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Investidor-anjo – limitações de responsabilidades
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Angel investor – limitations of liability
EX
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Diomar Taveira Vilela
Mestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São
CL
Paulo (PUC-SP); com especialização Executive LL.M. em Direito Empresarial,
pelo Ceu Law School. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro
de Direito Tributário (IBDT); com Pós-MBA em Análise e Gestão Tributária pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e MBA em Contabilidade e
Controladoria pela Trevisan Escola de Negócios. Advogado.
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diomarvilela@carvalhovilela.com.br
IV

Área do Direito: Financeiro e Econômico

Resumo: O presente artigo tem por objetivo anali- Abstract: This article aims to analyze the figure of
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sar a figura do investidor-anjo, seu conceito e ca- the angel investor, its concept and characteristics,
racterísticas, direitos e proteção patrimonial, sob rights and property protection, from the perspec-
a ótica do princípio da valorização da segurança tive of the principle of valuing legal certainty and
SE

jurídica e da liberdade contratual como premissas contractual freedom as premises for the promo-
para a promoção do investimento e do aumento tion of investment and the increase in the supply
da oferta de capital direcionado a iniciativas ino- of capital directed to innovative initiatives aimed
vadoras visando ao desenvolvimento econômico at economic and social development, through a
e social, passando por uma breve análise da norma brief analysis of the legal norm, as well as the issue
NA

jurídica, assim como questão da desconsideração of disregarding legal personality.


da personalidade jurídica.
Palavras-chave: Investidor – Anjo – Limita- Keywords: Angel – Investor – Limitations – Lia-
ção – Responsabilidade. bility.
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Sumário: 1. Introdução. 2. Linguagem, norma jurídica, fatos jurídicos e provas. 3. Origem do


investidor-anjo. 4. Espécies de investidores. 5. Conceito de investidor anjo. 6. Característi-
cas específicas. 7. Direitos do investidor-anjo. 8. Instrumento de investimento. 9. Proteção
patrimonial do investidor-anjo. 10. Da desconsideração da personalidade jurídica e o inves-
tidor-anjo. 11. Conclusão. 12. Referências bibliográficas.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
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1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar a figura do investidor-anjo, seu
conceito e características, direitos e proteção patrimonial, sob a ótica do princí-
O
pio da valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual como premis-
sas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital
direcionado a iniciativas inovadoras visando o desenvolvimento econômico e
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social.
Investidor-anjo é a pessoa física, pessoa jurídica ou fundos de investimento,
que poderá realizar aporte de capital devidamente formalizado por contrato fir-
mado com organizações empresariais ou societárias, constituídas na forma de
CL
empresário individual, empresa individual de responsabilidade limitada, socie-
dades empresárias, sociedades cooperativas e as sociedades simples cuja atuação
caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou
serviços ofertados, nos termos do artigo 61-A, § 2º, da LC 123/06 e artigo 2º, I, da
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LC 182/21.
O surgimento das startups insere-se dentro da teoria dos contratos, que parte
do pressuposto segundo o qual no interior da vontade há uma ausência absoluta
de coação (princípio da autonomia da vontade) e, ato contínuo, promove a cren-
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ça de que todos são absolutamente livres e iguais para contratar. Além disso, o
contrato é o pressuposto ou condição para o reconhecimento de qualquer pro-
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cesso de emancipação ou desenvolvimento.


Nas palavras de Olney Queiroz Assis e Diomar Taviera Vilela1, “a liberdade
como autonomia da vontade, na perspectiva do relacionamento entre seres livres,
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permite perceber, principalmente no contrato de participação, que o exercício da


autonomia da vontade de um é sempre limitado pelo exercício da autonomia da
vontade do outro. Isso significa que as relações contratuais fundadas na autono-
mia da vontade envolvem correlações de força, tendo em vista que uma das partes
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pode impor a sua vontade (poder) e, com isso, limitar a autonomia (querer) da
outra. Assim, visto que sempre ocorre uma interferência limitadora da liberdade
de um pela liberdade do outro, o princípio da autonomia da vontade, nesse aspec-
to, é uma mera ilusão e, ato contínuo, a liberdade que equaliza as partes e estabe-
DO

lece o princípio da igualdade também não passa de uma aparência,


principalmente no âmbito empresarial. São apenas formas de domínio mais sutis

1. ASSIS, Olney Queiroz, Vilela, Diomar Taveira, (et. Al.), Linguagem e Direito: Identifica-
ção, Interpretação, Aplicação, São Paulo, RG Editores, 201, p. 16.

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do que o puro exercício da força física. O vínculo entre as partes não se submete
à vontade livre”, pois a necessidade de uma das partes é imperativa, enquanto a
outra, o investidor, procura uma forma de rendimento maior.
“Os padrões que regem as relações sociais possibilitam perceber que na socie-
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dade moderna, os contratos se submetem não à ideia de livre-arbítrio, mas ao
status enquanto posição econômica ocupada pelo indivíduo no interior da socie-
dade. Uma instituição financeira, por exemplo, submetida ao cálculo econômico
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empresarial, não financia a compra de imóveis ou de máquinas para qualquer
um, portanto, nem todos são convocados para contratar, mas apenas aqueles que
possuem, pelo menos potencialmente, poder econômico (status) que lhes per-
mitem assumir determinadas obrigações.”2 O investidor-anjo, por sua vez, inves-
CL
te recursos na startup, considerando o cálculo econômico e sua expertise,
considerando os riscos da inovação tecnológica, pois a empresa investida neces-
sita do capital, mas apenas aquelas que possuem potencial para o seu desenvol-
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vimento acabarão recebendo o investimento.
“O homem não é livre para deliberar sobre a natureza, a necessidade ou o im-
possível e não faz sentido deliberar contra si mesmo ou contra o seu próprio bem.
É certo que as relações contratuais pressupõem algum movimento volitivo, mas
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isso não pode implicar o reconhecimento de uma vontade totalmente livre ou


incondicionada. Além das condicionantes já especificadas, é preciso considerar
a autonomia da vontade em face da heteronomia estatal, ou seja, o Estado pode
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até não constranger a liberdade subjetiva (vontade livre), mas pode constranger
o exercício dessa liberdade por intermédio da legislação. Existe, portanto, uma
tensão entre heteronomia (vontade estatal) e autonomia (vontade individual).”3
SE

Dito de outra maneira, “conforme aumenta o conjunto normativo de um or-


denamento jurídico estatal, diminui a autonomia da vontade dos cidadãos. Essa
constatação indica que a autonomia da vontade sofre restrições e, com ela, o as-
pecto da moralidade que se liga à subjetividade. O Estado (sujeito universal) pre-
NA

valece sobre o cidadão (sujeito singular); disso resulta, no domínio da legislação,


a primazia da subjetividade de grau superior do Estado sobre a liberdade subjeti-
va de cada cidadão. O Estado estabelece, mediante leis, padrões objetivos que
devem ser assumidos pela vontade individual como o seu padrão.”4 Tal como
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2. Ibedim, p. 16/17.
3. Ibidem, p. 17.
4. Ibidem, p. 17.

