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Direito Penal I

3.º Ano – Dia – Turmas A e B


Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Catarina Abegão
Alves, Mafalda Moura Melim e Rita do Rosário, e Licenciados Nuno Igreja
Matos e Inês Vieira Santos
Exame de Época Especial de Finalistas - 9 de setembro de 2022
Duração: 90 minutos

1 – Surpreendida com um estudo que indica que as redes sociais são a principal causa da
crescente impopularidade dos deputados, a Assembleia da República, no intuito de proteger os
seus membros e defender a ordem democrática, decide aprovar um novo “crime de difusão
digital de ofensa à reputação de deputados”. De acordo com a nova Lei, “quem difundir, por
meio digital, texto que atinja a reputação de um deputado da Assembleia da República é
punido com pena de prisão até 3 anos”.
Analise a constitucionalidade do crime (4 vls.).

2 – Dias após a entrada em vigor deste crime, Amélia, aspirante a cartoonista, divulgou na
página de uma rede social um desenho, sem qualquer legenda, no qual surgia retratado um
deputado nacional a olhar para o ecrã de um computador com um lápis azul na mão. O
deputado, sentindo-se visado na sua honra e dedicação à democracia, informou as autoridades
da publicação. Foi então iniciado um procedimento criminal no qual Amélia veio a ser acusada
pela prática de crime de difusão digital de ofensa à reputação de deputados.
Independentemente da resposta à questão anterior, a interpretação do crime em causa no
sentido de punir Amélia violaria algum princípio de Direito Penal? (5 vls.).

3 – Admitindo que a resposta à questão anterior é positiva, suponha que, no dia após a leitura
da sentença condenatória, a Assembleia da República converte o crime em causa numa
contraordenação, passando apenas a ser punível com coima até € 15.000,00.
Que consequências teria esta alteração no que respeita à responsabilidade de Amélia? (4 vls.).

4 – Entretanto, chega, vindo da Alemanha, um pedido de entrega de Amélia, portuguesa


residente em Portugal, para cumprir pena de prisão perpétua por crime de homicídio.
A lei portuguesa é aplicável? Como deve ser decidido o pedido? (5 vls.).

Ponderação global: 2 vls.


Tópicos de correção

1 - Suscita-se um problema em torno da aferição do conceito material de crime, havendo que


examinar a dignidade e necessidade punitiva do comportamento criminalizado, chamando à
resposta o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Conforme é referido no enunciado, o crime em causa visa proteger direitos e interesses com
ressonância constitucional, como o sejam, por um lado, a integridade da ordem democrática
(entre o mais, afirmada no art. 2.º da CRP), e, por outro lado, a honra, bom nome e reputação
dos deputados (entre o mais, prevista como direito pessoal no art. 26.º da CRP). Do seu
enquadramento constitucional e do seu valor para a comunidade decorre, pois, a dignidade
jurídico-penal destes bens jurídicos.
O principal problema da questão coloca-se, porém, no plano da proporcionalidade do recurso
ao Direito Penal para tutela dos referidos bens através da criminalização da difusão digital de
textos que atinjam a reputação dos deputados. Na discussão sobre a necessidade da pena
deveriam, pelo menos, ser levadas a cabo três análises. Em primeiro lugar, a circunstância de
o crime em causa, no intuito de proteger os acima referidos bens jurídicos, ser também apto a
restringir outros direitos fundamentais, principalmente o direito à liberdade de expressão, e,
por essa via, também os direitos relacionados com a participação democrática. Em segundo
lugar, deveria ainda ser debatida a necessidade e adequação do crime face ao princípio da
ofensividade e ao risco de a incriminação se revelar excessivamente ampla, dado o potencial
para atingir comportamentos legítimos de expressão política. Finalmente, deveria ainda ser
cogitada a carência de tutela penal, havendo a este propósito que ponderar a eventual
suficiência dos crimes contra a honra já previstos no Código Penal e, até, da suficiência do
recurso a outros meios alternativos de proteção, por exemplo no contexto do direito
contraordenacional ou do direito civil.
Feita esta análise, deveria concluir-se pela ilegitimidade material do crime e consequente
inconstitucionalidade da norma, por desnecessidade de intervenção penal e violação do ar. 18.º,
n.º 2, da CRP. Uma tomada de posição diferenciada, no sentido da legitimidade material do
crime, também seria admitida, desde que capaz de justificar argumentativamente a superação
das referidas críticas.

2 - O caso suscita a dúvida sobre a correspondência entre a disposição legal que prevê o crime
e a conduta de Amélia de difusão de um desenho (cartoon) sem qualquer legenda textual. A
esta luz, caberia determinar se a punição não violaria o princípio da legalidade (art. 29.º, n.º 1,
da CRP), em particular na vertente conexa com a proibição de analogia incriminadora
consagrada no art. 1.º, n.º 3, do Código Penal (CP).
Acompanhando a tese de Maria Fernanda Palma, a interpretação permitida em Direito Penal,
para salvaguardar a segurança jurídica e a conformidade com o disposto no artigo 1.º, n.º 3, do
CP, deve ser suportada no sentido possível das palavras (compreendido no quadro do seu
sentido comunicativo comum no contexto significativo do texto da norma), alicerçando-se
ainda na articulação desse sentido com a essência do proibido subjacente à norma criminal.
Esta conceção diferencia-se das teses interpretativas valorativas, que admitem um afastamento
do sentido das palavras para extrair a ideia do proibido de outras proveniências, como o sejam
— seguindo, por exemplo, Castanheira Neves — as intenções e valores elegidos pelo legislador
com correspondência sistemática, dogmática e jurisprudencial.
Focando na primeira conceção interpretativa enunciada, constata-se que não existe
correspondência entre a conduta de Amélia e o enunciado linguístico que conforma
normativamente o crime aqui em causa. Assim é porque a conduta não difundiu um “texto”,
dado que Amélia se limitou a difundir um desenho, sem qualquer complemento textual. Poderia
ainda discutir-se se a difusão de um cartoon crítico de um deputado (em que o mesmo surge
equiparado aos agentes da censura do Estado Novo) é ou não é, ainda assim, um
comportamento passível de atingir a sua reputação — e, por esta via, vir defender-se que a
conduta encontra respaldo no sentido da proibição (tutela dos bens jurídicos ordem democrática
e bom nome do deputado). Mas, ainda que se pudesse dar por verificado esta correspondência
com a essência da proibição, tal não bastaria para admitir a punição de Amélia à luz da tese de
Maria Fernanda Palma que se vem aplicando. Com efeito, os significados sociais e
comunicacionais da palavra “texto” não abrangem descrições ou mensagem não-textuais.
Consequentemente, a punição de Amélia, por ir além do que poderia razoavelmente retirar-se
do enunciado legal, redundaria numa frustração da segurança jurídica e confiança dos cidadãos,
que distinguem na sua linguagem social “texto” e representações não-textuais. Assim, a
conduta de Amélia não seria subsumível ao crime em causa, sob pena de se incorrer numa
interpretação proibida, vedada pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, e 1.º, n.º 3, do CP.
Poderiam ser admitidas respostas diferentes, baseadas em distintas teorias interpretativas
(nomeadamente teorias de cunho valorativo), desde que enfrentado e resolvido o problema do
confronto entre a proibição da analogia e o tratamento do elemento literal como mera expressão
imperfeita do pensamento do legislador.

3 – Em matéria de aplicação da lei penal no tempo, vigora a regra geral da aplicação da lei
em vigor no momento da prática do facto, segundo os arts. 29.º, n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 1,
conjugado com o art. 3. º, do CP. No caso, trata-se da disposição legal que previa o crime de
difusão digital de ofensa à reputação de deputado.
No entanto, a L2, posterior à prática do facto e à condenação de Amélia, vem descriminalizar
a conduta, na medida em que deixa de integrar qualquer previsão típica jurídico-penal,
passando a constituir um ilícito de mera ordenação social.
Na medida em que a L2 é descriminalizadora, revela-se mais favorável. Mas haveria que
ponderar o tratamento a dar ao contexto desta descriminalização, em particular face à sucessão
de leis penais e contraordenacionais.
A maioria da doutrina converge na solução de punição pela contraordenação, concluindo que
é incorreto defender a extinção em absoluto da responsabilidade quando não exista uma
explícita e coerente vontade legislativa de extinção de toda a responsabilidade pelos factos
passados. Acresce que a criação de contraordenações integra-se ainda no programa de Política
Criminal, podendo ser vista como uma norma de sanção mais favorável para efeitos do artigo
2.º, n.º 4, do CP. Assim, pode sustentar-se que a aplicação do artigo 2.º, n.º 4, do CP, nestas
situações cabe ainda no sentido possível mínimo das palavras, de acordo com o sentido do
sistema, dado que, nestes casos, a aplicação do ilícito contraordenacional não afeta a confiança
dos destinatários (que no momento da prática do facto já podiam esperar ser sancionados).
Destarte, tendo Amélia já sido condenada, teria a condenação que ser alterada para aplicação
de uma coima (o que no caso parece ainda ser possível, por não ter ainda ocorrido o trânsito
em julgado) ou, caso se entendesse ter já ocorrido o trânsito em julgado, teria que se proceder
à reabertura do processo para aplicação da sanção mais favorável, nos termos do art. 371.º-A
do Código de Processo Penal.
Seriam admitidas outras orientações, nomeadamente a que considera estar vedada, nestas
situações, a aplicação retroativa do novo tipo contraordenacional, em face do disposto nos arts.
2.º e 3.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (RGIMOS), que
consagram o princípio da irretroatividade da lei. Nesta linha de orientação, estaríamos perante
a manifestação, no caso, de uma lacuna sancionatória que não poderia ser preenchida: em
primeiro lugar, porque não seria aplicável uma norma penal expressamente revogada em face
do artigo 2.º, n.º 2, do CP; em segundo lugar, porque as leis contraordenacionais estão sujeitas
ao aludido princípio da proibição retroativa das leis, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do
RGIMOS. Por esta via, a condenação da Amélia teria que ser revogada ou, caso se entendesse
ter já transitado em julgado, cessar os seus efeitos, sem qualquer outra consequência jurídico-
contraordenacional.

4 – A aplicação da lei portuguesa estaria, primeiramente, dependente da verificação do critério


territorial, de acordo com os arts. 4.º e 7.º, n.º 1, do CP. O enunciado não refere o local da
ocorrência do homicídio, pelo que haveria que ponderar também os critérios supletivos de
competência.
De entre os critérios supletivos do art. 5.º do CP, caberia examinar a aplicabilidade da al. e) do
n.º 1. Sendo Amélia portuguesa, encontrando-se em Portugal, e sendo o facto punido na
Alemanha, seria necessário perceber como se haveria de decidir o pedido de entrega.
Sendo a Alemanha membro da União Europeia, estaríamos no quadro de aplicação do regime
do mandado de detenção europeu (Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto). Uma vez que o crime em
causa se encontra na al. o) do art. 2.º, n.º 2, estaria dispensada a aferição da dupla incriminação.
Visto que o mandado foi emitido para cumprimento de pena, tanto a nacionalidade portuguesa
de Amélia, como a residência em Portugal, constituiriam motivos de recusa facultativa de
entrega, de acordo com o art. 12.º, n.º 1, al. g). Neste âmbito, caberia ao juiz ponderar se a
nacionalidade e a residência se traduziam numa ligação efetiva à comunidade portuguesa (se
Amélia tinha aqui a vida instalada, se exercia profissão em Portugal, etc.), por atenção aos seus
direitos fundamentais e à melhor prossecução dos fins das penas (mais concretamente, o de
ressocialização). O acionamento desta causa de recusa geraria a aplicação da lei portuguesa,
em consequência de uma decisão de não entrega de Amélia, por ficar integralmente preenchido
o regime do artigo 5.º, n.º 1, al. e, do CP.
Quanto à pena de prisão perpétua, a decisão de entrega dependeria da previsão, no sistema
jurídico alemão, de um regime de revisão da pena nos termos do art. 13.º, n.º 1, al. a), ou da
aplicação das medidas de clemência referidas na mesma alínea.
Seria ainda de referir que o art. 33.º, n.º 5, da CRP, exceciona regimes como o daquele 13.º dos
limites do art. 33.º, n.º 4, para casos de prisão perpétua. No entanto, pode defender-se, na linha
de Maria Fernanda Palma, que, sob pena de violação dos limites materiais à revisão
constitucional – art. 288.º, al. d) da CRP –, o art. 13.º, n.º 1, al. a), deve ser interpretado
restritivamente, na senda do regime do que vigora para casos de extradição, nos termos do art.
6.º, n.ºs 1, al. f), 2 e 3. Assim, só se fossem prestadas as garantias apontadas nestes artigos é
que Amélia poderia ser entregue, caso em que a lei portuguesa não seria aplicável.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Catarina Abegão Alves, Mafalda Moura
Melim e Rita do Rosário, e Licenciados Nuno Igreja Matos e Inês Vieira Santos
Exame coincidências de recurso – 25 de fevereiro de 2022
Duração: 120 minutos

Responda de modo fundamentado às perguntas seguintes:

1 – A questão suscita um problema de aplicação da lei no tempo, relacionado com o corolário


da lei prévia do princípio da legalidade penal. A regra geral é a da aplicação da lei em vigor no
momento da prática do facto [artigos 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição (CRP) e 2.º, n.º 1, do Código
Penal (CP)]. No caso, Alfredo sequestra a mulher das 23h30 do dia 25 de fevereiro – realizando
o tipo de sequestro qualificado previsto e punido no artigo 158.º, n.º 2, al. e), do CP – às 1h00 do
dia 26 de fevereiro. Sendo este um crime permanente, uma vez que se prolonga no tempo,
durando enquanto a detenção se mantém por vontade do sequestrador. Assim sendo, estão em
vigor no momento da prática do facto (o período supra delimitado), quer a versão anterior do
CP, quer a alteração enunciada, no que respeita ao sequestro simples.
O mesmo não se pode afirmar sobre o sequestro qualificado, uma vez que a conduta praticada
a partir das 00h00 do dia 26 de fevereiro não integra a criação de perigo para a vida da vítima, a
qual foi realizada antes da vigência da lei nova (às 23h45 do dia 25 de fevereiro). Por conseguinte,
a lei nova opera aparentemente uma desqualificação da conduta praticada por Alfredo. Estando,
contudo, perante um caso em que a lei nova transforma – apenas no que respeita ao bem jurídico
vida humana – um crime de perigo abstrato num de perigo concreto. Nestes casos, tendo o
perigo concreto ocorrido efetivamente, ainda que durante a vigência da lei antiga, considera a
doutrina a possibilidade de enquadramento no regime da sucessão de leis penais (por oposição
aos casos em que a alteração do tipo consubstancia uma descriminalização – neste caso,
desqualificação – da conduta e criação de um novo tipo, o qual não se poderá aplicar
retroativamente). A aceitação daquela orientação implicará, caso a lei nova se revele mais
favorável, a sua aplicação retroativa (artigo 2.º, n.º 4, do CP), contrariamente à solução da não
punição do agente pelo crime na forma qualificada, quer na forma da lei antiga – a qual deixa de
vigorar para efeitos de qualificação do crime (artigo 2.º, 2, do CP) –, quer da lei nova – cuja
aplicação ao facto realizado antes da sua vigência é proibida, por implicar retroatividade (artigos
29.º, nº 1 e 3, da CRP e 2.º, n.º 1, do CP), e consequente punição por sequestro simples.
No caso, não procedem os argumentos de que a punição pelo novo elemento, que restringe
o âmbito de previsão da norma, abarca uma violação dos princípios da culpa e segurança jurídica
pela impossibilidade de orientação do agente pelo elemento especializador, nem da igualdade,
pelo acaso em que é deixado face à prova de um perigo efetivo que não era relevante nos termos
da lei antiga, como era sustentado por Taipa de Carvalho nas edições anteriores da sua
monografia.
Com efeito, seguindo a orientação de Maria Fernanda Palma, não há uma posição tutelável
do agente cuja conduta praticada, por ter envolvido perigo efetivo para o bem jurídico, não
deixou de ser considerada pelo legislador: a descriminalização (desqualificação, neste caso) não
se refere às condutas efetivamente perigosas, dirigindo-se apenas ao perigo abstrato. Por outro
lado, a condenação pelo sequestro qualificado não materializa na ficção da oportunidade de
orientação do agente pela norma, havendo, por tudo, continuidade normativa, não deixando o
legislador de considerar factos como aquele praticado por Alfredo como sequestro qualificado.
Aceitando esta solução, o agente poderá ser punido pelo crime de sequestro qualificado à luz
da lei antiga, ou, caso seja mais favorável, da lei nova. No caso, a lei nova prevê, para situações
como a de Alfredo, uma atenuação especial da pena, pelo que se deverá puni-lo por crime de
sequestro qualificado com atenuação especial da pena, por força da alteração do artigo 158.º, n.º
2, al. e), do CP, aplicado retroativamente (artigos 29.º, n.º 4, da CRP e 2.º, n.º 4, do CP).

2 – A determinação da validade espacial da lei penal portuguesa deve principiar pela


identificação do lugar da prática do facto. Neste caso, quer a conduta quer o resultado típico dos
tipos de crime de sequestro (artigo 158.º, do CP) e condução perigosa de veículo rodoviário
(artigo 291.º, do CP) ocorreram em Portugal, sendo este então o local da prática do facto segundo
o princípio da ubiquidade, previsto no artigo 7.º, do CP. Deste modo, os tribunais portugueses
serão competentes para julgar Alfredo ao abrigo do critério da territorialidade, nos termos do
artigo 4.º, alínea a), do CP, conjugado com o artigo 5.º, da Constituição da República Portuguesa
(CRP). De afastar será a verificação de eventuais restrições à aplicação da lei penal portuguesa,
nos termos do artigo 6.º, do CP, uma vez que tais restrições apenas se aplicam às situações de
aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados fora do território nacional, o que não era o
caso.
A segunda resposta convoca um problema de cooperação judiciária internacional em matéria
penal. Dado que a Ucrânia não é um estado-membro da União Europeia, será de aplicar o regime
da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (LCJIMP), previsto na Lei n.º
144/99, de 31 de agosto, que releva do princípio da reciprocidade (cf. artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º
144/99).
Neste caso, Portugal deve efetuar um pedido de extradição à Ucrânia (cf. artigo 1.º, n.º 1,
alínea a) da Lei n.º 144/99), uma vez que Alfredo regressou, entretanto, a este país, competindo
ao Ministro da Justiça formular tal pedido de extradição, nos termos do artigo 69.º, n.º 1 da Lei
n.º 144/99.
A Ucrânia pode extraditar Alfredo para efeitos de procedimento criminal em Portugal, nos
termos do artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99.
A isto acresce que quer o crime previsto no artigo 158.º, do CP, quer o crime previsto no
artigo 291.º, do CP, preveem penas de duração máxima não inferior a um ano, pelo que, na falta
de indicação em contrário, será de presumir que o requisito qualitativo da dupla incriminação
bem como o requisito quantitativo relativo à medida da pena, ambos consagrados no artigo 31.º,
n.º 2 da Lei n.º 144/99, também se encontram verificados à luz da lei penal ucraniana.
Por fim, não há razões para que a extradição fosse excluída nos termos do artigo 32.º, da Lei
n.º 144/99, nem se verifica nenhum requisito geral negativo da cooperação internacional (cf.
artigo 6.º, da Lei n.º 144/99), nem sequer nenhum fundamento para a recusa da extradição tendo
em conta a natureza das infrações em causa (cf. artigo 7.º, da Lei n.º 144/99), pelo que o pedido
de extradição formulado por Portugal deveria ser cumprido pela Ucrânia.

3 – A questão em análise convoca um problema de conceito material de crime. Ora, na análise


da constitucionalidade de uma norma incriminatória, é necessário atender a que só haverá
legitimidade para preservar bens jurídicos comparáveis aos que se sacrifica, no limite, à liberdade
humana, considerando que o Direito Penal consagra penas privativas da mesma. Sendo a
intervenção do Direito Penal, em Estado de Direito Democrático alicerçado na dignidade da
pessoa humana (artigo 1.º, da CRP) fragmentário, de ultima ratio, o artigo 18.º, n.º 2 da CRP
impõe, no mesmo sentido, que esta interferência se limite à tutela de direitos e interesses
constitucionalmente protegidos, i.e., de bens jurídicos essenciais à subsistência da sociedade e ao
livre desenvolvimento da personalidade ética de cada um.
Na hipótese em exame, cumpre assinalar, desde logo, que o Parlamento possui competência,
nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, para definir os crimes e respetivos
pressupostos. Todavia, a construção dos tipos incriminadores acha-se sujeita às imposições do
princípio da legalidade, nomeadamente às exigências de lei estrita e certa. Em suma, a Assembleia
da República deve garantir a tutela de bens jurídicos dotados de relevância penal através da
construção de normas que apresentem um elevado grau de determinação na descrição das
condutas incriminadas e respetivas consequências (artigo 29.º, n.º 1, da CRP). Desse modo,
apenas se poderá considerar típico o comportamento que se encontre descrito na norma, o que
se traduz na proibição de analogia, tal como consagrada no n.º 3 do artigo 1.º, do CP, e reforçada
no artigo 29.º, n.º 3, da CRP.
Examinando o tipo incriminador referido, poderemos considerar que o bem jurídico
protegido corresponde à saúde da mulher – integridade física e moral –, em paralelo com a
autonomia, uma vez que também se sancionam os comportamentos suscetíveis de “limitar o
respetivo poder de escolha e de decisão”. Deste modo, uma potencial inconstitucionalidade da
incriminação não parece assentar na ausência de bem jurídico afetado pela conduta, tendo em
conta a natureza dos interesses em causa. O problema poderá residir, todavia, na forma escolhida
pelo legislador para prosseguir tal desiderato.
Efetivamente, resulta claro e evidente da leitura do tipo incriminador o recurso reiterado a
conceitos indeterminados e elementos de natureza psicológica, subjetivamente condicionados –
“dano ou sofrimento desnecessário”; “limitação do poder de escolha e de decisão” – que poderão
obstar a uma adequada compreensão da conduta proibida.
A este propósito, assinale-se que a utilização de conceitos indeterminados, por si, não implica
a violação do princípio da legalidade penal e a consequente inconstitucionalidade da
incriminação, sempre que a sua redação, ainda que indeterminada e aberta, se revele
materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o
cidadão deve evitar. Recorre-se, aqui, ainda que de forma indireta, ao critério autónomo da
ilicitude, nos termos do qual se exige que a disposição preveja o bem jurídico protegido, o
desvalor da ação e o desvalor do resultado – quando aplicável.
À luz deste critério, entende-se que a norma em causa apresenta um grau de indeterminação
insuscetível de orientar adequadamente a conduta do médico, especialmente num contexto
especialmente perigoso como aquele que se pretende regular. Acresce ainda que, tratando-se de
um crime comum, o médico é equiparado não só a qualquer agente, como a outros profissionais
de saúde (enfermeiros, anestesistas, por exemplo), e ainda a médicos de outras especialidades,
que não possuem, naturalmente, o grau de conhecimento técnico que lhes permite aferir – e
ponderar – convenientemente os riscos da situação. Para além disso, uma eventual atuação ilícita
do médico sempre seria potencialmente reconduzível à previsão do artigo 150.º, n.º 2, do CP, o
que sugere uma violação do princípio da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
Nestes termos, o médico poderia invocar a inconstitucionalidade da norma, em sede de
julgamento, por inobservância deste princípio e ainda por violação do princípio da legalidade
criminal, na vertente de lei certa (artigo 29.º, n.º 1, da CRP).

4- Estamos perante um problema de aplicação da lei penal no espaço, em concreto sobre


pedidos de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal. O facto é praticado no
estrangeiro, em concreto na Bielorrússia.
Considerando que Alfredo se encontra em Portugal, o pedido de extradição formulado pela
Bielorrússia para o julgar por factos relacionados com crime de burla na Bielorrússia demanda a
aplicação do regime da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (LCJIMP) pois não se trata de país
membro da União Europeia (estando, por isso, excluída a aplicação da Lei n.º 65/2003, de 23 de
agosto (LMDE).
A forma de cooperação judiciária internacional em causa é a extradição (artigo 1.º, alínea a)
da LCJIMP), que pressupõe acordo formal de cooperação entre Portugal e a Bielorrússia, assente,
designadamente, em uma convenção internacional (artigo 3.º, da LCJIMP) e na observância do
princípio da reciprocidade (artigo 4.º, da LCJIMP).
Estaríamos perante uma extradição que assumiria a forma passiva, i.e., extradição para entrega
ao Estado que a requer, e o princípio da dupla incriminação estaria observado, já que o facto está
tipificado como crime (artigo 217.º, do CP) em ambos os Estados e está em causa extradição
para efeitos de procedimento criminal (artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da LCJIMP).
A circunstância de Alfredo ser um cidadão português implica que se aplique o artigo 33.º, n.º
1, da CRP, sendo a regra a da não extradição de nacionais em território português (“1. Não é
admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional.”) (o n.º 3 do artigo 33.º, da CRP apenas
admite extradição na medida em que existam condições de reciprocidade estabelecidos em
convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada e
desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de processo justo e
equitativo, que não será o caso).
Por outro lado, sempre a circunstância de Alfredo ser um conhecido opositor da invasão do
país estrangeiro à Ucrânia e a Bielorrússia ser um aliado do país estrangeiro que atacou a Ucrânia,
implica que se atente ao princípio da não extradição ou entrega a qualquer título por motivos
políticos tal como consagrado nos artigos 33.º, n.º 6, da CRP e 7.º, n.º 1, a), da Lei n.º 144/99,
de 31 de agosto (crimes de natureza política e infrações conexas).
Sucede que, a relação entre o artigo 33.º, n.º 6, da CRP e o artigo 7.º, n.º 1 a), da LCJIMP, não
é de absoluta coincidência: o primeiro, preceito constitucional, refere-se à recusa da extradição a
qualquer título por “motivos políticos” e por referência a um critério de pendor mais subjetivista,
enquanto o artigo 7.º, n.º 1, a), da LCJIMP utiliza o conceito de “crime de natureza política”,
critério objetivo e eventualmente de base legal.
A adotar-se um critério objetivo de base legal, como parece sugerir a redação do artigo 7.º,
n.º 1, a), da LCJIMP, e na falta de consagração expressa ou explícita, sempre o mesmo teria de
ser aferido por referência aos crimes que a lei associa a funções políticas1, estando a “natureza
política” (e infrações conexas) relacionada com a atividade de titulares de cargos políticos.
Contudo, atendendo a que a ratio do artigo 33.º, n.º 6, da CRP é a de evitar não só a extradição
em caso de “crimes de natureza política” segundo um critério objetivo, mas verdadeiramente a
manipulação da extradição por razões de mera perseguição política, o foco deve estar não na
natureza objetiva dos crimes, mas na motivação que subjaz o pedido de extradição em causa.
Assim, sempre a melhor interpretação, conforme à Constituição, do artigo 7.º, n.º 1, a), da
LCJIMP é a que admite o sentido de “natureza política” como um indício objetivo que obsta a
uma subjetivação excessiva da qualificação de “motivação política”, sem que com este se restrinja
a recusa de extradição a um certo tipo de crimes segundo um critério objetivo. De outra forma,
corríamos o risco de, perante uma interpretação muito restritiva do que fossem crimes de
“natureza política”, ser admitida a extradição em situações de perseguição política ainda que o(s)
crime(s) em causa não fosse(m) de natureza política stricto sensu.
Ora, considerando que Alfredo é conhecido opositor da invasão pelo país estrangeiro que é
apoiado pela Bielorrússia, sempre caberá a recusa da extradição, considerando a interpretação do
artigo 7.º, n.º 1, a), da LCJIMP em conformidade com a Constituição nos termos descritos e que
o pedido de entrega seria para perseguição política.

5 – Suscita-se um problema de interpretação da lei penal, relacionado com a questão de saber


se Alfredo comete um crime de sequestro ao colocar um cinto de segurança na sua mulher, contra
a sua vontade — concretamente, se essa conduta é passível de integrar um comportamento
enquadrável numa forma de detenção, prisão, manter presa ou detida outra pessoa de forma a
privá-la da sua liberdade.
O caso convoca necessariamente a aplicação do princípio da legalidade, em particular do
corolário nullum crimen nulla poena sine lege stricta [cf. artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP. Acompanhando
a tese de Maria Fernanda Palma, a interpretação permitida em Direito Penal, para salvaguardar a
segurança jurídica e a conformidade com o disposto no artigo 1.º, n.º 3, do CP deve ser suportada
no sentido possível das palavras (compreendido no quadro do seu sentido comunicativo comum
no contexto significativo do texto da norma), alicerçando-se ainda na articulação desse sentido
com a essência do proibido subjacente à norma criminal. Esta conceção diferencia-se das teses
interpretativas valorativas, que admitem um afastamento do sentido das palavras para extrair a
ideia do proibido de outras proveniências, como o sejam — seguindo, por exemplo, Castanheira
Neves — as intenções e valores elegidos pelo legislador com correspondência sistemática,
dogmática e jurisprudencial.
Focando na primeira conceção interpretativa enunciada, constata-se que não existe qualquer
correspondência entre a conduta de Alfredo e o enunciado linguístico que conforma

1 V.g., Lei n.º 34/87.


normativamente o crime de sequestro. Em primeiro lugar, porque a conduta em causa não
implicou “prender” e “manter presa” a mulher. Em segundo, porque, por razões idênticas, a
conduta em causa não revela uma atuação “por forma a privar da liberdade”.
Com efeito, ainda que a colocação do cinto de segurança possa equivaler a um modo de
“prender” e “manter” alguém a um assento num veículo automóvel, o uso destas palavras no
artigo 158.º, do CP não quadra com este significado. Estando em causa um crime cuja essência
da proibição tutela a liberdade pessoal, o sentido comunicacional daquelas palavras, para se
manterem alinhadas com essa essência, apenas abrange comportamentos que afetem a liberdade
da vítima sem possibilidade de libertação. Ora, a simples colocação do cinto não traduz uma
privação de liberdade irreversível, porque a mulher poderia voluntariamente remover o cinto por
si.
Acresce que, similarmente, a expressão “por forma a privar da liberdade” também não se
pode ter por verificada. Por um lado, o comportamento de Alfredo não permite afirmar que o
seu ato tenha sido dirigido por uma intenção de – “por forma” a – privar a sua mulher de
liberdade, antes de proteger a sua segurança, bem como a segurança do feto. Por outro lado, o
facto de ter sido colocado um cinto de segurança durante a viagem até ao hospital não denota
uma conotação próxima do sentido social em que se emprega aquela expressão, que faz supor
alguma permanência e duração. Assim é porquanto, como referido, a mulher podia remover o
cinto se assim pretendesse. Mas também porque o cinto não ficou colocado durante um período
suficientemente longo — o tempo do percurso até ao hospital — para encontrar
correspondência na essência da proibição.
Em face do sobredito, a conduta de Alfredo não é subsumível ao artigo 158.º, do CP, sob
pena de se incorrer numa interpretação proibida, vedada pelo artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP, e
1.º, n.º 3, do CP.

6 – Para além do tipo incriminador do artigo 158.º, n.º 2, do CP (qualquer que seja a versão
aplicável), o comportamento de Alfredo subsume-se textualmente, ainda, nos tipos
incriminadores do artigo 158.º, n.º 1, e do 291.º, n.º 1, alínea b), todos do CP. Nos termos do
artigo 30.º, n.º 1 (no caso, primeira parte), do CP, a subsunção em vários tipos incriminadores
corresponde a um concurso de crimes. Porém, por um lado, só poderá haver um concurso de
crimes se, antes disso, existir um concurso efetivo de normas, sendo que, entre os tipos do 158.º,
n.º 1, o tipo simples, e o do 158.º, n.º 2, o tipo agravado, o concurso de normas é aparente, sendo
o último especial face ao primeiro (relação lógica de especialidade) e, consequentemente,
prevalecendo na sua aplicação. Desta maneira, fica afastada a aplicação conjunta do artigo 158.º,
n.º 1, com a do n.º 2, de maneira a respeitar-se o princípio constitucional do non bis in idem (artigo
29.º, n.º 5, da CRP). Por outro lado, e por aplicação do critério do significado social autónomo
de ilicitude (dentro do comportamento global), sempre se pode ponderar senão haverá um
concurso aparente de crimes (relação funcional) entre os tipos do artigo 158.º, n.º 2, e do 291.º,
n.º 1, alínea b) (ainda por respeito pelo princípio do non bis in idem), já que sempre se pode alegar
que o desvalor do sequestro é o predominante, absorvendo o da condução perigosa de veículo
rodoviário (e sendo a punição superior). De facto, há uma estreita conexão situacional, não só
espácio-temporal, mas de finalidades (a urgência em levar a mulher para o hospital), tendo a
condução perigosa ocorrido no contexto do sequestro.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Catarina Abegão Alves, Mafalda Moura
Melim e Rita do Rosário, e Licenciados Nuno Igreja Matos e Inês Vieira Santos
Exame – 14 de fevereiro de 2022
Duração: 120 minutos

Tópicos de correção

1 – Estando em causa o crime de omissão de vacinação – e não cabendo, na resposta a esta


questão, a avaliação da possível inconstitucionalidade desta incriminação, a qual se realizará na
resposta à pergunta 3 –, a análise da competência dos tribunais portugueses para julgar André
deverá iniciar-se pela determinação do lugar da prática do facto. Tratando-se de uma omissão,
cabe identificar o local em que a ação (apresentação para vacinação) deveria ter sido praticada,
neste caso, Portugal, sendo este o locus delicti, de acordo com o princípio da ubiquidade previsto
no artigo 7.º do Código Penal (CP). Haverá, por conseguinte, competência territorial dos
tribunais portugueses para julgar André pela referida omissão, nos termos do artigo 4.º, alínea a),
do CP, conjugado com o artigo 5.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Não se
coloca, neste caso, qualquer problema de restrição da aplicação da lei portuguesa (artigo 6.º do
CP), pelo que esta é aplicável.
A segunda questão refere-se ao problema de cooperação judiciária internacional em matéria
penal. Sendo a Alemanha um Estado-Membro (EM) da União Europeia (UE), Portugal deve
emitir um mandado de detenção europeu (MDE), sendo de analisar o regime constante da Lei
n.º 65/2003 (LMDE), observando o princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º da LMDE).
Uma vez que é Portugal o EM de emissão, o âmbito de aplicação do MDE terá de obedecer
às regras constantes do artigo 2.º da LMDE, por força do artigo 37.º do mesmo diploma.
Considerando que este MDE será requerido para efeitos de procedimento criminal, como sugere
a questão colocada, a pena prevista neste país para o crime de omissão de vacinação deverá ter
uma duração máxima não inferior a 12 meses, o que, considerando a estatuição descrita no
enunciado, está verificado (artigo 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da LMDE). A infração em causa não se
enquadra no elenco do artigo 2.º, n.º 2, da LMDE, pelo que é necessária a verificação da dupla
incriminação, nos termos do artigo 2.º, n.º 3, da mesma Lei. Caso a omissão de vacinação não
seja punida de acordo com a lei alemã, a execução do MDE deverá ser recusada pela Alemanha,
por violação do princípio da dupla incriminação, nos termos do artigo 11.º, alínea f), da LMDE.
Por outro lado, se se admitir que a lei alemã contempla um tipo incriminador semelhante à
infração descrita, o mesmo deverá ser executado, salvo decisão fundamentada de recusa de
execução do MDE pelas autoridades alemãs. Os dados do enunciado não permitem identificar
qualquer motivo de recusa obrigatória de execução do mandado (artigos 11.º e 13.º, n.º 1, alínea
a), da LMDE. Não se verifica, também qualquer motivo de recusa facultativa (artigos 12.º e 13.º,
n.º 1, alínea b)) pelo que a Alemanha deverá executar o MDE, entregando André às autoridades
portuguesas.
2 – Tendo sido declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 5.º
da Lei X-2022, os efeitos desta declaração de inconstitucionalidade são os que constam no n.º 1
do artigo 282.º, n.º 1, da CRP – a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional e determina a
repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.
Mas o n.º 3, primeira parte, do artigo 282.º, da CRP, prevê uma ressalva do caso julgado. Esta
ressalva poder-se-ia aplicar ao caso de André, pois a hipótese diz-nos que este já tinha sido
condenado no dia 1 de abril (apesar de não termos indicações da efetiva existência de caso
julgado, na medida em que não temos indicação do tempo que distou entre a condenação e a
declaração de inconstitucionalidade).
Todavia, in casu esta ressalva do caso julgado não se aplica, porquanto o n.º 3, segunda parte,
do artigo 282.º, da CRP, dispõe que se houver decisão em contrário do Tribunal Constitucional
não se ressalvará o caso julgado se a norma declarada inconstitucional for de conteúdo menos
favorável ao arguido e respeitar a matéria penal, o que é o caso. Aqui a CRP deve ser lida de
acordo com os princípios constitucionais subjacentes, sendo que cabe ao Tribunal Constitucional
avaliar se uma norma é ou não menos favorável e, se a resposta for positiva, este não terá um
poder discricionário. Portanto, a possibilidade prevista no n.º 3, segunda parte, do artigo 282.º,
da CRP, é uma possibilidade vinculada. Esta interpretação restritiva no sentido da existência de
um poder vinculado do Tribunal Constitucional, no caso em que a lei repristinada é mais
favorável, é efetuada de acordo com o pensamento do legislador e com os princípios
constitucionais, nomeadamente com o princípio da aplicação de lei de conteúdo mais favorável.

3 – A questão em análise convoca um problema de conceito material de crime. Ora, na análise


da constitucionalidade de uma norma incriminatória, é necessário atender a que só haverá
legitimidade para preservar bens jurídicos comparáveis aos que se sacrifica, no limite, à liberdade
humana, considerando que o Direito Penal consagra penas privativas da mesma. Sendo a
intervenção do Direito Penal, em Estado de Direito Democrático alicerçado na dignidade da
pessoa humana (artigo 1.º da CRP) fragmentário, de ultima ratio, o artigo 18.º, n.º 2 da CRP impõe,
no mesmo sentido, que esta interferência se limite à tutela de direitos e interesses
constitucionalmente protegidos, i.e., de bens jurídicos essenciais à subsistência da sociedade e ao
livre desenvolvimento da personalidade ética de cada um.
No presente caso, a Lei X-2022 da Assembleia da República prevê a incriminação da conduta
correspondente à omissão de vacinação relativa à Covid-19, punindo-a com pena de prisão até 1
ano ou pena de multa até 240 dias. Deste modo, uma eventual inconstitucionalidade deste
preceito pode encontrar o principal fundamento na violação do princípio da necessidade pena
(artigo 18.º, n.º 2 da CRP), expresso na ideia de carência de tutela penal. Com efeito, a
identificação de um possível bem jurídico protegido por esta norma incriminadora – para quem
a entenda como condição de validação de uma incriminação – não se revela difícil,
correspondendo, grosso modo, à saúde pública. No entanto, o recurso ao direito penal só se achará
legitimado quando não existam mecanismos menos gravosos de tutela dos bens jurídicos
protegidos, considerando que está em causa a aplicação de sanções restritivas de direitos
fundamentais.
Na hipótese em análise, esta dimensão manifesta-se com especial acuidade atendendo desde
logo à (prévia) existência de um crime de propagação de doença (artigo 283.º do CP), que parece
pretender alcançar propósitos idênticos ao da referida norma da Lei X/2022. De facto, ambas as
incriminações almejam evitar a disseminação de doenças – no caso da segunda, especificamente
a Covid-19 – tipificando condutas que contribuem para tal propagação. Acresce ainda que, no
que concerne ao crime ora em exame, a consagração deste comportamento como merecedor de
sanção penal implica uma imposição (indireta) de vacinação, suscetível de afetar a liberdade
individual e o direito à saúde (artigo 64.º da CRP). Como fator de ponderação adicional, cumpre
aludir à dimensão da adequação, mostrando-se inverosímil que a ameaça da pena possa funcionar
como mecanismo de prevenção e, consequentemente, garantir a tutela do bem jurídico a
proteger.
Ainda assim, releva sublinhar o carácter pandémico do vírus em causa, a respetiva facilidade
de propagação, e os efeitos sistémicos já conhecidos, que poderiam reclamar uma solução
excecional, como forma de resposta à situação de emergência. No entanto, as restrições impostas,
por esta via, a direitos fundamentais não parecem surgir como necessárias, atendendo aos
argumentos supra indicados.
Em síntese, a existência de formas alternativas de tutela implicaria a inconstitucionalidade
material da incriminação constante do artigo 5.º da Lei X/2022, por violação do princípio da
necessidade da pena (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).

4 – A questão em apreço convoca um problema de princípio da legalidade, na vertente da


reserva de lei (lex scripta) (artigos 29.º, n.º 1 da CRP e 1.º, n.º 1 CP), em concreto, proibição das
normas penais em branco, i.e., normas que estabelecem o conteúdo da sua previsão ou da sua
estatuição por remissão para outras normas hierarquicamente inferiores.
No caso, apesar de ter sido aprovada pela Lei X-2022, a incriminação constante do artigo 5.º,
que prevê a necessidade de comparência para vacinação à Covid-19, bem como a estatuição que
estabelece a moldura penal em caso de inobservância, tem parte da sua previsão, a que diz
respeito à hora, local e data, determinada pelas autoridades de saúde, ficando os referidos
elementos subtraídos ao âmbito da lei aprovada pela Assembleia da República (artigo 165.º, n.º
1, alínea c) da CRP).
Apesar de vigorar, no Direito Penal, o princípio da determinação das normas incriminadoras,
segundo o qual todos os pressupostos da incriminação têm de estar descritos e ser regulados por
lei, nem todas as normas penais em branco são inconstitucionais por violação do princípio da
legalidade, antes sendo necessário atender ao grau de esvaziamento do conteúdo percetivo da
norma e/ou à atribuição da competência a leis hierarquicamente inferiores ou a atos
administrativos.
Ora, apesar de a definição da hora, local e dia ser atribuída às autoridades de saúde e, por isso,
definida por ato administrativo, o núcleo fundamental do comportamento proibido pela norma,
conteúdo do ilícito, não depende totalmente da norma para a qual se remete. A incriminação e,
em particular, o interesse prosseguido recaem sobre a “não comparência para vacinação relativa
à Covid-19”, traduzindo-se este elemento no cerne do ilícito (sentido essencial do
comportamento proibido), a qual é punida com “pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias”,
estando a estatuição também devidamente consagrada. Pode concluir-se que a remissão daqueles
elementos (dia, hora e local) para as autoridades de saúde é um aspeto essencialmente técnico,
não estando o objeto da norma remissiva – a obrigatoriedade de vacinação - dependente do
conteúdo concreto destes elementos. Nestes casos, como é o em apreço, a norma incriminadora
produz o seu efeito incriminador ou tutela o interesse prosseguido em pleno, independentemente
do conteúdo da norma para a qual se remete.
Por outro lado, não se pode considerar que a remissão em causa afete a previsibilidade e
segurança jurídicas pois a proibição de não comparecer para ser vacinado já está contida na
primeira norma, aprovada pela Lei X/2022, estando dependente da hora, local e dia apenas um
efeito de regulação.
Assim, a norma remissiva não padece de inconstitucionalidade material por violação do
princípio da legalidade (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da CRP), nesta vertente, porque regula diretamente
o comportamento proibido e permitido.

5 – O caso coloca um problema de interpretação da lei penal, que convoca o princípio da


legalidade, sob a veste do seu corolário nullum crimen nulla poena sine lege stricta (cf. art. 29.º/1 e 3
da Constituição da República Portuguesa).
De acordo com a proposta de Maria Fernanda Palma, ancorada em raciocínios analógicos, a
interpretação permitida em Direito Penal, para salvaguarda da segurança jurídica e conformidade
com o disposto no art. 1.º/3 do Código Penal, deve estribar-se no sentido possível das palavras
(compreendido no quadro do seu sentido comunicativo comum, enquadrado no contexto
significativo do texto da norma). Este sentido deve, igualmente, articular-se com a essência do
proibido subjacente à norma criminal. Uma vez concretizada essa articulação, torna-se possível
distinguir a interpretação permitida da interpretação proibida. Esta conceção diferencia-se, por
isso, das teses de cunho vincadamente valorativo, como a que é sustentada, por exemplo, por
Castanheira Neves, que vê nas palavras apenas uma exteriorização possível da norma, cuja ideia
do proibido pode, por isso, ser encontrada noutras proveniências, como o sejam as intenções e
valores elegidos pelo legislador com correspondência sistemática, dogmática e jurisprudencial,
sem limitação pelo texto legal.
Feito este enquadramento, constata-se que a conduta de André suscita dúvidas interpretativas
no que respeita à sua abrangência pela disposição legal do artigo 5.º da Lei X-2022 porque,
aparentemente, André terá cumprido o dever cuja omissão aquele artigo pretende punir
(comparecer no centro de vacinação indicado, no dia e à hora indicados).
Chamando à resolução do caso a conceção interpretativa de Maria Fernanda Palma, uma
primeira abordagem ao problema poderá levar a concluir que não existe correspondência entre a
conduta de André (que compareceu no centro de vacinação no local, dia e hora indicados) e a
norma punitiva (que pune a não comparência). O facto de ter estado presente no centro de
vacinação, e de eventualmente até lá se ter dirigido com o propósito de se vacinar, poderia sugerir,
assim, uma ausência de correspondência entre o comportamento de André e o sentido possível
e comunicacional da expressão “não comparecer no centro de vacinação”.
No entanto, uma análise mais rigorosa aos factos do caso e à norma jurídico-penal revela que
esta primeira leitura não é sustentável e não pode, por isso, ser admitida. Em primeiro lugar,
porque o significado de '(não) comparência', no seu sentido social comunicacional, no contexto
normativo e social (contexto de pandemia) em que é utilizado, tem como sentido primordial a
'não-vacinação'. Em segundo lugar, a articulação deste sentido com a essência da proibição (que,
neste caso, por estar em causa um crime omissivo, se manifesta sob a forma de uma obrigação)
corrobora este entendimento. Visando-se a tutela da saúde pública (e de outros bens, incluindo
individuais, que com este se relacionam mediatamente), percebe-se que esse desígnio é
prosseguido por via da vacinação de todos os residentes nacionais. Nesta senda, mais claro fica
que a norma se dirige à punição da omissão de vacinação e não da omissão de comparência no
centro de vacinação, e que, por conseguinte, é esse o âmbito da punição, não se ultrapassando
os limites impostos pelo princípio da legalidade.
Diga-se ainda, em reforço da solução apresentada, que esta interpretação encontra ainda
respaldo no elemento literal que se extrai da epígrafe que titula a disposição legal (“omissão de
vacinação relativa à Covid-19”). Mais: não só o sentido comunicacional das palavras, a essência
da proibição e o elemento literal da epígrafe permitem concluir que assim é, como isso também
sempre decorreria de uma interpretação guiada por mecanismos lógicos. É que o contexto da
aprovação da norma, associado à pandemia de Covid-19, sempre tornaria suficientemente
previsível para os destinatários da norma, independentemente do maior ou menor rigor das
palavras empregues, que o seu propósito é o de obrigar à vacinação. Até porque, por tudo o
exposto, não seria logicamente suportável obrigar as pessoas a comparecer num centro de
vacinação, sem mais.
Em face do exposto, o comportamento de André estaria abrangido pela norma jurídico-penal,
pelo que poderia ser punido pela prática de crime de omissão de vacinação relativa à Covid-19.

6 – Pergunta-se, por outras palavras, se há ou não um concurso de crimes. Desde logo, a haver
um concurso de crimes, será um concurso real, por existir uma pluralidade de condutas
(omissões, mais propriamente), e homogéno, por só estar preenchido um tipo incriminador, o
do artigo 5.º da Lei X-2022. E é por esta mesma razão que, à partida, e por força da segunda
parte do artigo 30.º, n.º 1, do CP, existirá um concurso de crimes.
Porém, poder-se-á ponderar se não se tratará de um concurso aparente de crimes,
nomeadamente, por aplicação do critério do sentido social de ilicitude da conduta na sua
globalidade, avançado pelo Prof. Figueiredo Dias. Dificilmente se vislumbra, no caso, um
preenchimento do tipo incriminador em questão que se sobreponha aos restantes, de maneira a
que possa ser tido como o ilícito predominante ou principal. Desde logo, por ausência de uma
relação funcional do género meio-fim. O desfasamento temporal também consittui um indício
de que estamos perante uma pluralidade de sentidos de ilicitude. Quando muito, poderá haver
uma unidade de desígnio criminoso – André pode simplesmente ter decidido não ser vacinado
de todo, qualquer que seja a circunstância –, fator que pode conferir um sentido
fundamentalmente unitário de ilicitude ao seu comportamento global.
Havendo um concurso efetivo de crimes, fica de lado a hipótese de o mesmo ser tratado como
um crime continuado (artigo 30.º/2), por força do artigo 30.º/3 (estão em questão bens
eminentemente pessoais), o que, relativamente ao modo como o agente será punido, impõe a
aplicação do artigo 77.º (punição pela soma das penas aplicáveis aos vários crimes, embora numa
única pena) e impede a aplicação do artigo 79.º (punição só por uma das condutas, a mais grave).
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Catarina
Abegão Alves, Mafalda Moura Melim e Rita do Rosário, e Licenciados
Nuno Igreja Matos e Inês Vieira Santos
Exame de coincidências - 24 de janeiro de 2022
Duração: 120 minutos

1 – O caso coloca um problema de interpretação da lei penal, concretamente a questão de


saber se, perante a ausência de um crime específico para o efeito, pode ainda ser punido
como crime de maus-tratos a conduta de abandono de animal de companhia. A problemática
convoca necessariamente o princípio da legalidade, em particular do corolário nullum crimen
nulla poena sine lege stricta [cf. artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa
(CRP)].
Acompanhando a tese de Maria Fernanda Palma, a interpretação permitida em Direito
Penal, para salvaguardar a segurança jurídica e a conformidade com a proibição da analogia
decorrente do artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal (CP), deve estribar-se do sentido possível
das palavras (compreendido no quadro do seu sentido comunicativo comum e no contexto
significativo do texto da norma), alicerçando-se ainda na articulação desse sentido com a
essência do proibido subjacente à norma criminal. Esta conceção diferencia-se das teses de
cunho vincadamente valorativo, que negam qualquer limitação interpretativa decorrente do
texto legal, como a que é sustentada, por exemplo, por Castanheira Neves, que vê nas
palavras apenas uma exteriorização possível da norma, cuja ideia do proibido pode, por isso,
ser encontrada noutras proveniências, como o sejam as intenções e valores elegidos pelo
legislador com correspondência sistemática, dogmática e jurisprudencial.
Embora se desconheça a redação do crime de maus-tratos a animal de companhia no país
onde Adelino praticou o comportamento de abandono, uma aproximação ao texto da norma
correspondente poderia ser conseguida por via do manuseio, por exemplo, do disposto no
artigo 387.º, n.º 3, do CP (que prevê o tipo base do crime de abandono de animal de
companhia em Portugal). A conduta de Adelino suscita dúvidas interpretativas precisamente
porque, embora a noção de maus tratos não aparente incluir no seu âmago o comportamento
de abandono — por pressupor, ao invés, uma conduta do agente direta e imediatamente
lesiva da integridade do animal —, a verdade é que o abandono pode implicar para o animal
de companhia um risco significativo de vir a sofrer danos idênticos, o que pode indiciar
alguma correspondência entre condutas, considerando fundamentalmente a essência da
proibição subjacente ao crime.
Focando na conceção interpretativa primeiramente enunciada, afigura-se, porém, que não
existe correspondência suficiente entre a conduta de Adelino e uma situação de maus-tratos.
Com efeito, o abandono de animal de companhia é um comportamento dotado de uma
significação social própria e com contornos particulares bem vincados juridicamente,
estando associado a um comportamento não violento de abandonamento de outrem (pense-
se, por exemplo, na contraposição entre crimes de ofensas à integridade física e o crime de
exposição ou abandono). Acresce que o enunciado não indica que o abandono do gato tenha
ocorrido em circunstâncias imediatamente perigosas, nem sequer que o gato tenha sofrido
um dano, o que dificulta adicionalmente o enquadramento do comportamento de Adelino
no sentido possível e comunicacional das palavras “maus-tratos”. Poderia ainda discutir-se
se a omissão de um crime de abandono é passível de ser suprida por via de um argumento
de identidade de razão suficientemente previsível para os destinatários da norma (conforme
explorado, por exemplo, no caso do lobo ibérico). Não obstante, afigura-se que, em face das
razões aduzidas sobre a diferença de significados materiais e sociais entre os
comportamentos, e, bem assim, por não ser aqui viável uma lógica a fortiori, tal argumentação
não seria conciliável com os esteios da segurança jurídica, do controlo democrático e do
princípio da culpa que dão forma ao princípio da legalidade.
Sem prejuízo do entendimento exposto, distinta resposta poderia vir a ser admitida,
designadamente por via da densificação de uma distinta teoria interpretativa.

2 – Uma vez que em causa está uma eventual restrição à aplicação da lei portuguesa, prima
facie ter-se-á de resolver o problema da verificação de alguma conexão espacial do facto com
a lei penal portuguesa.
Adelino abandonou no país estrangeiro um gato de estimação, pelo que, nos termos do
artigo 7.º do CP, o facto não foi praticado em território português, mas sim no país
estrangeiro. Assim, não será possível aplicar o princípio geral da territorialidade, previsto no
artigo 4.º, do CP.
De indagar será a competência extraterritorial da lei penal portuguesa, à luz da legislação
extravagante, bem como do artigo 5.º, do CP. Nada no caso especifica a prática de tráfico de
pessoas a bordo de aeronave civil, pelo que se afasta a competência dos tribunais
portugueses, nos termos do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro. Também a
aplicação da Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto, e da Lei n.º 31/2004, de 22 de julho, será de
afastar já que o facto praticado por Adelino não envolve terrorismo nem violação do Direito
Internacional, respetivamente.
Já nos termos do artigo 5.º, do CP, é de excluir a aplicação da alínea a) do n.º 1, pois o
crime em apreço não integra o catálogo de infrações contra interesses nacionais; também a
alínea b) deve ser afastada, uma vez que não se verifica a nacionalidade portuguesa da vítima.
De afastar é ainda a aplicação das alíneas c) e d), na medida em que o crime em causa também
não faz parte do elenco de infrações suscetíveis de levar à aplicação do princípio da
universalidade.
Deste modo, aparentemente, tomar-se-ia como aplicável a alínea e) do artigo 5.º, do CP,
porquanto o agente é português, este foi encontrado em Portugal e existe dupla incriminação.
Quanto ao requisito que consta do inciso iii), o caso não nos fornece indicações acerca do
país estrangeiro em causa, para além de não ter sido indicado se foi efetuado qualquer pedido
de extradição ou se foi emitido um mandado de detenção europeu. Mas, se se tratasse de um
país fora da União Europeia, seria de concluir que o crime em questão admite a extradição
(artigo 7.º, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, a contrario) e esta não poderia ser concedida,
por estar em causa a extradição de um cidadão nacional e o facto não corresponder a um
caso de terrorismo ou de criminalidade internacional organizada (artigo 33.º, n.º 3, da CRP e
artigo 32.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 144/99). Caso se tratasse de um país da União Europeia,
presumiríamos a existência de um motivo de não execução do mandado de detenção
europeu, estando também neste caso verificado o inciso iii) da alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º,
do CP.
Pese embora fosse aplicável a lei portuguesa (artigo 5.º, n.º 1, alínea e), do CP), o facto é
julgado segundo a lei do país em que tiver sido praticado – in casu do país estrangeiro –
sempre que esta seja concretamente mais favorável ao agente e sempre que o agente
encontrado em território nacional “não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se
houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação”. No caso vertente, a lei
penal estrangeira é concretamente mais favorável do que a lei penal portuguesa, pois prevê
apenas a aplicação de uma pena de multa para o abandono de animais de companhia, ao
passo que a lei penal portuguesa prevê para este facto uma pena de prisão até seis meses,
para além de uma pena de multa até 60 dias (artigo 388.º, do CP). Neste caso, há lugar à
conversão da pena prevista no país estrangeiro para uma correspondente no sistema
português, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do CP.

3 – A presente questão remete, uma vez mais, para a problemática da interpretação da lei
penal, já enquadrada na resposta à pergunta n.º 1, supra, para a qual se remete. Assim, importa
aferir da viabilidade de reconduzir a conduta de Adelino à previsão do artigo 387.º do CP,
tendo em conta a definição de animal de companhia constante do artigo 389.º do CP e, bem
assim, a eventual existência de “motivo legítimo” para os maus-tratos, para efeitos do n.º 3
do dito artigo 387.º. Com esse intuito, cumpre atender ao sentido possível e previsível das
palavras, devidamente articulado com a essência do proibido da norma incriminadora, assim
delimitando a fronteira entre interpretação permitida e proibida.
À partida, diremos que a circunstância de o animal residir na habitação de Adelino permite
considerá-lo um animal de companhia, à luz da definição constante do referido artigo 389.º,
n.º 1 do CP. Efetivamente, o animal é detido no lar, desempenhando funções de companhia,
o que corresponde, sem margem para dúvidas, ao sentido possível e previsível do texto legal.
Todavia, segundo o disposto no n.º 2 do mencionado artigo 389.º do CP, o conceito de
animal de companhia «não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para
fins de espetáculo comercial». Impõe-se por isso averiguar se o cão de Adelino, por ser um
“cão de circo”, permite ao agente beneficiar desta exclusão e, consequentemente, eximir-se
de responsabilidade penal. Este problema relaciona-se também com a questão do “motivo
legítimo” para os maus-tratos, suscitada pela aplicação do n.º 3 do artigo 387.º - razão pela
qual se conjugará a análise dos dois temas.
Ora, a este propósito, reitere-se que Adelino não usava o animal apenas em contexto
profissional, ou sequer estritamente vinculado a fins de espetáculo comercial. Sublinhe-se,
ainda, que as agressões ao animal não ocorriam no contexto de espetáculos comerciais, mas
sim em momento(s) anterior(es), que consistiam na preparação do número a apresentar.
Paralelamente, diremos que, à luz do n.º 3 do artigo 387.º do CP, a agressão do animal para
efeitos de treino não configura, de forma alguma, um motivo legítimo. Como se intui, haverá
meios alternativos de preparação do cão, como o recurso a técnicas não violentas. Equivale
tanto a afirmar que, com base na essência do proibido da norma incriminadora, a conduta
de Adelino corresponde às situações que o legislador quis proteger, e que consistem em casos
de maus-tratos a animais que se encontram sob a tutela dos agressores. Nem de outra forma
poderia ser, sob pena de a utilização do animal numa atividade comercial se tornar, sem mais,
uma forma impune de agressão ao bem jurídico.
Assim, conclui-se que Adelino praticou o crime de maus-tratos relativamente ao referido
animal.
4 – O regime jurídico aplicável, à partida, é o vigente no momento da prática do facto
(artigos 2.º, no 1, e 3.º do CP), que se consubstancia na criminalização dos maus-tratos e do
abandono de animais de companhia.
Porém, em função da existência de uma alteração legislativa, coloca-se a questão de saber
se Adelino, caso realize um facto enquadrável na previsão normativa em questão, pode ser
punido pela prática de uma contra-ordenação, nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do CP, ou se
não poderá ser punido de todo, tanto pela prática de um crime como pela prática de uma
contra-ordenação, nos termos do artigo 2.º, n.º 2 do CP (imposição de aplicação retroativa
da lei descriminalizadora) e do artigo 3.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-ordenações
(proibição de retroatividade da lei que institui uma contra-ordenação).
Tradicionalmente, faz-se depender a opção por um dos regimes pela posição adotada
relativamente à natureza do ilícito de mera ordenação social e respetiva relação com o ilícito
penal. Deste modo, para quem defenda uma mera diferença quantitativa entre o Direito
Penal e o Direito de Mera Ordenação Social (ambos tutelam bens jurídicos, mera diferença
ao nível da sanção), considerar-se-á que há, no caso concreto, uma continuidade normativa
(mesmo facto, mesma valoração) e, consequentemente, será de aplicar o artigo 2.º, n.º 4 do
CP, podendo Adelino ser punido pela prática de uma contra-ordenação. Já para quem
defenda a existência de uma diferença qualitativa (o Direito Penal tutela bens jurídicos e o
Direito de Mera Ordenação é valorativamente neutro), como é o caso de Eduardo Correia e
Américo Taipa de Carvalho, considerar-se-á que há, no caso concreto, uma interrupção
normativa e, consequentemente, que Adelino não poderá ser punida de todo, aplicando-se o
artigo 2.º, n.º 2 do CP e o artigo 3.º, n.º 1 do regime Geral das Contra-ordenações.
Maria Fernanda Palma critica esta abordagem, defendendo que, para resolver o problema
em apreço, é essencial recorrer aos princípios que norteiam a sucessão de leis no tempo. Ora,
por um lado, a aplicação do regime contra-ordenacional, posterior, não viola o princípio da
legalidade (em termos de previsibilidade da punição ou de não-frustração das expectativas
criadas), já que o agente já contava com algum tipo de sanção (aliás, mais grave, a penal). E,
por outro lado, não há violação do princípio da igualdade, já que Adelino irá ser punido do
mesmo modo que os “novos” agentes o serão (aliás, haveria desigualdade, sim, se o
comportamento de Adelino não fosse sancionado de todo, pois os “novos” agentes irão ser
sancionados pela prática de uma contra-ordenação).
Assim, não havendo uma vontade legislativa explícita de extinguir toda a responsabilidade
pelos factos passados, Ada será punida pela prática de uma contra-ordenação, nos termos do
artigo 2.º, n.º 4 do CP (que consagra uma sucessão de normas penais entendidas estas em
sentido amplo). É de notar que a solução inversa, a de não sancionar Ada de todo salvo se
existir uma norma transitória que imponha a aplicação do regime posterior (proposta por
Taipa de Carvalho), é, como observa Maria Fernanda Palma, incoerente face ao recurso ao
princípio da legalidade que já havia sido efetuado.
Relativamente ao facto de o decreto-lei não ser autorizado, estamos perante uma
inconstitucionalidade orgânico-formal, por violação da reserva relativa de lei da Assembleia
da República, não por via do artigo 165.º, n.º 1, alínea d) da CRP, pois, aqui, a reserva
restringe-se ao regime geral dos ilícitos de mera ordenação social, não abrangendo a definição
das contra-ordenações singulares, mas por via da alínea c), considerando que também as
descriminalizações estão sujeitas à reserva de lei da Assembleia da República.
No seguimento, levanta-se o problema de, caso venha a ser declarada a
inconstitucionalidade desse decreto-lei, nos termos do artigo 281.º da CRP, e dados os efeitos
determinados pelo artigo 282.º, n.º 1, “retornar” a aplicação da LA, que criminaliza aquela
conduta, e de uma tal situação ser materialmente idêntica à de uma aplicação retroativa in
pejus. Mais especificamente, teremos uma situação materialmente idêntica à das situações de
lei intermédia mais favorável, que, de acordo com a doutrina dominante, deve ser relevada,
nos termos das regras do artigo 2.º, nomeadamente, impedindo-se a aplicação retroativa da
lei posterior mais desfavorável (artigo 2.º, n.º 1, a contrario).
Assim, conforme a doutrina de Maria Fernanda Palma, dado que as razões justificativas
são as mesmas e atendendo à exigência de o Estado se vincular às suas próprias decisões
(princípio do Estado de Direito democrático), no caso em apreço, a aplicação da lei antiga,
repristinada, também deverá ser bloqueada, devendo Adelino beneficiar do regime contra-
ordenacional, mais favorável. Contra a solução preconizada por alguma doutrina, como Rui
Pereira, de acordo com a qual deverá ser aplicado o regime do erro sobre a ilicitude (artigos
16.º, n.º 1, parte final, ou 17.º do CP), argumentar-se-á que se trata de uma “ferramenta”
adequada para resolver outro tipo de problemas, que não o problema em apreço, e que pode
até nem haver erro por parte do agente, mas manter-se a necessidade da tutela das
expectativas do agente.

