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Apontamentos de

Filosofia Antiga II
Os Atomistas

Os atomistas constituem a escola de Abdera cujo fundador é Leucipo


de Mileto ou de Eleia. É difícil saber o que pertence a Leucipo e o que
pertence ao seu discípulo Demócrito de Abdera.

Com a escola de Abdera não só é ocupada a 2.ª metade do séc. V como as


primeiras décadas do séc. IV o que faz com que Demócrito sobreviva a
Sócrates e seja contemporâneo de Platão.
As bases da doutrina atomista são lançadas por Leucipo e podem
resumir-se da seguinte maneira:

O real é constituído por átomos e vazio;


Os átomos são o ser, o vazio o não-ser;
Tanto o ser como o não ser têm uma existência plena.

Leucipo e Demócrito de Abdera Fundam o atomismo em grego Palavras


átoma, somáta, atomoi , ógkoi, significam sólidos corpos indivisíveis ,
massas e átomos . Mas em que consiste o atomismo e a escola de
Abdera?

Leucipo de Mileto (nascimento: cerca de 500 a.C.),

Tradicionalmente, Leucipo é considerado o mestre de Demócrito de Abdera e,


talvez, o verdadeiro criador do atomismo (segundo a tese de Aristóteles), que
relatava que uma matéria pode ser dividida ate chegar em uma pequena partícula
indivisível chamada átomo. A respeito praticamente nada é conhecido. Não há
certeza sequer sobre o local do nascimento (alguns acreditam que possa ter sido
Abdera ou Eleia). Especula-se que fosse mais novo que Parménides de Eleia e
parece ter sido contemporâneo de Anaxágoras de Clazómenas e de Sócrates. Do
ponto de vista teórico, é possível traçar uma ascendência ao pensamento de
Melisso de Samos e Zenão de Eleia. A tradição lhe atribui a autoria de um único
livro intitulado A grande ordenação do cosmos.
Teria defendido a existência simultânea do ser e do não ser. O ser era
constituído por átomos em perpétuo movimento enquanto o não ser era
constituído por o vácuo.

Demócrito originário de Abdera escreveu A Pequena Ordenação dos


cosmos, muito possivelmente depois de 430. Tanto Leucipo como
Demócrito são pensadores da 2 metade do século V. infelizmente a obra
de Demócrito perdeu-se quase na totalidade. Este pensador escreveu
cinquenta e dois livros de ética Física, Matemática ,musica e assuntos
técnicos chegaram até a nós cerca de 290 fragmentos a maior parte de
índole ética.

O Problema Do Conhecimento
Demócrito é o último grande pré-socrático, aquele que consegue na
segunda metade do século V Apresentar um sistema original:

Frag. 125
Segundo a prática corrente existe a cor ,o doce o amargo;
Na realidade o que existe são átomos e vácuo.
(Então os sentidos Dizem para a inteligência) pobre espírito foi de nós que
recebeste o testemunho e agora queres derrubar-nos?
Se o fizeres será a tua queda.

Destacamos já 3 pontos fundamentais deste fragmento:


1- Segundo a razão o real é formado pelos átomos e pelo vácuo
2- Segundo a opinião o real é formado pela cor, pelo doce pelo amargo.
3- Os sentidos ameaçam a razão.

Analisando o ponto 1- podemos ver que o real é constituído pelos


átomos e pelo vácuo ou seja pelo ser e pelo não ser neste ponto
Demócrito segue Leucipo. Podemos dizer desde já que Demócrito
como tinha feito Anaxágoras esta em oposição ao Eleatas. Mas também
é certo que algumas características dos átomos são aquelas que possuía
o ser parmenídio ou seja os átomos são incriados, imperecíveis e
indivisíveis. Demócrito apresenta todavia a oposição máxima aos
eleatas , por ter defendido de uma forma extremamente explicita a
existência do não ser um autentico sacrilégio para a escola eleata .

Analisando o ponto 2- Temos a dizer que as sensações nos dão o real. A


teoria da sensação em Demócrito é complexa e constituiu a parte do
sistema mais atacado pelos gregos. A sensação é constituída por uma
espécie de eflúvio, que é lançado pelas coisas e que choca com os órgãos
dos sentidos. È assim que ele explica a sensação visual mas pode-se dizer
todas as sensações se reduzem á do tacto.

Analisando o ponto 3- na curta fala na ultima parte do fragmento, este


indica uma querela que os pré socráticos já tinham aflorado ou seja a
critica aos sentidos e a dificuldade em atingir a verdade.

Os Átomos e o Vácuo
Em primeiro lugar podemos dizer que o vácuo é o lugar por assim dizer ,
onde não existem átomos . Quanto aos átomos para alem das
características que já indicamos é importante mencionar neste momento o
seu aspecto compacto, o seu número infinito assim como a multidão
das formas que podem revestir-se, também Demócrito refere que os
átomos tem peso assim como uma extrema pequenez que os torna
invisíveis
Resumindo o que dissemos acerca do átomo podemos dizer que as suas
características principais são as seguintes : incriados, imperecíveis,
compactados com peso e com formas variadas.
Há átomos côncavos em forma de gancho etc.

As gênese do Universo
Demócrito irá explicar a formação do universo pelo movimento que os
átomos estão animados. Qual é a causa deste movimento originário, não
conhecemos e segundo o que tudo indica Demócrito não teria dado
qualquer indicação. Mas que é importante destacar desde já é que o
movimento de que os átomos estão animados não é de origem divina .
Ora estando os átomos em movimentos por vezes chocam entre si e
segundo determinadas circunstâncias entram em turbilhão em que os
mais leves são atirados para o exterior, enquanto os mais pesados
constituem o centro. Os átomos que ficam no exterior constitui a
espécie de membrana que poderá assim dizer captar os outros
átomos e enviá-los para o interior. Segundo a forma dos átomos podem
então surgir a terra e os astros que a rodeiam . Quanto ao sol , á lua . às
estrelas devem ser massas ígneas pelo facto de alguns átomos devido a
velocidade se incendiarem. A terra e todas as coisas existentes são
formadas por átomos que diferem na sua forma.
Demócrito defende uma física quantitativa, em oposição a física
qualitativa de Anaxágoras. Assim, para Demócrito , uma coisa existente
difere da outra pela forma que possuem os átomos de que ela é formada.
Os Mundos Inumeráveis
Sendo o vácuo infinito e havendo uma multidão de átomos em
movimento para Demócrito é lógico que em vários lugares desse vácuo os
átomos se encontrem e formem diversos mundos é extremamente curioso
como Demócrito tem uma intuição genial que esses mundos
contemporâneos no tempo possam não ser idênticos aquele que vivemos .
Assim nesses mundos pode faltar qualquer astro que rodeia a terra e
alguns neles pode não existir a vida.. Demócrito é único pré-socrático do
qual se pode afirmar com toda a certeza, que defendeu mundos
inumeráveis coexistentes no tempo.

Já dissemos que Demócrito não reservou qualquer função aos deuses na génese
dos mundos. Acrescentamos que o filósofo não negando a existência dos deuses
vai considerá-los mortais retirando-lhes a sua principal prerrogativa.
Demócrito, o último grande pré-socrático, apresenta algumas características
interessantes: é autor de dezenas de títulos e defensor de um cosmopolitismo
expresso no frg. B249:

"O sábio pode andar por toda a Terra pois a pátria de uma alma boa é
o mundo inteiro" (trad. M. H. R. P.)
Os Sofistas

A 2.ª metade do séc. V a. c..

1.1. O quadro histórico

A 2.ª metade do séc. V. a. C. é importante sob vários aspectos, entre os quais o


filosófico.
Vamo-nos deter, quase exclusivamente, sobre Atenas, por razões perceptíveis
ao longo desta exposição.
Para uma melhor compreensão dos movimentos filosóficos tracemos,
primeiramente, as linhas gerais do quadro político.
Em meados do Séc. V. a. C., o estratego Péricles apresenta-se como o símbolo
de um determinado regime - o democrático; e o circulo que constituiu ao seu
redor foi bem representativo do ambiente cultural que, então, se respirava.
Plutarco, na sua Vida de Péricles, dá-nos algumas indicações preciosas sobre a
constituição de tal circulo.
Assim, sabe-se que o sofista Protágoras foi um dos íntimos do grande político
(55); e pode-se acrescentar ter sido ele quem elaborou a constituição para a
colónia de Túrio, construída sobre a arrasada cidade de Síbaris. Zenão de Eleia, o
célebre discípulo de Parménides, gozou, também, da mesma audiência. Diz
Plutarco:

"a sua maneira era discutir com toda a gente", diz Plutarco, "empregar
os argumentos mais subtis e levar os adversários a não saberem que
responder-lhe" (4, Trad. Lobo Vilela).

É possível que tanto o sofista como o eleata tivessem preparado Péricles para
os grandes embates na assembleia, onde o discurso bem como a arte de disputar
constituíam os grandes temas para a vitória política.
Plutarco, que continuamos a seguir, não esconde em vários pontos da sua obra
a admiração por Anaxágoras:
"o amigo íntimo de Péricles...aquele, enfim, que lhe inspirou a
grandeza da alma que o distinguia, a dignidade que ressaltava de
toda a sua conduta, foi Anágoras de Clazómenas..." (5, Trad. Lobo
Vilela).

Estas figuras que rodearam Péricles, sem falarmos de outras que foram,
também, importantes indiciam, já, o quadro intelectual da Atenas na 2.ª metade
do séc. V.
Abordando, agora, o aspecto político, o nosso melhor guia é o historiador
Tucidides, que foi um chefe militar ateniense, no conflito que apôs Atenas e
Esparta e também um pensador político que, na sua obra Guerra do Peloponeso,
embora com moderação, não esconde a sua simpatia pelo dirigente ateniense.
Em texto que ficou célebre, o historiador apresenta uma oração fúnebre,
pronunciada pelo estratego, em que este aproveita para elogiar o regime, sob o
qual vivia Atenas; (II, 35-46).
É um elogio á democracia, cujo regime é caracterizado pela possibilidade de
todos os cidadãos, qualquer que seja a sua posição económica, ascenderem aos
mais altos cargos da polis.
Mas, impõe-se fazer algumas considerações, quanto á sociedade ateniense e á
democracia no tempo de Péricles, para determinar o que há de novo na vida da
Cidade, assim como o que se deve entender por democracia, enquanto Péricles
esteve á frente dos destinos de Atenas.
Sobre o primeiro ponto, parece não haver dúvida em assinalar-se uma
transformação que, embora ainda não radical, contrastava com a de Atenas de
algumas décadas atrás.
Os grupos familiares que agregavam uma série de partidários cedem o lugar a
grupos mais vastos, que se diferenciam dos anteriores pelo maior número de
membros e por um esboço de ideologia que os vai informando.
Embora, encaremos, cautelosamente, toda e qualquer comparação,
permitimo-nos afirmar que, cerca de 450-440 surgem as facções políticas,
aproximadamente, como hoje as entendemos. Agrupamentos, como dissemos,
mais vastos (em que o núcleo já não era o clã familiar), com uma doutrina já
assente e cujo objectivo era a conquista do poder e a instauração de um
determinado tipo de governo.
Assim, frente a frente, encontravam-se a facção democrática e a aristocrática.
A primeira agrupava, essencialmente, os cidadãos, cujo privilégio não era o
sangue, ou seja, aqueles que pertenciam á classe popular e á burguesia de riqueza
grande ou mediana, alcançada através do comércio e da industria, aos quais se
juntaram alguns nobres. A segunda era constituída pela nobreza, que não queria
perder os seus antigos privilégios, a qual atraiu, também, a si alguns ricos
burgueses. Tal facção visava, fundamentalmente, constituir um governo
oligárquico.
Devemos fazer algumas considerações, para uma melhor compreensão, da
democracia da qual Péricles era o expoente máximo. Em primeiro lugar, o
estratego era um Alcmeónida, isto é, um membro de uma das famílias mais
poderosas de Atenas que, ao longo de gerações, lutava pela conquista do poder. O
próprio Tucídides, simpatizante deste político, não se furta a dizer que o governo
de Atenas, no seu tempo, era essencialmente o governo de um homem só, ou
seja, que, sob a capa da democracia, Péricles tinha, praticamente, todos os
poderes, restando ao demos aplaudi-lo.
Falemos, agora, um pouco sobre algumas características da democracia
ateniense.
Em primeiro lugar, o corpo de cidadãos, aqueles que tinham o direito de votar
e de ser eleitos, era constituído apenas por uma parte da população: talvez 10 por
cento. Havia, assim, uma limitação desta democracia, pois, nem todos tinham a
capacidade política.
Em segundo, diremos, agora, que esta democracia era directa. A Assembleia
Popular, constituída por todos os cidadãos, detinha o poder político e a condução
dos negócios públicos.
Em terceiro lugar, dever-se-á anotar que o regime democrático ateniense, ao
longo do tempo criou mecanismos para controlar (na medida do possível) os
aspectos demagógicos. Anotar, ainda, que a democracia em Atenas, durante a sua
longa existência, se foi aperfeiçoando e, não obstante alguns acidentes de
percurso, serviu os interesses da Cidade.

***

Os acontecimentos ocorridos em 411, em plena Guerra do Peloponeso, são


elucidativos de como algo profundo ocorria na vida ateniense. Nesse ano, os
oligarcas tomaram o poder através de uma revolta, constituindo o chamado
governo dos Quatrocentos, o que mostra a dificuldade que a nobreza tinha em
tomar um lugar de relevo na condução da vida política, sem recurso á força.
Esse facto mostrava, também, como se iam extremando, cada vez mais, os
campos ideológicos, manifestando-se uma consciência muito aguda dos
conteúdos doutrinários das facções em presença.
Mas, o governo dos Quatrocentos, cujo teórico seria Antifonte, contou com a
firme oposição de uma parte da frota e do exército que, na altura, estacionava na
ilha de Samos, o que se poderá interpretar como a expressão de um sentimento
profundamente democrático do povo ateniense.

Falar da 2.ª metade do século V, sob o ponto de vista histórico conduz-nos ao


grande conflito, conhecido por Guerra do Peloponeso. Esta guerra ocupa,
praticamente, as três últimas décadas do século V.
O conflito teve a sua origem na pretensão de hegemonia manifestada pelas
duas cidades-estados mais poderosas da Grécia - Atenas e Esparta; não só factores
económicos mas também ideológicos estiveram em jogo.
Atenas tinha constituído um império, essencialmente marítimo, cujo grande
obreiro tinha sido o próprio Péricles.
O poderio ateniense centrava-se, sobretudo, no quadrante oriental do mundo
grego e que procurava, já, estender-se para as regiões do Ocidente. Plutarco, na
Vida de Péricles diz que este
"tinha o cuidado de refrear as loucas pretensões dos
Atenienses...começa já, até, a acender-se no coração da maior parte
deles este fatal e desgraçado desejo de subjugar a Sicília, desejo que
os oradores do partido de Alcibíades inflamaram depois com tanta
violência" (33, Trad. Lobo Vilela).

