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TEOLOGIA
PROF. DAVI DAGOSTIM MINATTO
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA
INTRODUÇÃO
A TEOLOGIA
Marília/SP
2022
Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior
“
A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma
ação integrada de suas atividades educacionais, visando à
geração, sistematização e disseminação do conhecimento,
para formar profissionais empreendedores que promovam
a transformação e o desenvolvimento social, econômico e
cultural da comunidade em que está inserida.
Av. Cristo Rei, 305 - Banzato, CEP 17515-200 Marília - São Paulo.
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salvo quando indicada a referência, sendo de inteira responsabilidade da autoria a
emissão de conceitos.
INTRODUÇÃO A TEOLOGIA
PROF. DAVI DAGOSTIM MINATTO
SUMÁRIO
CAPÍTULO 01 DEFINIÇÃO DE TEOLOGIA 08
INTRODUÇÃO
Religioso. Também vamos apontar para a fundamental relação entre teologia e direitos
humanos. E concluiremos mostrando como a teologia se relaciona com a sociedade,
ou seja, como a teologia ouve os clamores da sociedade e como pode transformar
o meio social.
No final deste percurso, não teremos um conhecimento geral de teologia, mas
teremos a planta do edifício teológico, para podermos entrar e conhecer este edifício
por dentro, contemplando-o com nossos próprios olhos. Este é o convite da Introdução
à Teologia. Então, por favor, vamos entrando no universo teológico a partir das páginas
a seguir!
CAPÍTULO 1
DEFINIÇÃO DE TEOLOGIA
O vocábulo “teologia” é formado por duas palavras gregas: theos, que significa
Deus; e logos, que significa palavra ou discurso. Por definição, a teologia é o discurso
sobre Deus. Em sentido um pouco mais largo, a teologia é o estudo de Deus, dos
ensinamentos religiosos e dos temas pertencentes à esfera do sagrado. A teologia
não é sinônimo de religião, pois a religião está no campo da experiência humana,
não da reflexão. Também não é sinônimo de doutrina, porque a doutrina tem a ver
com ensinamentos e instruções religiosas. Ao contrário, a teologia está no campo da
reflexão sistemática, que segue métodos e princípios específicos. O objeto da reflexão
teológica é a verdade de Deus; e o produto desta reflexão é a fé e a prática religiosa
(EVARISTO FILHO, 2016, p. 18).
No entanto, existem outras ciências que também tem Deus como objeto: a diferença
é o enfoque. A teosofia é um conhecimento de Deus que remonta a uma especulação
filosófica de raiz mística; trata-se de um estudo especulativo da sabedoria divina, típico
das religiões do Extremo Oriente. A teodicéia, em sua acepção original, é a justificativa
da bondade divina em resposta ao problema da existência do mal (teodicéia de Leibniz);
com o tempo, tornou-se sinônimo de “teologia natural”, que busca responder à questão
Na verdade, a palavra theologia tem origem pagã. No teatro grego, acima do palco,
havia um lugar onde os deuses apareciam, o theologeion. O verbo theologēo significava
discursar sobre os deuses ou sobre a cosmologia. E o termo theologia era usado no
sentido de ciência das coisas divinas; também podia indicar uma oração em louvor
ou uma invocação a um deus. Neste sentido, o theologos era sobretudo aquele que
discursava sobre os deuses, mas também podia ser um discursador sobre poetas
(como Hesíodo ou Orfeu) ou sobre cosmólogos (como os órficos). Até mesmo os
adivinhos eram chamados de teólogos. Nos primórdios da teologia cristã latina, o
termo theologia era aplicado apenas em sentido pagão, como referência ao estudo
dos deuses. Até mesmo Agostinho fala de três gêneros de teologias (mítica, natural
e civil) enquanto explicação sobre os deuses (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 64-65).
Talvez Orígenes tenha sido o primeiro a usar a palavra theologia para se referir ao
discurso sobre Deus e sobre Cristo, mas ele também usava o termo theologos em
sentido pagão. Eusébio levou adiante esta assimilação cristã ao falar de uma teologia
sobre Cristo. E a Patrística Grega, a partir do século IV, assumiu o termo theologia para
o discurso sobre Deus, sobre a Trindade e sobre Cristo. No mundo latino, Abelardo
usava a palavra “teologia” para referir-se ao tratado sobre Deus, e “beneficia” para
o discurso sobre Cristo. A Escolástica, apesar de não rejeitar a palavra “teologia”,
preferiu usar outras expressões, como doctrina divina, sacra doctrina, divina institutio,
etc. Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo, preferia o termo doctrina christiana
mais do que “teologia”. No período de Duns Scotus (1266-1308), o termo “teologia” se
tornou sinônimo de sacra doctrina, com uma pequena diferença: “teologia” se referia
sempre a uma atividade especulativa, que na verdade era só uma parte da sacra
doctrina. Essa limitação fez com que a Idade Moderna dividisse a teologia em vários
ramos: teologia mística, teologia moral, apologética, teologia escolástica, entre outras
(LIBANIO; MURAD, 2005, p. 66-67).
Gonzalez e Perez (2003, p. 10-25) insistem que para entender o que é a teologia
não basta definir o significado desta palavra, mas é preciso responder qual é a função
da teologia. Eles apresentam cinco tarefas principais da teologia:
• A teologia como explicação da realidade: não é uma explicação de como as coisas
funcionam ou de como se formaram, mas de qual é o seu lugar nos propósitos
de Deus.
