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Deus e Criação

Material Teórico
Deus como Personagem

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Anderson Oliveira Lima

Revisão Textual:
Prof. Me. Claudio Brites
Deus como Personagem

• Introdução;
• O Deus que vamos estudar;
• O Biógrafo de Deus.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Introduzir o estudo da Bíblia como literatura;
· Discutir Deus de um ponto de vista literário e filosófico;
· Apresentar um primeiro exemplo da abordagem bíblica que o
curso propõe.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Deus como Personagem

Introdução
Deus é o primeiro objeto de estudo com que lidaremos nesta disciplina. Mas, de
que Deus estamos falando? Se o leitor é cristão, talvez pareça absurda a própria
pergunta, mas sabemos que há estudiosos de teologia que não são cristãos nem
monoteístas, pesquisadores cujas reflexões partem de lugares bem diferentes.

O que está disciplina quer é estabelecer um objeto de estudo que possa ser de
interesse para todo leitor que porventura se interesse pelos estudos teológicos,
excedendo inclusive os horizontes do pensamento judaico-cristão. O Deus que
nos parece mais apropriado para isso é o personagem literário, o Deus que
nos é apresentado de maneira fragmentária nas páginas bíblicas. Assim sendo,
trataremos, começando já na primeira unidade, desse tipo de abordagem literária
do personagem Deus, discutindo alguns pressupostos para essa leitura e fazendo
contato com pelo menos um exemplo de análise que nos sirva como referência
para o que estamos buscando.

Consideremos que os estudos teológicos não são o tipo de disciplina que faz
questão de ocultar suas preferências, suas paixões, seus interesses, suas crenças.
O teólogo é, na maioria das vezes, um pesquisador singular dentro dos ambientes
acadêmicos, pois parte de uma opção religiosa que ele deixa explícita, de uma escolha
de fé que define seus passos, embora não tenha apoio em algo cientificamente
verificável. Ele procura se apropriar dos procedimentos científicos de pesquisa, dos
métodos, dos conhecimentos acumulados, das formas academicamente consagradas
de comunicação e faz tudo isso com o propósito de aprofundar seu saber em torno do
objeto de sua fé. A crença pessoal, as experiências religiosas vividas e a participação
litúrgica entram com ele na universidade e servirão como o ponto de partida para
seus estudos e geralmente estarão colocadas como alvos de seu labor.

Figura 1 – O teólogo entre a fé a ciência


Fonte: iStock/Getty Images

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Se é assim, se o leitor concorda com as colocações anteriores, se viu naquele
parágrafo uma descrição de sua própria vivência acadêmica e se vê incapaz de
dissociar seus fazeres escolares de suas opções ideológicas/religiosas, talvez as
escolhas feitas para o desenvolvimento desta disciplina lhe causem, a princípio,
certo estranhamento. Notará o leitor que os caminhos escolhidos nessas páginas
são peculiares, distanciados da religião, críticos às dogmatizações; são caminhos
que costumamos chamar de ateológicos. Ocorre que o autor do texto que você
lê também não esconde suas preferências, seu gosto pelos estudos textuais, pela
crítica literária, interesses que se sobrepõe às suas opiniões religiosas. Isso é
um efeito decorrente de uma trajetória pessoal de pesquisas acadêmicas ligadas
aos estudos da religião e da literatura, de um caminho trilhado sobre veredas
incomuns que nos guiarão a destinos pouco explorados, a experiências inéditas
que, esperamos, sejam enriquecedoras.

Direto ao ponto: Deus será estudado aqui como um personagem literário e


a criação como um fenômeno narrativo, um enredo desenvolvido sob as leis da
memória mítica de um antigo povo. Os principais conhecimentos transmitidos
pela disciplina serão aqueles que dizem respeito à interpretação bíblica, às
particularidades literárias dos textos do Gênesis, à construção de imaginários
religiosos sob influência de palavras escritas. Eis as questões às quais você deve
se atentar para extrair da disciplina o seu melhor.

Trocando ideias...Importante!
Quer saber como temos visto a literatura bíblica e seu mais célebre personagem?
Esperamos que sim, pois o bom aproveitamento do conteúdo que se segue,
agora já escrito, depende, a partir do momento que inicias a leitura, da atitude
do próprio leitor, de sua boa vontade para com o curso, de sua disposição para
experimentar ver as coisas de um ponto de vista diferente. Será preciso ler e
refletir, consultar a Bíblia eventualmente e opinar, concordar ou discordar,
exercitar-se e experimentar o saber adquirido fora do texto, longe das telas. Será
preciso trabalhar sobre a teoria para chegar à prática, ir do livro à vida, como
sempre deveria ser.