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ocorreu com as startups, com a regulamentação pela Lei Complementar 123/06,
Lei Complementar 155/16 e Lei Complementar 182/21.
“Por esses motivos, nas elaborações mais recentes da tecnologia jurídica, o
princípio da autonomia da vontade é mitigado, mediante submissão à ordem posi-
O
tiva estatal porque depende desta o reconhecimento da validade e eficácia dos
contratos. Disso resulta que a vontade só é autônoma quando a ordem positiva
não proíbe ou não obriga e, somente nesse sentido, é possível falar que o contra-
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to estabelece leis entre as partes (pacta sunt servanda).5” Por outro lado, quando
o Estado regula a relação jurídica, como no caso das startups e do investidor-anjo,
isso deveria dar maior segurança jurídica aos contratos firmados entre as partes,
pois os princípios e critérios já estão estabelecidos, ou seja, “a liberdade subjetiva
CL
vai cedendo espaço à heteronomia estatal (ordenamento jurídico), restando ape-
nas a liberdade dita negativa que se fixa no princípio segundo o qual “ninguém é
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, ou, em
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outras palavras, “o que não está proibido está permitido”. Isso também represen-
ta a decadência da autonomia da vontade, na medida que a vontade soberana
(direito positivo) passa a prevalecer sobre as vontades individuais.”6
A segurança, como diz Tércio Sampaio Ferraz Junior7, “depende de normas
IV

capazes de garantir o chamado câmbio das expectativas. Ora, como diz Radbruch,
a segurança jurídica exige positividade do direito: se não se pode fixar o que é
justo, ao menos que se determine o que é o jurídico. Segurança significa a clara
O

determinação e proteção do direito contra o não-direito, para todos. Na determi-


nação do jurídico e, pois, na obtenção da segurança, a certeza é um elemento
primordial. Por certeza entende-se a determinação permanente dos efeitos que o
SE

ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cida-


dão saiba ou possa saber de antemão a consequência das suas próprias ações”.
A positivação do direito acentuou a preocupação dos juristas com três proble-
mas específicos: a identificação do Direito, a interpretação do Direito identifica-
NA

do e a aplicação do Direito identificado e interpretado, o que tentaremos


demonstrar neste artigo.
DO

5. Ibidem, p. 18.
6. Ibidem, p. 17.
7. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Segurança jurídica e normas gerais tributárias. Re-
vista de Direito Tributário, Editora Revista dos Tribunais, Ano 5, de julho/dezembro de
1981, n. 17-18, p. 51.

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2. Linguagem, norma jurídica, fatos jurídicos e provas
O Direito é linguagem e linguagem hoje não é mais um instrumento, ela é a
própria realidade, pois os dados brutos do “mundo da vida” só são apreendidos
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pela nossa consciência quando atribuímos significado a esses dados, num pro-
cesso de construção de sentido, por meio de interpretação. Aurora Tomazini de
Carvalho8, diz que as coisas não precedem à linguagem, pois só se tornam reais
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para o homem depois de terem sido, por ele, interpretadas. Algo só tem significa-
do, isto é, só se torna inteligível, a partir do momento em que lhe é atribuído um
nome.
Isso é de fundamental importância para o Direito diante do problema dos
CL
universais e dos particulares, na medida que os universais são nomes, portanto,
são conceitos. O Direito está repleto deles, como empresa, empresário, estabele-
cimento, que são conceitos e integram o ordenamento jurídico como normas
jurídicas em sentido amplo, aqui consideradas conteúdos significativos das fra-
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ses do direito posto, ou seja, os enunciados prescritivos.
A norma jurídica em sentido estrito, pode ser compreendida como composi-
ção articulada das significações construídas a partir dos enunciados prescritivos,
na forma hipotético-condicional (H→C), de tal sorte que produza mensagens com
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sentido deôntico-jurídico completo, que constitui a estrutura mínima necessá-


ria, pois esta é a fórmula lógica das ordens, portanto, da linguagem prescritiva, o
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mínimo necessário para que a comunicação jurídica seja bem-sucedida, ou seja,


“se ocorrer o fato x, então deve ser a relação intersubjetiva y”, de tal forma que na
hipótese ou pressuposto, tem como função descrever a situação de possível ocor-
SE

rência, enquanto que o consequente ou tese, tem a função de prescrever uma


relação entre sujeitos modalizados em obrigatório (O), permitido (P) e proibido
(V), ambos ligados por um vínculo implicacional → deôntico D, representativo do
ato de autoridade que a constitui.
NA

As normas jurídicas, também são expressas em palavras (símbolos lin-


guísticos), cujo sentido deve ser estabelecido pela doutrina. Todavia, o significado
não é algo que se imprime à palavra e que fica com ela em qualquer emprego. Os
símbolos linguísticos nada significam isoladamente, o que lhes confere significa-
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do é o seu uso e uma língua admite usos diversos para os símbolos.

8. CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito, o construtivismo lógi-
co-semântico. São Paulo: Noeses, 2009. p. 16.

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Paulo de Barros Carvalho9, adota a posição de Edmund Husserl, de signo como
uma relação triádica, um suporte físico, significação e significado. Disso resulta que
no estudo da significação, alguns teóricos diferenciam significado e sentido. O signifi-
cado pode ser captado pela análise da palavra de forma isolada e geralmente com a
O
ajuda de um dicionário (denotação), já o sentido (significação) só pode ser captado
numa perspectiva mais ampla que envolve a análise da frase ou enunciado (conota-
ção). Assim, por exemplo, na frase “Amanhã vai ser outro dia”, a palavra amanhã
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pode ser entendida de duas maneiras: a) primeiro: do ponto de vista cronológico, o
significado da palavra amanhã indica que se trata de um dia diferente de hoje ou de
ontem, portanto, o complemento “vai ser outro dia” até seria desnecessário para evi-
tar redundância ou tautologia; b) segundo: numa perspectiva mais ampla, a palavra
CL
amanhã indica um alento, a crença de que será um dia melhor do que o dia de hoje e o
de ontem, portanto, este significado só é captável a partir da análise da frase ou do
texto completo, e não apenas da palavra amanhã de forma isolada.
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Percebe-se, portanto, que o significado de uma palavra depende do uso, dos
discursos ou falas possíveis. No discurso normativo, a palavra “empresário”, por
exemplo, é usada no artigo 966, Código Civil, com o significado de “quem exerce
profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circula-
ção de bens ou de serviços”, mas no dia a dia, sócios são chamados de empresários,
IV

