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Exame Direito Penal I

Direito Penal (Universidade Catolica Portuguesa)

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Baixado por Sofia Silva (tixamano95@hotmail.com)
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Direito Penal I 3.º Ano – Dia – Turmas A e B Regência: Professora Doutora Maria Fernanda
Palma Colaboração: Professor Doutor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira Reis,
António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Época de recurso - 8 de março de 2021 Duração: 90 minutos

Lenocínio em pandemia

ENUNCIADO: António, português residente em território nacional, incitou a namorada,


Beatrice, não portuguesa, a prostituir-se, para obterem um melhor rendimento. Com essa
finalidade, deslocaram-se a Paris, onde Beatrice se prostituiu durante o mês de fevereiro de
2020, tendo mantido relações com Carlos, português residente temporariamente em França.
De regresso a Portugal, António tomou conhecimento de um Acórdão do Tribunal
Constitucional de 3 de março de 2020, que julgou inconstitucional o artigo 169.º, n.º 1, do
Código Penal, num processo de fiscalização concreta de constitucionalidade. António ficou
convencido de que o seu comportamento estaria descriminalizado e passou a utilizar na
prostituição outras pessoas, oriundas do país de Beatrice. Posteriormente, por Acórdão de 27
de janeiro de 2021, proferido por haver contradição entre decisões anteriores, o Tribunal
Constitucional não julgou inconstitucional o artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, partindo da
argumentação consagrada no Acórdão n.º 144/2004 («verdadeiramente a decisão matriz desta
problemática na jurisprudência constitucional»), considerando que o lenocínio «quase
invariavelmente, corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de
sujeição a um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se
exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são difíceis de
quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a respetiva “utilidade
comercial”», pelo que se «gera um risco socialmente inaceitável, que não exorbita o âmbito de
proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque se trata de um risco conatural ao
proxenetismo, cujo empresário (…) tende a organizar-se de modo a potenciar o lucro (…),
objetivo ao qual, mais tarde ou mais cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a
liberdade das pessoas que se prostituem». Entretanto, Beatrice, que regressou a Portugal com
António, prostituiu-se no seu apartamento durante o período do confinamento, a partir de
abril de 2020. Veio a apurar-se que contraiu Covid-19, mas não se provou que tivesse
contagiado algum cliente.

Em face destes factos, responda às seguintes questões:

1 - Os comportamentos de António podem ser qualificados como lenocínio à luz dos princípios
constitucionais relativos à interpretação da lei penal? (3 valores)

R: O problema da interpretação e da proibição da analogia desfavorável em direito penal


(artigo 1.º, n.º 3, do CP) está relacionada com a reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República (artigo 165.º, alínea c), da Constituição). Com efeito, se a
competência para “definir o crime” cabe à Assembleia da República (ou ao Governo com
autorização), não poderá o Tribunal, no momento da interpretação e aplicação normativa,
defraudar esta imposição constitucional, através de uma re-definição criativa e inovadora dos
critérios do ilícito inicialmente estabelecidos pelo legislador. Ora, se os Tribunais têm de

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respeitar a “definição do crime” realizada pelo legislador e o legislador “define o crime” através
da utilização de palavras, então, daqui resulta lógica e teleologicamente que o respeito pela
“definição do crime” implica o respeito pelas palavras utilizadas nessa mesma definição (lex
stricta). Nessa medida –e sem prejuízo de existirem concepções alternativas que relativizam o
valor do texto legal em benefício de condições axiológico-valorativas fundamentadoras dos
tipos penais e de condições sistemáticas de coerência e unidade do sistema (p.ex. Castanheira
Neves) –, a doutrina e a jurisprudência têm considerado maioritariamente que a interpretação
em direito penal tem como limite inultrapassável os sentidos possíveis e previsíveis que podem
ser assumidos pelas palavras utilizadas pelo legislador, dentro do contexto jurídica em que as
mesmas estão sistematicamente inseridas.

2 - Beatrice pode ter cometido um crime de propagação de doença contagiosa? E o crime de


desobediência? Responda considerando as descrições legais dos crimes, os problemas
analisados sobre as leis relativas ao estado de emergência e os princípios constitucionais
relevantes. (4 valores)

R: Desde logo, é de referir que, o crime de propagação de doença contagiosa encontra-se


plasmado no art. 283º/1/a), assim como o crime de desobediência encontra consagração no
art. 348º. Face aos comportamentos de Beatrice durante o período do confinamento, e
atentando ao primeiro artigo, não se poderá dizer que Beatrice cometeu um crime de
propagação de doença contagiosa, dado que trata-se aqui de um crime de resultado, em que
não se tendo verificado o contágio, por parte de Beatrice, a algum dos seus clientes, não se
pode dizer que o crime haja sido cometido. No tocante ao segundo artigo, Beatrice podia, sim,
ser punida pelo crime de desobediência, nos termos do art. 348º/1/a), já que violou o dever de
confinamento legalmente imposto (no que toca às leis relativas ao estado de emergência -
competência exclusiva da AR (164º/e), competência de o declarar do PR (nos termos dos arts.
19º e 138º, ex vi art. 134º/d)), sendo que, aplicar-se-lhe-ia pena de prisão até 1 ano ou pena de
multa até 120 dias.