• A teologia como sistematização da doutrina cristã: desde o início do cristianismo,
a teologia tem a função de organizar e explicitar os pontos principais da fé;
hoje esta função se traduz como avaliar criticamente as novas idéias e novas
Para concluir a primeira parte desta aula, vamos destacar a definição de teologia dada
por Karl Rahner (apud MATOS, 2020, p. 17): “É a explanação e explicação consciente
e metodológica da Revelação divina, recebida e aprendida na fé”. Ou seja, a teologia
é a ciência da fé, o esforço humano para compreender e interpretar a experiência
de fé na Igreja e comunicá-la em linguagem e símbolos. A teologia é, praticamente,
o desdobramento teórico e intelectual da fé. A experiência de fé é a sua condição
interna e essencial. Neste sentido, fazer teologia corresponde a aprofundar, justificar
e esclarecer o ato de fé em Deus. Pela teologia, o cristão busca compreender o que
crê, captando pela razão aquilo de que já está convencido pela fé. Vamos aprofundar
a seguir o significado da teologia como ciência da fé.
da revelação. Não há teologia cristã sem fé, assim como não há fé verdadeira sem
um mínimo de intelecção e aprofundamento. A teologia, portanto, é a ciência da fé,
pois reflete sobre a fé, enquanto ato de confiança em Deus, e sobre o conteúdo da fé
(Palavra revelada). Deus está implícito na definição de fé, então teologia é a ciência
de Deus:
A teologia reflete sobre Deus, mas não de forma abstrata. Entre o teólogo e Deus
há uma mediação: a fé transmitida na Igreja. Neste sentido, a comunidade que
professa e vive a sua fé é um elemento essencial da teologia. O teólogo começa a
refletir a partir da fé recebida e vivida em uma comunidade eclesial. Em uma era que
favorece a individualização da fé, é importante salientar esse aspecto comunitário
da teologia, sem o qual não pode existir uma verdadeira reflexão teológica. A fé tem
seu aspecto subjetivo, individual e íntimo. Mas não se limita a isso, pois do contrário
cada um criaria a sua própria religião. A comunidade eclesial é o espaço adequado
para a transmissão e a reflexão da fé. Na prática, isso significa que a teologia deve
levar em conta as questões, os problemas, as angústias e as dúvidas presentes nas
comunidades concretas. Por outro lado, a comunidade se torna critério de avaliação
da teologia: se esta não responde a seus problemas e não se torna compreensível à
comunidade, acaba se perdendo em um mundo etéreo sem contato com a realidade
(LIBANIO; MURAD, 2005, p. 72-73).
A relação entre teologia e comunidade eclesial acontece por um movimento duplo:
antes de tudo, a teologia reflete sobre a experiência de fé que se realiza na comunidade;
e a comunidade aprofunda a sua fé a partir da reflexão teológica. Em outras palavras,
a comunidade faz teologia, e a teologia forma comunidade. É uma relação mútua. A
linguagem é a mediação entre o âmbito da comunidade e a disciplina teológica, por
isso precisa ser uma linguagem compreensível. Neste sentido, a teologia é a ciência
da linguagem da fé. Assim como os seres humanos constroem a própria identidade
a partir do desenvolvimento da linguagem, assim também a comunidade eclesial
constrói a sua identidade cristã a partir da linguagem teológica. Porém o processo de
fazer teologia não é só uma questão comunitária e humana, mas é um processo de
revelação: o teólogo e a comunidade eclesial precisam desenvolver uma docilidade à
graça de Deus através da fé (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 73-74).
Visto que a fé não é uma atitude simplesmente individual, mas sobretudo comunitária,
assim também a teologia não é uma atividade privada, mas essencialmente eclesial.
CAPÍTULO 2
OS MÉTODOS TEOLÓGICOS
Cada método deve ser adequado à natureza do que se busca investigar. Por um lado,
não existe um método único em cada ciência; por outro lado, nem todos os métodos
se aplicam a determinadas ciências. Cada método deve ser avaliado em função das
matérias as quais se aplicam. Em geral, existem métodos positivos, baseados na
observação empírica; outros métodos são baseados na análise conceitual; outros
ainda partem do estudo de documentos históricos, literários, artísticos, etc. Todos
os métodos supõem que os dados primários são interpretados, desenvolvidos e
organizados sistematicamente pelo intelecto humano (MORALES, 2003, p. 71).
No caso da teologia, o método costuma ser dividido em duas ou três fases: o
momento hermenêutico e o momento especulativo; e alguns autores acrescentam o
momento prático. São três procedimentos consecutivos e complementares, como
veremos a seguir.
ANOTE ISSO
Sendo assim, o método teológico deve, antes de tudo, ler os “sinais dos tempos”
e interpretá-los à luz da Revelação, a fim de anunciar o Evangelho com a linguagem
atual, para que seja compreendido e concretizado na vida dos ouvintes de hoje. Esse
é o objetivo do momento prático dos procedimentos teológicos.
Sintetizando todo esse processo, podemos dizer que a teologia parte da Revelação
e da Tradição, passa por uma profunda reflexão especulativa, e se transforma em
proposta prática de vivência da fé. Percorrendo estes três passos, o teólogo está
praticamente respondendo a esta pergunta básica: o que Deus tem a dizer sobre
esta ou aquela realidade específica? Pois todas as realidades humanas podem ser
iluminadas pela Palavra de Deus através da reflexão teológica. Estes três passos são
complementares. Sem o momento positivo, a teologia teria que refletir sobre dados
incertos e não verificados. Sem a reflexão especulativa, os dados poderiam até ser
bem conhecidos, mas permaneceriam sem significado. E sem a aplicação da fé, tudo
se perderia em teorias, sem implicações para a vida da comunidade.