Vemos o estudo desses temas como uma gratificante aventura, uma jornada
capaz de nos desafiar exigindo atitudes corajosas. Isso vale especialmente
à quele leitor para o qual conteúdo da disciplina é novidade, que jamais
imaginou ler a Bíblia sem supor que o Deus que ali nos é apresentado seja
de alguma forma uma representação de um Deus real. Vendo as coisas desse
modo, não seremos surpreendidos nos momentos críticos, nas páginas que
provocarão verdadeiros embates com novos e desconcertantes saberes, e
até fracassos momentâneos. Mas cada superação não deixará de legar novas
habilidades, novos instrumentos; cada etapa o fará melhor, mais preparado,
mais crítico. E fazer-se melhor é, supomos, a maior das recompensas para
quem se empenha em qualquer tipo de desafio acadêmico.

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UNIDADE Deus como Personagem

O Deus que vamos estudar


Esta é uma disciplina bíblica, isto é, uma disciplina dedicada ao estudo dos pri-
meiros capítulos da Bíblia e de alguns métodos que consideramos apropriados
para sua análise. E estudar a Bíblia não é, necessariamente, um modo de conhecer
Deus. Entenda o leitor que, respeitando os limites do discurso científico, não há
como lidar com as possíveis relações que aproximam o Deus bíblico de um Deus
real, transcendente, cuja crença na existência depende, essencialmente, da fé de
cada indivíduo. Só está ao nosso alcance, nestas páginas, o Deus personagem, um
sujeito ficcional que está inscrito no papel, que foi representado por signos verbais
e suas possibilidades limitadas. Um Deus que vive dentro dos limites da imagina-
ção dos produtores e usuários da Bíblia (incluindo autores, redatores, copistas,
revisores, editores, tradutores, leitores etc.). Se quiseres saber se algum traço do
personagem Deus, identificado por meio da análise literária dos textos bíblicos,
corresponde ou não a algo de uma divindade extratextual, essa é uma questão para
a qual não teremos respostas (ou melhor: não teremos respostas aceitáveis de um
ponto de vista acadêmico).

Importante! Importante!

Para começar nossos estudos, é importante dedicar algum tempo refletindo seriamente
sobre a proposta desta disciplina. Devemos compreender seus limites para que não nos
decepcionemos, já nas primeiras páginas, com o fato de tais estudos, a despeito do título da
disciplina (Deus e criação), não poderem dizer nada sobre o Deus em que os cristãos creem.

Aqui vamos falar do Deus bíblico (do Deus que atua nos três primeiros capítulos do
Gênesis, para sermos exatos) e de seus atos. Para isso, é bom que levemos em conta
que esse Deus será tratado como representação literária, como construção ficcional.
Isso quer dizer que ele é composto, por um lado, de elementos que os autores do
Gênesis extraíram do mundo real – que foi lido, interpretado, sentido, experimentado
e convertido em significado, depois em significante, em signos, palavras, fazendo com
que a realidade de alguma forma pudesse ser representada dentro dos estreitos limites
da linguagem verbal e escrita. Por outro lado, o texto bíblico, como literatura, não é
uma simples redução da realidade, uma adaptação da complexidade do mundo a um
relato verbal ordenado; ele é também composto com uma série de elementos advindos
do imaginário, elementos esses que excedem os limites da matéria, do empírico.

Aprendemos a ler os textos bíblicos como ficção a partir dos trabalhos teóricos
de Wolfang Iser, que definiu o texto literário como evento linguístico que atravessa
os limites do real e do imaginário, sendo de uma só vez “a irrealização do real
e a realização do imaginário” (ISER, 2013, p. 34). Essa é a condição de toda

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literatura: ela extrai elementos do mundo da vida para elaborar um mundo do
texto, mas esse mundo criado difere do real porque o autor, para sua elaboração,
torna fantásticos traços do imaginário humano e os reduz para que caibam numa
narrativa cujos limites são definidos pela linguagem.