Era este império, vasto em termos gregos, que fornecia as matérias-primas de


que Atenas necessitava, enquanto esta dava protecção militar às suas aliadas. Os
impostos recebidos por Atenas, assim como os lugares de funcionários e soldados
que constituíam a estrutura ateniense, faziam com que a Cidade da Ática pudesse
viver desafogadamente, ao mesmo tempo que uma parte dos seus habitantes
tinha uma ocupação que lhes dava, pelo menos, para viver razoavelmente.
Compreende-se, assim, que a facção democrática se encontre empenhada na
defesa dos resultados já conseguidos, obtendo, por isso, um grande apoio
popular.
Por razões ideológicas, o movimento aristocrático era pró-espartano, sendo,
portanto, contrário a uma guerra que opusesse a sua Cidade a Esparta e parece,
também, que não estaria interessado na manutenção de um império.
As cidades-estados, ameaçadas por Atenas, juntaram-se a Esparta e, a guerra
pela supremacia prolongou-se durante vinte e oito anos, com excessos de ambas
as partes.
As devastações realizadas pelo exército espartano na Ática, assim como as
pilhagens no litoral do Peloponeso pela frota ateniense, constituíram marcos de
uma violência que transbordou desses limites geográficos. Relembremos, apenas,
o massacre efectuado pelos atenienses na pequena ilha de Melos, em que os
homens foram mortos e as mulheres e as crianças feitas escravas.
Quanto a guerra já não favorecia os atenienses, estes entraram numa espécie
de demência.
Os próprios estrategos, embora vencedores junto das ilhas Arginusas, não
podendo recolher os corpos dos seus compatriotas, devido a uma tempestade,
foram condenados em bloco - o que era contra a lei.
Mas a batalha de Egospótamo pôs fim á guerra do Peloponeso devido á
destruição da esquadra ateniense, o que levou á celebração da paz em condições,
talvez, não muito duras para a Cidade que tinha realizado várias violências, a
coberto de razões políticas e em nome da justiça.

Em 404, Atenas obteve a paz a troco da destruição das suas muralhas e da


perda da frota e do império. A facção democrática, sob a pressão interna e
externa, não se conseguiu manter e os oligarcos constituíram um governo,
apoiado pelos espartanos. O novo governo, cedo conheceu a cisão, pois, Critias
era partidário de um regime de força, enquanto Terâmenes, representante dos
moderados pretendia uma nova constituição.
É provável que esta cisão tenha resultado do facto de Terâmenes ver, com
clareza, que o apoio ao governo ia diminuindo devido ás perseguições e extorsões
que, então, se praticavam. Terâmenes pagou a sua moderação com a morte.
Este governo, que ficou conhecido por governo dos Trinta Tiranos levou os
democratas a refugiarem-se em Tebas (onde se encontrava Trasíbulo, que já em
411 se tinha oposto ao regime dos Quatrocentos), e em Mégara, que, também,
abriu as suas portas aos refugiados; a estes exilados juntaram-se, depois, os
partidários de Terâmenes.
Com um corpo de cidadãos reduzidos a três mil, e uma onda de terror que,
segundo Aristóteles, levou á morte cerca de mil e quinhentas pessoas, o governo
oligárquico tornou-se odioso.
Em 403, Trasíbulo, reunindo os exilados, conquistou, primeiramente, o Pireu,
entrando, em seguida, na própria Atenas.
Sem grande oposição das forças espartanas, o regime democrático foi
restaurado, tendo os novos governantes usado de uma moderação, notável, em
relação aos seus adversários.

1.2. O quadro Cultural

Depois de termos traçado o quadro histórico, nas suas linhas gerais, da 2.ª
metade do século V, é altura de indicarmos os grandes momentos sob o ponto de
vista cultural.
Ocupando lugar de relevo no movimento filosófico dos meados do século V,
situava-se Anaxágoras de Clazómenas que, como já disse, pertenceu ao círculo de
Péricles. Ele foi, juntamente com Demócrito, o último grande pensador do
chamado período pré-socrático.
A sua presença, em Atenas, é indicio, muito provável do desejo de Péricles em
ver desenvolver-se, na Cidade, a especulação filosófica, a qual presente em zonas
da colonização grega, tinha estado arredada de Atenas.
A estadia do ilustre filósofo tem, pois, um elevado significado cultural, na
medida em que a Filosofia mudava de quadrante geográfico, passando da Grande
Grécia para a Ática.
Com muita probabilidade, devido á sua presença no círculo de Péricles, o
filósofo foi acusado de impiedade, crime considerado muito grave em Atenas (a
acusação de impiedade, neste caso, devia esconder uma perseguição política).
Acusado de tal crime, Anaxágoras retirou-se para Lâmpsaco.
Os mais recentes pensadores, da linha pré-socrática, são Hípon de Samos, que
restaura o ponto de vista de Tales, Diógenes de Apolónia, possivelmente o de
maior valor, que regressa a Anaximenes, e Arquelau, discípulo de Anaxágoras,
que tentou conciliar o pensamento deste último com o do milésio Anaximenes.
Todos eles foram defensores de um eclectismo em que as teorias dos
pensadores de Mileto foram reelaboradas com a ajuda de conhecimentos de
ordem cientifica especializada, sobretudo médica, conhecimentos esses que
tiveram um surto de grande desenvolvimento pelos meados do século V.
Mas este eclectismo não chegou a impor-se e se a ciência conhecia o apogeu, a
filosofia, teve de fazer uma viragem, devida como veremos, em grande parte, ao
movimento sofístico.
Se a Filosofia tinha nascido em Mileto, é Atenas que vai assistir á aurora de um
novo impulso filosófico.

***

A 2.ª metade do século V foi fértil em transformações políticas, sociais e


culturais.
É a altura em que a ciência e a técnica ganham foros de cidadania, havendo
alguns dos seus cultores cujos nomes vamos recordar.
Em primeiro lugar, citemos os matemáticos Enópides e Hipócrates de Quio,
que prolongaram um domínio cultivado pela escola pitagórica, a qual alcançou
êxitos assinaláveis até ao século IV a. C., e cujos representantes mais famosos
foram conhecidos pelo próprio Platão, sobretudo quando este fez a primeira
viagem á Grande Grécia.
Famoso, também, o astrónomo Méton, que lançou ombros á reforma do
calendário, pertencendo a essa plêiade de cientistas que a Grécia via surgir.
Embora a técnica não tivesse ganho importância, Plutarco (V.P.,23) assinala o
nome do engenheiro Artemon que acompanhou Péricles no cerco de Samos e
fora o inventor de algumas máquinas de guerra, utilizadas nessa altura.

* **

O grande acontecimento cientifico em nossa opinião, foi levado a cabo pela


Medicina, cujo centro principal foi a Escola de Cos dirigida pelo célebre
Hipócrates. O Corpus Hipocraticum, que chegou até aos nossos dias, não permite,
todavia, distinguir o que pertence ao mestre e aos seus discípulos.
Werner Jaeger teve entre outros, evidentemente, o grande mérito de, na sua
Paideia, aprofundar o significado e mostrar o impacto que a ciência médica teve
no seu tempo. São do célebre historiador estas palavras, bem elucidativas:

"Ainda que não tivesse chegado até nós nada da antiga literatura
médica dos Gregos, seriam suficientes os juízos laudatórios de
Platão sobre os médicos e a sua arte, para concluirmos que o final do
século V e o IV a. C. representaram, na história da profissão médica,
momento culminante do seu contributo social e espiritual." (Trad.
Artur Parreira)

E, na linha do que pretendemos, essencialmente, estudar, outra passagem do


mesmo historiador parece-nos, também, da máxima importância:

"É perfeitamente lógico que, ao fundar a sua ciência ético-política,


Platão não começasse por se apoiar na forma matemática do saber
nem da filosofia específica da natureza, mas, como nos diz no
Górgias e em muitos lugares, tomasse antes, por modelo, a arte
médica." (Trad. Artur Parreira).
Esbocemos, porém, as grandes linhas da medicina grega, para, com mais
clareza, vermos qual o lugar que ela ocupa na cultura dos séculos V e IV a. C.. Em
vários escritos do Corpo Hipocrático ressalta a influência que a filosofia pré-
socrática exerceu sobre alguns médicos, pois, as doenças são estudadas numa
perspectiva ampla, em que o Homem não pode ser desligado da própria natureza.
Tal significa que o conceito de physis é transposto da reflexão filosófica para o
campo da ciência médica. Para ilustrarmos a voga deste conceito bastará dizer
que, num dos escritos hipocráticos, se aconselha o médico que se dirija a
qualquer cidade, para estudar, em primeiro lugar, a situação desta, as águas, os
ventos, portanto o que era matéria da chamada meteorologia; só de posse destas
informações ele estaria habilitado a debruçar-se sobre o doente.
O conceito de natureza, de physis, ainda é tomado no sentido em que os
milésios o empregaram.
Se os escritos, um pouco, mais antigos mostram a influência da chamada
filosofia da natureza, todavia a medicina dá um passo em frente e será esta que,
em meados do século V, influencia os próprios pensadores como Anaxágoras,
Diógenes e Hipon, sendo este último, também, um médico.
Surgem os estudos sobre os alimentos, ou seja, a dietética, assim como as
obras sobre a ginástica. Tais conhecimentos são tendentes a que o Homem, atinja
um equilíbrio, pois o universo tem uma ordem harmoniosa, e o Homem, inserido
neste mesmo universo, deve constituir, também, uma harmonia.
Dos conceitos mais importantes que vão surgir é, sem dúvida, o da natureza
humana que mais interessa, aqui, focar. Do sentido lato de natureza passa-se,
agora, para o sentido mais restrito da natureza que é própria do Homem,
preocupando-se a ciência médica com a dimensão eminentemente antropológica
(como é natural numa ciência deste tipo).
Assim, alguns escritos do Corpo Hipocrático mostram diferenças em relação às
doutrinas dos pré-socráticos. E será essa noção que, por sua vez, irá influenciar o
próprio movimento sofístico que, segundo Robin, foi sobretudo permeável ao
Acerca da Arte, um dos tratados da colecção hipocrática.
A autonomia da ciência médica está bem expressa na obra intitulada Da
Medicina Antiga, cujo autor considera que esta ciência não necessita de uma nova
fundamentação, e aponta para um campo mais restrito, para um certo
empirismo, em que o Homem fosse estudado, não já nas suas relações com a
Natureza, mas em si próprio.

***
Os Sofistas
Preliminares

Um dos grandes movimentos culturais dos meados do século V foi, sem


dúvida, a sofistica, com uma repercussão que ultrapassa esse século, penetrando
no seguinte, sendo pois contemporâneo do próprio Platão.
Protágoras, Górgias, Pródico e Hipias (seguindo a ordem cronológica) são os
representantes máximos desta corrente sendo, ao mesmo tempo, os seus
iniciadores. A actividade destes quatro sofistas decorre mais ou menos entre 450
e princípios do século IV. Surge ainda, uma geração mais jovem dos quais
destacamos: Trasimaco, Pólo, Xeníades, Licofron, Alcidamas.
A acção destes homens denegrida durante muito tempo é, nossos dias, e de
uma maneira geral, encarada de forma positiva. L. Robin, em La Pensée Grecque,
ainda escreveu estas linhas:

"Quaisquer que tivessem sido as fraquezas e as taras profundas, a obra dos


sofistas, do século V, não deve ser depreciada. Sem dúvida, o seu método é
formal, a maioria das vezes vazio de pensamento pessoal e de sinceridade"
(p. 177).

Estas reticências não são compartilhadas por Werner Jaeger que, sobre este
movimento, afirma o seguinte:

"Do ponto de vista histórico, a sofistica é um fenómeno tão importante


como Sócrates ou Platão. Mais, não é possível concebé-los sem ela" (Paideia,
p.316, Trad. Artur Parreira).

A opinião deste historiador é partilhada, entre outros, por Dupréel e Guthrie


tendo este último , na minha opinião, efectuado um dos estudos mais profundos
sobre os sofistas.
Após estas linhas introdutórias convém salientar que o sofista era um mestre
do saber (sábio, filósofo, sofista, foram termos equivalentes), um profissional do
ensino, como hoje diríamos, e a sua acção só se compreende pelas mutações cada
vez mais rápidas que a sociedade grega sofria.
A partir dos meados do século V, como já disse, a presença das facções
políticas, a luta ideológica, transposta, por vezes, para o conflito bélico, fazia com
que a carreira política fosse, simultaneamente, mais difícil e mais aliciante.
Sobretudo a juventude, que queria tomar parte na gestão da coisa pública,
tinha de ter uma preparação cuidadosa, pois, era perante as assembleias, nas
quais estavam presentes os cidadãos, que se travava a luta pelo poder.
Os sofistas respondiam a essa necessidade assim como àquela, sobretudo na
classe mais elevada, que consistia na curiosidade pela análise literária e pelos
temas filosóficos e científicos. O fenómeno sofistico, tem de ser compreendido,
portanto, no enquadramento histórico e cultural, o qual, a ser desconhecido,
tornaria ininteligível o aparecimento e a voga destes profissionais do saber.
Até que ponto os sofistas desenharam um movimento com interesse para a
História da Filosofia constitui um tema controverso. Referindo-se ao
aparecimento do subjectivismo e do relativismo filosófico, W. Jaeger defende a
seguinte posição:

"O esboço duma teoria por parte de Protágoras não justifica tais
generalizações, e é um erro evidente de perspectiva histórica pôr os mestres
da aretê ao lado dos pensadores do estilo de Anaximandro, Parménides ou
Heraclito." (Paideia. Trad. Artur Parreira)

A posição de Werner Jaeger, que é acompanhado por outros autores consiste


em considerar que as Histórias da Filosofia Grega (talvez não todas) cometem um
erro ao considerarem a sofistica como uma corrente filosófica.
Problema, sem dúvida, delicado este, o de se considerar o movimento sofistico
como devendo ou não entrar na História da Filosofia. Na minha opinião
considero o estilo destes homens, sem dúvida, diferentes dos investigadores da
physis o que não me parece suficiente para os colocar fora da História da
Filosofia.
A grande objecção que levanto a esta tese é a de que não se compreenderia a
luta de Platão contra os sofistas, praticamente ao longo de toda a sua obra, se
estes não tivessem uma envergadura intelectual, e se não tivessem levantado
problemas pertinentes, no campo filosófico. Se entre os sofistas foi Protágoras o
mais longamente atacado por Platão (teremos de ver mais tarde as razões), vários
diálogos mostram, com clareza, que o filósofo considerou, também, como
adversários difíceis não só os primeiros sofistas como alguns dos seus discípulos.
Citamos, ainda, Aristóteles que em vários passos da sua obra se debruça sobre
estes homens.
O movimento sofistico deve ter o seu lugar na História da Filosofia Grega,
segundo penso, e tentarei mostrar que a sua problemática foi importante para o
desenvolvimento ulterior da filosofia.
Os sofistas a que nos vamos referir são, por ordem cronológica, Protágoras de
Abdera, Górgias de Leontinos, Hípias Céos e Hipias de Elis. Mas antes de
entrarmos numa breve exposição do seu pensamento apresentarei alguns traços
gerais deste movimento:

os sofistas não constituíram uma escola filosófica: por assim dizer, cada
sofista constituiu a sua escola;
os sofistas são professores itenerantes, ou seja, permanecem por períodos,
mais ou menos longos, em várias cidades gregas;
os sofistas recebem honorários pelos seus cursos;
os sofistas não pertencem á classe mais elevada da Grécia; talvez, por essa
razão, as suas lições são pagas;
os sofistas são professores da excelência política (politike arete);
estes professores introduzem duas técnicas da máxima importância: a
erística e a retórica.
Diremos, ainda, que o movimento sofistico apresenta dois aspectos que deverei
mencionar:

não obstante a sua originalidade ele não corta, por completo, com o passado:
alguns sofistas continuam a debruçar-se sobre as questões cosmológicas;

o movimento sofistico teve um impacto notável em vários sectores da cultura


grega que mencionaremos um pouco mais adiante.

