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Flavia Bruno - O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 1

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O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 3

Infinito
o

Falsos e os

Infinitos
Física
na

Atomismo
do

Flavia Bruno
4 | Flavia Bruno

Autor: Flavia Bruno


Título: O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo

Primeira edição: 2022


Edição atual: maio/2022

Arte da capa: Z Edições


Fotos de miolo: Wikipedia
Design de miolo: Z Edições

Publisher: Zander Catta Preta @ Z Edições

FICHA CATALOGRÁFICA

165.6/.8 Bruno, Flavia.


O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo

/ Flavia Bruno - maio/2022 - Rio de Janeiro -
Z Edições, 2022.
70 f.

ISBN: 979.882.748.821-7

.Filosofia. 2.Atomismo. 3.Física e Ética. 4.Infinito.


1
5.Demócrito, Epicuro e Lucrécio.

I. Título
CDD 121
Infinito
o

Falsos e os

Infinitos
Física
na

Atomismo
do

Flavia Bruno

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O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 7

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Mas a gente não irá fazer muito esforço, você sabe…


8 | Flavia Bruno

Estátua de Epicuro entronado, provavelmente erigida após sua morte; reconstrução por K. Fittschen, Universidade de Göttingen.
Fonte: Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Epicurus#/media/File:Epikur_Statue.jpg)
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Sumário

Prefácio......................................................................................... 13

Introdução.................................................................................... 15

A união entre a física e a ética..................................................... 17


Os falsos infinitos.................................................................. 19
O caos primordial........................................................................ 23
Átomos e vazio: dois infinitos.................................................... 26
A natureza não sensível do átomo........................................ 28
Os átomos e as qualidades do mundo dos fenômenos........ 30
O movimento atômico.......................................................... 31
A natureza como causa imanente............................................... 35
A declinação................................................................................. 40
A declinação como ato de criação........................................ 44
Um mundo infinito e um número infinito de mundos............ 47
O abandono da lei e da causalidade............................................ 50
As emanações............................................................................... 54
Os simulacros de terceira espécie............................................... 59

Conclusão..................................................................................... 64

Referências................................................................................... 66
10
Busto de Titus Lucretius Carus (ca. 99 BC – ca. 55 BC), autor de De rerum natura. Autor desconhecido.
Fonte: Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Lucretius#/media/File:Lucretius1.png)
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“A f í s ic a d e L uc r é c io e s t á f or a .
E a nossa o está de novo. Os velhos
sistemas fechados são abstrações
ou ideias. É chegado o tempo da
abertura” (SER R ES, 20 03, p. 107).
12
Busto romano de Epicuro, copiado de original grego perdido (c.séc.III EC)
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Epicurus#/media/File:Epikouros_BM_1843.jpg)
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Prefácio

Q uando o físico comenta sobre o atomismo, tem-se


a impressão de estar em face a uma questão puramente fe-
nomenológica.
Ele pretende informar que a hipótese de Leucipo/Demócrito
é verdadeira. Seguindo esse caminho, a ciência, além de reco-
nhecer que tudo é feito de átomos, aprofundou esse mergulho
no íntimo da matéria e descobriu que estes átomos são feitos de
partículas ainda menores: de um lado quarks, de outro leptons.
Essa interpretação puramente mecanicista apequena a filosofia
que aqueles gregos procuravam ensinar.
Neste texto Flavia Bruno restabelece a grandiosidade perdida
e recorre aos ensinamentos originais (Leucipo, Demócrito, Epicu-
ro, Lucrécio) para mostrar o significado oculto do atomismo que
vai muito além da superficialidade material que os físicos desenvol-
vem e nos oferece uma maravilhosa dimensão do pensamento ato-
mista, a saber “livrar a alma humana das paixões que a ameaçam”.
Nesse caminho, Flavia faz uma verdadeira exortação em favor
do conhecimento e da necessidade de aprofundar cada vez mais
a investigação da natureza em seus detalhes, quer no mundo mi-
cro (onde se estruturam os átomos), quer em suas dimensões cós-
micas, onde se põe em questão a própria criação desses átomos ao
mergulhar na origem desse universo. Em suas palavras, “a com-
preensão do cosmos é a compreensão da própria ética e o cami-
nho para a felicidade”.
14 | Flavia Bruno

Por fim, ela nos leva a compreender porque o vazio da física


não deve se identificar com o não-ser e, seguindo Epicuro, mos-
tra como ele é eterno, assim como os átomos.

Mario Novello
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 15

Introdução

O que se pode chamar de Filosofia Atomista passa por


uma sequência de pensadores do período antigo, a começar
pelo que é considerado a personalidade mais obscura dos pré-so-
cráticos: Leucipo de Abdera. Acreditando-se no testemunho de
Aristóteles (2002, I, 4, 985b 5; 2001, I, 1, 2 e 8) e de Diôgenes
Laêrtios (1987, IX, 6; 30), ele seria o criador da teoria dos átomos,
estabelecendo os seus princípios fundamentais, como a multipli-
cidade originária dos átomos, seu caráter indivisível, ingerado,
imperecível e infinito, tendo sido essa a teoria posteriormente de-
senvolvida em um sistema físico por seu discípulo, Demócrito de
Abdera, que se tornou chefe da escola atomista. Esse último, por
sua vez, teria escrito uma obra intitulada A grande cosmologia, com
a qual angariou distinção e honraria (LAÊRTIOS, 1987, IX, 7; 39).
Tempos depois, ainda no mundo grego, o atomismo será re-
cepcionado por Epicuro, que manterá os princípios desta filosofia e,
no mundo romano, conhecerá em Lucrécio o seu maior expoente.
De Leucipo restou apenas um fragmento conhecido e, de
Demócrito, mais de duas centenas deles, versando sobre moral,
física, política e educação; de Epicuro, que teria escrito cer-
ca de trezentos volumes, se conservaram três cartas completas,
que revelam o essencial de seu pensamento e, de Lucrécio, foi
preservado o seu poema De rerum natura na integridade, a mais
completa fonte para o estudo da filosofia atomista e, em parti-
cular, da física.
16 | Flavia Bruno

Assim, ainda que pesem as diferenças entre esses diversos au-


tores (e a obra de Marx, Diferenças da filosofia entre Demócrito
e Epicuro, é dedicada a essa distinção), o presente trabalho traçará
uma linha comum entre eles, destacando ideias e princípios gerais
da física atomista, sem referências personalísticas ou autorais1.

1  umpre registrar o testemunho de Cícero, que afirma ser a maior parte


C
da compreensão física de Epicuro obra de Demócrito (Do sumo bem e do
sumo mal, I, VI).
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A união entre
a física e a ética

R ichard Feynman, em sua obra Física em doze lições


– fáceis e não tão fáceis, faz uma curiosa pergunta: na cir-
cunstância de todo o conhecimento humano ter desaparecido
e aos homens restar apenas uma frase para transmitir às gerações
seguintes, que frase poderia conter o maior número de informa-
ções, usando um número mínimo de caracteres? Eis a sua respos-
ta: “todas as coisas são feitas de átomos”.
Feynman encontra no atomismo a melhor das sínteses para
expressar todas as ideias científicas construídas ao longo da his-
tória e do progresso humano, porque, diz ele, com um pouco de
imaginação, muito se pode desdobrar daí (2017, p. 35-36). Este
singelo enunciado seria suficientemente potente para fazer multi-
plicar inúmeros conceitos e teorias. Mais do que isso, para tornar
compreensível o que é a natureza.
O atomismo propõe ao homem abrir os olhos para a riqueza
e beleza do mundo: sua teoria afirma a vida em sua plenitude, em
sua pujança, em sua vitoriosa força. E, a partir da visão metafísica
ou cosmológica, o atomismo desemboca em uma severa e singu-
lar teoria ética, levando o homem a superar o que lhe tira o sono
e a tranquilidade da alma. Os autores que se dedicam a esta com-
preensão da natureza podem olhar para o homem comum e cal-
mamente lhe esclarecer: tais perturbações não lhe dizem respeito.
18 | Flavia Bruno

Assim, o estudo da física, para Epicuro, não se limita ao estu-


do dos fenômenos celestes. A compreensão da natureza é um im-
perativo ao homem, porque só compreendendo o funcionamento
do cosmos e, por conseguinte, a composição de todas as coisas,
que o homem pode se libertar do que lhe atormenta e angustia.
Diz Epicuro:

em primeiro lugar, lembra-te de que, como tudo


mais, o conhecimento dos fenômenos celestes, quer
os consideremos em suas relações recíprocas, quer iso-
ladamente, não têm outra finalidade além de assegu-
rar a paz de espírito e a convicção firme, à semelhança
das outras investigações (Carta a Pitoclés, 1987, 85).

Do mesmo modo, em outra carta, Epicuro afirma que dedica


suas energias, de modo incessante, à investigação da natureza e é
daí que tira, sobretudo, a sua calma (Carta a Herôdotos, 1987, 37).
Se o epicurismo é vulgarmente conhecido como uma teo-
ria do prazer, é em razão do objeto da ética, ou da vida prática,
ser o prazer, o que significa uma ausência ou um meio de evitar
a dor. Entretanto, mais do que as dores físicas que podem afetar
o homem, existem obstáculos maiores e mais fortes: os fantas-
mas, os terrores, o medo da morte, em suma, tudo o que forma
a inquietação da alma, todas as superstições (deisidaimonia) que
ocupam o coração do homem (LUCRÉCIO, 2010, II, 46; IV, 5).
Como diz Deleuze, a humanidade vive aterrorizada, mais do que
dolorida (1988, p. 279). Os homens vivem em uma espécie de de-
lírio, sem colocar limites nos seus terrores e com isso vão sofrendo
intensas perturbações (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 81).
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Por isso, é preciso estudar o atomismo. É preciso estudá-lo


para se aprender a desprezar o que consome e destrói o homem
e não voltar mais atrás nessas tolices, posto que a superstição
inspira ações ímpias e criminosas (LUCRÉCIO, 2010, I, 83;
101). A busca pelo prazer ou a conquista de uma vida feliz de-
manda não uma entrega a preceitos morais, mas uma rigoro-
sa entrega ao entendimento, ao conhecimento do cosmos. Diz
Epicuro: “o conhecimento dos fenômenos celestes, quer em suas
relações recíprocas, quer isoladamente, não tem outra finalidade
além de assegurar a paz de espírito e a convicção firme” (1987,
Carta a Pitoclés, 85) e isso lhe trará uma segurança incompara-
velmente forte em relação ao resto da humanidade (1987, Carta
a Herôdotos, 82-83); reduzirá a nada suas vagas ilusões e o tirará
da pior das servidões.
A ignorância em que o homem vive mergulhado é a causa dos
vãos temores que lhe sufocam e angustiam. O homem é como
uma criança que de noite se apavora por tudo, mas, diferente-
mente da criança que se liberta dos medos com a aurora da ma-
nhã, a saída do homem dessa condição requer o tenaz estudo da
natureza (LUCRÉCIO, 2010, II, 55-60; III, 85; VI, 35-40). Nes-
se sentido, a filosofia não é, como ensina Bergson, uma consola-
ção em tempos de miséria, mas o objeto mesmo da vida (1972, p.
271); a filosofia atomista, particularmente, é um sistema confron-
tado com a vida, com uma clara intenção: livrar a alma humana
das paixões que a ameaçam, a perturbam e a obscurecem.

