia na noção de autoridade política. No Capítulo 7 discutirei
mais detalhadamente até que ponto esse intervalo se estende. Mas mesmo a
partir dessa breve discussão, deve ficar claro que, sem uma crença na autoridade,
teríamos que condenar grande parte do que agora aceitamos como legítimo.

1.5 O conceito de autoridade: uma segunda passagem


Nesta seção, refino as noções de “autoridade política”, “legitimidade política”
e “obrigação política”. Os cinco princípios a seguir estão implícitos na concep-
ção comum de autoridade do governo; é isso que os defensores da autoridade
gostariam de defender:

1. Generalidade. A autoridade do Estado se aplica aos cidadãos em geral. Ou


seja, o Estado tem o direito de impor coercivamente regras a pelo menos
1. O Problema da Autoridade Política 11

a grande maioria de seus cidadãos, e a grande maioria dos cidadãos tem


obrigações políticas.8
2. Particularidade. A autoridade do Estado é específica para seus cidadãos e
residentes em seu território. Ou seja, um governo tem o direito de impor
regras àqueles em seu território de uma maneira que geralmente não tem o
direito de impor regras àqueles em países estrangeiros, e os cidadãos têm
obrigações com seus próprios Estados de um tipo que não suportam para
outros Estados.9
3. Independência de conteúdo. A autoridade do Estado não está atrelada ao
conteúdo específico de suas leis ou outros comandos.10 Ou seja, existe uma
ampla gama de leis possíveis, de modo que, dentro dessa faixa, o Estado
tem o direito de impor coercivamente as leis que escolher e cidadãos serão
obrigados a obedecê-las. O leque de leis aceitáveis não precisa ser ilimitado
– talvez o Estado não tenha o direito de fazer ou aplicar certos tipos de leis
grosseiramente injustas, como leis que impõem a escravidão. Mas, pelo
menos com frequência, o Estado tem o direito de fazer cumprir as leis,
mesmo que sejam más ou erradas, e os cidadãos são obrigados a obedecer.
4. Abrangência. O Estado tem o direito de regular uma ampla gama de ativi-
dades humanas, e os indivíduos devem obedecer às diretrizes do Estado
dentro dessa ampla esfera.11 Esse intervalo não precisa ser ilimitado; por
exemplo, talvez o Estado não possa regular os serviços as práticas religiosas
privadas dos cidadãos. Mas os Estados modernos tipicamente regulam
e têm o direito de regulamentar questões como os termos dos contratos
de trabalho, a negociação de títulos financeiros, procedimentos médicos,
procedimentos de preparação de alimentos em restaurantes, uso individual
de drogas, posse de armas individuais, entrada e saída de pessoas do país,
o voo de aviões, o comércio com países estrangeiros e assim por diante.
5. Supremacia. Dentro da esfera de ação que o Estado tem o direito de re-
gular, o Estado é a mais alta autoridade humana.12 Nenhum agente não-
governamental pode comandar o Estado, e nenhum agente tem o mesmo
direito de comandar indivíduos que o Estado possui.
Nas condições desenvolvidas de (1) a (5), procuro caracterizar fielmente a
concepção ordinária e comum de autoridade política. Uma defesa satisfatória da
8
Essa condição é articulada por Simmons (1979, 55-6).
9
Simmons 1979, pp. 31–5.
10
Hart 1958, 104; Raz 1986, 35-7, 76-7; Green 1988, 225-6; Christiano 2008, 250; Rawls, 1964, p.
11
Klosko 2005, 11–12.
12
Green 1988, 1, 78–83.
1. O Problema da Autoridade Política 12

autoridade deve acomodar e explicar esses cinco princípios. Se nenhuma teoria


plausível chega perto de acomodar os princípios de (1) a (5), deve-se concluir
que Estado algum realmente tenha autoridade.
Esses cinco princípios são vagos, empregando conceitos como o uma “ampla
gama” e uma “grande maioria”. Não tentarei tornar precisa a noção de autoridade
política nesses aspectos. O conceito será claro o suficiente para fins de avaliação
dos argumentos no restante do livro. Também é vago o quão intimamente uma
teoria deve acomodar esses princípios. Mais uma vez, não tentarei tornar isso
preciso. Devemos simplesmente observar que, se uma teoria está muito longe
de acomodar a concepção intuitiva de autoridade, então, em algum momento,
deixa de ser uma defesa da autoridade.
Algumas palavras sobre com quem os defensores da autoridade não estão
comprometidos: A ideia de obrigação política não implica que o governo que
comanda algo seja, por si só, suficiente para alguém ter a obrigação de fazer esse
algo. Aqueles que acreditam em autoridade podem sustentar que existem outras
condições para que os comandos do governo sejam vinculativos; por exemplo,
que as leis deveriam ter sido feitas de acordo com processos justos e democráticos,
que o atual governo não deveria ter usurpado um governo legítimo e anterior, e
assim por diante. Eles também podem sustentar que há limites para a autoridade
do governo; por exemplo, que as leis não podem ser injustamente grosseiras, que
não podem invadir certas esferas de privacidade protegidas e assim por diante.
Portanto, a ideia de que é preciso executar uma ação “porque a lei exige” pode
realmente significar, grosso modo, que é preciso executar uma ação porque a lei
exige, a lei foi feita de maneira apropriada por um governo legítimo, a lei não é
grosseiramente injusta e a lei está dentro da esfera de coisas que o governo pode
legitimamente regular.
Para ilustrar os princípios acima, considere o caso da tributação. De acordo
com a opinião popular, o Estado pode impor impostos a todos e quaisquer re-
sidentes em seu território, e os residentes geralmente são obrigados a pagar os
impostos (a condição de Generalidade). O Estado não tem direito a tributar pes-
soas em países estrangeiros, nem estrangeiros precisam pagar se o Estado tentar
cobra-lo (Particularidade).13 O Estado geralmente está autorizado a determi-
nar quais atividades em seu território serão tributadas e quanto, e os residentes
são obrigados a pagar esse valor, mesmo que o imposto seja excessivamente
alto ou baixo (Independência de conteúdo). Nenhuma pessoa ou organização
não-governamental tem o direito de tributar o Estado ou de tributar indivíduos
(Supremacia). Assim, se as visões populares estiverem corretas, o caso da tribu-
tação ilustra a autoridade política do governo.
13
Uma exceção são as tarifas, que são consideradas permitidas porque o Estado pode estabelecer
condições nas interações dos estrangeiros com o próprio povo do Estado.
1. O Problema da Autoridade Política 13

1.6 Um comentário sobre metodologia


A primeira parte deste livro é um exercício de aplicação da filosofia moral à
política. A preocupação central é a avaliação de nossas atitudes morais em
relação ao governo: os governos realmente têm o direito de fazer as coisas que
geralmente consideramos que eles têm o direito de fazer? Somos realmente
obrigados a obedecer aos governos da maneira que costumamos ser obrigados?
Questões desse tipo são notoriamente difíceis. Como elas devem ser aborda-
das? Uma abordagem seria partir de alguma teoria moral abrangente – digamos,
utilitarismo ou a deontologia kantiana – e tentar deduzir as conclusões apropri-
adas sobre direitos e deveres políticos. Eu, infelizmente, não posso fazer isso.
Não conheço a teoria moral geral correta e acho que ninguém conhece. As razões
do meu ceticismo são difíceis de comunicar, mas derivam da reflexão sobre os
problemas da filosofia moral e da literatura complexa, confusa e constantemente
contestada sobre esses problemas. É uma literatura em que uma teoria após a
outra se depara com um monte de quebra-cabeças e problemas que se tornam
cada vez mais complicados à medida que mais filósofos trabalham nela. Não
posso comunicar completamente a situação aqui; a melhor maneira de apreciar
meu ceticismo sobre a teoria moral seria os leitores se aprofundarem nessa li-
teratura. Aqui, vou simplesmente anunciar que não assumirei nenhuma teoria
moral abrangente, e acho que devemos ser muito céticos em relação a qualquer
tentativa de chegar a conclusões sólidas na filosofia política, partindo de uma
teoria. Por razões semelhantes, tampouco começo assumindo qualquer teoria
política geral, embora chegue a uma teoria política no final.
Qual é a alternativa? Começarei com alegações morais que são, inicialmente,
relativamente incontroversas.14 Esse parece um plano óbvio. A filosofia polí-
tica é um campo difícil e disputado. Quem espera progredir não pode começar
com uma teoria moral contenciosa, muito menos com uma ideologia política
contenciosa. As premissas de alguém devem ser coisas que, por exemplo, liberais
e conservadores normalmente acham óbvias à primeira vista. Deve-se, então,
tentar argumentar a partir dessas premissas a conclusões sobre as questões con-
testadas que são de interesse. Por mais natural que possa parecer, essa abordagem
raramente é adotada. Filósofos políticos comumente defendem uma posição em
alguma questão controversa, partindo de uma teoria geral controversa. Por exem-
plo, um filósofo pode procurar determinar se a imigração deve ser restringida
aplicando uma teoria hipotética de contrato social rawlsiana à questão.15
14
Na filosofia, quase todas as reivindicações são contestadas por alguém; portanto, não pode-
mos confiar em premissas totalmente incontroversas se quisermos chegar a conclusões interes-
santes.
15
Carens 1987, 255-62; Blake 2002.
1. O Problema da Autoridade Política 14

A maioria das premissas morais nas quais confio são avaliações morais de
comportamentos particulares em cenários relativamente específicos. A história
do vigilante na Seção 1.1 é um exemplo disso. É razoável assumir como premissa
que o indivíduo nessa história age de forma inadmissível. O caso não é um
dilema (como, por exemplo, o trolley problem16 ), nem envolve uma controvérsia
moral (como, por exemplo, o caso de alguém que faz um aborto). Para o senso
comum, a avaliação negativa é um veredicto direto e óbvio.17
Alguns filósofos acreditam que, ao fazer filosofia moral, deve-se confiar ape-
nas em princípios éticos abstratos, recusando-se a confiar em avaliações intuitivas
de casos específicos.18 Outros acreditam, mais ou menos, que apenas deve-se
confiar em julgamentos sobre casos particulares.19 Ainda outros pensam que não
se pode confiar em julgamentos éticos e que não há conhecimento moral.20 Todas
essas visões me parecem erradas. O que parece certo é que julgamentos éticos
controversos tendem a não ser confiáveis, enquanto julgamentos éticos incon-
troversos e óbvios – sejam específicos ou gerais – tendem a ser confiáveis. Devo
assumir que temos algum conhecimento moral e que nossos julgamentos éticos
mais claros e amplamente compartilhados são exemplos desse conhecimento.21
Embora minhas premissas éticas sejam relativamente incontroversas, minhas
conclusões não serão. Pelo contrário, as conclusões que chego estão tão longe das
opiniões iniciais da maioria das pessoas que provavelmente nenhum argumento
poderia convencer a maioria das pessoas a aceitá-las. Finalmente, concluo que a
autoridade política é uma ilusão: ninguém tem o direito de governar e ninguém
é obrigado a obedecer a um comando apenas porque provém de seu governo.
Mas, embora isso possa ser contra-intuitivo para a maioria das pessoas, não
acho que isso revele algum erro da minha parte. Bertrand Russell disse: “O
ponto da filosofia é começar com algo tão simples que não pareça digno de
ser declarado, e terminar com algo tão paradoxal que ninguém vai acreditar.”22
Eu não acredito que isso seja o ponto da filosofia, mas raciocinar de premissas
intuitivas a conclusões surpreendentes não é necessariamente uma marca da
filosofia ruim.
16
Ver Foot 1967.
17
Nisto uso o “senso comum” para o que a grande maioria das pessoas tende a aceitar, es-
pecialmente em minha sociedade e sociedades às quais os leitores deste livro provavelmente
pertencem. Isso não deve ser confundido com o uso técnico de “crenças de senso comum” em
meus trabalhos anteriores (2001, 18-19).
18
Singer 2005.
19
Dancy 1993, capítulo 4.
20
Mackie 1977.
21
Ver Huemer 2005, especialmente o capítulo 5, para uma descrição do conhecimento moral e
respostas ao ceticismo moral.
22
Russell, 1985, p. 53.
1. O Problema da Autoridade Política 15

Minhas atitudes em relação ao senso comum podem parecer inconsistentes.


Por um lado, considero as intuições éticas mais amplamente compartilhadas nas
premissas razoáveis nas quais confiar. Por outro lado, afirmo que algumas crenças
políticas amplamente compartilhadas estão fundamentalmente equivocadas. A
alegação de que existem alguns governos legítimos não é muito controversa;
quase todo mundo, à esquerda ou à direita do espectro político, considera isso um
dado adquirido. Por que, então, não aceito a existência de Estados legítimos como
premissa inicial, assim como aceito crenças de bom senso sobre ética pessoal?
Uma razão é que eu nunca compartilhei intuições políticas de outras pessoas,
se é isso que elas são. Compartilho a maioria das intuições normativas da minha
sociedade, como a de que não se deve roubar, matar ou prejudicar outras pessoas
(exceto em certos casos especiais, como a autodefesa); que geralmente se deve
dizer a verdade e cumprir as promessas; e assim por diante. Mas nunca me
pareceu que houvesse pessoas com o direito de governar os outros, e nunca me
pareceu que alguém fosse obrigado a obedecer a uma lei simplesmente porque é
a lei.
Minhas intuições não são totalmente idiossincráticas. No discurso político
contemporâneo, há uma minoria vocal que defende reduções drásticas no ta-
manho do governo. Muitas vezes, defendem seus pontos de vista em termos
práticos (programas do governo não funcionam) ou em termos de reivindica-
ções absolutistas sobre os direitos individuais. Mas acho que esses argumentos
perdem a questão principal. Acredito que a verdadeira motivação subjacente é
um amplo ceticismo em relação à autoridade política: no fundo, os defensores
de um governo menor simplesmente não veem por que o governo deveria ter
permissão para fazer tantas coisas que ninguém mais poderia fazer. Mesmo que
você não compartilhe essa atitude cética, eu recomendaria não descartar simples-
mente as intuições daqueles com ideologias diferentes. Os seres humanos são
altamente falíveis na filosofia política, e confrontos de intuições são frequentes.
A objetividade exige que cada um de nós considere seriamente a possibilidade
de que somos nós que temos as intuições equivocadas.
Aqueles que começam com a intuição de que alguns Estados possuem au-
toridade podem desistir dessa intuição se, como pretendo mostrar, revelar que
a crença na autoridade política é incompatível com as crenças morais do senso
comum. Há três razões para preferir aderir à moralidade do senso comum em
vez da filosofia política do senso comum: primeiro, como sugeri, a filosofia polí-
tica do senso comum é mais controversa do que a moralidade do senso comum.
Segundo, mesmo aqueles que aceitam visões políticas ortodoxas geralmente são
mais fortemente convencidos da moralidade do senso comum do que da filosofia
política do senso comum. Terceiro, mesmo aqueles que aceitam intuitivamente
a autoridade podem ao mesmo tempo ter a sensação de que essa autoridade é
1. O Problema da Autoridade Política 16

intrigante – que é necessária alguma explicação para o motivo pelo qual algumas
pessoas devem ter esse status moral especial – de uma maneira que não seja intri-
gante, por exemplo, que deveria ser errado atacar outras pessoas sem provocação.
O fracasso em encontrar uma explicação satisfatória da autoridade política pode,
portanto, levar a pessoa a desistir da crença na autoridade, em vez de desistir
das crenças morais do senso comum.

1.7 Plano do livro


A tese central da primeira parte deste livro é que a autoridade política é uma
ilusão moral. Mostro isso através de uma crítica das principais considerações
filosóficas de autoridade (Capítulos 2 a 5). Sigo a discussão dessas teorias,
com uma discussão da psicologia de nossas atitudes em relação à autoridade
(Capítulo 6), na qual sugiro que as considerações filosóficas da autoridade são
racionalizações para atitudes com fontes não-racionais, fontes nas quais devemos
confiar pouco.
A maioria das pessoas acredita que o governo é incrivelmente benéfico, que
sem ele a sociedade entraria em colapso em um estado de caos absoluto. Eu
pediria ao leitor que deixasse essa crença de lado por enquanto. A questão da
primeira parte deste livro não é se o governo é bom ou ruim. A questão é se o
governo tem certos direitos especiais que você e eu não temos e se temos certos
deveres especiais para o governo que não temos em relação a mais ninguém. Um
governo, como um vigilante particular, poderia ser altamente benéfico e ainda
assim carecer de autoridade no sentido que defini. A maioria das defesas da
autoridade é mais do que a alegação de que o agente autorizado oferece grandes
benefícios. Por exemplo, a teoria do contrato social afirma que os cidadãos de
alguns Estados consentiram em seu sistema político. A existência e validade
desse consentimento podem ser examinadas independentemente da magnitude
dos benefícios proporcionados pelo Estado. Certamente, pode-se pensar que os
grandes benefícios fornecidos pelo Estado desempenham um papel fundamental
no estabelecimento de sua legitimidade. Esse tópico será abordado no capítulo 5
e, em mais detalhes, na parte II do livro. Peço ao leitor que deixe essa questão de
lado até que seja hora de abordá-la diretamente.
Perguntas sobre a necessidade do Estado e sobre como uma sociedade pode
funcionar sem a crença na autoridade são importantes. Essas perguntas serão
abordadas na Parte II, onde abordo as consequências práticas de abandonar a
ilusão de autoridade política. A tese central da Parte II será a de que a sociedade
pode funcionar e florescer sem uma aceitação geral da autoridade.
Minha filosofia política é uma forma de anarquismo. Na minha experiência, a
maioria das pessoas parece convencida de que o anarquismo é um absurdo óbvio,
1. O Problema da Autoridade Política 17

uma ideia que pode ser refutada em trinta segundos com o mínimo de reflexão.
Essa foi mais ou menos a minha atitude antes que eu soubesse alguma coisa sobre
a teoria. Também é minha experiência que aqueles que sustentam essa atitude não
têm ideia do que os anarquistas realmente pensam – como os anarquistas pensam
que a sociedade deve funcionar ou como eles respondem às objeções de trinta
segundos. Os anarquistas enfrentam dificuldades: a maioria das pessoas não
dará ouvidos ao anarquismo seriamente porque está convencida de que a posição
é louca; estão convencidas de que a posição é louca porque não a entendem; não
o entendem porque não vão dar uma audiência séria. Peço, portanto, ao leitor
que não desista de ler este livro apenas por causa de sua conclusão. O autor não
é estúpido, nem louco e nem mau; ele tem uma consideração fundamentada de
como uma sociedade sem Estado pode funcionar. Independentemente de você
aceitar ou não essa consideração, é muito provável que você ache que valeu a
pena considerar.
Na literatura filosófica nos últimos anos, tornou-se comum questionar a rea-
lidade das obrigações políticas. O ceticismo sobre a obrigação política é agora
provavelmente a visão dominante. Esse desenvolvimento surpreendente deve-se
principalmente ao ardiloso trabalho de A. John Simmons, que derrubou várias
considerações importantes de obrigação política em sua obra Moral Principles
and Political Obligation. Apoio a maioria dos argumentos de Simmons. Alguns
leitores já estarão familiarizados com esses argumentos, mas muitos não; assim,
nos capítulos seguintes, explico os argumentos mais importantes contra a obriga-
ção política, independentemente deles já terem sido impressos antes. Ao mesmo
tempo, acredito que os filósofos contemporâneos não foram suficientemente
longe. Os filósofos que trabalham com obrigações políticas têm enfrentado prin-
cipalmente a inadequação de considerações existentes de obrigações políticas.
Mas ainda não enfrentaram a inadequação das considerações de legitimidade po-
lítica.23 E muito poucos filósofos hoje dão muita atenção ao anarquismo político.
Normalmente, os argumentos sobre a obrigação política tomam como certo que o
Estado é vitalmente necessário; a visão dominante diz que, embora necessitemos
de governo e mesmo que os Estados modernos sejam justificados na maioria
de suas atividades típicas, ainda não somos obrigados a obedecer à lei apenas
como tal. Espero que este livro induza uma reflexão mais profunda, tanto no
pressuposto da legitimidade política quanto no pressuposto da necessidade do
Estado.
23
Simmons (1979, 196) nega que haja governos “legítimos” ou que quaisquer governos tenham
o “direito” de coagir ou punir seus cidadãos. No entanto, ele parece usar esses termos em um
sentido mais forte que o meu, porque continua aceitando que os governos possam ser moralmente
justificados em suas atividades (199). Isso é confirmado por Simmons 2001, 130-1. Portanto, a
aparente concordância de Simmons comigo é apenas verbal; na minha terminologia, Simmons
aceita legitimidade política, enquanto eu a rejeito.
2

A Teoria Tradicional do Contrato


Social

2.1 A ortodoxia do contrato social


A teoria do contrato social é a defesa da autoridade mais proeminente nos últimos
400 anos de filosofia e tem uma reivindicação tão boa quanto a de ser a teoria da
autoridade nos Estados Unidos. A teoria sustenta que, pelo menos em alguns
países, existe uma relação contratual entre o governo e seus cidadãos. O contrato
exige que o governo forneça certos serviços para a população, principalmente
proteção contra criminosos privados e governos estrangeiros hostis. Em troca,
os cidadãos concordam em pagar seus impostos e obedecer às leis.1 Algumas
visões do contrato social atribuem ao governo um papel mais amplo, talvez
incluindo prover as necessidades básicas dos cidadãos indigentes, garantir uma
distribuição equitativa dos recursos materiais e assim por diante.2 O que um
teórico em particular considera serem as funções legítimas do Estado, o teórico
argumentará que o contrato social autoriza e obriga o Estado a desempenhar
essas funções.
Sob os termos da teoria tradicional do contrato social, a obrigação política é
uma espécie de obrigação contratual: os cidadãos devem obedecer à lei porque
concordaram em fazê-lo. O contrato social também seria responsável pela legiti-
midade política diretamente. Se uma pessoa concorda em ser submetida a uma
forma específica de coerção, então, em regra, essa coerção não estará errada e
1
Locke 1980. Hobbes, no entanto, alega que o Estado não deve nada aos cidadãos porque o
Estado não é parte no contrato; em vez disso, ele aceita o contrato social como um acordo entre
os cidadãos (1996, 122).
2
Rawls 1999; Gauthier 1986.

18
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 19

não violará seus direitos. Por exemplo, normalmente é errado cortar uma pessoa
com uma faca.
Mas se você contratou um médico para realizar uma cirurgia em você, não é
errado e nem é uma violação dos seus direitos que ele o corte para realizar essa
cirurgia. Na mesma linha, se os cidadãos concordaram em pagar ao governo por
seus serviços e concordaram em ser submetidos à coerção se não pagarem, então
é permitido que o governo force seus cidadãos a pagar.3

2.2 A teoria do contrato social explícito


Existe um contrato social? À primeira vista, a teoria exibe um desprezo descarado
pela realidade: ninguém nunca recebeu um contrato descrevendo como o governo
opera e pediu uma assinatura. Poucos já estiveram em uma situação em que uma
declaração verbal ou escrita de concordância com um governo seria apropriada,
e muito menos na verdade fez tal declaração. Quando os teóricos do contrato
social acham que esse evento aconteceu?
John Locke acreditava que havia (no caso de pelo menos alguns governos)
um acordo real e explícito feito na época em que o governo foi fundado.4 Poucas
evidências permanecem desses eventos, explicou Locke, porque as pessoas na-
quela época mantinham poucos registros. Ele cita Roma e Veneza como exemplos
de casos em que uma sociedade foi fundada com um contrato social explícito.
Mas mesmo que houvesse um contrato social original, como esse contrato
poderia vincular as pessoas nascidas muito mais tarde, que nunca participaram
do acordo original e nunca foram solicitadas a consentir? Locke acreditava que
funcionava através de um pacto restritivo perpétuo na terra: os contratados
originais comprometeram todos os seus bens, incluindo suas terras, à jurisdição
do governo que estavam criando, para que qualquer pessoa que usasse essa terra
no futuro devesse se submeter a esse governo.5
Apesar da esperteza dessa última manobra, toda essa teoria é pura mitologia,
e seu interesse hoje é principalmente como um pouco de história e como uma
tábula para teorias mais plausíveis. David Hume pintou o quadro mais realista da
história humana, quando observou que quase todos os governos são fundados na
usurpação ou na conquista.6 Ou seja, em algum momento da história de qualquer
nação atualmente existente, ou o governo foi tomado à força por uma pessoa
3
Uma questão interessante permanece sobre se os cidadãos poderão mais tarde retirar seu
consentimento, pois normalmente se pode retirar o consentimento para outras formas de coerção.
Isso levanta problemas adicionais aos discutidos abaixo no texto.
4
Locke 1980, seções 100–4.
5
Locke 1980, seções 116–17, 120–1.
6
Hume 1987, 471.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 20

que não tinha o direito para isso, como em um coup d’état, ou o governo (ou
seus cidadãos ou futuros cidadãos) apreendeu a terra que atualmente controla
dos habitantes originais pela força. Qualquer um desses eventos invalidaria a
autoridade do Estado, em uma visão lockeana.
No caso dos Estados Unidos e de seu governo, por exemplo, a história é
de conquista. O território atual dos Estados Unidos foi roubado dos nativos
americanos e depois colocado sob o controle do governo dos EUA. Do ponto de
vista lockeano, essa história torna ilegítimo o controle do governo dos EUA sobre
a terra.
Como eu disse, essa teoria é principalmente de interesse histórico hoje; ne-
nhum teórico contemporâneo proeminente apoia a teoria explícita do contrato
social. A próxima versão da teoria do contrato social é projetada para evitar esses
problemas.

2.3 A teoria do contrato social implícito


Consentimento explícito é o consentimento que se indica, declarando, verbal-
mente ou por escrito, que se consente. Por outro lado, consentimento implícito é o
consentimento que se indica através da conduta de alguém, sem realmente decla-
rar seu acordo. Se os cidadãos não adotaram um contrato social explicitamente,
talvez o tenham adotado implicitamente.
Como se pode indicar um acordo sem declará-lo? Em algumas situações,
alguém expressa concordância com uma proposta, simplesmente se abstendo de
se opor. Eu chamo isso de “consentimento passivo”. Suponha que você esteja em
uma reunião do conselho, onde o presidente diz: “A reunião da próxima semana
será transferida para terça-feira às dez horas. Alguma objeção?” Ele faz uma
pausa e ninguém diz nada. “Bom, estamos de acordo”, conclui o presidente.7
Nessa situação, é plausível que a falta de manifestação de dissidência quando
convidados a fazê-lo indique que os conselheiros concordam com a mudança.
Em outros casos, a pessoa se compromete a aceitar determinadas demandas
solicitando ou voluntariamente aceitando benefícios aos quais essas demandas
são conhecidas por estarem anexadas. Eu chamo isso de “consentimento através
da aceitação de benefícios”. Por exemplo, suponha que você entre em um restau-
rante e peça um wrap vegetariano agradável e saboroso. Depois de comer o wrap,
a garçonete traz o cheque. “O que é isso?”, você diz. “Eu nunca disse que pagaria
por isso. E se você queria pagamento, deveria ter dito isso no início. Sinto muito,
mas não lhe devo nada.” Nesse caso, o restaurante poderia argumentar plausivel-
mente que, ao pedir a comida, você implicitamente indicou concordância com a
7
Esse exemplo é de Simmons (1979, 79–80).
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 21

demanda usual relacionada à provisão da comida: a saber, pagamento do preço


mencionado no menu. Como é bem sabido nesta sociedade (e presumivelmente
por você) os restaurantes geralmente só estão dispostos a fornecer comida para
receber o pagamento, era de sua responsabilidade, se você quisesse comida de
graça, declarar isso com antecedência. Caso contrário, a suposição padrão é de
que você concorda em participar da prática normal. Por esse motivo, você seria
obrigado a pagar por sua refeição, apesar de seus protestos em contrário.
Uma terceira forma de consentimento implícito é o que chamo de “consenti-
mento através da presença”, pelo qual se indica concordância com uma proposta
apenas permanecendo em algum local. Enquanto faço uma festa em minha casa,
anuncio, em voz alta e clara a todos os presentes, que quem quiser ficar na mi-
nha festa deve concordar em ajudar na limpeza depois. Depois de ouvir o meu
anúncio, você continua festejando. Ao fazer isso, você indica que concorda em
ajudar na limpeza no final.
Finalmente, às vezes alguém implicitamente concorda com as regras que
governam uma prática, participando voluntariamente da prática. Eu chamo
isso de “consentimento através da participação”. Suponha que, durante uma de
minhas aulas de filosofia, eu diga aos alunos que vou fazer uma loteria voluntária.
“Quem quiser participar”, explico, “colocará seus nomes nesse chapéu. Vou
desenhar um nome aleatoriamente. Cada um dos outros participantes pagará $1
à pessoa cujo nome foi desenhado.” Suponha que você coloque seu nome no meu
chapéu. Quando o nome do vencedor é sorteado, você descobre que o vencedor
não era você. Eu venho coletar $1 de você para dar ao aluno vencedor. “Não
te devo nada”, você insiste. “Nunca disse que concordei em pagar $1. Tudo o
que fiz foi soltar meu nome em seu chapéu. Talvez eu tenha feito isso apenas
porque gosto de colocar meu nome em chapéus.” Nesta situação, parece que você
é obrigado a entregar $1. Sua participação voluntária no processo, quando era
sabido como o esquema deveria funcionar, indica que você concordou em aceitar
os possíveis encargos financeiros associados ao meu esquema de loteria.
Cada um desses quatro tipos de consentimento implícito – consentimento pas-
sivo, consentimento através da aceitação de benefícios, consentimento através da
presença e consentimento através da participação – pode ser usado como modelo
para a aceitação implícita dos cidadãos do contrato social. Para começar, talvez
os cidadãos tipicamente concordem com o contrato social apenas abstendo-se de
objetar a ele (consentimento passivo). Apenas alguns de nós já têm declarados
explicitamente que aceitamos o contrato social, outros afirmaram que não o acei-
tamos. (As exceções são anarquistas que declararam explicitamente sua rejeição
ao governo.)
O consentimento através da aceitação de benefícios também conferiria uma
autoridade quase universal. Quase todo mundo aceitou pelo menos alguns bene-
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 22

fícios de seu governo. Existem certos bens públicos – como segurança nacional
e prevenção ao crime – que o Estado fornece automaticamente a todos dentro
de seu território. Esses bens não são relevantes para o consentimento, porque
são benefícios dados caso os cidadãos os desejam ou não. Os pacifistas, por
exemplo, recebem o “bem” da defesa militar, contra sua vontade. No entanto,
existem outros bens que os cidadãos têm a opção de aceitar. Por exemplo, quase
todo mundo usa estradas que foram construídas por um governo. O governo
não força as pessoas a usar essas estradas; portanto, este é um caso de aceitação
voluntária de um benefício governamental. Da mesma forma, se alguém chama
a polícia para pedir assistência ou proteção, se leva outra pessoa ao tribunal, se
envia voluntariamente seus filhos para escolas públicas ou se tira proveito dos
programas governamentais de bem-estar social, aceita voluntariamente os bene-
fícios governamentais. Pode-se então argumentar que se aceita implicitamente
as condições conhecidas como vinculadas à existência de um governo – que se
deve ajudar a pagar os custos monetários do governo e obedecer às suas leis.
Considere a seguir o caso de consentimento através da presença. Essa, na
minha experiência, é a teoria mais popular de como os cidadãos dão seu con-
sentimento ao Estado, talvez porque seja o único caso que pode ser aplicado a
todos dentro do território do Estado. O governo não exige que ninguém (exceto
prisioneiros) permaneça no país, e é sabido que aqueles que vivem dentro de um
determinado país devem obedecer às leis e pagar impostos. Portanto, permane-
cendo voluntariamente, talvez aceitamos implicitamente a obrigação de obedecer
às leis e pagar impostos.8
Por fim, alguns cidadãos podem dar consentimento implícito através da parti-
cipação no sistema político. Se alguém vota nas eleições, pode-se inferir que se
aceita o sistema político em que está participando. Isso, por sua vez, pode obrigar
alguém a respeitar o resultado do processo político, incluindo as leis feitas de
acordo com as regras do sistema, mesmo quando diferentes das leis desejadas.
Se alguma dessas quatro sugestões persistir, elas seriam responsáveis tanto
pela obrigação política quanto pela legitimidade política, pelo menos no que diz
respeito a alguns cidadãos.

2.4 Condições para acordos válidos


Um contrato válido é um contrato moralmente eficaz – ou seja, consegue tornar
permitida alguma ação com a qual alguém consente ou em gerar uma obrigação
de agir da maneira que concordou em agir. Todos os exemplos na seção anterior
eram de acordos válidos. Mas alguns “acordos” são inválidos. Por exemplo,
8
Locke 1980, seções 120–1; Otsuka 2003, capítulo 5.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 23

suponha que um criminoso aponte uma arma para sua cabeça e exija que você
assine os direitos do filme baseado em seu livro mais recente. Se você assinar, o
contrato será inválido, porque a ameaça de violência o tornou não-voluntário.
Ou suponha que você concorda em comprar uma televisão de um vendedor, mas
o vendedor não informa que a televisão está quebrada e não exibe uma imagem.
Nesse caso, o contrato de venda é inválido porque foi provocado por fraude
por parte do vendedor. As televisões normalmente são consideradas capazes
de exibir uma imagem, e isso é essencial para o motivo pelo qual as pessoas
as compram. Assim, se alguém deseja vender uma televisão que não funciona,
deve declarar essa condição; caso contrário, a suposição padrão é que a televisão
funcione.
Não tentarei uma abranger todos os casos de quando existe um contrato
válido. Mas a seguir estão quatro princípios gerais plausíveis que governam
acordos válidos:

1. O consentimento válido requer uma maneira razoável de optar por não participar
(sair do acordo). Todas as partes de qualquer contrato devem ter a opção
de rejeitá-lo sem sacrificar nada a que tenham direito. Considere uma
modificação do exemplo da reunião do conselho da Seção 2.3. O presidente
diz: “A reunião da próxima semana será transferida para terça-feira às dez
horas. Aqueles que se opuserem gentilmente sinalizarão isso cortando os
braços esquerdos.”9 Nenhum braço é cortado. “Bom, estamos de acordo!”,
ele declara. Este não é um acordo válido, porque a demanda de que os
membros do conselho desistam de seus braços esquerdos, pois o preço da
dissidência da mudança de cronograma não é razoável. Por outro lado,
no exemplo da minha festa da Seção 2.3, a exigência de que você saia da
minha festa se não concordar em ajudar na limpeza é razoável, porque
tenho o direito de determinar quem pode participar de minhas festas. A
diferença importante entre o exemplo modificado da sala de reuniões e o
exemplo da festa não é uma questão de quão grandes são os custos; isto é,
não é simplesmente que perder o braço esquerdo seja muito pior do que ser
expulso de uma festa.10 O presidente não teria justificativa nem de exigir
que os membros do conselho pagassem $1 para expressar sua objeção à
mudança de horário. Pelo contrário, é uma questão de quem tem direitos
sobre o bem que os dissidentes são solicitados a desistir. Aqueles que
buscam um acordo seu com alguma proposta não podem exigir que você
desista de seus direitos como custo de rejeitar a proposta. Posso exigir que
9
Esse exemplo é de Simmons (1979, 81).
10
Como Otsuka (2003, 97) argumenta, o consentimento pode ser válido mesmo quando a falta
de consentimento tenha sido muito cara.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 24

você desista do uso de minha propriedade se não aceitar alguma proposta


minha, mas não posso exigir que você desista do uso de sua propriedade.

2. Dissidência explícita supera alegado consentimento implícito. Um acordo implí-


cito válido não existe se alguém declarar explicitamente que não concorda.
Considere uma modificação do exemplo do restaurante da Seção 2.3. Su-
ponha que, depois de estar sentado, você diga à garçonete: “Não pagarei
pela comida que você me trouxer. Mas gostaria que você me desse um wrap
vegetariano.” Se a garçonete lhe trouxer o wrap, você não é obrigado a pagar
por isso. Dada sua afirmação, ela não poderia plausivelmente afirmar que
você concordou em pagar pela refeição. E o exemplo da festa? Anuncio que
qualquer pessoa que permanecer na minha festa deve concordar em ajudar
na limpeza. Suponha que, depois do meu anúncio, você responda: “Não
concordo”. Depois, peço que você saia, mas você se recusa e permanece até
o final da festa. Você é obrigado a ajudar na limpeza? Você não concordou
em limpar, pois declarou explicitamente que não concordava (quão mais
claro você poderia ter sido?). No entanto, é plausível que você seja obrigado
a ajudar na limpeza – não porque você concordou com isso, mas porque eu
tenho o direito de estabelecer condições para o uso da minha casa, incluindo
a condição de que quem a usa ajude a limpá-la. Isso deriva não de um
acordo, mas de minha propriedade sobre a casa.

3. Uma ação pode ser tomada como indicação de concordância com algum esquema,
apenas se for possível acreditar que, se alguém não o adotasse, o esquema não seria
imposto a ele. Suponha que, no exemplo da reunião do conselho, o presidente
anuncie: “A reunião da próxima semana será transferida para terça-feira
às dez horas, e eu não me importo com o que algum de vocês tem a dizer
sobre isso – a mudança de horário acontecerá mesmo você objetando ou
não. Agora, alguém quer se opor?” Ele faz uma pausa. Ninguém diz nada.
“Bom, estamos combinados”, ele declara. Nesse caso, não há acordo válido.
Embora os membros do conselho tenham tido a chance para objetar, tam-
bém ficou entendido que, se objetassem, a mudança de cronograma seria
imposta de qualquer maneira. Seu fracasso em expressar objeções, por-
tanto, não pode ser considerado um indicativo de concordância. Isso pode
simplesmente indicar que eles não desejaram perder tempo protestando
contra algo sobre o qual não tinham escolha.

4. A obrigação contratual é mútua e condicional. Um contrato normalmente coloca


ambas as partes sob uma obrigação mútua e a rejeição de uma parte de sua
obrigação contratual libera a outra parte de sua obrigação. Suponha que
você peça comida em um restaurante. Existe um acordo implícito entre você
e os proprietários do restaurante: eles fornecem comida e você paga. Se a
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 25

garçonete nunca trouxer a comida, você não precisará pagar; o fracasso em


cumprir o negócio até o fim libera você da obrigação de cumprir o seu. Além
disso, se uma parte simplesmente comunicar que não pretende cumprir
o contrato, a outra parte também não é obrigada a cumpri-lo. Assim, se,
depois de pedir comida, mas antes de recebê-la, você informar a garçonete
que não reconhece nenhuma obrigação de pagar o restaurante, o restaurante
poderá concluir que você rejeitou o contrato e eles não precisam lhe trazer
comida.

Essas quatro condições pertencem à concepção de senso comum de consenti-


mento e contratos. Na próxima seção, aplico esses princípios ao contrato social
putativo.

2.5 O contrato social é válido?


2.5.1 A dificuldade de optar por não participar
Comece com a primeira condição em contratos válidos: todas as partes de um
contrato devem ter uma maneira razoável de optar por não participar. Quais são
os meios disponíveis para optar por sair do contrato social? Há apenas um: é
preciso desocupar o território controlado pelo Estado.
Vamos revisar algumas das razões pelas quais podemos ter deixado de exercer
essa opção. Para deixar o país, geralmente é necessário obter a permissão de outro
Estado para entrar em seu território, e a maioria dos Estados impõe restrições
à imigração. Além disso, alguns indivíduos carecem de recursos financeiros
para se mudarem para o país de sua escolha. Aqueles que podem se mudar
podem deixar de fazê-lo devido a apegos à família, amigos e casa. Finalmente,
se alguém se mudar para outro país, ficará apenas sujeito a outro governo. O
que se deve fazer se não deseja consentir com nenhum governo? Aqueles que
procuram evitar todas as jurisdições governamentais têm três opções: podem
viver no oceano, se mudar para a Antártica ou cometer suicídio.
Diante disso, a opção de deixar o território controlado pelo Estado é uma
maneira razoável de optar pelo contrato social? Alguns acham isso irracional
porque a demanda é muito onerosa. Nas palavras de David Hume,

Podemos também afirmar que um homem, permanecendo em um na-


vio, consente livremente com o domínio do mestre; embora ele tenha
sido carregado a bordo enquanto dormia, e deve pular no oceano e
perecer no momento em que abandoná-lo.11
11
Hume 1987, 475.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 26

No entanto, conforme discutido na Seção 2.4, esse não é o problema principal.


A questão principal é se alguém está sendo solicitado a desistir de algo a que
tem direito, como preço de rejeitar o contrato social. Este certamente parece
ser o caso. Se um presidente do conselho não pode exigir que os membros do
conselho lhe paguem $1 para expressar discordância de uma mudança proposta
no cronograma, como alguém pode ser obrigado a desistir de casa e emprego e
deixar todos os amigos e familiares para trás para expressar desacordo com um
contrato?
Aqui está uma resposta: talvez o Estado possua todo o território sobre o qual
reivindica jurisdição. Logo, assim como eu posso expulsar pessoas da minha
casa se elas não concordarem em ajudar na limpeza no final da festa, o Estado
poderá expulsar pessoas de seu território se não concordarem em obedecer às
leis e pagar impostos.
Mesmo se admitimos que o Estado possui seu território, é discutível se ele
pode expulsar pessoas que rejeitam o contrato social (compare o seguinte: se
alguém que deixar minha festa antes do fim estiver fadado a morrer, então, pode-
se pensar: eu perco o direito de expulsar pessoas da minha festa). Mas não
precisamos resolver esse problema aqui; em vez disso, podemos nos concentrar
em saber se o Estado de fato possui todo o território sobre o qual reivindica
jurisdição. Se ele não possui, então falta o direito de estabelecer condições para o
uso dessa terra, incluindo a condição de que os ocupantes devam obedecer às
leis do Estado.
Para ilustração, considere o caso dos Estados Unidos. Nesse caso, o controle
do Estado sobre seu território deriva (1) da expropriação anterior daquela terra
por colonos europeus das pessoas que a ocupavam originalmente e (2) do poder
coercitivo atual do Estado sobre os proprietários individuais que receberam título
de partes desse território, transmitido através das gerações dos expropriadores
originais. Isso não parece dar origem a um direito legítimo de propriedade por
parte do governo dos EUA.12 Mesmo se negligenciarmos a fonte (1), a fonte (2),
que se aplica a todos os governos, não é uma base legítima para uma reivindicação
de propriedade. Poder não dá direito; o mero fato de o Estado exercer poder
sobre as pessoas em uma determinada região não confere ao Estado um direito
de propriedade (nem qualquer outro tipo de direito) em todas as terras dessa
região.
12
O problema da história injusta afeta toda ou a maioria das terras do mundo. Não está claro o
que deve ser feito sobre esse problema, quando é impossível devolver a terra aos seus últimos
proprietários legítimos. Não proponho solução para esse problema ético aqui; no entanto, afirmo
que o princípio “quem detém o poder sobre a população atualmente ocupando a terra tenha
o direito de controlar seu uso” carece de força ética. No mínimo, alguma defesa prévia da
legitimidade de um governo parece necessária para estabelecer seu direito de controlar a terra.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 27

Se pudéssemos estabelecer a autoridade do Estado, então o Estado poderia


estabelecer a propriedade de todo o seu território, simplesmente promulgando
uma lei que designasse essa propriedade a si mesmo. A lei de “domínio eminente”
(ou “compra obrigatória”, “retomada” ou “expropriação”, dependendo do país
em que alguém vive) pode ser interpretada como justamente essa lei. Mas isso
não tem utilidade para o teórico do contrato social, pois o contrato social é uma
maneira de estabelecer a autoridade do Estado. O teórico do contrato social,
portanto, pode não pressupor a autoridade do Estado para explicar como o
próprio contrato social é estabelecido. Se não assumirmos que o Estado já tem
autoridade, é muito difícil ver como o Estado pode reivindicar o título de toda a
terra de seus cidadãos. E se devemos assumir que o Estado já tem autoridade,
não precisamos da teoria do contrato social.
O Capítulo 1 incluiu uma história na qual você aprova punir vândalos e extor-
quir pagamentos do resto de sua aldeia pelos seus serviços. Imagine que, quando
você aparece na porta do seu vizinho para receber o pagamento, seu vizinho
protesta que ele nunca concordou em pagar por seus serviços de prevenção ao
crime. “Au contraire“, você responde. “Você concordou porque está morando
em sua casa. Se você não quiser me pagar, deve abandoná-la.” É uma demanda
razoável? A falha do seu vizinho em deixar a casa dele mostra que ele é obrigado
a pagar você?
Certamente não. Se você tiver um inquilino ocupando sua casa, poderá exigir
que ele compre seus serviços de proteção ou desocupe sua casa (desde que isso
seja consistente com o contrato existente, se houver, que você tenha feito com o
inquilino). Mas você não tem o direito de exigir que seus vizinhos deixem suas
casas nem colocar condições para ocupação continuada da propriedade deles.
Sua exigência de que seu vizinho deixe a casa dele se não concordar em pagar
a você pela proteção não representa uma “maneira razoável de optar por não
participar” da compra de seus serviços de proteção. A menos que o governo
realmente possua toda a terra que (como costumamos dizer) seus cidadãos
possuem, o governo estaria na mesma posição que você nesse exemplo: não
pode exigir que os indivíduos parem de usar sua própria propriedade, nem pode
definir as condições sob as quais os indivíduos podem continuar a ocupar suas
próprias terras.
Concluo que a primeira condição dos contratos válidos é violada pelo contrato
social.

2.5.2 A falta de reconhecimento da dissidência explícita


Vamos voltar à segunda condição: você não aceitou implicitamente um contrato
se declarar explicitamente que não o aceita. No caso do contrato social, um
pequeno número de pessoas indicou explicitamente sua discordância. Estes são
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 28

os anarquistas políticos, pessoas que sustentam que não deveria haver governo.
No entanto, todo governo continua a impor leis e impostos aos anarquistas. No
entanto, com protestos vocais contra o contrato social, o governo não reembolsará
seu dinheiro dos impostos e nem o isentará das leis.
Pode haver um Estado que reconheça discordância explícita. O contrato
social para esse Estado estaria mais próximo de ser válido – pelo menos não
violaria esse segundo princípio de acordos válidos. Mas os Estados reais violam
essa condição e, portanto, deixam de ter autoridade genuína sobre pelo menos
alguns daqueles sobre quem reivindicam autoridade. Isso não impede que esses
Estados tenham autoridade sobre outros cidadãos, se esses outros cidadãos
consentiram voluntariamente. Mas a conhecida recusa do Estado em reconhecer
dissidência explícita põe em xeque a validade de qualquer consentimento tácito
supostamente dado mesmo por aqueles que não expressaram explicitamente
dissidência. Mesmo para aqueles que de fato não desejam discordar, continua
sendo verdade que eles não tiveram a opção de recusar explicitamente o contrato
social.

2.5.3 Imposição incondicional


O terceiro princípio sobre acordos válidos era que uma ação pode ser tomada
como indicação da concordância de uma pessoa com algum esquema apenas
se for possível presumir razoavelmente que essa pessoa acredita que, se ela não
tomasse essa ação, o esquema não lhe seria imposto. Isso exclui quase todas as
maneiras pelas quais os cidadãos aceitam implicitamente o contrato social.
Quase todo mundo sabe que o Estado ainda impõe as mesmas leis e os mesmos
impostos, independentemente de alguém se opor ao governo, aceitar serviços
do governo ou participar do processo político. Portanto, a falta de objeção, a
aceitação de serviços governamentais e até a participação de alguém no processo
político não podem ser tomadas como concordância com o contrato social.
A única forma de consentimento implícito não descartada por esse princípio
é o consentimento através da presença. Se você deixar de residir no território
controlado pelo Estado, só então o Estado deixará de impor suas leis.13 Diferente
de todas as outras formas alegadas de consentir implicitamente em ser gover-
nado, permanecer presente no território do Estado é realmente uma condição
de ter as leis do Estado impostas a você. Assim, apenas o consentimento atra-
vés da presença satisfaz o terceiro princípio sobre acordos válidos. A ideia de
consentimento através da presença, no entanto, foi rejeitada acima por outros
motivos.
13
Mesmo para isso, existem algumas exceções. Por exemplo, os cidadãos dos EUA que moram
no exterior ainda podem ser obrigados a pagar impostos aos EUA sobre parte de sua renda.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 29

2.5.4 Ausência de obrigação mútua


Finalmente, chegamos ao quarto princípio sobre acordos válidos: um contrato
impõe obrigações mútuas às partes, com a obrigação de cada parte condicionada
à aceitação pela outra parte de sua obrigação.
No caso do contrato social, os indivíduos devem ser obrigados a obedecer às
leis promulgadas pelo Estado. Às vezes, os cidadãos violam essas leis; nesse caso,
os agentes do Estado – se tiverem conhecimento da violação e podem poupar os
recursos – punirão o cidadão, geralmente com multas ou prisão. Dado o amplo e
indefinido leque de leis que podem ser criadas pelo Estado e o leque de punições
a que alguém pode ser sujeito por violá-las, as concessões de um indivíduo ao
Estado sob o contrato social são bastante grandes.
O Estado, por sua vez, deve assumir uma obrigação para com o cidadão, de
fazer valer os seus direitos, incluindo a proteção do cidadão contra criminosos
e governos estrangeiros hostis. O Estado falha nesse dever? O que acontece
quando falha?
Em certo sentido, o Estado falha o tempo todo. Em qualquer sociedade grande,
milhares ou milhões de cidadãos são vitimados anualmente por crimes que o
Estado não conseguiu impedir. Mas não seria razoável esperar que o Estado
impeça todos os crimes. Talvez o contrato social exija apenas que o Estado faça
um esforço razoável para evitar crimes. Mas e se o Estado falha mesmo nesses
termos? Suponha que você seja vítima de um crime grave que o governo poderia
facilmente ter evitado, a baixo custo, se tivesse feito um esforço razoável para
resolver. O Estado teria falhado em suas obrigações sob o contrato social?
Se o contrato social significa alguma coisa, então a resposta a essa pergunta
deve ser sim. Se existe um contrato entre o Estado e seus cidadãos, então o
Estado deve ter alguma obrigação de fazer algo pelos cidadãos. Como a proteção
contra o crime é a função mais central e amplamente reconhecida do Estado,
presumivelmente, o Estado deve ter alguma obrigação em relação à proteção de
alguém. Se essa obrigação é significativa, deve haver algo que o Estado possa
fazer que contaria como falha no cumprimento dessa obrigação. E se a situação
descrita no parágrafo anterior não conta como uma falha no cumprimento da
obrigação de proteger um cidadão do crime, é difícil ver o que contaria.
Nos Estados Unidos, essa situação ocorreu muitas vezes. Descrevo uma dessas
instâncias abaixo. Embora a história seja perturbadora de ouvir, há um ponto
importante a ser aprendido com ela.
Numa manhã de março de 1975, dois homens invadiram uma casa na cidade
de Washington, DC, onde residiam três mulheres.14 As duas mulheres no andar
de cima ouviram o arrombamento e os gritos de sua colega de quarto vindo do
14
O incidente é a base do caso de Warren v. Distrito de Columbia (444 A.2d. 1, D.C. Ct. De Ap.,
1981), do qual deriva meu relato dos fatos.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 30

andar de baixo. Elas telefonaram para a polícia e foram informadas de que a


ajuda estava a caminho. As duas mulheres se arrastaram para fora de uma janela
em um telhado adjacente e esperaram. Observaram um carro da polícia passar e
depois partir. Outro policial havia batido na porta da frente, mas, não recebendo
resposta e sem sinais de arrombamento, decidiu ir embora. A polícia não verificou
a entrada dos fundos da casa, onde os criminosos haviam realmente invadido.
Ao voltar para dentro, as mulheres no andar de cima ouviram novamente a
colega de quarto gritando e telefonaram novamente para a polícia. Tiveram a
garantia de que a ajuda estava a caminho, mas na verdade nenhum oficial foi
despachado para responder à segunda ligação. Quando os gritos da colega de
quarto cessaram, as duas mulheres no andar de cima acharam que a polícia havia
chegado. Elas chamaram sua colega de quarto, isso serviu apenas para alertar os
criminosos sobre sua presença. Os dois criminosos sequestraram as três mulheres
e as levaram de volta a um apartamento de um dos criminosos, onde espancaram,
roubaram e estupraram as mulheres ao longo de catorze horas.
O que é notável nesse caso não é apenas o fato de o Estado ter falhado tragica-
mente em sua obrigação de proteger alguns de seus cidadãos. O mais importante
para a teoria do contrato social é o que aconteceu depois. As mulheres processa-
ram o Distrito de Columbia em um tribunal federal pelo fracasso negligente do
governo em protegê-las. Se o governo tivesse a obrigação contratual de fazer um
esforço razoável para proteger seus cidadãos, então as mulheres deveriam ter
um caso claro aqui. Na verdade, os juízes rejeitaram o caso e nem o julgaram. Os
autores apelaram, mas a rejeição foi confirmada.
Por quê? Ninguém contestou a negligência do governo e ninguém contestou
que as mulheres haviam sofrido grandes danos como resultado direto dessa
negligência. O que o tribunal negou foi que o governo tivesse o dever de proteger
as três mulheres em primeiro lugar. O Tribunal de Apelações citou “o princípio
fundamental de que um governo e seus agentes não têm o dever geral de prestar
serviços públicos, como proteção policial, a qualquer cidadão em particular”.
O dever do governo, explicou o tribunal, era apenas um dever para o público
em geral, de fornecer um impedimento geral ao crime. O tribunal temia que o
reconhecimento de um dever de proteger os indivíduos “efetivamente interrom-
pesse rapidamente os negócios do governo” e “despachasse uma nova geração
de litigantes ao tribunal por causa de queixas reais e imaginárias”.15
Esta não foi uma decisão idiossincrática. Em outro caso, uma mulher te-
lefonou para a polícia porque seu marido havia acabado de ligar e disse que
estava vindo para assassiná-la. A polícia disse-lhe para ligar de volta quando
ele chegasse. Quando ele chegou, a mulher não pôde ligar de volta porque o
15
Ibid., da opinião majoritária.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 31

marido cumpriu sua ameaça.16 Em um terceiro caso, o Departamento de Serviços


Sociais estava monitorando um homem por abuso de seu filho. Em cinco ocasiões,
uma assistente social do DSS registrou evidências de abuso, mas a criança foi
deixada sob custódia do pai. Eventualmente, o homem espancou o filho com
tanta severidade que a criança sofreu danos cerebrais permanentes.17 Esses casos
também resultaram em ações judiciais contra o governo, e essas ações também
foram sumariamente rejeitadas. O caso de abuso infantil foi apelado à Suprema
Corte dos EUA, que confirmou a rejeição. Mais uma vez, os tribunais sustentaram
que o governo não tinha o dever de proteger os cidadãos nesses casos.
Como esses casos afetam na doutrina do contrato social? Os tribunais nesses
casos negaram que o Estado tenha alguma obrigação para com o indivíduo. Como
um contrato geralmente exige obrigações mútuas entre as partes, isso implica
que não há contrato entre o indivíduo e o Estado.
E sobre o argumento de que a obrigação do Estado é devida ao público em
geral e não a qualquer indivíduo? Um problema com esse argumento é que
ele é puramente arbitrário. Não há evidência real para o argumento, e pode-se
perdoar por suspeitar que o Estado simplesmente declara que o contrato social
exige apenas o que o próprio Estado deseja fazer. O outro problema é que a teoria
do contrato social visa explicar por que os indivíduos são obrigados a obedecer
ao Estado. Se um indivíduo não é parte do contrato social, ele não tem dever
para com o Estado sob esse contrato. Se o contrato, de alguma forma, é válido
apenas entre o Estado e o público em geral, talvez “o público em geral” deva algo
ao Estado, mas nenhum indivíduo deve. Se, por outro lado, o contrato social se
mantém entre o indivíduo e o Estado, então o Estado deve ter uma obrigação
para com o indivíduo. Não se pode ter as duas coisas: não se pode sustentar
que o indivíduo deve deveres ao Estado, mas que o Estado não deve nada ao
indivíduo.18
Talvez as opiniões do tribunal nesses casos tenham sido equivocadas. Seja
como for, as opiniões formuladas pelos tribunais, reafirmadas e nunca derruba-
das, são as posições oficiais do governo. O governo, então, adotou oficialmente,
explicitamente a posição de que não tem obrigação de proteger nenhum cidadão
em particular. Assim, o governo repudiou o contrato social. Se o Estado rejeita
o contrato social, então os indivíduos também não podem ter obrigações a esse
contrato.
16
Hartzler v. City of San Jose, 46 Cal.App. 3d 6 (1975).
17
DeShaney v. Winnebago County Department of Social Services, 489 U.S. 189 (1989).
18
Pode-se afirmar que o contrato social se mantém entre o indivíduo e o Estado, mas que a
única promessa do Estado ao indivíduo era proteger a sociedade em geral. Normalmente, no
entanto, quando os indivíduos fazem contratos para obter bens ou serviços, obtêm uma promessa
de receber pessoalmente o bem, não uma promessa de que a sociedade em geral será mais ou
menos abastecida com o bem.
2. A Teoria Tradicional do Contrato Social 32

Este último argumento, o argumento da obrigação mútua, aplica-se especifica-


mente aos Estados Unidos, onde ocorreram os casos discutidos. Outros governos
podem escapar desse defeito em particular se reconhecerem um dever afirmativo
de proteger seus cidadãos.
Minha afirmação nesta seção não foi que a maioria das pessoas não concor-
daria em ter um governo. Minha reivindicação é que, de fato, não existe um
acordo válido. Talvez você aceitasse o contrato social se tivesse uma escolha.
Mas você não teve. Isso faz com que o seu relacionamento com o governo não
seja voluntário e contratual, independentemente de você estar realmente feliz
com o relacionamento. Também não afirmo que todos os relacionamentos não-
voluntários são moralmente ilegítimos ou injustos. A questão é simplesmente que
a teoria do contrato social é falsa, porque descreve uma relação não voluntária
como voluntária.

2.6 Conclusão
A teoria do contrato social não pode explicar a autoridade política. A teoria de
um contrato social real falha porque nenhum Estado forneceu meios razoáveis de
desistir (sair do contrato) – meios que não exijam que os dissidentes assumam
grandes custos ao qual o Estado não tem o direito independente de impor. To-
dos os Estados modernos, ao se recusarem a reconhecer divergências explícitas,
tornam seus relacionamentos com seus cidadãos não-voluntários. A maioria
dos relatos de consentimento implícito falha, porque quase todos os cidadãos
sabem que as leis do governo seriam impostas a eles, independentemente deles
executarem os atos específicos pelos quais alegadamente comunicam o consen-
timento. No caso dos governos que negam qualquer obrigação de proteger os
cidadãos, a teoria do contrato falha pela razão adicional de que, se houve um
contrato social, o governo repudiou sua obrigação central nos termos do contrato,
liberando assim seus cidadãos das obrigações que teriam sob esse contrato.
A premissa moral central da teoria tradicional do contrato social é louvável: a
interação humana deve ser realizada, na medida do possível, de forma voluntária.
Mas a premissa factual central está longe em face da realidade: independente
do que mais pode ser dito sobre isso, a sujeição ao governo obviamente não é
voluntária. Nos tempos modernos, todo ser humano nasce sob essa sujeição e
não tem meios práticos de escapar dela.
3

A Teoria do Contrato Social


Hipotético

3.1 Argumentos do consentimento hipotético


Como vimos, a alegação tradicional de que os indivíduos consentiram com o
Estado não pode ser defendida de maneira plausível. Os teóricos do contrato
social hipotético se voltam para a alegação de que os indivíduos consentiriam
com o Estado sob certas condições hipotéticas.1 Essas condições podem envolver
estipulações quanto ao conhecimento, grau de racionalidade e motivações das
partes no contrato social, além da estipulação que todos os membros de uma
sociedade possam escolher em que tipo de sociedade viverão. Pensa-se que o fato
de termos concordado com um determinado arranjo em um cenário hipotético
específico legitima esse arranjo e gere obrigações de apoio a isto. Essa abordagem
tem a vantagem dialética de evitar o tipo de dependência de fatos empíricos
sobre o mundo real que provou a queda da teoria tradicional do contrato social.
Os defensores de qualquer teoria do contrato social hipotético devem concluir
duas tarefas: primeiro, devem mostrar que as pessoas aceitariam o contrato social
em seu cenário hipotético; segundo, devem mostrar que esse consentimento
hipotético é moralmente eficaz, no sentido em que gera obrigações e direitos
éticos semelhantes aos gerados pelo consentimento real válido.
1
A maioria das teorias modernas do contrato hipotético visa explicar algo mais amplo que
a autoridade política. Tipicamente, visam explicar a parte da moralidade que diz respeito, nas
palavras de Scanlon (1998, 7), ao que devemos um ao outro. Para os propósitos do presente
capítulo, suponho que as teorias de pensadores contemporâneos como Rawls e Scanlon tenham
sido adaptadas de modo a dar conta dos fundamentos da autoridade política.

33
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 34

3.2 Consentimento hipotético na ética comum


À primeira vista, um acordo hipotético parece ter pouca importância normativa.
As promessas feitas por alguém normalmente o obrigam a cumprir o prometido,
mas as promessas que alguém simplesmente teria feito sob circunstâncias ideali-
zadas não o vinculam de maneira semelhante. O consentimento real de alguém
pode dar aos outros o direito de coagir alguém, mas o consentimento que alguém
apenas daria em circunstâncias idealizadas não dá a outros o direito de coagir
alguém. Ou assim parece.
No entanto, existem circunstâncias em que o consentimento hipotético é mo-
ralmente eficaz, circunstâncias nas quais o fato de alguém “ter concordado” com
algum procedimento pode tornar permitido a execução do procedimento, onde
o procedimento é de um tipo que normalmente requer consentimento. Suponha
que um paciente inconsciente tenha sido levado a um hospital, precisando de
cirurgia para salvar sua vida. Sob circunstâncias normais, os médicos devem
obter o consentimento informado do paciente antes de operar. Nessa situação, a
insistência nesse princípio impediria a aplicação de cuidados médicos que salvam
vidas, pois o paciente é incapaz de consentir ou discordar do tratamento. Nesse
caso, é geralmente reconhecido que os médicos devem proceder apesar da falta
de consentimento. A explicação mais natural apela à crença razoável de que o
paciente consentiria com o procedimento de salvar sua vida, se pudesse fazê-lo.2
O consentimento hipotético pode ter eficácia moral semelhante no caso do
contrato social? Existem duas condições necessárias para a eficácia moral do
consentimento hipotético em um caso como o do paciente inconsciente. Primeiro,
a obtenção do consentimento real deve ser impossível ou inviável, por outras
razões que não a falta de vontade da outra parte em consentir. Para ilustrar,
imagine que um segundo paciente chegue ao hospital, também necessitando de
cirurgia para salvar sua vida, mas neste caso eles está perfeitamente consciente
e psicologicamente normal. Se aqui também os médicos optam por não solici-
tar o consentimento do paciente, mas simplesmente administrar anestésicos e
prosseguir com o procedimento cirúrgico que consideram mais benéfico, eles
não poderiam justificar seu comportamento apelando para a probabilidade de
o paciente ter consentido, se tivesse sido solicitado. Embora a verdade dessa
alegação hipotética possa atenuar a culpabilidade dos médicos, isso não justifica
a falta de consentimento real, dada a viabilidade de apresentá-lo.
Segundo, quando apelamos para o consentimento hipotético, o consentimento
hipotético das partes deve ser consistente com seus valores reais relevantes e
2
Waldron (1993, 49) cita esse tipo de caso em apoio à relevância moral e política do consenti-
mento hipotético. Dworkin (1989, 19) discute casos desse tipo, mas com mais ceticismo sobre
sua relevância política.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 35

com suas crenças filosóficas. Imagine que um terceiro paciente seja levado ao
hospital nas mesmas condições do primeiro paciente, inconsciente e necessitando
de cirurgia. Mas, neste caso, o médico assistente, devido à sua familiaridade
com esse paciente em particular, está ciente de que o paciente tem fortes objeções
religiosas à prática da cirurgia, mesmo sendo necessária para salvar sua vida.
Nessa situação, o médico não pode prosseguir com a cirurgia, desconsiderando
a falta de consentimento, com o argumento de que o paciente “teria consentido”.
Sempre é possível conceber circunstâncias em que qualquer indivíduo consente
com um determinado procedimento- no presente caso, por exemplo, o paciente
teria consentido se tivesse abandonado suas crenças religiosas. Mas hipóteses que
requerem alterações nas crenças e valores fundamentais das pessoas – mesmo
que algumas dessas crenças e valores sejam equivocadas – são irrelevantes para
definir um consentimento hipotético moralmente eficaz. No presente caso, o
julgamento hipotético de controle ético é o julgamento de que o paciente não
consente em receber uma cirurgia se tivessem lhe perguntado em uma circuns-
tância considerada normal, com suas reais crenças filosóficas, religiosas e morais
intactas.
Isso não significa negar que possa haver circunstâncias sob o qual a coerção pa-
ternalista seja justificada; é apenas negar que a coerção seja sempre justificada em
virtude do consentimento hipotético, onde o consentimento hipotético depende
de alterações fundamentais imaginadas nas crenças e valores das pessoas.3
À luz dessas condições, o contrato social hipotético não pode ser aceito como
válido. Para começar, os cidadãos de um determinado país, em geral, não são
inconscientes, nem mentalmente incompetentes, nem são incapazes de consentir
ou discordar do contrato social, nem é inviável que o Estado solicite seu con-
sentimento. Uma razão pela qual os Estados modernos evitam solicitar esse
consentimento pode ser o fato de não estarem preparados para isentar aque-
les que recusariam seu consentimento das exigências de tributação e outros
requisitos legais. Mas essa consideração certamente não autoriza um apelo ao
consentimento hipotético nesse caso, assim como um médico não poderia legiti-
mamente dispensar o consentimento real de um paciente a um procedimento
médico, alegando que ele, o médico, não estava disposto a desistir no caso do
paciente realmente rejeitar o tratamento recomendado.
Segundo, o acordo sobre qualquer contrato social exigiria modificações das
crenças e valores filosóficos de pelo menos alguns cidadãos. Entre os indivíduos
3
Mill (1978, capítulo V, 95) adota um caso em que um pessoa impede coercivamente o homem
de atravessar uma ponte em que ele está, sem o homem saber que é inseguro. Aqui, parece
razoável recorrer ao julgamento de que o homem provavelmente consentiria em ser parado
se conhecesse o estado da ponte – apesar do fato de que essa hipótese prevê uma alteração
nas crenças do homem. É à luz desses casos que incluí qualificadores como “fundamental” e
“religioso, filosófico e moral” antes das “crenças” nesta discussão.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 36

a quem o governo é imposto, existem aqueles que, por motivos filosóficos, se


opõem à forma ou estilo geral de governo ao qual estão sujeitos em favor de
algum outro tipo de governo. Outros se opõem a todas as formas de governo em
favor de alguma forma de anarquismo político. O acordo sobre um contrato social
especificando até características muito gerais do tipo de governo a ser adotado
exigiria que esses indivíduos renunciassem a importantes crenças e valores filo-
sóficos com os quais estão realmente comprometidos. Talvez alguma justificativa
possa ser concebida para impor uma forma de governo a esses indivíduos sem
seu consentimento, mas certamente a alegação de que eles teriam consentido não
é bem-sucedida.

3.3 Consentimento hipotético e razoabilidade


3.3.1 Concordância hipotética como evidência de razoabilidade
Na opinião de alguns filósofos, quando um sistema estritamente voluntário é
inviável, uma aproximação aceitável pode ser um sistema sobre o qual ninguém
tenha nenhuma queixa razoável.4 E o fato de um sistema político ser o foco
de um acordo de pessoas razoáveis sob condições ideais pode-se pensar que
as condições de deliberação mostram que ninguém tem uma queixa razoável a
respeito.
Ao imaginar as condições sob as quais esse acordo hipotético ocorre, podemos
supor que algumas características reais dos seres humanos sejam alteradas. Por
exemplo, podemos supor que as partes no contrato sejam mais bem informadas e
melhores no raciocínio do que a maioria das pessoas reais. Podemos assumir que
elas são racionais e razoáveis, onde pessoas “razoáveis” são entendidas como
preocupadas em fazer um acordo justo com outras pessoas, desde que outras
pessoas estejam igualmente dispostas.
Pessoas razoáveis, portanto, não tentam insistir em um acordo que sirva
apenas a si mesmas; elas estão dispostas a levar em consideração as reivindicações
dos outros para chegar a um acordo aceitável para todos.
Não obstante, não devemos imaginar as partes no acordo hipotético como
sendo muito diferentes dos seres humanos reais, para que o acordo hipotético
não perca sua força justificativa. Por exemplo, não devemos nos interessar por
um acordo hipotético que só possa ser alcançado depois que todos tiverem se
convertido na única religião verdadeira. Devemos aceitar o fato de que pessoas
razoáveis têm diferenças religiosas persistentes e, mais geralmente, diferenças
filosóficas persistentes, e devemos buscar um foco de acordo, apesar dessas
4
Nagel (1991, 33-40) avança essa sugestão, aplicando a teoria contratual da moralidade de
Scanlon (1998) ao problema da legitimidade política.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 37

diferenças. Os teóricos do contrato hipotético adotaram explicitamente esse


ponto, declarando que seu objetivo é fornecer justificativas aplicáveis a todas as
pessoas razoáveis.5

3.3.2 Pode ser alcançado um acordo?


Os defensores do tipo de teoria do contrato que acabamos de descrever não
ofereceram evidências ou raciocínios para mostrar que algum sistema político
específico seria aceito por todas as pessoas razoáveis. Embora esses teóricos
façam um esforço considerável para descrever as condições que acreditam que
estabeleceriam a legitimidade de um sistema político, não fazem nenhum esforço
sério para mostrar que qualquer sistema político satisfaz essas condições. Uma
explicação possível para essa omissão é que, de fato, nenhum governo satisfaz as
condições de legitimidade.
Thomas Nagel fornece um exemplo desse padrão. Depois de descrever a
ideia de um acordo hipotético, Nagel passa à questão de quanto se espera que os
membros mais abastados da sociedade deem por meio de ajuda aos mais pobres.
Em um extremo está a visão de que eles precisam dar pouco ou nada; no extremo
oposto está a visão de que devem dar quase tudo o que têm. Ambos os extremos,
ele acha irracional. Mas, admite, há um intervalo intermediário substancial no
qual qualquer princípio poderia ser razoavelmente rejeitado, seja pelos pobres
ou pelos ricos; portanto, nenhum acordo unânime seria possível com relação aos
princípios da justiça distributiva.6 Nagel continua aumentando a possibilidade
de alterarmos nossas motivações de tal maneira que as condições de legitimidade
se tornem satisfatórias no futuro.
Em seu trabalho posterior, John Rawls tem uma visão semelhante à visão
de Nagel sobre as condições de legitimidade política, embora ele pareça mais
otimista sobre as perspectivas de acordo. O otimismo de Rawls, no entanto, é sem
justificativa.7 Ele descreve detalhadamente como é concebível que sua própria
teoria da justiça seja o foco de um consenso entre indivíduos com diferentes
visões religiosas, morais e filosóficas. Essas diferentes visões podem vir a apoiar
uma única concepção política. Após a exposição dessa possibilidade lógica, pode-
se antecipar a apresentação de evidências de que a possibilidade é realizada em
alguma sociedade real. Tais evidências podem assumir a forma, por exemplo, de
uma série de argumentos, cada um começando com princípios de uma religião,
sistema moral ou sistema filosófico amplamente aceito e cada um concluindo
nos princípios centrais da teoria da justiça de Rawls. Nenhum argumento deste
5
Scanlon 1998, 5, 208–9; Nagel 1991, 36; Rawls 2005, 137.
6
Nagel 1991, 50–2.
7
Veja Huemer 1996, respondendo a (uma edição anterior) de Rawls 2005.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 38

tipo pode ser encontrado no trabalho de Rawls, nem qualquer outra forma de
evidência para concluir que toda doutrina abrangente razoável apoia a teoria da
justiça de Rawls.
O mais próximo que Rawls chega a argumentar de que alguma doutrina
religiosa apoia sua teoria está em sua discussão sobre tolerância religiosa, onde
cita a Letter Concerning Toleration de John Locke na ilustração de por que os
pensadores religiosos podem apoiar a tolerância.8 Na verdade, Locke, apesar
de tolerante em seu tempo, era altamente intolerante nos padrões modernos,
rejeitando explicitamente a ideia de tolerância aos ateus e para aqueles que
professam ideias socialmente destrutivas.9 Deixando essa observação à parte, a
dificuldade mais séria é que o que Rawls procura fornecer nesta passagem fica
muito aquém do que sua teoria necessita. O que é necessário é um argumento de
que todas as pessoas razoáveis concordariam com todos os principais princípios
do sistema de Rawls; O que Rawls fornece é uma explicação de como um seguidor
de uma religião poderia apoiar razoavelmente um dos princípios da justiça de
Rawls.
O mais próximo que Rawls chega a argumentar de que uma teoria moral
secular abrangente apoia sua concepção política de justiça está em sua discussão
sobre o utilitarismo, onde ele sugere que os utilitaristas podem considerar sua
teoria da justiça para alcançar uma aproximação aceitável à maximização da
utilidade.10 Essa sugestão, no entanto, é fornecida como não mais do que isso;
nenhum argumento é apresentado para mostrar que a teoria da justiça de Rawls
de fato fornece uma aproximação aceitável à maximização da utilidade.
Até agora, portanto, a teoria do contrato hipotético parece menos um fun-
damento para a legitimidade política do que uma nota promissória para tal
fundamento. Em essência, a teoria exige que todos os As sejam B, e a defesa dos
teóricos consiste em explicar como é conceitualmente possível que exista um A
que é B.
Nagel e Rawls se dirigiram principalmente aos princípios da justiça distri-
butiva, uma área altamente contenciosa.11 Talvez tenhamos mais sucesso em
defender o consentimento hipotético se nos limitarmos ao acordo geral de ter um
governo.
Há alguma razão para duvidar que um acordo, seja hipotético ou real, com a
simples afirmação de que a sociedade deva ter alguma forma de governo seria
suficiente para conferir autoridade a qualquer governo em particular. Se um
indivíduo concorda que deve haver governo, mas acredita que deve ser de um
8
Rawls 2005, 145, especialmente a nota 12, citando Locke 1990.
9
Locke 1990, 64, 61.
10
Rawls 2005, 170.
11
Para uma indicação preliminar da diversidade de concepções da justiça distributiva, ver
Rawls 1999; Cohen 1992; Harsanyi 1975; e Nozick 1974.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 39

tipo fundamentalmente diferente do governo ao qual ele se encontra sujeito, é


duvidoso que esse governo possa se justificar adequadamente a esse cidadão
citando o mero fato de que ele concorda que deveria haver alguma forma de
governo. Um caso análogo é aquele em que um indivíduo deseja que sua casa seja
pintada de branco, e um pintor chega e, sem o consentimento do proprietário,
pinta a casa de verde. O fato de o indivíduo ter consentido em ter sua casa
pintada de alguma cor por algum pintor não habilita esse pintor a pintar a casa
de outra cor. Ao contratar um pintor para pintar sua casa, o proprietário não
precisa consentir com todos os detalhes do desempenho do pintor, mas deve pelo
menos concordar com as características mais importantes, incluindo a identidade
do pintor, a cor da tinta e o preço a ser pago. Da mesma forma, o consentimento
para o contrato social não precisa incluir o consentimento para todos os detalhes
da estrutura e operação do Estado, mas deve pelo menos incluir o consentimento
para a forma básica e os princípios governamentais mais importantes do Estado.12
Infelizmente, mesmo esse nível básico de acordo parece inatingível. Assim
como existem desacordos aparentemente intratáveis sobre religião, filosofia,
moralidade e questões políticas específicas, também existem desacordos aparen-
temente intratáveis sobre a forma geral, a estrutura e os princípios orientadores
de um governo. Não há razão para pensar que todas as pessoas razoáveis chega-
rão a um acordo sobre os princípios básicos do governo antes que cheguem a um
acordo sobre a religião correta, a teoria moral correta e assim por diante.
Na verdade, ainda permanecem indivíduos ponderados e razoáveis que acre-
ditam que a organização social ideal não conteria governo algum.13 Que esses
indivíduos continuem sendo uma minoria da sociedade é de pouco conforto
para os teóricos do contrato social hipotético que pretendem mostrar que todas
as pessoas concordariam com o contrato social. Os pensadores anarquistas não
costumam parecer particularmente menos racionais, informados ou razoáveis
do que os partidários de outras visões políticas. Eles não se recusam, por exem-
plo, a apresentar razões para suas opiniões, ou a considerar objeções ou a levar
em consideração os interesses de outras pessoas. Portanto, é difícil identificar
qualquer justificativa racional para excluí-los da classe de pessoas cujo acordo é
buscado. A menos que os anarquistas sejam simplesmente excluídos do acordo,
os teóricos do contrato social hipotético nos devem uma explicação de como os
12
Gaus (2003, 216-17) argumenta que a legitimidade política exige concordância entre todas as
pessoas razoáveis em princípios gerais, embora possam permanecer divergências sobre a inter-
pretação desses princípios. Ele assume erroneamente que é comum um acordo sobre princípios
gerais.
13
Ver Rothbard (1978); Friedman (1989); Barnett (1998); Wolff (1998); Chomsky (2005);
Sartwell (2008). Em Stringham 2007, veja os artigos de Tannehills, Barnett, Friedman, Hoppe,
Rogers e Lavoie, Long, Hasnas, Childs, Cuzán, Caplan e Stringham, de Jasay, Leeson e Stringham
e Anderson e Hill.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 40

anarquistas políticos podem ser convencidos a aceitar um governo.


Pode-se pensar que estou impondo padrões excessivamente rígidos para a
justificação dos arranjos sociais. Certamente o simples fato de alguém, mesmo
uma pessoa razoável, discordar de uma prática ou instituição específica, não é
suficiente para mostrar que a prática ou instituição é injustificada. O dissidente
pode simplesmente estar enganado.
Em resposta, o que venho aplicando é uma restrição, não na justificação
das teorias sociais em geral, mas na justificação das teorias sociais através de
um apelo ao consentimento hipotético, e essa restrição não deriva de minhas
próprias visões filosóficas, mas das visões de meus oponentes, os teóricos do
contrato social hipotético que afirmam que o consentimento hipotético estabelece
a razoabilidade. São esses teóricos que estabeleceram como uma condição de
legitimidade que todas as pessoas razoáveis concordam com um determinado
arranjo social. Portanto, não sou eu, mas teóricos do contrato social hipotético
como Rawls, Scanlon e Nagel que efetivamente concederam o veto ao anarquista
razoável.

3.3.3 A validade do consentimento hipotético


O contrato social hipotético enfrenta outro problema: mesmo que fosse possível
demonstrar que todas as pessoas razoáveis concordariam com algum sistema de
governo, esse fato não estabeleceria autoridade política.
A legitimidade de um sistema político é uma questão da permissibilidade
de impor esse sistema a todos os membros de uma determinada sociedade. É,
em parte, uma questão de permissibilidade de prejudicar intencionalmente e
coercivamente aqueles que desobedecem às regras produzidas pelo sistema. A
teoria do contrato social hipotético, na presente interpretação, oferece a seguinte
justificativa candidata para esse tipo de coerção: pode-se impor coercivamente
um arranjo aos indivíduos, desde que os indivíduos não sejam razoáveis para
rejeitar o arranjo.
Este princípio está em conflito gritante com a moralidade do senso comum.
Imagine que um empregador se aproxima de um funcionário em potencial com
uma oferta de emprego totalmente justa, razoável e atraente, incluindo remune-
ração generosa, horas razoáveis, condições agradáveis de trabalho e assim por
diante. Se o trabalhador fosse totalmente informado, racional e razoável, aceitaria
a oferta de emprego. No entanto, o empregador não está eticamente habilitado
a coagir o empregado a trabalhar para ele no caso de o empregado, por mais
razoável que seja, recusar a oferta. A razoabilidade da oferta, juntamente com o
consentimento hipotético, teria muito pouco peso ético, atenuando levemente a
injustiça da imposição do trabalho forçado.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 41

Julgamentos semelhantes se aplicam a outros exercícios de coerção que nor-


malmente exigiriam consentimento: não é permitido que um médico imponha
coercivamente um procedimento médico a um paciente, mesmo que não tenha
sido razoável recusar o tratamento; nem para um fornecedor extorquir dinheiro
de um cliente, mesmo que não tenha sido razoável recusar-se a comprar o pro-
duto do fornecedor; nem para um pugilista obrigar outro pugilista a lutar, mesmo
que não fosse razoável rejeitar a oferta de uma luta.
Comentários semelhantes se aplicam à questão das obrigações políticas. A
irracionalidade de rejeitar um acordo não é suficiente para gerar uma obrigação
de cumpri-lo. O trabalhador no exemplo acima tem o direito de recusar a oferta
de emprego, por mais irracional que possa ser essa recusa.
Intuições contrastantes podem ser extraídas de outra analogia. Um naufrágio
encalhou várias pessoas em uma ilha até então desabitada. A ilha possui uma
oferta limitada de caça selvagem, que pode ser caçada por comida, mas deve
ser conservada contra a extinção. Suponha que o único plano razoável seja
os passageiros naufragados limitarem cuidadosamente o número de animais
caçados a cada semana. Apesar desses fatos, um passageiro se recusa a aceitar esse
limite. Parece plausível sustentar que os outros passageiros podem coercivamente
coibir o passageiro irracional da caça excessiva em benefício de todos na ilha.
Além disso, a razoabilidade de limitar a taxa de caça e a irracionalidade de
rejeitar esses limites parece desempenhar um papel crucial na justificativa para
tal coerção.
Qual é a diferença entre o caso da ilha e o caso do contrato de trabalho? A
diferença mais importante é que o caso do contrato de trabalho envolve a apreen-
são de um recurso, o trabalho do empregado, ao qual a vítima da coerção tem
um direito moral; enquanto o caso na ilha envolve a proteção de um recurso,
a caça selvagem, sobre o qual é plausível atribuir um direito coletivo, mantido
apenas em parte pela coerção, mas principalmente pelos coercivos. O passageiro
irracional, neste último caso, carece de qualquer direito moral de decidir unila-
teralmente sobre o uso ou distribuição da caça selvagem, da maneira que um
indivíduo tem o direito moral de decidir sobre o uso de seu próprio trabalho.
Se aceitarmos essa descrição dos casos, o contrato social hipotético é mais
parecido com o contrato de trabalho rejeitado, pois o contrato social diz respeito,
talvez entre outras coisas, à redistribuição coercitiva de recursos sobre os quais
os indivíduos têm direitos. Entre outras coisas, o Estado reivindica uma parcela
dos ganhos de todas as pessoas, independentemente da fonte. (Consulte a Seção
7.1.6 para uma discussão mais aprofundada sobre se os indivíduos têm direitos
de propriedade independentes do Estado.) A coerção do Estado também não
é realizada apenas ou principalmente a serviço da proteção de recursos coleti-
vos. Frequentemente, o Estado emprega coerção a serviço de fins paternalistas,
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 42

moralistas ou de caridade ou por proporcionar benefícios econômicos indiretos


para pequenos segmentos da sociedade em detrimento de outros.14 Nenhum
indivíduo ou organização privada estaria autorizado a usar coerção para esses
tipos de propósitos, por mais razoáveis que sejam seus planos.
Aqui como em outros lugares, nossas atitudes em relação ao governo diferem
de nossas atitudes em relação a outros agentes. A irracionalidade da rejeição
claramente não licencia um indivíduo privado a forçar os termos de um contrato
a outro indivíduo. No entanto, acredita-se que a irracionalidade de rejeitar o
contrato social licencie o Estado a forçar os termos desse contrato a seus cidadãos.
O que a teoria do contrato social hipotético fornece, então, é outro exemplo
das atitudes morais particularmente brandas aplicadas ao governo, em vez de
uma justificativa dessas atitudes. É preciso começar atribuindo ao Estado um
status moral especial para acreditar que o Estado tem o direito moral de forçar
um arranjo sobre os indivíduos simplesmente porque seria irracional rejeitar o
arranjo.

3.4 Consentimento hipotético e restrições éticas


3.4.1 A teoria do contrato de Rawls como uma defesa da autori-
dade
John Rawls é, de longe e sem dúvida, o filósofo político mais influente dos últimos
cem anos. Como um indicador aproximado, uma pesquisa pela palavra-chave
“Rawls” no Philosopher’s Index gera mais de 2.000 ocorrências para artigos e livros
publicados entre 1990 e 2011. Ele é conhecido principalmente pela teoria do
contrato social hipotético, presente em sua obra A Theory of Justice. Portanto, é de
grande interesse investigar o que essa teoria pode nos ensinar sobre autoridade
política.
Rawls elabora um cenário hipotético, a “posição original”, na qual os indiví-
duos fazem um acordo sobre os princípios básicos para governar sua sociedade.15
Presume-se que esses indivíduos sejam motivados apenas pelo interesse próprio,
mas foram temporariamente privados de todo o conhecimento de sua posição na
sociedade e, de fato, de qualquer outra informação pessoal sobre si, incluindo
14
Consulte a Seção 5.4.2, para obter uma taxonomia mais completa das atividades governa-
mentais.
15
Rawls 1999. Esse tipo de experimento mental foi usado pela primeira vez para derivar
princípios da justiça distributiva por Harsanyi (1953; 1955), que argumentou que o experimento
mental apoiava o utilitarismo.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 43

raça, sexo, religião, classe social e assim por diante.16 Essa condição, conhecida
como “véu da ignorância”, impede as partes de adaptarem os princípios polí-
ticos escolhidos para sua própria vantagem; sendo ignorante sobre qual será
sua posição na sociedade, é preciso se esforçar para criar princípios que sejam
justos para todos. Rawls continua argumentando que as pessoas nessa posição
original escolheriam dois princípios particulares de justiça para governar sua
sociedade.17 Conclui que as pessoas devem de fato adotar esses princípios. (Eu
omito aqui a discussão dos dois princípios de justiça de Rawls e o raciocínio que
os leva. Minha preocupação atual é se a estratégia argumentativa de Rawls pode
ser empregada para defender a autoridade política.)
Embora Rawls não defenda diretamente à necessidade de governo em geral,
pode-se conceber um argumento rawlsiano para autoridade política. Pode-se
dizer que as partes na posição original preferem estabelecer alguma forma de
governo ao invés de aceitar a anarquia. Se alguém pudesse argumentar convin-
centemente a favor dessa afirmação, seria suficiente para estabelecer autoridade
política?
Se um contrato hipotético rawlsiano é capaz de justificar princípios de justiça,
é plausível pensar que esse contrato também poderia justificar o governo em
geral. Mas como o contrato hipotético é pensado para justificar os princípios de
justiça? Rawls oferece as seguintes observações:
Como todos estão situados de maneira semelhante [na posição ori-
ginal] e ninguém é capaz de projetar princípios que favoreçam sua
condição específica, os princípios da justiça são o resultado de um
acordo ou barganha.18
[Os princípios escolhidos de justiça] expressam o resultado de deixar
de lado os aspectos do mundo social que parecem arbitrários do ponto
de vista moral.19
A ideia aqui é simplesmente tornar vivas as restrições que parece
razoável impor aos argumentos a favor dos princípios de justiça e,
16
Rawls (1999, 12, 111) distingue sua suposição de “desinteresse mútuo” de uma suposição de
egoísmo. No entanto, sua distinção se baseia na suposição equivocada de que apenas desejos por
coisas como riqueza, poder e prestígio contam como “egoístas”. Os egoístas éticos sérios rejeitam
essa suposição (Hunt, 1999).
17
No final de A Theory of Justice (1999, 509), Rawls discute quais princípios seriam escolhidos
na posição original se as partes tivessem uma lista mais completa de princípios possíveis para
escolher do que a lista curta que Rawls considera anteriormente no livro: “Duvido, no entanto,
que os princípios da justiça (como os defini) sejam a concepção preferida em qualquer coisa que
se assemelhe a uma lista completa.” No entanto, deixarei de lado essa aparente admissão de que
os princípios da justiça de Rawls não são apoiados por sua própria estratégia argumentativa.
18
Rawls 1999, 11.
19
Ibid., 14.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 44

portanto, a esses princípios. Assim, parece razoável e geralmente


aceitável que ninguém seja beneficiado ou prejudicado pela fortuna
natural ou pelas circunstâncias sociais na escolha dos princípios. Tam-
bém parece amplamente aceito que deve ser impossível adaptar os
princípios às circunstâncias do próprio caso. Devemos garantir ainda
que inclinações e aspirações particulares, e as concepções das pes-
soas sobre o seu bem não afetem os princípios adotados. [. . . ] A
qualquer momento, podemos entrar na posição original, por assim
dizer, simplesmente seguindo um determinado procedimento, a sa-
ber, argumentando por princípios de justiça de acordo com essas
restrições.20

É natural perguntar por que, se esse contrato nunca for realmente ce-
lebrado, devemos nos interessar por esses princípios. [. . . ] A resposta
é que as condições incorporadas na descrição da posição original são
aquelas que de fato aceitamos. Ou, se não o fizermos, talvez possamos
ser persuadidos a fazê-lo pela reflexão filosófica.21

Essas observações merecem um exame minucioso, pois formam o ponto


central da versão da teoria do contrato social de Rawls, de longe a teoria mais
influente da filosofia política contemporânea. As passagens acima representam
todo o relato de Rawls de como o contrato hipotético justifica princípios morais
ou políticos.22 Portanto, seria difícil expor a importância da filosofia política de
uma compreensão clara dessas poucas passagens.
Pelo menos duas linhas de argumento podem ser encontradas nessas passa-
gens. O primeiro apela a restrições diretas aos princípios putativos da justiça.
Rawls menciona duas restrições importantes desse tipo: primeiro, os princípios
da justiça devem ser justos para todos os membros da sociedade, tratando todos
os membros como iguais. Segundo, os princípios da justiça devem “deixar de
lado” ou, mais fortemente, compensar aspectos do mundo social que são arbi-
trários do ponto de vista moral, como a situação em que os indivíduos recebem
benefícios ou encargos como resultado de meras boa ou má sorte.
A segunda linha de argumento apela a restrições nos argumentos sobre justiça.
Na terceira citação, Rawls sugere que, em vez de imaginar um cenário que envolva
pessoas ignorantes de sua identidade deliberando sobre as regras de sua soci-
edade futura, poderia-se obter o mesmo resultado simplesmente raciocinando
20
Ibid., 16–17; cf. 119–20.
21
Ibid., 19.
22
Rawls dedica §4 em A Theory of Justice ao argumento, que ele reafirma em Rawls 1985, 236–9,
e Rawls 2001, 17–18. Nenhuma dessas passagens contém detalhes adicionais significativos além
das citações reproduzidas no texto.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 45

sobre a justiça de acordo com certas restrições – ou seja, aquela que evita ser
influenciada, nos argumentos ou princípios que aceitamos, pela fortuna natural
ou pelas circunstâncias sociais de alguém; que se evite adaptar os princípios da
justiça que aceita ao próprio caso; e que evite ser influenciado por inclinações
particulares ou por uma concepção particular do bem. A posição original não
passa de um dispositivo imaginativo para induzir-nos a pensar dessa maneira.23
A seguir, voltarei à questão de saber se essa justificativa para o uso da posição
original foi bem-sucedida. Por enquanto, considero o que surgiria da posição
original, caso exista algo.

3.4.2 Pode ser alcançado um acordo?


Por que Rawls acredita que as partes na posição original poderiam chegar a
um acordo, em vez de discordar persistentemente, como as pessoas fazem no
mundo real? O motivo é simples: “Desde que as diferenças entre as partes são
desconhecidas para elas, e todos são igualmente racionais e situados de maneira
semelhante, cada um é convencido pelos mesmos argumentos”.24
A conclusão de Rawls não segue de suas premissas declaradas. Rawls assume
que, quando todas as inclinações particulares e todas as características individuais
(ou conhecimento delas) forem extirpadas, todas as pessoas razoáveis e racionais
serão convencidas pelos mesmos argumentos. Essa suposição baseia-se em um
diagnóstico particular do fenômeno de discordância intelectual generalizada: que
tal discordância se deve inteiramente a fatores como ignorância, irracionalidade
e vieses (preconceitos) criados pelo conhecimento das características individuais
de alguém.25 Se esse diagnóstico estiver correto, então uma situação em que tal
ignorância, irracionalidade e preconceito são removidos deve resultar em um
acordo geral. Mas se o diagnóstico não estiver correto e houver outras fontes de
desacordo, Rawls não deu motivos para acreditar que o acordo seria alcançado
na posição original.
Quão plausível é o diagnóstico de desacordo implícito de Rawls? Embora
muita discordância seja indubitavelmente devida a irracionalidade, ignorância
e preconceito pessoal, é improvável que toda discordância seja explicada dessa
maneira. Fora da filosofia política, os filósofos mantêm debates persistentes em
epistemologia, ética e metafísica, alguns dos quais a milênios. Os partidários
nesses debates geralmente parecem igualmente racionais, bem informados e
inteligentes. Ninguém parece tentar adaptar suas teorias às suas próprias cir-
23
Rawls enfatiza essa ideia mais fortemente em 1985, p. 236–9.
24
Rawls 1999, 120.
25
Em seu trabalho posterior, Rawls parece renunciar a esse diagnóstico, reconhecendo a dis-
cordância como o resultado natural do livre exercício da razão humana (2005, 36-7, 54-8). No
entanto, o diagnóstico é requerido para seu argumento em A Theory of Justice.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 46

cunstâncias, nem confiar ilicitamente em informações pessoais sobre si mesmo,


caso essas transgressões sejam possíveis nessas áreas. No entanto, os filósofos
manifestamente falham em achar os mesmos argumentos convincentes. Portanto,
é difícil escapar à conclusão de que a mente humana está sujeita a fontes de
julgamento diferentes, além de irracionalidade, ignorância e preconceito pessoal.
E quaisquer que sejam essas fontes de discordância, se operam em epistemologia,
ética e metafísica, não é plausível supor que estejam ausentes na filosofia política.
Um diagnóstico mais plausível de discordâncias filosóficas generalizadas e
persistentes é que os seres humanos experimentam intuições diferentes e outras
aparências intelectuais. Quando contemplamos teorias e argumentos, diferimos
no grau de plausibilidade que vemos neles, independentemente de como nossos
interesses pessoais diferem. Indivíduos com intuições filosóficas diferentes e
julgamentos de plausibilidade alcançarão, compreensível e racionalmente, po-
sições filosóficas diferentes.26 Tampouco essas aparências intelectuais podem
ser simplesmente estipuladas, uma vez que algum senso do que é plausível é
essencial para qualquer processo sofisticado de pensamento do tipo envolvido
no raciocínio filosófico. Um ser sem intuições filosóficas não alcançaria, portanto,
uma posição filosófica particularmente inatacável; seria simplesmente incapaz
de avaliar posições filosóficas.
Considere agora uma discordância de interesse particular, a discordância
entre anarquistas e estatistas sobre a necessidade do governo.27 Não há razão
para pensar que essa discordância evapore por trás do véu da ignorância, porque
Rawls não deu nenhuma razão para pensar que aqueles que de fato mantêm
uma dessas visões o fazem apenas porque confiam no conhecimento de sua
posição particular na sociedade. Os anarquistas não discordam dos estatistas
porque os anarquistas têm uma posição social peculiar ou combinação de traços
pessoais que de alguma forma lhes permitiriam prosperar na ausência de governo
enquanto o resto da sociedade se desmorona. Se os anarquistas estão corretos
em suas crenças factuais, então algum sistema sem Estado seria melhor para a
sociedade como um todo do que um sistema governamental; se estiverem errados,
seria pior para todos, incluindo os anarquistas. O que quer que explique esse
desacordo em particular, não é que alguém esteja adaptando princípios morais
ou políticos para sua própria vantagem.
Ao apelar para este exemplo, observe que não pressuponho que o anarquismo
político esteja correto; Suponho apenas que existem anarquistas políticos razoá-
26
Em Huemer 2007, argumento que todas as crenças racionais são baseadas em como as coisas
parecem para o crente. Veja Huemer 2005, capítulo 5, sobre o papel da intuição na ética em
particular. Veja Huemer 2011 sobre o papel das normas epistêmicas centradas no agente na
explicação do desacordo racional. Mas veja Hanson e Cowen (2004) para uma visão competitiva.
27
Uso “estatismo” para a visão de que o governo deveria existir; isto é, a alternativa ao anar-
quismo político.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 47

veis (inclusive eu, como gosto de pensar). Cabe ao teórico do contrato hipotético
demonstrar que não existe. Também não pressuponho que a legitimidade po-
lítica exija acordo sobre todos os detalhes da política. Mas, presumivelmente,
concordar se deve haver um Estado é o mínimo que qualquer teoria do contrato
social exige.

3.4.3 A validade do consentimento hipotético, parte 1: o apelo a


resultados justos
Volto-me agora a questão da eficácia moral do consentimento hipotético. Mencio-
nei anteriormente que uma maneira de ler a justificação de Rawls para a posição
original é como um apelo a restrições diretas nos princípios da justiça, em parti-
cular as restrições de que os princípios da justiça devem ser justos para todos e
que devem retificar a arbitrariedade moral na distribuição de vantagens. Essa
abordagem pode ser usada para defender a autoridade política?
Imagine que Sue faça uma oferta para comprar o carro de Joe. Dados os fatos
sobre a condição do carro, as respectivas situações de Sue e Joe, e assim por
diante, a oferta de Sue é totalmente justa para ambas as partes, não tendenciosa a
favor de nenhuma parte. Um proprietário perfeitamente racional, plenamente
informado e razoável aceitaria a oferta. No entanto, Joe se recusa a vender. É
plausível que Joe tenha agido errado? Ou que Sue possa forçar Joe a vender?
Imagine a seguir que, por puro acaso, Joe descobriu um diamante em seu
quintal, que lhe confere uma vantagem material da qual Sue, sem culpa sua, é
privada. Visto que a arbitrariedade moral da distribuição resultante da riqueza
poderia ser retificada por uma transferência de riqueza adequada, Joe é moral-
mente obrigado a dar a Sue metade do valor do diamante? Sue tem o direito de
forçar Joe a fazer isso?
Como esses exemplos mostram, o fato de que algum acordo hipotético seja
justo ou retifique a arbitrariedade moral em geral não cria uma obrigação de agir
de acordo com o acordo hipotético, nem cria um direito ético para coagir outros
a seguir o acordo hipotético.
Talvez Rawls responda aos meus exemplos, como respondeu uma vez a outro
crítico,28 observando que seus princípios da justiça se destinavam a se aplicar
apenas à estrutura básica da sociedade, e não a interações de pequena escala
entre indivíduos. Existem dois possíveis pontos de distinção que Rawls poderia
levantar aqui. O primeiro é uma questão de escala: os exemplos dos dois pará-
grafos anteriores envolvem apenas dois indivíduos em vez de uma sociedade
inteira. Essa diferença, no entanto, não tem relevância ética. Se uma corporação
28
Veja Rawls 1974, 141-2, respondendo às críticas de Harsanyi (1975) à regra da decisão
maximin.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 48

muito grande fizer ofertas para um número muito grande de pessoas, o tamanho
da corporação não a habilitará a forçar indivíduos a aceitar suas ofertas (mesmo
que sejam ofertas justas), assim como um único indivíduo não teria direito a
fazer também.
A outra distinção é política: meus exemplos envolvem atores privados, en-
quanto os princípios de Rawls prescrevem ações do Estado. Essa distinção, no
entanto, não pode ser empregada na defesa de Rawls sem implantar a pergunta,
uma vez que a resposta simplesmente pressupõe que o Estado possua algum
status moral especial, de modo que a coerção por parte do Estado seja mais facil-
mente justificada do que a coerção por parte de agentes privados. Se o Estado
possui autoridade política, esse pressuposto estaria correto; no entanto, como o
que se busca é uma justificativa para a autoridade, não se pode dar como certo
dessa maneira. Sem atribuir um status moral especial ao Estado, Rawls não
teria como restringir a justificativa proposta para coerção ao caso dos agentes
estatais. E como os apelos à justiça ou a retificação da arbitrariedade moral clara-
mente falhariam como justificativas para a coerção privada, também deveriam
ser rejeitadas como fonte de legitimidade política.
Como esses casos mostram, existe uma grande lacuna entre qual acordo
hipotético pode ser adotado de maneira plausível para estabelecer, como a impar-
cialidade ou razoabilidade de algum acordo, e o que o defensor da autoridade
política precisa estabelecer: o direito de impor um acordo pela força, incluindo o
direito de prejudicar intencionalmente e coercivamente aqueles que não coope-
ram e a obrigação dos indivíduos de aderir a esse acordo. Embora um acordo
real possa estabelecer essas coisas, um acordo meramente hipotético não pode.29

3.4.4 A validade do consentimento hipotético, parte 2: condições


suficientes para um raciocínio moral confiável
A vertente dominante na defesa da teoria do contrato social hipotético de Rawls
apela a restrições no raciocínio sobre princípios morais: no raciocínio moral, é
preciso evitar ser influenciado pelo interesse próprio, inclinações particulares ou
quaisquer outros traços individuais eticamente irrelevantes. A posição original é
apenas uma maneira pitoresca de pôr em prática essas restrições, que já aceitamos.
Deixe C defender a conjunção de todas essas restrições razoáveis no raciocínio
moral; isto é, todas as restrições que são consideradas incorporadas na posição
original de Rawls. Deixe J representar qualquer princípio emergindo da posição
29
A recente defesa de Stark (2000) da teoria do contrato social hipotético concorda com esse
ponto. Ele propõe que um contrato hipotético pode “justificar” princípios políticos em algum
sentido, mas nega que possa mostrar que alguém é obrigado a seguir esses princípios ou que o
Estado tem o direito de fazer cumprir os princípios (321, 326).
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 49

original; isto é, um princípio da justiça ou outro princípio moral com o qual as


partes hipotéticas concordariam.30 O argumento de Rawls a favor de J pode ser
entendido da seguinte forma:

1. J pode ser alcançado pelo raciocínio que satisfaz C.

2. Se um princípio moral pode ser alcançado pelo raciocínio que satisfaz C,


então está correto.