Os métodos dedutivo e indutivo não são exclusivos da teologia, mas são métodos
científicos utilizados em uma grande variedade de disciplinas. Em geral, o método
indutivo parte da observação da realidade e chega a uma conceituação básica;
o método dedutivo transforma os conceitos básicos em teorias. Para conhecer
mais sobre este tema, veja esse artigo sobre a metodologia científica: https://www.
metodologiacientifica.org/metodos-de-abordagem/metodo-dedutivo-e-metodo-
indutivo/
CAPÍTULO 3
AS FONTES DA TEOLOGIA
Tudo aquilo que recebe o nome de “cristão” deve partir sempre e necessariamente
da Sagrada Escritura. Qualquer teoria, ideia, ideologia ou prática que não tem seu
fundamento na Bíblia não pode ser considerada cristã. Por isso, começaremos falando
da Sagrada Escritura como fonte principal da teologia. Em seguida, acrescentaremos
algumas anotações importantes sobre a interpretação da Bíblia na Igreja.
ANOTE ISSO
Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens
e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber
o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que
os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus
manifestar por meio das suas palavras. Para descobrir a intenção dos
hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas,
os “géneros literários”. Com efeito, a verdade é proposta e expressa de
modos diversos, segundo se trata de géneros históricos, proféticos,
poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o
sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo
as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e
de fato exprimiu servindo-se dos gêneros literários então usados (Dei
Verbum, 1965, n. 12a).
Esse é o papel da exegese: descobrir o sentido original do texto bíblico, a partir dos
métodos exegéticos disponíveis, particularmente o método histórico-crítico, dentro do
qual se encontra a crítica dos gêneros literários. Todavia, esse esforço não é suficiente
para alcançar o sentido pleno dos textos bíblicos, então o documento acrescenta:
Sendo assim, para se chegar ao sentido profundo de um texto bíblico, é preciso ler
cada parte em sintonia com todo, considerando a unidade da Sagrada Escritura. Em
segundo lugar, confrontar a própria interpretação com a Tradição da Igreja e com a
analogia da fé – ou seja, não estar em contradição com o conjunto de verdades de
fé reconhecidas na Igreja. Por fim, o documento conciliar lembra que a Igreja pode
pronunciar um juízo sobre o trabalho dos exegetas, pois é sua missão guardar e
interpretar a Palavra de Deus. Em poucas palavras, a interpretação da Bíblia na Igreja
parte dos métodos exegéticos científicos, passa pela Tradição e permanece em sintonia
com Magistério, para garantir a unidade doutrinária cristã.
3.2 Tradição
Dissemos acima que a Revelação está contida, sobretudo, na Bíblia, mas não está
contida exclusivamente na Bíblia. A Revelação divina também manifesta-se na Tradição da
Igreja. De fato, a Revelação contém palavras e eventos salvíficos, e a história da salvação
continua ao longo dos séculos. A Tradição comporta a vida de fé da Igreja, a doutrina, a
liturgia, as formulações dogmáticas, o testemunho dos Padres da Igreja e dos mestres
espirituais, as devoções populares, a arte cristã, etc. Por isso é chamada de Tradição
viva da Igreja. A Sagrada Escritura e a Tradição juntas contêm a Revelação de Deus em
palavras e na vivência de fé da comunidade, ontem e hoje (MATOS, 2020, p. 33).
A Tradição é fonte não no sentido de apresentar doutrinas próprias, ausentes
na Escritura, mas no sentido de explicitar e interpretar as verdades reveladas nas
Sagradas Escrituras. Algumas verdades se encontram na Bíblia de forma muito concisa
e simplificada: a Tradição tem a função de ampliar e explicitar tais verdades, mostrando
todo o seu significado para a Igreja. A Tradição enriquece a compreensão da Bíblia.
Isso só pode acontecer através da ação do Espírito Santo, segundo as palavras de
Jesus: “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará
tudo e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14,26). O Espírito não mata a letra,
mas dá-lhe vida (cf. 2Cor 3,6): neste sentido, a Tradição, iluminada pelo Espírito Santo,
não elimina nem substitui a Escritura, mas garante que as palavras contidas na Bíblia
continuem sempre vivas e atuais. Em síntese, a Tradição transmite e interpreta a
Escritura (LIBANIO, 2014, p. 223-224).
É preciso ainda distinguir entre dois tipos de Tradição: apostólica e eclesial. A
Tradição apostólica escreveu o NT e permanece como condição formal para explicitar
o seu sentido. A Tradição eclesial prolonga dinamicamente a Tradição apostólica,
atualizando-a e criando novas tradições, adaptadas a cada cultura e a cada época.
A Tradição apostólica é a norma crítica de todas as tradições eclesiásticas, pois é a
Palavra de Deus inspirada. Por um lado, a Tradição eclesial atualiza a apostólica; por
outro lado a Tradição apostólica orienta e corrige a eclesial (BOFF, 1998, p. 45-46).