5 – Sendo o país estrangeiro um Estado-Membro (EM) da União Europeia (UE), é de


analisar o regime constante da Lei n.º 65/2003 (LMDE), observando o princípio do
reconhecimento mútuo (artigo 1.º da LMDE). Uma vez que no enunciado não é explicitado
o efeito para que é emitido o mandado de detenção europeu (MDE), ter-se-á de considerar
duas hipóteses: se o MDE visar o procedimento criminal contra Adelino, não estará
preenchido o âmbito de aplicação do MDE, uma vez que o crime de maus-tratos contra
animais de companhia é punível no EM de emissão com uma pena cuja duração máxima é
de 6 meses, portanto inferior aos 12 meses exigidos de acordo com o artigo 2.º, n.º 1, 1.ª
parte, da LMDE; por outro lado, não é referida a duração da pena a cumprir por Adelino, na
eventualidade de o MDE ter sido emitido para efeitos de cumprimento de sanção, pelo que
não é possível aferir a verificação do requisito da duração mínima de 4 meses plasmado no
artigo 2.º, n.º 1, 2.ª parte, da LMDE.
Cotação extra:
Admitindo que o MDE teria sido emitido com a finalidade de cumprimento de pena com
duração superior a 4 meses, constata-se que, não estando a infração consagrada no artigo 2.º,
n.º 2, da LMDE, não estaria dispensada a dupla incriminação, a qual, neste caso, se verificava,
já que os maus-tratos a animais de companhia constituem infração nos termos da lei penal
portuguesa (artigo 2.º, n.º 3, da LMDE).
Os dados do enunciado não permitem identificar qualquer motivo de recusa obrigatória
de execução do MDE previstos nos artigos 11.º e 13.º, n.º 1, alínea a), da LMDE. Seria,
contudo, aplicável o motivo de não execução facultativa consagrado no artigo 12.º, n.º 1,
alínea g), da LMDE, dada a nacionalidade portuguesa de Adelino, devendo ponderar-se a
recusa atendendo, designadamente, à circunstância de os maus-tratos ao cão com vista à
realização de números de circo terem ocorrido no país estrangeiro, sendo ali sentidas de
forma mais intensa as necessidades de prevenção geral. Não é, contudo, de ignorar a maior
probabilidade de ressocializar Adelino em Portugal, EM onde reside habitualmente, não
sendo indicada qualquer conexão outra com o EM de emissão que não a participação
temporária no circo, parecendo, assim, ser o seu país natal aquele em que melhor se poderá
alcançar a prevenção especial positiva. Deveria, nestes termos, ser recusada a execução do
MDE.

6 – A questão em análise convoca um problema de conceito material de crime. Ora, na


análise da constitucionalidade de uma norma incriminatória, é necessário atender a que só
haverá legitimidade para preservar bens jurídicos comparáveis aos que se sacrifica, no limite,
à liberdade humana, considerando que o Direito Penal consagra penas privativas da mesma.
Sendo a intervenção do Direito Penal, em Estado de Direito Democrático alicerçado na
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) fragmentário, de última ratio, o artigo 18.º,
n.º 2 da CRP impõe, no mesmo sentido, que esta interferência se limite à tutela de direitos e
interesses constitucionalmente protegidos, i.e., de bens jurídicos essenciais à subsistência da
sociedade e ao livre desenvolvimento da personalidade ética de cada um.
Uma eventual inconstitucionalidade dos artigos 387.º a 389.º do CP pode encontrar o
principal fundamento na suposta inexistência de um bem jurídico preciso, concreto, dotado
de referente constitucional expresso e materialidade, que legitime a intervenção penal
considerando o princípio da ofensividade.
Não existe um bem jurídico protegido pelos crimes em apreço que seja evidente. Com
efeito, a inconstitucionalidade da incriminação partiria de uma ideia de ausência de relevância
constitucional da vida, saúde e integridade física dos animais que apenas recentemente
perderam o estatuto de “coisa” no ordenamento jurídico português.
Por outro lado, é possível defender-se a insuficiência de uma função ecológica dos animais
de companhia e da sua “subsunção” num bem ambiental, que legitime a sua tutela penal. A
própria recondução da legitimidade constitucional dos crimes contra os animais ao artigo
66.º da CRP (“Direito ao Ambiente”) convoca dúvidas no sentido da [não] inclusão dos
animais nas condições descritas como “todos têm o direito a um ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado e o dever de o defender” e “garantia de conservação da natureza”, não sendo
evidente que a referida tutela abranja os animais.
Poderá apontar-se ainda a problemática de, associada à tutela dos animais nos termos
referidos, poder estar uma componente intensamente moral e cívica, cabendo sublinhar que
o Direito Penal não é funcionalmente instrumento de reprovação moral, segundo
representações sociais dominantes.
Ademais, sempre se poderá argumentar que a defesa de uma incriminação nos referidos
termos é uma incriminação sem sujeito de direito, pois os animais não o seriam, não sendo
possível traduzir a incriminação como expressão da tutela necessária de um interesse.
Neste sentido, veja-se a mais recente pronúncia do Tribunal Constitucional, Acórdão n.º
867/2021, Processo n.º 867/19 (3.ª Secção - Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro)
que declarou inconstitucional a incriminação do artigo 387.º do CP na medida da inexistência
de um princípio constitucional expresso relativo à vida ou à incolumidade física dos “animais
de companhia’, não consagrando um direito constitucional dos animais (de companhia) ou
uma “incumbência do Estado” quanto a esta matéria” devendo a lei penal “limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”,
nisso consistindo o aspeto de necessidade do princípio da proporcionalidade, além de não
poder diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais
em causa (artigo 18.º, n.º 2, da CRP).
A legitimidade de uma incriminação dos maus tratos a animais tem vindo a ser defendida,
alternativamente, com base na existência de um bem jurídico coletivo e complexo, i.e.,
através da afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da
integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca e certa
relação atual (passada e/ou potencial) entre os agentes do crime e os animais (em igual
sentido, o Conselho Superior da Magistratura), o que só por si convoca ainda controvérsia:
a questão de saber se bens jurídicos complexos e coletivos que não se bastam com a
identificação dos interesses substanciais concretos associados às condições existenciais
individuais e coletivas implica a ultrapassagem das teorias tradicionais (e mais rígidas) do bem
jurídico e penalmente relevante, o que não é unânime. A defesa de uma teoria do bem jurídico
concretamente definido implica que se rejeite a referida construção.
Sucede que a defesa da inconstitucionalidade das normas em apreço, assente, em grande
medida, na (in)existência de um bem jurídico, encontra particulares opositores. Desde logo,
em consideração da aceção personalista defendida por Claus Roxin que, sem prescindir da
teoria do bem jurídico, admite a sua extensão no que concerne à preservação da
biodiversidade, in casu, bem como das gerações futuras, admitindo que a exigência de um
bem jurídico concretamente definido não seja limite à intervenção penal quando
excecionalmente a sua violação represente uma lesão de dimensão significativa, e em função
da tutela que é exigida ao Estado em consideração da relação pessoa-mundo.
Por seu turno, a Professora Maria Fernanda Palma considera que não é condição de
validação de uma incriminação a identificação de um bem jurídico concreto, o qual, a par de
outras considerações, poderá configurar apenas um argumento cumulativo no sentido de
justificar a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de uma norma incriminadora. A
seguir este entendimento é possível defender a constitucionalidade das normas de maus
tratos a animais domésticos, ultrapassando a compreensão do bem jurídico como uma
necessidade estrita de vislumbrar, em cada incriminação, um interesse substancial concreto
(associado às condições existenciais individuais e coletivas) percecionando-o como expressão
de uma relação entre os limites do Direito Penal e o Estado de Direito Democrático, e a uma
lógica de preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos
outros. Desconsiderando as visões mais rígidas sobre o bem jurídico constitucional e
penalmente relevante, como necessidade ou interesse subjetivo, histórica e culturalmente
enraizado, jogam outros valores, como a responsabilidade pela natureza ou pelas gerações
futuras, apelando à função social do Direito Penal. Neste sentido, a incriminação dos maus-
tratos contra os animais justifica-se por expressar um valor ético-social característico da
humanidade, em detrimento da existência de um bem jurídico, mas com apelo à coerência
ética do sistema e pela reflexão crítica em tornos dos restantes critérios de materialidade:
carência penal (necessidade da intervenção), adequação e proporcionalidade
Com efeito, sucede que a questão poderia ainda ser colocada ao nível da violação do
princípio da necessidade e carência penal pela identificação de medidas alternativas de
proteção daquele bem jurídico, como de política social, mais ou igualmente adequados e
eficientes, não violadoras, de forma desproporcional do direito à liberdade (artigo 18.º, n.º 2
e 27.º da CRP). Contrariamente, a incriminação dos maus-tratos a animais poder-se-á revelar
desproporcional por comportar uma intromissão inadmissível e injustificada nas esferas de
liberdade e privacidade das pessoas com mais danos do que vantagens, em especial se
atendermos à eficácia da proteção do suposto bem jurídico e prevenção de reincidência.
Não sendo, contudo, esta a posição da Professora Maria Fernanda Palma, nem assim do
Conselho Superior de Magistratura.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Catarina Abegão Alves, Mafalda Moura
Melim e Rita do Rosário, e Licenciados Nuno Igreja Matos e Inês Vieira Santos
Exame – 7 de janeiro de 2022
Duração: 120 minutos

1 – O caso coloca um problema de interpretação da lei penal, que convoca


necessariamente o princípio da legalidade, em particular do corolário nullum crimen nulla poena
sine lege stricta [cf. artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP)], e,
bem assim, num segundo momento, o tema da legitimidade material da incriminação no
lenocínio, na redação atualmente em vigor.
Principiando pela questão interpretativa, e acompanhando a tese de Maria Fernanda
Palma, a interpretação permitida em Direito Penal, para salvaguardar a segurança jurídica e a
conformidade com o disposto no artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal (CP) deve estribar-se do
sentido possível das palavras (compreendido no quadro do seu sentido comunicativo comum
no contexto significativo do texto da norma), alicerçando-se ainda na articulação desse
sentido com a essência do proibido subjacente à norma criminal. Esta conceção diferencia-
se das teses de cunho vincadamente valorativo, que negam qualquer limitação interpretativa
decorrente do texto legal, como a que é sustentada, por exemplo, por Castanheira Neves,
que vê nas palavras apenas uma exteriorização possível da norma, cuja ideia do proibido
pode, por isso, ser encontrada noutras proveniências, como o sejam as intenções e valores
elegidos pelo legislador com correspondência sistemática, dogmática e jurisprudencial.
O lenocínio é punido nos termos do artigo 169.º, n.º 1, do CP. A conduta de Ada suscita
dúvidas interpretativas particularmente no que respeita à existência (ou não) de um
comportamento de fomentação, favorecimento ou facilitação à prostituição das mulheres
estrangeiras, e, bem assim, se existe um nexo entre esse comportamento e a verificação de
uma intenção lucrativa, uma vez que os rendimentos auferidos provinham das rendas que
eram pagas a Ada, e não da prostituição.
Focando na conceção interpretativa primeiramente enunciada, constata-se que existe a
correspondência entre a conduta de Ada e a facilitação à prostituição. Com efeito, a
disponibilização, ainda que não gratuita, de um espaço para livremente desenvolver a
atividade de prostituição, é um comportamento enquadrável no sentido possível e
comunicacional, pelo menos, da palavra “facilitar”. Acresce que esta disponibilização, por
solucionar uma previsível dificuldade em encontrar um espaço para arrendamento no qual o
proprietário não se opusesse à prática de comportamentos de prostituição, contribui para a
instalação e o desenvolvimento da atividade, dando causa ao perigo abstrato para os bens
tutelados pela norma do artigo 169.º, n.º 1, do CP. Mais discutível será a verificação de uma
intenção lucrativa associada à facilitação da prostituição. O enunciado não é claro na
concretização da razão motivadora do arrendamento do apartamento, em particular se a A
privilegiava que aí se desenrolassem atividades de prostituição por razões de maior benefício
económico, ou se, ao invés, A estaria disposta a arrendar o imóvel para esse ou qualquer
outro fim (cenário em que faltaria o nexo intencional).
Sucede, porém, que Ada estava convicta, em consequência de uma informação do seu
advogado baseada em Acórdão do Tribunal Constitucional (“TC”), que o seu
comportamento não seria criminoso.
A inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do CP pode ser sustentada com base numa
hipotética ausência de dignidade punitiva e no constrangimento excessivo face ao princípio
constitucional da proporcionalidade, a partir das teorias em torno do bem jurídico,
ofensividade e necessidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). Na senda do que foi afirmado pelo
Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 134/2020, coloca-se, logo a montante, uma dúvida
sobre a existência, ou, pelo menos, a elevada abstração de um bem jurídico protegido, em
face da inexistente exigência de qualquer tipo de comportamento ofensivo ou perigoso (em
particular, de um perigo de exploração de uma situação de carência, que deixou de ser
tipicamente exigido) e da restrição da dignidade e liberdade da pessoa que se prostitui.
Mesmo enquadrando o ilícito como um crime de perigo abstrato, subsistem, ainda na ótica
do TC, dúvidas relevantes sobre a sua legitimidade, uma vez que não será sequer inferível
qual o nexo de perigosidade (e sua intensidade) justificadora da antecipação da intervenção
penal. Por fim, pode ainda referir-se a violação do princípio da subsidiariedade causada pelo
reconhecimento da existência de medidas alternativas de proteção daquele bem jurídico, não
violadoras, de forma desproporcional do direito à liberdade (artigos 1.º e 27.º da CRP).
Esta posição deveria ser apresentada lado a lado com a ponderação dos principais contra-
argumentos, também já avançados noutros arestos constitucionais, e, mais recentemente, no
Acórdão n.º 72/2021, que decidiu pela não inconstitucionalidade, recuperando a
jurisprudência constitucional anterior, com destaque para o Acórdão do TC n.º 144/2004.
Em síntese, argumenta-se pela existência de um bem jurídico suficientemente definido — a
autonomia e liberdade sexual da pessoa que se prostitui. Este bem jurídico é sustentado com
base na constatação empírica de que estas pessoas são tendencialmente visadas na sua
liberdade de autodeterminação por parte da pessoa que fomenta a atividade de prostituição,
dando origem e perpetuando-se, deste modo, uma situação de exploração de vulnerabilidade
da vítima, passível ainda de se associar a fenómenos de estigmatização. Por aqui se torna
viável a legitimação do crime na forma de perigo abstrato, uma vez que se demonstra
evidente que a conduta típica acarreta um risco socialmente inaceitável, que fundamenta a
dispensa de prova da exploração no caso concreto, respeitando-se, ainda, o princípio da
necessidade. Isto sem prejuízo de se poder, em paralelo, defender a admissibilidade da
contraprova do perigo, como sustentado por Maria Fernanda Palma.
Tornando ao caso vertente, e uma vez afirmada a correspondência da conduta de Ada
com o tipo incriminador, deveria, ainda, ser relevado que a inconstitucionalidade, não tendo
sido declarada com força obrigatória geral, não eximiria Ada de responsabilização, pela forma
como facilitou a atividade de prostituição, sem prejuízo da posição adotada quanto à
legitimidade material do crime.

2 – A subsunção dos atos praticados por Beatriz a uma conduta típica legal prevista traduz
um problema de interpretação da lei penal associada ao princípio da legalidade (artigo 29.º,
n.ºs 1 e 3 da CRP e artigo 1.º do CP), em concreto na vertente da lei penal estrita (só é típica
a conduta que se encontre descrita na norma, como exigência do princípio da segurança
jurídica (e, no caso das penas, também do princípio da culpa).
Recupera-se o que se expôs no primeiro parágrafo dos tópicos à primeira questão quanto
à interpretação da lei penal e critérios fornecidos pela doutrina quanto aos limites que se lhe
erigem.
Relativamente à suposta propagação da Covid-19, a consumação do crime de propagação
de doença contagiosa (artigo 283.º, n.º 1, alínea a) do CP) implica a verificação de contágio
com o vírus, por um lado (visto tratar-se de um crime de resultado), e, por outro, a criação
de perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem (considerando que
se trata de um crime de perigo concreto). Assim, para que a conduta seja típica, não basta
que se verifique o perigo de contágio, nem sequer o contágio sem que se comprove a criação
de perigo para os referidos bens jurídicos.
No caso concreto, e considerando que o enunciado é omisso, se se provasse que, com os
atos que pratica, Beatriz contagia as pessoas com quem mantém relações sexuais e que desse
contágio, para as referidas, resulta perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física,
Beatriz cometeria o crime de propagação de doença contagiosa.
Não se provando o referido contágio, ou, provando-se o contágio, mas não o perigo para
a vida ou integridade física (grave), não há consumação do crime, por não caber no sentido
possível e previsível das palavras considerando o texto no seu sentido comunicacional, nem
traduz a essência do proibido. A intencionalidade normativa não conduziria a resultado
diferente, na medida em que a conduta da agente não perigue os bens jurídicos em causa.
Outra solução implicaria a aplicação do crime como de perigo abstrato, em violação da
proibição de analogia incriminadora (artigo 1.º, n.º 3 CP e 29.º, n.ºs 1 e 3 CRP).
Quanto à violação do dever de isolamento, a hipótese afirma que Beatriz continuou a
prostituir-se no apartamento que arrendava, logo manteve o contacto físico evitável com
outras pessoas e a partilha de objetos/utensílios pessoais com as mesmas, violando o dever
de isolamento (afastamento social). Sucede que a referida desobediência por violação de
dever de isolamento não decorre de lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado,
comprometendo a exigência de lei escrita, também corolário do princípio da legalidade
(artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP), segundo o qual, somente a lei em sentido formal é fonte
de criminalização. In casu, a descrição de parte essencial do comportamento proibido –
violação de dever de isolamento e a sua cominação com crime de desobediência - surge em
decreto governamental não autorizado, pelo que o ilícito está ferido de inconstitucionalidade
orgânica. Apesar de não ser obrigatório o surgimento no mesmo diploma da previsão típica
do comportamento e da cominação da sanção, ambas (e a conexão entre si) têm de constar
de lei na aceção formal. Embora o crime de desobediência, tipificado no artigo 348.º do CP,
inclua a remissão para disposição legal nos termos da alínea a) do n.º 1, entre as hipóteses de
realização do crime, esta, por sua vez, deve ser entendida em sentido formal, sendo necessário
constar também de lei ou decreto-lei autorizado, tanto a atuação proibida como a cominação
da pena, o que no caso não se verifica, pois a disposição que comina a violação de obrigação
de confinamento como crime de desobediência decorre do decreto governamental não
autorizado.
Em suma, a conduta de Beatriz a legitimar punição, apenas consubstanciaria, na hipótese
de se comprovar contágio e perigo para a vida ou integridade física, o crime de propagação
de doença contagiosa nos termos suprarreferidos.
3 – A questão suscita um problema de aplicação da lei no tempo, relacionado com o
corolário da lei prévia do princípio da legalidade penal. De acordo com este corolário, aplica-
se a lei em vigor no momento da prática do facto (artigos 29.º, n.os 1 e 3, da CRP, e 2.º, n.os 1
e 3.º do CP). Deste modo, a lei aplicável seria a lei antiga, que não previa a necessidade de
exploração de uma situação de carência da pessoa prostituída.
A nova lei altera a previsão típica da norma criminalizadora, transformando-a num crime
de perigo concreto através da adição de um novo elemento (“exploração de uma situação de
carência da pessoa prostituída”). Não seria aqui aplicável, em princípio, porque, como se viu,
não estava em vigor no momento da prática do facto.
Todavia, constata-se que a atuação tanto é crime à luz da lei antiga como da lei nova, já
que, segundo o enunciado, Ada sabia que Beatriz era explorada por um proxeneta. No
entanto, é omisso quanto à existência de prova desse perigo. Levanta-se, todavia, a questão
de saber se há verdadeira sucessão de leis penais no tempo, ou, diferentemente,
descriminalização da ação de Ada. No primeiro caso, terá depois de se aferir qual o regime
concretamente mais favorável, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do CP. Caso a lei
nova consagre um regime mais favorável, impõe-se a respetiva aplicação, em obediência aos
princípios da necessidade da pena (artigo 18.º, n.º 2, do CP) e da igualdade. No segundo, o
agente não deve ser punido por nenhuma das leis, nos termos previstos pelo n.º 2 do mesmo
preceito, por imposição dos mesmos princípios.
Adotando o pensamento de Taipa de Carvalho sobre o problema da aplicação da lei penal
no tempo, dir-se-á que ocorre, aqui, uma verdadeira descriminalização. Com efeito, a nova
lei vem restringir o âmbito típico da previsão da norma, introduzindo-lhe novo elemento,
pelo que é lei especializadora em relação à lei antiga. Uma vez que a punibilidade é agora
limitada aos casos em que se demonstre a exploração de uma situação de carência da pessoa
prostituída, a punição de Ada implicaria valoração retroativa desta circunstância como típica,
pois ela não o era aquando da prática do facto. Além disto, a solução da punição implicaria
violação do princípio da culpa (na medida em que se ficciona o dolo do agente em relação
ao novo elemento típico), do princípio da igualdade (já que o destino do arguido fica também
dependente do acaso de se ter ou não dado como provado o elemento típico inexistente
como tal na altura do julgamento) e desvirtuamento da função de orientação que cabe às
normas penais (pois o agente poderia ter orientado a conduta diferentemente se a
circunstância fosse já tida como típica no momento em que atuou).
Contudo, na 3.ª edição da sua monografia, Taipa de Carvalho admite que alguns casos
podemos estar verdadeiramente perante uma sucessão de leis penais no tempo. Desta forma,
quando tal for possível, será aplicada a lei mais favorável ao agente, nos termos do artigo 2.º,
n.º 4 do CP, se também tiver havido alteração da pena.
Pode também tentar defender-se, pela teoria do facto concreto, a primeira solução
apresentada – a de que há verdadeira sucessão de leis penais. Neste sentido, dir-se-á que não
há descriminalização, já que o legislador restringiu o âmbito típico, mas a ação (concreta)
mantém-se punível.
Acresce ainda que, em relação ao princípio da igualdade, a tese de que este seria violado
pela decisão de punição implica pressupor que o arguido goza de posição merecedora do
favor da sorte. O legislador não recuou na ideia de que a ação do agente deve ser punida
(independentemente de passar a sê-lo menos gravemente), pelo que não está tanto em causa
a condenação injusta daquele que tem o azar de ter sido provado o elemento posteriormente
tornado típico, mas sim a felicidade do agente que praticou facto semelhante sem que a
mesma prova tivesse sido realizada. Em relação à função de orientação das normas penais,
pode dizer-se que a alteração legal não invalida o juízo de que o agente decidiu (em liberdade)
agir contra a norma na versão antiga (que incluía igualmente comportamentos como o
livremente assumido por Ada). Este fator, conjugado com a impossibilidade de comprovação
empírica a este ponto da força de motivação das normas, por um lado, e com a ideia de que
o critério de censurabilidade da atuação do agente passa mais pela medição da retitude do
seu agir (por referência aos valores promovidos pelo sistema normativo) do que pela aferição
da impossibilidade em que o agente estava de conhecer o critério normativo da censura (na
linha do pensamento de autores como Figueiredo Dias), por outro, permitem refutar aquele
argumento.
Outro entendimento é sufragado por Maria Fernanda Palma, que assinala que haverá
continuidade normativa desde que pelo menos parte da previsão se mantenha: se parte da lei
antiga continua punível na lei nova, então há continuidade normativa. Isso acontece na
passagem de crime de perigo abstrato para crime de perigo concreto. Nas palavras da
Professora “se na lei antiga se dispensava esta prova, abrangendo-se mais factos, na lei nova
há uma restrição que abrange ainda assim os factos causadores de perigo” (1). Por essa razão,
seria viável afirmar uma sucessão de leis penais e determinar o regime concretamente mais
favorável ao agente (artigo 2.º, n.º 4 do CP). Assim, parece não haver violação da proibição
de retroatividade – observando-se, em rigor, uma verdadeira imposição de aplicação
retroativa, caso a lei nova se revele concretamente mais favorável, sendo que, na ausência de
informação quanto à verificação, no caso, do perigo exigido pela nova incriminação, não é
possível concluir pelo carácter mais ou menos favorável da lei nova.

4 – Partindo do princípio de que o objeto do decreto-lei é o tipo de facto previsto e


punido no artigo 169.º, n.º 1 do CP, embora restrito aos casos de arrendamento ou
hospedagem destinado à prática de prostituição, coloca-se a questão de saber se Ada, em
função de realizar um facto enquadrável no objeto normativo atrás referido, será punida pela
prática de uma contra-ordenação, nos termos do artigo 2.º, n.º 4 do CP, ou se não será punida
de todo, tanto pela prática de um crime como pela prática de uma contra-ordenação, nos
termos do artigo 2.º, n.º 2 do CP (imposição de aplicação retroativa da lei descriminalizadora)
e do artigo 3.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-ordenações (proibição de retroatividade da
lei que institui uma contra-ordenação).
Tradicionalmente, faz-se depender a opção por um dos regimes pela posição adotada
relativamente à natureza do ilícito de mera ordenação social e respetiva relação com o ilícito
penal. Deste modo, para quem defenda uma mera diferença quantitativa entre o Direito
Penal e o Direito de Mera Ordenação Social (ambos tutelam bens jurídicos, mera diferença
ao nível da sanção), considerar-se-á que há, no caso concreto, uma continuidade normativa
(mesmo facto, mesma valoração) e, consequentemente, será de aplicar o artigo 2.º, n.º 4 do
CP, sendo Ada punida pela prática de uma contra-ordenação. Já para quem defenda a
existência de uma diferença qualitativa (o Direito Penal tutela bens jurídicos e o Direito de

(1)PALMA, Maria Fernanda, Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal:
interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, Lisboa: AAFDL, 4.ª edição (reimpressão atualizada),
2021, p. 177 e ss..
Mera Ordenação é valorativamente neutro), como é o caso de Eduardo Correia e Américo
Taipa de Carvalho, considerar-se-á que há, no caso concreto, uma interrupção normativa e,
consequentemente, que Ada não poderá ser punida de todo, aplicando-se o artigo 2.º, n.º 2
do CP e o artigo 3.º, n.º 1 do regime Geral das Contra-ordenações.
Maria Fernanda Palma critica esta abordagem, defendendo que, para resolver o problema
em apreço, é essencial recorrer aos princípios que norteiam a sucessão de leis no tempo. Ora,
por um lado, a aplicação do regime contra-ordenacional, posterior, não viola o princípio da
legalidade (em termos de previsibilidade da punição ou de não-frustração das expectativas
criadas), já que o agente já contava com algum tipo de sanção (aliás, mais grave, a penal). E,
por outro lado, não há violação do princípio da igualdade, já que Ada irá ser punida do
mesmo modo que os “novos” agentes o serão (aliás, haveria desigualdade, sim, se o
comportamento de Ada não fosse sancionado de todo, pois os “novos” agentes irão ser
sancionados pela prática de uma contra-ordenação).
Assim, não havendo uma vontade legislativa explícita de extinguir toda a responsabilidade
pelos factos passados, Ada será punida pela prática de uma contra-ordenação, nos termos do
artigo 2.º, n.º 4 do CP (que consagra uma sucessão de normas penais entendidas estas em
sentido amplo). É de notar que a solução inversa, a de não sancionar Ada de todo salvo se
existir uma norma transitória que imponha a aplicação do regime posterior (proposta por
Taipa de Carvalho), é, como observa Maria Fernanda Palma, incoerente face ao recurso ao
princípio da legalidade que já havia sido efetuado.
Relativamente ao facto de o decreto-lei não ser autorizado, estamos perante uma
inconstitucionalidade orgânico-formal, por violação da reserva relativa de lei da Assembleia
da República, não por via do artigo 165.º, n.º 1, alínea d) da CRP, pois, aqui, a reserva
restringe-se ao regime geral dos ilícitos de mera ordenação social, não abrangendo a definição
das contra-ordenações singulares, mas por via da alínea c), considerando que também as
descriminalizações estão sujeitas à reserva de lei da Assembleia da República.
No seguimento, levanta-se o problema de, caso venha a ser declarada a
inconstitucionalidade desse decreto-lei, nos termos do artigo 281.º da CRP, e dados os efeitos
determinados pelo artigo 282.º, n.º 1, “retornar” a aplicação da LA, que criminaliza aquela
conduta, e de uma tal situação ser materialmente idêntica à de uma aplicação retroativa in
pejus. Mais especificamente, teremos uma situação materialmente idêntica à das situações de
lei intermédia mais favorável, que, de acordo com a doutrina dominante, deve ser relevada,
nos termos das regras do artigo 2.º, nomeadamente, impedindo-se a aplicação retroativa de
lei mais desfavorável (artigo 2.º, n.º 1).
Assim, conforme a doutrina de Maria Fernanda Palma, dado que as razões justificativas
são as mesmas e atendendo à exigência de o Estado se vincular às suas próprias decisões
(princípio do Estado de Direito democrático), no caso em apreço, a aplicação da lei antiga,
repristinada, também deverá ser bloqueada, devendo Ada beneficiar do regime contra-
ordenacional, mais favorável. Contra a solução preconizada por alguma doutrina, como Rui
Pereira, de acordo com a qual deverá ser aplicado o regime do erro sobre a ilicitude (artigos
16.º, n.º 1, parte final, ou 17.º do CP), argumentar-se-á que se trata de uma “ferramenta”
adequada para resolver outro tipo de problemas, que não o problema em apreço, e que pode
até nem haver erro por parte do agente, mas manter-se a necessidade da tutela das
expectativas do agente.
5 – A solução do problema da competência dos tribunais portugueses para julgar Ada pela
sua participação numa rede de tráfico de pessoas com sede na Alemanha partirá da
determinação do lugar da prática do facto. De acordo com o princípio da ubiquidade previsto
do artigo 7.º do CP, o facto terá sido praticado nos vários países em que ocorreu o tráfico.
O enunciado sugere que o mesmo terá sido, entre outros Estados, também praticado em
Portugal, já que o arrendamento realizado por Ada ocorre neste país, pelo que é aplicável o
princípio geral da territorialidade, nos termos do artigo 4.º, alínea a), do CP.
Ainda que assim não fosse, Portugal sempre teria competência extraterritorial, cabendo
analisá-la à luz da legislação extravagante, bem como do artigo 5.º do CP. Nada nos casos
especifica a prática de tráfico de pessoas a bordo de aeronave civil, pelo que se afasta a
competência dos termos do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro, ainda que o crime
em causa seja contra a liberdade (artigos 3.º e 4.º, n.º 1, alínea c), deste diploma). Também a
Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto, e a Lei n.º 31/2004, de 22 de julho, já que o facto não
envolve terrorismo nem violação do Direito Internacional, respetivamente.
Regressando ao CP, agora observando o artigo 5.º, verifica-se que a alínea a) do n.º 1 não
tem aplicação, já que o crime não integra o elenco de infrações contra interesses nacionais aí
consagradas; também a alínea b) deve ser afastada, uma vez que, embora o enunciado sugira
a existência de nacionalidade ativa, o enunciado afasta expressamente a nacionalidade
portuguesa da vítima. Tem, contudo, aplicação a alínea c), onde se consagra o princípio da
universalidade: o tráfico de pessoas está aqui integrado (artigo 160.º do CP) e Ada está em
Portugal, restando analisar o requisito da impossibilidade de cooperação judiciária com a
Alemanha, a fim de concluir a resposta à primeira questão colocada no enunciado e, no
seguimento, responder à segunda.
Sendo a Alemanha um Estado-Membro (EM) da União Europeia, estará em causa um
mandado de detenção europeu (MDE), sendo de se analisar o regime constante da Lei n.º
65/2003, de 23 de agosto (LMDE), observando o princípio do reconhecimento mútuo
(artigo 1.º da LMDE). Sendo a Alemanha o EM de emissão, e partindo do pressuposto de
que o MDE teria sido requerido para efeitos de procedimento criminal, como sugere a
questão colocada, a pena prevista naquele país para o crime de tráfico de pessoas teria de ter
uma duração máxima não inferior a 12 meses, o que, presumindo que a legislação alemã
prevê um crime e moldura penal semelhante ao do sistema português, estará verificado
(artigo 2.º, n.º, 1, 1.ª parte, da LMDE). A infração em causa está elencada na alínea c) do
artigo 2.º, n.º 2, da LMDE, pelo que, presumindo que a pena (privativa de liberdade) prevista
na lei alemã tem uma duração máxima não inferior a 3 anos, não será necessária a verificação
da dupla incriminação. Contudo, mesmo que tal não suceda e se imponha a averiguação da
mesma, esta encontra-se observada, nos termos do artigo 2.º, n.º 3, da LMDE e do artigo
160.º do CP.
Os dados do enunciado não permitem identificar qualquer motivo de recusa obrigatória
de execução do mandado (artigos 11.º e 13.º alínea a), da LMDE, cabendo indagar sobre a
existência de algum motivo de recusa facultativa. Note-se que a não verificação de qualquer
motivo de recusa obrigatória implica, desde logo, a não aplicabilidade – no que respeita à
questão sobre a competência dos tribunais portugueses – da alínea c) do artigo 5.º, n.º 1, do
CP. Por conseguinte, Portugal apenas teria competência em duas situações cogitáveis: caso
se assumisse a nacionalidade portuguesa de Ada, através do no artigo 5.º, n.º 1, alínea e), do
CP, verificando-se o pressuposto da nacionalidade (ativa, neste caso), bem como os
requisitos de que o agente seja encontrado em Portugal e (presume-se) da dupla incriminação,
ficando apenas por esclarecer a aplicação de algum motivo de recusa facultativa de execução
do MDE para se verifique, também, o requisito que consta do inciso iii) desta, questão que
se analisará de seguida; por outro lado, se Ada não fosse portuguesa (e situando-nos, ainda,
na hipótese de que o crime teria sido praticado fora de Portugal), nos termos da alínea f) do
mesmo artigo, tendo a entrega sido requerida pela Alemanha e restando, por isso, analisar o
mesmo problema da recusa facultativa.
Embora seja omisso, o caso parece indicar a nacionalidade portuguesa de Ada, caso em
que cabe dizer o seguinte: não tem aplicação o artigo 12.º, n.º 1, alínea g), da LMDE, pois o
MDE foi emitido para efeitos de procedimento criminal – e não para cumprimento de pena,
caso em que se aplicava, em conjunto com o n.º 3 do mesmo artigo) –, sendo, antes, aplicável
o artigo 13.º, n.º 1, alínea b), da LMDE no que respeita ao problema de nacionalidade
portuguesa, pelo que as autoridades portuguesas poderiam sujeitar a execução do MDE à
condição de que a Alemanha devolvesse Ada para cumprir a pena em Portugal. Este regime,
no qual se flexibiliza a cooperação em respeito pelo princípio do reconhecimento mútuo,
tem aval constitucional no artigo 33.º, n.º 5, da CRP.
Independentemente da questão da nacionalidade, se o crime tivesse sido praticado em
território nacional (artigos 4.º, alínea a), e 7.º do CP), haveria, ainda, o motivo de recusa
facultativa assente no princípio da territorialidade (artigo 12.º, n.º 1, alínea h), i), da LMDE).
Perante a suposição da matéria de facto subjacente a estes motivos, a recusa teria de ser
ponderada atendendo, designadamente, à circunstância de a rede ter sede na Alemanha,
sendo nesse país que se sentem as mais intensas necessidades de prevenção geral. Estas não
são, contudo, inexistentes em Portugal, também lugar da prática do fato (e nos vários Estados
em que a rede atuava), pelo que, considerando este aspeto e a maior possibilidade de sucesso
no que respeita à ressocialização de Ada, já que é portuguesa e reside habitualmente em
Portugal, não sendo indicada qualquer conexão outra com o Estado Alemão que não a
participação na rede, parecendo, assim, ser o seu país natal aquele em que melhor se poderá
alcançar a prevenção especial positiva.
Seguindo esta argumentação, a execução do mandado deveria ser recusada, caso em que
os tribunais portugueses teriam competência para julgar, sendo de aplicar a lei portuguesa
(artigo 5.º, n.º 1, alínea e), do CP), salvo preenchimento dos pressupostos de restrição da
mesma nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do CP, isto é, caso a lei alemã fosse concretamente
mais favorável, caso em que haveria lugar à conversão da pena prevista no regime alemão
para uma correspondente no sistema português.
Caso o crime não tivesse sido praticado em Portugal, não tinha aplicação o artigo 12.º, n.º
1, alínea h), i), da LMDE, mas a solução seria idêntica, desde que se mantivesse o pressuposto
da nacionalidade portuguesa, recusando-se, de acordo com a orientação referida, a execução
do mandado e, no que respeita à primeira questão colocada no enunciado, reconhecendo a
competência dos tribunais portugueses nos termos da alínea e) do artigo 5.º, n.º 1, do CO.
Do mesmo modo, a rejeição da nacionalidade portuguesa de Ada impediria a aplicação
do artigo 13.º, n.º 1, alínea b), da LMDE, mas permitia, ainda, a solução de recusa caso o
tráfico tivesse sido praticado em Portugal e a consequente aplicação da lei portuguesa nos
termos do artigo 4.º, alínea a), do CP).
A resposta apenas seria diferente se Ada não fosse portuguesa e o fato tivesse ocorrido
inteiramente fora de Portugal, situação em que a competência dos tribunais portugueses seria
afastada, por não se aplicar, quer o artigo 4.º, alínea a), quer o artigo 5.º, n.º 1, alíneas e) e f),
do CP, em razão da não observância do requisito consagrado na parte final destes preceitos,
em que se exige a rejeição de cooperação judiciária internacional, que, neste caso, não
ocorreria, já que os motivos de recusa analisados não teriam aplicação, deixando de haver
razão para rejeitar a cooperação. Neste cenário, Portugal executaria o MDE, dissipando-se a
questão da competência dos tribunais portugueses.

6 – O regime das imunidades diplomáticas encontra-se consagrado na Convenção sobre


Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961, publicada em anexo ao
Decreto-Lei n.º 48295.
Ada não é agente diplomática, mas, sendo funcionária de um país estrangeiro, pode ser
incluída quer na alínea f) (membros do pessoal administrativo e técnico), quer na alínea g)
(membros do pessoal de serviço) do artigo 1.º da Convenção de Viena. Ainda assim, caso se
considere que Ada é um membro do pessoal administrativo e técnico, apesar de não haver
indicações de que seria portuguesa, esta teria residência permanente em Portugal, pelo que
nos termos do artigo 37.º, n.º 2 da Convenção de Viena esta não poderá gozará dos
privilégios e imunidades mencionados nos artigos 29.º a 35.º da Convenção de Viena. Nos
termos do artigo 29.º da Convenção de Viena, o agente diplomático não pode ser detido ou
preso, e, segundo o artigo 31.º, goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador
(no caso, Portugal). Em alternativa, admite-se igualmente a resposta no sentido de que Ada
seria portuguesa, sendo que nesse caso a consequência seria a mesma, a não aplicação dos
privilégios e imunidades mencionados nos artigos 29.º a 35.º da Convenção de Viena.
Já se considerarmos que Ada é apenas um membro do pessoal de serviço da missão
também não poderemos aplicar-lhe o regime das imunidades porquanto, mesmo que se
defendesse a interpretação de que esta não teria nacionalidade portuguesa, seria de supor
que, pelo facto de ter um apartamento em Portugal, teria residência permanente no nosso
país. A isto acresce que, in casu, sempre estaria excluída a sua inviolabilidade e imunidade,
porquanto o artigo 37.º, n.º 3 da Convenção de Viena estabelece uma imunidade ratione
materiae e a conduta praticada por Ada não foi no exercício das suas funções.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira Reis,
António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno
Igreja Matos
Exame de Época Especial (Finalistas) - 8 de setembro de 2021
Duração: 90 minutos

1 – Com base em estudos que associam a prostituição a situações de carência de quem se


prostitui, bem como de tráfico e violência contra essas pessoas, a Assembleia da República
aprova uma alteração ao art. 169.º do Código Penal, que entra em vigor a 1 de julho de 2021,
acrescentando-lhe o seguinte n.º 3:
Quem solicitar ato sexual com pessoa na prostituição, em troca de contrapartida financeira ou
promessa desta, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa.
Analise a constitucionalidade do artigo 169.º, n.º 3. (5 vls.)

2 – No dia 5 do mesmo mês, enquanto se dirige para casa com sacos de compras nas mãos,
Arnaldo é abordado na rua por Fiona, prostituta desesperada por ver os filhos com fome, que
lhe oferece relações sexuais em troca da comida que Arnaldo traz consigo. Arnaldo aceita e, no
mesmo dia, cumprem o acordado.
Independentemente da resposta à questão anterior, a interpretação do artigo 169.º, n.º 3, no
sentido de punir Arnaldo violaria algum princípio de Direito Penal? (5 vls.)

3 – No dia 1 de setembro de 2021, entra em vigor uma alteração ao artigo 169.º, n.º 3, que passa
a dispor:
Quem solicitar ou praticar cópula, coito anal ou coito oral com pessoa na prostituição, em
troca de contrapartida financeira ou promessa desta, é punido com pena de prisão até 6 meses
ou com pena de multa.
Supondo que a resposta à questão anterior é positiva, tendo-se realizado a cópula entre
Arnaldo e Fiona no dia 5 de julho, e estando marcado julgamento para 1 de outubro, qual deve
ser, em face da alteração legislativa, a decisão do tribunal? (5 vls.)

4 – No dia 20 de setembro, chega, vindo da Alemanha, um pedido de entrega de Arnaldo,


português residente em Portugal, para cumprir pena de prisão perpétua por homicídio agravado
praticado em Berlim contra Martine, cidadã belga.
A lei portuguesa é aplicável? Como deve ser decidido o pedido? (3 vls.)

Ponderação global: 2 vls.


1.
A questão levanta um problema de conceito material de crime, sendo mister convocar o art.
18.º, n.º 2, da Constituição (CRP), e, mais concretamente, o princípio da necessidade da pena.
A norma veicula preocupações com a liberdade e a integridade física e psíquica das pessoas
que se prostituem, consagradas como objectos de direito fundamentais nos arts. 27.º e 25.º da
CRP. Deve questionar-se, no entanto, a adequação do dispositivo para servir os fins a que se
propõe. Uma vez que a mera solicitação de serviços de prostituição não provoca diretamente
lesão ou perigo para os bens referidos, só na base de estudos empíricos que demonstrem uma
associação clara entre este tipo de atos e o perigo de promoção de práticas de tráfico ou violência
se poderá comprovar a dignidade punitiva do comportamento. Essa demonstração deve ainda
ser confrontada com a liberdade de escolha de profissão das pessoas que se prostituem e com a
liberdade sexual do contratante da prostituição, também coartadas pela restrição em causa, o
que sugere que mesmo perante aquela demonstração, a punição talvez ocorra com demasiada
antecipação relativamente ao cenário que se pretende evitar.
Além dos pontos identificados, deve também ser questionada a carência de tutela penal, sendo
necessário explicar a inviabilidade do recurso a meios alternativos de protecção, sob pena de,
igualmente por esta via, se ter de concluir pela inconstitucionalidade da norma.

2.
O caso não encontra correspondência direta no sentido possível das palavras da lei, ao menos
isoladamente consideradas, visto que o agente não “solicitou” nenhum ato sexual, antes foi
abordado com proposta para a sua prática, além de que a ação não foi praticada “em troca de
contrapartida financeira ou promessa desta”, uma vez que o pagamento se fez em alimentos. A
esta luz, cabe determinar se a solução de punição não violaria a proibição de analogia
incriminadora consagrada no art. 1.º, n.º 3, do Código Penal (CP), e o princípio da legalidade
(art. 29.º, n.º 1, da CRP).
Mesmo adotando-se, todavia, uma perspetiva que privilegie o sentido das palavras integradas
no texto globalmente considerado, e admitindo-se até que pode não haver diferença material
significativa entre a solicitação de serviços de prostituição e a sua aceitação (nomeadamente em
contextos em que a mera deslocação a locais de prostituição se faça já contando com a habitual
oferta desses serviços aí registada, quase equivalendo à disponibilidade para os aceitar), pode
duvidar-se de que no caso se apresente o problema pressuposto na norma. Com efeito, se puder
identificar-se no comportamento de Arnaldo uma utilização dos serviços de prostituição que
não promove tanto o exercício de violência sobre quem se prostitui como auxilia,
ocasionalmente, a pessoa em necessidade, os seus atos não se mostram ofensivos para bens
jurídicos, ou não na dimensão assumida na norma.
Partindo-se antes do pressuposto de que, com base em estudos por realizar, estes atos,
independentemente dos seus efeitos imediatos ou das boas intenções do agente, redundam
sempre na promoção do mercado de prostituição e da violência inerente, as circunstâncias
particulares referidas não farão diferença, pois a solução punitiva ainda irá ao encontro das
intencionalidades normativas. Se for este o caminho, porém, é preciso problematizar o
confronto entre a proibição da analogia e o tratamento do elemento literal como mera expressão
imperfeita do pensamento do legislador, como se o verdadeiro texto normativo a considerar
fosse o que resulta da interpretação, não podendo, assim, funcionar como limite
preestabelecido.

3.
Aplica-se, em princípio, a lei em vigor no momento da prática do facto, segundo os arts. 29.º,
n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 1, conjugado com o art. 3. º, do CP. No caso, trata-se da primeira versão do
art. 169.º, 3, que entrou em vigor a 1 de julho de 2021.
Em momento posterior ao da prática do facto, entra em vigor uma alteração legal que altera a
previsão restringindo o âmbito típico, pois deixa de estar em causa qualquer “ato sexual” para
passar a exigir-se se trate de “cópula, coito anal ou coito oral”.
Admitindo-se a resposta positiva à questão 2., o comportamento é crime tanto à luz da versão
anterior da lei como da posterior. Ora, apesar de se especificar diferentemente o tipo de práticas
sexuais visadas, não há alteração da conceção legislativa sobre o merecimento penal de
comportamentos como o de Arnaldo. Também não parece que a alteração introduza critérios
típicos novos cuja valoração (para efeitos de condenação) implique a violação de princípios
como o da culpa e o da igualdade, pois nem se pode dar por prejudicada, no momento da prática
do facto, a liberdade de decisão relativamente à cópula (mesmo por comparação com os que
decidirão à luz da nova lei), nem por ficcionado o dolo da prática criminosa, já que a prova do
ato sexual sempre teria implicado, no caso, tanto a prova da cópula como do dolo que a tomou
por objeto. Nesta linha, há verdadeira sucessão de leis penais, devendo punir-se Arnaldo à luz
da lei em vigor no momento da prática do facto, a não ser que a lei posterior se mostre
concretamente mais favorável. Dado que a medida da pena de prisão cominada na versão nova
é inferior, no seu limite máximo, ao da versão anterior, a nova lei deve aplicar-se
retroativamente, nos termos dos arts. 29.º, n.º 4, segunda parte, da CRP, e 2.º, n.º 4, primeira
parte, do CP.

4.
Tendo o facto sido praticado fora de Portugal, de acordo com os arts. 4.º e 7.º, n.º 1, do CP, o
critério territorial não permite atribuir competência aos tribunais portugueses.
De entre os critérios supletivos de atribuição de competência do art. 5.º, cabe examinar a
aplicabilidade da al. e) do n.º 1. Sendo Arnaldo português e encontrando-se em Portugal, e sendo
o facto punido na Alemanha, resta ver como se haveria de decidir o pedido de entrega.
Visto que a Alemanha é membro da União Europeia, é de aplicar o regime do mandado de
detenção europeu (Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto).
Punindo-se na Alemanha o facto com pena de prisão superior a três anos, dispensa-se o
requisito da dupla incriminação, por aplicação da al. o) do art. 2.º, n.º 2.
Visto que o mandado foi emitido para cumprimento de pena, tanto a nacionalidade portuguesa
do agente como a residência em Portugal constituem motivos de recusa facultativa de entrega,
de acordo com o art. 12.º, n.º 1, al. g). Devia então o juiz ponderar se a nacionalidade e a
residência se traduziam numa ligação efectiva à comunidade portuguesa (se Arnaldo tinha aqui
a vida instalada, se exercia profissão em Portugal, etc.), não só por atenção aos seus direitos
fundamentais como também tendo em vista a melhor prossecução dos fins das penas (mais
concretamente, o de ressocialização).
Quanto à pena de prisão perpétua, a decisão de entrega depende da previsão no sistema
jurídico alemão de uma revisão da pena nos termos do art. 13.º, n.º 1, al. a), ou da aplicação das
medidas de clemência referidas na mesma al. O art. 33.º, n.º 5, da CRP, exceciona regimes como
o daquele 13.º dos apertados limites do art. 33.º, n.º 4, para casos de prisão perpétua. Ainda assim,
pode defender-se, na linha de Fernanda Palma, que sob pena de serem desrespeitados os limites
materiais à revisão constitucional – mais concretamente, o art. 288.º, al. d), que engloba a
proibição de prisão perpétua consagrada no art. 30.º, n.º 1, da CRP –, o art. 13.º, n.º 1, al. a), deve
ser interpretado restritivamente, aproximando-se o regime do que vigora para casos de
extradição, devendo atender-se ao art. 6.º, n.ºs 1, al. f), 2 e 3. Assim, se fossem prestadas, por
exemplo, as garantias apontadas nestas normas, Arnaldo poderia ser entregue, caso em que a
lei portuguesa não seria aplicável.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Doutor Ricardo Tavares da Silva, Mestres
Sónia Moreira Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e
Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Época de recurso / coincidências - 14 de abril de 2021
Duração: 90 minutos

Em 2 de janeiro de 2012, Artur, sócio gerente de uma sociedade comercial, prometeu a Bernardo,
administrador de uma SGPS (Sociedade Gestora de Participações Sociais), que era a entidade gestora,
entre outras, da sociedade concessionária de um serviço público, a quantia de cem mil euros se ele
favorecesse a sua sociedade comercial num concurso aberto pela sociedade concessionária.
Bernardo aceitou e conseguiu influenciar, através de um almoço, em 2 de janeiro de 2013, os gestores
da sociedade concessionária (embora eles desconhecessem a combinação com Artur). Assim, a
sociedade comercial de Artur venceu o concurso, por decisão de 2 de janeiro de 2014. Em 2 de janeiro
de 2017, Bernardo recebeu a contrapartida ajustada, através de depósito numa conta num banco suíço.

Em face destes factos, responda às seguintes questões:

1 - De acordo com os princípios constitucionais de Direito Penal, pode interpretar-se o artigo 386.º, n.º 2,
do CP no sentido de considerar Bernardo funcionário? (3 valores)
2 - Tendo em conta as incriminações da corrupção ativa e passiva nos artigos 373.º e 374.º e as regras
consagradas no artigo 119.º do CP, quando se inicia a contagem do prazo prescricional nos crimes de
corrupção ativa e passiva? (3 valores)
3 - Se uma lei que entrou em vigor em 2 de janeiro de 2018, antes do julgamento dos factos, alargasse do
dobro para o triplo o prazo previsto no artigo 120.º, n.º 5, do CP, o novo prazo seria aplicável? (3 valores)
4 - Se o Tribunal Constitucional declarasse inconstitucional o artigo 119.º, n.os 1 e 4, do CP, na
interpretação segundo a qual o prazo de prescrição só começa a contar, no crime de corrupção passiva,
com o recebimento da vantagem, o arguido Bernardo beneficiaria da declaração apesar de já ter sido
condenado por sentença transitada em julgado? (3 valores)
5 - É compatível com a CRP a existência de crimes imprescritíveis? Responda tendo em conta, além do
CP, diplomas legais resultantes de acordos internacionais. (4 valores)
6 - Como se justifica a prescrição no plano criminológico? (2 valores)

Ponderação global: 2 valores.


Tópicos de correção

1 – O conceito de funcionário público surge densificado no artigo 386.º do Código


Penal (CP) e pretende servir de definição para um elemento típico comum a crimes
cometidos no exercício de funções públicas. Uma vez que Bernardo era administrador
de uma SGPS que, por sua vez, geria uma entidade concessionária de serviço público,
coloca-se a questão de saber se pode Bernardo ser considerado um funcionário público à
luz da equiparação inscrita no n.º 2 do artigo 386.º do CP. Neste sentido, o problema
particular que o caso suscita relaciona-se com a possível recondução da situação de
Bernardo à de um gestor, titular de órgão ou trabalhador de “empresa concessionária de
serviços públicos” (artigo 386.º, nº 2, in fine, do CP).
Acompanhando a conceção de interpretação sustentada por Maria Fernanda Palma,
baseada em raciocínios analógicos, a delimitação da interpretação permitida em Direito
Penal que potencia a segurança jurídica e a conformidade com o artigo 1.º, n.º 3, do CP
deve partir do sentido possível das palavras (compreendido no quadro do seu sentido
comunicativo comum), alicerçando-se ainda na articulação desse sentido com a essência
do proibido subjacente à norma criminal. Esta conceção diferencia-se da tese
sustentada, por exemplo, por Castanheira Neves, que vê nas palavras apenas uma
exteriorização possível da norma, cuja ideia do proibido pode, por isso, ser encontrada
noutras proveniências, como o sejam as intenções e valores elegidos pelo legislador
com correspondência sistemática e jurisprudencial.
Manuseando a primeira conceção descrita, cumpre perceber se um administrador de
sociedade gestora de empresa concessionária pode, então, ser considerado um
funcionário público em virtude dessa sua ligação a uma “concessionária de serviços
públicos”. No que respeita ao critério do sentido possível das palavras, a existência de
uma correspondência entre a situação de Bernardo e o segmento textual do artigo 386.º,
n.º 2, in fine, do CP, levanta dúvidas. Isto porque o legislador apenas se refere a pessoas
que desempenham funções em empresas concessionárias de serviços públicos, nada se
colhendo textualmente a propósito de pessoas com funções em empresas que tenham a
seu cargo a gestão de sociedades concessionárias. Uma visão estrita do critério
enunciado — que é admitida se devidamente fundamentada — permitiria, pois,
sustentar uma interpretação proibida em face das exigências do princípio da legalidade,
no seu corolário lei estrita, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da CRP e
1.º, n.º 3, do CP, dado que é diferente ser gestor de concessionária e ser administrador
de empresa que gere uma concessionária.
No entanto, a inclusão do administrador de empresa gestora de sociedade
concessionária no âmbito da parte final do n.º 2 do artigo 386.º do CP é, ainda, e apesar
da formulação textual do preceito, enquadrável dentro dos limites juridicamente
controláveis da concretização da norma criminal. Isto porque, em primeiro lugar, é
nítido o contacto desta situação com a teleologia do elemento típico “qualidade de
funcionário” — a atribuição de uma qualidade penalmente distinta a quem mantém uma
relação especial com interesses públicos por via da concessão da gestão de bens e
serviços de interesse público. Em segundo lugar, porque há uma suficiente conexão
lógica com o teor textual daquele preceito legal (gestor de concessionária) e a situação
de Bernardo (administrador de sociedade gestora de concessionária). Por conseguinte,
afigura-se excessivo impedir a subsunção de Bernardo à categoria de funcionário
(seguindo-se, portanto, uma linha argumentativa próxima daquela que pode ser
sustentada no que respeitava à Lei n.º 90/88, de 13 de agosto, e à incriminação do abate
de lobos ibéricos).