3. Portanto, J está correto.

Podemos desejar considerar variações desse argumento; por exemplo, para


“está correto”, podemos substituir “provavelmente está correto”, “é justificado”
ou “deve ser adotado”. Minhas críticas abaixo devem ser consideradas como
aplicáveis a qualquer versão enfraquecida do argumento.
A premissa (1) é verdadeira por estipulação. Não está claro, no entanto,
por que alguém deveria abraçar a premissa (2). Embora seja plausível que as
restrições que Rawls identifique sejam condições necessárias para a confiabilidade
ou persuasão racional do raciocínio moral, Rawls não faz nenhuma tentativa para
mostrar argumentos morais confiáveis ou racionalmente persuasivos. De fato, ele
visa expressamente manter as suposições da posição original tão fracas quanto
possível, consistentes com os cenários tendo um resultado determinado,31 o que
é coerente com o objetivo de garantir que as restrições incorporadas à posição
original sejam todas necessárias para a aceitabilidade de um pedaço de raciocínio
moral. Mas não se encaixa no objetivo de garantir que sejam (coletivamente)
suficientes para a aceitabilidade de um pedaço de raciocínio moral.
Uma dificuldade relacionada diz respeito à lacuna entre aceitabilidade pro-
cessual e corretude substantiva. Mesmo que Rawls tenha conseguido identificar
todas as restrições processuais apropriadas aos argumentos morais, uma pes-
soa que satisfaça essas restrições – não sendo tendenciosa, isto é, falhando em
cometer falácias e assim por diante – não garantiria a exatidão de suas conclu-
sões. A corretude das conclusões de alguém, qualquer que seja o campo de
investigação, depende em parte da corretude e integridade das informações das
quais se raciocina. Isso é facilmente visto em exemplos que envolvem raciocínio
científico. Isaac Newton sustentou teorias equivocadas devido, não a qualquer
erro processual em seu pensamento sobre a física, mas sim à incompletude de
suas informações – especificamente, sua ignorância dos fenômenos relativísticos
e da mecânica quântica.
30
Embora ele inicialmente descreva sua teoria do contrato social hipotético como uma maneira
de chegar aos princípios da justiça (1999, seções 1–4), Rawls depois apela ao contrato hipotético
como uma justificativa para os princípios éticos de maneira mais geral (seções 18–19, 51–2).
31
Rawls 1999, 16, 510.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 50

O mesmo princípio vale para as teorias normativas, onde as informações


necessárias são, pelo menos em parte, avaliativas. Ou seja, as chances de se chegar
a conclusões morais aceitáveis dependem, em parte, da corretude e integridade
substantivas dos valores iniciais. Se uma pessoa tem valores finais equivocados,
como a crença de que a dor é intrinsecamente boa, ou se seus valores básicos são
corretos, mas incompletos, como no caso de alguém que, por engano, sustenta
que sentir prazer é o único bem intrínseco, essa pessoa mais provavelmente
chegará a conclusões normativas incorretas, mesmo que todo o seu raciocínio
seja perfeitamente aceitável em termos processuais, desprovido de preconceitos
de interesse próprio e assim por diante. Assim, para garantir que as partes na
posição original cheguem apenas a conclusões normativas corretas, é necessário
dotar as partes de valores completos e corretos, estipulando que usem esses
valores corretos para tomar sua decisão.
Uma explicação para o fracasso de Rawls em incorporar essa estipulação pode
ser que exigiria que ele resolvesse debates aparentemente intratáveis dentro da
teoria moral sobre quais são os valores corretos antes que pudesse caracterizar
adequadamente a posição original e tirar conclusões dela. Essa dificuldade, no
entanto, não mostra que Rawls esteja justificado em omitir a condição de valores
completos e corretos da posição original; mostra apenas que as perspectivas
de uso da posição original para justificar princípios normativos são obscuras.
Somente se C incluir uma restrição de valores completos e corretos é plausí-
vel afirmar que a premissa (2) é verdadeira, e não se pode, ao construir um
argumento filosófico, meramente prescindir de uma condição necessária para a
plausibilidade de uma premissa desse argumento porque essa condição interfere
na construção do restante do argumento. Uma analogia é o caso do homem que
perdeu as chaves em um beco escuro, mas escolhe procurá-las sob um poste de
luz porque a luz é melhor ali. A dificuldade de identificar a teoria ética abran-
gente correta e suas implicações políticas não impede que essas informações
sejam necessárias para garantir conclusões moralmente corretas, assim como a
dificuldade de ver em um beco escuro impede que as chaves sejam localizadas lá.
Eu li o argumento rawlsiano como afirmando que algum princípio J é correto
ou deve ser adotado. Suponha que isso seja enfraquecido com a alegação de que
é permitido adotar J ou que J não é ilegítimo. Isso pode tornar o argumento mais
persuasivo, pois pode parecer menos implausível que Rawls tenha fornecido
condições suficientes para a permissibilidade de um arranjo político do que ele
tenha fornecido condições suficientes para a corretude de um arranjo político.
Mas esse enfraquecimento da conclusão do argumento não evita verdadeiramente
o problema já discutido. É necessário um suprimento adequado de premissas
morais básicas corretas para identificar cursos de ação permitidos, não menos
que os obrigatórios. Suponha, por exemplo, que indivíduos tenham direitos,
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 51

mas Alastair desconheça esse fato. Alastair pode então ser levado a concluir
falsamente que certas ações são permitidas (particularmente ações que de fato
violam os direitos das pessoas) sem cometer nenhum erro processual em seu
pensamento. Meu argumento aqui não pressupõe que haja de fato direitos
individuais; o ponto é simplesmente que seria necessário conhecer a verdade
sobre essas coisas para garantir a identificação confiável do que é permitido.
Em suma, o presente argumento para a eficácia do consentimento hipotético
falha porque a posição original incorpora apenas certas condições necessárias
para a confiabilidade do raciocínio normativo, em vez de condições suficientes
para a corretude das conclusões normativas. Se a posição original for modificada
de modo a incluir condições suficientes para a corretude normativa, torna-se
difícil ou impossível determinar com quais princípios seria acordado.

3.4.5 A validade do consentimento hipotético, parte 3: condições


necessárias para um raciocínio moral confiável
Há uma interpretação remanescente do argumento de Rawls. Nesta interpreta-
ção, a restrição conjuntiva C representada pela posição original é considerada
necessária, mas não suficiente para a aceitabilidade dos argumentos morais. Se
adotamos essa visão, podemos argumentar da seguinte maneira:

1. J é unicamente coerente com C.

2. C está correto.

3. Portanto, J está correto.

“Coerente” em (1) deve ser entendido como referência a qualquer relação que
permita a C apoiar ou descartar um princípio moral. Assim, (1) pode significar
que apenas J pode ser alcançado pelo raciocínio de acordo com C, que a corretude
de J é implicada pela corretude de C, que J satisfaz C a um grau mais alto do
que qualquer princípio concorrente, ou a gosto. Assim entendida, a premissa
(1) é uma afirmação muito forte, embora eu não tenha sido mais forte do que o
argumento exige: se C é meramente necessário, mas não suficiente para corretude
moral, então uma premissa no sentido de que J é coerente com C não mostraria
que J estava correto; o que se deve mostrar é que nenhum princípio alternativo é
coerente com C.
A premissa (1) é exposta a contra-evidências amplas e poderosas. Muitos
filósofos parecem ter chegado a conclusões alternativas por um raciocínio que
satisfaz C. Os vários pensadores que adotam o utilitarismo, o igualitarismo, o
libertarianismo ou o anarquismo geralmente não parecem ter violado nenhuma
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 52

restrição amplamente aceita ao raciocínio moral, nem Rawls em qualquer lugar


esforçar-se para mostrar que eles tenham.
Como exemplo, considere o utilitarismo, a teoria de que a ação correta (seja
para um indivíduo ou para o Estado) é sempre a ação que produz os maiores
benefícios líquidos totais, agregando benefícios a todos os afetados pela ação.
Rawls nos diz que essa é a teoria com a qual ele estava mais preocupado em for-
necer uma alternativa sistemática.32 Ele também afirma que a função da posição
original é simplesmente “descartar aqueles princípios que seria racional propor
[. . . ] apenas se alguém soubesse certas coisas que são irrelevantes do ponto de
vista da justiça”.33 O utilitarismo certamente não é um exemplo de princípio
moral que faz sentido propor apenas se alguém tem informações irrelevantes
do ponto de vista da justiça, como informações sobre a raça, sexo, classe social
e assim por diante. Tudo o que se pode dizer sobre isso, o utilitarismo é talvez
a única teoria ética menos suscetível a acusações de parcialidade indevida. O
pensamento dos utilitaristas reais parece, portanto, fornecer um contra-exemplo
convincente à premissa (1).34
Que argumento Rawls oferece para apoiar (1)? Ao motivar a construção da
posição original, ele apresenta argumentos de que a posição original personifica
C. Também argumenta detalhadamente que certos princípios seriam escolhidos
na posição original.35 Mas nenhuma dessas coisas poderia ser considerada uma
premissa (1). Em conjunto, elas podem mostrar que há um exemplo de raciocínio
que satisfaz C – ou seja, o raciocínio das partes na posição original – que leva
a J. Mas seria falacioso inferir que não há outro caminho possível de raciocínio
que satisfaça C que leva a um princípio alternativo (na lógica aristotélica, isso
é conhecido como falácia do menor ilícito).36 E, de fato, como vimos, existem
32
Rawls 1999, xvii-xviii.
33
Rawls 1999, p. 17.
34
Pode-se dizer que o raciocínio utilitário viola a restrição do desinteresse mútuo que Rawls
incorpora na posição original (1999, 12). Mas dificilmente se pode dizer que isso represente
uma restrição genuína ao raciocínio moral aceitável, uma vez que não é o caso de o raciocínio
moral de alguém ser problemático se levar em consideração os interesses dos outros. Da mesma
forma, a argumentação de que o utilitarismo viola a restrição de que não se baseia em nenhuma
concepção de bem.
35
Mas veja Harsanyi 1975 para argumentos convincentes de que a posição original realmente
leva ao utilitarismo.
36
Na lógica aristotélica, o “termo menor” em um silogismo é o termo que aparece como o
conteúdo da conclusão. Se o termo menor for distribuído na conclusão, ele deverá ser distribuído
em pelo menos uma premissa. Grosso modo, isso significa que, se a conclusão fizer uma reivindi-
cação aplicável a todos os membros de uma determinada classe, pelo menos uma premissa deverá
conter informações aplicáveis a todos os membros dessa classe. No presente caso, a conclusão
desejada é que todo raciocínio moral que satisfaz C é consistente com J (esta é uma paráfrase de
(1)); portanto, o termo menor é “raciocínio moral satisfazendo C”, e esse termo é distribuído na
conclusão desejada. Como qualquer reivindicação que Rawls possa fazer sobre a posição original
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 53

exemplos de raciocínio que satisfazem C que são inconsistentes com J, como o


raciocínio vigente dos utilitaristas.

3.5 Conclusão
O acordo hipotético normalmente é eficaz somente quando (i) o contrato real
não pode ser viável e (ii) é razoável acreditar que a parte ou partes relevantes
concordariam, com base em suas crenças reais e valores gerais. Essas condições
são insatisfeitas no caso do contrato social hipotético.
O trabalho filosófico contemporâneo sugere três maneiras pelas quais um
contrato social hipotético pode, no entanto, ser considerado moralmente relevante.
Primeiro, pode-se pensar que um acordo hipotético mostra que um determinado
arranjo social não pode ser razoavelmente rejeitado. Esse argumento falha porque
não há razão para acreditar que o acordo hipotético necessário possa ser alcançado.
Mesmo que tal acordo possa ser alcançado, a mera irracionalidade de alguém
rejeitar um acordo normalmente não torna moralmente permitido coagir essa
pessoa a aceitar o acordo, nem impõe aos indivíduos a obrigação de aceitar o
acordo.
Segundo, pode-se pensar que um acordo hipotético mostre que um arranjo
social é justo. Novamente, não há razão para acreditar que um acordo geral
sobre um sistema político possa ser alcançado, mesmo entre pessoas racionais
igualmente informadas que não tenham conhecimento de suas identidades indi-
viduais e, de qualquer forma, o mero fato de que um acordo é justo normalmente
não torna moralmente permissível coagir as pessoas a aceitarem o acordo, nem
impõe aos indivíduos a obrigação de aceitarem o acordo.
Terceiro, pode-se pensar que um acordo hipotético mostre que um conjunto
de princípios morais reflete certas restrições razoáveis no raciocínio moral. Essas
restrições podem ser entendidas como condições coletivamente suficientes ou
apenas como condições coletivamente necessárias para a aceitabilidade de um
pedaço de raciocínio moral. Se as restrições forem suficientes para a aceitabilidade
do raciocínio moral, elas devem incluir uma condição de valores completos
e corretos por parte do raciocínio. Mas essa condição tornaria inutilizável a
teoria do contrato hipotético, uma vez que seria necessário determinar a teoria
moral abrangente e correta antes de poder determinar o conteúdo do acordo
hipotético. Se, por outro lado, nos basearmos apenas nas condições necessárias
para a aceitabilidade do raciocínio moral, então se deve argumentar que toda
teoria política exceto uma de alguma forma viola pelo menos uma condição
diria respeito apenas a um caso de raciocínio que satisfaça C, o termo menor não está distribuído
nas premissas.
3. A Teoria do Contrato Social Hipotético 54

necessária do raciocínio moral aceitável. Ninguém argumentou a favor dessa


afirmação, e as divergências razoáveis entre os teóricos parecem representar uma
contra-evidência poderosa.
Assim, a mudança para um contrato meramente hipotético não pode salvar
a teoria do contrato social. Não há razão para acreditar que o acordo possa ser
alcançado, mesmo nos cenários hipotéticos previstos pela maioria dos teóricos,
nem que esse consentimento hipotético seria moralmente relevante se pudesse
ser alcançado.
4

A Autoridade da Democracia

4.1 Majoritarismo ingênuo


Uma vez que reconheçamos a inviabilidade de obter consentimento unânime
para qualquer acordo social não trivial, poderemos recorrer ao consentimento da
maioria. O acordo apenas da maioria dos membros da sociedade – seja amplo
acordo para ter um governo ou acordo para ter políticas ou pessoal específicos –
confere autoridade ao governo?
À primeira vista, não está claro como isso pode funcionar. As opiniões ou
decisões de um grupo maior de pessoas normalmente não são suficientes para
impor obrigações a um grupo menor ou a um indivíduo que não concorda com o
grupo maior, nem geralmente justificam um comportamento coercitivo por parte
do grupo maior.
Imagine o seguinte cenário, que chamarei de exemplo da conta do bar. Você
saiu para beber com alguns de seus colegas e estudantes de pós-graduação.
Vocês estão ocupados falando sobre filosofia, quando alguém levanta a questão
de quem vai pagar a conta. Várias opções são discutidas. Um colega sugere
dividir a conta igualmente entre todos na mesa. Você sugere que todos paguem
por suas próprias bebidas. Um estudante de graduação sugere que você pague
pelas bebidas de todos. Relutante em gastar tanto dinheiro, você recusa. Mas o
aluno persiste: “Vamos votar”. Para sua consternação, eles continuam votando, o
que revela que todos na mesa, exceto você, querem que você pague pelas bebidas
de todos. “Bem, isso resolve”, declara o aluno. “Pague.”
Agora você é eticamente obrigado a pagar pelas bebidas de todos? Os outros
podem coletar seu dinheiro à força? A maioria responderá não às duas perguntas.
A vontade majoritária por si só não gera direito a coagir a minoria, nem gera
uma obrigação de cumprimento por parte da minoria. Mais precisamente, a
maioria por si só não oferece apoio suficiente para que uma proposta substitua

55
4. A Autoridade da Democracia 56

os direitos de propriedade privada de um indivíduo (seu direito ao seu dinheiro


neste exemplo) ou o direito de não ser sujeito a coerção prejudicial.
Esse tipo de exemplo coloca um ônus dialético sobre os defensores da au-
toridade democrática, um ônus de identificar algumas circunstâncias especiais
que se aplicam ao governo que explicam por que, no caso do governo, o apoio
da maioria fornece justificativa adequada para a coerção, mesmo que não seja
suficiente para outros agentes.

4.2 Democracia deliberativa e legitimidade


4.2.1 A ideia de democracia deliberativa
Teóricos democráticos recentes enfatizaram o valor dos procedimentos de tomada
de decisão em uma sociedade democrática. Uma linha recente de pensamento
busca articular um ideal de “democracia deliberativa” – isto é, um ideal de
como os cidadãos de uma sociedade democrática devem deliberar entre si sobre
questões de interesse público.1 Assim, de acordo com Joshua Cohen, a deliberação
democrática ideal teria as seguintes características:2

1. Os participantes consideram sua deliberação capaz de determinar uma


ação e sem restrições por quaisquer normas anteriores.

2. Os participantes oferecem razões para suas propostas, com a expectativa


(correta) de que apenas essas razões determinarão o destino de suas pro-
postas.

3. Cada participante tem uma voz igual.

4. A deliberação visa ao consenso. No entanto, se não for possível obter


consenso, a deliberação termina com a votação.

O que isso tem a ver com autoridade política? Em uma democracia deli-
berativa ideal, Cohen escreve: “[. . . ] os cidadãos consideram suas instituições
básicas legítimas na medida em que estabelecem a estrutura para deliberação
pública gratuita. [. . . ] Para eles, a livre deliberação entre iguais é a base da
legitimidade”.3 Aqui, Cohen não está diretamente fazendo uma reivindicação
sobre o que é uma base sólida para a legitimidade política. Ele também não está
fazendo uma afirmação psicológica ou sociológica sobre o que as pessoas reais
1
Cohen 2002; Habermas 2002.
2
Ver Cohen 2002, 92–3, para uma descrição mais completa dessas condições.
3
Cohen 2002, 91.
4. A Autoridade da Democracia 57

consideram uma base sólida para a legitimidade. Em vez disso, ele estipula que
os cidadãos de uma democracia deliberativa ideal – um cenário puramente hipo-
tético – toma a deliberação como base da legitimidade. Suponho, no entanto, que
o próprio Cohen considere algum processo deliberativo adequado para fornecer
uma base sólida para a legitimidade política. Como a deliberação democrática
pode fornecer uma base para a legitimidade? Cohen não explica isso claramente.
Talvez o pensamento seja que a justiça, a igualdade e a racionalidade do pro-
cedimento de tomada de decisão que Cohen descreve confiram legitimidade
aos seus resultados. Esse é um argumento tênue – por que deveríamos assumir
que qualquer procedimento, por melhor que seja, confere um direito exclusivo e
independente do conteúdo para o Estado coagir as pessoas a cumprir as decisões
produzidas por esse procedimento? No entanto, vamos examinar essa linha de
pensamento mais de perto.

4.2.2 Democracia deliberativa como fantasia


Se há algo que se destaca quando se lê descrições filosóficas da democracia
deliberativa, é até que ponto essas descrições caem da realidade. Das quatro
características da democracia deliberativa que Cohen identifica, quantas são
satisfeitas por uma sociedade real?
Comece com a primeira condição de Cohen. Cohen escreve: “os participantes
se consideram vinculados apenas pelos resultados de sua deliberação e pelas
pré-condições para essa deliberação. A consideração de propostas não é limitada
pela autoridade de normas ou requisitos prévios.”4 Isso não é verdade para a
maioria das pessoas. As pessoas reais frequentemente se consideram vinculadas
por outras coisas que não os resultados de deliberação pública. Por exemplo,
alguns acreditam em lei natural, muitos acreditam em exigências morais divina-
mente impostas, outros acreditam estar vinculados por uma Constituição que foi
estabelecida há muito tempo, e assim por diante.
De acordo com a segunda condição de Cohen,

A deliberação é fundamentada no fato de que as partes envolvidas


devem declarar seus motivos para apresentar propostas [. . . ] Eles dão
motivos com a expectativa de que esses motivos (e não, por exemplo,
seu poder) determinem o destino de sua proposta. Na deliberação
4
Cohen 2002, 92. A “primeira condição” de Cohen contém duas partes. A primeira parte é
como indicado no texto. A segunda parte é que “os participantes supõem que podem agir com
base nos resultados [de suas deliberações]”. Essa parte parece inquestionável.
4. A Autoridade da Democracia 58

ideal, como Habermas coloca, “nenhuma força, exceto a do melhor


argumento, é exercida”.5

Nas democracias reais, ninguém é obrigado (pelo Estado ou por qualquer


outra pessoa) a declarar suas razões para avançar propostas de políticas. Além
disso, a qualidade dos motivos apresentados para uma proposta política é apenas
uma parte do que determina o destino dessa proposta, e quase todo mundo sabe
disso. O destino das propostas políticas nas democracias reais é determinado
pelo menos tanto pela retórica quanto pelo raciocínio, e os apelos retóricos são ou-
vidos consideravelmente mais frequentemente do que os argumentos racionais e
sóbrios. Os resultados políticos também são influenciados pelo interesse próprio.
Cohen assegura que a “deliberação concentra o debate no bem comum”6 – mas,
na realidade, grupos de interesses concorrentes disputam o controle dos proces-
sos políticos na esperança de usar o poder do Estado para obter ganhos egoístas.7
Seria extremamente incomum encontrar cidadãos ingênuos a ponto de pensar
que apenas seus argumentos declarados, não seu poder político, determinariam
se suas propostas políticas seriam adotadas.
A terceira condição de Cohen exige que “as partes sejam formal e substanti-
vamente iguais”. Ele elabora:

Cada um tem uma voz igual na decisão. [. . . ] A distribuição existente


de poder e recursos não molda suas chances de contribuir para a
deliberação.8

É claro que não existe uma sociedade real em que essas coisas sejam verda-
deiras. Em qualquer sociedade moderna, um pequeno número de indivíduos –
jornalistas, autores, professores, políticos, celebridades – desempenha um grande
papel no discurso público, enquanto a grande maioria dos indivíduos desempe-
nha essencialmente nenhum papel no discurso. A grande maioria das pessoas
não tem oportunidade realista de fazer suas ideias serem ouvidas além de um
pequeno círculo de conhecidos. E a distribuição existente de poder e recursos
determina quase completamente as chances de contribuir para a deliberação
pública. Cidadãos ricos podem comprar publicidade ou até possuir estações de
5
Cohen 2002, 93 (ênfase no original). A citação de Habermas é de Habermas, 1975, 108.
A citação da aprovação de Habermas sugere que as partes da deliberação ideal não apenas
acreditam, mas acreditam corretamente que apenas razões declaradas determinarão o destino de
suas propostas.
6
Cohen 2002, 95.
7
Carney (2006) documenta vários casos. O ponto principal aqui é, não que os eleitores
individuais sejam egoístas, mas que grupos de interesses especiais egoístas influenciam os
eleitores.
8
Cohen 2002, 93.
4. A Autoridade da Democracia 59

televisão ou outros meios de comunicação; cidadãos pobres e de classe média


não podem. Indivíduos com poder político podem exibir suas opiniões na mídia
nacional – o Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, pode convocar uma
conferência de imprensa a qualquer momento; Eu não posso. É difícil imaginar
esses fatos mudando. Os Estados Unidos contêm mais de 300 milhões de cida-
dãos. Como todas essas vozes podem ser ouvidas igualmente? Como seria a
sociedade se cada um desses indivíduos pudesse convocar uma conferência de
imprensa para discutir sua última ideia política?
Finalmente, de acordo com a quarta condição de Cohen, a deliberação ideal
“visa chegar a um consenso racionalmente motivado”.9 Isso também é falso para
qualquer sociedade real. Nos Estados Unidos, por exemplo, há muita discussão
pública sobre questões como aborto, controle de armas e políticas de saúde.
Alguns participantes dessas discussões procuram influenciar os cidadãos que
permanecem indecisos sobre o assunto em questão. A maioria provavelmente está
apenas tentando expressar seus próprios sentimentos e opiniões. Dificilmente
alguém está buscando um consenso. Muitos sabem que não têm uma esperança
realista de chegar a um acordo com partidários do ponto de vista ideológico
oposto, e não fazem nenhuma tentativa séria de fazê-lo.
Como essas observações nos lembram, a democracia deliberativa ideal de
Cohen é um cenário puramente hipotético. Dado o quão distante esse cenário
está da realidade, a que propósito serve o exercício imaginativo? Que papel pode
desempenhar na justificativa das ações de qualquer governo real?
Talvez se algumas sociedades reais ao menos se aproximassem do ideal, isso
pudesse conferir legitimidade a seus arranjos políticos. Cohen, no entanto, não
tenta argumentar que qualquer sociedade real se aproxima de seu ideal, e seria
difícil fazer tal argumento. Nem sequer é verdade, por exemplo, que todos os
indivíduos têm voz igual no discurso público, que não sejam afetados por sua
riqueza ou poder. Nem é totalmente verdade que os resultados políticos sejam
determinados puramente por argumentos racionais ou que o discurso público
visa ao consenso.
Cohen escreve que “o procedimento deliberativo ideal visa fornecer um mo-
delo para as instituições se espelharem”.10 Talvez a concepção de democracia
deliberativa de Cohen forneça orientações sobre como a sociedade deve mu-
dar. Embora isso possa fornecer um papel útil para a construção de Cohen,
não nos aproxima da autoridade política derivada. Uma descrição de um ideal
que nossa sociedade deveria visar, mas sobre a qual realmente ficamos muito
aquém dificilmente constitui um argumento de que nosso Estado tem autoridade
política.
9
Cohen 2002, 93 (ênfase no original).
10
Cohen 2002, 92.
4. A Autoridade da Democracia 60

Cohen continua afirmando que “os resultados são democraticamente legíti-


mos se e somente se pudessem ser objeto de um acordo livre e fundamentado
entre iguais.”11 Ele não defende esta tese, nem explica exatamente o que ela
significa. Como devemos entender a força desse “pudessem”?
Em uma leitura, o princípio de Cohen é absurdamente permissivo. Imagine
que você está andando na rua, quando um boxeador de repente lhe dá um soco na
cara. “Por que você fez isso?!”, você exclama. “Bem”, explica o boxeador, “você
poderia ter concordado em levar um soco na cara.” Agora suponha, analogamente,
que uma certa lei possa ter sido objeto de um acordo livre e fundamentado
entre todos os cidadãos, no sentido de que os cidadãos poderiam ter decididos
livremente concordarem com essa lei – mas, de fato, nenhum cidadão fez isso.
É, para dizer o mínimo, obscuro como essa situação daria ao Estado um direito
moral de impor essa lei pela força.
Presumivelmente, Cohen optaria por uma leitura mais forte de “poderia”.
Habermas escreve sobre o que “seria o encontro do acordo voluntário de todos os
envolvidos, se pudessem participar, como livres e iguais, na formação discursiva
da vontade”.12 Talvez Cohen, da mesma forma, diria que um sistema político
legítimo é aquele com o qual concordaríamos se deliberássemos da maneira ideal.
Nesta leitura, Cohen e Habermas estão apelando para uma teoria do contrato
social hipotético. No entanto, já vimos os problemas com essa teoria no Capítulo
3. Resumidamente, havia dois problemas principais. Primeiro, não há razão
para pensar que a estrutura e os princípios de qualquer Estado real seriam de
fato acordados após uma deliberação ideal. Segundo, mesmo que a estrutura e
os princípios de algum Estado real sejam acordados, não há razão para pensar
que esse fato conferisse autoridade a esse Estado. Nem Cohen nem Habermas
abordaram esses dois problemas centrais.

4.2.3 A irrelevância da deliberação


Concedido que nenhuma sociedade satisfaz as condições de Cohen para uma
democracia deliberativa ideal, se houvesse uma sociedade assim, seu governo
teria autoridade?
Não está claro por que isso aconteceria. Lembre-se do exemplo da conta do bar
(Seção 4.1). Seus colegas e alunos votaram, sob suas objeções, em você pagar pelas
bebidas de todos. Agora, adicione as seguintes estipulações ao exemplo: antes de
votar, o grupo deliberou. Todos, inclusive você, tiveram a mesma oportunidade
de oferecer razões a favor ou contra forçar você a pagar pelas bebidas de todos.
Os outros argumentaram que seria do melhor interesse do grupo forçar você
11
Cohen 2002, 92 (grifo nosso). Compare Habermas 1979, 186–7.
12
Habermas 1979, 186.
4. A Autoridade da Democracia 61

a pagar. Eles tentaram chegar a um consenso. No final, eles não conseguiram


convencê-lo de que você deveria pagar, mas todos concordaram que você deveria
pagar. Agora você é obrigado a pagar por todos? Os outros membros do grupo
têm o direito de obrigar você a pagar através de ameaças de violência?
Claramente não. Você tem direitos – neste caso, o direito de escolher quando
e como gastar seu dinheiro e o direito de se libertar da coerção prejudicial – que
não são negados ou substituídos pelo simples fato de que uma decisão de violar
seus direitos foi precedida por um processo deliberativo justo e fundamentado.
A justiça do processo não permite que, de alguma forma, contorne todos os
direitos e restrições éticas preexistentes. Da mesma forma, é obscuro como o
tipo de deliberação que Cohen descreve, mesmo que realmente ocorra, confere
legitimidade política ao Estado. Os indivíduos têm um direito prima facie pre-
existente de não serem submetidos à coerção. A deliberação, por mais justa e
fundamentada, não elimina por si só esse direito. É claro que os motivos para
substituir os direitos prima facie dos indivíduos podem ser oferecidos, e a oferta
desses motivos pode fazer parte de um processo deliberativo. Mas o processo
deliberativo não constitui, por si só, uma razão para suspender os direitos prima
facie dos indivíduos.

4.3 Igualdade e autoridade


4.3.1 O argumento da igualdade
Passo agora ao que pode ser o argumento contemporâneo mais bem desenvolvido
para a afirmação de que o processo democrático confere autoridade política. A
ideia central é que temos uma obrigação geral de tratar os outros membros da
nossa sociedade como iguais e que isso exige o respeito pelas decisões democra-
ticamente tomadas.
O argumento levanta questões sobre o que conta como uma lei democratica-
mente autorizada. Uma lei que é o produto direto de um referendo popular é o
caso mais claro de uma lei democraticamente autorizada (doravante, “uma lei
democrática”).13 Mas e as leis que a maioria dos eleitores não apoiam, mas que
foram aprovadas por uma legislatura eleita democraticamente? E se uma lei ou
candidato político for apoiado pela maioria dos eleitores, mas não pela maioria
de todos os cidadãos? E os regulamentos escritos por burocratas não eleitos? Ou
ordens emitidas por juízes não eleitos? Por mais difíceis que sejam essas per-
13
Wolff (1998, 29-34) levanta problemas especiais para a legitimidade da democracia represen-
tativa. Christiano (2008, 105-6) argumenta que a democracia representativa é em geral superior à
democracia direta. No entanto, não creio que ele duvide que as leis criadas por referendo sejam
legítimas.
4. A Autoridade da Democracia 62

guntas para os teóricos democráticos, vou colocá-las de lado para me concentrar


em problemas mais profundos. A partir de agora, assumirei simplesmente que
temos um Estado cujas leis são genuinamente autorizadas pelo povo, seja lá o que
isso possa significar. Mesmo com essa concessão generosa, como argumentarei,
os teóricos democráticos não podem estabelecer autoridade política.
Thomas Christiano desenvolveu o Argumento da Igualdade como um argu-
mento para obrigação política, aproximadamente da seguinte forma:14

1. Os indivíduos são obrigados a tratar os outros membros de sua sociedade


como iguais e a não tratá-los como inferiores.

2. Para tratar os outros como iguais e não como inferiores, é preciso obedecer
às leis democráticas.

3. Portanto, os indivíduos são obrigados a obedecer às leis democráticas.

A obrigação assim defendida é independente do conteúdo, mas não precisa


ser tomada como absoluta: o defensor do argumento acima pode reconhecer a
possibilidade de valores compensatórios que às vezes superam a obrigação de
obedecer às leis democráticas. Também se pode reconhecer algumas qualificações
do princípio (2): talvez apenas quando as leis democraticamente estabelecidas
estejam dentro de certos limites – quando não violam a Constituição ou oprimem
descaradamente as minorias, por exemplo – é que o tratamento igualitário de
outras pessoas exige obediência a essas leis.15
Por que devemos aceitar as premissas do Argumento da Igualdade? Comece
com a premissa (1). Christiano avança o seguinte sub-argumento, em paráfrase:

1a. Justiça exige dar a cada pessoa o que lhe é devido e tratar casos semelhantes.

1b. Todos os membros da sociedade têm status moral igual.16

1c. Portanto, a justiça exige tratar os outros membros da sociedade como


iguais.17
14
Christiano 2008.
15
Ver Christiano 2008, cap. 7, para discussão dos limites da autoridade democrática.
16
Para a premissa (1a), ver Christiano 2008, 20. Para (1b), ver Christiano 2008, 17–18. Por uma
questão de brevidade, omito a discussão sobre exatamente o que significa status moral igual.
O teórico democrático pode reconhecer qualificações a serem reivindicadas (1b). Talvez, por
exemplo, as crianças e os loucos tenham um status diferente dos adultos normais, de modo que
eles não precisam ter direitos iguais de participação democrática.
17
Christiano (2008, 31) escreve: “a justiça como descrevi normalmente não impõe requisitos
diretamente a cada pessoa”. Mas o argumento da obrigação política exige que a justiça imponha
requisitos aos indivíduos.
4. A Autoridade da Democracia 63

Em seguida, por que alguém deveria aceitar a premissa (2)? Parece haver dois
sub-argumentos para isso. O primeiro apela à ideia de colocar um julgamento
acima do de outros:

2a. Desobedecer a uma lei democrática é colocar um julgamento acima do de


outros membros da sociedade.

2b. Colocar o julgamento de alguém acima do dos outros é tratá-los como


inferiores.

2c. Portanto, desobedecer a uma lei democrática é tratar os outros membros


da sociedade como inferiores.18 (de 2a, 2b)

O segundo sub-argumento apela à obrigação de apoiar a democracia:

2d. Tratar os outros como iguais requer apoiar o avanço igual de seus interesses.

2e. A democracia é crucial para o avanço igual dos interesses das pessoas.

2f. Para apoiar a democracia, é preciso obedecer às leis democráticas.

2g. Portanto, tratar os outros como iguais requer obedecer às leis democráti-
cas.19 (de 2d – 2f)

Christiano gasta mais tempo justificando (2e). Ele argumenta que, para
realmente promover os interesses dos indivíduos igualmente, um sistema social
deve atender a um requisito de publicidade, o que significa que deve ser possível
para os cidadãos verem por si mesmos que estão sendo tratados da mesma forma.
Então argumenta que apenas a tomada de decisão democrática, como forma
processual de igualdade, satisfaz esse requisito. Existem outras interpretações
substantivas de igualdade – por exemplo, que alguém trata os outros igualmente
igualando seus recursos ou que trata os outros igualmente concedendo-lhes
os mesmos direitos de liberdade. Mas essas interpretações de igualdade não
satisfazem a exigência de publicidade, porque são muito controversas; somente
aqueles que aceitam certas visões éticas controversas podem se ver tratados
como iguais em virtude da implementação de uma dessas formas substantivas
de igualdade. Portanto, a promoção igualitária de interesses por parte do público
requer tomada de decisão democrática.
18
Christiano 2008, 98-9, 250.
19
Christiano 2008, 249. Inseri a premissa (2f) conforme exigido para a validade do argumento,
embora Christiano não o declare explicitamente.
4. A Autoridade da Democracia 64

4.3.2 Uma teoria da justiça absurdamente exigente?


Como o interpretei, o Argumento da Igualdade deriva do dever de obedecer
às leis democráticas, em parte, de um requisito de justiça que promova o igual
avanço dos interesses das pessoas [premissa (2d)].
Tomada sem qualificação, essa suposta exigência de justiça é absurdamente
exigente. Suponha que eu tenha $50. Se eu gastar o dinheiro comigo mesmo,
estaria promovendo meus interesses mais do que os interesses dos outros. Para
promover os interesses das pessoas igualmente, devo gastar o dinheiro em algo
que beneficie a todos, ou dividir o dinheiro entre todos os membros da minha
sociedade, ou talvez doar o dinheiro para ajudar pessoas cujos interesses estão
atualmente menos avançados do que a média. O mesmo raciocínio se aplica
a qualquer recurso à minha disposição. Parece, então, que devo doar quase
tudo o que possuo. De fato, uma vez que o fundamento do dever de tratar
os outros membros da minha sociedade como iguais é seu status moral igual
[premissa (1b)], parece que meu dever deve se estender a promover igualmente
os interesses de toda ou a maioria da população da terra.
Como podemos evitar uma teoria da justiça absurdamente exigente, sem
renunciar ao argumento da igualdade? Uma possibilidade é limitar a demanda
de justiça a uma obrigação de promover instituições sociais que promovam
igualmente os interesses de outras pessoas, em oposição a uma obrigação de
promover diretamente o avanço igual dos interesses de outras pessoas através do
próprio comportamento em geral.
Mas como essa qualificação seria justificada? A obrigação de tratar os outros
como iguais deve estar fundamentada em um princípio de justiça exigindo que
concedamos aos outros o que lhes é devido e tratem os mesmos casos. Se outros
são devidos a um progresso igual de seus interesses, parece que, para agir com
justiça, devo promover seus interesses igualmente; não há fundamento para
limitar essa obrigação a ações de apoio a instituições sociais em geral. Se, por
outro lado, outros não recebem o mesmo avanço de seus interesses, parece que
eu não preciso apoiar o mesmo avanço de seus interesses, seja na promoção de
instituições sociais ou em qualquer outra esfera de ação.
Talvez os indivíduos tenham uma obrigação de justiça para promover o pro-
gresso igual dos interesses uns dos outros, mas isso é apenas uma obrigação
prima facie, que pode ser substituída por razões compensatórias, incluindo razões
prudenciais. Talvez eu não precise gastar a maior parte de meus recursos com
outras pessoas, porque minhas razões prudenciais para usar recursos em meu
próprio benefício geralmente superam o dever prima facie de promover o avanço
igual dos interesses de outras pessoas. O governo, por outro lado, deve dedicar-
se mais profundamente ao igual avanço de interesses dos cidadãos, porque o
governo, como instituição e não como pessoa, não possui razões prudenciais
4. A Autoridade da Democracia 65

genuínas.20
Esta última sugestão deixa claro em que medida os indivíduos têm obrigações
políticas. Considere dois exemplos:

O caso da caridade: Tenho $50, que estou pensando em doar para uma
instituição de caridade antipobreza muito eficaz ou gastar em meu
próprio consumo pessoal. Se eu der o dinheiro para a caridade, isso
reduzirá a desigualdade na sociedade e aproximará a sociedade do
progresso igual dos interesses de todos os seus membros. No entanto,
eu já doei uma grande quantia em dinheiro para caridade este ano e
não desejo doar mais. Eu decido ficar com o dinheiro.
O caso do imposto: As leis tributárias exigem que eu pague uma grande
quantia em dinheiro ao governo. Estou pensando em pagar todos
os impostos exigidos ou trapacear com meus impostos de maneira a
pagar $50 a menos do que a quantia legalmente exigida; nesse caso,
gastarei os $50 em consumo pessoal. Suponha que tenho certeza de
que, se eu trapacear, não serei pego ou sofrerei outras conseqüências
pessoais negativas. Eu decido trapacear.

Os advogados da autoridade democrática certamente negariam que minha


ação é permitida no caso do imposto, mas para evitar uma teoria ética absur-
damente exigente, permitiriam que a minha ação fosse autorizada no caso da
caridade. Suponhamos que, no caso da caridade, minha razão prudencial supere
meu dever prima facie de promover o avanço igual dos interesses dos outros. Mas
minha razão prudencial para trapacear meus impostos no caso do imposto é tão
forte quanto minha razão prudencial para manter os $50 no caso da caridade.
Além disso, o envio de $50 para a caridade provavelmente promova um avanço
igual dos interesses das pessoas em um grau muito maior do que o envio de
$50 ao governo. Portanto, se minha ação é permitida no caso da caridade, como
poderia ser inadmissível no caso do imposto?
Pode-se apelar para a ideia de que o benefício total fornecido pelo governo,
em relação ao avanço igual dos interesses das pessoas, é muito maior que o
benefício total fornecido por qualquer organização de caridade. Existem dois
problemas com esse argumento. O primeiro é que a afirmação não precisa ser
verdadeira. Uma instituição de caridade grande e eficiente pode fazer mais do
que um Estado pequeno e ineficiente, os defensores da autoridade política ainda
afirmam que o indivíduo é obrigado a pagar impostos ao Estado e não é obrigado
a doar para a caridade. Segundo e mais importante, a alegação é irrelevante. O
20
Suspeito que essa sugestão esteja mais próxima do que Christiano tem em mente quando
diz: “impomos, com razão, padrões impessoais a instituições que não impomos totalmente a nós
mesmos como indivíduos” (2008, 31; grifo nosso).
4. A Autoridade da Democracia 66

bem total feito por uma organização não deve ser confundido com o bem causado
pela contribuição marginal do indivíduo para essa organização. É o último, e
não o primeiro, que determina a força das razões para contribuir. O impacto
marginal de $50 dos meus impostos no avanço igual dos interesses das pessoas é
insignificante.
Eu me concentrei no caso do imposto, porque está entre os exercícios menos
controversos e menos dispensáveis da autoridade governamental entre aqueles
que acreditam em autoridade política. Se a obrigação de pagar impostos não
puder ser defendida, não há esperança de defender a obrigação política em casos
mais controversos, como a suposta obrigação de se apresentar as forças armadas
(alistamento militar), quando solicitado.
O resultado desta discussão é que o defensor do Argumento da Igualdade
enfrenta um dilema: ou a obrigação de promover o avanço igual dos interesses é
implausivelmente exigente ou é fraca demais para apoiar obrigações políticas
básicas.

4.3.3 Apoiando a democracia através da obediência


Uma linha do argumento da igualdade [(2d) e (2f)] afirma que a democracia
é tão crucial para o avanço igual dos interesses das pessoas que, para apoiar o
avanço igual dos interesses, é preciso apoiar a democracia. Além disso, para
apoiar a democracia, é preciso obedecer às leis democráticas. Portanto, é preciso
obedecer às leis democráticas.
O problema óbvio com essa inferência é que a obediência ou desobediência
de um indivíduo em particular a uma lei específica não tem impacto real no
funcionamento do Estado. Por exemplo, o governo persiste apesar de um grande
número de pessoas que fogem de uma grande quantidade de impostos todos
os anos.21 Um sonegador a mais não fará com que o governo entre em colapso,
nem fará com que o governo se torne antidemocrático. O mesmo vale para quase
todas as outras leis. Christiano nos diz: “Cada pessoa deve tentar perceber o
avanço igual dos interesses de outros seres humanos”.22 Mas a obediência às leis
democráticas parecem ter pouca ou nenhuma conexão com isso. Uma ação que
pode ser prevista com antecedência com não tendo impacto na consecução de
um determinado objetivo não é uma maneira racional de tentar alcançá-lo.
É certo que, embora o impacto de um único indivíduo possa ser negligen-
ciável, a obediência geral da maioria da população é um requisito genuíno para
o sucesso e a estabilidade do Estado. Se a maioria das pessoas violasse regu-
21
O IRS estima que mais de 300 bilhões de dólares em impostos são evadidos anualmente pelos
16% dos contribuintes que sonegam (Departamento do Tesouro dos EUA 2009, 2).
22
Christiano 2008, 249.
4. A Autoridade da Democracia 67

larmente a maioria das leis, o Estado provavelmente entraria em colapso. No


entanto, a maioria das sociedades modernas não chega nem perto do limiar de
desobediência necessário para o colapso do governo; portanto, o impacto mar-
ginal do indivíduo na sobrevivência do Estado é zero. (Veja o Capítulo 5 para
discutir quando a desobediência é injusta através da obediência dos outros, caso
free rider)

4.3.4 A igualdade democrática é exclusivamente pública?


Mesmo que tenhamos a obrigação de tentar promover um progresso igual nos
interesses das pessoas, a interpretação desse objetivo é altamente controversa.
Alguns podem acreditar que isso requer a equalização dos recursos materiais
dos indivíduos. Outros podem acreditar que isso exige apenas conceder a todos
direitos iguais de liberdade. Outros ainda podem acreditar que é necessário dar
a cada um uma palavra igual no processo político.
Christiano argumenta que apenas a última interpretação – igualdade democrá-
tica, como devo chamá-la – satisfaz o princípio crucial da publicidade, o princípio
de que “não basta que a justiça seja feita; deve ser vista como completa.”23 Há
pelo menos duas maneiras de interpretar esse princípio, uma mais forte que
a outra. Na fraca interpretação, a publicidade exige que os indivíduos sejam
capazes de ver que estão sendo tratados de acordo com uma certa concepção de
igualdade, independentemente se veem ou não se essa é a interpretação correta
da igualdade e se veem ou não se essa igualdade é essencial para a justiça. Sob
uma forte interpretação, a publicidade exige que os indivíduos possam ver que a
maneira como estão sendo tratados é justa.24
Se adotarmos a fraca interpretação da publicidade, a tomada de decisões
democráticas satisfaz a restrição de publicidade, assim como muitas outras con-
cepções de igualdade. Por exemplo, suponha que alguém defenda que a maneira
correta de tratar os outros igualmente é conceder a todos os mesmos direitos
de liberdade (aproximadamente, direitos de fazer o que quiserem, livres de in-
terferências do governo). Os indivíduos seriam capazes de ver que recebiam
os mesmos direitos de liberdade, mesmo que não concordassem que essa era
uma maneira satisfatória de interpretar a igualdade. Portanto, a interpretação
23
Christiano 2008, 47.
24
A interpretação forte é sugerida pela observação inicial de Christiano de que a justiça deve
ser vista como feita, mas outras observações deixam claro que ele pretende a interpretação fraca;
por exemplo, “A publicidade requer apenas que as pessoas possam ver que são tratadas de
acordo com os verdadeiros princípios corretos da justiça” (2008, 52; grifo nosso). Compare 47:
“A publicidade exige que os princípios de justiça social sejam aqueles que as pessoas podem, em
princípio, ver em vigor ou não”. Discuto o princípio forte no texto em prol da exaustividade do
argumento.
4. A Autoridade da Democracia 68

dos direitos da igualdade de liberdade satisfaz a condição de publicidade. Um


argumento semelhante poderia ser feito para a maioria das outras interpretações
de igualdade.
Por outro lado, se adotarmos a forte interpretação da publicidade, nenhuma
interpretação da igualdade ou da justiça satisfaz a publicidade, porque não
existe uma concepção de justiça com a qual todos possam concordar. Nem
todos os pensadores racionais concordaram, inclusive, que a democracia seja
justa.25 Portanto, ainda não está claro como alguém pode pensar que a igualdade
democrática satisfaz exclusivamente o requisito de publicidade.
Talvez a ideia seja que a igualdade democrática seja muito menos contro-
versa em sua aplicação e interpretação do que outras concepções de igualdade
do mesmo nível de generalidade. A igualdade de direitos tem interpretação
controversa; há uma enorme discordância sobre quais direitos os indivíduos
possuem e quais leis contam como implementando direitos iguais. Da mesma
forma, a igualdade de recursos está aberta à interpretação. Requer apenas que os
indivíduos tenham a mesma riqueza? Renda igual? Renda proporcional às suas
necessidades? As rendas devem ser ajustadas para diferentes custos de vida em
diferentes locais? Mas a igualdade no processo de tomada de decisão tem uma
única interpretação incontroversa: uma pessoa, um voto.
Ou é controversa? A igualdade de poder de decisão exige democracia direta
ou a democracia representativa é suficiente? Requer que todos os cidadãos te-
nham a mesma chance de se candidatar a um cargo público? Em caso afirmativo,
é suficiente que todos os cidadãos tenham permissão legal para concorrer a cargos
públicos, ou os indivíduos também devem ter oportunidades realistas financeira
e socialmente para concorrer a cargos públicos? Se a democracia representativa
é permitida, a representação deve ser estritamente proporcional à população
ou algumas partes de uma nação podem ter representação na legislatura des-
proporcional à sua população (como no caso da representação de Estados no
Senado dos EUA)? A igualdade democrática é violada se os funcionários públicos
desenharem distritos de formas incomuns para fins de votação (como na prática
americana de gerrymandering), com a intenção específica de maximizar a repre-
sentação de uma parte em particular na legislatura? A igualdade democrática
é violada se algumas minorias persistentes raramente ou nunca conseguem o
que querem? Se sim, que tipo de minorias contam? Os membros de todos os
terceiros partidos nos Estados Unidos (além dos democratas e republicanos)
contam como minorias persistentes que não são tratadas igualmente?
Todas essas são questões controversas. Não espero que seja possível obter
algo próximo de um acordo unânime sobre como respondê-las. E todas são
perguntas sobre a interpretação da igualdade democrática. Ou seja, não são
25
Ver Republic de Platão 1974; Oakeshott 1962, 23–6; Caplan 2006; Brennan 2011.
4. A Autoridade da Democracia 69

apenas perguntas sobre qual é a melhor maneira de organizar o sistema elei-


toral. São perguntas sobre que maneiras de implementar o sistema realmente
tratam as pessoas igualmente. Assim, se a restrição de publicidade exige falta de
controvérsia na aplicação de uma dada concepção de igualdade, a interpretação
democrática da igualdade não satisfaz a publicidade.

4.3.5 Respeitando os julgamentos de outras pessoas


Outra vertente do Argumento da Igualdade sustenta que, quando alguém de-
sobedece a uma lei democrática, trata os outros como inferiores, colocando o
próprio julgamento acima dos julgamentos de outros cidadãos.
Em resposta, devemos primeiro esclarecer o princípio de que os indivíduos
devem se tratar como iguais. Há muitos aspectos em que alguém pode considerar
as pessoas iguais. Pode-se pensar que as pessoas têm direitos iguais; que seus
interesses têm o mesmo peso; ou que tenham capacidades iguais para julgamento
moral, inteligência igual ou conhecimento igual. O que significa “tratar as pessoas
como iguais” depende do respeito em que alguém considera as pessoas iguais.
Presumivelmente, é necessário apenas moralmente tratar as pessoas como iguais
naqueles aspectos em que as pessoas realmente são pelo menos aproximadamente
iguais.
Agora, suponha que alguém desobedeça uma lei democrática com base em
que a lei é injusta ou moralmente censurável. Na maioria dos casos, alguém
estará expressando uma rejeição dos julgamentos daqueles que fizeram a lei.26
Suponha que a lei tenha sido feita por um referendo de todos os cidadãos. Em
seguida, rejeitamos os julgamentos normativos da maioria dos concidadãos. Isso
implica que alguém considere esses outros cidadãos desiguais em pelo menos
um aspecto: ter crenças normativas menos precisas sobre essa lei em particular.
Talvez alguém também esteja comprometido com alguma afirmação geral de
que outros cidadãos são menos confiáveis do que eles mesmos na formação de
crenças normativas corretas sobre o assunto desta lei. Obviamente, tudo isso
é perfeitamente compatível com o reconhecimento de que outros têm direitos
morais iguais ou que seus interesses são igualmente importantes como os seus.
Existe algo nisso injusto ou censurável? Presumivelmente, isso depende se
os outros são de fato desiguais em relação a esses aspectos e/ou se alguém se
justifica acreditando de que eles são. A justiça não exige que nos abstenhamos
26
Isso não precisa ser o caso. Poder-se-ia pensar que os eleitores ou legisladores fizeram a lei,
não porque erroneamente acreditavam que era justa, mas porque acreditavam corretamente que
a lei servia seus próprios interesses ou por alguma outra razão compatível com o fato de a lei ser
injusta. Deixo esses casos de lado, considerando apenas o caso mais favorável ao proponente do
Argumento da Igualdade.
4. A Autoridade da Democracia 70

de tratar outras pessoas como tendo alguma característica que justificavelmente


e corretamente eles tenham.
Muitas pessoas são fortemente justificadas e corretas ao assumirem crenças
normativas mais precisas e confiáveis sobre certas leis do que a maioria dos
membros de sua sociedade. Como isso acontece? Primeiro, há muitos que,
correta e justificadamente, acreditam ter inteligência significativamente maior
que a média. Segundo, há muitos que, correta e justificadamente, acreditam ter
níveis de conhecimento significativamente acima da média relevantes para certas
questões políticas. Muitas pesquisas e muitas observações casuais forneceram
evidências de que, por exemplo, o nível médio de conhecimento político nos
Estados Unidos é extremamente baixo.27 Portanto, não é difícil saber que alguém
o excede significativamente. Terceiro, muitas pessoas, correta e justificadamente,
dedicam tempo e esforço significativamente maiores para identificar as posições
corretas em certas questões políticas do que o membro médio de sua sociedade.
Todos esses fatores – inteligência, conhecimento, tempo e esforço – afetam a
confiabilidade de alguém para chegar a crenças corretas. Ninguém sustenta
seriamente que as pessoas estão perto de serem iguais em qualquer uma dessas
dimensões, e muito menos em todas elas. Portanto, é muito difícil ver como
alguém poderia argumentar que todas as pessoas são igualmente confiáveis na
identificação de crenças políticas corretas.
Ao violar uma lei democrática, alguém pode tratar os outros como se fossem
“inferiores” epistêmicos, no sentido de pessoas com menos crenças normativas
confiáveis em uma área específica. Mas não há nada injusto nisso se, como é
frequentemente o caso, se sabe que isso é verdade.

4.3.6 Coerção e tratando os outros como inferiores


Quando alguém viola uma lei democrática, trata os outros como inferiores em
um sentido epistêmico. Mas existem outras maneiras mais graves de tratar as
pessoas como inferiores. Se uma pessoa não concorda com algum plano, por
exemplo, tentar obter a cooperação dessa pessoa através de ameaças de violência
é normalmente uma abordagem extremamente desrespeitosa, fundamentalmente
incompatível com o tratamento dessa pessoa como igual.
Para retornar a um exemplo anterior: você saiu para beber com alguns colegas
e estudantes, e um dos alunos propôs que você pagasse pelas bebidas de todos.
Durante seus protestos, as outras partes da mesa votam para que você pague
pelas bebidas. Você diz a eles que não concorda em fazê-lo. Eles então informam
que, se você não pagar, pretendem puni-lo, trancando-o em uma sala por algum
tempo e que estão preparados para levá-lo à força.
27
Ver Delli Carpini e Keeter 1996, capítulo 2; Caplan 2007b, capítulo 1.
4. A Autoridade da Democracia 71

Além de precisar de novos parceiros para beber, o que pode ser dito sobre esse
cenário? Quem neste cenário está cometendo uma injustiça com quem? Quem
está tratando quem como inferior?
Alguém poderia argumentar que, ao rejeitar a decisão das outras pessoas na
mesa, você está colocando sua vontade ou julgamento normativo acima da dos
outros membros do grupo. Todos pensam que você deve pagar e há mais deles
do que você. Então, quem é você para discordar? Você deve pensar que é algum
tipo de ser divino cujos desejos têm precedência sobre os desejos de várias outras
pessoas.
Mas esse argumento soa vazio. Certamente, é o comportamento de seus
colegas e alunos que lhe desrespeita e não o contrário. São eles que se estabelecem
injustamente como seus superiores, usando ameaças de punição e força física
para obter sua cooperação com o plano deles.
Christiano argumenta que não se mostra o devido respeito ao julgamento
de outros membros da sociedade quando se recusa a concordar com as leis
democráticas. Essas leis normalmente vêm com ameaças de impor punição
àqueles que não seguem a lei, apoiadas por ameaças críveis de violência contra
aqueles que tentam evitar punição. Em face disso, o desrespeito pelas pessoas e
a violação da igualdade envolvida na emissão e na execução de tais ameaças são
muito mais palpáveis do que o suposto desrespeito demonstrado por aqueles que
não cumprem as leis. A maioria que vota em um dada lei está autorizando esse
tipo de coerção. Prima facie, portanto, é a maioria culpada por violar a exigência
de tratar outras pessoas como iguais.
O ponto aqui é que é impossível justificar a autoridade política se o princípio
moral que deveria gerar obrigação política também exclui a legitimidade política.
Nesse caso, o princípio é que a justiça proíbe tratar os outros como inferiores. Se
isso mostra a existência de um dever de obedecer às leis democráticas, mostra
muito mais claramente a ilegitimidade da maioria dessas leis em primeiro lugar.
Como a autoridade política exige obrigação política e legitimidade política, parece
que a autoridade política é impossível.
Talvez essa conclusão esteja sendo tirada muito rapidamente. Nem sempre
é desrespeitoso usar a força física contra os outros. Se, por exemplo, A está
ameaçando B com violência injusta, B pode usar violência para impedir que A
execute sua ameaça sem, assim, tratar A injustamente como inferior. Isso sugere
que pelo menos algumas leis – por exemplo, aquelas que proíbem a violência
injusta – não se tornam objetáveis ou injustas pela coerção necessária para aplicá-
las.
Mas muitas outras leis, ao que parece, são questionáveis pela maneira como
pedem coerção. Não tenho uma teoria abrangente para oferecer as condições sob
as quais a coerção é censurável. Mas, aparentemente, a arrecadação de impostos
4. A Autoridade da Democracia 72

do Estado é análoga à arrecadação de dinheiro de você no exemplo da conta


do bar. Nos dois casos, a maioria vota para tomar a propriedade de alguém
para o benefício do grupo e, nos dois casos, a decisão deve ser executada por
meio de ameaças de punição, apoiadas por ameaças de violência. Uma diferença
é que a carga dos impostos são mais amplamente distribuídas do que a conta
do bar, que imaginávamos ser direcionada a uma única pessoa. Em vez disso,
pode-se supor que, em vez de colocar todo o ônus sobre você, um aluno proponha
que você pague metade da conta total, os outros professores paguem porções
menores e cada um deles pegue uma carona grátis (free ride).28 Poucos diriam
que a distribuição da carga agora torna admissível a imposição coercitiva desse
plano.
Alguém pode ainda ficar preocupado com o fato de que o exemplo da conta
do bar carrega a aparente injustiça da proposta do aluno e que nossas intuições
poderiam mudar se o grupo tivesse votado de uma maneira essencialmente justa
e equitativa de pagar a conta do bar. Mas os defensores da autoridade demo-
crática afirmam explicitamente que é preciso cumprir uma decisão democrática,
independentemente de a decisão ser em si mesma justa.29 Portanto, é perfeita-
mente apropriado considerar uma hipótese em que a maioria vote numa proposta
injusta, como no exemplo da conta do bar.

4.3.7 Da obrigação para a legitimidade?


O Argumento da Igualdade enfrenta sérias dificuldades na contabilização de
obrigações políticas. Mas, mesmo se pudéssemos explicar a obrigação política,
continuaria o desafio de explicar a legitimidade política, o direito do Estado
de governar impondo coercivamente regras à sociedade. Christiano explica a
origem desse direito da seguinte maneira:

A assembléia democrática tem o direito de governar [. . . ] uma vez


que alguém trata injustamente seus membros se ignorar ou contornar
suas decisões. Cada cidadão tem direito à obediência de cada um
e, portanto, a assembléia como um todo tem direito à obediência de
todos.30
28
Nos Estados Unidos, pouco mais da metade de todos os impostos federais é proveniente dos
10% mais ricos dos contribuintes (os professores plenos da sociedade, por assim dizer). Os 20%
mais pobres (os estudantes de pós-graduação da sociedade) pagam menos de 1% de todos os
impostos federais e, na verdade, têm uma taxa de imposto de renda negativa (US Congressional
Budget Office 2009).
29
Christiano 2008, 97; Estlund 2008, 8.
30
Christiano 2004, 287.
4. A Autoridade da Democracia 73

O problema central da contabilização do direito de governar é o problema da


justificação da coerção. Assim, para que o raciocínio acima seja bem-sucedido,
ele deve fornecer uma justificativa para a coerção. Talvez a justificativa esteja ao
longo das seguintes linhas:

4. Se a justiça exige (proíbe) uma pessoa fazer A, então é permitido coagir


essa pessoa a fazer (não fazer) A.

5. Justiça exige obediência às leis democráticas.

6. Portanto, é permitido coagir uma pessoa a obedecer às leis democráticas.

A premissa (5) deve ser estabelecida pelo Argumento da Igualdade, como


discutido acima.
Mas por que devemos aceitar (4)? Em muitos casos, é plausível que alguém
possa impor os requisitos da justiça por coerção. Como vimos acima, é plausível
que alguém possa usar coerção para impedir que uma pessoa prejudique injus-
tamente outra pessoa. Também é plausível que às vezes se possa usar coerção
para impedir que uma pessoa prejudique injustamente ou roube a propriedade
de outra pessoa ou recuperar propriedade roubada ou extrair compensação.31
Em todos esses casos, parece que a coerção é um meio apropriado de induzir
uma pessoa a fazer o que a justiça exige ou impedir que uma pessoa faça o que a
justiça proíbe. Portanto, existe alguma plausibilidade na generalização de que
alguém possa coagir as pessoas a cumprir a justiça.
Agora, porém, considere dois outros tipos de supostas obrigações de justiça:
a obrigação de dar igual respeito aos julgamentos de outras pessoas e a obrigação
de promover o igual avanço dos interesses das pessoas. Talvez estes sejam
requisitos de justiça; talvez não. Mas quão plausível é, em qualquer caso, que
essas (supostas) obrigações específicas possam ser impostas por coerção?
Considere um exemplo em que pareço violar uma dessas tarefas. Estou fora
para beber com alguns amigos. Vários deles estão discutindo sobre como o
presidente Barack Obama é excelente. Eu grito: “Vocês são tolos e suas opiniões
são inúteis. Eu não respeito o julgamento de vocês. Vocês são todos inferiores a
mim.” Então tapo meus ouvidos para não ter que ouvir o que dizem e dou as
costas para eles.
31
Locke (1980, seções 7 a 12) propôs que todos os indivíduos no estado de natureza tenham
o direito de punir aqueles que transgridem a lei natural. Na seção 11, ele parece permitir que,
mesmo na sociedade civil, as vítimas de crimes possam, por sua própria iniciativa, apreender
reparações de um criminoso se o Estado não o fizer, e na seção 20, afirma que quando o Estado
falha em receber reparações de um criminoso através de “uma manifestação perversa da justiça”,
o indivíduo pode se valer da justiça vigilante.
4. A Autoridade da Democracia 74

Nesse caso, deixei de respeitar os julgamentos de meus amigos e os tratei


como inferiores. Isso me parece muito mais evidente do que a alegação de que
falho em respeitar os julgamentos de outros cidadãos ou trato outros cidadãos
como inferiores sempre que desobedeço a uma lei democrática. Mas agora meus
amigos (ou qualquer outra pessoa) estariam justificados a usar a força física para
me impor uma punição?
Agora considere um caso em que eu viole o outro suposto dever de justiça.
Suponha que aprendi recentemente que a Anistia Internacional está trabalhando
para promover a democracia no país pouco conhecido da Nova Flórida. A AI está
pedindo doações em dinheiro e contribuições através de campanhas de cartas.
Acho que a AI tem uma chance razoável de ser eficaz nesse empreendimento,
e reconheço que poderia apoiar instituições democráticas ajudando a AI nesse
momento.32 Porque a democracia é crucial para o avanço igual dos interesses das
pessoas, eu estaria promovendo o avanço igual dos interesses das pessoas. No
entanto, opto por não apoiar a Anistia Internacional.
Nesse caso, é muito plausível dizer que eu (a) falhei em promover o pro-
gresso igual dos interesses das pessoas e (b) falhei em ajudar a criar instituições
democráticas. E talvez eu tenha errado. Mas agora sou um alvo apropriado para
ameaças de violência?
Nem todo dever é adequadamente executado por coerção. Os exemplos
acima sugerem que a obrigação de tratar os outros como iguais, respeitando
seu julgamento e a obrigação de promover o progresso igual dos interesses das
pessoas, promovendo a democracia, não são obrigações que se possa impor por
coerção. Ou essas não são obrigações de justiça, ou algumas obrigações de justiça
podem não ser coercivamente aplicadas. Em ambos os casos, o argumento de
Christiano para legitimidade política falha.

4.4 Conclusão
Relativamente falando, a democracia é admirável. De maneiras gerais e óbvias,
é superior a todas as outras formas conhecidas de governo.33 Mas não resolve
o problema da autoridade política. O fato de a maioria das pessoas defender
alguma regra não justifica impor essa regra pela força àqueles que não concordam
com ela nem punir coercivamente aqueles que desobedecem à regra. Fazer isso
é, normalmente, desrespeitar os dissidentes e tratá-los como inferiores. Os pro-
blemas não são alterados caso se acrescente que a maioria deliberou de maneira
especial antes de decidir impor a regra.
32
Como Christiano nos diz, “cada cidadão tem o dever de criar instituições democráticas”
(2008, 249).
33
Ver Sen 1999, capítulo 6.
4. A Autoridade da Democracia 75

A necessidade de respeitar os julgamentos de outros membros da sociedade


não gera obrigações políticas gerais nos países democráticos, por pelo menos
dois motivos: primeiro, porque muitas pessoas sabem que têm um julgamento
melhor em relação a muitas questões práticas do que a maioria dos cidadãos;
segundo, porque a obrigação de respeitar os julgamentos de outras pessoas não
tem força suficiente para substituir os direitos individuais, como o direito de um
indivíduo de controlar sua propriedade.
A obrigação de promover o avanço igual de interesses também não estabe-
lece obrigações políticas. Entre outras coisas, não está claro em que sentido a
igualdade democrática é uma concepção de igualdade exclusivamente realizável
publicamente, e não está claro como a obediência às leis democráticas constitui
um apoio significativo às instituições democráticas. Mas mesmo que a obediência
às leis democráticas constituísse um apoio significativo à igualdade, derivar a
obrigação política desse fato exigiria postular um dever muito forte de promover a
igualdade. Um dever tão forte provavelmente envolveria demandas implausíveis,
exigindo que se dedicasse virtualmente a vida à promoção da igualdade. No
final, a autoridade democrática não pode explicar nem a obrigação de obedecer
à lei nem o direito de impor a lei à força a pessoas que não concordam.
5

Consequencialismo e Equidade

5.1 Argumentos consequencialistas para obrigação


política
5.1.1 A estrutura dos argumentos consequencialistas para obri-
gação política
Os argumentos mais simples para autoridade política são consequencialistas.
Por “argumentos consequencialistas para autoridade”, quero dizer argumentos
que atribuem peso moral à bondade ou maldade das consequências de uma
ação e que apelam diretamente a esse fator na tentativa de derivar obrigação
e legitimidade políticas.1 Eu me concentro nesta seção em argumentos para
obrigação política.
Esses argumentos prosseguem em duas etapas. Primeiro, argumenta-se que
existem grandes valores garantidos pelo governo e que não poderiam ser garan-
tidos sem o governo. Segundo, argumenta-se que esse fato impõe aos indivíduos
a obrigação de obedecer ao Estado, com o argumento de que (a) temos o dever
de promover os valores abordados no primeiro estágio do argumento ou pelo
menos não prejudicá-los; e (b) a obediência à lei é a melhor maneira de promover
esses valores e a desobediência é uma maneira de minar eles.

5.1.2 Os benefícios do governo


Muitos benefícios foram reivindicados pelo governo, mas três são particular-
mente importantes. O primeiro importante bem atribuído ao governo é o da
1
Esses argumentos não precisam assumir o consequencialismo, no sentido de que a correção
de uma ação é determinada exclusivamente por suas consequências boas ou más.

76
5. Consequencialismo e Equidade 77

proteção contra crimes cometidos por indivíduos contra outros, especialmente


crimes violentos e crimes contra a propriedade. O governo fornece esse benefício
anexando punições a atos injustos – assassinato, roubo, estupro etc. – que os
indivíduos cometem uns contra os outros. Sem governo, a maioria das pessoas
acredita que ações injustas e prejudiciais desse tipo seriam muito mais prevalen-
tes do que são. Aqueles que são mais pessimistas em relação à natureza humana
temem que a sociedade seja reduzida a um estado bárbaro de guerra constante
de todos contra todos.2 Existem dois pontos intimamente relacionados aqui.
Um é que o governo aumenta o bem-estar social geral, impedindo que certas
coisas ruins aconteçam. O outro é que o governo promove a justiça, reduzindo o
número de atos injustos que ocorrem.3
O segundo grande benefício atribuído ao governo é o fornecimento de um
conjunto detalhado, preciso e público de regras de conduta social que se aplicam
uniformemente em toda a sociedade. Por que precisamos que o governo forneça
essas regras? Há princípios naturais de justiça que existem antes do Estado e
que os indivíduos podem apreciar intuitivamente. No entanto, esses princípios
naturais são vagos e gerais e não fornecem orientações suficientes para a vida
social moderna. Por exemplo, é eticamente permitido liberar a poluição do
ar, digamos do automóvel, ou isso viola os direitos daqueles que inalam os
poluentes? É plausível que se possa liberar certos níveis e tipos de poluição,
mas não a poluição excessiva ou excessivamente tóxica. Mas exatamente quanta
poluição se pode liberar e de que tipos? Não é crível que os princípios naturais
da justiça determinem respostas únicas para todas as perguntas desse tipo, nem,
se o fizerem, que os indivíduos possam apreendê-las de maneira confiável pela
reflexão. No entanto, precisamos de respostas aceitas para essas perguntas para
que as pessoas se coordenem e tenham relações pacíficas e previsíveis entre si.
Alguns argumentam que um governo é a única fonte confiável desse conjunto de
regras geralmente aceitas.4
O terceiro benefício destacado oferecido pelo governo é o da defesa militar.
Sem um meio de defesa militar, ao que parece, seríamos facilmente vítimas de
países estrangeiros que tentariam nos escravizar ou roubar nossos recursos. Dado
o poder militar dos governos em todo o mundo, a defesa eficaz de um determi-
nado território parece exigir um exército organizado com moderna tecnologia
militar. A única maneira de formar um exército desses parece ser ter um governo
próprio.
2
Hobbes 1996, capítulo 13. Locke (1980, capítulos 2 e 9) oferece uma avaliação menos terrível
que Hobbes, mas ainda encontra “grandes inconvenientes” no estado de natureza.
3
Buchanan 2002, 703-5.
4
Christiano 2008, 53-5, 237-8; Wellman 2005, pp. 6-7. Christiano afirma que o Estado “estabe-
lece justiça” fornecendo essas regras uniformes.
5. Consequencialismo e Equidade 78

Na Parte II deste livro, desafio a suposição generalizada de que o governo


é necessário para fornecer esses benefícios. No entanto, no presente capítulo,
concederei essa suposição por uma questão de argumento. Eu afirmo que, mesmo
com esta concessão, não se pode obter autoridade política como comumente
entendida.

5.1.3 O dever de fazer o bem


Argumentos consequencialistas para obrigação política afirmam que as pessoas
têm o dever de promover algum valor ou valores; por exemplo, um dever de
promover a justiça, promover a utilidade ou ajudar a resgatar outras pessoas
do perigo.5 O dever não precisa ser tomado como absoluto ou desqualificado;
pode ser que o dever seja obtido apenas quando houver ameaça de algum grande
dano ou injustiça, e pode ser que, mesmo nessas condições, o dever possa ser
substituído por razões compensatórias suficientemente fortes. Isso é consistente
com a noção de que o dever de obedecer à lei precisa ser apenas um dever prima
facie.
Veja o caso em que você vê uma criança se afogando em um lago raso: você
pode facilmente entrar e salvar a criança, embora isso implique em deixar suas
roupas sujas e molhadas e perder uma aula.6 Quase todo mundo concorda que,
em tal situação, você será requerido moralmente para ajudar a criança. Podemos
recuar em circunstâncias mais exigentes – se a criança estivesse se afogando no
oceano e você tivesse que assumir um risco significativo de sua própria vida para
salvá-la, não seria obrigado a fazê-lo. Você pode colocar adequadamente sua
própria vida acima da de um estranho nessas situações. Mas quando um mal
muito grande ameaça outra pessoa e você pode evitá-lo com um custo mínimo
para si mesmo, seria errado não fazê-lo. Há quem desafie até essa modesta
afirmação ética, apelando para uma forma extrema de individualismo.7 Não
adoto essa abordagem. Procuro antes confiar em visões morais de senso comum,
que considero incluir o modesto princípio de um dever de fazer o bem descrito
no parágrafo anterior.
Os defensores do argumento consequencialista para obrigação política argu-
mentam que a obediência geral à lei é necessária para o Estado funcionar. Se
muitos cidadãos desobedecerem, o Estado entrará em colapso e seus enormes
5
Ver Rawls (1999, 295) sobre o dever de justiça e Wellman (2005, 30–2) sobre o dever de salvar.
Nenhum dos pensadores, no entanto, tem uma visão geralmente consequencialista. Rawls apela
para o que as partes na posição original aceitariam e Wellman (2005, 33) acaba apelando para
um princípio não-consequencialista de equidade.
6
O exemplo é de Singer (1993, 229).
7
Rand, 1964, 49; Narveson 1993, capítulo 7.
5. Consequencialismo e Equidade 79

benefícios desaparecerão.8 Além disso, argumentam que os custos da obedi-


ência, embora significativos, são razoáveis à luz dos benefícios, uma vez que a
maioria das pessoas recebe benefícios substancialmente maiores que os custos
do Estado.9 Portanto, um princípio moderado do dever de fazer o bem leva à
conclusão de que geralmente somos obrigados a obedecer à lei. Ou então alguém
pode argumentar.

5.1.4 O problema da redundância individual


Pode ser verdade que é necessária obediência geral à lei para que o governo
forneça os benefícios que isso proporciona. Mas não é verdade que toda lei
deve ser geralmente obedecida; muitas leis são rotineiramente desprezadas sem
o colapso do governo como resultado. Tampouco é verdade para qualquer
indivíduo que a obediência desse indivíduo seja necessária para que o governo
forneça os benefícios que isso proporciona. É plausível que exista algum nível
de desobediência que cause um colapso governamental. Mas enquanto estamos
longe desse nível, qualquer indivíduo pode desobedecer sem consequências para
a sobrevivência do governo.
Obviamente, existem algumas leis que você deve obedecer por razões morais
independentes. Por exemplo, você não deve roubar outras pessoas. Isso não
ocorre porque você pode destruir o governo. Isso ocorre porque roubar outras
pessoas seria uma injustiça para essas pessoas específicas roubadas. Este não é um
exemplo para obrigação política; é simplesmente um exemplo de uma obrigação
moral geral para com outras pessoas. Muitas outras leis correspondem de maneira
semelhante a princípios morais convincentes. Para defender a obrigação política,
é preciso argumentar que existe uma obrigação independente de conteúdo de
obedecer à lei porque é a lei (Seção 1.5) – ou seja, que é preciso obedecer até as
leis que não correspondem a princípios morais independentes.
Volte ao caso da criança se afogando no lago raso (Seção 5.1.3). Mas desta
vez, suponha que haja outras três pessoas por perto, prontas para salvar a criança.
Eles não precisam de ajuda; não há perigo de que a criança se afogue ou sofra
outros danos graves se você não ajudar. Além disso, os outros vão entrar na lagoa
e enlamear suas roupas, quer você também entre ou não. Nesse caso, você ainda
deve pular para ajudar a salvar a criança? Fazer isso significaria simplesmente
assumir custos sem nenhum benefício adicional para ninguém. Seu desejo de
evitar que suas roupas fiquem enlameadas ou que falte às aulas certamente
não justificaria permitir que uma criança se afogasse. Mas isso não justificaria
8
Hume 1987, 480.
9
Wellman 2005, 17–19.
5. Consequencialismo e Equidade 80

permitir que uma criança fosse salva inteiramente pelos outros ao contrário de
parcialmente por você?
O caso de um cidadão que decide se deve obedecer à lei é mais análogo a
esta última versão da história da criança que se afoga do que à versão original:
embora o funcionamento governamental exija obediência, já existem pessoas em
número suficiente obedecendo a lei para que o governo não esteja em perigo de
desmoronar se você desobedecer. Essas outras pessoas continuarão a obedecer,
independentemente de você obedecer ou não. Nessa situação, sua própria obedi-
ência é tão redundante quanto um socorrista extra pulando no lago quando já
existem três socorristas que saem para salvar a criança.

5.2 Consequencialismo de regras


Afirmo que alguém pode infringir a lei quando o que a lei ordena não é moral-
mente exigido independentemente e não há consequências negativas sérias. Esse
tipo de sugestão geralmente recebe o desafio: “E se todos fizessem isso?” Esta
pergunta pretende sugerir um argumento moral contra o tipo de comportamento
em questão, mas o conteúdo exato do argumento não é óbvio. Não parece ser um
simples apelo consequencialista – a sugestão não é que, ao infringir a lei, é prová-
vel que alguém realmente faça com que todos façam a mesma coisa (o que conta
exatamente como “a mesma coisa”). Em vez disso, a sugestão parece ser que o
fato de que seria ruim se todos fizessem algo é, por si só, uma forte razão para
não fazer isso. Essa ideia está intimamente relacionada ao consequencialismo de
regras em ética. O consequencialismo de regras sustenta que, em vez de sempre
escolher a ação específica que produzirá as melhores consequências dadas as
circunstâncias atuais, deve-se agir de acordo com regras gerais e deve-se escolher
as regras que, se geralmente adotadas, terão as melhores consequências.10
Em alguns casos, essa ideia é plausível. Veja o caso de um gramado recém-
plantado em um campus universitário. Alunos e professores são tentados a
cortar atalhos pelo gramado enquanto caminham de prédio em prédio. Uma
pessoa cortando o gramado não terá efeito perceptível. Mas se todo mundo
fizer isso, o gramado intocado será marcado por uma trilha feia atravessada no
meio. Suponha que o desvalor estético do caminho supere o benefício total que
ele oferece em termos de tempo economizado. Nesta situação, muitos acham
plausível que não se deva atravessar o gramado. Parece ser uma ilustração do
princípio “E se todos fizessem isso?”, o princípio de que não se deve fazer o que
seria ruim se praticado em geral.
10
Brandt 1992, capítulo 7.
5. Consequencialismo e Equidade 81

Mas em outros casos, o princípio parece absurdo. Suponha que eu decida


me tornar um filósofo profissional. Isso parece permitido. Mas e se todo mundo
fizesse isso? Todo mundo filosofava o dia todo, e todos nós passaríamos fome.
Presumivelmente, isso não mostra que é moralmente errado ser um filósofo
profissional. Na verdade, não vamos morrer de fome, porque nem todos os
agricultores se tornarão filósofos apenas porque eu decido me tornar um. Nesse
caso, “O que aconteceria se todos fizessem o que eu faço?” parece irrelevante.
Pode-se tentar salvar o consequencialismo de regras dessa objeção, adotando
uma visão mais sutil da “regra” em que estou usando. Talvez quando decido
me tornar um filósofo, não estou agindo com a regra “Seja um filósofo”, mas
com alguma regra mais complexa, como “Seja um filósofo, desde que já não haja
muitos filósofos” ou “Escolha a profissão que melhor se adequa a você, desde
que haja pessoas suficientes em outras profissões para que você não tenha sérias
consequências negativas.” Se todo mundo agisse de acordo com uma dessas
regras, nem todos morreríamos de fome.
Mas, assim como posso afirmar estar seguindo a regra “Seja um filósofo, desde
que não haja muitos filósofos” ou “desde que não haja consequências negativas
sérias”, os indivíduos que optarem por violar a lei muitas vezes afirmam estar
seguindo alguma regra como “infringir a lei quando o que a lei ordena não é
moralmente exigido independentemente, desde que não haja muitas pessoas
infringindo a lei” ou “[. . . ] desde que você faça isso não terá sérias consequências
negativas.” A condição tachada no final desta regra é perfeitamente paralela à
disposição tachada na regra “Seja um filósofo”; portanto, qualquer que seja a
lógica que nos permita incluir a última condição, quase certamente licenciará a
inclusão da primeira. Parece, então, que o consequencialismo de regras em si só
é defensável se não apoiar uma defesa geral da obrigação política.

5.3 Equidade
5.3.1 A teoria da equidade da obrigação política
Outro argumento sustenta que é preciso obedecer à lei porque desobedecer é
injusto para outros membros da sociedade, que geralmente obedecem.11 Vou me
referir a esse tipo de obrigação como uma obrigação de “fair play” (jogo limpo).
O argumento não é consequencialista – a alegação não é de que a desobedi-
ência causará consequências prejudiciais. No entanto, é fácil passar das teorias
consequencialistas para a teoria da equidade. Uma vez que percebemos que a
desobediência individual não tem consequências prejudiciais, é natural passar a
11
Hart 1955, 185–6; Rawls 1964; Klosko 2005.
5. Consequencialismo e Equidade 82

governar o consequencialismo, apelando para as consequências da desobediên-


cia geral. Mas encontramos muitos casos, como o de uma pessoa que decide se
tornar um filósofo acadêmico, em que não há nada de errado em fazer algo que
seria extremamente ruim para todos fazerem. Devemos, então, explicar o que
diferencia os casos em que parece errado executar uma ação que seria ruim para
todos fazerem dos casos em que parece perfeitamente correto executar essa ação.
A teoria da equidade oferece uma resposta atraente para essa pergunta: é uma
questão de saber se a ação trata os outros de maneira injusta.
Não há nada injusto em me tornar um filósofo, apesar do fato de que seria
ruim se todo mundo fizesse isso. Sendo um filósofo, por exemplo, não aumentei
a carga de membros de outras profissões. Pelo contrário, membros de outras
profissões preferem menos concorrência no mercado e, portanto, preferem que
menos pessoas se juntem à sua profissão.
Contraste o seguinte cenário. Você está em um barco salva-vidas com várias
outras pessoas. Você é pego em uma tempestade e o barco está enchendo de
água, precisando ser esvaziado. Outros passageiros pegam potes e começam
a socorrer. Os esforços dos outros passageiros são claramente suficientes para
manter o barco à tona; portanto, não haverá grandes consequências negativas se
você se recusar a ajudar. No entanto, parece óbvio que você devia ajudar a retirar
a água. Intuitivamente, seria injusto deixar os outros fazerem todo o trabalho.
Por que isso seria injusto? As características importantes da situação parecem
ser as seguintes:

i Há um grande bem sendo produzido pelas ações de outras pessoas – nesse


caso, que o barco permaneça à tona. Por outro lado, se os outros estivessem fa-
zendo algo prejudicial (digamos, colocando água no barco), inútil (digamos,
rezando para Poseidon) ou apenas de valor trivial (digamos, entretendo-nos
contando histórias), então você não estaria obrigado a ajudar.

ii Os demais assumem um custo que é causalmente necessário para a produção


do bem. Nesse caso, o custo é o esforço envolvido na retirada da água.

iii Você recebe uma parte justa do benefício que está sendo produzido. Nesse
caso, você evita afogamentos.12

iv Sua participação no esquema cooperativo contribuiria causalmente para a


produção do bem.
12
Alguns filósofos sustentam que a pessoa tem uma obrigação de equidade de ajudar em um
esquema cooperativo somente se aceitar livremente os benefícios do esquema (Rawls 1964, 10;
Simmons 1979, 107–8; 2001, 30–1). O exemplo de retirar a água do barco sugere que a livre
aceitação não é necessária.
5. Consequencialismo e Equidade 83

v Os custos de participação para você seriam razoáveis e não significativamente


maiores que os custos assumidos por outras pessoas.

vi Sua participação não interferiria em fazer algo mais importante. Por exemplo,
suponha que, em vez de retirar a água, você decida amarrar os suprimentos
no barco para evitar que caiam no mar. Suponha que isso seja mais importante
do que ajudar a retirar a água. Nesse caso, não é injusto se abster de ajudar
na retirada da água.

Quando essas seis condições são satisfeitas, é injusto recusar-se a contribuir


para a produção do bem.
Os advogados do argumento fair play dizem que desobedecer à lei é tratar
injustamente outros membros da sociedade. O governo produz benefícios sig-
nificativos. Outros membros da sociedade, pagando impostos e obedecendo às
leis, assumiram os custos necessários para fornecer esses benefícios. Todos nós
compartilhamos pelo menos alguns dos benefícios do governo e a maioria recebe
uma parte justa desses benefícios. Cada um de nós pode contribuir causalmente
para fornecer os benefícios pagando impostos e obedecendo às leis. O custo é
significativo, mas é tipicamente comparável aos custos suportados por terceiros
e é razoável em vista dos benefícios. Portanto, seria injusto não fazer nossa parte
no apoio ao governo pagando impostos e geralmente obedecendo às leis.

5.3.2 Obediência como custo de bens políticos


Nas situações em que existe uma obrigação de fair play, normalmente não se é
obrigado a fazer o que os outros participantes do esquema cooperativo pedem
para fazer apenas porque pedem que o faça. No caso da retirada da água, suponha
que um dos outros salvadores lhe diga para fazer um sanduíche para ele. Você
não é moralmente obrigado a fazer isso. O que você é obrigado a fazer é apenas
contribuir causalmente para fornecer os benefícios, não prestar obediência ou
lealdade geral a ninguém.
Como, então, a noção de equidade deve gerar obrigação política? O argu-
mento é que, neste caso em particular, a obediência à lei constitui compartilhar o
custo de fornecer os benefícios do esquema cooperativo. Como discutido anterior-
mente (Seção 5.1.2), os benefícios centrais do governo incluem a proteção contra
injustiças cometidas por criminosos ou governos estrangeiros e o fornecimento
de regras previsíveis para a cooperação social. Portanto, o argumento deve ser
que a obediência à lei contribui causalmente para fornecer esses benefícios.
No caso de algumas leis, é muito plausível que a obediência contribua para a
provisão desses benefícios e, portanto, conte como uma participação nos custos
de sua provisão. Considere as leis contra assassinato e roubo. Ao obedecer a
5. Consequencialismo e Equidade 84

essas leis, contribuo diretamente para o bem da segurança de outros membros


da minha sociedade. Mas isso obviamente não exemplifica a obrigação política,
porque tenho uma obrigação independente da lei de respeitar os direitos dos
outros. Não está claro que a existência de uma lei contra assassinato aumente
minha obrigação moral de não cometer um assassinato, nem na “inequidade”
envolvida no assassinato de alguém.
As leis tributárias fornecem um exemplo mais crível. Aqui está muito claro
como a obediência contribui para a provisão de benefícios governamentais: o
dinheiro dos impostos será usado para contratar juízes, policiais, soldados e assim
por diante. Portanto, ao pagar impostos, é preciso compartilhar os benefícios
do governo. Este é um exemplo de obrigação política, pois não seria obrigado a
pagar esse dinheiro se a legislação tributária não existisse.
Outras leis são mais problemáticas. Para dar um exemplo, nos Estados Uni-
dos e na maioria dos outros países, é ilegal fumar maconha. De que maneira
a obediência a essa lei constitui um compartilhamento dos custos de fornecer
proteção a governos estrangeiros ou criminosos domésticos ou fornecer regras
previsíveis para a cooperação social? Como alguém, ao se abster de fumar ma-
conha, contribui causalmente para a segurança da sociedade? Este não é um
caso trivial ou periférico. A aplicação das leis sobre drogas é uma parcela muito
grande da aplicação da lei nos Estados Unidos, onde os infratores respondem
por cerca de 25% dos presos locais, 20% dos presos estaduais e 52% dos presos
federais.13 Enquanto escrevo, mais de meio milhão de americanos estão presos
por acusações relacionadas às drogas.14
Este também não é um exemplo isolado. Muitas outras leis levantam questões
semelhantes. Nos Estados Unidos, é ilegal fornecer aconselhamento jurídico a
pessoas sem admissão na guilda (mesmo que você informe explicitamente de
que seus conselhos não foram admitidos e que as pessoas desejam seu conselho
de qualquer maneira). É ilegal pagar para uma hora de trabalho menos de
7,25 dólares. Ou comprar sexo por qualquer quantia de dinheiro. Ou vender
alimentos embalados sem listar na embalagem o número de calorias que contêm.
Ou administrar uma empresa privada que entrega cartas para as pessoas. É
13
Estatísticas recentes sobre o encarceramento de traficantes de drogas nas prisões estaduais e
federais são do Departamento de Justiça dos EUA 2010b, 37–8. A estatística mais recente sobre
infratores relacionados às drogas nas prisões locais é do Departamento de Justiça dos EUA 2004,
1, relatando que 24,7% dos presos eram infratores em 2002. As classificações são baseadas no
crime mais grave pelo qual um preso foi preso.
14
Essa estimativa baseia-se no pressuposto de que 24,7% dos presos locais são delinquentes
relacionados às drogas (Departamento de Justiça dos EUA 2004, 1), juntamente com a população
carcerária de 2008, conforme relatado no Departamento de Justiça dos EUA em 2009. As esta-
tísticas para prisões estaduais e locais são do Departamento de Justiça dos EUA (2010a, 37–8).
O número total de presos de todas as classes de crime, incluindo instituições estaduais, locais e
federais, é de cerca de 2,3 milhões de pessoas.
5. Consequencialismo e Equidade 85

ilegal vender estévia como aditivo alimentar, embora seja legal vendê-lo como
um “suplemento dietético”. E assim por diante. Essas são apenas algumas das
centenas de milhares de restrições legais em vigor nos Estados Unidos.
Em todos esses casos, é difícil ver a conexão entre o comportamento legal-
mente exigido e o compartilhamento de custos para a prestação de serviços
governamentais essenciais. Parece que o Estado poderia muito bem fornecer os
bens descritos na Seção 5.1.2 sem nenhuma das leis descritas nos dois parágrafos
anteriores.15
A obediência à lei, de acordo com os defensores do argumento fair play, é
análoga a ajudar a retirar a água de um barco salva-vidas. Mas, em vista das leis
mencionadas, uma analogia mais próxima seria a seguinte. O barco salva-vidas
está enchendo de água. Os passageiros se reúnem e discutem o que fazer com
o problema. A maioria (sem incluir você) quer que Bob crie uma solução. Bob
pensa por um minuto e depois anuncia o seguinte plano:

i Todos os passageiros devem começar a retirar a água do barco;

ii oração a Poseidon para pedir sua misericórdia;

iii devem se flagelar com cintos para provar sua seriedade; e

iv cada um pagará $50 a Sally, que ajudou Bob a ser eleito.

Você sabe que o item (i) é útil, o item (ii) é inútil e os itens (iii) e (iv) são
prejudiciais para a maioria dos passageiros. No entanto, a maioria dos outros
passageiros participa das quatro partes do plano de Bob. Se você se recusa a
orar, a se autoflagelar ou a pagar Sally, você age de maneira errada? Você trata os
outros passageiros de maneira injusta?
Não orar a Poseidon, não se chicotear e não pagar Sally não é injusto, porque
essas ações não contribuiriam causalmente para o bem de manter o barco à
tona. Se outros passageiros se sentirem magoados por estarem se chicoteando
enquanto você não sofre, o remédio é simples: eles devem parar de se chicotear.
A culpa está neles mesmos e em Bob, não em você.
Lembre-se de que as obrigações políticas devem ser independentes de con-
teúdo (Seção 1.5) – isto é, diz-se que é preciso seguir a lei independentemente de
seu conteúdo (dentro de algumas restrições amplas) e independentemente da lei
estar correta. A discussão acima sugere que este não é o caso. É preciso examinar
o conteúdo de uma lei específica para determinar se o comportamento que ela
15
Alguém poderia argumentar que, para fornecer segurança com eficácia, o Estado deve ter
um certo grau de deferência por parte dos cidadãos – os cidadãos devem concordar em não julgar
cada lei individualmente por si mesmos – e isso faz parte do custo da segurança. Abordo essa
ideia na Seção 7.5.
5. Consequencialismo e Equidade 86

prescreve realmente contribui para o fornecimento de bens políticos antes que se


possa dizer se alguém tem alguma razão justa para seguir essa lei.
Alguns argumentam que, mesmo que uma determinada lei não seja necessária
para desempenhar as funções centrais do governo, a obediência a essa lei ainda
faz parte do custo da prestação de serviços governamentais essenciais, porque a
desobediência corre o risco de derrubar o governo e toda a ordem social. Nós
criticamos esse tipo de reivindicação acima (Seção 5.1.4). Mas, se fosse verdade,
faria tanto para minar a legitimidade política independente de conteúdo quanto
apoiaria as obrigações políticas independentes de conteúdo. Presumivelmente, se
os indivíduos são obrigados a ajudar a manter a ordem social, o Estado também
é obrigado. Se a desobediência a qualquer lei corre o risco de causar um colapso
da ordem social, então o Estado, ao elaborar leis que não são necessárias para
manter a ordem social e que provavelmente são amplamente desobedecidas,
está ameaçando a ordem social muito mais do que um único indivíduo quem
desobedece a uma dessas leis. Além disso, pedir ao Estado que renuncie ao seu
desejo de fazer leis desnecessárias é mais razoável e menos oneroso do que pedir
a um indivíduo que renuncie a suas liberdades pessoais. Portanto, se alguém
defende que o indivíduo, no entanto, deve obedecer a essas leis quando elas são
feitas, é muito mais claro que o Estado não deve fazer essas leis. E, portanto, não
se pode defender simultaneamente a obrigação e a legitimidade política sob essa
visão.

5.3.3 Obrigação política para dissidentes


Um segundo problema para o argumento fair play refere-se àqueles que não
endossam as atividades do Estado. Isso inclui algumas pessoas que sentem que
não precisam do Estado; por exemplo, eremitas que vivem isolados ou povos
indígenas que prefeririam que os colonos europeus nunca tivessem chegado
ao seu continente. Inclui aqueles que são moral ou ideologicamente opostos
ao governo em geral (anarquistas). Inclui pessoas que, embora apoiem a ideia
geral de governo, acreditam que o tipo adequado de governo é radicalmente
diferente do governo que possui. E inclui pessoas que se opõem a programas
governamentais específicos, mas são forçadas a contribuir com eles. Por exemplo,
os pacifistas podem não querer o alegado bem de uma força militar, mas devem
pagar por isso da mesma forma que todos os outros.
Vimos que é difícil considerar uma obrigação de ajudar em projetos inúteis
ou prejudiciais. Aqui, vemos que também é difícil explicar uma obrigação de
ajudar em projetos aos quais sinceramente se opõe, mesmo sendo a oposição
fundamentada ou não. Retorne ao exemplo do barco salva-vidas. Desta vez,
suponha que os outros passageiros no barco salva-vidas acreditem que orar a
Jeová os ajudará a permanecer à tona. Suponha, inclusive, que estejam corretos
5. Consequencialismo e Equidade 87

nessa crença: Jeová existe e é receptivo à oração peticionária. Desde que a grande
maioria ore, Jeová os ajudará. Mas Sally não acredita nisso. Sally acredita que orar
a Jeová provavelmente será prejudicial, porque ofenderá Cthulhu. Ela, portanto,
se opõe ao plano dos outros passageiros. Nessa situação, seria injusto que Sally
se recusasse a orar a Jeová?
Se a existência de Jeová e a eficácia da oração peticionária fossem fatos facil-
mente verificáveis, que Sally poderia ser responsabilizada por não saber, talvez
Sally tivesse uma obrigação moral de orar a Jeová. Mas suponha que esse não
seja o caso. Suponha que esses sejam assuntos sobre os quais haja discordância
razoável e que a visão de Sally seja racional ou pelo menos não muito menos raci-
onal do que a da maioria dos passageiros. Nesse caso, não é errado Sally se abster
de orar a Jeová. Ela não está buscando obter algum tipo de vantagem injusta
sobre os outros nem lucrar com o trabalho dos outros. Se os outros tentassem
forçar Sally a participar de suas orações, eles e não ela agiriam injustamente.
No caso político, existem várias pessoas que se opõem a vários programas
governamentais. Essas não são pessoas que buscam carona nos esforços de outras
pessoas – elas não estão simplesmente desejando que outras pessoas suportem
os custos dos programas. Eles não querem que esses programas existam. Em
muitos casos, eles consideram os projetos governamentais seriamente injustos
ou moralmente inaceitáveis. E, em muitos casos, sua visão, correta ou incorreta,
é perfeitamente razoável. Acho que esse é o caso dos que se opõem à presença
dos EUA no Afeganistão, à proibição das drogas, às restrições de imigração
e a várias outras leis ou projetos governamentais controversos. Existem até
alguns que consideram injustamente a própria instituição do governo. Se alguém
razoavelmente considera um projeto injusto ou imoral, dificilmente será um
free rider, tirando proveito dos outros ou tratando-os injustamente ao se recusar
a apoiar esse projeto. Os indivíduos, portanto, não agem de maneira injusta
quando se recusam a cooperar com leis que consideram razoavelmente injustas.16
Novamente, portanto, não há base para obrigação política independentes de
conteúdo.

5.3.4 Particularidade e a questão de bens alternativos


Uma das condições para uma obrigação de participar com fair play de um esquema
de cooperação é que a participação de alguém não deve interferir com a realização
de algo mais importante [condição (6), Seção 5.3.1]. Mas obedecer à lei muitas
vezes interfere em fazer coisas mais importantes.
16
Contraste as opiniões dos defensores da autoridade política, como Rawls (1964, 5): “É,
obviamente, uma situação familiar em uma democracia constitucional em que uma pessoa se vê
moralmente obrigada a obedecer a uma lei injusta”.
5. Consequencialismo e Equidade 88

Por exemplo, suponha que você tenha a oportunidade de escapar com segu-
rança de $1.000 em impostos prescritos legalmente. Talvez fosse errado fugir
dos impostos para gastar o dinheiro em uma nova televisão. No entanto, seria
permitido fugir dos impostos para usar o dinheiro de uma maneira mais valiosa
socialmente do que entregá-lo ao governo. E é quase certo que essa opção esteja
disponível – o benefício social marginal de cada dólar concedido ao governo é
muito menor que o benefício social marginal de um dólar concedido a qualquer
uma das várias instituições de caridade privadas extremamente eficazes.17 Nesse
caso, não é errado fugir dos impostos para enviar o dinheiro para a caridade; de
fato, é louvável.
Obviamente, a maioria dos cidadãos paga impostos sob coação do Estado.
Essa coação serve de pretexto ao pagamento de impostos, mas não o torna louvá-
vel ou obrigatório.