porém, aqueles possuem regulamentação própria, como prescrevem os artigos


1001 a 1009, do Código Civil, entre outros. O senso comum tende a agrupá-los
O

com o mesmo sentido, mas tecnicamente são figuras distintas e possuem direitos,
obrigações e responsabilidades distintas. O mesmo pode ocorrer com a figura do
investidor-anjo, na medida em que realiza aportes de capital na sociedade empre-
SE

sária, mas não é sócio e nem empresário, possui disciplina própria, mas não pode
ser responsabilizado pelas dívidas da empresa, nos termos do artigo 61-A, §§ 2º e 4º,
da LC 123/06, mas empresa aqui, não tem o sentido de atividade, mas sim de em-
presário individual, empresa individual de responsabilidade limitada, sociedades
NA

empresárias, sociedades cooperativas e sociedades simples, como mencionado no


artigo 4º, § 1º, da LC 182/21. Uma mesma palavra adquire uma multiplicidade de
uso, portanto, muitas coisas diferentes podem ser ditas com uma mesma palavra.
A construção da norma jurídica em sentido estrito e seu consequente desfe-
DO

cho na aplicação do caso individual e concreto, pressupõe a existência do fato


jurídico e sua respectiva prova, pois a decisão não surge instantaneamente da

9. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2. ed. São Paulo:
Noeses, 2008, p. 34.

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subsunção, depende do reconhecimento do nexo causal entre o fato jurídico e o
direito. Por isso, é importante destacar no que consiste o fato jurídico, apontando
sua distinção com o evento e o fato.
Fabiana Del Padre Tomé10, chama de Evento, o acontecimento do mundo fe-
O
nomênico, despido de qualquer relato linguístico, e Fato, o enunciado denotati-
vo de uma situação, delimitada no tempo e no espaço. Registra Tercio Sampaio
Ferraz Jr., que “Fato não é, pois algo concreto, sensível, mas um elemento lin-
EX
guístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade.” O fato re-
fere-se sempre ao passado, a algo já sucedido que se esvaiu no tempo e no espaço.
Daí, termos acesso apenas ao fato, jamais ao evento. O evento é pressuposto do
fato, ou seja, constitui-se o fato “em nome de” relatar um evento supostamente
CL
ocorrido. Sendo que Fato Jurídico, na lição de Paulo de Barros Carvalho11, é aque-
le, e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem competente, isto é,
segundo as qualificações estipuladas pelas normas do direito positivo. E conti-
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nua, ou a mutação ocorrida na vida real é contada, fielmente, de acordo com os
meios de prova admitidos pelo sistema positivo, consubstanciando categoria dos
fatos jurídicos (lícitos ou ilícitos, pouco importa) e da eficácia que deles se irra-
dia; ou nada terá acontecido de relevante para o direito, em termos de propagação
de efeitos disciplinadores de condutas. Transmitindo de maneira mais direta, isto
IV

é, linguagem as provas, sem o que será mero evento, a despeito do interesse que
possa suscitar no contexto da instável e turbulenta vida social. E, complementa,
O

fato jurídico é a parte do suporte fático que o legislador, mediante a expedição de


juízos valorativos, recortou do universo social para introduzir no mundo jurídi-
co. Os fatos jurídicos são aqueles enunciados que puderem sustentar-se em face
SE

de provas em direito admitidas.


Dito isso, então, somente os casos em que a pessoa física, pessoa jurídica ou
fundos de investimento, realizar aporte de capital em sociedades enquadradas co-
mo microempresa ou empresa de pequeno porte, com as finalidades de fomento à
NA

inovação e investimentos produtivos, e, não for sócio, nem tiver qualquer direito à
gerência ou a voto na administração da empresa, então, não responderá por qual-
quer obrigação da empresa e será remunerado por seus aportes, e amparados pela
devida documentação que comprove essa situação, são relevantes para o Direito.
DO

10. TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito Tributário: de acordo com o Código de
Processo Civil de 2015, 4. ed. São Paulo: Noeses, 2016. p. 48.
11. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método, 2. ed. São Paulo:
Noeses, 2008, p. 34.

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Os fatos jurídicos que caracterizam a situação de investidor-anjo, são aqueles
descritos no artigo 61-A, §§ 2º e 4º, da LC 123/06 e artigo 2º, I, da LC 182/2112 e as
provas e suas condições (tempo, prazos, requisitos, formas etc.), são estabeleci-
das pelo próprio microssistema das startups, sendo que no caso de eventual des-
O
cumprimento ou apuração de responsabilidades, serão submetidos ao crivo do
judiciário, a fim de confirmar a configuração do investidor-anjo. Por isso, no tó-
pico seguinte, suscintamente, serão analisados o conceito e os requisitos do in-
EX
vestidor-anjos, com vistas à segurança jurídica.

3. Origem do investidor-anjo
CL
Conforme Lucas Caminha e Gustavo Flaustino Coelho13, alguns estudos
apontam a existência da figura do investidor-anjo em tempos mais remotos, tais
como:
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12. Art. 61-A. Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a


sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos
IV
desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital
social da empresa.
§ 1º As finalidades de fomento a inovação e investimentos produtivos deverão constar
O

do contrato de participação, com vigência não superior a sete anos.


§ 2º O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física, por pessoa jurídica ou por
fundos de investimento, conforme regulamento da Comissão de Valores Mobiliários,
que serão denominados investidores-anjos.
SE

§ 4º O investidor-anjo:
I – não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou a voto na admi-
nistração da empresa, resguardada a possibilidade de participação nas deliberações em
caráter estritamente consultivo, conforme pactuação contratual;
NA

II – não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial,


não se aplicando a ele o art. 50 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;
III – será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo
prazo máximo de 7 (sete) anos;
DO

IV – poderá exigir dos administradores as contas justificadas de sua administração e,


anualmente, o inventário, o balanço patrimonial e o balanço de resultado econômico; e
V – poderá examinar, a qualquer momento, os livros, os documentos e o estado do caixa
e da carteira da sociedade, exceto se houver pactuação contratual que determine época
própria para isso.
13. CAMINHA, Lucas; COELHO, Gustavo Flaustino. Captação de recursos por startups. São
Paulo: Almedina, 2020. p. 118.