Citaremos a seguir algumas palavras de João Leonel sobre o caráter


representativo (mimético) e criativo (poiético) do texto literário, linhas que nos
servem didaticamente por fornecerem outra maneira de tratar do mesmo elemento
constituinte da literatura:
[...] pode-se dizer que a literatura: a) é caracterizada por uma determinada
relação com a realidade e b) que ela apresenta certas propriedades de
linguagem. Os dois aspectos estão interligados. No primeiro caso, são úteis
o conceito de [...] mimesis e de poiesis apresentados por Aristóteles em
seu livro Poética. Mimesis e poiesis significam imitação/representação e
criação, respectivamente. Com eles quer-se afirmar que uma obra literária
não é uma “cópia” ou “descrição” da realidade, mas que, em uma instância
preliminar, por usar a linguagem que se constitui em “signos” gráficos e
sonoros, ela é uma reconstrução do mundo a partir da percepção do
artista, de modo a transmitir aos leitores uma visão particular da realidade.
(FERREIRA, 2008, p. 9-10)

Consideramos o que acima foi exposto, nossa definição de ficção literária,


muito útil para compreender o modo como devemos tratar todo e qualquer objeto
literário, incluindo a Bíblia. Entretanto, para que nos aproximemos um pouco mais
dos temas de nosso interesse, talvez ainda possamos nos servir dos apontamentos
feitos pelo filósofo alemão Ludwig Feuerbach que, no século XIX, ficou famoso (e
malquisto) por ter declarado que “Deus criou Deus à sua imagem”.

Em sua mais famosa obra, A essência do cristianismo, Feuerbach escreveu


linhas como essas:
A religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus
como um ser anteposto a ele. Deus não é o que o homem é, o homem
não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; Deus é
perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório; Deus
é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador.
Deus e o homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de
todas as realidades, o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas
as nulidades. (FEUERBACH, 2013, p. 63)

Para Feuerbach “os homens adoram em Deus aquilo que lhes falta”, pelo que,
aproveitando as palavras de Michel Onfray (filósofo francês contemporâneo), temos
a seguinte construção: “O além? O negativo invertido desse mundo aqui. A religião?
A relação que o homem tem com sua essência invertida” (ONFRAY, 2016, p. 31).

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UNIDADE Deus como Personagem

Figura 2 – Ludwig Feuerbach (1804-1872)


Fonte: Wikimedia Commons

A partir de Feuerbach, o Deus, que na tradição bíblica cria o homem, pôde ser
visto como uma criação do homem, uma representação do homem, quase sempre
inspirada no macho, no branco, no judeu, no chefe de uma família, no líder de
uma tribo, no general de um exército, no rei de uma nação. Mas Deus não se
resume a isso, a uma simples representação verbal do ser-humano; ele é divino
– mais que humano – e é adorado exatamente porque excede o homem, porque
não é limitado por nenhum daqueles predicados redutores que todos conhecemos,
tais como a mortalidade, a ignorância, a fraqueza e a materialidade. Assim, Deus,
como criatura, como personagem criado pelo amálgama do humano real com
o humano ideal, realiza o sonho humano, dá forma à sua vontade de poder,
sublima a tensão inerente ao ser que se sabe transitório por meio de fantasias
religiosas e literárias.

Deveras, é um Deus bem humano aquele que se assemelha ao homem, que se


apresenta como um macho, que se comunica por meio de nossa linguagem, que
habita entre nós e parece até carnívoro quando aprecia o cheiro da carne assada
que parte de sangrentos altares. Todavia, ele é mais do que o homem, porque é
imortal, é onisciente, onipresente e todo-poderoso. Em poucas palavras, Feuerbach
declarou abertamente que o Deus cristão é a expressão criativa, ficcional, de seres
conscientes de sua pequenez: Deus é exatamente tudo o que gostaríamos de ser.

A influência de Feuerbach se fez notar e recordamos que, no século XX, outro


pensador escreveu linhas parecidas. Emil Cioran, filósofo romeno, escreveu em
seu Breviário de decomposição, obra publicada em 1949, algumas palavras que
agora estamos em condições de compreender; linhas que mostram como ainda
estamos sob os efeitos das ideias de Feuerbach:
Estou de bom humor: Deus é bom; estou melancólico: é mau; indiferente:
é neutro. Meus estados lhe conferem atributos correspondentes: quando
gosto do saber, é onisciente, e quando adoro a força, é todo-poderoso.
Parece-me que as coisas existem? Ele existe; parecem-me ilusórias? Ele se

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evapora. Mil argumentos o apoiam, mil o destroem; se meus entusiasmos
o animam, meus maus humores o sufocam. Não saberíamos formar
imagem mais mutável [...] se o idolatramos, é o Ser; se o repudiamos, é o
Nada. (CIORAN, 1989, p. 137-138)