5.4 O problema da legitimidade


5.4.1 Uma explicação consequencialista da legitimidade
Normalmente, é errado ameaçar uma pessoa com violência para forçar confor-
midade a algum plano seu. Isso geralmente é verdade mesmo que seu plano
seja mutuamente benéfico e moralmente aceitável. Portanto, suponha que você
esteja em uma reunião do conselho na qual você e os outros membros estejam
discutindo como melhorar as vendas da sua empresa. Você sabe que a melhor
maneira de fazer isso é contratar a Sneaku Ad Agency. Seu plano será moralmente
inquestionável e altamente benéfico para a empresa. No entanto, os outros mem-
bros não estão convencidos. Então você pega sua arma e ordena que votem na sua
proposta. Esse comportamento seria inaceitável, mesmo que você esteja agindo
em benefício de todos e mesmo que seu plano seja o correto.
Mas um comportamento semelhante pode ser justificado em situações de
emergência. Retorne ao cenário do barco salva-vidas. O barco corre o risco de
afundar, a menos que a maioria dos passageiros comece a retirar água rapida-
mente. Desta vez, no entanto, suponha que nenhum dos outros passageiros esteja
disposto a retirar a água. Você não pode executar a tarefa sozinho, e nenhuma
quantidade de raciocínio ou argumentação convencerá os passageiros míopes a
pegar seus potes. Finalmente, você puxa sua fiel Glock da jaqueta e ordena que
os outros passageiros comecem a resgatar o barco. Nesta situação, por mais que
seja inadequado o recurso à força, sua ação parece justificada.
17
Consulte http://www.givewell.org/ para obter análises de instituições de caridade, in-
cluindo uma lista das instituições de caridade mais eficazes.
5. Consequencialismo e Equidade 89

Christopher Wellman oferece um exemplo com uma lição semelhante.18 Amy


tem uma emergência médica e precisa ser levada ao hospital imediatamente.
Beth está ciente disso, mas não tem veículo para transportar Amy. Então, ela
rouba temporariamente o carro de Cathy para levar Amy ao hospital. Esta ação
viola os direitos de propriedade de Cathy. No entanto, o ato é permitido, desde
que não haja outras maneiras de salvar Amy sem cometer pelo menos violações
de direitos igualmente sérias.
Esses exemplos sugerem o seguinte princípio geral: é permitido coagir uma
pessoa ou violar seus direitos de propriedade, desde que isso seja necessário para
impedir que algo muito pior aconteça. Assim, talvez o Estado seja justificado em
coagir as pessoas e apreender a propriedade delas através de impostos, porque
isso é necessário para evitar um colapso virtual da sociedade. Se o Estado não
aplicasse as leis de maneira coercitiva, muitas pessoas as violariam e, se o Estado
não coletasse coercivamente o dinheiro dos impostos, o Estado não poderia operar.
Em qualquer um desses casos, o Estado não poderia fornecer os benefícios sociais
cruciais descritos na Seção 5.1.2 acima.

5.4.2 Abrangência e independência de conteúdo


Na versão do cenário do barco salva-vidas discutida na Seção 5.4.1, você tem
o direito de usar coerção para salvar todos no barco. Mas esse direito não é
abrangente nem independente de conteúdo. Seu direito de coagir é altamente
específico e depende do conteúdo: depende de você ter um plano correto (ou
pelo menos bem justificado) para salvar o barco, e você pode coagir outros
apenas para induzir a cooperação com esse plano. Mais precisamente, você deve
pelo menos ser justificado em acreditar que os benefícios esperados de impor
coercivamente seu plano aos outros são muito grandes e muito maiores do que os
danos esperados. Você não pode coagir outras pessoas a induzir comportamentos
prejudiciais ou inúteis ou comportamentos projetados para servir a propósitos
ulteriores, não relacionados à emergência. Por exemplo, se você exibir sua arma
de fogo e ordenar que todos comecem a colocar a água do oceano para dentro do
barco, estará agindo de maneira errada – e da mesma forma, se usar a arma para
forçar os outros a orar a Poseidon, se baterem com cintos ou não pagarem os $50
para sua amiga Sally.
Os conteúdos são semelhantes no cenário de roubo de carros de Wellman.
Amy tem eticamente o direito de violar a propriedade do carro de Cathy. Mas
esse direito é altamente específico de conteúdo: Amy não pode violar os direitos
de propriedade de Cathy da maneira que ela escolher. Ela não pode pegar o
carro e afastar Beth do hospital. Não pode levar Beth ao hospital e depois pegar
18
Wellman 2005, 21.
5. Consequencialismo e Equidade 90

o carro para dar uma volta nas montanhas. Não pode vasculhar o porta-luvas
procurando objetos de valor. Amy pode usar o carro de uma maneira muito
específica: levar Beth ao hospital. Nada mais.
Se, portanto, contamos com casos como esse para explicar o direito do Estado
de coagir ou violar os direitos de propriedade de seus cidadãos, a conclusão
apropriada é que os poderes legítimos do Estado devem ser altamente especí-
ficos e dependentes de conteúdo: o Estado pode coagir indivíduos apenas de
maneira mínima necessária para implementar um plano correto (ou pelo menos
justificado) para proteger a sociedade dos tipos de desastres que supostamente
resultariam da anarquia. O Estado não pode coagir as pessoas a cooperar com
medidas prejudiciais ou inúteis ou com as quais não temos boas razões para
considerar eficazes. Tampouco o Estado pode estender o exercício da coerção
para perseguir qualquer objetivo que pareça desejável. O Estado pode receber
dos cidadãos a quantidade mínima de dinheiro necessária para fornecer os “bens
indispensáveis” que justificam sua existência.19 Não pode pegar um pouco a
mais para comprar algo de bom pra si mesmo.
Quantas atividades governamentais podem ser consideradas legítimas com
essa consideração? As leis e políticas domésticas podem ser divididas em nove
categorias, dependendo das motivações por trás delas (essas categorias não são
mutuamente exclusivas):

1. Leis projetadas para proteger os direitos dos cidadãos; por exemplo, as leis
contra assassinato, roubo e fraude.

2. Políticas destinadas a fornecer bens públicos, no sentido econômico do


termo; por exemplo, defesa militar e proteção ambiental.20

3. Leis paternalistas, projetadas para impedir que as pessoas se prejudiquem;


por exemplo, leis de cinto de segurança e leis sobre drogas.

4. Leis moralistas, projetadas para impedir comportamentos considerados


“imorais” por algum motivo que não sejam danos a si mesmos ou a outros
ou violação dos direitos de outros; por exemplo, leis contra prostituição,
jogo e drogas.
19
Sobre bens indispensáveis, veja Klosko 2005, pp. 7–8.
20
No sentido econômico do termo, um bem público é um bem com duas características: (1) é
incomparável, o que significa que o recebimento do bem por uma pessoa não reduz a disponibili-
dade do bem a terceiros; (2) é inescrutável, significando que, se for fornecido, é impossível ou
muito dispendioso controlar quem o recebe.
5. Consequencialismo e Equidade 91

5. Políticas destinadas a ajudar os pobres; por exemplo, programas de assis-


tência social, subsídios educacionais e leis de salário mínimo.21

6. Políticas rent-seeking; isto é, políticas, exceto as da categoria (5), projetadas


para conferir vantagens econômicas a algumas pessoas em detrimento de
outras; por exemplo, subsídios concedidos a indústrias politicamente pode-
rosas, contratos militares lucrativos concedidos a empresas com vínculos
com funcionários do governo e requisitos de licenciamento que protegem
da concorrência os trabalhadores existentes em uma profissão.

7. Leis projetadas para garantir o monopólio do Estado e promover seu poder e


riqueza; por exemplo, leis tributárias, leis de curso legal e leis que impedem
a concorrência privada com órgãos governamentais, como os correios e a
polícia.

8. Políticas destinadas a promover outras coisas que são consideradas boas em


geral, além dos produtos listados acima; por exemplo, provisão de escolas
pelo governo, patrocínio do governo para as artes e programas espaciais
do governo.

9. Leis e políticas que parecem ser motivadas simplesmente pela emoção, além
das consideradas acima; por exemplo, restrições à imigração e proibições
ao casamento gay.22

Quando pensamos no abstrato sobre a necessidade de lei e a importância de


obedecer à lei, temos principalmente em mente leis dos tipos (1), (2) e talvez (7).
Talvez leis desse tipo possam ser justificadas pelo tipo de argumento consequen-
cialista discutido na Seção 5.4.1. Mas, como sugere a lista acima, há muito mais
nas atividades de qualquer Estado moderno. E essas atividades extras, em regra,
não podem ser justificadas por argumentos consequencialistas.
Vamos estender um pouco mais a história do barco salva-vidas. Você forçou
os outros passageiros a retirar água do barco, poupando-o de afundar. Enquanto
você está com a arma, decide que pode também alcançar alguns outros objetivos
desejáveis. Você vê um passageiro comendo batatas fritas, o que aumentará o
risco de doenças cardíacas. Apontando a arma para ele, você ordena que ele
entregue as batatas fritas. Então você percebe um par de passageiros do outro
21
Essas políticas também têm motivação parcialmente paternalista quando fazem algo diferente
de uma transferência direta de renda. Por exemplo, quando o Estado disponibiliza certos fundos
para cidadãos indigentes com a restrição de que o dinheiro só possa ser usado para comprar
educação, isso é parcialmente redistribuitivo e parcialmente paternalista.
22
Ver Huemer 2010b sobre política de imigração; ver especialmente 460-1, sobre as motivações
para restrições à imigração.
5. Consequencialismo e Equidade 92

lado do barco jogando cartas. Quando você vê que eles apostaram dinheiro no
jogo, ameaça-os caso não parem de jogar. Outro passageiro tem algumas jóias
caras, então você a pega e distribui para alguns dos passageiros mais pobres.
Você também recebe $50 de todo mundo e dá para sua amiga Sally. Você ameaça
atirar em qualquer outro passageiro que tente fazer as mesmas coisas que você
está fazendo. Então você decide que seria bom ter um pouco de arte, forçando
os outros passageiros a entregarem alguns de seus pertences para poder fazer
uma escultura com eles. Por fim, você sente um desconforto em relação a um dos
passageiros – não gosta da aparência dele – e ordena que os outros passageiros o
joguem no mar.
Todas essas ações são indefensáveis. Embora o seu uso inicial de coerção para
impedir que o barco salva-vidas afundasse fosse justificado, é absurdo sugerir
que a coerção seja justificada pelos tipos de motivos exibidos em qualquer uma
das suas ações posteriores nesta história. Esses motivos são análogos aos exibidos
nas políticas dos tipos (3) à (9) listados acima.23
Os exemplos específicos que dei dos tipos de política (3) à (9) não são impor-
tantes, desde que se concorde que existem (um número não trivial de) políticas
para cada um desses tipos. Não importa muito, por exemplo, se alguém não
concorda que as leis de licenciamento são motivadas por rent-seeking, desde que
se concorde que um número significativo de leis seja motivado por rent-seeking. O
ponto é que o Estado tem muitas políticas e leis cujas motivações não justificam a
coerção necessária para implementá-las. Isso é um problema porque a autoridade
do Estado geralmente é considerada abrangente e independente de conteúdo.
Em uma leitura muito rigorosa das condições de abrangência e independência
de conteúdo, a existência de apenas algumas leis que o Estado não tem o direito
de fazer impediria que ele tivesse autoridade genuína. Uma versão mais modesta
das condições de abrangência e independência de conteúdo sustentaria que o
Estado não possui autoridade genuína, a menos que pelo menos a maioria das
coisas que ele normalmente faz e que geralmente é considerado seu direito sejam
de fato moralmente admissíveis. Se o leque de ações coercitivas que o Estado está
realmente autorizado a fazer é apenas uma pequena fração do que geralmente se
pensa que ele tem direito e do que o Estado de fato faz, então acho que o Estado
não tem realmente legitimidade de autoridade. E acho que devemos admitir que
23
Para ser explícito, aqui está uma lista de políticas governamentais análogas às suas ações na
história: Impedir o passageiro de comer batatas fritas: leis sobre drogas e outras leis paternalistas.
Proibir o jogo de cartas com aposta: leis contra o jogo e outras leis moralistas. Confiscar jóias:
bem-estar e outros programas de redistribuição de riqueza. Coletar dinheiro para Sally: subsídios,
contratos sem licitação e outras políticas motivadas por rent-seeking. Ameaçar atirar em outros
passageiros que fazem as mesmas coisas: proibições de vigilantismo e criação de governos
concorrentes. Confiscar propriedades para fazer escultura: apoio estatal às artes. Arremessar um
passageiro ao mar: restrição à imigração e deportação de imigrantes ilegais.
5. Consequencialismo e Equidade 93

esse é realmente o caso.

5.4.3 Supremacia
A autoridade do Estado também deve ser suprema, no sentido de que ninguém
mais tem o direito de coagir os indivíduos da maneira que o Estado faz, nem
alguém tem o direito de coagir o Estado. Isso também é difícil de explicar.
Modificando o cenário do barco salva-vidas mais uma vez, suponha que no
barco haja dois passageiros armados, Gumby e Pokey, cada um deles reconhe-
cendo que o barco salva-vidas precisa ser socorrido. Mais uma vez, os outros
passageiros se recusam resolutamente a salvar o barco. Gumby e Pokey sabem
que a coerção é necessária para salvar o barco, e qualquer um deles estaria jus-
tificado em tomar as medidas necessárias. Mas Gumby é mais rápido em agir:
ele pega sua arma e força os outros passageiros a começarem a retirar a água do
barco. Nesse ponto, Gumby adquire algum tipo de supremacia?
Não ele não adquire. Se Pokey visse algum outro desastre iminente que só
pode ser evitado através da coerção, ele estaria justificado a usar coerção para
evitá-lo. Isso teria sido verdade se Gumby nunca estivesse no barco salva-vidas,
e permanece verdadeiro depois que Gumby usou coerção para evitar que o barco
afundasse. O ato coercitivo inicial de Gumby não impede a coerção justificada
por outros, nem reduz a gama de circunstâncias em que outros podem usar a
coerção, de modo que se torne mais fácil no futuro para Gumby ser justificado no
uso da coerção do que para qualquer outra pessoa no barco. Pokey também não
estaria moralmente impedido de tomar ações coercitivas para reforçar o esquema
de retirada de água, caso a aplicação de Gumby se mostre inadequada.
Antes do ato coercitivo inicial de Gumby, seria verdade que Pokey poderia
usar a força permissivelmente contra Gumby, se isso fosse necessário para impedir
Gumby de violar seriamente os direitos de outras pessoas ou impedir que algo
muito ruim acontecesse. Após o ato coercitivo inicial de Gumby, isso permanece
igualmente verdadeiro. O simples fato de Gumby ter sido o primeiro a usar a
coerção para salvar o barco não o deixa imune a ser coagido em circunstâncias nas
quais normalmente seria permitido coagir alguém. Por exemplo, se, depois de
salvar o barco salva-vidas, Gumby tentasse roubar os passageiros, Pokey estaria
justificado em usar a força para defender os outros passageiros.
Parece, então, que o Estado não possui, por motivos consequencialistas, auto-
ridade suprema. Outros agentes podem usar a força para alcançar os mesmos
objetivos que o Estado teria justificativa em usar a força para alcançar no caso
dos próprios esforços do Estado serem inadequados. Por exemplo, se o Estado
falhar em fornecer proteção adequada contra o crime, não há razão óbvia para
que agentes privados não forneçam segurança usando os mesmos métodos que
o Estado pode usar. Os agentes privados também podem usar a força para evitar
5. Consequencialismo e Equidade 94

desastres que o Estado não tomou ação suficiente para evitar (novamente, nas
mesmas circunstâncias em que o Estado pode usar a força). E agentes privados
podem usar a força contra o Estado quando necessário para impedir que o Es-
tado cometa graves violações de direitos ou para impedir que algo muito ruim
aconteça.
Quando alguém pode usar a força contra os outros? É plausível sustentar que
indivíduos e organizações particulares são justificados em usar a força somente
quando
i eles têm uma forte justificativa para acreditar que o plano que estão tentando
implementar está correto (por exemplo, que produziria os benefícios preten-
didos e que esses benefícios seriam ótimos em comparação com a gravidade
das violações de direitos necessárias para implementar o plano);
ii eles têm uma forte justificativa para acreditar que o uso da força conseguiria
fazer com que seu plano fosse implementado; e
iii não há alternativas disponíveis para alcançar os benefícios sem pelo menos
violações igualmente graves de direitos.
Na realidade, essas condições são bastante restritivas e raramente são realiza-
das. É plausível que a maioria dos vigilantes reais viole a condição (i) e que a
maioria dos rebeldes e terroristas reais viole (i) e (ii). Portanto, a maioria dos
casos reais de vigilantismo ou terrorismo não deve ser endossada.
No entanto, a conclusão é uma rejeição da supremacia da autoridade gover-
namental, pois as qualificações mencionadas no parágrafo anterior se aplicam
igualmente aos atores estatais. O Estado também deve ter forte justificativa para
acreditar que cada um de seus planos implementados coercivamente está correto,
que seu uso da coerção será bem-sucedido e que não há alternativas melhores.
Se alguém se apoia em uma explicação consequencialista da legitimidade do tipo
que está sendo discutido, não há maneira aparente de escapar dessa conclusão.
Portanto, não há um sentido claro em que o Estado tenha autoridade suprema;
pode coagir indivíduos nos mesmos tipos de circunstâncias, pelos mesmos tipos
de razões, como agentes privados podem coagir indivíduos. E, assim como a
maioria dos atos de vigilantes e terroristas são injustificados, acho plausível que
a grande maioria das ações estatais também viole uma ou mais condições para a
coerção justificada.

5.5 Conclusão
Argumentos consequencialistas e baseados em equidade aproximam-se da justi-
ficação da autoridade política. No entanto, eles não podem fundamentar uma
5. Consequencialismo e Equidade 95

autoridade independente, abrangente ou suprema de conteúdo para o Estado. O


Estado tem o direito, no máximo, de impor coercivamente políticas corretas e
justas para evitar danos muito graves.24 Ninguém tem o direito de impor coerci-
vamente políticas contraproducentes ou inúteis, nem aplicar políticas destinadas
a objetivos de menor importância. O Estado pode ter o direito de cobrar im-
postos, administrar um sistema de polícia e tribunais para proteger a sociedade
dos violadores de direitos individuais e fornecer defesa militar. Ao fazer isso,
o Estado e seus agentes podem receber apenas os fundos mínimos e empregar
apenas a coerção mínima necessária. O Estado não pode impor coercivamente
leis paternalistas ou moralistas, políticas motivadas pelo rent-seeking ou políti-
cas destinadas a promover bens desnecessários, como apoio às artes ou a um
programa espacial.

24
O Estado carecerá mesmo desse direito se, como argumentado na Parte II, o Estado não for
necessário para o fornecimento de quaisquer bens vitais.
6

A Psicologia da Autoridade

6.1 A relevância da psicologia


Neste capítulo, reviso algumas evidências da psicologia e da história, sobre as
atitudes e o comportamento daqueles que estão sujeitos à (suposta) autoridade
de outras pessoas e sobre as atitudes e o comportamento daqueles que estão em
posições de autoridade. Essas descobertas são fascinantes por si mesmas. Elas
também têm, pelo menos de duas maneiras importantes, o ceticismo sobre a
autoridade política defendida neste livro. Por um lado, os dados psicológicos se
referem à questão de quanta confiança devemos depositar em nossas intuições
sobre a autoridade. Por outro lado, os dados psicológicos se referem à questão
de quão desejável ou prejudicial pode ser incentivar o ceticismo em relação à
autoridade. No presente capítulo, quando falo de “autoridades” e “figuras de
autoridade”, quero dizer pessoas e instituições socialmente reconhecidas como
possuindo autoridade, independentemente de terem ou não autoridade genuína
em sentido normativo. “Posições de autoridade” e “instituições de autoridade”
devem ser entendidas da mesma forma.

6.1.1 Este livro é perigoso?


Alguns defensores da autoridade se preocupam abertamente com as consequên-
cias que podem resultar de ideias anarquistas. Se ideias como as que adianto
neste livro se concretizarem em nossa sociedade, alertam, haveria muito mais
desobediência ao governo.1 Essa desobediência, por sua vez, pode levar o Estado
1
Honoré (1981, 42-4) expressa essa preocupação em relação ao anarquismo filosófico de
Simmons, uma doutrina mais moderada que a minha.

96
6. A Psicologia da Autoridade 97

a se tornar mais violento e opressivo.2 Ou, como advertiram Platão e Hume, isso
pode levar a um colapso geral da ordem social.3 Livros como este, se não forem
suficiente e vigorosamente questionados por outros filósofos, poderão, em última
análise, contribuir para tais resultados. Isso não teria relação direta com a questão
de saber se este livro está correto em suas alegações centrais (promover uma tese
correta pode ser indesejável), mas incide diretamente na interessante questão
de saber se esse livro é ruim ou não deveria ter sido escrito. Abordarei essa
preocupação nas seções posteriores deste capítulo, depois de revisar algumas
descobertas psicológicas importantes.

6.1.2 O apelo à opinião popular


Outros defensores da autoridade política sugerem que o anarquismo deve ser
rejeitado porque está muito longe da corrente principal da opinião política. A
crença nas obrigações políticas, escreve George Klosko, “é uma característica
básica de nossa consciência política”.4 Ele acredita que devemos aceitar opiniões
comuns como evidência prima facie em questões normativas, principalmente
quando a opinião filosófica é dividida. David Hume vai mais longe: “A opinião
geral da humanidade tem alguma autoridade em todos os casos; mas nesse
aspecto moral é perfeitamente infalível.”5 Se não há autoridade política, é natural
perguntar, então como tantas pessoas passam a ter uma crença tão firme nisso?
Não é mais provável que eu e um punhado de outros anarquistas estejamos
errados do que quase todos no mundo?
Por fim, não concordo com esse argumento. Considerando tudo, acho mais
provável de que os outros estejam enganados do que eu. (Obviamente, não
acreditaria que eu próprio não considerasse mais provável que eu esteja mais
certo do que errado.) No entanto, o argumento não deve ser rejeitado às pressas
ou pelas razões erradas. Para dar um tratamento justo ao argumento, paro aqui
para defender o apelo à opinião popular contra objeções excessivamente fáceis.
Há quem rejeite os apelos à opinião popular, em princípio, como falaciosos
(supostamente a falácia do argumentum ad populum). Mas o que exatamente
deveria ser falacioso em apelar a opiniões populares? A ilustração mais citada
2
Por esse motivo, DeLue (1989, 1) adverte que a ampla aceitação do anarquismo filosófico
“seria uma tragédia para os regimes liberais”.
3
Ver Críton em 50d em Platão 2000 e Hume 1987, 480. Ambos os filósofos parecem preocu-
pados que mesmo uma pequena quantidade de desobediência, talvez apenas um único ato de
desobediência, levaria a esse resultado.
4
Klosko, 1992, p. 24. Klosko faz uma observação mais detalhada em seu capítulo 9 de 2005.
5
Hume 1992, seção III.ii.9, 552. Hume usa essa premissa para rejeitar a teoria do contrato
social, que em sua época exercia pouca influência sobre o público. Sua forte tese de infalibilidade
moral pode ser explicada por sua metaética anti-realista (1992, Seção III.i.1-2).
6. A Psicologia da Autoridade 98

do alegado erro é o caso de Cristóvão Colombo; diz-se que quando Colombo


queria navegar ao redor do mundo, seus contemporâneos riram dele porque
todos estavam convencidos de que a Terra era plana. Mas Colombo acabou por
estar certo. E isso, como se vê, mostra por que é tolice confiar nas opiniões da
maioria.
Como uma nota histórica, a argumentação anterior é completamente impre-
cisa. Foi Colombo quem estava errado e aqueles que “riram dele” que estavam
certos no ponto principal da disputa. A ideia de que os contemporâneos de
Colombo pensavam que a Terra era plana é um mito moderno. Os gregos antigos
descobriram que a Terra era redonda e esse conhecimento nunca foi perdido.6 O
ponto real da disputa dizia respeito à distância do oeste da Europa para a Ásia.
Colombo pensou que essa distância era pequena o suficiente para navegar no
tipo de navios que então existiam; seus contemporâneos pensavam o contrário.
Eles estavam certos e Colombo estava errado: a distância real é cerca de quatro
vezes maior do que Colombo pensava. Se não fosse a descoberta inesperada das
ilhas do Caribe, Colombo e sua tripulação morreriam de fome no mar muito
antes de chegarem perto da Ásia.
Mas isso é apenas uma nota lateral de interesse histórico. Certamente há casos
em que grandes maiorias de pessoas mantêm crenças equivocadas. De fato, as
falsas crenças que a maioria das pessoas modernas mantém sobre Colombo e
seus contemporâneos são um exemplo disso. Mas que conclusão interessante se
segue dessa observação? Vamos considerar três conclusões que podemos tirar.
Primeiro, talvez o exemplo de Colombo (ou algum outro exemplo mais ge-
nuíno de erro popular) pretenda mostrar que a existência de uma crença muito
difundida não fornece prova conclusiva para o que a maioria acredita, pois há
alguns casos em que essas crenças são falsas. Isto está obviamente correto. E isto
Também é totalmente desinteressante. Um método de formação de crenças não
precisa ser infalível para ser útil ou racional. Todos ou quase todos os métodos
de formação de crenças são falíveis, incluindo observação sensorial e raciocínio
científico. Isso não mostra que devemos evitar a observação, a ciência e quase
tudo o mais como “falacioso”.
Segundo, talvez o argumento de Colombo pretenda mostrar que a existência
de uma crença muito difundida não fornece nenhuma evidência para o que a
maioria acredita. Esta conclusão é muito mais interessante. E também é obvia-
mente injustificada. A existência de um único erro ou mesmo de muitos erros
produzidos por uma determinada fonte de informação não mostra que essa fonte
é completamente inútil em termos de evidência. Para argumentar que a opinião
6
Lindberg 1992, 58; Russell 1991. No século IV a.C, Aristóteles discutiu os argumentos que
estabelecem a esfericidade da Terra (De Caelo, 297a9-297b20), e no terceiro século a.C, Eratóstenes
forneceu uma estimativa razoavelmente precisa da circunferência da Terra.
6. A Psicologia da Autoridade 99

popular é evidentemente inútil, alguém teria que argumentar que a opinião


popular não é melhor que o acaso – em outras palavras, que crenças amplamente
difundidas não são corretas com mais frequência do que proposições surgidas
aleatoriamente. Mas esta última afirmação é obviamente falsa.
Considere agora o leque de casos em que uma pequena minoria discorda da
maioria. Hoje, uma pequena minoria de pessoas pensa que a Terra é plana, que os
pousos na Lua foram falsificados ou que são possíveis máquinas de movimento
perpétuo; a maioria discorda. Algumas pessoas acreditam ser Jesus ou Napoleão
ou um super-herói, enquanto todos os que os rodeiam discordam. Em todos
esses casos, a maioria está certa e a minoria está errada. Às vezes, em uma
aula de ciências ou matemática, todos os alunos, exceto um, obtêm a mesma
resposta para um problema específico. Às vezes, em um grupo de várias pessoas,
todas testemunhando algum evento, uma pessoa se lembra do evento de maneira
diferente das outras. Em quase todos esses casos, novamente, a maioria está
certa – o único dissidente calculou mal ou tem um má lembrança. A explicação é
uma simples questão de probabilidade: para a maioria estar errada, o mesmo
mau funcionamento cognitivo ou mau funcionamento cognitivo que produz o
mesmo resultado deve ter ocorrido muitas vezes em cérebros diferentes. Para que
uma pessoa esteja errada, um mau funcionamento cognitivo precisa ter ocorrido
apenas uma vez. Este último é geralmente mais provável.
Terceiro e, finalmente, talvez o argumento de Colombo pretenda mostrar que
um apelo à crença popular não fornece fortes evidências para o que a maioria
acredita. Pode-se argumentar que a opinião popular, embora seja mais confiável
do que suposições aleatórias, não deixa de ser bastante confiável.
Mas como pretendemos inferir isso? Uma possibilidade é que devemos ver o
exemplo de Cristóvão Colombo e talvez alguns casos semelhantes como consti-
tuindo uma grande amostra aleatória de crenças populares, na qual uma grande
porcentagem (100%) se mostra falsa. Isso forneceria evidências sérias de falta
de confiabilidade. Outra possibilidade é que devemos simplesmente reconhecer,
com base no conhecimento e na experiência comuns, que o exemplo de Colombo
é um caso típico de um dissidente contra uma visão majoritária. Mas nenhuma
dessas possibilidades é fácil de se levar a sério. A “amostra” de crenças populares
oferecidas nesse tipo de argumento geralmente contém apenas alguns casos, e
o método amostral é algo mais próximo de “seleção deliberada de casos com a
característica desejada” do que da “seleção aleatória”. Quanto à tipicidade, não
seria um único louco da conspiração no escritório que insiste que o “11 de setem-
bro foi inside job” e que o governo dos EUA criou a AIDS como um exemplo mais
típico de dissidente contra uma opinião da maioria do que Cristóvão Colombo?
Com base na experiência cotidiana, quantos “fiéis da tese do 11 de setembro”
6. A Psicologia da Autoridade 100

existem para cada Colombo?7


Uma vez que enxergamos por que a opinião popular é, até certo ponto, re-
levante em termos de evidências, é difícil não concluir que muitas vezes seja
altamente relevante. Novamente, normalmente é menos provável que algum
mau funcionamento cognitivo ocorra várias vezes do que ocorra uma vez. Se
for assim, normalmente é muito menos provável que um mau funcionamento
ocorra muitas vezes do que um pequeno número de vezes. (O princípio está
formalizado no Teorema do Júri de Condorcet.)8 Discutirei abaixo possíveis
exceções a essa regra.
O apelo à opinião popular, portanto, não é geralmente falacioso. Como regra,
crenças muito firmes e difundidas não devem ser facilmente deixadas de lado.
Portanto, é necessária uma reflexão considerável antes de deixarmos de lado
a crença comum na autoridade política. Devemos examinar cuidadosamente
as teorias mais importantes e promissoras da fonte de autoridade, conforme
discutido nos capítulos 2 a 5 acima. Também devemos examinar as prováveis
fontes de crenças sobre a autoridade política, como no presente capítulo.

6.2 O experimento de Milgram


6.2.1 Método
Talvez o mais famoso estudo psicológico de obediência e autoridade tenha sido o
conduzido por Stanley Milgram na Universidade de Yale durante a década de
1960.9 Milgram reuniu voluntários para participar, supostamente, de um estudo
sobre memória. Quando cada sujeito chegou ao laboratório, recebeu US$ 4,50
(na época um pagamento razoável), e lhe disseram que o pagamento era apenas
pela presença. Outro “voluntário” (na verdade um cúmplice do pesquisador)
já estava presente. O pesquisador (na verdade, um professor do ensino médio
7
Ver Stove (1995, 58-62) em The Columbus Argument para mais discussões.
8
Ver a introdução a Condorcet de McLean e Hewitt 1994 (35–6). Condorcet observa que,
quando assumimos que os indivíduos são 80% confiáveis e a maioria supera a minoria em apenas
nove pessoas, a probabilidade da maioria estar correta excede 99,999%. O Teorema do Júri pode
ser enganoso, porque a suposição de independência probabilística raramente é satisfeita. No
entanto, um argumento qualitativo mais amplo pode ser feito; ou seja, que uma convergência de
fontes de informação em uma proposição específica apoia probabilisticamente essa proposição,
em maior grau do que uma única fonte de informação, desde que (i) cada fonte seja mais confiável
que um palpite aleatório, (ii) nenhuma fonte é completamente dependente da outra e (iii) uma
fonte não tem mais probabilidade de concordar com a outra se a última fonte estiver errada do
que se a última estiver correta. É muito plausível que essas condições sejam geralmente satisfeitas
quando as fontes são pessoas individuais.
9
O argumento a seguir no texto é baseada em Milgram 2009. Além da versão que descrevo no
texto (“Experiência 5”), Milgram detalha várias outras variações interessantes do experimento.
6. A Psicologia da Autoridade 101

que Milgram havia contratado para desempenhar o papel) informou a ambos


que participariam de um estudo sobre os efeitos da punição na aprendizagem.
Um deles seria designado como “professor” e o outro como “aluno”. Através de
uma proposta fraudulenta, o sujeito ingênuo foi selecionado como professor e o
cúmplice como aluno.
O pesquisador explicou que o professor leria pares de palavras para o aluno,
que tentaria lembrar qual palavra estava associada a qual outra palavra. O profes-
sor então questionaria o aluno. Cada vez que o aluno dava uma resposta errada, o
professor administrava um choque elétrico por meio de um gerador de choque de
aparência impressionante. Com cada resposta errada, os choques aumentavam
em intensidade, começando com um choque de 15 volts e aumentando em 15
volts de cada vez. O experimentador deu ao professor uma amostra de choque de
45 volts para demonstrar como era (e convencer os participantes da autenticidade
do gerador de choque). O aluno mencionou que tinha um leve problema cardíaco
e perguntou se o experimento era seguro. O pesquisador garantiu que, embora os
choques fossem dolorosos, não eram perigosos. O aluno estava amarrado a uma
cadeira em outra sala com um eletrodo preso ao pulso, supostamente conectado
ao gerador de choque.
Em um horário fixo, o aluno cometeria erros, levando a choques cada vez mais
graves. Os interruptores no gerador de choque foram rotulados de 15 volts até
450 volts, juntamente com rótulos qualitativos que variavam de “Choque Fraco”
a “Perigo: Choque Severo”, seguidos por um sinistro “XXX” nos dois últimos
interruptores. Cada vez que o aluno cometesse um erro, o professor deveria usar
o próximo interruptor no gerador de choque. A 75 volts, o aluno já começava a
grunhir de dor. A 120 volts, gritava para o pesquisador que os choques estavam se
tornando dolorosos. A 150 volts, o aluno queixou-se de que seu coração o estava
incomodando e exigia sua libertação. Gritos desse tipo continuaram, até um grito
agonizante a 270 volts. A 300 volts, a vítima se recusou a fornecer mais respostas
ao teste de memória. O pesquisador instruiu o professor a tratar uma falha em
responder como uma resposta errada e a continuar administrando choques. A
vítima continuou a gritar e insistiu que não queria mais participar, reclamando
do seu coração novamente a 330 volts. Depois de 330 volts, no entanto, nada
mais foi ouvido do aluno. Quando o professor atingisse o interruptor final de
450 volts no gerador de choque, o pesquisador instruiria o professor a continuar
usando o interruptor de 450 volts. Depois que o professor administrou o choque
de 450 volts três vezes, o experimento foi encerrado.
Se, em algum momento deste processo, o professor manifestasse relutância em
continuar, o pesquisador incitava o professor com um “por favor, continue”. Se o
professor expressasse repetidamente relutância, o pesquisador solicitava que “o
experimento exige que você continue”, então “é absolutamente essencial que você
6. A Psicologia da Autoridade 102

continue” e, finalmente, “você não tem outra escolha. Você deve continuar.” Se o
professor ainda resistisse após o quarto estímulo, o experimento era interrompido.

6.2.2 Previsões
O aluno, é claro, não recebeu verdadeiramente os choques elétricos. O verdadeiro
objetivo era determinar até que ponto as pessoas estariam dispostas a obedecer
ao pesquisador. Se você ainda não está familiarizado com o experimento, vale
a pena dedicar um momento para refletir, primeiro, sobre como você acha que
deveria ser o comportamento do professor, e segundo, o que você acha que a
maioria das pessoas faria.
As entrevistas pós-experimentos estabeleceram que as pessoas estavam con-
vencidas de que a situação era real e que o aluno estava recebendo choques
elétricos extremamente dolorosos. Sabendo disso, um professor claramente não
deveria continuar administrando choques depois que o aluno exige que seja
liberado. Fazer isso seria uma violação grave dos direitos humanos da vítima.
Em algum momento, o experimento representaria tortura e assassinato. Embora
o pesquisador tenha algum direito de dirigir a condução de seu experimento,
ninguém diria que ele tem o direito de ordenar tortura e assassinato.
O que você teria feito se fosse um participante do experimento? Milgram
descreveu o experimento para estudantes, psiquiatras e adultos comuns e pediu
que previssem como se comportariam se estivessem no experimento e como
a maioria das outras pessoas se comportaria.10 Dos 110 entrevistados, todos
disseram que desafiariam o pesquisador em algum momento, explicando suas
razões em termos de compaixão, empatia e princípios de justiça. A maioria
disse que se recusaria a continuar além do choque de 150 volts (quando o aluno
exige a liberação) e ninguém se viu ultrapassando os 300 volts (quando o aluno
se recusa a responder). Já suas previsões sobre o comportamento de outras
pessoas eram um pouco menos otimistas: os entrevistados esperavam que apenas
uma margem patológica de 1 a 2% da população continuasse até 450 volts. Os
psiquiatras pesquisados por Milgram pensavam que apenas um participante em
mil continuaria até o final do quadro de choque.

6.2.3 Resultados
O experimento de Milgram mostra algo surpreendente, não apenas sobre nossas
disposições para obedecer, mas também sobre nosso entendimento. As previsões
de psiquiatras, estudantes e leigos ficaram chocantemente distantes da realidade.
10
Milgram 2009, 27–31.
6. A Psicologia da Autoridade 103

No experimento real, 65% dos indivíduos cumpriram completamente, eventu-


almente administrando o choque de 450 volts por três vezes a uma vítima já
silenciosa e aparentemente sem vida. A maioria dos participantes protestou e
mostrou sinais óbvios de ansiedade e relutância – mas, por fim, fizeram o que
lhes foi dito.
Milgram acompanhou o experimento com pesquisas enviadas pelos partici-
pantes. Apesar do estresse envolvido no experimento, praticamente ninguém se
arrependeu de participar. Aqueles que ouvem falar do projeto experimental, sem
terem participado, geralmente pensam: “As pessoas não o farão” e, em seguida,
“Se o fizerem, não serão capazes de viver com isso depois”. Mas, na verdade,
Milgram relata: os participantes obedientes não têm problemas com isso mesmo
depois, porque esses participantes em geral racionalizam seu comportamento,
após o fato, da mesma maneira que o racionalizaram no decorrer do experimento:
eles estavam apenas seguindo ordens.11

6.2.4 Os perigos da obediência


Que lições podemos tirar dos resultados da Milgram? Uma lição importante,
a mais proeminentemente desenvolvida pelo próprio Milgram, é a do perigo
inerente às instituições de autoridade. Como a maioria das pessoas está dis-
posta a ir muito longe, satisfazendo as demandas das figuras de autoridade,
as instituições que criam reconhecidas figuras de autoridade têm o potencial
de se tornarem motores do mal. Milgram traça um paralelo com a Alemanha
nazista. Adolf Hitler, trabalhando sozinho, talvez pudesse ter matado algumas
dezenas ou mesmo algumas centenas de pessoas. O que lhe permitiu se tornar
um dos maiores assassinos da história foi a posição socialmente reconhecida de
autoridade para a qual ele próprio manobrou e a obediência inquestionável o
renderam milhões de súditos alemães. Assim como nenhum dos participantes
de Milgram teria decidido por si próprio sair e eletrocutar alguém, muito poucos
alemães teriam decidido, por conta própria, sair matando judeus. O respeito
pela autoridade era a principal arma de Hitler. O mesmo se aplica a todos os
maiores males criados pelo homem. Ninguém jamais conseguiu, trabalhando
sozinho, matar mais de um milhão de pessoas. Tampouco alguém jamais orga-
nizou tal mal recorrendo apenas ao lucro, interesse próprio puro ou persuasão
moral para garantir a cooperação de outros – exceto por confiar em instituições
de autoridade política. Com a ajuda de tais instituições, muitos desses crimes
foram cometidos, representando dezenas de milhões de mortes, além de muitas
outras vidas arruinadas.
11
Milgram 2009, 195–6.
6. A Psicologia da Autoridade 104

É possível que essas instituições também cumpram funções sociais cruciais


e previnam outros males enormes. Mesmo assim, à luz dos fatos empíricos,
devemos perguntar se os seres humanos têm uma disposição muito forte para
obedecer a figuras de autoridade. Isso nos leva a uma lição intimamente rela-
cionada, sugerida pelos resultados de Milgram: a disposição da maioria das
pessoas de obedecer às autoridades é muito mais forte do que se poderia pensar
à primeira vista – e muito mais forte do que se poderia pensar justificado.

6.2.5 A falta de confiabilidade de opiniões sobre autoridade


Outra lição interessante é esta: a experiência de ser submetido a uma autoridade
tem uma influência distorcida nas percepções morais de alguém. Todo mundo
que ouve sobre o experimento percebe corretamente o imperativo moral, em
algum momento, de rejeitar as exigências do pesquisador de continuar aplicando
choque à vítima. Nenhuma pessoa racional pensaria que a completa obediência ao
pesquisador era apropriada. Mas quando uma pessoa está na situação, ela começa
a sentir a força das demandas do pesquisador. Quando Milgram perguntou a
um sujeito obediente por que ele não interrompeu o experimento, o sujeito
respondeu: “Eu tentei, mas ele [indicando o pesquisador] não me deixou.” O
experimentador de fato não exerceu força para obrigar os sujeitos a continuar
– mas os sujeitos se sentiam compelidos. Pelo quê? Pela pura autoridade do
pesquisador. Depois que uma pessoa é submetida a essa autoridade e obedecia,
a distorção da percepção ética frequentemente continua. O participante continua
a achar suas ações justificáveis ou desculpáveis, alegando que estava apenas
seguindo ordens – mesmo que ninguém fora do experimento concordasse.
O paralelo à Alemanha nazista novamente se afirma. Enquanto quase todos os
observadores externos condenam as ações dos nazistas (e não apenas as de Adolf
Hitler, que deu as ordens finais), os oficiais nazistas famosos defenderam-se com
o apelo a ordens superiores. Isso era simplesmente uma manobra insincera para
escapar da punição? Provavelmente não; como os participantes de Milgram, os
oficiais provavelmente sentiram que tinham que obedecer às ordens. Na memo-
rável descrição de Hannah Arendt do caso, Adolf Eichmann pensou que estava
cumprindo seu dever obedecendo à lei da Alemanha, que estava inextricavel-
mente ligada à vontade do Führer; ele se sentiria culpado se não seguisse a lei e
o espírito das ordens de Hitler.12 Ainda mais claramente, os soldados comuns
do exército alemão não podem ser considerados muito mais malignos do que
os não-alemães típicos como se quisessem participar independentemente em
um genocídio. Enquanto o anti-semitismo era desenfreado na Alemanha, não
ocorreu assassinato generalizado até que o governo ordenou os assassinatos. So-
12
Arendt 1964, 24–5, 135–7, 148–9.
6. A Psicologia da Autoridade 105

mente então os soldados comuns acharam que os assassinatos eram justificados


ou exigidos. A história registra muitos casos semelhantes. Durante a guerra do
Vietnã, uma unidade do exército americano realizou um massacre de centenas
de civis em My Lai. Em um dos crimes de guerra mais notórios da história do
país, mulheres indefesas, crianças e homens idosos foram reunidos e fuzilados
em massa. Mais uma vez, os soldados envolvidos juraram que estavam apenas
seguindo ordens.13 Um soldado teria chorado durante o massacre, mas continuou
atirando.14
A ampla aceitação da autoridade política tem sido citada como evidência da
existência de autoridade política (legítima). A evidência psicológica e histórica
mina esse apelo. Os nazistas, os soldados americanos em My Lai e os participantes
de Milgram não estavam claramente sujeitos a nenhuma obrigação de obediência
– muito pelo contrário – e as ordens que foram dadas eram claramente ilegítimas.
De fora dessas situações, podemos ver isso. No entanto, quando realmente
confrontados pelas demandas das figuras de autoridade, os indivíduos nessas
situações sentiram a necessidade de obedecer. Essa tendência é muito difundida
entre os seres humanos. Suponha agora, hipoteticamente, que todos os governos
eram ilegítimos e que ninguém era obrigado a obedecer a seus comandos (exceto
onde os comandos se alinhavam com os requisitos morais preexistentes). As
evidências psicológicas e históricas não podem mostrar se essa hipótese ética
radical é verdadeira. Mas o que as evidências sugerem é que, se essa hipótese
fosse verdadeira, é bem provável que ainda nos sentíssemos obrigados a obedecer
nossos governos. Isso é provável, porque mesmo as pessoas sujeitas aos exemplos
mais claros de poder ilegítimo ainda se sentem obrigadas a obedecer. E se
sentimos essa necessidade de obedecer, é provável que isso nos leve a pensar e
dizer que éramos obrigados a obedecer e depois – no caso dos mais filosóficos
entre nós – a inventar teorias para explicar por que temos essa obrigação. Assim,
a crença generalizada na autoridade política não fornece fortes evidências para
a realidade da autoridade política, uma vez que essa crença pode ser explicada
como um produto de viés sistemático.

6.3 Dissonância cognitiva


De acordo com a teoria amplamente aceita da dissonância cognitiva, experi-
mentamos um estado desconfortável, conhecido como “dissonância cognitiva”,
quando temos duas ou mais cognições que estão em conflito ou tensão entre si – e
particularmente quando nosso comportamento ou outras reações parece conflitar
13
Wallace e Meadlo 1969; Kelman e Hamilton 1989, 10–11.
14
Kelman e Hamilton 1989, 6.
6. A Psicologia da Autoridade 106

com nossa auto-imagem.15 Em seguida, tendemos a alterar nossas crenças ou


reações para reduzir a dissonância. Por exemplo, uma pessoa que se considera
compassiva, mas se vê infligindo dor aos outros, experimentará dissonância
cognitiva. Ela pode reduzir essa dissonância deixando de infligir dor, mudando
sua imagem de si mesmo ou adotando crenças auxiliares para explicar por que
uma pessoa compassiva pode infligir dor nessa situação.
Festinger e Carlsmith forneceram uma das ilustrações clássicas da teoria da
dissonância cognitiva em um experimento realizado na década de 1950.16 Os
indivíduos foram obrigados a realizar uma tarefa repetitiva e chata por uma hora,
que pensavam ser o núcleo do experimento para o qual haviam se voluntariado.
No final da hora, uma das três coisas aconteceu. Os indivíduos na condição
de “um dólar” receberam um dólar para dizer a alguém (supostamente outro
sujeito voluntário presente) que a tarefa tinha sido divertida e interessante. Os
indivíduos na condição de “vinte dólares” receberam vinte dólares para dizer a
mesma coisa. Por fim, não foi solicitado que os sujeitos na condição de controle
dissessem algo e não dissessem algo desse tipo. Mais tarde, os três grupos foram
entrevistados sobre o que realmente pensavam da tarefa repetitiva que haviam
realizado por uma hora. Os indivíduos na condição de vinte dólares tinham
visões um pouco mais favoráveis do que as do grupo de controle – tanto quanto
a tarefa era agradável e como estavam dispostos a participar de um experimento
semelhante no futuro. Os indivíduos na condição de um dólar, no entanto,
tinham visões significativamente mais favoráveis dessas tarefas do que o grupo
de controle ou do grupo dos vinte Dólares. Assim, pagar mais aos indivíduos
resultaram em uma mudança menor em suas atitudes em relação à tarefa.17
Festinger e Carlsmith explicam os resultados da seguinte maneira. A maioria
das pessoas geralmente não se considera mentirosa. Portanto, se acham chata a
tarefa que realizaram, lembram-se de que disseram a alguém que era agradável
e experimentam dissonância cognitiva. Se a tarefa não era agradável, por que
disseram que era? Os indivíduos na condição de vinte dólares poderiam explicar
isso facilmente: mentiram para conseguir o dinheiro. Mas para indivíduos na
condição de um dólar, essa explicação era menos satisfatória. Como um dólar é
uma pequena quantia em dinheiro, parecia menos adequado como motivação
para mentir.18 Portanto, os indivíduos na condição de um dólar estavam sob mais
15
Veja Festinger e Carlsmith 1959 para uma defesa seminal da teoria. Sobre a importância
particular da auto-imagem, ver Aronson 1999; Aronson et al. 1999.
16
Festinger e Carlsmith, 1959.
17
A maior diferença de atitude foi entre o grupo de Controle e o grupo “Um Dólar” sobre a
questão de quão dispostos estariam em participar de um experimento semelhante novamente.
Essa foi uma diferença de cerca de 1,8 pontos em uma escala de dez pontos.
18
Era um dólar dos anos 50; o equivalente hoje seria de cerca de 8 dólares. A verdadeira razão
pela qual os participantes mentiram provavelmente foi deferência aos pesquisadores, mas os
6. A Psicologia da Autoridade 107

pressão para acreditar que a tarefa era realmente agradável.


Em outro experimento, os voluntários foram reunidos para participar de um
grupo de discussão sobre psicologia sexual.19 Cada voluntário foi submetido a
uma de três condições: os indivíduos na condição “Leve” sofreram um requisito
de iniciação levemente embaraçoso para ingressar no grupo (tiveram que ler
algumas palavras sexuais mas não obscenas em voz alta). Os indivíduos na
condição “Grave” foram submetidos a um requisito de iniciação gravemente em-
baraçoso (tiveram que ler palavras obscenas em voz alta, seguidas de passagens
pornográficas). Os indivíduos na condição “Controle” não tinham necessidade
de iniciação. Todos os sujeitos ouviram uma gravação, supostamente de uma
discussão em grupo em andamento. A discussão foi intencionalmente projetada
para ser a mais chata e inútil possível. Os sujeitos foram convidados a avaliar o
grupo de discussão. Intuitivamente, pode-se esperar que a iniciação embaraçosa
tenha deixado aqueles na condição “Grave” com sentimentos negativos, levando
a avaliações mais duras do grupo de discussão. De fato, os sujeitos da condição
“Grave” tinham opiniões significativamente mais negativas do grupo de discus-
são do que aqueles na condição “Controle” ou “Leve”.20 Esses e outros estudos
mostram que as pessoas tendem a ajustar suas crenças e valores para fazer a si
mesmas e suas próprias escolhas parecerem melhores.21 O mesmo aconteceu
com os participantes de Milgram. Antes de participar do experimento, quase
ninguém consideraria a obediência em um cenário moralmente aceitável. Mas
depois, muitos sujeitos obedientes acharam seu comportamento aceitável.
Esse princípio psicológico gera um viés a favor do reconhecimento da autori-
dade política. Quase todos os membros das sociedades modernas se submeteram
frequentemente às demandas de seus governos, mesmo quando essas deman-
das exigiam ações que, de outra forma, estariam fortemente não inclinados em
executar. Por exemplo, a maioria já pagou quantias muito grandes ao Estado,
satisfazendo suas demandas fiscais. Como explicamos a nós mesmos por que
obedecemos? Poderíamos explicar nosso comportamento citando medo de puni-
ção, hábito, desejo de conformidade social ou desejo emocional geral de obedecer
a quem detém o poder. Mas nenhuma dessas explicações é emocionalmente
satisfatória. Muito mais agradável é a explicação de que obedecemos porque
somos cidadãos conscientes e atenciosos, e, portanto, fazemos grandes sacrifícios
para cumprir nosso dever de servir nossa sociedade.22 Relatos filosóficos de
participantes não sabiam disso.
19
Aronson e Mills 1959.
20
As classificações da discussão na condição “Grave” foram 19% mais altas que na condição
“Leve” e 22% mais altas que na condição de Controle (Aronson e Mills 1959, 179).
21
Ver Brehm 1956.
22
Pode ser ainda mais gratificante acreditar que a obediência ao Estado é mais supererrogatória
do que obrigatória, mas isso pode forçar a credulidade até do ambicioso auto-enganado – a
6. A Psicologia da Autoridade 108

autoridade política parecem projetados para reforçar exatamente essa imagem.


Uma razão para duvidar dessa visão de nossas razões para obediência é que se
espera que indivíduos altamente conscientes e atenciosos doem grandes quantias
de dinheiro a organizações de ajuda à fome e outros grupos de caridade (não
governamentais). Os argumentos a favor de uma obrigação de doar a institui-
ções de caridade são muito mais convincentes do que os argumentos a favor
de obrigações políticas.23 No entanto, para a maioria das pessoas, “sacrifícios”
extremamente grandes geralmente são feitos apenas quando são comandados
por uma figura de autoridade e esses comandos são apoiados por uma séria
ameaça de punição. Pouquíssimas pessoas dão voluntariamente à caridade a
quantidade de dinheiro que dão ao Estado.
Mas se nosso comportamento é motivado ou não por compaixão e um senso
de dever, é provável que geralmente desejamos acreditar que sim. Para acreditar
nisso, devemos aceitar uma doutrina básica de obrigação política e devemos
aceitar a legitimidade de nosso governo.

6.4 Demonstração social e viés de status quo


“Demonstração social” é uma frase irônica destinada a descrever o efeito persua-
sivo em um indivíduo das opiniões expressas de um grupo.24 Em um experimento
clássico, Solomon Asch reuniu indivíduos para o que eles pensavam ser um teste
de acuidade visual.25 Cada participante ficava sentado em uma sala com várias
outras pessoas, supostamente outros participantes como ele. Ao grupo foi mos-
trada uma série de cartões, cada um com uma única linha vertical à esquerda (a
“linha padrão”) e três linhas de comparação à direita. A tarefa dos participantes
era identificar qual linha de comparação tinha o mesmo comprimento da linha
padrão. As pessoas na sala deveriam relatar seus julgamentos visuais em série,
em voz alta, enquanto o pesquisador os registrava.
De fato, o pesquisador falara com todas as pessoas antes, exceto uma, instruindo-
as a fornecer respostas idênticas e incorretas para doze das dezoito questões de
comparação de linhas. O indivíduo ingênuo não sabia disso e escolheu as respos-
tas relatadas pelos outros para expressar as crenças reais dos outros membros do
grupo. O objetivo era observar como o indivíduo ingênuo reagiria ao conflito
entre a evidência de seus sentidos e a opinião unânime do grupo.
maioria de nós sabe que geralmente não fazemos grandes sacrifícios supererrogatórios. É mais
crível que façamos grandes sacrifícios que são moralmente exigidos de nós.
23
Ver Singer 1993, capítulo 8; Unger 1996.
24
Cialdini 1993, capítulo 4.
25
Asch 1956; 1963.
6. A Psicologia da Autoridade 109

As comparações de linhas foram escolhidas de modo que, em circunstâncias


normais, as pessoas tivessem mais de 99% de confiança na tarefa de comparação.
Sob a influência enganosa do grupo, no entanto, a confiabilidade dos indiví-
duos ingênuos caiu para 63%. Três quartos dos indivíduos ingênuos cederam
à pressão do grupo em pelo menos uma das doze perguntas. Em entrevistas
pós-experimento, Asch identificou três razões para isso. Alguns sujeitos acredita-
vam que o grupo estava errado, mas concordaram com o que o grupo dissera
por medo de se destacar ou parecer mal na frente dos outros. Esses indivíduos
estavam simplesmente mentindo. Muito pouco dos demais indivíduos pareciam
ignorar que havia algo errado – até onde os pesquisadores puderam perceber,
mesmo depois que os indivíduos foram informados da natureza do experimento,
esses indivíduos pensaram que as respostas do grupo pareciam visualmente
corretas.
No entanto, entre os indivíduos que concordaram com os erros da maioria
pelo menos uma parte do tempo, o motivo mais comum foi que pensaram que o
grupo devia estar correto e que sua própria percepção visual devia estar de algum
modo errada. Isso não é uma coisa irracional de se pensar. É mais provável, em
face disso, que a visão de alguém possa de alguma forma estar com problemas
do que as outras sete pessoas na sala estarem todas mentindo ou interpretando
mal.
Nossa preocupação, no entanto, não é com a questão do que alguém deve
pensar caso se encontre em uma situação tão bizarra. Meu objetivo ao relatar
esse experimento é destacar a forte influência que as crenças e atitudes de outras
pessoas ao nosso redor exercem sobre nossas próprias crenças e atitudes. O
experimento de Asch fornece uma ilustração particularmente impressionante
dessa influência. Mas esse tipo de influência, sem dúvida, já é familiar para o
leitor.
Intimamente relacionado à demonstração social está o fenômeno da tendên-
cia ao status quo. A demonstração social nos convence de que o que os outros
acreditam deve ser verdadeiro. O preconceito de status quo nos convence de
que o que nossa sociedade pratica deve ser bom. A demonstração mais óbvia
e poderosa de ambas as forças é fornecida pelo fenômeno da cultura. Muitas
das culturas do mundo incluem crenças e práticas que nos parecem bizarras,
absurdas ou horríveis, como a crença de que o ar e a umidade se uniram para
criar a terra26 ou a prática de canibalismo ou sacrifício humano. No entanto, os
membros dessas sociedades geralmente adotam as crenças de suas culturas e con-
sideram as práticas de suas culturas obviamente corretas. Ao ponto de se dizer:
“Bem, as pessoas em outras sociedades devem ser terrivelmente ignorantes”. Os
estrangeiros considerariam sem dúvida muitas das crenças e práticas de nossa
26
De um mito egípcio da criação, discutido em Lindberg 1992, 9.
6. A Psicologia da Autoridade 110

cultura como bizarras, absurdas ou imorais (em alguns casos, com razão). A
conclusão a ser tirada é que os seres humanos têm uma tendência poderosa de ver
as crenças de sua própria sociedade como obviamente verdadeiras e as práticas
de sua própria sociedade como obviamente corretas e boas – independentemente
de quais sejam essas crenças e práticas.27
O que isso nos diz sobre a crença na autoridade política? O governo é uma
característica extremamente importante e fundamental da estrutura de nossa
sociedade. Sabemos que as pessoas tendem a ter um forte viés em favor dos
arranjos existentes em suas próprias sociedades. Portanto, é lógico que, se algum
governo é legítimo ou não, a maioria de nós teria uma forte tendência a acreditar
que alguns governos são legítimos, especialmente os nossos e outros semelhantes.

6.5 O poder da estética política


Os governos modernos confiam em uma rica coleção de ferramentas não racionais,
incluindo símbolos, rituais, histórias e retórica, para induzir nos cidadãos um
senso de poder e autoridade do governo.28 Esse senso de autoridade é emocional
e estético, e não intelectual, mas pode-se esperar que influencie nossas crenças
conscientes através de nossas intuições.

6.5.1 Símbolos
Todo governo nacional do mundo tem uma bandeira. A maioria tem hinos
nacionais. Os governos adornam suas moedas com vários símbolos; nos Estados
Unidos, por exemplo, a nota de um dólar exibe o retrato de George Washington, o
Selo do Departamento do Tesouro e o Grande Selo dos Estados Unidos. Estátuas
e monumentos celebram pessoas e eventos importantes na história do país.
A quais funções todos esses símbolos servem? Por que não transmitir as
informações relevantes de uma maneira puramente intelectual e esteticamente
neutra? Em vez do Grande Selo dos Estados Unidos, a nota de um dólar poderia
simplesmente conter as palavras: “Isso é dinheiro americano”. Em vez de alçar a
bandeira americana, os edifícios do governo podiam exibir uma placa dizendo:
“Este é um prédio do governo dos EUA”. No lugar dos monumentos, poderiam
ser disponibilizados livros que descrevessem desapaixonadamente os eventos
27
Alguns filósofos elevaram esse viés a uma teoria da razão prática. MacIntyre (1986) e Murphy
(1995) afirmam que não é necessária nenhuma razão para seguir as normas da sociedade, mas que
sempre é necessária uma razão para se afastar das práticas atualmente aceitas. No entanto, eles
não defendem essa suposição, e considero que eles assumem essa posição como uma manifestação
de viés de status quo.
28
Ver Wingo (2003) para discussão e defesa estendida desta tese.
6. A Psicologia da Autoridade 111

históricos relevantes. Por que essas alternativas seriam menos satisfatórias do


que os símbolos realmente usados? A resposta é que os símbolos são usados para
criar um senso de identidade nacional através do apelo às emoções do público.
Os uniformes são outro tipo de símbolo, usado para adornar os corpos de
funcionários do governo. Os policiais usam uniformes com distintivos. Os juízes
usam longos mantos pretos. Os soldados usam uniformes com insígnias. Todos
esses são símbolos do tipo e grau de autoridade específicos que o agente do
governo deve possuir. Não seria suficiente para o agente simplesmente usar uma
placa como um crachá, escrito “juiz” ou “policial” ou “capitão”. Esses sinais
transmitiriam o conteúdo cognitivo, mas não o conteúdo emocional ou estético
do vestuário especial usado atualmente. As vestes de um juiz fazem o espectador
se sentir de uma certa maneira – elas geram um sentimento de respeito e um
senso de autoridade do usuário. Os psicólogos descobriram que o mero uso de
um uniforme, mesmo um uniforme confeccionado sem significado real, aumenta
a obediência de outras pessoas aos comandos do usuário.29
A arquitetura também pode ser usada para simbolizar poder e autoridade.
A Figura 6.1 mostra o edifício do Capitólio do estado do Colorado, típico dos
edifícios de Capitólio nos Estados Unidos. A arquitetura é principalmente de
estilo tradicional e clássico, com grossas colunas de pedra na frente. Essas colunas
não são necessárias para manter nada; existem para efeitos estéticos e emocionais,
provavelmente dando ao edifício uma aparência sólida e tradicional e, portanto,
associando o governo à estabilidade e à tradição. Em frente ao prédio há uma
estátua de um soldado, lembrando os visitantes daqueles que lutaram em nome
do Estado. À esquerda e à direita estão os canhões (não funcionais), simbolizando
o poder militar do Estado. O edifício está situado em uma colina, de modo que os
visitantes olhem para o prédio quando se aproximam e devem subir um conjunto
de escadas para chegar a porta. As portas são muito maiores do que um ser
humano e, uma vez dentro, o visitante se confronta com abóbadas três ou quatro
vezes maiores do que o ser humano típico. Existem muitos prédios em Denver
muito maiores do que o edifício do Capitólio, mas talvez nenhum seja tão bem-
sucedido em fazer o visitante se sentir pequeno. Tudo isso enfatiza o poder do
Estado e cria uma disposição para a submissão respeitosa por parte do visitante.
A Figura 6.2 mostra o interior de outro prédio interessante do governo, um
tribunal. O juiz é colocado, na frente e no centro, em uma plataforma, permitindo-
lhe literalmente desprezar todos os outros ocupantes da sala. Esta não é a única
maneira concebível de organizar uma sala de tribunal – por exemplo, o banco de
testemunhas poderia ter sido colocado no centro, de modo que toda a atenção
29
Bushman 1988. O experimento envolvia uma mulher dizer às pessoas na rua para dar um
níquel a um motorista de um parquímetro. Os sujeitos eram mais propensos a obedecer quando
a mulher usava um uniforme ambíguo do que quando vestia roupas comuns (72% vs. 50% de
concordância, p = 0,01).
6. A Psicologia da Autoridade 112

Figura 6.1: O edifício do Capitólio do estado do Colorado

estivesse concentrada nas testemunhas. Ou o juiz, o promotor, o réu e o júri


poderiam estar todos sentados em círculo. Mas esses arranjos alternativos não
criariam o sentido desejado do poder e autoridade do juiz.

6.5.2 Rituais
Em muitas sociedades, rituais especiais são necessários quando um novo líder
acede ao poder. Quando o poder é passado para um novo presidente dos EUA,
uma cerimônia pública de posse é realizada. A cerimônia envolve uma série
específica e estilizada de poses e palavras. O novo presidente coloca a mão
esquerda na Bíblia, sugerindo a supervisão divina dos procedimentos, e levanta
a mão direita com o braço dobrado no cotovelo. Ele então repete as palavras
exatas do juiz, geralmente o juiz supremo da Suprema Corte, administrando o
juramento: “Eu, [nome completo do presidente eleito], juro solenemente que
executarei fielmente o ofício de Presidente da República dos Estados Unidos, e
da melhor maneira possível, preservar, proteger e defender a Constituição dos
Estados Unidos.” Imediatamente após o juramento, o Chefe de Justiça se dirige ao
6. A Psicologia da Autoridade 113

Figura 6.2: Um tribunal de Colorado

novo presidente como “Sr. Presidente”. O juramento é seguido por um discurso


e um desfile.
A qual função esse ritual serve? Aparentemente, a função é garantir que o
novo presidente sirva fielmente e preserve a Constituição. Mas este é um método
muito fraco para tentar garantir esse comportamento. Se um presidente tem
em mente servir “infielmente” ou violar a Constituição, é improvável que sua
memória de ter prometido não fazer isso seja a força que o mantém íntegro. A
cerimônia de posse é principalmente para efeito emocional. É como um feitiço
que confere poder e autoridade ao novo presidente, de modo que, assim que ele
completa as palavras do juramento, a pessoa é convertida em presidente.
Se um governo deve garantir a aparência de autoridade, seus membros devem
estar separados e acima das das pessoas comuns. Eles não devem ser vistos sim-
plesmente como pessoas comuns que de alguma maneira conseguiram convencer
as pessoas armadas a forçar todos os demais a obedecê-las. Rituais como a cerimô-
nia de posse ajudam a pendurar o véu necessário sobre as elites. A forma exata
dos rituais não importa; o que importa é que haja alguns rituais reconhecíveis
relacionados ao exercício do poder. Nas sociedades primitivas, acredita-se que
esses rituais usem o poder mágico. Entre os espectadores modernos, os rituais
6. A Psicologia da Autoridade 114

têm efeito em um nível emocional e semiconsciente.


Outro contexto repleto de símbolos e rituais é o tribunal. Os ocupantes devem
permanecer de pé quando o juiz entra na sala, reconhecendo simbolicamente a
autoridade superior do juiz. Juramentos solenes são administrados a jurados e
testemunhas, geralmente incluindo as palavras “que Deus me ajude”, invocando
a supervisão divina dos procedimentos. Testemunhas sentam-se em um local
especial ao lado do juiz, apelidada de “banco das testemunhas”. Em vez de ser
chamado pelo nome, o juiz é referido como “vossa excelência” ou “meritíssimo”,
os advogados como “conselheiro” e o acusado como “o réu”. Muitas outras
deferências são usadas em vez da linguagem cotidiana. Um conjunto complexo
de regras deve ser seguido em relação a quem pode falar a qualquer momento e
o que eles podem falar sobre. Tudo prossegue em uma ordem específica e pré-
ordenada. Nada disso é exigido pelos requisitos utilitários de um procedimento
destinado a decidir se e como punir alguém. Sua função é ritualizar todo o
processo. Outros rituais são seguidos quando o júri retorna, o veredito é lido e o
juiz condena o acusado. A cerimônia termina com o golpe de martelo do juiz.
Por que os tribunais são tão ritualísticos? Talvez porque seja aqui que o
Estado esteja mais preocupado em retratar sua coerção como justiça. É aqui que
os agentes do Estado confrontam mais diretamente aqueles que desobedeceram
ao Estado e aqui que esses agentes ordenam diretamente que danos severos sejam
infligidos a indivíduos específicos como punição por desobediência. O processo
não deve ser visto apenas como um grupo de pessoas que decidiram machucar
outra pessoa porque não gostaram de algo que ela fez. Os rituais criam um senso
de autoridade do juiz e de todo o processo como algo profundo, sofisticado e
digno de respeito – e algo governado por regras que vão além dos meros desejos
dos seres humanos reais que executam o processo.

6.5.3 Linguagem de autoridade


Um aspecto subestimado da estética política é a linguagem peculiar usada pelas
figuras de autoridade. Considere o seguinte parágrafo de uma lei dos Estados
Unidos:

Se dois ou mais membros da mesma família adquirirem participação


em qualquer propriedade descrita no parágrafo (1) na mesma tran-
sação (ou em uma série de transações relacionadas), a pessoa (ou
pessoas) que adquirir o termo de interesse em tal propriedade será
tratada como tendo adquirido a propriedade inteira e depois transfe-
rida para as outras pessoas os interesses adquiridos por essas outras
pessoas na transação (ou série de transações). Essa transferência será
tratada como feita em troca da contraprestação (se houver) fornecida
6. A Psicologia da Autoridade 115

por essas outras pessoas para a aquisição de seus interesses em tais


propriedades.30

É certo que isso é retirado de uma parte da lei com uma reputação especí-
fica de incompreensibilidade, o Internal Revenue Code. Aqui está uma lei mais
compreensível:

Nenhuma pessoa deve colocar, usar, manter, armazenar ou manter


móveis estofados não fabricados para uso ao ar livre, incluindo, sem
limitação, cadeiras estofadas, sofás estofados e colchões, em qualquer
área externa localizada nos seguintes locais:

1. em qualquer jardim da frente;


2. em qualquer pátio lateral;
3. Em qualquer pátio traseiro ou outro pátio adjacente a uma rua
pública. No entanto, um beco não deve ser considerado uma
“rua pública” para os fins desta subseção; ou
4. Em qualquer pórtico coberto ou descoberto localizado em ou
próximo a qualquer um dos pátios descritos nos parágrafos (1)
a (3) acima.31

A redação de advogados, juízes e legisladores é tão distinta que é muitas


vezes referida como “juridiquês”, como se fosse uma linguagem própria. Esse
idioma tem um tom distinto que é altamente formal, imparcial e técnico. As frases
geralmente são longas e abstratas, com várias cláusulas. No exemplo do Internal
Revenue Code acima, a primeira frase tem 69 palavras (para comparação, a frase
média deste livro contém 21 palavras). Há referências cruzadas frequentes a ou-
tras leis. Muitas vezes, existem disjunções e conjunções longas e aparentemente
redundantes, como “varanda coberta ou descoberta” e “local, lugar, armazena-
mento ou manutenção”. O jargão técnico aparece com frequência, como “causa
provável”, “devido processo” e “termo de interesse”. Às vezes, palavras comuns
são usadas em sentidos técnicos, como “consideração” e “descoberta”. Os usos
arcaicos são preservados, como no uso de “tal” em “tal transferência” ou em ter-
mos como “supracitado” e “outrossim”. O vocabulário técnico frequentemente
se baseia no latim ou em outras línguas estrangeiras, como nos termos mens rea,
certiorari e en banc.
Qual é o efeito dessa maneira peculiar de falar e escrever? Primeiro e mais
obviamente, que leis e documentos legais são frequentemente incompreensíveis
30
U.S.C., título 26, seção 2702. Não tenho ideia do significado do parágrafo.
31
Código Revisado de Boulder, 5–4–16. Essa ordem foi aprovada em resposta à tradição de
Boulder de incendiar sofás após grandes eventos, como jogos de futebol.
6. A Psicologia da Autoridade 116

para as pessoas comuns – é preciso contratar um profissional treinado para


interpretá-las. Nossa incapacidade de entender a lei pode nos deixar relutantes
em questioná-la, enquanto a própria incompreensibilidade da lei confere um ar
de sofisticação e superioridade à lei e aos legisladores. As pessoas tendem a sentir
respeito pelas coisas que não conseguem entender, bem como pelas pessoas que
lidam com essas coisas. Esse tipo de respeito é importante se alguém estiver
tentando convencer os outros a aderirem ao seu domínio.
Outro efeito da linguagem jurídica é distanciar emocionalmente o autor, tanto
do assunto quanto do público. O autor pode querer se distanciar da platéia
para manter um senso de superioridade. O autor também pode querer se dis-
tanciar emocionalmente de seu conteúdo, porque o conteúdo em questão, por
escrito, envolve comandos emitidos por agentes do Estado para outros seres
humanos, apoiados por ameaças de violência contra aqueles que desobedecem.
Normalmente, ordenar que o dano seja imposto pela força a outras pessoas seria
uma ocupação estressante (se as vítimas merecem ou não ser prejudicadas). A
linguagem abstrata e técnica ajuda o público e o autor a esquecerem que isso
é o que está acontecendo e drena o impacto emocional da emissão de ameaças
coercitivas contra outras pessoas.
Linguagem semelhante é frequentemente usada por teóricos engajados na
elaboração de recomendações e justificativas para o exercício do poder. Os
filósofos políticos contemporâneos mais respeitados costumam empregar uma
linguagem que lembra o juridiquês. Considere uma passagem representativa do
mais célebre pensador político dos últimos tempos, John Rawls:

Gostaria agora de comentar a segunda parte do segundo princípio,


doravante entendida como o princípio liberal da justa igualdade de
oportunidades. Não deve então ser confundido com a noção de car-
reiras abertas a talentos; nem se deve esquecer que, uma vez que está
ligado ao princípio da diferença, suas consequências são bem distintas
da interpretação liberal dos dois princípios tomados em conjunto. Em
particular, tentarei mostrar mais adiante (§17) que esse princípio não
está sujeito à objeção de que isso leva a uma sociedade meritocrática.
Aqui, eu gostaria de considerar alguns outros pontos, especialmente
sua relação com a ideia de justiça processual pura.32

O tom desse tipo de trabalho filosófico é formal e sem emoção. A prosa é


preenchida com termos técnicos que soam solenes, como “justiça processual
pura”, “o princípio liberal da justa igualdade de oportunidades” e assim por
diante. Muita atenção é dada aos procedimentos descritos abstratamente e às
conexões e distinções entre os princípios abstratos. No caso de Rawls, existem
32
Rawls 1999, seção 14, 73.
6. A Psicologia da Autoridade 117

referências cruzadas frequentes, como na referência acima à seção 17. Alguns


vocabulários são levemente arcaicos, como no uso acima de “doravante”. Palavras
extras são empregadas para que uma declaração possa ser feita de maneira mais
fraca ou direta, como no uso acima de “gostaria de comentar [. . . ]”. Toda a
citação acima serve como um pigarro literário, uma preparação para discutir o
que o autor realmente quer discutir. Tudo isso tem o efeito de esgotar a discussão
de importância emocional – ou mais precisamente, de direcionar a mente do
leitor para sentimentos mais ordenados e rastreáveis.
Não afirmo que Rawls ou outros filósofos tenham conscientemente procurado
alcançar esses efeitos com seus escritos. O que afirmo é que certos estilos de
escrita, exemplificados por documentos legais típicos, bem como por alguns
trabalhos filosóficos, têm o efeito de suavizar obstáculos emocionais à aceitação
da autoridade do Estado e de incentivar atitudes de respeito e submissão a
instituições convencionais de poder. Eles servem para disfarçar a discussão sobre
quem deve ser submetido à violência com roupas sombrias e civilizadas.

6.6 Síndrome de Estocolmo e o carisma do poder


6.6.1 O fenômeno da Síndrome de Estocolmo
A Síndrome de Estocolmo recebeu o nome de um incidente ocorrido em Es-
tocolmo, na Suécia, em 1973. Um par de ladrões de banco manteve quatro
funcionários como reféns por seis dias. Durante a provação, os reféns se uniram
emocionalmente com seus captores, ficaram do lado dos sequestradores contra a
polícia e aparentemente não queriam ser resgatados. A certa altura, um refém
disse que os ladrões os estavam protegendo da polícia. No último dia, quando
a polícia usou gás lacrimogêneo para forçar todo mundo a sair do banco, os
reféns se recusaram a sair sem os sequestradores, temendo que, se saíssem, a
polícia mataria os sequestradores. Depois que o incidente terminou, as vítimas
continuaram a simpatizar e defender os criminosos.33 Desde então, o termo
“Síndrome de Estocolmo” tem sido usado para descrever o vínculo emocional
que as vítimas às vezes formam com sequestradores.34 O termo também é fre-
quentemente estendido a uma classe mais ampla de casos em que uma pessoa
ou grupo está sujeito ao controle de outra.
Um caso mais extremo foi o de Patricia Hearst, sequestrada em 1974 por um
grupo terrorista de esquerda na Califórnia que se autodenominava Symbionese
Liberation Army. Durante dois meses, Hearst foi mantida presa em um armário e
33
Graham, Rawlings e Rigsby 1994, 1-11; Lang 1974.
34
Sigo o uso popular da expressão “Síndrome de Estocolmo”. Meu uso da palavra síndrome,
no entanto, não pretende transmitir que o fenômeno é um distúrbio ou doença.
6. A Psicologia da Autoridade 118

sofrido abuso físico e sexual. Ela então se juntou ao grupo e os ajudou voluntari-
amente a cometer crimes, incluindo um assalto a banco. Ela não tentou escapar
quando se deparou com a oportunidade. Após sua eventual captura pela polícia,
Hearst alegou ter sofrido uma lavagem cerebral pelo SLA.35
Um caso mais recente é o de Jaycee Lee Dugard, sequestrado aos onze anos de
idade pelo ex-presidiário Phillip Garrido. Garrido a estuprou e a manteve cativa
em um galpão em seu quintal. A polícia finalmente encontrou Jaycee em 2009,
dezoito anos após o sequestro. Ela viveu com Garrido todos esses anos e agora
tinha duas filhas geradas por ele. Durante esse período, Dugard havia ajudado
Garrido em seus negócios em casa, classificando pedidos por telefone e e-mail.
Ela conheceu clientes sozinha na porta. Ela até saiu em público. Em resumo,
Jaycee Dugard teve inúmeras oportunidades ao longo dos anos para escapar ou
procurar ajuda externa, mas nunca o fez.36 Garrido estava tão seguro em seu
relacionamento com Dugard que trouxe ela e suas filhas para uma reunião com
seu oficial de liberdade condicional. Naquela reunião, Dugard disse ao oficial
que Garrido era uma ótima pessoa, e tentou protegê-lo ocultando sua própria
identidade.37
Vários casos semelhantes ocorreram ao longo dos anos. É comum dizer que
existem quatro precursores para o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo:
primeiro, o sequestrador representa uma ameaça crível à vida da vítima em
cativeiro. Segundo, a vítima percebe alguma forma de bondade por parte do
sequestrador. No entanto, essa “gentileza” pode consistir apenas em uma relativa
falta de abuso ou falha em matar a vítima. Em um ponto durante a crise dos
reféns em Estocolmo, um dos assaltantes do banco estava planejando atirar na
perna de um refém para fazer a polícia levar suas demandas mais a sério (o
tiroteio nunca ocorreu). Na época, o refém que levaria o tiro pensava que o
ladrão era bom por planejar apenas em dar um tiro na perna dele e não matá-lo.38
Terceiro, a vítima está isolada do mundo exterior e sujeita apenas à perspectiva
do sequestrador. Quarto, a vítima se vê incapaz de escapar.
Sob essas condições, os reféns são propensos a uma variedade de reações que
as pessoas de fora acham paradoxal, incluindo

• Proximidade emocional com os sequestradores;


• Sentimentos de lealdade para com os sequestradores, que podem continuar
muito depois das vítimas serem libertadas;
35
Brook 2007.
36
Fitzpatrick 2009.
37
Shaw 2009, pp. 5-6. O oficial de condicional, encontrando inconsistências em suas histórias,
separou Garrido e Dugard e continuou interrogando-os para descobrir quem ela era. Eventual-
mente, Garrido admitiu ter sequestrado Dugard, após isso Dugard revelou sua identidade.
38
Graham 1994, p. 5.
6. A Psicologia da Autoridade 119

• Adoção de atitudes e crenças dos sequestradores;

• A percepção dos sequestradores como protetores e das forças externas


tentando conquistar a libertação dos reféns como uma ameaça;

• Falha em tirar proveito das oportunidades de fuga;

• Gratidão em relação aos sequestradores por pequenas gentilezas e por falta


de abuso. Os reféns muitas vezes sentem que devem suas vidas a eles;

• Tendência de negar ou racionalizar os atos de violência dos sequestradores;

• Sensibilidade extrema às necessidades e desejos do sequestrador.39

Alguns sugerem que as vítimas voltam ao estado infantil, com o sequestrador


servindo como uma figura paterna.40

6.6.2 Por que a Síndrome de Estocolmo ocorre?


Há pouco estudo acadêmico sobre o fenômeno, em parte porque os psicólogos
não podem recriá-lo em laboratório, e as considerações teóricas são especulativas.
Mas uma consideração plausível atribui a síndrome a um mecanismo defensivo
inconsciente. Quando alguém está completamente sob o poder de uma pessoa
perigosa, a sobrevivência de alguém pode depender do desenvolvimento de
características agradáveis ao sequestrador. Isso inclui uma dependência submissa,
bem como sentimentos de simpatia e afeição pelo sequestrador. As vítimas não
escolhem conscientemente adotar essas características, nem pretendem adotá-las.
Simplesmente se veem tendo essas emoções e atitudes.41 Se esse é um mecanismo
de sobrevivência, há evidências de que isso é eficaz: após sua captura, um dos
assaltantes de Estocolmo relatou que ele se sentia incapaz de matar qualquer
um dos reféns devido ao vínculo emocional que se formou com eles.42 Por esse
motivo, o FBI incentiva deliberadamente o desenvolvimento da Síndrome de
Estocolmo em situações de reféns.43
A existência de um mecanismo defensivo desse tipo pode ser explicada em
termos evolutivos: durante a história das espécies era comum uma pessoa ou
grupo ter um grande poder sobre os outros. Aqueles que desagradaram a pessoa
ou grupo poderoso provavelmente eram mortos ou prejudicados. Aqueles que
39
Graham 1994, 13, 42-3.
40
de Fabrique et al. 2007; Namnyak et al. 2008. A vítima normalmente não consegue escapar
no início, mas geralmente tem oportunidades de escapar após o desenvolvimento da síndrome.
41
de Fabrique et al. 2007; Mattiuzzi 2007.
42
Lang, 1973, p. 126.
43
de Fabrique et al. 2007.
6. A Psicologia da Autoridade 120

agradaram aos poderosos eram mais propensos a sobreviver e prosperar com o


favor dessas pessoas poderosas. É plausível supor que características semelhantes
à Síndrome de Estocolmo sejam agradáveis para pessoas poderosas. Portanto, a
evolução pode ter selecionado uma tendência a desenvolver tais características
em circunstâncias apropriadas.

6.6.3 Quando ocorre a Síndrome de Estocolmo?


Podemos explicar em termos da teoria acima as condições sob as quais a Síndrome
de Estocolmo é mais provável de se desenvolver. Essas condições incluem o
seguinte:44

i O agressor representa uma ameaça séria e crível para a vítima. É essa situação que
torna necessário algum mecanismo defensivo. A Síndrome de Estocolmo
envolve mudanças extremas nas atitudes da vítima, que têm sérios custos
potenciais (por exemplo, a vítima pode acabar participando dos planos terro-
ristas do agressor). Portanto, devemos esperar que essas mudanças ocorram
apenas quando houver uma ameaça séria.45

ii A vítima se percebe incapaz de escapar. Vítimas que poderiam escapar prefeririam


essa opção ao vínculo com o agressor.

iii A vítima é incapaz de dominar o agressor ou de se defender efetivamente contra o


agressor. Se alguém tiver a opção de neutralizar o poder do agressor, isso seria
claramente preferível ao vínculo com o agressor.

iv A vítima percebe alguma gentileza do agressor, mesmo que somente na forma de


falta de abuso. É essa circunstância que torna provável que uma estratégia de
vínculo com o agressor seja bem-sucedida. Os agressores que são puramente
abusivos provavelmente não serão vencidos se a vítima desenvolver um gosto
por eles.

v A vítima está isolada do mundo exterior. Quando uma pessoa ou grupo de pes-
soas é mantido em cativeiro por um agressor, pessoas de fora, que não têm
motivos para desenvolver a Síndrome de Estocolmo, normalmente veem o
agressor sob uma luz extremamente negativa. Em qualquer comunicação
44
Os itens (i), (ii), (iv) e (v) são de Graham et al. 1994, pp. 33-7; cf. de Fabrique et al. 2007;
Namnyak et al. 2008, 5. Acrescentei o item (iii), que, embora não tenha sido identificado como
uma condição distinta por Graham e outros, está claramente presente e é importante nos casos
clássicos da Síndrome de Estocolmo.
45
Freud (1937, capítulo 9) postula que quando um indivíduo teme a dor nas mãos de outro,
ele pode lidar com a ansiedade identificando-se psicologicamente com a pessoa que representa a
ameaça. Ele descreve isso como “identificação com o agressor”.
6. A Psicologia da Autoridade 121

com as vítimas, é provável que pessoas de fora expressem sentimentos e


pensamentos negativos sobre o agressor. Portanto, é mais provável que a Sín-
drome de Estocolmo se desenvolva quando esse tipo de influência contrária
está ausente.

Embora o termo “Síndrome de Estocolmo” tenha surgido no contexto de situ-


ações que envolvam sequestros, as condições acima podem ser obtidas em vários
casos. Em qualquer situação em que essas condições sejam obtidas, podemos
esperar encontrar um fenômeno semelhante envolvendo a identificação da vítima
com o agressor. Quanto mais clara e integralmente as condições forem satisfei-
tas, maior a probabilidade dessa identificação. Consequentemente, sintomas
semelhantes à Síndrome de Estocolmo foram observados em uma variedade de
grupos, incluindo prisioneiros de campos de concentração, membros de cultos,
civis em prisões comunistas chinesas, prostitutas contratadas por cafetões, víti-
mas de incesto, mulheres agredidas, prisioneiros de guerra e vítimas de abuso
infantil.46

6.6.4 Os cidadãos comuns são propensos à Síndrome de Esto-


colmo?
Os cidadãos de governos bem estabelecidos são suscetíveis à Síndrome de Esto-
colmo? Considere as cinco condições acima:

i O agressor representa uma ameaça séria e crível para a vítima. Todos os gover-
nos modernos controlam suas populações através de ameaças de violência.
Em alguns casos, sua capacidade de violência é surpreendente. O governo
dos EUA, por exemplo, pode possuir armas suficientes para matar todos no
mundo. Em uma escala menor, os governos dispõem de um aparato para
prender indivíduos por longos períodos de tempo e implantam esse apa-
rato regularmente. Para aqueles que resistem à captura, os governos têm
ferramentas impressionantes de força física, incluindo força letal.

ii A vítima se percebe incapaz de escapar. Fugir do próprio governo tende a ser


difícil e dispendioso, geralmente exigindo o abandono da família e dos amigos,
do trabalho e da sociedade inteira. Mesmo aqueles dispostos a assumir tais
custos geralmente apenas estarão sujeitos a outro governo. Fugir do governo
em geral é praticamente impossível.

iii A vítima é incapaz de dominar o agressor ou de se defender efetivamente contra


o agressor. É praticamente impossível para qualquer indivíduo se defender
46
Graham et al. 1994, 31; Graham et al. 1995; Julich 2005.
6. A Psicologia da Autoridade 122

efetivamente contra a maioria dos governos modernos, imagine então dominá-


los.

iv A vítima percebe alguma gentileza do agressor, mesmo que apenas na forma de falta
de abuso. A maioria dos cidadãos considera seu governo benéfico à luz dos
serviços sociais que ele fornece. Alguns também acham que seu governo é
bom porque não abusam de seu poder tanto quanto a maioria dos outros
governos ao longo da história.

v A vítima está isolada do mundo exterior. No caso de cidadãos de um Estado-nação


moderno, talvez o “mundo exterior” seja composto por países estrangeiros.
A maioria das pessoas, particularmente nas democracias liberais avançadas,
tem acesso às perspectivas do mundo exterior nesse sentido, se optar por
consultar essas perspectivas. Há, no entanto, pelo menos duas razões pelas
quais esse fato pode falhar em impedir o desenvolvimento da Síndrome de
Estocolmo. Primeiro, nosso uso real dessas perspectivas externas é limitado.
A maioria das pessoas obtém a grande maioria de suas informações de fontes
de seu próprio país. Segundo, as fontes externas estão todas em uma situação
semelhante. É como se os reféns tivessem acesso apenas às “perspectivas
externas” de reféns e sequestradores em outros lugares. Em tal situação, não
está claro que o acesso a essas perspectivas atrasaria o desenvolvimento da
Síndrome de Estocolmo.

Os precursores gerais para o desenvolvimento da Síndrome de Estocolmo,


portanto, estão razoavelmente bem satisfeitos no caso dos cidadãos dos Estados
modernos. Portanto, não é surpreendente descobrir que os cidadãos tendem
a se identificar com seus governos, adotar as perspectivas de seus governos e
desenvolver vínculos emocionais (geralmente considerado “patriotismo”) com
seus governos.47 Assim como as vítimas da Síndrome de Estocolmo tendem
a negar ou minimizar os atos de coerção de seus sequestradores, muitos cida-
dãos tendem a negar ou minimizar a coerção de seu governo. Quase todos os
teóricos que consideram a questão concordam que o governo é uma instituição
coercitiva,48 mas as discussões sobre questões políticas raramente abordam a
justificativa do uso da força para impor várias políticas. Não é que falhemos em
geral em atribuir significado moral à coerção; se as decisões de algum agente
não-governamental estiver em discussão, então a questão da justificativa para
47
Uma manifestação interessante dessa identificação com o governo é o uso por cidadãos
particulares da palavra ‘nós’ para nos referir ao governo, como em “Nós invadimos o Iraque em
2003”, o que pode ser dito por um americano, mesmo que o falante não tenha pessoalmente feito
nada para provocar a invasão ou se opôs ativamente a ela. Como a palavra que normalmente
inclui o falante, isso sugere uma forte identificação com o Estado.
48
Edmundson (1998, cap. 4) é uma exceção rara.
6. A Psicologia da Autoridade 123

a violência ocuparia o centro do palco. Mas a realidade ou o significado moral


da coerção desaparecem de vista quando o agente envolvido é o Estado. As
atitudes deferentes podem se estender à aceitação total da imagem do próprio
Estado como tendo um direito único de coagir a obediência e como capaz de criar
obrigações morais simplesmente emitindo comandos. Devido à dinâmica da
Síndrome de Estocolmo, o poder tem uma tendência de legitimação: uma vez que
se torna suficientemente entrincheirado, o poder é percebido como autoridade.
Aqueles que aceitam a legitimidade do governo podem achar difícil acreditar
que estejam sob a influência de algo como a Síndrome de Estocolmo, uma vez que
esse conceito é normalmente aplicado a situações nas quais o papel do agressor
é geralmente socialmente condenado – sequestradores, assaltantes de bancos,
cônjuges violentos e assim por diante. Todos esses tipos de agressão são ruins,
e a maioria das pessoas vê seus governos como bons; portanto, o conceito de
Síndrome de Estocolmo não se aplica aos nossos sentimentos sobre o governo ou
se aplica?
Obviamente, essa reação poderia ser um produto da síndrome. Felizmente,
não precisamos primeiro decidir se o governo é bom ou sua coerção justificada
para decidir se o conceito de Síndrome de Estocolmo se aplica. Os precursores
para o desenvolvimento da síndrome identificados na Seção 6.6.3, bem como as
manifestações da síndrome descritas na Seção 6.6.1, são condições factuais e não
morais. A maldade do agressor ou a injustificabilidade de sua coerção não estão
entre elas. E os cidadãos dos Estados modernos, de fato, tendem a satisfazer
essas condições descritivas. Podemos ver isso independentemente do governo
ser ou não justificado.

6.7 Estudos de caso sobre abuso de poder


6.7.1 My Lai revisitado
Lembre-se do caso do massacre em My Lai. A maioria dos soldados que rece-
beram ordens de matar civis obedeceu. Alguns se recusaram a participar do
massacre, sem fazer nada para impedir que outros o fizessem. Segundo um
relatório, havia muito mais soldados que simplesmente evitavam a área onde o
massacre estava ocorrendo, possivelmente para evitar serem solicitados a parti-
cipar.49 Assim, a grande maioria das pessoas que estavam cientes do massacre,
participando ou não, não fez nada para detê-lo. A exceção foi uma corajosa
equipe de helicópteros, que salvou um pequeno número de moradores de serem
mortos, levando-os em segurança. Todo mundo na vila foi morto.
49
Thompson n.d., 19-20. Outros detalhes do caso são de Thompson (n.d.) e Kelman e Hamilton
(1989, 1-17).
6. A Psicologia da Autoridade 124

Agora considere a reação dos funcionários do governo dos EUA e de outros


americanos. Depois disso, o governo dos EUA tentou encobrir o massacre e
proteger os soldados responsáveis por ele. Somente depois que a história foi
divulgada à imprensa, o governo passou a processar os criminosos de guerra.
No final, uma única pessoa foi condenada e sentenciada pelo massacre, tenente
William Calley, que passou três anos em prisão domiciliar. Hugh Thompson, o
heroico piloto de helicóptero que salvou alguns civis, foi inicialmente tratado
como um criminoso. Thompson havia pousado seu helicóptero entre um grupo
de civis e um grupo de tropas americanas que estavam avançando para matá-
los. Ele disse a seus dois colegas de equipe que atirassem nos soldados se eles
abrissem fogo contra os civis enquanto estava tentando salvá-los. Felizmente,
ninguém abriu fogo e Thompson foi capaz de salvar dez civis. Nos Estados
Unidos, no entanto, muitos consideraram Thompson um traidor. Ele recebeu
ameaças de morte e animais mutilados à sua porta. Um congressista afirmou que
Thompson era a única pessoa em toda a história que deveria ir para a cadeia.50
Uma lição da história é que mesmo aqueles que não participam ativamente
de abusos de poder são frequentemente cúmplices deles. Quando membros de
uma organização abusam de seu poder, outros membros geralmente olham para
o outro lado. Quando é dada a chance, os funcionários costumam encobrir ou
desculpar abusos. Aqueles raros indivíduos com a coragem de intervir para
impedir abusos, em vez de serem aclamados como os heróis que são, serão mais
frequentemente criticados como traidores.
Todos nós estamos cientes das atrocidades cometidas por regimes como a
Alemanha nazista, a União Soviética e a China comunista. É muito fácil, ao pensar
em tais casos, reagir felicitando-nos por não pertencer a nenhum regime bárbaro
e tirânico. Casos como My Lai nos lembram que não são apenas as ditaduras que
cometem atrocidades. Os países avançados e democráticos também cometem
atrocidades, embora com menor frequência e em menor escala, fato que nos deixa
com pouco terreno para a autocongratulação.
Ao focar neste exemplo, não quero deixar aos leitores a impressão de que foi
um incidente isolado. Quando lemos sobre flagrante abusos de poder, também
costumamos ler sobre os encobrimentos oficiais. Mas os únicos casos que lemos
são aqueles em que os encobrimentos falharam. Presumivelmente, nem todos os
encobrimentos falham. Às vezes, as autoridades devem conseguir esconder seus
erros. Frequentemente não sabemos. Thompson relata que, após sua experiência
em My Lai, outros soldados disseram a ele: “Oh, essas coisas aconteciam o
tempo todo”.51 Há, portanto, razões para suspeitar que ocorreram muitos mais
50
Thompson n.d., 12, 27–8. Trinta anos depois, Thompson foi homenageado com a Medalha
do Soldado e convidado a falar em West Point, Annapolis e Quantico.
51
Thompson n.d., 11.
6. A Psicologia da Autoridade 125

massacres que não resultaram em notícia.

6.7.2 O Experimento Prisional de Stanford (EPS)


Em 1971, o psicólogo social Phillip Zimbardo conduziu um estudo iluminador
dos efeitos da prisão em guardas e prisioneiros.52 Zimbardo reuniu 21 voluntários,
todos estudantes do sexo masculino, para desempenhar o papel de prisioneiros
ou guardas em uma prisão simulada. No início, todos os voluntários queriam
desempenhar o papel de prisioneiro; ninguém queria ser guarda. Zimbardo
designou aleatoriamente metade dos sujeitos como prisioneiros e metade como
guardas. Os presos viveriam em celas improvisadas por duas semanas no campus
da Universidade de Stanford. Os guardas vigiavam os prisioneiros em turnos
de oito horas, com cada guarda livre para sair quando o turno terminava a cada
dia. Os pesquisadores forneceram orientações mínimas sobre o tratamento dos
presos, além de instruções sobre o fornecimento de alimentos e a prevenção da
violência física.
O que os pesquisadores observaram foi um padrão crescente de abuso por
parte dos guardas, que começou quase que imediatamente e piorava a cada dia.
Os prisioneiros foram submetidos a abusos verbais implacáveis (“Você é um
bastardo hipócrita e piedoso que quero vomitar” e assim por diante); obrigados
a executar tarefas tediosas, inúteis e degradantes ad nauseam (como fazer flexões
com outros prisioneiros sentados de costas, limpar o banheiro com as mãos
e assim por diante); eram exigidos a insultar verbalmente a si mesmos e aos
outros; privados de sono; confinados por horas em um armário com cerca de
um metro quadrado de espaço; e finalmente obrigados a realizarem sodomia
simulada. Nem todos os guardas aprovaram ou participaram do abuso. Mas
os guardas abusivos assumiram posições de domínio de fato entre os guardas,
que ninguém desafiou. Os “bons guardas” concordaram tacitamente com o
comportamento dos guardas mais agressivos, sem fazer nem dizer nada contra
eles. A provação foi tão estressante e deprimente para os prisioneiros que cinco
tiveram que ser libertados mais cedo, e no sexto dia, os pesquisadores acharam
eticamente necessário encerrar o experimento.

6.7.3 Lições do EPS


Abusos muito piores ocorrem em prisões reais, campos de prisioneiros de guerra,
campos de concentração e afins. O experimento de Stanford difere das prisões
do mundo real de várias maneiras interessantes. Primeiro, todos os participantes
sabiam estar apenas participando de um experimento psicológico, que pensavam
52
Zimbardo et al. 1973; Zimbardo 2007.
6. A Psicologia da Autoridade 126

que terminaria em duas semanas, após isso retornariam às suas vidas normais.
Segundo, os prisioneiros foram selecionados aleatoriamente, e os guardas e os
prisioneiros sabiam que não haviam feito nada de errado. Os prisioneiros não po-
deriam ser seriamente considerados criminosos ou inimigos em nenhum sentido
significativo. Terceiro, os prisioneiros e guardas haviam sido rastreados antes.
Os pesquisadores fizeram questionários e entrevistas pessoais a um grupo inicial
de 75 voluntários, a fim de selecionar apenas os participantes mais normais e
psicologicamente estáveis. Além disso, com base em testes psicológicos, pare-
cia não haver diferenças significativas na personalidade entre os guardas e os
prisioneiros.
Pode-se esperar que qualquer uma dessas condições isole a prisão simulada
contra o tipo de abuso frequentemente visto em prisões reais. (É certo que os
abusos em Stanford parecem leves em comparação aos observados em Abu Gh-
raib ou nos gulags soviéticos; então, novamente, a trajetória de crescente abuso
foi interrompida em apenas cinco dias.) Alguém poderia pensar que o contexto
de um período relativamente curto de experimentos psicológicos de longo prazo
seriam insuficientes para quebrar os padrões normais de decência e respeito pelos
outros. Pode-se suspeitar que o abuso de prisioneiros ocorra porque se acredita
que eles sejam criminosos ou inimigos, de modo que o abuso seja considerado
justificado. Ou pode-se pensar que o abuso de prisioneiros ocorre porque indi-
víduos com predisposições sádicas são mais propensos a se tornarem guardas
ou porque os prisioneiros tendem a ser extraordinariamente agressivos e, assim,
atraem respostas agressivas por parte dos guardas. O Experimento Prisional de
Stanford é de particular interesse, pois coloca hipóteses como essas à prova.
Como se vê, nenhuma dessas coisas foi o caso. Havia algo no papel de guarda
que trouxe à tona o pior das pessoas. A conclusão central de Zimbardo, a partir
deste estudo e de muitas outras evidências, é que os determinantes do comporta-
mento bom ou mau estão mais nas situações em que os indivíduos são colocados
do que nas intrínsecas circunstâncias desses indivíduos.53 As circunstâncias de
um indivíduo podem ter efeitos corruptos dramáticos ou edificantes.
Qual foi o papel de ser guarda que ressaltou o lado sombrio dos participantes?
Lorde Acton, creio, tinha o mote sobre isso: o poder corrompe.54 Isso tem sido
aparente na história; agora também temos evidências experimentais. Quando
alguns seres humanos recebem grande poder sobre a vida de outros, frequente-
mente descobrem que o senso de poder é intoxicante. Eles querem exercer seu
53
Ver Zimbardo 2007, esp. 210–21, sobre os fatores situacionais no Experimento Prisional de
Stanford. Ver os capítulos 12–16 para evidências e argumentos além do estudo do experimento.
54
Acton 1972, 335 (de uma carta a Mandell Creighton de 5 de abril de 1887): “O poder tende a
corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Os grandes homens quase sempre são
maus, mesmo quando exercem influência e não autoridade: ainda mais quando você acrescenta
a tendência ou a certeza da corrupção pela autoridade.”
6. A Psicologia da Autoridade 127

poder com mais frequência e mais profundidade, e não querem desistir dele.
Quando o Experimento Prisional de Stanford terminou prematuramente, todos
os prisioneiros ficaram aliviados. A maioria dos guardas, no entanto, parecia
decepcionada. Estavam gostando de atormentar os prisioneiros. Como Zimbardo
relata, nenhum dos guardas chegou atrasado para um turno e, em várias oca-
siões, ficou até tarde, sem serem solicitados e sem remuneração extra.55 Nem todo
mundo é visivelmente corrompido pelo exercício do poder. Mas sempre existem
alguns que são e, como sugere o experimento, mesmo os menos corrompidos
normalmente não fazem nada para conter os excessos dos mais corrompidos.
Mas por que infligir sofrimento e humilhação aos prisioneiros – não era
possível experimentar o poder com gestos benevolentes? George Orwell teve
um insight importante sobre essa conexão: “Como um homem afirma seu poder
sobre outro [. . . ]? [. . . ] Fazendo-o sofrer. [. . . ] A menos que ele esteja sofrendo,
como você pode ter certeza de que está obedecendo à sua vontade e não a dele? O
poder está em infligir dor e humilhação.”56 Certamente é verdade que os guardas
de Stanford infligiram intencionalmente dor e humilhação a seus prisioneiros.
E, novamente, esses guardas eram seres humanos perfeitamente normais, tanto
quanto se podia verificar de antemão. Portanto, há razões para acreditar que não
é por acaso que os governos têm sido tantas vezes liderados por líderes tirânicos.
Outra lição do experimento de Stanford diz respeito às reações dos outros a
figuras de autoridade. Os prisioneiros do experimento, inicialmente pelo menos
um pouco resistentes, foram reduzidos à submissão no final do experimento.
Eles atenderam a quase todas, mesmo as demandas mais ofensivas emitidas
pelos guardas. Diante disso, isso é intrigante, pois os guardas não tinham poder
real para obrigar os prisioneiros a obedecer. Os guardas eram proibidos de usar
violência e, em qualquer caso, eram, em cada turno, superados numa relação
de três para um pelos presos. Se os prisioneiros se recusassem resolutamente
a obedecer aos guardas, não está claro o que os guardas poderiam ter feito. No
entanto, os prisioneiros obedeceram, apesar da natureza cada vez mais irracional e
ofensiva dos comandos dos guardas e apesar da natureza arbitrária de sua suposta
autoridade. Essa obediência também não deveria ser explicada como resultado
de um senso de obrigação contratual. Embora os sujeitos concordassem em fazer
parte de uma simulação da vida na prisão, não concordaram em obedecer a
todos os comandos da guarda. E mesmo se eles se considerassem obrigados a ser
obedientes até certo ponto, isso não explicaria por que os prisioneiros se tornaram
mais submissos à medida que o estudo prosseguia e as exigências dos guardas
se tornavam mais irracionais. Uma lição a tirar disso é que, psicologicamente,
55
Zimbardo, Haney e Banks 1973, 81.
56
Orwell 1984, 219-20. As observações citadas são do agente da polícia O’Brien, o personagem
que captura e tortura o protagonista do romance para quebrar seu espírito.
6. A Psicologia da Autoridade 128

o poder é auto-validador. Mesmo quando as “autoridades” são selecionadas


arbitrariamente e todo mundo sabe disso, a mera afirmação de autoridade tende
a ser aceita por outros.57 Além disso, quanto mais alguém obedece a uma figura
de autoridade, mais se sente “obrigado” a continuar fazendo isso.