2 – Nos termos do artigo 119.º, n.º 1 do CP, o prazo prescricional começa a contar-se
desde o dia da consumação do crime.
Relativamente à corrupção ativa, a consumação pode dar-se tanto no momento em que
o agente entrega ao funcionário a vantagem patrimonial em questão como naquele em
que lhe promete essa vantagem, no caso de haver promessa prévia. Deste modo, no
presente caso, a corrupção ativa praticada por Artur consumou-se logo no dia 2 de
janeiro de 2012, parecendo admitir-se o entendimento de que deve contar-se o prazo de
prescrição desde essa data. Contra tal orientação, porém, cabe notar o seguinte.
O depósito realizado a 2 de janeiro de 2017 por Artur constitui igualmente ato de
realização do tipo em análise. Não se trata de novo delito, podendo afirmar-se a unidade
típica dos dois momentos num único crime de corrupção ativa, sob pena de violação do
artigo 29.º, n.º 5, da CRP. Visto que este ato, por si, implica igualmente consumação do
crime, é igualmente de admitir ler a referência à consumação como feita ao momento da
entrega, em vez de ao da promessa.
Esta última hipótese de leitura encontra respaldo sistemático. A corrupção ativa não é
crime permanente, mas instantâneo, como não é crime habitual, por nenhum elemento
típico apontar nesse sentido; além disso, tratando-se, como referido, de um só crime,
não há crime continuado. Assim, não pode enquadrar-se o caso nas als. a) e b) do artigo
119.º, n.º 1. Não obstante, tanto das als. deste n.º como do n.º 4 parece extrair-se com
clareza o propósito legislativo de situar o início do prazo em causa no último momento
de consumação do delito. Acresce a isto que as consequências práticas da leitura
alternativa, para lá de não se sustentarem em motivo validante, são desrazoáveis,
porquanto levam a admitir a realização de vários atos de consumação do crime ao longo
do tempo sem que possa haver procedimento criminal pelos mesmos, na pressuposição
de que se reportam a uma promessa feita anos antes.
Em conclusão, o prazo de prescrição da corrupção ativa, no presente caso, deve contar-
se desde o dia 2 de janeiro de 2017, pois tal interpretação do artigo 119.º não só se
mostra enquadrada no sentido possível das palavras como vai ao encontro das
intencionalidades normativas pertinentes, assim se respeitando o princípio da legalidade
e, mais concretamente, a proibição de analogia incriminadora – artigos 29.º, n.º 1, da
CRP e 1.º, n.ºs 1 e 3, do CP.
Relativamente à corrupção passiva, também nesta se registam possibilidades
alternativas de consumação, podendo realizar-se o tipo com a solicitação ou aceitação
pelo funcionário tanto da vantagem patrimonial como da sua promessa. Assim sendo,
vale, com as devidas adaptações, o raciocínio acabado de expor relativamente à
corrupção ativa, devendo, no presente caso, começar a contar-se o prazo prescricional
desde 2 de janeiro de 2017.
3 – O caso convoca o princípio da legalidade e o seu corolário lei prévia, colocando-se
a questão de saber se o princípio da proibição da retroatividade desfavorável (cf. artigos
29.º, n.ºs 1, 3 e 4, primeira parte, da CRP e do artigo 1.º e 2.º, n.º 1 do CP) também tem
aplicação em matéria prescricional. Relacionando-se a prescrição com a vertente
adjetiva da responsabilidade jurídico-penal, poder-se-ia supor ser bastante nesta matéria
invocar o regime do artigo 5.º do Código de Processo Penal (CPP). Todavia, as normas
relativas à prescrição do procedimento criminal, onde se incluem especificamente as
que respeitam à suspensão do prazo do procedimento criminal, tal como sucede na
hipótese, não se podem considerar como meras normas processuais penais formais, por
dotadas de natureza substantiva penal. Embora o alargamento dos prazos prescricionais
revele reconhecimento de maior dignidade do bem jurídico tutelado e até maior
intensificação da necessidade de punir, a alteração desse crivo do legislador não pode
bulir com a autolimitação do Estado de Direito Democrático ao direito que cria, nem,
reflexamente, com as expectativas dos destinatários da norma relativamente às
concretas possibilidades de efetivação da responsabilidade jurídico-penal. O princípio
do Estado de Direito é candeia que impõe como regras a objetividade, a previsibilidade
e a segurança jurídica geral, pelo que, fixando-se o tempus delicti, de acordo com o
critério unilateral da conduta vertido no artigo 3.º do CP, em momento anterior à
entrada em vigor da lei nova, datada de 2 de janeiro de 2018, temos que o prazo
prescricional a considerar é, precisamente, o que vigora no momento da conduta e não o
que resulta de lei posterior, por implicar retroatividade in pejus, constitucionalmente
vedada.
Em suma, o novo prazo prescricional não seria aplicável pelos motivos aduzidos.

4 – À partida, no momento da prática do facto (artigo 3.º do CP), estava em vigor o


artigo 119.º, n.os 1 e 4, do CP também na interpretação segundo a qual o prazo de
prescrição só começa a contar, no crime de corrupção passiva, com o recebimento da
vantagem: independentemente de se considerar que o momento da prática do facto
(consumação do crime de corrupção passiva) se dá com a aceitação da promessa (2 de
Janeiro de 2012), com o recebimento da vantagem patrimonial (2 de Janeiro de 2017),
ou com qualquer deles, ele é anterior ao da declaração de inconstitucionalidade
(Bernardo já havia, inclusivamente, sido condenado por sentença transitada em
julgado). Por isso, ainda à partida, e de acordo com o artigo 2.º, n.º 1, do CP, o artigo
119.º, n.os 1 e 4, do CP, comportando a dita interpretação, seria a lei aplicável.
Porém, nos termos do artigo 282.º, n.º 1, da CRP, uma vez declarado inconstitucional,
o mesmo, nessa interpretação, não é válido desde a sua entrada em vigor, restando a
interpretação de acordo com a qual o prazo de prescrição começa logo a contar a partir
da promessa de vantagem patrimonial. Consequentemente, no momento da prática do
facto, estava em vigor o artigo 119.º, n.os 1 e 4, do CP apenas na interpretação restante,
sendo esta a lei aplicável. Tendo havido trânsito em julgado, será ainda o regime do
artigo 282.º, n.º 1, da CRP o prevalecente caso haja uma decisão do Tribunal
Constitucional nesse sentido, nos termos do n.º 3.
Quanto a este aspeto, o artigo 282.º, n.º 3, da CRP exige que esteja em questão
matéria penal e que a norma declarada inconstitucional seja menos favorável ao
arguido. Quanto ao primeiro requisito, e mesmo que o n.º 3 esteja a restringir-se a
normas penais substantivas, o mesmo encontra-se preenchido, pois, como foi apontado
na pergunta anterior, as normas respeitantes à prescrição não constituem meras normas
processuais. Quanto ao segundo requisito, o mesmo também se encontra preenchido,
considerando que quanto mais tarde se iniciar a contagem dos prazos, mais tarde
prescreverá o crime, em prejuízo do agente.
Consequentemente, o arguido Bernardo beneficiaria da declaração apesar de já ter
sido condenado por sentença transitada em julgado.

5 – A compatibilidade da imprescritibilidade de certos crimes com a CRP apenas será


admissível caso se conclua pela inexistência de um princípio geral de prescritibilidade
ou pela existência de crimes aos quais em ele não se aplique. Embora ele não esteja
expressamente consagrado na CRP, sempre se terá de ponderar a sua vigência como
decorrência de outros princípios constitucionais.
Nos «crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão», a
imprescritibilidade – consagrada pelo legislador ordinário (artigo 7.º da Lei n.º 31/2004,
de 22 de julho) em cumprimento do Estatuto do Tribunal Penal Internacional –
fundamenta-se na excecional gravidade e «atentos os valores em causa, dos quais não
estariam arredados valores "máximos" (ou de "sensibilidade máxima") acolhidos na
Constituição», (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 483/2002, de 10 de janeiro de
2003, cuja citação contará, apenas, para cotação extra), que se sobrepõem à ideia de que
a passagem de certo período de tempo deve dar lugar ao «perdão» em função da
mitigada relevância dos atos praticados para a comunidade e a consequente erosão das
necessidades preventivas da punição.
Noutros campos, a mesma conclusão não poderá ser sustentada, uma vez que não
subsistem os argumentos que permitem, nos casos de violação de direito internacional
humanitário, ultrapassar os problemas resultantes do confronto com os princípios da
necessidade da pena (artigo 18.º da CRP) e da proibição de arbítrio (artigo 2.º da CRP),
bem como com o direito do arguido a um julgamento dentro de um prazo razoável
compatível com as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). Aqui, impor-se-á o
direito à paz jurídica, bem como os valores da certeza e segurança, podendo concluir-se
que a prescrição, como instituto historicamente consolidado no ordenamento jurídico
português e «constitucionalmente atendível» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
483/2002), não poderá ser negada, sob pena de inconstitucionalidade por violação dos
princípios supra referidos, pelo que deverá ser salvaguardada para a generalidade dos
crimes, os quais não têm a particularidade de deixar, passado um período de tempo
razoável, de reclamar perseguição criminal.
O voto de vencido apresentado pela Professora Maria Fernanda Palma naquele
Acórdão alerta, no entanto, para a necessidade de concretização do critério distintivo, a
fim de evitar que, por não se explicitar o apoio constitucional do mesmo, se caia «num
certo "impressionismo jurídico", gerador de insegurança e incerteza para o legislador,
para os tribunais e para os cidadãos em geral». Com efeito, o caso subjacente à
fiscalização da constitucionalidade evidenciava a difícil configuração da «justificação
da prescrição na ausência de necessidade punitiva em face da atenuação na sociedade
dos efeitos do crime e da dificuldade de, ao fim de certo lapso de tempo, as provas
manterem consistência» quando os «efeitos se continuam a produzir no termo de
processos causais complexos e morosos». Assim sendo, a consideração geral de
incompatibilidade da imprescritibilidade com a CRP não deve dispensar a análise da
constitucionalidade aquando da consagração da mesma, ponderando as necessidades
preventivas concretas e o fim de evitar inércia e a utilização abusiva do poder punitivo
do Estado, por oposição a «afirmações genéricas acerca da violação de princípios, em
que a dimensão da violação da Constituição não é, verdadeiramente, identificada».

6 – A prescrição, ao implicar a produção de efeitos extintivos de direitos e deveres (no


que diz respeito ao procedimento criminal, ao poder do Estado de perseguir penalmente
os agentes e de fazer executar a pena correspondente, promovendo a realização dos
efeitos da condenação), traduzir-se-á numa extinção da responsabilidade criminal pelo
decurso do tempo. Isto poderá justificar-se à luz de linhas criminológicas associadas
sobretudo à sociologia criminal, segundo as quais o fenómeno criminal seria expressão
de uma deficiência na relação da pessoa com o meio.
Assim, na lógica do interacionismo simbólico, o crime seria produto da própria
interação social, da relação entre cada pessoa e as outras, pois os comportamentos
sociais são explicados como o resultado da interação entre a sociedade e o indivíduo.
Pelo decurso do tempo, o significado atribuído a determinado comportamento
criminoso, que se estabelece a partir da interação social, poderá ter-se alterado. Deste
modo, uma vez que os próprios processos de interação social poderão já não ser os
mesmos devido ao decurso do tempo, isso poderá não permitir tornar previsível e
reconfigurável o fenómeno criminoso, o que desta forma justifica a prescrição.
Adicionalmente, a visão do crime enquanto construção social, a partir da perspetiva da
labeling approach, já não seria eficaz na identificação da deviance, pois sendo o crime
o produto dos grupos sociais que criam regras cuja violação suscita tal qualidade, ao já
não ser possível aplicar a lei e uma sanção a um agente, devido ao decurso do prazo
prescricional, já não é possível identificar a deviance (que não corresponde a uma
qualidade do ato ou do agente, mas sim a uma consequência da aplicação da lei e da
sanção correspondente pelas instâncias formais de controlo).
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Doutor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia
Moreira Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do
Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Época de recurso - 8 de abril de 2021
Duração: 90 minutos

Lenocínio em pandemia

António, português residente em território nacional, incitou a namorada, Beatrice,


não portuguesa, a prostituir-se, para obterem um melhor rendimento. Com essa
finalidade, deslocaram-se a Paris, onde Beatrice se prostituiu durante o mês de
fevereiro de 2020, tendo mantido relações com Carlos, português residente
temporariamente em França.
De regresso a Portugal, António tomou conhecimento de um Acórdão do Tribunal
Constitucional de 3 de março de 2020, que julgou inconstitucional o artigo 169.º, n.º
1, do Código Penal, num processo de fiscalização concreta de constitucionalidade.
António ficou convencido de que o seu comportamento estaria descriminalizado e
passou a utilizar na prostituição outras pessoas, oriundas do país de Beatrice.
Posteriormente, por Acórdão de 27 de janeiro de 2021, proferido por haver contradição
entre decisões anteriores, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional o
artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, partindo da argumentação consagrada no
Acórdão n.º 144/2004 («verdadeiramente a decisão matriz desta problemática na
jurisprudência constitucional»), considerando que o lenocínio «quase invariavelmente,
corresponde à perpetuação de situações de diminuição da liberdade e de sujeição a
um poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo, visto que se
exerce fora de relações formalizadas ou declaradas, as quais, uma vez iniciadas, são
difíceis de quebrar ou interromper, tendendo a perpetuar-se enquanto se mantiver a
respetiva “utilidade comercial”», pelo que se «gera um risco socialmente inaceitável,
que não exorbita o âmbito de proteção da norma, nem dele é sequer periférico, porque
se trata de um risco conatural ao proxenetismo, cujo empresário (…) tende a
organizar-se de modo a potenciar o lucro (…), objetivo ao qual, mais tarde ou mais
cedo, dificilmente escapará (o dano d)a vontade e (d)a liberdade das pessoas que se
prostituem».
Entretanto, Beatrice, que regressou a Portugal com António, prostituiu-se no seu
apartamento durante o período do confinamento, a partir de abril de 2020. Veio a
apurar-se que contraiu Covid-19, mas não se provou que tivesse contagiado algum
cliente.

Em face destes factos, responda às seguintes questões:


1 - Os comportamentos de António podem ser qualificados como lenocínio à luz dos
princípios constitucionais relativos à interpretação da lei penal? (3 valores)
2 - Beatrice pode ter cometido um crime de propagação de doença contagiosa? E o
crime de desobediência? Responda considerando as descrições legais dos crimes, os
problemas analisados sobre as leis relativas ao estado de emergência e os princípios
constitucionais relevantes. (4 valores)
3 - Quais os argumentos a favor e contra a inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º
1, do Código Penal? Responda apresentando os argumentos em função dos princípios
constitucionais invocáveis. (4 valores)
4 - Sendo o consumo de prostituição incriminado em França, este país pode requerer
a execução de mandado de detenção europeu para que Carlos seja julgado pelo crime
cometido nesse país? (2 valores)
5 - A criminalização do consumo de prostituição poderia ser aprovada em Portugal
sem ofensa de nenhum princípio constitucional? (3 valores)
6 - Quais os argumentos criminológicos a considerar na questão da incriminação do
lenocínio? (2 valores)

Ponderação global: 2 valores.


Tópicos de correção

1
Suscita-se um problema de interpretação da lei penal que irradia do
princípio da legalidade, em particular do corolário nullum crimen nulla
poena sine lege stricta (cf. artigo 29.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da
República Portuguesa).
O lenocínio é punido nos termos do artigo 169.º, n.º 1, do Código
Penal. A conduta de António suscita dúvidas interpretativas
particularmente no que respeita, por um lado, à sua intenção lucrativa
em relação à prostituição de Beatrice, uma vez que esta era sua
namorada e os rendimentos da atividade seriam comuns, e, por outro
lado, à fomentação, favorecimento ou facilitação ao exercício de
prostituição por Beatrice. No que se refere a outras pessoas, que
António também “passou a utilizar na prostituição”, não se parecem
colocar semelhantes dúvidas.
Acompanhando a conceção de interpretação sustentada por Maria
Fernanda Palma, baseada em raciocínios analógicos, a delimitação da
interpretação permitida em Direito Penal que potencia a segurança
jurídica e a conformidade com o artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal deve
partir do sentido possível das palavras (compreendido no quadro do seu
sentido comunicativo comum no contexto significativo do texto da
norma), alicerçando-se ainda na articulação desse sentido com a
essência do proibido subjacente à norma criminal. Esta conceção
diferencia-se da tese sustentada, por exemplo, por Castanheira Neves,
que vê nas palavras apenas uma exteriorização possível da norma, cuja
ideia do proibido pode, por isso, ser encontrada noutras proveniências,
como o sejam as intenções e valores elegidos pelo legislador com
correspondência sistemática e jurisprudencial.
Tornando à conceção primeiramente enunciada, a discussão que o
caso suscita é, por um lado, a de saber se a incitação à prostituição de
António a Beatrice “para obterem um melhor rendimento” corresponde
à “intenção lucrativa” inscrita no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal. A
este propósito, facilmente se constata que existe a sobredita
correspondência, uma vez que o facto de António ter incitado Beatriz
com vista a um rendimento que beneficiaria ambos inclui uma intenção
lucrativa do próprio António, reconduzível, por essa razão, ao núcleo
interpretativo da expressão textual “intenção lucrativa [do agente]”.
Intenção que, diga-se, se relaciona também com a essência da
proibição, pois que é justamente este tipo de motivação económica de
terceiro que é vista pelo legislador como integrante de um
comportamento que é criador de perigo para os bens jurídicos
protegidos, desde logo, a liberdade sexual da pessoa que exerce a
atividade de prostituição.
No que concerne à fomentação, favorecimento ou facilitação do
exercício de prostituição por Beatrice, e manuseando os critérios
interpretativos mencionados, conclusão semelhante pode ser
formulada. Isto porque a incitação de António a Beatrice é um
comportamento enquadrável no sentido possível da palavra “fomentar”
(podendo até ser visto como um sinónimo) e debilita também os bens
tutelados pela norma do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.
Embora essa discussão também pudesse ser desenvolvida, os dados
da hipótese não sugerem a existência de indícios de abuso de
autoridade resultante da relação de namoro, nem um aproveitamento
de incapacidade ou especial vulnerabilidade de Beatrice por parte de
António, concretamente para efeitos de aplicação do artigo 169.º, n.º 2,
alíneas c) e d), do Código Penal.
Em síntese, uma interpretação que reconduza os comportamentos de
António ao artigo 169.º, nº 1, do Código Penal constitui uma
interpretação permitida e alinhada com o princípio da legalidade, no
seu corolário lei estrita, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3
da Constituição e, reflexamente, também com a exigência de lei em
sentido formal (cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição).

2.
Quanto ao crime de propagação de doença contagiosa [artigo 283.º, n.º
1, alínea a), do Código Penal], a sua consumação implica a criação de
perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem,
não sendo suficiente o risco de propagação. Sendo discutível se a
existência desses perigos se basta com o contágio (não se exigindo o
aparecimento de sintomas), não se provando o contágio, impõe-se
concluir que o crime não se consumou. A solução contrária não poderia
sequer valer-se da intencionalidade normativa, visto não se ter
comprovado na situação particular que o comportamento da agente se
tenha mostrado ofensivo para os bens em questão. Tal solução
passaria, por isto, por aplicar como de perigo abstrato um crime de
perigo concreto, violando-se a proibição de analogia incriminadora
consagrada nos artigos 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, e 1.º, n.º 3, do
Código Penal.
Quanto ao crime de desobediência, é duvidoso que Beatrice haja
praticado algum ato ao qual a lei associe a punição por desobediência;
no que respeita, nomeadamente, à violação do dever de recolhimento
domiciliário, nos termos do decreto que regulamenta o estado de
emergência, é força notar que, em Portugal, Beatrice se prostituiu em
casa.
Ainda que assim não fora, ou reportando-nos a outros factos, de todo
o modo, está em causa a exigência de lei escrita, de acordo com o
princípio da legalidade: como se retira do artigo 165.º, n.º 1, alínea c),
da Constituição, somente a lei em sentido formal pode ser fonte de
criminalização. Ainda que não seja obrigatório surgirem no mesmo
diploma a previsão típica do comportamento e a cominação da sanção,
ambas (bem como a conexão entre elas) têm de constar de lei na aceção
prejacente. Todavia, tal não parece suceder nesta situação, pois a
descrição (de parte essencial) do comportamento proibido surge em
decreto governamental. O artigo 348.º do Código Penal, que tipifica o
crime de desobediência, inclui a remissão para disposição legal [n.º 1,
alínea a)] entre as hipóteses de realização do crime. A disposição,
contudo, atendendo ao referido, deve ser entendida em sentido formal,
sendo necessário constarem de lei ou decreto-lei autorizado tanto a
atuação proibida como a cominação da pena. Em suma, Beatrice não
podia ser punida por este crime.

3.
A inconstitucionalidade do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal pode
ser sustentada no princípio constitucional da proporcionalidade,
concretizado, aqui, nas ideias de bem jurídico, ofensividade e
necessidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). Com efeito, e na linha
do que foi afirmado pelo Tribunal Constitucional (TC) no seu Acórdão
n.º 134/2020, coloca-se, desde logo, um problema no que respeita ao
bem jurídico tutelado, cuja ausência fere o princípio da
proporcionalidade: afastando-se a dignidade da pessoa humana de
quem se prostitui, salvaguardando-a da «necessidade de utilizar a
sexualidade como modo de subsistência» (Acórdão do TC n.º 144/2004),
para efeito de identificação do bem jurídico com dignidade penal pela
sua vasta amplitude e abstração, as quais conduzem a um
esvaziamento ou indefinição, não se encontra qualquer bem jurídico
protegido através da tipificação do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.
Esta conclusão não poderá ser rejeitada pela consideração dos bens
jurídicos da liberdade e da «“autonomia para a dignidade” das pessoas
que se prostituem» (considerados pelo TC no Acórdão n.º 144/2004),
uma vez que a incriminação envolve casos em que estes não são
colocados, sequer, em perigo, por não se realizar a exploração da
carência económica e social de quem se prostitui.
Por outro lado, mesmo que se aceite – com dificuldade acrescida pelo
facto de ser suscetível de acordo e de livre disposição por parte do seu
titular – a liberdade sexual como o bem jurídico aqui protegido, sempre
se terá de interpretar o atual artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal como
um crime de perigo abstrato, o que se afigura inconstitucional, por não
estar consolidada a verificação de um «autêntico nexo causal de
perigosidade» entre as condutas denominadas como lenocínio e a
exploração (violadora da liberdade sexual), exigível para a configuração
deste crime de perigo abstrato (Acórdão do TC n.º 134/2020).
Por fim, refira-se, ainda, a violação do princípio da subsidiariedade
causada pelo reconhecimento da existência de medidas alternativas de
proteção daquele bem jurídico, não violadoras, de forma
desproporcional do direito à liberdade (artigos 1.º e 27.º da
Constituição).
Esta argumentação foi, no entanto, ultrapassada no Acórdão do TC n.º
72/2021, julgando o artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal não
inconstitucional, e recuperando a jurisprudência constitucional
anterior, com destaque para o Acórdão do TC n.º 144/2004, para
reafirmar, como bem jurídico suficientemente definido, a autonomia e
liberdade sexual da pessoa que se prostitui, quase invariavelmente
afetada na realidade social envolvida nas situações descritas no tipo,
caracterizadas pela «diminuição da liberdade e [pela] sujeição a um
poder de facto que, as mais das vezes, escapa a qualquer controlo», a
que se associa a profunda estigmatização da prostituição, conclusão
amparada em dados empíricos (cuja análise se remete para a resposta à
questão 6).
Esta constatação afasta, neste caso, a problemática referida sobre o
perigo abstrato, uma vez que se demonstra evidente que a conduta
típica acarreta um «risco socialmente inaceitável, (…) conatural ao
proxenetismo», que fundamenta a dispensa de prova da exploração no
caso concreto, respeitando-se, ainda assim, o princípio da necessidade.
Ademais, sempre será de se admitir a realização da contraprova do
perigo, como tem defendido Maria Fernanda Palma.
A proteção da dignidade da pessoa humana, concretizada na
contestação de casos de utilização da sexualidade para ultrapassar
situações de carência económica e social, justifica, deste modo, a
restrição de direitos fundamentais envolvida na aplicação do Direito
Penal: estão em causa a liberdade e autonomia, frente à exploração e
aproveitamento por terceiros.

4.
Na hipótese de o consumo de prostituição ser incriminado em França,
este país poderia requerer a execução de mandado de detenção europeu
com vista à entrega de Carlos para efeitos de procedimento criminal
(artigos 1.º, n.º 1, 1.ª parte, 36.º e 37.º, da Lei n.º 65/2003), na medida
em que à luz do princípio da territorialidade, a conduta de Carlos foi
praticada em território francês [ao abrigo das normas correspondentes
aos artigos 4.º, alínea a), e 7.º, n.º 1, do Código Penal português no
Código Penal francês]. Não obstante, estaríamos perante uma causa de
recusa obrigatória do mandado, prevista na alínea f) do artigo 11.º da
Lei n.º 65/2003, porquanto não se encontra verificado o requisito da
dupla incriminação (artigo 2.º, n.º 3, da referida lei), e não nos
encontramos perante uma infração incluída nas alíneas do n.º 2 do
artigo 2.º da mesma lei.

5.
A criminalização de um comportamento implica restrição de direitos
fundamentais, pelo que deve observar o disposto no artigo 18.º, n.º 2,
da Constituição, sempre que a norma não se mostrar adequada,
necessária e proporcional à proteção de um bem jurídico com dignidade
penal. À luz de critérios como o da ofensividade ou o da necessidade da
pena, pode argumentar-se, porém, que a punição em análise não parece
respeitar o referido comando constitucional, pois os comportamentos
visados não implicam lesão ou perigo para bens alheios –
nomeadamente, a liberdade ou autodeterminação sexuais.No entanto,
numa outra linha de argumentação poder-se-ia entender que estes
comportamentos fomentariam o tráfico e a exploração sexual de
pessoas, justificando-se em termos de política criminal, isto é, de
prevenção desta criminalidade.
A afirmação da lesividade do consumo de prostituição pode, por outro
lado, pressupor a referência a critérios de moralidade sexual ou bons
costumes, não admissíveis como base de criminalizações à luz da
Constituição. Configurando-se a República Portuguesa como Estado de
Direito democrático, baseado no pluralismo de expressão e na
organização política democrática (artigo 2.º da Constituição), a punição
deste tipo de práticas traduziria a imposição de uma mera conceção
(dominante ou não) sobre probidade e decoro, sem nenhum efeito
imediato de proteção de bens jurídicos ou direitos individuais contra
ameaças provindas de outrem. O juízo é reforçado pela consideração da
liberdade sexual (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição) do próprio
incriminado, que assim se veria restringida sem o propósito de prevenir
a provocação de um perigo ou dano para os demais.
No confronto destas duas argumentações, a legitimidade da pura
incriminação do consumo de prostituição estaria dependente de dados
empíricos sobre o potencial diretamente lesivo deste tipo de
comportamentos para a exploração sexual de pessoas, o que não
resultará claramente da mera proibição do consumo da prostituição
sem indícios, tipicamente referidos, de outras conexões.

6.
Argumento contra a incriminação: de acordo com a ratio
argumentativa presente no Acórdão do TC n.º 134/2020 de 3 de março,
a possibilidade de que quem se prostitui para aproveitamento
económico por terceiros esteja a exercer a sua própria liberdade sexual,
ao ser parte de um acordo com aquele mesmo fim, é de tal modo
plausível que impede qualquer presunção de perigo de prejuízo da
mesma. Como é referido no Acórdão, o comportamento descrito no
artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal não comporta necessariamente uma
restrição desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui; pelo
contrário, a própria proibição da conduta levará à restrição de um tal
direito.
A este argumento poder-se-á juntar a consideração de que a
estigmatização social do lenocínio, decorrente da sua “etiquetagem”
como comportamento criminoso por via da lei (perspetiva da labeling
approach), é desnecessária ou, no mínimo, desproporcional quando não
se restrinja aos casos nos quais se prova que há efetiva violação do
direito à liberdade sexual. Já uma perspetiva interacionista sugerir-nos-
á que a aprendizagem de um comportamento potencialmente restritivo
da liberdade sexual far-se-á por contacto com comportamentos do
mesmo tipo e que o Direito Penal, enquanto instrumento de garantia do
direito à liberdade sexual, deverá incidir apenas sobre esse tipo de
comportamento.
Argumento a favor da incriminação: o Acórdão do TC n.º 72/2021 de
27 de janeiro recupera a argumentação constante no Acórdão n.º
144/2020 de 19 de abril (e no Acórdão n.º 641/2016 de 29 de Junho),
no qual se associa o lenocínio a práticas tradicionais de proxenetismo,
pois, histórica e culturalmente, corresponde a uma matriz de
exploração de uma situação de carência e desproteção social da pessoa
prostituída, sendo que o aproveitamento económico por terceiros
exprime, já, uma interferência na liberdade de quem se prostitui,
colocando tal pessoa em perigo, o que constitui um risco socialmente
inaceitável. Como é dito no enunciado, o lenocínio corresponde, quase
invariavelmente, à perpetuação de situações de diminuição da liberdade
e de sujeição a um poder de facto.
A este argumento poder-se-á juntar a consideração de que a
“etiquetagem” social do lenocínio, em geral, como comportamento
criminoso é já um facto, com as respetivas repercussões ao nível do
conceito jurídico de crime. Numa perspetiva interacionista, dir-se-á que
a prevenção da aprendizagem de um comportamento potencialmente
restritivo da liberdade sexual passa pela incriminação de todo o
lenocínio.
Além destas considerações, serão valoradas, ainda, respostas que
relacionem, fundamentadamente, esta problemática com outras
correntes da Criminologia, designadamente correntes psicológicas e
sociológicas que expliquem o contexto em que se desenvolve a prática
do lenocínio, sustentando a fragilização que este causa na vida de quem
se prostitui.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira
Reis, António Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e
Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame de coincidências - 29 de janeiro de 2021
Duração: 90 minutos

Torre “Horrorosa”
Agustina, de nacionalidade argentina, foi contratada em 2018 por Bento, português, para
tratar dos animais da herdade Torre “Horrorosa”, de que o último é proprietário.
No dia 1 de dezembro de 2020, Bento organizou uma caçada, na qual participou,
juntamente com Agustina e com caçadores espanhóis. O pai de Bento era caçador e desde
muito cedo que este se habituou a acompanhá-lo em grandes caçadas. Durante a caçada
foram mortos 540 animais, sendo que apenas foi autorizada a caça de 105. Por esse motivo,
Diego, outro caçador de nacionalidade espanhola, chamou Agustina à atenção, que, ato
contínuo, o agrediu violentamente.
No dia 8 de dezembro de 2020, Agustina adquiriu nacionalidade portuguesa e viajou para
a Argentina, para passar o Natal junto da sua família. Durante a viagem, descobriu que estava
grávida de 13 semanas, sendo Bento o progenitor. No dia 11 de dezembro, dirigiu-se a uma
clínica em Buenos Aires para praticar um aborto. Na Argentina, no dia 30 de dezembro de
2020, o Senado aprovou uma lei que veio despenalizar a interrupção voluntária da gravidez
até às 14 semanas.
Agustina regressou a Portugal em fevereiro. Portugal recebeu posteriormente um pedido
de entrega de Espanha para julgar Agustina pelo crime de ofensa à integridade física.

Responda, sucinta mas fundamentadamente, às seguintes questões:


1- Considerando os problemas de interpretação, pode Bento ser punido nos termos dos artigos
6.º e 30.º da Lei de Bases Gerais da Caça? Nesse caso, por quantos crimes pode vir a ser
condenado?1 (4 v.)
2- Imagine que no dia 4 de janeiro de 2021 foi revogado o artigo 30.º da Lei de Bases Gerais da
Caça e a conduta aí prevista passou a constar do regime do artigo 34.º do mesmo diploma,
que aplica um regime contraordenacional. Pode Bento vir ainda assim a ser responsabilizado?
(3 v.)
3- Quando Bento descobriu que Agustina praticou um aborto, apresentou uma denúncia ao
Ministério Público. Pode Portugal vir a julgá-la por esse crime em março de 2021? (3 v.)
4- Como deve Portugal decidir o pedido de entrega de Espanha? (3 v.)
5- Como analisa, em face das finalidades da punição, a sentença que aplicou a Bento uma pena
de prisão de 6 de meses, considerando exclusivamente a necessidade de dar o exemplo
perante o choque social provocado com a divulgação das imagens dos animais mortos? (3
v.)
6- Como analisa o comportamento de Bento à luz das perspetivas criminológicas, considerando
especialmente o pensamento de Sutherland (2 v.)?

Ponderação global: 2 valores.

1
O artigo 6.º, n.º 1, da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n.º 173/99) dispõe o seguinte: “Tendo em vista a
conservação da fauna e, em especial, das espécies cinegéticas, é proibido: d) Ultrapassar as limitações e
quantitativos de captura estabelecidos”. O artigo 30.º, n.º 1, do mesmo diploma dispõe: “A infracção ao
disposto no n.º 1 do artigo 6.º do presente diploma é punida com pena de prisão até 6 meses ou com pena de
multa até 100 dias”.
1 – Abatendo animais em número superior ao autorizado, Bento realiza, com a sua caçada,
o tipo de crime referido. Ainda que se pudesse discutir se abater ou matar, por si,
correspondem a sentidos possíveis de “capturar”, presumindo-se que os animais foram
recolhidos pelo agente, a captura está consumada. Deste modo, não é ultrapassado o sentido
possível das palavras, respeitando-se a proibição de analogia consagrada no art. 1.º, n.º 3, do
CP. Por outro lado, não há dúvida de que é justamente este o tipo de comportamento que
se pretende proscrever com a norma, tendo-se atingido em dimensão muito significativa
exemplares de fauna protegida.
Quanto ao número de infrações, cabe averiguar se a punição por uma pluralidade de crimes
(v. g., tantos quantos os animais atingidos) infringe a proibição de dupla valoração do ilícito
(art. 29.º, n.º 5, da CRP). O concurso real (presume-se que vários atos foram praticados para
abater os diversos animais) não impõe necessariamente a punição em concurso efetivo. No
caso, podemos apontar fatores que indicam a unidade do acontecimento ilícito global, como
a unidade de resolução criminosa, a sequencialidade temporal, a limitação espacial ou a
uniformidade da execução. Além disto, a proteção da fauna não deve ser entendida aqui
como concretizando-se separadamente em relação a cada animal atingido: o ataque em causa
deve ser visto como praticado contra um bem de dimensão coletiva, reconduzível ao
ambiente ou a outro equivalente. Destarte, ao punir a captura em número superior ao
permitido, o legislador já pressuporá, na punição por um crime único, a probabilidade de um
número elevado de animais para lá do limite da autorização ser atingido.
Em face destes pontos, ainda que se defenda que algum ou alguns deles não sejam decisivos
ou sequer relevantes, conclui-se que não foi realizado várias vezes o mesmo tipo de crime,
como referido no art. 30.º, n.º 1, pelo que Bento deve ser punido por um só crime, podendo
o número de animais atingidos ser considerado na determinação da medida concreta da pena.

2 – Com a alteração legal referida, o crime inscrito no art. 30.º da Lei de Bases Gerais da
Caça foi transformado em contraordenação. Uma vez que a atuação de Bento — de
ultrapassagem das limitações e quantitativos de captura estabelecidos — se deu no dia 1 de
dezembro de 2020, estamos perante uma alteração legislativa ocorrida em momento
posterior à prática do facto (art. 30.º da Lei de Bases Gerais da Caça e art. 3.º do CP). Cumpre,
pois, descortinar se Bento poderá ser punido criminalmente, contraordenacionalmente, ou
se não poderá ser sancionado a qualquer título.
Nos termos dos arts. 29.º, n.º 1, da CRP, e 2.º, n.º 1, do CP, aplica-se, em princípio, a lei
em vigor no momento da prática do facto, mas a imputação do crime, que à data dos factos
constava do artigo 30.º da Lei de Bases Gerais da Caça, está vedada, porquanto a sucessão
de leis ocorrida implicou a descriminalização da conduta em causa. Projeta-se sobre este caso
o princípio da aplicação retroativa da lei de conteúdo mais favorável (art. 29.º, n.º 4, in fine,
da CRP), isto é, a lei que revogou o mencionado crime, o que impede a punição criminal do
agente (art. 2.º, n.º 2, do CP).
Já a possibilidade de imputação do tipo contraordenacional posterior suscita a
problematização em torno da aplicação do princípio da irretroatividade da lei, que também
vigora no âmbito contraordenacional (art. 2.º e art. 3.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de
Mera Ordenação Social – RGIMOS). De acordo com a maioria da doutrina (Professora
Maria Fernanda Palma; Professor Jorge de Figueiredo Dias), em termos também já
secundados pelo Tribunal Constitucional, é ainda assim admissível a imputação ao agente da
norma contraordenacional, uma vez que, com a alteração legislativa, a conduta mantém-se
desvaliosa, não se ferindo com a punição qualquer expetativa do agente, pois que apenas se
modificou a natureza do ilícito subjacente. Outras respostas poderiam ser avançadas, se
devidamente fundamentadas principiologicamente. Desde logo a posição subscrita pelo Prof.
Américo Taipa de Carvalho, que exclui a possibilidade de imputação do tipo
contraordenacional quando inexista um regime transitório (como aparenta suceder in casu),
sob o argumento principal de que tal solução implicaria uma ilegítima aplicação retroativa da
lei contraordenacional (art. 2.º e art. 3.º, n.º 1, do RGIMOS).

3- Para decidirmos se Portugal poderá vir a julgar Agustina pela prática de um crime de
aborto em março de 2021 ter-se-á de ponderar primeiramente o princípio geral de aplicação
da lei no espaço, o princípio da territorialidade, previsto no art.º 4, do CP. Deste modo,
atendendo ao critério da ubiquidade, previsto no art. 7.º, do CP, o lugar da prática do facto
foi na Argentina, uma vez que foi neste lugar que Agustina atuou e foi também neste lugar
que o resultado típico se produziu. Será assim de afastar a aplicação do princípio da
territorialidade.
Teremos então de ponderar os critérios de aplicação extraterritorial da lei penal portuguesa,
previstos no art. 5.º, do CP, sendo que ao analisarmos a verificação de cada um dos critérios,
bem como as condições objetivas de punibilidade que têm de estar verificadas para a
aplicação de alguns deles, teremos de ter por referência o momento da prática do facto, nos
termos do art. 3.º, do CP. Com efeito, o momento da prática do facto foi o dia 11 de
dezembro de 2020.
Deste modo, sendo de afastar a aplicação da al. a) do n.º 1 do art.º 5 do CP, uma vez que
não estamos perante nenhum dos crimes que admite a aplicação do princípio da defesa dos
interesses nacionais, poder-se-á discutir a eventual aplicação da extensão do princípio da
nacionalidade, prevista na al. b) do n.º 1 do art. 5.º, do CP. Mesmo que se afaste a necessidade
de demonstração da “fraude” à lei penal portuguesa, como pressuposto implícito para a
aplicação deste princípio, substituindo-o por um dever de fidelidade à lei portuguesa devido
a um vínculo ativo de cidadania, ter-se-á necessariamente de concluir que a al. b) não está
verificada. Isto porque, apesar de à data da prática dos factos Agustina já ter adquirido a
nacionalidade portuguesa, é atualmente maioritário na doutrina o entendimento de que
quando esteja em causa a prática de um crime de aborto não se pode considerar que a vítima
seja portuguesa. Ainda que não seja necessário recorrer à analogia entre o conceito de feto e
o de cidadão português, porque uma interpretação sistematicamente justificada poderia ainda
permitir referir o sujeito passivo do crime a toda a sociedade, ou seja, a todos os portugueses,
este elemento sistemático da interpretação de uma norma que consagra um alargamento
excecional do princípio da nacionalidade não poderá integrar interesses gerais e coletivos dos
portugueses sem ultrapassar o sentido possível das palavras.
Uma vez que o aborto não integra o conjunto de crimes ínsitos nas alíneas c) e d) do n.º 1
do art.º 5.º, do CP, ter-se-á igualmente de afastar a aplicação destes princípios. Será então de
ponderar a aplicação da lei penal portuguesa a Agustina por força do princípio da
nacionalidade ativa [art. 5.º, n.º 1, al. e), do CP]. Importa analisar a este respeito se se
encontram verificadas as condições objetivas de punibilidade que permitem aplicar este
princípio: (i) Agustina foi encontrada em Portugal e (ii) existe dupla incriminação, pois apesar
de no dia 30 de dezembro de 2020, o Senado argentino ter aprovado uma lei que veio
despenalizar a interrupção voluntária da gravidez até às 14 semanas (passando a consagrar-
se uma causa de exclusão da punibilidade do crime de aborto), no momento da prática dos
factos a sua conduta ainda era punida na Argentina. Todavia, admitindo que a lei penal
argentina consagra o princípio da retroatividade da lei penal mais favorável, então a lei que
veio despenalizar a interrupção voluntária da gravidez até às 14 semanas será aplicada
retroativamente à conduta de Agustina. Neste caso, não haverá dupla incriminação e então
o inciso (ii) da al. e) não se encontra verificado. O último inciso (iii) da al. e) encontra-se
verificado, pois o crime em causa admite a extradição (art.º 7.º a contrario da Lei n.º 144/99),
mas esta não poderá ser concedida, devido ao princípio da não extradição de nacionais,
consagrado no art. 33.º, n.º 3, da CRP e 32.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 144/99, não estando in
casu verificada nenhuma das exceções ao mesmo. Caso se conclua que não há dupla
incriminação, não se poderá aplicar a al. e).
Não sendo também possível aplicar o princípio da administração supletiva da justiça penal
[art. 5.º, n.º 1, al. f), do CP], porque no momento da prática do facto Agustina já tinha
adquirido a nacionalidade portuguesa, teremos de concluir que a lei penal portuguesa não
poderá ser aplicada, não podendo Portugal vir a julgá-la pelo crime de aborto em março de
2021.

4 – Sendo o pedido de entrega entre Estados-Membros da União Europeia, é aplicável a


Lei do Mandado de Detenção Europeu (LMDE) – Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto –,
estando em causa um mandado para efeitos de procedimento criminal (art. 1.º, n.º 1, da
LMDE), a executar com base no princípio do reconhecimento mútuo (art. 1.º, n.º 2, da
LMDE). Espanha é o Estado-Membro de emissão, estando verificado o âmbito de aplicação
do MDE, já que a pena prevista naquele tem duração máxima não inferior a 12 meses (art.
2.º, n.º 1, 1.ª parte e, exigindo-se a dupla incriminação – uma vez que não se verificam as
condições de dispensa da mesma previstas no n.º 2 deste artigo –, está verificada, pois a
infração é punível pela lei portuguesa (art. 2.º, n.º 3, da LMDE e art. 143.º do CP).
Não há, no caso, qualquer motivo de recusa obrigatória de execução do mandado (art. 11.º
da LMDE). Verifica-se, no entanto, um motivo de recusa facultativa nos termos do art. 12.º,
n.º 1, al. h), i), da LMDE, já que o crime foi praticado em território português (de acordo
com o critério da ubiquidade, previsto no art. 7.º do CP, conjugado com o art. 5.º da CRP).
Para ponderação sobre a recusa deve considerar-se o facto de ser em Portugal que se sentirão
as necessidades de prevenção geral, já que foi aqui praticada a conduta. Ademais, embora
Agustina seja argentina, vive em Portugal e adquiriu, previamente à emissão do mandado,
nacionalidade portuguesa (art. 32.º, n.º 6, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto), pelo que se
entende que terá uma estreita relação com o ordenamento jurídico português e, a ser
condenada, terá em Portugal melhores condições de alcançar a desejada reintegração social
(prevenção especial positiva).
Ainda que se decida pela execução do mandado, estes argumentos servirão para sustentar a
exigência, por parte do Estado-Membro de execução (Portugal), que Espanha ofereça a
garantia de que Agustina será devolvida para cumprir pena em que seja condenada pelos
tribunais espanhóis em Portugal [art. 13.º, n.º 1, al. b), da LMDE].

5 – As finalidades da punição consideradas na aplicação da pena pelo tribunal devem estar


em consonância com o disposto no art. 40.º, do CP, devidamente conjugado com as restantes
disposições do CP que façam referência às finalidades das penas e com o sistema
constitucional.
A finalidade da punição exclusivamente atendida pelo tribunal foi a de prevenção geral,
nomeadamente, positiva, já que, com a aplicação daquela pena, se pretendeu produzir um
efeito apaziguador junto da sociedade portuguesa, reforçando ou recuperando a confiança
no Direito (dado ‘o choque social provocado com a divulgação das imagens dos animais
mortos’).
Porém, há críticas a tecer à teoria da prevenção geral: i) há desconexão com o facto e sua
gravidade, não podendo a pena ser vista verdadeiramente como consequência do crime; ii)
principalmente, há violação do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP),
pois o agente é instrumentalizado na prossecução de fins sociais. Por esta razão, a decisão
do tribunal já seria criticável.
Mesmo aceitando que a finalidade de prevenção geral possui um papel na determinação da
pena aplicável, a decisão de aplicar a pena máxima poderá ser excessiva, violando-se, desta
maneira, o princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18.º, n.º 2, da CRP. De igual
modo, será discutível a sua necessidade e, até, a sua adequação no sentido da produção da
finalidade visada: poder-se-á ponderar a hipótese de uma pena menos gravosa ter o mesmo
efeito de pacificação social do choque sofrido com a notícia do evento; também existem
dúvidas, em geral, quanto à real eficácia social das penas e, mais concretamente, de que seja
a severidade das penas o que gera um tal efeito social pacificador. Também por esta via, é
criticável a decisão do tribunal.
Por outro lado, e isto é determinante para a apreciação negativa da decisão, não se teve em
consideração o princípio da culpa, pois a finalidade de prevenção só se pode legitimar através
da pena de culpa como seu fundamento (ou, pelo menos, como limite: neste sentido, o art.
40.º, n.º 2, do CP). A desejável articulação entre retribuição e prevenção deve passar pela
articulação entre os princípios da culpa e da necessidade: só a pena de culpa é necessária e
adequada.
Por fim, não houve qualquer referência a exigências de prevenção especial positiva,
nomeadamente, de necessidade de ressocialização do agente, o que contraria, ainda, o
disposto no art. 40.º, do CP.

6 – O pensamento de Sutherland reconduz-se à perspetiva criminológica que define o crime


como uma deficiência da socialização dos indivíduos, emergindo assim enquanto
acontecimento social. Tomando especificamente a teoria da associação diferencial de
Sutherland e aplicando-a ao caso concreto, temos que a circunstância de Bento ter crescido
em um ambiente que cedo normalizou nele caçadas e o familiarizou com a morte de animais
revela-se decisivo no percurso posterior porquanto o agente foi exposto a um processo de
aprendizagem de provocação de morte de animais. Ora, à luz da teoria em referência, esta
forma de comportamento foi ensinada em direta associação com o seu pai. Nestes termos, a
frequência e a intimidade do(s) contacto(s) explicam a emergência do processo de associação
diferencial no caso vertente.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professor Doutor Ricardo Tavares da Silva, Mestres Sónia Moreira Reis, António Brito
Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja Matos
Exame - 07 de janeiro de 2021
Duração: 90 minutos

A, cidadão norueguês, que trabalhava como técnico de informática no regime de prestação


de serviços, a recibos verdes, numa embaixada, em Lisboa, apesar de infetado com covid-19,
não cumpriu a exigência de isolamento imposta pela Direção-Geral da Saúde e foi passar o
Natal a um resort no sul de Espanha. Nessa estância turística, contactou com três pessoas,
tendo B, uma delas, ficado infetada e morrido, enquanto as outras duas, C e D, embora
testando positivo, não desenvolveram sintomas. No regresso, junto à fronteira, foi
intercetado pela Guarda Nacional Republicana (GNR), por estar a conduzir com excesso de
velocidade, mas A não parou, fugindo. Quando foi finalmente detido pela GNR, verificou-
se também que tinha uma taxa de alcoolemia superior a 1,2 g/l.

Responda de modo fundamentado às perguntas seguintes:

1- Por que crimes pode ser A responsabilizado? Refira os problemas de interpretação


da lei relativamente a cada tipo legal de crime que sejam pertinentes, bem como os
problemas de concurso de normas suscitados pelo caso. (4 valores)
2- Pode A beneficiar do regime de imunidade diplomática? (2 valores)
3- A lei penal portuguesa aplica-se a A relativamente ao(s) crime(s) praticado(s) em
Espanha? (2 valores)
4- Se Espanha emitisse um mandado de detenção europeu pelo crime de condução
perigosa, deveria Portugal entregar A, sabendo que em Espanha o excesso de
velocidade superior ao legalmente estabelecido em 60km/h em vias urbanas e em
80km/h em vias interurbanas é punido com pena de prisão de 3 a 6 meses ou multa
de 6 a 12 meses? (3 valores)
5- Se a lei portuguesa viesse a converter em crime de perigo abstrato, após a prática dos
factos por A, o crime previsto no artigo 291.º do Código Penal, bastando-se com a
condução com velocidade superior à legalmente admitida, A poderia ser punido pela
nova lei? (3 valores)
6- Se, em momento posterior à pratica dos factos, a norma incriminadora de
propagação de doença contagiosa viesse a ser declarada inconstitucional com força
obrigatória geral na interpretação segundo a qual não seria necessário o contágio ter
desenvolvido doença, essa circunstância poderia vir a afetar a responsabilidade de A
quanto a pessoas que, contagiadas por A, permanecessem assintomáticas? (4 valores)

Ponderação global: 2 valores.


1
Identificação dos tipos incriminadores relevantes:
. crime de desobediência, art. 348.º do Código Penal (CP)
. crime de propagação de doença contagiosa, art. 283.º, n.º 1, al. a), do CP
. crime de homicídio, art. 131.º (ou 137.º) do CP
. crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, art. 285.º do CP
. crime de condução perigosa de veículo rodoviário, art. 291.º, n.º 1, al. b), do CP
. crime de condução de veículo em estado de embriaguez, art. 292.º, n.º 1 do CP

A decisão sobre a punição pelos crimes cometidos há de respeitar o art. 29.º, n.º 5, da
Constituição de República Portuguesa (CRP), sendo proibida a dupla valoração do mesmo
conteúdo de ilícito.

A não cumpriu a exigência de isolamento imposta pela Direção-Geral da Saúde, pelo que
se terá de aferir se incorre no crime de desobediência, previsto e punido no art. 348.º do CP.
Para isso, tem a punição da desobediência de ser cominada por disposição legal [n.º 1, al. a)],
ou pela autoridade ou funcionário que deu a ordem [n.º 1, al. b)].
Quanto à primeira hipótese, o art. 58.º, n.º 1, al. d), do Decreto n.º 2-A/2021, que
regulamenta a última prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da
República (sendo de aceitar que não seja referido especificamente o decreto apontado mas,
somente, o tipo de fonte legal que tem regulamentado os sucessivos estados de emergência),
comina com crime de desobediência a violação do confinamento obrigatório por quem a ele
esteja sujeito nos termos do artigo 3.º. Porém, o art. 348.º, n.º 1, al. a) deve ser interpretado
no sentido de uma tal remissão ser efetuada para lei formal, quer seja lei da Assembleia da
República, quer seja decreto-lei autorizado do Governo, nos termos dos arts. 165.º, n.º 1, al.
c) e 198.º, n.º 1, al. b) da CRP, de modo a evitar que, ainda que de modo indireto, outros atos
normativos que não os referidos disciplinem matéria penal e que, assim, se subtraiam à
exigência de lei escrita, corolário do princípio da legalidade (art. 29.º da CRP). Ora, essa
exigência não se encontra cumprida, visto que a disposição legal que faz a referida cominação
constitui um mero decreto regulamentar.
Relativamente à segunda hipótese, nada no enunciado nos leva a afirmar que houve
cominação da punição da desobediência por parte da Direção-Geral da Saúde em conjunto
com a ordem dada.
Como tal, A não pode ser punido pelo crime de desobediência.

Relativamente à infeção de B, supõe-se que tal se tenha devido ao contacto com A e,


igualmente, que, com essa infeção, foi criado perigo para a vida de B, pois este veio mesmo
a morrer. Estando preenchidos todos os elementos do crime de propagação de doença
contagiosa, aplicar-se-á, prima facie, o art. 283.º. Porém, dada a consequente morte de B, e
tendo havido pelo menos negligência relativamente a este resultado (art. 18.º do CP), aplicar-
se-á o art. 285.º, que afasta, enquanto lei especial, a aplicação tanto do art. 283.º como do art.
do 137.º. Em função de não ser exigível aos alunos o conhecimento dos tipos agravados pelo
resultado, é de aceitar a resposta que opte pelo concurso efetivo (dada a inexistência de uma
relação lógica ou funcional entre os tipos, nomeadamente, por não haver uma relação de
instrumentalidade típica que sugira a unidade social do ilícito) entre o crime de propagação
de doença contagiosa e o crime de homicídio, sendo objeto de cotação extra a referência ao
art. 285.º do CP.

No que toca à infeção de C e D, e porque estes ficaram infetados com SARS-CoV-2 sem
terem desenvolvido a doença COVID-19, a aplicação do art. 283.º, n.º 1, al. a), está
dependente de o mesmo abranger tais casos ou não. Considerando o complexo de bens
jurídicos tutelados pela norma, o mesmo parece exigir que haja um efetivo estado patológico
que afete realmente a segurança da saúde pública e que seja suscetível de colocar em perigo
a vida ou em perigo grave a integridade física. Interpretado o tipo incriminador em questão
desta maneira, a punição de A violaria o princípio da legalidade (exigência de lei prévia, nos
termos do art. 29.º, n.ºs 1 e 3 da CRP). De qualquer modo, porquanto sem a doença COVID-
19, a sua vida não estaria em perigo nem a sua integridade física estaria em perigo grave, está
afastada a aplicação do art. 283.º também por esta via.
Por outro lado, também é de ponderar a violação do princípio da legalidade, na vertente
de lei estrita, se, por intervenção do intérprete, se dispensar, no art. 283.º, a exigência de
desenvolvimento da doença COVID-19: dada a letra da lei e atendendo ao sentido possível
da expressão ‘doença contagiosa’ (integrada no texto globalmente considerado e atendendo
ao seu uso social quotidiano), podemos estar perante um caso de analogia proibida (art. 1.º,
n.º 3, do CP), embora seja de admitir a hipótese contrária devidamente fundamentada. Uma
tal violação é indiscutível no que toca a abranger aqueles casos nos quais não tenha sido
criado o perigo a que se refere o texto legal.
É de notar que, caso A pudesse ser punido pela infeção de C e D, estaríamos perante um
concurso efetivo (homogéneo) de crimes, por aplicação do art. 30.º, n.º 1, 2.ª parte, do CP, e
não existindo uma unidade do ilícito que justificasse a punição por apenas um deles (a
pluralidade de vítimas isso revela). Um raciocínio semelhante levar-nos-ia a concluir pelo
concurso efetivo também com respeito ao crime de propagação de doença agravado pelo
resultado do art. 285.º

A conduta de A, no que respeita à condução, mesmo pressupondo que, no caso, o excesso


de velocidade se consubstancia numa violação grosseira do dever de respeitar os limites de
velocidade impostos, caso não haja criação efetiva de perigo para a vida ou integridade física
de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, não se subsume no art. 291.º,
n.º 1, al. b), do CP. Porém, subsume-se no art. 292.º, n.º 1, do CP, visto ter conduzido com
uma taxa de álcool superior a 1,2 g/l.
Dada a relação de subsidiariedade existente entre ambos os tipos incriminadores, e até
atendendo à referência expressa na parte final do art. 292.º, n.º 1, caso haja criação efetiva de
perigo, aplicar-se-á, apenas, o art. 291.º, n.º 1, al. b).

Relativamente à desobediência à ordem de parar emitida pela GNR, é de ponderar,


novamente, a hipótese de aplicação do art. 348.º do CP. Não havendo disposição legal (lei
formal) que comine a punição de desobediência a ordens como a emitida nem tendo a
própria GNR feito essa mesma cominação, A não pode ser punido pelo crime de
desobediência também por esta via.

Assim, A deve ser punido, em concurso efetivo de crimes (por não haver qualquer relação
lógica nem instrumentalização, pelo agente, de um dos factos típicos para realizar o outro) e
segundo as regras do art. 77.º do CP, pelo crime de propagação de doença contagiosa
agravado pelo resultado (art. 285.º) quanto a B – sendo de aceitar a opção pelo concurso
efetivo entre o tipo simples de propagação de doença contagiosa e o crime de homicídio – e
pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292.º, n.º 1) – ou pelo
crime de condução perigosa de veículo [art. 291.º, n.º 1, al. b)] –, nos termos do art. 30.º, n.º
1, 1.ª parte; eventualmente (dependendo de se considerar que o tipo incriminador abrange
os factos em questão), também o será, ainda em concurso efetivo, pelos dois crimes de
propagação de doença contagiosa (art. 283.º) quanto a C e D.

2
O regime das imunidades diplomáticas consta da Convenção de Viena de 18 de Abril de
1961, publicada em anexo ao Decreto-lei n.º 48295.
De acordo com o art. 29.º da Convenção, o agente diplomático não pode ser detido ou
preso, e, segundo o art. 31.º, goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador
(no caso, Portugal). A não é agente diplomático, mas, como técnico de informática, mesmo
que em regime de prestação de serviços a recibos verdes, integra o pessoal técnico e
administrativo da missão, referido no art. 1.º, al. f), pelo que, não sendo português e supondo-
se que não tem residência permanente em Portugal, goza igualmente de inviolabilidade e
imunidade, nos termos do art. 37.º, n.º 2.

3
Relativamente aos crimes praticados em Espanha (propagação de doença contagiosa e
condução perigosa de veículo rodoviário), ter-se-á de ponderar primeiramente a aplicação do
princípio geral de aplicação da lei no espaço, o princípio da territorialidade, previsto no art.º
4 do CP. Deste modo, quanto ao crime de propagação de doença contagiosa, atendendo ao
critério da ubiquidade previsto no art. 7.º do CP, o lugar da prática do facto foi Espanha,
pelo que será de afastar a aplicação do princípio da territorialidade. Uma vez que do
enunciado não decorre qual a nacionalidade da vítima mortal não é possível ponderar a
eventual aplicação do princípio da nacionalidade passiva. Assim, a lei penal portuguesa só
poderá ser aplicável a A por força do princípio da administração supletiva da justiça penal
[art. 5.º, n.º 1, al. f), do CP], porquanto A é estrangeiro. Importa analisar a este respeito se se
encontram verificadas as condições objetivas de punibilidade que permitem aplicar este
princípio: A foi encontrado em Portugal, mas Espanha não emitiu nenhum pedido de entrega
em execução de mandado de detenção europeu, pelo que teríamos de concluir que não se
poderá aplicar a al. f) do art. 5.º do CP.
Quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, tratando-se de um crime de
trânsito, o qual comporta factos que se colocam em contacto com várias ordens jurídicas
nacionais, o lugar da prática do facto é simultaneamente, nos termos do art. 7.º do CP,
Espanha e Portugal, pelo que a lei penal portuguesa é aplicável por via do artigo 4.º, al. a) do
CP.

4
Tomando em linha de conta o sentido da resposta anterior no que respeita ao âmbito de
aplicação espacial da lei penal quanto ao crime de condução perigosa, e centrando aqui a
resposta no regime da Lei do Mandado de Detenção Europeu (LMDE), importa notar que
o mandado em referência tem em vista a entrega de A para efeitos de procedimento criminal
(art. 1.º, n.º 1, da LMDE). Porque o crime de condução perigosa não observa o requisito
quantitativo constante do corpo do art. 2.º, n.º 2, da LMDE, nem consta do elenco de
infrações ali listado, o princípio do reconhecimento mútuo não operaria. Seria por isso de
ponderar a aplicação dos n.ºs 1 e 3 do art. 2.º da LMDE, e o controlo da dupla incriminação
que daí emerge. Analisando o n.º 1 do art. 2.º da LMDE, de novo, a pena privativa da
liberdade constante do regime legal do Estado de emissão é inferior a 12 meses, situando-se,
concretamente, entre 3 e 6 meses, acrescendo a circunstância de dificilmente se poder ter por
verificada a dupla incriminação. Sem recorrer a uma visão estritamente ancorada na
correspondência típica e que ultrapassa por isso a mera ponderação dos elementos
constitutivos do tipo e/ou a qualificação jurídica dos factos, certo é que a mera condução
em excesso de velocidade constitui, no Estado de execução, infração contraordenacional, e
não infração penal, o que sempre impediria a execução do mandado.
Em suma: no caso vertente, o mandado de detenção europeu não poderia ser executado.

5
A conduziu em excesso de velocidade e sob o efeito do álcool (tinha uma taxa de alcoolemia
superior a 1,2 g/l). De acordo com o critério unilateral da conduta (art. 3.º do CP), o facto
foi praticado na vigência da lei antiga – isto é, na vigência da versão anterior do art. 291.º do
CP –, pelo que seria esta a aplicável (arts. 29.º, n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 1, do CP). Assim sendo,
A não seria punido, uma vez que, pelos dados fornecidos no enunciado, não criou o perigo
exigido pelo tipo objetivo.
Todavia, o comportamento de A integra a conduta típica prevista na lei nova, que converte
aquele crime de perigo concreto num crime de perigo abstrato, suprimindo o elemento típico
em que se exigia a criação do perigo concreto, pelo que cabe questionar se poderá ser punido
à luz deste. A resposta será, neste caso, negativa: ainda que se aplicasse a teoria do facto
concreto – segundo a qual basta, para haver uma sucessão de leis no tempo, que o facto seja
subsumível a ambas as leis –, A não poderia ser punido à luz da lei nova, já que o seu
comportamento apenas preenche o tipo objetivo desta, mas não da antiga, não havendo uma
verdadeira sucessão de leis no tempo. Assim sendo, a lei nova representa uma criminalização
posterior do facto praticado por A, não podendo este ser punido pelo mesmo (art. 2.º, n.º 1,
do CP).
A solução apenas seria diferente se se comprovasse que A tinha criado, com a sua condução,
o perigo efetivo. Com efeito, nesse caso, defende parte da doutrina que, consubstanciando
o perigo abstrato um aumento do âmbito de aplicação do tipo, a sua aplicação funcionaria
como uma nova incriminação, passando a enquadrar situações que antes eram excluídas do
tipo, pelo que não é aceitável a imputação respetiva. Assim, manter-se-ia a solução de não
punição.
Diferentemente, autores como Maria Fernanda Palma defendem que a solução correta seria,
contudo, a manutenção da punibilidade das condutas cujo perigo efetivo fosse comprovado,
já que o facto praticado sempre havia preenchido o âmbito da incriminação que se mantém,
não havendo qualquer problema quanto à previsibilidade da punição, pois sempre houvera
essa expectativa (desde a vigência da lei antiga). A conduta que tenha criado perigo concreto
teria feito parte do tipo, constituindo um comportamento essencialmente idêntico, que o
legislador não quis deixar de punir. Por conseguinte, A poderia ser punido pelo crime
previsto no art. 291.º do CP, na versão vigente à data da prática do facto, salvo se o regime
de punição da versão posterior fosse mais favorável.
Embora seja esta a solução correta, admite-se que o aluno defenda a posição contrária supra
referida, desde que devidamente fundamentada.