Se a leitura de Cioran ainda pode impressionar, escandalizar alguns leitores mais


conservadores e zelosos de seus dogmas, imaginemos o tamanho da polêmica
suscitada por essas ideias quando foram expostas pela primeira vez por Feuerbach
no século XIX. Mesmo hoje, os leitores cristãos poderão resistir à hipótese filosófica
do pensador alemão, poderão tomá-lo como mero herege indigno de qualquer
crédito; contudo, não é nosso objetivo fazer com que cada estudante concorde
plenamente com Feuerbach ou procure refutá-lo. Ele foi posto em pauta porque
julgamos que vale a pena conhecer sua maneira de interpretar a religião, porque
podemos aproveitar esses apontamentos para entender o que temos dito sobre
o Deus, que logo será nosso objeto de análise, o Deus que é um personagem
literário, uma criação ficcional.

O Deus que encontraremos no Gênesis (se é que o Deus do capítulo 1 é o


mesmo que atua nos capítulos 2 e 3) exibirá abertamente seus muitos traços
antropomórficos. Ele talvez tenha sido motivado por necessidades muito
humanas quando abdica de sua condição original para fruir do prazer de algumas
companhias imperfeitas; ele se mostrará muito humano quando, cansado, decreta
a santidade do sábado; ele mostrar-se-á bem humano quando caminhando por seu
Éden particular em busca de seu jardineiro oculto; entretanto, não podemos nos
esquecer de seus atributos divinos, tais como seu poder criador (depois destruidor)
que, especialmente nas primeiras páginas da Bíblia, o distingue de qualquer forma
de vida conhecida na terra.

Para Feuerbach, para a filosofia materialista, para o ateísmo, aquele Deus é


mesmo um produto da imaginação humana, uma figura que não pôde ser mais
que um homem com poderes mágicos, sobrenaturais. Mas para tantos teólogos,
especialmente para os cristãos, aquele personagem é uma representação de um
Deus real. Mesmo nesse caso, aquele ainda seria um retrato redutor, limitado à
linguagem humana, claro; mas esses leitores querem acreditar que esse personagem
nasceu da experiência mística de antigos escritores, homens que de alguma forma
vislumbraram algo daquele Deus incognoscível e afirmaram que nós, os humanos,
é que fomos criados segundo sua perfeita imagem.

Seja como for, o tempo dedicado ao estudo e à reflexão sobre um personagem


tão célebre, tão influente na cultura ocidental, tão presente nas religiões, nas artes,
nos imaginários, não pode deixar de nos atrair. Façamos, pois, daquele Senhor Deus
que é descrito em tão lacônicas linhas nos primeiros capítulos do Gênesis, nosso
objeto. E tratemos dele com toda liberdade que possuímos, como pesquisadores
que em ambientes acadêmicos estão livres de restrições dogmáticas e se sentem
autorizados a exercer seu senso crítico livremente, mesmo que seja para criticar
aquilo que tantos consideraram sagrado – e, consequentemente, intocável – por
tanto tempo.

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UNIDADE Deus como Personagem

O Deus que estudaremos, enfim, é uma personagem, uma ficção literária e, de


nossa parte, nos absteremos de toda tentativa de extrair da leitura bíblica conclusões
sobre o Deus em que nossos semelhantes creem. O uso que cada leitor faz de sua
leitura, dos resultados de sua interpretação, podem muito bem servir de matéria-
prima para a produção teológica, mas, como tentaremos demonstrar, dará sinais
de inteligência o leitor que abrir mão dos proselitismos para ser feliz, sozinho, com
sua própria teologia.

O Biógrafo de Deus
A proposta que fizemos, de estudar Deus como um personagem literário, pode
parecer inovadora, inquietante até, mas não é tão nova quanto pode parecer.
De fato, vários pesquisadores atualmente leem a Bíblia como literatura e seus
procedimentos analíticos se assemelham aos que aqui pretendemos empregar. Mas
há um desses leitores que não deve ser ignorado, seu trabalho será nosso assunto
neste tópico: Jack Miles, autor de Deus, uma biografia (MILES, 2009). Esse livro
lida com o Deus bíblico de uma maneira bastante particular. Aproximando-nos
do trabalho de Miles, estaremos nos envolvendo, de modo introdutório, com a
abordagem literária da Bíblia.