6.8 Conclusão: anatomia de uma ilusão


As intuições padrão sobre autoridade não são confiáveis. Quer se aceite ou não
os argumentos desenvolvidos nos capítulos anteriores deste livro, não se deve
dar muita importância ao mero fato de que a maioria das pessoas acredita em
autoridade política.
Qualquer pessoa que tenha uma visão impopular pode ser desafiada a res-
ponder: “Como tantas pessoas podem estar erradas, enquanto você não?” Essa
pergunta deve ser levada a sério. Se a resposta é apenas que os seres humanos são
falíveis e que a grande maioria das outras pessoas cometeu coincidentemente o
mesmo erro nessa questão específica, isso geralmente será implausível por razões
diretas de probabilidade. Não acredito que muitos que aceitam autoridade polí-
tica tenham cometido esse erro por acaso. Acredito que existam características
específicas da mente humana e da situação em que a maioria das pessoas se
encontra contribuindo para uma ilusão moral de autoridade. Compare a crença
generalizada, antes de Copérnico e Galileu, de que o sol orbitava a terra. Este
não foi um erro casual; não é que tantas pessoas tenham escolhido a resposta
errada para a questão da estrutura do cosmos. Havia uma explicação comum
para as crenças errôneas em tantas mentes – grosso modo, parece que o sol está
se movendo ao redor da terra. Podemos caracterizar isso como uma ilusão per-
ceptiva – um caso em que existe uma tendência sistemática para que as coisas
pareçam, para observação casual, contrárias ao que realmente são. Nesses casos,
devemos esperar que a maioria das pessoas assuma erroneamente que as coisas
são como parecem, a menos e até que recebam informações para corrigir a ilusão.
Os seres humanos também podem sofrer de ilusões cognitivas, nas quais as
coisas parecem para a mente (não-perceptivamente) de outra forma que não são.
Por exemplo, um procedimento médico com uma taxa de sucesso de 80% soa
melhor para a maioria das pessoas do que um procedimento com uma taxa de
falha de 20%. Foi demonstrado que essa abordagem faz diferença nos julgamentos
práticos das pessoas sobre situações realistas.58 Uma espécie de ilusão cognitiva
é de particular interesse para nós aqui: a das ilusões morais. São casos em que
temos uma tendência sistemática de ver algo como certo (ou errado) quando
57
Milgram (2009, 139-40) observa, da mesma forma, que a mera designação como figura de
autoridade normalmente é suficiente para garantir a obediência de outras pessoas.
58
Tversky e Kahneman 1981.
6. A Psicologia da Autoridade 129

na verdade não é. Ao longo da história, nossos antepassados foram sujeitos a


ilusões morais generalizadas – por exemplo, que as mulheres eram inferiores aos
homens ou que as pessoas de pele escura eram inferiores às de pele clara.59 A
sugestão de que ainda estamos sujeitos a algumas ilusões morais hoje não deveria
surpreender ninguém. Precisamos refletir sobre a que ilusões morais podemos
estar sujeitos, tendo em mente que, pela natureza do caso, elas não parecerão,
por considerações casuais, ilusões.
Superar uma ilusão geralmente requer entender por que as coisas podem
parecer como parecem, mesmo que sejam falsas. Por exemplo, para superar
a crença de que o sol orbita a terra, é importante ver por que isso seria assim,
mesmo que o sol não estivesse se movendo, mas a terra estivesse girando. Da
mesma forma, para superar a ilusão da autoridade política, é importante ver
por que nos parece que existe autoridade política, mesmo que de fato qualquer
Estado nunca tenha tido autoridade genuína.
Sugeri neste capítulo que os seres humanos são equipados com preconceitos
fortes e generalizados em prol da autoridade que operam mesmo quando uma
autoridade é ilegítima ou emite comandos ilegítimos e indefensáveis. Como
vimos, os indivíduos confrontados com as demandas das figuras de autoridade
podem sentir uma compulsão quase incondicional de obedecer, e isso pode levá-
los a procurar explicações sobre por que a autoridade é legítima e por que são
moralmente obrigados a obedecer. As pessoas costumam aderir instintivamente
àqueles que exercem o poder, e há até casos em que as pessoas se vinculam
emocionalmente a outras pessoas (como sequestradores) que detêm um poder
grande, mas completamente injustificado sobre elas, adotando as perspectivas e
os objetivos daqueles que detêm o poder. Uma vez iniciado o padrão de obediên-
cia, a necessidade de minimizar a dissonância cognitiva favorece a obediência
contínua e a adoção de crenças que racionalizam os mandamentos da autoridade
e a própria obediência a eles. Devido a um viés geral do status quo, uma vez que
uma prática ou instituição se estabeleça em alguma sociedade, é provável que
essa prática seja vista pelos membros dessa sociedade, quase automaticamente
como normal, correta e boa.
Nada disso, por si só, mostra que as instituições políticas existentes são ilegíti-
mas. Mas isso sugere fortemente que seriam amplamente aceitas como legítimas,
mesmo que não fossem. As teorias de autoridade criadas pelos filósofos políti-
cos podem ser vistas plausivelmente como tentativas de racionalizar intuições
comuns sobre a necessidade de obediência, onde essas intuições são o produto
de preconceitos sistemáticos.

59
Consulte a Seção 13.1 e a Seção 13.4 para obter mais exemplos.
7

E se Não Existir Autoridade?

Se não há autoridade, segue-se que devemos abolir todos os governos? Não.


A ausência de autoridade significa, grosso modo, que os indivíduos não são
obrigados a obedecer à lei apenas porque é a lei e/ou que os agentes do Estado
não têm o direito de coagir os outros simplesmente porque são agentes do Estado.
Ainda pode haver boas razões para obedecer à maioria das leis, e os agentes do
Estado ainda podem ter razões adequadas para se engajarem em ações coercitivas
suficientes para manter um Estado. Se os argumentos dos capítulos anteriores
estiverem corretos, as circunstâncias e propósitos que justificariam a coerção por
parte do Estado são justamente as circunstâncias e propósitos que justificariam a
coerção por parte de agentes privados. Resta ver se algumas organizações estão
justificadas em participar de atividades semelhantes a algo como um Estado para
se qualificarem como Estados. Na terminologia da filosofia política contemporâ-
nea, até agora defendi o anarquismo filosófico (a visão de que não há obrigações
políticas), mas ainda tenho que defender o anarquismo político (a visão de que
o governo deve ser abolido).1
O objetivo do presente capítulo é discutir as implicações práticas de um anar-
quismo filosófico, mas não político. Ou seja, suponha que alguém aceite os
argumentos dos capítulos anteriores, mas acredite (contrariamente aos argu-
mentos nos capítulos seguintes) que o governo é necessário para uma sociedade
decente. Nesse caso, que conclusões práticas se deve tirar?
1
Embora eu tenha seguido a terminologia estabelecida aqui, deve-se notar que a terminologia
é enganosa, pois sugere falsamente que uma das doutrinas é filosófica, mas não política, enquanto
a outra é política, mas não filosófica. De fato, ambos os tipos de “anarquismo” são reivindicações
filosóficas e políticas.

130
7. E se Não Existir Autoridade? 131

7.1 Algumas implicações políticas


Se não existir autoridade política, então a grande maioria das leis é injusta, porque
elas aplicam coerção contra indivíduos sem justificativa adequada. Existem
muitas leis desse tipo para mencionar cada uma delas. Aqui, brevemente, mostro
alguns dos exemplos mais importantes.

7.1.1 Prostituição e moralismo legal


As leis moralistas proíbem algum comportamento com base no fato de que o
comportamento é “imoral”, mesmo que não prejudique ou viole os direitos de
alguém. Os exemplos mais óbvios são as leis contra a prostituição e o jogo. Como
devemos enxergar essas leis?
A autoridade política é um status moral especial, colocando o Estado acima
de todos os agentes não estatais. Se rejeitarmos essa noção, devemos avaliar a
coerção estatal da mesma maneira que avaliamos a coerção de outros agentes.
Para qualquer ato coercitivo do Estado, devemos primeiro perguntar qual motivo
o Estado tem para exercer coerção dessa maneira. Deveríamos então considerar
se um indivíduo ou organização particular seria justificado exercendo um tipo e
grau de coerção semelhantes, com efeitos semelhantes nas vítimas, por razões
semelhantes. Se a resposta for não, a coerção pelo Estado também não se justifica.
Considere uma história sobre três indivíduos particulares. Jon quer fazer sexo
com Mary. Mas Mary não gosta de Jon tanto quanto ele gosta dela. O que ela
gosta é de dinheiro, o qual Jon tem. Então, Mary diz a Jon que está disposta a
fazer sexo com ele, desde que ele lhe dê $300. Isso fará valer a pena para ela. Jon
concorda e eles concluem a transação. Mais tarde, um de seus vizinhos, Sam,
descobre o que aconteceu. Sam acha que as pessoas deveriam fazer sexo apenas
por procriação ou prazer sensorial; o pensamento de pessoas fazendo sexo por
dinheiro o deixa com raiva. Então Sam vai até a casa de Mary com sua arma. Ele
aponta a arma para Mary e ordena que ela o acompanhe até sua casa. Uma vez
lá, ele a tranca no porão pelos próximos seis meses.
Acontece que Mary não era da vizinhança; Jon a convencera a vir de fora da
cidade para fazer sexo com ele. Quando Sam descobre isso, fica furioso. Ele
sequestra Jon com uma arma e o tranca no porão pelos próximos 20 anos.
O que quer que alguém pense de Jon e Mary, o comportamento de Sam nesta
história está claramente errado. Talvez Mary e Jon estejam fazendo algo ruim
(embora não esteja claro o quê); Nesse caso, seria apropriado que Sam lhes
explicasse o que vê como problemático sobre o comportamento deles, em um
esforço para convencê-los a parar. Se não pode convencê-los, no entanto, coerção
e sequestro não são respostas apropriadas.
7. E se Não Existir Autoridade? 132

O comportamento de Sam nesta história é análogo ao do governo em países


onde a prostituição é ilegal. Os seis meses de prisão de Mary não são diferentes
do que uma prostituta pode esperar sofrer. É certo que Jons raramente são
processados e raramente cumprem pena na prisão. Os 20 anos de prisão de Jon
são, no entanto, uma alusão à lei federal dos EUA, que prevê uma sentença de
prisão de até 20 anos por “seduzir” alguém a cruzar as fronteiras de um Estado
com o objetivo de prostituição.2 Vale ressaltar como absurdamente punitivas são
algumas leis. Mas o ponto principal não é que as sentenças sejam muito altas; o
ponto principal é que nenhuma coerção é justificada para impedir um casal de
trocar voluntariamente sexo por dinheiro.

7.1.2 Drogas e paternalismo


As leis paternalistas restringem o comportamento dos indivíduos para o seu
próprio bem. Certos medicamentos, por exemplo, são proibidos, principalmente
por serem prejudiciais ao usuário. Eles podem prejudicar a saúde ou o relaciona-
mento do usuário com outras pessoas; podem fazer com que o usuário perca o
emprego, abandone a escola ou tenha uma vida menos bem-sucedida.
Essas são razões adequadas para proibir o uso de drogas? A proibição de
drogas significa que usuários e vendedores estão sujeitos a ameaças coercitivas
por parte do Estado. Aqueles que são capturados são frequentemente forçados
a passar anos de suas vidas na prisão. Para a maioria dos leitores, ser enviado
para a prisão provavelmente seria a pior coisa que eles já experimentaram. Isso
é particularmente preocupante nos Estados Unidos, onde mais de meio milhão
de pessoas são presas por delitos de drogas.3 Para justificar a imposição de um
dano tão grande, as razões da proibição teriam que ser muito fortes.
Considere outra história sobre Sam. Sam se opõe ao tabagismo devido a seus
graves danos à saúde. Não contente apenas em evitar o próprio cigarro, proclama
à sua comunidade que ninguém pode fumar. Após a proclamação, Sam lhe pega
fumando, lhe sequestra com uma arma e lhe tranca no porão. Você divide o porão
com ladrões, estupradores e assassinos pelo próximo ano, até ser libertado. A
pessoa que vendeu os cigarros está trancada no porão pelos próximos seis anos.
Sam agiu corretamente? É difícil imaginar alguém dizendo isso. O desejo de
impedir que outras pessoas prejudiquem sua saúde dessa maneira dificilmente
parece uma justificativa adequada para coerção e sequestro, muito menos por
2
U.S. Code, Título 18, seção 2422: “Quem conscientemente persuade, induz, seduz ou coage
qualquer indivíduo a viajar em comércio interestadual ou estrangeiro, ou em qualquer Território
ou Posse dos Estados Unidos, a se envolver em prostituição ou qualquer atividade sexual pelas
quais qualquer pessoa possa ser acusada de um crime, ou tentar fazê-lo, serão multadas sob este
título ou presas por não mais de 20 anos ou ambas”.
3
Ver Huemer 2010a, 361–2.
7. E se Não Existir Autoridade? 133

roubar meses ou anos da vida de alguém. Mas a ação de Sam não foi pior do que
a que o governo atualmente faz com os infratores. O tabaco é cerca de sete vezes
mais mortal (em média, por usuário) do que as drogas ilegais, então Sam tem
uma justificativa muito mais forte pelo que faz do que o governo pelo que faz.4
Alguns defensores da proibição enfatizam os efeitos nocivos não-medicamentosos
que as drogas podem ter na vida de alguém. Para levar isso em consideração,
imagine que Sam também cuide das pessoas nesses outros aspectos; quando ele
aprende sobre alguém que prejudicou o relacionamento dela com outras pessoas
sem uma boa razão, ele sequestra essa pessoa e a mantém em cativeiro no porão.
Da mesma forma, para aqueles que perdem o emprego ou abandonam a escola
por culpa própria. (Adicione outros eventos negativos da vida, do tipo que o
abuso de drogas pode causar.) Sam adverte explicitamente as pessoas contra
esses comportamentos e só pune as pessoas que violarem suas ordens de maneira
consciente e voluntária. O motivo de Sam para punir essas pessoas seria mais
forte do que o Estado para punir os infratores, já que as drogas só têm chance
de causar danos a seus relacionamentos, perder o emprego e assim por diante,
enquanto Sam castiga apenas as pessoas que de fato prejudicou conscientemente
seus relacionamentos, perdeu seus empregos e afins. No entanto, o comporta-
mento de Sam parece ultrajante. O desejo de impedir que as pessoas prejudique
suas próprias vidas dessa maneira não constitui fundamento adequado para
coerção.5
Existem muitas outras leis paternalistas sobre as quais argumentos seme-
lhantes podem ser feitos. Em geral, o paternalismo é justificado apenas em
circunstâncias extremas – por exemplo, se uma pessoa está prestes a se jogar de
uma ponte, pode-se justificar coercivamente impedi-la de se jogar, pelo menos o
tempo suficiente para descobrir por que ela quer se matar e se tem uma mente
sã. A coerção não se justifica meramente porque outra pessoa deseja fazer uma
escolha imprudente do tipo que as pessoas normais costumam fazer na vida
cotidiana. Aqui estão alguns outros exemplos de paternalismo jurídico.

• Leis de medicamentos prescritos. Essas leis impedem que alguém compre


certos medicamentos sem a aprovação de um médico, e a lógica aparente é
que os pacientes usariam medicamentos perigosos e desnecessários.

• Subvenções e empréstimos a juros baixos para educação universitária. Em-


bora a lógica saliente desses programas seja de redistribuição de riqueza,
elas também têm um elemento paternalista. Os destinatários não rece-
bem simplesmente dinheiro para fazer o que quiserem, presumivelmente
4
Ver Huemer 2010a, 356–7.
5
Ver Huemer 2010a para elaboração.
7. E se Não Existir Autoridade? 134

porque muitos usariam os fundos imprudentemente; portanto, os fundos


dependem da faculdade dos destinatários.

• Seguro Social. Dizem que as pessoas devem ser forçadas a economizar para
a aposentadoria; caso contrário, elas tolamente deixarão de economizar.
Também é dito às vezes que o programa de aposentadoria deve ser adminis-
trado pelo governo, pois, caso contrário, as pessoas investem seu dinheiro
de maneira tola e o perdem.

• Leis de licenciamento. Essas leis impedem as pessoas de vender determina-


dos serviços sem autorização do Estado – por exemplo, praticar medicina
sem licença ou praticar advocacia sem admissão na guilda. Por que não
exigir que os provedores de serviços divulguem se foram licenciados e
permita que os consumidores escolham se devem utilizar provedores não
licenciados? A preocupação é que muitos consumidores optem tolamente
por utilizar serviços de médicos, advogados e outros não qualificados.

Como esses exemplos ilustram, o paternalismo legal é bastante difundido na


sociedade ocidental moderna. Todas essas são leis injustificadas.

7.1.3 Rent seeking


O rent seeking é um comportamento projetado para extrair riqueza de outras
pessoas, especialmente através do veículo do Estado, sem fornecer benefícios
compensatórios em troca.6 O exemplo mais direto é uma empresa que faz lobby
com o governo em busca de subsídios. Mas muitas das políticas que exemplificam
o paternalismo legal também são motivadas em parte pelo rent seeking. Considere
o seguinte.

• Leis de medicamentos prescritos. Essas leis transferem dinheiro dos con-


sumidores para médicos e farmacêuticos. Se uma pessoa deseja comprar
um medicamento, deve primeiro pagar um médico para vê-lo e dar-lhe
permissão para comprar o medicamento.

• Subsídios para educação universitária. Isso aumenta a demanda por ensino


superior muito acima do nível do mercado e, portanto, transfere recursos
para faculdades e universidades. (O autor é grato pelos fundos que você
forneceu a ele.)
6
Tullock 1987.
7. E se Não Existir Autoridade? 135

• Seguro Social. Eu disse acima que o Seguro Social poderia ser encarado
como um programa para forçar as pessoas a economizarem para a apo-
sentadoria. Também pode ser visto, talvez com mais precisão, como um
sistema de pagamentos por transferência de jovens para idosos.

• Licenciamento. As leis de licenciamento colocam um obstáculo para entrar


em uma determinada profissão, diminuindo assim a competição enfrentada
pelos praticantes atuais. Isso aumenta os preços e beneficia os praticantes
existentes às custas dos consumidores e daqueles que desejam ingressar na
profissão.7

Qual é o status moral de tais leis? Suponha que estendamos a história de Sam
da seguinte maneira. Sam tem um amigo chamado Archer Midland. Archer pede
ajuda financeira a Sam, então Sam sai, agride algumas pessoas e dá o dinheiro
a Archer. Obviamente, esta ação está errada. O desejo de lucrar às custas dos
outros não é uma justificativa adequada para a coerção.

7.1.4 Imigração
Marvin precisa de comida, sem a qual sofrerá desnutrição ou fome.8 Ele planeja
viajar para um mercado próximo, onde poderá comercializar por comida. Mas
antes que possa chegar ao mercado, é abordado por Sam, que não quer que
Marvin negocie no mercado, por dois motivos. Primeiro, a filha de Sam vai
fazer compras no mercado, e Sam teme que Marvin possa aumentar o preço da
comida. Alguns fornecedores podem até ficar sem pão se muitas pessoas vierem
ao mercado. Segundo, Marvin vem de uma cultura diferente da maioria das
pessoas que frequentam o mercado, e Sam teme que Marvin possa influenciar
outras pessoas e, assim, alterar a cultura do mercado. Sam decide resolver o
problema pela força. Aponta sua arma para Marvin e ordena que Marvin saia
dali. O faminto Marvin é forçado a voltar para casa de mãos vazias.
As razões de Sam para coagir Marvin nesta história são claramente inadequa-
das. Além disso, Sam será culpado por qualquer dano que Marvin sofra como
resultado de não conseguir chegar ao mercado; serão danos que Sam infligiu
a Marvin. Se Marvin morrer de fome, então a culpa é de Sam. Isso é verdade,
apesar de Sam não ser responsável pela situação inicial de Marvin de sentir fome
e não ter comida; é verdade porque Sam ativamente impediu Marvin de obter
comida. Se uma pessoa está morrendo de fome e você se recusa a dar-lhe comida,
então você deixou que ela morresse de fome. Mas se você der o passo extra de
interferir coercivamente na dinâmica dele obter comida de outra pessoa, então
7
Ver Friedman 1989, 42-4, para discussão.
8
Este exemplo é de Huemer 2010b, que defende o argumento desta subseção em detalhes.
7. E se Não Existir Autoridade? 136

você não permitiu que ele apenas morresse de fome; você o impediu de se alimen-
tar. O mesmo ponto se aplica a danos menores: se, por exemplo, Marvin apenas
sofrer desnutrição por não conseguir chegar ao mercado, Sam terá infligido esse
dano a ele.
O comportamento de Sam na história é análogo ao do governo de qualquer
país moderno que exclui imigrantes pobres. Potenciais imigrantes de países em
desenvolvimento passam a participar dos mercados dos países mais ricos. Os
governos dos países mais ricos rotineiramente excluem à força esses imigrantes
em potencial. Como resultado, muitos sofrem por perspectivas de vida muito
reduzidas. O governo não permite apenas que ocorram danos a esses imigrantes
em potencial. Se o governo apenas se mantivesse passivo e se recusasse a dar
ajuda a imigrantes em potencial, isso permitiria que ocorressem danos. Mas
não permanece passivo quando o governo de todos os países ricos do mundo
contrata deliberadamente guardas armados para excluir ou expulsar à força
pessoas indesejadas. Essa intervenção coercitiva constitui uma imposição ativa
de danos a eles, assim como Sam causa danos a Marvin na história acima.
Os motivos mais comuns dados para a restrição de imigração são dois. Pri-
meiro, que novos imigrantes competem com os americanos (ou locais) existentes
no mercado de trabalho, diminuindo assim os salários por mão de obra não
qualificada e dificultando a procura de emprego pelos trabalhadores americanos.
Segundo, se muitos imigrantes entrarem no país, alterarão a cultura do país. A
primeira preocupação é análoga à preocupação de Sam sobre a concorrência de
Marvin com a filha dele no mercado. Não é permitido usar força contra outra pes-
soa simplesmente para impedir que terceiros sofram desvantagens econômicas
através da concorrência normal no mercado. A segunda preocupação é análoga
à preocupação de Sam sobre a cultura do mercado. Não é permitido usar força
contra outra pessoa simplesmente para impedir que ela influencie a cultura da
sociedade de maneiras indesejadas.

7.1.5 A proteção dos direitos individuais


Existem políticas governamentais imunes ao estilo de crítica implantado nas
subseções anteriores?
As políticas isentas de minhas críticas geralmente são políticas que servem
para proteger os direitos dos indivíduos. Por exemplo, pessoas que desejam
cometer assassinato estão sujeitas a ameaças coercitivas por parte do Estado.
Assassinos pegos é forçado a passar anos em confinamento. Mas isso não é
de todo injusto. Os indivíduos têm o direito de não serem assassinados, e é
apropriado se defender pela força.
Por que não se pode implantar aqui o mesmo estilo de argumento usado nas
subseções anteriores? Imagine que um indivíduo particular, Sam, emita uma
7. E se Não Existir Autoridade? 137

proclamação à sua comunidade de que ninguém pode matar alguém. Um dia,


Sam descobre que alguém cometeu um assassinato. Sam leva o assassino em
cativeiro à mão armada e confina o assassino em seu porão por um período de
anos. Sam agiu corretamente?
Nesse caso, diferentemente dos episódios anteriores que envolvem Sam,
parece-me que o comportamento de Sam é permitido, e até louvável.
Alguns se sentem desconfortáveis com esse tipo de ação de vigilante, por
dois motivos. Primeiro, alguém pode ficar preocupado com a confiabilidade
de Sam na identificação dos culpados. Quando vigilantes particulares exigem
justiça, eles podem identificar mal os criminosos e acabar punindo os inocentes.
Segundo, na maioria das sociedades, o vigilantismo de Sam seria desnecessário,
pois existem forças policiais e tribunais para punir os culpados. Essas são as
razões mais importantes para se opor à justiça dos vigilantes na maioria das
circunstâncias.
Para deixar essas preocupações de lado, estipulemos que não existem outros
mecanismos estabelecidos para lidar com assassinos na sociedade de Sam. Se
Sam não perseguir os assassinos, os assassinos terão rédea mais ou menos livre.
Suponha também que Sam tenha procedimentos cuidadosos para verificar a
culpa das partes a quem castiga. Ele tem um longo processo de revisão de
evidências, no qual o acusado tem todas as oportunidades para questionar as
evidências contra ele e apresentar evidências em seu próprio favor. O processo é
cuidadoso, confiável e aberto ao escrutínio público. Nesse caso, não vejo objeção
ao comportamento de Sam.
O comportamento de Sam nesta última história é análogo ao de um governo
que persegue assassinos, dá-lhes julgamentos justos e públicos e os aprisiona.
Não há nada censurável em tal prática. O mesmo vale para políticas destina-
das a proteger a sociedade de vários outros tipos de criminosos, como ladrões,
estupradores e outros criminosos violentos.
Um argumento semelhante pode ser feito sobre a defesa militar. Os invasores
de um país estrangeiro são simplesmente um grupo grande e bem organizado
de ladrões e assassinos, e é apropriado usar a força contra eles em defesa de si e
dos vizinhos.
Não tentarei aqui catalogar todas as ações que o Estado possa justamente usar
a coerção para impedi-las. Tipos particulares de ação devem ser julgados usando
nossas intuições éticas comuns e aplicando o princípio geral de que é permitido
ao Estado proibir alguma ação se, e somente se, for permitido a um indivíduo
privado usar a força para impedir ou retaliar por esse tipo de ação, supondo que
o indivíduo use métodos confiáveis para identificar os culpados e não tivesse
melhores alternativas disponíveis.
7. E se Não Existir Autoridade? 138

7.1.6 Tributação e financiamento do governo


Como um governo pode financiar suas atividades? O principal método agora
usado é a extração coercitiva de dinheiro da população (tributação). A prevalên-
cia desse método de financiamento provavelmente é devida ao fato de ser um
método muito confiável de coletar quantias muito grandes de dinheiro. Porém,
normalmente não é permitido extrair coercivamente dinheiro de outras pessoas,
mesmo que você tenha um bom uso para o dinheiro. Diante disso, portanto, a
tributação parece inadmissível.
Essa inferência, no entanto, parece pressupor que os indivíduos têm justa-
mente o direito, prima facie, a sua renda antes dos impostos. Thomas Nagel e
Liam Murphy contestaram essa suposição. Eles acreditam que os direitos de
propriedade são criados por leis governamentais e, portanto, só se tem direitos
de propriedade naquelas coisas às quais as leis do Estado concedem uma propri-
edade. Ao criar leis tributárias, o Estado molda os direitos de propriedade que os
indivíduos têm, de modo que eles possuem apenas sua renda após os impostos.9
Em resposta, existem três pontos de vista que se pode ter em relação aos
direitos de propriedade. Primeiro, alguém pode sustentar que os direitos de
propriedade são naturais, isto é, direitos morais que existem antes do Estado.
John Locke, por exemplo, sustentou que os indivíduos têm justamente os frutos
de seu trabalho, mesmo em uma sociedade pré-governamental.10 Sob esse ponto
de vista, a tributação parece ser uma injustiça prima facie, por qualquer que seja a
maneira eticamente correta de adquirir propriedades, presumivelmente, não é
extração forçada de bens mantidos por terceiros.
Segundo, pode-se afirmar que os direitos de propriedade são parcialmente
naturais, pois existem certos princípios amplos de propriedade que são válidos
independentemente das leis governamentais, mas que existem muitos detalhes de
um regime de direitos de propriedade que não são resolvidos por esses princípios
morais gerais. Por exemplo, talvez nossos direitos morais inerentes determinem
que temos direito aos frutos de nosso trabalho, mas esses direitos não determi-
nam em que altitudes se pode pilotar um avião sobre a terra de outra pessoa.
Pode-se afirmar que são necessárias leis criadas pelo Estado para resolver tais
questões de detalhes. Essa visão ainda oferece pouco conforto ao defensor da
tributação, para o direito de um agente extrair coercivamente grandes quantida-
des de recursos do restante da população esse tipo de detalhe (como a altitude
em que se pode sobrevoar a propriedade de outros) pode ser plausivelmente
deixado indeterminado pelos princípios morais básicos da propriedade.
Terceiro, pode-se afirmar que não há direitos de propriedade natural. Nagel
e Murphy assumem que isso significa que os direitos de propriedade são criados
9
Murphy e Nagel 2002, p. 173–7. Compare Holmes e Sunstein 1999, capítulo 3.
10
Locke 1980, capítulo 5.
7. E se Não Existir Autoridade? 139

por decreto governamental. Isso é plausível apenas para quem pressupõe uma
forte doutrina de autoridade política. Nagel e Murphy atribuem ao Estado um
direito moral, decorrente de seu poder de criar direitos de propriedade, para
impor coercivamente a distribuição de recursos escolhida. Como nenhum agente
não governamental pode declarar uma distribuição de recursos e um regime de
direitos de propriedade e depois aplicá-los coercivamente, o direito do Estado
de fazê-lo exigiria legitimidade política. Ao mesmo tempo, a criação pelo Estado
de um regime de direitos de propriedade provavelmente imporia obrigações por
parte dos cidadãos de respeitar esse regime. Essas seriam obrigações políticas. Se,
portanto, o Estado não tem autoridade, então não tem o poder de criar direitos
de propriedade, como Murphy e Nagel supõem.
O resultado parece ser que, mesmo depois do Estado fazer suas leis, ainda não
há direitos de propriedade. (Se alguém considera essa conclusão implausível,
deve retornar à visão de que existem direitos de propriedade naturais.) Pode-
se pensar que a rejeição dos direitos de propriedade deixa o caminho aberto
para a tributação: uma vez que os pagadores de impostos não têm o direito de
“sua” riqueza, a apreensão de parte dessa riqueza não parecerá mais como uma
violação de direitos. Mas, da mesma forma, o Estado também não terá direito a
essa riqueza e, portanto, os cidadãos não fazem nada errado ao retê-la. Enquanto
isso, existem os danos que o Estado impõe coercivamente aqueles que não pagam
impostos, e esses parecem ser injustiças prima facie.
Em suma, o defensor da tributação deve sustentar que o Estado, e não os
pagadores de impostos, tem justamente o direito às receitas tributárias que o
Estado recebe. Não há maneira plausível de defender essa visão, a menos que
alguém assuma uma doutrina de autoridade política.
Como um governo poderia financiar suas atividades sem tributação? Uma
alternativa seria o Estado cobrar taxas por seus serviços. O Estado pode cobrar
por cada serviço prestado ou definir uma taxa única para cobrir todos os serviços
do governo. Suponha que o Estado estabeleça uma taxa anual única por seus
serviços. Aqueles que não pagassem a taxa seriam excluídos da maioria dos
serviços governamentais ao longo do ano – por exemplo, poderiam não conseguir
entrar com ações judiciais nos tribunais do governo e não poderiam chamar a
polícia do governo para investigar ou protegê-los de crimes contra eles. Pode ser
fornecida proteção policial para prédios e bairros que pagaram a taxa apropriada,
com associações de proprietários coletando os fundos para pagar pela proteção
de um determinado bairro. O Estado poderia estabelecer uma política que, se
um crime fosse cometido em um prédio ou bairro que não tivesse pago a taxa
de segurança governamental, a polícia e os tribunais não fariam nada a respeito.
Desde que o Estado fosse razoavelmente bom em seu trabalho e suas taxas fossem
razoáveis, a maioria dos cidadãos, por razões óbvias, escolheria pagar.
7. E se Não Existir Autoridade? 140

Algumas pessoas, quando expostas a essa ideia pela primeira vez, pensam
que a proposta equivale à extração coercitiva de fundos dos cidadãos, assim como
certamente faz a tributação, pois indivíduos que não pagarem as taxas do Estado
estariam sujeitos a um sério risco de violência. Isto é um erro. Sob o atual regime
tributário, o próprio Estado inflige danos àqueles que não pagam seus impostos.
De acordo com o esquema de taxa por serviço que propus, o Estado não protege
contra os danos aqueles que se recusam a pagar a taxa necessária, mas ele próprio
não lhes causa danos. Considere uma analogia. Os médicos prestam assistência
médica por um preço. Eles geralmente não prestam assistência àqueles que não
os pagam, mas não estão coagindo todos que não compram seus serviços; se
você não contratar um médico, ele não virá e o infectará com uma doença. O
modelo de honorários por serviços financeiros do governo é como o sistema no
qual os médicos prestam assistência médica apenas àqueles que os contratam. O
sistema tributário é como um sistema no qual os médicos dão doenças àqueles que
não os contratam. Como esse modelo alternativo de financiamento do governo
não foi tentado, sem dúvida haverá muitas questões levantadas sobre ele. Não
posso explorar a proposta em detalhes aqui, mas mencionarei brevemente três
questões óbvias. Uma delas diz respeito a quanto dinheiro o governo poderia
esperar obter através de taxas voluntárias. No ano fiscal de 2010, o governo
federal dos EUA gastou aproximadamente US$ 3,7 trilhões, ou cerca de um
quarto do PIB.11 Um esquema de pagamento voluntário pode não ser capaz
de suportar despesas tão grandes. A melhor solução para esse problema seria
reduzir drasticamente os gastos do governo, de acordo com a gama muito limitada
de atividades governamentais que achamos justificadas.
Outra preocupação é que as pessoas pobres possam ser incapazes de pagar
as taxas do governo e, portanto, ficarão com ainda menos proteção do que atu-
almente. No entanto, o Estado não precisa cobrar o mesmo preço a todos os
cidadãos. Esquemas diferenciais de preços geralmente ocorrem mesmo no mer-
cado livre, como no caso de cinemas que cobram preços mais baixos para idosos
e estudantes. Mais exatamente, aqueles com casas caras pagam rotineiramente
mais pelo seguro de propriedade do que aqueles com casas baratas. Na mesma
linha, os ricos estariam dispostos a pagar mais pela proteção de suas pessoas e
propriedades do que os pobres pagariam ou poderiam pagar.
Outra questão é se o Estado teria o direito de proibir indivíduos ou organiza-
ções não estatais de vender serviços semelhantes aos do Estado. Por exemplo,
as empresas de segurança privada poderiam fornecer segurança para pessoas
que não pagaram as taxas do governo? Se tal competição fosse permitida, muitos
cidadãos poderiam optar pela segurança privada, talvez economizar dinheiro
ou obter melhores serviços. Se um número suficiente de pessoas se comportar
11
U.S. Census Bureau 2011b, 310, tabela 467.
7. E se Não Existir Autoridade? 141

dessa maneira, é possível que o governo seja expulso dos negócios. Na minha
opinião, essa competição deve ser permitida, e isso fornece a chave para a pro-
posta anarquista política dos próximos capítulos. No entanto, o presente capítulo
é para aqueles que acreditam que qualquer esquema de provisão de segurança
concorrente sem uma autoridade central única seria socialmente desastroso.
Nesse pressuposto, o Estado poderia proibir justamente a provisão privada de
segurança. Normalmente, é errado coagir os outros, mas essa coerção pode ser
justificada quando é necessário impedir que algo muito pior aconteça.
Um ponto semelhante se aplicaria se o modelo de taxa de serviço das finanças
públicas fosse, por algum motivo, impraticável. Se a tributação fosse necessária
para evitar uma catástrofe social, o Estado estaria justificado em tributar. No
entanto, o modelo de taxa por serviço, se praticável, tem a vantagem em termos
de justiça, uma vez que reduz a quantidade de coerção do governo. Por esse
motivo, os governos deveriam pelo menos tentar implementar esse modelo e só
deveriam recorrer à tributação caso falhassem esses esforços sérios de boa-fé no
financiamento voluntário.

7.2 O caso da ajuda aos pobres


7.2.1 Bem-estar e criança afogando
Muitas políticas governamentais servem para redistribuir a riqueza dos ricos
para os pobres. Essa classe de políticas aparece na teoria social contemporânea,
ofuscando todos os outros tipos de política nas discussões sobre justiça social.
Dedico a presente seção a abordar o que considero o argumento mais forte a favor
da redistribuição da riqueza. Esse é um argumento mais humanitário do que
igualitário – ou seja, se concentra no problema de que as necessidades básicas de
algumas pessoas são insatisfatórias e não no alegado problema de que as pessoas
têm níveis díspares de riqueza e renda.12
Imagine que você está passando por um lago onde vê uma criança se afogando.
Se você pode salvar a criança com um pequeno custo para si mesmo, seria errado
não salva-la. Esse exemplo é frequentemente empregado na literatura sobre ética
para motivar o princípio de que, se alguém pode impedir que algo muito ruim
aconteça com pouco custo para si mesmo, é obrigado a fazê-lo. Em particular,
costuma-se dizer que, se tivermos a oportunidade de salvar as pessoas pobres de
sofrer fome, desnutrição ou outros danos sérios a baixo custo para nós mesmos,
devemos fazê-lo.13
12
Ver Huemer 2003 em diante para argumentos contra o igualitarismo.
13
Singer 1993, capítulo 8; Unger 1996.
7. E se Não Existir Autoridade? 142

Mas agora imagine que, por qualquer motivo, você não consiga salvar a criança
no lago. Há, no entanto, outro espectador que poderia salvar a criança com um
pequeno custo para si mesmo. Esse indivíduo, no entanto, não se importa o
suficiente com a criança para salva-la voluntariamente. A única maneira de fazer
com que a criança seja salva é ameaçando o espectador com violência, a menos
que ele salve a criança. Você faz isso e ele salva a criança. Chame isso de caso da
criança afogando. Nesse caso, por mais lamentável que seja o recurso à coerção,
parece justificado.
Isso parece mostrar que é permitido coagir outras pessoas a ajudar pessoas em
perigo, desde que possam fazer a um custo modesto e que não haja outra maneira
de fazer com que as pessoas em perigo sejam ajudadas. Por analogia, alguém
pode argumentar que o Estado está justificado ao usar a coerção para induzir os
cidadãos a ajudar os pobres, como no caso dos programas governamentais de
bem-estar social. Nas subseções a seguir, sugiro três objeções a essa conclusão.

7.2.2 A utilidade dos programas antipobreza


Considere uma variação no caso da criança afogando. Chame isso de caso do
espectador incompetente: como antes, há uma criança se afogando a quem você
não pode ajudar diretamente, mas pode coagir um espectador relutante a agir.
Desta vez, no entanto, suponha que, mesmo se você forçar o espectador a entrar no
lago para puxar a criança para fora, não está claro se a criança será realmente salva
(seja porque a criança já está longe demais, porque o espectador é incompetente,
ou por algum outro motivo). Segundo, suponha que haja uma chance razoável de
que, a caminho de tentar salvar a criança afogando, o espectador acidentalmente
bata numa ou mais crianças no lago e elas acabam se afogando. Você acha
difícil avaliar essas probabilidades; portanto, não está claro se o benefício líquido
esperado de forçar o espectador a “ajudar” é positivo ou negativo. No entanto,
você não suporta a ideia de não fazer nada e, assim, pega sua pistola de confiança
e força o espectador a ir atrás da criança que está se afogando.
Nesse caso, você age errado. Deve haver alguma presunção contra coerção.
No cenário descrito acima, não há um argumento convincente a favor de levar
o espectador a agir, de modo que a presunção contra a coerção permanece. A
conclusão é ainda mais clara se o exemplo for especificado de maneira que você
possa justificar que o benefício esperado de coagir o espectador seja negativo
(ou seja, os danos esperados são maiores que os benefícios esperados). Os pro-
gramas antipobreza do governo são justificados, então, somente se os benefícios
esperados forem positivos e esse fato for razoavelmente claro (ou seja, temos
uma justificativa forte e abrangente para acreditar nisso).14
14
A formulação em termos de “benefício esperado” tem como objetivo permitir a possibilidade
7. E se Não Existir Autoridade? 143

Há um argumento simples e bem conhecido para pensar que os programas de


combate à pobreza são benéficos em geral: os programas de combate à pobreza
redistribuem dinheiro de pessoas mais ricas para pessoas mais pobres. De acordo
com o conhecido princípio da utilidade marginal decrescente do dinheiro, uma
determinada quantidade de dinheiro geralmente trará mais benefícios a uma
pessoa mais pobre do que a uma pessoa mais rica (os pobres precisam mais do
dinheiro). Esses programas redistributivos devem, portanto, fazer mais bem
do que prejudicar.15 Esse argumento teórico tem clara plausibilidade prima facie.
Baseia-se em um princípio econômico muito amplamente aceito e plausível, o da
diminuição da utilidade marginal da riqueza.
Há também vários argumentos plausíveis prima facie para a conclusão oposta.
Charles Murray, o crítico mais influente dos programas governamentais de com-
bate à pobreza, argumenta que esses programas criam um problema de risco
moral (moral hazard).16 Reduzem os custos ou criam benefícios para certas con-
dições sociais, como desemprego e gravidez fora do casamento. Isso reduz a
aversão das pessoas a essas condições, levando mais pessoas a se comportarem
de maneiras mais propensas a levar a essas condições. Murray afirma que, em
vez de ajudar os pobres a se levantarem, os programas governamentais criam
um ciclo de dependência, facilitando, a curto prazo, o engajamento em comporta-
mento autodestrutivo a longo prazo. O impulso geral de seu argumento empírico
é que, à medida que os programas governamentais de combate à pobreza des-
frutavam de enormes aumentos de financiamento e escopo entre as décadas de
1960 e 1980, persistiam pobreza, desemprego, ilegitimidade, crime, educação
deficiente e outros problemas sociais: “em alguns casos, o progresso anterior
diminuiu; em outros casos, houve deterioração leve acelerada; em outros poucos,
o avanço sumiu”.17 Outros cientistas sociais, no entanto, contestaram fortemente
o argumento empírico de Murray.18
Outros argumentos se concentram nos efeitos da redistribuição de riqueza
na produtividade econômica geral. Um argumento frequentemente ouvido no
discurso popular afirma que altos impostos sobre os ricos reduzem o incentivo
para que as pessoas sejam produtivas. Um argumento relacionado e mais sutil
começa com a observação de que as pessoas de alta renda tendem a investir
de um ato coercitivo ser justificado em virtude de apenas reduzir o risco de algo muito ruim.
Não precisa ficar claro que o ato coercitivo de fato impede o mau evento; no entanto, deve ser
pelo menos razoavelmente claro que o ato coercitivo reduz o risco. Se o ato coercitivo criar algum
outro risco, também deve ficar razoavelmente claro que a redução no risco original supera o risco
recém-criado.
15
Lerner 1944, capítulo 3; Nagel 1991, 65.
16
Murray 1984. Ver também Olasky 1992; Schmidtz 1998.
17
Murray 1984, pp. 8–9.
18
Ver Jencks 1992, capítulo 2; Murray e Jencks 1985; Cowen 2002, 39-44.
7. E se Não Existir Autoridade? 144

uma proporção muito maior de sua renda do que as de baixa renda. Portanto, a
redistribuição da riqueza de pessoas de alta a baixa renda reduzirá a taxa total
de investimento de uma sociedade em favor do consumo a curto prazo. Isso
reduzirá a taxa de crescimento econômico de uma sociedade. Mudanças na taxa
de crescimento têm impactos totais exponencialmente maiores à medida que são
combinados com períodos mais longos. Portanto, a menor taxa de crescimento
fará uma diferença muito maior para a riqueza material das gerações futuras.19
Finalmente, deve-se lembrar que os programas governamentais não são má-
quinas sem atrito. Pode ser verdade que um determinado dólar faria mais bem a
uma pessoa pobre do que a uma pessoa rica, mas, uma vez considerados custos
e desperdícios administrativos, é improvável que os programas governamentais
que tiram um dólar de uma pessoa rica deem à pessoa pobre qualquer coisa perto
de todo o dólar.
Todos esses argumentos têm alguma validade: cada um identifica um fa-
tor relevante que tende a promover ou diminuir o bem-estar social. Um fator
importante fala a favor dos programas governamentais de combate à pobreza,
enquanto outros fatores importantes falam contra esses programas. Meu palpite
é que, a longo prazo, o argumento da taxa de investimento vence.
Não posso tentar aqui resolver a questão muito complexa dos efeitos líquidos
dos programas governamentais de combate à pobreza. Sobre essa questão, eu
não tenho nada de importante a acrescentar à literatura existente (consulte as
notas). No entanto, a discussão anterior deve ajudar a explicar por que o assunto
é controverso e por que não é claro, na melhor das hipóteses, que esses programas
sejam benéficos ao invés de prejudiciais. Mas, dada a presunção contra a coerção,
os programas são justificados apenas se estiver claro que tenham um benefício
esperado líquido positivo.
É concebível que, no futuro, alguém planeje programas governamentais de
combate à pobreza que tenham benefícios líquidos claros. Neste momento, a
coerção pode se justificar, dependendo do tamanho dos benefícios, da quantidade
de coerção necessária e assim por diante. No entanto, tendo em mente que os
argumentos teóricos para a nocividade dos programas governamentais de com-
bate à pobreza são baseados em características muito amplas desses programas,
também é provável que ninguém crie programas desprovidos desses problemas.
Suspeito que os únicos programas que realmente produzam grandes benefícios lí-
quidos sejam politicamente inviáveis devido a preconceitos generalizados contra
estrangeiros, conforme sugerido na subseção a seguir.
19
Schmidtz 2000; Cowen 2002, pp. 44–9.
7. E se Não Existir Autoridade? 145

7.2.3 Os programas antipobreza são direcionados adequada-


mente?
Passo agora a outra variação sobre o tema das crianças carentes. Chame isso de
caso da criança com frio: há uma criança desconfortável por causa do ar frio da
noite. Ela precisa de uma jaqueta, mas você não tem jaqueta para dar a ela. Você,
no entanto, tem uma arma e vê um espectador próximo usando uma jaqueta e
um suéter. O espectador não quer desistir de nenhuma de suas roupas. Você
sacou a arma e obrigou o espectador a entregar a jaqueta para a criança.
Enquanto isso, mais longe, há um garoto que está se afogando em um lago
raso. Você está ciente dessa segunda criança e pode coagir o espectador a ajudar
a criança que está se afogando; no entanto, isso interferiria em ajudar a criança
com frio (o espectador precisa sair em breve por razões muito importantes e só
tem tempo para ajudar uma delas). Você gosta mais da criança com frio; ela se
parece mais com você, ela é da sua cidade natal e assim por diante. Assim, você
ajuda a criança com frio, deixando a outra se afogar.
Seu comportamento neste caso é moralmente inaceitável. Existem dois pro-
blemas óbvios: primeiro, o desejo de manter uma criança aquecida não é, na
ausência de uma emergência médica, uma justificativa adequada para assalto à
mão armada. Segundo, se você for usar coerção para ajudar alguém, deve ser a
criança que está se afogando, cujas necessidades são muito mais urgentes.
O governo de uma nação rica está em uma posição semelhante. Alguns de
seus cidadãos são um tanto carentes. Mas há cidadãos muito mais carentes em
outros países. Os pobres americanos, por exemplo, são apenas pobres em relação
a outros americanos; eles geralmente possuem automóveis, televisões a cores,
fornos de microondas e assim por diante. Podem estar com apertos, por exemplo,
de não poder comprar roupas novas ou de não mandar seus filhos para a facul-
dade. Os pobres no mundo em desenvolvimento, no entanto, são absolutamente
pobres. Correm o risco de morrer por causa da fome, desnutrição ou doenças
facilmente evitáveis. No entanto, na maioria das vezes, os governos de países
ricos, como os Estados Unidos, optam por usar seus fundos para ajudar pessoas
em seus próprios países, ignorando principalmente as pessoas mais necessitadas
em outros lugares. As duas atividades estão relacionadas, porque os fundos gas-
tos com pobres domésticos poderiam ter sido gastos com pobres estrangeiros. É
claro que o Estado poderia aumentar sua taxa de impostos para ter mais dinheiro
disponível, mas não importa quão alto o Estado aumentasse suas receitas dentro
da gama de possibilidades plausíveis, ainda assim seria o caso de que todo ou
quase todo esse dinheiro teria que ser gasto com os pobres estrangeiros caso os
fundos fossem alocados de maneira semelhante à necessidade. Como no caso
da criança com frio, a maioria dos programas governamentais de redistribuição
de riqueza parece sofrer de dois problemas. Primeiro, as necessidades que eles
7. E se Não Existir Autoridade? 146

pretendem atender não são suficientemente urgentes para justificar a coerção. A


necessidade de salvar uma pessoa da morte ou ferimentos graves pode justificar
um nível moderado de coerção e violações moderadas dos direitos de proprie-
dade. Mas o desejo de fornecer a uma pessoa roupas de qualidade, educação
universitária ou um ar-condicionado normalmente não é suficiente para justificar
a apreensão coercitiva dos fundos necessários de terceiros inocentes.
Segundo, se o governo quiser instituir programas de ajuda coercitiva, cer-
tamente deve direcionar seus esforços para pessoas cujas vidas estão em grave
perigo, mas que poderiam ser salvas a um custo mínimo, em vez de pessoas com
necessidades muito menos urgentes e muito mais caras para se endereçar. Por
exemplo, estima-se que os programas de suplementação de vitamina A no mundo
em desenvolvimento possam salvar vidas a um custo entre US$ 64 e US$ 500 por
vida salva.20 Para comparação, ao realizar análises de custo-benefício, a Agência
de Proteção dos EUA gasta US$ 6,9 milhões pelo valor de uma vida estatística nos
Estados Unidos.21 O governo poderia doar seus fundos antipobreza a grupos de
caridade que implementam programas extremamente econômicos e que salvam
vidas em países menos desenvolvidos. Certamente programas desse tipo devem
acontecer antes de dar dinheiro a uma família americana cuja renda, embora
baixa pelos padrões americanos, seja muitas vezes maior que a da maioria dos
habitantes do mundo em desenvolvimento.
Alguns argumentam que as prioridades aparentemente perversas do Estado
são justificadas porque o Estado tem responsabilidades especiais para com seus
próprios cidadãos que não se estende aos estrangeiros.22 Isso me parece uma
resposta inadequada. Suponha que adicionemos ao caso da criança com frio a
estipulação de que ela é realmente sua filha, enquanto a criança que se afoga é
um estranho de outro país. Se os governos têm deveres especiais para com seus
próprios cidadãos, os pais têm deveres ainda mais claros e mais fortes para com
seus próprios filhos. Portanto, se fosse uma questão de salvar a vida de uma das
duas crianças, seria apropriado salvar sua filha. Mas você não pode escolher
entre garantir uma jaqueta para manter sua filha aquecida e não salvar a vida de
um estranho.
O argumento desta subseção não tenta mostrar que nenhum programa co-
ercitivo de combate à pobreza poderia ser justificado. O que mostra é que, se o
Estado está moralmente justificado na adoção de tais programas, teriam que ser
20
Horton et al. 2009. Outros programas extremamente econômicos incluem suplementação de
zinco, de ferro e folato, iodização de sal e desparasitação – todos no mundo em desenvolvimento
(Bhagwati et al. 2009).
21
Borenstein 2008. Em outras palavras, a EPA considera uma regulação valiosa se impuser um
custo não superior a US$ 6,9 milhões por cada vida americana que se espera salvar.
22
Ver Goodin, em 1988 (mas observe a última frase do artigo, que chega perto de desconsiderar
o que o restante do artigo parecia defender). Veja também Wellman 2000.
7. E se Não Existir Autoridade? 147

muito diferentes dos programas realmente encontrados nos países ricos. Eles se
concentrariam em pessoas extremamente carentes e com impactos baratos em
países estrangeiros. Os programas existentes são quase inteiramente voltados
para as pessoas e os problemas errados.

7.2.4 Um choque de analogias: criança afogando e assalto para


caridade
O caso da criança afogando é a analogia mais próxima que podemos encontrar
dos programas governamentais de combate à pobreza? Considere o caso do
assalto para caridade: você iniciou uma instituição de caridade para fornecer
assistência monetária aos pobres. Para coletar os fundos necessários, você assalta
pessoas na rua.
Isso parece claramente inadmissível. Agora, suponha, por uma questão de
argumento, que sua ação coercitiva no caso da agressão por caridade seja inad-
missível, mas sua ação coercitiva no caso da criança afogando seja permitida.
Qual caso fornece uma analogia mais próxima aos programas governamentais
de combate à pobreza?
Em face disso, se quisermos escolher um dos casos como uma analogia mais
próxima, deve ser o assalto para caridade. No assalto para caridade, a ação
coerciva é tomada a serviço exatamente do mesmo tipo de programa que os pro-
gramas governamentais em questão, ou seja, um programa de ajuda econômica
direta aos pobres. O ato coercitivo também é do mesmo tipo que nos programas
governamentais: extração forçada de dinheiro. Nenhuma dessas coisas é ver-
dadeira no caso da criança afogando. Portanto, se aceitarmos intuições comuns
sobre a criança afogando e o assalto para caridade, devemos concluir que os
programas governamentais de combate à pobreza são inadmissíveis.
Alguns filósofos argumentariam, no entanto, que o caso da criança afogando
e o caso do assalto para caridade não têm diferenças moralmente significativas:
ambos são casos em que um coage outra pessoa para garantir ajuda a terceiros
carentes, e isso é tudo o que importa. Como esses casos são claramente análogos
entre si, diriam esses filósofos, nossas intuições sobre um dos dois casos devem
estar simplesmente erradas.23 Como a intuição sobre a criança afogando é mais
forte do que a intuição sobre o assalto para caridade, devemos nos ater à intuição
da criança afogando e, portanto, devemos endossar os programas de combate à
pobreza do governo.
23
Embora Unger não discuta diretamente o caso do assalto para caridade, suas observações
sobre outros casos (1996, capítulo 3) sugerem que ele endossaria o argumento mencionado no
texto.
7. E se Não Existir Autoridade? 148

Existem diferenças relevantes entre os dois casos? Para aqueles que ainda não
perceberam, vale a pena dedicar um momento para refletir sobre essa questão
antes de continuar lendo.
Há pelo menos três diferenças que podem ser consideradas, individualmente
ou em conjunto, como moralmente significativas:

a No assalto para caridade, o problema que você procura abordar é uma condição
social crônica, enquanto na criança afogando, o problema é uma emergência
imediata. Os exemplos na literatura que extraem as intuições mais fortes sobre
os deveres de ajudar os outros são exemplos de emergências imediatas. Os
casos em que nos faltam fortes intuições do dever de ajudar, mas nos quais os
filósofos tentam argumentar para que aceitemos tais deveres são tipicamente
casos de condições sociais crônicas.

b No caso da criança afogando, pode-se resolver o problema com facilidade


e rapidez, enquanto que no caso do assalto para caridade, pode-se esperar
realisticamente apenas aliviar o problema.

c No caso da criança afogando, a coerção necessária para resolver o problema é


uma intervenção única, enquanto que no processo de assalto para caridade é
um programa contínuo de coerção.24

Os programas governamentais de combate à pobreza estão alinhados com


o caso do assalto para caridade em todos esses aspectos. Pode haver outras
diferenças interessantes entre os dois tipos de casos, talvez incluindo alguns que
ninguém ainda identificou. Isso é provável, uma vez que, em geral, é muito difícil
identificar as fontes de nossas intuições, e a maioria das pessoas tem dificuldade
até de apresentar os itens (a) a (c).
24
Unger (1996, capítulo 2) discute um par semelhante de exemplos e considera várias diferenças
potencialmente relevantes, incluindo essencialmente (a) e (b) acima. Ele acha (a) moralmente
irrelevante (42). Grosso modo, sustenta que a distinção entre uma “emergência” e um “problema
crônico” consiste meramente no fato de que as vítimas deste último sofrem há mais tempo; mas
isso certamente não pode diminuir as razões para ajudar as vítimas de problemas crônicos. Não é
óbvio, no entanto, que o caso de Unger sobre a distinção seja aceito. O autor considera a alínea b)
“confusa” (41). Grosso modo, ele argumentaria que, no caso do assalto para caridade, podemos
satisfazer as necessidades de algumas vítimas da pobreza. A única razão pela qual dizemos que
nossa ajuda não pode “resolver o problema” é que estamos agrupando todas as pessoas que
sofrem de pobreza e não podemos satisfazer todas as necessidades dessas pessoas. Mas, no caso
da criança afogando, podemos conceitualmente agrupar essa criança que se afoga em particular
com todas as outras pessoas que sofrem de algo ruim em qualquer lugar do mundo. Então aqui
também nossa ajuda não pode “resolver o problema” porque não podemos impedir todas as
coisas ruins do mundo. Portanto, realmente não há diferença entre o assalto para caridade e a
criança afogando. O argumento de Unger aqui depende da suposição de que não há distinção
entre mais e menos agrupamentos naturais.
7. E se Não Existir Autoridade? 149

Parece haver agora quatro visões filosóficas sobre o caso da criança afogando
e o caso do assalto para caridade que vale a pena considerar:

i Os dois tipos de casos são relevantes e, em nenhum dos casos, é permitida a


coerção.

ii Os dois tipos de casos são relevantes e, em ambos os casos, a coerção é


permitida.

iii Intervenções coercitivas únicas para resolver emergências imediatas são per-
mitidas, mas programas contínuos de coerção para aliviar condições sociais
crônicas não são. Assim, a coerção é justificada no caso da criança afogando,
mas não no caso do assalto para caridade.

iv Os casos não são análogos por algum outro motivo, e a coerção é justificada
no caso da criança afogando, mas não no caso do assalto para caridade.

Somente na opção (ii) concluiríamos que os programas governamentais anti-


pobreza são permitidos. Mas, à primeira vista (iii) parece muito mais plausível
que (ii). A opção (iv) também parece muito mais plausível que (ii), apesar da
falha em especificar a diferença relevante entre os casos (não é de todo implausí-
vel pensar que possa haver uma diferença relevante que nos tenha escapado).
As visões (i) e (ii) me parecem de implausibilidade comparável, com (ii) menos
plausível que (i), embora pensadores razoáveis difiram nisso.
A tese (ii) tem implicações mais implausíveis do que simplesmente extorquir
dinheiro de outras pessoas para apoiar a caridade. O espectador no caso da
criança afogando tem um dever moral rigoroso de ajudar a criança que se afoga. Se
o caso do assalto para caridade for significativamente semelhante, os indivíduos
devem ter deveres morais rigorosos para doar à caridade, comparável ao dever
de ajudar uma criança que se afoga. Se não tivessem tais deveres, isso seria uma
diferença moralmente relevante entre os dois casos (é moralmente relevante que,
no caso da criança afogando, alguém coage o espectador apenas para cumprir
seu dever).
Agora imagine outro caso; chame de caso do filantropo sobrecarregado. Supo-
nha que você doe regularmente 80% do seu salário para instituições de caridade
que ajudam crianças pobres. No caminho para o trabalho, você vê uma criança
se afogando em um lago raso. Considerando quanto sacrifício você já fez pelos
outros, você se pergunta se deve realmente molhar suas roupas para salvar mais
uma criança.
Intuitivamente, a resposta é sim. Mesmo depois de doar 80% de sua renda
à caridade, você ainda é obrigado a salvar uma criança que está se afogando
quando tiver a chance. Agora, se o dever de doar à caridade é comparável ao
7. E se Não Existir Autoridade? 150

dever de salvar uma criança que está se afogando, parece que podemos fazer a
mesma afirmação sobre doar à caridade; isto é, mesmo depois de doar 80% de sua
renda à caridade, você ainda é obrigado a doar (mais) à caridade quando tiver a
chance. Se não é assim, a obrigação de doar à caridade deve ser de alguma forma
menos rigorosa do que a obrigação de ajudar uma criança que se afoga. Portanto,
se aceitarmos a tese (ii), parece que devemos concluir que somos obrigados a
doar mais de 80% de nossa renda para caridade.25
Além disso, no caso do filantropo sobrecarregado, você não seria levemente
culpado caso não salvasse a criança. Falhar em salvar a criança seria extrema-
mente culpável, talvez não muito melhor do que assassinato. Portanto, se a
obrigação de doar à caridade é moralmente comparável à obrigação de ajudar
uma criança que está se afogando, alguém que não doar mais de 80% de sua
renda para a caridade também é extremamente culpável, talvez não muito melhor
do que um assassino. Podemos ter que concluir que o comportamento de quase
todos, incluindo, por exemplo, filantropos que doam apenas 75% de sua renda,
seja totalmente desprezível.
Alguns filósofos adotam esse tipo de moralidade extremamente exigente,
junto com seu julgamento severo sobre a conduta de quase todos. Esses filósofos
apontam que nossa forte aversão a doar quase todo o nosso dinheiro não é prova
de que não somos obrigados a fazê-lo. Eles podem dizer que nossa relutância em
aceitar sua moralidade exigente se deve simplesmente ao nosso viés de interesse
próprio – não queremos fazer o que a moralidade realmente exige de nós e,
portanto, fechamos os olhos para nossas obrigações.26
A hipótese do viés de interesse próprio pode servir como uma explicação
plausível para desmascarar um dado isolado – nossa relutância em aceitar obri-
gações extremamente exigentes de caridade. Mas a hipótese é pior na explicação
do padrão mais amplo de atitudes morais que é coerente com essa relutância.
Se simplesmente sofremos de um viés de interesse próprio, podemos esperar
que esse fato seja evidenciado por uma mudança em nossas intuições quando
direcionamos a atenção para longe de nós mesmos e para o comportamento dos
outros ou quando nos imaginamos em posições diferentes. Mas isso não parece
ser o caso. Não nos eximimos de um dever de caridade que reconhecemos para
os outros: quando ouvimos falar de alguém que dá grandes quantias de dinheiro
à caridade, tratamos isso como louvável e supererrogatório; não reagimos como
se tivéssemos sido informados de alguém que simplesmente se absteve de matar
o maior número de pessoas possível.
Mesmo quando nós próprios precisamos de uma economia – se, por exemplo,
25
Compare Unger 1996, capítulo 6. É claro que alguém precisa desistir apenas no ponto em
que doações adicionais ameaçam a sua sobrevivência ou a sua capacidade de doação no futuro.
26
Norcross 2003, 461; Shaw 1999, 286–7.
7. E se Não Existir Autoridade? 151

perdemos o emprego – não pensamos nos estrangeiros sendo obrigados a doar


dinheiro para nos apoiar. Mesmo aqueles que são cronicamente pobres não
consideram os estrangeiros obrigados a ajudá-los (embora possam considerar
que o Estado seja obrigado a ajudá-los).
Nem nossas intuições sobre a maioria das outras situações seguem a direção
do interesse próprio. Geralmente, não nos consideramos autorizados a prejudicar
ou explorar outras pessoas para nosso próprio benefício. Mesmo aqueles que
seriam particularmente bons em explorar os outros de uma maneira específica
não costumam sustentar que é permitido explorar os outros dessa maneira.
Por fim, mesmo aqueles filósofos que aceitam sistemas éticos extremamente
exigentes não têm as reações emocionais que seriam coerentes com a crença
em tais sistemas éticos exigentes. Filósofos utilitaristas não reagem com horror
quando você lhes diz que gastou US$ 40 em um jantar num restaurante em vez
de enviar o dinheiro para ajudar no alívio da fome, mas certamente reagiriam
com horror se você lhes dissesse que deixou uma criança se afogar em um lago
porque não queria molhar suas roupas.
Nenhuma dessas observações implica que alguma moralidade extremamente
exigente não esteja correta. Mas ilustram o fato de que nossas atitudes são
coerentes e podem ser explicadas parcimoniosamente pela hipótese de que não
somos de fato obrigados a doar quantias muito grandes para a caridade. Continua
sendo possível que soframos de um viés de interesse próprio que nos cega para
nossas obrigações extremamente exigentes de caridade, mas essa hipótese faz um
mau trabalho ao explicar o padrão de julgamentos e atitudes que a maioria das
pessoas demonstra. Na filosofia moral, assim como no restante da investigação
intelectual humana, é razoável supor que as coisas são do jeito que parecem até a
prova em contrário.27
Os argumentos acima não devem, no entanto, ser tomados como uma licença
para uma negligência egoísta para com os menos afortunados. A doação regular
a grupos de caridade que ajudam os menos afortunados do mundo é algo com-
passivo e decente a se fazer. Praticamente ninguém duvida disso.28 Um membro
comum de uma sociedade próspera pode, ao longo de sua vida, salvar literal-
mente centenas de vidas doando uma pequena fração de sua renda.29 Em vista
disso, é plausível ver a doação regular como um requisito de respeito decente
pela vida humana (consulte a nota de rodapé para recomendações).30
27
Ver Huemer 2005, capítulo 5; 2007.
28
Ver Hardin (1974) pela exceção inevitável, mas ver Sen (1994) pela refutação de Hardin.
29
Para estatísticas pertinentes, consulte www.givingwhatwecan.org/resources/
what-you-can-reach.php.
30
É plausível que se deva dar uma quantia que se sente respeitosa. Para uma revisão das
instituições de caridade com melhor custo-benefício, consulte Give Well (www.givewell.org).
No momento da redação deste artigo, a Give Well atribui suas classificações mais altas à Fundação
7. E se Não Existir Autoridade? 152

7.2.5 No caso do acima mencionado estiver errado


Muitas vezes, é valioso considerar qual é a alternativa mais provável, caso a
opinião de alguém esteja errada. Penso que a alternativa mais crível à posição
adotada acima é que é permitido ao Estado (ou um agente privado) coletar
coercivamente fundos para aliviar a pobreza no mundo. Ao fazê-lo, o Estado
seria obrigado a priorizar pessoas com problemas muito sérios que possam ser
tratados de maneira confiável e a baixo custo. Todas ou quase todas as pessoas
que satisfazem essa descrição são habitantes de países em desenvolvimento. Uma
vez que o Estado tenha direcionado adequadamente seus esforços de alívio da
pobreza, algumas das objeções da Seção 7.2.2 também serão evitadas.
A visão desafiante à distinção sugerida acima entre emergências imediatas e
condições crônicas, argumentaria que algumas emergências são condições sociais
crônicas ou componentes delas. Imagine que você ficou perdido na floresta por
vários dias sem comida e corre o risco de morrer de fome. Você encontra uma
cabana na floresta. O proprietário não está em casa, mas há muita comida dentro.
Parece permitido levar comida para preservar sua vida, apesar da violação dos
direitos de propriedade do dono da cabana. (Isso é permitido mesmo que você
saiba que não será capaz de compensar o proprietário posteriormente e mesmo
que duvide que o proprietário consentiria em permitir o consumo de sua comida.)
Isso ilustra o fato de que a fome extrema pode ser considerada uma situação de
emergência suficiente para justificar a violação dos direitos de propriedade de
outra pessoa. E se sua fome é uma emergência desse tipo, então a fome extrema
de uma criança em países em desenvolvimento é uma emergência do mesmo tipo
para essa criança. Acontece que, a qualquer momento, existem muitas pessoas
nessa situação; portanto, a existência de tais emergências é ela própria uma
condição social crônica. Mas por que isso deveria fazer a diferença? Se um certo
tipo de violação de direitos for justificado quando necessário para salvar uma
pessoa da fome, então um programa que consiste em muitas dessas violações
de direitos também não deve ser considerado justificado quando for necessário
salvar muitas pessoas da fome?
Não sei o que dizer disso. Talvez haja uma diferença ética entre cometer um
roubo isolado para salvar a si mesmo e iniciar um programa regular de extorsão
destinado a salvar terceiros onde quer que estejam. Ou talvez a conclusão do
parágrafo anterior esteja simplesmente correta.
No entanto, quero insistir em dois pontos. Primeiro, os atuais programas de
combate à pobreza nos países ricos são injustificados. Eles desenvolvem coerção
com justificativa inadequada, não estão focados nas pessoas mais necessitadas e
Contra a Malária (www.againstmalaria.com/donate.aspx) e à Iniciativa de Controle da Esquis-
tossomose (www3.imperial.ac.uk/schisto). Ambas recebem doações por cartão de crédito
pela Internet.
7. E se Não Existir Autoridade? 153

não podem ser defendidos pelo apelo às analogias de crianças afogando e cabanas
na floresta. Segundo, o Estado não tem status moral especial. Se o Estado pode
coercivamente arrecadar fundos para o alívio da pobreza, é porque o Estado
só faria o mesmo que as partes privadas nos exemplos da criança afogando
e da cabana na floresta. Nesse caso, o mesmo argumento poderia ser usado
para mostrar por que uma parte privada seria também justificada na apreensão
coercitiva de fundos para o alívio da pobreza. Pode-se até roubar o governo para
fornecer fundos para ajudar os pobres. O Estado não tem autoridade especial
aqui, embora possa gozar de vantagens práticas em seus esforços para obter
recursos.

7.3 Implicações para os agentes do Estado


Os funcionários do governo responsáveis por formular políticas devem levar em
consideração as observações das duas últimas seções e evitar formular políticas
injustas. E os funcionários do governo que não fazem políticas, mas são instruídos
a ajudar a impô-las, algumas das quais são injustas? Os policiais, por exemplo, são
convidados a prender usuários e vendedores de drogas. Os juízes são convidados
a sentenciá-los. Os soldados são convidados a lutar em guerras agressivas. O
que esses funcionários do governo devem fazer?
O policial deve se recusar a prender infratores de drogas. Se ele vir alguém
usando drogas, deve deixá-lo em paz ou talvez pará-lo e dar dicas sobre como
evitar ser visto por policiais. Prender o usuário de drogas seria iniciar um ato
injustificado de coerção. O Estado não tem o direito de cometer atos injustos
de coerção nem de ordenar que tais atos sejam cometidos; portanto, não pode
conferir a seus funcionários o direito moral de praticar tais atos.
Obviamente, não é como se os policiais simplesmente decidissem coagir os
usuários de drogas; são obrigados a fazê-lo como parte de seu trabalho. Se eles se
recusarem a aplicar leis injustas, esse fato provavelmente será conhecido e serão
repreendidos ou demitidos. Mas isso não fornece desculpa para violar os direitos
dos outros. Imagine que contratei um motorista para me levar pela cidade. Peri-
odicamente, peço ao meu motorista que pratique atos injustificados de coerção.
Um dia, por exemplo, vemos algumas crianças brincando na calçada. Eu digo
ao motorista para parar e bater em uma das crianças para meu entretenimento.
Aviso o motorista relutante que se ele não seguir minhas ordens, eu o despedirei.
Então o motorista passa a bater na criança. Ao fazer isso, ele lamentavelmente
diz à criança: “estou apenas fazendo meu trabalho. Eu não faço as regras.”
Nesse caso, agi de maneira errada ordenando que a criança fosse espancada.
Mas o motorista também claramente agiu errado ao seguir este comando. Talvez
eu seja mais culpado do que o motorista, mas isso não muda o fato de que o
7. E se Não Existir Autoridade? 154

motorista deveria recusar esses comandos, mesmo que isso resulte em perda do
emprego.
Alguns negam que o motorista esteja realmente apenas fazendo seu trabalho,
porque seu trabalho é dirigir o carro, não bater nas crianças. Isto é uma distração;
não importa se espancar crianças faz parte da descrição de seu trabalho. Suponha
que no meu anúncio original de “Procurando por Ajuda” tenha escrito: “Procu-
rando: pessoa com histórico limpo de condução e músculos fortes para dirigir
carro e espancar crianças inocentes”. Minha inclusão da cláusula “espancar
crianças inocentes” na descrição do trabalho não oferece nenhuma garantia de
justificativa ética ao motorista para espancar crianças. A única diferença ética
que poderia fazer é que isso pode tornar errado o motorista aceitar o trabalho em
primeiro lugar. Tendo aceitado o emprego, ele ainda não tem justificativa para
espancar crianças inocentes.
Da mesma forma, não importa se o trabalho de um policial inclui a aplicação
de leis injustas; isso não cria nenhuma justificativa para impor a aplicação de leis
injustas. A única diferença que isso pode fazer é que pode ser errado ser um
policial em primeiro lugar.
Alguns objetariam que, se todos os policiais levassem meus argumentos a
sério, todos sairiam ou seriam demitidos, o que seria muito pior para a sociedade
do que ter policiais que aplicassem leis justas e injustas. Mas, certamente, muito
antes de todos os policiais terem renunciado ou se demitido, o governo acataria
a necessidade de reforma e revogaria as leis injustas que estavam causando a
perda de sua força policial, ou pelo menos permitiria que a polícia se abstivesse
de aplicar essas leis. Assim, se toda a polícia adotasse a visão que propus, a
sociedade estaria de fato muito melhor.
Por razões semelhantes, um juiz em um caso que envolva a violação de uma
lei injusta deve fazer o possível para garantir a punição mínima possível. O juiz
deve ordenar que o réu seja libertado se possível – isto é, se isso não resultar
simplesmente no fato de o réu ser preso novamente e levado a um juiz mais
punitivo. Se um juiz se encontra conduzindo um julgamento por algo que não
deveria ser ilegal e pelo qual seria injusto punir o réu, o juiz deve fazer tudo o
que estiver ao seu alcance para influenciar o resultado em favor do réu. Se o juiz
acabar tendo que sentenciar o réu, deve ordenar a menor sentença possível. Se um
juiz se vê rotineiramente obrigado, pelas exigências de seu trabalho, a participar
da injustiça, ele provavelmente deve se demitir em busca de uma profissão mais
justa.
Um soldado também deve se recusar a lutar em uma guerra injusta. Não colo-
car isso em questão, lutar em uma guerra injusta é participar de um assassinato.
Ao ingressar nas forças armadas, alguém se voluntaria para lutar em qualquer
guerra que um país possa entrar. Portanto, se não se pode ter certeza de que
7. E se Não Existir Autoridade? 155

o país não entrará em guerra injusta, deve-se abster-se de ingressar nas forças
armadas; se alguém já está no exército, deve renunciar o mais rápido possível.
Recomendações semelhantes se aplicam a todos os outros funcionários do
governo que são chamados a implementar políticas injustas. Eles devem fazer o
possível para minar essas políticas ou, se isso não for possível, recusar-se a servir.
Essas recomendações quase nunca são seguidas. Os funcionários do governo
quase sempre aplicam as políticas, justas ou injustas, que são ordenados a aplicar.
Uma razão é que acreditam erroneamente na autoridade política; acreditam que
o Estado tem o direito de impor coercivamente essas políticas, mesmo quando
estão erradas. Consideram-se autorizados, talvez até obrigados, a ajudar a aplicar
essas políticas de acordo com os requisitos de seu trabalho. Como isso afeta
nossa avaliação de seu comportamento?
Podemos distinguir a avaliação do caráter de um indivíduo da avaliação
das ações do indivíduo. Frequentemente, uma dessas avaliações é muito mais
positiva ou negativa que a outra, principalmente quando o agente desconhece
fatos importantes sobre seu comportamento. Os soldados que lutam em uma
guerra injusta, por exemplo, são tipicamente pessoas muito melhores e são muito
menos culpáveis do que assassinos particulares. Isso é compatível com o fato
de que existem razões objetivas muito fortes para se recusar a servir em uma
guerra injusta, razões tão fortes quanto as razões para se recusar a participar de
uma conspiração privada para cometer assassinato. Como regra, o fato de os
funcionários do governo acreditarem que estão agindo corretamente os torna
menos culpados do que seriam. Não os torna completamente inocentes; ainda
podem ser culpados se, como provavelmente é o caso, não tiverem exercido
esforço suficiente para descobrir onde está seu verdadeiro dever moral. De
qualquer forma, a ignorância dos funcionários do governo sobre seu dever ético
não altera a avaliação apropriada do que realmente devem fazer. Isso não altera
o fato de que não têm o direito de fazer cumprir leis injustas.

7.4 Implicações para cidadãos particulares


7.4.1 Em louvor aos desobedientes
Se não existir autoridade, a desobediência a decretos governamentais é justificada
com muito mais frequência do que geralmente é reconhecido.
Suponha que Sam tenha emitido exigências a seus vizinhos as quais não tem o
direito de fazer, respaldado por ameaças de punição. Uma gangue de seguidores
o ajuda a impor à força punições que eles não têm o direito de impor. Sam emite
exigências sobre o que seus vizinhos podem comer, os termos dos contratos que
podem fazer entre si, qual deles pode fornecer assistência médica a outros, quanto
7. E se Não Existir Autoridade? 156

dinheiro devem pagar à gangue de Sam e assim por diante. Ele também emite
alguns comandos moralmente justificados (embora sua emissão seja eticamente
redundante): exige que ninguém assassine, roube e assim por diante. Agora
imagine que você é um dos vizinhos de Sam. Você deseja ingerir uma certa erva
com propriedades psicoativas, mas está ciente da demanda de Sam, apoiada por
uma ameaça de força física de sua gangue, da qual você não faz parte.
Parece claro que você não tem motivos éticos para não consumir a erva,
embora, é claro, você possa ter uma forte razão prudencial, decorrente do medo
da gangue de Sam, para evitá-la. Na verdade, você tem um motivo ético para
consumir a erva, como forma de enfrentar o bullying de Sam. Submeter-se às
demandas de um agressor é, na melhor das hipóteses, desculpável. Desafiar Sam
em particular seria perfeitamente aceitável; desafiar Sam publicamente seria um
ato de coragem digno de louvor.
Da mesma forma, não há dúvida de que é errado desafiar leis injustas. A
única questão ética é se o desafio é obrigatório ou supererrogatório. Em vista
da gravidade e credibilidade das ameaças comumente emitidas pelo Estado aos
infratores da lei, acredito que, na maioria dos casos, o desafio a leis injustas é su-
pererrogatório. Em alguns casos, o desafio é imprudente, como seria imprudente
quando um assaltante aponta uma arma e você se recusar a entregar sua carteira.
Mas não é eticamente errado.

7.4.2 A aceitação da punição


Em alguns casos contemporâneos, aqueles que se envolvem em desobediência
civil devem fazê-lo publicamente e devem aceitar a punição prescrita pelo Es-
tado.31 Esses casos, no entanto, são desenhados no contexto de uma autoridade
política assumida. Se não há autoridade política, ainda existem razões para se
submeter à punição legal por atos de desobediência justificada?
Desobedecer publicamente a uma lei é desobedecê-la de tal maneira e sob tais
circunstâncias que a ação de alguém se tornará amplamente conhecida (entre
aqueles que seguem tais casos), e será sabido que a ação violou a lei. Em muitos
casos, será possível desobedecer publicamente a uma lei nesse sentido, sem reve-
lar a identidade. (Imagine ativistas da paz grafitando em uma fábrica militar no
meio da noite e depois fugindo.) Quando possível, essa forma de desobediência
oferece vantagens óbvias: pode-se evitar sofrer punições desagradáveis e perma-
31
King (1991, 74) viu-se expressando respeito pela lei praticando sua desobediência civil
abertamente e com a disposição de aceitar as punições legalmente prescritas. Rawls (1999, seção
55) procura incorporar essas condições na definição de “desobediência civil”. Neste ponto,
considero a desobediência aos comandos estatais injustificados, incluindo o que Rawls chama de
“desobediência civil” e o que ele chama de “recusa de consciência” (1999, seção 56).
7. E se Não Existir Autoridade? 157

necer livre para realizar outros atos de desobediência no futuro, enquanto ainda
comunica a rejeição da lei injusta.
Às vezes, diz-se que aqueles que praticam desobediência civil devem aceitar
punição por suas ações para provar sua sinceridade e seriedade para com os
outros.32 Por exemplo, alguns afirmam que, no caso da conscrição, os objetores
de consciência deveriam ir voluntariamente à prisão – em vez de, por exemplo,
fugir para outro país – para provar que sua objeção a ir à guerra é de princípios e
altruísta.
Há uma série de objeções notáveis a esse pensamento. Primeiro, a exigência
de aceitar punição é excessivamente exigente. Sem dúvida, existe algum valor em
comunicar a sinceridade, a seriedade moral ou outras características admiráveis
a outras pessoas. Mas normalmente não se é obrigado a comunicar esse tipo
de informação a outras pessoas, mesmo quando os custos são mínimos. Por
exemplo, suponha que eu tenha encontrado recentemente uma carteira e fiz o
possível para devolvê-la ao proprietário. Não sou moralmente obrigado a divul-
gar esse episódio com outras pessoas, apenas para comunicar minha honestidade
e virtuosidade, mesmo que possa fazê-lo sem nenhum custo. Ainda menos seria
obrigado a comunicar essas informações se isso exigisse que eu passasse alguns
meses ou anos na prisão. Não está claro por que o caso deve ser diferente para
atos de desobediência civil. Se violei a lei, sem dúvida preferiria que outros sou-
bessem que tinha motivos virtuosos para isso. Mas não sou obrigado a comunicar
essas informações, mesmo que possa fazê-lo sem nenhum custo, e menos ainda
se isso exigir meses ou anos de prisão.
Alguém poderia argumentar que este caso é diferente, porque, ao desobedecer
ao Estado, eu poderia levar outros a desobedecerem a outras leis, incluindo leis
que devem ser obedecidas, se outros não entenderem as razões morais por trás
da minha desobediência. Essa sugestão é artificial e implausível; na maioria dos
casos, é altamente improvável que meu ato de desobediência faça com que outras
pessoas desobedeçam a alguma lei não relacionada. Além disso, normalmente
não é obrigatório que uma pessoa realize sacrifícios extremamente grandes,
como passar um tempo na prisão, para impedir que outras pessoas escolham
irracionalmente fazer o que é errado.
Segundo, aceitar voluntariamente a punição do Estado por um ato de desobe-
diência pode (em vez de ou além de comunicar a seriedade moral de alguém)
comunicar idéias falsas e destrutivas – principalmente, que o Estado tem o direito
de punir as pessoas por desobedecerem leis injustas. Se uma lei é injusta, a
aplicação dessa lei por meio da punição daqueles que desobedecem também é
injusta. Por que, então, alguém deveria facilitar essa injustiça submetendo-se à
punição? Por exemplo, suponha que o governo de alguém esteja envolvido em
32
Rawls 1999, 322.
7. E se Não Existir Autoridade? 158

uma guerra injusta, pela qual instituiu uma conscrição. Nesse caso, ninguém
é obrigado a participar da guerra; se existe alguma obrigação, então é que os
cidadãos são obrigados a recusar participar. Agora, além da injustiça da própria
guerra, haverá também a injustiça do Estado punir aqueles que virtualmente se
recusam a participar dessa guerra. E assim como ninguém é obrigado a facilitar
a guerra em si, ninguém é obrigado a facilitar ou cooperar com a punição injusta
daqueles que se recusam a participar da guerra.
Considere uma analogia. Uma gangue homofóbica em seu bairro está espan-
cando homossexuais.33 Se você é gay, deve se apresentar na sede da gangue e
anunciar sua orientação sexual para que eles possam bater em você? Obviamente
não. Entre outras coisas, submeter-se a uma surra comunicaria erroneamente que
você fez algo que merece punição e que a gangue tem o direito de puni-lo. Mesmo
que acredite que, ao se submeter a uma surra, aumentaria a probabilidade de
que a indignação pública acabasse por levar a uma mudança no comportamento
da gangue, você ainda não seria obrigado a se submeter a uma surra.
Concluo que, na maioria dos casos, aqueles que desobedecem a leis injustas
são eticamente permitidos e bem aconselhados a ocultar sua identidade ou a
evitar a punição pelo Estado.

7.4.3 Resistência violenta


Se existe uma premissa central deste livro, é a seriedade moral da coerção. Mas o
recurso à força física nem sempre está errado. Muitas vezes, é justificado para fins
de legítima defesa ou defesa de terceiros inocentes. Não é implausível, portanto,
que a resistência violenta possa frequentemente ser justificada em resposta à
coerção injusta do Estado.
Para avaliar esse pensamento, comecemos com alguns princípios gerais que
governam o uso defensivo da força:

i O uso da força é justificado somente quando necessário para evitar algum mau
grave. Ou seja, não deve haver alternativas disponíveis que impeçam o mau
sem usar níveis comparáveis de força, cometendo outros erros igualmente
sérios, ou exigindo sacrifícios irracionais do agente.

ii O uso da força deve ter uma chance razoável, na evidência do agente, de


impedir que ocorra o mau. A menos que essa condição seja satisfeita, o uso
33
Embora os espancamentos raramente sejam prescritos pelo Estado, existem várias leis com
motivações e efeitos semelhantes às ações dessa gangue hipotética. Até um processo da Suprema
Corte de 2003 (Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558), a sodomia era proibida em vários Estados dos
EUA. Muitos outros países ainda possuem essas leis (veja www.glapn.org/sodomylaws/world/
world.htm), que parecem ter como objetivo prejudicar os homossexuais.
7. E se Não Existir Autoridade? 159

da força não será considerado como uma medida defensiva. (Em vez disso,
pode contar como uma medida retaliatória; no entanto, as condições para a
força retaliatória justificada estão além do escopo desta discussão.)

iii O dano esperado causado pelo uso da força não pode ser desproporcional
ao dano esperado evitado. Por exemplo, não é permitido matar outra pes-
soa apenas para impedir que ela roube seu aparelho de som. No entanto,
seria permitido matar uma pessoa, se necessário, para impedir que ela a
machucasse seriamente.

iv Geralmente não é permitido ferir terceiros inocentes no curso de violência


defensiva. Tais danos a terceiros inocentes podem às vezes ser justificados,
mas isso geralmente exige benefícios esperados muito maiores do que os
danos esperados.

Historicamente, existem duas formas principais de resistência armada ao


Estado: terrorismo e (tentativa) revolução. Nas sociedades modernas desen-
volvidas, é improvável que uma tentativa de revolução armada seja justificada,
por três razões. Primeiro, geralmente existem opções não-violentas disponíveis,
que mostraram um sucesso surpreendente em alguns casos, como os casos co-
nhecidos de Gandhi e Martin Luther King Jr. Segundo, a probabilidade de uma
revolução bem-sucedida nas sociedades mais modernas e desenvolvidas é muito
perto de zero. Terceiro, no caso de tentativa de revolução, o dano a terceiros
inocentes provavelmente será muito grande.
Os ataques terroristas não têm mais probabilidade de serem justificados. Os
mesmos três pontos se aplicam: métodos não violentos geralmente estão disponí-
veis, métodos terroristas são ineficazes e os danos esperados a pessoas inocentes
são excessivos. Um estudo de 2006, examinando 28 grupos terroristas, constatou
que, usando critérios generosos de sucesso, esses grupos atingiram seus objetivos
políticos apenas 7% do tempo. Estudos posteriores, usando amostras maiores, en-
contraram taxas de sucesso abaixo de 5% e, em muitos casos, os objetivos políticos
dos terroristas foram realmente atrasados.34 Por que o terrorismo é tão ineficaz?
Quando terroristas atacam civis, as populações tendem a aumentar seu apoio a
candidatos políticos de direita, propondo respostas agressivas. Esses linha-dura
não têm medo do terrorismo, nem deveriam ter; é extremamente improvável que
sejam pessoalmente vitimados pelo terrorismo e, de fato, suas carreiras políticas
são fortemente avançadas pelo terrorismo e pela oportunidade que isso proporci-
ona a uma postura agressiva.35 Todos esses pontos são ilustrados pelos infames
34
Abrahms 2006; 2011, 587–8.
35
Abrahms 2011, 589. Abrahms observa que os ataques a alvos militares são mais eficazes e
respondem pela maioria dos sucessos que os terroristas tiveram.
7. E se Não Existir Autoridade? 160

ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o que levou


o governo dos EUA a aumentar enormemente sua presença militar no Oriente
Médio, matando centenas de milhares de muçulmanos. Embora essa resposta
fosse irracional e repreensível, também era previsível.
Por via de regra, portanto, ataques terroristas são moralmente errados. A
questão de quando alguém pode prejudicar terceiros inocentes durante a tentativa
de interromper uma opressão e injustiça é motivo de debate. Mas certamente
não se pode prejudicar terceiros inocentes por causa de gestos ineficazes ou
contraproducentes.

7.4.4 Em defesa da anulação do júri (jury nullification)


A maioria dos leitores, em algum momento, será obrigada a servir em um júri
em um julgamento criminal. Muitos desses julgamentos serão por crimes que
realmente merecem ser punidos. Mas muitos outros serão por violação de leis
injustas, como as leis mencionadas na Seção 7.1. Portanto, é de grande interesse
prático o que um jurado deve fazer neste último tipo de caso.
Quando a lei é injusta, o jurado deve votar para absolver, independentemente
da evidência. Resumidamente, o argumento é o seguinte: em geral, é errado
causar conscientemente danos injustos a outro ser humano. Condenar o acusado
por violar uma lei injusta resultará, em regra, no sofrimento significativo e injusto
nas mãos do Estado. Portanto, é prima facie errado condenar esse réu.
Duas objeções devem ser consideradas. Para começar, pode-se argumentar
que um jurado que vota por condenação não seria culpado pelo sofrimento do
réu, porque o jurado não fez a lei injusta nem o próprio jurado está impondo
diretamente a punição. Supondo que o promotor prove seu caso, o membro do
júri que vota na condenação está apenas relatando corretamente o fato de que
o réu executou uma determinada ação. O que os funcionários do Estado fazem
com essa informação depende deles; o jurado não está dizendo para punir o réu
(mesmo sabendo que isso acontecerá). Uma objeção relacionada é que se tem
o dever de dizer a verdade. Votar em uma absolvição, em um caso em que as
evidências mostrem que o réu realmente violou a lei injusta, seria desonesto. Seria
o equivalente a uma falsa afirmação de que o réu não demonstrou ter violado
essa lei.36
Ambas as objeções podem ser abordadas pela seguinte analogia. Você está
andando pela rua com um de seus amigos vestido mais extravagantemente. Você
encontra uma gangue de bandidos. O líder da gangue pergunta se seu amigo
36
Esse argumento depende da suposição de que um veredito do júri é uma avaliação unicamente
da questão de saber se o réu executou as ações atribuídas a ele. Duane (1996) sustenta que o
veredito do júri é uma avaliação da justiça ou adequação da punição do acusado.
7. E se Não Existir Autoridade? 161

é gay. Você está convencido de que eles são agressores de gays e que, se você
responder “sim” ou se recusar a responder, vão bater no seu amigo. Vocês dois
têm a melhor chance de saírem ilesos se responderem “não”. Você sabe, no
entanto, que seu amigo é de fato gay. Assim, ao responder “não”, você estaria
mentindo. Portanto, você deve recusar-se a responder ou responder “sim”?
Ninguém, a não ser um kantiano fanático, diria isso. É verdade que mentir
geralmente está errado, mas não quando a pessoa a quem você está mentindo é
alguém que usaria uma resposta verdadeira como pretexto para causar danos
graves e injustos a outro ser humano. Se você contar a verdade aos bandidos, mais
tarde poderá consertar as coisas com seu amigo, quando o visitar no hospital,
lembrando-o de que você não é culpado pelos bandidos odiarem os gays e nem
bateu pessoalmente no seu amigo com seus próprios punhos? Você poderia
argumentar que tudo o que você fez foi relatar uma questão de fato e que o que
os bandidos fizeram com essa informação só dependia deles?
Na maioria dos tribunais, os jurados são instruídos a dar um veredito com
base nas evidências e que não devem optar por anular a lei. Eles podem até ser
solicitados a prestar juramento nesse sentido, quando se recusam a jurar então
o resultado é a demissão do serviço do júri. Isso não altera o verdadeiro dever
moral do jurado. Suponha que, no cenário acima, o líder de gangue homofóbico
peça que você prometa contar a verdade sobre seu amigo. Suponha que também
o instrua, com um grande ar de confiança e solenidade, que você deve contar
a verdade a ele e que não tem o direito de mentir porque discorda de suas
predileções por gays. Então você seria obrigado a dizer a verdade? Novamente,
não. Agressores homofóbicos não têm o direito de saber quem é ou não é gay.
Você deve prometer dizer a verdade e depois mentir imediatamente.
Nos Estados Unidos, os jurados que votam na absolvição de um réu, alegando
que a lei é injusta, não estão sujeitos a punição e seus vereditos não podem ser
revogados. Assim, apesar do que possa ser dito, os jurados certamente podem
anular as leis, nos sentidos relevantes de “pode”. A aversão à mentira e a quebra
da promessa (se é isso que a anulação do júri envolve) é uma consideração trivial
próxima à importância de impedir que uma pessoa sofra danos graves e injustos.

7.5 Objeções em apoio ao culto à regra


7.5.1 Todos podem fazer o que desejam?
As pessoas têm suas próprias opiniões sobre exatamente quais leis são justas.
Pode-se, portanto, pensar que a visão filosófica que propus fornece carta branca
para os indivíduos simplesmente fazerem o que quiserem, citando interpretações
idiossincráticas da justiça em sua defesa.
7. E se Não Existir Autoridade? 162

Claro que isso seria um erro. Minha posição filosófica não implica que os
indivíduos possam violar quaisquer leis que queiram violar. Suponha que Sally
queira roubar dinheiro de sua empresa para poder viver às custas de outras
pessoas. Sally, portanto, desonestamente alega achar as leis que governam a
propriedade “injustas”, e ela usa isso para racionalizar seu comportamento.
Nesse caso, o comportamento de Sally está errado. Sua mera afirmação de que as
leis de propriedade são injustas não significa nada, eticamente, para desculpá-la.
Suponha que Mary também esteja roubando dinheiro de sua empresa. Mary,
no entanto, acredita sinceramente que as leis que governam a propriedade são
injustas, pois ela acredita numa ideologia política equivocada que rejeita a pro-
priedade privada. Nesse caso, o comportamento de Mary está correto? Não, não
está. Mary se engana ao pensar que as leis de propriedade são injustas, então
também se engana ao considerar que seu próprio comportamento é eticamente
permissível. Dependendo de quão compreensível seja o seu erro, Mary pode ser
menos culpada do que Sally, mas sua ação é igualmente errada. Por isso, por
exemplo, seria apropriado que terceiros usassem a coerção para impedir Mary
de pegar mais dinheiro e obrigá-la a compensar seu empregador.
Isso é consistente com tudo o que disse anteriormente neste capítulo. Se uma
lei é injusta, pode-se violar. Mas não é o caso que, se alguém simplesmente
acredita que uma lei é injusta, pode violá-la; depende se a crença está correta.
Existem muitos casos em que não podemos dizer se uma lei é justa ou injusta;
a justiça é um assunto difícil. O que devemos fazer então? Nos casos em que não
sabemos se a lei é justa, simplesmente não saberemos se é permitido violar essa
lei. Não posso dizer nada aqui que faça com que os leitores possam saber em
todos os casos o que é justo ou o que devem fazer. Meu único conselho para tais
situações é que se faça uma pesquisa mais aprofundada sobre o assunto (talvez
na literatura de filosofia ética e política) e depois exerça o melhor julgamento.
Para alguns, essa visão será insatisfatória. Uma visão mais satisfatória seria
aquela que fornece uma regra simples, mais ou menos mecânica, para o que
fazer em todos os casos. Por exemplo, se pudéssemos dizer: “Em caso de dúvida,
sempre obedeça à lei”, muitos considerariam essa uma posição mais satisfatória
do que a posição que às vezes não podemos dizer se devemos obedecer à lei ou
não.
Mas regras satisfatoriamente simples e convenientes não são, portanto, cor-
retas. Em particular, não há razão para pensar que sempre que houver dúvida
quanto à justiça de uma lei, é melhor obedecer do que desobedecer a essa lei.
Suponha que um soldado tenha sido ordenado por seu governo para lutar em
uma guerra. O soldado não tem certeza se essa ordem é justa, porque não tem
certeza se a guerra em si é justa. Nada nesta descrição do caso nos permite inferir
que seria certo ou bom que o soldado lutasse na guerra. Se lutar, pode estar
7. E se Não Existir Autoridade? 163

participando de assassinatos em massa. Não sabemos o suficiente para dizer se é


esse o caso. A informação crucial que precisaríamos, antes de podermos aconse-
lhar o soldado sobre o que deveria fazer, é uma informação moral: precisamos
saber se a guerra é justa. O fato desse conhecimento poder ser difícil ou mesmo
impossível de obter não impede que seja o conhecimento relevante e necessário
para abordar o que está em questão, nem permite que outro fato mais facilmente
conhecível resolva a questão. Isso é simplesmente a condição humana, nossas
perguntas éticas frequentemente não têm respostas fáceis.

7.5.2 Processo versus substância


Em um artigo inicial defendendo o caso do fair play da obrigação política, John
Rawls toma como sua questão central: “Como é possível que uma pessoa, de
acordo com sua própria concepção de justiça, se veja obrigada pelos atos de outra
pessoa a obedecer uma lei injusta [. . . ]?” E ele responde: “Para explicar isso [. . . ]
exigimos duas hipóteses: que entre o número muito limitado de procedimentos
que teriam qualquer chance de ser estabelecido, nenhum tornaria minha decisão
decisiva [. . . ]; e que todos esses procedimentos determinariam condições sociais
que julgo serem melhores que a anarquia.”37
Minha leitura dessa passagem é que Rawls está assumindo (1) que devemos
confiar em algum critério processual para decidir quais leis são legítimas ou
devem ser obedecidas e (2) que um indivíduo que desobedece uma lei com base
no fato de que a lei é injusta aplica a seguinte regra processual: que uma lei deve
ser rejeitada se entrar em conflito com o senso de justiça desse indivíduo. Ele
considera a última regra inadequada e inferior aos procedimentos democráticos.
Portanto, Rawls acredita que, se uma lei tiver sido feita de acordo aos procedi-
mentos democráticos, um indivíduo não deve desobedecer a lei com base em
que (ele acredita) a lei é injusta.
Mas Rawls não justifica essas suposições; não explica por que os motivos para
obedecer ou desobedecer a determinadas leis devem ser processuais. Em vez
disso, uma lei pode ser aceita ou rejeitada por motivos substantivos. Quando
digo que as leis sobre drogas podem ser violadas por serem injustas, não estou
dizendo que as leis sobre drogas foram feitas de acordo com o procedimento
errado. Estou dizendo que são substancialmente injustas; violam um direito
moral substantivo, o direito de controlar o próprio corpo, que os indivíduos
possuem independentemente das decisões do Estado. Isso seria verdade inde-
pendentemente de como a lei foi feita (exceto, é claro, no caso improvável de
consentimento unânime da lei, o que tornaria a violação de direitos). Não estou
37
Rawls, 1964, pp. 11–12. O contexto também contém algumas hipóteses de contrato social
que considero inúteis.
7. E se Não Existir Autoridade? 164

propondo um procedimento pelo qual minha opinião pessoal seja decisiva; se


eu não existisse ou tivesse sancionado as leis sobre drogas, elas ainda seriam
injustas. Se eu objetasse a alguma lei que é realmente justa – por exemplo, se
objetasse aos estatutos do assassinato – minha objeção não converteria a lei justa
em injusta. Em outras palavras: quando me oponho às leis sobre drogas, meus
motivos de objeção não são simplesmente o que me oponho. Meu motivo de
objeção é o direito de autopropriedade, o direito dos indivíduos de controlar
seus próprios corpos. O argumento de Rawls não tem nada a dizer sobre se esse
é um fundamento legítimo para rejeitar e, portanto, desobedecer, uma lei.
Por que se pode pensar que devemos confiar em regras processuais e não em
princípios morais substantivos? Talvez porque se pense que não sabemos o que
é moralmente correto, enquanto sabemos o que é um procedimento desejável.
Se esse é o raciocínio por trás da suposição procedimentalista de Rawls, isso
é duplamente equivocado. Primeiro, ele está errado, porque é falso que, em
geral, não sabemos o que é substancialmente moralmente correto. Às vezes, não
sabemos o que é substancialmente justo. Mas muitas vezes sabemos. Não sei,
por exemplo, se a proibição do aborto seria injusta. Mas sei que as leis de Jim
Crow eram injustas. Quando sabemos que uma lei é injusta, nossa oposição a
ela pode e deve se basear no fato de ser injusta, não no fato de que ela entra em
conflito com nossas opiniões ou preferências pessoais.
Segundo, se fosse verdade que nunca saberíamos o que era substancialmente
justo, também não saberíamos o que era procedimentalmente justo. Não há razão
para pensar que o conhecimento de procedimentos justos de alguma maneira
escaparia do alcance de um ceticismo moral forte o suficiente para descartar todo
conhecimento de resultados justos. Se, por exemplo, não podemos saber que as
leis que tratam os cidadãos de maneira grosseiramente desigual com base em
características moralmente irrelevantes são injustas, por que saberíamos que os
procedimentos legislativos que falham em dar aos cidadãos uma voz igual são
injustos?