A relação entre Escritura e Tradição já foi uma questão polêmica na história das
igrejas. No período da Reforma protestante (século XVI), as igrejas reformadas passaram
a admitir somente a Escritura como fonte da Revelação (sola Scriptura). No lado católico,
o Concílio de Trento chegou a defender que a Escritura e a Tradição eram duas fontes
de Revelação independentes. Somente com o Concílio Vaticano II chegou-se a uma
conciliação neste ponto. O primeiro esquema sobre a Revelação, apresentado aos
padres conciliares, foi chamado De doubus fontibus e era uma re-proposta da doutrina
tridentina tal e qual. No entanto, o desejo ecumênico de João XXIII levou os padres
a abandonarem tal esquema. O documento final sobre a Revelação, a constituição
dogmática Dei Verbum traz uma nova impostação: a Escritura e a Tradição estão
intimamente unidas, pois ambas têm a mesma nascente e transmitem a Revelação
(LIBANIO, 2014, p. 221-222).
encontram explicitamente na Bíblia, mas podem ser dela deduzidas (MORALES, 2003,
p. 62-63).
Segundo Matos (2020, p. 33), a Tradição tem, em relação à Escritura, uma função
receptiva, conservativa, inovadora e explicativa; e a Escritura tem, em relação à
Tradição, um função normativo-crítica. Vamos tentar esmiuçar esta definição. A função
receptiva significa que a Tradição acolhe a Escritura: isso aconteceu, historicamente,
especialmente no momento em que a Tradição definiu o cânone bíblico. É conservativa
no sentido que hoje temos acesso à Bíblia porque a Tradição da Igreja conservou o
seu texto intacto ao longo dos séculos. A função inovadora tem a ver com as novas
interpretações feitas pela Tradição, trazendo à luz elementos implícitos na Bíblia. E a
função explicativa acontece cada vez que a Tradição ilustra e atualiza os textos bíblicos.
Por outro lado, a função normativo-crítica da Escritura em relação à Tradição significa
que a única norma absoluta da teologia é a própria Sagrada Escritura: nenhum dado
da Tradição pode contradizer o conteúdo da revelação bíblica.
3.3 Magistério
O sensus fidei (sentido da fé) nem sempre é considerado como uma fonte da Teologia,
mas um documento de 2014, da Comissão Teológica Internacional, declarou claramente
que o sensus fidei é um locus teológico. Mas antes de tratarmos deste aspecto, vejamos
como o documento define o sensus fidei, dividindo-o em dois aspectos: “usamos o
termo sensus fidei fidelis para se referir à capacidade pessoal do crente de fazer um
discernimento justo em matéria de fé, e o de sensus fidei fidelium para se referir ao
instinto de fé da própria Igreja”. Como vemos nesta passagem, este instinto de fé (sensus
fidei) pode ser observado em cada fiel singularmente (acrescenta-se a especificação
fidelis), mas pode ser considerado também em sua amplitude, ou seja, no conjunto
dos fiéis que formam a Igreja (acrescenta-se a especificação fidelium). No caso do
senso de fé de cada fiel singularmente, encontramos esta definição:
Sendo um instinto espiritual, o sensus fidei não corresponde a uma mera opinião
humana, mas consiste na fé espontânea do cristão que permanece unido a Cristo e
dócil ao Espírito Santo. Quanto ao senso de fé da Igreja como um todo, o documento
traz esse esclarecimento sobre a origem do conceito:
Em outras palavras, o sensus fidei não pode ser colocado ao lado da Escritura e da
Tradição como uma fonte independente, mas pode ser considerado um lugar teológico
na medida em que reflete o modo como os fiéis compreendem, professam e praticam
a Palavra de Deus. Por outro lado, a teologia deve auxiliar os fiéis, esclarecendo as
doutrinas, explicando as Sagradas Escrituras, levando a um amadurecimento da fé:
deste modo, o sensus fidelium mantém a sua autenticidade e sua ligação com a fonte
principal da teologia, que é a Revelação.
Para concluir, vimos nesta aula quais são as principais fontes da teologia. A primeira e
mais importante fonte é a Sagrada Escritura, que contém a Revelação divina, cujo ponto
mais alto é a vinda de Cristo Jesus no mundo. Destacamos que a interpretação da Bíblia
deve seguir alguns métodos exegéticos e deve acontecer sempre em comunhão com a
Igreja. A segunda fonte é a Tradição que, junto à Escritura e nunca sem ela, configura-
se como testemunha da Revelação. A Tradição não é uma fonte independente, mas
ela é capaz de explicitar verdades reveladas que se encontram apenas implicitamente
na Sagrada Escritura. Vimos também que o Magistério pode ser considerado um lugar
teológico, pelo menos dentro da teologia católica, pois os sucessores dos apóstolos (os
bispos unidos ao papa) receberam a missão de transmitir e interpretar autenticamente
a Palavra de Deus. Por fim, falamos do sensus fidei como lugar teológico, visto que este
instinto espiritual dos fiéis favorece a compreensão e a vivência dos ensinamentos
divinos contidos na Revelação. Escritura, Tradição, Magistério e sensus fidei formam
um quadro completo sobre o terreno de onde surge a teologia.
CAPÍTULO 4
OS RAMOS DA TEOLOGIA
Como resposta humana, a teologia fundamental introduz o conceito de fé, por meio
da qual o ser humano acolhe a Palavra de Deus. A abertura constante à Revelação
manifesta o caráter religioso do ser humano, por isso a teologia fundamental se
aproxima da antropologia teológica. Além destas temáticas tradicionais, a teologia
fundamental tem incluído novas temáticas, como o ateísmo, as religiões não cristãs,
as ciências humanas, entre outras (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 148).