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Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
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a) no século XIII, investidores financiaram as jornadas de Marco Polo em
troca de 75% dos lucros;
b) no século XV, como a Rainha Isabel I de Castela por financiar a expedição
de Cristóvão Colombo e participou do risco;
O
c) nos séculos XIX e XX, Henry Ford e Alexander Bell (fundador da American
Telephone & Telegragh Company – AT&T), também se financiaram via investi-
mento anjo. No caso da Ford, cinco anjos aplicaram um valor inicial de US$ 41,5
EX
mil dólares e 15 anos depois, aquela participação valia US$ 145 milhões; e
d) no século XX, nos Estados Unidos, época em que eles investiam grandes
volumes de capital em produções teatrais da Broadway. Acredita-se que a moti-
CL
vação desses anjos seria o apelo social de serem chamados de grandes mecenas
das artes ou pelo fato de terem mais dinheiro do que se sabia como gastar na
época.
US
4. Espécies de investidores
Existem duas categorias de investidores regulares, de acordo com Lawrence J.
Gitman14:
IV

a) Investidores individuais: são aqueles que compram quantidades relativa-


mente pequenas de ações para auferir rendimentos sobre fundos ociosos, consti-
tuir uma fonte de renda para a aposentadoria ou garantir segurança financeira.
O

b) Investidores institucionais: são profissionais pagos para administrar o di-


nheiro de terceiros. Eles mantêm e negociam grandes quantidades de títulos e
nome de pessoas físicas, empresas e órgão governamentais. Entre os investidores
SE

institucionais estão os bancos, as companhias de seguros, os fundos de investi-


mentos e os planos de pensão, que investem grandes somas para obter rendimen-
tos atraentes para seus clientes ou participantes.
NA

A Comissão de Valores Mobiliários divide os investidores em três grupos, de


acordo com os artigos 9º-A e 9º-B, da Instrução 539/13, da CVM, conforme altera-
ção da Instrução 554/14:
• investidores profissionais:
DO

• Instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar


pelo BCB.

14. GITMAN, Lawrence J. Princípios de administração financeira. Trad. Allan Vidigal Has-
tings. 12. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010. p. 14 e 292.

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• Companhias seguradoras e sociedades de capitalização.
• Entidades abertas e fechadas de previdência complementar.
• Fundos de investimento.
O
• Clubes de investimento, desde que tenham a carteira gerida por admi-
nistrador de carteira de valores mobiliários autorizado pela CVM.
• Agentes autônomos de investimento, administradores de carteira, ana-
EX
listas e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM, em
relação a seus recursos próprios.
• Investidores não residentes.
• Pessoas naturais ou jurídicas que detenham investimentos financeiros
CL
em valor superior a R$ 10 milhões.
• Investidores qualificados:
• Investidores profissionais.
US
• Pessoas naturais que tenham sido aprovadas em exames de qualificação
técnica ou possuam certificações aprovadas pela CVM como requisitos
para o registro de agentes autônomos de investimento, administradores
de carteira, analistas e consultores de valores mobiliários, em relação a
IV

seus recursos próprios.


• Clubes de investimento, desde que tenham a carteira gerida por um ou
O

mais cotistas, que sejam investidores qualificados.


• Pessoas naturais ou jurídicas que detenham investimentos financeiros
em valor superior a R$ 1 milhão.
SE

• e os demais investidores, chamados de investidores de varejo.


Quando consideramos que o aporte de capital poderá ser realizado por pessoa
física, por pessoa jurídica ou por fundos de investimento, conforme regulamento
NA

da Comissão de Valores Mobiliários, nos termos do artigo 61-A, § 2º, da LC


123/06, com a redação dada pela LC 182/21, então, qualquer categoria de inves-
tidor (profissionais, qualificados ou de varejo), pode se revestir da forma de in-
vestidor-anjo.
DO

5. Conceito de investidor anjo


Anjos são pessoas físicas de patrimônio considerável que financiam startups
de alto potencial via participação societária ou de dívida conversível em partici-
pação, atuando nessas startups como mentores da equipe fundadora para

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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Startups e Fintechs 185
US
aumentar a chance de sucesso do investimento, conforme Lucas Caminha e Gus-
tavo Flaustino Coelho15.
Investidor-Anjo é a denominação utilizada para definir a pessoa natural que
realiza investimento em startup, diretamente ou por meio de veículo de investi-
O
mento. Esses indivíduos têm, em geral, alguma experiência em gestão de negó-
cios ou no segmento específico de atuação da sociedade a ser investida. São
indivíduos detentores de patrimônio relevante, com capacidade significativa de
EX
investimento, e que empregam parcela desse patrimônio em empresas que apre-
sentam elevado grau de risco e elevado potencial de retorno, conforme Emanoel
Lima da Silva Filho16.
CL
Geralmente a doutrina denomina o investidor-anjo, como pessoas físicas de-
tentoras de patrimônio elevado, que investem recursos próprios em negócios
nascentes sem possuir qualquer prévia relação pessoal, social ou familiar com o
fundador. Essas definições baseadas na pessoa física foram compiladas no estudo
US
sobre o papel dos investidores anjos no financiamento de startups, realizado pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, publicado em
2011, como se extrai de Érik Frederico Oioli17.
Atualmente esse leque é mais amplo, admitindo pessoas físicas, jurídicas e
IV

fundos de investimentos, como se extrai da redação do artigo 61-A, § 2º, da LC


123/06, com a redação dada pela LC 182/21, admitindo qualquer categoria de
investidor (profissionais, qualificados ou de varejo).
O

Apesar da denominação utilizada, o investidor-anjo não é um filantropo ou


alguém com fins puramente sociais e, sim, uma espécie de investidor e, por isso,
SE

a figura do investidor-anjo tem como objetivo investir em negócios com alto


potencial de retorno e, por consequência, tendem a gerar emprego e renda, além
do desenvolvimento local, mas não exatamente como um investidor do mercado
financeiro, da bolsa de valores, em ações, ele aplica seus próprios recursos na
NA

sociedade investida.
O conteúdo semântico do termo “anjo”, está ligado à contribuição pessoal
para o negócio, na forma de aconselhamento, conhecimentos técnicos e acesso à
DO

15. CAMINHA, Lucas; COELHO, Gustavo Flaustino. Captação de Recursos por Startups.
São Paulo: Almedina, 2020. p. 118.
16. SILVA FILHO, Emanoel Lima. Contratos de investimento em startups: os riscos do inves-
tidor-anjo. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 38.
17. OIOLI, Erik Frederico. Manual de direito das startups. 2. ed. São Paulo: Thomson Reu-
ters, 2020, p. 111.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
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US
rede de contatos do investidor, enquanto os demais investidores limitam-se aos
investimentos financeiros.
Pela redação do artigo 61-A, § 2º, da LC 123/06 e artigo 2º, I, da LC 182/21,
podemos definir, investidor-anjo como, toda pessoa física, pessoa jurídica ou
O
fundos de investimento, que poderá realizar aporte de capital, em sociedades
enquadradas como microempresa (receita bruta – R$ 360 mil) ou empresa de pe-
queno porte (receita bruta – R$ 4,8 milhões), com as finalidades de fomento à
EX
inovação e investimentos produtivos e que não integrará o capital social da em-
presa e não é considerado sócio nem tem qualquer direito à gerência ou a voto na
administração da empresa, não responde por qualquer obrigação da empresa e é
remunerado por seus aportes.
CL
6. Características específicas
Se analisarmos o artigo 61-A, § 4º, da LC 155/16, podemos identificar algu-
US
mas características específicas para ser considerado investidor-anjo, isto porque
do ponto de vista lógico, é proibido:
a) ser sócio (não será considerado sócio);
IV