7.5.3 Minando a ordem social?


Imagine que os pontos de vista que defendi se generalizem e, em particular, que
a noção de autoridade política seja amplamente rejeitada. Os cidadãos, portanto,
sentem-se livres para violar quaisquer leis que considerem eticamente censurá-
veis sempre que puderem evitar a punição. Agentes do governo se recusam a
aplicação do cumprimento das leis que consideram eticamente censuráveis. Os
júris se recusam a condenar os réus sob estatutos que consideram questionáveis.
Isso não tornaria nosso sistema jurídico muito caótico e imprevisível? A ordem
social pode não entrar em colapso por completo?
7. E se Não Existir Autoridade? 165

A sugestão do parágrafo anterior é simplesmente que pode ser muito preju-


dicial propagar as visões apresentadas neste livro, tanto que talvez não devesse
tê-lo publicado. Isso é compatível com a possibilidade de que tudo o que digo
seja realmente verdade.
As terríveis advertências sobre o colapso da ordem social, no entanto, são
mal tomadas. As opiniões que proponho têm mais probabilidade de serem soci-
almente benéficas do que prejudiciais. Imaginamos cidadãos violando leis que
consideram injustas, a polícia se recusando a aplicar o cumprimento de leis que
consideram injustas e júris se recusando a condenar sob leis que consideram
injustas – tudo porque um ceticismo geral de autoridade tomou conta da socie-
dade. Além disso, devemos assumir que os próprios legisladores absorveram
a mesma filosofia de ceticismo sobre a autoridade política. Nesse caso, haveria
muito menos leis – e muito menos leis injustas em particular. A maioria das leis
que teriam ocasionado desobediência civil generalizada não existiria, porque os
legisladores não as adotariam ou as teriam revogado durante o período em que
o ceticismo sobre a autoridade toma conta da sociedade.
Mas suponha que sobrevenha uma lei específica que algumas pessoas conside-
ram injusta. Se o número de pessoas que consideram a lei injusta é muito pequeno,
não há dificuldade. Por exemplo, suponha que um pequeno número de pessoas
considere as leis contra roubo injustas. Como a esmagadora maioria da sociedade
considera essas leis justas, ainda haveria policiais, juízes e jurados em número
suficiente dispostos a aplicar as leis contra roubo. O governo só enfrentaria um
problema quando grande parte da sociedade considerasse injustas algumas leis.
Por exemplo, um número significativo de pessoas atualmente considera as leis
de drogas injustas. Se fosse amplamente aceito que alguém não deveria ajudar a
impor uma lei injusta, alguns policiais se recusariam a prender infratores. Alguns
juízes se recusariam a sentenciá-los. E muitos júris se recusariam a condená-los.
Julgamentos sob as leis de drogas e outros estatutos controversos resultariam
repetidamente em júris suspensos. Uma vez que esse padrão se tornasse claro, o
Estado provavelmente desistiria de tentar fazer cumprir essas leis.
É com esse desastre social que devemos nos preocupar? Pelo contrário, seria
uma situação muito melhor do que o status quo. Quando a justiça de uma lei é
controversa, é melhor errar do lado da liberdade do que do lado da restrição.
Talvez algumas leis justas, infelizmente, não sejam aplicadas. Mas a redução no
número de pessoas punidas indevidamente sob leis injustas compensaria mais
do que essa desvantagem. É amplamente conhecido de que é melhor dez pessoas
culpadas serem libertadas do que uma pessoa inocente ser punida. Se isso for
verdade, também é melhor que dez pessoas deixem de ser condenadas sob leis
justas do que uma pessoa seja condenada sob uma lei injusta. Nosso sistema
atual, no entanto, erra muito na direção oposta: mesmo quando o status moral
7. E se Não Existir Autoridade? 166

de uma lei está em dúvida, policiais, juízes e júris quase sempre aplicam a lei
sem questionar.
Em uma nota realista, a imagem de pessoas comuns, à beira da desordem,
esperando uma desculpa para correrem desenfreadas em desrespeito à lei e à
ordem, desaparece diante de tudo o que sabemos sobre a psicologia da autoridade
(ver Capítulo 6) . Evidências como os experimentos de Milgram, o Holocausto e
o massacre de My Lai deixam pouca dúvida de que o ser humano médio tem
muito mais probabilidade de cometer crimes hediondos em nome da obediência
à autoridade do que desobedecer precipitadamente os comandos justificados
de uma figura de autoridade. Literalmente, milhões morreram por causa da
disposição generalizada de obedecer a mandamentos injustos. Portanto, mesmo
que meu ceticismo sobre autoridade vá longe demais, provavelmente servirá
como um corretivo valioso para nossa tendência excessiva a obedecer, em vez de
representar um perigo de destruição da ordem social.

7.5.4 As consequências da doutrina da independência do con-


teúdo
Argumentei que o Estado tem o direito de fazer e aplicar apenas leis eticamente
corretas. Alguns pensam que isso exige muito do Estado; qualquer governo
dirigido por seres humanos falíveis às vezes cometerá erros, incluindo erros
morais.38 Se pensarmos que os agentes do Estado não têm margem de manobra,
nenhum direito a cometer erros, então podem ficar paralisados pela inação, pelo
medo de fazer o que é errado. Pode-se, portanto, pensar que o Estado deveria ter
pelo menos alguma margem de manobra na forma de um direito independente
do conteúdo de fazer regras, desde que suas regras não sejam muito irracionais.
O raciocínio paralelo pode ser aplicado a agentes privados. Também não é
realista, por exemplo, esperar que uma grande corporação privada seja perfeita;
qualquer empresa desse tipo às vezes comete erros, incluindo erros morais. Mas
ninguém pensa que isso significa que devemos atribuir às grandes empresas
um direito moral de realizar periodicamente ações injustas ou erradas, desde
que não sejam muito irracionais. Reconhecemos que uma grande corporação às
vezes erra, mas não concordamos com esses erros. Nós os condenamos quando
acontecem e exigimos que a empresa corrija. Do mesmo modo, não devemos
concordar com as más ações do Estado, por mais previsíveis que sejam; devemos
condená-lo quando isso acontecer e exigir que o Estado corrija. Essa atitude não
tornará impossível a manutenção de um Estado, assim como a atitude análoga
em relação às corporações não torna impossível manter uma corporação.
38
Estlund 2008, 157–8; Christiano 2008, 239–40; Klosko 2005, 116.
7. E se Não Existir Autoridade? 167

Quais são as prováveis consequências sociais da crença na autoridade inde-


pendente de conteúdo? Christiano nos diz que “a assembléia democrática tem o
direito de fazer o mal, dentro de certas limitações.” Rawls observa: “É, é claro,
uma situação familiar [. . . ] a qual uma pessoa se vê moralmente obrigada a
obedecer a uma lei injusta.39 Essa ideia aumenta ou diminui a probabilidade
de o Estado alcançar os objetivos sociais em prol dos quais o Estado deveria ser
necessário?
Considere uma analogia. Você contratou um jardineiro para cuidar das plantas
no seu quintal. Você quer que ele cuide de todas as plantas e que não faça mais
nada, como entrar em casa e roubar suas jóias. Qual das duas instruções a seguir
você deve dar ao jardineiro?

A Você deve cuidar de todas as plantas. Você não deve entrar na casa e roubar
jóias.

B Idealmente, você deve cuidar de todas as plantas, mas você tem alguma
margem de manobra; você tem o direito de danificar ou negligenciar periodi-
camente algumas delas. Também seria melhor se você não entrasse em casa e
roubasse jóias. Mas você pode fazer isso ocasionalmente, desde que não fique
fora de controle.

Rawls, Christiano e outros defensores da autoridade política independente


do conteúdo estão de fato dando instruções (B) ao jardineiro. Eu diria (A) ao
jardineiro. Qual é realmente a filosofia socialmente perigosa?

7.6 Uma modesta fundamentação libertária


O libertarianismo é uma filosofia do governo mínimo (ou, em casos extremos,
nenhum governo), segundo a qual o governo não deve fazer mais do que proteger
os direitos dos indivíduos.40 Essencialmente, os libertários defendem as conclu-
sões políticas defendidas neste capítulo. Mas essa posição é muito controversa
na filosofia política. Muitos leitores se perguntam se somos realmente forçados a
isso. Certamente, para chegar a essas conclusões radicais, devo ter feito algumas
suposições extremas e altamente controversas ao longo do caminho, suposições
que a maioria dos leitores deveria se sentir livre para rejeitar?
Os autores libertários de fato confiaram frequentemente em suposições con-
troversas. Ayn Rand, por exemplo, pensava que o capitalismo só poderia ser
39
Christiano 2008, 250; Rawls 1964, 5. Por “assembleia democrática”, significa para Christiano
que é o legislador em uma democracia representativa.
40
Nota terminológica: o anarquismo capitalista conta como uma forma extrema de libertaria-
nismo.
7. E se Não Existir Autoridade? 168

defendido pelo apelo ao egoísmo ético, a teoria de que a ação certa para qual-
quer pessoa em qualquer circunstância é sempre a ação mais egoísta.41 Robert
Nozick é amplamente lido como baseando seu libertarianismo numa concepção
absolutista dos direitos individuais, segundo a qual os direitos de propriedade
de um indivíduo e os direitos de ser livre de coerção nunca podem ser superados
por quaisquer consequências sociais.42 Jan Narveson se apoia em uma teoria
metaética, segundo a qual os princípios morais corretos são determinados por um
contrato social hipotético.43 Devido à natureza controversa dessas teorias éticas
ou metaéticas, a maioria dos leitores acha fácil rejeitar os argumentos libertários
baseados neles.
Recorri a nada tão controverso em meu próprio raciocínio. Rejeito as bases
do libertarianismo mencionadas no parágrafo anterior. Rejeito o egoísmo, pois
acredito que os indivíduos têm obrigações substanciais de levar em consideração
os interesses dos outros. Rejeito o absolutismo ético, pois acredito que os direi-
tos de um indivíduo podem ser substituídos por necessidades suficientemente
importantes de outros. E rejeito todas as formas de teorias dos contratos sociais,
pelas razões discutidas nos capítulos 2 e 3.
A fundamentação do meu libertarianismo é muito mais modesto: a moral
do senso comum. À primeira vista, pode parecer paradoxal que tais conclusões
políticas radicais possam resultar de qualquer coisa chamada “senso comum”.
Obviamente, não reivindico visões políticas de bom senso. Afirmo que essas
visões políticas revisionistas emergem de visões morais do senso comum. A meu
ver, a filosofia política libertária repousa em três ideias amplas:

i Um princípio de não-agressão na ética interpessoal. Grosso modo, essa é a


ideia de que os indivíduos não devem atacar, matar, roubar ou fraudar uns
aos outros e, em geral, que os indivíduos não devem se coagir, exceto por
algumas circunstâncias especiais.

ii Um reconhecimento da natureza coercitiva do governo. Quando o Estado


promulga uma lei, a lei geralmente é apoiada por uma ameaça de punição,
que é apoiada por ameaças críveis de força física dirigidas contra aqueles que
desobedecem ao Estado.

iii Um ceticismo da autoridade política. O resultado desse ceticismo é, grosso


modo, que o Estado não pode fazer o que seria errado para qualquer pessoa
ou organização não-governamental.
41
Rand, 1964, 33; 1967, 195-6, 200-1.
42
Nozick 1974, pp. 28–35. Nagel (1995, 148) vê Nozick como um absolutista, embora de fato
Nozick (1974, 30n) expresse alguma dúvida sobre o absolutismo.
43
Narveson 1988, capítulos 12-14.
7. E se Não Existir Autoridade? 169

A principal suposição ética positiva do libertarianismo, o princípio da não-


agressão, é a mais difícil de articular com precisão. Na verdade, é uma coleção
complexa de princípios, incluindo proibições de roubo, assalto, assassinato e
assim por diante. Não consigo articular completamente esse conjunto de princí-
pios. Felizmente, não é o lócus de desacordo entre libertários e partidários de
outras ideologias políticas, pois o “princípio da não-agressão”, como eu uso o
termo, é simplesmente a coleção de proibições de maltratar outros que são aceitos
na moral do senso comum. Quase ninguém, independentemente da ideologia
política, considera roubo, assalto, assassinato, etc. moralmente aceitável. Não
precisamos de uma lista completa dessas proibições, pois conseguimos construir
os argumentos deste livro baseando-nos em intuições sobre casos específicos.
Não fiz suposições particularmente fortes sobre essas proibições éticas. Por exem-
plo, não presumo que roubo nunca seja permitido. Suponho simplesmente que
não é permitido em circunstâncias normais, como ditado pela moral do senso
comum.
O segundo princípio, o da natureza coercitiva do governo, é igualmente
difícil de contestar. A natureza coercitiva do governo é comumente esquecida ou
ignorada no discurso político, no qual a justificativa para coerção raramente é
discutida. Mas praticamente ninguém nega que o Estado fia-se regularmente na
coerção.
É a noção de autoridade que forma o verdadeiro lócus da disputa entre o
libertarianismo e outras filosofias políticas. Os libertários são céticos em relação à
autoridade, enquanto a maioria aceita a autoridade do Estado em mais ou menos
os termos em que o Estado a reivindica. É isso que permite à maioria endossar
o comportamento governamental que, de outra forma, parece violar os direitos
individuais: os não-libertários assumem que a maioria das restrições morais que
se aplicam a outros agentes não se aplica ao Estado.
Portanto, concentrei-me em defender o ceticismo sobre autoridade, abordando
as teorias de autoridade mais interessantes e importantes. Para defender esse ceti-
cismo, novamente, não confiei em suposições éticas particularmente controversas.
Considerei os fatores que supostamente conferem autoridade ao Estado e consta-
tei que, em cada caso, esses fatores não estão realmente presentes (como no caso
da autoridade baseada em consentimento) ou esses fatores simplesmente não são
suficientes para conferir o tipo de autoridade reivindicada pelo Estado. O último
ponto é estabelecido pelo fato de que um agente não governamental a quem
esses fatores se aplica geralmente não seria atribuído a algo como autoridade
política. Sugeri que a melhor explicação para a inclinação de atribuir autoridade
ao Estado está em uma coleção de preconceitos não-racionais que operariam se
houvesse ou não autoridades legítimas. A maioria das pessoas nunca faz uma
pausa para questionar a noção de autoridade política, mas uma vez examinada, a
7. E se Não Existir Autoridade? 170

ideia de um grupo de pessoas com um direito especial de comandar todo mundo


se dissolve de maneira justa.
Essas três ideias – o princípio da não-agressão, a natureza coercitiva do go-
verno e o ceticismo em relação à autoridade – juntas exigem uma filosofia política
libertária. A maioria das ações do governo viola o princípio da não-agressão – ou
seja, são ações de um tipo que seria condenado pela moralidade do senso comum
se fossem executadas por qualquer agente não-governamental. Em particular, o
governo geralmente aplica coerção em circunstâncias e por razões que de maneira
alguma seriam consideradas adequadas para justificar a coerção por parte de
um indivíduo ou organização particular. Portanto, a menos que concedamos ao
Estado alguma isenção especial de restrições morais comuns, devemos condenar
a maioria das ações do governo. As ações que permanecem são apenas as que os
libertários aceitam.
Como alguém pode evitar a conclusão libertária? Apenas rejeitando um
dos três princípios fundamentais que identifiquei. É extremamente improvável
questionar a natureza coercitiva do governo, e duvido que qualquer teórico deseje
adotar essa atitude. Alguns teóricos vão questionar a moral do senso comum.
Não tomei uma defesa geral da moral do senso comum neste livro e não a farei
agora. Todo livro deve começar em algum lugar, e começar com pressupostos
que, em condições normais, não se pode roubar, matar ou atacar outras pessoas
parece bastante razoável. Esse é o ponto de partida menos controverso e menos
duvidoso para um livro de filosofia política que já vi, e acho que poucos leitores
se sentirão felizes em rejeitá-lo.
A maneira menos implausível de resistir ao libertarianismo continua sendo a
de resistir ao ceticismo do libertário em relação à autoridade. Abordei o que me
parece ser o relato mais interessante, influente ou promissor da autoridade polí-
tica – a teoria tradicional do contrato social, a teoria do contrato social hipotético, o
apelo aos processos democráticos e o apelo à justiça e às boas consequências. Mas
não posso abordar todos os possíveis casos de autoridade, e um número razoável
de pensadores pode reagir ao meu desempenho propondo casos alternativos de
autoridade.
Suspeito, no entanto, que a estratégia geral em que confiei possa ser estendida
a esses casos alternativos. Uma teoria da autoridade citará alguma característica
do Estado como fonte de sua autoridade. Minha estratégia começa imaginando
um agente privado que possui esse recurso. Obviamente, isso não será possível
se o recurso em questão envolver um Estado – mas até agora, os recursos que
foram alegados como a fonte da autoridade política do Estado não envolveram
um Estado (ninguém, por exemplo, propôs que a autoridade seja conferida sim-
plesmente pela propriedade de ser um Estado). Por exemplo, a propriedade de
ser algo que seria aceito por todas as pessoas razoáveis, a propriedade de ser real-
7. E se Não Existir Autoridade? 171

mente aceito pela maioria da sociedade e a propriedade de produzir consequên-


cias muito boas são propriedades que uma organização não-governamental ou
de políticas que qualquer organização poderia possuir. Como mencionei, imagi-
namos um agente não-governamental com a característica relevante. Percebemos
então que intuitivamente não atribuiríamos a esse agente algo como um direito
completo, independente de conteúdo e supremo de coagir a obediência de outras
pessoas. E assim concluímos que o recurso proposto falha como fundamento da
autoridade política.
Parte II
Sociedade sem Autoridade

172
8

Avaliando as Teorias Sociais

Nos capítulos a seguir, peço ao leitor que considere uma teoria ampla de como a
sociedade deve ser organizada. Antes de explicar essa teoria e os argumentos em
seu apoio, pode ser útil discutir como as teorias desse tipo devem ser avaliadas.

8.1 Observações gerais sobre a avaliação racional das


teorias sociais
8.1.1 A avaliação racional é comparativa
Muitas vezes decidimos quando adotar um curso de ação perguntando simples-
mente se a ação é boa ou ruim. Mas a questão mais apropriada é se a ação é
melhor ou pior que as alternativas.1
Suponha que enquanto estou dirigindo meu carro, vejo um cachorro na rua.
Eu tenho a opção de atropelar o cachorro. Devo fazer isso? A resposta depende
de quais são minhas alternativas. Se eu também tiver a opção de parar o carro e
esperar o cachorro atravessar, não devo bater nele. Mas e se meus freios falharem
e não puder parar o carro? E se, além disso, houver uma criança brincando na
calçada à minha direita e um carro na pista à minha esquerda? Minhas únicas
opções são acertar a criança, bater no carro que se aproxima ou bater no cachorro.
Nesse caso, eu deveria bater no cachorro. Esta opção não é boa, mas é melhor
que as alternativas.
1
Mantenho o ponto dessa forma pela simplicidade de expressão; Não pretendo, no entanto,
pressupor o consequencialismo. Nos casos em que os deveres não-consequencialistas se aplicam,
o que importa é se uma ação realiza um trabalho melhor para satisfazer os deveres prima facie do
que as alternativas disponíveis (ver Ross, 1988, capítulo 2). Por exemplo, se devo cumprir uma
promessa depende se minhas alternativas disponíveis violariam deveres mais rigorosos do que o
dever de cumpri-la.

173
8. Avaliando as Teorias Sociais 174

O mesmo ponto se aplica à avaliação das teorias sociais, onde a questão


relevante não é se alguma estrutura social seria boa ou ruim simplesmente, mas
se seria melhor ou pior que as alternativas; isto é, as outras estruturas sociais que
poderíamos adotar. Este ponto pode ser óbvio, mas vale a pena enfatizar, porque
é fácil esquecer na prática; frequentemente criticamos ou defendemos propostas
políticas sem considerar quais são as alternativas.
Um corolário é que nosso padrão para avaliar teorias sociais não deve ser o da
perfeição. Isto é, não devemos rejeitar uma estrutura social proposta porque, sob
ela, algumas pessoas sofrerão com alguns problemas sociais. A perfeição não é
uma das opções disponíveis para as sociedades humanas. Devemos rejeitar um
sistema social se e somente se pudermos identificar uma alternativa superior.

8.1.2 A avaliação racional é abrangente


Ao avaliar um sistema social, devemos considerar todas as vantagens e desvan-
tagens desse sistema. Não devemos permitir que nossa avaliação seja indevida-
mente influenciada por uma única questão social.
Imagine um ativista social, a quem chamarei de “mamãe”, cuja questão social
favorita é dirigir embriagado. Ela participa de comícios contra dirigir embri-
agado, cita estatísticas sobre o problema para seus amigos e escreve cartas ao
congressista e aos jornais locais, pedindo leis mais duras para combater a direção
embriagada. Mamãe sabe que existem muitos outros problemas sociais sérios; no
entanto, nenhum deles clama a mesma paixão. Confio que esse tipo de fenômeno
seja familiar o suficiente; toda questão social tem suas mães. Suponha, além
disso, que mamãe fique convencida de que a anarquia, embora possa abordar
adequadamente qualquer outro problema, não pode abordar o problema de
dirigir embriagado quase tão bem quanto algum sistema governamental. Como
resultado, mamãe se vê incapaz de aceitar o anarquismo.
A história da mamãe tem o objetivo de ilustrar um ponto psicológico: temos
apegos emocionais a questões sociais específicas que geralmente são despro-
porcionais ao significado objetivo dessas questões, e esses apegos emocionais
podem influenciar nossa avaliação das teorias sociais. Os pensadores devem
se conscientizar desse problema para se protegerem. Devemos reconhecer a
possibilidade de que o sistema que seja melhor para a sociedade não resolva
todos os problemas e não resolva os problemas com os quais sentimos o maior
compromisso psicológico.

8.1.3 Variedades de governo e anarquia


Suponha que um anarquista, procurando mostrar a superioridade da anarquia
sobre o governo, traga a União Soviética sob o comunismo como uma ilustração
8. Avaliando as Teorias Sociais 175

da natureza do governo. Sob o comunismo soviético, dezenas de milhões de


pessoas inocentes foram mortas pelo governo – algumas por discordarem do
governo, a maioria simplesmente por pertencerem à classe social errada.2 O
restante foi forçado a viver por décadas sob opressão e pobreza. A anarquia seria
melhor do que isso.
Poucos observadores teriam dificuldade em identificar a falácia nesse raci-
ocínio: aqueles que defendem o governo normalmente não defendem toda e
qualquer forma de governo. Eles não precisam defender, por exemplo, a ditadura
comunista; precisam defender apenas alguma forma viável de governo. Assim,
ao comparar governo e anarquia, devemos examinar a melhor forma viável de
governo. Não importa se também temos disponível alguma forma terrível de
governo que nunca desejaríamos adotar (a menos que, tendo decidido ter um
governo, não tenhamos controle de que forma de governo obtemos). A partir de
agora, assumirei sem argumentos que a melhor forma de governo é a democracia
representativa.
O mesmo ponto se aplica ao outro termo da comparação: os teóricos anar-
quistas não precisam defender toda e qualquer condição não-governamental;
precisam defender apenas alguma estrutura social não-governamental viável.
Não importa se, além disso, existem formas terríveis de anarquia que nunca
desejaríamos (a menos que, novamente, não tenhamos controle de qual forma
de anarquia temos).
Os pensadores anarquistas diferem sobre qual seria o melhor sistema não-
governamental, principalmente se ele teria uma economia socialista ou capita-
lista.3 Não entrarei nesse debate aqui. Simplesmente assumirei o capitalismo
como a melhor alternativa. Isso não será assim porque não vale a pena considerar
formas socialistas de anarquismo, mas simplesmente porque a comparação de
dois sistemas sociais, democracia representativa e anarquia capitalista, se mos-
trará suficientemente complexa para nos ocupar pelo restante deste livro sem a
adição de outras alternativas.

8.1.4 Contra o viés do status quo


A maioria dos seres humanos demonstra uma tendência acentuada de ver os
arranjos atuais em sua própria sociedade, sejam eles quais forem, como certos e
bons (consulte a Seção 6.4). Esse viés explica como pessoas de culturas extre-
mamente diferentes podem considerar as práticas de suas próprias culturas as
melhores.
2
Courtois et al. 1999, parte 1.
3
Ver Caplan n.d. para discussão de variedades de anarquismo. Para defesas do anarquismo
socialista, veja Bakunin 1972; Kropotkin 2002.
8. Avaliando as Teorias Sociais 176

Uma forma potencial de viés do status quo é a prática de atribuir um pesado


ônus da prova a quem propõe um novo sistema social muito diferente do sistema
atual. Podemos sustentar que o reformador deve provar a superioridade de um
novo sistema e que qualquer dúvida sobre os méritos relativos do novo sistema e
do antigo sistema redunda em benefício do antigo. Esse ônus da prova pode ser
esmagador por dois motivos. Primeiro, a complexidade e a imprevisibilidade
das sociedades humanas tornam difícil ou impossível provar quase qualquer
coisa de interesse na teoria social.4 Diferenças intratáveis de opinião sobre as
consequências sociais de políticas, instituições e eventos sociais são comuns.
Portanto, adotar uma presunção em favor do status quo pode facilmente provar o
movimento decisivo que bloqueia a aceitação de praticamente qualquer mudança
social.
Segundo, a comparação abrangente de sistemas sociais amplos é extrema-
mente complexa. Muitas questões e problemas sociais são afetados pela estrutura
geral da sociedade – guerra, pobreza, inflação, dirigir embriagado, poluição,
racismo, abuso de drogas, tiroteios em escolas, dependência de combustíveis
fósseis, assistência médica, aborto, direitos dos animais, pena de morte. clona-
gem humana, educação, eutanásia, gravidez na adolescência, violência entre
gangues e assim por diante. Nenhum trabalho isolado poderia abordar todas as
questões sociais importantes – e, se fosse o caso, poucos teriam paciência para
lê-lo. Suponha, então, que adotemos o hábito de assumir, para cada questão
social, que o status quo representa a melhor maneira de lidar com essa questão
até prova em contrário. Isso daria novamente ao status quo uma vantagem es-
sencialmente intransponível sobre qualquer alternativa radical. Mesmo que um
reformador consiga argumentar minuciosamente que o status quo falha em várias
questões importantes, sempre haverá muito mais questões sobre as quais o status
quo triunfa por padrão, em virtude de não termos tido tempo de examiná-las
minuciosamente.
O que haveria de errado em conceder ao status quo uma enorme vantagem
dialética sobre alternativas radicais? O problema não é apenas uma das “in-
justiças” dialéticas. O problema é que é muito provável que essa metodologia
nos prenda a um sistema social inferior. Não há razão para supor que a própria
sociedade esteja organizada da melhor maneira. Portanto, é desejável encontrar
uma metodologia na teoria social que dê às estruturas sociais alternativas uma
chance razoável de serem escolhidas.
Nos capítulos seguintes, trato do que me parecem as preocupações mais
óbvias e sérias sobre o anarquismo. Não posso abordar como todas as questões
sociais importantes seriam tratadas em uma sociedade anarquista. Se, no entanto,
4
Ver Tetlock 2005 sobre a dificuldade da previsão política; mas veja também Caplan 2007a
para uma defesa qualificada de especialistas políticos.
8. Avaliando as Teorias Sociais 177

eu conseguir mostrar que os problemas que inicialmente parecem mais prováveis


de ocasionar refutações decisivas do anarquismo podem de fato ser bem tratados
por uma sociedade anarquista, o ônus da prova será transferido para os críticos
do anarquismo.

8.2 Uma concepção simplificada da natureza humana


Qualquer tentativa de descobrir as consequências de um amplo sistema social
deve se basear em algumas crenças sobre a natureza humana. Aqui, descrevo
minhas suposições gerais mais importantes sobre a natureza humana.

8.2.1 Os seres humanos são aproximadamente racionais


Os seres humanos geralmente escolhem ações com base em suas crenças e obje-
tivos. Uma pessoa é “instrumentalmente racional” quando escolhe a ação que,
com base em suas crenças atuais, parece fazer o melhor trabalho possível para
alcançar seus objetivos, quaisquer que sejam esses objetivos. Na vida cotidiana,
tomamos como certo que os seres humanos são aproximadamente, embora não
perfeitamente, instrumentalmente racionais.
Considere uma ilustração simples. Você vê uma menininha subindo em
uma árvore enquanto está chamando por “Bola de Neve”. Você percebe que ela
está se movendo em direção a um gato branco empoleirado na árvore. Como
você interpretaria o comportamento da menina? Salvo condições incomuns,
a interpretação mais natural seria que a menina está tentando tirar o gato da
árvore. Essa interpretação toma como garantida a racionalidade instrumental
(aproximada): atribui à garota um objetivo, tirar o gato da árvore, de modo
que seu comportamento faça sentido como uma maneira de persegui-lo. Sem
uma suposição de racionalidade instrumental básica, não haveria limite para
as possíveis interpretações. Se ela for irracional, a garota pode estar subindo
na árvore para fugir do gato. Ou para matar sua sede. Ou depor o presidente
do Egito. Em contextos normais, diríamos que essas “explicações” não fazem
sentido – e as explicações não fazem sentido porque não são compatíveis com o
comportamento do agente.
Quase toda ação intencional comum poderia ser usada com a mesma facili-
dade para ilustrar a ideia. Dirigir até a loja, colocar gasolina no carro, comprar
um pote de compota de maçã, pedir um aumento, deitar na cama, ir ao dentista,
cozinhar uma refeição, pegar o telefone – qualquer uma dessas ações pode ser ex-
plicada por referência (i) uma meta que possa ser atribuída de maneira plausível
ao agente; (ii) uma série de crenças precisas e razoáveis da parte do agente sobre
8. Avaliando as Teorias Sociais 178

o mundo e as consequências de suas ações; e (iii) a suposição de racionalidade


instrumental sobre parte do agente.
Há exceções à regra geral da racionalidade instrumental. Os psicólogos docu-
mentaram muitas falhas específicas da racionalidade, numerosas demais para
listar aqui.5 Além disso, existem algumas condições gerais que tornam mais
prováveis várias falhas da racionalidade: é mais provável que os seres humanos
cometam erros ao enfrentar situações desconhecidas e complexas ou situações em
que o raciocínio abstrato é necessário para determinar a escolha certa. Também
é provável que cometam erros nas decisões que não são importantes para eles,
onde não desejam dedicar pensamento suficiente para identificar a melhor opção.
É provável que a suposição de racionalidade instrumental seja válida quando
as pessoas enfrentam situações simples e familiares nas quais a melhor opção
é fácil de resolver. Também é muito provável que isso ocorra para gerentes de
negócios em setores competitivos. Negócios gerenciados irracionalmente tendem
a ter um desempenho inferior aos negócios gerenciados racionalmente. O último
expandirá enquanto o primeiro encolherá, até que o mercado seja dominado por
negócios relativamente racionais.

8.2.2 Os seres humanos estão cientes do seu ambiente


Os seres humanos tendem a possuir uma grande quantidade de informações
precisas e praticamente relevantes sobre seus ambientes e sobre as possíveis
consequências de suas ações. Eles geralmente não ignoram informações úteis ou
adotam crenças totalmente imprecisas sobre assuntos relevantes para a tomada
de decisões. Essa é uma variação do que os filósofos chamam de “princípio da
caridade”.6 O mesmo tipo de exemplo que ilustra a racionalidade instrumental
também pode ser usado para ilustrar esse princípio da caridade.
Considere novamente a menina subindo na árvore. Para entender seu com-
portamento, devemos assumir que o agente possui uma série de crenças sensatas
sobre si mesma e seu ambiente – que o gato está na árvore, que a árvore é um
objeto sólido, que objetos físicos tendem a cair para baixo quando não são su-
portados, que subir na árvore a aproximará do gato, sua mão não atravessará
5
Para uma amostra, ver Tversky e Kahnemann 1986 sobre efeitos de enquadramento; Arkes
e Blumer, 1985, sobre a influência dos custos irrecuperáveis; Tversky 1969 sobre preferências
intransitivas; e os vários artigos de Kahneman et al. 1982 e Gilovich et al. 2002.
6
Os filósofos geralmente entendem o princípio da caridade como o princípio de que, ao
interpretar os outros, é preciso atribuir a eles principalmente crenças verdadeiras (Davidson 1990,
129-30). Na minha opinião, o princípio mais fundamental é que se deve atribuir principalmente
crenças racionais a outras pessoas (ver Huemer 2005, 159-61). Contudo, em condições normais,
crenças racionais são geralmente verdadeiras, de modo que dois princípios da caridade produzem
resultados semelhantes. A ideia discutida no texto vai além disso, atribuindo um nível razoável
de conhecimento prático à maioria dos seres humanos.
8. Avaliando as Teorias Sociais 179

pelo gato e assim por diante. Na vida comum, não pararíamos com todas essas
crenças, mas todas elas estão implicadas no aparente plano da garota de subir na
árvore para tirar o gato – se ela ignorasse qualquer um desses fatos, não poderia
realizar esse plano. Novamente, este não é um exemplo incomum. Qualquer
uma de uma grande variedade de ações comuns poderia ser facilmente usada
para ilustrar o ponto.
Há várias exceções. As pessoas tendem a ignorar verdades complicadas e
abstratas sobre assuntos desconhecidos. Tendem a ignorar as informações que
consideram desinteressantes e que não as ajudam a alcançar seus objetivos. E
se algumas informações são custosas para reunir, em termos monetários ou em
termos de tempo e esforço, então relativamente poucas pessoas possuirão essas
informações.
Por outro lado, quando as informações são adquiridas de maneira fácil e
barata, fáceis de entender e relevantes para alcançar nossos objetivos, geralmente
as teremos. É particularmente provável que os gerentes de negócios em setores
competitivos possuam informações precisas relevantes para gerenciar seus ne-
gócios, uma vez que os negócios cujos gerentes permanecem ignorantes dessas
informações tenderão a ter um desempenho inferior aos negócios cujos gerentes
estão bem informados, permitindo que esses gerentes bem informados ao longo
do tempo dominem a indústria.

8.2.3 Os seres humanos são egoístas, mas não sociopatas


Eu sou extremamente egoísta. Comprei recentemente uma jaqueta de inverno
para mim a um custo de cerca de US$ 200. Já tinha alguns suéteres, camisas
e outras jaquetas; Simplesmente queria uma jaqueta melhor do que qualquer
outra que já tinha. Por isso, atendi a um desejo bastante trivial com esse gasto. Se
tivesse doado para um grupo de caridade que trabalha para combater a pobreza
mundial, esse mesmo dinheiro poderia ter salvado a vida de outra pessoa.7 Isso
sugere que valorizo meu próprio bem-estar talvez milhares de vezes mais do
que valorizo o bem-estar de estranhos em outras partes do mundo. No entanto,
por mais perturbador que isso possa parecer, não indica algum tipo de distúrbio
sociopático da minha parte. Nem indica um nível anormal de egoísmo. O
americano médio dá ainda menos à caridade do que eu, enquanto um terço
das famílias americanas não dá nada.8 A maioria dos seres humanos, quando
7
Algumas instituições de caridade afirmam salvar uma vida por US$ 100 doados (http:
//www.againstmalaria.com/OneChild.aspx); No entanto, Give Well fornece uma estimativa de
US$ 2.000 por vida salva (http://givewell.org/international/top-charities/AMF).
8
National Philanthropic Trust 2011.
8. Avaliando as Teorias Sociais 180

têm a chance de dar dinheiro a outros, escolhe ficar com o dinheiro para si,
principalmente se ninguém estiver sabendo.9
Para outra ilustração, imagine que você saberá que vai morrer amanhã. Em-
bora possa ser impossível imaginar com precisão como você se sentiria, é um
palpite seguro de que você ficaria bastante chateado. Agora vou lhe dizer uma
coisa que você provavelmente não saiba: com base nas estatísticas recentes de
mortalidade mundial, existem cerca de 156.000 seres humanos que de fato mor-
rerão amanhã. 10 Como você se sente agora? Você pode achar essas informações
perturbadoras. Mas se você é como a maioria das pessoas, fica muito menos
chateado com essa notícia do que com a notícia de que estava prestes a morrer.
Isso sugere, novamente, que sua preocupação consigo mesmo é talvez milhares
de vezes mais forte do que sua preocupação com a maioria das outras pessoas.
No entanto, existem muitas exceções à regra do egoísmo humano. Muitas
pessoas doam dinheiro voluntariamente para caridade, embora muito menos do
que poderiam doar.11 A maioria está preparada para fazer grandes sacrifícios pela
família, amigos, amantes ou outros de quem são próximos. E algumas pessoas,
como Albert Schweitzer ou Madre Teresa, dedicaram virtualmente suas vidas a
ajudar os outros.12
Talvez a maior e mais generalizada exceção à regra do egoísmo diga respeito
aos direitos negativos percebidos pelos outros: um ser humano comum pode
ou não sacrificar US$ 200 para salvar a vida de um estrangeiro em uma terra
estrangeira, mas quase todo mundo ficaria horrorizado com o pensamento de
matar um estranho por US$ 200. É certo que um pequeno número ficaria feliz em
matar outra pessoa por US$ 200 – os sociopatas não respeitam as normas sociais e
as capacidades de empatia, culpa, medo e horror que impedem a maioria dos seres
humanos de se machucar uns aos outros em circunstâncias normais. Felizmente,
porém, os sociopatas compreendem apenas cerca de 2% da população.13 Os
restantes 98% dos seres humanos estão preocupados com normas sociais, são
capazes de empatia e possuem uma rica variedade de emoções.
9
Em um experimento, Hoffman et al. (1994) deu aos participantes a chance de jogar “o jogo
do ditador”, no qual um indivíduo tem o poder unilateral de dividir uma soma de dinheiro entre
ele e outro indivíduo. Em uma versão cuidadosamente anônima, mais de 60% dos indivíduos
ditadores optaram por dar US$ 0 ao outro. No entanto, Hoffman et al. nota que em variações
não-anônimas, os indivíduos são um pouco mais generosos.
10
Ver Nações Unidas 2009 tabela DB5_F1
11
O National Philanthropic Trust (2011) relata que as doações de caridade totalizaram 2,1% do
PIB americano em 2009.
12
Algumas pessoas resistem a esse tipo de exemplo, alegando que de algum modo todos esses
tipos de comportamento são realmente, no fundo, egoístas. Veja Rachels 2003, capítulo 5, para
uma refutação padrão desta reivindicação.
13
American Psychiatric Association 1994, 648. Ver Hare 1993 para um retrato esclarecedor,
embora arrepiante, da personalidade psicopática.
8. Avaliando as Teorias Sociais 181

Assim, enquanto seres humanos comuns estão dispostos a fazer muito pouco
esforço positivo para ajudar outras pessoas com quem não têm um relaciona-
mento íntimo, também tendem a relutar em atacar diretamente outros seres
humanos ou violar positivamente as normas sociais geralmente aceitas de outras
maneiras, mesmo quando têm a ganhar fazendo isso.

8.2.4 A favor da simplificação


O exposto acima é um relato muito simplificado da natureza humana. Existem
inúmeras variações entre indivíduos e inúmeras motivações humanas que não
abordei. Por que é útil considerar uma imagem tão simplificada da humanidade?
Primeiro, observe que o argumento identifica fatores causais no comporta-
mento humano que são reais e grandes. Esse é um requisito para uma idealização
útil.14 Nós, seres humanos, realmente somos movidos por interesses próprios
e, na verdade, tendemos a tomar ações que provavelmente nos levarão ao que
queremos. Não mencionei todas as exceções a essas regras, mas tentei mencionar
as exceções mais importantes e bem estabelecidas.
Segundo, os princípios sobre a natureza humana listados nas subseções anteri-
ores são banais e dirigidos por observações de senso comum, e não por qualquer
ideologia partidária. Dessa forma, eles são diferentes da afirmação dos marxistas,
por exemplo, de que os seres humanos são fortemente motivados por interesses
de classe.15 A última afirmação é altamente controversa e aceita apenas por
aqueles com uma ideologia específica. Este ponto é muito importante, porque
ideologias conflitantes são o maior obstáculo ao progresso na teoria social.
Terceiro, meu relato simplificado da natureza humana nos permite derivar
muitas previsões qualitativas sobre os efeitos dos sistemas sociais de maneira
relativamente direta, com pouca necessidade de pedidos de julgamento. Existe
um corpo da teoria bem desenvolvido e convincente, compreendendo economia e
teoria dos jogos, que elabora as consequências da suposição do egoísmo racional.
Aqueles familiarizados com a teoria geralmente podem concordar com uma
grande variedade de previsões, independentemente de suas inclinações morais,
religiosas ou políticas iniciais.16 Isso é importante, novamente, para progredir
14
Friedman (1953) argumenta que um modelo não precisa estar nem um pouco próximo da
realidade; precisa apenas ter previsões empíricas corretas. É possível que uma teoria que esteja
muito longe da verdade tenha previsões muito precisas (como no caso da astronomia ptolomaica).
No entanto, passo Friedman, acredito que é improvável que isso ocorra para as teorias da natureza
humana.
15
Marx e Engels 1978, 218.
16
Não é possível transmitir o poder da teoria econômica moderna em um espaço curto. Para
uma excelente introdução à microeconomia, consulte o livro de David Friedman (1990) disponível
em http://www.daviddfriedman.com/Academic/Price_Theory/PThy_ToC.html.
8. Avaliando as Teorias Sociais 182

na teoria social. Quanto mais simples forem as suposições da teoria, e quanto


mais objetivas forem suas previsões, menos espaço haverá para o viés humano
e a irracionalidade manipularem a teoria. Devido ao enorme papel que o viés
desempenha no discurso político17 , essa é uma das virtudes mais importantes
que uma teoria nessa área pode ter.

8.2.5 Uma aplicação histórica


O relato simplificado da natureza humana que descrevi faz previsões úteis sobre
certos sistemas sociais. Tomemos o caso de uma teoria social que propõe que
todos os cidadãos trabalhem em benefício da sociedade e recebam salário igual.
Uma previsão teórica simples é que, nesse sistema, a produtividade diminuirá. Os
indivíduos têm um alto grau de controle sobre sua própria produtividade, e maior
produtividade geralmente exige maior esforço. Como a maioria das pessoas é
racionalmente egoísta, não fará muito esforço para ser produtivo, a menos que
espere receber benefícios pessoais por isso. Portanto, se todos forem pagos de
maneira igual e se não houver outras recompensas ou punições associadas à
qualidade e quantidade do trabalho, as pessoas não serão muito produtivas.
Esta previsão está de fato correta. As experiências do século XX com sistemas
sociais nesse escopo são bem conhecidas, então não vou me alongar nisso. Uma
ilustração interessante, mas pouco conhecida, é fornecida pelo primeiro experi-
mento da América com o comunismo, que ocorreu em Jamestown, o primeiro
assentamento permanente inglês na América.18 Quando a colônia foi estabelecida
em 1607, sua carta fundadora estipulava que cada colono teria direito a uma
parcela igual do produto da colônia, independentemente de quanto esse indiví-
duo produzisse pessoalmente. O resultado: os colonos fizeram pouco trabalho e
pouca comida foi produzida. Dos 104 colonos fundadores, dois terços morreram
no primeiro ano – em parte devido à água impura, mas principalmente devido
à fome. Mais colonos chegaram da Inglaterra, de modo que em 1609 havia 500
colonos. Desses, apenas 60 sobreviveram ao inverno de 1609–10.19 Em 1611,
a Inglaterra enviou um novo governador, Sir Thomas Dale, que encontrou os
colonos esqueléticos jogando nas ruas em vez de trabalhando. Sua principal fonte
17
Ver Huemer “Why People Are Irrational about Politics” (n.d.) e Caplan 2007b.
18
O argumento no texto é baseado em Schmidtz 2008, Contoski 2010, Wadhwa 2005 e Smith
1986. As citações de Smith são da Generall Historie of Virginia, New England, and the Summer Iles,
livro 4, originalmente publicado pelo capitão John Smith, em 1624. Smith foi um dos líderes da
colônia de 1607 a 1609, quando retornou à Inglaterra.
19
Segundo Smith (1986, 232–3), os nativos interromperam o comércio naquele momento e
atacaram a colônia. No entanto, Smith atribui o inverno desastroso, que chama de “tempo de
fome”, à “falta de providência, indústria e governo, e não à aridez do país, como geralmente se
supõe”.
8. Avaliando as Teorias Sociais 183

de alimento eram plantas e animais silvestres, que acumulavam secretamente


à noite para evitar a obrigação de compartilhar com seus vizinhos. Mais tarde,
Dale converteu a colônia em um sistema baseado em propriedade privada, con-
cedendo a todos os colonos um terreno de três acres para cuidar de seu próprio
benefício individual. O resultado foi um aumento dramático na produção. De
acordo com a história contemporânea do capitão John Smith,

Quando nosso povo era alimentado pelo acúmulo comum e trabalho


conjunto, feliz estava ele [quem] podendo escapar de seu trabalho ou
dormindo por causa de sua tarefa, ele não se importava mais; os mais
honestos entre eles dificilmente sofreriam tantas dores verdadeiras
em uma semana como agora para eles mesmos sofrem em apenas
um dia [. . . ] de modo que não colhemos tanto milho do trabalho de
trinta, como agora três ou quatro provêm para eles.20

Uma lição deste episódio é que, por mais simples que seja o relato da natureza
humana que eu tenha desenvolvido, ele pode produzir previsões muito úteis. Se
a companhia que criou a carta de Jamestown conhecesse um pouco de economia,
centenas de vidas poderiam ter sido poupadas. Outra lição é que o impacto
do egoísmo humano depende muito do sistema social no qual as pessoas estão
inseridas: em um tipo de sistema, o egoísmo pode ter consequências desastrosas,
enquanto em outro promove a prosperidade.

8.3 Utopia e realismo


8.3.1 O princípio do realismo
Quando os arranjos políticos e sociais propostos são criticados, geralmente é por
ser prejudicial ou injusto. Às vezes, porém, uma visão de sociedade é perfeita-
mente justa e altamente benéfica, e ainda assim a rejeitamos com o argumento
de que a ideia é irrealista demais ou “utópica”.21
Considere, por exemplo, uma posição que poderíamos chamar de “socialismo
utópico”. O socialista utópico sustenta que todos devem ser pagos igualmente,
independentemente da produtividade. Na última seção, vimos que arranjos
desse tipo podem levar à subprodução, colocando as coisas com suavidade. O
socialista utópico trata desse problema simplesmente propondo que todos nós, a
partir de então, concordemos em nos comportar desinteressadamente. Se todos
20
Smith 1986, 247. Modernizei a ortografia e a pontuação. Smith está parafraseando levemente
as palavras do secretário da colônia Hamor (1614, 17).
21
Ver Cowen 2007a para discussão.
8. Avaliando as Teorias Sociais 184

trabalharmos voluntariamente para o bem da sociedade, não haverá problema. É


verdade que isso não aconteceu no passado; no entanto, diz o socialista utópico,
é o que deveria acontecer.
Intuitivamente, essa ideia é problemática como uma filosofia política e social,
independentemente da sociedade que representa ser justa ou desejável, porque a
ideia é irrealista demais. Parece exigir uma alteração em um aspecto robusto da
natureza humana, sem propor um mecanismo plausível para isso. Considere,
por exemplo, uma posição que poderíamos chamar de “socialismo utópico”. O
socialista utópico sustenta que todos devem ser pagos igualmente, independente-
mente da produtividade. Na última seção, vimos que arranjos desse tipo podem
levar à subprodução, colocando as coisas com suavidade. O socialista utópico
trata desse problema simplesmente propondo que todos nós, a partir de então,
concordemos em nos comportar desinteressadamente. Se todos trabalharmos
voluntariamente para o bem da sociedade, não haverá problema. É verdade
que isso não aconteceu no passado; no entanto, diz o socialista utópico, é o que
deveria acontecer.
Intuitivamente, essa ideia é problemática como uma filosofia política e social,
independentemente da sociedade que representa ser justa ou desejável, porque a
ideia é irrealista demais. Parece exigir uma alteração em um aspecto robusto da
natureza humana, sem propor um mecanismo plausível para isso.
Muitos acreditam que o anarquismo também cai sob a acusação de utopia
excessiva. Esses críticos acusam os anarquistas de confiar em suposições irrea-
listicamente otimistas sobre a natureza humana.22 Como podemos evitar essa
objeção?

8.3.2 Prescrição para um anarquismo realista


Para evitar a utopia excessiva, devemos respeitar as seguintes restrições:

i Não podemos assumir níveis irrealistas de motivação altruísta. Ao examinar


as vantagens e desvantagens do sistema, devemos assumir que a sociedade
anarquista será povoada por pessoas com níveis relativamente normais de
egoísmo, e devemos aceitar as consequências desse egoísmo dentro da estru-
tura social específica.

ii Não podemos assumir racionalidade ou conhecimento perfeitos. Nossa defesa


do anarquismo deve ser consistente com o fato de que as pessoas periodica-
mente cometem erros.
22
Heywood 1992, 198; Wolff 1996, pp. 33–4.
8. Avaliando as Teorias Sociais 185

iii Não podemos assumir uniformidade psicológica. Devemos reconhecer o fato


de que os seres humanos têm uma variedade de motivações e traços de caráter;
por exemplo, que alguns indivíduos são extraordinariamente agressivos ou
imprudentes.

iv Não podemos simplesmente assumir a persistência do sistema ao longo do


tempo. Em vez disso, devemos ser capazes de argumentar que, uma vez
adotado, o sistema seria capaz de resistir a forças que poderiam prejudicá-lo.

v Não podemos assumir a adoção simultânea e mundial do sistema, uma vez


que não existe uma maneira plausível de isso acontecer. Devemos imaginar
que (talvez como um estágio de transição) alguma região ou grupo limitado
se torne anarquista em um mundo dominado por Estados.

Por outro lado, vale a pena notar duas coisas que não tornam uma teoria
social excessivamente utópica:

i Se uma teoria “não pode” ser implementada simplesmente no sentido de


que as pessoas não podem ser convencidas a implementá-la, isso não torna a
teoria muito utópica.

Como analogia, suponha que me seja proposto que doe US$ 200 para caridade
este mês. Respondo: “Não, isso não é realista, porque me recuso a fazê-lo”.
Intuitivamente, não articulei uma objeção válida à minha doação de US$ 200, por
mais intransigente que possa ter sido minha recusa. Da mesma forma, a recusa
da maioria dos membros da sociedade de levar o anarquismo a sério, e muito
menos de tentar implementá-lo, não cria uma objeção válida ao anarquismo.
Obviamente, se a maioria das pessoas tem algum motivo para rejeitar a teoria,
essa razão pode ser citada como uma objeção à teoria. O anarquismo deve ser
avaliado supondo, talvez de maneira improvável, que o sistema seja adotado e
considerando a partir daí se resultaria num estado de coisas desejável e justo.

ii Para ser suficientemente realista, um modelo para a sociedade não precisa ser
viável ou desejável em todas as condições sociais. Só é preciso argumentar
que existem algumas condições, provavelmente a serem realizadas agora ou
no futuro, sob as quais o modelo seria bem-sucedido.

Nos capítulos seguintes, tentarei caracterizar um tipo de sociedade anarquista


que seria estável e habitável sob algumas condições realistas, apesar da existência
de criminosos, dissidentes, egoísmo humano e governos estrangeiros.
8. Avaliando as Teorias Sociais 186

8.3.3 Contra o estatismo utópico


É amplamente reconhecido que os anarquistas enfrentam um desafio significativo
de evitar a utopia. É amplamente reconhecido, também, que algumas teorias não-
anarquistas, como certas formas de socialismo, enfrentam acusações de utopia.
O que é menos reconhecido é que mesmo teorias políticas moderadas e muito
convencionais podem ser utópicas.
Por exemplo, a teoria da democracia liberal pode ser muito utópica. Não seria
excessivamente utópico simplesmente advogar que mantemos as instituições
atuais, funcionando exatamente como agora. Mas poucos pensadores adotam
essa posição. Muitos acreditam que é necessário algum grau de reforma – por
exemplo, que o processo democrático deva ser menos influenciado por grupos
de interesse especial. Quanto mais se sabe como o governo realmente funciona,
menos provável é que se possa sinceramente afirmar que ele opera como deveria.
Isso abre a possibilidade de que as mudanças que gostaríamos de ver nos Estados
democráticos sejam excessivamente utópicas. Os defensores da democracia
liberal enfrentam as mesmas restrições contra a utopia que os defensores de
posições mais radicais, como o anarquismo ou o socialismo.
Pode parecer estranho sugerir que uma posição democrática liberal dominante
possa se mostrar utópica demais, enquanto alguma alternativa anarquista radical
pode ser suficientemente realista. Mas a distinção entre utopia e realismo não se
importa com a distância de uma proposta do status quo nem com a distancia da
corrente principal do pensamento político. A distinção entre utopia e realismo
preocupa-se principalmente, grosso modo, se uma ideia política ou social exige
violações da natureza humana. Uma visão política convencional pode exigir tais
violações, enquanto alguma alternativa radical não. É perfeitamente possível que
uma pequena mudança seja inviável, enquanto alguma mudança muito maior é
viável.
Uma forma comum de utopia consiste em confundir o modo como indivíduos
e organizações devem se comportar com o modo como se comportarão. Quando
os sistemas sociais são avaliados, não importa como um sistema deve funcionar;
o que importa é como se espera que funcione sob suposições realistas sobre
a natureza humana. Por exemplo, podemos dizer que a função do governo é
proteger os direitos de seus cidadãos, mas nada segue sobre o que o governo
realmente fará. Na ausência de um mecanismo eficaz para induzir os agentes do
governo a despacharem eficientemente suas funções declaradas, não podemos
assumir que os cidadãos receberão proteção adequada. O ponto aqui não é que
o governo não nos proteja; o ponto é que, se o governo é um mecanismo eficaz
para proteger os direitos individuais, promover o bem-estar social ou promover
qualquer outro objetivo, deve ser estabelecido por argumentos e evidências, não
as ter como garantidas simplesmente por causa do objetivo declarado do governo.
8. Avaliando as Teorias Sociais 187

Uma forma relacionada de utopia consiste em suspender suposições gerais


sobre a natureza humana ao considerar agentes do Estado. Os defensores do
governo costumam apontar os danos que podem resultar da ganância generali-
zada e do egoísmo da humanidade na ausência de um governo capaz de conter
nossos piores excessos. No entanto, raramente param para considerar o que
pode resultar da mesma ganância e egoísmo na presença do governo, supondo
que os agentes do governo sejam igualmente propensos a essas mesmas falhas.
Não é que os estatistas tenham alguma explicação de por que os funcionários do
governo são mais virtuosos que as pessoas comuns. Nem têm algum plano para
fazer isso acontecer. Antes, parece simplesmente nunca ter ocorrido à maioria
dos estatistas aplicar suposições realistas sobre a natureza humana ao próprio
governo. O Estado é tratado como se estivesse acima do mundo humano em-
pírico, transcendendo não apenas as restrições morais, mas também as forças
psicológicas que se aplicam a seres humanos individuais.
Qualquer sistema social, seja anarquista ou estatista, deve ser julgado pelo seu
desempenho quando habitado por pessoas reais, como as que encontramos no
mundo real. Não importa se a anarquia funcionaria bem em um mundo em que
todos os indivíduos sejam altruístas e sempre respeitam os direitos um do outro.
Da mesma forma, não importa se o governo funcionaria bem em um mundo em
que todos os agentes do governo sejam altruístas e sempre respeitam os direitos
dos indivíduos.
9

A Lógica da Predação

O uso direto da força física é uma solução tão pobre para o problema dos recursos
limitados que geralmente é empregado apenas por crianças pequenas e grandes
nações.
– David Friedman1

9.1 O argumento hobbesiano para o governo


No século XVII, Thomas Hobbes articulou uma das explicações mais influen-
tes da necessidade de governo.2 Hobbes começa com a suposição de que os
seres humanos são motivados inteiramente pelo interesse próprio e que possuem
habilidades mentais e físicas aproximadamente iguais, de modo que todo indi-
víduo pode representar uma ameaça séria para qualquer outro. Agora imagine
esses seres vivendo no “estado de natureza”; isto é, um estado sem governo
ou leis. Essas pessoas entrariam em conflito frequente entre si, por três razões.
Primeiro, as pessoas se atacariam para roubar os recursos; Hobbes chama isso
de “competição”. Segundo, as pessoas se atacariam preventivamente – ou seja,
uma pode decidir matar ou ferir permanentemente outra pessoa, simplesmente
para impedir que essa outra pessoa possa machucar alguém no futuro; Hobbes
chama isso de “desconfiança”. Terceiro, as pessoas lutariam pela “glória” – isto
é, uma pode atacar outra para forçar a outra a expressar respeito para si mesma.
Por essas razões, Hobbes acreditava que o estado de natureza seria um estado
de guerra perpétua de todos contra todos. Não haveria indústria, comércio ou
1
Friedman 1989, 4.
2
Hobbes 1996, especialmente os capítulos 13–17.

188
9. A Lógica da Predação 189

cultura. Todos viveriam com medo constante da morte violenta e suas vidas
seriam “solitárias, pobres, desagradáveis, brutais e curtas”.3
A solução, na visão de Hobbes, era de que todos concordassem em estabelecer
um governo e conceder a ele poder absoluto. O governo seria capaz de proteger
indivíduos uns dos outros. Nem, na opinião de Hobbes, as pessoas deveriam
temer ferimentos nas mãos do próprio Estado. Os governantes naturalmente
querem que o povo sobreviva e prospere, porque isso tornará os governantes
mais ricos e poderosos.
Por que o Estado deveria receber poder absoluto, em vez de apenas poderes
limitados e bem definidos? A resposta de Hobbes é dupla: primeiro, não há
necessidade de limitar o poder do Estado, porque o poder excessivo do Estado
não causa problemas significativos. Segundo, não é possível limitar o poder do
Estado, a menos que haja outro agente ainda mais poderoso que possa exercer
controle sobre o Estado.4
A essência do argumento hobbesiano para o governo pode ser separada de
algumas das reivindicações mais extremas de Hobbes. Não é necessário sustentar
que os seres humanos são totalmente egoístas para concordar com Hobbes de
que o estado de natureza estaria repleto de conflitos; Um conflito sério pode
surgir se as pessoas forem amplamente, mesmo que não inteiramente, egoístas.
Nem é preciso seguir Hobbes para abraçar o totalitarismo; talvez haja formas de
governo melhores e menos absolutas.
O argumento hobbesiano para o governo é essencialmente teoria dos jogos.
Baseia-se em duas afirmações principais: primeiro, quando o poder é distribuído
de forma aproximadamente igual entre os indivíduos, é prudente para os indiví-
duos se atacarem com frequência; segundo, que quando o poder é distribuído
de maneira extremamente desigual, concentrado quase inteiramente nas mãos
de uma única pessoa ou organização, é prudente, tanto para o poderoso agente
quanto para todos os outros, cooperar pacificamente.
Embora poucos hoje adotem o egoísmo radical de Hobbes ou seu totalitarismo,
muitos aceitam seu argumento básico em favor do governo. É comum afirmar
que, quanto mais pessimista é a natureza humana, mais absoluta é a forma de
governo que se deve endossar – de modo que Hobbes, com a visão mais cínica
da natureza humana, endossa naturalmente o governo totalitário. Em contraste,
muitas vezes se pensa que os anarquistas têm as visões radicalmente otimistas
sobre a natureza humana.5
Tudo isso, como argumentarei, é precisamente ao contrário, como é a análise
de Hobbes, tanto do estado de natureza quanto do governo.
3
Hobbes 1996, capítulo 13, 89.
4
Hobbes 1996, capítulo 20, 144–5.
5
Heywood 1992, 198; Adams 2001, 133–5; Wolff 1996, 33–4.
9. A Lógica da Predação 190

9.2 Predação no estado de natureza


9.2.1 Considerações da teoria dos jogos
Imagine que você e seu vizinho Abel vivem no estado de natureza. Você está
tentando decidir se seria uma boa ideia atacar Abel. Abel tem algumas maçãs
saborosas. A perspectiva de conseguir alguma comida sem precisar trabalhar
para isso seria uma vantagem em potencial de atacá-lo. Por outro lado, há a
desvantagem de que o ataque pode levar você a ser gravemente ferido ou morto.
Existem três razões principais para isso:

a Abel quase certamente tentará se defender. Sendo, como Hobbes diz, com
habilidades mentais e físicas aproximadamente iguais às suas, Abel teria uma
chance substancial de ferir ou matar seriamente você no combate que se seguir.
Talvez você espere pegar Abel de surpresa e, assim, matá-lo antes que ele tenha
uma chance de matá-lo. É improvável, no entanto, que você possa conceber
um plano desse tipo que não apresente riscos significativos para si mesmo.
Os planos costumam dar errado, e quem tem o hábito de planejar a morte de
outras pessoas provavelmente desaparecerá em breve e terminará morto.
Você pode esperar que Abel, ansioso para evitar ferimentos, fuja do seu ataque
em vez de revidar. Mas é provável que Abel simplesmente não deixe seu roubo
passar em branco. Se ele permitir que seu roubo passe sem retaliação, ele
convida você e qualquer outro predador que souber do evento a atacá-lo e
roubá-lo no futuro. Se Abel fugir da cena, portanto, provavelmente será apenas
para tramar sua vingança em um momento mais oportuno.6

b Um ou mais membros da família ou amigos de Abel podem decidir vingar sua


morte. Uma razão para isso seria que estavam zangados com o seu assassinato
por um psicopata (contrariando Hobbes, as pessoas se preocupam com sua
família e amigos). Outro motivo é que eles podem enviar uma mensagem a
outros predadores em potencial: nossa família não pode ser atacada impune-
mente. Os vingadores de Abel podem atacar você no momento e local de sua
escolha, e pode haver mais de um deles. Portanto, novamente, é provável que
você seja gravemente ferido ou morto.
6
Friedman (1994) oferece um argumento da teoria dos jogos mais elaborado para compor-
tamentos que respeitam os direitos de egoístas racionais em um estado de natureza. Resumi-
damente, Friedman argumenta que os agentes no estado de natureza enfrentam um problema
de coordenação: ninguém quer guerra, mas para evitar a guerra, devem concordar com um
conjunto de regras para a coexistência pacífica. O respeito mútuo pelos direitos oferece um ponto
de Schelling que resolve esse problema de coordenação.
9. A Lógica da Predação 191

c Lembre-se de que, na visão de Hobbes, uma das três principais fontes de vio-
lência no estado de natureza é o ataque preventivo (devido à “desconfiança”).
As pessoas interessadas em ataques preventivos têm mais chances de atingir
aqueles que representam a maior ameaça. E aqueles que já se envolveram em
ataques não provocados contra seus vizinhos provavelmente serão vistos como
as maiores ameaças. Então, ao atacar Abel, você ficará marcado para ataque
de vizinhos desconfiados.

Por esses motivos, os riscos de atacar os vizinhos normalmente superam os


benefícios em potencial. Somente se você estivesse em risco de morrer de fome e
não tivesse opções seguras para procurar comida, seria prudente tentar roubar
Abel. Você naturalmente tomaria precauções para evitar estar nessa situação.
E se, em vez de atacar Abel por conta própria, você se unir a alguns predadores
afins para roubar Abel e dividir sua propriedade entre vocês? Nesse caso, é muito
menos provável que você seja morto durante o cometimento do crime. No entanto,
este plano está repleto de perigos. Se você deixar Abel vivo, ele poderá se vingar
mais tarde, quando você estiver sozinho. Se necessário, ele pode trazer sua
própria gangue para ajudar. Se você matar Abel, sua família ou amigos podem
decidir vingá-lo. Em ambos os casos, outros vizinhos desconfiados podem decidir
que você é uma ameaça que precisa ser eliminada, e nada os impede de se unir,
assim como você e seus colegas ladrões. Finalmente, existe a desvantagem de
que, para executar esse plano, você deve se associar a uma gangue de ladrões
e (possivelmente) assassinos. Pessoas desse tipo não são conhecidas por sua
confiabilidade, portanto há uma boa chance de que um ou mais deles, em algum
momento, tentem enganá-lo e/ou matá-lo.
Até agora, tenho apelado ao seu interesse racional. Mas, como observado no
capítulo anterior, os seres humanos são apenas aproximadamente racionais e
apenas aproximadamente egoístas. Isso altera nossas conclusões?
Não, não altera. Primeiro, observe que os tipos de casos em que normalmente
observamos falhas de racionalidade não afetam o raciocínio acima. O raciocínio
para evitar o comportamento predatório no estado de natureza não é muito
complexo, desconhecido ou abstrato para uma pessoa comum seguir. Nem é
impedido por nenhuma das heurísticas e vieses que os psicólogos descobriram;
não importa, por exemplo, se uma pessoa regularmente é vítima da falácia
da conjunção, ignora as taxas base e tenta recuperar os custos irrecuperáveis.7
Nenhuma dessas falhas cognitivas impede que alguém compreenda o argumento
7
A falácia da conjunção envolve julgar “A e B” mais provável que “A”; ver Tversky e Kahneman
2002. A falácia da taxa base envolve ignorar informações sobre a frequência de uma característica
em uma população; ver Tversky e Kahneman, 1982. O erro sobre os custos irrecuperáveis envolve
a escolha de uma opção inferior porque a pessoa já pagou por ela; veja Arkes e Blumer 1985.
Todos esses são exemplos bem estabelecidos de irracionalidade humana.
9. A Lógica da Predação 192

direto contra a predação no estado de natureza: se você atacar seus vizinhos, eles
podem atacá-lo por sua vez.
Nem nenhuma das exceções à regra do egoísmo humano se opõe à nossa
conclusão. Contrariando Hobbes, a maioria dos seres humanos não é sociopata.
A maioria se preocupa com os outros, principalmente com a família e os ami-
gos. A maioria tem fortes objeções morais e fortes sentimentos negativos sobre
violência e roubo. Esses fatos só poderiam fortalecer a conclusão desta seção.
Quando a prudência e a moralidade apontam na mesma direção, quase todo
mundo escolhe esse caminho. Em um capítulo posterior (capítulo 10), discutirei
instituições projetadas para lidar com os poucos indivíduos imprudentes que
cometem agressão, apesar da tolice de fazê-lo.
O princípio geral da teoria dos jogos é o seguinte: igualdade de poder gera
respeito. Nenhuma pessoa racional deseja entrar em conflito violento com outras
pessoas que tenham força igual a si mesma. As chances de perder o conflito são
grandes demais. É provável que até o vencedor nominal termine pior do que
antes do conflito, porque o dano causado pela luta é quase sempre maior que o
valor dos recursos que estão em disputa. Por essas razões, indivíduos racionais
lutam apenas em batalhas defensivas.

9.2.2 Condições sociais que afetam a prevalência de violência


As considerações gerais da teoria dos jogos apresentadas na subseção anterior
ajudam a explicar por que a maioria dos adultos normais nunca participa de
combate físico. No entanto, a violência interpessoal era muito mais comum
nos séculos anteriores do que é hoje.8 Por quê? Nossos ancestrais eram menos
racionais do que nós? Enfrentaram circunstâncias diferentes, de modo que os
argumentos precedentes da teoria dos jogos de alguma forma não se aplicaram a
eles? Pelo menos três fatores sociais amplos podem ajudar a explicar o declínio da
violência. Uma é questão de valores sociais. Membros de sociedades ocidentais
modernas abrigam crenças e atitudes muito mais liberais, particularmente no
que se refere à violência, do que aquelas que dominaram a maioria das culturas
durante a maior parte da história humana.9 Historicamente, o combate físico
era frequentemente visto como honroso, enquanto hoje geralmente vemos como
horrível. Olhos civilizados olham horrorizados para práticas como combate de
gladiadores, decapitações públicas e câmaras de tortura medievais. E é preciso
examinar apenas os textos religiosos tradicionais para ficar chocado com a varie-
8
Ver Pinker 2011, especialmente o Capítulo 3.
9
Mueller 2004; Pinker 2011.
9. A Lógica da Predação 193

dade de crimes pelos quais as gerações anteriores de humanos consideravam a


morte ou o desmembramento como punições apropriadas.10
Um segundo fator importante é a economia. O argumento da teoria dos
jogos para a coexistência pacífica pressupõe que os bens necessários para a
sobrevivência estejam disponíveis por meios pacíficos. Nas sociedades primitivas,
porém, as condições de escassez com risco de morte eram muito mais comuns do
que são hoje; assim, as pessoas tinham menos a perder ao se envolver em roubos
e violência. À medida que os seres humanos se tornam mais prósperos, a noção
de luta por recursos se torna cada vez mais irracional.
O terceiro fator é a tecnologia das armas. O argumento da subseção anterior
pressupõe que os indivíduos representam ameaças físicas aproximadamente
iguais entre si, de modo que conflitos violentos entre dois indivíduos represen-
tam riscos graves para ambos. Porém, nos séculos anteriores, a capacidade de se
defender dependia de força e habilidade com uma espada ou arma semelhante,
nenhuma das quais era distribuída igualmente entre a população. Hoje, a auto-
defesa eficaz está disponível através de armas de fogo modernas, exigindo força
e habilidade mínimas e apenas meios econômicos modestos. Foi em vista dessa
mudança que, no século XIX, o popular revólver Colt passou a ser chamado de
“o equalizador”.
As principais razões para esperar que o estado de natureza seja um estado
de paz não se aplicam com igual força em todas as condições sociais. Em uma
sociedade com recursos muito escassos, tecnologia limitada das armas e atitudes
complacentes em relação à violência, deve-se esperar que conflitos violentos sejam
muito mais comuns do que em uma sociedade caracterizada por prosperidade,
tecnologia avançada e uma cultura liberal.
Um hobbesiano poderia argumentar que, se alguém começa com uma so-
ciedade primitiva em um estado de natureza, conflitos violentos constantes
impedirão que a sociedade evolua para uma sociedade avançada e próspera, a
menos que a sociedade estabeleça primeiro um governo. Seja como for, uma vez
que se tenha uma sociedade liberal avançada, próspera, a necessidade contínua
de governo está longe de ser clara, independentemente do papel que o governo
possa ter desempenhado para promover esse estado da sociedade. Os argumen-
tos da teoria dos jogos não estabelecem essa necessidade. Para defender uma
necessidade de governo, seria necessário postular um alto grau de irracionalidade
e imprudência.
10
A Bíblia prescreve a execução por adultério (Levítico 20:10), homossexualidade (Levítico
20:13), sexo antes do casamento (Deuteronômio 22: 20–1), trabalho no sábado (Êxodo 35: 2)
e quando se amaldiçoa os pais (Levítico) 20: 9). O Alcorão prescreve desmembramento para
ladrões (Sura 5.38) e morte para aqueles que se opõem ao Islã (Sura 5.33, 9.5, 9.29-31).
9. A Lógica da Predação 194

9.2.3 Violência entre Estados


É natural se perguntar se a análise acima pode ser aplicada a Estados-nação e a
indivíduos. Deveríamos esperar que os Estados se entendessem pacificamente,
pelo menos quando tiverem poder aproximadamente igual?
A resposta é não. Os Estados não são indivíduos e seu comportamento não
pode ser corretamente explicado da mesma maneira que o dos indivíduos – por
exemplo, citando suas crenças e desejos. Os Estados não têm crenças ou desejos
próprios. O comportamento de um Estado deve ser explicado em termos das
escolhas dos indivíduos que têm poder de decisão dentro do Estado.
A decisão de um Estado de ir à guerra difere de maneiras cruciais da decisão de
um indivíduo que decide se deve entrar em combate físico com outro indivíduo.
Mais notavelmente, o indivíduo arcaria com o risco pessoal de ferimento ou
morte, se a outra parte se provar difícil de ser subjugada. Mas os líderes que
decidem levar seu país à guerra quase nunca assumem pessoalmente os riscos
de ferimentos ou morte que resultam dela. Ao decidir invadir o Iraque em 2003,
por exemplo, o presidente Bush não precisou considerar o risco de ser morto no
conflito. Assim, o principal argumento prudencial que nos leva a esperar que os
indivíduos escolham a coexistência pacífica com outros indivíduos não se aplica
aos Estados.
Obviamente, nenhum líder deseja entrar em um conflito onde sua nação
perderá. Mas quando os custos da derrota são mais parecidos com a perda
de prestígio do que com ferimentos pessoais ou morte, pode-se esperar que os
líderes demonstrem uma aceitação de risco muito maior do que um indivíduo
que decide iniciar pessoalmente um combate mortal com outro indivíduo. Pela
mesma razão, não está claro a priori que a igualdade aproximada de poder entre
dois Estados deterá seus líderes de iniciar hostilidades da mesma maneira que
esperamos que dissuadisse indivíduos particulares. De fato, acadêmicos em
relações internacionais descobriram que pares de nações de poder comparável
têm maior probabilidade de entrar em guerra do que pares com uma grande
diferença de poder.11
Voltaremos à questão das causas da guerra no capítulo 12 . Por enquanto,
o ponto importante é que não se deve presumir que análises de cooperação e
conflito em nível individual possam ser transferidas para o nível de governo.
11
Bremer 1992, 326, 334–8.
12
Hobbes 1996, 121-7, 144-5, 148.
9. A Lógica da Predação 195

9.3 Predação em um Estado totalitário


Vimos que, no estado de natureza, havia três medos que impediam você de atacar
e roubar Abel: primeiro, que Abel resistisse à sua agressão com força; segundo,
que a família ou os amigos de Abel podiam vingá-lo; terceiro, que vizinhos
temerosos podiam vê-lo como uma ameaça que precisa ser neutralizada. Mas
agora imagine que você acabou de receber o poder do governo, que, na visão
de Hobbes, é o mais absoluto de todos os poderes humanos.12 Agora todas as
três razões para respeitar os direitos de Abel foram removidas. Se você decidir
roubar a comida de Abel, ele não terá meios eficazes de resistência. Se você matar
Abel, sua família e amigos não terão meios eficazes de vingança. E por mais que
os vizinhos temerosos reconheçam você como uma ameaça, dificilmente terão
meios eficazes de tentar neutralizá-lo. Não há mais nada para impedi-lo de tudo
o que desejar fazer aos seus infelizes vizinhos. Como egoísta racional, portanto,
você certamente considerará roubar a maioria dos recursos de Abel, forçando-o
a continuar trabalhando para produzir mais para você roubar.
Que tal se esforçar, por meio da boa governança, garantindo que sua sociedade
seja a mais próspera possível? Isso lhe dará mais para roubar. Como Hobbes
proclama, quanto mais forte e mais próspero o povo for, mais forte e mais próspero
será o governante.13
Embora esse seja um dos motivos para trabalhar e garantir uma sociedade
produtiva, há outros motivos pelos quais você pode não querer se preocupar.
Para começar, se a sociedade sobre a qual você governa é razoavelmente grande,
deve ser possível extorquir espólios suficientes da população para manter-se em
conforto, mesmo que as pessoas sejam carentes. Kim Jong-il, ditador comunista
da Coréia do Norte, acumulou mais de US$ 4 bilhões, enquanto milhões de seus
súditos passavam fome e o PIB per capita de seu país representava pouco menos
de um quinto da média mundial.14 É verdade que Kim poderia ter acumulado
ainda mais riqueza se seu país tivesse um sistema econômico mais produtivo.
Mas a riqueza tem uma utilidade marginal decrescente: depois de reunir os
primeiros quatro bilhões de dólares, a maioria das necessidades é satisfeita e o
próximo bilhão faz relativamente pouca diferença para o seu bem-estar geral. Não
vale a pena enfrentar grandes problemas ou desistir de qualquer outra coisa com
a qual se preocupe para coletar mais dinheiro. E a boa governança costuma ser
uma coisa difícil de alcançar. Geralmente, requer sabedoria, raciocínio cuidadoso
e longas horas de pesquisa. Para identificar as melhores políticas, é preciso
13
Hobbes 1996, capítulo 19, 131.
14
Sobre os ativos de Kim Jong-il, consulte Arlow 2010. Sobre a fome na Coréia do Norte,
consulte Macartney 2010. Para estatísticas do PIB, consulte a Agência Central de Inteligência dos
EUA em 2011.
9. A Lógica da Predação 196

trabalhar incansavelmente no objetivo remanescente, reunindo mais evidências


para testar as suposições e assim por diante. Tudo isso é intelectualmente e
emocionalmente exigente. É muito mais fácil proclamar preceitos simples e mal
pensados e segui-los dogmaticamente, independentemente da evidência.
Que tal realmente ferir ou matar Abel? Pode-se pensar que, uma vez que
você possua poder absoluto, não terá mais motivos para atacar Abel, já que
ele não é mais uma ameaça para você. De fato, seus súditos são a fonte de
seu poder; portanto, você deve manter o maior número possível deles, desde
que permaneçam cooperativos. Se Abel for prudente, se submeterá a todas as
suas demandas e, apesar da perda da maioria de seus alimentos e outros bens,
permanecerá vivo.
Novamente, isso é otimista demais. Primeiro, dada a existência de um governo
poderoso, as pessoas que provavelmente acabarão no controle desse governo
são aquelas que (a) têm o maior desejo de poder, (b) possuam as habilidades
necessárias para conquistá-lo (por exemplo, a capacidade de intimidar ou mani-
pular outras pessoas); e (c) não sejam incomodados por critérios morais para
fazer o que é necessário para tomar o poder. Esses indivíduos não estão no jogo
pelo dinheiro. Estão nele para o prazer de exercer poder. A maneira como se
sente o exercício do poder é, com muita frequência, abusar dos que estão sob o
poder enquanto observa seu desamparo para resistir. Isso está entre as lições do
experimento na prisão de Stanford, conforme discutido anteriormente (Seção
6.7). Principalmente se o governante perceber algum ato desafiante por parte
dos súditos – por exemplo, um sujeito critica o governo de alguma maneira – é
provável que o governante sinta vontade de demonstrar seu poder esmagando o
sujeito. O motivo seria precisamente a paixão pela “glória” que Hobbes considera
entre as causas do conflito no estado de natureza. Segundo, muitas pessoas man-
têm hostilidade em relação a certos grupos em sua sociedade – por exemplo, os
membros de uma certa etnia, religião ou classe social; ou as pessoas que aderem,
ou deixam de aderir, a certas doutrinas políticas. Se o governante tiver esse tipo
de preconceito, pode sentir que vale a pena perder alguns milhões de súditos
para satisfazer seu ódio por esse grupo.
O princípio da teoria dos jogos é o seguinte: a concentração do poder gera
abuso. Quando um grupo de pessoas detém grande poder sobre outro grupo, os
fortes normalmente usam seu poder para abusar ou explorar os fracos para seu
próprio engrandecimento.
Tudo isso, tragicamente, é muito mais do que teorizar na poltrona. É tam-
bém a lição horrível da história. Todo mundo sabe que quase seis milhões de
judeus foram executados na Alemanha nazista em meados do século passado
porque o governante odiava os judeus. Poucas pessoas percebem que isso era
apenas a ponta do iceberg do assassinato em massa do século XX. O número
9. A Lógica da Predação 197

total de pessoas mortas por seus próprios governos no século XX foi estimado
em 123 milhões.15 Essas vítimas, em geral, foram mortas por pertencerem a
grupos errados, seja a etnia errada, a classe errada ou a ideologia errada. Os
regimes assassinos não pensaram que seus crimes contra a humanidade lhes
custariam uma grande quantidade de receita tributária, pois, em princípio, não
estavam buscando dinheiro. Foram movidos em parte pelo ódio, em parte pelo
amor ao poder e em parte pelo desejo de refazer o mundo de acordo com suas
ideologias. O número de pessoas mortas por seus próprios governos no século
XX foi quatro vezes e meia maior do que o número de mortos por assassinos
não-governamentais16 – o que levanta a questão de saber se um governo forte
deve ser considerado mais uma fonte de segurança ou uma fonte de perigo.
Hobbes estava certo ao destacar o egoísmo humano, embora exagere o ponto.
Estava certo também em reconhecer a igualdade essencial do estado de natureza e
a desigualdade criada pelo governo. Mas as implicações políticas desses fatos são
o oposto do que Hobbes alegou. A igualdade de poder gera respeito e cooperação
pacífica; uma vasta desigualdade gera desprezo e abuso. Quanto mais cínica é a
natureza humana, mais importante é evitar grandes diferenças de poder.

9.4 Predação sob democracia


Felizmente, o totalitarismo não é a única forma de governo. Existem várias
maneiras de tentar limitar o poder do governo e impedir seu abuso: escolher
líderes por eleição popular, dividir o governo em poderes separados, escrever
uma Constituição que defina e delimite os poderes do governo. Todos esses
mecanismos oferecem alguma vantagem. No entanto, não funcionam exatamente
como anunciado e não resolvem completamente nossos problemas.
15
Rummel 1998, 355. Se adicionarmos pessoas assassinadas por governos estrangeiros, inclu-
sive por meio de alvos intencionais de civis durante a guerra (mas não incluindo a matança
de combatentes), o total aumentará para 163 milhões. Quase todos esses assassinatos foram
cometidos por regimes autoritários e totalitários. White (2010) estima o número total de mortes
do século XX por guerra e opressão em 203 milhões.
16
Cerca de 520.000 pessoas foram assassinadas (em particular) em todo o mundo no ano 2000
(Holguin 2002), resultando em uma taxa de homicídios de 8,54 por 100.000 habitantes por ano.
Se tomarmos isso como representativo do século como um todo, haveria cerca de 26,5 milhões de
assassinatos privados no século XX. (Para estimativas populacionais ao longo do século, consulte
US Census Bureau 2011a; 2011c. Eu usei a interpolação para estimar populações para anos não
mostrados nas tabelas.) Comparando isso com a estatística de Rummel, temos uma proporção
de 4,6 assassinatos governamentais para cada assassinato particular. Incluindo assassinatos de
estrangeiros civis em tempos de guerra, a proporção é de 6,2. No entanto, essas proporções
podem ser imprecisas, uma vez que usam a taxa de homicídios privados de 2000 para estimar
assassinatos privados no século XX.
9. A Lógica da Predação 198

9.4.1 A tirania da maioria


De acordo com um argumento simples para a democracia, as pessoas geralmente
conhecem seus interesses e votarão com base nesses interesses quando tiverem a
chance. Portanto, os líderes em um Estado democrático serão aqueles que melhor
servirão aos interesses da maioria das pessoas.
Talvez o problema mais simples desse sistema seja que a maioria pode optar
por abusar de uma minoria. Se a maioria das pessoas tem uma leve preferência
por alguma política, por mais nociva ou injusta que seja para a minoria, a maioria
pode implementar sua preferência por meio do Estado. Isso explica, por exemplo,
por que o casamento gay não é permitido na maioria dos Estados Unidos. Explica
as leis de Jim Crow antes do movimento pelos direitos civis e explica como os
nazistas se tornaram o maior partido do Reichstag em 1932, apesar do ódio
evidente a vários grupos de pessoas.

9.4.2 O destino dos não-eleitores


Um problema semelhante é que o governo pode desconsiderar os interesses
daqueles que não têm voto. Normalmente, isso inclui criminosos condenados,
crianças e, principalmente, estrangeiros. Essa última categoria de pessoas pode
ser afetada pela política de imigração do governo, pela política de comércio
internacional, pela política militar e por outras formas de política externa. Os
interesses dos estrangeiros são frequentemente ignorados ou severamente descon-
siderados nessas áreas. Ao definir a política de imigração, os governos nacionais
desconsideram os interesses de potenciais imigrantes. Ao definir a política co-
mercial, desconsideram os interesses de produtores e consumidores em outros
países. Ao decidir se vão à guerra, desconsideram os interesses dos cidadãos
estrangeiros que serão mortos.
Na guerra mais recente dos EUA com o Iraque, por exemplo, as estimativas
do número de cidadãos iraquianos mortos variam de cerca de cem mil a mais
de um milhão.17 A guerra teve um enorme impacto no povo iraquiano, muito
mais do que no povo americano. E, no entanto, o povo iraquiano não teve voz
na decisão de invadir, que foi feita inteiramente por representantes do povo
americano. Qualquer defensor da democracia certamente deve reconhecer isso
como um problema sério. Esse problema resulta das extremas desigualdades
de poder possibilitadas pela instituição do governo. Nesse caso, o governo dos
EUA tinha poder suficientemente maior do que o povo iraquiano ou o governo
iraquiano fazendo com que o governo dos EUA não precisasse considerar as
opiniões dos iraquianos.
17
Ver Gamel 2009 para a baixa estimativa. Para obter a estimativa mais alta, consulte Opinion
Research Business 2008.
9. A Lógica da Predação 199

9.4.3 Ignorância e irracionalidade dos eleitores


Pode-se supor que um Estado democrático servirá pelo menos aos interesses da
maioria dos eleitores. No entanto, mesmo isso não precisa ser verdade.
Para entender o motivo, primeiro considere a quantidade de poder prático que
você exerce em virtude da sua capacidade de votar. Por simplicidade, suponha
que você esteja votando em uma eleição com exatamente dois candidatos. Você,
como indivíduo, está em posição de determinar o resultado da eleição se, e
somente se, o resultado resultar em uma única votação – ou seja, sem o seu voto,
o total de votos dos dois candidatos não diferirá em mais de um. Se os totais
estiverem empatados, você poderá votar para desempatar; se um candidato estiver
vencendo por um único voto, você pode fazer com que a eleição fique empatada.
Em todos os outros casos, seu voto não faz diferença para o resultado. Se o total
de votos dos candidatos diferir em dois ou mais, o candidato vencedor teria
vencido independentemente de como você votou. Mas, dadas as circunstâncias
em que os eleitores estão e esperam estar no futuro próximo, a probabilidade de
uma eleição nacional depender de um único voto é insignificante. Assim, para
todos os propósitos práticos, cada eleitor sabe que em todas as eleições seu voto
não fará diferença alguma.
É verdade que os eleitores como um todo têm muito poder, pois determinam
quem detém as rédeas do governo. Mas essa não é a nossa preocupação agora.
Nossa preocupação no momento é como é racional que você, como indivíduo, se
comporte. Do ponto de vista da escolha racional, é irrelevante o que os outros
podem fazer; o que é relevante é o que você pode fazer. Você não pode fazer com
que todos os outros, ou mesmo a maioria, votem de uma maneira específica; você
pode controlar apenas seu próprio voto. E isso lhe dá aproximadamente zero
poder sobre os resultados das eleições.
Agora assuma que você é um egoísta racional. Você deveria votar no candidato
que melhor atende aos seus próprios interesses? À primeira vista, como seu voto
não terá efeito sobre quais políticas você obtém, simplesmente não importa se
você vota em um candidato que sirva seus próprios interesses, um candidato
que serve os interesses da sociedade ou um candidato que é tão terrível que
serve aos interesses de ninguém. Mas isso não está exatamente certo. Há uma
chance minúscula, diferente de zero – talvez uma em cada dez milhões18 – de que
18
A estimativa de um em cada dez milhões é alcançada da seguinte forma. Nos últimos anos, as
eleições presidenciais dos EUA renderam menos de dez milhões de votos (Monte 2010). Suponha,
como uma aproximação, que seja certo que o total de votos dos dois principais candidatos diferirá
em dez milhões ou menos. E suponha que atribuamos uma probabilidade igual a cada total de
votos possível dentro desse intervalo. Então, cada possibilidade, incluindo a possibilidade de
os totais diferirem em zero (ou seja, a eleição está empatada), tem uma probabilidade de um
em cada dez milhões. Esse método pode superestimar as probabilidades, uma vez que não é
100% certo que o o total de votos cairá no intervalo especificado. No entanto, se supusermos
9. A Lógica da Predação 200

uma eleição dependa de um único voto, enquanto não lhe custe nada votar no
candidato que melhor sirva seus interesses, você desejará fazer. Essa motivação
tênue é suficiente para fazer a democracia funcionar?
O problema é que lhe custa algo votar no candidato que melhor atende aos
seus interesses. Para saber qual candidato melhor atenda aos seus interesses,
você deve primeiro reunir informações detalhadas sobre todos os candidatos
disponíveis. Se atuaram em cargos públicos, você precisará procurar os registros
de suas votações. Precisará procurar uma grande amostra dos projetos de lei ou
outras propostas nas quais votaram. Você precisará tentar entender essas coisas.
Para poder avaliar em cada caso se as propostas atenderiam aos seus interesses,
você precisará pesquisar uma série de questões econômicas e sociais complexas.
Pode ser necessário fazer alguns cursos de economia para descobrir os efeitos
de algumas dessas políticas. Como os seres humanos tendem a ser afetados por
fortes vieses em relação a questões políticas, você precisará fazer um esforço
especial para identificar e superar seus vieses. Tudo isso exigiria enorme tempo
e esforço. A probabilidade de que esse esforço seja recompensado com algum
efeito real nos resultados das eleições é minúscula. Portanto, não faz sentido
fazer o necessário para votar consistentemente em seus próprios interesses.19
Consequentemente, muitas pesquisas encontraram níveis surpreendente-
mente baixos de conhecimento político público. Caplan resume alguns destes
resultados:

Cerca de metade dos americanos não sabe que cada Estado tem dois
senadores e três quartos não sabem a duração de seus mandatos.
Cerca de 70% podem dizer qual partido controla a Câmara e 60% qual
partido controla o Senado. Mais da metade não é capaz de nomear
seu congressista e 40% não é capaz de nomear nenhum de seus sena-
dores. Porcentagens ligeiramente mais baixas conhecem as afiliações
partidárias de seus representantes. Além disso, esses baixos níveis
de conhecimento mantêm-se estáveis desde o início das pesquisas, e
as comparações internacionais revelam que o conhecimento político
que, digamos, 80% de certeza de que os totais diferem em menos de 10 milhões, obteremos um
limite menor para a probabilidade de uma eleição empatada de 0,8/10.000.000, ou uma em 12,5
milhões. Por outro lado, isso pode ser uma subestimação das probabilidades, porque os totais
de votos mais próximos de iguais são mais prováveis do que aqueles que são menos iguais; em
uma abordagem mais precisa, atribuiríamos uma distribuição de probabilidade em forma de
sino, com o pico mais próximo do meio. Todas as coisas consideradas, a estimativa de um em
cada dez milhões é da ordem correta de magnitude para as condições atuais nos Estados Unidos.
Isso é suficiente para o presente argumento.
19
Para argumentos semelhantes, veja Schumpeter 1950, 261–2; Downs 1957, 244-5; Caplan
2007b.
9. A Lógica da Predação 201

geral dos americanos não é mais do que moderadamente abaixo da


média.20

Que tipo de coisas os americanos sabem sobre política? Delli Carpini e Keeter
dão uma amostra do conhecimento político público:

O fato mais conhecido sobre as opiniões de George [H. W.] Bush


enquanto ele era presidente era que odiava brócolis. Durante a campa-
nha presidencial de 1992, 89% do público sabia que o vice-presidente
Quayle estava brigando com o personagem de televisão Murphy
Brown, mas apenas 19% conseguiram caracterizar Bill Clinton em
relação ao meio-ambiente. Também durante essa campanha, 86%
dos o público sabia que o cachorro dos Bush chamava-se Millie, mas
apenas 15% sabiam que os dois candidatos à presidência apoiavam
a pena de morte. O juiz Wapner (apresentador da série de televisão
“The People’s Court“) foi identificado por mais pessoas do que os
chefes de justiça Burger ou Rehnquist.21

Agora imagine que você é um funcionário eleito em um Estado democrático.


Você conhece os fatos anteriores. Você sabe que a maioria de seus eleitores
não sabe seu nome e que apenas em raras ocasiões mais do que uma parte
insignificante do eleitorado saberá como você votou em alguma questão perante
a legislatura. As únicas atividades suas que podem vir a ser notícia são escândalos
sexuais, caso você seja imprudente o suficiente para ser pego. Portanto, você pode
fazer praticamente qualquer coisa que desejar (com exceção de causar escândalos
sexuais), com pouco medo de causar descrédito diante ao público. Você pode
votar com base em caprichos. Você não precisa ler os projetos de lei em que vota e
não precisa pesquisar para determinar as melhores políticas. Você pode conceder
favores a seus amigos e colaboradores de campanha. Se alguém lhe questionar
sobre algo sobre sua lei de interesse especial, você pode fornecer argumentos
econômicos ilusórios explicando por que a lei é realmente de interesse público.
Não importa que seus argumentos sejam falaciosos, porque o público não sabe
quase nada sobre economia – não é do interesse deles aprender economia, assim
como não é o seu.
Infelizmente, isso é mais do que teorização ociosa; explica a experiência
consistente de qualquer observador moderno do governo. Aqui não é possível
examinar as inúmeras ações de qualquer governo contemporâneo que comprove
isso. Aqui, simplesmente seleciono um exemplo para ilustrar o que quero dizer.
20
Caplan 2007b, 8, ênfase no original.
21
Delli Carpini and Keeter 1996, 101.
9. A Lógica da Predação 202

Em meados de 2012, a lei agrícola mais recente dos Estados Unidos foi a
Food, Conservation, and Energy Act (Lei de Alimentos, Conservação e Energia) de
2008.22 Entre outras coisas, esta lei continua a política estabelecida pelo governo
federal de subsídios agrícolas, que totalizam mais de US$ 12 bilhões por ano,
grande parte vai para grandes fazendas comerciais.23 Isso beneficia um pequeno
número de pessoas, na maior parte já ricas, às custas do resto do país. Os US$ 12
bilhões distribuídos por 311 milhões de americanos, daria um pouco menos do
que US$ 40 por pessoa. Obviamente, sem pesquisar essa lei em particular, você
não conheceria esses números; mas suponhamos que você saiba que, em geral,
se você fizesse pesquisas suficientes, poderia encontrar várias leis desse tipo que
lhe custam quantias de dinheiro dessa mesma forma. Em cada caso, você pode
tentar influenciar a legislação, com uma chance de sucesso de talvez uma em um
milhão.
Não é do seu interesse pesquisar as disposições da mais recente lei agrícola e
como o seu representante votou nela para garantir uma chance em um milhão de
economizar algo da ordem de US$ 40. Os números exatos são imateriais. Mesmo
que a lei lhe custe muito mais dinheiro – digamos, US$ 400 por ano – e suas
chances de alterar a lei sejam muito melhores – digamos, uma em mil – ainda
não seria do seu interesse fazer algo a respeito.
Por outro lado, as empresas que recebem a generosidade do governo têm
motivos para prestar muita atenção. Cada uma delas ganha milhões ou bilhões de
dólares e tem milhões para gastar na tentativa de influenciar o processo legislativo.
Consequentemente, o agronegócio gastou US$ 80 milhões em lobby no ano que
antecedeu a aprovação da lei agrícola.24
O projeto de lei agrícola também foi criticado por sua contribuição para a
crise mundial de alimentos. Os preços mundiais de alimentos aumentaram
dramaticamente nos últimos anos, levando a fome e distúrbios alimentares. De
acordo com um estudo do Banco Mundial, o aumento do uso de biocombustíveis
nos países desenvolvidos foi responsável por um aumento de 75% nos preços
dos alimentos entre 2002 e 2008.25 A lei agrícola dos EUA em 2008 foi criticada
por exacerbar o problema por meio do aumento do apoio a biocombustíveis.26
Esse problema no entanto, refere-se principalmente a pessoas de países em
desenvolvimento, que têm ainda menos chance de influenciar a política dos EUA
do que o americano médio.
Ressalto aqui que não há nada de especial na política agrícola. É assim que a
democracia moderna funciona. Grupos de interesse especial concentrados e bem
22
Public Law 110–246.
23
U.S. Department of Agriculture 2011.
24
Etter e Hitt 2008.
25
Chakrabortty 2008.
26
Lawson-Remer 2008.
9. A Lógica da Predação 203

organizados usam o aparato do Estado para extrair lucro às custas da maioria de


sua própria sociedade, frequentemente adicionando vítimas infelizes em outros
países. A política agrícola é apenas uma das muitas ilustrações.27

9.4.4 Ativismo: uma solução utópica


Alguns dizem que a solução para os problemas da democracia é o público ser
mais ativo, observar o que seus representantes estão fazendo e pressioná-los a
fazer o que é melhor para a sociedade.28 Deveríamos escrever cartas para nossos
representantes, organizar manifestações e assim por diante.
Esta é uma solução utópica. É utópico porque requer mudanças na natureza
humana sem propor um mecanismo realista para provocar essas mudanças. As
falhas democráticas que descrevi não são um acidente misterioso, nem são o
produto de alguns maus atores. Eles resultam da operação do auto-interesse
humano normal dentro da estrutura de incentivos de um estado democrático.
Não é do interesse de cada cidadão acompanhar seus representantes eleitos.
O comportamento dos cidadãos e representantes eleitos não mudará, a menos
que a estrutura de incentivos mude ou as pessoas se tornem muito menos auto-
interessadas do que são.
Não quero dizer que o ativismo social não possa resolver nenhum problema.
Grandes avanços políticos foram provocados por movimentos sociais populares,
como no caso do movimento abolicionista, do movimento do sufrágio feminino,
do movimento indiano pela independência da Grã-Bretanha e assim por diante.
Ocasionalmente, surgem movimentos sociais populares para combater injustiças
grandes e simples, principalmente quando envolvem desigualdades flagrantes
entre o tratamento de diferentes grupos.
O que acho utópico é a sugestão de que o ativismo popular possa ser a solução
para o constante mal-estar cotidiano do governo, que as pessoas sejam chamadas a
deixar de lado seus próprios interesses e preocupações e convocar tempo e energia
para monitorar ativamente as milhares de atividades do governo como um modo
de vida permanente.29 Alguns seres humanos podem gostar de monitorar as
atividades diárias de seu governo, mas para a grande maioria, é uma tarefa
27
Para uma descrição econômica do fenômeno, ver Downs 1957, 254-6. Para mais exemplos,
veja Friedman 1989, 39–45; Green 1973; e especialmente Carney 2006.
28
Nader 1973.
29
Uma alternativa seria monitorar uma amostra pequena e aleatória de atividades do governo,
mas punir cada infração descoberta com muita seriedade. Para funcionar, essa estratégia prova-
velmente exigiria penalidades muito severas, como o tempo de prisão, mesmo para pequenos
lapsos. Embora isso possa ocorrer em uma sociedade habitada por economistas, nenhuma outra
sociedade consideraria, por exemplo, enviar um legislador para a prisão por não ter lido uma lei
antes de votá-la.
9. A Lógica da Predação 204

entorpecente. Essa tarefa consumiria todos os momentos livres da vida de alguém,


se levássemos a sério a suposta obrigação de supervisionar o Estado. O projeto da
lei agrícola de 2008 que venho discutindo compreende 663 páginas de juridiquês.
Apenas saber o que a lei contém é um feito em si, mas rastrear os efeitos de suas
centenas de seções exigiria uma experiência em áreas como economia, agricultura,
uso de energia e relações internacionais que provavelmente exigiriam anos de
estudo para serem adquiridas. E esse projeto foi apenas um dos mais de dez mil
projetos apresentados no Congresso naquele ano.30 O ativista mais consciente
só conseguiu monitorar uma fração minúscula das atividades de seu governo,
mesmo que fazer isso fosse sua única ocupação.
É concebível que os ativistas possam dividir o trabalho. Cada um de nós
pode escolher uma das mil áreas diferentes para monitorar as atividades do
governo. Mas isso não é realista. Nas raras ocasiões em que os movimentos
sociais inspiram grandes segmentos do público a se envolverem na política,
é porque alguma injustiça grande e flagrante desperta nossas paixões. Mas
ninguém se apaixonará por monitorar um milésimo das atividades diárias do
governo. Propor que o público em geral sacrifique voluntariamente grande parte
de suas vidas para a tarefa de estudar assuntos tediosos como as disposições da
última lei agrícola, tudo para que cada um possa ter uma chance microscópica
de melhorar uma fração microscópica das políticas governamentais é pelo menos
tão utópico quanto propor que todos concordemos a partir de agora a trabalhar
abnegadamente para o bem da sociedade.

