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BATISTA, Vera Malaguti.

Difíceis ganhos fáceis - drogas e juventude pobre


no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Revan, 2003.

CAP. 1

“O processo de demonização das drogas, a disseminação do medo e da sensação de


insegurança diante de um Estado corrupto e ineficaz, vai despolitizando as massas
urbanas brasileiras, transformando-as em multidões desesperançadas, turbas
linchadoras a esperar e desejar demonstrações de força.” – pg. 35
“Do ponto de vista das elites brasileiras, as massas urbanas de trabalhadores em sua
maioria negros, vivendo nos morros, constituem contingentes perigosos. Reivindicam-
se mais e mais investimentos nos mecanismos de controle social, penas mais duras.” –
pg. 36
“A mídia, a opinião pública destaca o seu cinismo, a sua afronta. São camelôs,
flanelinhas, pivetes e estão por toda parte, até não merecem respeito ou trégua, são os
sinais vivos, os instrumentos do medo e da vulnerabilidade, podem ser espancados,
linchados, exterminados ou torturados.” – pg. 36
“Na cidade do Rio de Janeiro, hoje, a luta pela cidadania tem o seu principal front no
nível simbólico e ideológico, num contexto de disseminação do autoritarismo, onde o
medo e a desqualificação do outro se somam às campanhas de descrédito do Estado e
das classes políticas. Está instaurado o terreno para o autoritarismo sem ditadura.
Na raiz da constituição desta ideologia exterminadora está o medo. Esse medo é
administrado cotidianamente pelos meios de comunicação.” – pg. 36
“As políticas de controle social se aprimoram e se fortalecem para responder ao pânico
das elites.” – pg. 38
“No Brasil, o projeto de construção da ordem burguesa é bastante diferente. O
fenômeno da escravidão desenvolve uma realidade social absolutamente violenta. Ou
melhor, a violência é um elemento constitutivo da realidade social brasileira. Ao
trabalho compulsório do negro soma-se a despersonalização legal do escravo; o
escravo era mercadoria, não era sujeito.” – pg. 38
“O projeto autoritário das elites brasileiras se afrouxa em momentos de crise para
rearticular-se imediatamente após a superação dessas crises de mudança. No Brasil,
autoritarismo e liberalismo são duas faces da mesma moeda.” – pg. 38 (apud)
“A concepção do mercado de trabalho no Brasil é excludente, desqualificadora e racista
até hoje.” – pg. 39
“O medo branco faz com que o temor à insurreição seja mais sólido que a própria
perspectiva de insurreição.
Mas a população é incansável em transformar a cidade-negra em' esconderijo; a cidade
que esconde é a cidade que liberta.” – pg. 39