3 - Quais os argumentos a favor e contra a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do


Código Penal? Responda apresentando os argumentos em função dos princípios
constitucionais invocáveis. (4 valores)

R: Começa-se por distinguir as 2 pontas opostas relativamente à (in)constitucionalidade do


artigo 169º/1 do CP. Sem demora, por um lado, existe quem defenda a inconstitucionalidade
deste artigo, como é o caso da melhor doutrina, a de Figueiredo Dias. Por outro, há quem
defenda a constitucionalidade plena daquele artigo. Para Figueiredo Dias, o disposto no artigo
que pune o lenocínio, devia prever - como o fazia antes - a exigência de que o favorecimento
da prostituição se ligasse à exploração de situações de abandono ou de necessidade
económica. O Tribunal Constitucional possui uma opinião oposta (para o efeito, atente-se no
Acórdão 196/2004 de 23 de Março). Alguns argumentos a favor da inconstitucionalidade
seriam: (i) a limitação da consciência pessoal e da liberdade de escolha da profissão (art. 41º e
47º CRP, respetivamente); (ii) o Direito Criminal não devia defender valores de ordem moral;
(iii) o crime de lenocínio é um crime sem vítima; (iii) a criminalização do lenocínio priva o
cidadão de exercer uma profissão por imposição de regras e princípios morais. Já os
argumentos defendidos pelo Tribunal Constitucional nas suas decisões favoráveis à
constitucionalidade tem demonstrado que: (i) a criminalização do lenocínio protege a

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exploração da pessoa prostituída, que é tida como um instrumento ou meio ao serviço de


outrem; (ii) a criminalização do lenocínio funda-se nos valores fundamentais da justiça e da
dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP); (iii) a convivência social deve ser orientada por
deveres de proteção para com pessoas em estado de carência/necessidade e desproteção
social (não tem propriamente a ver com questões de moralidade sexual); (iv) o separa-se a
prostituição do lenocínio, pois o facto de que a prostituição não é proibida é irrelevante para a
criminalização do lenocínio (fazendo-se até uma analogia para o auxílio ao suícidio, que
também ele é criminalizado no art. 135º CP).

4 - Sendo o consumo de prostituição incriminado em França, este país pode requerer a


execução de mandado de detenção europeu para que Carlos seja julgado pelo crime cometido
nesse país? (2 valores)

R: O mecanismo de mandado de detenção europeu, que se assenta no princípio do


reconhecimento mútuo das decisões judiciais, veio substituir os morosos procedimento de
extradição existentes entre os países da UE. Este mecanismo consiste no pedido de uma
autoridade judicial de um país da UE no sentido de deter uma pessoa noutro Estado-membro e
entregá-la para efeitos de instauração de ação penal ou de execução de pena ou medida de
segurança privativas de liberdade decretada no primeiro país. (art.1º Lei n.º 65/2003, de 23 de
Agosto). No entanto, in casu, França não pode pedir o mandado de detenção europeu, uma vez
que não existe uma dupla incriminação (Portugal não pune o consumo de prostituição) e, o
crime de consumo de prostituição não observa o requisito quantitativo disposto no corpo do
art. 2º/2 da Lei MDE, nem consta do elenco de crimes abrangidos pelo art.2º/2 dessa Lei
nº65/2003 de 23 de Agosto. Destarte, seria de ponderar a aplicação do art. 2º/1 da LMDE,
analisando se a pena privativa da liberdade do Estado Francês tem uma duração máxima não
inferior a 12 meses, sendo que, não existindo nenhuma informação a isto relativa no caso, é de
presumir que o mandado de detenção europeu não pudesse ser executado.

5 - A criminalização do consumo de prostituição poderia ser aprovada em Portugal sem ofensa


de nenhum princípio constitucional? (3 valores)

R: Caso a criminalização do consumo de prostituição viesse a ser aprovada em Portugal,


verificar-se-ia uma inconstitucionalidade, desde logo, a violação do princípio da necessidade
penal, nos termos do qual a sanção tem que ser necessária, adequada, e proporcional em
sentido estrito, à gravidade do ilícito, pelo que, neste caso haveria outras sanções menos
lesivas dos Direitos Fundamentais, in casu, o do art. 26º que nos confere o direito à reserva da
intimidade da vida privada, ao desenvolvimento da personalidade. Também se poderia falar da
característica de ultima ratio do Direito Penal. De resto, falta ver se há dignidade penal, sendo
esta uma decisão de política criminal.

6 - Quais os argumentos criminológicos a considerar na questão da incriminação do lenocínio?


(2 valores)

R: A questão do tratamento jurídico do fenómeno da prostituição envolve opções que


remetem para questões mais amplas, ligadas às relações entre o direito e a moral, entre a
autonomia individual e a dignidade de pessoa humana. O Código Penal português, no seu

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artigo 169º, nº 1, prevê o tipo de crime de lenocínio como a conduta de quem,


profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra
pessoa da prostituição. Os argumentos criminológicos que sustentam uma incriminação do
crime de lenocínio, são, desde logo o facto de o lenocínio ser um crime de perigo abstrato, já
que se caracterizam pelo facto de o bem jurídico não precisar de ser danificado, bastando a
possibilidade de ocorrer o dano, para além disso, é necessário ter consciência que o crime de
lenocínio está diretamente relacionado com a prática de outros crimes, nomeadamente, os
crimes de exploração, tráfico de pessoas, entre outros, que são crimes contra a humanidade,
criando um perigo que é intolerável e inaceitável para as pessoas. Devido a vários estudos
realizados em bastantes países, nomeadamente europeus, conclui-se que a prostituição pode
conduzir a caminhos como a pobreza, toxicodependência, abandono escolar, prostituição na
menoridade e muitos outros, que conduzem efetivamente a crimes punidos no código penal
português. Não se pode equiparar a posição de “trabalhador sexual” a qualquer outro
trabalhador de outra atividade laboral, porque, geralmente, a prática da prostituição acarreta
danos físicos e psíquicos que se distinguem dos que possam ser inerentes a qualquer outra
atividade, e que não podem ser ignorados. Todas estas questões, são importantes e são
bastantes vezes referidas pela criminologia, de modo a impedir a descriminalização deste crime
como base na liberdade de escolha da profissão de casa um.

Ponderação global: (2 valores)

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