9.4.5 A mídia: o cão de guarda adormecido


Em vez de termos que monitorar as atividades cotidianas de funcionários do
governo, poderíamos delegar essa responsabilidade à mídia, o que poderia desig-
nar pessoas em tempo integral para observar o governo. Os jornalistas alertariam
o público quando o governo estivesse fazendo algo particularmente ruim, mo-
mento em que os eleitores tomariam as medidas apropriadas. Se o mecanismo
funcionasse bem, então os políticos rebeldes seriam punidos com segurança,
apenas avisos ocasionais seriam necessários.
Sem mais explicações sobre o que poderia manter esse feliz estado de coisas, no
entanto, essa solução para os problemas da democracia é também excessivamente
utópica. Não importa se dissermos que esse é o “trabalho” da mídia ou o que a
mídia deveria fazer. O que importa é a estrutura de incentivos. É do interesse
das empresas de mídia desempenhar o papel de alerta vigilante?
Existem três razões pelas quais não é. Primeiro, monitorar dezenas de milha-
res de atividades governamentais é uma tarefa difícil, cara e demorada. Ao relatar
30
Harper 2008.
9. A Lógica da Predação 205

atividades do governo, é mais fácil aceitar as declarações dos funcionários do


governo como fonte de informações, em vez de tentar confirmá-las ou refutá-las.
É mais fácil publicar pareceres e relatórios sobre itens simples e divertidos, como
fofocas de celebridades, do que preparar relatórios detalhados sobre questões
sociais complexas.
Segundo, o governo é a organização mais poderosa da sociedade; possui um
aparato de coerção enorme e irresistível, e relatos críticos de funcionários do
governo provavelmente irritarão o governo. No mínimo, funcionários do governo
se recusarão a dar entrevistas ou informações a jornalistas que estabelecem uma
reputação de criticar o governo. Em casos mais graves, o governo emprega força
diretamente contra jornalistas ou suas fontes.
Um caso famoso é o de Daniel Ellsberg, que em 1971 divulgou um estudo
secreto do Pentágono, revelando que o governo sabia que a Guerra do Vietnã
era um atoleiro inimaginável. O governo apresentou doze acusações criminais
contra Ellsberg (demitido) e o Presidente Nixon ordenou escutas ilegais e uma
invasão ao consultório do psiquiatra de Ellsberg, em um esforço para encontrar
informações para desacreditá-lo.31
Um caso mais recente é o do Wikileaks, que publicou milhares de documentos
do governo em 2010, a maioria relacionada às guerras no Afeganistão e no Iraque,
incluindo vídeos mostrando tropas americanas matando civis. A reação uniforme
dos políticos americanos, tanto à esquerda quanto à direita, foi de indignação
ao Wikileaks e a suas fontes. O vice-presidente Biden chamou o fundador do
Wikileaks, Julian Assange, de terrorista e prometeu que o Departamento de
Justiça procuraria maneiras de processá-lo. O ex-governador do Arkansas e em
algum momento candidato à presidência Mike Huckabee chamou a fonte do
Wikileaks de traidor e pediu sua execução. Até o momento em que este artigo foi
escrito (meados de 2012), a fonte do Wikileaks para os documentos no Iraque,
Chelsea Manning, analista de inteligência militar dos EUA, está sendo processada
pelos militares sob várias acusações, incluindo “ajudar o inimigo”, uma ofensa
capital (embora o governo não busque a pena de morte).32
Esses casos mostram que nem todos são facilmente intimidados. Mas também
mostram que os jornalistas e suas fontes têm motivos racionais para o medo, caso
publiquem informações embaraçosas ao governo.
A terceira e mais importante razão pela qual não é do interesse da mídia
agir como um alerta vigilante são as demandas do consumidor. Jornais, revistas,
estações de televisão e estações de rádio dependem do interesse de seu público;
31
Kernis 2011. Ellsberg é o sujeito do documentário popular The Most Dangerous Man in America
(O Homem Mais Perigoso da América).
32
Para o famoso vídeo Collateral Murder (Assassinato Colateral) divulgado pelo Wikileaks,
consulte Wikileaks 2010. Para os comentários de Biden, consulte Mandel 2010. Em Huckabee,
veja Wing 2010. Sobre as acusações contra Manning, consulte CBS News 2011.
9. A Lógica da Predação 206

não importa o quão diligentes e corajosos sejam seus repórteres, se o público


não quiser se sintonizar. Pelas razões discutidas acima, os cidadãos comuns não
estão dispostos a gastar tempo, dinheiro ou esforço significativo aprendendo
sobre o governo. Suponha, por exemplo, que uma estação de televisão esteja
publicando uma história sobre a próxima lei agrícola. A história discute algumas
das características deste projeto, seu impacto no orçamento, seu efeito mais amplo
na economia e assim por diante. Economistas acadêmicos e especialistas em
agricultura são entrevistados. Enquanto isso, outra estação publica uma fofoca
sobre a popular artista Lindsay Lohan, que acabou de se meter em problemas
novamente. Qual estação recebe mais espectadores?
A política agrícola é chata. As desventuras de Lindsay Lohan são emocionan-
tes. A política agrícola é complicada e difícil de entender. Lohan é simples e fácil
de entender. A história sobre a política agrícola possui gráficos e estatísticas. A
história sobre Lohan tem fotos de Lohan.
Algumas pessoas podem preferir ouvir sobre a política agrícola. Mas a maioria
dos meios de comunicação atende à maioria das pessoas. Algumas pequenas
empresas atendem a intelectuais, mas isso não é suficiente para impedir a maioria
do mau uso do poder pelo governo; o impacto da minoria minúscula de pessoas
que gostam de ler estatísticas sobre políticas agrícolas será inundado pelo grupo
muito maior de pessoas que não sabem da existência de políticas agrícolas e não
se importariam mesmo que soubessem.

9.4.6 O milagre da agregação


De acordo com uma teoria recente na literatura sobre democracia, não importa
se a maioria dos eleitores é ignorante, uma vez que uma pequena minoria de
eleitores seja informada, então é suficiente para mudar uma eleição.33 Para saber
como seria isso, assuma que temos uma eleição entre dois candidatos, o Superior
e o Inferior, com Superior sendo o candidato objetivamente melhor. Existem
milhões de eleitores, 90% dos quais são completamente ignorantes; quando
entram na cabine de votação, votam completamente aleatoriamente. Os 10%
restantes estão bem informados e invariavelmente votam no melhor candidato.
Quem vence a eleição?
Superior vence, com quase 100% de probabilidade. Como os eleitores de-
sinformados votam aleatoriamente, eles se dividem igualmente, metade para
Inferior e metade para Superior. Os eleitores informados, no entanto, todos votam
no Superior. Superior, portanto, bate Inferior, 55 a 45 por cento. Se esse modelo
estivesse correto, poderíamos ter níveis muito baixos de conhecimento médio dos
33
Ver Converse (1990, 377-83), que cunhou a frase “milagre da agregação”. Veja Caplan 2007b,
capítulo 1, para críticas à teoria.
9. A Lógica da Predação 207

eleitores e ainda assim alcançar resultados tão bons quanto os de um eleitorado


totalmente informado.
O elo fraco do argumento é a suposição de que eleitores ignorantes votam
aleatoriamente, como se por um lance de moeda. As pessoas que não têm infor-
mações relevantes têm mais probabilidade de votar com base em vieses do que
lançar uma moeda. Podem decidir votar no candidato com melhor aparência ou
mais agradável, o candidato que exibiu mais anúncios de televisão ou o candidato
cujo nome parece mais familiar. Podem votar automaticamente no Democrata
ou automaticamente no candidato.34 Não importa exatamente qual é a base; a
questão é simplesmente que provavelmente existe algo sobre um candidato que
faz com que as pessoas votem nele, mesmo que esse recurso seja principalmente
irrelevante para as qualificações objetivas do candidato para ocupar o cargo.
Qualquer que seja esse fator ou conjunto de fatores, pode muito bem inundar o
apoio ou a oposição dos eleitores informados.
Por exemplo, suponha que, como antes, 10% do eleitorado sejam bem infor-
mados e sempre escolham o melhor candidato. Mas desta vez, suponha que
apenas 70% dos eleitores votem lançando uma moeda. Os 20% restantes sempre
votam no candidato mais carismático. Quem ganha?
O candidato mais carismático vence, com quase 100% de probabilidade. Se
Superior for mais carismático, ele vence com 65% dos votos (metade dos eleitores
que lançam moeda, mais todos os eleitores motivados pelo carisma, além de
todos os eleitores informados). Mas, se Inferior for mais carismático, ele vence
com 55% dos votos (metade das apostas aleatórias e todos os eleitores que votam
pelo carisma). Existindo mais eleitores que votam pelo carisma do que eleitores
bem informados, o carisma determina o resultado, independentemente do que
pensam os eleitores bem informados. O ponto geral é que quanto menos racional
e informado o eleitorado for, mais provável é que fatores irrelevantes superem a
pequena influência da qualidade das posições políticas dos candidatos.35
34
Utilizando a análise estatística, Bartels (1996) descobriu que pessoas mal informadas tendem
a votar em titulares de cargo e democratas com mais frequência do que pessoas mais informadas,
mas de outra forma semelhantes em idade, etnia, classe social e assim por diante. Ele conclui que
a ignorância pública produz uma vantagem de cinco pontos percentuais para os titulares nas
eleições presidenciais dos EUA e uma vantagem de dois pontos percentuais para os democratas.
Essas vantagens são provavelmente maiores para as eleições congressionais, onde o conhecimento
público é menor do que no caso das eleições presidenciais. Isso é consistente com o fato de os
titulares de cargo serem reeleitos cerca de 95% das vezes na Câmara dos Deputados e 88% das
vezes no Senado (Center for Responsive Politics 2011).
35
Essencialmente, o mesmo problema vicia as tentativas de usar a lei de grandes números
para defender a democracia. O argumento é que, mesmo que cada eleitor tenha apenas um
pouco mais chances de votar no melhor candidato do que no pior candidato, quando houver
milhões de eleitores, é extremamente provável que a maioria vote no melhor candidato (Wittman
1995, 16; Page e Shapiro 1993, 41). Isso pressupõe que os erros dos eleitores são aleatórios e
9. A Lógica da Predação 208

9.4.7 As recompensas pelo fracasso


Em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos sofreram o ataque terrorista mais
devastador da sua história. Quatro aviões foram sequestrados e destruídos, o
Pentágono foi atacado e o World Trade Center foi destruído, resultando em quase
três mil mortes. Isso foi muitas vezes pior do que qualquer outro ataque terrorista
já sofrido pelos EUA ou por qualquer outro país.
Quais foram as consequências para o governo dos Estados Unidos? Primeiro,
o índice de aprovação do presidente teve um salto imediato e enorme, de cerca
de 55% para quase 90%. Nos sete anos seguintes, caiu de forma constante,
terminando finalmente abaixo de 30% em 2008.36 Embora isso continue sendo
motivo de especulação, é plausível que George W. Bush não teria sido reeleito
em 2004 se não fosse o ataque terrorista.
Em face disso, isso é paradoxal. Se houvesse alguém cujo trabalho fosse pro-
teger os americanos desse tipo de ataque, seria o poder executivo do governo
dos EUA. Como chefe desse poder, esperava-se que George W. Bush fosse criti-
cado. Como analogia, imagine que você contratou uma empresa para fornecer
segurança ao seu prédio. Você acabou de saber que ontem à noite, vândalos
invadiram o prédio e destruíram milhares de dólares em equipamentos. Alguém
agora pergunta o que você acha do trabalho que sua empresa de segurança está
fazendo. O que você diz? “Melhor empresa de segurança de todos os tempos!”?
Por que os americanos aprovaram tão entusiasticamente Bush após os ataques?
Em parte, foi porque acharam que era patriótico apoiar o presidente, e em parte
porque as pessoas tendem a confundir o país com o governo e o governo com
os funcionários do governo. Meu objetivo ao dar esse exemplo não é culpar o
governo pelo 11 de setembro. Meu objetivo é examinar os incentivos aplicados
ao governo. O que acontece quando o governo falha em atingir seus objetivos?
Frequentemente, o resultado é que o governo é mais recompensado do que
punido. No presente caso, Bush obteve os mais altos índices de aprovação de sua
carreira, além da oportunidade de expandir o poder executivo de maneiras que
de outra forma teria encontrado uma resistência muito maior.37
Coisas semelhantes são verdadeiras para outras partes do governo. Suponha
que uma cidade sofra uma onda de crimes. Quais serão os efeitos no departa-
mento de polícia? É muito mais provável que o departamento de polícia receba
um financiamento maior para combater o problema do que seu financiamento seja
cortado. Ou suponha que uma sociedade sofra um severo aumento da pobreza.
Se o governo não tiver agências projetadas para combater a pobreza, uma ou
não correlacionados, uma suposição que é falsificada pela existência de influências tendenciosas
comuns, como carisma do candidato, financiamento de campanhas e assim por diante.
36
Ruggles 2008; Wall Street Journal 2011.
37
Penso em particular no Patriot Act (lei pública 107–56).
9. A Lógica da Predação 209

mais provavelmente serão estabelecidas. Se já existirem algumas, provavelmente


receberão maior financiamento, em vez de menos. Poucas figuras públicas teriam
coragem de argumentar que os programas de pobreza deveriam ser cortados
porque há muita pobreza. A lição geral é que, se alguma parte do governo falha
em sua função, provavelmente receberá maior financiamento e poder. Obvia-
mente, o objetivo disso não é recompensar o fracasso; o pensamento seria que
mais dinheiro e poder permitirão à agência resolver o problema. Mas o efeito é
que o governo cresce quando os problemas sociais crescem e, portanto, não é do
interesse do governo resolver os problemas da sociedade.
Minha afirmação não é que os agentes do governo realmente tentem falhar.
Não creio, por exemplo, que o governo Bush realmente desejasse que o 11 de
setembro acontecesse. Minha afirmação é dupla: primeiro, que as agências
governamentais simplesmente não se esforçam ao máximo para ter sucesso nas
tarefas designadas, porque não sofrem as consequências negativas do fracasso.
Segundo, que programas mal-sucedidos do governo tendem a persistir e crescer,
com o resultado de que, durante um período de décadas, o governo passará a ser
dominado por tais programas.
É claro que outras histórias podem ser contadas sobre funcionários do go-
verno perdendo seus empregos devido a algum fracasso importante. Minha
reivindicação não é que o fracasso seja sempre recompensado; minha afirmação é
que o fracasso tende a ser recompensado em uma ampla gama de casos, levando
a sérios problemas nos Estados democráticos. Se um funcionário do governo é
culpado de algum delito simples e demonstrável, com consequências negativas
grandes e bem divulgadas, esse funcionário provavelmente perderá o emprego.
Se uma agência governamental que se considera dispensável – por exemplo, a
NASA ou o NEH (National Endowment for the Humanities) – falha de maneira
simples e bem divulgada, então o financiamento da agência provavelmente será
cortado e a agência poderá até ser eliminada. Mas suponha que alguma parte
essencial do governo – digamos, o sistema judicial ou a aplicação da lei – falhe
cronicamente de maneiras complicadas, difíceis de entender e que não sejam
facilmente rastreáveis a ações específicas por um pequeno número de indivíduos,
então essa parte do governo provavelmente será recompensada ao invés de pu-
nida. As pessoas sentirão que eliminar a agência ou poder disfuncional não é uma
opção viável e, como não há indivíduos específicos para culpar, ninguém perderá
seus empregos por causa disso. Os membros dessa parte do governo culparão o
financiamento inadequado, e os eleitores mal informados provavelmente acharão
essa explicação mais compreensível do que a complicada verdade. Assim, com o
tempo, os tipos de falhas que devemos esperar acumular são falhas sistêmicas e
discretas nos serviços essenciais do governo.
9. A Lógica da Predação 210

9.4.8 Limites constitucionais


Talvez as falhas do governo possam ser mitigadas por meio de uma Constituição
escrita que restrinja estritamente as funções do Estado. Quanto menos coisas o
governo for responsável, mais fácil será para o povo monitorar suas atividades e,
portanto, mais responsivo será o governo.38
Não podemos simplesmente assumir, no entanto, que, se existir uma Consti-
tuição, ela será seguida. Sem um mecanismo realista para induzir a conformidade,
é excessivamente utópico assumir que um governo restringirá suas atividades
simplesmente porque um documento o instrui a fazê-lo. Como analogia, ima-
gine que proponho resolver o problema da predação escrevendo em um pedaço
de papel: “Ninguém deve atacar ou roubar outras pessoas”. Sem algum tipo
de mecanismo de imposição, isso seria insuficiente. O que fará com que os se-
res humanos auto-interessados obedeçam às diretrizes escritas nesse papel? A
questão central sobre constituições é a mesma. Quem aplicará a Constituição?
Nenhuma outra organização tem o poder de coagir o governo. Portanto, teremos
que confiar no governo para impor restrições constitucionais contra si mesmo.39
Por que isso é mais realista do que a proposta paralela de que criminosos comuns
sejam deixados para se prenderem e punirem? Talvez um poder do governo
possa ser encarregado de fazer cumprir a Constituição contra os outros poderes.
Os tribunais, por exemplo, podem invalidar uma lei quando considerarem in-
constitucional. Mas que mecanismo induz os tribunais a cumprir fielmente esse
dever? O que os impede de anular leis constitucionais, mas que simplesmente
discordam ou colocam sua imprimatur em leis que são de fato inconstitucionais?
Como sempre, quando contratamos um grupo de pessoas para vigiar os outros,
surge a pergunta: “Quem vigiará os vigilantes?”40
Os limites constitucionais foram de fato tentados. Quão bem eles funcionam?
Concentro-me novamente na experiência dos Estados Unidos. Alguns aspectos
da Constituição dos EUA foram seguidos de perto, principalmente aqueles que
descrevem estruturas institucionais. O governo é dividido em poderes executivo,
legislativo e judicial, exatamente como prescrito pela Constituição; a legislatura
é dividida em um Senado e uma Câmara dos Deputados; e assim por diante.
No entanto, no que diz respeito à extensão do poder do governo, as restrições
38
Ver Somin (1998), embora ele não discuta por qual mecanismo o governo deve ser limitado.
39
Compare Hamilton et al., N. 51, 163: “[Você] deve primeiro habilitar o governo a controlar
os governados; e, em seguida, obrigue-o a se controlar.”
40
Essa frase deriva do poeta romano Juvenal (1967, sátira VI, 140), escrito no primeiro ou no
segundo século. No contexto original, o significado era que não adianta contratar guardas para
garantir a fidelidade de sua esposa, pois os guardas não são confiáveis. Platão (1974, 73, 403e)
usa uma frase semelhante, em que Glauco afirma que “seria absurdo que o guarda precisasse de
um guarda”.
9. A Lógica da Predação 211

constitucionais são rotineiramente e sem desculpas violadas. Vale a pena dedicar


algumas páginas a este estudo de caso.
As Nona e Décima Emendas à Constituição deixam claro que os poderes do
governo devem se limitar ao que está listado no próprio documento, enquanto
os direitos do povo são abertos e não se limitam ao que foi listado:

Emenda 9: A enumeração na Constituição, de certos direitos, não deve


ser interpretada como negando ou menosprezando outras pessoas
mantida pelo povo.
Emenda 10: Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela Cons-
tituição, nem proibidos por ela aos Estados, são reservados aos Esta-
dos, respectivamente, ou ao povo.

A Nona Emenda pode ser difícil de aplicar – refere-se a direitos que não
são enumerados, mas como saber quais são esses direitos? A Décima Emenda,
no entanto, é clara. O governo federal não está autorizado a fazer outra coisa
senão as coisas que a Constituição lhe confere o poder de fazer. Tudo o resto é
inconstitucional. Isso é incontroverso; o governo mesmo nunca negou.
O que, então, a Constituição concede ao governo o poder de fazer? De maior
relevância é o artigo I, seção 8, que delineia os poderes do legislador:

Seção 8
O Congresso terá poderes para estabelecer e cobrar impostos, taxas,
impostos especiais de consumo e outros deveres, para pagar as dívidas
e garantir a defesa e o bem-estar geral dos Estados Unidos; mas todos
os Deveres, Impostos e Impostos Especiais devem ser uniformes nos
Estados Unidos;
Emprestar dinheiro com crédito dos Estados Unidos;
Regular o comércio com nações estrangeiras, entre os vários Estados
e com as tribos indígenas;
Estabelecer uma regra uniforme de naturalização e leis uniformes
sobre o assunto de falências nos Estados Unidos;
Para cunhar Dinheiro, regular o Valor do mesmo, e Moeda estrangeira,
e fixar o Padrão de Pesos e Medidas;
Prever a punição pela falsificação dos valores mobiliários e da moeda
atual dos Estados Unidos;
Estabelecer os Correios;
9. A Lógica da Predação 212

Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo por


tempo limitado aos autores e inventores o direito exclusivo de seus
respectivos escritos e descobertas;
Constituir Tribunais inferiores a Supremo Corte;
Definir e punir piratarias e crimes cometidos no alto-mar e ofensas à
lei das nações;
Declarar guerra, conceder cartas oficiais e represália e estabelecer
regras relativas a capturas em terra e água;
Organizar e apoiar exércitos, mas nenhuma apropriação de dinheiro
para esse uso será por um período maior que dois anos;
Fornecer e manter uma Marinha;
Estabelecer Regras para o Governo e Regulamentação das Forças
Terrestres e Navais;
Providenciar a convocação da Milícia para executar as Leis da União,
reprimir insurreições e repelir invasões;
Providenciar a organização, armar e disciplinar as Milícias e governar
a Parte delas que possa ser empregada no Serviço dos Estados Unidos,
reservando aos Estados, respectivamente, a Nomeação dos Oficiais e a
Autoridade de treinar as Milícias de acordo com a disciplina prescrita
pelo Congresso;
Exercer legislação exclusiva em todos os casos, em qualquer distrito
(que não ultrapasse dez milhas quadradas) que seja possível, por
Cessão de Estados particulares e a aceitação do Congresso, torna-se
sede do governo dos Estados Unidos e exerce a mesma autoridade so-
bre todos os lugares adquiridos pelo consentimento da legislatura do
Estado em que o mesmo será, para a montagem dos Fortes, Depósitos,
Arsenais, Estaleiros e outros edifícios necessários; E
Estabelecer todas as Leis que sejam necessárias e apropriadas para a
execução dos Poderes precedentes, e todos os outros Poderes inves-
tidos por esta Constituição no Governo dos Estados Unidos ou em
qualquer Departamento ou Oficial.

Essa é a seção inteira e toda a lista dos poderes legislativos. A autoridade


constitucional de todas as leis federais deve ser encontrada nessa lista.
A lista inclui autoridade para estabelecer correios, um exército e um sistema
de tribunais federais, todos os quais o país possui. Mas qual cláusula dessa lista
autoriza o estabelecimento de uma CIA, uma Agência de Proteção Ambiental
9. A Lógica da Predação 213

ou um Departamento de Saúde e Serviços Humanos? Qual cláusula autoriza


o governo federal a controlar os salários que os empregadores devem pagar,
que drogas as pessoas podem ingerir ou com que rapidez as pessoas podem
dirigir? Por que o governo federal pode subsidiar o agronegócio, conceder
empréstimos a estudantes universitários e enviar pessoas ao espaço? Nada disso
parece remotamente incluído, explícita ou implicitamente, na lista de poderes do
Congresso. Nem inúmeras outras atividades governamentais atuais. Qualquer
lei, programa ou agência federal dos EUA escolhida aleatoriamente hoje é quase
certamente claramente inconstitucional.
Por que a Suprema Corte não derrubou todas essas leis? Aqui está a história
oficial: apesar das aparências em contrário, todas elas são realmente autorizadas
pela Constituição. Uma ilustração típica da lógica é fornecida pelo caso Wickard
v. Filburn, decidido em 1942.41 O governo Roosevelt patrocinou com sucesso
uma lei projetada para aumentar o preço do trigo, restringindo a quantidade de
trigo que os agricultores poderiam cultivar. Roscoe Filburn era um fazendeiro
que cultivava trigo inteiramente para alimentar animais em sua própria fazenda.
Filburn excedeu o valor permitido pela lei e foi multado pelo Departamento
de Agricultura. Filburn então processou num tribunal federal para impedir a
aplicação da lei contra ele, argumentando que não havia autoridade constitucional
para o governo federal controlar o quanto de trigo ele cultivava em sua fazenda. A
Suprema Corte confirmou por unanimidade a lei, alegando que ela foi autorizada
pela terceira cláusula do artigo I, seção 8, que concede ao Congresso o poder
de “regular o comércio com nações estrangeiras, entre os vários Estados e com
as tribos indígenas”. O tribunal argumentou que, como Filburn cultivava trigo
para alimentar seu gado, ele compraria menos trigo de outros agricultores. Se
muitos agricultores fizessem isso, isso reduziria significativamente o preço do
trigo. Isso, por sua vez, afetaria o comércio de trigo, alguns dos quais atravessam
as fronteiras do Estado. Portanto, ao multar Filburn por cultivar muito trigo,
o governo federal estava simplesmente exercendo seu poder constitucional de
regular o comércio interestadual.
É difícil acreditar que qualquer observador imparcial competente no idioma
leia a frase “regular o comércio [. . . ] entre os vários Estados” dessa maneira.
Aqui está o relato não oficial, mas mais verdadeiro, dos fatos: No início de sua
presidência, no início dos anos 30, os programas do New Deal de Franklin Delano
Roosevelt foram repetidamente e decisivamente derrotados por exceder os pode-
res concedidos pela Constituição.42 O Presidente Roosevelt procurou contornar
essas decisões, propondo o Projeto de Reforma dos Procedimentos Judiciais (Ju-
41
317 U.S. 111 (1942).
42
Ver Carter v. Carter Coal Co., 298 U.S. 238 (1936); A.L.A. Schechter Poultry Corp. v. Estados
Unidos, 295 U. S. 495 (1935); Louisville Joint Stock Land Bank v. Radford, 295 U.S. 555 (1935).
9. A Lógica da Predação 214

dicial Procedures Reform Bill) de 1937, que lhe daria o poder de nomear seis novos
juízes para a Suprema Corte, elevando o total para quinze. Se o plano tivesse
sido aprovado, Roosevelt teria selecionado apenas candidatos que apoiariam o
New Deal. No entanto, logo após Roosevelt ter proposto esse plano, o tribunal
mudou de direção e começou a aprovar os programas de Roosevelt (embora
apenas por uma margem estreita);43 FDR abandonou seu “plano judicial”. Nos
anos seguintes, vários juízes se aposentaram e foram substituídos por nomeados
por Roosevelt de qualquer maneira, com o resultado de que, na época do caso
Wickard, oito dos nove juízes da Suprema Corte deviam seu mandato a Franklin
Roosevelt.44 Esses juízes estavam determinados a aprovar a agenda de Roose-
velt, não importando o que a Constituição dissesse. Eles, portanto, inventaram
racionalizações para reverter as opiniões anteriores dos tribunais.
Por esse motivo, o problema não se encontra em nenhuma ambiguidade ou
clareza na Constituição, como poderia ter sido remediado por uma escolha mais
criteriosa de palavras no momento em que o documento foi escrito. Lá não havia
mal-entendido; os juízes simplesmente escolheram não cumprir a Constituição.
O conteúdo específico da opinião escrita pelo juiz Jackson no caso Wickard é
essencialmente irrelevante. Funciona como um véu muito fino para disfarçar a
expunção intencional dos limites constitucionais ao poder do Congresso – mas se
esse véu não estivesse disponível, teria havido outro. Se a cláusula de comércio
não existisse, o tribunal teria planejado outra racionalização. Talvez tivessem
alegado que a lei do New Deal se enquadrava na quinta cláusula, permitindo ao
Congresso “cunhar dinheiro, regular seu valor e moedas estrangeiras e fixar o
padrão de pesos e medidas”. A restrição à produção de trigo tem efeito sobre os
preços do trigo; nesse sentido, afetava o valor do dinheiro (quanto mais baixos os
preços, mais valiosa é uma quantidade de dinheiro). Então, talvez o Congresso
estivesse apenas exercendo seu poder de regular o valor do dinheiro.
Muitos hoje podem argumentar que foi bom o Tribunal ter optado por anular
a Constituição, porque o documento escrito era excessivamente restritivo. Pense
em quantos programas federais maravilhosos não existiriam hoje se tivéssemos
que seguir uma leitura natural das palavras da Constituição! Mas, independen-
temente do que se pensa desses programas, a experiência americana deve dar
uma pausa a qualquer democrata que confie no poder das constituições para
limitar o poder governamental. Mesmo que os programas do New Deal fossem
uma boa política, ainda deveriam, em teoria, exigir uma emenda constitucional
antes de serem promulgados. O fato de não terem sido cumpridas e de tantas
43
Ver NLRB v. Jones & Laughlin Steel Corp., 301 U. S. 1 (1937); West Coast Hotel Co. v. Parrish, 300
U.S. 379 (1937).
44
Harlan Stone, Hugo Black, Stanley Reed, Felix Frankfurter, William Douglas, Frank Murphy,
James Byrnes e Robert Jackson. A exceção foi Owen Roberts, nomeado por Hoover. Ver Suprema
Corte dos EUA em 2011.
9. A Lógica da Predação 215

outras leis claramente inconstitucionais serem rotineiramente aprovadas sem


desculpas testemunha o problema fundamental que um regime constitucional
enfrenta. A Constituição é uma lei, e as leis exigem execução. Mas uma vez que
estabelecemos uma autoridade suprema, não há ninguém para fazer cumprir a
lei contra essa autoridade.

9.4.9 Sobre freios, contrapesos e separação de poderes


Ensina-se aos americanos que eles vivem sob um sistema de “freios e contrapesos”,
pelo qual os poderes executivo, judicial e legislativo do governo impedem uns
aos outros de abusar de seu poder. Essa ideia deriva de Montesquieu, que
influenciou os autores da Constituição americana.45 Assim, o judiciário tem o
poder de derrubar leis inconstitucionais, servindo assim como um controle do
poder do legislador. O poder executivo tem o poder de nomear juízes, que o
legislador deve aprovar; assim, os poderes executivo e legislativo atuam para
garantir a integridade do judiciário. A legislatura tem o poder de impeachment
do presidente, e a legislatura pode, assim, verificar o poder do poder executivo. E
assim por diante. Nenhum poder do governo é supremo, e cada um tem poderes
importantes sobre os outros.
Nesta teoria está faltando um elemento crucial. Essa é uma explicação do mo-
tivo pelo qual se espera que cada poder do governo use seus poderes para impedir
que os outros poderes abusem, em vez de, por exemplo, ajudar os outros poderes
a abusar ou impedir que os outros poderes executem suas funções legítimas.
Novamente, não importa o que nossa teoria rotule como a função apropriada
dos funcionários do governo. O que importa é a estrutura de incentivos. Cada
um dos três poderes do governo tem interesse em garantir que os outros poderes
funcionem corretamente sem ultrapassar os limites prescritos pela Constituição?
Talvez a teoria seja a de que os três poderes estejam em certa medida com-
petindo entre si, de modo que nenhum poder deseje ver os outros se tornarem
muito poderosos.46 Nem Montesquieu nem os fundadores americanos, no en-
tanto, explicam claramente por que isso deveria ser o caso. O legislador faz leis, o
judiciário interpreta as leis e determina quando elas foram violadas, e o executivo
faz cumprir as leis. Agora, suponha que o legislador aprove leis que se estendem
além das questões que a Constituição autoriza a regular. Quero dizer com isso,
não leis que infringem outros poderes do governo, mas leis que infringem as
liberdades do povo. De que maneira isso tornaria os poderes executivo ou judicial
em pior situação? Se existir algo, os dois últimos poderes devem se expandir.
Quanto mais leis houver para impor, maior será o poder executivo. Da mesma
45
Montesquieu 1748, 11.4, 11.6; Hamilton et al. 1952, nos. 47–51; Jefferson 1782, 214–15.
46
Isso parece ser sugerido no n. 51 dos Federalist Papers (Hamilton et al. 1952, 162–4).
9. A Lógica da Predação 216

forma, quanto mais restritivo for o regime jurídico, mais casos os tribunais terão
que julgar e, portanto, maior o judiciário. Se cada poder quiser ser maior e mais
poderoso, há algumas razões para pensar que deveriam atuar em conjunto. De
qualquer forma, não há razão óbvia para pensar que cada um deve tentar impedir
que os outros violem as liberdades do povo.
Também não há razão para pensar que cada poder do governo sobre os outros
possa ser usado apenas para o bem e não para o mal. Tome o poder do poder
executivo para nomear juízes. O presidente poderia usar esse poder para garantir
a integridade do judiciário. Ou ele poderia usá-lo para garantir uma falta de
integridade – por exemplo, para garantir que apenas os juízes que compartilham
sua ideologia e estejam preparados para avançar nessa ideologia sem levar em
consideração a Constituição sejam nomeados. O pessimismo realista com o qual
os fundadores americanos viam a natureza humana deveria tê-lo levados a ver a
última possibilidade muito mais provável do que a primeira.
Tudo isso é confirmado pela experiência. Pelo menos desde a época do New
Deal, os presidentes nomearam juízes rotineiramente de acordo com a ideologia,
e os ramos executivo e judicial do governo foram cúmplices na expansão do
poder legislativo. As várias agências e programas federais inconstitucionais
estão agora tão arraigados que é extraordinariamente improvável que qualquer
juiz neste momento vote para começar a aplicar a Décima Emenda. Qualquer
indivíduo suspeito de ter atitudes favoráveis a essa mudança não teria chance de
ser nomeado por qualquer presidente nem de ser confirmado pelo Senado.

9.5 Conclusão
Nós, seres humanos, somos animais sociais auto-interessados. Vivemos juntos e,
no entanto, cada um de nós se preocupa muito mais consigo próprio do que com
a grande maioria dos outros. Como resultado, enfrentamos o problema social
fundamental da predação: como as coisas devem ser organizadas para que os
seres humanos não explorem e abusem continuamente um do outro?
A solução padrão em filosofia social começa propondo uma desigualdade
radical: uma única instituição com poder sobre todos os outros indivíduos e
organizações. Para Hobbes, a solução termina aí. Para os teóricos democráticos,
uma série de restrições deve ser anexada à autoridade central no esforço de
impedi-la de explorar e abusar do resto da sociedade. Os mecanismos de restrição
incluem eleições populares, imprensa livre, limites constitucionais e separação
de poderes.
Apesar de suas limitações, esses mecanismos se mostraram valiosos. Produ-
zem uma forma de governo marcadamente menos abusiva do que o governo
totalitário típico. As sociedades democráticas raramente sofrem desastres agudos
9. A Lógica da Predação 217

e facilmente evitáveis, e quase nunca assassinam um grande número de pessoas.


Alguns dos erros governamentais mais flagrantes são relatados na imprensa
popular, para que os piores tipos de excessos sejam dissuadidos. Os juízes são
solidários com pelo menos algumas restrições constitucionais ao governo e, por-
tanto, optaram por aplicá-las. A liberdade de expressão, a liberdade de imprensa
e a liberdade religiosa são geralmente bem preservadas nas democracias consti-
tucionais. Assim, se alguém se limita ao desenho de um sistema social baseado
no Estado, os mecanismos tradicionais de restrição não devem ser desprezados.
Meu objetivo, no entanto, foi argumentar que esses mecanismos não podem
satisfazer todas as esperanças que os teóricos democráticos depositam neles. A
urna é de utilidade limitada para garantir um governo responsivo, uma vez que
não é do interesse de eleitores individuais fazer mais do que esforços simbólicos
na votação racional e informada. A complexidade do governo moderno torna
impossível até mesmo o cidadão mais dedicado se manter informado sobre
mais do que uma fração muito pequena das atividades do Estado. Os meios
de comunicação são de utilidade limitada, uma vez que não é do seu interesse
informar sobre a grande maioria dos erros e perigos do governo. As constituições
são de uso limitado, uma vez que é preciso confiar no governo para fazer cumprir
a Constituição contra si mesma, e raramente é do interesse do governo fazer isso
fielmente. Finalmente, a separação de poderes é de utilidade limitada, uma vez
que os diferentes poderes do governo têm mais a ganhar com uma causa comum
na extensão do poder do governo do que restringindo vigilantemente o poder
um do outro. Como resultado, mesmo os governos democráticos cresceram em
enormes proporções nos tempos modernos e se transformaram em ferramentas
para pequenos grupos de interesse bem organizados para explorar o resto da
sociedade.
Para avançar ainda mais no problema da predação social, devemos enfrentar
sua causa subjacente. O comportamento predatório não ocorre apenas porque
os seres humanos são egoístas. Isso ocorre porque os seres humanos são auto-
interessados e alguns são muito mais poderosos que outros. Pessoas poderosas
e auto-interessadas usam suas posições para explorar e abusar daqueles muito
mais fracos que eles próprios. As soluções padrão para o problema da predação
humana começam por sedimentar a própria condição com maior probabilidade
de causar comportamento predatório – a concentração de poder – e só então
eles tentam se afastar de suas consequências naturais. A alternativa é começar
com uma descentralização extrema do poder coercitivo. Como esse sistema
funcionaria será discutido em mais detalhes a seguir.
10

Segurança Individual em uma


Sociedade sem Estado

10.1 Um sistema de justiça não-estatal


10.1.1 Agências de proteção
Em qualquer sociedade humana realista, mesmo anarquista, pelo menos alguns
indivíduos cometerão agressão contra outros. Os habitantes da sociedade anár-
quica provavelmente desejariam desenvolver instituições sistemáticas para a
provisão de segurança, incluindo um conjunto de agências de proteção ou em-
presas de segurança cuja função seria proteger os indivíduos da agressão contra
suas pessoas e propriedades e apreender os agressores após o fato.1 Essas agên-
cias, em resumo, serviriam à função que a polícia desempenha nos sistemas
governamentais.
Na ausência de governo, as agências de proteção surgiriam pelo mesmo mo-
tivo que a maioria das empresas surge em um mercado livre; ou seja, existe uma
necessidade que as pessoas estão dispostas a pagar para satisfazer. As agências
cobrariam dinheiro por seus serviços, assim como as empresas de segurança
privada atualmente cobram por seus serviços.
Quem pagaria as agências de proteção? Indivíduos podem contratar sua
própria empresa de segurança, ou associações de proprietários de bairros podem
contratar segurança para seus bairros, ou proprietários de condomínios de apar-
tamentos ou empresas podem contratar segurança para seus prédios, ou pode
ocorrer uma combinação deles.
Por que o anarquista não estipula os detalhes dos acordos de segurança não-
estatais? Porque o funcionamento do sistema é determinado pelos indivíduos que
1
Esta proposta deriva de Rothbard (1978, capítulo 12) e Friedman (1989, capítulo 29).

218
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 219

o ocupam; portanto, as respostas às perguntas sobre como o sistema funcionaria


deve assumir a forma de previsões especulativas em vez de estipulações (o
mesmo se aplica a qualquer instituição não experimentada, embora esse fato seja
pouco reconhecido). Os detalhes dos arranjos de segurança seriam determinados
pelas forças do mercado e pelas escolhas individuais. Se, por exemplo, os clientes
preferissem fortemente contratar empresas ou negócios que forneçam sua própria
segurança, a maioria das empresas contrataria sua própria segurança.
Quais serviços as agências de proteção prestariam? Isso também dependeria
da demanda do cliente. Em alguns casos, elas podem fornecer patrulhas armadas.
Em outros casos, podem fornecer câmeras de segurança e sistemas de alarme.
Depois que um crime foi cometido, podem fornecer detetives e “policiais” arma-
dos para prender os criminosos. Uma vez apreendidos, os criminosos seriam
compelidos a pagar uma indenização por seus crimes.
O que as agências de proteção fariam no caso de um criminoso acusado manter
sua inocência? Nesse caso, seria necessária alguma instituição que cumprisse a
função de um sistema judicial.

10.1.2 Empresas de arbitragem


Numa sociedade anárquica, assim como nas sociedades governamentais, as
pessoas às vezes têm disputas. Um tipo importante de disputa ocorre quando
uma pessoa é acusada de um crime que nega ter cometido. Outro tipo ocorre
quando as pessoas discordam sobre se um determinado tipo de conduta deve ser
tolerado; por exemplo, eu acho que meu vizinho está tocando sua música muito
alto, enquanto ele acha que o volume está bom. Um terceiro tipo diz respeito
aos termos das relações comerciais, incluindo disputas sobre a interpretação dos
contratos. Em cada um desses casos, as partes que discordam precisam de uma
instituição que funcione como um tribunal para resolver sua disputa.
Na ausência de um Estado, essa necessidade seria suprida por empresas de
arbitragem privadas. A arbitragem por um terceiro neutro é a melhor maneira de
resolver a maioria dos litígios, uma vez que geralmente oferece uma boa chance
de promover uma resolução razoavelmente justa, e os custos para alcançá-la são
quase sempre muito menores para ambas as partes do que os custos de tentar
uma resolução através da violência. Por esses motivos, quase todos os indivíduos
desejam que suas disputas sejam resolvidas por meio de arbitragem.
Quem contrataria os árbitros? Talvez as partes em uma disputa concordem
com um árbitro e dividam o custo entre elas. Ou talvez suas agências de proteção
selecionassem o árbitro. Suponha que Jon acuse Sally de roubar seu gato. Ele
informa a sua agência de proteção sobre o roubo e pede que eles recuperem o
gato. Mas Sally notifica a sua agência de proteção que Jon está tentando roubar o
gato dela e pede que eles defendam o gato. Se Jon e Sally contrataram a mesma
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 220

agência de proteção, essa agência pode contratar uma empresa de arbitragem para
determinar a quem o gato pertence, para que a agência possa decidir de quem é
a reivindicação. Se Jon e Sally contrataram agências diferentes, as duas agências
selecionam em conjunto uma empresa de arbitragem, com o entendimento de
que ambas aceitarão o veredito do árbitro.
Essas são as instituições básicas de uma sociedade anarquista bem ordenada.
Em tal sociedade, as funções mais fundamentais comumente atribuídas ao Estado
não são eliminadas, mas privatizadas. Muitas perguntas surgem naturalmente
sobre esse sistema. No restante deste capítulo, abordo as questões mais impor-
tantes sobre as agências de proteção privada. As questões relativas às empresas
de arbitragem serão abordadas no capítulo seguinte.

10.2 Isso é anarquia?


O sistema esboçado é comumente chamado de “anarcocapitalismo”, “anarquismo
de livre mercado” ou “anarquismo libertário”. Pode-se perguntar, no entanto,
se o sistema realmente se qualifica como uma forma de anarquia, em vez de,
digamos, um sistema de governos concorrentes.2
Perguntas semânticas sobre o uso de “governo” e “anarquia” não são de
grande importância. No entanto, o sistema difere em dois aspectos cruciais de
todos os sistemas governamentais atualmente existentes, e são essas diferenças
que me levam a chamar o sistema de uma forma de anarquia.
A primeira diferença é entre voluntariedade versus coerção. Os governos
forçam todos a aceitar seus serviços; como vimos (capítulos 2 e 3), o contrato
social é um mito. As agências de proteção, por outro lado, são escolhidas pelos
clientes, que fazem contratos reais e literais com eles.
A segunda diferença é entre concorrência versus monopólio. Os governos
detêm monopólios geográficos nos serviços de proteção e resolução de disputas,3
e mudar o governo de uma pessoa tende a ser muito difícil e caro, de modo que
os governos sentem pouca pressão competitiva. No sistema anarquista, agências
de proteção e empresas de arbitragem estão em constante competição entre si.
Se alguém estivesse insatisfeito com a agência de proteção, poderia mudar para
outra agência a baixo custo sem se mudar para outro país.
2
Rand (1964, 112–13) refere-se ao sistema como “governos concorrentes”, mas depois argu-
menta que é realmente uma forma de anarquismo; ela parece estar sob a má compreensão de que
os próprios defensores do anarcocapitalismo chamaram o sistema de “governos concorrentes”.
3
Compare a conhecida definição de governo de Weber: “O estado é uma comunidade hu-
mana que (com sucesso) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um
determinado território” (1946, 78; ênfase no original).
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 221

Essas duas diferenças são a fonte fundamental de todas as vantagens reivindi-


cadas pelo anarcocapitalismo sobre o governo tradicional. A voluntariedade do
esquema anarcocapitalista o torna mais do que um sistema coercitivo, e ambas as
características tornam o sistema anarcocapitalista menos abusivo e mais sensível
às necessidades das pessoas do que os sistemas coercitivos e monopolistas.

10.3 Conflito entre protetores


As agências de proteção concorrentes podem parecer ter motivos significativos
para o confronto físico direto entre si. Como estão em concorrência econômica
direta, uma agência pode querer atacar outra na esperança de colocar a outra
agência fora do negócio. Ou, no caso de uma disputa entre clientes de diferentes
agências, as agências de proteção podem entrar em guerra para defender os
interesses de seus respectivos clientes, em vez de permitir que a disputa seja
resolvida por meio de arbitragem. Por essas razões, alguns argumentam que
uma sociedade anarquista seria dividida em guerras entre agências.4

10.3.1 Os custos da violência


Como discutido anteriormente (Seção 9.2), conflitos violentos tendem a ser muito
perigosos para ambas as partes; indivíduos racionais, portanto, procuram evitar
provocar tais conflitos e preferem métodos pacíficos de resolução de disputas,
como arbitragem de terceiros, sempre que disponíveis.
Mas, apesar dos argumentos prudenciais e morais contra o envolvimento
em confrontos violentos evitáveis, esses confrontos ocorrem periodicamente
entre indivíduos comuns. Por que isso ocorre? Em essência, o motivo é que,
na população em geral, existe uma grande variedade de atitudes e motivações
e, entre toda essa variedade, há indivíduos com graus incomumente altos de
confiança física, incomumente baixa preocupação com sua própria segurança
física, e extraordinariamente baixa capacidade de controle de impulsos – um
conjunto de características frequentemente referidas como “imprudência”.5
Os gerentes de negócios, no entanto, são consideravelmente mais uniformes
que a população em geral. Eles tendem a compartilhar duas características em
particular: um forte desejo de gerar lucros para seus negócios e uma consciência
razoável dos meios eficazes para alcança-los. É improvável que indivíduos que
4
Essa objeção aparece em Wellman (2005, 15-16) e Rand (1964, 113). Friedman (1989, 115-16)
responde.
5
A teoria de que o conflito violento é devido a personalidades agressivas, e não, digamos, ao
interesse próprio racional, é evidenciada pelo fato de que esse conflito é um fenômeno quase
exclusivamente masculino.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 222

não possuam essas características surjam à frente de um negócio e, se surgirem,


é provável que o mercado os remova dessa posição (como quando o conselho
de administração de uma empresa substitui seu CEO) ou remove a empresa do
mercado (como na falência). Assim, é muito menos provável que os gerentes de
negócios se comportem de maneiras claramente destrutivas do que os indivíduos
comuns se comportarem de maneiras que claramente ponham em risco sua
própria segurança física.
Mas a guerra é, para dizer o mínimo, cara. Se um par de agências entrar
em guerra uma com a outra, ambas as agências, incluindo a que acaba sendo a
vencedora, provavelmente sofrerão enormes danos a suas propriedades e seus
funcionários. É altamente improvável que uma disputa entre dois clientes valha
esse tipo de despesa. Se, ao mesmo tempo, houver outras agências na região
que não se envolveram em nenhuma guerra, essas últimas terão uma poderosa
vantagem econômica. Em um mercado competitivo, as agências que encontrarem
métodos pacíficos de resolução de disputas terão um desempenho superior
àquelas que travam batalhas desnecessárias. Como isso é facilmente previsível,
cada agência deve estar disposta a resolver qualquer disputa pacificamente, desde
que a outra parte esteja igualmente disposta.

10.3.2 Oposição ao assassinato


Os funcionários de uma agência de segurança têm suas próprias vontades indi-
viduais, distintas dos objetivos da agência. Se a gerência decidiu atacar outra
agência apenas para afastar um concorrente, a deserção generalizada é o resul-
tado mais provável. Há duas razões para isso. Primeiro, a maioria dos seres
humanos se opõe a assumir riscos muito grandes para suas próprias vidas, a
fim de maximizar os lucros para seu chefe. O combate com outra agência de
segurança seria muito mais perigoso do que o trabalho normal de apreender
criminosos comuns, já que a outra agência estaria melhor armada, organizada e
treinada do que os criminosos comuns.
Segundo, a maioria das pessoas nas sociedades contemporâneas se opõe
fortemente ao assassinato de outros membros de sua sociedade.6 Esse “problema”
há muito tempo é reconhecido por especialistas militares cuja preocupação é
convencer soldados a matar o maior número possível de inimigos. Com base em
entrevistas com soldados da Segunda Guerra Mundial, o general S. L. A. Marshall
concluiu que notoriamente que não mais de um quarto dos soldados americanos
realmente disparou suas armas em uma batalha típica.7 O tenente-coronel Dave
6
Grossman (1995, 1-39) fornece uma visão geral das evidências empíricas para isso.
7
Marshall 1978, capítulo 5. Outros questionaram as estatísticas de Marshall, que provavelmente
são suposições (Chambers 2003), mas o quadro geral permanece inalterado (Grossman 1995, 333,
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 223

Grossman relata vários casos em que a taxa de baixas durante uma batalha foi
muito menor do que se poderia conciliar plausivelmente com a suposição de um
esforço genuíno de cada lado para matar o outro. Em um incidente marcante,
uma unidade dos Contras na Nicarágua foi ordenada por seu comandante a
massacrar os passageiros em um barco civil. Quando chegou a hora de abrir
fogo, cada bala milagrosamente sobrevoou a cabeça dos civis. Como um soldado
explicou: “Os camponeses nicaraguenses são bastardos malvados e soldados
durões. Mas não são assassinos.”8
Isso não é para negar que alguns seres humanos são assassinos; é apenas dizer
que a esmagadora maioria dos seres humanos se opõe fortemente ao assassinato.
Uma pequena porcentagem de pessoas está disposta a matar; no entanto, esses
indivíduos geralmente não são funcionários desejáveis e, portanto, é improvável
que uma agência de proteção deseje trabalhar com essas pessoas.
E quanto à descoberta do experimento de Milgram (Seção 6.2), no qual as
pessoas se mostraram dispostas a eletrocutar uma vítima indefesa quando so-
licitadas por um cientista? O medo de desafiar a autoridade pode superar a
resistência das pessoas ao assassinato. Embora os gerentes de negócios tenham
muito menos aura de autoridade do que os funcionários do governo, um gerente
de agência de proteção pode, no entanto, ser capaz de explorar essa falha na
natureza humana para induzir funcionários a matar membros de agências rivais?
Talvez possa, embora valha a pena notar algumas outras características do
experimento de Milgram. Primeiro, a escalada gradual das demandas do expe-
rimentador, a partir de um experimento científico aparentemente legítimo, foi
uma característica crucial do design. Se Stanley Milgram tivesse simplesmente
entregado uma pistola a seus súditos quando entraram na porta e lhes disse
para atirar em outro indivíduo, provavelmente não teria conseguido. Mas talvez
um gerente inteligente de agência de proteção, versado em psicologia, possa
manipular as circunstâncias da mesma forma.
Segundo, os participantes de Milgram não estavam em perigo pessoal em
relação à pessoa que supostamente estavam eletrocutando. Se o “aluno” no
experimento tivesse a capacidade de aplicar o choque no professor de volta, é
duvidoso até que ponto o professor teria continuado com o experimento. Um
gerente de empresa guerreiro precisaria convencer os funcionários não apenas a
matar, mas também a se arriscarem a ser mortos.
Terceiro, embora a maioria dos participantes de Milgram tenha obedecido,
fizeram-o com grande relutância, exibindo sinais de estresse extremo. Mesmo que
uma agência bélica conseguisse convencer os funcionários a cometer assassinatos,
n. 1). Comentando o problema enfrentado pelos líderes militares, Grossman (1995, 251) observa:
“Uma taxa de disparos de 15 a 20% entre os soldados é como ter uma taxa de alfabetização de 15
a 20% entre os revisores”.
8
Dr. John, citado em Grossman 1995, 14–15.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 224

os funcionários ficariam extremamente infelizes e provavelmente a agência logo


perderia a maioria deles. Durante a década de 1960, os manifestantes americanos
contra guerra exibiram pôsteres e adesivos com o slogan “E se fizessem uma
guerra e ninguém viesse?”9 No improvável evento de uma agência de proteção
declarar guerra contra outra agência, os moradores da sociedade anarquista
poderiam finalmente ter a chance de observar a resposta a esta pergunta.

10.3.3 Conflito entre governos


Acabamos de ver por que a guerra entre agências de proteção é improvável.
Se, por outro lado, confiamos no governo para nossa proteção, existe alguma
explicação de por que a guerra entre Estados seria improvável? Um estatista
pode oferecer duas razões para considerar a guerra entre Estados uma ameaça
menor do que a guerra entre agências:

i Como os governos possuem monopólios territoriais, cidadãos de diferentes


Estados entram em conflito com menos frequência do que os clientes de
diferentes agências de proteção.

ii Há menos concorrência entre governos do que entre agências de proteção. Os


altos custos de mudança de um país para outro, incluindo as barreiras que os
próprios governos costumam colocar no caminho, permitem que um governo
extraia lucros do monopólio de sua população com pouco medo de perder
“clientes” para um governo rival. Portanto, um governo tem menos motivos
para desejar eliminar governos rivais do que uma agência de proteção deseja
eliminar agências rivais.

Essas são considerações válidas. Por outro lado, parece haver várias razões
para esperar que o problema da guerra entre Estados seja mais sério do que o da
guerra entre agências:

i Os líderes empresariais tendem a ser motivados principalmente pelo motivo


do lucro. É mais provável que os líderes governamentais sejam movidos pela
ideologia ou pelo desejo de poder. Devido aos enormes custos do conflito
armado, as últimas motivações são motivos muito mais prováveis de conflito
armado do que o desejo de obter ganhos financeiros.

ii Devido às suas posições monopolistas, os governos podem se dar ao luxo de


cometer erros extremamente grandes e caros, sem medo de serem suplan-
tados. Por exemplo, o custo combinado estimado das guerras dos EUA no
9
A frase parece derivar de Sandburg (1990, 43; publicado originalmente em 1936). A frase
original é “Em algum momento eles entrarão em guerra e ninguém virá”.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 225

Iraque e no Afeganistão é de US$ 2,4 trilhões,10 e, no entanto, o governo dos


EUA não precisa temer perda de participação de mercado como resultado
desse investimento duvidoso. Se cada americano pudesse escolher entre um
governo que continuasse essas guerras e um que não continuasse, e se cada
indivíduo tivesse a garantia de que realmente conseguiria o que escolheu,
mesmo os falcões mais ardentes pensariam duas vezes o preço. Felizmente
para o governo, os indivíduos não têm essa escolha.

iii Os governos dispõem de melhores ferramentas propagandísticas do que as


empresas privadas. Como a maioria das pessoas acredita em autoridade
política, o Estado pode alegar que os cidadãos são moralmente obrigados
a ir à guerra, apoiando ou não a guerra. O Estado pode retratar o combate
sob seu comando como “luta pelo país”, que geralmente é visto como nobre
e honroso. Um negócio privado que busque aumentar os lucros matando
concorrentes teria mais problemas para vender algo do tipo.

iv Os seres humanos estão muito mais dispostos a matar aqueles que são perce-
bidos como muito diferentes deles mesmos, especialmente os estrangeiros, do
que matar membros comuns de sua própria sociedade.11 Consequentemente,
é mais fácil convencer as pessoas a entrar em guerra contra outro país do que
seria convencer as pessoas a atacar funcionários de outra empresa.

v O treinamento militar moderno emprega técnicas de condicionamento psico-


lógico intensivo e dessensibilização para superar os instintos humanos dos
soldados. As forças armadas dos EUA adotaram técnicas desse tipo em res-
posta às descobertas de Marshall sobre a baixa taxa de disparos de soldados
da Segunda Guerra Mundial. Como resultado, a taxa de disparos aumentou
de menos de 25% na Segunda Guerra Mundial para 55% na Guerra da Coreia
e perto de 90% na Guerra do Vietnã.12 No entanto, os funcionários de uma
empresa de segurança são menos propensos a se submeter a condicionamen-
tos de estilo militar, uma vez que não veriam a necessidade de combater com
outras agências de proteção.

vi Devido ao seu amplo controle sobre a sociedade da qual seus soldados são
recrutados, o Estado pode e aplica sanções poderosas a soldados que se
recusam a lutar ou a cidadãos que se recusam a ser recrutados. Sob um
sistema governamental, aqueles que se recusam a lutar sob o comando de
10
Reuters 2007a, relatando uma estimativa do Congressional Budget Office dos custos totais até o
ano de 2017. O custo estimado apenas para o Iraque é de US$ 1,9 trilhão. Stiglitz e Bilmes (2008),
no entanto, colocam o custo de ambas as guerras em pelo menos US$ 3 trilhões.
11
Zimbardo 2007, 307–13; Grossman 1995, 156-70.
12
Marshall 1978, 9; Grossman 1995, 249-61.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 226

seu governo devem fugir do país para evitar prisão ou execução;13 sob um
sistema anarquista, aqueles que se recusam a lutar sob o comando de seu
empregador devem apenas encontrar outro emprego.
vii Devido à sua posição monopolista e à sua capacidade de coletar pagamentos
não-voluntários da população, os governos tendem a ter recursos muito mai-
ores do que as organizações não-governamentais, permitindo-lhes acumular
vastos arsenais, mesmo em tempos de paz. Por exemplo, até o momento em
que este artigo foi escrito, o governo dos EUA mantém dez porta-aviões da
classe Nimitz, que custam US$ 4,5 bilhões cada, mais US$ 240 milhões por
ano para manutenção14 , gerando receita zero. Como resultado, quando a
guerra começa entre governos, é muito mais destrutiva do que qualquer tipo
de conflito envolvendo outros agentes. O número de mortos pela guerra no
século XX é estimado em 140 milhões,15 e o problema ainda pode provar a
causa da extinção da espécie humana.

Levando em consideração todas essas observações, parece que a guerra é uma


preocupação maior para os governos do que para as agências de proteção.

10.4 Proteção para criminosos


Eu descrevi um sistema de agências privadas dedicadas a proteger indivíduos do
crime; isto é, por roubo, agressão física e outras violações de direitos. Mas por que
não deveria haver agências dedicadas a proteger criminosos das tentativas de suas
vítimas de garantir a justiça? Que assimetria entre criminosos e cooperadores
pacíficos torna mais viável, rentável ou atraente para uma agência proteger
pessoas comuns do que proteger criminosos?

10.4.1 A rentabilidade da aplicação de direitos


Existem pelo menos três assimetrias importantes que favorecem a proteção de
pessoas não criminosas em detrimento de criminosos. Primeiro, muito mais
pessoas desejam ser protegidas contra o crime do que desejam cometer crimes.
Quase ninguém deseja ser vítima de um crime, enquanto apenas alguns desejam
ser criminosos. Segundo, os danos sofridos pelas vítimas de crimes são tipi-
camente muito maiores do que os benefícios de quem os comete. As pessoas
13
The U.S. Uniform Code of Military Justice, Artigo 85, permite qualquer penalidade, inclusive a
morte por deserção durante a guerra (www.ucmj.us).
14
Marinha dos EUA 2009; Birkler et al. 1998, 75.
15
Leitenberg 2006, 9. A maioria destas são mortes de civis; as mortes militares foram próximas
de 36 milhões (Clodfelter 2002, 6).
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 227

comuns, portanto, estariam dispostas a pagar mais para evitar serem vítimas
do que os criminosos estariam dispostos a pagar pela chance de vitimar outras
pessoas. Em virtude dessas duas primeiras condições, há muito mais a ser ga-
nho no negócio de proteção contra criminosos do que no negócio de proteção
para criminosos. Dado que os dois “produtos” se excluem – se um produto é
efetivamente fornecido no mercado, então o outro necessariamente não é – será
o menos rentável que deixará de ser fornecido. Se uma agência de proteção deso-
nesta decidir contrariar a tendência apoiando criminosos, se encontrará presa
em um conflito perpétuo e sem esperança com agências de proteção muito mais
lucrativas e numerosas financiadas por clientes não criminosos.
A terceira assimetria é que os criminosos escolhem cometer crimes, enquanto
as vítimas de crimes não escolhem ser vítimas. Os criminosos, em outras palavras,
se envolvem intencionalmente em comportamentos que os garantam entrar em
conflito com os outros. Do ponto de vista de uma agência de proteção, esse é
um recurso pouco atraente em um cliente, uma vez que, quanto mais conflitos
houver em que a agência é solicitada a proteger clientes, maiores serão os custos
da agência. Clientes comuns e não criminosos estão alinhados com os objetivos
da agência a esse respeito: eles não desejam se envolver em conflitos da mesma
forma que a agência espera o mesmo. Clientes criminosos são uma história muito
diferente. Oferecer proteção a criminosos é análogo a oferecer seguro contra
incêndio para incendiários.

10.4.2 Proteção criminal por governos


E o problema análogo para os governos: existem forças que impedem um governo
de agir para proteger criminosos?
Os governos geralmente agem para proteger a sociedade contra aqueles que
violam os direitos de outras pessoas, como assassinos comuns, ladrões, estupra-
dores e assim por diante. Por outro lado, durante a era da escravidão, o governo
protegeu os proprietários de escravos de seus escravos, e não o contrário. Antes
do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, o governo impunha a
segregação racial. E hoje, os governos democráticos funcionam como ferramentas
para grupos de interesses especiais roubarem do resto da sociedade.16
Esses exemplos mostram que os dois padrões são possíveis: o governo pode
proteger os direitos das pessoas e também pode proteger os violadores de direitos.
A questão é se o padrão injusto de proteger os violadores de direitos seria mais
comum para uma agência de proteção do que para um governo. Governos e
agências de proteção são organizações humanas, formadas por agentes com
motivações humanas. Assumir que os governos são motivados de maneira
16
Para discussão, consulte a Seção 9.4.3.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 228

altruísta, enquanto as agências de proteção são egoisticamente motivadas é aplicar


um padrão duplo projetado para distorcer a avaliação em favor do governo.
Se evitarmos esses padrões duplos, é difícil entender por que os governos
devem ser menos propensos a proteger os violadores de direitos do que as
agências privadas. Alguém poderia argumentar que os governos democráticos
devem responder aos desejos dos eleitores, a maioria dos quais se opõe ao crime.
Mas alguém poderia igualmente argumentar que as agências de proteção devem
responder aos desejos dos consumidores, a maioria dos quais se opõe ao crime, e
há razões para esperar que o mecanismo de mercado seja mais responsivo que o
mecanismo democrático (consulte as seções 10.7 e 9.4).

10.5 Justiça à venda


Alguns se opõem à livre prestação de serviços de proteção no mercado, alegando
que a justiça não deve ser comprada e vendida. Aparentemente, essa objeção
contorna desconfortavelmente perto a negação da posição anarcocapitalista. Para
evitar fazer a pergunta, o opositor deve articular uma razão específica pela qual
os serviços de proteção e resolução de disputas não devem ser comprados e
vendidos. Duas razões inicialmente plausíveis podem ser apresentadas.

10.5.1 Direito preexistente


Um argumento é que as pessoas não devem pagar pela justiça, porque todos têm
direito à justiça para começar. Assim como eu não deveria ter que pagar pelo
meu próprio carro (novamente), uma vez que já o possuo, não deveria ter que
pagar por qualquer outra coisa a que já tenha direito.
Em certo sentido, isso está correto – ninguém deveria pagar pela justiça. Mas o
que a objeção aponta não é uma falha no sistema anarcocapitalista, mas uma falha
na natureza humana, pois a necessidade de pagar pela justiça é criada, não pelo
sistema anarcocapitalista, mas simplesmente pelo fato de os criminosos existirem,
e esse fato tem suas raízes nas enfermidades perenes da natureza humana. Em
um sentido idealista e utópico, podemos dizer que todos devem simplesmente
respeitar voluntariamente os direitos um do outro, para que ninguém precise
pagar por proteção.
Dado, no entanto, que algumas pessoas de fato não respeitam os direitos de
outras pessoas, a melhor solução é que alguns membros da sociedade forneçam
proteção a outros. Isso custa dinheiro, e há pelo menos duas razões pelas quais
os protetores não podem ser solicitados a simplesmente arcar com os custos.
Primeiro, há o argumento prático de que poucas pessoas estão dispostas a gastar
seu tempo e recursos, para não falar dos riscos físicos assumidos pelos provedores
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 229

de segurança, sem receber em troca algum benefício pessoal. Se decidirmos que é


errado cobrar dinheiro por um serviço vital, como proteção de direitos, enquanto
se pode cobrar pelo que se gosta por bens não essenciais, como twinkies e telefones
celulares, então construiremos uma sociedade com muitos twinkies, telefones
celulares, e violações de direitos.
Segundo, aqueles que prestam serviços de proteção têm o direito de solicitar
uma compensação pelo seu tempo, suas despesas materiais e os riscos físicos que
assumem, pelo menos tanto quanto qualquer outra pessoa que forneça serviços
de valor a terceiros. Seria injusto exigir que eles suportem todos esses encargos,
enquanto seus beneficiários, aqueles a quem protegem, podem simplesmente
prosseguir com suas próprias ocupações em benefício próprio, sem suportar
nenhum custo de sua própria defesa. De qualquer forma, a importância vital da
proteção de direitos autoriza aqueles que prestam esse serviço a pedir maiores
recompensas do que aqueles que fornecem bens e serviços menos essenciais.

10.5.2 Baseando a lei na justiça


Outra razão para pensar que a proteção contra o crime não deve estar sujeita
às forças do mercado é que isso é incompatível com as leis que estão sendo
determinadas, como deveriam ser, pelo que é moralmente certo e justo.
Novamente, há algo obviamente correto nesse pensamento: os seres humanos
devem respeitar os princípios morais e devem projetar regras para promover a
justiça e o comportamento ético. Mas isso não é objeção ao anarcocapitalismo. Ao
procurar o interesse próprio para explicar como as agências de proteção em uma
sociedade anarquista se comportariam, não estou defendendo o egoísmo; Estou
reconhecendo isso como um aspecto da natureza humana que existe independen-
temente de qual sistema social ocupamos. Pode-se projetar instituições sociais
assumindo que as pessoas são altruístas, mas isso não fará com que as pessoas
sejam altruístas; isso simplesmente fará com que essas instituições falhem.
Isso não quer dizer que as pessoas sejam totalmente egoístas. Na medida
em que os seres humanos são movidos por ideais de justiça e moralidade, esses
motivos apenas fortaleceriam as instituições de proteção de direitos da socie-
dade anárquica. O trabalho eticamente adequado de uma agência de proteção é
proteger os direitos de seus clientes e, em caso de desacordo, impor as decisões
de um árbitro. O trabalho adequado de um árbitro é encontrar as resoluções
mais justas, sábias e justas possíveis das disputas que lhe foram colocadas. O fiel
cumprimento desses deveres não é impedido pelo fato de que as agências e os
árbitros têm motivos de interesse próprio para fazer essas coisas.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 230

10.5.3 Comprando justiça do governo


As objeções anteriores, em qualquer caso, não podem favorecer o governo sobre
a anarquia, porque o governo está sujeito às mesmas objeções. Em um sistema
dominado pelo governo, as pessoas devem pagar pela justiça, tão seguramente
quanto em um sistema anarquista. Não é como se tribunais e forças policiais
pudessem, de alguma forma, operar sem custo, caso o sistema fosse monopolista
e coercitivo. Os aspectos monopolistas e coercitivos dos sistemas de justiça do
governo os tornam mais caros que um sistema voluntário e competitivo. A
diferença é simplesmente que, nos sistemas governamentais, os pagamentos são
coletados coercivamente sob o nome de “tributação” e a prestação do serviço
não é garantida mesmo se você pagar.17 Presumivelmente, essas diferenças não
tornam o sistema mais justo.
Da mesma forma, as leis impostas por um governo não são mais determinadas
pela justiça e pela moralidade do que aquelas aplicadas por agências de proteção
privada e empresas de arbitragem. Numa democracia representativa, as leis são
determinadas pelas decisões dos funcionários eleitos e dos burocratas que eles
nomearam. Os resultados das eleições, por sua vez, são afetados por fatores como
carisma, atratividade física, financiamento de campanhas, reconhecimento de
nomes, habilidade e crueldade dos gerentes de campanha e vieses dos eleitores.
Alguns dizem que políticos e burocratas devem servir valores éticos impar-
ciais, enquanto os gerentes de negócios devem gerar lucros apenas para seus
negócios. O que isto significa? Quem supõe que os funcionários públicos sejam
motivados dessa maneira e que diferença faz essa suposição? Um argumento é
que, como existe uma norma geral socialmente aceita, segundo a qual os funcio-
nários públicos devem servir à justiça, eles próprios se sentirão mais inclinados a
se comportar dessa maneira do que na ausência de tal norma. Por outro lado,
como essa norma geralmente não é aceita no caso de empresas, os gerentes de
negócios sentirão pouco senso de obrigação de servir à justiça.
Existem duas respostas naturais para esse argumento. O primeiro é questionar
a importância relativa da motivação moral, enfatizando, em vez disso, o valor
prático de alinhar o interesse próprio dos agentes com as exigências da justiça. É
verdade que o sistema ideal é aquele em que as pessoas servem à justiça pelas
razões certas. Mas pelas razões explicadas no Capítulo 9, é improvável que o
governo seja esse sistema. Se alguém deve escolher entre um sistema em que as
pessoas servem o interesse próprio em nome da justiça e outro em que as pessoas
servem a justiça em nome do interesse próprio, certamente devemos preferir o
17
Tribunais dos EUA decidiram repetidamente que a polícia e outros agentes do governo não
são obrigados a proteger cidadãos individuais. Ver Warren v. District of Columbia (444 A.2d. 1,
D.C. Ct. Of Ap., 1981); Hartzler v. Cidade de San Jose, 46 Cal.App. 3d 6 (1975); DeShaney v.
Departamento de Serviços Sociais do Condado de Winnebago, 489 U.S. 189 (1989).
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 231

último. Preferir um sistema que entregue às pessoas as ferramentas para explorar


outras pessoas com fins egoístas, assegurando-lhes que devem servir à justiça, em
detrimento de um sistema que torne a justiça lucrativa e permita que as pessoas
escolham seu curso, seria restabelecer uma fé utópica no poder da suposição.
A segunda resposta é que não há razão para que os membros de uma anarquia
não adotem normas igualmente idealistas que as de uma sociedade democrática.
Assim como os cidadãos de um Estado democrático acreditam que os funcioná-
rios públicos devem promover a justiça, os membros de uma anarquia podem
sustentar que as agências de proteção e as empresas de arbitragem devem promo-
ver a justiça. Por mais que esse tipo de norma social tenha eficácia no policiamento
do comportamento humano, o anarquista pode aproveitá-lo tão bem quanto o
estatista.

10.6 Segurança para os pobres


Outra preocupação é que as agências de proteção, motivadas pelo lucro, atendam
exclusivamente aos ricos, deixando os pobres indefesos contra os criminosos.

10.6.1 As empresas servem os pobres?


Infelizmente, não existem sociedades reais com livre mercado em segurança.
Podemos, no entanto, examinar sociedades com mercados relativamente livres em
uma variedade de outros bens e serviços. Nessas sociedades, para quantos desses
outros bens e serviços é verdade que os fornecedores atendem exclusivamente
aos ricos, não fornecendo produtos adequados para clientes de renda média
e baixa? As roupas são fabricadas exclusivamente para os ricos, deixando os
pobres perambulando pelas ruas nus? Os supermercados vendem apenas caviar
e Dom Pérignon? Qual cadeia é maior: Walmart ou Bloomingdale’s? É certo
que existem alguns produtos, como iates e learjets, que ainda não apareceram
em modelos acessíveis para o consumidor médio, mas a grande maioria das
indústrias é dominada pela produção para consumidores de baixa e média renda.
A principal explicação é o volume: para a maioria dos produtos, há muito mais
consumidores buscando um produto barato do que consumidores buscando um
produto caro.
Os ricos, é claro, tendem a receber produtos de qualidade superior aos pobres,
de alimentos a roupas e automóveis (esse é o ponto de serem ricos). Sob anarquia,
eles sem dúvida receberiam proteção de qualidade superior. Existe uma injustiça
nisso?
Em certo sentido, sim: como resultado de proteção imperfeita, algumas pes-
soas pobres serão vítimas de crime. Isso é injusto, no sentido de que é injusto
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 232

que alguém sofra algum crime. A injustiça inerente ao crime, no entanto, aponta
para uma falha na natureza humana e não no sistema anarquista. Algumas
pessoas sofrerão com o crime em qualquer sistema social viável. A questão é se a
anarquia enfrenta um problema maior ou uma injustiça maior do que os sistemas
governamentais.
Alguém poderia pensar que a anarquia sofrerá com uma injustiça adicional
além da simples existência do crime; ou seja, a desigualdade na distribuição do
crime, o fato de que os pobres estão sujeitos a riscos maiores do que os ricos. Na
minha opinião, isso não é uma injustiça adicional, além do fato de que as pessoas
sofrem com o crime. Em outras palavras, dada uma quantidade fixa de crimes,
medida talvez pelo número e gravidade das violações de direitos que ocorrem
em uma sociedade, não acredito que seja importante, eticamente, como o crime é
distribuído pelas classes econômicas. Perguntas neste sentido, no entanto, estão
além do escopo deste livro.18

10.6.2 Quão bem o governo protege os pobres?


Mesmo que a desigualdade na distribuição do crime seja uma injustiça indepen-
dente, isso obviamente não favorece o governo sobre a anarquia, uma vez que
grandes desigualdades na distribuição do crime ocorrem em todas as sociedades
estatais, onde os ricos são muito mais bem protegidos do que os pobres. Para dar
um exemplo contemporâneo, os americanos com renda abaixo de US$ 7.500 por
ano são três vezes e meia mais propensos a sofrer crimes pessoais do que aqueles
com renda acima de US$ 75.000 (ver Figura 10.1), apesar dos ricos poderem
inicialmente parecer um alvo mais atraente para a maioria dos crimes.19 Embora
essa não seja a única explicação possível, é plausível sustentar que essa desigual-
dade se deve pelo menos em parte à proteção inadequada oferecida pelo Estado
aos pobres. Se num sistema anarquista haveria mais ou menos desigualdade na
distribuição do crime continua sendo motivo de especulação.

10.7 A qualidade da proteção


Até que ponto as agências de proteção privada protegeriam seus clientes, em
comparação com a polícia no status quo? Essa comparação é difícil de fazer, pois
não podemos observar uma sociedade anarquista. O melhor que podemos fazer
é examinar a eficácia da polícia do governo e, em seguida, fazer previsões teóricas
sobre a alternativa anarquista com base nas estruturas de incentivo.
18
Sobre o igualitarismo, veja o meu 2003 e adiante.
19
Departamento de Justiça dos EUA 2010a, tabela 14.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 233

Figura 10.1: Frequência de vitimização de crime por renda

O status quo deixa espaço considerável para melhorias. Não sabemos quantas
pessoas são impedidas de uma vida de crime pela perspectiva de serem punidas
pelo Estado, mas temos uma boa ideia de quantas vezes aqueles que se voltam
para uma vida de crime são de fato punidos. Segundo as estatísticas do FBI,
apenas cerca de metade de todos os crimes violentos relatados e um quinto dos
crimes relatados à propriedade são resolvidos pelas agências policiais (ver Figura
10.2).20 Esses números realmente superestimam a eficácia da aplicação da lei
pelo governo, pois não representam crimes não relatados.
No nível teórico, não é difícil entender por que a polícia do governo pode
20
U.S. Federal Bureau of Investigation 2010, tabela 25. As estatísticas no texto e na figura referem-
se à porcentagem de crimes “apurados por prisão ou por meios extraordinários”. Isso exige
que os agentes da lei localizem um suspeito a quem eles tenham provas suficientes para acusar
e que tenham prendido e entregues o suspeito aos tribunais para julgamento ou tenham sido
impedidos de fazê-lo por circunstâncias fora de seu controle, como a morte do suspeito ou recusa
de extradição.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 234

Figura 10.2: Porcentagem dos tipos de crimes cometidos e resolvidos nos EUA

ser menos eficaz do que as agências de proteção privada. Se uma agência de


proteção fornece proteção insuficiente ou cobra taxas excessivas, deve temer a
perda de clientes para agências rivais. Mas se a polícia oferece proteção deficiente
a um preço alto, eles não precisam ter medo de perder participação de mercado
ou ter o negócio fechado. Desde que monopolizem o setor, os clientes não têm
mais para onde procurar e, como sua receita deriva de impostos, os clientes
não podem decidir demitir seus protetores e se defender. Essas características
invejáveis da posição do Estado permitem que ele sobreviva indefinidamente
quase independentemente de seu desempenho. De fato, o fraco desempenho
da polícia é mais provável que traga recompensas financeiras do que prejuízos
financeiros, uma vez que o aumento da criminalidade tende a causar aumentos
nos orçamentos policiais em vez de cortes (compare a Seção 9.4.7). As agências
de proteção privada, sem essas vantagens, não teriam recurso senão fornecer
proteção suficiente aos seus clientes a um preço razoável.

10.8 Crime organizado


As agências de proteção privada podem ser capazes de lidar com o criminoso
comum, mas como lidariam com o crime organizado? Não precisamos de uma
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 235

autoridade central para combater esse problema?


O governo possui extensos programas para combater o crime organizado;
eles se concentram quase inteiramente nos esforços de fiscalização direta – isto
é, esforços para prender e processar criminosos, particularmente a liderança
criminal. Porém, foram levantadas dúvidas sobre a eficácia dessa abordagem.21
Faltam evidências do efeito desses esforços de fiscalização nos níveis gerais
de criminalidade, e pode ser que os papeis ocupados pelos chefes de crime
presos sejam simplesmente preenchidos por outros criminosos, resultando em
benefícios insignificantes para a sociedade em termos de crime total.22 Uma
abordagem alternativa plausível seria tentar negar ao crime organizado suas
fontes mais importantes de receita. As organizações criminosas concentram-se
principalmente na coleta de dinheiro, o que ocorre principalmente através do
fornecimento de bens e serviços ilegais. Tradicionalmente, o crime organizado
gera receita para si próprio através de operações de jogo, prostituição e (durante
a era da Proibição nos Estados Unidos) a venda ilegal de álcool. De longe, a
principal fonte de receita para o crime organizado hoje parece ser o comércio de
drogas ilícitas, que se estima que gere entre US$ 500 bilhões e US$ 900 bilhões
em vendas em todo o mundo por ano.23
Por que as organizações criminosas se concentraram nessas indústrias? Por
que vender serviços de jogos de azar, serviços sexuais e drogas em vez de, di-
gamos, sapatos e chocolates? Não há controvérsia sobre a resposta para isso: é
porque o jogo (em algumas formas), a prostituição e as drogas entorpecentes
são ilegais. Al Capone fez sua fortuna vendendo álcool, não quando era legal,
mas durante a era da Proibição. Hoje, criminosos organizados ganham fortuna
vendendo maconha e cocaína, em vez de penicilina e prozac. A razão é que
os criminosos não têm vantagens no fornecimento de bens e serviços comuns;
seu único ativo especial é a disposição e a habilidade em desafiar a lei. Dife-
rentemente das pessoas comuns de negócios, os criminosos estão dispostos a
arriscar uma prisão por causa de dinheiro; eles estão dispostos a renunciar a toda
a respeitabilidade social; e estão dispostos a se envolver em suborno, ameaças e
violência para perseguir seus negócios. Essas são as características necessárias
para fornecer um bem que é ilegal. Ao proibir certos medicamentos, garantimos o
controle da indústria farmacêutica recreativa a pessoas com essas características.
Se essas mesmas drogas fossem legalizadas, os criminosos que agora estavam
lucrando com a venda não seriam mais capazes disso, porque não teriam mais
nenhuma vantagem econômica nesse setor. Esta é a lição de Capone e a Proibição.
Assim, uma estratégia poderosa para paralisar o crime organizado seria le-
21
Paoli e Fijnaut 2006, 326; Levi e Maguire 2004.
22
Levi e Maguire 2004, 401, 404–5.
23
Finckenauer 2009, 308.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 236

galizar drogas, jogos de azar e prostituição. Não afirmo que isso elimine todo
crime organizado. Seria, no entanto, um golpe contra o crime organizado mais
devastador do que qualquer coisa que o Estado pudesse esperar por meio de
escutas telefônicas, operações fraudulentas e acusações. A grande maioria do
fluxo de receita do crime organizado secaria praticamente da noite para o dia,
forçando a maioria de seus membros a procurar outro emprego.
Em uma sociedade anarquista, é altamente provável que drogas, jogos de azar
e prostituição sejam todos legais. A diferença essencial entre esses “crimes” e
crimes mais paradigmáticos, como assassinato, roubo e estupro, é que os últimos
crimes têm vítimas, enquanto jogos de azar, uso de drogas e prostituição não têm
vítimas – ou, pelo menos, nenhuma vítima que possa reclamar.24 Na sociedade
anarcocapitalista, os direitos são garantidos pela vítima de uma violação de
direitos, apresentando uma queixa contra o violador de direitos através de sua
agência de proteção e contando com um árbitro privado para julgar a validade
da queixa. Não existe um mecanismo eficaz para proibir crimes sem vítimas,
porque não há legislatura para redigir os estatutos e nenhum promotor público
para executá-los.
E se um grande número de pessoas se opusesse tanto à prostituição que
estaria disposta a pagar suas agências de proteção para “protegê-las” de viver
em uma sociedade em que outras pessoas compram e vendem serviços sexuais?
E se os árbitros desta sociedade concordassem que alguém reclamando sobre o
comércio de serviços sexuais de outra pessoa tivesse sido de fato prejudicado
(talvez por estar ofendido) e estivesse sujeito a indenização pela prostituta ou
pelo cliente da prostituta? Em teoria, uma sociedade desse tipo poderia terminar
em proibições anti-libertárias sobre prostituição; no entanto, esse é um cenário
improvável, já que poucas pessoas pensam que um contrato para comprar serviços
sexuais vitimiza qualquer pessoa por apenas não gostar disso, e poucas estão
de fato dispostas a pagar tanto para impedir a prostituição quanto prostitutas e
seus clientes estão dispostos a pagar para serem deixados em paz. Observações
semelhantes se aplicam a outros crimes sem vítimas, como jogos de azar e uso
recreativo de drogas.
Isso não elimina todas as fontes de receita possíveis para o crime organizado;
os criminosos ainda poderiam coletar dinheiro, por exemplo, através de extorsão
e fraude. Não obstante, negadas suas maiores fontes de receita, as organizações
criminosas seriam muito mais fracas em uma sociedade anarquista do que são
hoje e provavelmente teriam um papel muito pequeno.
24
Alguns afirmam que o uso ilegal de drogas vitimiza a família, cônjuge ou colegas de trabalho
do usuário (Wilson 1990, 24). No entanto, é improvável que essas supostas vítimas de crimes
ajam com um processo judicial contra o usuário de drogas e dificilmente prevaleça em uma
queixa contra usuário ou fornecedor.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 237

10.9 Proteção ou extorsão?


Em vez de fornecer proteção em troca de taxas acordadas, pode parecer que seria
mais lucrativo para uma agência de “proteção” simplesmente roubar pessoas
sem se preocupar em protegê-las. Por que as agências de proteção não evoluiriam
para meras agências de extorsão?

10.9.1 A disciplina da competição


A competição entre agências é a principal força que restringe as práticas abu-
sivas pelas agências de proteção. Os clientes assinariam com a agência que
esperam atendê-los da melhor maneira pelo menor custo, sem roubá-los, abusar
ou escravizá-los.
Imagine duas agências de proteção operando na mesma cidade, a Tannahelp
Inc. e a Murbard Ltd.25 A Tannahelp é uma agência legítima que celebra acordos
voluntários com seus clientes, oferecendo proteção em troca de uma taxa. Mur-
bard é uma agência desonesta que extorque dinheiro das pessoas e, ao mesmo
tempo, oferece pouco valor. Quase todo mundo prefere a Tannahelp e, portanto,
se os indivíduos pudessem escolher livremente sua agência de proteção, Murbard
rapidamente sairia do negócio. Se Murbard tentasse forçar as pessoas a se unirem
a ela em vez da Tannahelp, as pessoas apelariam a Tannahelp por proteção.
Vimos acima os incentivos que se opõem a conflitos violentos entre agências.
A Tannahelp pode, portanto, tentar resolver a disputa com Murbard por meio de
arbitragem de terceiros. Murbard poderia aceitar a oferta de arbitragem, caso em
que qualquer juiz justo decidirá contra; isso resultaria em abandonar seu plano
extorsionista ou se preparar para a guerra.
Há quatro razões pelas quais Murbard teria maior probabilidade de recuar
ou falir do que Tannahelp. Primeiro, Tannahelp seria percebida como mais
legítima do que Murbard pelo resto da sociedade. A Tannahelp, portanto, teria
uma chance muito maior de convencer os funcionários a lutar em seu nome do
que Murbard, embora possa ser que nenhuma agência tenha sucesso e que os
funcionários de ambos os lados desertem em vez de lutar.
Segundo, Tannahelp teria o apoio de todos os clientes pelos quais as agências
estavam lutando. Portanto, é provável que os clientes tentem ajudar sua agência
favorita e dificultar a agência extorsionista.
Terceiro, Tannahelp teria mais motivos para lutar do que a agência criminosa.
Se a Tannahelp permitir que alguns de seus possíveis clientes sejam escravizados
por uma agência criminosa, ela estabelecerá um precedente que provavelmente
25
Esses nomes são retirados de Friedman (1989, 116-17), aparentemente baseados em modifi-
cações dos nomes de autores libertários proeminentes.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 238

levará à sua própria extinção. Murbard, por outro lado, poderia a qualquer
momento desistir de seus planos extorsionistas e decidir executar um negócio
legítimo que protege pessoas de criminosos. Vimos anteriormente as razões
pelas quais conflitos violentos seriam muito prejudiciais para ambas as agências.
Como as duas agências estão cientes disso e também sabem que é Murbard que
pode se dar ao luxo de recuar, é isso que provavelmente ocorrerá.26
Quarto, o resto da sociedade, incluindo as outras agências de proteção na
área, ficaria do lado de Tannahelp. Isso se deve em parte a crenças éticas de senso
comum – quase todo mundo considera extorsão injusta – e em parte devido à au-
topreservação – se Murbard triunfar contra Tannahelp, Murbard provavelmente
seguirá em frente contra os clientes de outras agências. Assim, é provável que
outras agências ajudem a Tannahelp o suficiente para garantir sua vitória, mesmo
que permitam que o Tannahelp faça a maior parte do trabalho.
O cenário anterior supõe que a Murbard comece como uma agência extorsio-
nista e tente roubar clientes de outras agências ou forçar clientes não afiliados
a se unirem à Murbard. E se Murbard começar como uma agência legítima,
adquirindo clientes por meio de acordos voluntários, e só depois evoluir para
uma agência extorsionista que proíbe a saída de clientes existentes?
Nesse caso, parece menos provável que Tannahelp travasse uma guerra para
libertar os clientes existentes de Murbard. No entanto, existem três fatores que
limitariam o potencial de dano desse tipo de cenário. Primeiro, é improvável que
ocorra uma transição repentina e sem aviso prévio. Como os tipos de pessoas
que tendem a ser atraídas por empresas legítimas e prestadoras de serviços são
diferentes daquelas que são atraídas por quadrilhas criminosas semelhantes à
máfia, a transição da primeira para a segunda provavelmente envolveria uma
mudança de pessoal, tanto no nível de gerência como no nível da média dos
trabalhadores. Talvez uma pessoa de mente criminosa, de alguma forma, assuma
uma posição de gerência, onde começa a fazer mudanças, expulsando o pessoal
existente e contratando amigos e familiares com tendências criminosas. Enquanto
essa transição estava ocorrendo, os clientes que não gostassem da direção em que a
empresa estava tomando deixariam a empresa em favor das agências concorrentes.
A queda resultante nos lucros da empresa provavelmente levaria ela a parar o
que estava fazendo. Caso contrário, a maioria dos clientes provavelmente teria
saído quando o processo estivesse concluído.
Segundo, a versão mais crível desse cenário teria a agência extorsionista que
controla uma ou mais pequenas áreas geográficas, como bairros individuais
cujas associações de proprietários de casas originalmente haviam assinado com a
agência voluntariamente. Se, no entanto, o comportamento da agência fosse sufi-
26
Ver também o argumento de David Friedman (1994) de que egoístas racionais em um estado
de natureza evitam conflitos através do respeito mútuo por direitos.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 239

cientemente flagrante, os clientes prefeririam deixar o bairro em vez de continuar


sujeitos à extorsão. Supondo que existam muitas outras agências de proteção
na sociedade que atendem bairros semelhantes, seria extremamente difícil para
Murbard impedir que suas vítimas fossem embora.
Uma observação semelhante poderia ser feita sobre os governos: se o governo
de um país for suficientemente tirânico, corrupto ou censurável, os cidadãos
poderão deixar o país. Note, no entanto, que o mecanismo de saída é mais eficaz
no nível do bairro do que no nível nacional. Os indivíduos que fogem de seu país
de origem geralmente são forçados a deixar para trás sua cultura, seus empregos,
sua família e amigos. Por outro lado, aqueles que apenas se mudam para um
bairro diferente dentro da mesma sociedade geralmente podem manter sua cul-
tura, trabalho, família e amigos. Além disso, outras nações tipicamente impõem
barreiras severas à imigração, enquanto outros bairros da mesma sociedade geral-
mente não. Como resultado, um governo nacional pode ser muito mais abusivo
antes de perder a maioria de seus cidadãos do que uma organização limitada a
um único bairro.
Por fim, mesmo que a Murbard mantenha alguns de seus clientes originais, é
improvável que obtenha novos clientes. Como resultado, a base de clientes da
Murbard diminuirá lentamente, enquanto outras agências que melhor atendem
seus clientes se expandiriam. É provável que isso sirva de exemplo para as
empresas que consideram fazer a transição para a arena de extorsão no futuro.

10.9.2 Extorsão pelo governo


Agora considere o problema análogo para os sistemas governamentais: por
que o governo não deveria extorquir dinheiro das pessoas sem protegê-las? De
fato, todos os governos extorquem dinheiro, embora a prática seja geralmente
denominada “tributação” e não “extorsão”. Poucos estatistas ainda consideram
acabar com essa prática. Como, então, o governo pode ser considerado superior
à anarquia nesta área?
Talvez alguém possa pensar que o governo gaste menos do que os protetores
privados cobrariam ou que o governo ofereça um serviço melhor do que os
protetores privados. Mas é difícil ver por que isso seria assim. Imagine que uma
agência privada de proteção de alguma forma adquiriu o monopólio em uma
grande área geográfica e começou a extrair pagamentos da população à força.
Poucos argumentariam que, uma vez que esse estado de coisas ocorresse, os
preços cairiam e o serviço melhoraria. Certamente o contrário ocorreria. Mas
essa é precisamente a posição das sociedades com proteção baseada no governo.
Talvez seja o processo democrático que deve induzir o governo a controlar
custos e manter um serviço de alta qualidade: se o governo fizer um trabalho
ruim, as pessoas votarão em políticos diferentes. A questão então se torna se esse
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 240

mecanismo é mais ou menos eficaz que o mecanismo de livre concorrência no


mercado. Uma deficiência do mecanismo democrático é que as escolhas tendem
a ser muito limitadas. Em algumas sociedades democráticas, as eleições oferecem
regularmente apenas duas opções; por exemplo, os democratas e os republicanos
nos Estados Unidos. Mesmo sistemas de representação proporcional raramente
dão aos eleitores a gama de opções presentes nos mercados livres típicos.
Mas a falha mais importante é que, no sistema democrático, quando alguém
escolhe um político em detrimento de outro, não consegue assim o que escolhe;
obtém-se o que a maioria escolhe. Portanto, há pouco incentivo para se esforçar
na votação racional ou informada (consulte a Seção 9.4.3).

10.10 Monopolização
Alguns acreditam que um sistema anarquista de mercado livre evoluiria para
um Estado, conforme uma agência de proteção monopolizasse o setor.
No sistema atual, quase todos os monopólios e condições semelhantes a mono-
pólio são criados pela intervenção do governo, geralmente motivado por grupos
de interesses especiais.27 Para endossar a objeção à monopolização, portanto,
precisamos de algum motivo para acreditar que o setor de proteção difere da
maioria das outras indústrias de alguma forma que a tornaria particularmente
propensa à monopolização na ausência de intervenção do Estado.

10.10.1 A vantagem do tamanho em combate


Robert Nozick afirma que o setor de proteção sucumbiria ao monopólio natural
porque o valor do serviço de uma empresa é determinado pelo poder relativo
dessa empresa em comparação com outras empresas.28 Nozick imagina agências
lutando para resolver disputas entre clientes. Se uma agência for mais poderosa
que outra, a agência mais poderosa triunfará. Reconhecendo que é melhor ser
protegido pela agência mais forte, os clientes das agências mais fracas migrarão
para agências mais fortes, tornando-as ainda mais fortes. Como esse tipo de
processo tende a amplificar as diferenças iniciais de poder, o resultado final
é que uma agência detém todo o poder; isto é, um monopólio da indústria.
Nozick continua explicando como essa agência de proteção dominante pode se
transformar em um governo de pleno direito.29
Se a tarefa para a qual alguém contrata uma agência de proteção é a de
combater outras agências, a análise de Nozick estaria correta. Mas não se contrata
27
Ver Brozen 1968; Friedman 1989, capítulos 6–7; Green 1973.
28
Nozick 1974, 15–17.
29
Nozick 1974, capítulo 5.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 241

uma agência de proteção para combater outras agências, nem as agências prestam
esse serviço (Seção 10.3). Contrata-se uma agência de proteção para impedir
que criminosos vitimizem alguém ou para rastrear criminosos após o fato. Nesta
tarefa, a agência de proteção deve ter o poder de prender criminosos, mas não
precisa derrotar outras agências de proteção, uma vez que outras agências não
estão no negócio de proteger criminosos (Seção 10.4).
Nozick considera a possibilidade de agências dependerem de arbitragem de
terceiros, que ele supõe que ocorreria apenas se duas agências tivessem força
aproximadamente igual. Contrariando Nozick, a solução pacífica da arbitragem
não depende da suposição de que as agências tenham força aproximadamente
igual nem que o combate entre elas resulte em impasse. Depende apenas da su-
posição de que o combate físico entre as agências é mais caro do que a arbitragem,
uma suposição que é praticamente garantida em quase todos os conflitos.
Nozick supõe que a arbitragem levaria a “um sistema judicial federal unifi-
cado” ao qual todos estariam sujeitos.30 Ele então prossegue, em seu raciocínio
subsequente sobre o surgimento de um Estado, para falar das atividades da “as-
sociação protetora dominante”, deixando o leitor supor que um sistema judicial
unificado é equivalente a uma agência de proteção dominante. Ele não explica
por que o setor de arbitragem seria controlado por um monopólio nem por
que um monopólio de arbitragem seria equivalente a uma agência de proteção
monopolista.

10.10.2 Determinando o tamanho eficiente das empresas


Sob algumas condições, um monopólio pode se desenvolver naturalmente em
um mercado livre. Se o tamanho mais eficiente para uma empresa em um setor
específico é tão grande que só há espaço para uma empresa no mercado, então
as condições estão propícias para um monopólio natural.31
As grandes empresas geralmente se beneficiam de economias de escala. Por
exemplo, na indústria automobilística, os menores custos de produção por uni-
dade são alcançados ao operar um tipo de fábrica capaz de produzir dezenas
ou centenas de milhares de carros por ano. Como existe um grande custo fixo
para a construção de uma fábrica – um custo que deve ser suportado para pro-
duzir carros, mas que não aumenta à medida que se constrói mais carros até a
capacidade máxima da fábrica – é mais economicamente eficiente usar a fábrica
com capacidade total depois de construída. Qualquer empresa que tente vender
menos de muitos milhares de carros por ano está, portanto, em uma desvantagem
competitiva contra empresas maiores – ela será forçada a cobrar preços mais altos
30
Nozick 1974, 16.
31
Ver Friedman 1990, 264.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 242

por seus carros. Economias de escala, no entanto, operam apenas até certo ponto
– não há maior eficiência envolvida na operação de dez fábricas de automóveis
do que na operação de uma.
Por outro lado, grandes empresas também sofrem com deseconomias de
escala. Fatores que tendem a tornar uma empresa maior menos eficiente in-
cluem burocracia, alienação por parte dos funcionários, aumento dos custos
de comunicação dentro da organização e aumento do risco de duplicação de
esforços.32

Figura 10.3: Curva de custo médio para uma empresa em um setor com economias e deseconomias
de escala. O ponto A representa o tamanho mais eficiente (o nível de saída com menor custo
médio)

Como as economias de escala deixam de se aplicar após um certo ponto e as


deseconomias de escala começam a se aplicar a um certo ponto, há um limite
para o tamanho de uma empresa eficiente (ver Figura 10.3). Esse limite varia de
acordo com o setor. Na indústria automobilística, as empresas mais eficientes
são muito grandes devido à natureza das fábricas de automóveis, que custam
32
Ver Canbäck et al. 2006 para discussão teórica e empírica de economias de escala, desecono-
mias de escala e determinação de tamanho eficiente para empresas de um setor. Como Canbäck
et al. ressalta, muitas vezes existem empresas de vários tamanhos em um setor, sugerindo que há
uma gama significativa de tamanhos sobre os quais os custos médios por unidade de produção
permanecem aproximadamente constantes. Veja Carson 2008, capítulos 5–9, para uma discussão
mais aprofundada sobre a ineficiência de grandes empresas. Carson (capítulo 3) argumenta que
a intervenção do governo facilitou a sobrevivência de empresas muito maiores que o tamanho
mais eficiente.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 243

centenas de milhões de dólares. Nas indústrias com custos fixos mais baixos, as
empresas mais eficientes serão menores.
E o setor de proteção? Os custos fixos para uma agência de proteção são míni-
mos. O proprietário da empresa deve ter fundos suficientes para contratar alguns
funcionários e equipá-los com armas e ferramentas para execução e investigação.
Nenhuma fábrica cara, grande área de terreno ou grande reserva de capital é
necessária. Não há economias de escala significativas óbvias. Parece, portanto,
que não há pressão econômica para a formação de grandes empresas nesse setor,
e o setor provavelmente conterá um número muito grande de pequenas e médias
empresas. As grandes empresas estariam em desvantagem, pois sofreriam as de-
seconomias usuais de escala sem colher economias compensatórias significativas
de escala.