6
De acordo com o princípio da aplicação da lei em vigor no momento da prática do facto
(arts. 29.º, n.º 1, da CRP, e 2.º, n.º 1, e 3. º, do CP), seria aplicável — caso se entendesse não
implicar analogia proibida, o que se irá supor — o art. 283.º do CP na interpretação que
admite a punição de quem propaga doença a terceiros que ficam assintomáticos.
A posterior declaração de inconstitucionalidade da norma na interpretação segundo a qual
não seria necessário o contágio ter desenvolvido doença suscita, no entanto, a questão da
validade da norma que se encontrava em vigor no momento do facto, e, eventualmente, um
problema de determinação da lei mais favorável. Esta declaração tem efeitos ex tunc,
implicando ainda, caso necessário, a repristinação das normas que hajam sido revogadas pela
norma inconstitucional (art. 282.º, n.º 1, da CRP). Ora, no caso vertente, foi apenas declarado
inconstitucional um segmento interpretativo da norma que não compromete a validade
integral do tipo incriminador, mas que ainda assim afeta potencialmente a responsabilidade
de A no que respeita a C e a D, visto que estes ficaram assintomáticos.
Para resolver as questões identificadas, e uma vez que o enunciado não especifica a situação
processual em que A se encontra, importa considerar duas possibilidades: primo, um cenário
no qual A ainda não foi julgado pelo crime em causa, e, secundo, um cenário alternativo no
qual A tenha já sido julgado e condenado pelo crime de propagação de doença a C e a D na
interpretação depois declarada inconstitucional, tendo também havido trânsito em julgado.
No primeiro cenário, isto é, caso A ainda não tenha sido julgado, a declaração de
inconstitucionalidade veda a possibilidade de A ser condenado pelos contágios de C e D.
Com efeito, nos termos dos arts. 282.º, n.º 1, e 204.º, da CRP, a declaração de
inconstitucionalidade da norma na interpretação referida impede a respetiva aplicação. Tudo
se processará como se aquela interpretação nunca tivesse sido válida. Consequentemente,
mesmo que à data dos factos se entendesse que a propagação de doença a pessoas que ficam
assintomáticas constituía um crime de propagação de doença, A seria absolvido pelo contágio
de C e D, podendo inclusivamente identificar-se nesta situação um efeito semelhante ao
previsto no artigo 2.º, n.º 2, do CP.
No segundo cenário, isto é, caso A tenha já sido condenado por propagar doença a C e a
D e já tenha havido trânsito em julgado da sentença condenatória, coloca-se o problema de
saber se poderia o caso julgado ser afastado para suprir a aplicação de uma interpretação
inconstitucional e menos favorável ao agente. À luz do art. 282.º, n.º 3, 2.ª parte, da CRP, tal
possibilidade está limitada aos casos em que o Tribunal Constitucional expressamente afasta
a ressalva do caso julgado. No caso vertente, de acordo com a posição sustentada pela
Senhora Professora Maria Fernanda Palma, e uma vez que a declaração de
inconstitucionalidade incide sobre uma norma segundo a qual o agente seria punido pela
propagação de doença a C e a D — ou seja, uma norma de conteúdo desfavorável —, o
Tribunal Constitucional teria de admitir o afastamento do caso julgado, por razões conexas
com os princípios da igualdade e da necessidade da pena (arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP).
Não se subscrevendo esta posição doutrinária, e admitindo-se, portanto, que o Tribunal
Constitucional não estava obrigado a determinar o afastamento do caso julgado, o artigo
282.º, n.º 3, 1.ª parte, da CRP determinaria a preservação do caso julgado condenatório. De
qualquer forma, mesmo neste contexto, poderia ainda assim discutir-se se as finalidades
prosseguidas pelo art. 29.º, n.º 4 if, da CRP, e, bem assim, pelos princípios da igualdade e da
necessidade da pena (arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP), abririam a porta à aplicação de uma
solução análoga à prevista no artigo 2.º, n.º 2, 2.ª parte, do CP — e, portanto, à cessação dos
efeitos da condenação proferida contra A pela propagação de doença a C e a D.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis, António Brito
Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e Licenciado Nuno Igreja
Matos
Exame – Coincidências da época de recurso – 20 de Fevereiro de 2020
Duração: 90 minutos

Em Sevilha, no dia 10.02.2020, Ilse, alemã, e Louise, francesa, subtraem um veículo automóvel alheio
e viajam com ele em direcção a Faro, onde pretendem ajustar contas com Marco, companheiro de
aventuras criminosas passadas. Durante a viagem, param numa estação de serviço em Huelva e pedem
quatro sandes de presunto e duas garrafas de água sem intenção de pagar. Fogem de seguida.
Chegam a Faro no mesmo dia e encontram o namorado de Marco, Nuno, no café onde este usualmente
passa o fim da tarde. Por volta das 18h, encostando-lhe discretamente uma faca de borboleta (para a
qual não tem licença), Ilse obriga Nuno a entrar no carro onde Louise os espera.
Ilse e Louise trancam Nuno num quarto de hotel arrendado para o efeito e deixam-no aí durante a
noite, planeando contactar Marco no dia seguinte para lhe pedirem dinheiro em troca da liberdade de
Nuno. Por volta das 2h do dia 11, porém, Nuno parte uma janela e escapa, dirigindo-se de imediato à
polícia. Dando conta da fuga de Nuno, Ilse e Louise dirigem-se de imediato a casa deste. Frustradas por
não o encontrarem, matam Cucão, o pangolim que Nuno capturara dois dias antes e mantinha em casa
com intenção de o vender a um laboratório.

1. Chega, vindo de Espanha, um pedido de entrega de Ilse e Louise para serem julgadas pelos crimes
de burla para obtenção de alimentos e bebidas (suponha que a lei espanhola é idêntica ao art. 220.º1) e
furto de uso de veículo (art. 208.º, n.º 1 – suponha que a lei espanhola pune este crime com pena de
prisão até 15 meses). Como deve o tribunal português decidir este pedido? (3 valores)

2. Relativamente à morte de Cucão, podem Ilse e Louise ser punidas pelo crime de maus tratos a
animais de companhia (art. 387.º, n.ºs 1 e 2)? (5 valores)

3. Admitindo que, em abstracto, está preenchida a previsão dos tipos de furto de uso de veículo, burla
para obtenção de alimentos ou bebidas (art. 220.º, n.º 1, al. a)), detenção de arma proibida2, ameaça (art.
153.º), coacção (art. 154.º), sequestro (artigo 158.º), rapto (art. 161.º) e roubo (art. 210.º), por quantos
crimes pode Ilse ser punida? Quais? (5 valores)

4. Independentemente da resposta à questão anterior, considere agora somente o crime de sequestro:


admita que, no dia 11.02.2020, em Portugal, entra em vigor nova lei que acrescenta ao art. 158.º, n.º 2,
uma al. onde se lê: “For praticada com intenção de forçar a vítima ou terceiro a qualquer acto que lhe
cause prejuízo patrimonial.” Além disto, altera a medida da pena máxima cominada no art. 158.º, n.º 2,
para 11 anos de prisão. Sendo Ilse e Louise julgadas no dia 20, qual deve ser a decisão sobre a sua
responsabilidade? (5 valores)

Correcção de linguagem, clareza de raciocínio, capacidade de síntese e profundidade de análise: 2


valores.

1Salvo indicação em contrário, todas as disposições apontadas pertencem ao Código Penal português.
2
Artigo 86.º
Detenção de arma proibida e crime cometido com arma
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente,
detiver, transportar, (…) usar ou trouxer consigo: (…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de
borboleta (…), é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Tópicos de correcção

1.
Por se tratar de país da União Europeia, deve aplicar-se o regime do mandado de detenção europeu
(Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto - LMDE).
Quanto à burla para obtenção de alimentos e bebidas, de acordo com o art. 7.º do CP, o facto teve lugar
em Espanha. Da conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 2.º da LMDE, resulta o princípio da dupla
incriminação. Assim, a entrega pode ser concedida por crimes punidos em Portugal (o que se verifica
no caso) e punidos com pena de prisão não inferior a 12 meses no Estado-Membro de emissão (o que
não se verifica). O artigo 2.º, n.º 2, da LMDE permite a entrega, sem verificação da dupla incriminação,
nas infrações aí especialmente previstas, desde que as mesmas sejam puníveis, no Estado-Membro de
emissão, com pena máxima não inferior a 3 anos. A pena máxima cominada para o facto em questão
em Espanha não cumpre este requisito. Deste modo, as agentes não deviam ser entregues.
Quanto ao furto de uso de veículo: trata-se de crime permanente, prolongando-se a sua consumação
por todo o tempo de utilização do automóvel. Visto que o agente actuou parcialmente em Portugal, o
crime tem-se por praticado aqui. Não há obstáculos relativos à dupla incriminação, mas a prática do
facto em território nacional constitui causa de recusa facultativa, de acordo o art. 12.º, al. h), i), da
LMDE. Não obstante as razões que sustentam a territorialidade como critério de atribuição de
competência à lei penal portuguesa (relacionadas com necessidades de prevenção de geral positiva,
exercício do poder de soberania, facilidade na recolha de prova, etc.), dado que a subtracção se deu em
Espanha e a vítima pode presumir-se espanhola ou ligada a esse país, não parece que aquelas razões
sejam decisivas para recusar a entrega, devendo antes dar-se preferência ao espírito de cooperação entre
países da União Europeia.
Uma vez que a recusa de entrega pelo primeiro crime se deve somente a que a pena máxima fica aquém
do limite mínimo exigido, sendo a entrega possível pelo segundo crime, podem as agentes ser entregues
às autoridades espanholas por ambos os crimes, aplicando-se (subsidiariamente) o art. 31.º, n.º 3, da Lei
n.º 144/99, de 31 de Agosto.

2.
Tendo as agentes matado o pangolim, cabe averiguar se este pode ser considerado animal de
companhia para efeitos de aplicação do art. 387.º Tal solução só será legítima se sustentada em
interpretação permitida nos quadros da proibição da analogia decorrente do princípio da legalidade –
arts. 29.º, n.º 1, da Constituição (CRP), e 1.º, n.ºs 1 e 3, do CP.
Mesmo para quem não aceite como viável o limite metodológico do sentido possível das palavras, o
processo interpretativo estará sempre condicionado por exigências de segurança e previsibilidade no
que respeita às possibilidades de determinação do conteúdo da norma incriminadora por parte do
destinatário. Ora, sem prejuízo de se poder admitir que o pangolim seja capaz de expressões de dor e
sofrimento suficientemente perceptíveis pelo ser humano para efeitos de sensibilidade empática, parece
difícil considerá-lo “animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu
lar, para seu entretenimento e companhia” (art. 389.º, n.º 1), já que, tanto numa perspectiva subjectiva
(o agente detinha o animal para o vender a um laboratório) como numa objectiva (trata-se de animal de
presença desconhecida no país e não inserível no conjunto de criaturas tidas por domesticáveis, mesmo
que remotamente), o pangolim escapa ao quadro problemático pressuposto pelo critério normativo.
Em conclusão, não devem as agentes ser punidas pelo crime referido.

3.
O preenchimento dos tipos indicados em abstracto não redunda necessariamente em condenação por
todos os crimes, devendo averiguar-se se não intervêm no caso relações que, sob pena de violação da
proibição de dupla valoração do mesmo conteúdo de ilicitude (art. 29.º, n.º 5, da CRP), levem a concluir
pela existência de concurso aparente de crimes.
Sendo o rapto praticado com recurso a ameaça, a punição por este crime cede em favor daquele, como,
demais, fica claro atendendo à previsão legal do art. 161.º, n.º 1 [“por meio de (...) ameaça”]. O mesmo
pode ser dito em relação à coacção – por esta se limitar, no caso concreto, ao (habitual e, por isso, já
tipicamente considerado) modo de realização do rapto – e ao sequestro, logicamente implicado na
prática do crime referido.
Quanto aos restantes crimes, estão em concurso efectivo com o rapto, devendo, por isso, aplicar-se o
art. 77.º Isto é claro em relação ao furto de uso de veículo e à burla para obtenção de alimentos ou
bebidas, pois dado o distanciamento espácio-temporal, a pluralidade de vítimas ou a diversidade dos
bens jurídicos atingidos, nada de relevante sustenta a unidade do ilícito. Embora a faca de borboleta
tenha sido utilizada no rapto, não se indicando a limitação do seu uso a esta situação, e admitindo,
portanto, que Ilse não a adquiriu nem deteve com este propósito exclusivo, o sentido de ilicitude da
detenção não autorizada mantém autonomia e deve igualmente ser valorado por si. Por fim, não resulta
do enunciado que tenha sido praticado roubo, mas a admitir-se preenchida a previsão deste tipo, haveria
sempre concurso efectivo, visto que a pluralidade de bens eminentemente pessoais atingidos por actos
dolosos implica necessariamente pluralidade de crimes.

4.
Aplica-se, em princípio, a lei em vigor no momento da prática do facto, como resulta dos arts. 29.º, n.º
1 da CRP e 2.º, n.º 1, conjugado com o art. 3. º, do CP.
No caso, o sequestro (crime duradouro) foi praticado nos dias 10 e 11, em que teve lugar a privação
da liberdade por acção das agentes. Neste período, há duas lei vigentes: a lei antiga vigorou até à meia-
noite de dia 10, e a lei nova passou a vigorar daí em diante. Assim sendo, deve aplicar-se a lei nova, por
ter revogado a antiga e vigorar no momento do julgamento, devendo as agentes ser punidas nos termos
da nova alínea introduzida.
A alteração legal introduz elementos típicos novos, passando a prever-se hipótese de agravamento não
prevista na versão anterior da lei. Não obstante, não há valoração retroactiva, visto que os elementos
em questão se realizam já com a nova versão em vigor. Deste modo, a aplicação do novo regime, mais
gravoso, também não envolve qualquer violação dos princípios da culpa ou da segurança jurídica.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis, António
Brito Neves, Catarina Abegão Alves e Rita do Rosário, e Licenciado
Nuno Igreja Matos
Exame de Recurso - 17 de Fevereiro de 2020
Duração: 90 minutos

Tópicos de correcção

1 – Estando em causa um pedido de um Estado-Membro (EM) da União Europeia, deve


analisar-se a questão à luz do regime do mandado de detenção europeu – MDE (Lei n.º
65/2003, de 23 de Agosto) –, nos termos do art. 1.º, n.º 1, da mesma Lei.
O pedido é feito para efeitos de procedimento criminal relativo a um crime de homicídio,
que se presume punível em Espanha com pena de prisão de duração máxima não inferior a
três anos, pelo que está dispensado o requisito da dupla incriminação (art. 2.º, n.º 2, al. o)).
Não se verifica nenhuma das causas de recusa dos arts. 11.º ou 12.º-A.
Uma vez que Maria morreu em Portugal, o locus delicti é em território nacional, nos termos
do art. 7.º, n.º 1, do Código Penal – no qual se consagra o critério da ubiquidade misto ou
plurilateral alternativo, isto é, o lugar da prática do facto será o local onde o agente actuou
ou devia ter actuado, ainda que parcialmente, bem como aquele em que se verificou o
resultado, que, neste caso, é a morte de Maria, ocorrida em Vila Real de Santo António. Deve,
assim, ponderar-se a causa de recusa facultativa prevista no art. 12.º, n.º 1, al. h), i), da LMDE,
considerando o facto de o agente e a vítima terem nacionalidade portuguesa e residirem em
Portugal, sendo aqui mais intensas as exigências de prevenção geral e especial. Em sentido
contrário, poderia considerar-se a circunstância de o comportamento do agente ter ocorrido
no EM de emissão e o espírito de cooperação subjacente ao princípio de reconhecimento
mútuo que orienta o regime do MDE (art. 1.º, n.º 2, da LMDE).
Ademais, sendo o agente português, a execução do MDE poderia, ainda, ser condicionada
à devolução de Alberto para cumprir a pena a que fosse condenado em Portugal (art. 13.º,
n.º 1, al b)). Este regime é sustentado pelo art. 33.º, n.º 5, da CRP.

2 – Caso Alberto fosse entregue pelo crime de homicídio, Espanha não poderia aproveitar
a ocasião do MDE para o julgar pelo crime de detenção de arma proibida, uma vez que vigora
a regra da especialidade (art. 7.º, n.º 1, LMDE).

3 – De acordo com o princípio da aplicação da lei em vigor no momento da prática do


facto (arts. 29.º, n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 1, conjugado com o art. 3. º, do CP, em que se fixa
para a determinação do tempus delicti o critério unilateral da conduta), seria aplicável a lei que
tinha entrado em vigor no dia 31 de Janeiro, valendo a pena de 6 meses a 3 anos de prisão
ou de multa até 240 dias.
No entanto, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
determinaria a repristinação da norma anterior (art. 282.º, n.º 1, da CRP), cuja pena cominada
é de prisão de 1 a 5 anos ou de multa até 600 dias.
Na hipótese de ter havido caso julgado, a referida repristinação não afecta a situação de
Alberto, por força da ressalva consagrada na primeira parte do art. 282.º, n.º 3, da CRP.
Se, por outro lado, a sentença não tiver transitado em julgado, coloca-se o problema de
saber se o agente pode, ainda, beneficiar da norma inconstitucional mais favorável. Com
efeito, embora o princípio fixado no art. 282.º, n.º 1, seja o da eficácia ex tunc da declaração
de inconstitucionalidade, discute-se aquela possibilidade, uma vez que a aplicação da norma
repristinada é concretamente mais desfavorável.
Por um lado, alguns autores defendem a impossibilidade de aplicação da lei
inconstitucional, em razão da proibição de aplicação de normas inconstitucionais pelos
tribunais (art. 204.º da CRP) e porque a questão da validade das normas precede lógica e
valorativamente a da aplicação da lei mais favorável, uma vez que a norma nula nunca terá
produzido efeitos. Jorge Miranda, na linha da jurisprudência do Tribunal Constitucional,
propõe, ainda assim, que a norma inconstitucional funcione como limite negativo da norma
repristinada. Rui Carlos Pereira defende uma solução alternativa, de acordo com a qual se
aplica a norma repristinada, mas se admite, quando a norma seja descriminalizadora, o
afastamento da responsabilidade penal nos termos do regime do erro sobre a ilicitude (art.
17.º, ou 16.º, n.º 1, do CP), ou, quando comine pena menos gravosa, como é o caso, a
atenuação da responsabilidade (nos termos dos arts. 72.º e ss. do CP), desde que Alberto
conheça a norma penal inconstitucional, que esta seja anterior à prática do facto (como aqui
acontece) e que a respectiva inconstitucionalidade seja desconhecida do agente e não tenha,
ainda, sido declarada.
Por outro lado, são defendidas soluções de aplicação da norma inconstitucional, isto é,
neste caso, a lei em vigor no momento da prática do facto. Maria Fernanda Palma destaca a
importância da autovinculação do Estado ao Direito que cria (art. 2.º da CRP), defendendo,
por isso, uma dupla analogia com os artigos 29.º, n.º 4, e 282.º, n.º 3, segunda parte, com
vista a integrar a lacuna do regime do art. 282.º.

4 – Em primeiro lugar, cumpre avaliar se a resposta de Joaquim pode, à luz dos princípios
da interpretação da lei penal, ser enquadrada na previsão do art. 240.º, n.º 2, al. b), do CP sem
recurso a analogia desfavorável, proibida em Direito Penal (art. 1.º, n.º 3). Com efeito, a
resposta proferida por Joaquim foi, efectivamente, ofensiva – associando as feministas a uma
ideia de vergonha para o país –, pelo que poderia, a priori, integrar o conceito de difamação,
considerando o limite do sentido possível das palavras, isto é, o sentido comunicacional das
palavras utilizadas pelo legislador (art. 165.º, n.º 1, al. c), da CRP), perspectivadas no seu
contexto global.
No entanto, a conduta de Joaquim não parece atingir o nível de gravidade pressuposto
pelo sentido do ilícito, uma vez que não acarreta a perigosidade para o grupo visado que
sustenta a limitação da liberdade de expressão. Assim sendo, a sua integração no tipo
constituiria uma interpretação proibida.
Ainda que o enquadramento da conduta de Joaquim no tipo previsto no art. 240.º, n.º 2,
al. b), do CP correspondesse a uma interpretação válida, ter-se-ia de averiguar o âmbito de
validade pessoal da lei penal portuguesa, uma vez que Joaquim é deputado, podendo, em
certas situações, beneficiar de imunidades parlamentares. Punha-se, em particular, a questão
de saber se a opinião emitida estava associada, numa perspectiva de conexão funcional, à
actividade parlamentar. Embora não tenha ocorrido no Parlamento, a conduta apresentava
ainda conexão com o exercício da liberdade de expressão no contexto parlamentar, uma vez
que a entrevista parece ter visado o deputado, precisamente, à porta da Assembleia da
República e sobre matéria de relevo político. Assim sendo, Joaquim seria irresponsável, nos
termos do art. 157.º, n.º 1, da CRP.

5 – A fundamentação enunciada convoca aspectos relacionados com a culpa do agente,


apelando a factores que poderão ter condicionado a formação da sua vontade, como o facto
de ter crescido num ambiente em que a violência do pai sobre a esposa era a resposta para
os problemas conjugais, podendo a referida formação de vontade resultar de processos de
interacção social e de associação diferencial através dos quais terá assimilado aquele tipo de
comportamento, e, por outro lado, a angústia que o relacionamento anterior tinha
provocado, a qual pode ter sido experienciada novamente no momento em que Maria o
confrontou com a notícia. Estes dados foram, no entanto, confrontados com necessidades
de prevenção especial positiva, salientando-se a personalidade problemática do agente, e as
de prevenção geral positiva associadas aos casos de homicídio conjugal em Portugal
(finalidades contempladas no n.º 1 do art. 40.º do CP). Esta articulação entre elementos de
culpa e de prevenção geral e especial tem gerado controvérsia, sendo o art. 40.º do CP objecto
de múltiplas interpretações. De acordo com grande parte da doutrina portuguesa, a pena
serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, sendo a culpa apenas pressuposto e
limite da pena. É o caso de Jorge de Figueiredo Dias, que propõe uma moldura de prevenção
geral positiva dentro da qual se enquadra, num segundo momento, a determinação da medida
da pena em função da prevenção especial positiva (ou, em situações excepcionais, prevenção
especial negativa), actuando a culpa apenas como princípio restritivo. Nesta linha, a
fundamentação enunciada não oferece problemas, uma vez que os argumentos de prevenção
especial positiva apenas serão considerados dentro da moldura imposta pela necessidade de
afirmação do Direito referente à protecção da vida através da punição do homicídio, isto é,
dos elementos de prevenção geral positiva. Tal não significa que a culpa do agente tenha
ficado aquém da medida da pena determinada: sendo a culpa limite da pena (arts. 40.º, n.º 2,
do CP e 1.º e 27.º da CRP), aliás, a decisão do tribunal tem de ser suportada por elementos
que elevem o grau de culpa, como a intensidade da vontade de matar, a desconsideração pela
vida da vítima, que era sua mulher e, por isso, merecedora de especial respeito da sua parte,
bem como a menorização da sua liberdade na condução da própria vida, uma vez que não
suporta a ideia do fim da relação com a mulher e a futura independência da mesma.
Por outro lado, outros autores defendem que a culpa é, ainda, fundamento da pena,
funcionando a prevenção como princípio restritivo. Esta orientação é preconizada,
particularmente, por Maria Fernanda Palma, que defende uma pena de culpa condicionada
pelo princípio da necessidade da pena. Nesta perspectiva, os factores considerados para
sustentar a culpa apenas poderiam, na prática, ser insuficientes para fundamentar a medida
da pena em razão da prevenção geral positiva, se a pena fundamentada na culpa ultrapassasse
a necessidade de protecção do bem jurídico, materializando-se numa intervenção excessiva
do Direito Penal no caso concreto e, assim, violadora do princípio da necessidade consagrado
no art. 18.º, n.º 2, da CRP. No entanto, não é isto que sucede, em razão das elevadas
exigências de prevenção geral positiva enunciadas. Em suma, é a culpa o elemento
fundamentador na construção da moldura penal concreta – neste caso, sem problemas, no
que respeita ao limite máximo, de prevenção geral positiva –, dentro da qual a medida da
pena será determinada atendendo às considerações de prevenção especial positiva. Assim
sendo, o problema da argumentação utilizada em tribunal poderá assentar, apenas, no facto
de o mesmo ter sobrevalorizado a prevenção geral positiva, indo além da moldura de culpa
aplicável no caso. No entanto, e sem que os dados oferecidos no enunciado permitam
concluir definitivamente neste sentido, poder-se-á assumir que tal não ocorreu, quer porque,
como já referido, outros factores terão elevado a medida da culpa, quer pelo limite que a
mesma sempre representará na determinação da medida concreta da pena.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis, António Brito
Neves e Catarina Abegão Alves, e Licenciados Rita do Rosário e Nuno Igreja
Matos
Exame – Coincidências – 27 de Janeiro de 2020
Duração: 90 minutos

Com o propósito de promover a consciência ambiental e hábitos sustentáveis, o Governo aprova


um decreto-lei que entra em vigor em Janeiro de 2020 e cujo art. 2.º tem o seguinte teor:

Tráfico de carne vermelha


Quem preparar, oferecer, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem,
transportar, importar, exportar, ou ilicitamente detiver carne vermelha, será punido com multa até 240 dias.

Dídaco é um artista luso-francês residente em Bordéus. Pretendendo despertar o público para os


perigos da carne vermelha, no dia 2 de Fevereiro de 2020, desloca-se a Portugal para realizar um
espectáculo intitulado Suicídio Colectivo, durante o qual come um prato de carne de vaca, simulando
depois morrer envenenado.

1 – Analise a constitucionalidade do artigo 2.º transcrito. (5 valores.)

2 – Independentemente da resposta à questão anterior, deve Dídaco ser punido à luz do artigo
transcrito pela utilização feita da carne de vaca no espectáculo? (4 valores.)

3 – Perante largos protestos da comunidade, o Governo decide atenuar a punição e admitir


espaços onde as actividades referidas são permitidas. Em Março, o art. 2.º passa a vigorar nos
seguintes termos:

Tráfico de carne vermelha


Quem, fora de estabelecimento legalmente autorizado para o efeito, preparar, oferecer, vender,
distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, ou
ilicitamente detiver carne vermelha, será punido com multa até 120 dias.

Admitindo que a resposta à questão 2 é positiva e supondo que Dídaco só é julgado no dia 2 de
Abril, deve ser punido por tráfico de carne vermelha? (5 valores.)

4 – Chega, vindo de França, um pedido de entrega de Dídaco para ali cumprir pena de prisão de
10 meses por crime de furto praticado contra português em Bordéus, em Dezembro de 2019,
punível em França com pena de prisão até 3 anos. Como deve ser decidido o pedido? (4 valores.)

Ponderação global: 2 valores.


Tópicos de correcção

1.
Contextualização da questão como apresentando um problema de conceito material de crime,
que convoca o art. 18.º, n.º 2, da Constituição, e, mais concretamente, o princípio da necessidade
da pena.
Exame do bem jurídico protegido: a norma veicula preocupações ambientais, estando o ambiente
consagrado como objecto de direito fundamental no art. 66.º, n.º 1, da Constituição (com as
obrigações para o Estado constantes do n.º 2). Discussão do ambiente enquanto bem jurídico com
dignidade penal – em particular, tendo em conta o cariz supra-individual e as exigências quanto à
dimensão da ofensa capaz de suscitar um problema penal. Problematização do ponto de vista do
princípio da ofensividade: por um lado, não há ligação directa e inequívoca entre os
comportamentos tipificados e danos ambientais; por outro, mesmo admitindo que essa ligação,
ainda que remota, existe, a intervenção penal parece ocorrer com demasiada antecipação ao cenário
que se pretende evitar.
Problematização da carência de tutela penal e do recurso a meios alternativos de protecção.

2.
Tratamento da questão como problema de interpretação: referência ao limite do sentido
possível das palavras e confronto com perspectivas alternativas de interpretação e realização do
direito, à luz da proibição da analogia incriminadora (art. 1.º, n.º 3, do Código Penal).
Apontamento da correspondência directa entre os actos de Dídaco e os termos legais (deteve
ilicitamente carne vermelha). Não obstante, não há proximidade material suficiente entre o
problema levantado pelo caso e a intencionalidade normativa: com efeito, o acto de Dídaco não é
enquadrável numa lógica de disseminação da carne vermelha, nem de promoção de hábitos de
consumo desta. Pelo contrário, tanto o propósito como o sentido do seu comportamento vão ao
encontro das intenções legais (combater o referido consumo).
Conclusão pela inaplicabilidade da norma punitiva ao caso.

3.
Aplicação, em princípio, da lei em vigor no momento da prática do facto: arts. 29.º, n.º 1 da
Constituição e 2.º, n.º 1, conjugado com o art. 3. º, do Código Penal (no caso: primeira versão da
lei exposta no enunciado).
Em momento posterior ao da prática do facto, entra em vigor uma alteração legal que introduz
um elemento típico novo, passando a exigir-se que o facto seja praticado “fora de estabelecimento
legalmente autorizado para o efeito”. Esta condição está verificada no caso. O elemento
acrescentado não pode, porém, ser valorado retroactiviamente, já que Dídaco não teve justa
oportunidade de optar quanto a ele, não existindo, à data da prática do facto, estabelecimentos
legalmente autorizados para a prática dos actos em questão. Assim sendo, à luz de princípios como
o da culpa e o da igualdade, conclui-se que em relação ao comportamento de Dídaco, ocorreu uma
descriminalização, devendo aplicar-se o art. 2.º, n.º 2, do Código Penal. Nesta linha, é irrelevante
a alteração na medida da pena.
4.
Enquadramento do caso pelo regime do mandado de detenção europeu – MDE (Lei n.º
65/2003, de 23 de Agosto) –, por se tratar de país da União Europeia.
Exame do requisito da dupla incriminação, o facto é punido em França e o tempo da pena de
prisão por cumprir é superior a 4 meses, cumprindo-se o art. 2.º, n.º 1. Também o n.º 3 é
respeitado, visto que o facto é punido em Portugal, nos termos do art. 203.º, n.º 1, do Código
Penal.
Ponderação, com dependência da fase em que o processo pelo tráfico de carne vermelha se
encontre, da causa de recusa de facultativa prevista no art. 12.º, n.º 1, al. b), devendo apurar-se o
interesse em manter o agente em Portugal para permitir que o processo prossiga.
Ponderação da causa de recusa facultativa prevista no art. 12.º, n.º 1, al. g), dado que Dídaco tem
nacionalidade portuguesa e o pedido é feito para cumprimento de pena. Devem ponderar-se os
factores conhecidos do caso para fundamentar a decisão: tanto o agente como a vítima são
portugueses, o que convoca a orientação de protecção dos interesses nacionais; não obstante, dado
que o agente não vive em Portugal nem parece ter ligação forte ao país, as finalidades de prevenção
especial positiva serão provavelmente prosseguidas com maior sucesso em França (sendo ele,
demais, também francês). Admitindo que é também no Estado de emissão que as necessidades de
prevenção geral mais se farão sentir, sendo também aí que, em princípio, será mais fácil conseguir
prova – pois o facto foi praticado em França –, a decisão de entrega (que também melhor
concretiza o espírito de cooperação que subjaz à regulação do MDE) parece ser de preferir.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis, António Brito
Neves e Catarina Abegão Alves, e Licenciados Rita do Rosário e Nuno Igreja
Matos
Exame - 21 de Janeiro de 2020
Duração: 90 minutos

Com o propósito de proteger o lobo-ibérico, tido como espécie em perigo, e por pressão de
movimentos ambientalistas, suponha que a Assembleia da República altera a Lei n.º 90/88. de 13
de Agosto (Protecção do lobo-ibérico), entrando em vigor no dia 1 de Novembro de 2019 uma
versão que inclui um artigo com o seguinte teor:

Actividades proibidas
A captura, detenção, transporte, comercialização e exposição de exemplares vivos, mortos ou naturalizados do
lobo-ibérico são punidas com pena de prisão até 5 anos.

No dia 2 de Dezembro de 2019, Franz, caçador alemão em viagem pela Península Ibérica, dispara
sobre um exemplar da espécie aludida no Parque Natural do Alvão, conseguindo abatê-lo. Não
encontrando o corpo do animal, abandona o local.

1 – Atendendo às exigências respeitantes ao conceito material de crime, analise a


constitucionalidade do artigo transcrito. (5 valores)

2 – Independentemente da resposta à questão anterior, deve Franz ser punido à luz do mesmo
artigo? (4 valores)

3 – Suponha agora que no dia 20 de Novembro de 2019, entra em vigor um decreto-lei (motivado
por orientações discordantes de política criminal) que altera o artigo transcrito, passando a punir
os mesmos actos com coima de 250€ a 1250€.
No dia 3 de Janeiro de 2020, o decreto-lei é declarado inconstitucional com força obrigatória
geral, por carecer de autorização legislativa.
Admitindo que a resposta à questão 2 foi positiva, sendo Franz julgado a 20 de Janeiro de 2020,
qual deve ser a decisão sobre a sua responsabilidade? (5 valores)

4 – Chega, vindo da Alemanha, um pedido de entrega de Franz, para ali cumprir pena de prisão
perpétua por homicídio da mulher, portuguesa, praticado em Berlim em Outubro de 2019.
Como deve ser decidido o pedido? (4 valores.)

Ponderação global: 2 valores.


Tópicos de correcção

1.
Contextualização da questão como apresentando um problema de conceito material de crime,
que convoca o art. 18.º, n.º 2, da Constituição, e, mais concretamente, o princípio da necessidade
da pena.
Exame do bem jurídico protegido: a protecção do lobo-ibérico enquanto espécie da fauna, com
estatuto de espécie protegida, permite reconduzir o interesse tutelado ao ambiente, consagrado
como objecto de direito fundamental no art. 66.º, n.º 1, da Constituição (com as obrigações para
o Estado constantes do n.º 2). Discussão do ambiente enquanto bem jurídico com dignidade penal
– em particular, tendo em conta o cariz supra-individual e as exigências quanto à dimensão da
ofensa capaz de suscitar um problema penal.
Problematização da carência de tutela penal e do recurso a meios alternativos de protecção.
Identificação de um problema de proporcionalidade, atendendo à elevada moldura de pena, tanto
considerada em si mesma como em comparação outros tipos criminais.

2.
Tratamento da questão como problema de interpretação: referência ao limite do sentido possível
das palavras e confronto com perspectivas alternativas de interpretação e realização do direito, à
luz da proibição da analogia incriminadora (art. 1.º, n.º 3, do Código Penal).
Apontamento da falta de correspondência directa entre o acto de Franz (abater/matar) e os
termos legais, podendo daí defender-se a impossibilidade de aplicação da norma ao caso,
cumprindo-se o princípio da legalidade (art. 29.º, n.º 1, da Constituição).
Confronto com perspectiva alternativa que, verficando proximidade material suficiente entre o
problema levantado pelo caso e a intencionalidade normativa (tanto se atinge o objecto de
protecção em questão como o bem que se quer proteger, o comportamento é claramente mais
grave do que os penalizados expressamente, parecendo haver lapso legislativo, da globalidade do
texto parece poder retirar-se a intenção de reprimir também o abate, etc.), afirme a legitimidade da
incriminação, orientando-se esta ainda pela norma legal.

3.
Aplicação, em princípio, da lei em vigor no momento da prática do facto: arts. 29.º, n.º 1 da
Constituição e 2.º, n.º 1, conjugado com o art. 3. º, do Código Penal (no caso: a lei que transforma
o comportamento de crime em contra-ordenação). A norma declarada inconstitucional, porém,
não produz efeitos, conforme disposto no art. 282.º, n.º 1, da Constituição, devendo repristinar-
se a norma revogada, que aqui se mostraria mais desfavorável.
Confronto entre perspectivas doutrinárias e jurisprudenciais para resolução da questão: de um
lado, a posição de quem defenda a precedência da proibição de aplicação de normas
incosntitucionais pelos tribunais (art. 204.º da Constituição), restando somente, para afastamento
da responsabilidade penal, a aplicação do regime do erro sobre a ilicitude (art. 17.º do Código
Penal), de acordo com alguns autores; ou a limitação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade nos termos do n.º 4 do art. 282.º, para outros. Do outro lado, a perspectiva
de quem entenda que, atendendo a princípios como o da culpa e da segurança, ou à tutela das
expectativas legítimas do agente, o art. 282.º não pode ser lido desligado do art. 29.º, n.º 4, valendo
também aqui os fundamentos materiais da proibição de retroactividade desfavorável – aplicando-
se, em suma, a lei em vigor no momento da prática do facto, apesar de inconstitucional.

4.
Enquadramento do caso pelo regime do mandado de detenção europeu (Lei n.º 65/2003, de 23
de Agosto), por se tratar de país da União Europeia.
Afastamento de obstáculos relacionados com a dupla incriminação, a nacionalidade ou o lugar da
prática do facto, visto tratar-se de facto praticado na Alemanha por alemão, punível em ambos os
países – dispensando-se, de todo o modo, a dupla incriminação: art. 2.º, n.º 2, al. o).
Ponderação, com dependência da fase em que o processo pelo crime de actividades proibidas se
encontre, da causa de recusa de facultativa prevista no art. 12.º, n.º 1, al. b), devendo apurar-se o
interesse em manter o agente em Portugal para permitir que o processo prossiga.
Aplicação, em face da natureza da pena, do art. 13.º, n.º 1, al. a), devendo respeitar-se os termos
aí previstos. Confronto entre este dispositivo e a proibição constitucional da prisão perpétua (art.
30.º, n.º 1) e as restrições dela decorrentes para regimes de cooperação internacional (art. 33.º, n.ºs
4 e 5), enquadrando a questão à luz das posições doutrinárias que entendam dever adoptar-se uma
leitura exigente que compatibilize a lei ordinária com as exigências constitucionais.
Direito Penal I – 3.º Ano – Dia – Turma B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.a Doutora Inês Ferreira Leite, Mestres Catarina Abegão Alves,
João Matos Viana e Sónia Moreira Reis, e Licenciada Rita Rosário
Exame – 22 de fevereiro de 2018, 16h30
Duração: 120 minutos

Abel e Bárbara casaram em 1980. No final de 2014, Bárbara decidiu colocar fim ao casamento e, a 22 de
fevereiro de 2015, abandonou definitivamente o lar conjugal.

Abel não aceitou a separação e, desde então, passou a contactar telefonicamente Bárbara, a horas diversas,
perturbando quer o seu desempenho profissional, quer o seu descanso. Como esta ignorava as suas chamadas,
passou a deslocar-se ao restaurante em que Bárbara era empregada de mesa, para conversar com a mesma.
Bárbara rejeitou sempre o contacto com Abel, o que o motivou a passar a entregar quase diariamente à segurança-
porteira do restaurante cartas e sacas de papel com embrulhos dentro. Desde o final do ano de 2015, Abel passou
também a deslocar-se, com frequência, à nova residência de Bárbara, ora aguardando a sua chegada, quer à porta
da entrada do prédio, quer à porta da garagem, ora, então, rondando-a, para controlar a sua rotina diária. Mesmo
quando foi obrigado a passar dois meses no estrangeiro em trabalho, enviou cerca de cento e cinquenta cartas para
a residência de Bárbara e outro tanto para o restaurante.

Abel acabou por ser condenado como autor material de um crime de perseguição, p. e p. pelo art.154,º-A, nº
1 do CP, na pena efetiva de 2 anos de prisão, cujo cumprimento iniciou no dia 1 de junho de 2017.

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:

1. Poderia Abel ser punido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nºs 1, al. a), 2
e 4 do Código Penal?

2. A 1 de janeiro de 2018 entra em vigor a Lei X/2018, a qual altera o art. 154.º-A do CP, que passa a ter a
seguinte redação:

«1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou
indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de
determinação, é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber
por força de outra disposição legal.

(…) 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição
de contacto com a vítima pelo período de 8 meses a 2 anos e de obrigação de frequência de programas
específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. (…)».

A nova lei pode ser aplicada a Abel?


3. Independentemente da resposta à questão anterior, imagine que, a 1 de Março de 2017, entra em vigor a
Lei Y/2017, a qual altera o art. 154.º-A do CP, que passa a ter a seguinte redação:

«1. Quem, por mais de sete meses, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou
indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de
determinação, é punido com pena de prisão até 10 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de
outra disposição legal. (…)».

A nova lei pode ser aplicada a Abel?

Na resposta, pondere também a conformidade desta lei à Constituição.

4. Em razão do envio das cartas por Abel para Bárbara, o Estado para o qual aquele havia viajado em trabalho
vem requerer a entrega do mesmo para que seja julgado pela prática do crime de perseguição, punido
naquele país com pena até 1 ano. De acordo com as regras de aplicação de lei no espaço e de cooperação
judiciária internacional, o que deve fazer Portugal, no caso de:

a) O Estado X ser a Alemanha;

b) O Estado X ser o Japão.

5. Considere a fundamentação apresentada pelo tribunal na graduação da pena aplicada a Abel pelo crime de
perseguição:

“O arguido formou a sua personalidade num contexto familiar disfuncional, em que o pai foi sempre uma figura ausente
e desvinculada das suas responsabilidades parentais e a mãe, pelo quadro de doença mental que a afetava, colocou os filhos
perante situações de maus tratos físicos e psicológicos. Manteve-se isolado, no período que se seguiu à separação conjugal, não
estabelecendo qualquer interação com os vizinhos; mais recentemente, já é visto no exterior da habitação, ocupando-se com o
arranjo e manutenção do jardim da casa e começa a comunicar ajustadamente com os mais próximos, quando o abordam; no
entanto, o arguido menciona um vasto leque de pessoas conhecidas, que considera terem um papel social de relevo para
fundamentar a estima que merece por parte de pessoas socialmente reconhecidas. O arguido demonstra através do seu discurso
estar preso a um passado no qual reunia as condições que sabe serem ajustadas a um padrão de vida estável e socialmente
reconhecido, não transportando para o presente a necessidade de reorganizar o seu estilo de vida. Ainda assim, o alarme social
que motivou a introdução do crime de perseguição no Código Penal justifica a pena efetiva de 2 anos de prisão”.

Respeitou o tribunal o artigo 40.º do Código Penal?

E, na mesma hipótese, o tribunal poderia invocar alguma análise criminológica?

Cotação: 1 – 3 valores; 2 – 4 valores; 3 – 4 valores; 4 – 5 valores; 5 – 2 valores; 2 valores de ponderação global.


Tópicos de correcção

1. Poderia Abel ser punido pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nºs 1,
al. a), 2 e 4 do Código Penal?

Interpretação em Direito Penal:

O problema da interpretação e da proibição da analogia desfavorável em direito penal (artigo 1.º, n.º 3, do CP)
decorre do princípio da legalidade, em particular da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República (artigo 165.º, alínea c), da Constituição). O intérprete deve actuar condicionado pela definição do crime
realizada pela Assembleia da República (ou pelo Governo, com autorização legislativa), não podendo redefinir os
critérios do ilícito estabelecidos pelo legislador (artigos 29.º, n.ºs 1 e 3 da CRP e do artigo 1.º do CP).

A maioria da doutrina define como limite da interpretação o sentido possível e previsível das palavras do texto da lei, o
qual se opera atendendo ao sentido comunicacional perceptível do texto. Respeitado este limite, ter-se-á, depois,
que analisar o caso na perspectiva do sentido do ilícito (o sentido do proibido), de acordo com critérios teleológicos,
sistemáticos e até históricos, sendo certo que é esse sentido do ilícito que corresponde à interpretação válida.

No caso concreto, coloca-se a questão de saber se a actuação de Abel pode ser enquadrada, de acordo com o
sentido possível e previsível das palavras, na conduta de «(…) infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo
castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais». Parece que a limitação imposta pelo legislador com
a noção de «maus tratos» veda aquela interpretação.

Adicionalmente, refira-se que se pretende proteger, com o crime em causa, a saúde (física/psíquica/mental),
compreendendo os maus tratos psíquicos, designadamente, as humilhações, provocações, ameaças, ou curtas
privações de liberdade de movimentos. Sendo embora extensa a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o
bem jurídico aqui tutelado, podem identifica-se a integridade pessoal (art. 25.º CRP) e o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade (art. 26.º CRP), ligados à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as
suas dimensões, em particular no âmbito de uma determinada relação interpessoal. O crime de violência doméstica
exige que o comportamento assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal da vítima. A
delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a acção apenas preenche a previsão de outros tipos
de crime deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. Há «maus tratos»
quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou
desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. A conduta de António não assume esta
dimensão, enquadrando-se “apenas” numa actuação violadora da liberdade pessoal, mas não atingindo esta
ofensividade da integridade pessoal.

Não se coloca, neste caso, a hipótese de uma solução diferente no caso de adopção de orientações como a de
Castanheira Neves, que rejeita o limite do sentido possível das palavras.
2. A 1 de janeiro de 2018 entra em vigor a Lei X/2018, a qual altera o art. 154.º-A do CP, que passa a
ter a seguinte redação:

«1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta
ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua
liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa, se pena
mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

(…) 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de
proibição de contacto com a vítima pelo período de 8 meses a 2 anos e de obrigação de frequência
de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. (…)».

A nova lei pode ser aplicada a Abel?

A questão enquadra-se na problemática da aplicação da lei penal no tempo (artigos 29.º, n.ºs 1 e 4 da CRP, e 2.º,
n.ºs 1, 2 e 4 do CP).

Regra geral, a lei aplicável ao crime é a lei vigente no momento da prática do facto – arts. 29.º, n.º 1 da CRP e 2.º,
n.º 1, do CP. A lei penal vigente no momento da prática do facto – determinado de acordo com o critério unilateral
da conduta (art. 3.º CP) – a qual foi aplicada no caso, previa uma «pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se
pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal» e a possibilidade de aplicação de penas
acessórias «de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência
de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição».

Já durante o cumprimento da pena (Abel está preso há cerca de 6 meses), entra em vigor a Lei X/2018, a qual,
mantendo embora idêntica tipicidade, vem prever uma pena principal menos grave: a pena máxima passa de 3 a 2
anos de prisão. Assim sendo, verifica-se a entrada em vigor, em momento posterior ao trânsito em julgado da
sentença condenatória, de uma lei concretamente mais favorável ao agente (arts. 29º/4 CRP e 2.º, n.º 4, CP), a
qual deve ser aplicada retroactivamente, apesar do já existente trânsito em julgado, por força dos princípios da
necessidade e da igualdade.

Aplicar-se-á, neste caso, o art. 371.º-A do CPP, devendo Abel requerer a reabertura da audiência de julgamento
para efeitos de aplicação da lei posterior mais favorável.

Não é aplicável a parte final do art. 2.º/4 CP, uma vez que a pena já cumprida não preenche a medida da pena
abstractamente prevista na nova lei.

No que respeita à alteração da sanção acessória realizada pela Lei X/2018, e uma vez que o caso não refere a sua
aplicação aquando da condenação, exige-se apenas que o Aluno considere as diferenças consoante à possibilidade
da sua aplicação, consoante a adopção da teoria da aplicação diferenciada da lei ou da teoria da aplicação unitária
da lei.
3. Independentemente da resposta à questão anterior, imagine que, a 1 de Março de 2017, entra em
vigor a Lei Y/2017, a qual altera o art. 154.º-A do CP, que passa a ter a seguinte redação:

«1. Quem, por mais de sete meses, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio,
direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar
a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 10 anos, se pena mais grave
não lhe couber por força de outra disposição legal. (…)».

A nova lei pode ser aplicada a Abel?

Na resposta, pondere também a conformidade desta lei à Constituição.

A primeira questão enquadra-se na problemática da aplicação da lei penal no tempo (artigos 29.º, n.ºs 1 e 4 da
CRP, e 2.º, n.ºs 1, 2 e 4 do CP).

A lei nova introduz um novo elemento ao tipo em causa, exigindo que a perseguição dure por mais de sete meses –
reduz o âmbito típico da previsão da norma. Altera também a moldura penal do crime, passando a pena máxima
a ser de 10 anos de prisão (por oposição aos 3 anos previstos na LA).

Coloca-se então a questão de saber se a LN opera uma descriminalização ou se estamos perante uma verdadeira
sucessão de leis penais no tempo.

A conduta de Abel seria apenas crime à luz da LA, uma vez que, embora tenha perseguido Bárbara por mais de
dois anos, o período entre a vigência da LN e o julgamento (o caso parece indicar que Abel terá perseguido Bárbara
até esta altura) não chega a sete meses. Outra solução pressuporia que se tivesse em conta todo o período em que
Abel perseguiu Bárbara antes da vigência da LN, o que implicaria uma violação do princípio da culpa, pois
estaríamos a ficcionar um dolo do agente em relação a um elemento típico que não existia no momento da prática
do facto.

Relativamente à questão da conformidade da lei à Constituição, coloca-se a questão de saber se, à luz dos princípios
que conformam o conceito material de crime, era admissível a nova conformação do crime feita pelo legislador.

Embora não se verifiquem problemas no que se refere à questão da existência de um bem jurídico com dignidade
penal, uma vez que o crime em causa tutela a liberdade de determinação, poderão colocar-se algumas reservas no
que respeita ao princípio da necessidade (art. 18.º/2 CRP), dada a nova moldura legal, que admite como máxima
uma pena tão severa como é a de 10 anos de prisão: é violada a vertente da proporcionalidade, uma vez que, tendo
embora gravidade a ofensa do bem jurídico, a sanção cominada é excessiva.
4. Em razão do envio das cartas por Abel para Bárbara, o Estado para o qual aquele havia viajado
em trabalho vem requerer a entrega do mesmo para que seja julgado pela prática do crime de
perseguição, punido naquele país com pena até 1 ano. De acordo com as regras de aplicação de
lei no espaço e de cooperação judiciária internacional, o que deve fazer Portugal, no caso de:

a) O Estado X ser a Alemanha

Segundo o artigo 7.º do CP, o lugar da prática do facto tanto se verifica no local onde o agente total ou parcialmente
actuou, como naquele em que se verificou o resultado (critério da ubiquidade, misto ou plurilateral alternativo). O
crime de perseguição consagrado no art. 154.º-A do CP é um crime de mera actividade (basta-se, para a sua
consumação, com a realização de condutas reiteradas de assédio ou perseguição adequadas, nas circunstâncias
concretas, a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima). Assim sendo,
deve considerar-se como lugar da prática do facto, relativamente às cartas enviadas por Abel a Bárbara do
estrangeiro, a Alemanha.

Por conseguinte, está excluída a competência portuguesa pelo princípio da territorialidade (art. 4.º CP).

Portugal era, no entanto, competente, por força do princípio da nacionalidade vertido no art. 5.º/1 b) do CP, uma
vez que estará em causa a fidelidade do agente ao ordenamento jurídico a que pertence.

Diferentemente, uma orientação na linha do Professor Taipa de Carvalho defenderia a não aplicação da al. b), uma
vez que não estamos perante uma situação de fraude à lei, a qual aquele Autor entende ser fundamento e cláusula
implícita desta alínea. De acordo com este entendimento, a alínea b) não se aplicaria, sendo de analisar a verificação
dos requisitos da al. e): neste caso, poderia apenas estar em causa a verificação do requisito presente no inciso iii),
dependendo este da análise infra realizada a propósito da cooperação internacional.

Além das diferenças quanto aos fundamentos subjacentes, esta divergência resultaria, neste caso, não só ao nível
dos requisitos de aplicação explanados, mas também em termos de consequências, uma vez que, de acordo com a
primeira posição, seria sempre aplicável a lei portuguesa (art. 6.º/3 CP), enquanto a adopção da segunda orientação
poderia resultar, caso se aplicasse a al. e) e tivesse Portugal competência, uma restrição à aplicação da lei
portuguesa, por força do art. 6.º/2 CP, uma vez que a lei estrangeira era aparentemente mais favorável.

No que diz respeito ao pedido de entrega de Abel para que seja julgado naquele país, refira-se, em primeiro lugar,
que, sendo a Alemanha um Estado-Membro da União Europeia, deve a resposta à questão passar pela análise da
Lei n.º 65/2003, relativa ao Mandado de Detenção Europeu (MDE). O crime em causa seria punido na Alemanha
com pena de prisão até 1 ano (art. 2.º/1 da mesma Lei), estando preenchido o requisito da dupla incriminação
(art. 2.º/3).

Ainda assim, Portugal sempre poderia condicionar a entrega, uma vez que Abel é português e residente
habitualmente em Portugal (art. 13º/1 b) Lei n.º 65/2003).
b) O Estado X ser o Japão.

Caso o Estado X fosse o Japão, estava excluída a aplicação do MDE, pelo que seria necessário recorrer à Lei da
Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (Lei n.º 144/99), na qual se encontra requisitos menos
flexíveis quer quanto à dupla incriminação, quer quanto à nacionalidade.

No que respeita à dupla incriminação (art. 31.º/2 daquela Lei), estava verificada.

Relativamente à nacionalidade (art. 33.º/3 CRP), Abel poderia ser extraditado, desde que cumpridas as exigências
do art. 32.º/3 e 4 da Lei 144/99.

5. Considere a fundamentação apresentada pelo tribunal na graduação da pena aplicada a Abel pelo
crime de perseguição:

“O arguido formou a sua personalidade num contexto familiar disfuncional, em que o pai foi
sempre uma figura ausente e desvinculada das suas responsabilidades parentais e a mãe, pelo
quadro de doença mental que a afectava, colocou os filhos perante situações de maus tratos físicos
e psicológicos. Manteve-se isolado, no período que se seguiu à separação conjugal, não
estabelecendo qualquer interacção com os vizinhos; mais recentemente, já é visto no exterior da
habitação, ocupando-se com o arranjo e manutenção do jardim da casa e começa a comunicar
ajustadamente com os mais próximos, quando o abordam; no entanto, o arguido menciona um
vasto leque de pessoas conhecidas, que considera terem um papel social de relevo para
fundamentar a estima que merece por parte de pessoas socialmente reconhecidas. O arguido
demonstra através do seu discurso estar preso a um passado no qual reunia as condições que sabe
serem ajustadas a um padrão de vida estável e socialmente reconhecido, não transportando para
o presente a necessidade de reorganizar o seu estilo de vida. Ainda assim, o alarme social que
motivou a introdução do crime de perseguição no Código Penal justifica a pena efectiva de 2 anos
de prisão”.

Respeitou o tribunal o artigo 40.º do Código Penal?

E, na mesma hipótese, o tribunal poderia invocar alguma análise criminológica?

Discussão dos fins das penas, em particular da prevenção especial positiva e a prevenção geral, a qual prevaleceu
na decisão do tribunal.

Reflexão sobre as teorias criminológicas centradas na formação da personalidade e na sociologia, dado o contexto
em que o agente cresceu. Especial atenção quanto às teorias da falta de autocontrolo, que associam o crime à
impulsividade e à incapacidade de diferir a gratificação (GOTTFREDSON/HIRSCHI) e da associação diferencial
(SUTHERLAND).
DIREITO PENAL I - 3.º Ano - Dia
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Professora Inês Ferreira Leite, Mestres João Matos Viana, Sónia Moreira Reis,
Catarina Abegão Alves e Dra. Rita do Rosário
Turmas A e B
07.09.2018/Duração: 120 minutos

a) O princípio da legalidade – na sua vertente de lei estrita e certa – implica que o


intérprete respeite a definição do ilícito realizada pelo legislador.
Expressando-se o legislador por palavras, isso implica que o intérprete tenha de
respeitar as palavras utilizadas pelo legislador.
Assim, num primeiro plano, o intérprete tem de respeitar o sentido possível e previsível
das palavras utilizadas pelo legislador.
Num segundo plano, e dentro daquele quadro de significação possível das palavras, o
intérprete tem de encontrar o sentido do ilícito tipificado pelo legislador, procurando
surpreender os respetivos critérios valorativos (e sistemáticos). Para o efeito, e entre o
mais, é relevante a ideia de bem jurídico protegido.
No caso concreto, pretendia-se que o aluno discutisse ambos os planos, por referência
ao tipo legal de terrorismo.

b) No caso concreto, tratava-se de um crime permanente. O tempus delicti perdurou entre


o dia 1 e o dia 8 de Janeiro.
A nova versão do artigo X implicou duas mudanças. Por um lado, aumentou a pena do
tipo simples já previsto na lei anterior (que terá passado a ser o n.º 1 do artigo X). Por
outro lado, criou um tipo qualificado (artigo X, n.º 2).
A nova versão do n.º 1 do artigo X é aplicável ao caso concreto pois todos os seus
pressupostos se encontram preenchidos no caso concreto, após a entrada em vigor da
nova lei. Tal conclusão afasta a aplicação da versão anterior do artigo X.
A nova versão do n.º 2 do artigo X não é aplicável ao caso concreto pois os seus
pressupostos não se encontram preenchidos no caso concreto, após a entrada em vigor
da nova lei.

c) O pedido de Espanha de entrega de A e B é apresentado no quadro do regime do


mandado de detenção europeu.
Nesse quadro, o facto de ambos os sujeitos serem portugueses deve ser tratado ao abrigo
do respetivo artigo 13.º, alínea b). Nesse sentido, Portugal pode entregar os indivíduos
para que os mesmos sejam sujeitos a procedimento criminal, devendo os indivíduos ser
devolvidos a Portugal, no final desse procedimento.
Face ao exposto, Portugal não teria competência para julgar o crime, ao abrigo do artigo
5.º, alínea e), do CP (ainda que se pudesse chegar a conclusão diferente, o que não se
exigia ao aluno, ao abrigo do artigo 8.º, n.º 1, al. a) da Lei do Combate ao Terrorismo)
d) O crime de burla vem previsto no artigo 2, n.º 2, al. u), da Lei 65/2003, ficando, por
esse efeito, dispensado o controlo da dupla incriminação (o controlo da dupla
incriminação vem previsto nos n.ºs 1 e 3 daquele artigo 2.º).
Nessa medida, e uma vez que o crime em causa é punido em Espanha com pena não
inferior a 3 anos, Portugal deve entregar o indivíduo, ainda que, em Portugal, os factos
em causa não consubstanciem a prática de um crime.

e) De acordo com as disposições conjugadas do artigo 2.º, n.º 4, primeira parte, do CP, e
artigo 371.º-A do CPP, A deveria requerer a reabertura da audiência para aplicação
retroativa de lei mais favorável.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turma B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.a Doutora Inês Ferreira Leite, Mestres Catarina Abegão Alves, João Matos
Viana e Sónia Moreira Reis, e Licenciada Rita Rosário
Exame – 16 de fevereiro de 2018, 14h00
Duração: 120 minutos

No dia 31/12/2017, pelas 23h, ANÍBAL, português, e BERTHA, inglesa, ambos com 18 anos, furtaram um veículo em
Faro e dirigiram-se para Sevilha, tendo planeado uma série de aventuras. Ainda em Tavira, pelas 23h30, Aníbal, que ia
a conduzir, parou numa bomba de gasolina para encher o depósito do carro e, uma vez atestado o veículo, fugiu do
local sem pagar o preço do combustível. ANÍBAL continuou a conduzir, o que fez já em estado de embriaguez, tendo
passado a fronteira pouco antes das meia-noite. Já em Aiamonte, pelas 00h10 minutos do dia 1/1/2018, ANÍBAL foi
parado numa operação stop acionada pelas autoridades policiais espanholas e detetado com um teor de alcoolémia de
0,8 g/l. BERTHA, também já embriagada e furiosa pelo fim da aventura, insultou um dos policiais espanhóis. ANÍBAL
e BERTHA ficaram detidos em Espanha até ao dia 3/1/2018, altura em que foram libertados sob compromisso de se
apresentarem voluntariamente nos julgamentos, tendo ambos regressado a Portugal, onde residiam.
Em Espanha, o crime de condução sob efeito do álcool preenche-se com uma taxa superior a 0,5 g/l. Em Portugal, a
taxa de alcoolémia prevista no art. 292.º foi alterada, com efeitos a partir do dia 1/1/2018, para 0,7 g/l. Em Portugal,
o comportamento de Bertha – os insultos que dirigiu ao polícia – enquadra-se nos arts. 181.º e 184.º do Código Penal.
Em fevereiro de 2018, pelo casamento, BERTHA veio a adquirir nacionalidade portuguesa.
No dia 31/12/2017, o art. 204.º do Código Penal dispunha, apenas, o seguinte: «Artigo 204.º (Furto qualificado): Quem
furtar coisa móvel ou animal alheios à noite é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.» No dia
1/1/2018, o art. 204.º do Código Penal passou a dispor, apenas, o seguinte: «Artigo 204.º (Furto qualificado): Quem furtar
coisa móvel ou animal alheios em conjunto com, pelo menos, mais uma pessoa, é punido com pena de prisão até cinco anos
ou com pena de multa até 600 dias.».