Os falsos infinitos
O medo da morte e dos deuses estão na origem mais violenta
das emoções que devastam a vida do homem e o tornam inca-
2 0 | Flavia Bruno

paz de desfrutar a felicidade (BOYANCÉ, 1963, p. 42). O medo


da morte leva o homem à ilusão de sua infinita capacidade em
obter prazer e o medo dos deuses leva o homem à ilusão da du-
ração infinita da alma. Lucrécio, no canto III, empenha-se em
demonstrar que a alma morre com o corpo, não necessitando
temer a vida após a morte e que o medo vão dos deuses tortura
os mortais (2010, III, 982). Resume bem Deleuze os dois falsos
infinitos que acometem a alma humana: “a inquietação da alma é,
pois, feita do medo de morrer quando não estamos ainda mortos,
mas também do medo de não estarmos ainda mortos quando já
o estivermos” (1988, p. 280). Trata-se de distinguir os verdadei-
ros e os falsos infinitos, dissipando as aflições desnecessárias que
consomem o homem ao longo de toda a sua vida.
Mais grave ainda são as consequências que esses medos pro-
duziram ao longo de toda a história humana. Diz Lucrécio que

possuídos por um terror sem razão, querendo fugir


para longe… forjam seus bens no sangue dos seus
concidadãos, duplicam as suas riquezas com avi-
dez, acumulando assassinatos sobre assassinatos;
cruéis, sua alegria irrompem nas sombras funerá-
rias de um irmão, odeiam e temem a mesa de seus
pais. Por uma razão semelhante, nascida do mesmo
medo, frequentemente a inveja os consome: sob
seus olhos este aqui é potente, aquele lá admirado,
avançam na glória e na honra, enquanto que eles
são envolvidos nas trevas e na lama, eis o objeto
de sua queixa. Morrem por um status e por um
nome… face ao espanto da morte o ódio de vi-
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ver e ver a luz apodera-se dos homens, fazendo-os


experimentar a morte na aflição do seu coração
(2010, III, 68-81, tradução nossa).

Ou seja, a excessiva riqueza, as inúmeras guerras, com-


pleta ainda Deleuze, a propriedade, as convenções do Direito
e da Justiça, as invenções da indústria, o luxo, o frenesi, esses
são os acontecimentos que provocam a infelicidade humana
e “não podem ser separados dos mitos que as tornam possí-
veis” (1988, p. 285). Além disso, as honras e as riquezas são
meios de aturdir o homem, fazendo-o se esquecer daquilo que
o inquieta; assim, o rico e o honrado acreditam estar mais
em segurança que o homem comum (BOYANCÉ, 1963, p.
147). Em uma só frase, o medo da morte é tão obsedante que
a própria vida humana se torna insuportável. Por isso Claudio
Ulpiano diz que o objetivo de Lucrécio é libertar o homem
dele mesmo (1994b).
Ainda que submerso nesses medos, o homem pode, através
do entendimento, vencer os falsos infinitos, concebendo as ideias
dos verdadeiros infinitos, aplicando-as na compreensão da pró-
pria natureza. Diz Epicuro:

a carne não admite limite algum ao prazer, nem


é limitado o tempo necessário para proporcioná-lo.
O espírito, entretanto, tendo atingido um enten-
dimento racional do bem carnal supremo e sem li-
mites, e tendo dissipado os temores relativos à eter-
nidade, proporciona-nos a vida integral, e já não
temos necessidade de tempo infinito (1987, XX).
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O elogio que Lucrécio faz a Epicuro no início do livro I mos-


tra que há muito o homem dispõe do instrumental teórico capaz
de livrá-lo dos fantasmas e dos terrores. Eis suas palavras:

A vida dos homens, aos olhos de todos, era até aqui,


oprimida sob o peso da religião que desde o céu lan-
çava do alto sua face aos mortais, numa horrível vi-
são, quando pela primeira vez um Grego ousa elevar
contra ela seus olhos de mortal e pela primeira vez
a confronta… Assim, a força eficaz de seu espírito
venceu… e a religião está esmagada e submissa a nos-
sos pés (2010, I, 62-78, tradução nossa).

Em resumo, é preciso não envenenar a felicidade com o medo,


não perverter o sistema da vida (LUCRÉCIO, 2010, I, 105), pos-
to que o grito da natureza é claro e fácil de ser compreendido: um
corpo isento de dor, uma alma livre de terrores e de inquietudes
(LUCRÉCIO, 2010, II, 18-19). Ou seja, para Epicuro conhecer
a physis não é apenas desenvolver uma teoria no domínio da ciên-
cia. Seu alcance é muito maior e muito mais significativo: conhe-
cer a natureza é o único caminho para nos purgarmos dos medos
e das ilusões da existência. Ou seja, a compreensão do cosmos
é a compreensão da própria ética; a compreensão da natureza,
o único caminho para a felicidade. Saber distinguir o que é da or-
dem da natureza e o que é da ordem do mito; o que é a da ordem
da vida e o que é da ordem das suas sombras.
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 2 3

O caos primordial

A cosmologia grega, de modo geral, não concebe


a ideia do nada, ou a ideia de que o nada possa gerar to-
das as coisas. A mitologia hesiódica, por exemplo, fala do caos
(Kháos) primordial, de onde nasce Terra (Gaia), Céu (Uranos)
e os outros deuses (HESÍODO, 1995, p. 120). O caos é um
vazio escuro, um abismo cego e ilimitado onde nada se pode
distinguir. Uma espécie de receptáculo que, numa noite eter-
na, a tudo envolve, traga e confunde. Ou seja, o que existe na
base do mundo é um abismo indiscernível, a reunião de todas
as coisas, onde, como diz Vernant, todas as fronteiras perdem
a nitidez (2000, p. 18). O mundo, com todas as suas distinções,
nasce desse caos, desse lugar que só pode ser pensado como um
excesso de ser, em contraposição à ideia judaico-cristã do nada,
exposta no primeiro livro do Gênesis.
O eleatismo, por sua vez, fala de uma realidade que sempre
foi e sempre será, rejeitando o que Parmênides chama de não-
-ser. Em seu Poema, ele afirma: “Jamais se conseguirá provar que
o não-ser é; afasta, portanto, o teu pensamento dessa via de inves-
tigação…” (2007, fragmento 7). Prossegue ele:

Resta-nos assim um único caminho: o ser é… não


sendo gerado, é também imperecível; possui, com
efeito, uma estrutura inteira, inabalável e sem meta…
Pois, não é possível dizer nem pensar que o não ser
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é… E jamais a força da convicção concederá que do


não-ser possa surgir outra coisa (2007, fragmento 8).

Em resumo, o pensamento eleata não concebe sequer a ideia de


nada, muito menos a ideia de que do nada algo possa ser gerado.
Em Platão, da mesma forma, a origem do mundo, exposta no
Timeu, concebe duas matrizes a partir das quais o demiurgo fará
o seu trabalho: as ideias pré-existentes que constituem a realidade
supra-sensível, existentes na eternidade e o receptáculo (hypodo-
ché), “a matriz de tudo o que devém” (2001, 48e-52c). De um
lado, ideias eternas, modelos paradigmáticos; de outro, um lugar
aformal, uma superfície lisa, aestrutural, ilimitada, indetermina-
da, em relação ao qual nenhuma coisa conhece estranheza.
O atomismo manterá esse princípio fundamental, segundo
o qual o nada (ou o não-ser) não pode dar origem às coisas ou ao
mundo. Afirma textualmente Epicuro: “Nada nasce do não-ser”
(1987, Carta a Herôdotos, 38). Logo, o cosmos é pensado por um
princípio de eternidade, não causando qualquer estranheza estar
a sua origem em um movimento de alguma coisa que existe desde
sempre. “O todo sempre foi exatamente como é agora, e sempre
será assim. Então, nada existe em que ele poderia transformar-se,
porque além do todo, nada há que possa penetrar nele e provocar
a transformação” (1987, Carta a Herôdotos, 39).
Esse caos original nunca desaparece, mas está sempre presen-
te. Ele alimenta a si mesmo num processo contínuo e eterno de
nascimento e morte.

O mundo nascido, ou a natureza, não suprime a nu-


vem atômica. Dela vem e a ela retorna… o caos per-
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 25

manece em torno das coisas. E a natureza está nele


mergulhada. Não como um conteúdo em um conti-
nente, mas como um corpo em um fluido muito sutil.
O caos cerca o mundo, mas além disso, penetra-o por
toda a parte. Ele o produz, como matriz, trabalhando-
-o do interior, para levá-lo à morte, isto é, a ele mesmo
(SERRES, 2003, p. 213).

Ou seja, o caos existe antes do mundo e existe também depois


dele. Na verdade, existe antes de todos os mundos possíveis que se
formarão e existirá depois de todos eles. Ele é o início de toda forma
de vida e a negação de todas as mortes. Nesse sentido, não é preciso
lamentar o fim deste universo ou temer qualquer catástrofe.
Da mesma forma, como veremos no próximo capítulo, não
faz sentido investigar o início do mundo, buscar o instante inicial
de toda criação. Diz Epicuro: “Não há um início para tudo isso
porque os átomos e o vazio existem eternamente” (1987, Carta
a Herôdotos, 44).
26 | Flavia Bruno

Átomos e vazio:
dois infinitos

O ser não pode advir do nada (LUCRÉCIO, 2010, I,


150; 180; 200; 260; 850; II, 285), logo o mundo existe
desde sempre. Mas o que existe desde sempre na perspectiva
atomista? Átomos e o vazio (DEMÓCRITO, 2007, Fragmento
1252; EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 39), dois infinitos
que não marcam a origem do universo, mas, antes, a eternida-
de deste. Os átomos são os primeiros princípios das coisas, seus
elementos primordiais, seus corpos geradores, as sementes das
coisas (LUCRÉCIO, 2010, I, 55-60)3, e é a partir deles que
os mundos infinitos se formam e se resolvem. Eis o testemunho
de Diôgenes Laêrtios:

“Os primeiros princípios do universo são os átomos


e o vazio; tudo o mais apenas se pensa que existe.
Os mundos são infinitos, sujeitos à geração e ao pere-
cimento. Nada é gerado pelo não-ser e nada perece no
não-ser” (2010, IX, 7; 44).