PORQUE O PROBLEMA FILOSÓFICO DO HOMEM NÃO NASCEU


CONTEMPORANEAMENTE AO PROBLEM DO COSMO
A filosofia descuidou ou, pelo menos, deixou na sombra o ser do homem, e
não se preocupou com a compreensão racional da natureza específica do
homem; no âmbito da filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar
privilegiado, ou melhor, não se compreendia nem se justificava este lugar
privilegiado.

ORIGENS, NATUREZA E FINALIDADE DO MOVIMENTO SOFÍSTICO


1. Significado do termo “sofista”
São dois os pontos de acusação, e, de natureza diferente:

a) A sofística é um saber aparente e não real


b)É professada com fins lucrativos e de modo algum por desinteressado
amor á verdade.

A estas acusações, aduzidas por filósofos, acrescentaram-se depois


também as que surgiram da opinião pública. Esta viu nos sofistas um
perigo, seja para a religião (como de resto o viu nos últimos físicos), seja
para o costuma moral, dado que, justamente, para este domínio os sofistas
deslocam a sua atenção. Os aristocratas em particular não perdoaram os
sofistas por terem contribuído para a sua perda de poder e por terem dado
forte incentivo á formação de uma nova classe, que não se valia mais da
nobreza de nascimento, mas dos dotes e habilidades pessoais, e que era,
justamente, aquela classe que os sofistas pretendiam criar ou, pelo menos,
educar sistematicamente.

2. Razões do surgimento da sofística


Para compreender o surgimento e o desenvolvimento do fenómeno da
sofística, é preciso ter presentes os resultados aos quais chegou à
especulação naturalista. Estes tinham então chegado ao ponto de se
anularem mutuamente: os resultados do eleatismo contradiziam os do
heraclitismo; os resultados dos pluralistas contradiziam os dos monistas;
ulteriormente, as soluções dos pluralistas se excluíam mutuamente, se não
nos fundamentos, pelo menos na determinação do pensamento. Parecia,
então, que todas as possíveis soluções tinham sido propostas e não eram
pensáveis outras: para os sofistas o homem e suas criações espirituais estão
no centro da reflexão. Com os sofistas, começa aquele que, com expressão
correcta, foi chamado de período humanista da filosofia antiga.

3. O método indutivo da pesquisa sofística


A sofística tem seu ponto de partida na experiência e tenta ganhar o maior
número possível de conhecimento em todos os campos da vida, dos quais,
extrai algumas conclusões. Ela procede, portanto, segundo o modo
empírico-indutivo”.

4. Finalidades práticas da sofística


Os sofistas não buscam a verdade por si mesma, mas tinham por objectivo
o ensinamento, e o fato de terem discípulos era, para eles, essencial, os
sofistas faziam do seu saber uma verdadeira profissão. Contra a pretensão
da nobreza, que sustentava ser a virtude uma prerrogativa da nascimento e
de sangue, os sofistas pretenderam fazer valer o princípio segundo o qual
todos podem adquirir a Arête, e esta, mais que na nobreza de sangue,
funda-se sobre o saber.

6. O iluminismo da sofística grega


Eles subverteram nas velhas concepções da physis nas quais o pensamento
ameaçava cristalizar-se, criticaram a religião tradicional, abalaram os
pressupostos aristocráticos sobre os quais se fundava a política passada,
abalaram as instituições esclerosadas, contestaram a tradicional tábua de
valores que então era defendida sem convicção. Essa liberdade de espírito
e essa liberação espiritual de todas as tradições que foram próprias dos
sofistas valeram-lhes o epíteto de “iluministas gregos”.

7. As diferentes correntes da sofística


É impossível reduzir o pensamento dos vários sofistas a proposições
comuns, a sofística do século V representa um complexo de esforços
independentes para satisfazer, com meios análogos, necessidades
idênticas. A sofística, sofreu uma evolução, antes, uma evolução muito
marcada, e entre os mestres da primeira geração e os discípulos da
segunda geração existe uma diferença notável.
Protágoras

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são,
das coisas que não são, enquanto não são."

A vida e as obras

Protágoras nasceu por volta de 492 a.C. em Abdera e parece ter sido
discípulo de Demócrito. Existe uma história acerca de Protágoras que diz que
seu pai, Meândrios, sendo muito rico, recebeu em sua casa o rei Xerxes, o qual, a
para lhe agradecer, ordenou aos magos que ministrassem ao jovem Protágoras o
ensino, que de um modo geral, era reservado aos Persas.

Na realidade, pensa-se que a família de Protágoras seria de condição modesta


e, ele próprio, teria começado por exercer um trabalho manual. Sobre este seu
primeiro trabalho existe uma referência na obra da juventude de Aristóteles,
"Sobre a Educação". Nesse trabalho, Protágoras teria inventado a tulé (colchão ou
esteira sobre a qual se transportavam os fardos) e a embalagem de cargas
(método de encaixar os ramos de tal modo que um molho se segurava sozinho
sem laço exterior). Achado de natureza mais geométrica do que mecânica.

Esta origem social de Protágoras explica as suas opiniões democráticas.


Grande amigo do líder da democracia ateniense, Péricles, foram este e o regime
democrático ateniense que escolheram, em 444 a.C., Protágoras para elaborar a
Constituição de Thurii.

Foi alvo de uma acusação por professar o agnosticismo. Como resultado, foi
convidado a deixar Atenas e as suas obras foram queimadas na praça pública.
Protágoras foi o fundador do movimento sofistico. Inaugurou as lições públicas
pagas e estabeleceu a avaliação dos seus honorários. Pretende com o seu ensino
formar futuros cidadãos e por isso reivindica o título de sofista.

Morreu por volta de 422 a.C., com 62 anos, deixando uma influência profunda
em toda a cultura grega posterior. A sua influência manifesta-se também na
filosofia moderna.
As duas grandes obras de Protágoras são: "As Antilogias" e "A Verdade", esta
última veio a ser conhecida mais tarde por "Grande Tratado". A doutrina
de Protágoras abrange, pelo menos, três momentos que consistem,
primeiro na produção d' "As Antilogias", depois na descoberta do homem-
medida e, finalmente, na elaboração do discurso forte. O primeiro deles é um
momento negativo e os dois seguintes são construtivos.

As Antilogias

Protágoras foi o primeiro a defender, em "As Antilogias", que a respeito de


todas as questões há dois discursos, coerentes em si mesmos mas que se
contradizem um ao outro. Divisão polémica uma vez que Protágoras não
apresenta nenhuma razão suficiente para que sejam só dois e não uma
pluralidade de discursos possíveis.

O pensamento protagórico da antologia relaciona-se com o pensamento de


Heraclito que vê o real como algo de contraditório e que afirma a imanência
recíproca dos contrários. Contudo, entre Heraclito e Protágoras há uma diferença
no modo de expressão da contradição. Enquanto Heraclito, pela supressão do
verbo ser, mostra no próprio enunciado a contradição interna da realidade,
Protágoras divide a contradição numa antologia.

O plano d' "As Antilogias" é-nos relatado numa passagem do Sofista de


Platão. Desse plano fazem parte dois domínios: o do invisível e do visível. Por um
lado, o domínio do invisível coloca o problema do divino. Daqui resulta o
agnosticismo de Protágoras, ou seja, o ponto neutro entre dois discursos opostos
que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Este
agnosticismo prepara e permite o momento seguinte: a afirmação do homem-
medida. Por outro lado, no domínio do visível colocam-se vários problemas: o da
cosmologia, onde Protágoras estudava a terra e o céu; o da ontologia, onde
examinava o devir e o ser; o da política, onde expunha as diferentes legislações; e,
finalmente, o da arte e das artes.

O homem-medida

Os momentos construtivos da doutrina de Protágoras pertencem à sua obra


"A Verdade", nomeadamente, o homem-medida. "As Antilogias" mostraram uma
natureza instável e indecisa, desempenhando sempre um duplo papel. O homem
surge como uma medida que vai travar este movimento de balança, decidir um
sentido. É por isso que o escrito sobre "A Verdade" começa pela célebre frase:

"O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto
são, das coisas que não são, enquanto não são."
Esta frase continua enigmática. Note-se que, Protágoras utiliza para designar
a "coisa" de que o homem é medida o termo chrema, e não o termo pragma.
Sendo que o primeiro significa uma coisa de que nos servimos, uma coisa útil.
Depois, surgem algumas questões em redor da tradução do termo métron. Este é
tradicionalmente traduzido por "medida", com o sentido de "critério", mas há
quem rejeite este sentido e lhe atribua o sentido de "domínio", que deriva da
etimologia do termo.

Outro dos problemas que rodeia esta expressão diz respeito à extensão a dar à
palavra "homem". O Antigos entenderam a palavra "homem" como designando o
homem singular, o indivíduo com as suas particularidades específicas. Contudo,
no século XIX entendeu-se a palavra "homem" como significando a humanidade.
Mas, Hegel pensa que esta distinção de sentidos não tinha sido feita por
Protágoras.

O discurso forte

Cada indivíduo é, certamente, a medida de todas as coisas, mas muito fraca se


permanece só com a sua opinião. O discurso não partilhado constitui o discurso
fraco, mal chega a ser discurso, porque a comunicação supõe algo de comum.
Pelo contrário, quando um discurso pessoal encontra a adesão de outros
discursos pessoais, este discurso reforça-se com o dos outros e torna-se um
discurso forte.

A teoria do discurso forte de Protágoras parece estar em estreita relação com a


prática política da democracia ateniense, existindo vários indícios que para tal
apontam. O primeiro deles era o que Protágoras dizia, segundo Platão, acerca do
Bem. Para ele o Bem não podia existir só e único, mas sim com facetas, disperso,
multicolor.
Um outro indício encontra-se no "Protágoras" de Platão, onde Protágoras
mostra que a lei da cidade se aplica a todos, tanto aos que mandam como aos
apenas que obedecem. O terceiro indício está presente no mito de Epimeteu e de
Prometeu, no qual Protágoras estabelece a diferença entre a arte política e as
restantes, sendo estas últimas apenas da competência dos especialistas. Dizia
Protágoras que, Hermes, por conselho de Zeus, havia distribuído entre todos os
homens a virtude política, cujas duas competências são a justiça e o respeito.
Como tal nas cidades democráticas, para os problemas técnicos apenas se admitia
a opinião dos especialistas, para os problemas democráticos todo o homem se
podia pronunciar. O que constitui mais uma das características da democracia.

Se cada um é capaz de possuir a virtude política, isso significa que na cidade


se pode constituir um discurso unânime ou, pelo menos, maioritário, que
constitui o discurso forte. O discurso forte tem como fundamento a experiência
política. Esta experiência é a da democracia, na qual não se pesam as vozes,
contam-se. Portanto, a constituição do discurso forte é uma tarefa
essencialmente colectiva.
A virtude política será, então, um conjunto de conhecimentos possuídos por
todos os cidadãos permitindo-lhes encontrar-se numa plataforma comum.
Compreende-se deste modo que Protágoras tenha dedicado a sua existência à
educação do cidadão e que para ele toda a educação seja educação política. É que
a paidéia tem como resultado substituir os desvios particulares por um modelo
cultural consistente, que insere os indivíduos no espaço e no tempo.
Isto não significa que Protágoras defendesse a igualdade de opiniões e de
saberes em todos os indivíduos. Os homens melhores sabem propor aos outros
discursos capazes de captar a sua adesão. Torna-se, nesse caso, o discurso de um
só homem, um discurso forte.

Assim, se para medir o discurso forte se contam mais as vozes que o seu peso,
não é menos verdade que certas vozes pesam mais que outras pois são capazes de
juntar as outras à sua volta. A teoria do discurso forte de Protágoras parece então
apresentar uma inspiração política que é a da democracia, tal como Atenas a
conheceu na época brilhante de Péricles.

Natureza da Verdade

Vejamos agora duas interpretações, de Hegel e de Nietzsche, da filosofia de


Protágoras, nomeadamente, da sua concepção da verdade.
Segundo Hegel, o que caracteriza a descoberta do poder da subjectividade é a
verdade das coisas que se encontra mais no homem do que nas coisas.

O princípio fundamental da filosofia de Protágoras é a afirmação de que todo


o objecto é determinado pela consciência que o percepciona e pensa. O ser não
está em si, mas existe pela apreensão do pensamento. Contudo, há um tema no
pensamento de Protágoras que a interpretação hegeliana não considerou que é o
do valor mais ou menos grande do aparecer, segundo o seu grau de utilidade.
Este tema era essencial para Protágoras, uma vez que segundo ele o sábio saberia
nos seus discursos substituir um aparecer sem valor e sem utilidade por outro
melhor.

Nietzsche apresenta um pragmatismo que parece ter como fonte o


pensamento de Protágoras. Para ele, a obra do homem superior é criar o valor,
que não existe como um dado natural. O homem vive num mundo de valores.

O tema do útil é central no pensamento de Protágoras. Para este útil é o


critério que hierarquiza os diferentes valores e faz com que um valor seja
preferível a outro.

A proximidade existente entre Nietzsche e Protágoras é sugerida pelo próprio


Nietzsche, uma vez que este encara o pensamento como fixação de valores e o
valor como expressão do útil, e ao mesmo tempo caracteriza o homem como o ser
que, por excelência, mede. Apesar disto, existe uma diferença entre ambos. Por
um lado, Nietzsche interpreta esta verdade-útil como erro-útil e opõe-lhe uma
verdade verdadeira. Por outro lado, Protágoras chama verdade à avaliação
segundo a utilidade dada pelo homem. Ideias incompatíveis se concebermos a
verdade absoluta. Protágoras nega a verdade absoluta, uma vez que o universal
não é dado, há que fazê-lo pelo homem.