Figura 3 – Capa de Deus, uma biografia de Jack Miles, aqui em


edição debolso, publicada pela Companhia das Letras em 2009
Fonte: Imagem da internet

O autor é norte-americano e no início de sua carreira manteve uma explícita re-


lação religiosa com a Bíblia através do catolicismo. No próprio livro, Miles é descri-
to como um “ex-jesuíta” que estudou na Pontifícia Universidade Gregoriana em
Roma e na Universidade Hebraica de Jerusalém, tendo se tornado um especia-
lista em línguas do Oriente Médio (MILES, 2009, p. 557). Mas essas informações
biográficas contam pouco para a leitura, pois o Jack Miles que encontramos nas
páginas do livro é um crítico literário, um autor que poderíamos chamar de secular.

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Não é por acaso que sua obra foi publicada no Brasil por uma editora não religiosa,
a Companhia das Letras.

Deus, uma biografia foi publicado originalmente em inglês em 1995 e no ano seguinte foi
Explor

premiado com o Prêmio Pulitzer na categoria biografia/autobiografia. A editora Companhia


das Letras o traduziu e publicou a primeira edição dele no Brasil em 1997. Posteriormente,
a editora também publicou, do mesmo autor, Cristo: uma crise na vida de Deus, em 2002.

Todos os pressupostos assumidos na obra colocam a abordagem de Miles


distante das leituras convencionais. Ele entende que a cultura do Ocidente está
marcada pelas tradições religiosas e, naturalmente, por seus textos sagrados; por
isso, seu livro começa justificando a abordagem literária da Bíblia dizendo que a
ideia sobre Deus que a Bíblia incutiu na cultura e na mente do homem ocidental
é importante tanto para que os não-ocidentais entendam os ocidentais, quanto é
para que o próprio ocidental moderno visite as origens de sua cultura e melhor
se conheça (2009, p. 11-12).

Na cultura ocidental (seria melhor dizer culturas), as religiões costumam assumir


formas narrativas. Para Miles, a religião é a obra literária (não necessariamente
escrita) mais bem-sucedida da história humana, e seu personagem principal é o
sujeito de maior prestígio e influência na cultura desse povo (2009, p. 12-14). O
objetivo de seu livro é, portanto, estudar a Bíblia como a principal fonte para o
reconhecimento desse influente personagem.
Ele avisa: “Escreverei aqui sobre a vida do Senhor Deus como o protagonista
– e apenas isso – de um clássico da literatura mundial”. A seguir, completa: “Não
escreverei sobre (embora certamente não escreva contra) o Senhor Deus como
objeto de crença religiosa” (2009, p. 18). Trata-se de uma leitura que dá ênfase aos
perfis e desenvolvimentos do personagem Deus, um trabalho de análise literária
que o autor chama de biografia (ou teografia) pelo caráter cronológico e evolutivo
que assume (2009, p. 18-20).

A análise do personagem Deus se pauta na sucessão de ações, descrições e


discursos de Deus e sobre Deus conforme estão encadeados pela sequência
narrativa da Bíblia Hebraica, e a escolha da Tanach se revela um fator decisivo.
O autor estava consciente de que há uma espécie de enredo que é criado pela
sequencialidade dada aos livros bíblicos e que os resultados de sua leitura da Tanach
não se repetiriam se ele se dedicasse à leitura do Antigo Testamento cristão, em
que os livros são apresentados noutra ordem. Miles diz que o leitor da Bíblia pode
escolher entre as versões judaica e cristã tendo à disposição dois finais possíveis
para a mesma história (2009, p. 124).

Ao ler a Bíblia Hebraica como uma narrativa única e sequencial, levando


em conta a sucessão dos eventos, Miles pôde identificar um desenvolvimento
gradual na personalidade do personagem que estudava, dando origem a uma
interpretação bastante incomum na história da leitura bíblica em que o Senhor

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UNIDADE Deus como Personagem

Deus se mostra muito inconstante e atravessa, como qualquer um de nós, fases


diferentes em sua existência.

Importante! Importante!

O procedimento de Miles é ler a Bíblia Hebraica inteira e sequencialmente, como


fazemos com romances modernos. É assim que ele consegue biografar o Senhor Deus,
identificando mudanças, evoluções e contradições na personalidade inconstante desse
personagem que se formou a partir da união de muitas vozes.