2 
Neste famoso fragmento, Demócrito afirma que o doce, o amargo,
o quente, o frio, a cor existem por convenção, ao passo que a realidade
é toda ela constituída de átomos e de vazio.
3 
A palavra atomus aparece em Lucílio e Cícero, mas Lucrécio não translitera
a palavra usada por Epicuro, usando os equivalentes principia, primordia,
corpora, semina.
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 27

O mundo que podemos ver (bem como infinitos outros mun-


dos) tem seu começo em partículas elementares de natureza eter-
na e de número infinito, que se movimentam num espaço tam-
bém infinito, agregando-se e desagregando-se sem se esgotar
e, por meio de combinações também infinitas desses elementos
eternos, todas as coisas são geradas e corrompidas, em uma mo-
dificação dinâmica que constitui a vida, porque tudo se gera no
infinito e também tudo ao infinito retorna.
Os átomos são os elementos mínimos da natureza (nature mi-
nimale) (LUCRÉCIO, 2010, I, 602) e, como tal, por seu próprio
nome, indivisíveis e imutáveis: “Os átomos são dotados da for-
ça necessária para permanecerem intactos e para resistirem en-
quanto os compostos se dissolvem, pois são impenetráveis por sua
própria natureza e não estão sujeitos a uma eventual dissolução”
(EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 41); nenhuma força os pode
destruir (LUCRÉCIO, 2010, I, 485). Ou seja, o átomo não é uma
estrutura composta de partes (como enuncia a física contemporâ-
nea, ao pensá-lo como um agregado de prótons, elétrons e nêu-
trons), mas uma unidade indissociável e indestrutível, o elemento
gerador da matéria (genitalia materiai corpora).
Além disso, nada mais há. Diz Lucrécio: “Exceptuados
o vazio e os corpos, não pode haver mais nenhuma terceira
natureza no número das coisas, que alguma vez caia sob a al-
çada dos nossos sentidos ou que alguém seja capaz de apreen-
der pelo raciocínio do intelecto” (2015, I, 440). Todas as coi-
sas são formadas pelas mais diversas misturas atômicas: o céu,
o mar, as terras, os rios, o sol, os cereais, as árvores, os seres
vivos, assim como muitas letras são comuns a muitas palavras
(LUCRÉCIO, 2010, I, 820; II, 690).
28 | Flavia Bruno

A natureza não sensível do átomo


Os átomos são eternos, em número infinito, indivisíveis, in-
destrutíveis e só podem ser pensados – aquilo que não pode ser
senão pensado (DELEUZE, 1988, p. 275), jamais percebidos.
As palavras de Epicuro são textuais: “Um átomo jamais foi perce-
bido por um sentido” (1987, Carta a Herôdotos, 44), o que é reite-
rado por Lucrécio ao afirmar que os átomos escapam aos sentidos
(2010, I, 752), sendo invisíveis e imperceptíveis, todavia sendo,
ainda assim, possível o reconhecimento de sua existência (2010, I,
268-270). A natureza opera com corpos invisíveis (LUCRÉCIO,
I, 325), não permitindo que se possa perceber a cada momento
suas infinitesimais modificações, mas ainda assim é preciso reco-
nhecer que esses são os seus princípios.
Ou seja, toda a natureza dos corpos primeiros se encontra mui-
to abaixo da apreensão dos sentidos (LUCRÉCIO, 2010, II, 310),
não possuem as qualidades dos mundos dos fenômenos, mas en-
tram nos compostos que constituem o mundo fenomênico e o que
se vê ou percebe é tão somente o composto. Os átomos, neles
mesmos, permanecem intangíveis, indissolúveis, inalteráveis, mas
não como uma espécie de eternidade material vulgar. Ainda que
possam ser concebidos em um sentido material, os átomos não são
visíveis e nem mesmo podem assim serem concebíveis (EPICU-
RO, 1987, Carta a Herôdotos, 56), não por deficiência do esquema
perceptivo do homem, mas porque são objetos do pensamento,
e não da sensibilidade. Bergson afirma que Demócrito recusou ao
átomo todo tipo de propriedade física (2005, p. 247). Por não se
revelar na experiência, os átomos não podem ser apreendidos por
meio de aparatos de medição. Tudo o que se mostra à sensibilidade
já é um composto, uma matéria condensada. Como ensina Hegel,
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 29

toda união atômica é apenas uma relação superficial, uma síntese


não determinada pela natureza (1995, p. 282).
O que significa dizer que o átomo não é percebido pela sensi-
bilidade, não se apresenta à experiência? Significa dizer que a ma-
téria organizada não esgota a natureza, que a matéria visível não
é toda a natureza. Pode parecer um enunciado contraditório para
uma filosofia que sustenta de modo tão radical o materialismo.
Ocorre que a tudo o que há no universo pode se explicar inteira-
mente pelo jogo das forças materiais, isto é, pelo movimento dos
átomos que se desenvolvem no seio do vazio (BOYANCÉ, 1963,
p. 85), não passando o mundo de uma modalidade passageira
desta combinação. Entretanto, nesta eternidade original não há
corpos materiais, apenas os elementos primordiais (semina). Aqui
a natureza não está ainda precisada, formada, determinada, orga-
nizada. Em resumo: toda matéria sensível é uma matéria organi-
zada, mas toda matéria atômica é uma matéria caótica.
Tudo o que será formado e constituirá um composto será ob-
jeto de percepção, mas os átomos e o vazio são as partes invisíveis
e intangíveis (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 40) de tudo
o que pode ser visto e tocado. Ou seja, átomos e vazio pertencem
à eternidade da vida antes mesmo do aparecimento dos com-
postos materiais. Há uma realidade material originária, eterna,
incapaz de ser percebida atualmente, fora do mundo empírico
e que não está sujeita ao tempo. Essa realidade material põe-se
ao alcance dos sentidos e conhece a natureza do tempo apenas
quando se organiza e se constitui como um corpo, estando então
sujeita à geração e à corrupção. Sem dúvida é um materialismo,
e mesmo um materialismo radical. Mas um materialismo de outra
natureza: um materialismo não orgânico.
30 | Flavia Bruno

Os átomos e as qualidades do mundo dos


fenômenos
Sendo, pois, elementos que não se apresentam à sensibilida-
de, não têm os átomos as qualidades das coisas do mundo dos
fenômenos (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 54). Entretan-
to, de acordo com o testemunho de Aristóteles, desde Demócrito
e Leucipo se admitiam três diferenças entre eles: figura, posição
e ordem (Metafísica, 2002, 985b 10; 1042b 10). Já de acordo com
Epicuro, tais corpúsculos apresentam variadas formas (squema),
peso (barion) e tamanho (mégethos), embora essa variação não vá ao
infinito (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 54-56). Uns são se-
cos, úmidos, frios, quentes, pesados e leves, o que permite distin-
gui-los em forma e extensão, mas não em natureza. Essa distinção
de formas propiciam as combinações dos corpos, havendo átomos
que não se compõem com outros, de modo a explicar a atualidade
de um universo e não a mistura caótica da composição de tudo
com tudo, o que excluiria as formas aparentemente estáveis que
encontramos na natureza. Marx tem uma compreensão bastante
exata a esse respeito. Para ele, só se pode falar em propriedade
dos átomos relativamente à formação das diferenças do mundo
fenomênico e não em relação ao átomo mesmo ([s/d], p. 182). Ou
seja, essa distinção de propriedades atômicas só faz sentido quando
se pensa as diferenças existentes no mundo fenomênico, mas ela
desaparece quando se pensa seu estado originário e absoluto.
Além disso, o fato de os corpos não serem compostos por uma
só espécie de átomos denota a exigência de multiplicidade da teo-
ria atomista. De modo a garantir a variedade do universo, mesmo
os elementos seminais não são únicos, mas sim indefinidamente
variados. Diz Marx: “Cada átomo possui em si mesmo a dife-
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 31

rença que o distingue de todos os outros. Logo, é em si mesmo


uma multiplicidade” ([s/d], p. 15). A multiplicidade está presente
no átomo de modo imanente e necessário. O simples fato de ele
existir leva a esta afirmação da diferença.
É ainda a conjugação dos átomos que engendra as qualidades
sensíveis que o sujeito percebe nas coisas. Uma modificação qual-
quer dessa formação (deslocamento, adição, subtração) explica
as suas mudanças. Logo, a sensibilidade não pertence ao átomo
enquanto tal. As sensações do sujeito não estão diretamente li-
gadas ao átomo, mas ao composto: toda a qualidade sensível su-
põe a reunião e a combinação dos átomos e de seus movimentos.
(BOYANCÉ, 1963, p. 127). Logo, cada composto não se definirá
pelo que está constituído, mas antes por uma combinatória im-
perceptível ao homem, que faz dele a cada instante (“no mínimo
de tempo pensável”), um novo composto.
Todas as coisas percebidas pelos sentidos são compostos de
átomos e como tal, estão sujeitos à desagregação, à destruição,
à morte. Ou seja, os corpos, os compostos, duram, ao passo que
os átomos são eternos; ou ainda em outras palavras: todo compos-
to está no tempo, mas o que entra nos compostos, não. O nasci-
mento, a morte e o tempo só existem para os compostos. A na-
tureza, ela mesma, nunca morre, posto que toda destruição nada
mais é do que a dissolução de elementos; a natureza forma sempre
novos seres, e o que é morte para uns é o início da vida para ou-
tros (LUCRÉCIO 2010, I, 245-264).

O movimento atômico
A necessidade de pensar o vazio como um outro infinito
original advém da necessidade de se pensar o movimento, pois
32 | Flavia Bruno

é a partir dele que os corpos podem se mover (EPICURO, 1987,


Carta a Herôdotos, 40; LUCRÉCIO 2010, I, 335-380; 425).
O movimento atômico se dá no vazio infinito e percorre qualquer
distância em um lapso de tempo absurdamente breve, numa de-
terminação temporal que só a razão pode conceber (EPICURO,
1987, Carta a Herôdotos, 46-47; 62). Ou seja, também o percurso
atômico não é visível ou perceptível, podendo apenas ser pensado.
Algo que não pode ser visto, mas pensado, exige uma quebra
das regras do entendimento, dos princípios norteadores da logici-
dade e da razão. Mais do que uma nova compreensão da natureza,
o atomismo exige daquele que o estuda um mergulho em uma
nova aventura do pensamento.
A matéria não forma uma massa imóvel, mas ao contrário,
está sempre se renovando, tomando mutuamente a vida uns dos
outros. Nesse sentido, como observa Boyancé (1963, p. 69), o ter-
mo natura com o qual Lucrécio nomeia o seu poema, designa
menos um ponto de vista estático, uma constituição realizada,
do que o ponto de vista dinâmico, de sua contínua formação. Há
espécies que se multiplicam e espécies que esvanecem, a partir
do movimento dos átomos no vazio que não conhece descanso
(LUCRÉCIO, 2010, II, 80) nem intenção. Diz Lucrécio: “Pois
seguramente tu não dirias que os átomos se detém por reflexão
nem que tenham pactuado entre eles um plano regular de movi-
mento” ([s/d], II, 160, tradução nossa)4.