CAP. 2
“Quando, a partir do século XV, pioram as condições de vida dos setores populares,
começam a surgir intensos conflitos sociais; a expulsão de mão-de-obra do campo
ameaça os artesãos nas cidades, surgem as hordas de vagabundos, mendigos e
delinquentes, nos limites urbanos. A mão-de-obra torna-se abundante, o capital perde
seu papel secundário para transformar-se na força motriz da economia. A transição
para o capitalismo conduz a um direito penal orientado diretamente contra estes
setores populares.” – pg. 44
“A preocupação com a administração da justiça faz com que surja uma administração
centralizada por uma burocracia educada pelo direito romano. Aprofundam-se as
diferenças de execução das penas por classe; quanto mais empobreciam as massas,
mais severas as penas. (...) Impossibilitados de sofrer penas pecuniárias, os pobres
emprestam seus corpos para o espetáculo do horror. (...) A caça às bruxas toma
proporções epidêmicas. Bruxas, judeus e criminosos satisfazem o desejo de crueldade
das massas. Impera a convicção oficial do caráter dissuasivo das execuções públicas. O
sistema expressa o seu sadismo em um círculo vicioso em que os "fora-da-lei" são
mutilados e marcados para permanecerem excluídos da sociedade.” – pg. 43-44
“Já no final do século XVI, com o surgimento do mercantilismo, os métodos punitivos
se transformam diante da possibilidade de exploração da mão-de-obra através da pena
de prisão.” – pg. 44
“Novas mudanças nas condições econômicas gerais transformam as casas correcionais
do final do século XVII. Nessas unidades aproveitava-se a mão-de-obra disponível
absorvendo-a nas atividades econômicas. A força de trabalho dos reclusos era utilizada
pelas próprias autoridades ou alugada aos empresários privados. As casas de correção
tinham uma administração lucrativa e este argumento foi decisivo na substituição da
pena de morte pelo confinamento. (...) As casas de correção eram importantes para o
conjunto da economia; os baixos salários e o adestramento dos trabalhadores
desqualificados deram uma importante contribuição ao surgimento do modo de
produção capitalista.” – pg. 44
“A forma precursora da prisão moderna está estritamente ligada às casas de correção e
ao seu modo de produção. O seu objetivo principal era a exploração racional da força
de trabalho e não a produção.” – pg. 45
“As raízes do sistema carcerário se encontram no mercantilismo, mas sua promoção e
elaboração teórica foram tarefas do Iluminismo. É nesta época que se desenvolve a
teoria do direito penal. Surge um movimento dirigido contra a indeterminação das
penas e a arbitrariedade das cortes penais (Montesquieu e Beccaria). Os pioneiros da
reforma penal estavam preocupados em limitar o poder sancionador do Estado,
formalizando o direito processual e material. (...) A privação de liberdade é considerada
como uma consequência natural da violação do direito de propriedade; a propriedade
e a liberdade pessoal têm o mesmo valor.” – pg. 45
“O uso tradicional da pena de morte baseada no terror não serve mais para defender
os proprietários, pois incita as classes subalternas. A diminuição da severidade das
penas se converte em medida prática de defesa contra a revolução social.” – pg. 45
“Graças a um exército industrial de reserva já não eram necessárias as penas selvagens
para disciplinar as massas. O mercado se encarrega do aumento da opressão e da
diminuição do nível geral dos salários.” – pg. 45
“O número de delitos contra a propriedade aumenta desde o final do século XVIII. "A
classe dominante se sentiu tentada a retomar os métodos pré-mercantilistas para o
tratamento da criminalidade, aumentando as demandas por penas mais severas e a
crítica do uso liberal da prisão como substituição das formas punitivas tradicionais".
Voltam os castigos físicos, as mutilações, o confisco da propriedade e a perda dos
direitos civis.” – pg. 46 (apud)
“A prisão se converte na pena mais importante de todo o mundo ocidental. Essas
penas tomaram diversas formas e gradações de acordo com a gravidade do delito e
com a posição social do condenado. O aumento do número de condenações levou a
uma superpopulação das prisões, ao mesmo tempo em que o governo reduzia o total
dos gastos com o sistema. Relatórios da época concluem que a condição para a
reinserção social do detento é a submissão à autoridade. As prisões passaram a ser
regidas pela ordem e disciplina militar. A nova situação de competição de mercado
transformou o trabalho dos presos em ameaça aos trabalhadores livres e aos
empresários.” – pg. 46 (apud)
“O princípio básico das penas detentivas era de que deveriam conter uma certa
quantidade de dor e privação.” – pg. 46
“O método científico adotado pelos novos reformadores criou a ilusão de que um
sistema punitivo é a consequência de uma teoria penal específica, atribuindo à teoria
um poder imaginário sobre a realidade.” – pg. 47
“A necessidade de restituir a maior quantidade possível de à força produtiva sociedade
abriu espaço para o desenvolvimento da probation e das penas pecuniárias, instituindo
a responsabilidade social no fenômeno criminal. Do final do século XIX até o começo