Em obra posterior (que trata do Novo Testamento e cujo título é Cristo: uma crise
na vida de Deus), Miles explica as premissas que definiram seu trabalho em Deus,
uma biografia, fornecendo-nos um resumo daquilo que acima tentamos expor:
Uma leitura literária da Bíblia pode tomar qualquer forma, entre várias.
Uma delas é a discussão de Deus como o protagonista, o personagem
central desse clássico da literatura mundial. Em um livro anterior,
intitulado Deus: uma biografia, tentei realizar tal discussão sobre o Deus
da Bíblia do judaísmo, o Tanach [...] A estratégia interpretativa em Deus:
uma biografia tinha duas regras simples, baseada em duas premissas: a
primeira regra era que o conflito na natureza divina, como é encontrado
nas páginas do Tanach, deveria ser aceito como real para os propósitos da
discussão literária em vez de, à maneira da crítica histórica, ser explicado
pela referência aos vários autores humanos do Tanach e suas diferentes
visões históricas [...]. A segunda regra era que o conflito na natureza
divina, em vez de ser descrito ou analisado sistematicamente, como na
teologia, deveria emergir do curso da narrativa. A premissa por trás
desse procedimento era que a complexidade interna na personalidade de
Deus poderia ser mostrada como algo em processo de desenvolvimento
no tempo, em resposta às vicissitudes no seu relacionamento de longo
prazo com a humanidade e, em particular, com a nação de Israel. Dessa
maneira, embora não houvesse nenhum nascimento ou morte, poderia
haver uma passagem coerente das primeiras palavras e atitudes de Deus
até as últimas. Poderia haver desenvolvimento da personalidade e, numa
palavra, biografia. (MILES, 2002, p. 305-306)

Miles deixa claro que desconsidera, nessa obra, a crítica histórica e toda a difícil
discussão sobre a autoria coletiva dos livros bíblicos. Ele parece pressupor que
os redatores da Bíblia coletaram materiais diversos e os organizaram para que o
conjunto, numa leitura continuada, produzisse um efeito narrativo.

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Explor
Acima foram expostos alguns dos princípios interpretativos mais importantes que car-
acterizam a obra de Jack Miles e resultam na grande novidade dessa abordagem: Miles
só toca eventualmente os dados que nos foram oferecidos pela crítica histórica, se inter-
essa pouco pelas possíveis fontes empregadas na composição dos textos, não se apoia
em hipóteses sobre camadas redacionais, não considera determinante a arqueologia, a
história ou a sociologia do mundo bíblico. Ele sempre leva seu leitor a conclusões que
dizem respeito à obra final, à Bíblia que temos em mãos. Dizendo isso de outro modo,
sua leitura considera o cânone como obra literária e busca os significados produzidos
pela coleção do modo como ela se apresenta hoje, mesmo que esses sentidos não ten-
ham sido previstos por nenhum dos autores que escreveram os livros bíblicos individ-
ualmente. Nesse sentido, o trabalho de Miles é exemplar, nos apresenta de maneira
bem clara os últimos passos dados pela crítica bíblica contemporânea.

A maior parte do que até aqui dissemos sobre Jack Miles e seu trabalho pode
ser extraído da leitura do prefácio de Deus, uma biografia, intitulado Programa:
a imagem e o original, e de seu primeiro capítulo, com o nome de Prelúdio:
pode-se escrever a vida de Deus? (2009, p. 11-36). Mas há ainda quase 500
páginas de textos que não poderemos considerar aqui. Em resumo, diríamos
que todo o conteúdo restante consiste em comentários sobre os textos da Bíblia
Hebraica feitos com maior ou menor detalhamento em que se observa Deus
agindo, falando, se arrependendo, mudando, aprendendo. A leitura é bastante
pessoal e especulativa, e essa é exatamente sua maior riqueza. Nessa obra, nós
temos contato com o tipo de olhar que o crítico literário lança sobre o texto bíblico
com intuições aguçadas, teoria consistente e absoluta liberdade para oferecer
juízos livres de tradições teológicas e dogmáticas.
Por exemplo, o Capítulo 2 (Geração) começa tratando de Deus e de seu ato
criador de um modo nada convencional: “Ele fala sozinho” (2009, p. 37). Quando
o autor chega ao famoso relato em que uma serpente induz os seres humanos à
desobediência, ele encara as dificuldades inerentes de maneira original: menciona,
a princípio sem oferecer novidade, que nessa narrativa há ecos de tradições
mitológicas da antiga Mesopotâmia; mas como o que lhe interessa é o texto atual
e não suas possíveis fontes, ressalta que se está diante de uma edição monoteísta
daquelas tradições míticas em que a serpente (possivelmente um deus rival na
mitologia mesopotâmica antiga) aparece domada, transformada numa criatura
de Deus. E é nesse ponto em que Miles mostra seu valor, lidando com o antigo
paradoxo da existência de vontades divergentes que foram criadas pelo mesmo ser.