Segundo esta definição, a teologia dogmática deve ter a Sagrada Escritura como
ponto de partida para cada tema, além de ser o critério para propor soluções aos
problemas humanos. Em um segundo momento, vem a contribuição da patrística e da
história do dogma. Só depois disso tem lugar a especulação como aprofundamento
teológico, seguindo o método escolástico. Por fim, toda a reflexão da teologia dogmática
tem uma finalidade prática: enriquecer a liturgia e a vida da Igreja, e contribuir na
evangelização dos povos em novos contextos.
O estudo da Sagrada Escritura deve ser a alma da teologia, segundo a Dei Verbum
(1965, n. 24). A teologia bíblica tem ocupado grande espaço nos cursos de teologia,
Por um tempo, a moral foi considerada como a parte prática da teologia, enquanto
a dogmática era a parte teórica. Atualmente se compreende que toda teologia tem
seu aspecto pragmático, e que a moral também tem uma ampla base teórica, por
isso também é uma disciplina teológica. Dito isso, é claro que a moral é a parte da
teologia que mais tem influência na vida pessoal e comunitária dos estudantes. De
fato, a teologia moral reflete sobre a resposta que o cristão dá a Deus no âmbito
pessoal, interpessoal, comunitário, social e político. Trata-se de um saber crítico sobre
o compromisso ético dos cristãos, vivido à luz da fé. Na teologia moral, confluem as
exigências da sociedade e da cultura e, ao mesmo tempo, as exigências do ser cristão
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 221).
Historicamente, a teologia moral nasceu entre os séculos XII e XV na forma de manual
para os confessores, com toda a casuística do que deveria ser considerado pecado ou
não. O problema desta forma de teologia moral é que o discurso era pouco teológico,
pouco ligado à dogmática, praticamente reduzido às regras de comportamento. A
renovação da teologia moral, que aconteceu a partir do Vaticano II, colocou ao centro
da moralidade o ser humano livre: o homem responde livremente ao chamado divino,
percebido através da sua consciência, com o objetivo de realizar o sentido da sua
vida, que é a felicidade eterna. Todo este processo é guiado pelo Espírito Santo, que
conduz a humanidade à salvação e à santificação. Os conceitos de ética e de teologia
dogmática estão juntos aqui, para dar sentido àquilo que chamamos de teologia moral
(MORALES-FIDALGO, 2015, p. 152).
A teologia moral se divide em dois grandes blocos: a teologia moral fundamental e as
reflexões éticas específicas. A moral fundamental compreende a reflexão global sobre
as bases e os critérios do agir cristão. Trata também da relação entre a moral cristã e
outras ciências humanas, como a filosofia, a medicina, a psicologia, a antropologia e
a economia. Para estabelecer seus princípios teológicos, a moral fundamental busca
inspiração na Escritura e na Tradição. Por outro lado, a reflexão ética específica deve
lidar com diversos setores da vida humana: moral social e política, moral sexual e
familiar, bioética, ética ecológica, entre outras (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 221-222).
ordem, e assim por diante. Todos estes sacramentos só se tornam inteligíveis dentro
da eclesiologia, pois fazem parte da vida da Igreja. Além disso, a própria Igreja é
sacramento de Deus, ou seja, é sinal da presença de Cristo e de seu Reino no mundo
(MORALES-FIDALGO, 2015, p. 151).
A teologia pastoral entrou para a grade curricular dos cursos de teologia nas
últimas décadas apenas. No Brasil e na América Latina, ela se desenvolveu de
forma mais evidente do que em outras partes do mundo: basta observar o número
de mestrados e doutorados em Teologia Pastoral no Brasil, por exemplo. Para
conhecer um pouco mais sobre este ramo da teologia, veja este artigo de Misael
Batista do Nascimento, mestre em Educação e pastor presbiteriano. Aqui ele
apresenta a definição, o centro e o método da Teologia Pastoral: https://www.
misaelbn.com/definicao-centro-e-metodo-da-teologia-pastoral/
Algumas disciplinas estudadas dentro dos cursos de teologia não são propriamente
teológicas, pois não seguem o método teológico visto no capítulo 2 deste e-book, e
não partem das fontes da teologia, apresentadas no capítulo 3. Podemos chamá-las
de “disciplinas pré-teológicas”, porque apresenta aspectos importantes da vida eclesial
e preparam o terreno da teologia.
A maioria dos cursos de teologia, pelo menos os cursos católicos com formato
clássico, inclui o estudo das normas da Igreja. Por ser uma instituição, a Igreja tem
uma estrutura organizada, com leis e regulamentos internos. O principal conjunto de
normas e prescrições jurídicas recebe o nome de Código de Direito Canônico (CDC).
Há uma longa história até a formulação atual e bastante completa do CDC. A
primeira tentativa de fazer uma coletânea jurídica das disposições eclesiásticas
aconteceu em 380 d.C., na Síria, com as chamadas “Constituições Apostólicas”. Os
concílios celebrados na Igreja no século IV também recolheram várias normas. Até
o século XI prevaleceu esse modelo normativo sinodal, marcado pelas resoluções
dos sínodos e concílios. Os decretos papais também eram importantes, mas não
determinantes. No século XII houve uma guinada histórica na direção de um direito
eclesiásico centralizado, quando a Igreja Latina reuniu as principais determinações
jurídicas em uma forma mais ou menos articulada. Porém, só em 1917 foi promulgado
o primeiro CDC sistemático. Com as reformas do Vaticano II, em 1983 aconteceu a
promulgação do atual CDC, dando uma nova configuração jurídica à Igreja. O CDC de
1983 é estruturado da seguinte forma: normas gerais, direito constitucional, magistério,
ministério de santificação (incluindo o direito sacramental), direito sobre os bens,
direito penal e direito processual (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 226-227).