b) ser gerente (nem terá qualquer direito a gerência);


c) votar (ou a voto na administração da empresa).
O

Como dito anteriormente, considerando os modais deônticos: obrigatório


(O), permitido (P) e proibido (V), a redação do artigo enquadra-se no tipo proi-
bido, pois a relação implicacional impõe que se ocorrido o fato descrito no ante-
cedente, então deve ser o consequente prescrito na norma. Dessa forma, temos o
SE

seguinte: se o investidor-anjo, pessoa física, pessoa jurídica ou fundos de inves-


timento, realizar aporte de capital, em sociedades enquadradas como microem-
presa (receita bruta – R$ 360 mil) ou empresa de pequeno porte (receita
NA

bruta – R$ 4,8 milhões), com as finalidades de fomento à inovação e investimen-


tos produtivos, então, não será considerado sócio, nem terá qualquer direito à
gerência ou a voto na administração da empresa.
Essas restrições impostas pela atual legislação não anulam a ideia original do
DO

investidor-anjo, pela qual ele além do investimento financeiro, também agrega-


ria com seu conhecimento e contatos, uma vez que o fato de não ser sócio, não ter
direito à gerência, acredita-se que seja na qualidade de administrador ou não ter
direito a voto na administração da empresa, não impediria o exercício da mento-
ria. Por outro lado, elas visam impedir a prática de eventuais fraudes.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
Startups e Fintechs 187
US
7. Direitos do investidor-anjo
O artigo 61-A, § 4º, da LC 123/06, com a redação dada pela LC 182/21, esta-
belece os seguintes direitos do investidor anjo:
O
a) ser consultor (resguardada a possibilidade de participação nas delibera-
ções em caráter estritamente consultivo, conforme pactuação contratual);
b) exigir dos administradores as contas justificadas de sua administração e, anual-
EX
mente, o inventário, o balanço patrimonial e o balanço de resultado econômico;
c) examinar, a qualquer momento, os livros, os documentos e o estado do
caixa e da carteira da sociedade, exceto se houver pactuação contratual que de-
termine época própria para isso.
CL
d) será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação,
pelo prazo máximo de 7 (sete) anos;
e) preferência na aquisição da empresa, bem como direito de venda conjunta
US
da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem
ofertados aos sócios regulares.

8. Instrumento de investimento
IV

Considerando as restrições impostas pelo artigo 61-A, § 4º, da LC 155/16, o


instrumento viável ao investidor-anjo para realizar seus aportes em startups, con-
O

siderando a fase inicial do seu investimento e o risco do negócio (vale da morte),


é o contrato de participação – utilizado exclusivamente para investimento em so-
ciedades que possuem enquadramento de microempresa ou empresa de peque-
SE

no porte, e tem a particularidade de que o valor aportado não integra o capital


social da sociedade investida (art. 61-A, caput). É remunerado por meio dos re-
sultados distribuídos ao final de cada período – limitado a 50% dos lucros da so-
ciedade (art. 61-A, § 6º), pelo prazo de 7 anos, (art. 61-A, § 4º, III), sendo que a
NA

vigência do contrato não pode ser superior a 7 anos (art. 61-A, § 1º).
A ausência ou contrariedade a qualquer um dos requisitos legais pode desca-
racterizar o contrato de participação e levar à perda dos benefícios legais, o que
representaria uma ameaça ao investidor, em razão do risco de não ter assegurada
DO

a blindagem patrimonial garantida por essa forma de investimento.

9. Proteção patrimonial do investidor-anjo


Se o artigo 61-A, § 4º, da LC 155/16, proíbe o investidor anjo de: a) ser sócio
(não será considerado sócio); b) ser gerente (nem terá qualquer direito à

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Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
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US
gerência) e c) votar (ou a voto na administração da empresa), uma vez cumprido
esses requisitos, de acordo com os modais deônticos, impõe-se, também, a proibi-
ção de responder por qualquer dívida da empresa, seja civil, tributária ou trabalhis-
ta, inclusive em recuperação judicial, bem como não está sujeito aos efeitos da
O
desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50, do Código Civil.
Se considerarmos a norma jurídica como a composição articulada das signifi-
cação construídas a partir dos enunciados prescritivos e estruturada na forma
EX
hipotético-condicional (H→C) (hipótese e consequência, Se,..., então,...), portan-
to, no caso específico, teremos: se o investidor-anjo, pessoa física, pessoa jurídica
ou fundos de investimento, realizar aporte de capital em sociedades enquadradas
como microempresa ou empresa de pequeno porte, com as finalidades de fomen-
CL
to à inovação e investimentos produtivos e, não for sócio, nem tiver qualquer
direito à gerência ou a voto na administração da empresa, então, não responderá
por qualquer dívida da empresa, seja civil, tributária ou trabalhista, inclusive em
US
recuperação judicial, bem como não está sujeito aos efeitos da desconsideração
da personalidade jurídica, prevista no artigo 50, do Código Civil.
Essa proteção se estende até o momento em que ocorre a conversão do instru-
mento do aporte em participação societária, passando a qualidade de sócio.
IV

Se o investidor-anjo não é sócio da sociedade investida, não é gerente (admi-


nistrador) e não vota na administração da empresa, porque a legislador destacou
que o investidor anjo não responde por qualquer dívida da empresa, inclusive em
O

recuperação judicial, bem como não está sujeito aos efeitos da desconsideração
da personalidade jurídica, prevista no artigo 50, do Código Civil?
Essa afirmação da lei, parece ter a seguinte função de reafirmar o regime de
SE

responsabilidade limitada, bem como de evitar uma interpretação da teoria da


aparência pelo Poder Judiciário, ao dizer que os investidores anjo não respon-
dem por dívidas da empresa e que os credores da startup não podem usar o artigo
50 do Código Civil para cobrar suas dívidas do investidor-anjo, que em relação à
NA

sociedade investida, também é um credor.