O Mito de Epimeteu e Prometeu


Prometeu (em grego: Προμηθεύς, "antevisão") é um personagem da mitologia
grega, um titã, filho do também titã Jápeto e de Ásia, também chamada de
Clímene, filha de Oceano (segundo alguns autores, sua mãe seria Témis) e irmão
de Atlas, Epimeteu e Menoécio.[1] Seu mito foi mencionado por dois dos
principais autores gregos, Hesíodo e Ésquilo.[2]

Pai de Deucalião, foi o titã que criou os homens, com seu irmão Epimeteu, e que
também roubou o fogo dos deuses para presentear às suas criações

Segundo Hesíodo[3] foi dado a Prometeu e seu irmão a tarefa de criar os homens e
todos os animais. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu encarregou-se de
supervisioná-la. Na obra, Epimeteu atribuiu a cada animal os dons variados de
coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a um, garras outro, uma carapaça
protegendo um terceiro, etc. Porém, quando chegou a vez do homem, formou-o
do barro. Mas como Epimeteu gastara todos os recursos nos outros animais,
recorreu a seu irmão Prometeu. Este então roubou o fogo dos deuses e o deu aos
homens. Isto assegurou a superioridade dos homens sobre os outros animais.
Todavia o fogo era exclusivo dos deuses. Como castigo a Prometeu, Zeus ordenou
a Hefesto que o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma
águia (ou corvo) dilacerava seu fígado que, todos os dias, regenerava-se. Esse
castigo devia durar 30.000 anos.

Prometeu foi libertado do seu sofrimento por Hércules que, havendo concluído
os seus doze trabalhos dedicou-se a aventuras. No lugar de Prometeu, o centauro
Quíron deixou-se acorrentar no Cáucaso, pois a substituição de Prometeu era
uma exigência para assegurar a sua libertação[.

A história foi teatralizada pela primeira vez por Ésquilo no século V a.C. com o
título de Prometeus desmotes (Prometeu Agrilhoado/Acorrentado)
Górgias

A vida e as obras

Górgias nasceu na Sicília, em Leontinos, entre 485 e 480 a.C.. Em 427 a.C.,
quando Leontinos foi ameaçada por Siracusa, foi encarregado de conduzir a
Atenas uma missão a pedir socorro. Górgias, defende a causa da sua pátria
perante a Assembleia do Povo, em Atenas, onde alcança um grande sucesso pela
sua eloquência.

O seu estilo é tão pessoal que os gregos criarão o termo "gorgianizar" para
designar "falar à maneira de Górgias". Com o seu estilo, Górgias conquista para o
seu ensino vários atenienses de alta estirpe e percorre toda a Grécia sem se fixar.
a
Na Tessália ensinou Isócrates, que veio a fundar em Atenas uma escola rival da
Academia. Parece ter ficado celibatário e ter passado o fim da sua vida na
Tessália, onde morre mais que centenário.

A sua audiência e celebridade era tão grande na Grécia que lhe ergueram uma
estátua de ouro maciço em Olímpia. Foi, sem dúvida, devido à sua imensa fama
que os fragmentos existentes de Górgias são os mais numerosos e completos de
todos os sofistas. Existem até certas obras em extenso, como é o caso d' "O Elogio
de Helena" e d' "A Defesa de Palamedes".

As obras de Górgias podem distribuir-se em três grandes grupos. O primeiro


compreende os textos de tom essencialmente filosófico, como é o caso de "Sobre
o Não-Ser ou Sobre a Natureza", "O Elogio de Helena" e "A Defesa de Palamedes".
Os textos do segundo grupo testemunham sobretudo a preocupação pela
eloquência e dele constam: "A Oração Fúnebre", "O Discurso Olímpico", "O Elogio
dos Elisinos" e "O Elogio de Aquiles". O terceiro grupo de escritos está relacionado
com a técnica retórica e compreende "A Arte Oratória" e "O Onosmástico".
A autodestruição da ontologia

O Tratado do Não-Ser organiza-se em três teses: nada existe; mesmo se o ser


existisse, então seria incognoscível; e se fosse cognoscível, então este
conhecimento do ser seria incomunicável a outrem.
Para Górgias as coisas não são mais do que não são. Ainda que o ser existisse,
não podia ser nem gerado, nem não gerado. Mas, mesmo se um tal ser existisse,
as coisas seriam incognoscíveis, pelo menos para nós. As coisas que vemos e
ouvimos existem porque são representadas. Ora, pode representar-se o que não
existe. Portanto, a representação do ser não nos proporciona o ser e o
conhecimento é impossível.
Contudo, tomamos conhecimento pela percepção e comunicamo-lo pela
linguagem. Mas a linguagem não transmite a experiência pela qual o real se nos
dá. Este é incomunicável, porque as coisas não são discursos.

A poesia da ilusão

Das ruínas da ontologia, Górgias deduziu um pensamento não ontológico ou


antimetafísico, onde reabilitava as aparências e afirmava a identidade entre o real
e a manifestação.
Se a aparência é modificável, o ser também o será. Isto nada tem de escandaloso
já que, a realidade é contraditória e o princípio de identidade origina apenas uma
ontologia que se contradiz a si própria. De facto, Górgias tinha uma concepção
trágica da realidade. Ele tinha o sentimento profundo de que a linguagem não
evoca senão a aparência, mas que esta aparência é legítima, do que é exemplo "O
Elogio de Helena".

Para Górgias, o real está dilacerado pelas contradições, o mundo humano


exige uma tomada de posição e este mundo humano está por fazer. Seria através
da poesia, nomeadamente da arte, que esta tomada de posição seria efectuada.
Portanto, o papel da poesia seria criar a ilusão, mas uma ilusão desejável e boa. Só
esta criaria a coerência mental a que Górgias chama justiça e sabedoria.

A arte do sofista, isto é, do homem sábio, era, segundo Górgias, uma "ilusão
justificada". O discurso sofístico, ainda que expresso em prosa, faria parte da
poesia e a ilusão justificada seria tanto mais justificada quanto mais partilhada
fosse pelos ouvintes.
A ilusão justificada é, principalmente, fruto da linguagem poética, que age no
ouvinte de modo a sugestioná-lo. O problema central dos poderes da linguagem
vai desembocar no estudo da receptividade da alma para a musicalidade das
palavras. A este estudo os antigos chamaram-lhe "psicagogia", arte de levar a
alma, pela persuasão, até onde se quiser levar.
A psicagogia

Para Górgias, a alma é essencialmente passiva, completamente entregue ao


que recebe de fora. A primeira forma desta passividade é a percepção sensível,
que é vista como o transporte para a alma de uma impressão ou de uma imagem
das coisas que a alma experimenta. A segunda forma de passividade da alma é a
sua abertura à linguagem. Contudo, para que a alma seja sempre receptiva à
linguagem é, por vezes, necessário recorrer à persuasão.

O discurso isolado nada pode sem o esforço da persuasão, que age não só
sobre os sentidos mas também sobre a alma. Persuadir consiste em criar uma
recepção psíquica dos ouvintes aos argumentos, dando-lhes peso. Segundo
Górgias, a natureza profunda desta persuasão é poética, é a palavra ritmada.
Atento a isto, Górgias inventou figuras de estilo que marcam o ritmo. Lembre-se
que Górgias é originário da Grande Grécia e sofreu, precisamente, influência
pitagórica, seita esta que estudou os efeitos da música. O próprio vocabulário
usado para significar a acção da palavra persuasiva remete-nos para as práticas da
magia.
A persuasão do discurso age por feitiço. O sofista é o feiticeiro. Também o
discurso de Górgias age como magia, uma vez que este se serve nele da
linguagem.

O tempo como momento oportuno

O pensamento de que o tempo não é um meio homogéneo e indiferente, mas


que apresenta ocasiões favoráveis para a acção que vem a propósito, é um
sentimento que já estava presente no helenismo antes de Górgias. Contudo, é
este o primeiro a escrever sobre o kairós. Górgias concebia um tempo
essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se
deixam perspectivar.

A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao


sofrimento, privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição
unilateral. A escolha por um dos contrários não é arbitrária e gratuita, exige
sabedoria e sentido de justiça. Foi o primeiro pensador de uma temporalidade
prática e estava preparado para formar os homens políticos, os futuros
governantes, uma vez que a política é uma ciência sem princípios definidos. O
kairós tem, sem dúvida, valor político na medida em que é retórico e a retórica é
na democracia ateniense um instrumento de poder. O kairós também intervém
na formação dos chefes militares, mas é na vida ética que o seu conhecimento é
essencial.
O ideal da arte do kairós é tornar a vida moral praticável. Mas o kairós não
significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ele
decide da natureza do tempo e concebe-o. O que exclui a valorização da duração,
do longo prazo, da eternidade, conceitos combatidos por Górgias. A coerência
das concepções de Górgias não permitem pensar que este se tivesse simplesmente
entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o
seu talento oratório. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo,
Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus
sucessores uma profunda influência.

Resumo de Górgias de Leontinos

Górgias é oriundo de Leontinos (Sicília) onde a retórica deu os seus primeiros


passos. O sofista teria contactado com Empédocles do qual teria sido discípulo.
Górgias foi o grande retórico da 2.ª metade do século V; ficou famoso pelos
seus discursos mas também por ter escrito um tratado de Filosofia ("Do Não Ser
ou da Natureza").
O tratado (frg. B3) apresenta três teses que o sofista vai desenvolver:

Nada existe;
se existe alguma coisa não é apreendida;
se existe alguma coisa que se apreenda não pode ser comunicada a
outrem.

O objectivo do Tratado tem sido considerado, por vários historiadores, como


um ataque à Escola eleata.
Segundo penso não é, apenas, a Escola eleática a ser visada mas também
outras estariam na mira de Górgias.
O que o sofista queria mostrar, por absurdo, é que se a primeira tese fosse
infirmada cair-se-ia na segunda e se as duas primeiras fossem infirmadas cair-se-
ia na terceira; Górgias bloqueava, assim, todas as saídas.
A terceira tese, é importante, na medida em que, Górgias aproveita a ocasião
para dissertar sobre as coisas e as palavras.

***

Se o Tratado de Górgias é importante, todavia, a grande fama granjeada por


Górgias foi a sua utilização da Retórica.
Os precursores do sofista são sicilianos, da região da qual Górgias é oriundo.
Mas tudo aponta no mesmo sentido: se os precursores dão o primeiro passo,
Górgias vai mais longe e a Retórica consolida-se devido ao seu esforço.
A Retórica é a técnica de bem falar, constituída por discursos que visam
persuadir os ouvintes.
Para atingir os seus fins o discurso tem de ser correcto na utilização da língua
mas também na utilização de um conjunto de regras.
No seu discurso Elogio de Helena, Górgias mostra a força da palavra:
"O discurso é um senhor soberano que, com um corpo diminuto e
quase imperceptível leva a cabo acções divinas. Na verdade, ele tanto
pode deter o medo como afastar a dor, provocar a alegria e
intensificar a compaixão" (11.8 - trad. de Manuel Barbosa e Inês Castro).

Nesta passagem vê-se o vigor, a convicção e o orgulho de Górgias no poder da


palavra; não obstante o "corpo diminuto", o discurso "leva a cabo acções divinas".
É minha opinião que Górgias quer mostrar que a palavra é superior à força
física. O sofista, possivelmente, é defensor do embate entre discursos em
detrimento dos combates entre guerreiros. Se assim é, estamos perante uma
atitude humanista e civilizada.
A posição de Górgias é reforçada na seguinte passagem:

"Na verdade, assim como certos medicamentos expulsam do corpo


certos humores, suprimindo uns a doença e outros a vida, do mesmo
modo de entre os discursos, uns há que inquietam, outros que
encantam..." (11.14 - trad. de Manuel Barbosa e Inês Castro)

A passagem, agora, transcrita reforça e amplia a primeira passagem.


É a exemplificação do poder da palavra mas Górgias, ainda, vai mais longe.
Considero que Górgias acreditando no poder do discurso tem a consciência de
que este pode ser positivo mas também negativo. É possível que o retórico queira
alertar, igualmente, para a possibilidade do mau uso por parte de alguns
oradores.
Górgias ficou na História da Cultura como cultor de uma técnica que chegou
até ao nosso tempo.
Hípias

A vida e as obras

Hípias nasceu em Élis, cidade próxima de Olímpia, numa data certamente


posterior a 433 a.C.. O ano de 343 a.C. terá sido o da sua morte, relacionada com a
guerra que os exilados democratas elisinos fizeram aos oligarcas que detinham o
poder de Elis. Iniciou-se nos ofícios manuais, nomeadamente com trabalhos de
tecelão e de sapateiro.

Hípias tinha uma actividade dupla de homem político e de mestre. O seu


talento oratório e a sua destreza levaram-no a ser escolhido como embaixador da
sua cidade natal. Percorreu toda a Grécia e suas colónias e visitou os ditos povos
bárbaros, cuja língua parece ter aprendido. Foi casado com uma mulher chamada
Platané e teve três filhos.

Pouca coisa restou dos numerosos escritos de Hípias. Contudo, as suas obras
podem dividir-se em três categorias: os discursos de circunstância, as obras
eruditas, e as obras poéticas. Entre as epideixeis, sabemos da existência do
"Diálogo Troiano". Entre as obras eruditas conhece-se os "Nomes dos Povos", a
"Lista dos Vencedores nos Jogos Olímpicos" e a "Colecção". Finalmente, entre
outros escritos poéticos encontra-se as "Elegias". Existem outras obras que lhe são
atribuídas, entre as quais o "Anónimo de Jâmblico", que já faz parte da colecção
dos textos sofísticos.

Natureza e totalidade

Os sofistas em geral apoiaram-se muitas vezes nos antigos fisiólogos,


nomeadamente Hípias, exaltando a natureza face ao nomos.
Hípias concebia a natureza como uma totalidade, considerando-a composta
de coisas distintas, mas exigindo uma atenção especial à continuidade que as une.
Portanto, a totalidade natural não é uma totalidade monolítica, pelo contrário, o
universo é composto por seres múltiplos particularizados e qualificados a que
chama coisas. Estas coisas existem independentemente do conhecimento que o
homem delas adquire e da expressão linguística que lhes dá. A afirmação da
continuidade natural parecem explicar as investigações matemáticas de Hípias
quanto à rectificação do círculo, isto é, da invenção da quadratiz. A realidade será
contínua se não há vazio no universo. Para isso, o universo, que é esférico, deve
conter em si volumes com arestas rectilíneas, enchendo estas totalmente a esfera.
Isto implica a possibilidade de passar de um volume cúbico a um volume esférico,
problema que se reduz, em geometria plana, ao da quadratura do círculo.

A intuição do grande todo que vibra em uníssono explica também a rejeição,


por Hípias, de toda a forma de separatismo e, principalmente, da cisão entre o ser
concreto e a essência.
Finalmente, a intuição da continuidade dos seres exprimida pela adopção do
grande princípio de Empedocles (homoiosis). A semelhança une os seres e sutura
o universo. O conhecimento, intelectual ou sensível, é um encontro, porque só o
universo contínuo se pode dar a conhecer. Portanto, o verdadeiro saber será à
imagem e semelhança do cosmos, um todo.

O sofista anuncia, em todos estes aspectos, Leibniz. Enquanto filómato e


pluri-especialista, seria o intelectual ideal para a ciência moderna na busca de
interdisciplinaridade.
O conhecimento, para Hípias, decalca-se adequadamente pela estrutura da
realidade. E deste modo, Hípias restaura um realismo ontológico e um optimismo
epistemológico que, sem razão, se recusa muitas vezes à sofística. A racionalidade
reencontra em Hípias um fundamento.