10.10.3 Monopólio do governo


Como no caso das objeções anteriores, a ameaça de monopólio representa uma
objeção mais séria ao governo do que à anarquia. Não precisamos apresentar
argumentos para mostrar que um governo pode se tornar um monopólio, porque
um governo, por definição, já é um monopólio. Quaisquer que sejam os males a
serem temidos pela monopolização das indústrias, por que não devemos temer
precisamente esses males do governo? O fato de uma organização ser rotulada
de “governo” em vez de “empresa” dificilmente tornará suas ações benéficas
se a estrutura de incentivo real que ela enfrentar for a mesma de uma empresa
monopolista.
Qual é o problema dos monopólios? A teoria econômica ensina que um
monopólio restringirá a produção a níveis socialmente inferiores, enquanto eleva
os preços a níveis que maximizam seus próprios lucros, mas diminuem a utilidade
total da sociedade. Se, por exemplo, uma empresa detivesse o monopólio da
produção de calçados, haveria muito poucos sapatos e eles seriam muito caros.33
Esse é o problema de um monopolista racionalmente interessado. Mas as coi-
sas são piores do que isso, porque não podemos nem assumir que um monopolista
será racional. A concorrência faz as empresas agirem como algo aproximando ma-
ximizadores racionais de lucro, eliminando aqueles que não se comportam dessa
maneira. Na ausência de pressões competitivas, uma empresa tem muito mais
margem de manobra. Os otimistas podem observar que uma organização com
um monopólio robusto pode sobreviver enquanto sacrifica magnanimamente os
lucros para o bem da sociedade, se isso acontecer. Mas também pode sobreviver
enquanto se apega a métodos de produção ineficientes e ao resistir à inovação;
recompensa pessoas bem conectadas, mas incompetentes; desperdiça dinheiro
33
Friedman 1990, 248–55, 466–8.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 244

com planos incompletos e motivados ideologicamente; ignora evidências de in-


satisfação do cliente; e assim por diante. Assumir que o privilégio de monopólio
será usado apenas para o bem parece ser um exercício de pensamento positivo.
Quase todo mundo aceita isso no caso de monopólios não-governamentais; nada
essencialmente muda quando o rótulo “governo” é aplicado a uma agência de
proteção monopolista.

10.11 Colusão e cartelização


Além do monopólio, existe uma segunda prática anticompetitiva que pode au-
mentar os lucros das empresas em um determinado setor. Essa é a prática de
formar um cartel, uma associação de empresas que concordam entre si em manter
os preços em um nível artificialmente alto ou de outra forma cooperar para pro-
mover seus interesses mútuos. Como alertou Adam Smith: “Pessoas do mesmo
ramo raramente se reúnem, mesmo para alegria e divergência, mas a conversa
termina em uma conspiração contra o público ou em algum artifício para aumen-
tar os preços”.34 Alguns críticos argumentam que o serviço de proteção ficaria
sob o domínio de um consórcio desse tipo, levando a resultados semelhantes aos
de um monopólio.

10.11.1 O problema tradicional dos carteis


A maioria dos carteis tem dificuldade em aplicar suas políticas. Suponha que
o preço de mercado competitivo para widgets seja de US$ 100 por widget. Os
líderes da indústria de widgets, no entanto, em uma recente reunião de bastidores,
concordaram que US$ 200 é um preço muito melhor. Uma pequena empresa, a
Sally’s Widgets, fica insegura. Enquanto as empresas de cartel cobram US$ 200,
Sally decide cobrar apenas US$ 150 por widget.35 O que acontece?
A esses preços, quase todos os clientes preferem um widget da Sally em vez
de um widget do cartel. Antes uma pequena empresa em dificuldades, Sally’s
Widgets de repente não consegue se expandir rápido o suficiente para todos os
novos clientes que se aproximam. O cartel, cansado de perder negócios, acaba
34
Smith 1979, 145. Smith continua argumentando que não se pode proibir tais reuniões sem vi-
olar indevidamente a liberdade, mas que não se deve fazer regulamentos que realmente induzam
os empresários a se reunir.
35
Em teoria, assumindo informações perfeitas e widgets idênticos, Sally poderia maximizar seu
lucro cobrando US$ 199 por widget. Mas, na realidade, uma maior diferença de preço pode ser
necessária para convencer os consumidores a mudar de marca. Uma diferença de preço de US$
50 cria um argumento poderoso para mudar, deixando a Sally com uma margem de lucro muito
confortável.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 245

abandonando seu esquema e competindo com Sally pelo preço, mas não antes que
Sally’s Widgets tenha desfrutado do maior boom de vendas de todos os tempos,
às custas dos líderes do setor. O incidente é uma lição para os participantes de
outros setores, onde as empresas menores que lutam para se estabelecer sonham
que, um dia, os líderes de seu setor também criarão um esquema de fixação de
preços.

10.11.2 Cartelização por ameaça de força


Algumas indústrias podem diferir materialmente da famosa indústria de widgets
competitivos. Nos setores em que o sucesso de uma empresa depende de suas
boas relações com outras empresas, o conluio anticompetitivo pode ser mais
viável, porque as grandes empresas do setor podem punir efetivamente aqueles
que rejeitam as políticas de cartel. Tyler Cowen e Daniel Sutter sugerem que
isso pode ser verdade no setor de proteção porque o sucesso de uma agência de
proteção depende de sua capacidade de resolver pacificamente disputas com
outras agências.36 Cowen e Sutter imaginam as agências de proteção em uma
determinada área formando um acordo multilateral único, detalhando os pro-
cedimentos para a solução de controvérsias envolvendo clientes de diferentes
agências. Tendo resolvido esse problema, as agências poderão concordar em
fixar preços em níveis artificialmente altos e recusar-se a cooperar com quaisquer
novas empresas que possam posteriormente entrar no mercado.
O acordo sobre procedimentos para arbitragem de disputas seria auto-aplicável,
no sentido de que as empresas que escolherem violá-lo estariam sabotando a
si mesmas (Seção 10.3). Mas quem aplicaria os acordos anticompetitivos para
fixar preços e excluir novas agências? Cowen e Sutter imaginam que o cartel
exclui novos entrantes no setor, recusando-se a aceitar arbitragem com eles; os
membros do cartel resolvem quaisquer disputas com não-membros por meio
da violência.37 O mesmo mecanismo é usado para fazer cumprir o acordo de
fixação de preços: se uma empresa membro estabelecer preços muito baixos,
os membros restantes expulsarão a agência pela redução de preços e, a partir
de então, tratá-la como qualquer outra forasteira, recusando a arbitragem em
quaisquer disputas futuras com a agência excluída.38
Embora esse pareça ser um mecanismo possível para assumir o controle do
setor, não acho muito plausível que o mecanismo seja empregado. Suponha que a
agência A, que é membro do cartel, tenha uma disputa com a agência B, que não
36
Cowen 2007b; Cowen e Sutter 2007.
37
Cowen e Sutter 2007, 318.
38
Cowen (2007b, 272-3) também sugere que não-membros possam ter suas vantagens recusadas,
como extradição de criminosos e acesso a bancos de dados para rastrear criminosos. Por serem
sanções relativamente menores, concentro-me no mecanismo coercitivo de aplicação.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 246

é membro. A deveria estar preparada para entrar em guerra com B, em vez de


resolver a disputa pacificamente. Já vimos que existem motivos poderosos para
as agências de proteção evitarem confrontos violentos, principalmente porque
(a) o conflito violento é extremamente caro e (b) a maioria das pessoas tem
valores contra o assassinato. Portanto, para A se envolver em conflito armado
com B, A teria que estar disposta a sacrificar seus próprios interesses em prol
da manutenção do cartel.39 Como a motivação para ingressar no cartel, para
começar, era de interesse próprio econômico, não é plausível que A faça esse
sacrifício.
Talvez A possa ser movida para lutar pelo cartel por uma ameaça adicional
feita por outros membros do cartel: se A resolver sua disputa com B pacificamente,
então outros membros do cartel entrarão em guerra contra A sempre que tiverem
uma disputa com A. E o que motivaria os outros membros do cartel a fazer isso?
Bem, o fato de que, se não o fizerem, outros membros entrarão em guerra contra
eles, e assim por diante. Esse pensamento, no entanto, parece-me uma digressão
de crescente implausibilidade. Se era implausível que A fosse à guerra contra
B por não ser membro do cartel, ainda é menos plausível que outra agência, C,
fosse à guerra contra A por não entrar em guerra por B por não ser membro do
cartel. Se A deseja evitar conflitos armados, sua melhor aposta seria evitar o
conflito imediato com B, talvez fazendo o possível para ocultar seu acordo com
B dos outros membros do cartel e se preocupar com possíveis conflitos futuros
com outras agências posteriormente.

10.11.3 Cartelização por negação de proteção estendida


George Klosko propõe um mecanismo diferente para cartelização do setor de
proteção.40 Ele imagina uma coleção de condomínios fechados, cada um servido
por uma agência de proteção privada. Os clientes desejariam “proteção esten-
dida”; isto é, alguém gostaria de ser protegido não apenas no próprio bairro, mas
também quando deixa o bairro para ir trabalhar, visitar amigos, fazer compras e
assim por diante. Para atender a essa demanda, as agências de proteção preci-
sariam trabalhar juntas, desenvolvendo procedimentos comuns e concordando
em proteger os clientes uns dos outros. Mas uma vez que as agências formaram
um consórcio para fornecer proteção estendida, o consórcio poderia evoluir facil-
mente para um cartel projetado para aumentar os preços, limitar a concorrência
e assim por diante. O cartel limitaria a concorrência ao negar proteção estendida
aos clientes de agências não-membras. Como quase todos desejam proteção
39
Como Caplan e Stringham (2007, 299–302) afirmam, as agências do cartel enfrentam um
dilema de prisioneiro entre si, no qual vale a pena renegar o acordo de punir agências externas.
40
Klosko 2005, pp. 30–3.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 247

estendida, as agências não-membras seriam efetivamente excluídas do mercado.


O cartel aplicaria suas políticas internamente, ameaçando expulsar membros que
violassem as políticas do cartel.
Como esse resultado pode ser evitado? Vamos começar imaginando um setor
de proteção competitivo e não-cartelizado, e considerar se é provável que seja
fornecida proteção estendida sem o desenvolvimento de um cartel do setor. Supo-
nha, como Klosko, que as agências de proteção sejam contratadas por associações
de proprietários para proteger áreas específicas (fechadas ou não). Isso pode
incluir áreas residenciais e comerciais.
Agora, suponha que a associação de proprietários esteja decidindo quem
contratar para segurança do bairro. A Agência A se oferece para proteger os
residentes, e somente os residentes, de crimes que ocorrem no bairro. Se um
de seus guardas de segurança testemunhar um crime, ele primeiro tentará, de
alguma maneira, verificar se a vítima é residente ou visitante. Se a vítima parecer
um visitante, o guarda permitirá que o crime prossiga. A Agência B, por outro
lado, oferece o combate a todos os crimes do bairro, seja quem for a vítima. Há
duas razões evidentes pelas quais a oferta de A será a rejeitada: primeiro, os
proprietários provavelmente perceberão que a ideia de verificar a identidade de
uma vítima antes de agir para impedir um crime como impraticável e imoral;
segundo, a maioria das pessoas gostaria de receber visitantes no bairro e gostaria
que esses visitantes estivessem seguros enquanto estiverem no bairro. A Agência
B ganhará, portanto, o contrato.
Um ponto semelhante se aplica ainda mais claramente aos proprietários
de imóveis comerciais. Não é preciso grande altruísmo para um empresário
reconhecer que é melhor fornecer um ambiente seguro não apenas para si mesmo,
mas também para seus clientes e funcionários. Se outras pessoas que não o
proprietário forem frequentemente atacadas ou roubadas nas instalações da
empresa, pode ser difícil administrar o negócio. Portanto, as empresas pagarão
agências de proteção para proteger todos em suas instalações.
Assim, a proteção estendida é fornecida sem a necessidade de conluio em todo
o setor. Cada agência de proteção, agindo de forma independente, simplesmente
fornece o que seus clientes desejam. Se várias agências decidirem formar um
consórcio e anunciar que, a partir de agora, apenas protegerão os clientes das
agências membros, todas as agências do consórcio perderão rapidamente quase
todos os seus contratos.41
41
Klosko (2005, 31) também sugere que as agências devem se unir “para regularizar seus
padrões e procedimentos”. Não mencionei isso no texto porque acho incerto o que Klosko tem
em mente ou por que motivo ele faz essa suposição.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 248

10.12 Associações de proprietários residenciais (APR)


versus governo
Imaginei associações de proprietários residenciais e associações de proprietários
geralmente contratando agências para fornecer segurança em bairros ou distritos
comerciais específicos. Por que essas associações existiriam em uma sociedade
anárquica e por que não se qualificam como governos?
O desenvolvedor de um complexo habitacional cria uma associação de pro-
prietários, aos quais os residentes são obrigados a participar como condição para
comprar uma unidade nesse complexo, com o entendimento de que a associação
é anexada à propriedade para que todos os proprietários subsequentes sejam
sujeito à mesma condição. O desenvolvedor cria essa instituição porque aumenta
o valor da propriedade; a maioria dos compradores em potencial está disposta
a pagar mais por uma unidade do complexo, sabendo que todos no complexo
serão membros da associação do que seriam se não houvesse associação ou se
apenas alguns residentes fossem membros dela.42 Isso acontece porque uma
associação a qual todos pertencem pode fornecer bens importantes, como um
conjunto de políticas uniformes para residentes ou (particularmente em uma
sociedade anarquista) arranjos para impedir o crime no projeto que está sendo
desenvolvido. Os APRs têm se espalhado rapidamente nos Estados Unidos desde
1960 e agora cobrem 55 milhões de pessoas.43 Em uma sociedade anarquista,
provavelmente seriam ainda mais difundidas.
Como os APRs podem estabelecer regras para os residentes, que podem ser
aplicadas por meio da agência de proteção da APR, pode-se pensar que uma APR
equivale a um tipo de governo, embora um governo localizado muito pequeno,
para que o sistema aqui projetado não seja afinal, a anarquia.44
Na questão semântica de saber se uma APR se qualifica como um governo
pequeno, vale a pena notar que essas entidades realmente existem atualmente
e algumas até contratam seus próprios guardas de segurança, mas geralmente
não são consideradas governos. Pode-se sugerir que se qualificariam como
“governos”, mas pela existência de outros órgãos com poder sobre eles; ou seja, as
entidades realmente chamadas de “governos” essa questão semântica, no entanto,
não tem grande importância, e não estou preocupado em contestar a posição
de quem deseja descrever minha proposta como um governo muito pequeno
e descentralizado, e não uma anarquia. O que é importante, no entanto, é ver
42
Agan e Tabarrok (2005), examinando cinco códigos postais no norte da Virgínia, descobriram
que as APRs aumentavam os valores dos imóveis em uma média de cerca de 5,4%, ou US$ 14.000.
43
Agan e Tabarrok 2005, 14.
44
Agan e Tabarrok (2005) se referem as APRs como “governos privados”.
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 249

como uma APR difere das instituições tradicionalmente chamadas de “governos”.


Parece-me que existem pelo menos três diferenças importantes.
A primeira é que, devido ao seu tamanho pequeno, os residentes têm uma
chance muito maior de influenciar as políticas de sua APR do que de influenciar
as políticas de um governo nacional, da província ou mesmo típico de uma
cidade. Por esse motivo, é mais provável que os membros votem de maneira
relativamente racional e informada nas eleições da APR, e é mais provável que
as APRs sejam sensíveis às necessidades e desejos de seus membros do que um
governo nacional.
Segundo, mais a propósito aos temas centrais deste livro, uma APR tem
o consentimento de seus membros através de um contrato real e literal, em
contraste com o contrato social meramente hipotético ou mitológico oferecido
pelos governos tradicionais. Isso lhes dá uma legitimidade moral que nenhum
governo tradicional pode reivindicar.
Terceiro, a competição entre conjuntos residenciais com diferentes APRs é
muito mais significativa do que a competição entre os governos tradicionais.
Indivíduos insatisfeitos com a APR podem vender seu imóvel e se mudar para
outro conjunto residencial. Os custos da realocação não são triviais, mas também
não são enormes. Por outro lado, as dificuldades de se mudar para um país
totalmente novo são muito maiores, se é que é permitido se mudar.
Como resultado desses fatores, a pressão competitiva entre os governos é
quase inexistente, e os governos podem, portanto, se dar ao luxo de responder
muito menos a seus cidadãos do que uma APR típica responde a seus membros.

10.13 Conclusão
Todos os sistemas sociais são imperfeitos. Em toda sociedade, as pessoas às vezes
sofrem com crimes e injustiças. Numa sociedade anarquista, isso continuaria
sendo verdade. O teste do anarquismo como ideal político é se ele pode reduzir
a quantidade de injustiça sofrida em relação ao melhor sistema alternativo, que
considero ser uma democracia representativa. Argumentei que um tipo especí-
fico de sistema anarquista, que emprega um mercado livre para a provisão de
segurança, mantém a promessa de uma sociedade mais segura, mais eficiente e
mais justa.
A natureza radical desta proposta geralmente gera forte resistência: diz-se
que a justiça não deve estar à venda; que as agências estarão em constante guerra
umas com as outras; que servirão aos criminosos em vez de suas vítimas; que
servirão apenas aos ricos; que não serão capazes de nos proteger, assim como o
governo; que se transformarão em agências de extorsão; que um monopólio ou
cartel evoluirá para explorar os clientes. Essas objeções surgem bastante quando
10. Segurança Individual em uma Sociedade sem Estado 250

estudantes, professores e leigos instruídos são introduzidos pela primeira vez


à ideia de serviços de proteção não-estatais. Mas se examinarmos a proposta
com mais cuidado e maior extensão, veremos que nenhuma dessas objeções
é bem fundamentada. Os anarquistas têm argumentos bem fundamentados,
fundamentados na teoria econômica e em premissas realistas sobre a psicologia
humana, sobre como uma sociedade anarquista evitaria cada um dos desastres
que os críticos temem.
A maioria das objeções levantadas contra a anarquia de fato se aplica de
maneira mais clara e vigorosa ao governo. Esse fato é muitas vezes esquecido
porque, quando confrontados com ideias radicais, tendemos a procurar apenas
objeções às novas ideias, em vez de objeções ao status quo. Por exemplo, a objeção
mais comum ao anarquismo, a objeção de que as agências de proteção entrariam
em guerra umas com as outras, ignora tanto o custo extremo do combate quanto
a forte oposição que a maioria das pessoas sente ao assassinar outras pessoas.
A ameaça muito real de guerra entre governos parece uma preocupação muito
mais séria do que conflitos entre agências privadas de proteção.
Da mesma forma, a objeção comum de que o setor de segurança será mono-
polizado carece de fundamento. Depois que abandonamos a noção de que as
agências de proteção lutariam entre si, os recursos econômicos do setor, particu-
larmente os custos fixos mínimos para uma empresa de segurança, devem nos
levar a prever um grande número de pequenas empresas, em vez de uma única e
enorme empresa. Por outro lado, um sistema governamental é monopolista por
definição e, portanto, deve sofrer os problemas usuais dos monopólios.
As vantagens centrais do sistema anarquista de livre mercado sobre um sis-
tema governamental são duas: primeiro, o sistema anarquista repousa na co-
operação voluntária e, portanto, é mais do que um sistema que se baseia em
coerção. Segundo, o sistema anarquista incorpora significante concorrência entre
os provedores de segurança, levando a maior qualidade e menores custos. Como
resultado desses recursos do sistema, os indivíduos que vivem em uma anarquia
de livre mercado podem esperar obter maior liberdade e maior segurança a um
custo menor do que aqueles sujeitos ao sistema tradicional de monopolização
coercitiva do setor de segurança.
11

Justiça Criminal e Resolução de


Disputas

Os anarquistas libertários imaginam um sistema no qual as disputas entre indiví-


duos são resolvidas pacificamente por meio da mediação de árbitros privados
sábios e justos. Isso é ilusão? No presente capítulo, reviso várias perguntas e
objeções a respeito desse quadro de justiça na sociedade anarquista.

11.1 A integridade dos árbitros


Que mecanismo manterá os árbitros honestos e imparciais? Podemos resolver
melhor essa questão, considerando primeiro com mais detalhes o que torna
a arbitragem um mecanismo viável de resolução de disputas. Se duas partes
tiverem uma disputa que não puderem resolver por meio de discussão direta entre
si, poderão, no entanto, conseguir chegar a um acordo sobre um procedimento
geral para resolver sua disputa. Isso depende de um fato contingente, porém
robusto, sobre os seres humanos em uma ampla gama de culturas: o apelo a um
terceiro neutro é amplamente percebido como um mecanismo justo e razoável
de resolução de disputas.
Mas como é que duas partes que discordam de alguma questão prática con-
seguem chegar a um acordo de terceiros para resolver a disputa? Por que a
primeira disputa não é simplesmente substituída por uma segunda sobre quem
recorrer para resolver a primeira disputa? Novamente, isso depende de um fato
contingente, mas robusto, sobre as percepções normativas humanas: as pessoas
tendem a concordar em grande parte sobre quem constitui um juiz imparcial.
Mas por que ambas as partes em uma disputa buscariam um juiz imparcial,
em vez de cada uma insistir em um juiz tendencioso a seu favor, como um amigo
pessoal ou membro da família? A razão é que eles estão tentando chegar a uma

251
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 252

solução pacífica da disputa original. A ideia fundamental por trás da arbitragem


como estratégia para alcançar tal solução é que as partes buscam algo em que
possam concordar que possa ser usado para gerar uma solução para a disputa
original. Dado esse objetivo, faz sentido que ambas as partes escolham um
árbitro que geralmente é visto em sua sociedade como justo. Cada um deles
não deve propor um árbitro obviamente tendencioso a seu favor, uma vez que
essa não seria uma estratégia viável para gerar o ponto de acordo necessário.
Obviamente, se as duas partes não desejam uma solução pacífica de sua disputa,
podem simplesmente lutar contra isso; não há necessidade de propor um árbitro
tendencioso ou corrupto nesse caso.
Com base nesse entendimento da lógica da arbitragem como uma solução
para o conflito, um árbitro tem um ativo crítico: sua reputação de honestidade,
imparcialidade e sabedoria. Essa reputação é o determinante central da qua-
lidade percebida de seu produto, e somente se ele zelosamente proteger esse
ativo, poderá esperar que as partes contenciosas, frequentemente incapazes de
concordar com qualquer outra coisa, possam concordar com ele como pessoa
para resolver suas disputas. Se um árbitro adquirir reputação de corrupto, pre-
conceituoso ou tomador de decisões caprichosas, seus negócios se desintegrarão
rapidamente. Uma empresa de arbitragem, portanto, precisaria ter cuidado na
escolha de árbitros, sabendo que um juiz corrupto poderia arruinar os negócios.
Em muitos casos, pode ser que, não importa como a disputa seja resolvida,
uma parte ou outra considerará a decisão injusta após o fato. O melhor que um
árbitro pode fazer nesse caso é tomar uma decisão que será percebida como justa
pela maioria dos observadores terceiros. É a percepção de tais observadores que
determinará quão bem a reputação do árbitro é mantida e, portanto, quantos
negócios ele pode esperar atrair no futuro. É certo que a percepção do público é
um guia imperfeito para a justiça, pois o público pode interpretar mal um caso ou
ter valores incorretos. No entanto, o mecanismo de reputação fornece incentivos
para os árbitros defenderem a justiça pelo menos aproximadamente na maioria
dos casos.
No sistema atual, por outro lado, os mecanismos para garantir a integridade
dos juízes são muito mais fracos. As decisões dos juízes são analisadas apenas
por outros juízes, com exceção dos membros da Suprema Corte, cujas decisões
não são analisadas por ninguém. Se o sistema judicial adquire uma reputação de
injusto, ineficiente e assim por diante, seus membros podem, no entanto, manter
suas posições sem medo de serem suplantados pela concorrência.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 253

11.2 Manipulação corporativa


Por que as empresas não manipulam o sistema exigindo que funcionários ou
clientes assinem um contrato para que todas as disputas sejam resolvidas por um
árbitro tendencioso a favor da empresa, como um árbitro empregado da própria
corporação?

Figura 11.1: Um diagrama da teoria padrão dos preços mostra o preço de mercado competitivo
de um bem na interseção da curva de oferta, conforme determinado pelos custos marginais de
produção, e a curva de demanda, determinada pela utilidade marginal do consumo

Aqui está uma pergunta mais fundamental: por que as empresas não fazem
demandas ilimitadas para funcionários e clientes? Por que não exigir que os
clientes deem à empresa todo o dinheiro que têm? Por que não exigir que os fun-
cionários trabalhem de graça? Esses acordos certamente seriam mais favoráveis
para a empresa do que o tipo de acordo que as empresas realmente oferecem.
Para entender por que as empresas não se comportam dessa maneira, devemos
primeiro considerar como os preços de mercado são determinados. Para qualquer
empresa, existe um nível ótimo em que a empresa deve definir seus preços para
maximizar seu lucro. Se definir preços abaixo desse nível, a empresa reduzirá seu
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 254

lucro total devido ao lucro por unidade. Se definir seus preços acima desse nível, a
empresa reduzirá seus lucros totais devido ao menor volume de produto vendido.
Uma explicação precisa do nível ótimo de preços é apresentada na teoria padrão
dos preços, na qual se diz que esse preço se encontra na interseção das curvas de
oferta e demanda (ver Figura 11.1).1 Para nossos propósitos, o ponto importante
é simplesmente que as forças do mercado determinam um nível ótimo de preços,
de modo que a empresa se prejudica se exceder esse nível. Por isso, o plano de
fazer exigências legais irracionais é essencialmente equivalente a um plano para
aumentar o preço do produto. Suponha que o negócio de widgets da Sally exija
que todos os clientes concordem que, em caso de disputa relacionada à venda de
um widget da Sally, incluindo reclamações relacionadas à qualidade ou segurança
do produto, o cliente aceitará uma arbitragem vinculada à filha de nove anos
de idade de Sally, a Susan. Sally’s Widgets está então, em efeito, aumentando o
preço dos widgets: além dos US$ 150 que se deve pagar por um widget, o cliente
também deve aceitar o risco de ter uma disputa com a empresa resolvida pela
filha da proprietária. Os clientes podem considerar isso indesejável.2 Podem até
tomar a política como um sinal de que a empresa pretende enganar seus clientes.
Por esse motivo, se US$ 150 for o preço de mercado dos widgets, a adição de
Sally com essa estipulação irracional em relação à resolução de disputas com sua
empresa terá o efeito de colocar o preço real de seu produto acima do nível de
mercado e, assim, diminuir o lucro total de Sally.
E se o preço de mercado dos widgets for de US$ 200 e Sally cobrar apenas US$
150, deixando uma margem de manobra para fazer exigências adicionais aos
clientes? Mesmo neste caso, insistir que todas as disputas devem ser resolvidas
por Susan não é a melhor opção de Sally para tirar proveito dessa margem de
manobra. O motivo é que provavelmente os clientes atribuam um valor negativo
maior ao procedimento de resolução de disputas de Sally do que o valor positivo
que Sally atribui a ele, porque os clientes tendem a atribuir valor negativo à injus-
tiça percebida, além dos custos monetários potenciais de procedimentos injustos.
Em vez disso, a melhor opção de Sally (maximizar o lucro) é simplesmente
aumentar o preço em US$ 50.
Os mesmos princípios se aplicam às relações empregador-empregado. Há
um salário ideal para um empregador pagar de tal maneira que, se o empregador
paga mais do que isso, reduz seu lucro total devido ao aumento dos custos
trabalhistas, mas se paga menos, reduz seu lucro total devido à dificuldade em
atrair funcionários desejáveis. Qualquer disposição em um contrato de trabalho
que os funcionários considerem injusta ou simplesmente desvantajosa equivale a
1
Ver Friedman 1990 para uma descrição acessível da teoria padrão.
2
Para uma perspectiva diferente, veja Caplan (2010), que sugere que a maioria dos clientes
não se preocuparia com essa cláusula, uma vez que eles não esperam processar a empresa.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 255

um custo extra para aceitar um emprego com esse empregador ou, equivale a
um declínio nas recompensas do trabalho. Uma disposição que normalmente
seria tomada como sinal de intenção de enganar os funcionários normalmente
reduziria a atratividade de qualquer trabalho que valha a pena se inserir. Se um
empregador sente que está dando muito aos funcionários, faria mais sentido para
ele simplesmente oferecer salários mais baixos.
Empiricamente, os negócios nas economias de livre mercado raramente as-
sumem posições inacessíveis em disputas com clientes. O exemplo a seguir não
é um tipo incomum de experiência do consumidor: eu compro um produto
da empresa Target local, levo para casa, abro a embalagem e decido que não
gosto. Volto à loja e peço meu dinheiro de volta. “Há algo de errado com isso?”,
pergunta o caixa. “Não”, eu digo, “acabei de decidir que não gosto. Então,
quero devolver.” Minha posição nesta disputa, se é que se pode chamar assim,
é totalmente caprichosa. Adquiri o produto voluntariamente, sei que eles não
poderão revendê-lo depois que o abri e não tenho nenhuma reclamação real sobre
o produto. O produto não está com defeito, nem foi deturpado pelo fabricante
ou pela loja. Não tenho argumentos para explicar por que eles deveriam aceitar
minha demanda. No entanto, na minha experiência, a empresa nunca recusou
um retorno.
Essa evidência sobre o comportamento dos negócios é obviamente anedótica, e
certamente outros poderiam relatar histórias de experiências insatisfatórias. Não
obstante, não acho que seja uma ilustração injusta da tendência geral do mercado:
é muito mais provável que os consumidores assumam posições irracionais – e se
deem bem – do que as empresas que financiam.

11.3 Recusando arbitragem


Discutimos as razões para aceitar a arbitragem como um mecanismo de resolução
de disputas. Mas e se, em um caso específico, você tiver fortes razões para
acreditar que qualquer árbitro respeitável que encontrar irá decidir contra você?
Isso pode ser verdade por vários motivos, incluindo o fato de que você violou os
direitos de outra pessoa e está tentando se safar; que você está fora de sintonia
com os valores da maioria da sua sociedade, de modo que o que considera um
comportamento aceitável um árbitro típico não considera; ou que exista uma
grande quantidade de evidências enganosas que indiquem que você é culpado
de algum crime do qual é de fato inocente. Em qualquer um desses casos, pode
parecer que você deveria rejeitar a arbitragem.
Mas mesmo nesses casos, você provavelmente será forçado a aceitar arbitra-
gem. Se você rejeitar a opção de arbitrar sua disputa, sua agência de proteção
provavelmente fará a inferência razoável de que você está errado de acordo com
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 256

as normas vigentes, já que a explicação mais provável para sua rejeição à arbi-
tragem é que você espera que qualquer árbitro respeitável decida contra você.
Pelas mesmas razões pelas quais as agências de proteção não defenderão crimi-
nosos (Seção 10.4), elas não defenderão as pessoas que rejeitam a arbitragem
como forma de resolução de disputas. As agências de proteção anteciparão
essa eventualidade, escrevendo disposições em seus contratos, especificando
os procedimentos que os clientes devem aceitar para resolver disputas e absol-
vendo a empresa da responsabilidade de proteger os clientes que violarem esses
procedimentos.
Em alguns casos, esse sistema geraria resultados injustos ou eticamente obje-
táveis, como no caso em que fortes evidências apontam para a culpa de alguém
que é de fato inocente, ou onde os valores da maioria da sociedade estão errados.
Mas o sistema anarquista, no entanto, funciona tão bem quanto poderia ser razo-
avelmente solicitado. Em qualquer sistema de justiça que funcione, seja com base
no governo ou com base no mercado, se evidências poderosas, mas enganosas
apontam para a culpa de alguém, essa pessoa será tratada como culpada. So-
mente o padrão inatingível de prova absolutamente conclusiva de culpa poderia
eliminar a possibilidade de evidências enganosas que levassem à punição dos
inocentes.
Da mesma forma, todo sistema social gera resultados antiéticos se as pessoas
que tomam decisões nesse sistema têm crenças e valores éticos incorretos. Na
anarquia, resultados antiéticos resultam se a maioria dos membros da sociedade
tiver valores incorretos, o que se refletirá nas decisões dos árbitros que buscam
cultivar uma boa reputação junto ao público. Em um sistema governamental,
resultados antiéticos resultam se legisladores, juízes ou outros funcionários pú-
blicos tiverem valores incorretos. Isso não é menos provável de ser verdade do
que a maioria dos membros da sociedade ter valores incorretos.

11.4 Por que obedecer os árbitros?


No caso de você ter uma disputa com outro membro de uma sociedade anarquista,
por que você simplesmente não concorda em tentar a arbitragem para resolvê-la,
esperando que o árbitro fique do seu lado, mas quando isso não acontece você
apenas ignora a decisão?
Pra começar, esse tipo de comportamento seria ainda menos tolerado pelo
resto da sociedade do que uma recusa em aceitar a arbitragem. Pelas mesmas
razões pelas quais as agências de proteção não concordariam em defender crimi-
nosos, você poderia esperar que sua agência de proteção o deixaria de defendê-lo
se violasse uma decisão de arbitragem.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 257

Além disso, as empresas de arbitragem poderiam manter listas de indivíduos


que violaram um acordo. Pode haver agências de denúncia de antecedentes
criminais, funcionando de forma análoga às agências de crédito, fornecendo
denúncias de atividades criminosas por uma taxa. Dado o conhecimento de
seu histórico de violação de um contrato de arbitragem, não seria racional que
outras pessoas no futuro entrassem em relacionamentos comerciais nos quais
você poderia tentar enganá-las e depois se recusar a pagar uma compensação.
Portanto, seria muito difícil encontrar um emprego, obter um cartão de crédito,
tomar um empréstimo bancário, alugar um apartamento e assim por diante.

11.5 A fonte da lei


No status quo, as decisões dos juízes e júris são baseadas amplamente em leis ela-
boradas por legisladores ou burocratas que trabalham para agências reguladoras.
Como a sociedade anarcocapitalista não contém legisladores nem reguladores,
com que base os árbitros poderiam tomar suas decisões?
Haveria duas fontes de direito na sociedade anárquica. Primeiro, os proprietá-
rios ou associações locais de proprietários podem especificar o corpo da lei para
governar as interações que ocorrem em suas propriedades. Desde que todos que
entrarem na propriedade recebam um aviso justo do código legal em vigor lá, os
árbitros provavelmente honrariam a escolha da lei do proprietário. Os juristas
podem desenvolver códigos legais padronizados sugeridos, com proprietários de
empresas, proprietários residenciais ou associações de proprietários residenciais
escolhendo qual dos vários códigos legais amplamente usados deve valer para
suas terras. Consumidores com fortes objeções a um código legal específico
evitariam financiar empresas que adotaram esse código. Ao escolher uma casa,
os indivíduos pesariam as vantagens do código legal assinado pela associação
de proprietários locais.
A outra grande fonte de direito seriam os próprios árbitros. Quando a solução
para uma disputa em particular não for determinada por nenhuma lei do tipo
descrita no parágrafo anterior, o juiz procuraria casos semelhantes para orien-
tação, tentando aplicar os mesmos princípios no presente caso que geralmente
eram usados para decidir casos similares no passado. Se o caso diante dele tivesse
características novas, o juiz exercitaria seu próprio julgamento para elaborar uma
resolução que parecesse justa e de acordo com os valores geralmente aceitos
de sua sociedade. Ele escreveria uma explicação para sua decisão, que seria
acrescentada ao corpo de precedentes para outros juízes consultarem em casos
futuros. Faz sentido que os árbitros sigam essa tradição, pois geralmente resulta
em decisões que a maioria dos observadores considera justas e preserva o tipo
de consistência que a maioria dos observadores valoriza em um sistema jurídico.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 258

Essa abordagem de baixo para cima para gerar lei tem três vantagens principais
em relação à abordagem de cima para baixo de lei criada por uma legislatura.
Primeiro, a lei feita pelo juiz está mais intimamente ligada aos problemas que
as pessoas comuns encontram e às suas circunstâncias reais, porque é feita por
indivíduos com experiência regular na resolução de disputas interpessoais – os
problemas que dão origem à necessidade de lei em primeiro lugar – e é feito
apenas no contexto da decisão de tais disputas. Segundo, a lei tomada por
juiz é mais flexível que a lei legal. Nenhuma regra de conduta que os seres
humanos desenvolvem pode prever todas as possíveis contingências futuras. Em
um sistema de direito consuetudinário, quando um tribunal encontra um caso
similar não considerado anteriormente, ele pode decidir o caso da maneira que
parecer mais justa, em vez de ser forçado por negligências anteriores a tomar
decisões injustas. Terceiro, o sistema de leis comuns exige demandas cognitivas
muito menores para cada legislador. Um legislador enfrenta a tarefa quase
impossível de antecipar todas as questões que possam ocorrer em todas as áreas
da conduta humana e de escrever regras válidas para todas as circunstâncias.
Um juiz em um sistema de direito comum enfrenta, a qualquer momento, apenas
a tarefa de entender o caso agora diante dele e decidir como esse caso deve ser
resolvido; em nenhum momento é necessário que um juiz ou qualquer outra
pessoa tente antecipar todos os tipos possíveis de problemas.
Sabemos que essa é uma maneira viável de desenvolver um sistema de leis
extremamente sofisticado e sutil, porque essa é, de fato, a fonte do direito comum
que agora domina (ao lado do direito estatutário e regulamentar) na Grã-Bretanha
e vários outros países influenciados pela Grã-Bretanha, como Estados Unidos,
Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Nesses países, a maioria do direito contratual
e do direito civil é de direito consuetudinário. A maior parte do direito penal
também era consuetudinário antes do século XX. Na sociedade anarquista, dada
a ausência de leis estatutárias e regulamentares, o direito consuetudinário teria
um papel ainda maior do que atualmente nesses países.3

11.6 Punição e restituição


Os sistemas de justiça penal existentes, baseados no governo, contam com a
prisão de criminosos como resposta ao crime. Pensa-se que a sociedade como um
todo se beneficia dessa prática, porque mantém os criminosos fora das ruas por
um tempo e impede que outros entrem na vida do crime. As vítimas de um crime
específico, no entanto, geralmente não recebem nada em termos de indenização,
3
Ver Barnett 1998 para uma descrição mais completa dos sistemas jurídicos não-
governamentais.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 259

e o resto da sociedade é forçada a pagar pela manutenção dos criminosos durante


os termos de prisão.
O sistema de justiça anarcocapitalista provavelmente focaria mais na restitui-
ção do que na punição. Ou seja, os criminosos seriam obrigados a pagar uma
indenização a suas vítimas. Esse sistema seria preferível aos sistemas baseados
em punições, porque é melhor para as vítimas de crimes e não exige que ninguém
pague pela manutenção dos criminosos. A compensação exigida provavelmente
incluiria a compensação pelo inconveniente e o tempo perdido sofrido pela ví-
tima na tentativa de garantir a justiça, bem como os custos razoáveis incorridos
pela agência de proteção da vítima na identificação, apreensão e julgamento
do criminoso. Como resultado, um ladrão, por exemplo, teria que pagar sig-
nificativamente mais do que o valor do que roubou. Isso proporcionaria um
impedimento ao crime.
E se a vítima de um crime estivesse morta (morta pelo criminoso ou por
outras causas após o crime) e, portanto, incapaz de receber uma indenização?
Nesse caso, a família ou os amigos da vítima podem receber a compensação
devida. Como alternativa, os indivíduos podem, previamente, autorizar suas
agências de proteção a cobrar indenizações em seu nome, caso não possam
receber indenização por um crime. A indenização devida a uma vítima de crime
pode ser considerada propriedade da vítima, a qual, portanto, teria o direito de
dar, vender ou legar a outra pessoa. Conceder à agência de proteção o direito
de cobrar uma indenização no caso de assassinato pode servir para dissuadir
potenciais assassinos.

11.7 Crimes não compensáveis


O que aconteceria se um criminoso não tivesse os recursos necessários para
compensar suas vítimas? Uma possibilidade é que o criminoso seja levado a uma
prisão particular, onde seria obrigado a pagar sua dívida. Mas e se o criminoso
não pudesse pagar sua dívida? Imagine, digamos, um vigarista criminoso que
fraudou suas vítimas em US$ 20 milhões, quase todo o qual foi gasto. O criminoso
não tem nenhuma esperança realista de retribuir suas vítimas. O que seria
feito com esse criminoso? Uma possibilidade é que o criminoso seja alojado
indefinidamente em uma instalação de trabalho forçado, para pagar o máximo
possível de sua dívida. Ou as vítimas podem se contentar com algum reembolso
parcial, no qual o criminoso poderia realisticamente fazer durante sua vida.
Caberia ao árbitro do caso, em consulta com as vítimas, decidir sobre o remédio
mais apropriado. De qualquer forma, as informações sobre o que o criminoso
havia feito provavelmente seriam disponibilizadas ao público e possivelmente
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 260

enviadas para relatórios de agências de registros criminais para que futuros


proprietários, empregadores e outros possam estar cientes.
Em alguns casos, no entanto, o comportamento de um criminoso é tão hedi-
ondo que não só é impossível compensar suas vítimas, mas o criminoso nunca
pode ser libertado com segurança. Imagine, por exemplo, que uma agência de
proteção tenha levado Ted Bundy em custódia. Bundy protesta por sua inocência,
mas a empresa de arbitragem o considera responsável por pelo menos trinta
assassinatos. Bundy nunca compensará suas vítimas e, se for libertado, ma-
tará novamente. Parece haver duas opções: ele pode ser preso indefinidamente
(provavelmente em uma instalação de trabalho forçado) ou pode ser executado.
Novamente, caberia ao árbitro do caso determinar o melhor curso de ação. Como
no caso do verdadeiro Ted Bundy, a execução parece uma possibilidade provável.

11.8 Restituição excessiva


A vítima de um crime tem o direito de receber uma indenização total pelo crime;
isto é, compensação suficiente para devolvê-la ao nível de bem-estar que teria
se o crime não tivesse ocorrido. Mas e se um tribunal em particular conceda
regularmente compensação em excesso – digamos, duas vezes o que a vítima
teria direito e duas vezes o que outros tribunais geralmente concedem por um
determinado crime? Esse tipo de tribunal que compensa em excesso não seria
preferível pelas vítimas? E como quase todos se consideram mais propensos a se
tornarem vítimas de crimes do que a se tornarem criminosos, quase todos desejam
que quaisquer disputas futuras sejam resolvidas por tal tribunal. Levando isso
em consideração, as agências de proteção concordariam em usar tribunais que
fornecem compensação em excesso. Em breve, quase todos os casos criminais
seriam julgados em tribunais desse tipo. Os criminosos poderiam protestar contra
a injustiça, mas suas vozes seriam pouco ouvidas, já que as agências de proteção
e as empresas de arbitragem estariam mais dispostas a satisfazer a esmagadora
maioria dos clientes cumpridores da lei do que a satisfazer os criminosos.
O que é problemático nesse resultado? O problema óbvio é que essa situação
é uma injustiça, embora sobre a qual possamos achar difícil despertar muita
indignação – é uma injustiça para os criminosos. Mas Paul Birch argumenta que
o problema seria mais profundo do que isso, minando todo o sistema anarco-
capitalista.4 Uma vez iniciada a prática de conceder compensação em excesso,
as empresas competiriam para oferecer prêmios cada vez maiores às vítimas,
talvez dez vezes, vinte vezes, ou até cinquenta vezes a quantia a que a vítima do
crime teria direito. Esses prêmios excessivos criariam poderosos impedimentos
4
Birch 1998.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 261

ao crime, resultando em uma queda drástica na taxa de criminalidade. Embora


isso possa parecer um resultado feliz, colocaria uma pressão financeira crescente
nas firmas de arbitragem. À medida que a taxa de criminalidade diminui, as
empresas de arbitragem continuariam a aumentar seus prêmios de indenização
no esforço de coletar uma fatia maior do mercado em queda. Isso apenas faria o
mercado encolher ainda mais. Eventualmente, ou todas as empresas fechariam
o negócio, caso em que a sociedade se tornaria um estado de caos, ou a última
empresa capaz de resistir adquiriria o monopólio do setor, onde evoluiria para
um Estado.
Há várias razões pelas quais é improvável que o cenário anterior aconteça:

i O argumento supõe de forma irrealista que vítimas de crimes reais e potenciais


preferem uma compensação ilimitada. Essa suposição pode ser impulsionada
por uma concepção de seres humanos como homo economicus, maximizadores
puros do lucro: uma vez que compensação maior é igual a lucro maior, as
vítimas de crime preferem aumentos ilimitados na compensação. Os seres
humanos normais, no entanto, não veem a vitimização criminal como uma
oportunidade de enriquecer; esse tipo de pensamento geralmente é reservado
para os golpistas. A maioria das pessoas normais deseja evitar ser vítima de
crime, se possível, e garantir justiça no caso de ser vitimada.
Uma preocupação mais plausível é que as vítimas de crimes sejam motivadas
por vingança, em vez de busca por lucro, pressionando por sanções excessivas
contra seus malfeitores. Surpreendentemente, essa preocupação é minada por
evidências empíricas: pesquisas de atitudes em relação a sentenças criminais
descobriram que as vítimas de crime de fato abrigam atitudes não mais
punitivas do que as do membro médio da população.5

ii Birch imagina as empresas de arbitragem anunciando que concedem compen-


sação excessiva – anunciando, por exemplo, que concedem a cada vítima uma
compensação igual a dez vezes a perda sofrida pela vítima. Isso está muito
próximo do anúncio explícito de um tribunal de que ele é injusto. É difícil
imaginar isso acontecendo. Por razões discutidas anteriormente, as empresas
de arbitragem selecionariam cuidadosamente seus juízes e guardariam sua
reputação de justiça, imparcialidade e sabedoria. O tipo de pessoa que acaba-
ria como juiz provavelmente não promoveria explícita e intencionalmente a
injustiça em prol da maximização do lucro.
Uma preocupação mais realista é que as empresas de arbitragem sejam ten-
denciosas a favor das vítimas, em vez de abraçar explicitamente a injustiça.
Elas quase certamente afirmariam estar administrando a justiça, mas suas
5
Walker e Hough 1988, 10; Hough e Moxon 1988, 137, 143–6.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 262

percepções sobre o que a justiça exige podem ser inclinadas em favor das
vítimas; por exemplo, tenderiam a perceber a maioria dos crimes como mais
prejudiciais do que realmente são. É plausível que as empresas de arbitra-
gem possam contratar juízes com tais percepções distorcidas sem manchar
indevidamente sua reputação de integridade. Por isso, acho plausível que
em uma sociedade anarcocapitalista os criminosos sofram frequentemente
um pouco mais do que merecem.
Este é um possível problema com o sistema, mas não é um problema terrível.
Além disso, é plausível que a punição ocorra também nos sistemas governa-
mentais, e não é óbvio que os sistemas governamentais produzam punições
mais justas do que aquelas que emergiriam de um sistema anarcocapitalista.

iii Além da preocupação com os direitos dos criminosos, que reconhecidamente


são limitados, há outra razão para indivíduos comuns se oporem a compen-
sações absurdamente excessivas por crimes: em qualquer sistema de justiça
penal realista, às vezes pessoas inocentes são condenadas. Muitas pessoas
acham essa perspectiva preocupante, mesmo no abstrato e, talvez mais ainda,
quando refletem que elas mesmas ou alguém com quem são próximas podem
um dia estar entre os condenados erroneamente. O problema não pode ser
eliminado sem dispensar inteiramente o sistema de justiça penal; no entanto,
a maioria das pessoas consideraria o problema muito menos perturbador se
as penas pelos crimes fossem razoáveis do que absurdamente excessivas. Isso
levaria a maioria das pessoas no sistema anarquista, assim como no sistema
atual, a apoiar algum grau de restrição por parte dos juízes no processo de
atribuição de prêmios de compensação.

iv Prêmios excessivos de compensação tendem a ser mais difíceis ou caros


de se cobrar. Se, por exemplo, a compensação pelo roubo de um cartucho
de videogame for de US$ 100.000, isso poderá ser difícil de aplicar. Se um
ladrão de lojas tiver a expectativa de ser preso por toda a vida em uma
instalação de trabalho forçado caso seja pego, os ladrões de lojas poderão
estar dispostos a matar para escapar ou lutar até a morte, em vez de se
renderem. Sabendo disso, as agências de proteção teriam um motivo para
preferi prêmios razoáveis de compensação.

v Um criminoso que é prejudicado por uma concessão de compensação cla-


ramente excessiva parece ter uma queixa válida contra o tribunal que fez a
sentença injusta. Não há razão óbvia para que ele não possa entrar com uma
ação contra esse tribunal em outro tribunal.
Se todos os tribunais tivessem os mesmos padrões excessivos de compen-
sação, o processo do criminoso fracassaria. Mas se os tribunais geralmente
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 263

começassem com padrões aproximadamente justos e um tribunal decidisse


buscar uma fatia maior do mercado oferecendo prêmios excessivos de com-
pensação, esse tribunal sofreria por sua indiscrição, já que outros tribunais
considerariam seus julgamentos injustos e concederiam compensação a aque-
les que foram prejudicados por esse tribunal. Assim, se o sistema iniciar em
uma posição geralmente justa, ele será estável.

vi Mesmo aumentos extremos nas penalidades por crime não eliminariam todos
os crimes. Isso ocorre porque alguns criminosos, infelizmente, são altamente
resistentes à dissuasão. Eles imprudentemente ignoram o futuro ou assumem
alegremente que não serão pegos.6 Assim, um mercado para tribunais priva-
dos continuaria a existir mesmo em um regime de prêmios absurdamente
altos de compensação.

vii Mesmo que os prêmios excessivos de compensação resultem em uma queda


drástica nas taxas de criminalidade, isso não faria com que todas ou quase
todas as empresas de arbitragem fossem à falência. Por mais que o crime
caia, continuariam a surgir disputas honestas entre as pessoas comuns, e
elas ainda precisariam ser julgadas pelas agências de arbitragem. Se o crime
sofresse uma queda vertiginosa, as empresas de arbitragem experimentariam
um declínio nas receitas e precisariam reduzir as operações até o ponto que o
mercado suportaria. Mas isso não levaria todas à falência, nem faria com que
a indústria fosse monopolizada.
Considere uma analogia. À medida que os automóveis se tornaram mais
práticos no início do século XX, a demanda por cavalos sofreu uma queda
drástica. Mas toda a indústria não entrou em colapso, nem foi monopolizada
– ainda há mais de um criador de cavalos no mundo hoje. A indústria sim-
plesmente encolheu para o tamanho que poderia ser suportado pelos novos
níveis de demanda. Da mesma forma, se formos abençoados a ponto de nos
preocuparmos com níveis indevidamente baixos de criminalidade, o setor
de arbitragem diminuirá, de modo que inclua apenas o número de tribunais
necessários para satisfazer o quanto resta a demanda.

11.9 A qualidade da lei e da justiça sob uma autori-


dade central
Para avaliar melhor os méritos de um sistema de justiça não-governamental,
devemos primeiro considerar algumas das falhas do sistema atual.
6
Banfield 1977.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 264

11.9.1 Condenações injustas


Um aspecto perturbador do sistema atual é a taxa com que os inocentes são
punidos. O professor de direito de Michigan, Samuel Gross, estudou casos em
que os condenados foram absolvidos nos Estados Unidos entre 1989 e 2003.7 Ele
encontrou 340 casos, incluindo 205 casos de assassinato, 121 casos de estupro e 14
casos envolvendo outros crimes. Os promotores e a polícia geralmente se recusam
a aceitar que prenderam e processaram uma pessoa inocente, mesmo depois que
a prova da inocência da pessoa é descoberta.8 Em média, esses acusados sofreram
onze anos de prisão ilícita antes de finalmente serem oficialmente absolvidos.
Por que assassinatos e estupros foram tão sobre-representados entre os crimes
de que os réus foram absolvidos? A principal razão para a dramática sobre-
representação de casos de estupro está no desenvolvimento de testes de DNA no
final dos anos 80 em diante, o que levou ao reexame de vários casos de estupro nos
quais felizmente as amostras de sêmen haviam sido preservadas. A aplicação das
novas técnicas revelou que muitas condenações anteriores ao advento de testes
confiáveis de DNA eram errôneas. A principal razão para a sobre-representação
de casos de assassinato parece residir no escrutínio muito maior que esses casos
recebem em comparação com casos menos graves, especialmente quando a pena
de morte está envolvida.9
Omitidos das estatísticas de Gross são casos de absolvição em massa devido
à exposição de corrupção policial em larga escala. Um desses casos envolveu
o programa CRASH (“Recursos da comunidade contra bandidos de rua”) do
Departamento de Polícia de Los Angeles. Em 1999, o policial Rafael Perez reve-
lou que ele e outros oficiais do programa haviam mentido rotineiramente em
relatórios de prisão, atiraram em suspeitos desarmados e espectadores inocen-
tes, plantaram armas em suspeitos depois de atirar neles, fabricaram evidências
e acusaram inocentes. Na sequência destas revelações, mais de 100 acusados
tiveram suas condenações anuladas em 1999 e 2000.10
Por que os réus da amostra de Gross foram condenados indevidamente?
A maioria dos casos envolveu identificação incorreta de testemunhas. Muitos
envolveram perjúrio por parte da polícia, cientistas forenses que atestam em
favor do governo, os verdadeiros criminosos, delatores na prisão ou outros que
poderiam tirar vantagem ao prestar falso testemunho. Em 15% dos casos, os réus,
7
Gross et al. 2005.
8
Gross et al. 2005, 525-6.
9
Gross et al. 2005, 531–2, 535–6. Gross et al. (532–3) apontam que também pode haver mais
pressão para condenar alguém em casos capitais, levando a mais erros. No entanto, também
pode haver maior cuidado exercido pelos defensores, juízes e júris de defesa nos casos em que
estão em causa punições extremamente severas.
10
Gross et al. 2005, 533–4.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 265

sob o estresse em interrogatórios policiais de alta pressão, confessaram os crimes


que não haviam cometido. A maioria desses 15% tinha menos de 18 anos de
idade, com deficiência mental ou doença mental.
Como os réus nesses casos foram absolvidos, podemos ficar tranquilos com
o fato de o sistema funcionar e de que a justiça é servida? Há duas razões para
rejeitar essa complacência: primeiro, há os onze anos em que esses réus foram,
em média, obrigados a passar nas que podem ser as piores condições em que
qualquer segmento significante da sociedade deveria viver. Segundo, e mais
importante, existem implicações para o número de pessoas que continuam presas
injustamente.
Não há estimativas confiáveis da frequência de convicções errôneas, devido à
elusividade inerente a esses casos. Embora esteja razoavelmente claro que todos
ou quase todos os 340 casos de Gross foram realmente condenações injustifi-
cadas, não temos como saber quantas condenações errôneas adicionais foram
descobertas durante o mesmo período. Os 74 internos do corredor da morte que
foram absolvidos constituíam cerca de 2% da população do corredor da morte.11
Isso sugere que, se aplicarmos o mesmo nível de escrutínio a todos os casos que
aplicamos aos casos de pena de morte, poderemos encontrar uma taxa de falso
positivo de 2% nesses outros casos também.
Mas não temos ideia de quantos casos de pena de morte houve em que
condenações errôneas não foram descobertas. As convicções errôneas na amostra
de Gross foram devidas principalmente a erros de testemunhas, perjúrios e
confissões falsas. Mas quando uma testemunha identifica mal um suspeito,
uma testemunha mente ou a polícia extorque uma confissão falsa, em quantos
desses casos podemos supor que a prova da inocência do réu, indescritível no
momento do julgamento, aparecerá mais tarde por sorte e irá tirá-lo da prisão?
Prova de inocência geralmente não é muito fácil de encontrar, e as autoridades,
tendo encerrado o caso, não estarão procurando por tais evidências. O próprio
réu terá dificuldade em descobrir tais evidências de sua posição na prisão. Por
esses motivos, parece otimista demais supor que, na maioria das condenações
equivocadas (mesmo nos casos de pena de morte), a prova de inocência será
posteriormente descoberta. Portanto, parece provável que a taxa real de falsas
condenações seja muito maior do que a taxa de absolvição de 2% que Gross
encontrou entre os casos de pena de morte.
Poderia ser feito algo para melhorar o sistema ou essas condenações equivoca-
das são simplesmente o preço da justiça penal? Várias medidas foram sugeridas
para melhorar a confiabilidade do sistema: reduzir o uso de técnicas de interro-
gatório de alta pressão, particularmente para suspeitos menores de idade ou com
deficiência mental; ter testemunhas interrogadas por policiais que não conhecem
11
Gross et al. 2005, 532, n. 21.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 266

os detalhes da investigação e, portanto, não podem influenciar as testemunhas;


mostrar às testemunhas um suspeito de cada vez, em vez de um grupo de sus-
peitos de uma só vez; e instruir júris sobre as limitações das evidências das
testemunhas oculares. Apesar de estudos indicando que essas medidas reduzi-
riam o risco de condenações injustificadas, a polícia e os tribunais americanos
geralmente não as adotam.12

11.9.2 Excesso de oferta da lei


Sob um sistema jurídico baseado em uma autoridade central com poderes le-
gislativos, muito mais lei é fornecida do que sob um sistema puro de direito
consuetudinário. Alguns veem isso como uma vantagem – talvez precisamos de
uma forte rede de regulamentos para nos proteger contra as falhas do capitalismo
laissez-faire. No entanto, vale a pena considerar se um sistema governamental
pode fornecer muita lei.
Como exercício, tente imaginar um sistema legal ideal. Antes de continuar
lendo, tente estimar quantas páginas de leis esse sistema conteria. Existem
muitas dificuldades em fazer essa estimativa; no entanto, tentar pelo menos uma
estimativa vaga e de ordem de magnitude antes de descobrir quanta lei realmente
existe pode ajudar a impedir a tendência de racionalizar o status quo.
A maioria dos cidadãos nos Estados modernos, quer se descrevam como
apoiando um forte regime regulatório ou não, tem pouca ideia de quanta re-
gulamentação realmente existe. Nos Estados Unidos, as regras promulgadas
pelas agências reguladoras do governo nacional são registradas no Code of Federal
Regulations (isso não inclui estatutos aprovados diretamente pelo Congresso,
nem leis estaduais ou locais). Durante o último meio século, a quantidade desses
regulamentos aumentou de 23.000 para 150.000 páginas (veja a tabela abaixo).

Ano Tamanho do CFR (páginas)13


1960 22.877
1970 54.834
1980 102.195
1998 134.723
2010 152.456

12
Duke 2006.
13
Os números para 1970 e 1998 são de Longley n.d. Os números de 1960 e 1980 são de Crews
2011, 15. O valor de 2010 é calculado a partir da edição do CFR disponível no Government Printing
Office; Omiti os “Procurar ajuda” no final de cada volume para a contagem total de páginas de
2010.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 267

Essas estatísticas não podem capturar informações qualitativas sobre o con-


teúdo desses regulamentos e, é claro, não há perspectiva de revisar qualquer
fração significativa desses regulamentos aqui (ou em qualquer outro local). No
entanto, sugiro que esses números possam levar até o mais forte defensor ideoló-
gico da regulamentação a considerar se os órgãos legislativos dedicados podem
tender a fornecer uma quantidade maior que a ideal de regulamentação. O leitor
não familiarizado com a regulamentação é convidado a examinar o CFR alea-
toriamente para obter um sentido qualitativo do regime regulatório. Pode-se,
por exemplo, encontrar um parágrafo descrevendo o espaçamento das lacunas
das velas de ignição de um automóvel, outro prescrevendo o uso da expressão
“proteção durante todo o dia” nos rótulos antitranspirantes, outro descrevendo a
assinatura de documentos relacionados aos impostos especiais de consumo em
transações estruturadas de factoring de liquidação, e assim por diante.14
O que é censurável nessa provisão legal em excesso? A primeira objeção é
que ela representa uma dependência excessiva da coerção. Cada um desses regu-
lamentos é um comando apoiado por uma ameaça de força emitida pelo Estado
contra seus cidadãos. Embora algumas dessas ameaças possam ser justificadas,
aquelas que não são constituem uma violação dos direitos de todos aqueles que
são coagidos.
Segundo, um excesso de leis pode ter grandes custos econômicos. Ronald
Coase, ganhador do Nobel e ex-editor do Journal of Law and Economics, relata
que sua revista publicou uma série de estudos empíricos sobre os efeitos de
uma ampla variedade de regulamentos, nos quais se constatou que todos os
regulamentos estudados tiveram efeitos negativos gerais sobre a sociedade.15
A Administração de Pequenas Empresas do governo dos EUA estimou o custo
anual dos regulamentos federais para a economia dos EUA em US$ 1,75 trilhão,
um fardo que acreditam atingir desproporcionalmente as pequenas empresas.16
Terceiro, uma quantidade excessiva de leis, bem como um corpo jurídico
excessivamente complexo e técnico, torna irracional exigir que os cidadãos conhe-
çam, entendam e sigam todas as leis. Ameaçar punir os cidadãos por violarem
regras que, à luz dos encargos cognitivos extremos, não se poderia esperar que
soubessem ou entendessem razoavelmente, é uma forma de injustiça. Esses encar-
gos cognitivos, em algum momento, refutam o objetivo principal de estabelecer
leis escritas para começar – a saber, que a lei seja acessível a todos que se espera
que a sigam.
Uma solução para o último problema é os cidadãos contratarem especialistas
para aconselhá-los em qualquer área em que a lei seja complexa e difícil de
14
40 CFR, apêndice I da subparte V da parte 85 (H) (1) (b); 21 CFR 350,50 (b) (3); 26 CFR
157.6061.
15
Hazlett 1997, 43.
16
Crain e Crain 2010.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 268

seguir. Isso, no entanto, nos leva ao próximo problema com o sistema de justiça
atualmente aceito.

11.9.3 O preço da justiça


Para a maioria dos cidadãos dos Estados modernos, os custos da justiça do
governo em tempo e dinheiro são proibitivos. A disputa civil típica exige de
vários meses a alguns anos para ser resolvida pelos canais governamentais.17 Em
2009, um escritório de advocacia americano médio faturava US$ 284 por hora,
com um divórcio típico custando entre US$ 15.000 e US$ 30.000. Para o americano
médio, com uma renda anual de US$ 39.000, qualquer uso do sistema de justiça
do governo representa uma carga financeira esmagadora.18
Por que os serviços jurídicos são tão caros? Um dos motivos é o excesso de
oferta de lei mencionada acima. A complexidade, a tecnicidade e a enorme exten-
são das leis e procedimentos legais obrigam os indivíduos a pagar especialistas
para lidar com qualquer procedimento legal, além de forçar esses especialistas
a dedicarem uma grande quantidade de trabalho a cada caso. Outro motivo
pode ser encontrado nas restrições à prestação de serviços jurídicos, que por
lei só podem ser oferecidas de fontes aprovadas pelo governo (advogados que
foram admitidos na guilda, geralmente após uma longa e muito cara educação
em direito).19
Esses custos são preocupantes por pelo menos três razões importantes. Pri-
meiro, o alto custo dos serviços jurídicos significa que apenas os ricos podem
pagar por justiça. Indivíduos de renda média e baixa não podem se dar ao luxo de
buscar justiça ou devem fazer justiça com suas próprias mãos quando acreditam
que foram prejudicados. Em casos penais, os réus de baixa renda podem receber
representação legal inadequada devido à carga pesada de casos nos defensores
públicos.
Segundo, mesmo os réus que vencem seus processos, sejam civis ou penais,
podem ser arruinados financeiramente. Isso age como uma espécie de punição
injusta imposta a todos os réus, sejam eles culpados de irregularidades ou não.
Terceiro, as grandes empresas podem pagar as taxas legais necessárias para
garantir o cumprimento de regulamentações burocráticas complexas, enquanto
17
Nos Estados Unidos, os atrasos variam de cerca de seis meses a cerca de três anos, com uma
média de onze meses (Dakolias 1999, 18).
18
Sobre honorários médios de advocacia, consulte taxas de advocacia da Califórnia em 2011,
citando uma pesquisa da Incisive Legal Intelligence. Sobre o preço do divórcio, veja Hoffman 2006.
Sobre a renda média, consulte o US Census Bureau 2011b, 443, tabela 678.
19
O preço da faculdade de direito costuma exceder US$ 100.000. Apenas sete estados dos EUA
permitem que os indivíduos façam o exame da guida sem ter que frequentar a faculdade de
direito (Macdonald 2003).
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 269

os mesmos custos podem ser proibitivos para as pequenas empresas. Como


resultado, o atual regime jurídico tende a promover a concentração de indústrias
nas mãos de grandes corporações, mesmo que essas corporações sejam elas
mesmas menos eficientes do que as empresas menores.

11.9.4 O fracasso da prisão


Os governos de hoje contam com a prisão como resposta a crimes graves. A
prisão tem duas funções principais: primeiro, protege a sociedade dos crimino-
sos condenados por um tempo limitado, separando os criminosos do resto da
sociedade. Segundo, pune os criminosos, forçando-os a viver em condições alta-
mente indesejáveis. O sofrimento por parte dos criminosos pode ser valorizado
intrinsecamente como uma forma de justiça retroativa ou pode ser valorizado
instrumentalmente como um meio de deter futuros comportamentos criminosos.
As prisões existentes, no entanto, sofrem de vários problemas muito sérios.
Nos Estados Unidos, essas instalações são extremamente superlotadas e os presos
vivem em perigo de violência de gangues, estupros por outros prisioneiros,
espancamentos de guardas e outros prisioneiros e outras formas de abuso. A
taxa de violência e abuso é desconhecida, mas há relatos anedóticos.20 Nos
últimos anos, o uso de confinamento solitário tornou-se cada vez mais comum,
uma prática que leva a deterioração mental por parte do prisioneiro e maiores
taxas de reincidência assim que o condenado é libertado.21
Sob essas condições, dificilmente se poderia esperar que o encarceramento
reabilitasse criminosos. Consequentemente, dois terços dos criminosos são rein-
cidentes no prazo de três anos após serem libertados da prisão.22 Essa estatística
provavelmente subestima a verdadeira taxa de reincidência, dada a baixa taxa
em que a polícia resolve crimes (Seção 10.7); assim, a grande maioria dos crimi-
nosos retorna à vida criminosa logo após sua libertação. Alguns observadores
argumentaram que o encarceramento não apenas falha na reabilitação de crimi-
nosos, como também os torna mais perigosos quando liberados do que quando
entraram. Isso pode ser verdade, por exemplo, porque os presos fazem novos
contatos criminais e aprendem novas habilidades e ideias criminais de outros
presos enquanto estão na prisão, porque absorvem valores antissociais dos outros
presos e porque os presos ficam mais irritados e ressentidos como resultado do
20
Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 11–12, 24. Uma pesquisa do De-
partamento de Justiça dos EUA constatou que 4,4% dos presos prisionais e 3,1% dos presos em
celas sofreram algum tipo de abuso sexual no ano anterior (Beck et al. 2010); no entanto, esses
incidentes podem ser subnotificados.
21
Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 14–15.
22
Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons, 2006, 106.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 270

abuso que sofreram enquanto estavam na prisão. Alguns chegaram a sugerir que
o encarceramento pode causar mais crimes do que impedir.23
Esses problemas não são inevitáveis em um sistema de justiça criminal; os
críticos ofereceram inúmeras reformas em potencial que provavelmente reduzi-
riam significativamente esses problemas. Verificou-se que alguns programas de
reabilitação reduzem as taxas de reincidência em até 30%. Os formuladores de
políticas simplesmente não escolheram adotar essas reformas.24

11.9.5 Reforma ou anarquia?


Os problemas listados nas subseções anteriores são apenas os mais proeminentes
daqueles que afetam o atual sistema de justiça baseado no governo. Um ob-
servador otimista, no entanto, embora reconheça a gravidade dos problemas,
pode levar a mostrar apenas que o sistema de justiça deve ser substancialmente
reformado enquanto permanece nas mãos do governo.
De fato, existem várias medidas que mitigariam bastante os problemas listados
acima, e não podemos descartar a possibilidade de que um dia os funcionários
do governo iniciem uma séria reforma dos sistemas prisional e judicial. Não
obstante, não é mero acidente que problemas do tipo que discutimos persistem
no sistema judicial baseado no governo. Os monopólios coercitivos têm uma
tendência sistemática a promover uma variedade de problemas, e tendem a
demorar a reconhecer e solucionar suas próprias deficiências.
Os motivos são familiares. Como o governo cobra suas receitas na forma
de impostos que os cidadãos não têm escolha a não ser pagar, os programas
governamentais podem sobreviver financeiramente, mesmo com níveis extremos
de insatisfação do consumidor. Mais importante, como o governo é monopolista,
os cidadãos não têm para onde recorrer se consideram seus serviços ineficien-
tes, de baixa qualidade ou abusivos. A maioria dos problemas com o sistema
de justiça dos EUA é óbvia e é bem conhecida há muito tempo. Os governos
nacionais e estaduais fizeram pouco para resolver esses problemas, não porque
os problemas são difíceis ou impossíveis de resolver, mas porque o governo não
sofre consequências negativas como resultado de sua falha em resolvê-los.
Considere o problema de condenações injustas. Em um sistema competitivo,
a associação de proprietários residenciais pode escolher entre muitas agências
de proteção, empresas de arbitragem e órgãos legais para aplicar em sua vizi-
nhança e pode alterar sua escolha se e quando ficar insatisfeita com os acordos
de segurança e justiça. Além disso, os residentes insatisfeitos com as decisões
da APR podem se mudar a um custo relativamente baixo. Como ninguém quer
23
Pritikin 2008.
24
Pritikin 2008, 1092; Commission on Safety and Abuse in America’s Prisons 2006, 12, 28, 108.
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 271

ser condenado injustamente, uma agência de proteção que utilizou métodos não
confiáveis de investigação ou uma empresa de arbitragem que utilizou métodos
não confiáveis para avaliar a culpa ou inocência precisariam se preocupar em ser
substituídas por concorrentes que oferecem serviços com menos risco de conde-
nações injustificadas. Pontos semelhantes se aplicam ao problema de excesso de
oferta da lei e custos excessivos dos serviços jurídicos.
E os problemas associados ao encarceramento de criminosos? Estes seriam
grandemente reduzidos por um sistema de justiça que focasse mais na restituição
do que na punição. Nesse sistema, as centenas de milhares de pessoas atualmente
presas por crimes sem vítimas, principalmente crimes relacionados às drogas,
seriam soltas. Somente indivíduos que feriram outra pessoa e, de outra forma,
não estavam dispostos ou não podiam pagar a indenização exigida à vítima
seriam mantidos presos em instalações prisionais. O foco dessas instalações no
trabalho produtivo diminuiria o risco de violência na prisão e reincidência.
É teoricamente possível para um governo se reformar – eliminar todos os
estatutos do crime sem vítimas, mudar seu foco de punição para restituição e
assim por diante. Mas quando olhamos em volta e vemos que nenhum governo
realmente o fez e quando percebemos que esse tipo de falta de resposta aos
problemas tem uma explicação sistêmica enraizada na estrutura básica de in-
centivos do governo, a conversão para um sistema alternativo começa a parecer
uma solução mais racional e menos utópica do que a reforma do sistema atual.
Sempre haverá espaço para melhorias em qualquer sistema de justiça. Nos siste-
mas governamentais, a reforma tenderá a ser lenta e difícil de implementar. Por
outro lado, as empresas de um setor competitivo tendem a se mover rapidamente
para melhorar seus produtos ou reduzir seus custos quando a oportunidade se
apresenta.

11.10 Conclusão
Existem dois sistemas principais pelos quais uma sociedade pode prever a reso-
lução de disputas e a correção de violações de direitos. O primeiro é o sistema
coercitivo e monopolista, no qual uma única organização assume autoridade ex-
clusiva para fazer leis, resolver disputas e punir criminosos. Problemas grandes e
bem conhecidos tendem a ocorrer em sistemas desse tipo, incluindo condenações
errôneas frequentes, restrições legais excessivas e excessivamente complexas,
altos custos monetários, atrasos, prisões superlotadas, abuso de prisioneiros e
altas taxas de reincidência. Os governos em geral fazem pouco para resolver esses
problemas, apesar da identificação por cientistas sociais e outros especialistas de
inúmeras medidas que poderiam ser tomadas para melhorar significativamente
o sistema. Essa negligência por parte do governo pode ser atribuída às caracte-
11. Justiça Criminal e Resolução de Disputas 272

rísticas definidoras dessa abordagem da justiça; ou seja, seu caráter coercitivo e


monopolista. Como o sistema governamental é financiado através de impostos
obrigatórios, tribunais, prisões e outros elementos do sistema judiciário podem
continuar a coletar a receita que o governo deseja alocar, independentemente
da satisfação do consumidor. Como o governo detém um monopólio efetivo da
provisão de justiça, essas organizações não precisam temer a substituição por
concorrentes, independentemente de seu desempenho.
A alternativa é um sistema de justiça baseado no mercado, no qual as empresas
de arbitragem competem entre si na resolução de disputas. Quando um indivíduo
viola os direitos de outro, um árbitro decide sobre a indenização a ser paga pelo
criminoso à vítima. Nos casos em que um criminoso não tenha outros meios
de pagamento, ele seria alojado em uma prisão particular, onde seria obrigado
a pagar sua dívida. Proprietários individuais ou associações de proprietários,
como associações de proprietários residenciais, escolheriam o corpo da lei a
ser aplicado às interações ocorridas em suas terras. Quaisquer questões não
resolvidas por essas leis seriam tratadas através de uma forma de lei elaborada
pelos árbitros, semelhante ao direito consuetudinário britânico atual.
Para atrair clientes, os árbitros do sistema de justiça num mercado livre procu-
rariam manter uma reputação de justiça, consistência, imparcialidade e sabedoria.
As empresas de segurança provavelmente exigiriam que seus clientes resolvessem
quaisquer disputas por meio de árbitros terceiros respeitáveis e se recusariam a
defender clientes que rejeitam a arbitragem ou violam a decisão do árbitro depois
de submetida uma disputa à arbitragem.
Nesse sistema, os árbitros podem demonstrar um viés a favor das vítimas
de crimes e contra os criminosos, fazendo com que criminosos sejam obrigados
a pagar algo mais elevado em compensação por seus crimes do que a justiça
realmente exigiria. No entanto, está longe de ficar claro que esse problema
seria mais grave do que a punição que ocorre em sistemas baseados no governo,
que se concentra no encarceramento de criminosos em condições opressivas e
perigosas. O problema dos prêmios excedentes de compensação provavelmente
seria relativamente modesto e tolerável em comparação com os problemas do
status quo.
12

Guerra e Defesa da Sociedade

12.1 O problema da defesa da sociedade


Idealmente, todos os seres humanos viveriam sem Estados-nação ou exércitos
nacionais, para que não houvesse necessidade de defesa nacional. Mas não se
pode esperar que esse feliz estado de coisas aconteça de uma só vez; devemos
assumir um período de transição em que uma sociedade anarquista coexista
com sociedades dominadas pelo Estado. Os dois tipos de sociedade poderiam
coexistir, ou uma inevitavelmente sobrepujaria a outra?
Uma suposição natural é que, se um país tiver um exército mais poderoso
que seus vizinhos ou todos os seus inimigos em potencial, então o país estará
seguro, enquanto que se tiver nenhum exército ou um muito mais fraco, estará
inseguro. Desse ponto de vista, uma sociedade anarquista parece enfrentar um
problema óbvio. As forças militares modernas são extremamente poderosas e
extremamente caras. Um único porta-aviões, por exemplo, custa cerca de US$
4,5 bilhões, mais US$ 240 milhões por ano em manutenção.1 Em 2010, os Estados
Unidos gastaram quase US$ 700 bilhões nas forças armadas. Para comparação, a
empresa norte-americana mais lucrativa naquele ano, a Exxon Mobil, teve lucros
de US$ 19 bilhões.2 É certo que os Estados Unidos são um país extremo, com 43%
das despesas militares do mundo inteiro.3 No entanto, a maioria dos países gasta
centenas de milhões ou bilhões de dólares em suas forças militares todos os anos.
É difícil imaginar qualquer organização não-governamental competindo com
um governo nessa arena – em parte porque nenhum outro tipo de organização
tem o tipo de recursos à sua disposição como um governo que pode exigir e
em parte porque a defesa militar é um bem público cuja provisão, na ausência
1
U.S. Navy 2009; Birkler et al. 1998, 75.
2
CNN Money 2012.
3
Stockholm International Peace Research Institute 2012.

273
12. Guerra e Defesa da Sociedade 274

de algum mecanismo coercitivo, aparentemente exigiria sacrifício altruísta por


parte daqueles que pagam por isso. Como resultado, parece improvável que
uma sociedade anarquista possa manter algo parecido com as forças militares
típicas dos governos modernos. Por essas razões, os membros de uma sociedade
anarquista não podem esperar derrotar um exército governamental em combate
aberto, nem poderiam, como os governos costumam fazer, travar uma guerra
agressiva contra outro país.
Mas o foco no poder militar relativo pode ser mal direcionado, por duas
razões. Primeiro, os requisitos para uma defesa efetiva podem ser mais modestos
que os requisitos para uma agressão efetiva, e os gastos militares da maioria dos
governos modernos podem ser muito maiores do que uma defesa exige. Segundo,
como no caso das relações interpessoais, a estratégia de evitar conflitos armados
pode ser mais importante do que a tentativa de vencer conflitos armados.
Meu objetivo a seguir não será mostrar que uma sociedade anarquista poderia
sobreviver em todo e qualquer clima político. Meu objetivo será mostrar que
uma sociedade anarquista poderia sobreviver em algumas condições realistas,
condições que são obtidas em algumas partes do mundo ou que se poderia
razoavelmente esperar obter no futuro. É de se esperar que também haverá muitas
outras condições realistas sob as quais um sistema anarquista não sobreviveria.

12.2 Defesa não-governamental


12.2.1 Guerra de guerrilha
A caracterização acima do problema de defesa sugere que a defesa bem-sucedida
requer poder militar comparável ou maior que o oponente. No entanto, os guer-
rilheiros têm provado o contrário sobre essa suposta exigência de vitória militar
em vários conflitos do século XX, durante os quais forças militares avançadas
foram derrotadas por oponentes muito mais fracos.
O caso paradigmático é o do Vietnã, que expulsou os colonialistas franceses
em 1954. Os Estados Unidos assumiram a responsabilidade de combater a dis-
seminação do comunismo, apoiando o governo anticomunista e autoritário do
Vietnã do Sul em sua disputa contra o governo comunista do Vietnã do Norte e
os insurgentes comunistas no Vietnã do Sul. O envolvimento americano começou
com conselheiros militares, mas se transformou em guerra direta em meados do
final da década de 1960, quando centenas de milhares de tropas americanas se
comprometeram a combater os insurgentes vietcongues no sul.4 Em termos de
recursos militares e econômicos, os Estados Unidos eram muito superiores aos
4
Vigésimo Quinto Batalhão de Aviação n.d.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 275

vietcongues e, ainda assim, ano após ano, as forças americanas se mostraram


incapazes de subjugar seus oponentes, até que os Estados Unidos finalmente
reconheceram a derrota e retiraram todas as forças do país em 1973. A nação
mais poderosa do mundo havia sido derrotada pelos rebeldes de uma pequena
nação do Terceiro Mundo. A derrota se deveu em parte à dificuldade inerente de
combater as táticas de guerra de guerrilha e em parte ao fato de que os vietnami-
tas estavam muito mais profundamente comprometidos do que os americanos
em controlar o destino do Vietnã.5
Este não foi um episódio isolado; vários conflitos do século XX forneceram
lições semelhantes. A Grã-Bretanha governou a ilha da Irlanda até 1919, quando
nacionalistas irlandeses declararam independência e começaram uma campanha
de guerrilha contra os britânicos. Nos dois anos seguintes, os britânicos trava-
ram uma guerra mal sucedida contra os rebeldes, culminando no tratado que
estabeleceu o Estado Livre Irlandês em 1922.6
Os franceses governaram a Argélia antes de 1954, quando os nacionalistas
argelinos começaram uma guerra de guerrilha pela independência, que continuou
por vários anos. Apesar de alguns sucessos militares, os franceses finalmente
não tinham o grau de comprometimento dos rebeldes, e o presidente francês
Charles de Gaulle concordou em submeter a questão da independência aos votos
populares em 1961 e 1962, resultando na independência da Argélia em 1962.7
Em 1979, a União Soviética enviou forças militares ao Afeganistão para de-
fender o governo comunista de lá contra os guerrilheiros mujahideen. Nos nove
anos seguintes, os soviéticos foram incapazes de prevalecer contra os mujahi-
deen. Os soviéticos desistiram e se retiraram em 1988. O governo afegão caiu
posteriormente para os rebeldes em 1992.8
Em cada um desses casos, os rebeldes estavam lutando em defesa de sua terra
natal contra o que viam como agressores estrangeiros. Nos casos do Vietnã e do
Afeganistão, os guerrilheiros também tiveram apoio de governos estrangeiros.
Mas, mesmo tendo em conta esse apoio, os guerrilheiros eram muito mais fracos
que seus oponentes pelas medidas tradicionais em cada um desses conflitos. Os
Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética foram quatro das nações
mais poderosas da história mundial. Portanto, se eles puderam ser derrotados
por guerrilheiros lutando em defesa da sua terra natal, qualquer nação que con-
temple uma guerra de conquista nos tempos modernos deve antecipar enormes
dificuldades no controle do território ocupado. Isso é ainda mais verdadeiro
em territórios, como na maioria dos Estados Unidos atuais, onde uma grande
5
Para uma descrição do conflito no Vietnã, consulte Herring 2002.
6
Para uma descrição da guerra de independência da Irlanda, consulte Hopkinson 2002.
7
Para um relato da revolta da Argélia, ver Horne 1987.
8
Para uma descrição do conflito soviético-afegão, consulte Maley 2009.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 276

porcentagem da média de cidadãos está armada para começar.9

12.2.2 A dificuldade de conquistar um território não governado


Sob um aspecto, conquistar uma sociedade anarquista seria mais difícil do que
conquistar um Estado-nação. Para conquistar um território que já é governado,
o agressor deve convencer o governo existente a se render, o que geralmente
pode ser feito atacando ativos militares fixos do governo ou matando membros
suficientes da população. Quando o governo se render, o aparato desse mesmo
governo poderá ser cooptado para controlar a sociedade em nome de seus novos
governantes.
Por outro lado, a tarefa de assumir o controle de uma sociedade não-governada
é mais complexa. Na ausência de qualquer estrutura de autoridade central, a
sociedade deve ser conquistada um bairro de cada vez. Para controlar cada
bairro, o agressor precisará posicionar tropas no bairro ou contratar o equivalente
à polícia da população local. É provável que qualquer uma das opções seja
cara e, em ambos os casos, os responsáveis pela imposição dos conquistadores
provavelmente serão alvos frequentes de ataques de guerrilha. Além disso, se o
Estado conquistador desejar, em última análise, governar o povo conquistado,
precisará estabelecer todo o aparato do governo.
Um agressor determinado e rico poderia, no entanto, estabelecer governo
sobre uma sociedade inicialmente não governada. Mas a tarefa de fazer isso pro-
vavelmente será mais cara e demorada do que a de dominar uma sociedade que
já tem um governo, mas tem um exército fraco. Como existem muitas sociedades
que satisfazem a última descrição, uma sociedade anarquista provavelmente não
será o alvo mais atraente para um regime expansionista.

12.2.3 Resistência não-violenta


A priori, pode parecer que a força só pode ser combatida com maior força. Como
os governos comandam maior poder coercitivo do que qualquer outro agente,
pode parecer que a única defesa eficaz contra um governo é outro governo.
No entanto, vários episódios históricos ao longo do século passado revelaram
a surpreendente eficácia de métodos não-violentos de resistência à tirania e à
injustiça, demonstrando que mesmo quando a injustiça é coercivamente imposta,
a violência não é a única, e talvez nem a solução mais eficaz.
O caso mais conhecido é o da luta indiana pela independência da Grã-Bretanha,
liderada por Mohandas Gandhi. As táticas de Gandhi incluíam greves de fome;
9
Estima-se que 47% das famílias americanas possuem armas de fogo (Saad 2011), e o país
contém mais de 200 milhões de armas particulares, quase um terço do suprimento total de armas
do mundo (Reuters 2007b).
12. Guerra e Defesa da Sociedade 277

marchas e manifestações; boicotes a mercadorias, escolas e tribunais britânicos;


desobediência civil, incluindo recusa de pagar impostos; greves trabalhistas; e
ostracismo social dos indianos que colaboravam com os britânicos. Embora a
independência indiana estivesse demorando muito tempo, acabou sendo con-
quistada com um mínimo de derramamento de sangue (em relação aos casos
discutidos na Seção 12.2.1), graças em grande parte aos esforços do Mahatma.
Isso ocorre apesar do fato dos britânicos, pelo menos no início, demonstrarem
uma disposição consideravelmente maior de recorrer à violência do que os segui-
dores de Gandhi.10
Outro caso bem conhecido é o do movimento americano pelos direitos civis
das décadas de 1950 e 1960. Sob a liderança de Martin Luther King Jr. e outros, o
movimento se baseou em táticas não-violentas como protestos, boicotes e marchas.
Ativistas de direitos civis frequentemente enfrentavam violência nas mãos da
polícia local, do Ku Klux Klan e de outros oponentes da integração racial. Milhares
de ativistas foram presos, muitos foram espancados e vários líderes de direitos
civis, incluindo o Dr. King, foram assassinados. Apesar disso, o movimento
permaneceu predominantemente não-violento e, finalmente, triunfou sobre seus
oponentes mais violentos, vendo a aprovação da maior legislação de direitos civis
em meados da década de 1960, juntamente com mudanças drásticas na cultura e
na sociedade americanas.11
No final do século XX, várias nações, incluindo as repúblicas soviéticas e os
países satélites da Europa Oriental, alcançaram a independência da União So-
viética por meios predominantemente não-violentos (com exceção da Romênia,
onde a transição foi mais violenta do que nas outras nações). O processo começou
na Polônia em 1980, quando os trabalhadores formaram um sindicato nacional
conhecido como Solidariedade. O Solidariedade rapidamente se tornou uma
ferramenta para defender reformas políticas e econômicas. O governo tentou
esmagá-lo proibindo o sindicato e prendendo milhares de seus membros, mas
o movimento persistiu. Eventualmente, o governo desistiu de eliminar o Soli-
dariedade. O sindicato empunhava persistentemente a ferramenta não-violenta
da greve trabalhista para tentar forçar reformas. Em 1989, o governo finalmente
se curvou à pressão e iniciou negociações com representantes do Solidariedade,
durante as quais o governo concordou em permitir eleições livres nas quais os
candidatos do Solidariedade pudessem concorrer com alguns dos candidatos co-
munistas. Embora as pesquisas previssem vitória para os comunistas, no evento
o partido comunista sofreu uma derrota esmagadora, perdendo cada assento que
estava disponível na legislatura. Outras derrotas estavam por vir, libertando a
10
Para uma descrição do movimento de independência da Índia, ver Sarkar 1988.
11
Para uma descrição do movimento americano pelos direitos civis, ver Williams 1987.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 278

Polônia do domínio comunista.12


Em agosto de 1991, comunistas de linha dura na União Soviética, tentando
deter a maré da reforma iniciada pelo presidente Gorbachev, fizeram Gorbachev
prisioneiro e lançaram um golpe de Estado. Boris Yeltsin, então presidente da
Rússia, enfrentou os líderes do golpe em Moscou com a ajuda de dezenas de
milhares de manifestantes civis que se reuniram ao seu redor na Casa Branca
Russa. O golpe fracassou, devido em parte ao apoio civil dedicado a Yeltsin,
em parte à opinião dividida entre os militares e em parte à recusa das forças
especiais soviéticas em executar ordens para atacar a Casa Branca. Logo após o
golpe fracassado, embora Gorbachev tenha sido nominalmente restaurado ao
poder, a União Soviética se desfez, à medida que os Estados membros (aqueles
que ainda não o haviam feito) declaravam independência. Tudo isso ocorreu,
surpreendentemente, com um mínimo de derramamento de sangue. No caso da
Estônia, a independência foi alcançada sem derramamento de sangue.13
Mais recentemente, o antigo presidente egípcio Hosni Mubarak foi expulso
do cargo como resultado de um movimento de protesto predominantemente pa-
cífico. Por 30 anos, Mubarak liderou um regime corrupto e ditatorial no Egito, até
que os manifestantes, enfurecidos pela recente brutalidade policial e encorajados
pela revolução tunisiana de 2010–11, saíram às ruas no início de 2011 para exigir a
renúncia de seu governante. Os protestos foram tão generalizados que Mubarak
logo deixou o cargo, muitos outros membros de seu governo renunciaram ou
foram demitidos, e a maioria das outras demandas de manifestantes foram aten-
didas. As eleições parlamentares foram realizadas a partir de novembro, com a
eleição presidencial marcada para 2012. Até o momento em que este artigo foi
escrito, o futuro do Egito permanece incerto; mesmo assim,o súbito colapso de
uma administração que durou 30 anos é um testemunho do poder da resistência
não-violenta.
Prima facie, episódios históricos como esses podem parecer intrigantes. Como
pode um governo nacional, com estoques maciços de armamentos e dezenas ou
centenas de milhares de soldados, ser derrotado por civis desarmados e pacíficos?
A explicação está na natureza do poder do governo. O presidente Mao Tse-
tung é frequentemente citado como tendo dito que “o poder político cresce do
cano de uma arma”.14 Mas isso é apenas parte da verdade. O poder político vem
fundamentalmente do povo sobre quem é exercido. Embora os governos exerçam
enorme poder coercitivo, eles não possuem recursos suficientes para aplicar
12
Para um relato da luta polonesa, ver Mason 1996, 26-9, 51-4; Sanford 2002, pp. 50–5; BBC
News 1999.
13
Ver Coleman 1996, capítulo 16, para uma breve descrição do golpe de agosto e do colapso da
União Soviética. Sobre a recusa das forças especiais soviéticas em atacar a Casa Branca, ver Ebon
1994, 7-9. No caso da Estônia, ver Tusty e Tusty 2006.
14
Mao 1972, 61.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 279

diretamente a força física a todos ou à maioria dos membros de uma sociedade.


Devem ser seletivos, aplicando sua violência a um número relativamente pequeno
de infratores da lei e contando com a grande maioria da população para se alinhar,
seja por medo ou por crer na autoridade do governo. A maioria das pessoas deve
obedecer à maioria dos comandos do governo; deve, no mínimo, trabalhar para
fornecer bens materiais aos líderes, soldados e funcionários do governo, para um
governo persistir.
Quando uma injustiça é suficientemente grande e óbvia, muitas vezes surgem
um grande número de manifestantes dispostos a desafiar o Estado, apesar da
ameaça de repressão. Em resposta, os governos tirânicos geralmente recorrem à
violência. No entanto, essa violência geralmente sai pela culatra, legitimando os
manifestantes e deslegitimando o Estado aos olhos de agentes anteriormente não
envolvidos. Isso pode ter o efeito de expandir, em vez de suprimir a resistência.
Eventualmente, o Estado pode perder a fonte de seu poder, a cooperação da
maioria dos cidadãos.15 No caso de um governo tentar controlar um território
estrangeiro, seria necessário enviar enormes recursos domésticos para o território
estrangeiro na tentativa de manter o controle, minando assim, um dos principais
objetivos da busca de um território estrangeiro, o de lucrar com a extração de
recursos.
Isso não é para incentivar um otimismo poliana sobre ações não-violentas.
A resistência não-violenta alcançou alguns sucessos dramáticos, mas também
fracassou frequentemente, como no caso dos pequenos bolsões de resistência não-
violenta aos nazistas na Alemanha ou aos protestos de 1989 na China. O mesmo
se aplica a todas as formas de resistência: a resistência violenta também falha
frequentemente, e mesmo a resistência violenta de um governo (isto é, guerra)
geralmente falha em alcançar seus objetivos. O que os episódios históricos que
mencionei mostram é que a ideia de combater um governo coercitivo por meios
não-violentos não é apenas um ideal ingênuo. De fato, essa forma de resistência
costuma ser mais eficaz e quase sempre muito menos onerosa que a resistência
violenta.

12.2.4 Conclusões
Nenhum dos casos históricos mencionados nesta seção apresenta uma sociedade
anarquista que resiste a um Estado estrangeiro hostil. Isso ocorre principalmente
porque existem muito poucas sociedades anarquistas e nenhuma seguindo o
modelo anarcocapitalista. No entanto, como vimos, houve muitos casos de resis-
tência bem-sucedida por parte dos cidadãos aos governos, incluindo governos
impostos por Estados estrangeiros. O movimento de descolonização do século
15
Esse relato deriva levemente de Sharp 1990, cap. 2–3.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 280

XX mostra que é particularmente difícil para um Estado estrangeiro manter o


controle de um território nos tempos modernos. Não há razão óbvia para que
membros de uma sociedade anarquista não pudessem resistir aos agressores
estrangeiros de maneira tão eficaz quanto membros de sociedades reais de fato
resistiram a potências estrangeiras e tiranos domésticos no passado recente.
Não há garantia de sucesso; uma anarquia pode ser assumida por um go-
verno estrangeiro. Mas isso também se aplica às sociedades governadas – de
fato, sociedades de todos os tipos conhecidos de governo foram assumidas por
governos estrangeiros. Ninguém argumenta que isso demonstra que o governo é
impraticável. O fato de que o mesmo destino possa acontecer em uma anarquia,
portanto, não mostra que a anarquia seja impraticável. A anarquia seria imprati-
cável se não houvesse meios de defesa plausíveis, mas a evidência é de que não é
assim; uma sociedade não ficaria sem meios plausíveis de resistência apenas em
virtude da falta de um exército governamental.

12.3 Evitando conflitos


Na última seção, discuti maneiras de resistir a uma potência estrangeira, uma
vez que a sociedade foi dominada ou está sob ataque. Mas essa não é a melhor
maneira de uma sociedade manter sua liberdade. A melhor maneira de uma
sociedade manter sua liberdade é evitar conflitos violentos para começar.
Para avaliar as perspectivas de evitar conflitos violentos entre sociedades,
devemos primeiro identificar as causas mais prováveis de conflitos desse tipo. A
melhor maneira de identificar as causas prováveis da guerra no futuro é examinar
o que geralmente causou a guerra no passado. É concebível que as sociedades
anarquistas possam se envolver na guerra por razões diferentes daquelas que
levaram as sociedades controladas pelo governo à guerra; no entanto, a melhor
evidência que temos sobre o motivo pelo qual uma sociedade, seja anarquista ou
estatista, pode se envolver em guerra, não obstante, reside no registro histórico
da guerra real. Portanto, começaremos com esse registro.
Muitos teóricos que consideraram as causas da guerra tentaram identificar
algum fator mais importante. A verdade, no entanto, é provavelmente mais
complexa: vários fatores contribuem para o risco de guerra, sem que nenhum fator
predomine em todos os casos.16 Aqui, reviso alguns dos fatores mais importantes.
16
Ver Sobek 2009, 2–3; Cashman e Robinson 2007, 3-4.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 281

12.3.1 Agressão humana natural


Alguns acreditam que os seres humanos são naturalmente agressivos e que essa
agressão natural explica a propensão humana à guerra. A agressividade natural
da humanidade às vezes é apoiada por argumentos da etologia ou da psicologia
evolutiva.17
Uma forma extrema dessa tese (talvez não seja de fato sustentada por qual-
quer pensador proeminente)18 seria que a guerra frequente é inevitável por causa
da agressão inerente à natureza humana. Esta tese é claramente falsa. O an-
tropólogo Douglas Fry lista mais de setenta sociedades que não fazem guerra,
principalmente tribos primitivas.19 Entre os Estados-nação modernos, a Suíça
não lutou com outro país desde que o famoso princípio da neutralidade suíça
foi formalmente estabelecido em 1815. Sua última guerra foi uma guerra civil
em 1847; durou 25 dias e matou menos de 100 vidas.20 Gerações de suíços nunca
conheceram a guerra, apesar de estarem cercados por países em guerra durante
as duas guerras mundiais. Liechtenstein dissolveu seu exército em 1868 e também
permaneceu em paz desde então. A Cidade do Vaticano nunca esteve em guerra.
A Costa Rica aboliu suas forças armadas em 1948 e está em paz desde então. E
apesar de toda a violência do século XX, o mundo como um todo experimentou
um longo período de uma acentuada tendência de queda nos violentos conflitos
entre Estados, sugerindo a possibilidade de novos declínios na taxa de produção
de guerra.21
Uma tese mais moderada é que a natureza humana contém uma propensão à
agressão que às vezes entra em erupção na guerra, talvez quando certos gatilhos
ambientais ocorram.22 Essa tese parece suficientemente fraca e vaga que poucos
poderiam objetar a ela (de fato, a tese geral pode simplesmente seguir a obser-
vação de que há guerras, juntamente com outros fatos triviais), embora exista
espaço para opiniões divergentes sobre o quão difícil é para os seres humanos
resistirem a se matarem.
Esta tese moderada, no entanto, é de pouca utilidade para os propósitos atuais.
Nosso objetivo é determinar se e como uma sociedade pode evitar a guerra. Se
a natureza humana contém uma propensão à agressão, mas essa propensão só
entra em guerra sob certas condições, devemos examinar as outras teorias das
17
Lorenz 1966, 42-3, capítulo 13; Wilson 2000, p. 254-5.
18
Robert Sapolsky (em Fry 2007, prefácio, x) atribui a tese a Lorenz (1966). No entanto, Lorenz
conclui seu livro com uma discussão de maneiras de evitar a guerra (1966, capítulo 14), chegando
a prever que um dia o amor e a amizade abrangerão toda a humanidade (298–9).
19
Fry 2007, 17, 237–8.
20
Remak 1993, 14, 157. O princípio da neutralidade suíça foi escrito no Tratado de Paris de
1815, após a derrota de Napoleão Bonaparte, que já havia assumido a Suíça.
21
Cashman e Robinson 2007, 1; Gat 2006, 591; Pinker 2011.
22
Gat (2006, 39-41) assume essa posição.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 282

causas da guerra para determinar quais são essas condições, pois isso parece
ser a chave para evitar a guerra (antes de iniciar um programa de engenharia
genética para eliminar nossas tendências agressivas).

12.3.2 Terra e recursos


Um dos motivos pelos quais os Estados entram em guerra é o propósito de
apreender os recursos e o território uns dos outros.23 A Segunda Guerra Mundial
foi iniciada pela invasão de Adolf Hitler na Polônia, motivada pelo desejo de
controlar mais território (Lebensraum, como Hitler colocou). A Índia e o Paquistão
lutam pelo controle do território da Caxemira desde que a Índia e o Paquistão
conquistaram sua independência em 1947.24 A guerra Irã-Iraque foi travada em
parte pelo controle do rio Shatt al-Arab, que constitui o principal acesso do Iraque
ao Golfo Pérsico e é, portanto, de grande valor econômico para o Iraque. O Iraque
também tentou dominar o Khuzestan, a província iraniana rica em petróleo que
faz fronteira com Shatt al-Arab.25 A invasão posterior do Kuwait pelo Iraque em
1990 foi ainda mais claramente motivada economicamente, motivada em parte
pelas queixas do Iraque por violação do Kuwait das cotas de petróleo da OPEP e
em parte pelo puro valor da terra rica em petróleo do Kuwait.26
Se um desejo predatório pela terra e pelos recursos dos outros é a principal
causa da guerra, a prevenção da guerra pode parecer quase impossível, indepen-
dentemente de se ter um Estado-nação ou uma sociedade anarquista. Enquanto
uma sociedade anarquista não pode iniciar uma guerra predatória, suas terras e
recursos podem fazer com que ela se torne vítima de tais guerras.
Essa conclusão pessimista, no entanto, é prematura. Nem todas as regiões
do globo são igualmente propensas a conflitos de terra e recursos. Os conflitos
de recursos ocorrem em áreas com concentrações extraordinariamente altas de
recursos especialmente valiosos, como as áreas ricas em petróleo do Oriente
Médio. Conflitos modernos sobre território geralmente ocorrem em um den-
tre um número limitado de regiões específicas de disputas territoriais de longa
data, particularmente em áreas com um histórico daquilo que pode ser visto
como ocupação injusta, áreas nas quais as fronteiras foram traçadas por potên-
cias estrangeiras e áreas contendo subpopulações religiosas ou étnicas grandes
e mutuamente hostis. Assim, por exemplo, a província de Khuzestan contém
subpopulações árabes e persas, e o Shatt al-Arab foi disputado por muito tempo
23
Gat (2006, 61-7, 409-14) considera isso a causa subjacente central da guerra.
24
Cashman e Robinson 2007, 205, 216–23.
25
Cashman e Robinson 2007, 271-3.
26
Karsh 2002, 89-92.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 283

entre o Iraque e o Irã.27 As tensões de longa data da Índia e do Paquistão, que


irromperam periodicamente na guerra, remontam a 1947, quando os britânicos
concordaram em deixar a região. No processo, os britânicos criaram os Esta-
dos da Índia e do Paquistão, mas falharam em estabelecer o alinhamento da
Caxemira, que foi deixado para escolher em qual dos dois países se juntaria. A
Caxemira tem uma maioria muçulmana, além de uma minoria substancial da
população hindu. Também em 1947, as Nações Unidas adotaram um plano para
dividir a Palestina, então um território ocupado pelos britânicos com grandes
subpopulações judaicas e árabes, em um novo Estado judeu e um Estado árabe.
Essa decisão levou à criação de Israel e iniciou o notório conflito árabe-israelense,
que periodicamente explode em violência desde 1948.
Essas observações nos permitem fazer algumas previsões sobre a estabilidade
de qualquer futura sociedade anarquista. Se essa sociedade fosse criada por
nações estrangeiras para a região em que estava localizada, se contivesse grandes
grupos étnicos ou religiosos mutuamente hostis e se fosse criada em uma área
com uma longa história de conflito, a sociedade anarquista provavelmente se
mostrará instável. Estados próximos provavelmente transformariam a sociedade
anarquista em um campo de batalha. O mesmo vale para qualquer tipo de
sociedade, seja anarquista ou estatista.
À luz de tais considerações, a anarquia é praticamente viável somente sob
certas condições, condições que são obtidas em alguns lugares do mundo, mas
não em todos. As primeiras sociedades anarquistas de sucesso precisarão ser
(i) fundadas por movimentos locais e não impostos por nações estrangeiras, (ii)
localizadas em regiões com histórias relativamente pacíficas, e (iii) ocupadas
por pessoas com tensões raciais e religiosas mínimas. Sob tais condições, os
anarquistas teriam grandes chances de evitar a guerra civil e a guerra com os
Estados vizinhos.