4  Na tradução de Jackie Pigeaud na edição da Pléiade, este trecho não aparece.
Há, em seu lugar, uma referência lacunar. O trecho aqui mencionado aparece
na tradução de Lagrange (revista por M. Blanchet) na edição francesa
das Oevres Complètes de Lucrèce. De acordo com Luís Manuel Gaspar
Cerqueira, em sua introdução ao Poema de Lucrécio, traduzido para a língua
portuguesa na edição de 2015, todas os manuscritos conhecidos que serviram
de base para as atuais traduções advém de um manuscrito descoberto,
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 33

Os átomos estão em movimento contínuo por toda a eterni-


dade, em igual velocidade (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos,
43; 61; LUCRÉCIO, 2010, II, 239). “O vazio não é ativo nem
passivo, mas simplesmente permite aos corpos o movimento atra-
vés de si mesmo” (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 67). O que
significa dizer que o infinito de átomos habita o vazio infini-
to, mas não de modo inerte: eles o habitam em movimento, em
queda, como as gotas da chuva (LUCRÉCIO, 2010, II, 222). Eis
o caos primordial: uma catarata de átomos que correm laminar-
mente sem se tocarem, no mínimo tempo possível. Nesse movi-
mento de queda, uma perturbação mínima lhes promoverá os en-
contros, os contatos, as conexões e a criação de todas as coisas.
Esse movimento atômico original, antes que qualquer coisa
venha a lhe esbarrar, lhe opor resistência e interromper seu curso,
percorre uma distância inimaginável num lapso de tempo incon-
cebivelmente breve (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 46).
Ou seja, a eternidade da física atomista começa com dois
invariantes: os átomos e o vazio, tudo o mais surgindo de suas
composições que se dão em número igualmente infinito. Eis
as palavras do próprio Lucrécio: “A natureza, tal como é por si
mesma, é composta de duas coisas: o corpo e o vazio onde se si-
tuam os corpos e por onde eles conhecem movimentos diversos”
(2010, I, 419-422, tradução nossa). Entretanto, pode-se afirmar
uma terceira eternidade: a dos movimentos dos átomos no espa-
ço. A eternidade atômica não os coloca em um calmo e passivo
repouso, mas ao contrário, eles existem em perpétuo movimento,

provavelmente, no Mosteiro de Fulda, em 1418, por Poggio Braciolini.


Esse manuscrito foi perdido, mas deu origem a uma série de cópias feitas no
século XV, que serviram, até meados do século XIX, como base para todas
as edições do poema.
34 | Flavia Bruno

ou escoamento, uma cascata que escoa em fluxo laminar. Diz Ser-


res: “O átomo é eterno como pura circulação, o vazio o é como
puro reservatório, a declinação como puro vetor” (2003, p. 99).
O movimento atômico primevo é como uma corrente, um
fluxo sutil, um escoamento e ali nada pode ser dito invencivel-
mente sólido, a não ser os átomos (SERRES, 2003, p. 15). A soli-
dez só aparece a partir das conexões atômicas, do entrelaçamento
da dança dos átomos.
Ainda que alguns discursos religiosos concedam aos astros
celestes uma natureza divina e, por conseguinte, imortal, Lucré-
cio ensina que o universo pode, a qualquer momento, colapsar
(2010, V, 105). O universo constituído, não sendo eterno, em de-
terminado momento também perecerá, assim como todas as coi-
sas criadas, posto que é formado pela matéria que nasce e morre.
Assim como o céu e a Terra tiveram um tempo de nascimento,
assim também conhecerão a ruína (2010, V, 235-245; 370), a par-
tir da agitação atômica que experimenta, no infinito do tempo,
todo tipo de associações e movimentos, sem que haja um espírito
inteligente que decida o rumo de tais composições e decomposi-
ções (2010, V, 420).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 35

A natureza como
causa imanente

O movimento atômico não conhece causalidade, uma


vez que não é produzido por nada e nem tem coisa alguma
por objetivo, sendo estes elementos primitivos movidos por si mes-
mos (LUCRÉCIO, 2010, II, 133). Os choques, a agrupação e se-
paração dos átomos estão regidos por uma lei imanente à própria
matéria, que obra sem finalidade. Como diz Aristóteles (Física, II,
4, 196; Do Céu, III, 2, 300), a causa é um movimento espontâneo.
“Além do todo, não existe nada”, eis a clara afirmação de ima-
nência que sustenta a física de Epicuro. Não há aqui um primeiro
motor fora do mundo, causas extrínsecas, inteligência suprasen-
sível ou uma realidade transcendente que daria origem a todas
as coisas. Não há força ou vontade externa aos átomos. Não se
necessita nada mais do que os próprios átomos. Diz Lucrécio:

“De facto, não existe nenhum lugar fora do Universo


para onde possa escapar nenhum género de matéria
nem de onde possa surgir, irrompendo no Universo,
uma força nova, e modificar toda a natureza das coisas
e alterar os seus movimentos” (2015, II, 300).

Lucrécio afirma que há filósofos insensatos que só admitem


o movimento a partir da intervenção divina, posto que ao desco-
36 | Flavia Bruno

nhecer suas causas, julgam serem fruto da vontade divina (2010, I,


150; II, 168). Tais filósofos implicam a variação da natureza com
deuses criadores, mas o universo desmente seu sistema e tal ideia se
distancia da verdadeira razão (LUCRÉCIO, 2010, II, 176).
A natureza é dinâmica e não reclama nada de fora, nenhuma
realidade que lhe traga movimento, nenhuma exterioridade: ela se
explica não por uma causa transcendente, mas por seus movimen-
tos próprios. Seu movimento é imanente e é como a própria vida
se constitui. Privada de senhores, ela própria opera todas as coisas,
por sua livre iniciativa, sem o recurso ou a intervenção dos deuses
(LUCRÉCIO, 2010, II, 1090). Trata-se de uma física da imanên-
cia: nada a explica, nada a governa, nada lhe determina um fim.
É imanente à própria natureza a força que a anima: os áto-
mos se movem e não param de se mover. É nesse movimento que
a vida aparece e as formas se constituem. Isso significa dizer que
a natureza é diversa e produtora, a todo instante, da diversidade.
A diversidade da natureza se revela no infinito dos seus elementos,
impossíveis de totalizar ou conter; se revela na criação surpreen-
dente cuja única lei vem de si e do desejo profundo de novidade.
A natureza, em sua imanência, impõe a si mesma uma incli-
nação, uma turbulência – o escoamento laminar torna-se tur-
bulento. O fluxo sem barreiras dos átomos é um jorro ideal, pois
todo escoamento sempre se torna turbulento (SERRES, 2003, p.
130), e é do caos, da turbulência, que todas as coisas aparecem.

“A protodinâmica de Lucrécio consiste em indagar: o que


se passa, na realidade, quando esse ângulo aparece ou sub-
siste por algum tempo? E a resposta é: Tudo. Isto é, a na-
tureza, o nascimento das coisas” (SERRES, 2003, p. 41).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 37

Ou seja, o nascimento de todas as coisas não se dá a partir


do vazio, mas a partir do desvio. A natureza se desvia de si mes-
ma para produzir novas expressões. Diz Lucrécio que, sem esses
choques, a natureza jamais teria produzido nada (LUCRÉCIO,
2010, II, 223-224).
É uma ideia um tanto paradoxal, a de um movimento estável.
Os átomos, em queda livre, se movem em um fluxo paralelo. Eles
não estão em repouso, mas em movimento; o fluxo não está em
repouso, mas é estável (SERRES, 2003, pp. 74-75). Os átomos
cairiam em direção a esse abismo de estabilidade. Desse fluxo es-
tável, sem angulação, uma mínima inclinação vem se impor e,
com ela, a criação de todas as coisas. Tudo o que é criado é um
desvio, o que faz Serres dizer que “todas as coisas na natureza
estão fora de prumo” (2003, p. 73).
Não há causa primeira, não há causa final. Não há propósito,
finalidade, intencionalidade no plano da criação. Não há regra para
a combinatória dos átomos. É uma espontaneidade aleatória, sem
qualquer compromisso. É apenas um choque, um encontro que tira
os átomos desta precipitação em direção à estabilidade. Diz Serres:

são necessárias essas barreiras para que o movimento


não seja senão máximo. No total, em uma região do
espaço, os objetos, como amontoados e complexos,
são, de parte a parte, apenas obstáculos temporários…
a tendência geral de cada um dos seus elementos
é abismar-se em direção ao equilíbrio (2003. p. 77).

A natureza é, ela mesma, a lei que obstrui a sua própria esta-


bilidade. Ela é uma permanente perturbação de si mesma, não se
38 | Flavia Bruno

permitindo ser uma realidade de sustentações canônicas. É como


se ela se desmentisse a si mesma o tempo todo, sem embaraço ou
estranhamento com isso.
Aristóteles, para quem o movimento deve sempre remeter
a uma causa eficiente exterior, estranha que, em Leucipo, o mo-
vimento seja eterno, mas que este não explique o porquê de ser
assim (2002, Metafísica, XII, 6, 1079b 30). Ora, o atomismo não
compreende a natureza por um princípio de inteligibilidade, logo
não há razão para perguntar nem pelo movimento primeiro nem
pelo sentido desse movimento não ter fim. A pergunta pelo por-
quê sempre supõe haver uma intenção, e uma intenção que possa
ser racionalmente compreendida, mas aqui a natureza é turbulen-
ta e criativa, em todas as direções, em todos os tempos. Não há
propósito, regramento ou determinismo. É como se tudo fosse um
eterno combate que se agita em acordos e desacordos incessantes
(LUCRÉCIO, 2010, II, 115-120). Nesse sentido, afirma Marx:

O aparecimento de formações a partir dos átomos,


a sua repulsa e a sua atração são tumultuosas. A ofici-
na e a forja do mundo são constituídas por um com-
bate ruidoso e uma tensão hostil. O mundo é inte-
riormente despedaçado e no mais fundo de si mesmo
produz-se um grande tumulto. Mesmo o raio de sol
que penetra nos locais de sombra é uma imagem dessa
guerra eterna ([s/d], p. 74).