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:


1. À luz dos critérios de aplicação da lei penal no espaço, seria a lei portuguesa aplicável à condução
sob efeito do álcool praticada por A e à injúria praticada por B?
A condução sob efeito do álcool ocorreu entre as 23h do dia 31/12 e pouco após as 00h do dia 01/01 (art. 3.º do
CP), tendo o facto sido praticado em Portugal nos termos do art. 7.º do CP. Tratando-se de facto praticado em
Portugal, rege o art. 4.º do CP, pelo que seria aplicável a lei portuguesa. Porém, porque se trata de facto que não
constitui crime (mera contraordenação até às 1,2 g/l), não poderia haver qualquer processo penal, nem pena, por este
facto. Caso as autoridades espanholas pretendessem a colaboração das autoridades portuguesas na repressão do crime
praticado já em território espanhol – designadamente, ao abrigo da lei do mandado de detenção europeu – tal
colaboração deveria ser negada por ausência de dupla incriminação. A alterações, posterior ao facto, da taxa a partir do
qual o facto constitui crime para 0,7 g/l em nada altera a resposta, pois as leis penais de conteúdo mais desfavorável
ao agente não podem ser aplicadas retroativamente (art. 29.º, n.º 1 da CRP e art. 2.º, n.º 1, do CP).
O crime de injúria ocorreu em território espanhol no dia 01/01, pelo que a aplicação da lei portuguesa dependeria do
preenchimento de alguma das alíneas do art. 5.º do CP. O crime foi praticado por uma pessoa estrangeira (à data da
prática dos factos B era estrangeira) contra uma pessoa estrangeira, e não se trata de um dos crimes do catálogo do
art. 5.º, alíneas a), c) ou d), pelo que apenas se poderia aplicar a f). Ora, como o enunciado não refere que tenha sido
requerida nem a extradição nem a entrega de B por parte das autoridades espanholas, a lei portuguesa não se poderia
aplicar. Estava vedada a aplicação da e) do art. 5.º na medida em que a boa interpretação da norma exige que os
pressupostos inerentes aos elementos de conexão referidos no art. 5.º estejam preenchidos no momento da prática do
facto. Sendo a nacionalidade do agente ou da vítima o elemento de conexão relevante para a e) (elemento que
fundamenta um contacto próximo entre o agente e a ordem jurídica portuguesa e que legitima a sua intervenção), esta
tem que se verificar no momento da prática do facto, o que não sucedia.
2. Admitindo que a lei portuguesa era aplicável e atendendo apenas às normas descritas no enunciado,
poderiam A e B ser punidos, em 2018, pelo crime de furto qualificado?
Trata-se de um caso de troca de qualificantes, em que uma lei posterior vem a eliminar uma circunstância qualificante,
introduzindo, porém, uma nova circunstância, quando ambas se verificaram no facto concreto pratica pelo agente.
Estes casos devem ser resolvidos pela aplicação rigorosa dos arts. 29.º da CRP e 2.º do CP e não com base em
construções dogmáticas desajustadas aos princípios constitucionais (como é o caso de chamada “teoria do facto
concreto”). Assim, a lei nova, na parte em que introduz uma nova norma que atenua a responsabilidade do agente
pelo facto – a norma revogatória que elimina a circunstância “noite” do elenco de qualificantes – tem que ser aplicada
ao agente ao abrigo do disposto nos arts. 29.º, n.º 4, da CRP, e 2.º, n.º 4, do CP; enquanto que parte da lei nova, a
norma que vem introduzir uma disposição nova que agrava objetivamente a qualificação jurídica do facto e a
responsabilidade do agente – a norma que introduz a circunstância “arma oculta” – não pode ser aplicada ao agente
ao abrigo do n.º 1 do art. 29.º da CRP e do n.º 1 do art. 2.º do CP.
Em suma, em 2018, A e B apenas poderiam ser punidos por furto simples.
3. À luz dos princípios da interpretação da lei penal, poderia o comportamento de A – relativo à
obtenção de combustível sem pagar o preço – ser integrado no art. 220.º do CP?
O problema da interpretação e da proibição da analogia desfavorável em direito penal (artigo 1.º, n.º 3, do CP) está
relacionada com a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, alínea c), da
Constituição). Com efeito, se a competência para “definir o crime” cabe à Assembleia da República (ou ao Governo
com autorização), não poderá o Tribunal, no momento da interpretação e aplicação normativa, defraudar esta
imposição constitucional, através de uma re-definição criativa e inovadora dos critérios do ilícito inicialmente
estabelecidos pelo legislador. Ora, se os Tribunais têm de respeitar a “definição do crime” realizada pelo legislador e o
legislador “define o crime” através da utilização de palavras, então, daqui resulta lógica e teleologicamente que o
respeito pela “definição do crime” implica o respeito pelas palavras utilizadas nessa mesma definição (lex stricta). Nessa
medida – e sem prejuízo de existirem conceções alternativas que relativizam o valor do texto legal em benefício de
condições axiológico-valorativas fundamentadoras dos tipos penais e de condições sistemáticas de coerência e unidade
do sistema (p.ex. Castanheira Neves) –, a doutrina e a jurisprudência têm considerado maioritariamente que a
interpretação em direito penal tem como limite inultrapassável os sentidos possíveis e previsíveis que podem ser
assumidos pelas palavras utilizadas pelo legislador, dentro do (con)texto jurídico em que as mesmas estão
sistematicamente inseridas.
De acordo com os sentidos possíveis e previsíveis das palavras, a obtenção ilícita de gasolina não poderia ser
enquadrada, no art. 220.º, através de um ato de interpretação ainda apegada à letra da lei, por não haver um mínimo
de correspondência semântica entre esta conduta e as descritas das alíneas deste artigo. Caso tal interpretação fosse
utilizada para qualificar o facto como crime (admitindo que o mesmo não caberia em qualquer outra norma), tratar-se-
ia de uma interpretação analógica proibida nos termos dos arts. 29.º, n.º 1, da CRP, e art. 1.º, n.º 3, do CP. Caso esta
interpretação visasse apenas a aplicação ao agente de um regime mais favorável (sabendo-se que o furto de gasolina
cabe naturalmente no tipo legal de furto, art. 203.º do CP), poderia tratar-se de uma analogia favorável, permitida
constitucionalmente.
4. Imagine que A iniciou o cumprimento de uma pena de 6 meses de prisão pelo furto de gasolina (art.
203.º do CP) a 25/01/18. A 1/2/18 foi aprovada uma lei penal que qualifica o facto por si praticado (“atestar
um veículo de combustível numa bomba de gasolina e ausentar-se sem pagar o correspondente preço”)
como mera contraordenação. Poderia aplicar a nova lei a A? Em que termos?
A nova lei que procede a uma descriminalização do facto praticado por A, convertendo-o num ilícito de mera
ordenação social seria aplicável a A nos termos do disposto no art. 29.º, n.º 4, da CRP. Segundo um certo
entendimento, o legislador levou a cabo uma descriminalização da conduta do agente. Nestes termos, dando
expressão ao princípio da aplicação retroativa da lei de conteúdo mais favorável (artigo 29.º, n.º 4, in fine, da CRP), o
agente não é punido pela prática do crime (artigo 2.º, n.º 2, do CP).
Subsiste ainda a possibilidade de ponderar a punição pela prática do novo ilícito contraordenacional. A este respeito, a
maioria da doutrina converge na solução de punição pela contraordenação, concluindo que é incorreto defender a
extinção em absoluto da responsabilidade jurídica quando não existir uma explícita e coerente vontade legislativa de
extinção de toda a responsabilidade pelos factos passados. A criação de contraordenações reflete ainda um desenho de
política-criminal. Com efeito, a sanção contraordenacional é um regime mais favorável, nos termos do artigo 2.º, n.º 4,
do CP. Assim sendo, a aplicação do artigo 2.º, n.º 4 cabe ainda no sentido possível mínimo das palavras, de acordo
com o sentido do sistema, pelo que a aplicação do ilícito contraordenacional não afeta a confiança dos destinatários.
Estamos perante um comportamento humano com um referente essencialmente idêntico, que assegura a unidade do
facto proibido e a continuidade normativa, pelo que não há qualquer violação do princípio da legalidade. Em suma, o
agente seria punido pela nova contraordenação.
Admite-se ainda que fossem enunciadas outras orientações, nomeadamente a que considera não poder haver aplicação
retroativa do novo tipo contraordenacional, pois os artigos 2.º e 3.º, n.º 1, do Regime Geral do Ilícito de Mera
Ordenação Social (RGIMOS) consagram o princípio da irretroatividade da lei, pelo que as contraordenações
encontram-se igualmente sujeitas ao princípio da legalidade. Nestes termos, estamos perante uma lacuna sancionatória
que não pode ser preenchida, em primeiro lugar, porque não podemos aplicar a norma penal expressamente revogada
e, em segundo lugar, porque as leis contraordenacionais estão sujeitas ao princípio da proibição retroativa das leis, nos
termos do artigo 2.º, n.º 1, do CP. Apenas seria possível aplicar o novo ilícito contraordenacional caso a lei nova viesse
prever uma norma transitória que determinasse a aplicação retroativa do novo tipo contraordenacional. Uma vez que
essa disposição transitória não se encontra prevista no caso concreto, segundo esta conceção, a Otsugswa não pode
ser aplicado o novo ilícito contraordenacional, pelo que este ficaria impune. Todavia, esta posição tem sustentação
apenas no pressuposto de que não será inconstitucional tal norma transitória, o que a posição descriminalizadora não
pode consistentemente aceitar. Esta posição parte do pressuposto que a proibição da retroatividade não se aplica no
Direito de Mera Ordenação Social por imposição constitucional, quando, ao mesmo tempo, alicerça toda a sua
argumentação a favor da aplicação do artigo 2.º, n.º 2, do CP e da sujeição do Direito de Mera Ordenação Social no
princípio da legalidade. É incoerente sustentar que o ilícito de mera ordenação social encontra-se subordinado ao
princípio da legalidade e, simultaneamente, admitir a subtração ao mesmo princípio de um qualquer regime transitório,
cf. MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos – Teoria da lei penal:
interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, 2.ª ed. revista e ampliada, Lisboa: AAFDL, 2017, p. 171, nota
249.
No caso, e independentemente do entendimento subscrito, só haveria uma solução compatível com a lei e a
constituição: libertação imediata de A sem qualquer possibilidade de iniciar um processo contraordenacional do qual
resultasse a aplicação de uma coima. Uma vez que A já sofreu uma pena efetiva de vários dias de prisão, e que à luz da
lei nova nunca poderia sofrer um único dia de prisão (qualquer dia de prisão é sempre valorativamente mais grave do
que qualquer valor de coima), a aplicação da coima, neste caso, implicaria uma violação do princípio do ne bis in idem
material, previsto no art. 29.º, n.º 5, da CRP.
5. Imagine que A era julgado e condenado pelos crimes de furto de veículo e de condução sob efeito
do álcool em Espanha, aí cumprindo integralmente a pena. Uma vez regressado a Portugal, após
cumprimento da pena, poderia ser aberto inquérito penal contra A pelo crime de furto do veículo?
Tendo sido os crimes em causa praticados em Portugal, a lei portuguesa seria aplicável nos termos dos arts. 7.º e 4.º
do CP, embora apenas se aplicasse ao crime de furto de uso de veículo, já que a condução sob efeito do álcool não
constituía crime, em Portugal, no momento da prática do facto. Quando se trata de crimes já julgados – e cujas penas
foram integralmente cumpridas – no estrangeiro, o art. 6.º, n.º 1, do CP dita que os mesmos já não possam ser
julgados em Portugal, em obediência à proibição de duplo julgamento ínsita no princípio do ne bis in idem, consagrado
pelo n.º 5 do art. 29.º da CRP. Porém, o n.º 1 do art. 6.º refere-se literalmente, apenas, aos crimes praticados fora de
Portugal, e o crime em causa foi efetivamente praticado em Portugal. Assim, literalmente, o n.º 1 do art. 6.º não seria
aplicável, parecendo que A poderia ser novamente sujeito a julgamento. Porém, à luz do primado da Constituição
sobre o direito infraconstitucional – uma vez que o n.º 5 do art. 29.º da CRP não se limita (nem distingue) aos crimes
praticados ou julgados em Portugal – deverá efetuar-se uma interpretação conforme do n.º 1 do art. 6.º do CP, dando
esta expressão “crimes praticados fora de Portugal” por não escrita, assim cumprindo integralmente o comando
constitucional. Portanto, não poderia já ser aberto inquérito penal contra A.
6. Pode relacionar o comportamento de A e B com alguma ou algumas teorias criminológicas que
permitam assinalar as causas do comportamento desviante, ou o seu significado psicossocial?
Poderíamos relacionar os comportamentos de A e B com a análise criminológica de base sociológica, que toma como
referência essencial da génese do crime uma deficiência da socialização dos indivíduos, salientando os padrões sociais
de relação entre o indivíduo e os grupos sociais ou a própria estrutura social. Na senda de Durkheim, Mead constrói a
teoria do interacionismo simbólico, a qual explica os comportamentos socais como o resultado da interação entre a
sociedade e o indivíduo, em que a sociedade determina a construção das conceções de si mesmo e a construção de
significados. Esta conceção leva a cabo uma objetificação dos comportamentos, explicando-os mediante uma resposta
de certa forma padronizada das pessoas às condicionantes do meio social. Esta forma de compreensão do fenómeno
criminal, orientada para a análise do padrão social dos comportamentos, vê o crime como um problema de
socialização. Já a teoria da associação diferencial de Sutherland permite explicar o fenómeno do crime através da
lógica da aprendizagem através da exposição do indivíduo a estímulos de aprovação ou desaprovação da violação da
lei, os quais resultam do círculo de contactos pessoais próximos do agente (família, vizinhos, amigos, colegas de
escola, meio social).
Ainda próximas desta perspetiva, poderiam ser ponderadas as explicações psicológicas do crime – assentes na
psicologia cognitiva-comportamental e na análise da personalidade (a partir dos trabalhos de autores como Rolin e
Fonagy) – que nos permitem compreender que algumas pessoas desenvolvem perceções limitadas das circunstâncias
(eventos, confrontos, conflitos) e das soluções para os problemas que lhes são colocados nos conflitos interpessoais,
não conseguindo alcançar resoluções alternativas não antissociais. Esta abordagem tem a vantagem de apontar vias de
resolução e de melhoria destes indivíduos, sendo de realçar as teorias da mentalização (atualmente muito
desenvolvidas por Fonagy), que se baseiam na aquisição da capacidade para “mentalizar” – relacionar a experiência
interior com a representação atual, compreender-se a si e aos outros, e lidar com as emoções gerindo a agressividade –
a partir da qual, através do treino da empatia, se poderá conseguir que o agente retorne à normatividade.
Estas explicações criminológicas e da psicologia poderiam contribuir para a análise da situação do arguido a dois
níveis: por um lado, para reduzir a censura dirigida ao indivíduo, na medida em que este é apresentado como alguém
que esteve desde sempre exposto àqueles estímulos que contribuem para a aprendizagem do crime (embora esta tese
não seja determinista, pelo que não elimina a liberdade do agente de fazer opções diferentes). Por outro lado, em
termos de fins das penas, apresentam o agente como alguém carecido de uma melhor integração social (ou melhor: de
uma adequada exposição aos estímulos de desaprovação da violação da lei), pelo que as finalidades de prevenção
especial positiva deveriam assumir especial relevância.
Cotação: 1 – 5 valores; 2 – 4 valores; 3 – 2 valores; 4 – 3 valores; 5 – 2 valores; 6 – 2 valores; 2 valores de ponderação
global.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turma B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.a Doutora Inês Ferreira Leite, Mestres Catarina Abegão Alves, João
Matos Viana e Sónia Moreira Reis, e Licenciada Rita Rosário
Exame – 25 de janeiro de 2018, 16h30
Duração: 120 minutos

A 1 de setembro de 2017, fazendo face a um longo período de seca em Portugal e tendo em consideração que
não se previa a queda de aguaceiros em quantidade suficiente para repor os níveis de agua suficientes para
servir as necessidades básicas da população até Abril de 2018, foi aprovada, e entrou em vigor, a Lei X/17, da
Assembleia da República, que continha a seguinte disposição: “Artigo 5.º: 1. É proibida, durante o período de seca,
a aquisição, instalação ou utilização de piscinas, fontes ou outros equipamentos análogos, de finalidades estéticas ou recreativas,
que requeiram quantidades elevadas de circulação de água. 2. Ficam suspensas, enquanto persistir a seca, todas as atividades, em
curso ou a iniciar, que exijam a utilização dos equipamentos referidos no n.º 1. 3. A violação do disposto no números anteriores
é punida com pena até 5 anos de prisão ou 600 dias de multa. ” Entretanto, a 15 de setembro, é aprovada, pela
Portaria n.º 1/17, a seguinte norma: “Os equipamentos que requerem «quantidade elevada de circulação de água», para
efeitos da Lei X/17, são aqueles que acumulem, em estagnação, mais de 20.000 litros de água ou os que requeiram, em
circulação, mais de 5.000 litros de água”.
No dia 5 de setembro, ANA adquiriu, instalou e passou a utilizar uma pequena piscina de fibra, móvel, com
capacidade para 25.000 litros de água (em estagnação), que colocou no quintal da sua casa. No dia 15 de
outubro entra em vigor a Portaria n.º 2/17, que, alterando a Portaria n.º 1/17, vem dispor o seguinte: “Os
equipamentos que requerem «quantidade elevada de circulação de água», para efeitos da Lei X/17, são aqueles que acumulem,
em estagnação, mais de 50.000 litros de água ou os que requeiram, em circulação, mais de 25.000 litros de água”.
No dia 17 de outubro de 2017, MAARIT, empresário estrangeiro e adido diplomata em Portugal, inaugurou
em Faro a maior pista de gelo artificial da europa, com rampas de saltos, equipamento que se esperava que
viesse a atrair turistas do mundo inteiro e a ter uma rentabilidade muitíssimo elevada. A manutenção das
pistas de gelo exigia um volume de água equivalente a 5 piscinas olímpicas (12.500.000 litros de água). No dia
20 de outubro é aprovada a Portaria n.º 3/17, com a seguinte norma: “Excecionam-se do disposto na Lei X/17 os
equipamentos já existentes e em funcionamento que tenham finalidades desportivas de alta competição”. MAARIT tinha já
agendado, para janeiro de 2018, a realização na sua pista de gelo de um campeonato internacional de alta
competição. MAARIT reside habitualmente em Portugal.
A 1 de fevereiro de 2018, após um longo e intenso período de chuva durante os meses de novembro,
dezembro e janeiro, que permitiu repor as reservas do país de água potável, o governo aprovou o decreto-lei
Z/18, com uma única disposição: “É revogado o artigo 5.º da Lei X/17.”

Responda, fundamentadamente, às seguintes questões:


1. Considerando os princípios constitucionais relevantes para o Direito Penal, haveria algum
fundamento para invocar a inconstitucionalidade da Lei n.º X/17? Pronuncie-se, também, sobre a
conformidade das Portaria n.ºs 1/17 e 2/17 face à Constituição.

Atendendo aos fundamentos da incriminação, tal como identificados pelo legislador, e ao facto de se estar a
punir comportamentos que, em princípio e em condições de normalidade social, são eticamente neutros e
socialmente adequados, deve concluir-se que se tratava de uma lei de emergência ou temporária, ou seja, de
uma lei com caráter de excecionalidade que visa fazer face a circunstâncias anómalas, tais como estados de
emergência ou catástrofes naturais. No mesmo sentido, aponta a expressão “durante o período de seca” constante
do n.º 1 do art. 5.º da Lei n.º X/17. No caso, a Lei n.º X/17 pretende, com a medida excecional de proibição
do uso excessivo de água para fins puramente estéticos ou recreativos, cuja desobediência fica sujeita a uma
sanção criminal, controlar o consumo de água e garantir os mínimos básicos de água potável para a
população.
Mesmo tratando-se de uma lei de emergência ou temporária, a mesma não deixa de estar sujeita aos princípios
e regras constitucionais em matéria penal, designadamente, ao n.º 2 do art. 18.º (princípios da
proporcionalidade e da necessidade da pena). Existe, claramente um bom jurídico tutelado pela incriminação
– o interesse geral à fruição de água potável e sustentabilidade ambiental – com reflexo nos arts. 9.º, 66.º, 81.º,
n), 84.º, todos da CRP. Poderia, contudo, mesmo ponderadas as circunstâncias excecionais, colocar-se em
causa a proporcionalidade de uma pena de até 5 anos de prisão para comportamentos que apenas colocam
em perigo o bem jurídico tutelado (atendendo ao facto, por exemplo, de que a pena para o homicídio
negligente é, também, no seu grau máximo, de 5 anos de prisão).
De um modo mais evidente, a Lei n.º X/17 suscita dúvidas de possível violação do princípio da
legalidade, na sua vertente de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pois a
“definição” do crime é realizada, não pela lei formal do Parlamento, mas por esta, em conjugação com um
outro instrumento de valor infra-legal (artigo 165.º, alínea c), da CRP). Por outro lado, pode suscitar problema
de violação do princípio da legalidade, na sua vertente de lei certa (artigo 29.º, n.º 3, CRP), uma vez que o
intérprete, para compreender a exata extensão do comportamento proibido, tem de realizar um esforço de
interpretação conjugada de várias normas. Por fim, colocando-se um eventual problema de lei certa, por
definição, coloca-se também um eventual problema de violação do princípio da culpa (artigo 1.º, 2.º e 29.º da
CRP), pois se a lei não for certa, então, o destinatário não ficará suficientemente orientado sobre os limites do
permitido.
Para se dizer que fica violado o princípio da legalidade, não basta que exista uma segregação entre
diferentes bases normativas, ao nível da “definição” do crime. Segundo Maria Fernanda Palma, este só sai
violado quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso no tipo legal de crime deixa
de existir (cfr. Direito Penal, Idem, p. 131). Assim, o Tribunal Constitucional já esclareceu que esta técnica
remissiva será legítima quando a norma penal contiver o critério da ilicitude. Ou seja: quando contiver aquelas
informações que permitem compreender o sentido essencial do ilícito, de tal forma que o destinatário da
norma penal consegue conhecer, no essencial, qual o bem jurídico que se pretende tutelar, qual a ação
desvaliosa que se pretende evitar e qual o resultado desvalioso que se pretende prevenir.
Para que a norma penal em branco seja válida, a norma complementadora – que neste caso seria uma
portaria – não pode assumir um papel criativo e inovador, na diferenciação entre comportamento permitido e
proibido. Ora, neste caso, a lei penal (em sentido formal) optou por definir a incriminação recorrendo a
expressões genéricas e demasiado amplas, sem um contudo imediatamente delimitado ou que, por hipótese,
possa ser delimitado através da ponderação do bem jurídico, da ratio da incriminação ou das circunstâncias.
Não só se inclui na lei uma referência a “equipamentos análogos”, como o próprio comendo da norma de
conduta é demasiado vago: “quantidades elevadas”. Assim, deveria concluir-se que as Portarias 1 e 2/17 não
se limitam a realizar uma concretização técnica da normal penal, tendo, ao invés, um sentido inovador, pois é
(apenas) nas Portarias que o destinatário encontra o comando da norma de conduta ou o conteúdo essencial
(preciso) da incriminação.
Em conclusão, a Lei n.º X/17 é inconstitucional por violação do disposto no n.º 1 do art. 29.º da CRP
e, por ser turno, as Portarias 1 e 2/17 seriam inconstitucionais por violação do disposto artigo 165.º, alínea c),
da CRP.

2. A luz dos princípios constitucionais relevantes para o Direito Penal, dos princípios da interpretação
da lei penal e dos critérios de aplicação da lei penal no tempo, poderia Ana ser punida, em novembro de
2017, pelo crime constante do art. 5.º da Lei n.º X/17?

Admitindo a conformidade da Lei n.º X/17 face à CRP, ainda assim, Ana não poderia ser punida novembro
de 2017, pelo crime constante do art. 5.º da Lei n.º X/17. Quer se entenda que o momento da prática do
facto se localiza (apenas) no dia 5/9, quer se entenda que (admitindo que a piscina continuou a ser utilizada) a
infração de Ana, enquanto infração permanente, ainda estaria a subsistir 0 15/10 (entendimento este que,
porém, não tem um forte apoio no enunciado), o problema era essencialmente o mesmo.
No momento da prática do facto (ou no início da prática do facto) estava em vigor uma lei incriminadora
temporária que incluía o comportamento de Ana no elenco dos factos puníveis. Assim, nos termos do
disposto no art. 29.º, n.º 1, e art. 2.º, n.º 1, a conduta de Ana seria, inicialmente punível. Entretanto, já após a
prática do facto (ou durante a prática do facto), entrou em vigor uma segunda norma que veio a eliminar o
comportamento de Ana do elenco dos factos puníveis, ou seja, uma “lei” com efeitos descriminalizadores.
Porém, porque se trata de leis de emergência ou temporárias, importa analisar a compatibilidade entre o art.
29.º, n.º 4, da CRP e o art. 2.º, n.º 3, do CP, já que, em regra, os factos declarados como puníveis por uma lei
temporária não deixam de o ser se uma lei posterior os vier a descriminalizar. Deverá, então, admitir-se que o
n.º 3 do art. 2.º do CP constitui uma verdadeira “exceção” ao princípio constitucional da aplicação retroativa
da lei penal mais favorável?
Uma tal conclusão seria dificilmente compatível com a CRP, uma vez que o princípio da aplicação retroativa
da lei penal mais favorável, de natureza constitucional, não pode ser livremente afastado pelo legislador (trata-
se da consagração de um direito fundamental sem reserva e de uma imposição do n.º 2 do art. 18.º, pois
tendo sido alteradas as conceções de política-criminal da sociedade, através da intervenção legislativa, cessou a
necessidade da pena) sem que haja um estrito cumprimento das exigências do n.º 2 do art. 18.º da CRP.
Assim, apenas se poderá afastar o disposto no n.º 4 do art. 29.º da CRP quando a ultratividade da lei de
emergência ou temporária for estritamente necessária, adequada e proporcional á proteção dos bens jurídicos
excecionalmente em risco pela lei temporária, o que, em princípio se verifica, já que a previsível revogação ou
caducidade das leis de emergência ou temporárias, uma vez finda a situação de emergência, desassociada da
ultratividade daquelas, tornaria inútil, ineficaz, o comando imperativo da norma de conduta por ausência
efetiva de sanção, atendendo à morosidade normal do processo penal). Porém, pode suceder que o legislador,
na vigência do mesmo período de emergência e perante as mesmas circunstâncias fáticas, venha formalizar
uma alteração das conceções de política criminal ante a mesma situação de emergência, emitindo uma
segunda lei temporária de conteúdo mais favorável. Nestes casos, o n.º 4 do art. 29.º da CRP tem plena
aplicação.
O caso de enunciado corresponde a uma destas situações, pois o legislador veio reconhecer – perante a
mesma situação fática de emergência – uma atenuação da necessidade de intervenção punitiva,
descriminalizando condutas menos gravosas que tinham sido inicialmente incluídas no elenco dos factos
puníveis. Assim, Ana não poderia ser punida, nos termos do disposto no n.º 4 do art. 29.º da CRP e no n.º 2
do art. 2.º do CP.

3. Considerando apenas os princípios da interpretação da lei penal e, apenas, o disposto na Lei X/17,
considera que uma pista de gelo como a descrita no enunciado pode incluir-se na expressão: «piscinas, fontes ou
outros equipamentos análogos, de finalidades estéticas ou recreativas, que requeiram quantidades elevadas de circulação de água»?
O problema da interpretação e da proibição da analogia desfavorável em direito penal (artigo 1.º, n.º 3, do
CP) está relacionada com a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo
165.º, alínea c), da Constituição). Com efeito, se a competência para “definir o crime” cabe à Assembleia da
República (ou ao Governo com autorização), não poderá o Tribunal, no momento da interpretação e
aplicação normativa, defraudar esta imposição constitucional, através de uma re-definição criativa e inovadora
dos critérios do ilícito inicialmente estabelecidos pelo legislador.
Ora, se os Tribunais têm de respeitar a “definição do crime” realizada pelo legislador e o legislador “define o
crime” através da utilização de palavras, então, daqui resulta lógica e teleologicamente que o respeito pela
“definição do crime” implica o respeito pelas palavras utilizadas nessa mesma definição (lex stricta). Nessa
medida – e sem prejuízo de existirem conceções alternativas que relativizam o valor do texto legal em
benefício de condições axiológico-valorativas fundamentadoras dos tipos penais e de condições sistemáticas
de coerência e unidade do sistema (p.ex. Castanheira Neves) –, a doutrina e a jurisprudência têm considerado
maioritariamente que a interpretação em direito penal tem como limite inultrapassável os sentidos possíveis e
previsíveis que podem ser assumidos pelas palavras utilizadas pelo legislador, dentro do (con)texto jurídico
em que as mesmas estão sistematicamente inseridas.
No caso em análise, os desafios interpretativos surgem com a expressão “outros equipamentos análogos, de
finalidades estéticas ou recreativas, que requeiram quantidades elevadas de circulação de água” por referência a piscinas ou
fontes. Partindo de um conceito de interpretação permitida que atende ao sentido conjugado das expressões
legais, dentro do seu contexto jurídico, pode concluir-se que embora uma pista de gelo não seja
imediatamente equiparável a uma piscina ou fonte, trata-se, ainda, de um equipamento recreativo análogo, na
medida em que exige grandes quantidades de água (embora estas não estejam em constante circulação, não
deixa de haver circulação de água, que é constantemente congelada para compensar os efeitos da evaporação).
Também não parece que a inclusão de uma pista de gelo na norma surge como um sentido não previsível
para o destinatário, pois, para além das piscinas e fontes, poucos outros equipamentos se poderão considerar
análogos face ao sentido global e teleológico da norma incriminadora.

4. À luz dos critérios de aplicação da lei penal no espaço e do âmbito de validade da lei penal quanto às
pessoas1, admitindo que a sua conduta constitui crime, poderia Maarit ser punido, em novembro de 2017,
em Portugal? Na sua resposta, analise também a conformidade da Portaria n.º 3/17 face à Constituição.

1
Pondere, na sua resposta, as seguintes disposições legais:

“Decreto-Lei n.º 48295


Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de abril de 1961

ARTIGO 1.º
Para os feitos da presente Convenção:
d) «Membros do pessoal diplomático» são os membros do pessoal da missão que tiverem a qualidade de
diplomata;
e) «Agente diplomático» é tanto o chefe da missão como qualquer membro do pessoal diplomático da missão;
Em regra, os factos praticados em Portugal (como é o caso, art. 7.º do CP) podem ser julgados pelos tribunais
penais portugueses, art. 4.º do CP. Porém, tratando-se de um agente diplomata, era necessário avalisar se este
beneficiaria de imunidade para efeitos da jurisdição penal. Embora Maarti, enquanto agente diplomático,
beneficiasse de imunidade de jurisdição penal, esta limita-se aos atos praticados no exercício das funções
diplomáticas (art. 38.º da Convenção de Viena). E, atendendo ao disposto no art. 42.º da mesma Convenção,
parece claro que a exploração de uma pista de gelo – atividade comercial privada – nunca se poderia incluir
nas funções diplomáticas de Maarit. Assim, não haveria imunidade para efeitos penais, e Maarit poderia ser
julgado pelos tribunais portugueses.
Porém, há ainda que considerar a Portaria n.º 3/17, que vem eliminar o comportamento de Maarit do elenco
dos factos puníveis. Contudo, a Portaria é inconstitucional face ao disposto no artigo 165.º, alínea c), da CRP.
que consagra a competência relativa da Assembleia da República em matéria de definição dos crimes, penas e
respetivos pressupostos. Ora, a este respeito, o Tribunal Constitucional tem entendido que o princípio da
reserva de lei em sentido formal, enquanto corolário do princípio da legalidade, abrange igualmente a função
de descriminalização, pois descriminalizar ainda é definir o que é crime. Com efeito, se a competência para
“definir o crime” cabe à Assembleia da República (ou ao Governo com autorização), então a eliminação de
um determinado comportamento da categoria de crimes está ainda incluída na reserva relativa da Assembleia
da República, não podendo o Governo proceder à descriminalização sem a devida autorização legislativa.
Trata-se, portanto, de uma “lei” (Portaria, na verdade) inconstitucional, posterior à prática do facto, mais
favorável, pelo que importa saber se Maarit poderia beneficiar da aplicação da mesma. Poderá, numa situação
tal, sustentar-se dois tipos de soluções:
- Total irrelevância da lei penal inconstitucional posterior à prática do facto, não havendo, sequer, que
ponderar o regime do erro (pois a lei inconstitucional não estava em vigor no momento da prática do facto,
pelo que não conformou, efetivamente, a atuação do agente);
- Aplicabilidade da lei inconstitucional mais favorável ao agente, ou por força de uma interpretação
prevalecente do n.º 4 do art. 29.º da CRP (ante o art. 204.º da CRP), ou por força da prevalência do princípio
do Estado de Direito (art. 2.º CRP) sobre as consequências da declaração de inconstitucionalidade em geral,
assente em razões de igualdade, de necessidade da lei penal e da confiança.
No caso, uma vez que se trata de uma Portaria – e não de um ato legislativo, não estando em causa o mesmo
nível de vinculação do Estado de Direito às suas leis – e que, além do mais, parece ter sido feita “à medida”
da situação de Maarit (o que suscitaria ainda sérias dúvidas sobre o cumprimento do princípio da igualdade
penal, art. 13.º da CRP), deveria ponderar-se o seguinte:
- Caso a Portaria fosse o resultado de um abuso da influência ou privilégio social de Maarit, a mesma nunca
seria aplicada ao caso, quer que o princípio do Estado de Direito nunca poderá acolher a aplicação de uma
“lei-medida” que é o resultado de um abuso deste mesmo princípio, quer porque que, então, não haveria
legítimas expetativas a tutelar;

ARTIGO 31.º
1. O agente goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador. (…)
4. A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditador não o isenta da jurisdição do
Estado acreditante.

ARTIGO 29.º
A pessoa do agente diplomático é inviolável. Não poderá ser objeto de qualquer forma de detenção ou prisão.
O Estado acreditador tratá-lo-á com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para impedir
qualquer ofensa à sua pessoa, liberdade ou dignidade.

ARTIGO 38.º
A não ser na medida em que o Estado acreditador conceda outros privilégios e imunidades, o agente
diplomático que seja nacional do referido Estado ou nele tenha residência permanente gozará da imunidade
de jurisdição e de inviolabilidade apenas quanto aos atos oficiais praticados no desempenho de suas funções.

ARTIGO 41.º
Sem prejuízo de seus privilégios e imunidades, todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades
deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditador. Têm também o dever de não se imiscuir
nos assuntos internos do referido Estado.

ARTIGO 42.º
O agente diplomático não exercerá no Estado acreditador nenhuma atividade profissional ou comercial em
proveito próprio.”
- Caso a Portaria fosse o resultado da necessidade de salvaguardar legítimas expetativas criadas por atuação do
Estado – aprovação de projetos camarários, incentivos ao investimento em Portugal, protocolos de
cooperação, etc. – ante a inesperada situação de emergência criada pela seca e subsequente incriminação
excecional, poderia admitir-se a aplicação da lei penal inconstitucional à luz dos argumentos supra expostos.

5. Poderia alguém, em fevereiro de 2018, ser punido nos termos do art. 5.º da Lei n.º X/17? Na sua
resposta, analise também a conformidade Decreto-lei Z/18 face à Constituição.

Como já se referiu, tratando-se de uma lei de emergência ou temporária, a mesma não deixa de estar sujeita
aos princípios e regras constitucionais em matéria penal, designadamente, ao n.º 2 do art. 18.º (princípios da
proporcionalidade e da necessidade da pena). E uma das condições de conformidade da lei de emergência
face ao n.º 2 do art. 18.º da CRP é a sua vinculação de vigência à manutenção da situação de excecionalidade
que torna legítima a intervenção penal de emergência. Assim, entende a doutrina que uma vez eliminada a
situação de emergência ocorre a caducidade natural da lei de emergência ou temporária, cessando
imediatamente – e independentemente de qualquer intervenção legislativa – qualquer punibilidade. E assim
deve ser pois a manutenção da punibilidade de comportamentos que, em circunstâncias normais, seria ético-
socialmente neutros ao abrigo de uma lei de emergência cujos pressupostos já não se verificam seria, em
qualquer caso, inconstitucional por violação do princípio da necessidade da pena (art. 18.º, n.º 2 da CRP).
A esta luz, sendo certo que o governo não pode definir os crimes, nem criminalizando, nem descriminalizando,
sem autorização da AR, e que esta autorização não existiu, no caso, certo é também que a situação de seca
extrema atinha já cessado em fevereiro de 2018, tendo, por isso, já caducado a Lei n.º X/17. Portanto,
independentemente do juízo de (in)constitucionalidade que se pudesse fazer sobre o Decreto-lei Z/18,
ninguém poderia ser punido ao abrigo da Lei n.º X/17 em fevereiro de 2018.

6. Pode relacionar o comportamento de MAARIT com alguma ou algumas teorias criminológicas que
permitam assinalar as causas do comportamento desviante, ou o seu significado psicossocial?

A corrente criminológica que melhor explicaria o tipo de comportamento em causa seria a de base
sociológica, que associa o comportamento criminoso ora a uma deficiência de socialização do indivíduo ou à
própria estrutura social na génese do crime. Dentro desta corrente, a teoria que melhor permitiria enquadrar o
comportamento de Maarit, seria a da associação diferencial (Sutherland). Para Sutherland, o crime explica-se
pela intensidade, frequência e precocidade de certos contactos sociais, estabelecendo este autor uma
verdadeira teoria da determinação do comportamento criminoso em nove aspetos, dos quais se destaca a
importância da aprendizagem dentro de certos grupos sociais. A partir desta base teórica, Sutherland
construiu uma explicação bastante pertinente sobre o chamado white colar crime (crimes de colarinho branco),
demonstrando que o comportamento antissocial não se restringia às classes baixas nem era determinado
(exclusivamente) pela pobreza ou pelas deficiências familiares, estando muito ligado aos padrões
comportamentais desenvolvidos pelos grupos sociais.
Numa perspetiva relacionada com a influência das estruturas sociais na decisão de realização do crime,
poderia ainda referir-se a teoria da anomia social de Robert Merton, a qual sustenta que o crime é explicado
por uma discrepância entre os objetivos culturalmente instituídos e assumidos pelas pessoas e os meios
institucionalizados para atingir aqueles objetivos. Nessa situação de discrepância, os agentes tornam-se
inovadores (e indiferentes perante as normas), recorrendo ao comportamento criminoso para atingir os
objetivos que se revelam inalcançáveis pelos meios institucionalizados.
Em qualquer dos casos, o comportamento de Maarit parece ser o resultado de uma certa forma de “fazer
negócios”, na qual está implícito algum desprezo pelas leis ou alguma convicção de que as leis e seus
comandos podem ser ultrapassados ou flexibilizados à medida das necessidades económicas e comerciais de
grupos ou pessoas influentes e uma ponderação (que não é desprovida de uma racionalidade própria)
segundo a qual a proteção de um investimento e seu retorno económico (para o investidor e, de um modo
geral, para a sociedade) é um interesse prevalecente a outros sem o mesmo peso económico (ou mesmo sem
qualquer valor económico) como sejam a proteção do ambiente ou da qualidade de vida.

Cotação: 1 – 3 valores; 2 – 3 valores; 3 – 2,5 valores; 4 – 4 valores; 5 – 3 valores; 6 – 2,5 valores; 2 valores de
ponderação global.
Tópicos de correção:

Questão 1

O problema da interpretação e da proibição da analogia desfavorável em direito penal (artigo


1.º, n.º 3, do CP) está relacionada com a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia
da República (artigo 165.º, alínea c), da Constituição).
Com efeito, se a competência para “definir o crime” cabe à Assembleia da República (ou ao
Governo com autorização), não poderá o Tribunal, no momento da interpretação e aplicação
normativa, defraudar esta imposição constitucional, através de uma re-definição criativa e
inovadora dos critérios do ilícito inicialmente estabelecidos pelo legislador.
Ora, se os Tribunais têm de respeitar a “definição do crime” realizada pelo legislador e o
legislador “define o crime” através da utilização de palavras, então, daqui resulta lógica e
teleologicamente que o respeito pela “definição do crime” implica o respeito pelas palavras
utilizadas nessa mesma definição (lex stricta).
Nessa medida – e sem prejuízo de existirem conceções alternativas que relativizam o valor
do texto legal em benefício de condições axiológico-valorativas fundamentadoras dos tipos penais
e de condições sistemáticas de coerência e unidade do sistema (p.ex. Castanheira Neves) –, a
doutrina e a jurisprudência têm considerado maioritariamente que a interpretação em direito penal
tem como limite inultrapassável os sentidos possíveis e previsíveis que podem ser assumidos pelas
palavras utilizadas pelo legislador, dentro do (con)texto jurídico em que as mesmas estão
sistematicamente inseridas.

Neste caso, existem duas interpretações possíveis:

a) houve descriminalização total do consumo de estupefacientes, quaisquer que sejam as


doses detidas exclusivamente para consumo próprio, pelo que o disposto no n.º 2 do artigo 2.º da
lei n.º 30/2000 deve ser interpretado em conformidade, não sendo tal interpretação contrária ao
princípio da legalidade (artigo 29.º, n.º 1, da CRP) pois o n.º 1 do mesmo artigo claramente inclui o
consumo (todo) no conceito típico de contraordenação punível;

b) apenas ocorreu uma descriminalização parcial do consumo, quando as doses possuídas


para consumo não excedam os 10 dias, pelo que, havendo lacuna no que toca ao enquadramento
da posse de estupefacientes em doses superiores aos 10 dias, deverá fazer-se interpretação restritiva
(rectius: redução teleológica) do artigo 28.º da lei n.º 30/2000, mantendo-se em vigor o disposto no
antigo artigo 40.º/2 do Decreto-lei nº 15/93 no que respeita à criminalização do consumo (a
opção alternativa de enquadramento do consumo na lei contraordenacional fica excluída por
implicar interpretação proibida ou não se adequar à resposta política-criminal exigida pela posse de
doses elevadas de estupefacientes).

No Acórdão do STJ de 25/06/2008 (fixação de jurisprudência) foi dada preferência à


segunda interpretação, tendo tal opção sido considerada compatível com a constituição pelo
Acórdão do TC n.º 587/2014.
A posição do STJ suscita dúvidas à luz do princípio da legalidade, já que a “interpretação
restritiva” do artigo 28.º pode contrariar os limites da interpretação permitida em Direito Penal.
A aceitar-se, em termos rigorosos, a posição de que a interpretação admissível em Direito
Penal está limitada pelo sentido possível das palavras, é claro que não existe apoio no texto legal
para se considerar ainda em vigor a norma relativa à criminalização do consumo.
Mesmo admitindo uma visão mais ampla da interpretação permitida em Direito Penal, a
interpretação feita pelo STJ, por implicar um retrocesso na opção legislativa da descriminalização
do mero consumo (tratado agora como doença, sujeita a tratamento, ou mero comportamento
socialmente indesejável, punível com mera coima), coloca em causa a segurança jurídica e as
legítimas expectativas dos cidadãos.
Aliás, segundo Maria Fernanda Palma, a criminalização da detenção de um certo número de
doses – ainda que destinadas para consumo – configura uma espécie de presunção inilidível de
tráfico que, para além das implicações ao nível do princípio da legalidade, relativiza o princípio da
culpa — cfr. Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos – Teoria da lei penal:
interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas, 2.ª ed. revista e ampliada, Lisboa: AAFDL,
2017, p. 102 e Ac. do TC 295/03.
Mais, e não menos importante, a interpretação do STJ implica a realização de uma opção de
política-criminal em substituição do legislador ordinário, colocando em causa a dimensão de
Estado de Direito – por afetar a garantia da separação de poderes – do princípio da legalidade
criminal. A “interpretação restritiva” da norma inequivocamente revogatória do artigo 40º quanto
ao crime de consumo de estupefacientes, contida no artigo 28º Lei 30/200, traduz-se na reposição
em vigor de uma norma incriminadora revogada, alargando o âmbito da punibilidade. Operação
que deve entender-se tão proibida quanto a analogia incriminatória (arts. 29º/1 e 3 CRP, 1º/3 CP).
Em contrapartida, a interpretação que permite incluir estes casos na contraordenação ainda
tem apoio no texto legal (o n.º 1 do artigo 1.º da lei n.º 30/2000 não estabelece distinções),
revelando-se a mais próxima do sentido político-criminal expresso pelo legislador na mesma lei.

Ainda que não fossem exigíveis estes elementos adicionais (não sendo penalizada a não
referência aos mesmos), seria de valorizar a resposta que considerasse:

(i) A interpretação de Faria Costa, vertida no sumário de um acórdão do STJ de 2012, do


artigo 2º/2 Lei n.º 30/2000, no sentido de a posse de droga em quantidade que exceda os 10 dias
constituir um possível indício de tráfico, para cuja averiguação é competente o MP. Se não forem
recolhidos indícios suficientes de tráfico, o caso deverá ser processado como contraordenação.

(ii) A referência à quantidade necessária para o consumo médio individual durante 10 dias,
com o valor de mero juízo pericial (artigo 71º/3 DL n.º 15/93), que pode ser afastado pelo juiz no
caso concreto (artigo 163º CPP), considerando o grau de dependência e os hábitos de consumo do
agente, com a consequente responsabilização a título de contraordenação.

Questão 2

Adélia cultiva cannabis no jardim da embaixada. Trata-se de um crime de mera atividade, que
se esgota no próprio comportamento descrito pela lei – a ação de cultivar –, não carecendo de
qualquer evento externo (resultado), espacio-temporalmente dissociado daquele comportamento.
Segundo o artigo 7.º do CP, o facto considera-se praticado, tanto no local em que o agente
atuou, como naquele em que o resultado se verificou (critério da ubiquidade, misto ou plurilateral
alternativo). Considerando o que se disse no parágrafo anterior, neste caso, relevaria apenas o local
onde o agente atuou. O agente atuou no jardim da embaixada, logo, em território português, uma
vez que as embaixadas não constituem qualquer forma de extensão do território do Estado titular
da missão diplomática.
Contudo, Adélia é mulher do embaixador, pelo que se pergunta se esta goza de alguma
imunidade diplomática que impeça a aplicação da lei portuguesa.
As imunidades diplomáticas visam salvaguardar a soberania dos Estados, impedindo que um
Estado exerça jurisdição sobre outro ou ponha em causa o exercício das funções próprias do outro
Estado. Nessa medida, segundo os artigos 31.º e 37.º do DL 48295, que transpõe para o
ordenamento português a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, os membros da
família de um embaixador, que com este viverem, gozam de imunidade de jurisdição penal do
Estado acreditador (neste caso, o Estado acreditador seria Portugal).
Contudo, nesta hipótese, Adélia não gozaria de imunidade diplomática por ser portuguesa
(artigo 37.º, n.º 2, da Convenção).
A lei portuguesa seria aplicável a Adélia, nos termos do artigo 4.º, alínea a), do CP (à luz do
princípio da territorialidade).

Em segundo lugar, Adélia conduziu o seu automóvel sob o efeito de cannabis. O facto foi
praticado em Portugal (artigo 7.º do CP), pelo que a lei portuguesa é territorialmente competente
(artigo 4.º do CP). O facto de Adélia ser mulher do embaixador, como ficou referido no parágrafo
anterior, não constitui qualquer impedimento à aplicação da lei portuguesa.
Neste caso, a lei portuguesa aplica-se a Adélia.

Em terceiro lugar, Adélia ofereceu cannabis a uma amiga que sofria de doença dolorosa,
durante a viagem que fez ao país estrangeiro, conduta que era incriminada no país estrangeiro.
Neste caso, o facto foi praticado fora do território português (artigo 7.º CP), pelo que se
excluía a competência territorial da jurisdição portuguesa (artigo 4.º do CP).
Recorre-se ao artigo 5.º do CP para verificar se Portugal tem competência extra-territorial1. ).
As alíneas a), c), d) do artigo 5.º, n.º 1, do CP não se aplicam, pois o tráfico de estupefacientes
não vem previsto nos mesmos.
A alínea b), do mesmo artigo, também não se aplica, porque não se trata de crime praticado
contra português.
Quanto à aplicação da alínea e), do mesmo artigo: trata-se de crime praticado por português;
o agente é encontrado em Portugal; o facto é qualificado como crime no locus delicti e constitui
crime que admite extradição (não se trata de crime previsto no artigo 7.º da Lei 144/99).
Quanto ao último pressuposto do artigo 5.º, alínea e), parágrafo iii), seria necessário abrir
uma alternativa:
Se o país estrangeiro fosse extra-comunitário, Adélia não poderia ser extraditada, por ser
cidadã portuguesa, não estando verificadas as condições do artigo 33.º, n.º 3, da CRP e 32.º, n.º 2,
da Lei 144/99. Nesse caso, a jurisdição portuguesa seria competente para julgar Adélia, ainda que
se devesse aplicar a lei do lugar da prática do facto, se esta se revelasse mais favorável (artigo 6.º,
n.º 2, CP).
Se o país estrangeiro fosse comunitário, Adélia poderia ser entregue, ao abrigo do mandado
de detenção europeu, mesmo sendo cidadã portuguesa, ao abrigo do artigo 13.º, alínea b), da Lei
65/2003, ainda que se sujeita a entrega à condição de devolução da pessoa. Nesse caso, a jurisdição
portuguesa não seria competente para julgar Adélia.

Nota final:
Diz o enunciado que, posteriormente, o cultivo de cannabis para fins terapêuticos foi
descriminalizado.
Ora, em rigor, o facto aqui descriminalizado – o cultivo de cannabis – é diferente do facto
praticado por Adélia no estrangeiro e anteriormente analisado – cedência a terceiro de cannabis.
Contudo, é possível sustentar o entendimento de que a descriminalização do cultivo para fins
terapêuticos encerra, quer no sentido possível e previsível das palavras utilizadas, quer no sentido
teleológico da solução legislativa (o sentido do permitido e do proibido), uma descriminalização do
próprio uso terapêutico e também da disponibilização da substância para uso terapêutico.
Serão assim ponderadas as respostas que considerem que, na descriminalização do cultivo do
cannabis para efeitos terapêuticos, está também incluída a descriminalização da disponibilização
terapêutica dessa mesma substância.
Neste cenário, as respostas anteriormente apresentadas teriam de sofrer algumas alterações:

1 A norma atributiva de competência extra-territorial que consta do artigo 49.º da Lei da Droga – DL 15/93 – é
inaplicável ao caso concreto.
No caso de o país estrangeiro ser país extra-comunitário, Portugal continuava a não
extraditar, mas também por um motivo acrescido: não estava verificado o princípio da dupla
incriminação (artigo 31.º da Lei 144/99). Nesse cenário, embora competente para conhecer do
caso, a lei portuguesa determinaria a final o arquivamento do processo, nos termos do artigo 2.º,
n.º 2, do CP, uma vez que o facto deixou de ser crime em Portugal, por lei posterior mais favorável
que se aplica retroativamente.

No caso de o país estrangeiro ser comunitário, Portugal podia continuar a ter de entregar
Adélia, uma vez que, segundo o artigo 2.º, n.º 2, alínea e), da L 65/2003, no caso de tráfico de
estupefacientes, prescinde-se do controlo da dupla incriminação, desde que o país requerente puna
o facto com pena não inferior a três anos.

Questão 3

O cultivo de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas é considerado um ilícito criminal


(vide resposta a questão 1).
Contudo, com a alteração legislativa agora em causa, o legislador veio delimitar
negativamente o escopo normativo do referido ilícito criminal: a partir de dado momento, o cultivo
de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas é considerado um ilícito criminal, salvo se se tratar
de cannabis para fins terapêuticos. Esta última situação é portanto retirada do âmbito do proibido,
passando a ser considerada permitida.
Para realizar esta delimitação (negativa) do âmbito do proibido, o legislador recorreu a uma
técnica remissiva, uma vez que a lei penal remete para outra sede normativa (infra-legal), neste caso
uma portaria, a definição de elementos que delimitam negativamente o comportamento criminoso.
Esta técnica legislativa pode suscitar, em tese, várias ordens de problemas. Por um lado,
suscita um eventual problema de violação do princípio da legalidade, na sua vertente de reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República, pois a “definição” do crime é
realizada, não pela lei formal do Parlamento, mas por esta, em conjugação com um outro
instrumento de valor infra-legal (artigo 165.º, alínea c), da CRP). Por outro lado, pode suscitar
problema de violação do princípio da legalidade, na sua vertente de lei certa (artigo 29.º, n.º 3,
CRP), uma vez que o intérprete, para compreender a exata extensão do comportamento proibido,
tem de realizar um esforço de interpretação conjugada de várias normas. Por fim, colocando-se um
eventual problema de lei certa, por definição, coloca-se também um eventual problema de violação
do princípio da culpa (artigo 1.º, 2.º e 29.º da CRP), pois se a lei não for certa, então, o destinatário
não ficará suficientemente orientado sobre os limites do permitido.
Para se dizer que fica violado o princípio da legalidade, não basta que exista uma segregação
entre diferentes bases normativas, ao nível da “definição” do crime. Segundo Maria Fernanda
Palma, este só sai violado quando a possibilidade de compreensão e controlo do desvalor expresso
no tipo legal de crime deixa de existir (cfr. Direito Penal, Idem, p. 131).
Assim, o Tribunal Constitucional já esclareceu que esta técnica remissiva será legítima
quando a norma penal contiver o critério da ilicitude. Ou seja: quando contiver aquelas informações
que permitem compreender o sentido essencial do ilícito, de tal forma que o destinatário da norma
penal consegue conhecer, no essencial, qual o bem jurídico que se pretende tutelar, qual a ação
desvaliosa que se pretende evitar e qual o resultado desvalioso que se pretende prevenir.
Assim, para que a norma penal em branco seja válida, a norma complementadora – que
neste caso seria uma portaria – não pode assumir um papel criativo e inovador, na diferenciação
entre comportamento permitido e proibido.
Neste caso concreto, o destinatário da norma penal sabe que, por regra, o cultivo de cannabis
é proibido e sabe que, quando exista uma indicação terapêutica, o mesmo será permitido.
Nessa medida, parece ser defensável o entendimento de que existe um conteúdo percetivo na
norma penal que orienta suficientemente o agente e impede a definição criativa do comportamento
proibido pelas instâncias infra-legais.

Caso se viesse a entender que a norma descriminalizadora era inconstitucional, e


considerando que a mesma é posterior ao momento da prática do facto, poder-se-ia defender uma
das seguintes posições:

1. Aplicação da norma repristinada (artigo 282.º/1 CRP), por se entender que a questão da
validade das normas precede lógica e valorativamente a da aplicação da lei mais favorável
e que os tribunais estão impedidos de aplicar normas inconstitucionais (artigo 204º CRP).
Sendo a lei penal inconstitucional nula, nunca produziu quaisquer efeitos, pelo que não
pode ser aplicado a Adélia a solução descriminalizadora.
Não se pode empregar, neste caso, o regime do erro (não censurável) sobre a proibição
(artigo 17.º/1 CP) – o qual é invocado por parte da doutrina (Rui Pereira) em situações
em que se reconhece a necessidade de tutelar as legítimas expectativas dos agentes de
aplicação da lei mais favorável – uma vez que a lei inconstitucional não estava em vigor
no momento da prática do facto.
Não existindo, de acordo com a informação disponibilizada no enunciado, caso julgado,
não há lugar à ressalva expressamente prevista no artigo 282.º/3, 1.ª p., CRP;

2. Aplicação da lei inconstitucional mais favorável ao agente, considerando-se, com Taipa de


Carvalho, que o artigo 29.º/4 CRP pode incluir leis penais inconstitucionais, prevalecendo
então estas, se forem de conteúdo mais favorável ao arguido;

3. Aplicação da contraordenação, ou seja, da lei inconstitucional mais favorável ao agente,


em razão (i) do princípio da igualdade, por referência ao teor do artigo 282.º, n.º 3, da
Constituição, que salvaguarda a intangibilidade do caso julgado, no caso de aplicação da
lei inconstitucional mais favorável e (ii) por força da prevalência do princípio do Estado
de Direito (artigo 2.º CRP) sobre as consequências da declaração de inconstitucionalidade
em geral, assente em razões de necessidade da lei penal e da confiança objetiva gerada pe-
las manifestações legislativas do Estado, cfr. MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal
Idem, pp. 177-178.
Haveria assim uma lacuna na regulamentação do artigo 282.º da CRP, no que diz respeito
à situação da lei inconstitucional mais favorável, a qual deveria ser integrada, segundo os
princípios relevantes nesta matéria, dando-se prevalência a essa mesma lei mais favorável.

Questão 4

A regra geral, no que respeita à aplicação da lei penal no tempo consta dos artigos. 29.º, n.º
1, da CRP, e 2.º, n.º 1, do CP, devendo aplicar-se, em princípio, a lei penal vigente no momento da
prática do facto, sendo tal momento, à luz do artigo 3.º do CP, o momento em que o agente atuou
(critério unilateral da conduta).
Neste caso, Adélia atuou num momento em que estava em vigor o disposto no artigo 291.º,
n.º 1, alínea a) do CP, sendo punida a condução sob efeito de estupefacientes que crie perigo para a
vida (perigo concreto) com uma pena até 3 anos de prisão. Após a prática do facto, foi eliminada
esta norma, tendo-se mantido, porém, o tipo previsto no artigo 292.º do CP (n.ºs 1 e 2) que
incrimina a conduta de quem conduza sob efeito de estupefacientes, ainda que não seja criado
qualquer perigo concreto. Contudo, esta norma foi alterada, tendo-se agravado a punição, que
passar a poder ir até aos 3 anos de prisão.
Importa determinar se a conduta de Adélia se mantém punível e, se for o caso, qual a lei
penal em concreto mais favorável (artigos. 29.º, n.º 4, da CRP e 2.º, n.º 4, do CP).

Tratando-se de uma conversão de crime de perigo concreto em crime de perigo abstrato,


sendo certo que a mera criação de perigo abstrato já era punível à data da prática do facto, deverá
concluir-se que se mantém a punibilidade da conduta de Adélia, uma vez que tal conduta era já
punível, com ou sem criação de perigo concreto, no momento em que Adélia atuou.
Está-se, então, perante um caso de sucessão de lei em sentido estrito, mantendo-se a
continuidade do ilícito típico.
Resta, assim, determinar qual a lei, em concreto, mais favorável, uma vez que a
aplicabilidade retroativa da lei nova depende de esta se revelar mais favorável para o agente.
Em contrapartida, também a ultratividade de uma lei penal revogada apenas será admissível
caso uma nova lei penal de conteúdo mais gravoso (mantendo-se a continuidade do ilícito típico e
a punibilidade da conduta do agente) venha a entrar em vigor.

Seriam equacionáveis duas hipóteses:

Primeira: a avaliação do regime que, em concreto, se revela mais favorável depende de uma
análise global do regime penal em vigor nos dois momentos, à luz da lei do momento da prática do
facto e da lei nova.
O regime do artigo 291.º, por admitir uma pena menos grave aos casos em que o agente
atue por negligência (n.º 4 do artigo 291.º), por contraposição com o regime do artigo 292.º, que
equipara, para efeitos de pena, as atuações dolosas e negligentes (e não sendo indicado no
enunciado a que título, doloso ou negligente, terá atuado Adélia) revela-se, em concreto, mais
favorável.
Portanto, os termos do disposto nos artigos 29.º, n.º 4, da CRP e 2.º, n.º 4, do CP, a lei
aplicável a Adélia seria a lei penal em vigor no momento da prática do facto, ou seja, o regime
constante do artigo 291.º, na redação anterior à alteração legal.