Natureza e lei

A antropologia de Hípias está no prolongamento directo da sua teoria da


natureza. Estabelece uma oposição entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em
benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em causa. O facto de
Hípias ter constatado que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça
é, antes de mais, a expressão da violenta crise que abalou a sociedade grega no
fim do século V a.C. e princípios do IV a.C..

Também Hípias via a lei como um disfarce para o poder. Aliás, sabemos que
ele foi um dos criadores da etnologia e, como embaixador e professor itinerante,
contactou com múltiplas legislações positivas e verificou os desacordos e as
contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade
daquilo que as diferentes culturas chamam "justo" e " bom". É por isso que Hípias
destrona o nomos e chama à lei "o tirano dos homens". Para Hípias a lei tiraniza a
natureza. Para ele a natureza desempenha o papel de uma norma moral
universal, que ultrapassa o particularismo do nomos. Hípias serve-se disto para
explicar a existência de uma benevolência espontânea do homem pelo seu
semelhante. A natureza cria uma socialidade que precisamente a sociedade
destrói. Só a natureza humana que pode fundar uma sociedade boa. A justiça é
vista por ele como obra do direito natural. A invocação da natureza pretende ter
como resultado a exigência da igualdade.
Pode-se dizer que Hípias foi favorável à democracia e quer-se reformador
desta, se o cosmopolitismo é movido por esta ideia que o grupo humano deve
integrar e não excluir. Com efeito, protestou contra o seu sistema de acesso às
magistraturas, que podia dar, temporariamente, o poder a incompetentes. O
intelectualismo de Hípias inclina-se a favor da democracia esclarecida. Enquanto
homem universal aberto a todas as técnicas, Hípias prova que a posse de ofícios
particulares não prejudica necessariamente os conhecimentos intelectuais gerais.

Para concluir, vemos que Hípias não era de modo algum o faz-tudo superficial
que, por vezes, se julgou ver nele. Possuidor de um espírito aberto e sistemático,
construiu uma doutrina de que infelizmente só podemos entrever, através de
escassos fragmentos.

Resumo de Hípias

oriundo da Cidade de Élis, o mais jovem dos quatro grandes sofistas, é aquele que
foi mais maltratado por Platão. Por aquilo que conhecemos de Hipias, ele não
merecia a critica contundente e, sobretudo, o ridículo que lança sobre o sofista.
As indicações que possuímos mostram uma série de obras distribuídas por
vários campos. Citemos, apenas, duas para ilustrar o que dissemos:

Lista de nomes de povos (frg. B 2)


Lista dos vendedores olímpicos (frg. B 3)

Quanto ao conteúdo destes livros só podemos avançar com conjecturas.


O primeiro livro citado é possível que tivesse apresentado aspectos
etnográficos e talvez, geográficos para poder situar os povos que fariam parte da
Lista.
O segundo livro, que apresenta os vencedores olímpicos, talvez tivesse,
também, o objectivo de constituir uma cronologia, tarefa, sempre, importante
naquela época.

Vamos, agora, debruçarmo-nos sobre um tema que, tudo o indica, era


importante para o sofista. Platão no diálogo Protágoras, 337 C-338 B coloca Hipias
a apaziguar uma discussão:

"...vós que estais aqui presentes, considero vos como pertencendo


todos à mesma linhagem, à mesma família, à mesma Cidade, por
natureza e não pela lei" (Protágoras,337 C)

Se Platão é fiel ao pensamento do sofista podemos extrair vários aspectos desta


parte do discurso de Hipias:

todos pertencem à mesma família o que significa que não há barreiras


intransponíveis entre os homens;
as diferenças entre grupos de homens (famílias, Cidades, etc.) deve-se à
lei, ou seja, à lei por convenção;

Hipias considera que a lei mais justa é a da natureza.

O sofista vai continuar o seu discurso que é importante para a compreensão da


sua doutrina:

"Por natureza, o semelhante é da mesma linhagem do que o


semelhante, enquanto a lei, tirana dos homens comete uma violência à
natureza" (Protágoras, 337 C).

Tentemos dilucidar a passagem transcrita:

Hipias faz a distinção entre lei por natureza e lei por convenção. A lei
por convenção é um produto do legislador ou de um órgão político. A lei
por convenção pode ser modificada e as Cidades apresentam as suas leis
que podem ser variáveis de Cidade para Cidade.

A lei por natureza é universal e repousa sobre a Natureza;

a terminologia lei por convenção e lei por natureza é empregada pelos


sofistas e, sobretudo, no século IV, vai ser usada por pensadores que não
são sofistas;

a lei por convenção pode ser violenta em relação à lei por natureza e não
é, como já disse, universal;

talvez, por influência de Empédocles o sofista vai considerar que "o


semelhante é da mesma linhagem do que o semelhante" o que significa,
que o semelhante atrai o semelhante;

o semelhante atrai o semelhante significa, pela lei da natureza que o


homem respeita e gosta do homem;

para Hípias a lei por natureza não conduz à lei do mais forte.

Cálicles, uma personagem do diálogo platónico Górgias ao defender a lei por


natureza identifica-a com a lei do mais forte.
Cálicles considera que o mais forte deve mandar nos outros e que as suas
paixões não devem ser cerceadas.
Ora, Hípias, segue um caminho diferente: a lei por natureza leva à
solidariedade e ao respeito do semelhante pelo semelhante.
Hípias, o sofista, é um humanista e tem uma visão cosmopolita, como também
Demócrito a teve.
Esta pequena digressão, segundo penso, mostra, pelo menos, que alguns
sofistas se preocuparam com a com a moral.
Antifonte

A vida e as obras

Antífon foi um adepto da democracia, que denunciou os preconceitos


nobiliárquicos e exaltou o igualitarismo ao ponto de se opor à clivagem
tradicional entre Gregos e Bárbaros. À parte disto, ignora-se quase tudo da sua
vida, a não ser que era ateniense.

A obra principal de Antífon é um tratado intitulado "Verdade", em dois livros.


Atribui-se-lhe também "Sobre a Concórdia" e "Político". Além disso há que
acrescentar uma obra particularmente interessante, de cariz psicológico,
intitulada "Da Interpretação dos Sonhos". É de salientar que o carácter
interpretativo dos sonhos de Antífon era já científico e racional.

As figuras e o seu fundo

Antífon atribuía a superioridade ontológica, que seria decisiva para o destino


da metafísica ocidental, à matéria, visto que esta constitui a essência e a natureza
dos seres. Contudo, não lhe empregava este termo, mas um termo que parece ser-
lhe exclusivo, que é: arrythmiston. O arrythmiston constitui a natureza profunda
dos seres, a sua verdadeira realidade, e significa "livre de todo o ritmo
(rhythmos)", "livre de estrutura" ou, ainda, "fundo". Por rhythmos podemos
entender modelo, contorno, estrutura ou organização.

A verdadeira realidade está livre de estrutura. É o que tentou provar a solução


de Antífon da quadratura do círculo. A realização da rectificação da curva
demonstra a possibilidade da passagem de uma forma geométrica a outra, sendo
a sua verdadeira realidade a homogeneidade do espaço.
O arrythmiston é positivo porque rejeita toda a particularidade, toda a
determinação, pois esta é negação. O arrythmiston é "reserva" no duplo sentido
do termo: o de reservatório onde nos abastecemos, mas também o contido na
expressão "estar na reserva". O privado da estrutura é auto-suficiente, não confere
nada, já que é a ele que tudo é concedido. Assim, fica eliminado o privilégio do
acabado, andando a incompletude a par da suficiência. Portanto, pode dizer-se
que o arrythmiston é a juventude da natureza. Com efeito, a auto-suficiência do
"livre de estrutura" tem como consequência subtraí-lo ao tempo. O arrythmiston
é estável e permanente, indestrutível e imortal. É por isso que o tempo não tem
realidade senão para o indivíduo que é medido por ele, que o pensa, pois este
indivíduo tem um nascimento e uma morte.

O homem é um velador de dia e é também o ser de um dia. Antífon também


recusava ao indivíduo a consolação dos eternos retornos. Para Antífon, aquilo que
o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura
fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica, nunca mais
volta a repetir-se, o que seria uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o
indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui
resultante relativamente à vida é dupla.

A vida é mesquinha, frágil e curta, em suma é quase nada. Mas, precisamente


por ser quase nada, é preciosa. A vida não é nada, mas este nada é tudo. Portanto,
não é preciso passar a vida a preparar outra vida que não existe e que nos tira o
tempo da vida presente. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa. Somos
irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não
conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam.
Esta seriedade da existência coloca o problema da felicidade no seio da cidade e
da felicidade pessoal.

A lei contra a natureza

Antífon considerava a felicidade do homem ameaçada pela lei (nomos), cuja


única preocupação é reprimir os desejos da natureza. Para o demonstrar começou
por denunciar a concepção tradicional que define justiça como a obediência às
leis da cidade de que se é cidadão.

O reino do nomos tem como consequência encorajar a hipocrisia e a


dissimulação. Para Antífon a natureza representava a necessidade interna e a
verdade e a lei representa a exterioridade acidental e convencional.
As determinações da natureza estão fundadas, daí a sua força, e as da lei não
estão, donde resulta a sua fraqueza. O ser da lei é todo de opinião, portanto, não
é nada, enquanto que o da natureza existe independentemente da ideia que se
tenha dela, portanto, é verdade. Contudo, apesar desta desproporção de forças, a
lei ousa opor-se à natureza, sendo o seu objectivo proibir, reprimir, fazer o mal.
Mas este combate é, para a lei, um combate previamente perdido. É por isso que
Antífon substitui os conceitos severos da ética heróica pelos mais alegres da nova
moral: o útil, a vida, a liberdade e a alegria.

Os preceitos da natureza era qualificados por Antífon como "necessários",


relacionando-se agora com a liberdade. O paradoxo antifoniano consiste
precisamente na ligação estreita que é estabelecida entre necessidade natural e
liberdade. Para o homem, a liberdade é poder obedecer à physis, dizer sim à
natureza, opor-se-lhe significa sofrer.

Uma das grandes obras de Antífon intitulava-se "Da Concórdia". A concórdia


tinha para Antífon um fundamento natural. A natureza constitui o terreno do
necessário, ora a amizade é uma necessidade. Antífon viu que os membros de um
grupo se imitam uns aos outros e que a semelhança que daí resulta é geradora da
concórdia. O desejo da natureza é, portanto, o de um entendimento. Para evitar
todo o desvio do indivíduo e toda a ruptura de harmonia social, Antífon pensava
poder apoiar-se no conhecimento. Uma falta compreensão da natureza fecha os
homens uns aos outros e impede-os de se entenderem. Há que espalhar, então, o
saber por entre os homens a fim de realizar a concórdia.

Ainda do ponto de vista de Antífon, todos os homens nascem iguais e não há


que fazer discriminações entre nobres e plebeus, e mesmo entre Bárbaros e
Helenos.

A interpretação dos sonhos e terapêutica dos desgostos

Um empreendimento original de Antífon foi a "arte de eliminar o desgosto",


que, por sua vez, se prende com o tema da concórdia, que significa também a
"unidade de espírito da cada indivíduo consigo próprio". O que nos faz lembrar o
freudismo. Pode-se ainda relacionar com a actividade onirocrítica de Antífon, isto
é, de interpretar sonhos.
Antífon viu toda a importância das causas psíquicas da doença. A psicologia
de Antífon devia ser uma psicologia dinâmica, que concebe o homem como
dividido entre forças internas que se confrontam e que ele deve equilibrar.
Na Antiguidade, a mântica dividia-se em uma divinatio naturalis e uma
divinatio artificiosa. A interpretação praticada por Antífon insere-se na segunda
categoria, pois interpreta como presságio favorável um sonho de catástrofe, e
vice-versa. Antífon parecia estabelecer claramente a diferença entre o conteúdo
manifesto e o conteúdo latente do sonho. O que chama a atenção nesta prática
antifoniana de interpretação é a óptica racionalista, que o distingue da mântica
da sua época. Definia a adivinhação como uma conjectura do homem sábio.

Antífon não era apenas onirocrítico, foi também o que hoje se chama
psiquiatra, que procura aperfeiçoar uma "arte de eliminar o desgosto". De facto,
Antífon dizia-se capaz de curar por meio da palavra as pessoas que sofriam de
desgosto.
Um outro traço original de Antífon foi, com efeito, o seu projecto de refundição
da linguagem, exprimindo a maior parte dos seus contextos mais importantes por
palavras que inventava. Antífon insistia muito no aspecto convencional dos
nomes, que deviam esconder-se face às realidades ou, pelo menos, decalcá-las o
mais estreitamente possível. Pretendia dar um sentido mais puro às palavras e de
modo a dizer o que havia para dizer.
É de espantar que tantos testemunhos deste pensador se tenham perdido,
sendo um facto que dele nada sabemos. E isto porque de entre todos os sofistas
este será, provavelmente, o maior. É de notar a profunda unidade de inspiração
que atravessa os fragmentos que dele restam.
Sócrates

O pensamento de Sócrates.

Ao falar-se de Sócrates temos de defrontar a chamada questão socrática.


Esta questão consiste na abordagem dos testemunhos à cerca de Sócrates.
A questão é difícil porque os testemunhos não são coincidentes.
Ainda, em vida de Sócrates, a corrente anti-socrática conta com a comédia "As
Nuvens" da autoria de Aristófanes. Esta comédia é demolidora para Sócrates. O
filósofo é apresentado como um adepto da filosofia pré- socrática e da corrente
sofística; mais ainda, ele surge na comédia de Aristófanes como um charlatão.
No século IV, logo nos primeiros anos, surge a corrente socrática, sobretudo
constituída por obras dos seus discípulos.
Platão e Xenofonte escrevem, cada um, uma "Apologia de Sócrates". Embora
sejam ambos discípulos de Sócrates há diferenças nas duas "Apologias".
A questão é complexa devido, por um lado ao facto de Sócrates nada ter
escrito, e por outro, os testemunhos serem diferentes.
Houve, da parte de alguns historiadores a tentativa de conciliar os vários
testemunhos. Assim, teria havido duas fases no percurso de Sócrates:

a primeira em que Sócrates teria sido um adepto da filosofia da


Natureza e talvez, também, da corrente sofística;
a segunda em que Sócrates aparecia na fase retractada pelos seus
discípulos.

Embora considere esta tese verosímil penso que ela não resolve as
discrepâncias nas obras de Platão e de Xenofonte.
Pessoalmente, creio que a questão Socrática ainda está aberta e pouco
poderemos dizer, com alguma segurança, sobre Sócrates.