Ocorre que os desvios constituem um mundo, uma existência,


mas estes não comungam da eternidade. Toda composição é pas-
sageira, provisória e fugaz. Daí Serres dizer que não existe tempo,
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 39

a não ser o dos objetos. Todo tempo é tempo de uma duração,


entreato. “O tempo é a interrupção do repouso” (2003, p. 77).
Nasce-se e morre-se em uma perturbação. O desvio faz
o nascimento e a morte: o desvio produz os compostos, mas todo
composto se desfará e retornará ao estado atômico. Em outras
palavras, a ação formadora e a ação destruidora são, uma e outra,
incansáveis. A morte de toda coisa é uma decomposição, mas esta
não deixa um vazio ou uma falta, pois novas composições estão
sempre se fazendo. A natureza é dotada de um impulso de novi-
dade a lhe tirar sempre do lugar. A morte é o desfazimento de um
pseudoequilíbrio, de uma pseudoverdade, das temporalidades que
se fazem passar como fixidez. “O nascimento de novas chamas
esconde a morte de antigos fluxos” (SERRES, 2003, p. 95).
Todas as coisas naturalmente se gastam, se corrompem, se dis-
solvem e retornam à nuvem de partículas, à catarata dos átomos.
Nesta autopoiesis da physis, o que permanece sempre de forma re-
sidual? O átomo, já que não conhece nem nascimento nem morte.
É a condição necessária e suficiente de si mesmo, nessa autopro-
dução de múltiplas e infinitas formas. É a plena autonomia da na-
tureza que só recorre a si mesma para se produzir continuamente.
Toda formação é transformação. E não há deformação por-
que não há forma. O caos nebuloso dos átomos é aformal, e é
para lá que tudo se dirige. Como diz Empédocles, “não existe
nascimento de coisa alguma, mas apenas mescla e intercâmbio do
mesclado” (apud ARISTÓTELES, 2001, I, 1).
4 0 | Flavia Bruno

A declinação

D emócrito e Leucipo afirmam que a natureza, sendo


antes de tudo um movimento aberto, cria as coisas por tur-
bilhões (dinos). Desde logo é preciso esclarecer que o fluxo lami-
nar atômico, o seu escoamento paralelo, é apenas ideal; por toda
a parte, na natureza, aparecem os turbilhões, como condição de
possibilidade da sua própria criação. Epicuro fala que os átomos
frequentemente colidem (1987, Carta a Herôdotos, 62), o que será
desenvolvido posteriormente com Lucrécio a partir da ideia de
declinação (clinamen).
É no turbilhão e pelo turbilhão que os átomos se encon-
tram e o clinamen “é a menor condição concebível para a for-
mação primeira de uma turbulência” (SERRES, 2003, p. 16)
e é “o ângulo mínimo para a formação de um turbilhão, apa-
recendo aleatoriamente em um fluxo laminar” (SERRES, 2003,
p. 17). O clinamen – declinatio atomi a recta via – é, pois, uma
leve inclinação que o átomo faz a partir dele mesmo e este con-
ceito é introduzido no segundo livro de Da natureza das coisas.
Eis como Lucrécio o apresenta: os átomos em queda livre no va-
zio desviam-se de sua trajetória retilínea o mínimo necessário
para que se possa dizer que o seu movimento mudou (2010, II,
220). O desvio é o menor possível, assim como a modificação de
seu movimento também o é. Esta frase é repetida por Lucrécio:
“Não mais que o mínimo” (nec plus quam minimum). Serres utiliza
uma bela imagem ao falar desse ângulo (clisis) mínimo: “É nulo,
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 41

mas sem superposição das linhas que o formam. É mais atômico,


se é possível dizer, do que o átomo” (SERRES, 2003, p. 22).
A declinação é outro nome da diferença; é o desvio mínimo,
infinitamente pequeno, o ângulo infinitesimal, suficiente para
produzir o próprio mundo e sua eterna novidade. Este princípio
faz da natureza uma mobilidade, uma atividade, uma afirmação
constante. Todas as coisas, sem exceção, são desvios de equilíbrio.
Diz Serres: “Tudo é, tudo é pensado, falado ou trabalhado, no
e pelo desvio do equilíbrio. Eis, de novo, a natureza das coisas”
(2003, p. 40). Prossegue o autor:

“Nascer é declinar. Mas existir também e ainda, tam-


bém, morrer. Uma só e mesma operação dá conta de
sua aparição, de sua usura e de sua destruição, de sua
síntese e de sua análise, de sua geração e de sua cor-
rupção. Não há mundo e coisas do mundo a não ser
pelo clinamen, em sua existência, começo e seu fim”
(SERRES, 2003, p.143).

Deleuze chama a atenção para o fato de a declinação não ser


um movimento secundário, um movimento oblíquo que viria por
acaso modificar uma queda vertical, posto que ela está presente
desde sempre. “O clinamen é a determinação original da direção do
movimento do átomo” (1988, p. 276). É um diferencial da própria
matéria e não um diferencial na matéria; este diferencial ocorre
“em um tempo menor que o mínimo de tempo contínuo pensável”.
Como essa declinação é uma diferença que vem se colocar
num escoamento laminar dos átomos que estariam em paralelo uns
com os outros, tal ideia poderia sugerir, à primeira vista, a decli-
42 | Flavia Bruno

nação como a introdução de desordem em um esquema ordenado.


A turbulência viria assim perturbar a natureza em seu regramento
genuíno. Mas não é nada disso. A natureza é, antes de tudo, caos
atômico. O livro V de Da Natureza das coisas trata do nascimento
do mundo e descreve o caos-nuvem, a nebulosa primitiva. Tudo
flui no atomismo: nada é estável, nenhuma composição perdura
eternamente. Só há eternidade dos átomos e do vazio, logo eter-
nidade de caoticidade, permanente turbulência. Nessa turbulência
vêm se inscrever os turbilhões, a agitação flutuante, o movimento.
O mundo da turbulência vai ser modelado pelos turbilhões (SER-
RES, 2003, p. 47). Assim, não se trata de uma desordem que vem
subverter a ordem, mas de dois modos distintos de caoticidade,
que Lucrécio chama de “caos vertente”, o escoamento laminar dos
átomos, o fluxo paralelo e turbulento no vazio e o caos-nuvem,
a massa desordenada, flutuante, turbilhonante.
Lucrécio não minimiza a desordem, não se intimida com ela.
Ao contrário, a compreende como pré-natureza de todas as coi-
sas, fazendo desta natureza uma atividade sem repouso. Antes de
ser pensada como indeterminação, a declinação deve ser pensada
como um princípio de diversidade, como pluralidade irredutível
das causas ou das séries causais (DELEUZE, 1988, p. 277).
Diz-se que Demócrito teria escrito dois livros sobre as linhas
e os sólidos irracionais (SERRES, 2003, p. 20); ainda que não se
possa comprovar a existência de tais livros, para se pensar a teoria
atomista, uma matemática comum deve ceder lugar a uma ma-
temática irracional, de um cálculo diferencial para conceber esse
ângulo infinitesimal que muda todas as coisas.
Diz Serres que o atomismo inverte a perspectiva mecâni-
ca, fazendo esta ser pensada antes de tudo como uma mecânica
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 43

dos fluidos e não dos sólidos (2003, p. 14). De caso particular,


passa a ser explicação primeira da natureza. Na perspectiva dos
fluidos, o equilíbrio não é senão aparente; a igualdade, um caso
particular de proporção, o que afasta por completo a imagem
estática que por tanto tempo sustentou a física. A estática avalia,
mede, descreve o desvio; quer contê-lo na mudez da permanên-
cia, quer fazê-lo desaparecer na ilusão do equilíbrio estável. Mas
a desigualdade é irredutível — os desvios não se contêm, eles
reaparecem incansavelmente.
Em que circunstâncias isso ocorre? Não se pode prever ou
determinar. Nem prever quando nem onde se darão os tur-
bilhões, tempos e lugares incertos (incerto tempore, incertisque
locis) (LUCRÉCIO, 2010, II, 218-219; 294). Os atomistas ante-
cipam com isso o princípio da incerteza, que demorará séculos
para debutar no discurso científico oficial. As turbulências são
aleatórias no tempo e no espaço. A origem de todas as coisas
remonta a um turbilhão, cujo aparecer e desaparecer é impre-
visível e indeterminado.
Não existe justificação para a declinação. Ela é causa de si
mesma, ao mesmo tempo que é causa de todas as coisas, o que
produz uma perturbação nas ideias correntes porque é contrária
ao princípio da inércia, segundo o qual todo corpo permane-
ce em estado de repouso ou em movimento uniforme em linha
reta. A declinação conduz a natureza a um movimento perpétuo
e imprevisível. Pode-se mesmo afirmar, a formas ainda não con-
ceituadas de movimento.
Além disso, outra dificuldade que se apresenta ao se pensar
a declinação é que ela não se oferece à experimentação. Não
é possível examinar o desvio da trajetória atômica, o que faz essa
4 4 | Flavia Bruno

ideia anticientífica em sua essência. Ela introduz uma teoria dos


movimentos livres do vivo, uma vontade subtraída ao destino,
como diz Michel Serres (2003, p. 12).

A declinação como ato de criação


Toda e qualquer criação na natureza tem origem nesta decli-
nação: os átomos seriam transportados em linha reta, paralela-
mente uns aos outros e a declinação produziria um desvio, uma
angulação mínima desviante, de modo absolutamente aleatório
e sem qualquer finalidade. Uma ruptura quase imperceptível,
uma assimetria infinitesimal, e eis um mundo novo que se atuali-
za. “É o menor declive possível abrindo os caminhos para a exis-
tência” (SERRES, 2003, p. 55).
“O clinamen (…) quantifica um sentido mínimo, por onde
todas as coisas têm existência e sentido” (SERRES, 2003, p. 58).
Ou seja, a declinação da natureza é o seu ato de criação. Todas
as coisas devem o seu nascimento a esse declínio, o que significa
que todas as coisas estão sujeitas à criação e à destruição, e o nas-
cimento e a morte nada mais são do que declinações da matéria.
Diz Serres que tudo está à deriva:

O mundo, os objetos, os corpos, mesmo minha


alma estão, desde o tempo de seu nascimento, à de-
riva… isso significa, como é usual, que irrever-
sivelmente eles se desfazem e morrem… A deriva
é o conjunto do tempo: aurora do aparecer, vida
limitada pela finitude e desagregação, explosão
aleatória das temporalidades múltiplas no espaço
infinito (2003, p. 56).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 45

No curso da natureza os estragos estendem-se por toda


a parte, porque não há uma sequência determinada para o mo-
vimento atômico.

“Não há um tempo de queda, um relâmpago surgi-


do, em seguida um tempo de agregação. Um caos,
a declinação, um mundo. Não. Cada núcleo de
agregação, mal se forma, se desloca e cai. O fluxo
não cessa: corrida para a morte e busca do repouso”
(SERRES, 2003, p. 118).