do século XX a propensão a substituir a prisão por outras a formas punitivas se deu
paralelamente diminuição do tempo e da severidade das penas em toda a Europa. Mas
os criminólogos desta nova Escola Reformista conservaram a velha noção segundo a
qual o nível de vida nas prisões deve ser inferior ao nível mínimo da população livre.” –
pg. 47
“Mas, de uma forma geral, permanecem em níveis baixos as condições de vida nas
prisões. Nas formulações teóricas modernas de reforma carcerária, o sistema celular é
substituído pelo gradualismo da execução; a disciplina passa a ser mantida através de
estímulos positivos, como a redução da pena em função de bom comportamento.
Embora na teoria os aspectos pedagógicos reeducativos passem ao primeiro plano, a
prática dos tempos modernos (os investimentos requeridos, a dificuldade para
encontrar mercados e a pressão da opinião pública) não permitia a implantação de
qualquer programa educacional efetivo.” – pg. 47
“(...) mais importante do sistema moderno gradual é a disciplina, a reprodução de uma
atitude completamente conformista.” – pg. 48
“Nos novos tempos o Estado aumenta sua intervenção na esfera individual criando
organismos, normas, regulamentos. Os detalhes mais íntimos da vida do indivíduo se
encontram sob intensa vigilância. Ao detento importa obedecer a cada disposição
administrativa. A prática da execução penal passa a reger-se por regulações
administrativas que podem ser interpretadas arbitrariamente.” – pg. 48
“Como no tempo das mutilações, a prisão marca o excluído que ao nela entrar foi
duplamente excluído, criando um círculo vicioso reificador da segregação e da
estigmatização.” – pg. 48
“É a partir da relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção
analisada por Rusche que Foucault disseca a "economia política do corpo" e a
"microfísica do poder". Para ele, esta microfísica, posta em jogo pelos aparelhos e
instituições, supõe que o poder nela exercido seja concebido como estratégia. As
relações que se aprofundam dentro da sociedade não se localizam nas relações do
Estado com os cidadãos ou nas fronteiras de classe, mas numa rede de relações
sempre tensas que aparecem sob a forma de disposições, manobras, táticas, técnicas e
funções.” – pg. 48
“O sistema penal está estruturalmente montado para que não opere a legalidade
processual e para exercer seu poder com o máximo de arbitrariedade seletiva dirigida
aos setores vulneráveis. Na América Latina, a própria lei se ocupa de renunciar
legalidade concedendo ampla margem de arbitrariedade a suas agências.” – pg. 54
“O marco desta transculturação e deste sistema de controle social tem sido, século
após século, o genocídio. Nessas condições, as prisões (ou pequenas instituições de
seqüestro) na América Latina não têm as mesmas funções das prisões do Centro. Aqui
o modelo ideológico do panóptico de Bentham é substituído pelas teorias de
inferioridade biológica de Cesare Lombroso. A prisão dos países periféricos é uma
instituição de seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid
criminológico natural. Em nossa região o sistema penal adquire características
genocidas de contenção, diferentes das características "disciplinadoras" dos países
centrais.” – pg. 55
“O enfraquecimento do Estado com o colapso das políticas públicas, o aumento da
desocupação e do subemprego, o rebaixamento dos salários e da renda per capita,
enfim, todo este quadro neoliberal afeta principalmente as classes urbanas
marginalizadas, aumentando os níveis de pobreza absoluta. "Desta nova
marginalização nutre-se, para sua reprodução de clientela, o sistema penal latino-
americano, selecionando prisioneiros ou fuzilados sem processo”. – pg. 55 (apud)
“Mantido o atual quadro de cortes nos gastos públicos em saúde e educação, calcula-
se que no ano 2000 haverá uma massa de 220 milhões de habitantes com menos de 17
anos, com piores condições gerais de vida. Por outro lado, aumenta percentualmente o
número de presos sem condenação na região. Estas massas urbanas empobrecidas
num quadro de redução da classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto
educacional, sem condições sanitárias, sem moradia, não encontram no modelo
neoliberal respostas alternativas a um controle pelo terror do Estado; um sistema
penal que reprime através do aumento de presos sem condenação, dos fuzilamentos
sem processo, da atuação dos grupos de extermínio. "A projeção genocida de um
tecno-colonialismo correspondente à última revolução (tecno-científica) faria
empalidecer a cruel história dos colonialismos anteriores.” – pg. 56 (apud)
“A qualquer ameaça de diminuição deste poder, os meios de comunicação de massa se
encarregam de difundir campanhas de lei e ordem que aterrorizam a população e
aproveitam para reequipar para os "novos tempos". Os meios de comunicação de
massa, principalmente a televisão, são hoje fundamentais para o exercício do poder de
todo o sistema penal, seja através dos novos seriados, seja através da "invenção da
realidade" para "produção de indignação moral", seja pela fabricação de estereótipos
do criminoso. (...) Na América Latina este estereótipo é associado a essa jovem massa