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UNIDADE Deus como Personagem

Como resultado dessa revisão, o criador da serpente é forçado a se


responsabilizar pelos atos da serpente. Mas um segundo resultado da
mesma revisão, resultado raramente notado, é que o Senhor Deus passará
a ser um personagem que mantém um diálogo interior. Ele repreende a
serpente; e ao fazê-lo necessariamente repreende a si mesmo. Aquilo que
no politeísmo poderia ser dirigido para o exterior, contra uma divindade
rival, no monoteísmo – mesmo um monoteísmo que fala ocasionalmente
na primeira pessoa do plural – tem de se transformar num arrependimento
voltado para o interior do Senhor Deus. A aparição do arrependimento
divino, primeira entre muitas, constitui a primeira aparição da divindade
como personagem literário verdadeiro, diferente de uma força mítica ou
de um mero significado dotado de voz alegórica. (MILES, 2009, p. 46)

Outro bom exemplo da abordagem literária de Jack Miles pode ser extraído do
Capítulo 7 (Transformação), ponto em que se começa a tratar da literatura profética
da Bíblia Hebraica. O primeiro parágrafo lida elogiosamente com o gênero profecia,
dizendo: “Se não existe nada na literatura moderna que corresponda exatamente
a algo como a Bíblia, dentre os gêneros literários nada é tão absolutamente
único quanto a profecia” (MILES, 2009, p. 248). E a profecia é especialmente
relevante no projeto de Miles, por apresentar a voz do Senhor Deus de um modo
particularmente direto. Os profetas são porta-vozes que anunciam aquilo que Deus
lhes mostra ou fala, e por isso seus discursos são fontes valiosas para que se possa
caracterizar o personagem Deus, o verdadeiro criador dos discursos proféticos.

O problema é que os conteúdos desses ditos proféticos não são tão coerentes
quanto desejaríamos; antes, se contradizem abertamente em vários momentos.
Miles destaca esse problema e acusa a crítica histórica de se esquivar da dificuldade:
[...] os comentadores contornam essa dificuldade deixando de lado,
tacitamente, a ficção segundo a qual é Deus quem fala, e tratam cada profeta
como um comentador religioso-político autônomo, um autor no sentido
moderno, dividindo os livros maiores em livros menores, de maior coerência
interna, ou mesmo em oráculos individuais. (MILES, 2009, p. 248)

Miles está correto. Comentaristas de Isaías costumam identificar as possíveis


camadas redacionais que o compõem, esforçam-se para distinguir e datar cada
passagem individualmente e, com isso, negligenciam completamente o fato de
que, no fim das contas, o cânone nos legou um único livro. Indiretamente, aquelas
abordagens históricas negam a viabilidade literária do texto canônico supondo se
tratar de mera coletânea de fragmentos de uma antiga e estranha tradição religiosa.
Mas do ponto de vista literário, se o leitor decide encarar os profetas como se
fosse o leitor modelo – que respeita a sequencialidade proposta pelos redatores,
confia na inspiração divina de cada oráculo, na autenticidade do ministério de cada
profeta – e tomar cada dito como Palavra de Deus, relacionando-os em busca
de compreensão a respeito desse mesmo Deus, tem-se um personagem difícil de
caracterizar. É exatamente nessa direção que caminha a leitura de Jack Miles:

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A alternativa coerente, porém, não menos difícil, é partir do pressuposto
de que todas essas mensagens vêm efetivamente do mesmo personagem
e, em seguida, inferir, a partir das contradições, que o personagem
deve estar sofrendo. Numa tal leitura, o fracasso da aliança, a queda de
Jerusalém e o exílio de Israel na Babilônia passam a ser uma crise na vida
de Deus, assim como na vida da nação. (2009, p. 249)

Com nossas palavras, Miles conclui que o Deus da Bíblia Hebraica estaria
confuso após os sucessivos fracassos de Israel como nação que ele elegeu e com
a possibilidade de que tudo o que planejara dar errado. O Deus que fala nos
profetas (lidos em conjunto) é um Deus confuso que busca alternativas diferentes
para suas crises e diz coisas diferentes para cada um de seus interlocutores.