A teologia estuda o direito canônico para compreender o seu valor e o seu conteúdo.
Todavia, esse estudo difere muito em comparação com as disciplinas propriamente
teológicas: no caso do direito canônico, a matéria prima não é a Revelação, nem
a Tradição, nem a especulação teológica, mas as leis eclesiásticas. Como pré-
requisito, é preciso conhecer a linguagem e a lógica do sistema jurídico. A disciplina
Direito Canônico costuma ser dividida em dois blocos de estudo: o direito canônico
A teologia é uma realidade que se constrói na história, por isso o estudo da história
da Igreja é importante em cursos de teologia. As opções pastorais, as configurações
jurídicas da Igreja, o desenvolvimento do dogma – tudo isso vai se transformando ao
longo da história. Aqui entra o papel da História da Igreja, que estuda as grandes fases
da história universal, inserindo aí as transformações que a comunidade eclesial passou
ao longo do tempo, nos diversos contextos sócio-culturais. É o estudo da história que
nos traz uma compreensão da relação entre Igreja e mundo, incluindo os conflitos de
mentalidade, as ideias e movimentos sociais, os períodos de abertura e fechamento
no diálogo, entre outras situações (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 229).
Assim como o direito canônico, a história eclesiástica não é uma disciplina
propriamente teológica, pois o seu objeto não é a Revelação, mas sim os eventos e
ideias do passado, que repercutem ainda hoje na Igreja. Neste sentido, é uma disciplina
pré-teológica. Visto que a história estuda as configurações eclesiais diacronicamente,
ela não chega à essência teológica da Igreja, mas concentra o seu olhar sobre os
aspectos mutáveis. A história não é uma ciência exata, mas interpretativa. O resultado
final depende de vários fatores. Para começar, existem vários possíveis enfoques para a
historiografia eclesial: história dos personagens, culturalismo, história das mentalidades,
história da Igreja a partir dos pobres (modelo latino-americanno), etc. Em segundo
lugar, existem paradigmas eclesiológicos, ou seja, modelos de Igreja que o historiador
tem em mente ao selecionar e organizar os dados históricos. Conforme o enfoque e
o paradigma adotado, os resultados podem ser diferentes (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 299-230).
Nos cursos acadêmicos, a disciplina História da Igreja costuma ser vista como
algo mais simples de entender, pois não apresenta o mesmo grau de especulação
da teologia dogmática. Por outro lado, a quantidade de conteúdo a ser estudado
normalmente é maior, pois a história da Igreja abarca um período de 2000 anos:
selecionar e sintetizar os eventos mais importantes neste longo espaço de tempo é um
CAPÍTULO 5
A TEOLOGIA PATRÍSTICA
5.1 Contexto
contato do cristianismo com a cultura grega, que tinha uma forma de pensamento
diferente, diferentes princípios e valores, nem sempre facilmente conciliáveis com os
valores cristãos. O trabalho dos Padres Apostólicos foi fundamental para abrir as portas
da cultura grega para o cristianismo e criar uma base de entendimento entre estes
dois mundos. Aqueles que se converteram ao cristianismo precisavam compreender
a nova doutrina, e os Padres Apostólicos proporcionaram esta compreensão através
dos seus escritos (RENNER, 2016, p. 37-38).
O primeiro Padre Apostólico que podemos citar é Clemente de Roma (30-100 d.C.),
o qual foi colaborador de Paulo e bispo de Roma no final do século I d.C. Na carta
aos Filipenses, Paulo dá testemunho dele: “Também a ti, leal companheiro, peço que
as ajudes, pois elas lutaram comigo na causa do evangelho, junto com Clemente e
meus outros colaboradores…” (Fil 4,3). De acordo com Irineu de Lião, Clemente foi o
terceiro sucessor de Pedro na condução da Igreja de Roma. Seu principal escrito foi a
chamada “Primeira Epístola de Clemente”, de 95 d.C., tendo como destinatária a igreja
de Corinto. A preocupação central da carta era a organização eclesiástica (RENNER,
2016, p. 38-39).
Inácio de Antioquia (35-108 d.C.) foi bispo da cidade de Antioquia da Síria, mas foi
martirizado em Roma pelo imperador Trajano (97-117 d.C.). Provavelmente ele conheceu
alguns dos apóstolos. Escreveu várias cartas: aos Efésios, aos Romanos, a Filadélfia,
e Esmirna, a Trálias, a Magnésia e a Policarpo, seu amigo. Em sua teologia, Inácio
dava ênfase à encarnação de Jesus, contra o gnosticismo, que estava se difundindo
na época. Para o gnosticismo, de fato, a encarnação de Cristo era apenas aparente.
Inácio também pregava o arrependimento dos hereges, a prática do bem aos cristãos,
e alertava a todos sobre as falsas doutrinas que se infiltravam na Igreja (RENNER,
2016, p. 39-40).
Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.) foi discípulo do apóstolo João, segundo a
tradição. Além disso, ele teria sido instituído bispo da Ásia pelos próprios apóstolos.