Segunda: existe uma outra hipótese interpretativa segundo a qual a comparação deve ser
feita de acordo com o regime diferenciado mitigado (ponderando-se a lei antiga norma a norma,
mas nunca admitindo a aplicação de “partes” da norma constantes da lei antiga e da lei nova).
Nesta ótica, a “lei penal” em vigor no momento da prática do facto, considerando-se,
porém, a já consolidada revogação da alínea a) do n.º 1 do artigo 291.º, apenas permite punir a
conduta de Adélia nos termos do disposto no artigo 292.º do CP na redação em vigor no
momento da prática do facto (com uma pena até 1 ano de prisão).
Uma vez que a nova pena até 3 anos de prisão, inserida após a prática do facto no artigo
292.º do CP (por implicar um agravamento da punição do agente resultante de lei que entra em
vigor após a prática do facto e, portanto, proibido constitucionalmente) não poderá ser aplicada a
Adélia, o pleno respeito pelo princípio da legalidade e pelas normas constantes do artigo 29.º da
CRP deverá conduzir à aplicação a Adélia do disposto no artigo 292.º na redação em vigor no
momento da prática do facto.
Esta é, de facto, a solução que melhor garante as distintas dimensões do princípio da
legalidade (segurança jurídica, proibição de retroatividade, tutela de expectativas, proibição do
arbítrio e garantia do Estado de Direito Democrático).

Questão 5

A criminalização do mero consumo de estupefacientes – tratando como crime um


comportamento aditivo não inteiramente controlável pelo agente e, nesta ótica isolada, colocando
em causa somente os bens jurídicos do próprio agente – pode revelar-se inconstitucional pelas
seguintes razões, ponderado o problema jurídico-constitucional do conceito material de crime, à
luz do disposto no artigo 18.º da CRP:
a) Carência de bem jurídico, salvo os detidos pelo próprio agente do crime, correspondendo a
uma intervenção paternalista excessiva do Direito Penal na autonomia e liberdade
individual dos cidadãos, pelo que há violação do princípio da necessidade penal (artigo 18.º.
n.º 2 da CRP), por falta de carência de intervenção penal.
b) Também se verifica violação do princípio da necessidade por falta de ofensividade da
conduta, quando se pretende justificar a incriminação do consumo considerando os
eventuais danos sociais (remotos, difusos e dificilmente determináveis) resultantes do
consumo generalizado de drogas para a saúde pública em geral (transmissão de doenças), o
património e a propriedade (face à necessidade de custear a adição), a segurança pública e a
estabilidade das relações familiares, profissionais e sociais (em virtude da perda de senhorio
de si). Tratando-se de danos remotos, difusos, dificilmente determináveis e de verificação
não necessária, não consegue identificar-se uma conduta inequivocamente ofensiva de bens
jurídicos concretos e determinados. A prevenção desses danos seria quando muito a ratio
de uma tal incriminação, não corresponderia à proteção de quaisquer bens jurídicos
concretos e determinados.
c) A admitir-se a existência de um bem jurídico – a saúde pública – há, ainda assim, violação
do princípio da necessidade penal (artigo 18.º. n.º 2), por violação da proporcionalidade
stricto senso, na medida em que o próprio consumidor nunca deveria ser punido, visto que
são os seus bens jurídicos os tutelados pela incriminação e que se trata, principalmente, de
uma vítima do tráfico de estupefacientes, e não um agente do crime.
d) Ainda que assim não se entendesse, ocorre violação do princípio da necessidade penal
(artigo 18.º. n.º 2), por falta de adequação ou eficácia da lei penal, por estar demonstrado
que a incriminação não exerce um efeito dissuasor do consumo, especialmente quando este
é mais intenso, isto é, quando se trata de consumidores toxicodependentes (com adição).
e) E, ainda, ocorre violação do princípio da necessidade penal artigo 18.º. n.º 2), por violação
da proporcionalidade stricto senso, já que a aplicação de penas criminais aos consumidores
releva-se sempre desproporcional, quer porque se trata de comportamento inócuos
(pequenos consumos, esporádicos ou recreativos), quer porque se trata de comportamentos
aditivos, não inteiramente controláveis pelo agente, sendo este carente de tratamento e não
de penas criminais. Tal violação do da proporcionalidade stricto senso é reforçada pela
existência de mecanismos alternativos eficazes: sanções administrativas, pedagogia contra o
consumo de droga, tratamentos.

De valorizar a referência à distinção entre o consumo de drogas proibidas e de álcool ou


tabaco, que ainda assim não legitima a incriminação do consumo, apenas o seu tratamento como
ilícito contraordenacional. Todos os dados estatísticos apontam o álcool como a substância mais
perigosa e letal num contexto de política criminal (o consumo de álcool está na base de cerca de
80% de toda a violência interpessoal, de acordo com dados da OMS, sendo estatisticamente
omnipresente, em Portugal, na criminalidade violenta – homicídios e ofensas à integridade física
graves – e na violência doméstica; o consumo de álcool é ainda estatisticamente mais relevante na
sinistralidade rodoviária face ao consumo de sustâncias estupefacientes não legais). Porém, nem
por isso se pondera a criminalização da venda ou do consumo de álcool, assumindo-se que se
revela mais eficaz e menos prejudicial – menos restritivo das liberdades fundamentais com uma
carga criminógena menor – a opção por campanhas de educação, prevenção e tratamento. Por
outro lado, existem hoje inúmeros estudos no sentido dos efeitos medicinais benéficos do
consumo regulado da cannabis numa multiplicidade de doenças. Para algumas destas doenças, não
existem soluções farmacológicas legais com a mesma eficácia. A criminalização do consumo de
cannabis, a esta luz e para lá dos argumentos já aduzidos, pode ser assim uma restrição inadmissível
do direito à saúde e ao bem-estar, incompatível com os arts. 18.º e 64.º da CRP.
Ponderado o debate jurídico-constitucional em torno do consumo, torna-se também
bastante duvidosa a incriminação do cultivo para consumo próprio (pequeno cultivo, amador). Isto,
claro, num contexto em que a aquisição da cannabis não é legal, não havendo uma oferta regulada
em Portugal. Uma vez que o consumidor não pode adquirir, de modo legal e regulado, a substância
para seu consumo próprio, quem queira consumir tem apenas duas alternativas: ou se torna cliente
do tráfico de estupefacientes, não sendo punindo, mas alimentando as associações criminosas que
o promovem, sujeitando-se a adquirir substâncias cuja origem é duvidosa e cujo conteúdo pode
estar adulterado; ou promove o cultivo da substância, tornando-se, com a incriminação, um
traficante. Ora, numa ótica de política-criminal – admitindo que a atual política criminalizadora do
tráfico é compatível com a CRP e eficaz na proteção dos bens jurídicos que pretende garantir – a
transformação de cada potencial consumidor num cliente do tráfico de estupefacientes revela-se
mais prejudicial, e contraproducente, ante a tolerância perante pequenos produtores amadores que
se dediquem apenas ao cultivo para consumo próprio. Também na ótica da saúde pública a opção
de descriminalizar o pequeno cultivo se revela menos prejudicial, pois quem cultiva para consumo
próprio terá um melhor controle da qualidade da substância.

Questão 6

O conceito de déviance secundária – que na linha de Edwin Lemert é também designada por
“commitment to desviance” – consiste na ideia de que o indivíduo, a quem foi inicialmente atribuído o
estigma de criminoso, assume esse mesmo rótulo e, depois, até como mecanismo psicológico de
gestão dos problemas que lhe são colocados pelo seu meio ambiente (ou seja: como mecanismo
psicológico de defesa), vai comportar-se em conformidade.
Ou seja: num primeiro momento, o indivíduo vai ser catalogado como criminoso. Isso pode
acontecer de várias formas. Por um lado, através da ação das instâncias formais de controlo (por
exemplo: um Tribunal que o condenou pela prática de um crime ou a Polícia que o revista na rua, a
meio da noite, sem motivo aparente, apenas porque ele apresenta uma certa aparência física). Por
outro lado, através das instâncias informais de controlo (por exemplo: a entidade patronal que,
havendo um furto na empresa, lança as suspeitas imediatamente naquele trabalhador que tem certa
origem, nacionalidade ou estatuto social).
Depois, esta rotulagem inicial vai exercer uma influência psicológica sobre o indivíduo, no
âmbito da construção da sua própria identidade e da sua própria narrativa pessoal, potenciando a
possibilidade de este vir a efetivamente encarnar a personagem que lhe foi socialmente destinada.
Finalmente, no desempenho do papel que lhe havia sido socialmente atribuído, o indivíduo
realiza outros atos criminosos.
O exemplo paradigmático da déviance secundária consiste na criminalização do consumo de
estupefacientes. Ao rotular o consumidor de criminoso, cria-se as condições para que este integre
esse estatuto na construção da sua personagem social, podendo assim ajudar a quebrar as barreiras
de inibição psicológica para a prática de outros crimes (roubo, furto, extorsão, tráfico, etc).

A teoria criminológica que utiliza este conceito é o labeling approach, fazendo-o com o objetivo
de mostrar a relevância dos processos sociais na criminalização de condutas e na prática de atos
criminosos (vide, p.ex. Outsiders de Becker).
Tal conceção vem aliás na linha do interacionismo simbólico, que defendia, em síntese, que a
realidade social era construída através de processos linguísticos mediante os quais cada individuo
atribuía um valor simbólico ao comportamento alheio, reagindo em conformidade.
Assim, segundo o labeling approach, não era apenas a déviance secundária que resultava de
processos sociais de definição e atribuição do comportamento desviante.
Logo ao nível da déviance primária, a mesma resultava, não de características internas do
próprio facto, mas antes de processos de seleção social, mediante os quais as referidas instâncias
formais e informais de controlo elegiam algumas condutas e não outras como desviantes.
As análises criminológicas podem constituir argumento da fundamentação da pena.
Por um lado, podem permitir avaliar de forma mais rigorosa a censura dirigida ao indivíduo,
na medida em que este pode ser encarado como alguém que, por influência de instâncias sociais
externas (formais ou informais) pode ter desenvolvido um processo psicológico de assunção do
estatuto criminoso (embora esta tese não seja determinista2, pelo que não elimina a liberdade do
agente de fazer opções diferentes). Note-se que, de acordo com o artigo 40.º, n.º 2, do CP, a culpa
é sempre o limite máximo da pena.
Por outro lado, em termos de fins das penas, estas conceções podem apresentar o agente
como alguém carecido de uma melhor integração social, através de meios não estigmatizantes
(p.ex. através de meios não privativos da liberdade), pelo que a finalidades de prevenção especial
positiva, assumindo aqui especial relevância, poderia exigir formas de reação do sistema penal que
evitassem a déviance secundária.

2 Ainda que esta afirmação não seja pacífica, existindo discussão em redor deste tópico.
DIREITO PENAL I . ÉPOCA ESPECIAL DE FINALISTAS
3.º Ano – Dia Turmas A e B
Coordenação e Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ª Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês Ferreira Leite, Mestres
João Matos Viana, Sónia Moreira Reis e António Brito Neves
7.09.2017/Duração: 120 minutos

Num país asiático, o legislador aprovou uma lei que descriminalizava a violência doméstica,
sempre que as agressões físicas ou psíquicas em causa fossem ocasionais e não afetassem de forma
grave e irreversível a integridade física e psíquica da vítima, nem conduzissem à sua morte.
António, nacional português, em viagem nesse país asiático com a sua esposa Berta,
portuguesa, discutiu com esta e agrediu-a com um estalo. Imediatamente, Berta terminou a relação e
pediu ao hotel em que estavam hospedados um quarto separado, o que lhe foi concedido.
Inconformado e despeitado com a decisão da mulher, António enviou a Berta, nessa noite e na noite
seguinte (em que Berta permaneceu no seu quarto à espera de voo antecipado para Portugal), 932
mensagens de texto (sms’s), simplesmente com a frase “não penses que isto termina aqui”.
Na última noite antes de regressar a Portugal, cada vez mais revoltado com a situação, António
embriagou-se, criou uma altercação no Hotel e partiu uma garrafa de vinho, que se encontrava em
exposição na garrafeira do restaurante, na cabeça de um hóspede, James.
No voo de regresso a Portugal, em avião comercial da TAP, António, ainda alterado, entrou
em discussão com a hospedeira, começando aos pontapés ao banco. O comandante ordenou a
António que parasse, tendo este desobedecido, continuando a pontapear o banco do avião.
O país asiático pede a extradição de António por todos os crimes que este cometeu, aquando
do incidente com James.
A garrafa de vinho que António partiu era um Monte Velho Reserva, no valor de 30€, e James
ficou com um golpe na cabeça e uma enorme mancha visível e não removível no seu fato Desmond
Merrion de 50.000 dólares.

Responda fundamentadamente às seguintes perguntas:

1. Se uma lei idêntica à que foi aprovada no Estado asiático fosse aprovada em Portugal, a propósito
da violência doméstica, como avaliaria a respetiva constitucionalidade (3,5 v.)?

A questão está relacionada, em geral, com a temática do conceito material de crime e, em especial,
com a temática da eventual existência de obrigações constitucionais implícitas de criminalização.
Ou seja, pergunta-se se existem limites constitucionais (materiais) à atividade legislativa de
criminalização e descriminalização de um comportamento (neste caso, aquilo que estava em causa era
um lei descriminalizadora) ou se, pelo contrário, tal atividade legislativa depende apenas das maiorias
que, em cada momento, se formem na Assembleia da República.
Os dois grandes critérios (e simultaneamente limites) da atividade legiferante do Estado em matéria
penal são os seguintes: por um lado, o princípio da dignidade penal, que determina que o Estado só
deva proteger penalmente os bens jurídico-penais, ou seja, aqueles interesses que sejam essenciais para
a existência e pleno desenvolvimento do individuo e/ou da comunidade. Por outro lado, o princípio
da necessidade penal, que determina que o Estado apenas possa fazer intervir o direito penal quando
não existirem meios de tutela alternativos menos gravosos.
Perguntava-se aqui se o Estado poderia descriminalizar, naqueles casos, a violência doméstica.
A questão não pode ser respondida no plano abstrato pois, nesse plano, é entendimento da maioria da
doutrina que não existem obrigações constitucionais implícitas de criminalizar, desde logo, porque o
requisito da necessidade deve ser visto, em cada caso, e em cada momento, pelo legislador ordinário.
Descendo para o plano concreto, parece que estão verificados os requisitos da dignidade e
necessidade penal: existe um bem essencial para o desenvolvimento pleno do individuo (a sua
integridade física e moral) e não parece haver meio alternativo menos gravoso que tutele esse
interesse.
Nessa medida, no caso concreto, uma lei desta natureza poderia ser considerada inconstitucional por
implicar uma desproteção ilegítima de um bem jurídico constitucionalmente consagrado que não
encontra tutela adequada nos outros meios jurídicos disponibilizados pelo direito.
Desproteção que, além do mais, seria contrária ao princípio da igualdade (tratamento igual de
situações substancialmente idênticas) na medida em que apenas operaria no contexto da violência
doméstica, i.e., de um relacionamento afectivo-existencial entre agente e vítima, pois, fora deste
contexto, a integridade física e moral das pessoas continuaria a ser tutelada nos termos gerais. Ora,
porque a especial proximidade afectiva-existencial entre agente e vítima até agrava o conteúdo de
ilicitude e de culpa das ofensas (físicas ou psíquicas) simples em contexto de violência doméstica, tal
descriminalização seria ainda violadora do princípio da proporcionalidade.
Além disso, passaria implicitamente uma mensagem de admissão/normalização da violência física e
psíquica (desde que sem consequências graves ou mortais) dentro do casal. O que se traduziria numa
ofensa à dignidade humana das pessoas envolvidas num relacionamento conjugal ou afim.

2. Os Tribunais portugueses são competentes para julgar António pelo estalo dado a Berta (3 v.)?

Neste caso, o facto foi praticado fora do território português (artigo 7.º do Código Penal, adiante CP).
Por regra, Portugal tem competência para aplicar a lei penal a factos praticados no seu território
(artigo 4.º do CP).
Excecionalmente, Portugal tem competência internacional, podendo julgar factos praticados no
estrangeiro (artigo 5.º do CP).
Neste caso concreto, pelo menos literalmente, o facto em causa cabe no artigo 5.º alínea b), do CP.
Contudo, o Prof. Taipa de Carvalho entende que tal alínea tem uma cláusula implícita de fraude à lei,
pelo que apenas se aplica quando o agente se desloca propositadamente ao estrangeiro para praticar o
crime. Adotando essa perspetiva, a alínea b) não se aplicaria, não estando também verificado o inciso
ii) da alínea e) do artigo 5.º do CP. Portugal não poderia julgar o caso.
Outros autores recusam tal cláusula implícita de fraude à lei entendendo que o fundamento da norma
em causa é a fidelidade do agente ao ordenamento jurídico a que pertence, pelo que se poderia aplicar
ao caso concreto o artigo 5.º, alínea b), do CP. Nesse caso, Portugal poderia julgar o facto de acordo
com a lei portuguesa, e não de acordo com a lei estrangeira mais favorável, nos termos do artigo 6.º,
n.º 3, do CP.

3. De acordo com os princípios que orientam a interpretação em direito penal, avalie se o


comportamento de António, ao enviar as 932 sms’s, preencheu o crime previsto no artigo 190.º,
n.º 2, do CP (3,5 v.).

Neste caso, discute-se se o comportamento do agente pode integrar o conceito de “telefonar”


constante do artigo 190.º, n.º 2, do CP. Enviar sms’s pode ser integrada na expressão telefonar?
Tal questão convoca os critérios e os limites da interpretação em direito penal.
Na medida em que vigora o princípio da legalidade em direito penal, na sua vertente de lei estrita, o
qual determina que o crime apenas pode ser criado pelo poder legislativo (Assembleia da República
ou Governo com autorização), o poder judicial não tem poder criativo no que diz respeito à definição
do crime. Tal circunstância implica necessariamente a proibição da analogia incriminadora.
Tendo em conta esta conclusão, o limite inultrapassável da interpretação em direito penal consiste no
sentido possível e previsível que as palavras utilizadas pelo legislador, devidamente contextualizadas
no seu texto legal, podem assumir numa comunicação entre intervenientes razoavelmente diligentes.
Não quer dizer que todos os sentidos que não ultrapassem esse limite sejam interpretações permitidas.
Respeitando o referido limite, depois, é necessário encontrar o sentido do ilícito (o sentido do
proibido), de acordo com critérios teleológicos, sistemáticos e até históricos, sendo certo que é esse
sentido do ilícito que corresponde à interpretação válida.
Neste caso concreto, admitia-se respostas alternativas, desde que devidamente fundamentadas.
A jurisprudência entende que, na medida em que o envio de sms’s atualmente corresponde a uma
função típica e inerente ao próprio telefone (telemóvel), o sentido da palavra telefonar já inclui, de
forma previsível, o envio de mensagens. Respeitado esse limite, a mesma jurisprudência entende que o
envio das mensagens corresponde ao sentido do proibido por, teleologicamente, corresponder àquela
finalidade legalmente censurada de perturbar a privacidade e o sossego alheio.
Admite-se no entanto interpretações mais conservadoras (desde que devidamente fundamentadas) no
sentido de explicar que o sentido da palava telefonar, ainda que hoje os telefones contenham outras
funcionalidades, continua a ser o de realizar chamadas de voz, pelo que o comportamento não estaria
legalmente previsto.

4. Quantos crimes praticou António quando partiu a garrafa na cabeça de James? Portugal deve
julgar António por esses crimes ou entregá-lo ao Estado estrangeiro (4 v.)?
António partiu uma garrafa de vinho de €30 na cabeça de James, provocando-lhe um ferimento e
sujando-lhe irreversivelmente o fato de €50.000.
Em tese, poderíamos ter aqui três crimes: crime de ofensa à integridade física, crime de dano por
destruição da garrafa e crime de dano por destruição do fato.
Esta questão convoca o regime do concurso de normas e de crimes, o qual está subordinado ao
princípio ne bis in idem, que determina que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo
mesmo crime (artigo 29.º, n.º 5 da Constituição).
Neste caso, estão excluídas quaisquer relações de especialidade ou subsidiariedade.
Resta portanto saber se estamos perante um concurso efetivo de crimes ou se, pelo contrário, estamos
perante um concurso aparente de crimes (aquilo a que a doutrina clássica designa por consunção).
Para esclarecer esta questão é necessário utilizar um critério valorativo que identifique quantos
sentidos autónomos de ilicitude existem no comportamento do agente e quantos sentidos de ilicitude
dependentes e subordinados aí existem. Apenas os primeiros podem ser autonomamente punidos.
Neste caso concreto, é manifesto que o ferimento na cabeça de James traduz um sentido de ilicitude
que tem força própria e que não depende de nenhum outro, pelo que pode ser punido
autonomamente.
Quanto à destruição da garrafa parece ser um meio exclusivamente instrumental para provocar o
referido ferimento, não assumindo força própria, até porque o valor da garrafa era reduzido. Parece
que se trata de um crime consumido.
Já a destruição do fato, pelo valor elevado que apresenta, parece assumir valorativamente um sentido
autónomo de ilicitude, também autonomamente punível, embora aqui também se admita outras
respostas devidamente fundamentadas.

Portugal poderia julgar estes crimes, pelo artigo 5.º, alínea e), do CP: o corpo e os incisos i) e ii) estão
manifestamente preenchidos. O inciso iii) também está preenchido porque, sendo o cidadão
português, Portugal não podia extraditar para o país asiático (artigo 32.º, n.ºs 1/b) e 2, da Lei 144/99)

5. Pelos factos praticados dentro da aeronave da TAP, António é entretanto condenado em


Portugal, por sentença transitada em julgado, no dia 21.08.2017, pelo crime de desobediência em
aeronave civil, previsto no artigo 4.º, n.º 3, do DL 254/2003, numa pena de 1 ano de prisão
efetiva1. Quando já se encontra a cumprir pena há três meses, a referida disposição legal é alterada
pela Lei x/2017, de 05.09.2017, que passa a prever, para o crime em causa, uma medida abstrata
de prisão de 1 ano. Acresce no entanto a previsão de uma sanção acessória de inibição até 1 ano
de viajar em aeronaves civis. Quid juris? (4 v.).

Neste caso, verifica-se a entrada em vigor, em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença
condenatória, de uma lei concretamente mais favorável ao agente (artigo 2.º, n.º 4, CP)
Essa lei mais favorável aplica-se retroativamente ao agente, não obstante o prévio trânsito em julgado,
devido aos princípios da necessidade da pena e da igualdade.
Contudo, na medida em que a pena já cumprida não preenche a medida da pena abstratamente
prevista na nova lei, não é possível aplicar a parte final do artigo 2.º, n.º 4, do CP.
Nessa medida, o recluso deverá requerer a reabertura da audiência de julgamento, de acordo com o
artigo 371-A, do Código de Processo Penal, para efeitos de aplicação da lei posterior mais favorável.
Suscita-se ainda a questão de saber se a sanção acessória, nessa audiência reaberta, pode ser aplicada.
De acordo com a teoria da aplicação diferenciada da lei, sendo uma medida desfavorável posterior ao
facto não pode ser aplicada. Segundo a teoria da aplicação unitária da lei, tal medida pode ser aplicada.

Ponderação global: 2 v. - correcção da escrita, clareza das ideias, sistematização das respostas e
capacidade de síntese. Nota: as respostas ilegíveis por causa da caligrafia não serão avaliadas.

1 “Quem, a bordo de aeronave civil em voo comercial, desobedecer a ordem ou instrução legítima
destinada a garantir a segurança, a boa ordem e a disciplina a bordo, dada pelo comandante da aeronave ou
qualquer membro da tripulação em seu nome, é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa
até 240 dias”.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês Ferreira Leite, e Mestres João
Viana, Sónia Moreira Reis e António Neves
Exame – Época de recurso – 15.02.2017
Duração: 120 minutos

Negacionismo

Tópicos de correção

No dia 7 de maio de 2008, KLAUS, alemão, membro do Partido Nacional-Democrático da Alemanha


(conhecido pelo seu cariz neonazi), mestre em linguística indo-germânica, participa numa conferência em
Nuremberga, Alemanha, durante a qual explicou a sua tese de que não ocorreu uma verdadeira rendição
do povo alemão no final da 2.ª GG, defendendo historicamente a subsistência do III Reich. Durante a
conferência, no período de resposta a questões colocadas pela audiência, KLAUS afirmou discordar da
avaliação histórica do holocausto, entendendo que a real vitimização dos judeus terá sido marginal e
muitíssimo inferior aos dados avançados pela ideologia dos aliados. No dia 10 de maio, na mesma
localidade, DIETZ e EDSEL, dois jovens alemães de 16 anos de idade, vandalizaram a sinagoga local, pintando
insultos e cruzes suásticas numa das paredes.
Ainda em 2008 iniciou-se um processo-penal contra KLAUS, na Alemanha, tendo o mesmo sido condenado
com trânsito em julgado em 2012, pelo crime de crime de “incitamento ao ódio e violência na população”1,
previsto no CP alemão. Em 2009, KLAUS fugiu para Espanha, tendo vindo logo de seguida, para Portugal,
onde se veio a casar, tendo adquirido, em 2015, nacionalidade portuguesa.
Em 2016 a Alemanha emitiu mandado de detenção europeu contra KLAUS, pedindo a Portugal a entrega
do arguido para cumprir uma pena de 2 anos de prisão pelo crime pelo qual fora condenado em 2012. Em
2007, havia sido introduzida a alínea b) do n.º 2 do art. 240.º no CP português.

Nota à grelha: O caso do teste é inspirado num caso real decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça de
05/07/2012, processo n.º 48/12.2YREVR.S1. No caso real, em muito semelhante a este, o STJ recusou o
cumprimento do mandado de detenção europeu invocando a ausência de dupla incriminação por realizar
uma interpretação estrita, conforme à Constituição (atendendo ao conflito com a liberdade de consciência,
de pensamento e de expressão) da norma constante do art. 240.º, n.º 2, b) do CP. O Acórdão encontra-se
disponível, para consulta, aqui.

Responda justificadamente às seguintes questões:

1. Independentemente das questões de aplicação da lei penal no tempo e no espaço, avalie as


condições de constitucionalidade do crime previsto na alínea b) do n.º 2 do art. 240.º no CP e se
KLAUS o terá praticado (4 valores). (Se bem vejo, assim fica mais claro o tipo de resposta que se
pretende)

Identificação do bem jurídico tutelado pelo art. 240.º, n.º 2, b): paz pública, liberdade e igualdade dos
cidadãos, tutelando-se, mediatamente, a intangibilidade dos direitos fundamentais e prerrogativas civis
dependentes da manutenção de condições de liberdade e igualdade dos cidadãos (efetividade dos
direitos fundamentais).
Delimitação da conduta típica em função da tutela mínima de bens jurídicos, da subsidiariedade do
Direito Penal e do princípio da necessidade da pena (arts. 1.º, 2.º, 18.º 2 27.º da CRP), atendendo
também aos princípios gerais de interpretação da lei penal.
Identificação de um problema de conflito de direitos fundamentais e da necessidade de se realizar – na
interpretação do art. 240.º e na delimitação da conduta típica descrita pela alínea b) do n.º 2 do art.
240.º – um juízo de concordância prática entre os arts. 1.º, 2.º 13.º, 25.º e 27.º da CRP (dignidade da

1
§130 do CP alemão, com o seguinte teor: “(3) É punido com pena de multa ou de prisão até cinco
anos, quem aceite, desminta ou minimize um ato cometido sob o regime do nacional-socialismo”.
pessoa humana, efetividade dos direitos, liberdade e garantias, igualdade, integridade física e moral, e
liberdade, bens jurídicos potencialmente alvo de tutela pelo art. 240.º) e os arts. 2.º, 13.º e 37.º da CRP
(pluralismo democrático e liberdade de expressão em condições de igualdade).
A questão pode, desde logo, ser analisada na ótica dos limites da interpretação permitida em Direito
Penal, à luz dos arts. 1.º, 2.º, 18.º, n.º 1, 29.º, n.º 1 e 165.º,n.º 1, alínea c) da CRP. Numa perspetiva
metodológica mais tradicional, o sentido possível das palavras é entendido como limite da interpretação
permitida em Direito Penal. Nesta medida, alguns autores defendem que as possibilidades semânticas
que o texto oferece funcionarão como barreira intransponível à tarefa de interpretação, sob pena de
violação da proibição de analogia consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal. Ora, Klaus não
negou, efetivamente, os crimes do holocausto, limitando-se a discordar dos seus contornos exatos, pelo
que a inserção do comportamento de Klaus na norma em questão poderia extravasar o sentido possível
das palavras, constituindo interpretação extensiva não previsível pelo agente. Porém, esta via seria pouco
profícua, uma vez que o legislador recorrer à expressão “nomeadamente”, o que parece conferir ampla
margar de integração da norma ao aplicador. Tal margem de manobra só pode ser sustentável, á luz das
normas já citadas da Constituição, caso se recorra ao sentido teleológico da norma à luz da necessidade
de tutela de bens jurídicos e à intervenção mínima do Direito Penal.
Assim, a conformidade da alínea b) do n.º 2 do art. 240.º do CP face aos valores do pluralismo
democrático e da liberdade de expressão implica que se faça uma leitura estrita da respetiva norma
incriminadora, uma vez que não é constitucionalmente legítima a incriminação da mera expressão de
dúvidas, descrença ou discordância ante os eventos históricos inerentes ao Holocausto. Para que haja
crime, deverá exigir-se que o discurso em causa seja idóneo a incitar ao ódio ou à violência (por ser
difamatório ou provocador) e que essa intenção exista no agente que o profere.
Não parecendo ser o caso, face aos factos descritos, não terá K praticado o crime em questão.

2. Independentemente da resposta à questão anterior, terão os tribunais portugueses competência


para julgar KLAUS pelo crime de discriminação, previsto no art. 240.º do CP? (3 valores)

Tratando-se de crime praticado integralmente fora de Portugal (art. 7.º), deverá avaliar-se o art. 5.º do CP.
Não pode ser aplicada a alínea e) pois K não possuía nacionalidade portuguesa à data da prática dos factos,
podendo apenas aplicar-se a alínea f). Realmente, apesar de K possuir, atualmente, nacionalidade
portuguesa, as condições materiais das quais dependente a competência dos tribunais portugueses e a
aplicação da lei nacional (nacionalidade do agente ou da vítima e tipo de crime) têm de se verificar sempre
no momento da prática do facto, sob pena de violação do princípio da legalidade (ou princípio da não
transatividade). Nos termos da alínea f), a competência dos tribunais portugueses depende de o agente se
encontrar em território nacional (verifica-se), de se tratar de crime que admita a extradição (o que se verifica,
pois ainda que se identificasse alguma componente política nesta incriminação, existe convenção
internacional sobre a criminalização de condutas discriminatórias que incitem ao ódio e à violência), de ter
sido requerida a extradição ou MDE (verifica-se) e de não poder ser deferida a extradição ou MDE (questão
que será resolvida na próxima pergunta).
Tendo havido condenação na Alemanha, mas tendo o arguido subtraindo-se ao cumprimento integral da
pena, ainda que houvesse competência dos tribunais portugueses, deveria dar-se cumprimento ao art. 6.º,
n.º 1, preferindo-se o processo de reconhecimento de sentença (nos termos estabelecidos pela Lei n.º
65/2003 - LMDE) à repetição integral do julgamento

3. Deverá Portugal cumprir o mandado de detenção europeu? (3 valores)

No caso, não estando preenchidas as alíneas do n.º 2 do art. 1.º da LMDE (pois o crime imputado a K não
se refere a condutas racistas ou xenófobas, mas antes à mera negação de atos do regime nacional-socialista
alemão), importa verificar se existe dupla incriminação. Uma vez que a conduta de K não se enquadra na
tipicidade [aceitando-se a interpretação restrita referida na questão 1) da alínea b) do n.º 2 do art. 240.º no
CP português] e que não existe qualquer outra norma no Direito Penal português com conteúdo semelhante
ao §130 do CP alemão, poderá ocorrer um problema de ausência de dupla incriminação. Nos termos
do n.º 3 do art. 2.º da LMDE, «só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a
emissão do mandado de detenção europeu constituírem infração punível pela lei portuguesa, independentemente
dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação». Mesmo desconsiderando as diferenças de tipicidade
e qualificação jurídica entre a lei portuguesa e a lei alemã, certo é que a conduta de K não constitui
qualquer infração criminal no Direito português.
Por outro lado, tratando-se de mandado de detenção europeu para cumprimento de pena de prisão
emitido contra um cidadão nacional, nos termos da alínea g) do n.º 1 do art. 12.º da LMDE, Portugal
poderia recusar a entrega, comprometendo-se – caso se entendesse haver dupla incriminação – a
executar em Portugal a pena determinada pelos tribunais alemães.

4. Admita que, em 2010, o art. 240.º foi alterado, passando a alínea b) do n.º 2 a dispor o seguinte:
«2. Quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer
meio de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação: (…) b) Difamar
ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional,
religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, nomeadamente através da negação
de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade, de molde a incitar à prática de atos de
violência contra as pessoas ou grupos de pessoas referidos ou de vandalismo contra as
instituições que as representam e desde que se verifique, ainda que de forma tentada, algum
ato de violência ou vandalismo posteriores; (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco
anos». Independentemente das respostas às questões anteriores e caso os tribunais portugueses
fossem competentes para julgar KLAUS, poderia o arguido ser condenado pelo crime de
discriminação? (5 valores).

Regra geral, a lei aplicável ao crime é a lei vigente no momento da prática do facto – arts. 29.º, n.º 1 da CRP
e 2.º, n.º 1, do CP – considerando-se o facto praticado aquando da atuação do agente, art. 3.º do CP. O
facto foi praticado a 7 de maio de 2008, altura em que a lei portuguesa incriminava a negação do holocausto
recorrendo a uma técnica de perigo abstrato ou presumido, segundo a qual, sendo o perigo mero
fundamento da incriminação, proíbe-se a conduta descrita na norma com base no perigo estatístico de
incitamento ao ódio ou à violência; ou, admitindo a já referida interpretação restritiva, um crime de aptidão,
dependente da idoneidade da conduta realizada para criar a perigosidade abstrata que fundamenta a
incriminação, podendo ser caracterizado como crime de perigo abstrato-concreto.
Em 2010, foi alterada a tipicidade da norma incriminadora, passando o tipo a exigir, pelo menos, a criação
de perigo concreto – demonstrada através da ocorrência, ainda que de forma tentada, de atos de violência ou
vandalismo – para os bens jurídicos tutelados.
Trata-se, assim, de um caso de conversão de crime de perigo abstrato em crime de perigo concreto,
admitindo-se, à luz dos arts. 29.º da CRP e 2.º do CP, duas soluções:
- Solução designada de teoria do facto concreto (“prius punibile, posterius punibile, ergo punibile”), segundo a
qual, desde que a conduta do agente se mantenha dentro da tipicidade, sendo punida quer pela norma
anterior, quer pela norma posterior, deverá a mesma considerar-se ainda punida. De acordo com esta
solução, K poderia ser punido à luz da lei antiga, por ser mais favorável (arts. 29º/1 e 4. 1.ª parte CRP;
2º/4 CP).
- Solução que sustenta que a transformação de um crime de perigo abstrato num crime de perigo concreto
implica a descriminalização das condutas de mero crime de perigo abstrato anteriores à nova lei, por ter a
lei nova inserindo um elemento inovador especializador que transforma de modo substancial o ilícito típico.
O art. 29.º, n.º 4 da CRP e o art. 2.º, n.º 2, do CP, impõem a aplicação da lei nova mais favorável. Neste
caso, existe uma lei nova mais favorável, a que elimina a redação anterior do art. 240.º, descriminalizando
as condutas de perigo abstrato, por ter ocorrido uma alteração das conceções do legislador no que toca à
necessidade da pena para tais condutas. Esta lei nova deve ser aplicada a K, não podendo este ser punido
nos termos da lei vigente em 2007. Por outro lado, porque o art. 29.º, n.º 1 da CRP e 2.º, n.º 1, do CP,
impedem a aplicação de lei nova mais desfavorável ou de conteúdo típico inovador incriminatório, a nova
lei, introduzida em 2010, também não poderia ser aplicada a K. Assim, K não poderia ser punido por
quaisquer das leis. Note-se que a aplicação da lei antiga a K – uma lei já revogada – apenas pode ser
sustentada através do recurso à ultratividade da lei penal. Ora, também a ultratividade da lei penal se
encontra limitada pelo arts. 18.º, n.º 2 e 29.º, n.º 4 da CRP, sendo tal aplicação legítima apenas quando,
havendo continuidade do ilícito típico, a lei anterior seja mais favorável.
A aplicação da lei nova a K (invocando a continuidade do ilícito-típico) implica a valoração retroativa de
um elemento do ilícito típico que não tinha existência legal à data da prática dos factos, nem como
fundamento da pena, nem como fundamento de qualquer variação da pena, com potencial violação do
princípio da culpa (arts. 1.º e 27.º da CRP), mesmo que tal aplicação seja limitada pela pena prevista na lei
antiga. Por outro lado, tal aplicação sempre introduziria um elemento de arbitrariedade e potencial violação
do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP), já que apenas abrangeria os processos pendentes em que, na
fase de inquérito ou na acusação, constasse a referência – desnecessária e irrelevante à luz da lei anterior –
à criação de perigo concreto.
Pode ainda entender-se que a lei nova apresenta apenas um conteúdo densificador da ilicitude típica,
concretizando e delimitando o comportamento típico, razão pela qual não ocorre total descriminalização
das condutas anteriores, mas mera descriminalização parcial das condutas de perigo abstrato. Nesta ótica,
importa apenas aplicar o art. 29.º, n.º 4 da CRP e 2.º, n.º 4 do CP, sendo K punido pela lei que for
concretamente mais favorável. Assim, porque a lei nova introduz um limite mínimo da pena superior ao
previsto pela lei vigente em 2007, K seria punido nos termos da redação inicial do CP.

5. Imagine que os jovens DIETZ e EDSEL foram julgados na Alemanha, tendo-lhes sido aplicada,
como pena, a obrigação de, durante 12 meses, ler 12 livros alusivos à perseguição dos judeus, ao
racismo e ao holocausto, devendo entregar 12 relatórios de leitura e um trabalho de reflexão final.
À luz dos princípios gerais do Direito Penal e dos fins das penas, como avaliaria esta decisão? (3
valores).

Referência aos fins das penas e à função do Direito Penal à luz do disposto nos arts. 1.º, 2.º, 18.º e 27.º
da CRP e do art. 40.º do CP, analisando as leituras doutrinárias sobre as normas em causa e sua
interpretação em sede das teorias dos fins das penas. Reflexão sobre o confronto entre a prevenção geral
positiva (necessidade de uma pena expressiva da medida ótima para o restabelecimento da confiança
da comunidade na vigência das leis e na tutela dos bens jurídico-penais) e a prevenção especial positiva
(necessidade de estabelecer uma pena que não se mostre incompatível com a ressocialização do agente
e com o regresso deste à vida em comunidade), a partir do caso enunciado. Reflexão sobre a legitimidade
da preferência por fins de prevenção geral na determinação da medida da pena sustentada por alguma
doutrina penal e prevalecente na jurisprudência dos tribunais portugueses. Reflexão sobre os limites da
prevenção especial positiva atendendo à liberdade de consciência e à livre construção da personalidade
do agente.

Clareza das ideias, correção da linguagem e capacidade de síntese: 2 valores.


Direito Penal I
3.º Ano – Dia - Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.as Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês Ferreira
Leite, Mestres João Viana, Sónia Moreira Reis e António Brito Neves
Época de Coincidências – 26 de Janeiro de 2017 Duração: 90 minutos

"A proposta”

1. Adérito, português residente em Portugal, conheceu Bianca, portuguesa, num café em


Lisboa, no dia 1 de Setembro de 2016, e sentiu-se imediatamente atraído.
Tendo descoberto onde Bianca morava, tocou à sua campainha no dia 2 e entregou-lhe,
depois de a ler em voz alta, uma folha assinada por si. A folha tinha o seguinte conteúdo:
“O declarante vem por este meio manifestar a vontade de praticar com Bianca todos os actos sexuais que
sejam do agrado desta. A assinatura deste documento implica a manifestação de igual vontade por parte de
Bianca em relação ao declarante, assegurando também a disponibilidade para agendar uma data para
darem cumprimento às referidas vontades.”
Indignada com a conduta de Adérito, Bianca denunciou o caso às autoridades.
Sendo Adérito julgado no dia 30 de Setembro, deveria ele ser condenado por crime de
importunação sexual, previsto e punido no artigo 170.º do Código Penal? (4 valores)

2. Admitindo que a resposta à questão anterior é positiva, suponha que no dia 20 de


Setembro de 2016 entrou em vigor uma lei que revogou o artigo 170.º
A mesma lei incluía um artigo com o seguinte teor: “Quem importunar outra pessoa, praticando
perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto
de natureza sexual, é punido com coima de €50 a €500.”
Que decisão deveria ser tomada no julgamento de Adérito? (3,5 valores)

3. Inconformado com a recusa de Bianca, no dia 2 de Outubro de 2016, Adérito


deslocou-se novamente a sua casa. Depois de Bianca o deixar entrar, Adérito forçou-a a ter
relações sexuais consigo.
Adérito foi condenado pela prática destes factos no dia 24 de Janeiro de 2017.
Aprecie criticamente os seguintes trechos da sentença condenatória:
a) "Tendo sido dado como provado que antes da cópula o arguido, recorrendo a violência, acariciou por
sete vezes zonas íntimas do corpo da vítima, deve ser condenado por sete crimes de coacção sexual – previsto
e punido no artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal – em concurso com um crime de violação – previsto e
punido no artigo 164.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma." (3,5 valores)
b) “O arguido deve ser condenado na pena máxima prevista, vincando-se assim a necessidade de combater
o machismo e a misoginia, e promovendo-se a igualdade de género e o respeito pela liberdade e intimidade
das mulheres.” (3,5 valores)

4. No dia 25 de Janeiro chegou, vindo de Espanha, um pedido de entrega de Adérito para


ali cumprir pena de prisão de 8 meses por crime de coacção sexual (também previsto e
punido no artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal português) praticado em Barcelona contra
Clementina, espanhola, quando Adérito lá esteve em férias, e punível em Espanha com
pena de prisão de um a cinco anos.
Como deveria ser decidido o pedido de entrega? A lei portuguesa seria aplicável a esta
situação? (3,5 valores)

Clareza das ideias, correção da linguagem e capacidade de síntese: 2 valores.


Tópicos de Correcção

1. Numa perspectiva metodológica mais tradicional, o sentido possível das palavras é


entendido como limite da interpretação permitida em Direito Penal. Nesta medida, alguns
autores defendem que as possibilidades semânticas que o texto oferece funcionarão como
barreira intransponível à tarefa de interpretação, sob pena de violação da proibição de
analogia consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal (CP).
Independentemente de aquele limite dever ser encontrado com recurso à mera polissemia
abstracta das palavras ou atendendo também ao uso social quotidiano que a expressão em
causa adquire, não há dúvida de que Adérito dirigiu a Bianca uma "proposta de teor
sexual". Tal não basta, porém, para considerar que ele deve ser punido.
Sancionando-se os comportamentos referidos no artigo 170.º do CP – importando aqui
particularmente o segmento "formulando propostas de teor sexual" – com a aplicação de
uma pena, esta norma assume um carácter restritivo de direitos fundamentais, pelo que tem
de se mostrar necessária para a protecção de outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição (CRP).
Esta verificação será orientada pela procura de um bem jurídico com dignidade penal que a
norma se destine a proteger.
Mesmo aceitando que a norma em questão visa a protecção de um bem jurídico com
dignidade penal – podendo identificar-se a liberdade em geral e, em particular, a liberdade
sexual –, parece claro que a formulação em análise é demasiado abrangente na sua
literalidade, correndo o risco de atingir comportamentos que não lesam nem criam perigo
para qualquer bem jurídico. O que só não sucederá se se tiver na devida conta que a
conduta típica no art. 170º consiste na importunação de outrem através da formulação de propostas
de teor sexual. Importunação que, atendendo ao bem jurídico protegido, só existirá em certas
situações, como, por exemplo, quando o conteúdo da proposta e/ou o contexto em que é
formulada implicarem um perigo de que se lhe siga a prática de um acto sexual ofensivo da
liberdade de autodeterminação sexual de outrem.
O que não sucede na hipótese em análise. A conduta de Adérito pode ser enquadrada no
circuito normal de interacção entre pessoas, já que a vida social faz-se também de
abordagens a pessoas desconhecidas. Este tipo de contactos pode ser feito de um modo
que justifica a intervenção penal, mas não parece ser esse o caso presente, uma vez que não
se verificam circunstâncias que indiciem o contrário – como seriam, por exemplo, a
reiteração ou insistência de Adérito (que aqui ainda não ocorrera), o tom utilizado (que
poderia denunciar um tratamento da vítima como objecto à disposição do deleite do
agente), sinais de ameaça em caso de recusa (também não referidos nesta fase) ou quaisquer
outras circunstâncias que permitissem inferir um ambiente de insegurança para Bianca.
Em suma, uma vez que a sua conduta não é suficientemente agressiva, intrusiva ou
intimidatória para constituir um assédio sexual de que a vítima deva estar protegida,
Adérito não deveria ser punido.

2. Tendo o facto sido praticado no dia 2 de Setembro de 2016 – de acordo com o critério
do artigo 3.º do CP, segundo o qual releva o momento da conduta –, seria em princípio
aplicável a lei vigente nessa data, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do CP. Adérito seria
punido com a aplicação de pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Após o momento da prática do facto, porém, entra em vigor um novo diploma, que torna
o comportamento uma contra-ordenação.
Deixando o facto de ser punido como crime, nunca poderá ser aplicada a Adérito a pena
cominada na lei em vigor no dia 2, visto que a disposição respectiva já não está em vigor na
data do julgamento, aplicando-se os artigos 29.º, n.º 4, da CRP, e 2.º, n.º 2, do CP. Resta
saber se Adérito poderá ser punido com a coima introduzida com a nova lei.
Uma vez que, de acordo com o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, a
punição das contra-ordenações se determina pela lei em vigor no momento da prática do
facto, é proibida, por princípio, a aplicação retroactiva da norma contra-ordenacional. Em
virtude disto, alguma doutrina nega a possibilidade de aplicação da coima num caso como o
presente, pelo que Adérito deveria ser absolvido.
Outros autores concordam no essencial com o acabado de expor, ressalvando, todavia, a
eventualidade de o legislador prever expressamente um regime transitório de punição para
casos deste tipo – seja na lei que introduz a alteração no caso concreto, seja no próprio
Regime Geral das contra-ordenações. Na falta desse regime transitório, a solução seria de
novo a de absolvição. Esta posição é também assumida com frequência pela jurisprudência.
Pode ainda defender-se, todavia, que o cumprimento das exigências do princípio da
legalidade deve ser verificado com referência ao carácter punitivo das sanções em
comparação, sem que seja conferida relevância decisiva ao carácter administrativo ou penal
das normas respectivas. Assim, pode dizer-se que a aplicação retroactiva da norma contra-
ordenacional não coloca em causa os princípios que explicam a proibição da retroatividade
penal e contra-ordenacional desfavorável. Com efeito, constituindo o facto um crime na
altura em que o agente o praticou, não se descortina naquela aplicação retroactiva qualquer
violação dos princípios da segurança jurídica ou da culpa, visto que a retroactividade
implica apenas, no caso presente, a imposição de uma sanção menos gravosa do que a
cominada em momento anterior. Também os princípios da necessidade e da igualdade –
que fundamentam a retroactividade penal e contra-ordenacional favorável – se mostram
respeitados por esta solução, dado que é aplicada uma sanção que o legislador tem como
necessária no momento do julgamento, e a impunidade de Adérito seria difícil de explicar
por comparação com os agentes julgados antes de dia 20 e os que praticaram o mesmo
facto depois desta data – além de que é a única solução que o legislador nunca pretendeu
ver aplicada. Em conclusão, a concordar-se com esta posição, Gustavo seria punido nos
termos da lei nova, aplicando-se a coima.

3.
a) No que respeita à punição por coacção sexual, coloca-se a alternativa de punir Adérito
por um ou sete crimes em concurso efectivo.
Pode aventar-se a solução da punição por vários crimes com base no facto de que Adérito
repete diversas vezes carícias que, isoladamente consideradas, poderiam constituir crime de
coacção sexual. Contra isto deve afirmar-se, contudo, que tendo esses gestos ocorrido no
espaço de breves segundos e incidido sobre a mesma vítima, a conduta revela um sentido
lesivo uno. Com efeito, pode dizer-se que a criminalização de actos isolados de coacção
sexual não prejudica a noção de que esses actos podem aparecer – como sucede
efectivamente com grande frequência – repetidos diversas vezes na mesma ocasião e lugar,
sem que por isso fique prejudicada a unidade típica da conduta, e podendo, de todo o
modo, ser levada em linha de conta a pluralidade de carícias na análise da ilicitude da
conduta e consequente determinação da medida concreta da pena.
A coacção sexual aparece também como um momento prévio tipicamente acompanhante
da violação. O ataque perpetrado pelo violador envolve, pelo menos na esmagadora maioria
dos casos, a sujeição da vítima a carícias em zonas íntimas, sendo estas muitas vezes, de
resto, instrumentais da violação. Ora, deve ter-se em conta que o juízo de punição do crime
de violação inclui já uma valoração destes actos normalmente nela implicados.
Em suma, sob pena de violação da proibição de dupla valoração do mesmo conteúdo de
ilícito (decorrente do artigo 29.º, n.º 5, da CRP), Adérito deveria ser punido por um crime
de violação, devendo atender-se, no momento da determinação da medida concreta da
pena, aos actos que, isolados, constituiriam coacção sexual.
b) A fundamentação transcrita pode ser enquadrada numa certa lógica de prevenção geral
positiva e negativa. É claro o propósito de utilizar a condenação, por um lado, como
veículo para afirmar perante a comunidade a vigência da norma violada e a necessidade de
a cumprir, bem como, por outro, como meio de conformação do tipo de comportamentos
e atitudes em questão, podendo mesmo descortinar-se a prossecução de um efeito
intimidatório.
Este tipo de fundamentação, sobretudo quando viciada por uma racionalidade excludente
de outras considerações, como no caso presente, não é aceitável, visto que instrumentaliza
o indivíduo a uma psicologia das multidões e é tributária de um direito penal simbólico.
Neste sentido, ela parece incompatível com um entendimento da dignidade da pessoa
humana (artigo 1.º da CRP) que lhe associe a proibição de instrumentalização do agente
com o fim exclusivo de enviar mensagens ideológicas a públicos-alvo.
Tendo em conta o exposto, a sentença parece também não se basear em quaisquer
critérios de censura referidos à gravidade da conduta do agente. Deste modo, ela não
respeita o princípio da culpa – que proíbe que a pena seja fixada além da medida da culpa –
, decorrente dos artigos 1.º e 27.º da CRP.
Por último, também não se descortina qualquer preocupação com a possibilidade ou
necessidade de reintegração do agente na sociedade. A omissão de critérios de prevenção
especial positiva permite afirmar a violação do artigo 40.º, n.º 1, parte final, do CP.

4. Sendo referido no enunciado que o facto foi praticado em Barcelona, o critério da


territorialidade (artigo 4.º do CP) não permite atribuir competência aos tribunais
portugueses. Deste modo, tal atribuição de competência só poderia ser feita com base em
algum dos critérios complementares do artigo 5.º
Visto que nenhuma das alíneas anteriores é aplicável ao caso, só pela alínea e) do artigo
5.º, n.º 1, poderíamos afirmar a competência dos tribunais portugueses. Ora, verificando os
requisitos de aplicação desta disposição, começamos por confirmar que Adérito se
encontra em Portugal e que o facto é também punível em Espanha. Resta saber se seria
decidida a não entrega em execução do mandado de detenção europeu emitido pela
autoridade judiciária espanhola, o que terá de ser considerado atendendo à Lei n.º 65/2003,
de 23 de Agosto (Mandado de Detenção Europeu – MDE).
Dado que o facto é punido em Portugal e em Espanha, e a entrega é pedida para efeitos
de cumprimento de pena não inferior a 4 meses, o requisito da dupla incriminação está
satisfeito, cumprindo-se o disposto no artigo 2.º, n.ºs 1 e 3. Não se verifica, por outro lado,
nenhuma das causas de recusa obrigatórias previstas no artigo 11.º O facto de Adérito ser
português e residir em Portugal, porém, constitui uma causa de recusa facultativa, prevista
no artigo 12.º, n.º 1, alínea g), importando aqui mais uma vez notar que a entrega é pedida
para efeitos de cumprimento de pena.
A favor da decisão de entrega, poderia realçar-se que o facto foi praticado em Espanha,
pelo que é lá que as necessidades de prevenção geral se farão verdadeiramente sentir, além
de que a vítima é espanhola. Contra isto deve salientar-se, todavia, que não só Adérito é
português como reside habitualmente em Portugal e nada se diz sobre qualquer ligação
vivencial com Espanha. Deste modo, no que respeita às finalidades de prevenção especial,
parece preferível a opção de recusar a entrega, pois a ressocialização do agente, à partida,
poderá ser conseguida com maior sucesso mantendo-o em Portugal – podendo ser
importante também, na averiguação destes factores, levar em linha de conta o que o
próprio Adérito dissesse sobre o assunto.
Confirmando-se a recusa, os tribunais portugueses seriam competentes por aplicação do
artigo 5.º, n.º 1, al. e), do CP. Já tendo sido julgado em Espanha, Adérito não poderia ser
submetido a novo julgamento em Portugal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Assim, embora a aplicabilidade da lei portuguesa não fique prejudicada (por aplicação do
artigo 6.º, n.º 1, parte final), deve entender-se que os tribunais portugueses se limitarão a
confirmar a pena de 8 meses que Adérito tem por cumprir – até porque ela foi determinada
segundo a lei espanhola, que não apenas é a lei do lugar da prática do facto como é também
mais favorável que a portuguesa, atendendo à medida da pena (artigo 6.º, n.º 2).
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Teresa Quintela de Brito e Inês Ferreira leite, e
Mestres João Viana, Sónia Moreira Reis e António Neves
Exame – 1.ª Época – 16.01.2017
Duração: 120 minutos
Viagem de Natal

No dia 15 de dezembro de 2016, ARTUR, português, e BHARA, sua mulher, nacional de um país africano,
ambos residentes em Portugal, viajaram para o país da nacionalidade de BHARA, a pretexto de passarem o
natal com a família daquela. Na verdade, a viagem teve também como finalidade a sujeição de CHIARA,
portuguesa de 13 anos de idade e filha de ambos, à mutilação genital feminina. A excisão genital realizou-
se no país africano em causa, a 21 de dezembro, onde tal prática não é crime, e foi executada por
DHAMAD, nacional do país africano em causa, contratado no local por ERNI, a avó africana de Chiara.
Também no referido país africano, no dia 25 de dezembro, ARTUR e BHARA consumiram e cederam a
vários amigos e familiares grandes quantidades de certa droga, que aí não era considerada substância
proibida e que em Portugal passou a integrar o elenco das drogas proibidas por regulamento do Ministério
da Saúde, que entrou em vigor no dia 23 de dezembro de 2016.
Ainda no país africano, BHARA veio a interromper voluntariamente a gravidez às 12 semanas, no dia 01 de
janeiro de 2017. Em Portugal, uma nova lei que estendia a descriminalização do aborto até às 12 semanas
tinha entrado em vigor a 15 de agosto de 2016. Porém, tal lei veio a ser declarada inconstitucional com
força obrigatória geral, por violação do princípio da proporcionalidade, no dia 15 de janeiro de 2017.
Entretanto, no dia 5 de janeiro de 2017, BHARA refugiou-se em Portugal, fugindo dos maus tratos de
ARTUR. O país africano pediu a extradição de BHARA, para a julgar pelo crime de aborto, punível nesse
país com a pena de esterilização forçada.
Responda justificadamente às seguintes questões:

1. Aos factos praticados por ARTUR, BHARA e ERNI, relativos à mutilação genital forçada de
Chiara, aplica-se a lei penal portuguesa? Na resposta a esta questão comece por considerar o artigo
144.º-A/1 à luz dos princípios da interpretação em Direito Penal (6 valores).
2. Aos factos praticados por ARTUR e BHARA, relativos ao consumo e tráfico de estupefacientes,
aplica-se a lei penal portuguesa? Na resposta a esta questão deverá avaliar (também) a validade da
norma incriminadora respetiva à luz dos princípios gerais do Direito Penal (4 valores).
3. Será aplicável a lei portuguesa à interrupção da gravidez realizada por BHARA? Na resposta a esta
questão deverá ponderar (também) a aplicabilidade da lei declarada inconstitucional e a
possibilidade de extradição de BHARA e (5 valores).
4. Considerando que BHARA fora vítima de guerras tribais no seu país de origem, de onde fugira
para Portugal; ela própria tinha sido excisada pelos pais; chegara recentemente a Portugal; vivia
subjugada por ARTUR um desempregado de longa duração, vítima de violência doméstica e de
abusos sexuais durante a infância e adolescência, em guerra consigo e com o mundo, e que a
sujeitava a todo o tipo de sevícias; como deveria o Direito Penal encarar e tratar BHARA e
ARTUR? Na sua resposta considere a pertinência de alguma(s) da(s) orientações da Criminologia
que estudou na explicação dos comportamentos criminosos de A e B (3 valores).

Clareza das ideias, correção da linguagem e capacidade de síntese: 2 vls.

1
TÓPICOS DE CORRECÇÃO

1. Nenhum dos três agentes realizou a conduta descrita no art. 144º-A/1, pois nenhum mutilou genitalmente
Chiara. Artur e Bhara limitaram-se a transportar a vítima até ao país da realização do facto, sem,
aparentemente, terem sequer contactado com Dhamad (o autor material). O contacto foi estabelecido apenas
por Erni, que contratou os serviços de Dhamad, sem executar ela própria a MGF.
A interpretação permitida em Direito Penal, que toma como ponto de partida e limite inultrapassável o
sentido comunicacional do texto legal em termos de linguagem comum, obsta à integração dos
comportamentos de A, B e E no tipo incriminador do art. 144º-A, sob pena de analogia proibida (arts. 29º/1 e
3 CRP, 1º/1 e 3 CP) e consequente violação do princípio da legalidade [art. 165º/1, c) CRP].

Quanto ao âmbito de aplicação espacial da lei penal portuguesa:


Uma vez que a mutilação não foi realizada em território português, não é possível atribuir competência aos
tribunais portugueses nos termos do arts. 4.º e 7.º Resta apenas a hipótese de atribuição de competência
através de alguns dos critérios complementares do art. 5.º

Se o comportamento de A fosse típico, aplicar-se-lhe-ia o art. 5º/1 b) CP, pois residiria habitualmente em
Portugal ao tempo da prática do facto e a vítima seria portuguesa. Simplesmente como A não se encontra em
Portugal, este não teria competência para o julgar.

Relativamente a B, se o seu comportamento fosse típico, aplicar-se-ia o art. 5º/1 c) CP (princípio da


universalidade). Como B (cidadã de um país africano) se encontra em Portugal desde 5.01.2017 e não poderia
ser extraditada ou entregue, desde logo porque a sua extradição ou entrega não foram solicitadas pela prática
deste crime, poderia ser-lhe aplicada a lei penal portuguesa ao abrigo do art. 5º/1 c) CP.
Mesmo que o comportamento de B fosse típico face ao art. 144º-A/1, a conjugação do disposto nos n.ºs 2 e 3
do art. 6.º levaria a que a lei portuguesa não fosse aplicável, dado que, no país onde o facto praticado, este não
constitui crime – o que frustra a lógica de universalidade subjacente à al. c) do art. 5.º, n.º 1. Todavia, o n.º 3
do art. 6º/2 opera como uma norma penal positiva, porque fundamentadora da pretensão punitiva do Estado
português [arts. 29º/1 e 3 e 165º/1 c) CRP; 1º/1 e 3 CP].

Para E (cidadã estrangeira não residente em Portugal) valeria a mesma solução que para B, com a única
diferença de que E não se encontra em Portugal. Logo, nunca seria solicitada a Portugal a sua extradição ou
entrega pela prática deste crime, ainda que o seu comportamento fosse típico face à lei penal portuguesa.