* **

A questão socrática levanta alguns problemas difíceis de ultrapassar, como já


vimos, o que aconselha alguma prudência na exposição do pensamento de
Sócrates.
Vejamos alguns aspectos que poderemos avançar com uma certa segurança.
O método utilizado por Sócrates está pelo menos próximo da erística sofistica.
É um método essencialmente refutativo que se aplica ao saber do seu
interlocutor.
A fazer fé numa passagem da Metafísica de Aristóteles, Sócrates estaria
interessado nas definições e nos termos universais. E Aristóteles vai mais longe ao
afirmar que para Sócrates os universais não estavam separados das coisas, ou seja
não eram independentes.
O Estagirita queria dizer também que a responsabilidade na separação dos
universais como inteligíveis pertence a Platão.
Sem dúvida que o esforço de Sócrates em estabelecer a definição é um ponto
filosoficamente importante.
A este ponto podemos juntar outro, atestado por Aristóteles noutra passagem
da Metafísica: a indução foi utilizada por Sócrates.
Diremos agora que o tema da virtude devia ter tido um lugar de destaque na
reflexão socrática. A natureza da virtude, o seu ensino, eram aspectos caros a
Sócrates.
A estes temas voltaremos quando abordarmos Platão mas será pelo menos,
difícil, descortinar o que pertence ao mestre e ao discípulo.

3.2. A condenação de 399.

É sabido que em 399 Sócrates foi acusado de impiedade e de corromper a


juventude e comparecendo perante o tribunal foi condenado à morte.
Com frequência a condenação de Sócrates é vista ou como um atentado à
filosofia ou como uma questão religiosa.
Pensamos, todavia, que qualquer dos pontos de vista avançados não resolve a
questão, o que significa que avançaremos com outra explicação. Compreendemos
que a indagação socrática suscitasse alguma má vontade e que a suspeita de
impiedade fosse relevante na Atenas de então.
Algumas das personalidades acusadas dos males que caíram sobre Atenas
durante a Guerra de Peloponeso, ou imediatamente após a capitulação,
frequentaram o circulo socrático. Alcibiades, apontado como um dos
responsáveis pelo desastre da expedição á Sicília, Critias e Cármides que
pertenceram ao regime sangrento que governou a Cidade após a capitulação de
404 foram alguns dos homens que conviveram com Sócrates.
Entre 404 e 399 medeia um curto espaço de tempo e convirá relembrar que em
403 a democracia foi restaurada. O regime democrático foi moderado contendo-
se em fazer uma perseguição aos seus inimigos. Mas com toda a probabilidade
alguns ajustes de contas teriam ocorrido.
Em 399 quando Sócrates comparece perante o tribunal estava fresca na
memória a derrota e o governo dos trinta tiranos. E era muito possível que os
juizes se lembrassem das ligações perigosas entre Sócrates e políticos que tinham
contribuído para o descalabro de Atenas.
Por aquilo que podemos saber Sócrates não devia ser um ímpio: não negou a
existência dos deuses e seria, provavelmente, um homem piedoso.
Assim consideramos que em 399 ocorreu um ajuste de contas, ou seja, a
acusação de impiedade camuflou um caso político (o que já tinha acontecido com
Protágoras e Anaxágoras).
Não deixa de ser significativo que no séc. IV, já depois da morte de Sócrates,
tivessem surgido os ataques contra o filósofo pondo a tónica na responsabilidade
da formação dos políticos a que nos referimos.
Diremos, por fim, que o nosso ponto de vista não põe em causa o regime
democrático de Atenas. Este funcionou, pelo menos, de forma razoável e os
acidentes de percurso não puseram em causa o seu valor.

3.3. A chamada revolução socrática.

Ainda hoje é vulgar ler-se que Sócrates inaugurou um novo ciclo da filosofia
grega. Tal significa que a um período cosmológico se seguia o período
antropológico inaugurado por Sócrates: estávamos perante uma autêntica
revolução.
Por aquilo que sabemos de Sócrates, este foi sem dúvida uma figura relevante
na 2.ª metade do séc. V. Todavia este período é marcado por outros
acontecimentos importantes.
Em primeiro lugar a medicina tornou-se um acontecimento marcante no
período referido. A sua influência em Platão, por exemplo, é explicita e
importante.
A medicina, pelo seu objecto, debruça-se sobre o que por vezes se chama a
natureza humana. O que é o homem e o interesse por ele são preocupações do
Corpo Hipocrático. Assim a medicina grega fornece uma contribuição importante
para o domínio da antropologia.
Qualquer que seja o valor que se atribua ao movimento sofistico será difícil
sustentar que ele tenha uma pequena influência na Cultura Grega da 2.ª metade
do séc. V.
Os sofistas, ao que nos parece, tiveram um papel relevante no campo que
agora nos interessa considerar.
A preocupação pela paideia é clara nos sofistas. A utilização de algumas
técnicas, como a erística e a retórica, procuravam a valorização dos seus
discípulos. Era, portanto, o aparecimento de uma educação de grau superior.
Se juntarmos ao que já dissemos o interesse pela linguagem, o tema do
conhecimento e a ética deparamos com um vasto campo no qual o homem está
no centro.
O que queremos dizer é que Sócrates não foi o único personagem a operar
uma mudança na 2.ª metade do séc. V. Os médicos do Corpo Hipocrático, os
sofistas e Sócrates, são todos eles os protagonistas da viragem a que assistimos no
período que menciona-mos, o que nos leva a considerar que na 2.ª metade do séc.
V ocorreu uma revolução cultural.
Para concluir diremos que não há uma revolução socrática mas sim uma
revolução em que outros tiveram uma importância que não podemos
menosprezar. O que afirmamos não diminui o valor da filosofia de Sócrates mas
coloca-o no contexto em que viveu.
Platão

1. Preliminares

1.1. A vida

Platão nasce em Atenas na data provável de 428/7 e pertencia á velha


aristocracias da Cidade.
Sabemos que em 404 exerce funções políticas após a queda de Atenas, na
Guerra do Peloponeso. Abandona essas funções, pouco tempo depois, desiludido
com a actuação dos chamados trinta tiranos. Até ao final da sua vida nunca mais
exerceu qualquer cargo político.
Em 399 sofre outro desgosto: Sócrates é condenado á morte. O respeito e o
carinho de Platão por Sócrates perdurará ao longo da sua existência. Após a
morte do seu mestre, Platão (acompanhado por outros Socráticos) faz uma
estadia em Mégara, junto de outro socrático, Euclides. Persistem dúvidas quanto
a esta estadia. Receio de represálias em Atenas ou procura de um local para
reflexão; curta ou longa duração dessa estadia.
Cerca de 388 Platão inicia uma viagem que o leva ao Egipto, a Cirene (colónia
grega do N. de África), a Tarento no S. de Itália e a Siracusa, na Sicília.
Quanto a esta viagem (há dúvidas se é uma ou mais) há alguns pontos a
mencionar:

é indicativa da curiosidade do filósofo;

em Tarento encontra um pitagórico que é um governante, Arquitas, com


quem vai manter uma longa amizade;

a visita a Siracusa é feita a convite do tirano da Cidade;

em Siracusa fica com a esperança de influenciar a política da Cidade


devido á relação que estabelece com Dion.
Regressa a Atenas tendo sofrido alguns dissabores não só em Siracusa mas
também na viagem de retorno.
Platão já deve estar em Atenas no ano de 387 ou 386. E é por volta de 386 que
ele funda a sua escola - a Academia. Durante aproximadamente quarenta anos
(ou seja, até á sua morte) Platão terá uma actividade intensa de chefe de escola,
docente e escritor.
O filósofo fez ainda mais duas viagens a Siracusa, em 366 e 361. O seu objectivo
eram as reformas políticas a realizar em Siracusa mas os seus esforços foram em
vão.
Em 354 Dion (que tinha iniciado operações militares em 357) é assassinado e
com a sua morte desfez-se o sonho siciliano de Platão.
Em 348/7, em Atenas, faleceu Platão com a idade aproximada de 81 anos.

1.2. A formação filosófica de Platão

Aristóteles numa passagem da Metafísica (A,G,987 ab) refere-se á formação


filosófica de Platão.
Dessa passagem podemos extrair os seguintes pontos:

Crátilo foi o primeiro mestre de Platão;


Platão permanecerá fiel á teoria do fluir constante;
Sócrates interessou-se pelas questões morais, pelos universais e
definições;
Platão seguiu Sócrates mas considerou que a realidade não está no
sensível.

Quanto a Crátilo pouco sabemos. É um heracliteano que radicalizou a filosofia


do Efésio. Só podemos conjecturar que Platão tivesse sido discípulo de Crátilo
quando teria 18 ou 19 anos.
O encontro com Sócrates deu-se quando Platão andaria á volta dos 20 anos.
Permaneceu no circulo socrático durante 8 anos, ou seja, até á morte de Sócrates
em 399.
De Crátilo, Platão devia ter recebido a noção de fluir que ele vai aplicar ao
mundo sensível. É por isso que o filósofo vai considerar que se o sensível não
apresenta algo de estável então não há ciência do sensível, ou por outras palavras,
a ciência não é possível.
Sócrates abriu o caminho a Platão: há os universais mas, segundo Aristóteles,
Platão vai separá-los do sensível transformando-os em objectos inteligíveis.
A dialéctica e a preocupação pelo tema da virtude são contribuições
importantes que o filósofo devia ter recebido de Sócrates.
1.3. A obra

A obra de Platão chegou intacta até aos nossos dias. Os diálogos que compõem
este espólio são os seguintes:

Apologia de Sócrates, Criton, Êutifron, Laques, Lisis, Cármides,


Alcibiades, Hipias Maior, Hipias Menor, Ion, Protágoras, Górgias,
Menéxeno, Eutidemo, Ménon, Crátilo, Fédon, Banquete, República,
Fedro, Parménides, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Critias,
Leis.

Deverá anotar-se que dois diálogos constantes desta lista levantam, ainda hoje,
dúvidas quanto á sua autenticidade: o Hipias Menor e o Alcibiades.
Com a autoria de Platão temos também uma colecção de cartas, sendo a
chamada carta VII aquela que é considerada autêntica por vários historiadores;
mas seja como for a carta VII pode ser considerada como um documento
importante para o estudo da vida e da acção do filósofo.
A obra de Platão não está datada e é evidente que tal facto levanta dificuldades
ao historiador.
Se uma cronologia absoluta é altamente conjectural, já uma cronologia
relativa, de uma forma geral, tem sido considerada como uma tarefa com
resultados razoáveis, embora esta também não esteja isenta de perigos.
A partir do século XIX empreenderam-se os estudos a estabelecer a cronologia
dos diálogos. O método utilizado foi o estilístico que parte da hipótese de que o
estilo de um escritor se modifica ao longo do tempo.
Foi assim possível indicar grandes períodos nos quais se inseriam os diálogos
(vamos utilizar os chamados períodos da juventude, da maturidade e da velhice).
Mas convirá dizer que nem todos os problemas ficaram resolvidos e que ainda
hoje subsistem fortes dúvidas quanto ao lugar que deve ser ocupado por alguns
diálogos.
Embora não desfazendo todas as dúvidas o método estilístico cruzando-se
com outros critérios pode trazer resultados positivos.
Façamos, por fim, uma referência ao ensino oral de Platão. Há testemunhas de
que houve um ensino oral, doutrina não escrita, por parte do fundador da
Academia.
Através desses testemunhos procurou-se reconstituir esse mesmo ensino. Se
há ou não diferenças fundamentais entre os diálogos e a doutrina não escrita,
qual o verdadeiro Platão é um problema, em aberto, nos nossos dias.

1.4. O diálogo

Cassandra, princesa de Tróia, tinha o dom de adivinhar mas as suas palavras


não eram acompanhadas pela persuasão. A tragédia de Cassandra consiste em
dizer a verdade mas esta não é patente aos seus ouvintes.
Não sendo o filósofo grego, por norma, um adivinho, tem todavia a
preocupação de que o seu discurso seja convincente. Assim, a forma de que se
reveste uma doutrina torna-se fundamental.
Antes de Platão conhecemos a prosa dos milésios (praticamente de modo
indirecto), o estilo oracular de Heraclito, a poesia solene de Parménides, entre
outros.
Assim, a questão de como se apresenta o pensamento de um filósofo não é, de
forma alguma, uma questão menor.
É um problema de persuasão que se coloca aos filósofos gregos.
Podemos dizer que Platão tem um extremo cuidado com a forma literária. É
um cultor do diálogo, do qual não foi propriamente o fundador nem o único a
escrevê-lo. Mas também podemos dizer que foi ele quem levou mais longe este
género, a que não será alheio o brilhantismo estilístico que ele possuía.
Apresentemos, agora, algumas características do diálogo platónico:

os diálogos têm por cenário a Atenas da 2.º metade de século V, com


excepção das Leis;
Sócrates é um dos personagens dos diálogos, novamente com a
excepção das Leis;
os diálogos apresentam uma variedade de aspectos formais como
por exemplo: existência de mitos, diálogos escritos na primeira
pessoa ou narrados, com prólogo ou sem prólogo, por vezes com
interlúdios.

Uma das questões que se levantam quanto ao diálogo platónico é o das suas
origens ou razões que levaram Platão a utilizar este género. Segundo pensamos
podemos avançar três razões:

o diálogo pretende imitar as conversas de Sócrates;


o talento literário de Platão devia levá-lo a considerar com atenção
o teatro seu contemporâneo. O jovem Platão assiste ao período
áureo desse género;
o filósofo não tem uma intenção sistemática. O seu pendor
pedagógico e o gosto pelo método exprimem-se com mais facilidade
através do diálogo.

O diálogo platónico levanta um série de problemas delicados das quais apenas


alguns tivemos a preocupação de levantar.

1.5. Dificuldades no acesso á filosofia platónica

O facto de ter chegado até aos nossos dias a obra completa de Platão poderá
levar a pensar-se que muitas das dificuldades que encontramos no estudo da
filosofia grega estarão ausentes na abordagem á obra de Platão.
É certo que com o fundador da Academia podemos ter a visão global da
filosofia de um autor o que é, sem dúvida, francamente positivo.
Vejamos, agora, algumas dificuldades que se deparam no estudo da filosofia
platónica, sendo algumas delas comuns ao pensamento grego:
a linguagem

A língua grega apresenta problemas difíceis de ultrapassar. A tradução de


vários termos empregados por Platão não é, ainda hoje, pacifica. Não há uma
estrita correspondência entre palavras gregas e palavras nas línguas actuais. Há
termos gregos que têm uma coloração que, por exemplo, não existe no português.
Pensamos que, pelo menos em parte, se poderá tornear esta dificuldade. O
método consiste em analisar os termos em causa dando-lhes a significação, por
vezes complexa, que pensamos que contêm no contexto platónico. Tentemos ser
mais claros: não se deve, em caso de dificuldade, traduzir uma palavra grega por
uma única palavra portuguesa.
Se, porém, se optar por uma tradução termo a termo deverá ser explicado no
texto ou em nota, o seu significado (é o que faremos ao longo desta exposição);

os padrões culturais e mentais da época

Há a tendência para vermos uma época distinta da actual através dos nossos
quadros culturais e mentais. Não é fácil compreender uma época como os séculos
V e IV a. C. na Grécia. É preciso fazer uma reconstrução da cultura e da
mentalidade de então, o que se torna difícil devido á escassez de informação que
possuímos.
Quanto mais ampla e profunda for a reconstituição que empreendermos
melhor estaremos em condições de compreender um filósofo, neste caso
concreto, Platão;

a estrutura da obra

Uma obra de Platão, e mesmo uma de Aristóteles, não é tão linear na sua
estrutura como a generalidade dos livros de filosofia publicados nos nossos dias.
Num diálogo de Platão as digressões são frequentes e vários temas
entrecruzam-se e estes aspectos dificultam a compreensão dos objectivos da obra.
Acrescentemos ao que já foi dito o facto de a forma dialogada não facilitar o
nosso acesso á filosofia platónica.
A obra de Platão compreende dezenas de personagens: algumas delas têm um
papel importante a desempenhar na economia do diálogo.
O conhecimento que possuímos das dramatis personae não é amplo. Há
mesmo personagens sobre as quais praticamente nada sabemos assim como há
outras, pensa-se, que sejam ficções elaboradas pelo próprio Platão. Ora,
compreender um diálogo passa igualmente pelo conhecimento das personagens e
o filósofo, com frequência, descreve-as não só sob o ponto de vista intelectual
como também psicológico.
O esforço a realizar, moroso e difícil, é reunir o máximo de informação, através
dos poucos testemunhos existentes para que se possa entender o melhor possível
os diálogos platónicos.
O facto de possuirmos a obra completa de Platão e o atentarmos no
brilhantismo literário do autor não nos deve levar a pensar que muitas
dificuldades estão ultrapassadas.
Acrescentaremos, ainda, que iremos aplicar o método genético na abordagem
ao pensamento de Platão.