Sobre os declives, sempre novos declives vêm se somar, sem-


pre novos turbilhões se formam, sempre novas conjugações
se constituem. Todas as coisas fluem em um incessante correr
e continuamente estão a rejuvenescer, pois enquanto um corpo se
decompõe, outro floresce e assim a natureza opera sua incessante
renovação. A natureza está sempre começando, a partir de novos
desvios e novas gêneses, novos declives e novas curvaturas. Diz
Lucrécio, “a natureza dissolve novamente cada coisa nos seus áto-
mos, mas não reduz as coisas ao nada” (2015, I, 210). Ou seja, toda
decomposição atômica é sempre compensada por uma composi-
ção, a morte de um mundo é sempre compensada pelo nascimen-
to de outro. Os átomos constituem e renovam o universo, nun-
ca podendo regressar ao nada, mas sempre ao caos atômico que
é o fundo da natureza. A rigor, a combinação não se dá apenas
quando uma nova forma aparece. Cada coisa do mundo o tem-
po todo experimenta uma nova combinação. “Não há mundo
nem corpo que não percam elementos, a cada instante, e que não
encontrem outros de mesma figura” (DELEUZE, 1988, p. 278).
4 6 | Flavia Bruno

Em resumo, tudo se renova constantemente no universo, cada


ser vivendo por meio de trocas recíprocas (LUCRÉCIO, 2010, II,
75). A vida só é possível pela combinação; a natureza só é possí-
vel pela variação, pelo tumulto, e toda gênese depende dessa an-
gulação que, discretamente, produz as mudanças e as surpresas.
“Irreversivelmente, a turbulência faz e se desfaz, como que ao
acaso. Ela corre sobre o plano inclinado, refaz-se alhures, aqui
e ali, sobre o declive” (SERRES, 2003, p. 62).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 47

Um mundo infinito e um
número infinito de mundos

S e os átomos são infinitos, se o vazio é infinito e se a com-


binação atômica também varia ao infinito, não resta outro
adjetivo ao mundo existente senão infinito. O todo é infinito,
diz claramente Epicuro (1987, Carta a Herôdotos, 41) e Lucrécio:

O universo inteiro, então, não é limitado em nenhu-


ma direção, pois de outra forma deveria ter uma ex-
tremidade. Ora, é evidente que nada pode ter uma
extremidade se não há fora dele algo que o limite,
de modo que se pode ver o lugar além daquele que
os nossos sentidos podem perceber. Ora, uma vez que
é preciso admitir que não há nada fora da soma das
coisas, ela não tem extremidade nem, por consequên-
cia, limite ou medida: não importa pois em que lugar
do mundo em que se coloque, uma vez que qualquer
que seja o lugar, de nenhum lado se suprime o infinito
(2010, I, 958-967, tradução nossa).

Ainda Lucrécio: “Não há nada fora do todo para lhe assinalar


o limite… se estende imenso sem nenhum limite em todas as di-
reções e em toda parte” (2010, I, 1002-1007, tradução nossa). Ou
seja, acentrada e infinita, em perpétuo movimento, de nenhum
48 | Flavia Bruno

modo seguro pela força de uma agregação, eis a perturbadora na-


tureza do cosmos tal como os atomistas a apresentam.
A concepção da infinitude do mundo coloca o atomismo
em distinção com a doutrina clássica aristotélica, que o concebe
como limitado, eterno e governado por Deus. A afirmação da
infinitude do universo (não a infinitude deste mundo) está em
negação direta com a providência divina e, consequentemente,
com todas as crenças daí advindas.
Ocorre que o mundo existente não é o único mundo exis-
tente, porque no momento de toda e qualquer criação, por
mais bela e grandiosa que seja, não se pode esgotar a diver-
sidade atômica. Na verdade, desde Demócrito e Leucipo já
há a compreensão de que há uma infinita multiplicidade de
mundos. Eles supunham que os mundos se geravam ao infi-
nito, sempre havendo geração de uns e dissolução de outros
(SIMPLÍCIO, Física, 257b apud MONDOLFO 1952, p. 93).
Assim, define bem Epicuro:

Existe um número infinito de mundos, tanto seme-


lhantes ao nosso como diferentes dele, pois os áto-
mos, cujo número é infinito como acabamos de
demonstrar, são levados em seu curso a uma distân-
cia cada vez maior. E os átomos dos quais poderia
criar-se um mundo não foram todos consumidos na
formação de um mundo só, nem de um número li-
mitado de mundos, nem de quantos mundos sejam
semelhantes a este ou diferentes destes. Nada im-
pede que se admita um número infinito de mundos
(1987, Carta a Herôdotos, 45).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 49

Um universo onde não se descortinam limites, onde uma


quantidade inumerável de átomos, impelidos por um eterno mo-
vimento, estabelecem inumeráveis formas, não perde, jamais,
sua capacidade criadora. Por isso Lucrécio reconhece que o céu,
a Terra, o Sol, a Lua, e tudo o mais que existe, existem em núme-
ros incontáveis (2010, II, 1085).
O desvio determina colisões, movimentos turbilhonantes,
pelos quais se formam, de modo contínuo e eterno, inumeráveis
mundos. Todos esses mundos estão destinados a perecer, ao mes-
mo tempo que novos mundos surgem no agregar e desagregar-se
dos átomos. Diz Bergson:

A humanidade está condenada a perecer assim como


o mundo em que vivemos. Como todos os mundos
aos quais o acaso dá nascimento: o movimento per-
pétuo dos átomos faz com que, cedo ou tarde, tudo
caia em dissolução, tudo se decomponha; os átomos,
refeitos poeira, se relacionam novamente; combina-
ções novas produzem novos mundos; e assim, suces-
sivamente, pela eternidade dos tempos (1972, p. 282,
tradução nossa).

Os mundos duram, pois, um período de tempo limitado e,


a exemplo dos corpos, sua matéria espalhada constituirá outros
mundos. Tais mundos “não têm necessariamente uma forma úni-
ca e idêntica” (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 74) e tudo
isso é possível de ser apreendido com o pensamento (EPICURO,
1987, Carta a Pitoclés, 89).
50 | Flavia Bruno

O abandono da lei
e da causalidade

O que a declinação traz de novo na física? A declina-


ção perturba as leis da natureza, trazendo a impossibilida-
de de previsão, de determinação de suas leis de funcionamento.
Não se pode ter rigorosamente o controle sobre os movimentos
da natureza; não se pode dominá-la. Diz Serres: “Donde o es-
cândalo da declinação aos olhos dos físicos clássicos e modernos:
ela põe em xeque a universalidade das leis. Ela abre os sistemas
fechados. Ela coloca as leis físicas sob o império da exceção”
(2003, p. 121).
O ângulo desconstrói o reinado do mesmo e da identidade,
do destino certo, mas também de uma morte eterna, onde nada
está por surgir, por criar. Ele grita contra o assassinato da natu-
reza (SERRES, 2003, p. 170), de sua ideia imóvel e redundante,
engendrando a natureza em sua riqueza, restaurando o sempre
novo, a sua eterna festa.
A física assim compreendida não comporta leis, assim como
não comporta causalidade. Nesse sentido, a questão do clinamen
não é tanto a indeterminação, mas antes a pluralidade irredutí-
vel das causas ou das séries causais (DELEUZE, 1988, p. 277).
A natureza é um vazio infinito onde átomos se compõem e se
decompõem, gerando, a partir dessa composição, uma provisória
estabilidade. É dessa estabilidade aparente que se enuncia uma lei.
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 51

Mas, se for possível ainda falar em lei, só se poderá falar enquanto


conjugação, enquanto arranjo, enquanto composição: as leis da
natureza são leis da conjugação (SERRES, 2003, p. 190).
A física passa a ser a ciência da relação, das ligações atômi-
cas, das suas conveniências e concursos (SERRES, 2003, 191),
das suas provisórias estabilidades. Os fenômenos admitem causas
múltiplas em sua formação, determinações múltiplas, o que for-
çosamente leva ao abandono da ideia de lei.
Cícero, ao expor a doutrina de Epicuro em seu Do sumo bem
e do sumo mal, se espanta com o fato de o filósofo grego, ao intro-
duzir o conceito de declinação, violar um princípio sagrado para
um físico: o de causalidade. Diz ele: “Não há nada mais inepto
para um físico que imaginar um fenômeno sem causa” (2005, I,
VI, 2005, p. 9). O conceito de causa é tão solidamente construído
por Aristóteles em sua Metafísica (2002, I, 1, 981b 25-982a) que
o seu preceito, segundo o qual “conhecer é conhecer a causa”,
se torna paradigma na ciência. Assim, quando um filósofo re-
tira a causa do seu sistema, ele chega a ser acusado de pôr fim
à própria ciência física, como o faz Cícero. Ora, trata-se então
de poder ultrapassar este preceito aristotélico, cuja razão de ser
provavelmente se adequa aos homens e aos seus critérios de racio-
nalidade, mas que na natureza não existem.
Epicuro, em sua exposição sobre os fenômenos celestes em
sua Carta a Pitoclés, afirma claramente que estes apenas admi-
tem causas múltiplas em sua formação. Além disso, contrariando
a tradição grega antiga que cultuava e celebrava os corpos celes-
tes, Epicuro diz que as explicações para os fenômenos da natureza
não devem ser buscadas nas crenças da divindade e que qualquer
atitude diferente desta será uma inutilidade:
52 | Flavia Bruno

Em nenhum caso deve adotar-se para uma explicação


desse gênero a natureza divina; ao contrário, cumpre-
-nos conservá-la livre de qualquer tarefa e em perfei-
ta bem-aventurança. Se não agirmos desta maneira,
toda investigação a propósito das causas dos fenôme-
nos celestes será inútil (1987, 97).

Nesta Carta, Epicuro trata de diversos fenômenos celestes


como o movimento e a trajetória dos astros, as fases da lua, a for-
mação das nuvens, dos relâmpagos, da neve, do arco-íris, dos
cometas, e mostra que, quando se admite apenas uma causa para
os fenômenos e se descarta todas as outras possibilidades, não se
está apto para verdadeiramente conhecer e interpretar os aconte-
cimentos da natureza. A redução da causalidade a uma unidade
é um erro grave “quanto à possibilidade humana de conhecer”
(1987, Carta a Pitoclés, 98).
Isto é, as coisas se explicam pela multiplicidade de suas cau-
sas, muitas vezes não sendo possível discernir quando age uma
causa ou outra (EPICURO, 1987, Carta a Pitoclés, 98). Lucrécio,
da mesma forma, diz que há causas numerosas que podem ser
consideradas para explicar os movimentos dos astros (2010, V,
526-529). Nada é simples, nada comporta uma única explicação.
“Apresentar uma única explicação quando os fenômenos pedem
várias é loucura e é uma incongruência…” (EPICURO, 1987,
Carta a Pitoclés, 113). Por isso Michel Serres diz:

A física atomista é uma crítica da razão fechada. Não.