De valorizar na resposta a esta questão, ao abrigo da ponderação global, a referência à eventual possibilidade de
punir A, B e E pela prática de actos preparatórios da MGF (art. 144º-A/2 CP).
Como os actos preparatórios realizados por A e B o foram ao menos parcialmente em Portugal (art. 7º/1 CP),
a lei penal portuguesa ser-lhes-ia aplicável por força do princípio da territorialidade. Caso fosse pedida a sua
extradição ou entrega, importaria considerar os arts. 33º/ 3 ou 5 CRP (quanto a A), 12º/1, al. h) i), 13/1 b)
Lei n.º 65/2003; e 32º/1 a) e b) Lei 144/99.
Relativamente a E, apenas seria de considerar o art. 5º/1 c) CP, nos termos já referidos, já que os seus actos
preparatórios ocorreram no país africano. Recorde-se que E não se encontra e dificilmente se encontraria em
Portugal.

2. O consumo e tráfico de estupefacientes foram inteiramente realizados no país africano, onde nenhum
desses factos constituiria crime, já que a substância em causa não é aí legalmente proibida.

Em Portugal, discute-se a qualificação jurídica da detenção de droga para consumo em quantidade que exceda
a necessária para o consumo médio individual durante 10 dias: contraordenação (art. 2º/1 Lei 30/2000);
crime de consumo (art. 40º/2 DL 15/93, apesar do disposto no art. 28º Lei 30/2000); ou crime de (perigo) de
tráfico [não legalmente previsto – arts. 29º/1 e 3, e 165º/1 c) CRP], apesar da eventual cominação penal
implícita vertida no art. 2º/2 Lei 30/2000?

2
A lei portuguesa só poderia ser aplicada a A ao abrigo do princípio da nacionalidade activa, mas não se
verificam logo as condições i) e ii) do art. 5º/1 e) CP (não se encontra em Portugal e o facto não é punível no
país africano em causa).
Quanto ao consumo, a lei portuguesa só poderia ser aplicada a B por força do princípio da administração
supletiva da justiça portuguesa [art. 5º/1 f) CP], mas não foi pedida (nem o seria pelo país da prática do facto) a
extradição de B por esse facto, como exige esta alínea.

No que respeita ao tráfico de droga, a norma portuguesa relativa ao tráfico deste produto estupefaciente
configura uma norma penal em branco (quanto à previsão), que é material e organicamente inconstitucional,
por violação do art. 112º/5 (o regulamento não é acto legislativo face ao art. 112º/1, mas é chamado a integrar
a norma incriminadora do tráfico de estupefacientes, definindo um elemento constitutivo do ilícito típico de
tráfico: a proibição legal da substância em causa); dos princípios da legalidade, tipicidade e reserva de lei (arts.
165º/1 c), 29º/1 e 3 CRP, e 1º/1 CP); da culpa por ausência de prévia proibição penal válida da conduta (arts.
1º, 25º/1 e 27º/1 CRP); e da função de determinação de condutas da norma penal.

Quanto ao âmbito de aplicação espacial da lei portuguesa ao crime de tráfico de droga:


(i) A A só poderia aplicar-se o princípio da nacionalidade activa [art. 5º/1 e) CP], mas não se verificam
logo as condições i) e ii), já para não referir a inexistência de incriminação válida em Portugal para
a conduta em causa [art. 31º/2 Lei n.º 144/99, por confronto com o art. 2º/2 e) Lei 65/2003].
(ii) Face a B valeria nesta sede o que se disse quanto à aplicação do art. 5º/1 f) CP ao consumo de
estupefacientes.

3. A IVG foi praticada no país africano, logo a lei penal portuguesa só poderia ser aplicada a B ao abrigo do
art. 5º CP.
À data da prática do facto (1.01.2017) vigorava em Portugal uma cláusula de não punibilidade da IVG realizada
por livre opção da mulher até às 12 semanas de gestação. Logo B beneficiaria da aplicação desta norma (arts. 3º
e 2º/1 CP).
Posteriormente, esta norma vem a ser declarada inconstitucional com força obrigatória geral. O que, nos
termos do art. 282º/1 CRP, tem como consequência a repristinação do actual art. 142º/1 e) CP e a
punibilidade da IVG realizada por B às 12 semanas de gestação. Tudo se passa como se a norma
inconstitucional (nula) nunca tivesse entrado em vigor, de modo que não pode falar-se de uma sucessão de
normas penais, em que L1 seria a mais favorável (arts. 29º/4, 1.ª parte, CRP, e 2º/4 CP).
Também não pode invocar-se a ressalva do art. 282º/3, 1.ª parte, CRP, porque B nem sequer tinha sido julgada
aquando da declaração de inconstitucionalidade.

Neste quadro, são possíveis duas soluções:


(i) Aplicar a norma inconstitucional mais favorável em vigor no momento da prática do facto, mediante
aplicação analógica dos arts. 29º/4, 1.ª parte, e 282º/3, 2.ª parte, CRP, por força dos princípios da
máxima restrição das penas e medidas de segurança (art. 18º/2); da igualdade face aos agentes que
beneficiaram da aplicação da norma inconstitucional mais favorável (art. 13º); da confiança
jurídica geral na validade das normas estatais e da auto-vinculação do Estado ao seu próprio
Direito, ínsitos no princípio do Estado de Direito democrático (art. 2º CRP).
(ii) Aplicar a norma repristinada, por se entender que a questão da validade das normas precede
logicamente a da aplicação da lei mais favorável (art. 3º/3 CRP) e que os tribunais estão impedidos
de aplicar normais inconstitucionais (art. 204º CRP), admitindo que as legítimas expectativas do
agente quanto à não punibilidade do facto sejam tuteladas por via do regime do erro (não
censurável) sobre a proibição (art. 17º/1 CP).

No que concerne ao âmbito de aplicação espacial da lei penal portuguesa, não pode sujeitar-se B ao princípio
da nacionalidade passiva [art. 5º/1 e) CP], porque o feto não tem nacionalidade portuguesa (só a adquire com
o nascimento) e é proibida a aplicação analógica deste preceito, que opera como uma norma penal positiva
(fundamentadora da pretensão punitiva do Estado português) – arts. 29º/1 e 3 CRP e 1º/1 e 3 CP.

3
Só poderia aplicar-se a B a lei penal portuguesa ao abrigo do art. 5º/1 f) CP: B encontra-se em Portugal; a sua
extradição foi requerida pelo país da nacionalidade, mas esta não pode ser concedida por duas razões
fundamentais:
(i) Não se verifica a exigência da dupla incriminação (art. 31º/2 Lei n.º 144/99), para quem sustente a
aplicação da lei inconstitucional mais favorável;
(ii) O facto é punível pelo país africano em causa com uma pena de que pode resultar uma lesão
irreversível da integridade física de B [art. 144º b) CP português] – arts. 33º/6 CRP e 6º/1 e) Lei n.º 144/99.
Portugal só poderia extraditar B, caso o país africano, por acto irrevogável e juridicamente vinculativo das
autoridades internas, tivesse previamente comutado a pena de esterilização forçada [art. 6º/2 a) Lei n.º
144/99].
Mas, mesmo que assim sucedesse, Portugal continuaria a não poder extraditar B por ausência de dupla
incriminação da IVG em Portugal, certamente quando antes se sustentou a aplicação da norma
inconstitucional mais favorável, menos claramente se se defendeu a aplicação do regime do erro não censurável
sobre a proibição, já que o art. 31º/2 Lei 144/99 parece referir-se à pena em abstracto e não à punição (ou não
punição) em concreto.

5. As três principais orientações da Criminologia completam-se na explicação do comportamento


criminoso de A e B.
(i) Dentro da visão do crime como acontecimento individual assume especial destaque no caso
concreto a psicologia cognitiva-comportamental, que permite compreender a quase normalidade com
que A certamente encara os maus-tratos a B e a C, e com que B se relaciona com a MGF da própria
filha.
Dentro desta linha relevam, no caso de A, as teorias da falta de autocontrolo, que associam o crime à
impulsividade e à incapacidade de diferir a gratificação (GOTTFREDSON/HIRSCHI) e aquelas que
atendem ao processamento da informação pelo indivíduo. O passado de A parece tê-lo transformado
num indivíduo agressivo, com uma percepção limitada das situações e das soluções (alternativas à
violência) para os conflitos interpessoais, podendo, inclusive incorrer em distorções cognitivas quanto
à sua autoria e responsabilidade pelos maus-tratos a B e C.
Relativamente a B, a sua história pessoal de subjugação aos pais, o contexto de guerra e insegurança
em que viveu e a situação de dependência emocional face a A, certamente influem no seu processo
cognitivo quanto à existência de alternativas ao respectivo comportamento perante a filha e à relação
com A, explicam a sua (cega) submissão a este e o desespero (e receio pelo nascituro) certamente
suscitados pela nova gravidez, fruto de uma relação tão violenta.
Todas estas teorias apontam para uma intervenção penal orientada para uma prevenção especial
positiva, alicerçada na compreensão de si mesmo, na gestão das emoções e na proposta de alteração de
modelos de raciocínio, de avaliação e de decisão de conflitos.

(ii) Do quadrante da sociologia criminal, na linha do interaccionismo, a teoria da associação


diferencial (SUTHERLAND) ajuda a compreender os comportamentos de A no que respeita aos maus
tratos a B e C, e de B relativamente à MGF da filha e, porventura, também quanto à IVG (fragilidade
da vida humana e sua pouca importância em certos contextos).
Com efeito, segundo SUTHERLAND, o comportamento criminoso aprende-se em interacção dentro
de grupos íntimos, através de contactos pessoais e em função da intensidade, frequência e precocidade
de certos contactos. Mais: essa aprendizagem inclui técnicas, motivos e atitudes. Ora, se o crime se
aprende em interacção, também pode desaprender-se em interacção, de modo que a primazia volta a
caber a uma intervenção penal orientada para a prevenção especial positiva.

No caso de B relevaria igualmente a ideia de conflitos de cultura, especialmente a teoria de SELLIN


dos conflitos entre culturas externamente diversas, que são conflitos de normas de conduta afectando
pessoas como B, que se encontram em situações de transição de culturas. O que apontaria para a
possibilidade de uma exclusão ou pelo menos atenuação da culpa de B relativamente à MGF.

4
Na linha da Sociologia Criminal inaugurada por DURKHEIM, a visão de MERTON pode ajudar a
compreender o consumo e tráfico de estupefacientes, sobretudo por parte de A, bem como a sua opção
pela MGF da filha. Para MERTON, o crime é o produto de uma certa estrutura sociocultural,
caracterizada pelo desfasamento entre objectivos culturais de riqueza e bem-estar para todos e a escassez
dos meios institucionais para os alcançar. O que geraria indiferença aos valores (anomia) e mecanismos
de adaptação individual, com especial destaque no caso de A (desempregado de longa duração) para a
rebelião (rejeição das metas da cultura ocidental e dos seus meios institucionais).
Para esta perspectiva, o crime constitui um produto da estrutura social; como tal pode ser evitado,
actuando sobre essa estrutura através de políticas públicas.

(iii) Do quadrante do labeling approach (concepção do crime e do criminoso como uma construção social
por instâncias formais e informais de controlo) e do interaccionismo simbólico destaca-se, no caso
concreto, os contributos de ERVING GOFFMAN e PAUL ROCK, que relacionam o comportamento
criminoso com a construção de si mesmo em interacção social, vendo tal construção como um
acontecimento dramatúrgico, no qual as pessoas assumem papéis e identidades diferentes conforme as
expectativas, os contextos ou as reacções dos outros. Tanto A como B foram forçados a assumir
perante os pais o papel de vítimas durante a infância e adolescência, desenvolvendo uma baixíssima
autoestima e, no caso de A, uma enorme necessidade de afirmação intersubjectiva (agravada pela
situação de desempregado de longa duração) que explicam de forma especialmente clara a sua
posterior assunção do papel de agressor de B e C e de “rebelde” face à cultura ocidental.
Esta corrente aponta para uma prevenção do crime (em especial da deviance secundária) através da
reorientação da narrativa sobre si e sobre a sua própria vida (BRAITHWAITE).

Lisboa, 19 de Janeiro de 2017.

5
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Helena Morão, Teresa Quintela de
Brito, e Inês Ferreira leite, e Mestre João Viana
Exame - 26 de fevereiro de 2016 – 14h
Duração: 90 minutos

MARTA, portuguesa, residente habitual em Portugal, grávida, encontra-se de férias na


República da Irlanda quando foi violentamente atacada e violada. Apos 4 semanas em
coma induzido, MARTA recupera a consciência no dia 25 de janeiro de 2016, sendo
informada do seguinte: encontra-se grávida; não se poderá ausentar do país, por razões de
saúde, nas próximas 12 semanas. MARTA pretende interromper a gravidez, mas é também
informada de que na República da Irlanda o aborto apenas pode ser legalmente feito em
caso de perigo para a vida da mãe, sendo o respetivo crime punido com pena até 6 meses
de prisão. Desesperada, MARTA pede ajuda a uma enfermeira, AILEEN. No dia 31 de
janeiro, compadecida com o sofrimento da paciente, AILEEN fornece a MARTA, sem que
os médicos se apercebam, um medicamento abortivo, que MARTA ingere no dia seguinte.
No dia 2 de fevereiro, MARTA sofre uma forte hemorragia, vindo a detetar-se que a mesma
consistia num aborto.
1. Admitindo que MARTA já se encontra de novo em Portugal e ponderando os princípios
constitucionais penais relativos à interpretação e aplicação da lei penal no tempo e no
espaço, teriam os tribunais portugueses competência para julgá-la pelo crime de aborto
(arts. 140.º a 142.º do CP)?
O facto foi praticado fora do território nacional (arts. 4.º e 7.º do CP). A aplicação da alínea b) do art. 5.º
estaria condicionada à respetiva interpretação, à luz dos contributos que a doutrina oferece neste âmbito. A
entender-se que a alínea b) se refere apenas aos casos de fraude à lei, não tendo havido qualquer
intencionalidade de fraude por parte de M aquando da deslocação à Irlanda, a referida alínea não seria
aplicável. Admitindo que se trata apenas de um reflexo do princípio da maior proximidade, deveria ainda
ponderar-se a interpretação da expressão “contra portugueses”, uma vez que o embrião não beneficia de
nacionalidade portuguesa.

Ainda que estivesse excluída a aplicabilidade da alínea b), deveria ponderar-se a aplicação da alínea e) do art.
5.º, atendendo aos seus pressupostos e requisitos, uma vez que a conduta em questão constitui crime no local
da prática do facto.

Em ambos os casos, deveria ainda ponderar-se a aplicação analógica da alínea d) do n.º 1 do art. 142.º do CP,
uma vez que M não poderia, em tempo útil, recorrer a um estabelecimento hospitalar legalmente autorizado.

2. Poderia o Estado Português emitir mandado de detenção europeu para obter a entrega
de AILEEN para ser julgada pelo crime de aborto? Deveria a Irlanda cumprir o mandado?
A República da Irlanda, sendo estado-membro da UE, é abrangida pelo regime do mandado de detenção
europeu. Não se tratando de crime previsto no n.º 2 do art. 2.º da LMDE, cumpre verificar os termos da
dupla incriminação. O art. 2.º, n.º 1, da LMDE, exige que o crime em causa seja punível com pena igual ou
superior a 12 meses de prisão de acordo com a lei do Estado de emissão, o que se verifica; salvo caso se tenha
entendido na questão anterior pela aplicação analógica da alínea d) do n.º 1 do art. 142.º do CP.

Nos termos do art. 12.º, aplicável correspondentemente na perspetiva irlandesa, conclui-se que a Irlanda
poderia recusar a entrega de A com fundamentos na alínea h).

3. Imagine que no dia 1 de fevereiro de 2016 era alterada a moldura penal do crime de
aborto na lei Irlandesa, a qual passava a prever uma pena até 3 anos de prisão. Admitindo
que a Irlanda contém regras semelhantes às constantes dos nossos artigos 29.º da CRP e 1.º
a 3.º e 140.º, n.º 2, do CP, poderia AILEEN ser aí condenada ao abrigo desta lei?
Nos termos do art. 3.º do CP, o facto praticado por A - entrega da medicação a M – ocorreu no dia 31 de
janeiro, sendo irrelevante o momento em que venha a ocorrer o resultado (expulsão do feto). Nos termos do
n.º 1 do art. 2.º do CP e art. 29.º, n.º 1, da CRP, a lei aplicável é a lei que se encontra em vigor no momento
da prática do facto. Apenas podem ser aplicadas retroativamente leis posteriores se forem mais favoráveis, o
que não era o caso. Por ser mais gravosa, implicando um aumento da moldura legal, a lei de fevereiro não
poderia ser aplicada a A.

4. Imagine que em março de 2016 era aprovada na Irlanda a seguinte lei: «Não é punível a
interrupção da gravidez feita até às 10 semanas quando a mesma seja o resultado da prática
de crime contra a liberdade sexual da mulher grávida, desde que haja parecer positivo da
comissão de ética do estabelecimento hospitalar onde o procedimento seja realizado».
Admitindo que a Irlanda contém regras semelhantes às constantes dos nossos artigos 29.º
da CRP e 1.º a 3.º do CP, poderia MARTA ser aí condenada pelo crime de aborto?
Nos termos do art. 29.º, n.º 4, da CRP, e 2.º, n.º 2, do CP, são aplicáveis leis posteriores quando mais
favoráveis para o agente. A nova lei tem um efeito despenalizador face ao comportamento de M, contudo
esta não tinha obtido o parecer prévio da comissão de ética, o que implica que se tome em consideração as
circunstâncias e o sentido da intervenção legislativa.

Trata-se de um problema de alteração do tipo incriminador por adição de elementos especializadores em


relação à lei antiga. Apesar de não ter havido aprovação da comissão de ética, deve entender-se que há uma
descriminalização retroativa total e não meramente parcial, independentemente da aprovação pela Comissão
de ética. De outra forma, o juízo de manutenção da punibilidade do comportamento passado de M após a
entrada em vigor da lei nova fundar-se-ia apenas na censura retroativa por uma opção que não estava
disponível no momento da prática do facto (conjugação do princípio da proibição da retroatividade
desfavorável com o princípio da culpa).

5. Imagine que em agosto de 2015, um grupo de deputados da Assembleia da República


apresentava um projeto de lei no sentido da eliminação das alíneas c) a e) do n.º 1 do art.
142.º do CP. Pronuncie-se sobre o referido projeto à luz dos princípios constitucionais em
matéria penal.
Deverá ser feita referência à jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa aos referendos à
despenalização da IVG.

Devem ser referidos os seguintes tópicos: existência de dois bens jurídicos em confronto (vida intrauterina e
direito à livre realização/saúde da mulher grávida); princípio da proporcionalidade (necessidade da
intervenção, que estará preenchido, salvo no caso dos fetos inviáveis, pela própria ausência de bem jurídico;
adequação da intervenção, que não está preenchido, uma vez que os casos das alíneas c) a e) geram uma
pressão insustentável no sentido da realização do aborto, não se revelando a incriminação apta na proteger o
bem jurídico, pelo contrário, colocando em perigo a saúde e a vida das mulheres que recorram à
clandestinidade; e proporcionalidade srticto senso, que não estaria preenchido face a alguns dos fundamentos
que seriam eliminados, uma vez que a aplicação de uma pena de prisão à realização do aborto nos casos de
mal formações graves do feto ou na sequência de trauma relacionado com a vitimização por crime sexual
seria manifestamente desproporcional).

Cotação: 1. (4 valores); 2. (3 valores); 3. (3 valores); 4. (4 valores); 5. (4 valores); 2 valores


para a clareza e correção da exposição.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turma A
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ªs Dr.ªs Helena Morão, Teresa Quintela de Brito,
Inês Ferreira Leite e Mestre João Matos Viana
Exame – 17 de Fevereiro de 2016
Duração: 90 minutos

Tópicos de Correcção

1. Identificação de um problema de conceito material de crime (princípio constitucional da


necessidade da pena).
Identificação do bem jurídico (tratar-se-á apenas de um bem jurídico ideológico, incompatível
com o princípio do Estado laico e pluralista ou é possível determinar um ou mais bens jurídicos
precisos e concretos?) e reflexão acerca da eventual preponderância de outros direitos em
conflito (v.g., autonomia individual, direito à família) ou da relevância da proibição de
discriminação.
Reflexão, ainda, sobre a necessidade de punir.

2. A lei x/2015 pune no artigo 1.º, n.º 1, a “concretização” de contratos de maternidade de


substituição, parecendo abranger apenas a “execução” desses contratos e não a sua mera
celebração. Apesar de António ter disponibilizado material biológico destinado à concepção de
Diana através de maternidade de substituição, fê-lo fora do território nacional (art. 7.º CP), não
podendo ser punido em Portugal por não preencher nenhuma das alíneas do n.º 1 do art. 5.º (o
facto não é punido nos EUA, para efeitos da alínea e), nem se trata de crime contra português,
para efeitos da alínea b).

3. Bernardo conhece Clarissa através do Facebook, que se disponibiliza para servir de barriga-de-
aluguer. Bernardo “promove”, assim, “por qualquer meio” a maternidade de substituição, mas é
duvidoso que o n.º 2 do artigo 1.º da Lei x/2015 cumpra os requisitos constitucionais de
tipicidade e ofensividade, tendo em conta a sua elevada imprecisão típica e abrangência de
comportamentos muito distantes da lesão do bem jurídico. Esta promoção ocorre em território
nacional, pelo que seria aplicável o princípio da territorialidade (art. 4.º CP) e apenas a lei penal
portuguesa.

4. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral: 282/3 CRP (não
ressalva do caso julgado inconstitucional desfavorável) e 2/2 por analogia (efeito análogo à
descriminalização).

5. Problema de alteração do tipo incriminador por adição de elementos especializadores em


relação à lei antiga. À luz da lei nova a maternidade de substituição apenas merece punição se for
remunerada. Desta forma, não obstante António e Bernardo terem recorrido à maternidade de
substituição onerosa, deve entender-se que há uma descriminalização retroactiva total e não
meramente parcial, independentemente da natureza remunerada ou não dos comportamentos.
De outra forma, o juízo de manutenção da punibilidade dos comportamentos passados de
António e Bernardo após a entrada em vigor da lei nova fundar-se-ia apenas na censura
retroactiva por uma opção que não estava disponível no momento da prática do facto
(conjugação do princípio da proibição da retroactividade desfavorável com o princípio da culpa).

No entanto, admite-se a solução da existência de uma sucessão de leis penais e consequente


aplicação do regime concretamente mais favorável (art. 29º/1, 3 e 4, 1. ª parte, CRP, e 2º/4 CP).
Com efeito, L1 proibia e punia toda a maternidade de substituição, independentemente de ser
gratuita ou onerosa. Logo, a onerosa já estava incluída no tipo de L1. Apesar de esta não ser
elemento explícito do tipo, sempre seria considerada na determinação da culpa, das exigências
preventivas e da pena concreta nos termos do art. 71º CP, que manda atender a todas as
circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Em face disto, não há impossibilidade legal de ponderação do carácter oneroso ou gratuito da
maternidade de substituição, nem violação do princípio da culpa, nem retroactividade in pejus de
L2, pois o art. 2º/4 CP impõe a aplicação do regime concretamente mais favorável. Além disso,
os agentes realizaram tanto o tipo de L1, como o de L2, verificando-se uma continuidade
normativa-típica do facto concreto ante as leis que se sucedem (art. 2º/4 CP). L2 apenas explicita
um elemento que já estava implícito em L1 e que sempre seria considerado por força do art.
71º/1 e 2 als. a), b) e c) CP. Assim sendo, aplicar-se-ia a lei concretamente mais favorável, que
tanto poderia ser L1 como L2.
Direito Penal I — 3.º Ano
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Helena Morão, Teresa Quintela de
Brito, e Inês Ferreira Leite, e Mestre João Matos Viana
Exame final - 11 de Janeiro de 2015
Duração: 120 minutos

Hipótese

No dia 1 de Janeiro, PEDRO e INÊS, portugueses e residentes em Lisboa, viajam até ao


Afeganistão para adquirir um carregamento de ópio para venda. Lá chegados, adquirem o produto a
AHMED, traficante local, no dia 2 de Janeiro e guardam o mesmo num compartimento secreto da
mala de viagem de PEDRO.
A essa data, de acordo com o artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, quem «(…) oferecer, puser à venda,
vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar,
exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver» ópio, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
A essa data, a Lei x/2011 previa que, no crime de tráfico de estupefaciente, o arguido que
confessasse tinha uma atenuação obrigatória de um ano no limite máximo da pena aplicável.
Quando se preparavam para partir, no dia 4 de Janeiro, CHANDA, filha de AHMED, pede ajuda
para fugir, uma vez que estava com receio que a sua homossexualidade já tivesse criado suspeitas
junto da polícia local. PEDRO e INÊS ajudam CHANDA a apanhar o voo para Lisboa.
Fazendo escala de 12 horas em Londres, INÊS, que estava muito nervosa com a demora,
discute com PEDRO , devido ao facto de este estar a ser “muito simpático” com CHANDA, e dá-lhe um
estalo. A cena é filmada pelas câmaras de vigilância do aeroporto, com data de 5 de Janeiro.
À chegada a Lisboa, no dia 6 de Janeiro, já depois de recolherem a sua bagagem que trazia o
ópio, PEDRO e INÊS são detidos quando se dirigiam para a paragem de táxis, bem como CHANDA.
No meio do ajuntamento popular que se formou para ver a detenção, BERNARDO gritou para
CHANDA, que era uma mulher especialmente bonita: «ó linda, eu contigo dava outro uso a essas algemas!».
No dia 5 de Janeiro, entrou em vigor em Portugal o DL y/2016, que aumentava a pena de
prisão do tráfico de estupefaciente do citado artigo 21.º do DL 15/93 para 6 a 14 anos. Para além
disso, criava um novo crime de tráfico de estupefaciente agravado, no novo artigo 21.º-A do
mesmo diploma, que previa uma pena de prisão de 8 a 16 anos quando o agente tivesse recebido o
estupefaciente em causa por acto praticado fora de Portugal. O Reino Unido sempre estabeleceu a
pena de prisão de 2 a 10 anos para o tráfico de estupefacientes.
O Reino Unido pede a Portugal a entrega de INÊS para a julgar pelo crime de ofensa à
integridade física simples, sendo certo que a lei britânica prevê uma pena de 2 anos de prisão para o
efeito, e a entrega de PEDRO e INÊS para os julgar pelo crime de tráfico de estupefacientes. O
Afeganistão pede a entrega de CHANDA para a julgar pelo crime de homossexualidade, punida no
Afeganistão com pena de morte.
No dia 7 de Janeiro, a norma constante da Lei x/2011 é declarada inconstitucional.

Responda às seguintes questões:


1 — Portugal tem competência para julgar PEDRO e INÊS por tráfico de estupefacientes? Qual seria
a lei aplicável?
2 — Sem prejuízo da resposta anterior, admita que ambos eram julgados em Portugal, de acordo
com a lei portuguesa. Poderiam beneficiar hoje da Lei x/2011?
3 — Portugal tem competência para julgar INÊS pelo crime de ofensa à integridade física simples?
Qual seria a lei aplicável?
4 — Portugal pode entregar CHANDA ao Afeganistão?
5 — BERNARDO poderia ser julgado em Portugal pela crime de importunação sexual previsto no
artigo 170.º do CP?
6 —Imagine que INÊS é condenada, em Portugal, numa pena de dois anos de prisão, pelo crime de
aquisição de moeda falsa [artigo 266.º/1/a), cuja moldura legal era de pena de prisão até 3 anos],
por ter sido apanhada, no momento da detenção, com 1000 euros falsificados. Passados dois meses
de ter começado a cumprir pena, a lei é alterada no sentido de prever uma pena máxima de dois
anos para o referido crime. Quid juris?

Cotação: 3 valores por questão e 2 valores para a clareza e correção da exposição.

1
TÓPICOS DE CORREÇÃO:

1. Nos termos dos arts. 4.º e 7.º do CP, basta que uma das parcelas da execução do crime ou seu
resultado ocorram em Portugal, sob qualquer forma de comparticipação. O crime de tráfico de
estupefacientes constitui uma infração permanente (ou de trato sucessivo/execução reiterada,
consoante o entendimento). Uma vez que a posse com intenção de distribuição ocorreu também
em território nacional, há competência dos tribunais portugueses, sendo aplicável, em exclusivo, a
lei portuguesa.
A execução do crime em questão iniciou-se, pelo menos, a 2 de Janeiro, tendo apenas cessado
quando os agentes foram detidos, a 6 de Janeiro. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º do CP, a L2
(moldura de 6-14 anos), tendo entrado em vigor a 5 de Janeiro, pode ainda ser aplicada aos agentes.
Já a L3 (novo tipo, com elemento especializador e moldura de 8-16 anos) não poderá ser aplicada
aos agentes. Contendo um novo elemento especializador – receção do estupefaciente fora do
território nacional – que é pressuposto da moldura penal mais elevada, esta lei apenas se pode
aplicar (sem retroatividade proibida) aos factos praticados posteriormente à sua entrada em vigor.
Uma vez que a aquisição do estupefaciente fora de Portugal ocorreu a 2/3 de Janeiro, a L3 não se
aplica ao abrigo dos arts. 29.º, n.º 1, da CRP e 2.º, n.º 1, do CP.
É de admitir a aplicação ultra-activa de L1 mais favorável, por ser a lei em vigor ao tempo em que
se iniciou a consumação do crime de tráfico de estupefacientes, apesar de em rigor se não estar
perante uma sucessão de leis penais (sempre posterior à prática do facto nos termos do art. 3º CP).
Daí que não possa aplicar-se directamente o art. 2º/4 CP.
Chega-se a esta solução mediante aplicação directa dos arts. 29º/4, 1.ª parte (a conduta também se
iniciou e decorreu na vigência de L1, aliás, na sua maior parte, pois L2 só entrou em vigor a 5 de
Janeiro e os agentes foram detidos logo no dia 6 de Janeiro), 18º/2, 2.ª parte (mínima intervenção
ou máxima restrição do DP), ambos da CRP, e arts. 2º/1 (L1 é uma das leis em vigor ao tempo da
prática do facto) e 2º/4, 1.ª parte, por analogia (permitida porque favorável ao agente), ambos do
CP.
A favor desta solução pode invocar-se, ainda, a função de determinação de condutas da norma
penal. Norma que se dirige ao agente com especial intensidade justamente no momento em que
este se decide pela realização da conduta e inicia a execução da mesma. A partir deste momento,
basta que o agente mantenha a decisão tomada, sem necessidade de renovar o processo decisório.

2. Trata-se de um caso de inconstitucionalidade de lei penal mais favorável, que se encontra em


vigor no momento da prática do facto. Nestes casos, apesar dos efeitos de declaração de
inconstitucionalidade (não há ainda qualquer caso julgado penal que afete estes agentes) implicarem
a eliminação da lei inconstitucional do elenco de leis válidas a ponderar numa sucessão, porque foi
de acordo com esta lei que o agente se orientou, existem legítimas expectativas a ponderar. Assim,
parte da doutrina (Taipa de Carvalho) entende que o art. 29.º/4 pode incluir leis penais
inconstitucionais, prevalecendo então estas, se forem de conteúdo mais favorável ao arguido.
Fernanda Palma também defende a aplicação da lei inconstitucional mais favorável, não tanto por
força do art. 29º/4 (não há uma verdadeira sucessão de leis penais quando uma delas é nula), mas,
sobretudo, atendendo à necessidade de articular os arts. 282º/1, 204º (que, aliás, também remete
para os princípios constitucionais) e 29º/4 CRP à luz dos princípios do Estado de Direito
democrático (art. 2º CRP). Estes princípios impõem a vinculação do Estado ao seu próprio Direito,
por cuja inconstitucionalidade é o único responsável. Pelo contrário, Rui Pereira defende a
aplicação da lei repristinada, mas com uma atenuação de pena se, adicionalmente, o agente
conhecer a existência da lei inconstitucional, mas desconhecer a sua inconstitucionalidade.

3. Está preenchida a alínea b) do n.º 1 do art. 5.º do CP (portugueses, aqui residentes, e aqui foram
encontrados), admitindo, contrariamente ao que defende Taipa da Carvalho, que a aplicação desta
alínea não depende de um requisito de fraude à lei. Nos termos do art. 6.º, n.º 3, fica excluída a
ponderação da lei do local da prática do facto, sendo aplicada, em exclusivo, a lei portuguesa.
Porque a alínea b) não depende de ser impossível entregar a arguida ao país que represente o local
da prática do facto, e tratando-se de competências concorrentes entre Portugal e o Reino Unido,
Portugal poderia recusar o MDE, arts. 12.º/1 b) e 13º/b) da LMDE. Reforça-se aqui a ratio de
maior proximidade com a ordem jurídico-penal portuguesa da alínea b), sendo que, aliás, a execução

2
no RU corresponde a um dos casos de execução acidental do crime, justificando-se plenamente a
competência penal dos tribunais portugueses e a aplicação exclusiva da lei nacional.

4. Trata-se de uma conduta que não constitui crime em Portugal, pelo que não há competência
penal dos tribunais portugueses. Pela mesma razão, não poderia ser concedida a extradição de C,
nos termos do art. 31.º, n.º 2, da LCJIMP. Estavam ainda em causa as alíneas b) e e) do n.º 1 do art.
6.º da LCJIMP: perseguição em função da orientação sexual e pena de morte. Ainda que se
verificassem os requisitos relativos à superação da pena de morte (garantia jurídica internamente
vinculativa), os outros dois vícios não seriam supríveis.

5. A questão coloca um problema de interpretação e aplicação (em sentido lato) da norma ao caso
apresentado. A norma proíbe a formulação de “propostas de teor sexual”, não sendo certo que a frase
em causa caiba neste conteúdo. A aceitar-se, em termos rigorosos, a posição de que a interpretação
admissível em Direito Penal está limitada pelo sentido possível das palavras, e caso se fizesse uma
interpretação literal estrita do termo “proposta” apelando ao seu sentido jurídico de “convite a
contratar”, ficaria excluída a tipicidade. Fazendo uma interpretação literal lata – ainda respeitando o
sentido possível das palavras e um mínimo de correspondência com o texto legal – podem aí
incluir-se propostas, sugestões ou alvitres, já que todas estas palavras podem ser lidas como
sinónimas do termo “proposta”. Em qualquer caso, sempre faltaria determinar se a frase «ó linda, eu
contigo dava outro uso a essas algemas!» apresenta conotação sexual objetiva. Sendo certo que há aqui um
sentido possível de utilização sexual das algemas, esta não é o único sentido admissível da frase
emitida pelo agente, o que permitiria que se colocasse seriamente em causa a tipicidade.
Por fim, atendendo aos princípios da ofensividade e intervenção mínima do Direito Penal –
seguindo uma orientação de acordo com a qual o bem jurídico exerce ainda um função relevante na
delimitação e interpretação do tipo incriminador – parece claro que estamos fora da tipicidade do
art. 170.º do CP. O crime de importunação sexual tem como bem jurídico a liberdade sexual,
censurando comportamentos que forcem a vítima a ver-se envolvida num contexto sexual não
desejado com o agente, quer porque é forçada a um “contacto sexual” não desejado, quer porque é
importunada com propostas de teor sexual explícito (ordinárias/pornográficas). A frase em questão
não implica este envolvimento forçado num contexto sexual explícito não desejado, com um
mínimo de gravidade e seriedade que justifique a intervenção penal, nem a qualificação social como
“importunação sexual”. Expressão que transmite a necessária ofensividade da conduta
relativamente à liberdade sexual.

6. I encontra-se a cumprir uma pena de 2 anos de prisão – cumpriu apenas 2 meses – numa
moldura de pena até 3 anos de prisão, e a lei nova prevê como limite máximo os 2 anos de prisão.
Está em causa uma sucessão de leis stricto senso, em que apenas é alterada a estatuição da norma
incriminadora, nos termos do n.º 4 do art. 2.º do CP e n.º 4 do art. 29.º da CRP. Não se trata de um
caso da parte final do n.º 4 do art. 2.º, pois o novo limite máximo não se encontra ainda alcançado.
Assim, a arguida poderá requerer a reabertura da audiência de julgamento para aplicação da lei nova
mais favorável, nos termos do art. 371.-A do CPP. Tal reabertura visa apenas recalcular a medida
concreta da pena em função da nova moldura legal e, respeitados estes limites, não implica qualquer
violação do ne bis in idem (n.º 5 do art. 29,º da CRP).

3
Direito Penal I. Dia — 3.º Ano
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Helena Morão, Teresa Quintela de Brito,
e Inês Ferreira Leite, e Mestre João Matos Viana
Exame final. Coincidências - 22 de Janeiro de 2016
Duração: 120 minutos

Hipótese

No dia 9 de Julho de 2014, por motivos profissionais, ANTERO encontrou-se com BELA,
mulher de CELSO, num restaurante em Lisboa. De seguida, ANTERO e BELA dirigiram-se ao
bar de um hotel da mesma localidade, onde teve lugar uma reunião de trabalho.
Desde as 00.35 horas do dia 18 de Julho de 2014 até às 15.00 do dia 26 de Novembro de 2015,
CELSO, a partir do seu telemóvel, telefonou diversas vezes para o telemóvel de ANTERO, sem
nunca chegar a falar com este; enviou-lhe mais de 3060 SMS, por vezes às dezenas por dia e pela
noite adentro, algumas delas na véspera (41) e no dia de Natal (30) e no dia de aniversário de
ANTERO (110), data em que fez questão de lhe desejar um “infeliz dia de aniversário”,
apelidando-o ainda de “cobarde”.
Eis o teor de alguns dos SMS enviados por CELSO para o telemóvel de ANTERO: “foi bom para
ti teres beijado a minha mulher? Gostastes?”; “já contaste a verdade à tua mulher ou continuas armado em
cobardolas à espera que eu desista e deixe de te chatear?”; “já explicaste à tua mulher qual a diferença entre uma
relação comercial e uma relação extraconjugal? Ou preferes explicar em tribunal e seres acusado de perjúrio e de
assédio sexual?”; “pelo facto de seres mentiroso e não assumires os erros que cometes estás a obrigar-me a investigar
as coisas!!! Vais ter de me explicar exactamente, a mim ou em tribunal, o que aconteceu naquele quarto de hotel
no dia 9/07/2014. Como vês vamos ter de falar em breve!!!”; “sem grande esforço já tenho o novo número de
telemóvel da tua mulher. Como vês não adianta muito andares a tentar fugir e a esconder-te da verdade. Uma
coisa te garanto, só vou parar quando confessares a verdade”; “caro senhor, não se esqueça dos actos que cometeu
com a minha mulher e dos quais tenho perfeito conhecimento. Continuo pacientemente à espera da sua resposta”.
No dia 30 de Março de 2016, CELSO foi condenado pela prática do crime de perturbação da paz
e do sossego, p. e p. pelo art. 190º/2 CP, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 20€.

Responda às seguintes questões:

1. Concorda com a decisão do tribunal? Decisão que foi a seguinte: “Cabe na previsão do art.
190º/2 CP o envio de mensagens escritas (sms) através de telemóvel, com a intenção de perturbar a vida
privada, a paz e o sossego de outra pessoa. Não se chega a esta conclusão mediante interpretação
extensiva (muito menos através de aplicação analógica), mas de uma interpretação que atende ao espírito
da lei sem deixar de caber dentro da sua letra”.

2. Pode ser aplicada a CELSO a Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que prevê o crime de
perseguição (art. 154º-A CP)?

3. Se o Tribunal Constitucional vier a declarar a inconstitucionalidade, com força


obrigatória geral, do n.º 2 do art. 154º-A CP, concordará com esta decisão? Quais os
seus efeitos?

4. Considere a fundamentação apresentada pelo tribunal na graduação da pena aplicada a


CELSO pelo crime de perturbação da vida privada, da paz e do sossego : “É adequada e
suficiente às finalidades da punição a aplicação da pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 20€,
dados os avultados rendimentos mensais do arguido e os encargos do seu agregado familiar. A favor do
agente depõe a ausência de antecedentes criminais; o facto de estar integrado profissional, familiar e
socialmente (é engenheiro civil, casado e com uma filha de 10 anos de idade); o ter-se tratado de um
comportamento isolado na sua vida; o haver reconhecido que não actuou da melhor forma e que não
voltaria a conduzir-se de igual modo. Contra ele depõe a gravidade da conduta (pelo seu prolongamento
durante mais de um ano, pela forma persistente como perturbou a paz e o sossego de ANTERO, pelo
avultado número de mensagens enviadas durante esse período, mais de 3060); e a culpa acentuada,
atendendo à sua idade, formação académica, estatuto profissional e o facto de ser pai de família, pelo que
lhe era exigível que tivesse actuado de outra forma”. Concorda com a decisão? Que finalidades
da punição foram determinantes?

5. Admitindo ser positiva a resposta à questão 2, suponha agora que cerca de metade das
mensagens foram enviadas por CELSO da Bulgária, onde esteve durante 7 meses em
trabalho, para o telemóvel de ANTERO. Se a Bulgária pedir a Portugal a entrega de
CELSO para o julgar pelo crime de perseguição, para o qual comina pena de prisão de 6
meses ou multa até 120 dias, como deve ser decidido o pedido?

6. Se, já depois da condenação de CELSO pelo crime de perturbação da vida privada, da


paz e do sossego, entrar em vigor uma nova redacção do art. 190º CP que comina para
esse facto uma pena de 6 meses de prisão ou multa até 120 dias, esta nova lei pode ser-
lhe aplicada?

Cotação: 3 valores por questão e 2 valores para a clareza e correcção da exposição.

TÓPICOS DE CORRECÇÃO

1. Concorda com a decisão do tribunal? Decisão que foi a seguinte: “Cabe na previsão do art.
190º/2 CP o envio de mensagens escritas (sms) através de telemóvel, com a intenção de perturbar a vida
privada, a paz e o sossego de outra pessoa. Não se chega a esta conclusão mediante interpretação
extensiva (muito menos através de aplicação analógica), mas de uma interpretação que atende ao espírito
da lei sem deixar de caber dentro da sua letra”.

Pretendia-se que o aluno explicasse a interpretação permitida em Direito Penal, distinguindo-a da


analogia proibida (arts. 29º/1 e 3 CRP, e 1º/1 CP), que não coincide necessariamente com a
interpretação extensiva. Figura que, além de metodologicamente discutível, nem sequer se
encontra expressamente proibida pelo art. 1º/3 CP.
Essa distinção deveria ser realizada a partir da análise do caso concreto, e não em abstracto.
A interpretação realizada pelo Tribunal mantém-se dentro dos limites da interpretação permitida:
sem ultrapassar os significados possíveis do texto legislativo em termos de linguagem comum,
ainda atende à ratio da incriminação (tutela da reserva da vida privada, da paz e do sossego).
Telefonar para o telemóvel de outra pessoa, com intenção de perturbar a sua paz e sossego, não é
apenas entabular conversa sonora com esta, mas utilizar com esse propósito qualquer uma das
várias funcionalidades do telemóvel.
Além disso, a recepção de mensagens escritas no telemóvel é sempre acompanhada de um sinal
sonoro e visual, que logo perturba a paz e o sossego do destinatário, que normalmente traz
consigo o telemóvel.
Mesmo que assim não aconteça de imediato, por o destinatário se não encontrar perto do
telemóvel, sempre aquele se deparará com o registo das mensagens, cujo conteúdo e (avultado)
número necessariamente terão o efeito pretendido pelo agente.
Por todas estas razões, a conduta em apreço deve ser reconduzida ao sentido do ilícito/do
proibido vertido no art. 190º/2 CP, sob pena de negar a protecção devida ao bem jurídico aí
tutelado perante condutas inequivocamente ofensivas do mesmo.
Note-se que a possibilidade de contactar por telemóvel uma pessoa, a todo o tempo e onde quer
que ela se encontre, obriga o intérprete a alargar o espaço de privacidade, paz e sossego muito
para além do domicílio, deixando o bem jurídico protegido de estar confinado à habitação.

2. Pode ser aplicada a CELSO a Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que prevê o crime de
perseguição (art. 154º-A CP)?

Este um problema relativo à aplicação da lei penal no tempo.

Estamos perante um crime duradouro, que se iniciou às 00.35 do dia 18 de Julho de 2014 e
continuou a ser cometido até às 15.00 do dia 26 de Novembro.
Todo este lapso temporal corresponde ao momento da prática do facto, i.e., àquele em que o
agente actuou (art. 3º CP).

Durante a execução do facto entrou em vigor o novo crime de perseguição, cujo tipo é realizado
pela conduta de CELSO.
CELSO perseguiu de modo reiterado ANTERO, através do envio de muitas centenas de
mensagens escritas para o seu telemóvel, cujo conteúdo era inequivocamente adequado a
provocar medo ou inquietação (atente-se nas ameaças de investigação à vida de ANTERO, de
recurso ao tribunal, de contacto e perseguição da esposa deste), ou a prejudicar a sua liberdade de
determinação. Desde logo, quanto a responder ou não às solicitações e tentativas de contacto de
CELSO, a relatar ou não o seu encontro com BELA, a manter ou não com esta uma relação
profissional, etc.
Note-se que estamos perante um crime de mera actividade e perigo abstracto-concreto para a
liberdade de outrem, não se exigindo que a vítima efectivamente sinta medo ou inquietação ou
seja prejudicada na sua liberdade de determinação.

Portanto, a Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, que introduziu no CP o crime de perseguição, é


uma das leis vigentes no momento da prática do facto de CELSO, tal como o é o art. 190º/2 CP,
até à entrada em vigor daquela Lei (art. 2º/1 CP)

No entanto, não pode falar-se de uma sucessão de leis penais, ainda que durante a prática do
facto de CELSO, e não após, como exige o art. 2º/4 CP.
Não coincidem os bens jurídicos tutelados pelas incriminações e são muito diversos os elementos
típicos da perturbação da vida privada (crime de mera actividade e de dano) e da perseguição (crime de
mera actividade e de perigo abstracto-concreto).
Assim sendo, não se aplica o regime do art. 2º/4 CP, devendo aplicar-se apenas o art. 2º/1, mas
tendo ainda em conta a proibição de retroactividade in pejus (arts. 18º/3, 29º/1, 2 e 4, 1.ª parte,
CRP, 1º/1 e 2º/1 CP).

O que conduziria à punição de CELSO por dois crimes diferentes, consoante a lei em vigor no
momento das respectivas condutas: o de perturbação da paz e do sossego até à entrada em vigor da Lei
n.º 83/2015, e o de perseguição depois desta.
Todavia, esta solução parece violar o art. 29º/5 CRP, por de algum modo implicar a dupla
valoração e punição do mesmo facto ou, pelo menos, por se tratar de uma série de condutas,
entre si em estreita conexão espácio-temporal (embora reiteradas durante mais de um ano), que
são concretização uma só e mesma resolução criminosa: a de perseguir e perturbar a paz e o
sossego de CELSO, até que este confesse o suposto relacionamento com BELA.
Além disso, a pena pelo crime de perseguição esgota o sentido e conteúdo de crime de
perturbação da paz e do sossego de ANTERO.
Conclusão: CELSO deve apenas responder pelo crime de perseguição pelas condutas realizadas
após a entrada em vigor da Lei n.º 83/2015.
3. Se o Tribunal Constitucional vier a declarar a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, do n.º 2 do art. 154º-A CP, concordará com esta decisão? Quais os
seus efeitos?

Agora pretendia-se que os alunos tivessem em conta o conceito material de crime e o princípio
da legalidade.

A declaração de inconstitucionalidade do art. 154º-A/2 CP seria absolutamente correcta.

A punição da tentativa do crime de perseguição viola desde logo as exigências de certeza e


determinação do facto punível, e consequentemente o princípio da culpa (arts. 1º, 25º e 27º/1
CRP), por se revelar muito difícil ou impossível a delimitação das condutas que integram uma
tentativa de perseguição sem que haja simultaneamente a consumação do mesmo crime.
É que toda a tentativa pressupõe a idoneidade das condutas para colocar em perigo os bens
jurídicos tutelados pelo tipo de ilícito. Idoneidade essa que logo corresponde à consumação do
crime de perseguição (crime de perigo abstracto-concreto).

A impossibilidade de punir a tentativa, na ausência de consumação do crime de perseguição,


evidencia o desrespeito do conceito material de crime pelo art. 154º/2 CP.
Este preceito traduz-se, afinal, na antecipação da tutela penal para a fase dos actos preparatórios
do crime de perseguição.
Portanto, num momento em que falta a dignidade punitiva da conduta pela inequívoca
ofensividade para um claro e preciso bem jurídico com dignidade penal (art. 18º/2, 1.ª parte,
CRP) e, ainda, a carência de tutela criminal (em virtude da ausência, inaptidão ou insuficiência de
meios não penais de prevenção e controlo dos comportamentos em causa – art. 18º/2, 2.ª parte,
CRP).

Além disso, a indeterminação legal dos actos preparatórios puníveis ao abrigo do art. 154º-A/2,
traduzir-se-á em nova violação dos princípios da legalidade/tipicidade dos factos puníveis (arts.
29º/1 e 3 CRP, e 1.º/1 CP), da culpa e da proporcionalidade da intervenção penal (art. 18º/2, 2.ª
parte, CRP).

A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos ex tunc,


implicando a repristinação das normas eventualmente revogadas pela norma declarada
inconstitucional (art. 282º/1 CRP). Tudo se passa como se esta nunca tivesse vigorado no
ordenamento jurídico (nulidade da norma inconstitucional), de modo que nem sequer se pode
falar de uma sucessão de leis penais por força desta repristinação.
Face à CRP, a única excepção à eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade respeita
aos casos julgados formados ao abrigo da norma inconstitucional, quando esta seja mais
favorável ao arguido (art. 282º/3, 1.ª parte, CRP).

4. Considere a fundamentação apresentada pelo tribunal na graduação da pena aplicada a


CELSO pelo crime de perturbação da vida privada, da paz e do sossego : “É adequada e
suficiente às finalidades da punição a aplicação da pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 20€,
dados os avultados rendimentos mensais do arguido e os encargos do seu agregado familiar. A favor do
agente depõe a ausência de antecedentes criminais; o facto de estar integrado profissional, familiar e
socialmente (é engenheiro civil, casado, e com uma filha de 10 anos de idade); o ter-se tratado de um
comportamento isolado na sua vida; o haver reconhecido que não actuou da melhor forma e que não
voltaria a conduzir-se de igual modo. Contra ele depõe a gravidade da conduta (pelo seu prolongamento
durante mais de um ano, pela forma persistente como perturbou a paz e o sossego de ANTERO, pelo
avultado número de mensagens enviadas durante esse período, mais de 3060); e a culpa acentuada,
atendendo à sua idade, formação académica, estatuto profissional e o facto de ser pai de família, pelo que
lhe era exigível que tivesse actuado de outra forma”. Concorda com a decisão? Que finalidades
da punição foram determinantes?
A decisão é correcta.

A ausência de necessidades de prevenção especial positiva de ressocialização explica a opção pela


pena alternativa de multa (art. 70º CP), já que a privação da liberdade teria efeitos
dessocializadores do agente e altamente prejudiciais para o agregado familiar deste, já que tem
uma filha de apenas 10 anos de idade.

As necessidades de prevenção geral positiva de tutela de bens jurídicos são suficientemente


asseguradas por via de uma pena de multa (200 dias) próxima do limite máximo (240 dias), a uma
taxa diária elevada (€20) em virtude da situação económica de CELSO (art. 71º/1 d) CP) e tendo
em conta a gravidade da conduta e da culpa do agente.
O incumprimento da pena de multa determinaria o cumprimento de pena de prisão subsidiária
pelo tempo correspondente reduzido a 2/3 (art. 49º/1 CP).

É de facto elevada a gravidade da conduta do agente, bem como a sua culpa pelo facto. Todavia,
esta culpa não se confunde com uma culpa pela personalidade ou pelo status social, familiar,
económico ou profissional, maxime quando este status e os deveres a ele inerentes nada têm a ver
com o concreto facto punível.

Contudo, nem a gravidade do facto, nem a elevada culpa do agente justificam uma qualquer pena
retributiva, muito menos quando esta não for preventivamente necessária, em termos de
prevenção geral positiva de tutela futura de bens jurídicos e/ou de prevenção especial positiva
(arts. 1º, 2.º, 18º/2 e 3 CRP, 40º/1 e 71º/1 CP).

5. Admitindo ser positiva a resposta à questão 2, suponha agora que cerca de metade das
mensagens foram enviadas por CELSO da Bulgária, onde esteve durante 7 meses em
trabalho, para o telemóvel de ANTERO. Se a Bulgária pedir a Portugal a entrega de
CELSO para o julgar pelo crime de perseguição, para o qual comina pena de prisão de 6
meses ou multa até 120 dias, como deve ser decidido o pedido?

Neste caso, o crime de perseguição foi parcialmente praticado em Portugal e parcialmente na


Bulgária, pois o agente actuou em ambos os países.
Além disso, mesmo quando CELSO enviou as mensagens escritas da Bulgária para o telemóvel
de ANTERO, foi sempre em Portugal que este se viu assediado ou perseguido de modo
adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de
determinação (art. 154º-A/1 CP). Ou seja, Portugal nunca deixou de ser o lugar da prática do
crime de perseguição, ao abrigo do art. 7º, de forma este que seria territorialmente competente
para o julgar (art. 4º a) CP).
A Bulgária tem legitimidade para emitir o MDE, enquanto membro da UE e lugar da prática do
facto (art. 1º Lei n.º 65/2003).
No entanto, como o crime de perseguição é punido na Bulgária com pena de prisão até 6 meses
ou multa até 120 dias, não se cumpre o preceituado no art. 2º/1 Lei n.º 65/2003, de modo que
não se considera preenchido o requisito da dupla incriminação exigido pelo art. 2º/3 da mesma
Lei.
Logo, Portugal deveria recusar a entrega de CELSO e proceder ao seu julgamento em Portugal,
já que o facto é considerado criminoso pela lei penal portuguesa.
Mas, ainda que se verificasse o requisito da dupla incriminação (arts. 2º/1 e 3), Portugal sempre
poderia recusar a entrega por se considerar o lugar da prática do facto (art. 12º/1 h) i) Lei n.º
65/2003), ou condicionar a entrega por CELSO ser português e residente habitualmente em
Portugal (art. 13º/1 b) Lei n.º 65/2003).

6. Se, já depois da condenação de CELSO pelo crime de perturbação da vida privada, da


paz e do sossego, entrar em vigor uma nova redacção do art. 190º CP que comina para
esse facto uma pena de 6 meses de prisão ou multa até 120 dias, esta nova lei pode ser-
lhe aplicada?
Sim a LN pode ser aplicada a CELSO por se limitar a alterar o regime de punibilidade de um
facto cuja tipicidade se mantém idêntica nas duas leis, mas que se revela concretamente mais
favorável ao agente (arts. 29º/4, 2.ª parte CRP, e 2º/4 CP).
Se CELSO nada fizer, apenas terá de cumprir os 120 dias de multa que lhe poderiam ser
aplicados ao abrigo de L2 (art. 2º/4, 2.ª parte, CP).
Contudo, pode desde já requerer a reabertura da audiência (art. 371º-A CPP), para que aos factos
dados como provados pela sentença condenatória transitada em julgado possa aplicar-se o
Direito novo mais favorável.
O que redundará certamente na fixação de uma pena de multa mais leve do que a fixada ao
abrigo da anterior moldura penal (multa de 10 a 240 dias – arts. 47º/1 e 190º/2, na anterior
redacção).


Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ªs Dr.ªs Helena Morão e Teresa Quintela de Brito e Mestres João Viana
e António Brito Neves
Exame de Recurso – 11 de Fevereiro de 2015
Duração: 120 minutos

GRELHA DE CORREÇÃO

Em Santiago de Compostela, no dia 08.02.2015, Karl, alemão e Boris, russo, introduzem-se


dentro de um veículo automóvel pertencente a terceiro e utilizam-no para viajar até ao
Porto, onde pretendiam assaltar um banco.

Durante a viagem, pararam numa estação de serviço em Vigo e serviram-se de diversos


sumos e croissants mistos, sem intenção de os pagar, fugindo de seguida.

Chegaram ao Porto nesse mesmo dia, abandonaram o carro e entraram na agência bancária
por volta das 11:00. Já dentro da agência bancária, ameaçam os funcionários bancários com
uma arma de fogo e obrigam-nos a entrar num gabinete, onde ficaram trancados.

No momento em que Boris acedeu à caixa-forte, o alarme disparou. Boris ainda encheu um
dos sacos com notas mas, quando ambos iam a sair da agência bancária, perceberam que já
estavam cercados pela polícia.

Os dois comparsas ficaram entretanto barricados dentro da agência bancária, conjuntamente


com os funcionários bancários, entre esse mesmo dia 08.02.2015 e o início do dia
11.02.2015, sem estabelecer qualquer contacto ou conversação com a polícia, subsistindo
com os víveres que existiam na pequena cozinha da agência bancária.

Logo na madrugada do dia 11.02.2015, pelas 01:30, a polícia invade o espaço, põe fim ao
sequestro, liberta os funcionários bancários e acaba por matar Karl. Boris é preso.

Perante estes factos, responda às seguintes questões:

1. Espanha pede a entrega de Boris para o julgar pelos crimes de burla para obtenção
de alimentos e bebidas (suponha que a lei espanhola é idêntica ao artigo 220.º do
CP) e furto de uso de veículo1 (suponha que a lei espanhola pune este crime com
pena de prisão até 18 meses). O que deve Portugal fazer na sequência deste pedido?
(4 valores)

2. Será que Portugal pode julgar Boris pelo crime de dano (artigo 212.º do CP
português) por se entender que o consumo da totalidade da gasolina que já estava
no depósito do carro constitui uma “destruição de coisa alheia”? (3 valores)

3. Considerando os crimes de furto de uso de veículo (artigo 208.º CP), ameaça (artigo
153.º), sequestro (artigo 158.º) e roubo (artigo 210.º do CP), verifique por quantos
crimes poderia Boris ser punido. Por todos ou apenas por alguns e quais? (4
valores)

1 Previsto no artigo 208.º do CP português.


4. Independentemente da resposta à pergunta anterior, analise agora separadamente o
crime de sequestro: admita que, no dia 10.02.2015, em Portugal, entrou em vigor
uma nova lei que:
 Altera o artigo 158.º, n.º 1, do CP, no sentido de punir o sequestro simples
com pena de prisão até 5 anos;
 Altera o artigo 158.º, n.º 2, alínea a), do CP, no sentido de passar a punir com
pena de prisão de 6 a 14 anos, o sequestro que durar mais de um dia.
Pergunta-se o seguinte: de acordo com as regras da aplicação da lei penal no tempo,
a lei nova é aplicável a Boris? (4 valores)

5. Imagine que, num processo-crime autónomo, Boris tinha sido condenado, em


2009, em Portugal, com trânsito em julgado, a 2 anos de prisão efectiva, pelo crime
de extorsão simples, não tendo ainda a pena sido executada porque, entretanto, o
arguido ainda não tinha sido encontrado. À data da prática dos factos, o crime de
extorsão simples era punido com pena de prisão até 5 anos. Na já mencionada lei
do dia 10.02.2015, o crime de extorsão simples passa a ser punido com pena de
prisão até 3 anos. Agora que foi encontrado pela polícia portuguesa, Boris terá de
cumprir os 2 anos de prisão a que foi condenado pelo referido crime de extorsão
simples? (3 valores)

Correção da linguagem, clareza de raciocínio, capacidade de síntese e profundidade de


análise: 2 valores.

Questão 1.

Quanto ao crime de burla para obtenção de alimentos e serviços: de acordo com o artigo
7.º do CP, o crime foi praticado em Espanha.
Espanha pede a entrega de Boris a Portugal, ao abrigo do regime do Mandado de Detenção
Europeu (MDE), previsto na Lei 65/2003 (LMDE).
Da interpretação conjugada dos n.ºs 1 e 3, do artigo 2.º, da LMDE, resulta o princípio da
dupla incriminação. Assim, a entrega pode ser solicitada por crimes punidos em Portugal (o
que se verifica neste caso concreto) e punidos com pena de prisão não inferior a 12 meses
no Estado-Membro de emissão (o que não se verifica neste caso concreto).
Como tal, no caso concreto, não se encontra preenchida a condição da dupla incriminação
dos factos, para efeitos de entrega da pessoa procurada.
Contudo, o artigo 2.º, n.º 2, da LMDE permite a concessão da entrega, sem controlo da
dupla incriminação, nas infrações aí especialmente previstas, desde que as mesmas sejam
puníveis, no Estado Membro de emissão, com pena máxima não inferior a 3 anos. Neste
caso concreto, a burla vem prevista na alínea u), do artigo 2.º, n.º 2, da LMDE, mas a
mesma não é punida em Espanha com pena máxima não inferior a 3 anos.
Como tal, no caso concreto, não se encontra preenchida a condição de dispensa de
controlo da dupla incriminação.
Em conclusão, Portugal não pode entregar Boris a Espanha.