Na Igreja de Esmirna, escreveu várias cartas às comunidades e a outros bispos. A
única carta que chegou até nós foi a sua Epístola aos Filipenses (110 d.C.), na qual
Policarpo trata da fé em Cristo e exorta os cristãos à vida virtuosa e às boas obras. Do
ponto de vista doutrinário, Policarpo combateu a doutrina de Marcião, o qual negava
o valor do Antigo Testamento para os cristãos (RENNER, 2016, p. 40).
ensinada e praticada. A salvação é a recompensa pelas boas obras dos seres humanos,
e a condenação é a punição pelas ações más. Essa doutrina acaba criando a imagem
de um Deus juiz diante do qual o ser humano deve ter medo. Para Tertuliano, Cristo
é o mestre que proclama a nova lei, fortalecendo a vontade do ser humano para que
possa escolher o caminho do bem (RENNER, 2016, p. 53-54).
Com certeza uma das principais contribuições de Tertuliano está na doutrina sobre
a Trindade Divina. Ele combateu diversas heresias neste campo, como aquela de
Praxeas, para o qual Deus era um só e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram
simplesmente “máscaras” usadas por este Deus ao longo da história, não pessoas
divinas. Para Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espírito são pessoas divinas, inseparáveis,
mas distintas. As três pessoas da Trindade são Deus desde sempre, e agem sempre
unidos. Tertuliano também combateu o modalismo: os modalistas afirmavam que o
Pai, o Filho e o Espírito são simplesmente modos diferentes da mesma pessoa divina.
Ao contrário, Tertuliano insiste que o Pai, o Filho e o Espírito são diferentes pessoas
da mesma Trindade divina. No entanto, ele admite uma subordinação do Filho e do
Espírito Santo ao Pai. Mais tarde, a Igreja irá afirmar que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são da mesma natureza, sem superioridade de um sobre os demais (RENNER,
2016, p. 54-55). Porém, é preciso reconhecer que Tertuliano foi um dos primeiros
autores cristãos a teorizar a Trindade, então ainda não havia uma definição oficial da
Igreja a este respeito.
Outro importante apologista foi Justino Mártir (100-165 d.C.). Ele nasceu na cidade
de Siquém, filho de pais pagãos, e na mesma cidade foi martirizado no ano 165
d.C. Justino era um filósofo platônico, mas dava grande importância também ao
pitagorismo e ao aristotelismo. Para ele, a filosofia não contém toda a verdade, por
isso é preciso dar prosseguimento à reflexão na busca constante da verdade. Justino
criou uma mediação entre a filosofia e o pensamento cristão através do conceito de
Logos: para os gregos, o Logos é o princípio mediador entre o mundo das ideias e
o mundo concreto; para o evangelho de João, o Logos é Cristo, sabedoria de Deus.
Colocando estes dois princípios lado a lado, Justino afirma que todos aqueles que
tentaram viver de acordo com o Logos, mesmo antes da vinda de Cristo, poderiam ser
considerados cristãos de alguma forma. Os autores cristãos posteriores rejeitaram
essa ideia. Justino também escreveu Apologias aos imperadores Antonio Pio e Marco
Aurélio, exortando-os a serem justos com os cristãos; e escreveu o “Diálogo com
Trifão”, defendendo que Jesus é messias (RENNER, 2016, p. 56-57).
de Deus. A graça perdoa os pecados, regenera e cria nova vontade no ser humano,
de modo que ele possa escolher o bem e rejeitar o mal (RENNER, 2016, p. 88-90).
ANOTE ISSO
5.3.1 Bíblica
No início da Patrística, no século II, a Bíblia ainda estava sendo formada: somente
em 1442, com o Concílio de Florença, teremos uma definição final de todos os livros
que compõem o cânone bíblico. Sendo assim, a patrística não só refletiu sobre os
textos bíblicos, como também contribuiu de forma decisiva para a definição dos livros
inspirados. Toda reflexão teológica elaborada pelos Padres da Igreja é essencialmente
bíblica. A Bíblia (isto é, aquilo que conheciam da Bíblia) era a principal fonte da teologia
e da vida eclesial no período patrístico (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 119).
A leitura bíblica dominante durante a patrística é a interpretação simbólica.
Nesta forma de interpretar, confluem as tradições hebraicas e helenísticas. Com o
neoplatonismo, surgiu a leitura analógica: analogia vem do grego, an-agogé, que significa
“conduzir para cima” – no platonismo, é a elevação do espírito às realidades celestiais.
Para os Padres da Igreja, a analogia corresponde ao sentido espiritual ou místico
das Escrituras. Da interpretação simbólica ou analógica, passa-se à hermenêutica
alegórica: interpretação das imagens do texto bíblico que vai além do sentido original.
Na interpretação alegórica, o sangue nos umbrais das portas dos israelitas (Ex 12) se
torna prefiguração do sangue de Cristo na cruz; as águas do Mar Vermelho se tornam
símbolo das águas do batismo (Ex 14), e assim por diante (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 119-120).
5.3.2 Litúrgica
(reflexão sobre a Revelação) com o falar para Deus (liturgia). O rito litúrgico é a teologia
em ação, a qual representa simbolicamente a Palavra de Deus. De fato, a teologia dos
Padres nasceu e chegou até nós como explicação dos mistérios vividos na liturgia.
Aqueles que se convertiam ao cristianismo, primeiro faziam experiência da celebração
dos sacramentos (especialmente o batismo), e só depois recebiam uma catequese
sobre o significado daquela experiência (mistagogia). A liturgia já estava organizada
como uma expressão completa da fé quando a reflexão teológica começou a se
desenvolver (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).
A relação entre a liturgia e a teologia se dá, na patrística, em mão dupla: a liturgia
gera teologia, e a teologia se expressa na liturgia. De fato, na celebração litúrgica
nasce a homilia, da qual provém a exegese dos textos bíblicos. Por isso a liturgia é
um locus theologicus para os Padres da Igreja: ela é a principal expressão de fé da
Igreja. Por sua vez, a teologia desemboca na expressão de louvor e adesão a Deus,
transformando-se novamente em liturgia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).