Por outro lado, como todo texto fica sujeito à interpretação, isso não afasta
totalmente o risco e podemos nos deparar com as seguintes consequências, caso
DO

o investidor-anjo mantenha uma atuação ativa na administração da empresa,


equiparando-se a um sócio ou sendo sócio efetivamente, tenha utilizado do con-
trato de participação como desvio de finalidade:
1) inaplicabilidade da blindagem do artigo 61-A;
2) responsabilidade ilimitada do anjo por ser considerado um sócio irregular;

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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Startups e Fintechs 189
US
3) caracterização do desvio de finalidade no contrato de participação, satisfa-
zendo o requisito do artigo 50, do Código Civil, com a consequente desconside-
ração da personalidade jurídica, com seus reflexos na área trabalhista e tributária.
O
10. Da desconsideração da personalidade jurídica e o investidor-
anjo
EX
Se o investidor-anjo, pessoa física, pessoa jurídica ou fundos de investimento,
realizar aporte de capital em sociedades enquadradas como microempresa ou
empresa de pequeno porte, com as finalidades de fomento à inovação e investi-
mentos produtivos e, não for sócio, nem tiver qualquer direito à gerência ou a
CL
voto na administração da empresa, então, não responderá por qualquer dívida da
empresa, seja civil, tributária ou trabalhista, inclusive em recuperação judicial,
bem como não está sujeito aos efeitos da desconsideração da personalidade jurí-
dica, prevista no artigo 50, do Código Civil.
US
A regra geral é de que os sócios também não respondem pelas dívidas da so-
ciedade empresária, diante do princípio da separação patrimonial. A exceção fica
para os casos em que for cabível da desconsideração da personalidade jurídica, a
IV

fim de atingir os bens dos sócios. A questão é que o investidor-anjo não integra a
sociedade, então, a exceção sequer seria aplicável a ele, via de regra, do que adian-
taria desconsiderar a personalidade jurídica, a fim de atingir os bens de quem não
O

faz parte do corpo societário? Talvez fosse o caso de se pensar em nulidade do


contrato de investimento, a fim de ser reconhecida a existência de sociedade em
comum, pela qual os sócios respondem de forma solidária e ilimitada.
SE

É evidente que com a personalização ocorre a separação entre os sócios e a


sociedade. A sociedade a partir do arquivamento dos seus atos constitutivos pas-
sa a ter personalidade jurídica própria e distinta das dos seus sócios. A partir de
então a sociedade passa a ter patrimônio próprio e, portanto, responsabilidade
NA

patrimonial, em sendo sujeito de direito, conforme já tivemos a oportunidade de


demonstrar, passa, também, a ser titular de obrigações e legitimidade para de-
mandar e ser demandada em juízo, conforme se extrai da norma contida no arti-
go 1.023, do Código Civil.
DO

Olney Queiroz Assis salienta que

“com a personalização da sociedade a lei consagra o princípio da autonomia


patrimonial. Esse princípio significa a separação do patrimônio dos sócios do
patrimônio da sociedade e permite desvendar a dicotomia interesses comuns
(dos sócios e da sociedade) e interesses antagônicos (da sociedade em relação

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
190 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 2022 • RDB 98
US
ao sócio ou dos sócios entre si) que movimenta o conflito no interior da socie-
dade. Permite também esclarecer as relações (exteriores) entre a sociedade e
as pessoas que com ela contratam.”
O
Fábio Ulhoa Coelho18 destaca que “três exemplos ilustram as consequências
da personalização da sociedade empresária: a titularidade obrigacional, a titula-
ridade processual e a responsabilidade patrimonial”, e que
EX
“a questão patrimonial, de maior importância que as duas anteriores. Muito
embora alguma doutrina ensine o inverso (Correia, 1975:240/251), da perso-
nalização da sociedade empresária segue-se a separação dos patrimônios desta
CL
e de seus sócios. Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros
eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não dos
seus membros. Não existe comunhão ou condomínio dos sócios relativamen-
te aos bens sociais; sobre estes os componentes da sociedade empresária não
US
exercem nenhum direito, de propriedade ou de outra natureza. É apenas a pes-
soa jurídica da sociedade a proprietária de tais bens. No patrimônio dos sócios,
encontra-se a participação societária, representada pelas quotas da sociedade
limitada ou pelas ações da sociedade anônima. A participação societária, no
IV

entanto, não se confunde com o conjunto de bens titularizados pela socieda-


de, nem com uma sua parcela ideal. Trata-se, definitivamente, de patrimônios
O

distintos, inconfundíveis e incomunicáveis os dos sócios e o da sociedade.”

Tais efeitos não atingem o empresário individual, uma vez que se trata de pes-
SE

soa natural e não de pessoa jurídica, conforme já demonstramos. Nesse sentido,


Manoel de Queiroz Pereira Calças19 ressalta que

“sendo o empresário individual uma pessoa natural, todos os bens de sua pro-
NA

priedade formam um patrimônio único que constituirá a garantia de todos


os seus credores, civis ou empresariais. Ao contrário do que ocorre com a
sociedade empresária, que é pessoa jurídica e tem patrimônio autônomo e
distinto do patrimônio particular de seus sócios, o empresário individual tem
DO

um único patrimônio.”

18. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. Direito de empresa. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 15.
19. CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. O empresário no Código Civil. In: Revista do Ad-
vogado, n. 81, abril/2005, São Paulo, p. 87-92.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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Startups e Fintechs 191
US
Para Fábio Konder Comparato20,

“a causa, na constituição de sociedades, deve, portanto, ser entendida de modo


genérico e sob uma forma específica. Genericamente, ela equivale à separação
O
patrimonial, à constituição de um patrimônio autônomo cujos ativo e passivo
não se confundem com os direitos e as obrigações dos sócios. De modo espe-
cífico, porém, essa separação patrimonial é estabelecida para a consecução
do objeto social, expresso no contrato ou nos estatutos. A sua manutenção,
EX
por conseguinte, só se justifica pela permanência desse escopo, de sua utili-
dade e da possibilidade de sua realização. Toda pessoa jurídica é criada para
o desempenho de funções determinadas, gerais e especiais. A função geral da
personalização de coletividades consiste na criação de um centro de interesses
CL
autônomo, relativamente às vicissitudes que afetam a existência das pessoas
físicas que lhe deram origem, ou que atuam em sua área: fundadores, sócios,
administradores. As funções específicas variam, conforme as diferentes cate-
gorias de pessoa jurídica e, ainda, dentro de cada categoria, de coletividade
US
a coletividade, em razão de seus atos constitutivos, estatutos ou contratos
sociais. A desconsideração da personalidade jurídica é operada como conse-
quência de um desvio de função, ou disfunção, resultante sem dúvida, as mais
das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito.
IV

Daí por que não se deve cogitar da sanção de invalidade, pela inadequação de
sua excessiva amplitude, e sim da ineficácia relativa.”
O

José Lamartine Correa de Oliveira21 já anunciara a dupla crise da pessoa jurí-


dica.
Essa separação patrimonial, que é causa na constituição de sociedades, com-
SE

porta limitação como nos casos de uso fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica
e, também, quando se tratar de credores hipossuficientes, como o empregado e o
consumidor.
Esse tratamento diferenciado encontra fundamento na Teoria da Justiça de
NA

John Rawls22, na qual o contrato social exige que os contratantes se encontrem


numa situação inicial ou posição original sob o véu da ignorância, capaz de assegu-
DO

20. COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, Rio de Janeiro,
3ª ed. Forense, 1983, p. 281/287.
21. OLIVEIRA, José Lamartine Correa de. A dupla crise da pessoa jurídica, São Paulo, Sarai-
va, 1979. p. 262-263.
22. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 1997. 2. tiragem, 2000.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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192 Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais 2022 • RDB 98
US
rar que na escolha dos princípios da justiça ninguém levará vantagem (ou desvan-
tagem) em razão de circunstâncias sociais ou de condições naturais.
Especialmente no princípio da diferença e informa que as desigualdades sociais e
econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam: a) para o maior benefí-
O
cio dos que têm menos vantagens; e b) vinculadas a cargos e posições abertos a
todos e em condições de igualdade de oportunidade equitativas.
É nítido que o Estado na qualidade de agente normativo e regulador da ativi-
EX
dade econômica, com poder de fiscalização, incentivo e planejamento, atue co-
mo agente normativo da esfera econômica, legislando e expedindo normas de
conteúdo econômico e tributário, permitindo, obrigando ou proibindo o exercí-
cio da atividade econômica, sua tributação e fiscalização.
CL
Nesse modelo de estrutura estatal, diversas interferências diretas nas socieda-
des empresárias de cunho social e distributivo, ocorreram em cumprimento ao
que determina o texto constitucional, como mencionamos linhas atrás, porém,
US
cabe destacar que o Estado regulamentou uma das mais importantes medidas
protetivas para os hipossuficientes:
a) os consumidores, com a criação do Código de Defesa do Consumidor, ins-
tituído pela Lei 8.078/90, pelo qual os consumidores passaram a exercer em suas
IV

relações de consumos um rol de direitos básicos e protetivos, de forma indivi-


dual, coletiva e difusa, inclusive, com a possibilidade de desconsideração da per-
sonalidade jurídica da empresa, conforme se extrai do artigo 28, do referido
O

diploma legal, ao passo que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica


da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
SE

contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da


pessoa jurídica provocados por má administração, ou, quando sua personalida-
de for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos
consumidores;
NA

b) os trabalhadores, com a Consolidação das Leis do Trabalho, com a redação


dada pela Lei Federal 13.467/2017, que determinou a aplicação do incidente de
desconsideração da personalidade jurídica, conforme artigo 855-A, com previ-
são nos artigos 133 a 137, do Código de Processo Civil;
DO

c) o meio ambiente, sempre que a personalidade constituir obstáculo ao res-


sarcimento dos prejuízos causados ao meio ambiente, na forma do artigo 4º, da
Lei Federal 9.605/98, visando atender os valores ambientais consagrados na
Constituição Federal, na medida que permite atingir os bens dos responsáveis
pela infração e pelo dano ambiental e à coletividade.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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Startups e Fintechs 193
US
Fábio Ulhoa Coelho23 destaca que Rolf Serick formulou quatro princípios que
autorizam o afastamento da separação patrimonial da pessoa jurídica. Senão ve-
jamos:
O
a) “primeiro, afirma que o juiz diante de abuso da forma da pessoa jurídica,
pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separa-
ção entre sócio e pessoa jurídica. Entende Serick por abuso da forma qualquer
EX
ato que, por meio do instrumento da pessoa jurídica, vise frustrar a aplicação
da lei ou o cumprimento de obrigação contratual, ou, ainda, prejudicar tercei-
ros de modo fraudulento.”
b) “segundo, ‘não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa
CL
jurídica apenas porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não
foram atendidos’. Em outros termos, não basta a simples prova da insatisfação
de direito de credor da sociedade para justificar a desconsideração.”
c) “terceiro, ‘aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou va-
US
lor humano, se não houver contradição entre os objetivos destas e a função
daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, le-
vam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica’. É este o
critério recomendado para resolver questões como a nacionalidade ou raça de
sociedades empresárias.”
IV

d) quarto, “‘se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas


um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsi-
O

derá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre
aquelas partes.’ Quer dizer, se a lei prevê determinada disciplina para os negó-
cios entre dois sujeitos distintos, cabe desconsiderar a autonomia da pessoa
jurídica que o realiza com um de seus membros para afastar essa disciplina.”
SE

Pela redação do artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, artigo 18,
da Lei Federal 8.884/94 (Lei Antitruste), artigo 4º, da Lei Federal 9.605/98 e artigo
50, do Código Civil, podem-se extrair as seguintes situações para desconsiderar a
NA

personalidade jurídica da sociedade empresária diante da hipossuficiência de


determinados entes em sintonia com o princípio da diferença estabelecido por
Rawls:
a) abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou
DO

violação dos estatutos ou contrato social, em caso de falência, estado de insolvên-


cia, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má

23. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2. Direito de empresa. 10. ed.
Saraiva, 2007. p. 37.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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US
administração, ou quando a personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos, tanto para direito do consumidor como na lei anti-
truste;
b) quando a personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento
O
de prejuízos, da lei do meio ambiente;
c) desvio de finalidade e confusão patrimonial, no Código Civil.
EX
Alexandre Couto Silva24 destaca que

“a teoria da desconsideração assegura que a estrutura da sociedade com res-


ponsabilidade limitada pode ser desconsiderada apenas no caso concreto,
atingindo-se a personalidade jurídica do sócio, tanto pessoa natural quan-
CL
to pessoa jurídica, responsabilizando-o pela fraude e pelo abuso de direito,
bem como nos casos em que ele se esconde atrás da personalidade jurídica da
sociedade para evitar obrigação existente, tirar vantagem da lei, alcançar ou
perpetrar o monopólio, ou proteger desonestidade ou crime. A ideia da busca
US
de justiça é fator preponderante para aplicação da teoria.”

“A fraude deve ser entendida como dolo, erro, simulação e fraude contra cre-
dores. O abuso de direito é a utilização da pessoa jurídica de maneira contrária ao
IV

fundamento que a criou ou reconheceu. Abuso de direito é o uso excessivo ou


impróprio da pessoa jurídica em benefício dos sócios”. A fraude e o desvio de fi-
nalidade são as situações fáticas que dariam ensejo a ideia de desconsideração da
O

personalidade jurídica, a fim de atingir o patrimônio do investidor anjo, com


medida de exceção, pois pelo princípio da segurança jurídica, se todos os requi-
sitos legais foram cumpridos, não há como atingir os bens de quem não integra a
SE

sociedade empresária.
O que ocorre geralmente é um desvio de função, resultante de abuso ou frau-
de, mas que nem sempre constitui um ato ilícito, e, considerando que a sociedade
empresária desenvolve atividade econômica organizada para a produção ou a
NA

circulação de bens ou serviços, quadra observar o significado desses termos, a


fim de orientar a busca daquilo que pode ser considerado desvio de função, abu-
so de finalidade e má administração:
DO

24. SILVA, Alexandre Couto. Desconsideração da personalidade jurídica: limites para sua
aplicação. Revista dos Tribunais, 780/47-58, out/2000.

Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


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Startups e Fintechs 195
US
a) “atividade, em direito, designa sempre uma série de atos unificados em
razão do mesmo objetivo global”, na lição de Fábio Konder Comparato25, razão
pela qual a prática de ato em sentido oposto a esse objetivo caracteriza abuso de
finalidade, podendo ser perpetrado pelo uso de fraude, simulação, violação à lei,
O
dentre outros artifícios que possam ser utilizados para prejudicar terceiros.
b) a organização, prescrita na norma legal, deve ser entendida no sentido de
aplicação das técnicas, métodos, recomendações, postulados e diretivas da tec-
EX
nologia da administração de empresas. “O administrador, em outros termos, tem
o dever de empregar certas técnicas – aceitas como adequadas pela ‘ciência’ da
administração – na condução dos negócios sociais, tendo em vista a realização
dos fins da empresa”, na lição de Fábio Ulhoa Coelho26, razão pela qual deve-se
CL
verificar se foram aplicadas as técnicas da administração de empresas no desem-
penho de sua atividade, bem como observadas as prescrições legais para o seu
desenvolvimento.
US
Fábio Ulhoa Coelho27 trabalha com duas teorias da desconsideração da per-
sonalidade jurídica, quais sejam:
1ª) Teoria Maior – “que condiciona o afastamento episódico da autonomia
patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta
IV

ou abusiva do instituto. Nesse caso, distinguem-se com clareza a desconsidera-


ção da personalidade jurídica e outros institutos jurídicos que também impor-
tam a afetação de patrimônio de sócio por obrigação da sociedade (p. ex., a
O

responsabilização por ato de má gestão, a extensão da responsabilidade tributá-


ria ao administrador etc.).”
Nesse caso, seria a aplicação do artigo 50, do Código Civil, posto que em caso
SE

de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou


pela confusão patrimonial, pode o juiz de terminar a desconsideração da perso-
nalidade jurídica para atingir os bens particulares dos administradores ou sócios
da pessoa jurídica. Ocorre que no caso do investidor anjo, ele não é sócio, nem
NA

administrador.
DO

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Vilela, Diomar Taveira. Investidor-anjo – limitações de responsabilidades.


Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 98. ano 25. p. 175-199. São Paulo: Ed. RT out./dez. 2022
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2ª) Teoria Menor – “que se refere à desconsideração em toda e qualquer hipó-
tese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência é
condicionar o afastamento do princípio da autonomia à simples insatisfação de
crédito perante a sociedade”. E, que “se contenta com a demonstração pelo cre-
O
dor da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio, para atribuir
a este a obrigação da pessoa jurídica.”
Nesse caso, seria a aplicação do artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor,
EX
artigo 18, da Lei Federal 8.884/94 (Lei Antitruste), artigo 4º, da Lei Federal 9.605/98
(Crimes Ambientais), posto que em casos de abuso de direito, excesso de poder, infra-
ção da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, em caso de
falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica pro-
CL
vocados por má administração, ou quando a personalidade for, de alguma forma,
obstáculo ao ressarcimento de prejuízos. Ainda assim, não seria possível atingir os
bens do investidor anjo, na medida em que ele não integra o quadro societário.
US
Destaca-se, ainda, a desconsideração inversa da personalidade jurídica, quan-
do o sócio controlador transfere para a pessoa jurídica seus bens pessoais, carros,
imóveis etc., mas continua a desfrutar do uso desses bens, mesmo não sendo
mais de sua propriedade, razão pela qual opera-se a desconsideração da persona-
IV

lidade jurídica, para alcançar esses bens, que em regra pertencem ao sócio que
usa a pessoa jurídica para frustrar suas dívidas pessoais.
Uma vez desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade empresária, os
O

sócios respondem solidariamente pela obrigação que deu ensejo a desconsideração.


Por fim e considerando que na sociedade não personificada (sociedade em
comum), não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, uma
SE

vez que a responsabilidade é direta, solidária e ilimitada, conforme prescreve o


artigo 990, do Código Civil. E quanto ao empresário individual, sendo pessoa
natural, todos os seus bens respondem pelas dívidas civis e empresariais, tam-
bém, não se pode falar em desconsideração, por não ser pessoa jurídica.
NA

11. Conclusão
Como salientamos no presente artigo, se o investidor-anjo, pessoa física, pes-
DO

soa jurídica ou fundos de investimento, realizar aporte de capital em sociedades


enquadradas como microempresa ou empresa de pequeno porte, com as finali-
dades de fomento à inovação e investimentos produtivos e, não for sócio, nem
tiver qualquer direito à gerência ou a voto na administração da empresa, então,
não responderá por qualquer dívida da empresa, seja civil, tributária ou traba-
lhista, inclusive em recuperação judicial, bem como não está sujeito aos efeitos

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da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no artigo 50, do Código
Civil, nem mesmo do artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, artigo 18,
da Lei Federal 8.884/94 (Lei Antitruste), artigo 4º, da Lei Federal 9.605/98.
A regra geral é de que os sócios também não respondem pelas dívidas da so-
O
ciedade empresária, diante do princípio da separação patrimonial. A exceção fica
para os casos em que for cabível da desconsideração da personalidade jurídica, a
fim de atingir os bens dos sócios. A questão é que o investidor-anjo não integra a
EX
sociedade, então, a exceção sequer seria aplicável a ele, via de regra, do que adian-
taria desconsiderar a personalidade jurídica, a fim de atingir os bens de quem não
faz parte do corpo societário? Talvez fosse o caso de se pensar em nulidade do
contrato de investimento, a fim de ser reconhecida a existência de sociedade em
CL
comum, pela qual os sócios respondem de forma solidária e ilimitada.
A fraude e o desvio de finalidade são as situações fáticas que dariam ensejo à
ideia de desconsideração da personalidade jurídica, a fim de atingir o patrimônio
US
do investidor-anjo, como medida de exceção, pois pelo princípio da segurança
jurídica, se todos os requisitos legais foram cumpridos, não há como atingir os
bens de quem não integra a sociedade empresária.
IV

12. Referências bibliográficas


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O PESQUISAS DO EDITORIAL
área Do Direito: Financeiro e Econômico

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• A responsabilidade do investidor-anjo e o incidente de desconsideração da personalidade jurídi-
EX
ca, de Jesualdo Eduardo de Almeida Junior – ReDE 7;
• A responsabilidade do investidor-anjo, de Amanda Prado de Matos – RDB 84/17-44; e
• Investidor-anjo: novo Marco Legal das Startups e responsabilidade trabalhista do investidor-anjo
pelas dívidas da empresa, de Murilo Caldeira Germiniani e Suely Ester Gitelman – RDB 94/143-169.
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