Nota adicional 1

O método genético

Como disse, anteriormente, aplicarei o método genético na abordagem ao


pensamento de Platão.
O filósofo escreveu a sua obra ao longo de 50 anos e, hoje, temos a totalidade
dos seus escritos.
O método genético pode ser aplicado, não obstante, a dificuldade em
estabelecer a cronologia dos diálogos. O método genético consiste (em poucas
linhas) no estudo das obras para detectar a evolução de um pensamento ao longo
das suas obras.
Não obstante, as criticas que têm sido dirigidas a este método, ele apresenta,
segundo penso, algumas vantagens.

Em primeiro lugar ficamos em condições de verificar a evolução da doutrina


sobre a qual incidimos a nossa atenção.
Em segundo, o método, como disse, no parágrafo anterior, permite observar
as mudanças ocorridas e a sua respectiva importância.
Em terceiro, permite, igualmente, verificar as influência que o filósofo sofreu
ao longo do tempo, assim, como as polémicas explicitas e implícitas que
travou com os seus adversários.

Por último, direi que o método genético dá-nos a conhecer a dinâmica de um


pensamento, aspecto que considero, francamente, positivo, pois ele pode ser útil
para compreendermos o nosso próprio trabalho.

Nota adicional 2

O mito em Platão

O leitor dos diálogos de Platão depara com numerosos mitos. Não é fácil
determinar o sentido destes mitos e, portanto, os historiadores têm-se debruçado
sobre eles em busca do seu sentido.
Direi, como observação preliminar, que os mitos de Platão não se confundem
com os mitos que pertencem ao mais antigo corpo de saber grego.
Os mitos que se encontram nos diálogos são uma criação do próprio Platão.
O que disse no parágrafo anterior não significa que o filósofo não se tenha
inspirado e utilizado a matéria dos antigos mitos. Aliás é difícil descortinar o que
pertence à mitologia grega e a que pertence a Platão.
Dizer que o mito é um ornamento literário, que serve para aligeirar o texto, é
opinião da qual não partilho (vários mitos de Platão encontram-se no final dos
diálogos).
Segundo penso, o mito platónico apresenta-se como uma narrativa verosímil
que não pode ser demostrada. Tentarei ser mais claro.
Platão reconhece que há uma fronteira entre o racional e o irracional
(emprego o termo sem sentido pejorativo), isto é, há um campo no qual a razão
não pode penetrar.
Os limites da razão já estão presentes na chamada filosofia pré-socrática mas
parece-me que Platão vai mais longe do que os seus antecessores.
Ora, se existe um campo refractário ao racional, à cerca dele, só podem existir
narrativas prováveis ou verosímeis.
Na minha opinião o filósofo tem a consciência dos limites da razão e da
necessidade de fazer incursões no irracional com base no verosímil.

OS DIÁLOGOS DA JUVENTUDE

2.1. O Tema da Ciência

Uma das questões filosóficas mais importantes sobre a qual Platão se debruçou
até ao final da sua actividade foi a da Ciência.
O termo episteme que vamos traduzir por Ciência tem uma amplitude que a
palavra Ciência não possui: é mais a sabedoria que por sua vez engloba o que
entendemos hoje por Ciência.
Para Platão a Ciência, para ser possível tem de possuir um objecto universal,
portanto que seja estável. Ora, para o filósofo o sensível está num fluir constante,
em mutação e por isso não pode fornecer um objecto universal. Se assim é para
haver Ciência então o objecto universal tem de estar noutro plano.
Vai surgir assim o que se costuma designar por teoria das ideias. O termo ideia
é a tradução de eidos e idea. Em grego eidos significa o contorno de um objecto,
algo que se pode visualizar. Eidos e idea são termos praticamente equivalentes
(alguns historiadores não concordam com a equivalência) e podem ser
traduzidos, por ideia ou forma; empregaremos o termo ideia na nossa tradução.
A teoria das ideias levanta três problemas:

a existência e o estatuto das próprias ideias;


a participação, ou seja, a ligação ou relação entre as ideias e as coisas
sensíveis;
a participação entre as próprias ideias.

Como veremos são três problemas que vão preocupar Platão até ao final da sua
vida.

2.2. A pergunta, a ideia, a participação

Embora a Apologia de Sócrates, o Criton e o Êutifron sejam diálogos apologéticos,


o último pertence já a um grupo mais amplo.
A Apologia e o Criton são diálogos positivos, passe a expressão, descrevem
aspectos do pensamento e do comportamento de Sócrates.
O Êutifron tem uma estrutura e objectivo idênticos, por exemplo, ao Laques,
Lisis e Cármides. Este grande grupo dos diálogos da Juventude são aporéticos,
isto é, terminam numa dificuldade, são inconclusivos.
A característica que acabámos de anotar por um lado não é a única a assinalar
e por outro tem de ser esclarecida através de outras características.
O grupo de diálogos que agora nos interessa coloca uma pergunta sobre um
determinado tema: o que é a piedade? (Êutifron), o que é a coragem? (Laques), o
que é a prudência? (Cármides), etc..
As perguntas que indicámos como exemplos têm algo de estranho. Em
primeiro lugar, Sócrates coloca a pergunta àquele que, em principio, saberá
responder. Em segundo os temas não parecem ser difíceis de dilucidar.
Como diz Gadamer o que aqui é questionado é algo de público. São, por
exemplo, as virtudes que um homem deve possuir e por isso ele deve saber em
que consistem.
Sócrates pede ao seu interlocutor uma definição, por exemplo, da piedade ou
da coragem. O que vai acontecer é o surgir de uma série de tentativas que vão
sendo refutadas por Sócrates.
O que é que tudo isto significa? A resposta pode desenrolar-se por vários
aspectos:

o procedimento de Sócrates é pelo menos aparentado com a erística dos


sofistas embora os objectivos possam ser diferentes;
o interlocutor de Sócrates cai no embaraço. Mesmo que seja virtuoso fica
sem saber porque é que o é;
de uma forma não muito explicita surge a ideia como explicação daquilo que
se procura.

O último ponto exige uma explanação.


Nos primeiros diálogos começa a detectar-se, como já dissemos, a presença da
ideia. Em primeiro lugar a ideia surge como um ponto de referência, aquilo que
fundamenta, por exemplo, a piedade. Isto quer dizer que quem conhece a ideia
de piedade sabe porque é que este ou aquele acto é piedoso ou não.
Em segundo lugar a ideia coloca por sua vez o problema da participação. Esta
nos primeiros diálogos consiste na presença da ideia nas próprias coisas; a ideia
atravessa as coisas.
O que acabámos de dizer significa que a chamada teoria das ideias surge já nos
inícios da actividade de Platão. Neste campo surgem os dois problemas
extremamente delicados que consistem na existência das ideias e na participação
entre estas e as coisas sensíveis.

A TEORIA DAS IDEIAS

3.1. A Teoria da Reminiscência

O diálogo Ménon é importante sob vários aspectos mas vai-nos interessar


porque é nele que pela primeira vez é apresentada a teoria da reminiscência.
Vejamos em que circunstâncias vai surgir no diálogo esta teoria.
Ménon quer saber como se adquire a excelência (arete) se é pelo ensino ou se
ela mesma é inata. O seu interlocutor, Sócrates, vai dizer que antes desta questão
se deve colocar outra: o que é a excelência. Ménon vai dar três definições que
sucessivamente vão ser refutadas. E assim ele coloca o seguinte problema a
Sócrates: como podemos procurar alguma coisa que desconhecemos e se a
achamos como poderemos saber que ela é o que procurámos?
Ora, neste momento é que vai ser apresentada a teoria da reminiscência
apresentando Sócrates um pequeno mito.
As almas têm uma existência prévia à sua entrada nos corpos humanos.
Durante esse período as almas estão em contacto com a realidade, isto é, com a
verdade das coisas.
Quando habita um corpo a alma esquece-se do que viu e só com esforço se vai
recordar da realidade.
Façamos, desde já, algumas observações sobre este mito:

a imortalidade da alma não é explicita mas aponta para essa noção através
da pré-existência em relação ao corpo;
embora de uma forma não muito explicita a relação entre a alma e o real faz
com que ela surja como parente das coisas reais;
subjacente a toda esta concepção temos as ideias que não são mencionadas
(pelo menos como tais) no mito;
o tema da pré-existência da alma e do corpo como obstáculo ao
conhecimento são de inspiração pitagórica.

A teoria da reminiscência não vai ficar aqui. Neste momento estamos no plano
mítico.
Sócrates vai apresentar, um problema de geometria, a um escravo de Ménon
que nunca tinha estudado tal matéria. Através das perguntas que Sócrates vai
fazendo, o escravo encontra a solução do problema.
Tal, merece-nos duas observações preliminares:

o escravo recorda-se de algo que já tinha sabido;


embora Sócrates afirme que nada ensinou ao escravo parece-nos que a
forma de interrogar e de conduzir a questão é algo de extremamente
importante.

A teoria da reminiscência é importante no contexto da filosofia platónica.


Prolonga o tema da alma, onde a inspiração pitagórica é patente: no Ménon a
pré-existência e a contemplação da realidade pela alma são pontos a reter.
Quanto à ciência o Ménon constitui um marco importante. Platão considerava
que a ciência só é possível se o seu objecto é universal (o que implica
estabilidade). No Ménon o real surge num plano diferente do sensível no qual
existe o fluir. Mas a reminiscência aprofunda mais a questão: mostra que a
investigação é possível conduzindo a novas descobertas.
Igualmente, a reminiscência mostra que a base do conhecimento não é
empírica mas sim inata.
3.2. As Alegorias na "República"

No que diz respeito à teoria das ideias a República é importante pois contém
três alegorias que dizem respeito a essa teoria: a do Sol e a da linha dividida no
Livro VI e a da caverna no Livro VII.
Sublinhemos que o objectivo ou objectivos da República não consiste numa
digressão do mundo das ideias: as três alegorias estão integradas na reflexão
platónica sobre o ensino de nível superior (a que faremos referência noutro
lugar).
A alegoria do Sol é relativamente breve (Rep., VI, 507A – 509D). Assim como o
Sol ilumina as coisas permitindo que a nossa vista as descortine claramente a
Ideia do Bem tem como função o iluminar os inteligíveis o que permite que a
alma os atinga.
A Ideia do Bem é peculiar e obriga-nos a fazer algumas considerações:

a Ideia do Bem torna a teoria das ideias mais complexa. O mundo das ideias
foi sempre plural, isto é, existe uma multidão de ideias.

Na Rep. É introduzida uma nova ideia o que permite uma hierarquia com a
Ideia do Bem no topo;
a Ideia do Bem está para além das ideias e a sua função é permitir o acto do
conhecimento. Ilumina as ideias o que permite que estas sejam atingidas
pelo espírito. A Ideia do Bem é o garante do conhecimento;
a Ideia do Bem não é nem a sabedoria, nem a beleza. Está acima, pela sua
dignidade, do saber e da beleza.

A alegoria da linha dividida é complexa e para a compreendermos o melhor


possível vamos apresentar o seu esquema.
Façamos, agora, algumas observações tendentes à compreensão do esquema:

olhando para a coluna da esquerda vemos os dois mundos, o inteligível, CB e


o sensível, AC, apresentando cada um deles duas subsecções;
a coluna da direita diz respeito à Ciência e à Opinião e cada uma delas é
subdividida em duas partes;
à coluna da esquerda, que é a dos objectos, corresponde na coluna da
direita, a do conhecimento, subsecção a subsecção, determinado tipo de
conhecimento.
as secções e as suas subsecções não têm a mesma grandeza.

Analisando um pouco mais a fundo o esquema anotemos, desde já, que a


matemática é subalterna em relação ás Ideias. É um lugar comum dizer que a
matemática foi importante para Platão. Sabemos do seu interesse, das referências
que faz nos diálogos e das investigações levadas a cabo na Academia.
Pode-se dizer que a matemática foi um modelo utilizado por Platão na sua
obra mas será interessante notar-se que nunca destronou o modelo médico que
foi, também, tanto do agrado do filósofo. Seja, como for é claro no esquema que
os objectos matemáticos, embora pertençam ao mundo inteligível não estão no
mesmo plano das ideias.
A interpretação global da linha dividida é delicada e está rodeada de
controvérsias.
Em nossa opinião a coluna dos objectos indica uma hierarquia de graus da
realidade. Isto quer dizer que a imagem tem um mínimo de realidade enquanto
as Ideias apresentam o seu máximo, isto é as Ideias são os objectos
verdadeiramente reais.
Na coluna do conhecimento a suposição é algo de humilde mas constitui um
conhecimento, embora precário. No topo encontra-se a Ciência propriamente
dita tendo como objecto as Ideias.
A linha dividida mostra, segundo cremos, a relação entre sensível e inteligível
mas mais ainda o estatuto das coisas sensíveis.
Quanto a nós Platão considera que o sensível tem alguma realidade.E neste
aspecto ele está afastado de Parménides o que nos vai permitir fazer uma
pequena digressão.
É frequente afirmar-se que Platão foi fortemente influenciado por Parménides.
Para nós é consensual que Platão nutria pelo eleata uma profunda admiração
como o atestam o Teeteto e o Sofista. E por vezes afirma-se que a influência
parmenidia terminou ou decresceu a partir do Sofista. Quanto a toda esta
questão a nossa posição é diferente.
Não negando o apreço e mesmo alguma influência que Platão teve por
Parménides Há quanto a nós diferenças importantes:

existe uma pluralidade de ideias em contraste com a unidade do Ser;