Não uma crítica. Uma arquitetônica do aberto de-
saprumado fundado na irreprimível fuga do estável.
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 53

Não uma crítica, mas uma clínica. O estável escapa,


e apenas o instável pode se manter. O clinamen. E é as-
sim. E é assim somente, e contudo que isso funciona
(2003, p. 122-123).

A teoria das causas múltiplas também vai exigir o abando-


no da explicação mitológica. Epicuro ensina que a compreensão
do funcionamento da natureza exige a diversidade, a inconstân-
cia e mesmo a instabilidade. Qualquer discurso diferente disso
é cair numa verbosidade vã, é rejeitar o seu real funcionamento
e, consequentemente, cair em mitos (1987, 86-87). Ao tratar da
trajetória e do movimento dos astros, por exemplo, ele reitera que
“apresentar uma única explicação para esses fenômenos é condi-
zente com aqueles que procuram pasmar a maioria dos homens
com coisas assombrosas” (1987, Carta a Pitoclés, 114).
A explicação mitológica deve ser, pois, excluída e isso será
possível quando o homem se apegar corretamente aos fenômenos
(EPICURO, 1987, Carta a Pitoclés, 87; 104). Por isso que, ao final
da Carta, Epicuro diz a Pitoclés para fixar bem na memória estas
explicações. Assim ele se livrará dos mitos e poderá ainda com-
preender outros fenômenos semelhantes (EPICURO, 1987, Carta
a Pitoclés, 116). Nenhuma ocorrência da natureza em si mesma
é razão de benefício ou terror para os homens. Não são os fenô-
menos que trazem a angústia e a desolação que os desconcertam
grandemente, mas antes as explicações arbitrárias e fantasiosas
que eles criam para explicá-los.
54 | Flavia Bruno

As emanações

N a perspectiva atomista tudo corre, tudo flui. Eis


a teoria da emanação que explica as sensações e o próprio
processo do conhecimento. A ideia de Epicuro é que dos corpos
sólidos provêm eflúvios (reumata) ou emanações que ele cha-
ma de imagens (eidola) (1987, Carta a Herôdotos, 46). Lucrécio
afirma que de todos os corpos emanam imagens tênues em um
fluxo que se distribui em todas as direções sem trégua e sem
repouso (LUCRÉCIO, 2010, IV, pp. 225-229). Como afirma
Serres, “cada objeto se torna a origem de uma infinidade de
envoltórios” (2003, p. 160).
Algumas vezes se pode mesmo perceber claramente este pro-
cesso de emanação, como é o caso do calor que sai do fogo ou
da fumaça que sai da lenha (LUCRÉCIO, 2010, IV, 54-56), mas
o atomismo é radical: todos os compostos atômicos são emissores
constantes de partículas “insuperavelmente sutis”, fluidas e tênues.
O que é emanado provém seja da superfície das coisas (LU-
CRÉCIO, 2010, IV, 35-74) como as determinações visuais,
as formas, as figuras e as cores, seja de sua profundidade (LU-
CRÉCIO, 2010, IV, 73-93) como os sons, os odores, os sabores
e os calores dos corpos5. Isso significa dizer que as diversas qua-
lidades que os corpos parecem ter não são qualidades em si dos
corpos, mas impressões causadas nos órgãos perceptivos. Por te-

5 
A distinção de emanações da superfície e emanações da profundidade
também se encontra em Epicuro, Carta a Herôdotos, 48.
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 55

rem formas diversas, os átomos podem se coordenar e se orientar


diversamente, levando os corpos a produzirem sobre os sentidos
impressões diversas, segundo a forma, a disposição e a orientação
dos átomos que os compõem (BERGSON, 1972, p. 278). Se um
mesmo corpo parece, em momentos diferentes, mudar de aspec-
to, é porque os átomos de seu composto se rearranjaram e produ-
ziram distintas emissões.
Essas emissões reproduzem os traços das coisas, são impres-
sões semelhantes à figura dos corpos sólidos (EPICURO, 1987,
Carta a Herôdotos, 46) e, penetrando no homem, produzem não
só a sensação, mas também o pensamento, havendo ainda com-
binações pelos sentidos de ambas as emissões (DELEUZE, 1987,
280). Ou como coloca Boyancé, as emanações vêm atingir os ór-
gãos sensoriais e o próprio intelecto (1963, p. 184). Sendo que
os simulacros que atingem a alma são ainda mais tênues do que
os que atingem a visão (LUCRÉCIO, 2010, IV, 722-729). Logo,
todo processo do conhecimento depende das emissões dos cor-
pos, posto que “é pela penetração em nós de qualquer coisa vinda
de fora que vemos as figuras das coisas e fazemos delas objeto do
nosso pensamento” (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 49). Ou
seja, o que se pode ver, tocar, degustar, ouvir, cheirar e também
pensar, são produtos destas emissões. Diz Bergson: “Os fenô-
menos da natureza e os atos do pensamento são movimentos de
átomos; jamais teve e jamais haverá nada além de átomos, vazio
e movimento” (1972, p. 278, tradução nossa).
O homem, uma vez que experimenta sem cessar as sensações,
podendo tudo ver, tudo sentir e perceber o som (LUCRÉCIO,
2010, IV, 229), é receptor desses fluidos, das emanações vindas
dos corpos (LUCRÉCIO, 2010, IV, 55) e é assim que experimen-
56 | Flavia Bruno

ta o calor que emana do sol, sente um gosto de sal quando se está


perto do mar, uma sensação de amargor quando dilui o absinto,
ouve sons variados pelo ar (LUCRÉCIO, 2010, IV, 218-224). Ao
mesmo tempo, o homem também é, por sua vez, emissor de flui-
dos; ele está sempre num entrelaçamento, num encontro. O su-
jeito perceptivo está sempre numa fluência e numa confluência de
ondas diversas, de átomos sutis.
Estas emanações não são compostas de átomos, mas são qua-
lidades apreendidas à distância sobre o objeto (DELEUZE, 1987,
p. 281). A imagem formada que viaja no espaço e atinge o sistema
perceptivo do sujeito conserva o aspecto e a forma do objeto do
qual é oriundo (EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 46; LU-
CRÉCIO, 2010, IV, 51-52). Assim, os simulacros possuem uma
aparência semelhante às coisas, porque constituídos de imagens
emitidas delas (LUCRÉCIO, 2010, IV, 98-101). Tudo isso acon-
tece em uma incrível velocidade: “Seu movimento no vazio (…)
leva-as a percorrerem qualquer distância imaginável num lapso
de tempo inconcebivelmente breve” (EPICURO, 1987, Carta
a Herôdotos, 46), ou como coloca Lucrécio, percorrem um es-
paço indizível em um nada de tempo (LUCRÉCIO, 2010, IV,
191-193). Pelo fato de as emissões se fazerem num tempo menor
que o mínimo de tempo sensível, parecem estar ainda no objeto
quando atingem os órgãos dos sentidos (DELEUZE, 1987, 281),
mas a verdade é que, das coisas, só atingimos as suas películas.
As imagens, ou simulacros, se formam de modo tão veloz
quanto o pensamento, sendo incessante sua emanação. Entretan-
to, os sentidos não podem perceber uma diminuição dos corpos
de onde saíram, posto que esta matéria é constantemente reposta
(EPICURO, 1987, Carta a Herôdotos, 48). Nas palavras de Lucré-
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 57

cio, essas emanações se conservam porque são constantemente


renovadas pelas figuras que se lhe assemelham (2010, IV, 108-
109). Os simulacros se definem por um permanente dinamismo
que a percepção humana não apreende, mas o pensamento huma-
no tem obrigação de teorizá-lo.
Tais imagens se destacam dos objetos dos quais guardam
a forma e impressionam os olhos do sujeito lhe dando a visão das
coisas, assim como os demais sentidos são também afetados por
suas correspondentes emissões. O que se vê não é o simulacro,
mas a imagem que eles produzem (BOYANCÉ, 1963, p. 186).
Assim como os átomos, também os simulacros não se oferecem
à sensação. É possível perceber os objetos, mas não é possível en-
xergar os simulacros que atingem a visão (LUCRÉCIO, 2010,
IV, 87-89; 104-106; 127-129; 257-258). Ou seja, o simulacro,
nele mesmo, é imperceptível, ainda que a imagem que ele leve
produza a qualidade sensível. Esta imagem é feita da somatória de
muitos simulacros idênticos (DELEUZE, 1987, p. 281). Esclarece
Lucrécio: “Não sentimos cada partícula do vento ou do frio, mas
sim o seu conjunto. Sentimos então as ações atingirem o nosso
corpo como se uma coisa o atingisse de fora, provocando a sen-
sação” (2010, IV, 260-264, tradução nossa).
Em todo momento se pode encontrar todo tipo de simulacro
(LUCRÉCIO, 2010, IV, 797-798) porque não há exterior onde
as fluências possam desaparecer. O homem tem nele a potência
de apreender as imagens, assim como, por também ser um corpo,
realiza suas emissões, o que equivale a dizer que a vida é uma
fonte em renovação constante. O universo é essa eternidade que
inclui todas as oscilações, onde se inscrevem todas as circulações,
imprevisíveis, incertas e hipercomplexas; cada corpo é uma sede
58 | Flavia Bruno

de troca de fluxos: um entra e sai atômico, veloz, atordoante. Flu-


xos mentais, perceptivos, orgânicos. “Em um nada de tempo são
transportados inumeráveis simulacros das coisas, de inumeráveis
modos, em todas as direções, por toda a parte” (LUCRÉCIO,
2010, IV, 164-165).
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 59

Os simulacros de
terceira espécie

O s simulacros podem manter-se por muito tempo con-


servando a disposição e a ordem que os átomos tinham na
coisa da qual provém, mas podem também se decompor, defor-
mando-se ou recombinando-se com simulacros de outras coisas.
São esses simulacros isolados, deformados, decompostos ou des-
conexos que provocarão as representações fantasiosas, as “imagi-
nações mentirosas”, como diz Michel Serres (2003, p. 163).
Há, pois, uma terceira espécie de emanação distinta das
emanações da superfície e das emanações da profundidade: são
os fantasmas, que têm independência em relação aos objetos.
São extremamente móveis e inconstantes nas imagens que for-
mam ( já que não são renovados por novas emissões dos objetos)
e se distinguem a partir de três variedades: teológicos, oníricos
e eróticos (DELEUZE, 1987, p. 282).
Estes simulacros, estando muito longe dos objetos dos quais
emanam, com os quais perderam sua relação direta, formam
grandes figuras autônomas, parecendo independer da fonte que
os emitiram (DELEUZE, 1987, p. 282). Por se afastarem das
emissões contínuas, não têm atrás de si nenhuma realidade, sen-
do vãs imaginações e representações de pura fantasia. “Assim se
formam todas as imagens; os fantasmas do sonho e do delírio,
e essas aparições que deram nascimento à prenoção dos deuses”
6 0 | Flavia Bruno