Considerando as disposições conjugadas do artigo 32.º, n.º 5, da Lei 144/99, e do artigo


31.º, n.º 2, do mesmo diploma2, processualmente, Portugal nem sequer iria instaurar
processo-crime contra Boris, pelo crime agora em causa. Contudo, este conhecimento, no
presente exame, não seria exigível ao aluno. Poderia inclusivamente ser valorizada a

2 A Lei 144/99 é direito subsidiário em matéria de MDE, considerando as remissões do artigo 34.º da LMDE
e do artigo 229.º do CPP.
resposta que entendesse que, na sequência da recusa de entrega, substantivamente, a lei
portuguesa fosse competente para conhecer do crime em causa, ao abrigo do artigo 5.º,
alínea f), do CP (pressupondo que o crime em causa “admite” a entrega e que esta não
pode ser concedida em razão da pena aplicável).

Quanto ao crime de furto de uso de veículo: trata-se de um crime permanente, na medida


em que a sua consumação se prolonga durante todo o período de tempo em que se
verificou o estado ilícito de “utilização” do veículo.
De acordo com o artigo 7.º do CP, o crime considera-se praticado em Portugal, na medida
em que o agente atuou parcialmente em Portugal.
Considerando o disposto no artigo 12.º, alínea h), parágrafo i), da LMDE, a entrega pode
ser recusada quando o facto tiver sido, pelo menos em parte, cometido em Portugal.
Nesse caso, Portugal seria competente para julgar o facto de acordo com o princípio da
territorialidade (artigo 4.º do CP) e não entregaria a pessoa procurada a Espanha (salvo
decisão em contrário do juiz português que julgasse o processo de entrega, pois o artigo
12.º da LMDE consagra uma causa de recusa de entrega facultativa).
Coloca-se no entanto a questão de a lei espanhola ser mais favorável que a lei portuguesa,
equacionando-se portanto a aplicação do artigo 6.º, n.º 2, do CP.
Tal aplicação deve ser recusada uma vez que os factos foram praticados “dentro” do
território nacional e a hipótese não apresenta nenhum elemento de facto que justifique uma
especial ligação ou uma especial vinculação de Boris à jurisdição espanhola que revele que
este formou, e só poderia ter formado, a sua convicção de ilicitude especificamente por
referência a esta lei.

Questão 2.

Nesta questão, trata-se essencialmente de um problema de interpretação da lei penal.


Trata-se de saber se o consumo da gasolina existente no depósito de um veículo, através da
utilização desse mesmo veículo, pode ser qualificada como “destruição de coisa alheia”.
Segundo a doutrina e jurisprudência dominante, a interpretação permitida em direito penal
é limitada pelo sentido possível e previsível das palavras, devidamente inseridas no
contexto comunicativo em que são utilizadas.
Dentro desse limite semântico inultrapassável, funcionariam os elementos tradicionais da
interpretação jurídica, em particular, o elemento teleológico, devendo o intérprete, a esse
propósito, verificar qual o sentido do ilícito consagrado no tipo penal em causa.
No presente caso – e sem prejuízo de qualquer outro entendimento que esteja fundado em
argumentos razoáveis –, o sentido da expressão “destruição de coisa alheia” parece incluir
aqueles comportamentos que, afetando de tal forma a substância da coisa, implicam a perda
da utilidade da coisa.
Ora, neste caso, o consumo de combustível parece revelar um aproveitamento da utilidade
da coisa, pelo que não parece caber no sentido possível e previsível (nos limites semânticos)
da expressão “destruição de coisa alheia”.
Como é evidente, neste caso, o consumo de combustível seria ilícito mas tal sentido de
ilicitude já estaria incluído no crime de furto de uso de veículo, sem prejuízo de eventual
responsabilidade civil.
Assim, a aplicação do artigo 212.º do CP ao caso de Boris traduziria uma analogia que, por
ser desfavorável, seria proibida (artigo 1.º, n.º 3, do CP), violando o princípio da legalidade,
na sua dimensão de reserva de lei da AR e de lei estrita, bem como o princípio da culpa e da
segurança jurídica que constituem os seus fundamentos internos.
Questão 3

Boris poderia ser punido pelo crime de roubo (artigo 210.º).

O crime de ameaça (artigo 153.º) estaria numa relação de concurso de normas com o crime
de roubo, na modalidade lógica de subsidiariedade implícita.
De facto, entre o tipo de roubo e o tipo de ameaça existe um espaço de sobreposição, uma
vez que, como acontece no caso concreto, o primeiro pode ser executado através do
segundo.
Mas existe também um espaço de não-sobreposição entre as duas normas, uma vez que o
roubo pode ser executado através de violência e a ameaça pode ter outros fins que não a
subtração de coisa.
Havendo uma relação lógica de subsidiariedade entre as normas, aplica-se a norma que
prevê a pena mais grave que é a do roubo.

Quanto ao crime de sequestro (artigo 158.º CP), é necessário distinguir:


Enquanto os assaltantes mantiveram os funcionários bancários trancados num gabinete,
pelo tempo estritamente necessário para subtraírem as notas depositadas no cofre, o
sequestro teve uma função puramente instrumental do roubo, sendo consumido pelo
mesmo. O sentido de ilicitude do segundo – enquanto dominante e preponderante –
consumiu o sentido de ilicitude do primeiro.
Contudo, depois de terem sido cercados, os assaltantes mantiverem o sequestro por cerca
de 3 dias. Nessas novas circunstâncias, o sequestro passou a revelar um sentido de ilicitude
autónomo pelo que o agente poderia ser punido pelo roubo e pelo sequestro, em concurso
efetivo de crimes, punido nos termos do artigo 77.º do CP.

Quanto ao furto de uso de veículo, o mesmo revela-se instrumental da prática do roubo.


Nessa medida, poder-se-ia equacionar uma relação de consunção entre o roubo e o furto
de uso de veículo, na medida em que o primeiro seria o crime-fim e o segundo o crime-
meio.
Contudo, a razão pelo qual o legislador pune o furto de uso de veículo – ao contrário do
furto de uso de outras coisas – consiste, exatamente, no facto de este comportamento estar
normalmente associado a assaltos e outro tipo de criminalidade violenta, revelando,
portanto, uma perigosidade especial para bens jurídicos.
Face ao exposto, seria mais correto – ainda que se aceitasse posições divergentes
fundamentadas – admitir um concurso de crimes efetivo entre o furto de uso de veículos, o
roubo e o sequestro.

Questão 4.

O crime de sequestro é um crime permanente, uma vez que a respetiva consumação se


prolonga enquanto se mantém, por vontade do sequestrador, o estado ilícito de detenção.
Nos crimes permanentes, a doutrina e jurisprudência dominantes entendem que a lei nova,
ainda que mais grave, pode ser aplicada, caso os seus pressupostos tenham sido
integralmente preenchidos por factos que tenham ocorrido após a sua entrada em vigor.
No caso concreto, quer o tipo simples, quer o tipo agravado da lei nova são aplicáveis
(havendo uma relação de especialidade entre eles, pelo que apenas o tipo agravado seria
aplicado), uma vez que todos os seus pressupostos foram integralmente preenchidos após a
sua entrada em vigor. Houve detenção após a entrada em vigor da lei nova (tipo simples) e
houve detenção por mais de um dia (tipo agravado).
A aplicação da lei nova não suscita assim nenhum problema de retroatividade proibida.
A circunstância de a lei antiga ser mais favorável não é relevante, pois não se trata de lei
posterior ao momento da prática do facto, não se encontrando assim preenchidos nem a
letra, nem o espírito do artigo 2.º, n.º 4, do CP.

Questão 5.

No presente caso, existe uma lei posterior ao momento da prática do facto que é mais
favorável ao agente.
Nessa medida, a lei posterior é aplicável, por força do artigo 2.º, n.º 4, do CP, não obstante
a existência do caso julgado.
Para efeitos de aplicação desta lei posterior mais favorável, o agente teria de requerer a
reabertura da audiência, ao abrigo do artigo 371-A, do CPP, na medida em que a parte final
do artigo 2.º, n.º 4, do CP não é aplicável.
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma. Colaboração: Prof.as Doutoras Helena Morão e
Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos Viana e António Brito Neves
Exame Época Especial – 16 de Setembro de 2015. Duração: 90 minutos

1. Considere o crime de enriquecimento injustificado, aditado à Lei n.º 34/87, de 16 de


Julho, relativa à responsabilidade dos titulares de cargos políticos e equiparados: “O titular
de cargo político ou de alto cargo público que, durante o período do exercício de funções
públicas ou nos três anos seguintes à cessação dessas funções, por si ou por interposta
pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património incompatível com os
seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados é punido com pena de
prisão até 5 anos”.
Aprecie a constitucionalidade desta incriminação à luz do conceito material de crime e dos princípios
constitucionais penais. (6 vls.)

2. Suponha que, no dia 16 de Setembro de 2015, a Itália, onde existe idêntica incriminação,
pede a Portugal a entrega de Giuseppe, antigo ministro italiano da economia, para o julgar
pela prática do crime de enriquecimento injustificado de titular de cargo político.
a) Como deve ser decidido este pedido, tendo em conta que Giuseppe reside em Portugal
há 10 anos e que também aqui é proprietário de três apartamentos de luxo, um campo
de golfe, um hotel e uma quinta de criação de cavalos, adquiridos no período de
exercício do cargo de ministro e nos dois anos subsequentes à cessação dessas funções?
(3 vls.)
b) A sua resposta seria a mesma se, a 28 de Julho de 2015, o Tribunal Constitucional
português tivesse declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da
incriminação de enriquecimento injustificado de titular de cargo político e equiparado?
(3 vls.)

3. Eva, doente cancerosa em fase terminal e em sofrimento atroz, pede a Adão, seu marido,
de modo sério, instante e expresso, que esteja presente, acompanhando-a uma vez mais, no
momento em que ela ingere uma dose mortal de veneno de acção rápida. Eva faz Adão
prometer que, nem antes, nem durante ou depois da ingestão do veneno, tentará impedir a
sua morte. Depois da morte de Eva, o Ministério Público acusa Adão da prática do crime
de auxílio ao suicídio (art. 135º CP).
Concorda com a acusação? (6 vls.)

Correcção da escrita, clareza de raciocínio e capacidade de síntese: 2 vls.

  1  
TÓPICOS DE CORRECÇÃO

1. Esta incriminação é incompatível com o conceito material de crime, fundamentalmente


pelas seguintes razões:
1.ª Não se percebe qual é o bem jurídico claro, preciso e determinado que se visa proteger.
Logo, também não pode aferir-se se a incriminação em causa protege um “direito ou
interesse constitucionalmente protegido” (art. 18º/2 CRP), com o que prejudicada fica a
legitimidade da intervenção penal num Estado de Direito democrático. Para isso não basta
a violação de deveres de transparência e probidade inerentes ao exercício de certos cargos,
por mais importantes que sejam tais deveres.

2.ª Não se proíbe uma conduta insuportavelmente ofensiva de um dado bem jurídico, mas
um estado ou situação: ser detentor de um património incompatível com os rendimentos e
bens declarados ou que devessem ser declarados, num certo período de tempo.

3.ª Parece estar-se perante uma incriminação acessória dos deveres de declaração de
rendimentos e património, de carácter tributário e inerentes ao exercício de certos cargos.
Ora, as infracções penais não podem legitimamente consistir em meros delitos de violação
de dever, sob pena de insuportável desproporção entre os direitos fundamentais ofendidos
pela intervenção penal (a liberdade) e os interesses (difusos) supostamente tutelados pela
proibição penal.
Além disso, coloca-se a questão da verdadeira necessidade, adequação e eficácia desta
incriminação, ante a pré-existência dos crimes fiscais e dos crimes de responsabilidade dos
titulares de cargos políticos e dos titulares de altos cargos públicos, já previstos na Lei n.º
34/87.

Tal incriminação viola, consequente e fundamentalmente, os seguintes princípios


constitucionais penais:
1.º Estrita necessidade, adequação e proporcionalidade da intervenção penal (art. 18º/2 e 3
CRP).

2.º Culpa (arts. 1º, 25º/1 e 27º/1 CRP), por falta de merecimento de culpa penal de um
estado ou situação patrimonial desconforme com os rendimentos e bens declarados ou que
devessem sê-lo.

3.º Legalidade por ausência de descrição da conduta proibida (arts. 29º/1 CRP).

4.º Reserva da vida privada e familiar (art. 26º/1 CRP), por obrigar o arguido a explicar a
origem dos rendimentos e bens desconformes com os declarados ou que devessem sê-lo,
para evitar a condenação pela prática deste crime.

2. a) O pedido deve ser decidido ao abrigo da Lei n.º 65/2003, relativa ao mandado de
detenção europeu (MDE).
A Itália pode emitir o mandado, nos termos do art. 2º/1. Não há nenhum obstáculo
quanto à pena cominada para a infracção em causa, pois é não inferior a 12 meses.
Verifica-se o requisito da dupla incriminação (art. 2º/3).
Portugal não pode recusar a entrega com fundamento no art. 12º/1, h), i), da Lei n.º
65/2003, porque o crime de enriquecimento injustificado de um antigo ministro italiano
afecta interesses do Estado italiano de um modo peculiar, que faz dele um crime

  2  
espacialmente limitado.
Ou seja: apesar de Giuseppe ter adquirido em Portugal, no período descrito na norma
incriminadora, bens incompatíveis com o rendimento declarado (ou que devesse sê-lo) e de
aqui deter esses bens, o crime de enriquecimento injustificado não pode considerar-se
também praticado em Portugal (art. 7º/1 CP). Precisamente por ser um crime contra certos
interesses nacionais do Estado italiano, que só podem ser violados no território desse
Estado, por respeitarem a deveres tributários e, sobretudo, a deveres de transparência e
probidade no exercício do cargo de ministro da economia italiano.
Mas Portugal, já poderá condicionar a entrega, ao abrigo do art. 13º/c) Lei 65/2003, por
Giuseppe aqui residir.

2 b) Neste caso, o facto deixaria de constituir crime em Portugal (art. 282º/1 CRP), de modo
que não se verificaria o requisito da dupla incriminação (art. 2º/3 Lei n.º 65/2003).
Portugal deveria recusar a entrega de Giuseppe em Setembro de 2015, ao abrigo deste
preceito, pois não se está perante nenhuma das situações previstas no art. 2.º/2 Lei n.º
65/2003, que permitem prescindir daquele requisito.
A norma imperativa do art. 2º/3 Lei n.º 65/2003 prevalece sobre a norma permissiva do
art. 12º/1, a), por força dos princípios da legalidade penal, da necessidade da pena, da
igualdade e da proibição de arbítrio judicial na decisão de casos idênticos.

3 Está-se perante um comportamento omissivo consciente e voluntário de não impedimento


do suicídio de outrem, levado a cabo pelo marido da suicida, titular de uma posição de
garante relativamente à vida desta (art. 10º/2 CP), podendo Adão realizar a acção
necessária para o efeito. Ou seja: existe um comportamento penalmente relevante, apto a
servir de base às demais categorias da infracção (tipicidade, ilicitude, culpa e punibilidade).

Apesar disso, Adão não pode ser legitimamente acusado da prática do crime de ajuda ao
suicídio por omissão (arts. 135º/1 e 10º CP), por isso implicar uma violação do princípio
da legalidade, da reserva de lei (art. 165º/1 c) CRP) e da proibição de analogia
incriminadora (arts. 29º/1 e 3 CRP, 1º/1 e 3 CP).
Com efeito, por um lado, a punição do auxílio ao suicídio por omissão ultrapassa os
significados possíveis das palavras inseridas no texto legal à luz da linguagem comum. Essas
palavras referem-se ao incitamento (instigação) ou auxílio (ajuda) ao suicídio, não ao mero
não impedimento do suicídio livre de outrem.
Por outro lado, a conduta de Adão não corresponde ao sentido de ilícito vertido no art.
135º, que é o de proibição da interferência de terceiros na livre disponibilidade da vida por
parte do seu titular, em termos que afectem ou prejudiquem a autodeterminação
relativamente à própria vida.
Ora Adão não incitou Eva ao suicídio, nem lhe prestou ajuda para esse fim, interferindo e
prejudicando a livre disponibilidade da vida por parte da mulher. Limitou-se a não impedir
que ela se suicidasse respeitando o seu pedido sério, livre e esclarecido, ou seja, não afectou
de modo algum a livre autodeterminação da mulher relativamente à sua própria vida.
Adão muito menos poderia ser acusado da prática de um homicídio por omissão (arts.
131º e 10º CP), por se tratar de uma autolesão da vida (suicídio) e não de uma heterolesão
da vida em que se traduz o homicídio.

Lisboa, 24 de Setembro de 2015.

  3  
  4  
 
Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma.
Colaboração: Prof.as Doutoras Helena Morão e Teresa Quintela de Brito, Mestres João Matos
Viana e António Brito Neves
Exame 1.º Semestre – 7 de Janeiro de 2015
Duração: 120 minutos

Artur, empresário brasileiro residente em Portugal, pede a Bernard – francês, residente


na Serra Leoa e conhecido angariador de mão-de-obra miserável – que, neste país, lhe arranje
duas centenas de trabalhadores para os empregar em vários dos seus negócios.
Conforme explica a Bernard, Artur pretende utilizar, intensivamente e a muito baixo
custo, na colheita da azeitona nas suas propriedades alentejanas, cento e cinquenta desses
trabalhadores, que sejam homens e jovens robustos. Os restantes 50 trabalhadores, incluindo
jovens mulheres e crianças, Artur tenciona empregá-las/os nos bares e clubes nocturnos de que é
proprietário em Amesterdão.
Bernard, mediante a promessa de bons empregos na Europa, de habitação e alimentação
gratuitas, consegue convencer 200 nacionais da Serra Leoa, vítimas da guerra, da fome e da seca,
a embarcar rumo a Portugal num barco de pesca com bandeira turca. O barco é propriedade de
Rashid, cidadão indiano residente no Panamá, que recebe em troca avultada quantia.
Quando se encontravam a escassos 15 Km da costa portuguesa, Artur avisa, por
telemóvel e a partir de Portugal, os tripulantes do barco (quatro cidadãos turcos) de que a
polícia marítima portuguesa se prepara para os abordar. De imediato, os tripulantes colocam o
motor do barco na velocidade máxima, direcionam-no à costa portuguesa e abandonam os 200
imigrantes à sua sorte, fugindo numa lancha, mas, pouco depois, acabaram por ser detidos pela
polícia marítima.
Os imigrantes, que viajavam em péssimas condições, à fome e à sede, só não morreram
todos numa eventual colisão com outro navio graças à pronta intervenção das autoridades
portuguesas. Ainda assim, duas crianças encontraram a morte durante a perigosa viagem.
 
Questões

1. a) Artur, Bernard, Rashid e os quatro tripulantes do barco cometeram algum ou


alguns dos crimes previstos nos artigos 131º, 137º, 138º e 160º Código Penal português?
Quais, quantos e porquê? (4 vls.)
b) Além dos crimes previstos no Código Penal, os mesmos agentes realizaram ainda os
crimes de auxílio à imigração ilegal1 e de angariação de mão-de-obra ilegal2 ? (3 vls.)
                                                                                                               
1 Artigo 183º, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho:
1 – “Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegais de cidadão estrangeiro em
território nacional é punido com pena de prisão até três anos.
2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegais de cidadão
estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas
ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é
punido com pena de prisão de dois a oito anos.
4 - A tentativa é punível”.

  1  
2. A lei penal portuguesa pode ser-lhes aplicada? Com que fundamento? (2 vls.)

3. Como deve ser decidido o pedido, se a Turquia solicitar a Portugal a extradição de Artur
e dos quatro tripulantes do barco para os julgar pelos crimes cometidos, supondo que
esse País comina para um deles a pena de prisão perpétua? (2 vls.)  
 
4. Independentemente da resposta à questão anterior, se fosse juíza/juiz do caso como
decidiria se os quatro tripulantes do barco, acusados da prática em coautoria do crime
previsto no art. 138º do Código Penal, contestassem a acusação negando a realização
desse tipo de crime por terem confiado que a iminente intervenção da polícia marítima
portuguesa sempre obstaria – como obstou – ao perigo para a vida dos imigrantes? (3
vls.)

5. Depois da prática do facto mas antes do julgamento, o Governo altera, mediante


Decreto-Lei, o n.º 8 do art. 160º do Código Penal, que passa a dispor: “O consentimento
da vítima dos crimes previstos nos números anteriores exclui a ilicitude do facto”.
Aprecie a nova norma à luz do conceito material de crime, dos princípios constitucionais
do Direito Penal e das regras de aplicação da lei penal no tempo (4 vls.).

Correcção da linguagem, clareza de raciocínio, capacidade de síntese e profundidade de


análise: 2 vls.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
2 Artigo 185º, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho:
1 – “Quem, com intenção lucrativa, para si ou para terceiro, aliciar ou angariar com o objetivo de introduzir no
mercado de trabalho cidadãos estrangeiros que não sejam titulares de autorização de residência ou visto que habilite ao
exercício de uma atividade profissional é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2 - Quem, de forma reiterada, praticar os atos previstos no número anterior, é punido com pena de prisão de dois a
seis anos.
3 - A tentativa é punível”.
 

  2  
Tópicos de correcção

1. a)

A. Os quatro tripulantes do barco cometeram os seguintes crimes:

I - Tráfico de pessoas, mediante um comportamento activo (criação de risco para o


bem jurídico): art. 160º/1, pelo menos al. d), uma vez que mesmo as pessoas adultas transportadas
eram “vítimas da guerra, da fome e da seca” e os agentes aproveitaram-se dessa situação de
especial vulnerabilidade para as transportar com fins de exploração laboral (os 150 homens e
jovens que seriam usados na apanha da azeitona em Portugal) e de exploração sexual (as/os
trabalhadoras/es destinadas/os a ser utilizados nos bares e clubes nocturnos de Amesterdão).
O crime de tráfico de pessoas é agravado nos termos o art. 160º/4, al. a), por o
transporte ter colocado em perigo a vida das vítimas, já que “viajavam em péssimas condições, à
fome e à sede”.
Os tripulantes cometeram tantos crimes de tráfico agravado de pessoas quantas a vítimas
adultas transportadas nestas circunstâncias e com estes fins de exploração, em concurso efectivo,
ideal (uma só conduta “naturalística”) e homogéneo de crimes (art. 30º/1, 2.ª parte), punível nos
termos do art. 77º/1 e 2, que devem ser explicados pelos alunos.

Relativamente aos menores transportados, os tripulantes praticaram o crime de tráfico


previsto no art. 160º/2 CP, com os mesmos fins de exploração. Este tipo distingue-se do
previsto no n.º anterior por não ser de forma/execução vinculada, bastando a menoridade das
vítimas para assegurar a dignidade e carência de tutela penal da conduta em causa.
Também este crime de tráfico é agravado segundo o art. 160º/4, al. a), e deverá ser
punido em regime de concurso efectivo, ideal e homogéneo de acordo com os arts. 30/1, 2.ª
parte e 77º/1 e 2 CP: existem tantos crimes de tráfico quanto os menores transportados com as
referidas finalidades e colocando o transporte a sua vida em perigo.

Mesmo que se verificassem os pressupostos do crime continuado (art. 30º/2 CP) – o que
não sucede -, o n.º 3 do mesmo preceito sempre obstaria à aplicação desse regime de punição
mais favorável (art. 79º CP).

II – Dois crimes de homicídio por acção das crianças que morreram durante a
“perigosa viagem”, em concurso efectivo, ideal e homogéneo, embora heterogéneo e real (várias
condutas “naturalísticas”) relativamente ao crime de tráfico de menores.
Poderia discutir-se se estes homicídios foram praticados com dolo eventual (art. 14º/3
CP) ou negligência consciente (art. 15º/a) CP). Mas esse não era o objectivo da pergunta, e sim o
de saber se entre o homicídio doloso e o negligente há uma relação de alternatividade (ou mútua
exclusão) ou, antes, uma relação de “concurso de normas”/um problema de “unidade de norma”
(subsidiariedade?) e porquê.

III – Crime de exposição dos imigrantes ilegais, por os terem exposto (comportamento
activo de criação de uma nova fonte de perigo) em lugar (o mar, num barco sem tripulação,
dirigido à costa portuguesa e circulando à velocidade máxima) que os sujeitou a uma situação de
perigo para a vida (em virtude do risco de colisão com outros navios) de que eles só por si não
podiam defender-se – art. 138º/1, al. a) CP.
Os tripulantes realizaram tantos crimes de exposição quantos os imigrantes vivos que
seguiam a bordo. Uma vez mais deverão ser punidos pelo crime de exposição em regime de
concurso efectivo, ideal e homogéneo, embora heterogéneo e real com os crimes anteriormente
referidos (arts. 30º/1 e 77º/1 e 2 CP).

B. Artur cometeu os seguintes crimes:

I. Instigação (art. 26º/4.ª proposição CP) dos crimes de tráfico de pessoas


realizados pelos tripulantes do barco (art. 160º/1 e 2). Como ignoramos se ele conhecia as

  3  
condições de transporte dos emigrantes, não podemos considerá-lo instigador do crime agravado
previsto no n.º 4, al. a) desse preceito. Note-se que não foi a sua conduta que colocou em perigo
a vida dos emigrantes ilegais.

II. Não é claro se foi ele que disse aos tripulantes para “abandonarem” o barco e os
imigrantes. Se assim aconteceu, será também instigador dos crimes de exposição por aqueles
praticados [arts. 26º/4.ª proposição, 138º/1, al. a), 31º/1 e 77º/ 1 e 2].

III. Artur só terá responsabilidade pelos homicídios das duas crianças que morreram
durante a viagem, se se entender e provar que foi também instigador desses crimes a título de
dolo eventual (arts. 26º/4.ª proposição, 131º e 14º/3 CP).
Se Artur tiver actuado com negligência quanto à vida das crianças, ficará impune, pois a
instigação só está prevista na forma dolosa (art. 26º/4.ª proposição) e relativamente a crimes
dolosos (arts. 13º CP, 29º/1 e 3 CRP, e 1º/1 e 3 CP). A resposta apresentada neste ponto III será
valorada apenas na ponderação global, por se tratar de matéria não desenvolvida no 1.º semestre.

C. I. Bernard é autor material do crime de tráfico de pessoas, por ter recrutado, aliciado
e entregado os nacionais da Serra Leoa aos tripulantes do barco (art. 26º/1.ª proposição).
Relativamente aos emigrantes de idade adulta, Bernard usou de ardil ou manobra
fraudulenta (a “promessa de bons empregos na Europa, de habitação e alimentação gratuitas”) e
ainda se aproveitou da sua situação de especial debilidade enquanto vítimas da guerra, da fome e
da seca [art. 160º/1, als. b) e d) CP].
Quanto aos menores, Bernard praticou o crime (de forma livre) previsto no art. 160º/2
CP.

Já é discutível se, em ambos os casos, lhe pode ser imputado a título de autoria material o
crime agravado descrito no art. 160º/4, al. a), já que não foi o seu comportamento de aliciamento
e angariação que colocou em perigo a vida dos emigrantes, mas sim as condições em que foram
transportados pelos tripulantes do barco.
Contudo, se Bernard sabia dessas condições (considerando que foi ele, um reputado
“angariador de mão-de-obra miserável” – certamente com as ligações e conhecimentos
necessários para o efeito – que convenceu os emigrantes a embarcar naquele barco), então,
poderá responder como instigador desse crime agravado de tráfico de pessoas.

Nesta hipótese, a punição como instigador do crime de tráfico de pessoas nos termos do
art. 160º/4, al. a) deverá prevalecer e afastar a punição (“non bis in idem” – art. 29º/5 CRP)
como simples autor material dos crimes previstos no art. 160º/1 e 2: consunção “impura” da
mais grave modalidade de intervenção no facto (autoria material) pela menos grave (instigação)
mas mais gravemente punida; ou, menos correctamente, subsidiariedade da forma de intervenção
no facto criminoso menos gravemente punida face à mais gravemente sancionada. A resposta
apresentada neste último parágrafo será valorada apenas na ponderação global, por se tratar de
matéria não desenvolvida no 1.º semestre.

Bernard será sempre punido por tantos crimes agravados de tráfico de pessoas quantas
aquelas que convenceu a embarcar no barco turco: concurso efectivo, real e homogéneo (arts.
30º/1 e 77º/1 e 2).

II. A Bernard só poderá atribuir-se responsabilidade pelo homicídio das duas crianças
enquanto instigador e a título de dolo eventual (arts. 26º/4.ª proposição, 131º e 14º/3). Então,
estes crimes entrarão em concurso efectivo, real e heterogéneo com os de tráfico de pessoas (arts.
30º/1 e 77º/1 e 2).
Se Bernard tiver actuado com negligência quanto à vida das crianças, ficará impune, pois
a instigação só está prevista na forma dolosa (art. 26º/4.ª proposição) e relativamente a crimes
dolosos (arts. 13º, 29º/1 e 3 CRP, e 1º/1 e 3 CP). A resposta apresentada neste ponto II será
valorada apenas na ponderação global, por se tratar de matéria não desenvolvida no 1.º semestre.

  4  
D. I. Rashid limitou-se a fornecer o barco de que é proprietário para o transporte de
emigrantes ilegais. Os sentidos possíveis das palavras do texto legal, tendo em conta a linguagem
comum, não permitem integrar, inequivocamente, a sua conduta na “aceitação” de pessoa para
fins de exploração (art. 160º/1). Rashid não “aceitou” pessoalmente os emigrantes ilegais,
apenas disponibilizou o seu barco para os transportar. Logo, qualificar a sua conduta como
autoria material do crime de tráfico de pessoas seria recorrer a uma aplicação analógica proibida
(arts. 29º/1 e 3 CRP, e 1º/1 e 3 CP) do referido segmento do art. 160º/1 CP.
Contudo, Rashid já poderá ser punido como cúmplice material do tráfico de pessoas
realizado pelos tripulantes do seu barco, se actuar com dolo e, ademais, conhecer os fins de
exploração laboral e sexual a que se destinavam as pessoas transportadas (arts. 27º, 14º e 160º/1 e
2). O mesmo se diga relativamente ao crime agravado de tráfico (art. 160º/4, al. a)], pois Rashid,
enquanto proprietário do barco, certamente sabia em que condições seriam transportadas as 200
vítimas.
Também Rashid responderia em concurso efectivo, ideal e homogéneo como cúmplice
de tantos crimes de tráfico de pessoas quantos os emigrantes ilegais transportados (arts. 30º/1 e
77º/1 e 2).

II - A Rashid só poderá ser atribuída responsabilidade pelo homicídio das duas crianças
enquanto cúmplice e a título de dolo eventual (arts. 27º, 131º e 14º/3). Então, estes crimes
entrarão em concurso efectivo, real e heterogéneo com os de tráfico de pessoas (arts. 30º/1 e
77º/1 e 2).
Se Rashid tiver actuado com negligência quanto à vida das crianças, ficará impune, pois
a cumplicidade só está inequivocamente prevista na forma dolosa e relativamente a crimes
dolosos (arts. 1º/1, 27º e 13º CP, 29º/1 CRP). A resposta apresentada neste ponto II será
valorada apenas na ponderação global, por se tratar de matéria não desenvolvida no 1.º semestre.

1.b) Artur, Bernard e Rashid realizaram o tipo do art. 183º/2 da Lei n.º 23/2007:
favoreceram ou facilitaram, por qualquer forma e todos com intenção lucrativa, a efectiva entrada
(ilegal) no território nacional dos imigrantes vindos da Serra Leoa. Este facto é punível com pena
de prisão de 1 a 5 anos.

Os quatro tripulantes do barco praticaram o crime previsto no art. 183º/3 do mesmo


diploma, sujeitando-se a uma pena de prisão de 2 a 8 anos.

Bernard cometeu, ainda, o crime de angariação de mão-de-obra ilegal (art. 185º/1 da Lei
n.º 23/2007): com intenção lucrativa, para si e para terceiro (Artur), aliciou e angariou os 150
nacionais da Serra Leoa destinados à apanha da azeitona no Alentejo, com o objectivo de os
introduzir no mercado de trabalho português, sem serem titulares de autorização de residência ou
visto que os habilitasse ao exercício de uma actividade profissional. Como tal, poderia ser punido
com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Apesar de Bernard ter efectivamente realizado os tipos dos arts. 183º/2 e 185º/1, da Lei
n.º 23/2007, apenas deveria ser responsabilizado pelo mais gravemente punido: o de angariação
de mão-de-obra ilegal, apesar de esta ser, no caso concreto, meramente instrumental do crime-
fim de auxílio à imigração ilegal (“consunção impura” do “crime-fim” pelo “crime-meio”).
Contudo, este último crime deverá ser valorado na determinação da pena concreta do crime de
angariação de mão-de-obra ilegal.

A outra questão suscitada por esta alínea é a de saber se há concurso efectivo ou apenas
aparente entre os crimes de tráfico de pessoas [art. 160º/4, al. a) CP], angariação de mão-de-obra
ilegal e auxílio à imigração ilegal (arts. 183º e 185º da Lei n.º 23/2007).
A diversidade de bens jurídicos tutelados (respectivamente, a liberdade e a soberania
sobre as fronteiras nacionais e sobre as condições de acesso de cidadãos estrangeiros ao mercado
de trabalho português) não basta para afirmar o concurso efectivo de infracções. Importa antes
saber se o comportamento global dos agentes é, numa perspectiva social, reconduzível a um

  5  
preponderante (e, assim, essencialmente unitário) sentido de ilicitude ou se, ao invés, é necessário
autonomizar os diversos sentidos de ilicitude típica.
Nesta óptica poderá sustentar-se que o significado social do ilícito global é
esgotantemente contemplado pelo crime agravado de tráfico de pessoas [art. 160º/4, al. a)], que,
aliás, corresponde ao sentido preponderante e, nessa medida essencialmente unitário, desse
comportamento. Tanto mais que, se assim se não procedesse, estaria a valorar-se e a punir-se
duas vezes as condutas em causa: violação do princípio “ne bis in idem” – art. 29º/5 CRP.
Todavia, os crimes de auxílio à imigração ilegal e de angariação de mão-de-obra ilegal (no caso de
Bernard) deverão ser considerados na determinação da pena concreta do crime agravado de
tráfico de pessoas, aproximando-a do limite máximo da pena legal.

    2. A competência da lei penal portuguesa está regulada nos artigos 4.º e ss. do Código
Penal.
De acordo com o artigo 4.º, alínea a), os tribunais portugueses têm competência para
aplicar a lei penal portuguesa quando os factos sejam praticados “em território português, seja
qual for a nacionalidade do agente”.
O artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 33/77, de 28 de Maio, dispõe que “a largura do mar
territorial português é de 12 milhas marítimas”, medida correspondente a aproximadamente 22
quilómetros.
O transporte dos passageiros com o fim referido no artigo 160.º, n.º 1, do Código Penal,
foi feito até à distância de 15 quilómetros da costa (operando assim a entrada dos cidadãos
estrangeiros no território nacional: artigo 183.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007) e é também a uma
distância não superior a 15 quilómetros que ocorrem o abandono do barco (artigo 138.º do
Código Penal) e as mortes das vítimas (artigos 131.º e 137.º do Código). Tendo-se o facto como
praticado no lugar da actuação, pelo menos parcial, do agente ou da verificação do resultado
(segundo o artigo 7.º, n.º 1, do Código), conclui-se que todos os factos passíveis de realizar os
tipos de crime invocados na questão 1 (exceptuando os factos respeitantes ao crime de
angariação de mão-de-obra ilegal, praticados exclusivamente em território estrangeiro)
consideram-se praticados em território português para efeitos de atribuição de competência à lei
penal portuguesa, não obstante a execução dos mesmos não ter ocorrido apenas em território
português.
Assim, em conclusão, a lei penal portuguesa é competente em nome do princípio da
territorialidade. Deve ser aplicada esta lei e não a lei penal estrangeira, visto que a convocação
desta só se daria nos termos do artigo 6.º e a aplicação deste artigo pressupõe a aplicação do
artigo 5.º, pressuposto não cumprido no caso presente.

O que foi dito não se aplica, porém, a Bernard e a Rashid, já que a sua actuação não
teve lugar em território português. Em relação a estes agentes, coloca-se então separadamente a
questão de saber se deve ser aplicada a lei penal portuguesa aos factos por si praticados, passíveis
de constituir os crimes de tráfico de pessoas, homicídio, auxílio à imigração ilegal e ainda, no caso
de Bernard, angariação de mão-de-obra ilegal.
Não se atribuindo competência aos tribunais portugueses por via do artigo 4.º do Código
Penal, resta a hipótese de o fazer por aplicação de alguma das alíneas do artigo 5.º
O crime de tráfico de pessoas inclui-se no elenco de crimes referidos na alínea c) do
artigo 5.º, n.º 1. Um dos pressupostos da aplicação desta alínea, porém, é de o agente ser
encontrado em Portugal, o que não ocorre no caso. A mesma circunstância impede a atribuição
de competência à lei penal portuguesa para efeitos de apreciação dos restantes crimes nos termos
da alínea f). As restantes alíneas do mesmo número não estão também preenchidas, visto que os
crimes não fazem parte dos catálogos das alíneas a) e d) e não foram praticados por portugueses
ou pessoas colectivas nem contra portugueses ou pessoas colectivas.
Assim, a lei penal portuguesa não é competente no que respeita aos factos praticados por
Bernard e Rashid.

3. A verificação da admissibilidade da extradição dos cinco agentes pelos crimes


referidos deve ser feita à luz do disposto na Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.

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De acordo com o artigo 6.º, n.º 1, alínea f), o pedido de extradição é recusado quando
“respeitar a infracção a que corresponda pena de prisão (...) com carácter perpétuo”. Esta recusa
só não terá lugar quando o Estado requerente preste as garantias referidas no artigo 6.º, n.º 2,
alínea b), ou verificando-se os pressupostos das alíneas c) e d) do mesmo número. Nada se
dizendo no enunciado em nenhum destes sentidos, o pedido de extradição pelo crime a que
corresponde a pena de prisão perpétua na Turquia deve ser rejeitado. Esta rejeição não obsta,
porém, à extradição pelos outros crimes, nos termos do artigo 16.º
Na falta de informação suficiente, pressupõe-se cumprido o requisito da dupla
incriminação, nos termos do artigo 31.º, n.º 2 – no que respeita, nomeadamente, ao limite
mínimo de um ano aí referido.
Uma vez que os factos praticados por Artur e pelos tripulantes se consideram realizados
em território português, porém, o pedido de extradição deve ser recusado em relação a estes
agentes, de acordo com o disposto no artigo 32.º, n.º 1, alínea a).

4. O tipo de argumentação invocado pelos tripulantes parece querer reconduzir-se à


lógica da contraprova do perigo no âmbito dos crimes de perigo abstracto. De acordo com uma
certa orientação interpretativa dos crimes de perigo abstracto, não obstante o perigo se
configurar, nestes tipos incriminadores, como mero motivo da incriminação, não sendo
necessário verificar, para o seu preenchimento, a perigosidade in concreto do comportamento, a
demonstração negativa do perigo imporia, no entanto, uma redução tipológica. Efectivamente, a
técnica do crime de perigo abstracto não seria constitucionalmente compatível com presunções
inilidíveis de perigo, pelo que, concluindo-se, no caso, que o comportamento não se revela ex ante
perigoso para bens jurídicos, tendo em conta as condições concretas em que é realizado, não
poderia o agente ser punido, sob pena de violação do princípio da necessidade da pena.
Não só não parece ser o que sucede nesta situação, – uma vez que abandonar um barco à
velocidade máxima em direcção à costa, com imigrantes já em estado de extrema vulnerabilidade,
representa, de uma perspectiva ex ante, um risco de embate com embarcações e rochedos –, como
o crime de exposição ou abandono não consubstancia um crime de perigo abstracto, mas um
crime de perigo concreto, em que o perigo assume a natureza de elemento típico (“quem colocar
em perigo a vida de outra pessoa”). Desta forma, configurando o comportamento dos agentes a
acção descrita no tipo (alínea a) do n.º 1 do art. 138.º) e verificando-se, positivamente e ex post, o
resultado de perigo para a vida como consequência dessa acção, ou seja, um risco concreto de
colisão (“só não morreram todos numa eventual colisão com outro navio graças à pronta
intervenção das autoridades portuguesas”), em que a probabilidade de lesão dos bens jurídicos
não aparenta ser inferior à probabilidade do seu salvamento, nada obsta à punição dos agentes à
luz do princípio constitucional da ofensividade, sendo o argumento improcedente.

5. Por um lado, temos um problema de aplicação de lei penal no tempo. No momento da


prática do facto, a lei vigente (L1) não previa que o consentimento pudesse justificar o facto.
Contudo, uma lei posterior (L2) veio consagrar tal causa de exclusão de ilicitude.
A L2 é mais favorável que a L1 (uma vez que sem ilicitude não há crime). Numa primeira
análise, os fundamentos da aplicação retroactiva de lei penal mais favorável também são
invocáveis a propósito da criação (posterior) de uma causa de exclusão de ilicitude.
De facto, se o legislador entendeu, em L2, que não era necessário punir o agente quando
se verificassem os pressupostos da causa de exclusão da ilicitude (quando o conflito de interesses
em causa tivesse sido resolvido de uma forma que a lei, a partir daquele momento, não considera
desvaliosa), então, seria o próprio princípio da necessidade da pena a impedir que, a partir da
entrada em vigor de L2, qualquer outro facto que preenchesse a referida causa de exclusão da
ilicitude pudesse ser punido, aplicando-se retroactivamente aos factos praticados antes da sua
entrada em vigor, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CP (uma vez que o facto punível segundo a lei
vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções).
Assim, numa primeira análise, pareceria que se poderia aplicar a L2 retroactivamente.
Contudo, em L2 temos um problema de violação do princípio da legalidade, na vertente
de reserva de lei. Nos termos do artigo 165.º, alínea c), da Constituição, a definição dos crimes, penas,
medidas de segurança e respectivos pressupostos cabe à Assembleia da República ou ao Governo

  7  
mediante autorização da Assembleia da República. No presente caso, o Governo legislou sem
autorização da Assembleia da República.
É controverso se a reserva de lei se aplica às causas de exclusão da ilicitude, na medida em
que estas, em certas circunstâncias, admitem aplicação analógica (analogia favorável). Sendo
assim, perguntar-se-ia qual o sentido de proibir o Governo de criar uma eximente de
responsabilidade, quando o intérprete o poderia fazer por via analógica.
Em geral, entende-se que a aplicação analógica de causas de justificação (e a consequente
permissão de criação pelo Governo) apenas seria possível naqueles casos em que a causa de
exclusão de ilicitude resulta de uma ideia geral de liberdade.
Ora, na presente hipótese, não parece ser esse o caso.
Tendo a AR entendido que a “liberdade pessoal” (rectius: a dignidade pessoal) constitui um
bem jurídico carente de tutela penal nos casos tipificados como de tráfico de pessoas, a opção do
Governo de excluir a punição nos casos de consentimento da pessoa traficada traduz uma ofensa
manifesta de qualquer princípio geral de liberdade (sendo atentatório inclusive de qualquer
conceito material de crime minimamente operante, ainda que, em geral, se entenda que não
existem obrigações implícitas de criminalização).
Sendo assim, admitindo a inconstitucionalidade de L2, ter-se-ia de verificar se, a final, a
mesma poderia ser retroactivamente aplicada no presente caso (conforme anteriormente ficou
sugerido)
De acordo com uma das perspectivas possíveis deste problema, poderia ser aplicada
retroactivamente a lei penal inconstitucional concretamente mais favorável, considerando os
princípios da confiança (objectiva) da comunidade no direito produzido pelo Estado e da
segurança jurídica.
Contudo, no presente caso, esta perspectiva poderia ficar prejudicada na medida em que se
poderia tratar, também, de uma inconstitucionalidade material.
De acordo com uma orientação distinta, a lei penal inconstitucional é nula, não tendo
realmente “entrado em vigor” nem revogado validamente a lei anterior, e não pode ser aplicada
(art. 204.º da Constituição), uma vez que a determinação da lei válida é algo que antecede, lógica e
valorativamente, a colocação do problema da sucessão de regimes jurídicos no tempo. Por outro
lado, sendo o facto praticado anterior à aparência de vigência desta norma inconstitucional que,
como tal, não pode ter orientado o comportamento do agente, não deve sequer ser invocada
qualquer expectativa legítima a tutelar de acordo com o regime da falta de consciência da
ilicitude, que conduziria a uma exclusão da culpa por erro não censurável induzido pelo próprio
legislador (artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal).

Lisboa, 15 de Janeiro de 2015.

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Direito Penal I
3.º Ano – Dia – Turmas A e B
Regência: Professora Doutora Maria Fernanda Palma
Colaboração: Prof.ªs Dr.ªs Helena Morão e Teresa Quintela de Brito e Mestres João Viana e António
Brito Neves
Exame de Coincidências – 20 de Janeiro de 2015
Duração: 120 minutos

Sapatos no lugar

Em Janeiro de 2015, entra em vigor um Decreto-Lei que prevê um crime com o seguinte teor:
(Utilização abusiva de transporte público rodoviário) - “Quem apoiar directamente os pés sobre os
estofos de um banco de um transporte público rodoviário será punido com multa até 120 dias”.
Em Fevereiro, Barata faz uma viagem de autocarro em Lisboa. Como os sapatos novos lhe
magoam os pés, descalça-se. Para evitar que alguém se sente no banco ao lado do seu, coloca os
sapatos em cima do mesmo e deixa os pés descalços no chão.
Uns minutos depois, outro passageiro pede-lhe que retire os sapatos do banco e o deixe sentar-se,
mas Barata recusa. Eusébio, motorista do autocarro, apercebe-se do sucedido e repete o pedido do
passageiro, mas Barata ignora-o. Eusébio pára então o autocarro e chama a polícia.
Passados poucos minutos, Águia, agente da PSP, chega ao local. Ao vê-lo entrar no autocarro,
Barata diz-lhe: “Olha-me este palhaço” e “Palermas como tu não me intimidam”. Face à recusa, por
parte de Barata, em identificar-se e em acompanhá-lo à esquadra, Águia agarra-lhe o braço, a fim de
o conduzir para fora do autocarro, mas Barata começa a espernear e acerta com um pontapé nas
costelas do agente. Arranca também o botão da farda rasgando-a e tenta encetar a fuga do local,
acabando por ser algemado. Ao ouvir o agente Águia chamar reforços via rádio, diz-lhe: “Chama os
teus manos, chama, que uma noite destas apanho-te sozinho numa esquina e já não vais jantar a
casa...”.
Já depois da chegada dos agentes Eugénia e Abílio, Barata continua a tentar escapar à detenção,
gritando: “Larguem-me, seus palhaços! A vossa sorte foi terem-me apanhado descalço! Mas esperem
só que eu me calce e vos encontre numa esquina uma noite destas... Limpo-vos o sebo!”.

1. Analise a constitucionalidade da norma que criminaliza a utilização abusiva de transporte público


rodoviário. (4 vls.)

2. Independentemente da resposta à questão anterior, Barata poderia vir a ser condenado por este
crime? (4 vls.)

3. Admitindo que a resposta à questão anterior é positiva, imagine que no dia a seguir à leitura da
sentença condenatória entra em vigor uma lei que vem alterar o crime de utilização abusiva de
transporte público rodoviário, passando a norma a prever o seguinte: “Quem apoiar directamente os
pés sobre os estofos de um banco de um transporte público rodoviário e deste modo impedir a
utilização do banco por outros passageiros será punido com multa até 60 dias”.
Que consequências tem esta alteração para a responsabilidade de Barata? (5 vls.)

4. Tendo somente em conta o disposto nos artigos 143.º, n.º 1 (Ofensa à integridade fís ica), 145.º,
n.º 1, alínea a), e n.º 2 (Ofensa à integridade física qualificada), 153.º (Ameaça), 181.º (Injúria), 212.º
(Dano) e 347.º (Resistência e coacção sobre funcionário), por quantos crimes poderá ser
responsabilizado Barata? Quais? (5 vls.)

Correcção da linguagem, clareza de raciocínio, capacidade de síntese e profundidade de


análise: 2 vls.

1.
O objectivo da norma parecer ser o de garantir a utilização devida dos transportes públicos
rodoviários, de modo a que, por um lado, a fruição destes por um passageiro não frustre a fruição
pelos restantes, e, por outro, a prevenir a danificação do material.
Tais fins não cumprem, porém, as exigências respeitantes ao conceito material de crime.
Em primeiro lugar, não é possível identificar um bem jurídico com dignidade penal que seja
protegido pela presente norma.
Em segundo lugar, não se pode falar aqui de uma prévia ressonância ética social negativa das
condutas criminalizadas. De acordo com o ensinamento de Fernanda Palma, a exigência deste relevo
ético constitui também uma decorrência do pensamento do conceito material de crime.
Em terceiro lugar, mas ligado ao que acabou de se dizer, parece poder defender-se que a norma
tem um propósito de orientar as condutas dos agentes, baseado numa concepção sobre o que é
correcto e incorrecto no modo de estar em público. Este tipo de concepções, porque desligadas de
qualquer lógica de protecção de bens jurídico-penais, não pode legitimar uma criminalização, sob
pena de sair frustrado o propósito de neutralidade ideológica que deve subjazer ao conceito material
de crime, desconsiderando-se igualmente a lógica de ultima ratio que caracteriza a tutela penal de bens
jurídicos (pois o legislador dispõe de outros meios para prosseguir os fins anunciados).
Deste modo, a norma viola o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
Há ainda que salientar que o Governo não poderia proceder a esta criminalização sem estar
devidamente autorizado para tal pela Assembleia da República, sob pena de inconstitucionalidade
por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Lei Fundamental.

2.
A questão coloca um problema de interpretação e aplicação (em sentido lato) da norma ao caso
apresentado. A norma proíbe o apoio dos “pés” sobre os bancos. O agente apenas apoiou, porém,
os sapatos, e “deixou os pés descalços no chão”.
A aceitar-se, em termos rigorosos, a posição de que a interpretação admissível em Direito Penal
está limitada pelo sentido possível das palavras, parece difícil considerar típica a presente conduta,
uma vez que “sapato” não é um significado possível do significante “pé”. Assim, parece que a
decisão de punir o agente por este crime violaria a proibição da analogia, decorrente do artigo 29.º,
n.º 1, da Constituição, e consagrada no artigo 1.º, n.º 3, do Código Penal.
Há autores que questionam, porém, a legitimidade de tal vinculação, apontando, nomeadamente, a
inviabilidade metodológica da pretensão de avançar com a limitação imposta pela letra da lei. Quem
pense nestes termos tenderá a relevar a teleologia da norma - ou, dito em termos mais rigorosos,
tenderá a procurar para lá do texto, através de um processo interpretativo normativamente
constitutivo, a norma de decisão do caso - e, no presente caso, defenderá que o sentido normativo-
prático do preceito se traduz (também) na imposição de uma sanção penal a quem colocar os
sapatos no banco - pelo menos numa situação em que esses sapatos são normalmente utilizados pelo
proprietário no seu quotidiano.
De todo o modo, mesmo quem, como Fernanda Palma, se preocupe em não aceitar um total
desprendimento em relação à letra da lei poderá defender que o agente deverá ser punido neste caso,
com base na ideia de que o balizamento deve ser feito, não tanto por referência ao sentido possível
de cada palavra em si, mas sobretudo por referência ao texto globalmente considerado e atendendo
ao significado que as palavras adquirem com o seu uso na linguagem social. Com efeito, é defensável
a ideia de que o conjunto do texto traduz uma proibição de colocação sobre os bancos dos pés
calçados ou descalços - parecendo inclusive fazer mais sentido para os casos de pés calçados. Assim
sendo, não seria razoável entender que o sentido possível do texto não abrange também a imposição
de uma punição a quem coloque sobre o banco os sapatos (que utiliza no dia a dia) sem pés lá
dentro. Em suma, esta conduta parece inserir-se ainda no núcleo do tipo de condutas que se quer
proibir (não escapando assim, por outras palavras, à essência da proibição).

3.
A nova lei altera a previsão típica da norma criminalizadora, acrescentando-lhe um novo elemento.
Em abstracto, pode ver-se que a conduta tanto é crime à luz da lei antiga como da lei nova. Coloca-
se, todavia, a questão de saber se há uma verdadeira sucessão de leis penais no tempo ou,
diferentemente, uma descriminalização da conduta de Barata. Se se der o primeiro caso, terá depois
de se aferir qual o regime concretamente mais favorável ao arguido. No segundo, o agente não deve
ser punido por nenhuma das leis.
Adoptando-se o pensamento de Taipa de Carvalho sobre o problema da aplicação da lei penal no
tempo, dir-se-á que ocorre aqui uma verdadeira descriminalização. Com efeito, a nova lei vem
restringir o âmbito típico da previsão da norma introduzindo-lhe um novo elemento, pelo que é uma
lei especializadora em relação à lei antiga. Uma vez que a punibilidade é agora limitada aos casos em
que o agente impeça a utilização do banco por outros passageiros, a punição de Barata implicaria a
valoração retroactiva desta circunstância como típica, pois ela não o era quando o agente praticou o
facto. Além disto, dir-se-á que a solução da punição implicaria uma violação do princípio da culpa
(na medida em que se ficciona o dolo do agente em relação ao novo elemento típico), do princípio
da igualdade (já que o destino do arguido fica também dependente do acaso de se ter ou não dado
como provado o elemento típico que não o era na altura do julgamento) e um desvirtuamento da
função de orientação que caberia às normas penais (pois o agente poderia ter orientado a conduta
diferentemente se a circunstância fosse já tida como típica no momento em que actuou). Aceitando-
se estas razões, conclui-se que ocorre no caso uma verdadeira descriminalização e aplica-se o artigo
2.º, n.º 2, do Código Penal, pelo que bastará a Barata interpor recurso e o tribunal de 2.ª instância
deverá absolvê-lo.
Pode também tentar defender-se, no entanto, a primeira solução apresentada - a de que há uma
verdadeira sucessão de leis penais. Neste sentido, dir-se-á que não há uma verdadeira
descriminalização, já que o legislador restringiu o âmbito típico, mas a conduta (concreta) mantém-se
punível. Numa representação desta sucessão de leis através de círculos concêntricos, a conduta de
Barata está contida no círculo interno e, como tal, não é afectada pela alteração legal. Assim, parece
não haver violação da proibição de retroactividade. Em relação ao princípio da igualdade, a tese de
que este seria violado por uma decisão de punição implica pressupor que o arguido goza de uma
posição que merece o favor da sorte. O legislador não recuou na ideia de que a conduta concreta do
agente deve ser punida (independentemente de passar a sê-lo menos gravemente), pelo que não está
tanto em causa a condenação injusta daquele que tem o azar de ter sido provado o elemento
posteriormente tornado típico, mas sim a felicidade do agente que praticou uma conduta semelhante
sem que a mesma prova tivesse sido realizada. Em relação à função de orientação das normas
penais, pode dizer-se que a alteração legal não invalida o juízo de que o agente (livremente) decidiu
agir contra a norma na versão antiga (que incluía igualmente condutas como a livremente assumida
por Barata). Este factor, conjugado com a constatação de que a força de motivação das normas não
é empiricamente comprovável a este ponto, por um lado, e com a ideia de que o critério da
censurabilidade da conduta do agente passa mais pela medição da rectitude do seu agir (por
referência aos valores promovidos pelo sistema normativo) do que pela aferição da impossibilidade
em que o agente estava de conhecer o critério normativo da censura (na linha do pensamento de
autores como Figueiredo Dias), permitem refutar aquele argumento
Parece não se poder negar, todavia, que esta solução implica ficcionar o dolo quanto ao novo
elemento típico. Assim sendo, conclui-se que há uma verdadeira descriminalização da conduta de
Barata.

4.
A questão coloca o problema de saber qual a relação, em termos de concurso, entre os crimes
enunciados.
Em relação aos crimes de ofensa à integridade física, cujos tipos são realizados com o pontapé que
Barata acertou nas costelas de Águia: uma vez que se pode presumir preenchida a alínea l) do artigo
132.º, n.º 2, por remissão do artigo 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, estamos perante uma ofensa à
integridade física qualificada (não é exigida a análise da existência de uma especial censurabilidade ou
perversidade do agente).
Realizado o tipo da ofensa à integridade física qualificada, podemos desde já afastar a aplicação do
artigo 143.º (ofensa à integridade física simples), pois esta é uma norma geral face à norma especial
do artigo 145.º.
O crime de ameaça atenta contra um bem jurídico eminentemente pessoal (a liberdade). Por este
motivo, podemos identificar pelo menos três crimes de ameaça, na medida em que há três vítimas
(os três agentes policiais). Pode discutir-se se o agente pratica contra o agente Águia apenas um
crime de ameaça ou dois, na medida em que, em termos naturalísticos, ele ameaça este agente em
dois momentos. Parece mais razoável, no entanto, defender que a “segunda” ameaça é antes um
prolongamento da primeira – atendendo, sobretudo, à proximidade temporal entre ambas –, pelo
que há apenas um total de três ameaças em concurso.
Relativamente ao crime de injúria (praticado com os insultos dirigidos contra os agentes), vale
aproximadamente o mesmo que acaba de ser dito quanto ao de ameaça. Também a injúria atenta
contra um bem jurídico eminentemente pessoal (a honra). Podemos novamente identificar pelo
menos três crimes de injúria, visto que os insultos são dirigidos aos três agentes. Pode mais uma vez
discutir-se se Barata pratica mais que um crime de injúria contra o agente Águia, visto que o insulta
três vezes. Mais uma vez parece poder descortinar-se uma unidade na conduta injuriosa contra
Águia, de modo que estão em causa apenas três crimes de injúria em concurso.
Há uma relação de subsidiariedade entre o crime de ameaça e o crime de resistência e coacção
sobre funcionário (artigo 347.º). Com efeito, a previsão típica deste crime inclui a “ameaça grave”
entre os seus modos possíveis de realização. Na medida em que se entenda, portanto, que o tipo do
artigo 347.º, n.º 1, está realizado através da ameaça, a punição por este crime é também afastada.
O que acaba de ser dito vale, com as devidas adaptações, para a relação entre o crime de ofensa à
integridade física qualificada e o de resistência e coacção sobre funcionário. Poderia discutir-se se
não se justifica uma autonomização daquele crime, na medida em que a ofensa não é simples, mas
qualificada. A verdade, porém, é que a qualificação ocorre em virtude da qualidade de funcionário da
vítima e a valoração de tal circunstância está já implicada na punição pelo crime do artigo 347.º
A previsão típica do crime de resistência e coacção sobre funcionário não inclui expressamente
entre os modos possíveis da sua realização a injúria. O sentido de ilícito correspondente a este crime,
porém, parece ceder face ao sentido de ilícito predominante daquele. Há uma unidade de sentido
global do comportamento do agente que permite integrar as injúrias realizadas na conduta de
resistência e coacção sobre funcionário, sendo assim mais razoável negar, portanto, a autonomia das
injúrias. Elas não deixarão de ser levadas em conta, de todo o modo, como factor agravante na
determinação da medida concreta da pena.
Aceita-se também a resposta do aluno que entenda haver concurso efectivo entre as injúrias e o crime de resistência e
coacção sobre funcionário, desde que devidamente fundamentada com base na autonomia entre os sentidos de ilicitude
daquelas e deste.
O que acaba de ser dito quanto à relação de concurso aparente entre as injúrias e a resistência e
coacção sobre funcionário vale, com as devidas adaptações, para a relação entre este crime e o de
dano (praticado quando Barata rasga a farda de Águia).
Por fim, cabe decidir se o agente deverá ser punido por um crime de resistência e coacção sobre
funcionário ou três, uma vez que há uma pluralidade de vítimas. Alguns autores, como Cristina
Líbano Monteiro, defendem que a pluralidade de funcionários atingidos não prejudica a unidade do
crime. Pode discutir-se se a protecção da pessoa do funcionário (dos agentes policiais, no caso) por
esta criminalização, embora apareça em segunda linha (relativamente à tutela da autonomia
intencional do Estado), tem relevância suficiente para nos fazer dizer que há três crimes (de acordo
com a pluralidade de agentes atingidos em bens eminentemente pessoais). Todavia, embora esta
posição seja defensável em abstracto, não parece que no caso concreto se justifique a punição por
três crimes, dada a pouca gravidade das ofensas praticadas contra os três agentes. Tal solução seria
mais razoável, por exemplo, se os três tivessem sido vítimas de ofensa à integridade física.
Aceita-se também a resposta que defenda haver um concurso efectivo entre três crimes de resistência e coacção sobre
funcionário, desde que devidamente fundamentada com base na consideração de que a tutela de bens jurídicos colectivos
não permite desconsiderar a tutela de bens jurídicos individuais.

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