por parte de Platão o sensível não é um nada ou um caos;
a participação entre as ideias e as coisas mostra que os dois mundos
não estão separados concepção inaceitável para Parménides.
O que queremos dizer é que há profundas diferenças entre as filosofias de
Parménides e de Platão e que não é preciso chegar ao diálogo Sofista para as
verificar.
A alegoria da linha dividida como já dissemos mostra que segundo Platão há
uma hierarquia de objectos que vai dos menos reais aos verdadeiramente
(completamente) reais. Tudo isto significa que para o filósofo as Ideias são os
objectos com a máxima realidade.
Se há uma hierarquia de objectos também há uma hierarquia no
conhecimento. É dado algum valor, por parte de Platão, aos conhecimentos mais
baixos considerando o filósofo a Ciência como o mais elevado. Platão preocupar-
se-á ao longo da sua carreira para esclarecer a diferença entre os graus de
conhecimento (veja-se, por exemplo o Ménon e o Teeteto).
A alegoria da caverna vai ilustrar um pouco o que acabámos de dizer. É a
alegoria mais célebre de Platão e com ela abre o Livro VII da República.
Embora bem conhecida façamos uma breve exposição da alegoria para em
seguida fazermos a sua análise.
A alegoria está, por assim dizer, dividida em fases, o que nos ajuda a
compreende-la melhor.
No fundo da caverna estão os homens agrilhoados de tal maneira que não
podem mexer-se, voltados para a parede. Atrás deles uma fogueira e entre os
agrilhoados e a fogueira passam homens transportando os mais variados objectos.
As sombras projectam-se na parede e os agrilhoados pensam que elas constituem
a realidade. Eis a primeira fase.
A segunda inicia-se com a libertação de um dos agrilhoados que com grande
esforço vai andar pela caverna e verá os objectos dos quais só se tinha apercebido
pelas sombras. Compreende que os objectos são mais reais do que as sombras.
Numa terceira fase o ex-agrilhoado, de uma forma penosa, sobe o caminho que
o conduz ao exterior da caverna. A luz do Sol cega-o e ele não consegue ver os
objectos que se encontram no exterior da caverna. Tem de se habituar à claridade
e assim nos primeiros tempos contempla as sombras e à noite o firmamento.
Depois de se ter habituado a ver os objectos menos iluminados já pode olhar
para os mais iluminados e contemplar o próprio Sol. Estamos na Quarta fase.
A alegoria não termina neste momento. Vai abrir-se, ainda, uma Quinta fase.
É uma alegria e uma felicidade olhar para os objectos que detêm a máxima
realidade. E aquilo de que mais se gostaria era ficar sempre no mesmo lugar em
plena contemplação. Todavia, o antigo agrilhoado deve descer à caverna, ir ao
encontro daqueles que foram seus companheiros e explicar-lhes o que é a
realidade.
Não será bem acolhido. Aquele que esteve no exterior da caverna é desajeitado
no seu interior e fala de algo que os outros não compreendem. É considerado um
louco e se lhe pudessem lançar as mãos mata-lo-iam, com certeza.
Façamos algumas observações preliminares:

a alegoria da caverna como as duas anteriores é uma sequência de


uma reflexão política;
o trajecto do filósofo lembra uma ascensão xamanistica;
as primeiras quatro fases desta alegoria correspondem às subsecções
da linha dividida.

A alegoria da caverna, por vezes, tem sido olhada como um brilhantismo


literário para ilustrar a linha dividida. Só em parte, e talvez pequena, é que esta
interpretação é correcta.
Também nos parece que as primeiras quatro fases da alegoria da
caverna correspondem às quatro da linha dividida.
Todavia, a alegoria da caverna vai mais longe. Ela introduz uma componente
ética que é importante: desde a perda das grilhetas até à contemplação do Sol é
necessário um esforço e uma coragem próprios de uma grande envergadura
moral.
O que dissemos indicia um aspecto importante para Platão: o conhecimento
mais elevado só é possível àquele que alia a envergadura intelectual à
moral.
A Quinta fase da alegoria, segundo pensamos, confirma e amplia, também, a
opinião que expressamos. A última fase refere-se à missão do filósofo. O pensador
não pode ficar numa posição cómoda e feliz: tem de transmitir aos outros a sua
sabedoria. O filósofo não se pode isolar, se fica isolado é porque os outros assim o
quiseram.
O magistério do filósofo é fundamental para Platão: é um dever que deve ser
prosseguido quaisquer que sejam as consequências desagradáveis que possa
sofrer. E mais uma vez a envergadura moral é essencial. (cfr. o Teeteto)
Façamos, agora, uma breve apreciação sobre as três alegorias dos Livros VI
e VII da República. Estão ligadas entre si e pode-se dizer que formam um todo.
A alegoria do Sol explica como o conhecimento é possível e a linha dividida
mostra a hierarquia dos objectos, indicativa, como já dissemos, da ligação entre
sensível e inteligível e de alguma realidade nos objectos que se encontram na
parte mais baixa da hierarquia. Igualmente, na linha dividida a hierarquia do
conhecimento pretende conferir algum valor ao conhecimento mais humilde.
Em boa parte a alegoria da caverna absorve as duas anteriores mas junta-lhe a
vertente moral e a missão do filósofo.
Aristóteles

A Vida e as Obras

Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da


Macedónia, nasceu em Estagira, colónia grega da Trácia, no litoral setentrional do
mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi para Atenas e ingressou na
academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse
período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na
construção do seu grande sistema.

Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedónia, como preceptor
do Príncipe Alexandre, então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa
expedição asiática, conseguindo um êxito na sua missão educativa política, que
Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em 335, treze
anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo
Lício, a sua escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada
peripatética devido ao costume de dar lições, em amena palestra, passeando nos
umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a grande rival e a
verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platónica. Morto Alexandre em
323, desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os
desejos de independência, estourando uma reacção nacional, chefiada por
Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi acusado de ateísmo.
Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles
faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais
de 60 anos de idade. A respeito do carácter de Aristóteles, inteiramente
recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico, sem se deixar distrair
por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar
do que em torno do carácter de Platão, em que, ao contrário, os motivos
políticos, éticos, estéticos e místicos tiveram grande influência. Do diferente
carácter dos dois filósofos, dependem também as vicissitudes exteriores das duas
vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de Platão.
Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de
pensamento, que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à
investigação científica. A actividade literária de Aristóteles foi vasta e intensa,
como a sua cultura e seu génio universal. "Assimilou Aristóteles escreve
magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-
lhes o trabalho próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações.
Escreveu sobre todas as ciências, constituindo algumas desde os primeiros
fundamentos, organizando outras em corpo coerente de doutrinas e sobre todas
espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dos
dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza
de inteligência, agudeza de penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de
síntese, faculdade de criação e invenção aliados a uma vasta erudição histórica e
universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorou o
mundo do pensamento em todas as suas direcções. Pelo elenco dos principais
escritos que dele ainda nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade
literária". A primeira edição completa das obras de Aristóteles é a de Andronico de
Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica, salvo uns
apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de
Aristóteles do modo seguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes.

I. Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não por
Aristóteles. O nome, entretanto, corresponde muito bem à intenção do autor,
que considerava a lógica instrumento da ciência.

II. Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a antropologia, e


pertencentes à filosofia teorética, juntamente com a metafísica.

III. Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma


compilação feita depois da morte de Aristóteles mediante seus apontamentos
manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia. O nome de metafísica é
devido ao lugar que ela ocupa na colecção de Andrônico, que a colocou depois da
física.

IV. Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros,


provavelmente publicada por Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a Ética a
Eudemo, inacabada, refazimento da ética de Aristóteles, devido a Eudemo; a
Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da segunda; a
Política, em oito livros, incompleta.

V. Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, em dois


livros, que, no seu estado actual, é apenas uma parte da obra de Aristóteles. As
obras de Aristóteles as doutrinas que nos restam - manifestam um grande rigor
científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão breve e aguda,
clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele
o criador.
O Pensamento: A Gnosiologia

Segundo Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o


enigma do universo, em face do qual a atitude inicial do espírito é o assombro do
mistério. O seu problema fundamental é o problema do ser, não o problema da
vida. O objecto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema, são
as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o
necessário, as formas e suas relações. Entretanto, as formas são imanentes na
experiência, nos indivíduos, de que constituem a essência. A filosofia aristotélica
é, portanto, conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é dedutiva,
mas o ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da
experiência. A filosofia, pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em teorética,
prática e poética, abrangendo, desde arte, todo o saber humano, racional. A
teorética, por sua vez, divide-se em física, matemática e filosofia primeira
(metafísica e teologia); a filosofia prática divide-se em ética e política; a poética
em estética e técnica. Aristóteles é o criador da lógica, como ciência especial,
sobre a base socrático-platónica ; é denominada por ele analítica e representa a
metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e gnosiológicos no
conjunto daqueles escritos que tomaram mais tarde o nome de Órganon.
Limitar-nos-emos mais especialmente aos problemas gerais da lógica de
Aristóteles, porque aí está a sua Gnosiologia. Foi dito que, em geral, a ciência, a
filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objecto o
universal e o necessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do
contingente, conhecidos sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o
objecto da ciência aristotélica é a forma, como ideia era o objecto da ciência
platónica. A ciência platónica e aristotélica são, portanto, ambas objectivas,
realistas: tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela.
No sentido estrito, a filosofia aristotélica é dedução do particular pelo universal,
explicação do condicionado mediante a condição, porquanto o primeiro
elemento depende do segundo. Também aqui se segue a ordem da realidade,
onde o fenómeno particular depende da lei universal e o efeito da causa. Objecto
essencial da lógica aristotélica é precisamente este processo de derivação ideal,
que corresponde a uma derivação real. A lógica aristotélica, portanto, bem como
a platónica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O seu processo
característico, clássico, é o silogismo. Os elementos primeiros, os princípios
supremos, as verdades evidentes, consoante Platão, são fruto de uma visão
imediata, intuição intelectual, em relação com a sua doutrina do contacto
imediato da alma com as ideias - reminiscência. Segundo Aristóteles, entretanto,
de cujo sistema é banida toda forma de inatismo, também os elementos primeiros
do conhecimento - conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados
da experiência, da representação sensível, cuja verdade imediata ele defende,
porquanto os sentidos por si nunca nos enganam. O erro começa de uma falsa
elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o conceito, é sempre
verdadeira. Por certo, metafisicamente, ontologicamente, o universal, o
necessário, o inteligível, é anterior ao particular, ao contingente, ao sensível: mas,
gnosiologicamente, psicologicamente existe primeiro o particular, o contingente,
o sensível, que constituem precisamente o objecto próprio do nosso
conhecimento sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo,
compreende-se que Aristóteles, ao lado e em consequência da doutrina de
dedução, seja constrangido a elaborar, na lógica, uma doutrina da indução. Por
certo, ela não está efectivamente acabada, mas pode-se integrar logicamente
segundo o espírito profundo da sua filosofia. Quanto aos elementos primeiros do
conhecimento racional, a saber, os conceitos, a coisa parece simples: a indução
nada mais é que a abstracção do conceito, do inteligível, da representação
sensível, isto é, a "desindividualização" do universal do particular, em que o
universal é imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da
experiência. Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não
temos a verdade, e que é o elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais
complicada. Como é que se formam os princípios da demonstração, os juízos
imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles reconhece que é
impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de todos os casos os
fenómenos particulares para poder tirar com certeza absoluta leis universais
abrangendo todas as essências. Então só resta possível uma indução incompleta,
mas certíssima, no sentido de que os elementos do juízo os conceitos são tirados
da experiência, a posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido
imediatamente pelo intelecto humano mediante a sua evidência, necessidade
objectiva.

Filosofia de Aristóteles

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objectivo dos


conceitos, mas abandonando a solução do mestre, Aristóteles constrói um
sistema inteiramente original. Os caracteres desta grande síntese são:

1. Observação fiel da natureza - Platão, idealista, rejeitara a experiência como


fonte de conhecimento certo. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como
ponto de partida de suas teorias, buscando na realidade um apoio sólido às suas
mais elevadas especulações metafísicas.

2. Rigor no método - Depois de estudas as leis do pensamento, o processo


dedutivo e indutivo aplica-os, com rara habilidade, em todas as suas obras,
substituindo à linguagem imaginosa e figurada de Platão, em estilo lapidar e
conciso e criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Pode
considerar-se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente,
no estudo de uma questão, Aristóteles procede por partes:

a) Começa a definir-lhe o objecto;

b) Passa a enumerar-lhes as soluções históricas;

c) Propõe depois as dúvidas;

d) Indica, em seguida, a própria solução

e) Refuta, por último, as sentenças contrárias.


3. Unidade do conjunto - Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro
sistema, uma verdadeira síntese. Todas as partes se compõem, se
correspondem, se confirmam.

A Teologia
Objecto próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento
do pensamento, isto é, Deus, a quem Aristóteles chega através de uma sólida
demonstração, baseada sobre a imediata experiência, indiscutível, realidade do
vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser, passagem da potência ao
ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor imóvel, um motor já em ato, um
ato puro enfim, pois, de outra forma teria que ser movido por sua vez. A
necessidade deste primeiro motor imóvel não é absolutamente excluída pela
eternidade do vir -a- ser, do movimento, do mundo. Com efeito, mesmo
admitindo que o mundo seja eterno, isto é, que não tem princípio e fim no
tempo, enquanto é vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente
inexplicável, contraditório, sem um primeiro motor imóvel, origem extra-
temporal, causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o real puro, é
aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que é
movido, sem se mover a si mesmo.
Da análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel,
conquistado através do precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir
logicamente a natureza essencial de Deus, concebido, antes de tudo, como ato
puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é unicamente
pensamento, actividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer
outra actividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-
suficiente. Se o agir, o querer têm objecto diverso do sujeito agente e "querente",
Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer e pensar, conhecer a si
próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento,
pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e
activa, está a beatitude divina.
Se Deus é mera actividade teorética, tendo como objecto unicamente a própria
perfeição, não conhece o mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus
não actua sobre o mundo, voltando-se para ele, com o pensamento e a vontade;
mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final, e, por
consequência, e só assim, como causa eficiente e formal (exemplar). De Deus
depende a ordem, a vida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador,
nem providência do mundo. Em Aristóteles o pensamento grego conquista
logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permanece o
dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara,
para dar uma explicação filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado
Esta realidade independente dele.
Exames Filosofia Antiga II
I Grupo
Responda A duas (2) das seguintes Questões :

1- Os Átomos e o vazio segundo os atomistas


2- O Homem é a medida de todas as coisas segundo Protágoras
3- A revolução da filosofia na segunda metade do século V

II Grupo

Responda a duas (2) das seguintes questões:

1- O diálogo platónico Estruturas e objectivos

2- Teoria da reminiscência em Platão

3- A alegoria da caverna em Platão

4- As características gerais da sofística

5- Aristóteles e a sua divindade


Exames Filosofia Antiga II

I Grupo
Responda A duas (2) das seguintes Questões:

1- Estabeleça uma razão coerente Entre as “ antologias”


“verdade”
Acerca do homem medida em Protágoras

2- Analise a questão da condenação a morte de Sócrates

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II Grupo

Responda a duas (2) das seguintes questões:

1- Analise e interprete a linha dividida. Em a república de Platão

2- Estabeleça uma teoria coerente entre a teoria das ideias e a


teoria da alma em Platão

3- Deus e o motor imóvel em Aristóteles

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