(ROBIN, 1948, p. 399). Diz Lucrécio que tais simulacros agitam


a alma com terror, fazendo o homem ver figuras monstruosas
e simulacros fantasmas (2010, IV, 35-39).
Os simulacros oníricos provêm de diversos objetos, e provo-
cam a visão de centauros, cérberos e assombrações. Nos sonhos,
quando o corpo dorme, as paixões e as ocupações parecem abusar
do espírito humano, fazendo-o se abrir a esses fantasmas (LU-
CRÉCIO, 2010, IV, 732; 962-977), onde as sombras dos mortos
ressuscitam e falam (SERRES, 2003, p. 163).
Os simulacros eróticos (LUCRÉCIO, 2010, IV, 1037-1074) são
os simulacros acrescidos ao prazer sexual, produzindo toda espécie
de ilusões sobre o objeto amado, sobretudo ilusões relativas à sua
posse (BOYANCÉ, 1963, p. 191). Emitidos por diversos objetos,
a imagem constituída por esses simulacros está ligada ao objeto de
amor real, mas este objeto não pode ser absorvido nem possuído
(DELEUZE, 1987, p. 283). “De um rosto bonito ou de uma tez
agradável, nada se oferece ao gozo do corpo que não sejam simula-
cros tênues; miserável esperança levada pelo vento” (LUCRÉCIO,
2010, IV, 1094-1096, tradução nossa). Alimentar este simulacro
é agravar aflições e sofrimentos. Ele provoca uma ferida invisível,
males inumeráveis, dos quais é preciso acautelar-se.
Os simulacros teológicos são os simulacros que nascem no
céu, formados de diversas maneiras, não cessando de se fundir e de
mudar de aspecto (LUCRÉCIO, 2010, IV, 130-134), produzindo
uma ideia de deuses terríveis, punitivos e sempre prontos a castigar
o homem. São falsos deuses imaginados ou sonhados, responsáveis
em grande parte por toda a perturbação da existência humana.
Não se trata aqui de um princípio de ateísmo. Não é a existên-
cia divina que é combatida, mas sim as consequências do que a reli-
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 61

gião provoca no homem. Epicuro defende a existência feliz e eter-


na dos deuses, mas afirma que estes não são temíveis: “o ser bem-
-aventurado e eterno não tem perturbações nem perturba outro
ser; por isso é imune a movimentos de ira ou de gratidão, pois todo
movimento deste tipo implica fraqueza” (1987, 139, I). Lucrécio, da
mesma forma, afirma que os seres divinos desfrutam da vida eterna
em absoluta tranquilidade, estando afastados das coisas humanas
a grande distância (2015, I, 40). Por isso não se deve temer ou algo
esperar dos deuses, pela simples razão de que, vivendo em eterna
satisfação, eles com isso não se preocupam. Os deuses não abando-
nam sua condição de absoluta serenidade nem para beneficiar nem
para castigar o homem, não fazendo, pois, sentido a produção de
temores (que, muitas vezes, paralisam a vida) pela fantasiosa imagi-
nação. Por outro lado, a religião ameaça os mortais, oprimindo-os
com horríveis visões e, por isso, é preciso livrar-se dos fantasmas
por ela inventados, que perturbam com o medo todas as alegrias da
existência (LUCRÉCIO, 2015, I, 60-100).
Os simulacros fantasmas produzem o medo dos deuses e o de-
sejo infinito de prazer, levando o sujeito ao convívio de falsos infi-
nitos. “Os simulacros inspiram à sensibilidade um falso sentimento
da vontade e do desejo… produzem a miragem de um falso in-
finito nas imagens que formam e fazem nascer a dupla ilusão de
uma capacidade infinita de prazeres e uma possibilidade infinita de
tormentos” (DELEUZE, 1987, p. 284). Continua Deleuze, “o de-
sejo amoroso não possui senão simulacros que lhe fazem conhecer
o amargor e o tormento até mesmo em seu prazer que ele deseja in-
finito; e nossa crença nos deuses repousaria em simulacros que nos
parecem dançar, modificar seus gestos, lançar vozes que nos pro-
metem penas eternas, em suma, representar o infinito” (1987, 284).
62 | Flavia Bruno

Por isso dirá Lucrécio que convém fugir destes fantasmas


nascidos do sonho, do céu e da libido, convém afastá-los, voltar
o espírito para outro objeto (2010, IV, 1964), porque estes são
os fantasmas das angústias. O desejo, o corpo erótico do prazer
sem fim, os sonhos, o instinto de morte, todos trabalham como
fantasmas assombrosos: quem sonha, deseja, imagina, está cheio
de angústia e torna seu mundo um inferno, porque estes fan-
tasmas se tornam o sentido do seu mundo. Tudo na vida do ho-
mem passa a estar vinculado ao funcionamento desses ídolos, até
a ciência que se constitui! Como afirma Serres, esta ciência “é re-
querida para assegurar a paz, a felicidade do desejo em um mundo
apaziguado” (2003, p. 164).
As emanações, critério de verdade do atomismo, conhecem
aqui a sua outra face: a tolice, o engano, a mentira. A emanação
aqui, torna-se então, um rumor e uma amargura.
O materialismo do atomismo é de tal modo radical que mes-
mo os fantasmas que atemorizam o homem não são produtos do
seu espírito, mas produtos da própria natureza, com a qual este
esbarra a todo instante: “Os simulacros se encontram em toda
parte. Não cessamos de nos banhar neles, de sermos atingidos
por eles como por fluxos de ondas” (DELEUZE, 1987, p. 282).
Em outras palavras, o mundo que vivemos é envolvido por uma
névoa de ilusão, sem que o homem possa ter controle disso.
Há uma ilusão que percorre a natureza e que pode domi-
nar o homem. Os fantasmas não são criados por um sujeito, mas
são imagens reais, pertencendo ao campo imanente da natureza.
A natureza é penetrada de miragens, então não é possível se livrar
deles, mas sim aprender a conviver alegremente com eles. Como
diz Kipling em seu poema If: “o homem deve ser capaz de so-
O infinito e os falsos infinitos na física do atomismo | 63

nhar, mas não fazer do sonho seu senhor”6 (adaptado). Ao forta-


lecer o pensamento, ao invés de crer neles, ser por eles dominado,
o homem reconhece que não passam de fantasmas e assim, que
não há razão para temê-los (ULPIANO, 1994a).

6 
No original: “If you can dream – and not make dreams your master (…)
you’ll be a Man, my son!”. Poema de Rudyard Kipling. Disponível em:
<http://www.kiplingsociety.co.uk/poems_if.htm>. Acesso em: 06 ago. 2017.
6 4 | Flavia Bruno

Conclusão

L ucrécio diz que sua doutrina frequentemente parece


muito obscura para quem não a pratica. E, por isso, do mes-
mo modo que médicos enganam as crianças com o favo de mel
para fazer com que elas tomem o repugnante absinto, ele também
usa o canto melodioso das musas para expor a sua doutrina (2010,
I, 935). É como se o homem comum precisasse ser seduzido;
quando o seu espírito se torna vulnerável pela beleza do canto das
musas, ele pode deixar-se capturar e assim perceber a natureza
das coisas, bem como a sua utilidade (2010, IV, 11-25).
A física dos atomistas realiza uma revolução na forma de
compreender do homem. Não se trata de chegar a um ceticismo
e tudo negar, porque durante algum tempo há alguma coisa: esse
corpo que nos constitui, esta árvore que produz uma boa som-
bra, a Via Láctea. São singularidades nascidas em tempos incer-
tos e lugares improváveis, singularidades surgidas aleatoriamente
a partir da mínima declinação angular e que, para desaparecer,
também só necessitam de outra mínima declinação. Assim, o que
resta ao pensamento é ir em busca das singularidades. Ao invés de
perseguir as leis, as regularidades, as estabilidades, buscar o ex-
traordinário, o raro, os pequenos desvios, as derivações.
A compreensão da física como ciência do nascimento e da
morte, como chamava Epicuro (LAÊRTIOS, 1987, X, 30) traz ao
homem a saída da irracionalidade e das opiniões vãs, proporcio-
nando uma vida longe das perturbações que lhe afetam e lhe de-
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sestabilizam e, consequentemente, ensejando a conquista de uma


vida feliz. É o estreitamento entre a física e a ética, a intimidade
entre campos do saber aparentemente tão distintos.
Claro que a compreensão do ensinamento atomista não
é fácil: ele desconstrói a tradição, que vem desde os gregos, que
afirma a primazia da alma, das causas finais, da identidade e da
permanência. Por outro lado, ele pressupõe a composição da
alma por átomos (sem qualquer hierarquia da alma ou dos pensa-
mentos). Diz ele que a alma é uma parte do homem assim como
a mão, o pé e os olhos (LUCRÉCIO, 2010, III, 94-96). É feita
de átomos sutilíssimos (LUCRÉCIO, 2010, III, 179-180) e não
sobrevive à morte. Está unida ao corpo, e é esta união que a faz
viver; uma vez apartada do corpo, retorna aos elementos primei-
ros (LUCRÉCIO, 2010, IV, 30-32). Diz ele ainda: “Portanto,
não temos de crer que algo de nós subsista após a morte, quando
o corpo e a natureza da alma, destruídos ao mesmo tempo, são
dissociados em seus elementos específicos” (LUCRÉCIO, 2010,
IV, 43-45, tradução nossa); um universo eterno; um elemento
primordial da matéria que só pode ser pensado; um movimento
infinito; a criação imprevisível pela declinação mínima; a natu-
reza na sua expressão fenomênica diversa e sempre cambiante;
o abandono da causalidade e o pressuposto do infinito como dado
fundamental da natureza – átomo, vazio, movimento, composi-
ções e mundos: se é, é infinito.
Por isso, ainda que difícil, não se deve continuar ignorando
o ensinamento da física atomista. Lucrécio afirma: “por mais es-
túpido que seja nosso coração, se pode começar a conhecer isso”
(LUCRÉCIO, 2010, IV, 53). Como diz Serres, “…e, no entanto,
é assim. E Lucrécio tem razão” (2003, p. 121).
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E s t e l i v r o f o i c o m p o s t o
u t i l i z a n d o a s f o n t e s C a r d o
( d e G o o g l e F o n t s ) e i m p r e s s o
n a s g r á f i c a s d e i m p r e s s ã o p o r
d e m a n d a d a A m a z o n K D P.

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