urbana marginalizada.” – pg. 56
“(...) na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor excitar a indignação
moral, basta que a televisão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou
crueldade gratuita para que, imediatamente, as demandas de papéis vinculados ao
estereótipo assumam conteúdos de maior crueldade e, por conseguinte, os que
assumem o papel correspondente ao estereótipo ajustem a sua conduta a estes
papéis.” – pg. 57
“É neste quadro que Batista se refere concepção de cidadania negativa, que se
restringe ao conhecimento e exercício dos limites formais à intervenção coerciva do
Estado. Esses setores vulneráveis, ontem escravos, hoje massas marginais urbanas, só
conhecem a cidadania pelo seu avesso, na "trincheira auto defensiva" da opressão dos
organismos do nosso sistema penal.” – pg. 57
“Agora trata-se de intervir menos na liberdade do que na comunicação, e produzir
assim outra espécie de mutilação com a qual Bentham não sonhara" A enorme
concentração de poder político cria nova modalidade de controle operando sua
constante supervisão.” – pg. 58 (apud)
“Gizlene Neder, em sua tese "Criminalidade, justiça e mercado de trabalho no Brasil",
analisa a construção da ordem burguesa no Brasil a partir do pensamento jurídico que,
ao formular projetos para a construção de "nação", promove a "individualização dos
conflitos através do processo de criminalização e encaminha a ideologia burguesa de
trabalho, abrindo caminho para a constituição do mercado de trabalho na sociedade
brasileira". As contradições desse processo de implantação do capitalismo no Brasil
fazem com que assuma traços profundamente autoritários. Aqui, liberalismo e
autoritarismo são "duas faces de uma mesma moeda". O processo de construção da
ordem burguesa no Brasil enfrenta o problema da massa de ex-escravos excluída do
mercado de trabalho, aperfeiçoando a eficácia das instituições de controle social,
baseado no modelo racista e positivista de Cesare Lombroso. Para a autora, "a eficácia
das instituições de controle social se funda na capacidade de intimidação que estas são
capazes de exercer sobre as classes subalternas" mais vulneráveis à criminalização”. –
Pg. 58-59 (apud)
“Os bacharéis, agentes desta nova ordem, tiveram sua formação nas origens
autoritárias da formação histórica brasileira, num liberalismo comprometido até o
fundo da alma com o escravismo. A reorganização do Estado, numa conjuntura em que
se reconstrói a ideia de Nação é associada à organização judicial, principal eixo do
discurso jurídico entre o final do século e o começo do século XX.” – pg. 59
“Assim, em 1890, aparecem as primeiras referências à aplicação do sistema penal para
"vadios" e "vagabundos", para a massa excluída do novo mercado de trabalho. Como
Foucault, a autora revela a crítica ao sistema penal contemporânea sua criação. Já em
1838 os relatórios do Ministro da Justiça acusam a inutilidade funcional da prisão.
O sistema penal da República já nasce pontificado pela sua ineficácia estrutural como
repressor da criminalidade; seus objetivos ocultos, ideológicos, eram configuradores e
seletivos quanto às ilegalidades populares. A ideologia do trabalho neste processo de
ideologização, desempenha uma função importante nos discursos jurídicos. "Assim, o
trabalho está, dentro deste processo de ideologização, relacionado à honestidade,
bem-estar dignidade, sendo que seu oposto, a ociosidade, relaciona-se a afrontamento,
corrupção, depravação, suspeita". Pode-se imaginar que estereótipo se armava para o
contingente de ex-escravos sem perspectiva de inserção no mercado de trabalho,
desqualificados pelas condições de miséria e opressão da ordem escravocrata.” – pg.
59 (apud)
“(...) enfim toda uma arquitetura legal e física para dar conta dos novos excluídos da
ordem urbana republicana.” – pg. 60
“A questão criminal é política, e o arcabouço teórico dos juristas da época é
fundamentalmente lombrosiano. Nina Rodrigues, com sua obra As raças humanas e a
responsabilidade penal no Brasil pontificam em 1984 sobre as relações de
superioridade racional, ao mesmo tempo em que relativiza o conceito de crime. Há
uma grande confusão ideológica, com o movimento socialista e anarquista apoiando a
repressão à prostituição, à capoeiragem e ao conjunto das "ilegalidades populares".
Esta mélange ideológica dificulta a luta pelos direitos de cidadania dos contingentes
urbanos daquela época, e contribui para a construção da deslegitimação do discurso e
da prática jurídico penal.” – pg. 60
“Sob a égide do confinamento e do extermínio, o sistema penitenciário brasileiro
transforma a prisão de castigo em remédio. A ilusão ressocializadora e as metáforas
biológicas mascaram a crueldade dos processos de "regeneração" através do trabalho
obrigatório, da educação e da disciplina.” – pg. 60
“As estruturas de controle social criam um espaço de intermediação entre o mundo da
ordem e o mundo da desordem. A organização da cultura da malandragem pela
estratégia de poder a legitima e a confina.” – pg. 60

CAP 4

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