E é assim que Jack Miles vai comentando os livros bíblicos e destacando


a soma gradual de características que vão se encadeando e compondo a
complexa personalidade de Deus. Se no início de Gênesis esse protagonista é
apresentado apenas como um Criador, o dilúvio o revela como um Destruidor;
se nos primeiros capítulos de Gênesis ele é o Deus do universo, responsável
por toda a humanidade, a partir do Capítulo 12 ele também passa a ser um
Deus familiar, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, e se
ocupa de questões aparentemente banais como heranças e infertilidades. Nos
outros livros do Pentateuco, Deus continuará se descobrindo (e se revelando),
primeiro como Libertador, um Deus guerreiro, o Senhor dos Exércitos que
livra Israel da escravidão egípcia; depois, ele é um Legislador prolixo e, mais
adiante, um Suserano que concede terras aos vassalos israelitas. A partir do livro
de Josué, Deus é um Conquistador; anos depois, muda ao se apaixonar por
Davi e, em favor da dinastia davídica, se apresenta como um Pai, criando um
vínculo irrevogável. Durante a monarquia israelita (e judaíta, a partir da divisão
do país), Deus também vai se tornando cada vez mais favorável aos fracos, aos
pobres, e sua intolerância frente às injustiças sociais o fazem um Árbitro que
governa as nações, que destrona monarcas e se internacionaliza ao usar impérios
estrangeiros como instrumentos para punir Israel e Judá.

Por hora, já temos o suficiente. Nos contentaremos com o que até aqui
expusemos da obra de Miles e deixamos sua leitura dizendo que essa é uma obra
que representa bem os estudos literários da Bíblia.

Trocando ideias...Importante!
Nossos próximos passos serão diferentes dos trilhados nesta primeira parte: procurar-
emos preparar nossos leitores – com teorias e recursos metodológicos de análise – para
lidar com o Deus bíblico desde uma perspectiva literária particular. A obra de Jack Miles
continuará nos inspirando, mas seguiremos por caminhos diferentes, empregando intu-
ições particulares e exercendo nossa liberdade exegética.

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UNIDADE Deus como Personagem

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

  Sites
Folha de S.Paulo ilustrada
Dedicamos boa parte desta primeira unidade tratando de uma obra de Jack Miles.
Aproveitamos agora esse espaço para indicar outras leituras para aqueles que desejam
maior aprofundamento. Primeiro, pode-se ver uma breve matéria sobre o livro que
comentamos no link a seguir:
https://goo.gl/UJLbLW

 Livros
Cristo: uma crise na vida de Deus
Se o trabalho de Jack Miles lhe interessou, valerá a pena conhecer também seu outro
livro, Cristo: uma crise na vida de Deus. Esse segundo título é dedicado ao Novo
Testamento mais exatamente, à vida de Jesus e sua relação com o Deus que os leitores
da Bíblia já conheciam. As informações completas da obra estão nas referências.

 Leitura
Protestantismo em Revista
Se o segundo livro de Miles lhe interessa, antes de comprá-lo, você pode ler uma
resenha crítica sobre o mesmo escrita por Waldo César, para a revista Protestantismo
em Revista (CÉSAR, 2004).
https://goo.gl/Eb7APa
Revista Dialectus
Outro tema que ganhou relevância na Unidade 1 foi o modo como o filósofo Ludwig
Feuerbach definiu o Deus cristão como uma ficção criada a partir da imagem humana. Para
aqueles que porventura desejam maior aprofundamento no tema, indicamos um artigo.
https://goo.gl/s13JrC

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Referências
CÉSAR, Waldo. O personagem Jesus Cristo: resenha crítica de MILES, Jack.
Cristo: uma crise na vida de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Protestantismo em revista, v. 3, p. 28-31. 2004.

CIORAN, Emil M. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

FERREIRA, João Cesário Leonel. A Bíblia como literatura: lendo as narrativas


bíblicas. Correlatio. n. 13, p. 4-22. 2008.

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

ISER, Wolfgang. O ficcional e o imaginário: perspectivas de uma antropologia


literária. 2. ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

MILES, Jack. Cristo: uma crise na vida de Deus. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.

________, Jack. Deus, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

ONFRAY, Michel. Contra-história da filosofia: VI – as radicalidades existenciais.


São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.

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