12.3.3 Espirais de conflito e disputas entre governos


Raramente, se é que alguma vez, a guerra estourou por causa de uma disputa
entre os povos de duas nações, ou entre o governo de uma nação e o povo de
outra. O caso usual é que a guerra começa como resultado de uma disputa
entre os governos de duas ou mais nações. Estudos em relações internacionais
descobriram que o maior determinante do comportamento hostil de um Estado
para outro é o comportamento hostil do segundo Estado para o primeiro.28 Um
27
Um tratado de 1975 havia estabelecido a fronteira entre os dois países no meio do rio. No
entanto, Saddam Hussein, sentindo que o Iraque havia sido coagido a aceitar esse tratado, desejava
retornar aos termos de um tratado anterior, de 1937, que havia estabelecido a fronteira na margem
oriental do rio.
28
Cashman 1993, 165–72; Choucri e North 1975, 248–9, 254.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 284

padrão frequente é a espiral de conflitos: um Estado executa uma ação que outro
Estado considera hostil. O segundo Estado responde com uma ação hostil própria.
O primeiro Estado retalia com outro ato hostil. Essa série de ações e reações cria
uma espiral de tensões crescentes. Em cada estágio, há um forte risco de que
o nível de hostilidade aumente, seja por causa do aumento da raiva por parte
dos líderes ou por causa de diferentes percepções, principalmente quando uma
parte percebe sua própria ação como menos hostil que a outra parte percebe que
é. A interação, portanto, corre o risco de aumentar até atingir o nível mais alto
de hostilidade, o da guerra definitiva.
Nem todas as guerras surgiram de disputas entre Estados; às vezes, um país
realiza uma guerra puramente agressiva, na qual o comportamento anterior
do governo do outro país é irrelevante. No entanto, isso é muito raro. Quase
qualquer guerra, especialmente nos tempos modernos, pode ser usada para
ilustrar a ideia de disputa entre governos como causa da guerra. A Primeira
Guerra Mundial começou como resultado do assassinato do arquiduque Franz
Ferdinand da Áustria. Embora o assassinato não tenha sido oficialmente apoiado
pelo governo sérvio, o governo austríaco acreditava (corretamente) que alguns
funcionários do governo sérvio estavam envolvidos na conspiração. O conflito
austro-sérvio se tornou a semente da guerra em geral. Alemanha, Rússia, França
e Grã-Bretanha foram atraídos para o conflito por meio de alianças com outros
participantes no conflito. O processo envolveu algumas espirais de conflito em
rápida evolução nas quais, entre outras coisas, a mobilização militar de uma
nação foi tomada como um sinal de intenções hostis, levando outras nações a
mobilizar seus militares.29
A guerra Irã-Iraque, embora em parte uma guerra por território, também foi
motivada por interações hostis anteriores entre os governos das duas nações. Até
1969, o Iraque possuía o rio Shatt al-Arab, até que o Irã decidiu unilateralmente
mover a fronteira entre as duas nações da margem leste do rio para o meio do rio.
O Iraque aceitou a mudança para evitar a guerra com o que era então um vizinho
muito mais poderoso. Quando Khomeini assumiu o poder no Irã em 1979, ele
começou a pedir aos muçulmanos xiitas no Iraque que derrubassem seu governo,
assim como o próprio Khomeini havia feito no Irã. Isso desencadeou uma espiral
de conflitos envolvendo esforços de ambos os governos para fomentar a rebelião
nos países uns dos outros, levando à invasão do Iraque em 1980.30
Até a Segunda Guerra Mundial, o paradigma de uma guerra de conquista
iniciada por um Estado predatório, também foi parcialmente causada pelo com-
portamento anterior de outros Estados. É amplamente reconhecido que as semen-
tes da guerra foram plantadas 20 anos antes, quando o Tratado de Versalhes foi
29
Cashman e Robinson 2007, 55–68.
30
Cashman e Robinson 2007, 271–3, 288–92.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 285

assinado em 1919.31 As condições punitivas e humilhantes do tratado, incluindo


as enormes reparações de guerra que exigiam que a Alemanha pagasse aos ven-
cedores da Primeira Guerra Mundial, causou um ressentimento generalizado
e poderoso na Alemanha, ajudando a abrir o caminho para a ascensão de um
demagogo que prometeu restaurar o orgulho alemão. Até os observadores britâ-
nicos na época da assinatura consideraram o tratado escandalosamente injusto
para a Alemanha. John Maynard Keynes resumiu sua opinião sobre o Tratado de
Versalhes assim:

A política de reduzir a Alemanha à servidão por uma geração, de


degradar a vida de milhões de seres humanos e de privar toda uma
nação de felicidade deve ser abominável e detestável – abominável
e detestável, mesmo que fosse possível, mesmo que enriquecesse
nós mesmos, mesmo que não semeasse a decadência de toda a vida
civilizada da Europa.32

Não estou sugerindo aqui que, ao iniciar a Segunda Guerra Mundial, Hitler
estava simplesmente buscando vingança por Versalhes; O próprio Hitler foi mais
motivado por um impulso megalomaníaco para controlar mais território, assim
como o ódio de outras raças. Estou sugerindo, no entanto, que o ressentimento
alemão sobre Versalhes permitiu a Hitler subir ao poder.
Como podemos evitar os tipos de disputas entre governos que levam à guerra?
Aqui está uma possibilidade: poderíamos eliminar nosso governo. Uma soci-
edade anarquista seria incapaz de ter o tipo de disputas ou interações hostis
que mais frequentemente levaram à guerra, porque faltariam os agentes que
as mantêm. Mesmo que alguns indivíduos privados da sociedade anarquista
adotassem posições hostis em relação a um governo estrangeiro, seria muito
improvável que isso levasse à guerra, pois os governos estrangeiros se sentem
muito menos ameaçados por indivíduos hostis do que por governos hostis. Se eu,
como indivíduo particular, convocar dissidentes no Iraque a derrubar o governo,
o Iraque não invadirá meu país. Se eu declarar que meu objetivo é esmagar o
governo russo, que me recuso a negociar com russos e que me recuso a falar com
o governo russo, é muito menos provável que isso leve à guerra (ou a qualquer
reação do governo russo) do que as mesmas ações empreendidas pelo governo
dos EUA.
Isso não quer dizer que a guerra que envolva uma sociedade anarquista seja
impensável. É simplesmente dizer que é menos provável que uma sociedade
anarquista se envolva em conflitos do que uma sociedade dominada pelo Estado.
31
Parker 1997, 2; Miller 2001, 20; Lindemann 2010, 68-70.
32
Keynes 1920, 225. A opinião britânica da época estava amplamente de acordo com Keynes
(Henig 1995, 50-2).
12. Guerra e Defesa da Sociedade 286

Enquanto o Estado se declara orgulhosamente nosso único grande protetor contra


um mundo hostil, é esse mesmo protetor acima de tudo que torna o mundo hostil
para começar.

12.3.4 Relações de poder


As nações geralmente disputam a posição do poder dominante em sua região
ou no mundo. Mudanças nas relações de poder relativo entre as nações mais
poderosas de uma região são particularmente perigosas. Quando o poder do
país dominante está em declínio e o poder de outra nação está em ascensão, o
poder em ascensão pode tentar tomar a posição dominante iniciando uma guerra
com a nação dominante.33 Como alternativa, a nação dominante pode decidir
que deve atacar o poder ascendente antes que este se torne muito poderoso, para
impedir que esta nação ocupe a posição dominante.34
A Primeira Guerra Mundial foi interpretada por diferentes observadores
como um exemplo de cada um desses padrões. Na primeira interpretação, a
Grã-Bretanha era o poder dominante na Europa, a Alemanha o poder crescente e
a Alemanha iniciou a guerra para desafiar o domínio britânico.35 Na segunda
interpretação, a Alemanha era a potência dominante na Europa continental, a
Rússia era a potência em ascensão e a Alemanha iniciou uma guerra com a Rússia
antes que os russos pudessem se tornar poderosos demais.36 É certo que foi
a invasão austríaca da Sérvia que iniciou mais diretamente a Primeira Guerra
Mundial; A Áustria, no entanto, agiu com o encorajamento e prometeu o apoio
militar da Alemanha, sem o qual teria medo de prosseguir, e as autoridades
alemãs na época esperavam uma guerra com a Rússia.37
Interpretações semelhantes foram oferecidas na Segunda Guerra Mundial;
mais uma vez, a Alemanha iniciou a guerra, seja para desafiar o domínio britâ-
nico38 ou para antecipar a ascensão da Rússia.39
A guerra Irã-Iraque dos anos 80 ilustra novamente o perigo de mudar as
relações de poder. Inicialmente, o Irã era muito mais poderoso que o Iraque. É
por isso que, quando o Irã reajustou unilateralmente a fronteira entre as duas
nações em 1969, o Iraque aderiu ao acordo, em vez de entrar em guerra. Mas
em 1980 o poder do Iraque havia aumentado, enquanto o do Irã havia declinado,
33
Organski 1968, 371.
34
Copeland 2000, 4–5.
35
Organski 1968, 356–9.
36
Copeland 2000, 56-117.
37
Cashman e Robinson 2007, 30-6, 57. As evidências de Copeland (2000, 79-117) mostram
como as autoridades alemãs manipularam a Áustria, a Rússia e a França na guerra.
38
Organski 1968, 357–8.
39
Copeland 2000, 118–45.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 287

levando as duas nações, em grosso modo, a uma certa paridade. Foi então que
Saddam Hussein sentiu que poderia bancar uma guerra com o Irã. Um dos
fatores que motivou a guerra foi provavelmente o desejo de Saddam Hussein de
posicionar o Iraque como líder do mundo árabe e poder dominante na região.40
Novamente, uma resposta para o problema é eliminar o governo. O tipo de
domínio que os Estados-nação sustentam é em grande parte uma questão de
poder militar; é por isso que as nações pensaram em estabelecer ou manter o
domínio através da vitória militar. Ao abolir seu governo, uma sociedade se afas-
taria da disputa pela posição dominante nesse sentido, por duas razões: primeiro,
porque a sociedade não possuiria forças militares permanentes; segundo, porque
a sociedade não possuiria autoridade central e, portanto, não se comportaria
como um agente unitário. Haveria apenas um grande número de indivíduos,
empresas, clubes particulares e assim por diante; é provável que nada disso seja
considerado um candidato ao domínio junto aos Estados-nação. Como as guerras
pelo domínio são normalmente travadas entre o Estado-nação dominante e um
desafiante, não haveria razão para uma sociedade anarquista estar envolvida em
uma guerra pelo domínio.

12.3.5 A paz democrática liberal


Entre os desenvolvimentos modernos mais importantes da teoria das relações
internacionais está o surgimento da tese da paz democrática. Os estudiosos obser-
varam que, embora as ditaduras frequentemente combatam outras ditaduras e as
democracias muitas vezes lutem contra as ditaduras, as democracias quase nunca
lutam com outras democracias.41 Kant previu esse fenômeno com base teórica
em um ensaio de 1795, argumentando que as guerras tendem a ser caras para o
povo da nações envolvidas na guerra e, assim, os eleitores tenderão a favorecer o
tipo de líder que evita a guerra agressiva. As ditaduras são muito mais propensas
a travar guerras agressivas porque as ditaduras não arcam pessoalmente com a
maior parte dos custos da guerra.42
O argumento teórico está aberto a desafios. Como a maioria dos eleitores
percebe que seus votos individuais não têm impacto real nas políticas de seu
país, eles podem votar de forma ignorante ou irracional e podem apoiar líderes
agressivos por razões emocionais.43 Alguns também contestam as evidências
empíricas da paz democrática, citando uma série de alegadas exceções à regra:
40
Cashman e Robinson 2007, 278-81.
41
Veja a declaração seminal de Babst (1972). Veja Gleditsch 1992 para uma breve revisão da
literatura.
42
Kant 1957, 12–13.
43
Ver Seção 9.4.3. Gat (2006, 582-3) observa que massas belicosas em muitas sociedades levaram
seus líderes à guerra.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 288

a Guerra de 1812 entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha; Primeira Guerra


Mundial, durante a qual a Alemanha democrática lutou contra a França e a Grã-
Bretanha; Segunda Guerra Mundial, durante a qual a Finlândia democrática se
juntou às potências do Eixo; as guerras indo-paquistanesas de 1947 e 1999; e
assim por diante.
Apesar dessas críticas, há claramente um fenômeno importante ao redor de
uma “paz democrática”. Embora a guerra entre democracias não seja inédita,
continua a ser o caso, por qualquer motivo, que há muito menos guerras entre
democracias do que se poderia esperar puramente da taxa geral de combate no
mundo.44 Além disso, existe um grande grupo crescente de nações para as quais a
guerra entre dois deles é, intuitivamente, quase impensável. Ninguém contempla
seriamente a guerra entre os Estados Unidos e Canadá ou entre a Austrália e
Nova Zelândia ou entre Inglaterra e França. Apesar das muitas guerras que
assolaram a região nos séculos passados, hoje ninguém está preocupado com a
guerra na Europa Ocidental.
Há espaço para debate sobre por que essas nações são pacificamente inclinadas
uma para a outra. Alguns dizem que é porque são democráticas. Outros atribuem
a paz a um liberalismo político mais amplo.45 Outros citam os efeitos pacificadores
do livre comércio, que cria interdependências entre empresas de diferentes países
e torna a guerra entre nações mais cara para os dois lados.46 Outros apelam para
os efeitos do desenvolvimento econômico; à medida que as sociedades atingem
um certo nível de desenvolvimento econômico, torna-se mais fácil e eficiente
adquirir recursos através do comércio do que do combate.47 Os membros de
sociedades ricas têm menos a ganhar e mais a perder lutando.48 Finalmente,
alguns apontam para uma grande mudança de escala nos valores morais aceitos
em muitas sociedades, uma mudança na qual a guerra passou a ser vista como
hedionda e imoral, em vez de gloriosa e honrosa.49
Essas explicações não precisam ser vistas como concorrentes; esses fatores
podem funcionar em conjunto para promover a paz, e alguns podem explicar ou
reforçar outros. Qualquer que seja a importância relativa dos vários fatores, há
um certo tipo de sociedade que parece altamente improvável de travar guerras
com outras sociedades do mesmo tipo. Esse tipo de sociedade é geralmente
liberal, democrática e economicamente desenvolvida e possui baixas barreiras
ao comércio e valores modernos e pacíficos. Devido à variedade de fatores aos
quais a paz pode ser atribuída, “paz democrática” pode ser um nome impróprio;
44
Bremer 1992, 316, 328–30, 334–6; Russett e Oneal 2001, 108-11.
45
Doyle 2010a; 2010b.
46
Domke 1988, capítulo 5.
47
Gartzke 2010.
48
Gat 2006, 587-97
49
Mueller 2004, 1–2, 32–40; Pinker 2011, capítulo 4.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 289

no entanto, por uma questão de brevidade, continuarei a empregar esse nome.


Da mesma forma, continuarei a me referir a essas sociedades pacificamente
inclinadas (entre si) como “democracias liberais”, embora isso possa ser uma
descaracterização da categoria relevante.
As observações anteriores sugerem um conjunto plausível de condições sob
as quais uma sociedade anarquista evitaria a guerra. Primeiro, a sociedade deve
estar localizada em uma região cercada por fortes democracias liberais. Isso
tornaria altamente improvável que a sociedade fosse atacada por nações não
liberais. Guerras entre nações distantes são raras em geral,50 e, nesse caso, um
invasor teria que atravessar um dos Estados democráticos liberais. Segundo, a
sociedade deve compartilhar as características das democracias liberais, além
daquelas que inerentemente exigem governo. Deve ser rica; deve compartilhar
valores amplamente liberais e ser amante da paz; e deveria possuir numerosas
e fortes relações comerciais com seus vizinhos. Terceiro, a sociedade deve ser
estabelecida com o consentimento – ou pelo menos sem a oposição – dos Estados
liberais circundantes. Sob essas condições, é muito improvável que a sociedade
sofra ataques de Estados estrangeiros.
Essas condições são realistas? A primeira condição é certamente realista:
grandes regiões do globo são controladas por democracias liberais, esses regimes
geralmente parecem altamente estáveis e cada vez mais o globo está sob o controle
de democracias liberais nos últimos dois séculos. Portanto, existem muitas regiões
adequadas e muitas outras existirão no futuro.
A segunda condição também é realista, embora não seja inevitável, desde que
o anarcocapitalismo seja viável em outros aspectos. É claro que, se a anarquia
degenerar em lutas e pilhagens universais, a sociedade anarquista não seria rica
e não manteria fortes laços comerciais com seus vizinhos. Os argumentos dos
capítulos anteriores sobre a paz interna e a estabilidade da ordem anarcocapita-
lista são, portanto, importantes também para estabelecer o potencial de relações
pacíficas entre uma sociedade anarquista e seus vizinhos. Se esses argumentos
estiverem corretos e se uma sociedade anarquista for iniciada por pessoas inicial-
mente ricas, liberais e amantes da paz, a sociedade continuará compartilhando
essas características.
É a terceira condição que seria a mais difícil de realizar. Como toda parte
habitável da superfície da Terra é atualmente controlada pelos Estados, a so-
ciedade anarquista aparentemente teria que ser fundada dentro do território
de algum Estado. Isso parece improvável no momento, principalmente porque
quase ninguém acredita no anarquismo. De fato, muito poucos ouviram falar
da forma de anarquismo discutida neste livro. Isso sugere que o anarquismo
não será adotado tão cedo. No entanto, afirmo que, caso fosse adotado, seria
50
Bremer 1992, 312–13, 327, 334–6.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 290

um sistema social bem-sucedido. Se o único obstáculo ao seu sucesso é que as


pessoas se recusam a experimentá-lo, acho que isso não é obstáculo para sustentar
que é o sistema social correto.

12.3.6 Se você deseja guerra, prepare-se para a guerra


Argumentei que uma sociedade anarquista poderia estar relativamente livre dos
fatores que normalmente fazem com que os Estados se envolvam na guerra. Mas
e se houvesse alguma característica exclusiva para as sociedades anarquistas que
as levaria a se envolver na guerra? Essa característica não teria aparecido em
nenhum dos estudos históricos das causas da guerra.
Há uma diferença óbvia entre anarquias e Estados que parece relevante: quase
todos os Estados mantêm exércitos permanentes, enquanto uma sociedade anar-
quista presumivelmente não teria exército permanente. Isso tornaria a sociedade
anarquista mais propensa à guerra? Alguns pensadores no campo das relações
internacionais (muitas vezes apelidados de “realistas”) tomam as relações de
poder entre os Estados, especialmente a presença ou ausência de dissuasão, como
os principais determinantes da guerra e da paz. Costuma-se dizer que, se al-
guém deseja a paz, deve se preparar para a guerra.51 Esses pensadores podem
argumentar que uma sociedade anarquista seria incapaz de deter os agressores
e, portanto, logo seria atacada.
Outros pensadores mantêm uma posição quase oposta: os preparativos milita-
res tornam a guerra mais provável do que menos. Uma razão é que os líderes que
acreditam que sua nação está bem preparada para a guerra ou que se consideram
comandantes de grandes forças militares podem se comportar de maneira mais
agressiva nas interações entre Estados, provocando respostas mais agressivas
de outros. Um segundo problema é que a manutenção de um exército perma-
nente cria uma classe permanente na sociedade com interesse econômico em
guerra – militares, fabricantes de armas e outros que negociam com militares – e
esse “lobby de guerra” pode promover suspeitas a nações estrangeiras e apoiar
líderes agressivos que têm maior probabilidade de iniciar ou escalar conflitos.
Um terceiro problema é que, apesar da popularidade do ditado “se você deseja
paz, prepare-se para a guerra”, países estrangeiros têm menos probabilidade
de tomar seus preparativos de guerra como evidência de desejos pacíficos do
que como evidência de intenções hostis. A suspeita e hostilidade gerada em
nações estrangeiras aumentará a probabilidade de espirais de conflito que levam
à guerra.52
51
O ditado “Si vis pacem, para bellum” deriva do escritor romano do século IV Vegetius (2001,
63).
52
Bremer (1992, 318) discute esses argumentos.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 291

Conservadores e liberais diferem entre si sobre o argumento teórico mais


plausível. Felizmente, não precisamos confiar apenas em sentimentos; podemos
recorrer à evidência empírica. O argumento da dissuasão (deterrence) nos levaria
a esperar duas coisas: primeiro, que Estados mais militarizados (grosso modo,
Estados que gastam mais recursos em gastos militares per capita) têm menos
probabilidade de se envolver em guerra. A condição mais segura deve ser aquela
em que ambos os membros de um par de Estados são altamente militarizados,
uma vez que, nesse caso, ambos os lados poderiam antecipar danos enormes
da guerra. Por outro lado, se nenhum dos Estados é altamente militarizado, as
consequências da guerra são relativamente baixas e nenhum dos lados enfrentaria
uma dissuasão forte.
Segundo, Estados com quase o mesmo poder devem ser menos propensos a
entrar em guerra entre si do que Estados com um poder muito desigual. Quando
dois Estados são quase iguais em poder, ambos sofrem sérias perdas com a guerra
e, portanto, ambos enfrentam uma dissuasão forte, enquanto quando um Estado
é muito mais poderoso que o outro, o Estado mais poderoso enfrentará pouca
dissuasão.
Não podemos estar absolutamente confiantes em nenhuma dessas previsões.
Talvez os Estados com maior probabilidade de entrar em guerra também sejam,
por esse motivo, mais propensos a fazer os preparativos para a guerra. E talvez
Estados poderosos se abstenham de atacar seus vizinhos mais fracos porque seus
vizinhos mais fracos simplesmente aderem a todas as demandas dos Estados
poderosos. Essas possibilidades interfeririam nas previsões que sugeri. No
entanto, parece que, em contrapartida, a descoberta de uma correlação inversa
entre militarismo e guerra seria tomada pela maioria dos observadores como
pelo menos uma evidência a favor da teoria de que a preparação militar impede
a guerra, assim como a descoberta de uma relação inversa entre igualdade de
poder e guerra. Inversamente, então, correlações positivas em cada um desses
casos minariam a teoria de que a preparação militar impede a guerra.
O cientista político Stuart Bremer analisou dados de todas as guerras entre
1816 e 1965. Entre outras coisas, descobriu que a militarização não teve efeito ou
aumentou ligeiramente a probabilidade de guerra. Ele também descobriu que os
Estados eram mais propensos a entrar em guerra quando eram aproximadamente
iguais em poder e menos propensos a ir à guerra quando havia uma grande
diferença de poder. Esses dois fatores – poder relativo e militarização – foram
menos importantes que os fatores de democracia e desenvolvimento econômico,
sugerindo que a ênfase dos “realistas” é equivocada.53
Outra maneira de testar a teoria de que a dissuasão militar é necessária para
53
Bremer 1992, 326, 334–8. Bremer observa que, depois de controlar outros fatores, o efeito da
militarização é mínimo.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 292

uma sociedade estar segura contra invasões estrangeiras é examinar casos de


sociedades que têm pouca ou nenhuma força militar. A teoria da dissuasão
preveria que qualquer sociedade desse tipo seria rapidamente dominada por
outro país, assim como uma sociedade anarquista seria.
Atualmente, existem pelo menos quinze países sem forças militares, incluindo
Andorra, Costa Rica, Estados Federados da Micronésia, Granada, Kiribati, Liech-
tenstein, Ilhas Marshall, Nauru, Palau, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas,
Samoa, Ilhas Salomão, Tuvalu e Cidade do Vaticano.54 A maioria dessas nações
têm, no entanto, permanecidas em paz por décadas. A maior dessas nações é a
Costa Rica, cuja última guerra foi uma guerra civil em 1948. No ano seguinte, o
país adotou uma Constituição que proíbe os militares. A Costa Rica está em paz
desde então.55
Os defensores da necessidade de dissuasão podem tentar explicar esses casos
de duas maneiras. Primeiro, cada uma dessas nações mantém uma força policial
nacional, e talvez seja essa força policial que detenha os invasores. Dado que
nenhuma dessas forças policiais poderia derrotar um exército tradicional, seu
valor de dissuasão militar está aberto a perguntas. Mas se fornecem dissuasão su-
ficiente contra a invasão, as agências privadas de proteção e os cidadãos armados
comuns em uma sociedade anarquista devem também fornecer uma dissuasão
comparável.
Segundo, se qualquer uma dessas nações fosse invadida, algum outro Estado
poderia vir para defendê-la. Em muitos, mas não em todos os casos, esses países
desmilitarizados têm entendimentos com nações mais poderosas, segundo as
quais as nações mais poderosas são responsáveis por sua defesa. Mesmo sem
qualquer acordo, há uma boa chance de que alguma outra nação intervenha para
impedir uma invasão hostil. Os Estados Unidos, por exemplo, têm uma história
de intervenção em muitas partes do mundo, incluindo uma invasão de Granada
em 1983, na qual as forças americanas derrubaram um golpe militar marxista e
restauraram o governo democrático.56 Se, portanto, Granada foi invadida por um
nação estrangeira, parece provável que os EUA voltem a intervir. O mesmo vale
para outras pequenas nações da região, como Costa Rica, Santa Lúcia e São Vicente
e Granadinas. Da mesma forma, no caso (altamente improvável) de alguma
outra nação atacar a Cidade do Vaticano, os militares italianos, sem dúvida,
interviriam; Andorra provavelmente poderia contar com proteção francesa ou
espanhola; Nauru provavelmente seria defendida pela Austrália.
54
Agência Central de Inteligência dos EUA 2011. A Wikipedia lista cinco países adicionais
com “sem exército permanente, mas [. . . ] forças militares limitadas”: Haiti, Islândia, Maurício,
Mônaco e Panamá, todos listados pela CIA como “sem forças militares regulares”.
55
Departamento de Estado dos EUA 2011.
56
Agência Central de Inteligência dos EUA em 2011.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 293

Isso levanta algumas questões teóricas. Por que a nação maior defenderia a
nação pequena e desmilitarizada nesses casos? Por que, por exemplo, os Estados
Unidos defenderam Granada? Granada não tem meios de obrigar os EUA a
ajudá-los, nem pode se dar ao luxo de pagar pelos EUA pelo serviço (nem os
EUA pediriam que fizesse isso). Uma razão parece ser que os Estados Unidos
se consideram a polícia do Caribe (e, em menor grau, do mundo). Os líderes
americanos podem se dar ao luxo de agir de maneira consistente com esta imagem,
porque os eleitores americanos geralmente se sentem à vontade com essa imagem
do papel de seu país, desde que as intervenções militares dos EUA não sejam
muito longas ou caras. Outro fator é que o governo dos EUA não gostaria de
ver outro governo agressivo ganhar influência na região. Quando os Estados
Unidos invadiram Granada em 1983, foi parcialmente para impedir que a ilha
fosse controlada por comunistas amigos de Fidel Castro, de Cuba.
Uma segunda questão teórica é ainda mais nítida para os “realistas”: o que
protege Granada dos Estados Unidos? Por que os EUA não dominaram a ilha e
a administram como uma colônia? Aqueles que procuram explicar as relações
internacionais em termos de relações de poder e que enfatizam a dissuasão como
uma condição necessária para a segurança devem ter dificuldade em explicar o
gozo contínuo da paz e da independência de Granada e outras nações indefesas.
Aqui está uma explicação plausível (não-realista). Se os líderes americanos
lançassem uma dominação hostil de Granada, a ação receberia imediatamente
publicidade extremamente negativa. Granada seria amplamente percebida (cor-
retamente) como uma nação inofensiva e indefesa, e a invasão seria, portanto,
extremamente impopular entre os eleitores americanos.
Os políticos dos EUA, embora talvez estejam felizes em ignorar os desejos
da população quando ninguém está assistindo (o que quase sempre acontece),
geralmente temem desafiar a opinião dos eleitores em casos de alto nível, princi-
palmente quando há tão pouco a ganhar quanto seria possível neste caso. Qual-
quer invasão militar deve ser notória, de modo que os líderes relutam em atacar
nações consideradas inofensivas.
Não é apenas entre um punhado de nações literalmente indefesas do mundo
que se encontram casos de segurança sem dissuasão militar. Além disso, existem
muitas nações com forças militares muito mais fracas que as dos países vizi-
nhos. Por exemplo, as forças armadas dos EUA mantêm aproximadamente 1,4
milhão de militares, enquanto as forças canadenses somam 68.000.57 Nenhuma
consideração militar realista impede os Estados Unidos de assumir o Canadá.
Considerando o número de pares de nações no mundo para o qual uma nação é
muito mais poderosa que a outra e contrastando isso com o número muito pe-
57
Departamento de Defesa dos EUA 2010; Departamento Canadense de Defesa Nacional 2011.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 294

queno que realmente está em guerra, é preciso começar a duvidar da importância


da dissuasão para explicar como a paz é mantida.
Voltando à questão da anarquia, os estatistas serão rápidos em argumentar
que a segurança das nações desmilitarizadas em discussão depende do poder
e das intenções benevolentes de outros Estados, que devem proteger as nações
fracas. Portanto, a segurança de uma sociedade realmente depende do governo,
embora não necessariamente do própria governo dessa sociedade.
Seja como for, a questão de interesse era se uma sociedade anarquista pode
esperar estar segura contra a agressão estrangeira. Se uma sociedade pode ser
segura devido ao caráter dos governos de outras nações, parece que a sociedade
não precisa ter um governo próprio, e uma sociedade anarquista pode, portanto,
ser segura. Uma sociedade anarquista pode depender da força e intenções be-
nevolentes das democracias liberais próximas, da mesma maneira que muitos
Estados existentes atualmente dependem.
Mesmo que algumas sociedades anarquistas seguras pudessem ser estabeleci-
das, ainda se poderia perguntar se o sistema poderia servir como um ideal para
o mundo como um todo. Esta questão será abordada no capítulo 13.

12.4 Evitando o terrorismo


Desde 2001, os americanos estão preocupados com a ameaça do terrorismo, e
essa preocupação levou a uma expansão significativa dos poderes do governo
central. Pode-se pensar que o governo é necessário para proteger as pessoas
dessa ameaça.

12.4.1 A ameaça terrorista


Entre 1968 e 2009 (os anos para os quais havia dados disponíveis), ataques
terroristas mataram cerca de 3.200 vidas nos Estados Unidos (quase todas em
11 de setembro de 2001) e 64.000 vidas em todo o mundo.58 Durante o mesmo
período, assassinos não-terroristas nos Estados Unidos tiraram 802.000 vidas.59 O
número total de mortes americanas por todas as causas durante esse período foi
próximo a 91 milhões.60 Assim, nos Estados Unidos, o terrorismo foi responsável
por aproximadamente 0,4% dos assassinatos e 0,004% de todas as mortes. Esses
58
Todos os dados sobre fatalidades terroristas são da RAND Corporation (2011).
59
Disaster Center 2011a. Concentro-me nas mortes americanas aqui porque estatísticas confiáveis
dos EUA estão mais prontamente disponíveis do que as estatísticas mundiais.
60
Disaster Center 2011b. Os totais de óbitos nos anos não mostrados na tabela foram estimados
com base nos totais de óbitos nos anos próximos.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 295

números inicialmente dificultam a visão do terrorismo como uma das ameaças


mais graves enfrentadas pelos Estados Unidos ou pelo mundo.
A única maneira pela qual alguém poderia ver o terrorismo como uma ameaça
séria é, portanto, se alguém suspeitar que o terrorismo futuro será muitas vezes
pior do que o terrorismo passado. Isso pode ser verdade se os terroristas tiverem
o controle de armas nucleares ou biológicas. Não há maneira confiável de estimar
as chances de tal ocorrência; no entanto, alguns especialistas no assunto fizeram
avaliações alarmantes. Em 2005, o senador dos EUA Richard Lugar entrevistou
85 especialistas em não-proliferação e segurança nacional de todo o mundo em
suas avaliações do risco de terrorismo envolvendo armas de destruição em massa
(ADM). Em média, os entrevistados consideraram um ataque nuclear terrorista
em algum lugar do mundo nos próximos dez anos como 29% provável e um
grande ataque biológico com chances de 33%.61 Em 2008, a Comissão do Governo
dos EUA para a Prevenção da Proliferação e Terrorismo de ADM considerou
mais provável que um ataque terrorista com armas de destruição em massa
ocorresse em algum lugar do mundo até 2013, com um ataque biológico sendo
mais provável que um ataque nuclear.62
Essas avaliações devem ser feitas com um pé atrás, pois os especialistas em
segurança nacional podem ter um viés para exagerar as ameaças à segurança
nacional. Aqueles que estão mais predispostos a se preocupar com ameaças à
segurança nacional têm maior probabilidade de se tornarem especialistas em
segurança nacional. Muitos desses especialistas trabalham para governos, que
tendem a lucrar com a percepção do público sobre sérias ameaças à segurança na-
cional. Mais importante ainda, as avaliações mencionadas no parágrafo anterior
são suposições subjetivas, avaliações do tipo menos confiável e mais facilmente
influenciado pelo viés.63 Essa falta de confiabilidade talvez se reflita no fato
de que avaliações especializadas da probabilidade de terrorismo com armas
61
Lugar 2005, 14, 19.
62
Comissão de Prevenção da Proliferação e Terrorismo das ADM 2008, xv. Para alertas igual-
mente terríveis, consulte Allison 2004, 15; Bunn 2006.
63
O método usual de avaliar a probabilidade de um evento envolve observar sua frequência em
um grande número de tentativas. No presente caso, nenhuma instância do evento foi observada.
Outra abordagem é observar a frequência de quase acidentes – casos em que o evento quase
ocorreu. Não há casos conhecidos em que os terroristas tenham chegado muito perto de um
grande ataque bem-sucedido com armas de destruição em massa; no entanto, houve numerosos
casos em que planos terroristas de distribuição de agentes tóxicos foram frustrados e outros em
que indivíduos ou grupos não autorizados foram apanhados com amostras de urânio altamente
enriquecido (Cordesman 2005, 22-4). A maneira mais confiável de avaliar probabilidades pode
ser estabelecer um mercado de apostas (consulte, por exemplo, www.intrade.com). O governo
dos EUA considerou estabelecer um mercado de apostas em terrorismo, mas rejeitou a proposta
por razões emocionais (CNN 2003).
12. Guerra e Defesa da Sociedade 296

de destruição em massa abrangem todo 0 a 100 por cento.64 Especialistas que


consideram detalhadamente as várias maneiras pelas quais uma conspiração
terrorista pode falhar tendem a ver os riscos muito menores do que o indicado
no parágrafo anterior.65
Embora não haja acordo sobre a probabilidade aproximada de um ataque
terrorista com armas de destruição em massa, existe um consenso geral de que
esse ataque teria consequências extremamente graves, começando com possivel-
mente centenas de milhares de mortes.66 Nos piores cenários apresentados por
especialistas, as fatalidades seriam equivalente a algumas décadas de assassina-
tos comuns nos Estados Unidos. Embora essa não seja uma ameaça existencial
para a sociedade americana ou qualquer outra, continua sendo uma preocupação
séria.

12.4.2 As raízes do terrorismo


Por que ocorrem ataques terroristas? Há duas visões amplas sobre as motivações
da maioria dos terroristas. A primeira é a imagem do “choque de civilizações”,
expressa de forma eloquente pelo presidente dos EUA George W. Bush em 2001:

Eles odeiam o que veem aqui nesta Câmara: um governo eleito demo-
craticamente. [. . . ] Eles odeiam nossas liberdades: nossa liberdade
de religião, nossa liberdade de expressão, nossa liberdade de votar,
reunir e discordar um dos outros. [. . . ] Esses terroristas matam não
apenas para acabar com vidas, mas para perturbar e terminar um
modo de vida. [. . . ] é a luta da civilização. Essa é a luta de todos que
acreditam no progresso e no pluralismo, na tolerância e na liberdade.67

Nesta visão, os terroristas são movidos por objetivos fundamentalmente maus,


e os EUA são alvo por causa de suas virtudes mais notáveis. Nenhuma mudança
na política do governo, com exceção da conversão à teocracia islâmica, poderia
ter um impacto significativo nas motivações terroristas.
Outra visão atribui o sentimento antiamericano a políticas externas específi-
cas dos EUA, particularmente no Oriente Médio. Entre essas políticas estão as
64
Lugar 2005, 14, 19.
65
Veja Levi 2007. Embora Levi se recuse a oferecer uma avaliação numérica do risco de
terrorismo nuclear, a impressão que ele deixa é muito menos alarmante do que a deixada pelos
autores anteriores. No entanto, Levi aconselha fortemente a favor do fortalecimento das defesas
contra o terrorismo nuclear.
66
Levi (2007, 38) menciona a possibilidade de 100.000 mortes devido a um ataque nuclear
terrorista em Nova York; Allison (2004, 4) menciona a possibilidade de meio milhão de mortes
imediatas do mesmo evento, além de centenas de milhares mais nas horas seguintes.
67
Bush 2001.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 297

sanções patrocinadas pelos EUA contra o Iraque após a primeira guerra do Golfo
Pérsico; Apoio dos EUA a Israel no que alguns descrevem como opressão dos
palestinos; a presença contínua de tropas americanas em países muçulmanos,
particularmente na Península Arábica desde a primeira guerra do Golfo; as recen-
tes invasões e ocupações do Afeganistão e Iraque, com a consequente morte de
centenas de milhares de cidadãos desses países; e o abuso de prisioneiros em Abu
Ghraib e em outros lugares. Argumenta-se que cada uma dessas ações contribuí-
ram para uma maré de ressentimento em relação aos EUA, particularmente nos
países muçulmanos, permitindo assim que grupos terroristas recrutem membros
adicionais.68
Qual dessas concepções básicas é mais precisa? As evidências pesam for-
temente a favor da teoria da “retaliação da política externa”. Para começar, as
declarações reais de Bin Laden e de outros líderes terroristas ao apelar à jihad
contra os EUA citam políticas estrangeiras americanas específicas como justifica-
tiva, principalmente a presença de tropas americanas na “terra dos dois Lugares
Sagrados” (Península Arábica), O apoio dos EUA a Israel e a guerra e as sanções
econômicas dos EUA contra o Iraque.69 Eles não citam os valores democráticos
liberais dos EUA, nem visam democracias liberais sem envolvimento no Oriente
Médio.
Presumivelmente, esses líderes terroristas estariam em uma posição melhor
para conhecer suas próprias motivações do que oficiais do governo americano ou
outros observadores distantes, e seria do interesse deles revelar essas motivações
se esperavam coagir as nações a aceitar seus desejos. Por outro lado, as avaliações
de funcionários do governo podem sofrer um viés na direção de descontar a
responsabilidade do próprio governo por sentimentos terroristas, principalmente
se os funcionários não tiverem a intenção de mudar as políticas que podem ter
levado a esses sentimentos.
Especialistas que estudam motivações terroristas chegam a conclusões se-
melhantes. O antropólogo Scott Atran passou anos estudando terroristas em
vários países ao redor do mundo, entrando em suas comunidades e entrevistando
terroristas. Atran descobriu que terroristas recentes são movidos por indignação
moral com a violência praticada por americanos contra muçulmanos no Iraque,
Afeganistão e em outros lugares. Ele descobriu que os jihadistas não são movi-
dos pelo ódio pela liberdade e pela democracia, como afirmou Bush, nem são
“niilistas”, como afirmou Barack Obama.70 Eles se consideram heróis corajosos
68
Ver, por exemplo, Hornberger 2006.
69
bin Laden 1996; Bin Laden et al. 1998.
70
Veja Obama 2004, x: “Também não pretendo entender o niilismo severo que levou os terro-
ristas naquele dia e que ainda deixa seus irmãos. Meus poderes de empatia, minha capacidade
de alcançar o coração de outra pessoa não podem penetrar nos olhares vazios daqueles que
matariam inocentes com satisfação abstrata e serena.”
12. Guerra e Defesa da Sociedade 298

enfrentando um enorme opressor. Como disse um membro do Politburo do


Hamas: George Washington estava lutando contra as forças armadas mais fortes
do mundo, além de qualquer razão. É isso que estamos fazendo. Exatamente.71
Robert Pape e James Feldman estudaram todos os 2.200 ataques terroristas
suicidas que ocorreram em todo o mundo entre 1980 e 2009. Descobriram que
esses ataques não eram principalmente motivados por diferenças religiosas. Em
vez disso, quase todos os ataques foram motivados pelo desejo de acabar com
a ocupação militar estrangeira de um território que os terroristas valorizavam.
Essa foi a constante entre grupos terroristas seculares e religiosos e em todos os
países, da Cisjordânia ao Sri Lanka, Líbano e Chechênia.72 Isso inclui os ataques
terroristas de 11 de setembro de 2001 que levaram os americanos horrorizados
a perguntar: “Por que eles nos odeiam?” Aqui estão as palavras de três dos
sequestradores do 11 de setembro:

Abu al-Jaraah al-Ghamidi: O que está acontecendo nos países muçul-


manos hoje? Ocupação flagrante sobre a qual não há dúvida. [. . . ]
Não há dever mais obrigatório após a fé do que repelir isso.
Abu Mus’ab Walid al-Shehri: Repelir os americanos de ocupar a terra
dos Dois Santuários [. . . ] é a obrigação mais obrigatória.
Hamza al-Ghamdi: E digo aos EUA: se desejam que seus exércitos e
seu povo estejam em segurança, devem retirar todas as suas forças
das terras muçulmanas e se afastar de todos os nossos países.73

Não é preciso dizer que o esforço para entender as motivações dos terroristas
não implica simpatia pelos terroristas, nem envolve qualquer tentativa de desviar
a culpa moral das ações terroristas dos próprios terroristas. Uma compreensão
precisa das motivações terroristas, livre de preconceitos egoístas, é simplesmente
o primeiro passo para entender como evitar ataques terroristas no futuro.

12.4.3 Soluções violentas e não-violentas


Como o problema do terrorismo deve ser tratado? A maioria dos governos se
concentra na estratégia de fiscalização: rastrear e capturar ou matar o maior
número possível de terroristas. Espera-se que isso incapacite a maioria das
pessoas que, de outra forma, cometeriam atos terroristas, além de dissuadir outras
pessoas que poderiam considerar se tornar terroristas. Muitos terroristas foram
71
Atran 2010, 347. Ver Atran 2010, 53-4, 55-6, 114-15, 290, sobre motivações terroristas. Atran
(2010, 4-5, 42-3) contesta as observações de Bush e Obama.
72
Pape e Feldman 2010, 9–10.
73
Dos vídeos dos mártires do 11 de Setembro, citados em Pape e Feldman 2010, 23.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 299

capturados ou mortos, e isso presumivelmente impediu diretamente muitos


ataques terroristas que, de outra forma, teriam ocorrido.
Ao mesmo tempo, existem razões para apreensão sobre a estratégia geral. É
impossível capturar todos os terroristas, e até capturar uma grande porcenta-
gem deles pode ser difícil e exigir grandes sacrifícios, tanto em termos materiais
quanto em termos de liberdades civis. A aplicação provavelmente se tornará
cada vez mais difícil no futuro, pois à medida que a sociedade avança econômica
e tecnologicamente, cada vez mais pessoas terão acesso a ferramentas capazes de
causar grande destruição. Os governos podem recorrer a métodos de aplicação
cada vez mais draconianos. No entanto, esses métodos podem criar ressenti-
mentos adicionais, levando mais pessoas a se tornarem terroristas; isso é mais
provável se esses métodos incluírem tortura ou outro abuso de prisioneiros. Se
o governo também continuar com as políticas que levaram ao sentimento ter-
rorista, novos recrutas terroristas poderão continuar a aparecer regularmente,
perpetuando um estado constante de conflito. De acordo com uma pesquisa da
Gallup, 7% dos 1,6 bilhões de muçulmanos do mundo consideraram os ataques
do 11 de setembro completamente justificados, enquanto 37% consideraram os
ataques completamente, em grande parte ou em parte – justificado.74 Com um
número tão grande de pessoas abrigando algumas simpatia pelo terrorismo, pa-
rece que uma estratégia eficaz deve se concentrar mais em reduzir essa maré de
indignação, em vez de implantar cada vez mais violência para destruir o inimigo.
Quando confrontada com oponentes de uma comunidade que contém dezenas
ou centenas de milhões de pessoas ultrajadas, é mais provável que uma estraté-
gia puramente combativa produza um ciclo interminável de derramamento de
sangue que será trágico para os dois lados.
A abordagem ideal para o terrorismo seria agir de alguma maneira para que
ninguém, ou no mínimo muito poucas pessoas, tenha o tipo de raiva que as moti-
vasse a cometer ataques terroristas, para começar. Se os ataques terroristas são
motivados por pura maldade ou por ódio à liberdade, isso não seria possível. Mas
se, como argumentei, o terrorismo é uma retaliação por políticas governamentais
específicas, o problema pode ser resolvido com a eliminação dessas políticas.
Uma sociedade anarquista seria muito mais segura do terrorismo do que uma
sociedade dominada pelo governo, pois a sociedade anarquista não teria meca-
nismo para empreender os tipos de ações que normalmente motivam ataques
terroristas. Os anarquistas não colocariam, por exemplo, tropas em solo estran-
geiro, imporiam embargos econômicos a outros países ou invadiriam outros
países.
Obviamente, uma nação com um governo pode praticar uma política externa
74
Sobre os resultados da pesquisa, veja Atran 2010, pp. 57–8; Satloff 2008. Sobre a população
muçulmana mundial, consulte Pew Research Center 2009.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 300

não-intervencionista e, assim, evitar se tornar um alvo do terrorismo. No entanto,


deve-se ter em mente que a existência de um governo cria um risco contínuo e
não trivial de que o governo assuma políticas que fazem com que seus próprios
cidadãos se tornem alvos de ataques terroristas. A auto-imagem do governo,
quase por sua própria natureza, é a de uma agência que atua para combater
as ameaças à sociedade através da força. Assim, embora não seja inevitável, é
natural que os governos reajam às ameaças percebidas de maneira agressiva que
perpetua o ciclo de violência. As políticas democráticas são mais propensas a
apoiar do que restringir o Estado assim que esse ciclo começar. Em um debate
presidencial de 2011, o candidato republicano Rick Santorum recebeu aplausos
da plateia por declarar que os Estados Unidos foram atacados em 2001 por
causa do ódio terrorista por liberdade, oportunidade e seu “excepcionalismo
americano”. O candidato rival Ron Paul respondeu citando as declarações reais
da Al Qaeda como evidência de que as políticas externas dos EUA foram o
motivo dos ataques. Paul recebeu vaias da plateia por suas observações.75 Essa
evidência admitidamente anedótica sugere que as políticas democráticas tendem
a preferir candidatos que atribuem ameaças ao puro mal dos inimigos da nação
sobre candidatos que verdadeiramente atribuem hostilidade inimiga a políticas
governamentais anteriores. Isso é um mau presságio para as perspectivas de
resolução de conflitos sem derramamento de sangue terrível.

12.5 Os perigos da “segurança nacional”


12.5.1 O risco de agressão injusta
Suponha que eu desenvolva um plano para tornar minha casa segura contra
assaltantes e outros invasores: plantarei minas terrestres no meu quintal. Clara-
mente, seria bárbaro discutir essa proposta puramente em termos de quão bem
ela promove a segurança de minha própria casa. Seria eticamente obrigado a
considerar também questões como o que acontecerá se as crianças da vizinhança
se desviarem para o meu gramado – mesmo que não sejam minhas crianças.
Da mesma forma, qualquer sociedade é eticamente obrigada a considerar
como seu aparato de segurança nacional afeta não apenas sua própria segurança,
mas também a segurança de outros povos ao redor do mundo. Essa questão é
particularmente apontada para os americanos, cujo aparato de “defesa” inclui
mais de 700 bases militares em 39 países estrangeiros76 e esteve recentemente
75
CNN 2011.
76
Perry 2008. militarybases.com relata que as forças dos EUA estão posicionadas em mais
de 135 países em todo o mundo (http://militarybases.com/; acessado em 18 de outubro de
2011).
12. Guerra e Defesa da Sociedade 301

envolvido nos conflitos do Oriente Médio mencionados acima. Mas não são
apenas os americanos que têm motivos de preocupação moral com as ações de
seus governos; 27 países enviaram tropas para a guerra no Iraque, incluindo mais
de 10.000 tropas britânicas.77
Alguém pode se perguntar se a agressividade recente dos governos americano
e aliados é um acidente histórico ou se existe algo na natureza do governo que
incentive esses resultados. A resposta é que, embora essa agressão esteja longe
de ser inevitável, ela permanece um risco não trivial para qualquer sociedade que
mantenha um governo em um ambiente geopolítico semelhante ao que existe
atualmente. Enquanto existirem muitos países não democráticos no mundo, os
países democráticos correm o risco de entrar em guerra com países não democráti-
cos, particularmente aqueles que são vistos como estranhos pelas populações das
nações democráticas. O próprio aparato de segurança nacional cria um interesse
permanente na guerra. Os governos, particularmente seus ramos dedicados à
segurança nacional, tendem a lucrar com um estado de guerra, assim como os
contratados que vendem bens e serviços às forças armadas. Portanto, poderia-se
esperar, no mínimo, que esses interesses tivessem uma percepção aguçada dos
argumentos a favor da guerra em um determinado momento e uma percepção
relativamente preguiçosa dos argumentos pela paz.
Mas não são apenas os contratados militares e os membros do aparato de
segurança nacional do governo que podem apoiar a guerra. Muitos cidadãos
comuns, por um senso de patriotismo equivocado, por um desejo de projetar
uma auto-imagem masculina ou por ignorância e mal-entendido, podem apoiar
guerras agressivas. Embora essas falhas cognitivas e de caráter estejam presentes
em qualquer população grande, é apenas em uma sociedade controlada pelo
governo que eles provavelmente levarão à violência em larga escala, pois somente
em uma sociedade controlada pelo governo há um aparato permanente que
permite tais indivíduos provocar violência em larga escala a um custo mínimo
para si mesmos, simplesmente comparecendo às urnas e votando em políticos
agressivos. Mesmo que, por exemplo, a maioria dos americanos desejasse uma
guerra com o Irã, dificilmente alguém consideraria pegar em armas e, como
indivíduos particulares, voar para o Irã e atacá-lo. Somente através de um aparato
governamental é provável que sua hostilidade leve à violência em massa.
Como no caso das minas terrestres no meu gramado de casa, temos uma forte
razão moral para eliminar nosso governo; ou seja, a ameaça que isso representa
para pessoas inocentes em outras partes do mundo.
77
BBC News 2003.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 302

12.5.2 O risco de um desastre global


A espécie humana não é imortal. Com toda a probabilidade, um dia será extinta.
Podemos esperar que este dia chegue num futuro distante, talvez milhões de
anos. Mas devemos temer que isso aconteça muito mais cedo, talvez dentro de
apenas centenas de anos.
Nossa espécie sobreviveu por 200.000 anos até agora. Mas isso não é motivo
para complacência; durante a maior parte desse tempo, não possuíamos nenhuma
tecnologia plausivelmente capaz de nos extinguir. Desde o final da Segunda
Guerra Mundial, nós temos. Uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a
União Soviética poderia ter extinguido a espécie e, de qualquer forma, teria sido
uma catástrofe do tipo que a humanidade nunca viu.
Os Estados Unidos e a União Soviética conseguiram evitar essa guerra nas
cruciais quatro décadas e meia desde o final da Segunda Guerra Mundial até o
colapso da União Soviética. Pode-se considerar isso como um atestado da eficácia
da dissuasão e da capacidade dos líderes nacionais de agir racionalmente quando
as apostas são altas o suficiente. Mas, novamente, temos poucas razões para
complacência. Os EUA e a União Soviética chegaram mais perto da guerra do que
muitos imaginam. Durante a Crise de Mísseis Cubanos de 1962, o Presidente Ken-
nedy pensou que as chances de uma guerra nuclear eram de aproximadamente
uma em três.78 Em um ponto durante a crise, os navios da Marinha Americana
lançavam acusações profundas sobre um submarino soviético, em um esforço
para forçá-lo a superfície. Desconhecido para os americanos, o submarino estava
armado com um torpedo nuclear. O capitão queria disparar o torpedo, mas
Vasily Arkhipov, segundo em comando, conseguiu convencer o capitão a parar e
subir o submarino à superfície.79
Esse incidente ilustra a fragilidade das barreiras à guerra entre Estados-nações
rivais, mesmo quando os países opostos estão cientes de que qualquer guerra
seria catastrófica. Se Vasily Arkhipov concordasse com seu capitão ou se um
indivíduo mais agressivo estivesse no submarino no lugar de Arkhipov, o torpedo
teria sido disparado e, com toda a probabilidade, uma guerra nuclear global teria
ocorrido, com centenas de milhões, talvez bilhões, de baixas.
Esse incidente deve nos dar uma pausa. Se o mundo chegou tão perto da
guerra nuclear em 1962, poderia chegar novamente. As circunstâncias superficiais
seriam diferentes. A data pode demorar décadas ou séculos no futuro. As nações
envolvidas podem ser diferentes. No lugar das armas nucleares, os exércitos
daquele dia podem estar armados com algumas armas ainda mais temíveis ainda
não inventadas. Enquanto os exércitos habitarem um mundo tecnologicamente
avançado, haverá armas de destruição em massa. E enquanto existirem armas
78
Blanton 1997, 93.
79
Dobbs 2008, 302–3, 317.
12. Guerra e Defesa da Sociedade 303

de destruição em massa, ainda existe a chance de serem usadas – se não sob as


ordens explícitas de um líder nacional, e sob a autoridade de um comandante
militar em campo. O uso de tais armas, por sua vez, gera o risco de uma rápida
escalada para a guerra apocalíptica.
Como essa ameaça está relacionada ao caso a favor ou contra o governo?
O governo é a fonte de todas as armas de destruição em massa atualmente
existentes. O governo dos EUA inventou armas nucleares e continua sendo a
única organização a ter usado com raiva. Um punhado de governos nacionais,
particularmente os governos dos EUA e da União Soviética, são responsáveis
pela construção de todas as armas nucleares atualmente existentes. Se a história
é um guia, as próximas armas de destruição em massa a serem inventadas quase
certamente serão inventadas por algum governo nacional (provavelmente o
governo dos EUA, cujo orçamento militar, até o momento da redação deste artigo,
é responsável por 40% dos gastos militares do mundo inteiro) ) Qualquer que
seja essa tecnologia, provavelmente representará uma ameaça ainda maior à
sobrevivência da humanidade do que as armas nucleares. Assim, o aparato
que inventamos para nos proteger contra a agressão estrangeira é, ele próprio, a
principal fonte do maior perigo que a espécie humana já enfrentou.

12.6 Conclusão
Sem o aparato de segurança nacional do Estado – seus exércitos, agências de
inteligência e assim por diante – como uma sociedade poderia estar protegida de
ameaças estrangeiras, como governos estrangeiros hostis e organizações terroris-
tas? Existem várias respostas plausíveis para isso.
Primeiro, uma sociedade poderia ser defendida contra invasores estrangeiros
por guerrilheiros. Vários episódios históricos recentes sugerem que os insurgentes
nativos podem representar um problema extremamente sério, mesmo para os
exércitos mais avançados e poderosos que procuram ocupar terras estrangeiras.
Segundo, movimentos de resistência popular não-violentos muitas vezes se
mostram altamente eficazes em convencer governos opressivos a dar liberdade
às pessoas.
Terceiro, é muito menos provável que uma sociedade não governada se en-
volva em conflitos violentos do que uma sociedade controlada pelo governo. A
grande maioria das guerras é causada por disputas entre governos e todos ou
quase todos os atos terroristas são realizados em represália às políticas governa-
mentais.
Quarto, uma sociedade anarquista pode ser estabelecida sob condições que
tornam improvável a guerra. Desde que
12. Guerra e Defesa da Sociedade 304

i a sociedade seja estabelecida em uma região dominada por democracias


liberais;

ii a própria sociedade adote valores liberais;

iii a sociedade mantenha fortes relações sociais e econômicas com seus vizinhos;

iv a sociedade careça de grandes tensões religiosas ou étnicas internas;

v a sociedade não esteja estabelecida em uma região de longa disputa territorial;

vi a sociedade seja estabelecida através de um movimento local, em vez de ser


imposta por potências estrangeiras, e;

vii a sociedade seja estabelecida com o consentimento do Estado que anterior-


mente controlava o território.

Então uma sociedade anarquista provavelmente estaria estável e livre de


conflitos violentos com outras nações. As seis primeiras dessas condições (em
conjunto) são totalmente realistas. Somente a sétima parece inatingível em
um futuro próximo, principalmente porque poucas pessoas aceitam a teoria
defendida neste livro.
Por fim, é importante considerar o perigo que o próprio aparato de segurança
nacional representa para o resto do mundo. Enquanto existir, o Estado tem
um risco não trivial de cometer violência injusta contra outros, na forma de
guerra agressiva, bem como um risco não trivial de desenvolver e usar armas de
destruição em massa, que ameaçam a sobrevivência da espécie humana. Somos
moral e prudentemente obrigados a minimizar esses riscos.
13

Da Democracia à Anarquia

A anarquia pode ser desejável em teoria, mas é alcançável? Neste capítulo,


argumento que o desenvolvimento eventual de uma ordem anarcocapitalista,
embora não seja inevitável, não é impossível nem extremamente improvável.

13.1 Contra o viés do presente: as perspectivas de


mudança radical
Podemos ficar tentados a concluir que a ascensão de um mundo anarcocapita-
lista é extremamente improvável ou impossível simplesmente com o argumento
de que o anarcocapitalismo nunca foi realizado e é muito diferente do status
quo. Argumento que devemos resistir a essa tentação. Três amplas observa-
ções contribuem para o meu otimismo. Primeiro, muitas mudanças radicais
ocorreram na história da humanidade, incluindo grandes mudanças políticas e
culturais. Segundo, o futuro provavelmente verá mudanças ainda mais rápidas
do que no passado. Terceiro, algumas das mais importantes mudanças sociais
de longo prazo estão em uma direção consistente com a eventual emergência do
anarcocapitalismo.
Para elaborar a primeira observação: o homo sapiens anatomicamente mo-
derno surgiu há 200.000 anos. Nos primeiros 190.000 anos, não houve civilização,
e os seres humanos viveram principalmente como caçadores-coletores nôma-
des. Pouco mudou durante todo esse tempo. Um observador alienígena já teria
desistido de ver qualquer coisa interessante. Mas, cerca de 10.000 anos atrás,
os seres humanos começaram a mudança radical da sociedade primitiva para a
civilização, que já abarcava quase toda a espécie.
Durante a maior parte da história da civilização, a sociedade humana foi
organizada de uma maneira que melhor poderia ser descrita como tirania – socie-

305
13. Da Democracia à Anarquia 306

Figura 13.1: Número de nações democráticas no mundo, 1800–2010

dades governadas por autocratas individuais ou pequenos grupos de aristocratas,


com pouco respeito pelos direitos ou interesses dos cidadãos. A democracia fora
tentada apenas esporadicamente e de maneira imperfeita. Porém, a partir de 200
anos atrás – depois de 9.800 anos de tirania – os seres humanos finalmente co-
meçaram um movimento determinado em direção à democracia, uma mudança
que se acelerou no século XX e agora parece destinada a abranger toda a Terra
(veja a Figura 13.1).1
Os seres humanos são incomuns entre os produtos da natureza – podem fazer
a mesma coisa por milhares ou centenas de milhares de anos e depois mudar rapi-
damente para uma forma radicalmente nova de comportamento. A ascensão da
civilização e a mudança da tirania para a democracia são exemplos de mudanças
radicais na organização social humana possibilitadas pela inteligência humana.
E muitas outras mudanças sociais e políticas dramáticas ocorreram na história
registrada: a abolição da escravidão, a disseminação do sufrágio feminino, de-
1
Center for Systemic Peace 2011. Conto como democracias todos os países com pontuação igual
ou superior a 6 na variável polity2 no conjunto de dados Polity IV. Observe que o conjunto de
dados inclui apenas países com populações de pelo menos 500.000 e que os dados são escassos
antes de 1900. No entanto, a tendência para a democracia é dramática e inegável.
13. Da Democracia à Anarquia 307

clínios extremos nas taxas de violência, o surgimento e queda do comunismo,


aumento da globalização e assim por diante. Seria tolice supor que mudanças
sociais radicais pararam. Na verdade, o ritmo da mudança social parece estar se
acelerando. Nos últimos 20 anos, por exemplo, a democracia se espalhou para
tantos países novos quanto alcançou nos 200 anos anteriores. O desenvolvimento
econômico e tecnológico parece ser exponencial. Novas tecnologias da informa-
ção e a crescente interconexão do mundo parecem possibilitar mudanças sociais
mais rápidas do que nunca.
Agora não podemos prever como a sociedade humana se parecerá daqui um
século ou mais no futuro, não mais como nossos ancestrais de séculos passados
poderiam prever a forma de nossa sociedade. O que sabemos é que o futuro
não se parecerá com o presente. As mudanças radicais do passado foram não
apenas econômicas e tecnológicas, mas também sociais e políticas. Portanto,
seria míope supor que nossas atuais instituições sociais e políticas permanecerão
imunes a mudanças radicais. Não estou prevendo o inevitável surgimento da
anarquia mundial. No entanto, estou mantendo a anarquia como um resultado
possível para a humanidade, dada a natureza caótica da história humana e a
grande incerteza do futuro.
Existem razões específicas para considerar isso um resultado plausível? Um
tipo de razão é que, dentre as amplas tendências vistas na história humana,
algumas das mais salientes são consistentes com um movimento na direção
do anarcocapitalismo. As tendências mais filosoficamente interessantes são as
tendências nos valores humanos. É difícil exagerar o grau de liberalização que a
humanidade viu ao longo de sua história. Considere apenas alguns exemplos.

• Hoje, alguns observadores criticam a brutalidade do esporte do boxe. Na


Roma antiga, no entanto, o entretenimento do dia era um combate entre
gladiadores. Imagine um oficial de boxe hoje propondo que os boxeadores
recebam espadas, para melhor desmembrar um ao outro.

• Aristóteles, um dos maiores filósofos da história, escreveu que alguns ho-


mens são por natureza adequados para serem escravos, enquanto outros
são naturalmente adequados para serem seus senhores, e ele sustentou isso
apenas para fazer guerra contra os escravos naturais que se recusavam a se
submeter de bom grado.2 Imagine um filósofo contemporâneo que propõe
que os EUA iniciem uma guerra para capturar escravos.

• Nos últimos anos, o governo George W. Bush sofreu críticas generaliza-


das e ultrajantes por autorizar o uso de tortura, na forma de afogamento,
forçando os prisioneiros a ficarem estressados em certas posições e assim
2
Aristóteles 1941, Politics, 1255b4–12, 1255b37–9, 1256a22–6.
13. Da Democracia à Anarquia 308

por diante. Mas essas técnicas milagrosas de interrogatório teriam sido


ridicularizadas pelos torturadores da Idade Média, cujas punições incluíam
cozinhar pessoas vivas; rasgar o corpo de uma vítima num instrumento
de tortura; suspender uma pessoa de cabeça para baixo e depois serrar a
vítima pela metade longitudinalmente, começando na virilha; e assim por
diante.3

• Nas últimas décadas, muitos países aboliram a pena de morte, e aqueles


que a retêm geralmente a reservam para os piores assassinos. Porém, em
épocas anteriores, a condenação à morte era banal, mesmo por ofensas
triviais como sodomia, fofocas e trabalho no sábado.4

De um modo geral, a evolução dos valores tem sido na direção de um maior


respeito pelas pessoas, uma forte presunção contra a violência e a coerção e um
reconhecimento do status moral igual de todas as pessoas. Essa mudança de
valores afastou a tendência do autoritarismo e rumou à democracia liberal. Mas
esses valores morais não são, em última análise, consistentes com o governo
de nenhuma forma. Todos os governos baseiam-se praticamente em coerção
injusta e filosoficamente em uma reivindicação do Estado a um status moral
especial que o coloca acima de todas as pessoas e grupos não-governamentais.
O respeito igual pelas pessoas não é compatível com a doutrina da autoridade
política.5 Parece plausível, portanto, que, à medida que essas tendências nas
atitudes morais avancem, um dia a percepção geral da humanidade, seja de fato
que ninguém possui autoridade política.
Alguns podem rejeitar meu otimismo, citando a grande expansão dos poderes
dos governos centrais nos países ocidentais no último século. Projetando essa
tendência adiante, pode-se antecipar que em 100 anos, se não muito antes, o
mundo inteiro será totalmente socialista.
Um futuro socialista (estatal) mundial é possível, assim como um futuro anar-
quista mundial. Algumas tendências apontam para a consolidação do poder do
Estado, enquanto outras apontam na direção oposta. O colapso do comunismo no
final do século XX marcou um movimento enorme na direção da liberdade e fora
do controle do governo. E, como sugeri, o movimento em direção à democracia
liberal nos últimos 200 anos também marcou uma enorme vitória pela liberdade
individual. Se o mundo finalmente se estabelecerá no socialismo democrático,
no anarquismo ou em algum outro sistema social depende em parte do resultado
de debates filosóficos que atualmente estão em andamento em nossa sociedade.
3
Pinker 2011, 129–33.
4
Pinker 2011, 149–53. Compare o capítulo 9, nota 10.
5
Compare a Seção 4.3.6.
13. Da Democracia à Anarquia 309

13.2 Passos em direção à anarquia


Se a anarquia tivesse que ser alcançada através da repentina abolição de todo
governo, seria uma perspectiva remota. Uma anarquia tão rapidamente alcan-
çada provavelmente também teria resultados decepcionantes – se o governo
desaparecesse repentinamente, sem qualquer desenvolvimento prévio de institui-
ções alternativas, como agências de proteção e empresas de arbitragem privadas,
provavelmente haveria um caos. Talvez instituições alternativas surjam espon-
taneamente no devido tempo, mas também é provável que o caos dê origem
a demandas imediatas por um novo governo. Por essas razões, é desejável de-
senvolver um modelo gradualista da abolição do governo, no qual instituições
alternativas crescem ao mesmo tempo em que o governo diminui.

13.2.1 Terceirização de funções judiciais


Um primeiro passo em direção à anarquia é diminuir o papel dos tribunais go-
vernamentais terceirizando seu trabalho para árbitros privados. Este processo já
está em andamento. Muitos leitores possuem cartões de crédito cujos acordos
especificam arbitragem vinculativa no caso de uma disputa entre o titular do
cartão e a empresa do cartão de crédito – uma situação que em tempos passados
teria exigido litígios em um tribunal do governo. Nos últimos anos, as disputas
comerciais são cada vez mais resolvidas por meio de arbitragem privada. A
corporação VISA fornece arbitragem para todas as disputas entre seus bancos
membros.6 Nos Estados Unidos, a prática de incluir cláusulas de arbitragem
em contratos de trabalho se espalhou drasticamente desde a década de 1970, de
modo que hoje cerca de 15 a 25% dos empregadores usam arbitragem para a reso-
lução de disputas com funcionários.7 Os tribunais geralmente reconhecem essas
cláusulas e, assim, se recusam a anular as decisões dos árbitros (com algumas
exceções);8 árbitros privados formam, assim, um substituto eficaz dos tribunais
governamentais em uma ampla gama de casos. É fácil imaginar essa tendência
continuando até os árbitros privados analisarem quase todas as disputas entre as
partes de um contrato.
6
Caplan e Stringham 2008, p. 507–8.
7
Ventrell-Monsees 2007. Essa estimativa deve ser lida com cautela, pois os dados sobre o
assunto são escassos.
8
Batten 2011, 346. As exceções incluem casos de fraude ou corrupção por parte de árbitros
e alguns casos em que as decisões de arbitragem são contrárias a políticas públicas específicas.
Sobre a exceção de política pública, ver United Paperworkers v. Misco, Inc., 484 U.S. 29 (1987) e
Eastern Associated Coal Corp. v. Mine Workers, 531 U.S. 57 (2000).
13. Da Democracia à Anarquia 310

O governo poderia avançar ainda mais, declarando que seus tribunais não
analisariam mais certos tipos de casos e encaminhariam esses casos aos árbitros.9
Por exemplo, um grande fardo seria retirado do sistema judicial se todos os casos
de divórcio fossem tratados por meio de processos de arbitragem privada (mesmo
sem acordo prévio entre as partes nesse sentido). O passo mais controverso seria
terceirizar a resolução de casos penais. Esse passo seria mais plausível quando
começássemos a ver os casos penais, não como disputas entre o réu e o Estado,
mas como disputas entre o réu e a vítima do crime. Quando vistos dessa maneira,
não há razão para que esses casos também não possam ser tratados por meio de
arbitragem privada.
Por que algum governo concordaria em promover sua própria obsolescência
eventual terceirizando uma de suas funções mais centrais? Uma razão é que
os tribunais estão severamente sobrecarregados e gostariam de menos casos.
Algumas legislações e tribunais estaduais nos Estados Unidos já exigem que
certas disputas (principalmente as que envolvem reivindicações de seguro de
automóvel) sejam resolvidas por meio de arbitragem.10 Outra razão possível é a
opinião pública. Se o público ficar suficientemente desencantado com o sistema
judicial do governo, uma legislação democrática poderá aprovar leis que exijam
o tipo de mudanças descritas acima.

13.2.2 Terceirização de funções policiais


Juntamente com os deveres judiciais, o governo poderia terceirizar seus deveres
de policiamento. Este processo também já está em andamento. De acordo com
um relatório recente, agora existem 20 milhões de guardas de segurança privada
em todo o mundo – cerca do dobro do número de policiais do governo.11 Nos
Estados Unidos, os guardas de segurança privada somam cerca de 1 milhão,
em comparação com 700.000 policiais do governo. Em alguns casos, o próprio
governo contrata guardas de segurança privada para proteger espaços públicos,
incluindo o Liberty Bell na Filadélfia, a Estátua da Liberdade em Nova York e o
principal terminal de ônibus em Durham, Carolina do Norte.12 Se essa tendência
continuar, poderíamos um dia vermos uma situação em que todos os espaços
públicos são protegidos por guardas de segurança privada.
Em muitos países – Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros –
cidadãos particulares estão legalmente autorizados a fazer prisões. As condições
para um cidadão fazer uma prisão legal, no entanto, tendem a ser muito mais
restritas do que as condições sob as quais a polícia do governo pode fazer uma
9
Caplan (2010) defende esta proposta.
10
Batten 2011, 345.
11
Centro de Notícias da ONU 2011.
12
Goldstein 2007.
13. Da Democracia à Anarquia 311

prisão. A autorização legal para prisões por cidadãos pode ser limitada a certos
tipos de crimes, e o cidadão que está prendendo pode ser obrigado a testemunhar
pessoalmente o crime em andamento. Poder-se-ia imaginar uma liberalização de
tais leis, permitindo prisões por cidadãos por todos os crimes, incluindo casos em
que a culpa do suspeito é estabelecida por investigação após o fato. As agências
privadas de proteção poderiam assumir não apenas os deveres de patrulha, mas
também os deveres de investigação e prisão de suspeitos de crimes.
É preciso ter cuidado ao fazer essa transição. Se um governo estadual ou local
desistisse do monopólio do policiamento para conceder esse monopólio a uma
empresa privada, seria de esperar que a empresa privada apresentasse os mesmos
problemas que a polícia do governo, possivelmente ainda mais problemas. As
chaves para obter os benefícios do livre mercado são voluntariedade e concor-
rência. Assim, ao fazer a transição para a aplicação privada de leis, devemos
preservar várias agências privadas de proteção concorrentes, e pequenos grupos
de cidadãos devem escolher seus protetores. Por exemplo, bairros residenciais
ou condomínios de apartamentos devem ter a opção de qual agência de proteção
seria responsável pela segurança nas suas propriedades.
Novamente, há duas razões pelas quais os governos podem concordar com
essa mudança social. Primeiro, governos sobrecarregados que enfrentam pres-
sões orçamentárias podem receber com satisfação o alívio de suas funções de
policiamento. Segundo, um público esclarecido pode um dia reconhecer a neces-
sidade de competição e voluntariedade nos serviços tradicionalmente governa-
mentais e exigir reformas de seus representantes.

13.2.3 O fim dos exércitos permanentes


No início dos EUA, a ideia de manter exércitos permanentes em tempo de paz era
controversa, com vários dos fundadores americanos alertando contra os perigos
que esses exércitos representavam para a liberdade.13 Hoje, o debate foi resolvido
em favor de exércitos permanentes, com muito pouca dissensão.
Mas não é óbvio que resolvemos o problema correta ou permanentemente. As
gerações futuras podem se revelar cada vez mais amantes da paz, continuando a
tendência dos séculos e milênios passados. À medida que a guerra se torna cada
vez mais desprezada, talvez em um mundo dominado por democracias liberais,
a ideia de manter sempre exércitos vastos, equipados com armas destruidoras de
cidades, pode parecer cada vez mais tolo e primitivo.
Alguns governos nacionais já estão em posição de reduzir drasticamente suas
forças armadas sem medo de comprometer a segurança nacional. Os Estados
Unidos, por exemplo, poderiam cortar seu orçamento militar em 83% e ainda con-
13
Hamner n.d.
13. Da Democracia à Anarquia 312

tinuar sendo o maior gastador militar do mundo.14 Essa mudança provavelmente


exigiria uma conscientização pública muito maior dos fatos sobre o orçamento
militar, além de uma maior disposição para a paz por parte dos cidadãos ameri-
canos. Se as nações com os maiores exércitos do mundo começassem a diminuir
suas forças, outras nações, percebendo uma ameaça estrangeira reduzida, tam-
bém poderiam reduzir seus militares. Dois fatos importantes direcionariam esse
processo: primeiro, um exército é necessário apenas para combater os militares de
outras nações; se ninguém tem um exército, ninguém precisaria de um exército.15
Em segundo lugar, se exige mais poder militar para invadir um país do que para
defendê-lo. Portanto, se a cada ano todos os países mantivessem apenas a força
militar necessária para a defesa, o nível mundial de forças militares continuaria
caindo até que, em última análise, nenhuma nação tivesse ou precisasse de um
exército permanente.
Como uma nação militarista pode impedir isso, esse processo provavelmente
será lento e poderá ter que esperar o surgimento de uma cultura mundial de
antimilitarismo. Infelizmente, isso significa que a solução final para o problema
da guerra (eliminação das entidades que fazem guerra) pode ter que esperar até
que o problema seja quase eliminado por outros meios (a ascensão da democracia
e a crescente impopularidade da guerra).

13.2.4 O resto do caminho


As mudanças especuladas acima levariam o mundo ao que poderíamos cha-
mar de “estado subminimal”: um governo ou entidade semelhante ao governo
que desistiu do que costuma ser considerada algumas das funções centrais ou
mínimas do Estado – a saber, a polícia, tribunais e militares.16 O Estado assim
alcançado, através de mudanças graduais, estaria muito próximo da anarquia.
De fato, alguns podem considerar que a condição que imaginei já é de anarquia.
O que resta seria a abolição da legislatura. Atualmente, a legislação é con-
siderada necessária para fazer as leis que policiais e tribunais impõem. E uma
legislatura é realmente necessária para fazer a maioria dos tipos de leis existentes
nas nações modernas, incluindo leis moralistas, paternalistas, leis rent-seeking e
assim por diante.17 Se, no entanto, uma sociedade adotasse uma filosofia libertá-
ria da lei, que exige apenas leis que impeçam a vitimização de um indivíduo ou
grupo por outro, a lei consuetudinária feita pelo juiz deve ser suficiente. Uma
14
Stockholm International Peace Research Institute 2012; estatísticas baseadas nos níveis de gastos
de 2010.
15
Caplan (2009) enfatiza esse ponto.
16
Esse “Estado” seria ainda mais mínimo do que Nozick (1974, 26) denominado ‘estado
ultraminimal’.
17
Veja a Seção 7.1.3.
13. Da Democracia à Anarquia 313

vez que a sociedade substituísse os tribunais do governo por árbitros particulares


e a polícia do governo por guardas de segurança privada, assumindo que esses
mecanismos privados funcionassem razoavelmente bem, seria possível dissolver
o legislador.
Exatamente como isso aconteceria não está claro. O legislador votaria para
se dissolver? É difícil imaginar qualquer político apoiando essa mudança. Os
manifestantes públicos marchariam na capital e pressionariam os políticos ob-
soletos a renunciar? Possivelmente. Uma coisa que parece muito plausível, em
qualquer caso, é que, se a legislatura não teria mais o poder, através da polícia ou
dos exércitos, de coagir o resto da sociedade, e o resto da sociedade não desejaria
mais ter uma legislatura, então a legislatura não duraria muito.
Concentrei-me aqui na polícia, nos tribunais, nas forças armadas e na le-
gislatura, porque esses geralmente são vistos como os braços mais básicos e
indispensáveis do governo. Os governos modernos têm muitos outros ramos em
todos os aspectos da vida, e não posso discuti-los aqui. Mesmo com os aspectos
do governo que abordamos, minha argumentação tem sido especulativa e super-
ficial. Ninguém pode prever em detalhes o que o futuro reserva. Meu objetivo,
no entanto, tem sido mostrar que a eventual emergência da anarquia do atual
estado de coisas não é implausível e poderia prosseguir em etapas graduais.

13.3 A expansão geográfica da anarquia


É improvável que a anarquia domine o mundo inteiro simultaneamente. É im-
provável que até supere um único país grande de uma só vez. O mais provável
é que alguns países pequenos ou governos locais pequenos assumam a lide-
rança no início ou na expansão do tipo de experimentos em terceirização de
funções policiais e judiciais descritas acima. Quanto menor o governo, menor
a inércia que o governo experimentará e maior a probabilidade de considerar
propostas radicais, especialmente aquelas que envolvem a renúncia ao poder
do governo. Considere, por exemplo, que os líderes mundiais na abolição de
exércitos permanentes são todos pequenos países (Costa Rica, Liechtenstein e
assim por diante).18 O atual líder mundial na liberalização das leis sobre drogas
é outro país pequeno, Portugal.19 O líder mundial em liberalização econômica é
uma única cidade, Hong Kong. E, de acordo com um ranking com viés libertário,
o país mais livre do mundo é a pequena nação da Estônia.20
18
Veja a Seção 12.3.6.
19
Vastag (2009) discute os benefícios do programa de descriminalização das drogas em Portu-
gal.
20
State of World Liberty Project 2006. O ranking é baseado em um composto de quatro índices
de liberdade: (1) “Liberdade Econômica do Mundo 2005” do Instituto Fraser/Cato Institute,
13. Da Democracia à Anarquia 314

Quando alguém assume a liderança na redução de um tipo específico de poder


do governo, torna-se mais provável que outras cidades ou países sigam o exemplo.
Na era da informação global, esse tipo de disseminação de boas ideias políticas é
mais provável do que nunca, porque um grande número de pessoas pode ver
como as políticas em outros lugares estão funcionando. Embora o processo tenha
levado décadas, o forte contraste entre a vida nos regimes marxista-comunista e a
vida no Ocidente capitalista enfraqueceu o comunismo por dentro. À medida que
os padrões de vida nas nações capitalistas democráticas se aproximavam cada vez
mais daqueles dos países comunistas, ano após ano, ficava cada vez mais difícil
acreditar na ideologia comunista, até que quase ninguém acreditava mais nela.
Um processo semelhante pode ocorrer no futuro, entre sociedades de grandes
governos e sociedades praticando algo mais próximo do anarcocapitalismo.
Todo o processo pode levar séculos. Ainda hoje, cerca de metade das nações
do mundo continua a adotar formas de governo autocráticas, apesar da evidência
esmagadora da superioridade da democracia sobre o autoritarismo. A evidente
superioridade da democracia não é causalmente impotente – explica por que
a democracia se espalhou para metade do mundo, a partir de uma situação de
dois séculos e meio atrás em que nenhuma nação era democrática. Mas algumas
sociedades humanas são mais lentas para mudar do que outras, de modo que
muitas continuarão autoritárias por muito tempo mesmo que seja óbvio para
todos que a prática seja uma péssima ideia. Assim, se o anarcocapitalismo chegar
em cena, provavelmente será em um momento em que a maior parte do mundo
vive sob governo democrático, enquanto parte do mundo ainda vive sob governo
despótico. Nações limítrofes a países despóticos não abandonarão seus governos
até que os governos despóticos de seus vizinhos tenham finalmente caído.
Escrevi como se a marcha do mundo em direção à democracia continuasse,
com todos os governos autoritários destinados a cair. Isso não é inevitável. Talvez
o progresso da democratização pare. Talvez o mundo caia no totalitarismo. Mas
é pelo menos plausível pensar que não.

13.4 A importância das ideias


Eventos históricos são frequentemente explicados em termos dos interesses dos
indivíduos e facções concorrentes. Às vezes, emoções e preconceitos irracionais
são trazidos à cena. Mas devemos lembrar que os seres humanos também pos-
(2) Fundação do Patrimônio/Wall Street Journal “Índice de Liberdade Econômica de 2006”, (3)
“Liberdade no Mundo” de 2005 da Freedom House e (4) “Índice de Liberdade de Imprensa” do
Repórteres sem Fronteiras. Hong Kong ocupa o primeiro lugar na liberdade econômica, enquanto
a primeira posição para a liberdade pessoal é um empate entre as Bahamas, Luxemburgo, Malta
e Barbados.
13. Da Democracia à Anarquia 315

suem inteligência e habilidade básica para distinguir boas ideias de más. Essa é
a razão mais importante e fundamental do meu otimismo em relação ao futuro
do anarcocapitalismo. Deixe-me explicitar o raciocínio.

1. A teoria do anarcocapitalismo é verdadeira e bem justificada.

2. Se a teoria do anarcocapitalismo for verdadeira e bem justificada, ela será


aceita em geral.

3. Se a teoria do anarcocapitalismo for geralmente aceita, o anarcocapitalismo


será implementado.

4. Portanto, o anarcocapitalismo será implementado.

A primeira premissa é apoiada pelo restante deste livro.


A segunda premissa baseia-se na tendência geral de ideias corretas vencerem
a longo prazo. A qualquer momento da história, será tentador olhar para todas
as pessoas com más ideias e concluir que a humanidade é muito irracional e
ignorante para compreender as verdades importantes. Mas isso é miopia histórica.
A tendência mais saliente e importante que se destaca em qualquer estudo da
história intelectual dos últimos 2.000 anos deve certamente ser a acumulação
gradual de conhecimento e a mudança correspondente de ideias piores para ideias
melhores. É claro que o processo não é monotônico – há casos de estagnação e
regressão – mas a inegável diferença entre o conhecimento da humanidade hoje
e o conhecimento de 2.000 anos atrás é impressionante. No curto prazo, as forças
do preconceito podem superar as da racionalidade. Mas os preconceitos podem
ser desgastados com o tempo, enquanto a verdade básica de uma determinada
ideia permanece intacta ao longo dos séculos, exercendo qualquer força que ela
tenha sobre a mente humana.
Às vezes, diz-se que, diferentemente das ciências, campos como filosofia,
ética e política fizeram pouco ou nenhum progresso nos últimos 2.000 anos. En-
quanto as ciências naturais fizeram o progresso intelectual mais impressionante,
o dramático progresso que ocorreu em questões filosóficas, morais e políticas só
não pode ser compreendido através de uma lente moderna que filtra todas as
questões que não consideramos mais dignas de ser discutidas porque nós já as
resolvemos. Ao longo da maior parte da história humana, a escravidão foi ampla-
mente aceita como justa. O massacre em massa de estrangeiros com o objetivo
de capturar terras e recursos, forçar a conformidade com uma religião ou exigir
vingança por erros percebidos contra seus ancestrais era frequentemente visto
com aprovação, se não glorificado. Alexandre, o Grande, era assim chamado
por causa de sua habilidade em fazer o que quase todo mundo hoje julgaria sem
hesitar como guerras injustas e cruéis. Tortura judicial e execução por delitos
13. Da Democracia à Anarquia 316

menores foram amplamente aceitos. “Bruxas” foram queimadas na fogueira ou


afogadas. Despotismo era a forma padrão de governo, sob o qual as pessoas não
tinham o direito de participar do processo político. Mesmo quando a democracia
foi finalmente aceita em alguns países, metade da população adulta teve seus
direitos de participação política negados por serem considerados inferiores.
Quando as pessoas hoje dizem que há pouco acordo em ética e política,
estão ignorando todas as questões mencionadas no parágrafo anterior. Para nós,
nenhuma dessas questões vale a pena discutir, uma vez que a avaliação correta é
intelectualmente trivial. “Devemos torturar alguém para extrair uma confissão de
bruxaria e depois executá-la por ser uma bruxa?” Essa questão não merece mais
que uma risada. Mas, na prática, essas questões estão longe de serem triviais. Por
mais lento que possa estar chegando, o consenso atual sobre todas essas questões
representa um enorme avanço de ideias terríveis para ideias não tão terríveis.
Pode-se questionar até que ponto a tendência do progresso moral continuará.
A injustiça da escravidão, tortura, despotismo e coisas do gênero são óbvias,
enquanto a injustiça do governo, caso seja errado, é mais sutil. Talvez os seres
humanos tenham sido inteligentes o suficiente, ao longo de alguns milhares de
anos, para descobrir as questões morais ofuscantemente óbvias, mas não sejam
inteligentes o suficiente para descobrir questões mais sutis.
Possivelmente. Então, novamente, o que é óbvio pode ser relativo ao tempo de
alguém. Se um pensador da estatura de Aristóteles não pode ver que a escravidão
era injusta, devemos questionar quão objetivamente óbvia era essa questão. E,
por outro lado, as gerações futuras provavelmente encontrarão óbvias algumas
coisas que temos dificuldade em ver hoje. “Será que existe um grupo especial de
pessoas com o direito de usar ameaças de violência para forçar todo mundo a
obedecer comandos, mesmo quando seus comandos estão errados?” As gerações
futuras podem ver a resposta a isso como óbvia demais para merecer discussão.
Minha terceira premissa era que, se o anarcocapitalismo for geralmente aceito,
ele será adotado. Não obstante as especulações esboçadas oferecidas nas Seções
13.2 e 13.3, não sei como isso acontecerá. Não obstante, considero a premissa
altamente provável. A imagem de uma sociedade que continua a manter seu
governo, ano após ano, geração após geração, quando a maioria das pessoas
chega a um consenso de que é uma má ideia, parece quase absurda. As práticas
sociais humanas não estão tão desconectadas de nossas crenças. Se a sociedade
alcançar um consenso anarquista, alguém descobrirá como fazer os políticos
voltarem para casa.
Estamos muito longe desse estado de coisas hoje. Quase todo mundo acredita
que alguma forma de governo é praticamente necessária e eticamente legítima. O
primeiro passo no caminho para uma sociedade não governamental é, portanto,
mudar as atitudes em relação ao governo. Aqueles que foram persuadidos pelo
13. Da Democracia à Anarquia 317

anarquismo precisam defendê-lo para o resto de sua sociedade. Espero que este
livro faça parte de um discurso social que, no devido tempo, cumpra essa tarefa.
Em um capítulo anterior, caracterizei como excessivamente utópica a ideia de
remediar as falhas da democracia puramente através do ativismo cidadão (Seção
9.4.4). Argumentei que isso exigiria muito sacrifício por parte dos cidadãos. Por
que a proposta deste capítulo não é igualmente utópica? Por que é mais realista
esperar que os cidadãos convencidos da ilegitimidade do governo trabalhariam
para abolir seu governo do que esperar que os cidadãos que tenham conhecimento
das políticas falhas implementadas por um governo democrático trabalhem para
aperfeiçoar as políticas de seu governo?
A resposta é que adquirir consciência da ilegitimidade do governo em ge-
ral é muito, muito menos exigente cognitivamente do que adquirir consciência
suficiente dos erros políticos específicos de um governo em particular para per-
mitir que se faça planos racionais para corrigir a maioria desses erros. . Para
perceber que o governo é ilegítimo, basta aceitar os argumentos deste livro. Mas
identificar a maioria dos erros de política específicas do governo exigiria familia-
ridade detalhada com milhares de estatutos e regulamentos; dezenas de agências,
conselhos e comissões governamentais; e centenas de figuras políticas. Seria
necessário atualizar esse conhecimento continuamente ao longo da vida para
levar em consideração cada nova ação de cada ramo do governo. É muito mais
realista esperar que um consenso possa ser alcançado sobre um único princípio
filosófico, a rejeição da autoridade, do que esperar que poderia ser alcançado um
consenso sobre as falhas específicas da maioria das políticas governamentais.

13.5 Conclusão
13.5.1 O argumento da parte I
O estado moderno reivindica um tipo de autoridade que obriga todos os outros
agentes a obedecer aos comandos do Estado e autoriza o Estado a empregar
violência e ameaças de violência para fazer cumprir esses comandos, indepen-
dentemente dos comandos serem em si justos, razoáveis ou benéficos . O argu-
mento da primeira metade deste livro é que esse tipo de autoridade, “autoridade
política”, é uma ilusão. Nenhum Estado é legítimo e nenhum indivíduo tem
obrigações políticas. Isso leva à conclusão de que, no mínimo, a grande maioria
das atividades do governo é injusta. Os agentes do governo devem se recusar a
aplicar leis injustas, e os indivíduos devem se sentir livres para violar essas leis
sempre que puderem fazer com segurança.
O argumento contra a autoridade política prosseguiu examinando os argu-
mentos mais importantes para a existência da autoridade e considerando cada
13. Da Democracia à Anarquia 318

um deles inadequado. A teoria tradicional do contrato social falha devido a um


fato destacado: não há contrato real. A teoria mais comum dos entusiastas de
contratos sociais contemporâneos – que um acordo é voluntário e contratual pelo
fato de que alguém pode escapar de sua imposição por meio de uma mudança
para a Antártica – atrairia pouco mais do que uma risada em qualquer outro
contexto.
A alternativa de um contrato social puramente hipotético falha por duas ra-
zões: primeiro, não há razão para pensar que todas as pessoas razoáveis poderiam
concordar, mesmo em circunstâncias idealizadas, mesmo na teoria política mais
básica. Segundo, um contrato meramente hipotético é eticamente irrelevante.
Por mais justo, razoável e imparcial que seja um contrato, normalmente não se
tem o direito de forçar outros a aceitá-lo.
O processo democrático falha em fundamentar a autoridade, pois normal-
mente não se adquire o direito de coagir alguém apenas porque aqueles que
querem coagir a vítima são mais numerosos do que aqueles que querem se abster.
O apelo ao ideal da democracia deliberativa falha, porque nenhum Estado real se
assemelha remotamente a uma democracia deliberativa ideal e, em qualquer caso,
nenhum mero método de deliberação nega os direitos de um indivíduo. O apelo
às obrigações de promover a igualdade e respeitar o julgamento de outras pessoas
falha por vários motivos, incluindo o fato de que essas obrigações não são fortes
o suficiente para substituir os direitos dos indivíduos, de que não são o tipo de
obrigação que normalmente pode ser aplicada por coerção, e que a própria ideia
de legitimidade política é uma violação muito mais clara do valor da igualdade
do que o fracasso dos indivíduos em obedecer às leis democraticamente criadas.
O apelo às boas consequências do governo falha em fundamentar a autoridade,
porque a obediência de um indivíduo à lei não afeta a capacidade do Estado de
proporcionar esses benefícios, e a provisão de um grande benefício geral por um
agente não confere ao agente o direito de coagir outros a obedecer aos comandos
do agente, independentemente do conteúdo desses comandos. Da mesma forma,
o apelo à justiça não pode fundamentar uma obrigação de obedecer a comandos
prejudiciais, injustos ou inúteis, nem um direito ético de implantar coerção em
apoio a esses comandos.
Uma revisão das evidências psicológicas e históricas relativas às atitudes
humanas em relação à autoridade sugere duas lições importantes: primeiro, a
maioria dos indivíduos possui fortes vieses pró-autoridade que tornam suas in-
tuições sobre a autoridade não confiáveis. Segundo, as instituições de autoridade
são extremamente perigosas, e a erosão da confiança na autoridade é, portanto,
altamente benéfica socialmente.
13. Da Democracia à Anarquia 319

13.5.2 O argumento da parte II


Contrariando Hobbes, quando diversos agentes têm poder aproximadamente
igual, é prudencialmente irracional para qualquer agente iniciar um conflito.
Em contraste, a centralização do poder convida à exploração e ao abuso pelos
poderosos. O processo democrático inibe os piores abusos do governo, mas
permanece imperfeito devido à ampla ignorância e irracionalidade por parte
dos eleitores. As restrições constitucionais são frequentemente impotentes, uma
vez que não há senão o governo para fazer cumprir a Constituição. A separação
de poderes falha porque os ramos do governo podem melhor promover seus
interesses através de uma causa comum na expansão do poder do Estado, em
vez de proteger os direitos do povo.
A argumentação da Parte II deste livro é que existe uma alternativa superior,
na qual as funções governamentais são privatizadas. Os deveres policiais podem
ser assumidos por seguranças particulares, talvez contratadas por associações de
pequenos proprietários locais. Esse sistema difere da provisão governamental
de segurança, na medida em que se baseia em acordos contratuais genuínos
e incorpora uma concorrência significativa entre os provedores de segurança.
Essas diferenças levariam a maior qualidade, menor custo e menos potencial de
abuso do que os encontrados nos sistemas monopolísticos coercitivos.
A resolução de disputas, incluindo disputas sobre se um determinado indiví-
duo cometeu um crime e se um determinado tipo de conduta deve ser tolerado,
seria fornecida por árbitros privados.
Indivíduos e empresas em uma sociedade anárquica escolheriam esse método
para resolver disputas porque é muito menos oneroso do que a resolução por
meio da violência. O direito seria gerado principalmente pelos próprios árbitros,
da maneira como o direito consuetudinário se desenvolveu no mundo real. A
voluntariedade e a competitividade do sistema, novamente, levariam a maior
qualidade, custos mais baixos e menos abusos.
A eliminação das forças militares do governo não precisa deixar uma so-
ciedade insegura. Sob certas condições favoráveis, uma sociedade pode estar
protegida contra invasões, apesar da falta de dissuasão militar. Em caso de
invasão, a guerra de guerrilha ou a resistência não-violenta podem ser surpre-
endentemente eficazes na expulsão de ocupantes estrangeiros. De certa forma,
ter um governo aumenta a probabilidade de uma sociedade se envolver em uma
guerra – por exemplo, porque o governo pode provocar um conflito. Vários países
pequenos já aboliram com sucesso seus exércitos sem serem conquistados como
resultado. A manutenção de exércitos permanentes implica um risco não trivial
de que esses exércitos sejam usados injustamente, bem como o risco do governo
inventar novas armas de destruição em massa que ameaçam a espécie humana.
13. Da Democracia à Anarquia 320

13.5.3 O argumento deste capítulo


É razoável acreditar que a anarquia possa vir ao mundo no devido tempo. O
modelo de transição mais plausível é aquele em que as sociedades democráticas
avançam gradualmente em direção ao anarcocapitalismo através da terceirização
progressiva de funções governamentais para empresas concorrentes. Nenhum
obstáculo, exceto a opinião pública e a inércia, impedem que o governo repasse
o policiamento, a resolução de disputas ou mesmo a condução de julgamentos
criminais a agentes privados. As forças armadas governamentais poderiam ser
retiradas e, finalmente, eliminadas por meio de um processo espiral prolongado,
no qual cada país corta repetidamente suas forças militares para apenas aquelas
necessárias para a defesa. O processo de eliminação do governo provavelmente
será liderado por pequenos países ou cidades democráticas. Espera-se que países
maiores sigam o exemplo somente após o sucesso de experimentos em pequena
escala ser evidente para a maioria dos observadores.
O determinante mais importante de se esse processo ocorrerá é o intelec-
tual: se o anarcocapitalismo for uma boa ideia, provavelmente será finalmente
reconhecido como tal. Uma vez que seja geralmente reconhecido como desejá-
vel, provavelmente será implementado. Abolir o Estado é mais realista do que
reformá-lo, porque a abolição exige que as pessoas aceitem apenas uma única
ideia filosófica – ceticismo sobre autoridade – considerando que a reforma exige
que as pessoas se familiarizem continuamente com as inúmeras falhas de políticas
específicas.
Este livro é um esforço para ajudar a impulsionar a sociedade em direção
ao necessário ceticismo da autoridade. Pode parecer que minha posição seja
extrema – como é claro, em relação ao atual espectro de opiniões. Mas as atitudes
atuais também são extremas, em relação ao espectro de opiniões dos séculos
anteriores. O cidadão comum de uma democracia moderna, se transportado no
tempo para 500 anos atrás, seria o liberal mais radical e de olhos arregalados do
planeta – endossando uma igualdade de sonhos nunca imaginada para ambos os
sexos e todas as raças; livre expressão para os mais hediondos heréticos, infiéis
e ateus; uma abolição completa de inúmeras formas padrão de punição; e uma
reestruturação radical de todos os governos existentes. Pelos padrões atuais, todo
governo de 500 anos atrás era ilegítimo.
Ainda não chegamos ao fim da história (contrariando Fukuyama). A evolu-
ção dos valores pode prosseguir na direção em que se moveu nos últimos dois
milênios. Isso poderia levar a uma aversão ainda maior ao recurso à força física
nas interações humanas, a um respeito mais amplo à dignidade humana e a um
reconhecimento mais consistente da igualdade moral das pessoas. Uma vez que
levamos esses valores suficientemente a sério, não podemos deixar de ser céticos
em relação à autoridade.
13. Da Democracia à Anarquia 321

Meu método de empurrar os leitores nesse caminho tem sido apelar a valores
implícitos que acho que você compartilha. Não confio em uma argumentação
abstrata e teórica desses valores; Confio nas reações intuitivas que temos a cená-
rios relativamente específicos. Também não confio em intuições controvertidas;
Confio em intuições claras e convencionais. Por exemplo, o julgamento de que
um empregador que elabora um contrato de trabalho justo e razoável não teria
o direito de forçar os funcionários em potencial a aceitá-lo (Seção 3.3.3), não
é particularmente duvidoso ou controverso. Não é algo que apenas ideólogos
libertários concordariam.
Considere agora o argumento antiguerra oferecido pelo filósofo chinês Mozi
no século V a.C:

Matar um homem é ser culpado de um crime capital, matar dez ho-


mens é aumentar em dez vezes a culpa, matar cem homens é aumentá-
la em cem vezes. Isso todos os governantes da terra reconhecem e, no
entanto, quando se trata do maior crime – travar guerra contra outro
Estado -, eles o elogiam! [. . . ] Se um homem, ao ver um pouco de
preto, disser que é preto, mas ao ver muito preto, dizer que é branco,
fica claro que esse homem não consegue distinguir preto e branco.
[ . . . ] Assim aqueles que reconhecem um crime pequeno como tal,
mas não reconhecem a maldade do maior crime de todos, [. . . ] não
conseguem distinguir certo e errado.21

A estratégia argumentativa de Mozi é simples e convincente: ele parte de


uma proibição ética incontroversa, aplica o mesmo princípio a um tipo específico
de política do governo e considera que a política é moralmente inaceitável. É no
espírito de Mozi que questiono a instituição do governo como um todo. Se um
indivíduo viaja para outro país para matar pessoas, extrai coercivamente dinheiro
de membros de sua própria sociedade, força outros a trabalharem para ele ou
impõe exigências prejudiciais, injustas ou inúteis a outros através de ameaças
de sequestro e prisão, os governos do mundo todo condenariam esse indivíduo.
No entanto, esses mesmos governos não evitam realizar as mesmas atividades
em escala nacional. Se achamos o argumento de Mozi convincente, parece que
deveríamos achar similar o argumento de que a grande maioria das ações do
governo é eticamente inaceitável.

21
Da epígrafe para Kurlansky, 2006.
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