A reflexão teológica dos Padres está centrada em Cristo, pois para eles Cristo é o
centro do próprio cosmos: à imagem do Verbo encarnado e por meio dele, Deus criou
o universo e os seres humanos. Se Cristo é o centro, a Igreja está intimamente unida
a Ele, em uma realidade mistérica. Unindo estes dois aspectos, podemos dizer que
a pessoa de Jesus Cristo, em sua relação com a Igreja, é a principal chave de leitura
teológica da patrística (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).
O estudo da Bíblia, na patrística, não tinha o estatuto científico da exegese moderna,
mas se realizava no contato com a comunidade eclesial e era a ela destinado. As
homilias, as cartas e os ensaios eram voltados para a Igreja. A reflexão teológica
estava fortemente ligada à vida concreta das pessoas e das comunidades. A Bíblia
era interpretada na Igreja e por ela. Assim aconteceu, inclusive, a definição do cânone
bíblico: a comunidade eclesial se reconhece nos livros bíblicos que ela mesma aceita
como inspirados, e se sente responsável pela correta conservação e transmissão da
mensagem de fé ali contida. Neste sentido, a Bíblia pertence à Igreja (pois foi gerada
dentro da vida eclesial), e o centro da Bíblia é Cristo. Por isso, Cristo e a Igreja são
elementos essenciais da reflexão teológica patrística (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121-
122).
Uma das principais tarefas da patrística foi inculturar a fé cristã no mundo helenista.
A Igreja precisava estabelecer um diálogo com a civilização grega e com a cultura
intelectual. Era preciso ter uma grande criatividade para apresentar o conteúdo da
Revelação bíblica com uma linguagem filosófica. As principais correntes filosóficas
no período da patrística eram o neoplatonismo e o estoicismo. Os Padres Capadócios
no Oriente, e Agostinho no Ocidente, são os grandes representantes do diálogo entre
Sagrada Escritura, categorias cristãs e neoplatonismo. Esta ousadia de reler e aprofundar
os dados da fé cristã, formulados originalmente com categorias hebraicas, traduzindo-
os com uma linguagem filosófica-helenística, é o grande exemplo de criatividade dos
Padres. Não só criatividade: esta foi uma importante inculturação da teologia e do
cristianismo no contexto helenístico da época (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 122-123).
Ao procurar dar respostas a questões de comunidades eclesiais inseridas em diferentes
contextos, a patrística desenvolve uma grande pluralidade de teologias. Os Padres gregos e
os Padres latinos discutem diferentes questões, e cada escola teológica vai acrescentando
novas perspectivas. A patrística é plural, mas sem perder a unidade da fé: a Bíblia como
ponto de partida e a figura de Jesus Cristo como centro unificador. A articulação entre
revelação bíblica, centralidade do mistério de Cristo e a inculturação no mundo filosófico
helenístico permanecem sendo um grande exemplo deixado pelos Padres da Igreja, os
quais deram origem a uma grande pluralidade de reflexões teológicas, sem renunciar à
unidade que existe na Igreja (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 123).
Ao longo desta aula, vimos, antes de tudo, que o contexto histórico no qual se
desenvolveu a patrística era marcado pela expansão do cristianismo, pelo diálogo
com a cultura grega e pela luta contra as heresias. Na segunda parte deste capítulo,
apresentamos a cronologia dos Padres da Igreja de forma bem panorâmica, destacando
as principais fases da patrística: os Padres Apostólicos, que formularam os princípios
cristãos; os Padres Apologistas, que defenderam o cristianismo das acusações feitas
pelos pagãos e lutaram contra as heresias; as Escolas Teológicas, que começaram
a sistematizar a doutrina cristã; e o apogeu com Agostinho de Hipona, cuja teologia
sobre a graça e o batismo foram determinantes para a história do cristianismo. Enfim,
destacamos as principais características da teologia patrística: bíblica, litúrgica, crística-
eclesial e inculturada-plural. Assim conseguimos contemplar um pouco da riqueza da
teologia dos Padres da Igreja.
CAPÍTULO 6
A TEOLOGIA MEDIEVAL
6.1 Contexto
A historiografia considera como Idade Média o período que vai desde a queda do
Império Romano do Ocidente (século V) até a conquista de Constantinopla pelo Império
Turco-Otomano (século XV). Do ponto de vista teológico, a Idade Média começa depois
do silêncio teológico que se instaurou com a morte de santo Agostinho e vai até os
primórdios da Reforma Protestante.
No período da Idade Média, a Igreja Católica passou pelo seu maior crescimento
e expansão. No ano 384, o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano,
com o Edito de Tessalônica, do imperador Teodósio I. Assim acabou o período de
perseguição contra os cristãos e a necessidade de defender a fé, que caracterizaram
parte da patrística. Com as conversões em massa o número de cristãos crescendo
exponencialmente, houve uma diminuição do fervor e o desaparecimento do martírio.
Diante deste quadro, os cristãos que pretendiam manter o martýrion “testemunho”
decidiram abandonar o convívio social para se recolher em eremitérios e mosteiros.
A instituição monástica surge no final da Patrística vai caracterizar todo o período
medieval. O mosteiro se tornou, assim, não só o centro espiritual, mas o centro
intelectual e cultural da Idade Média (RENNER, 2016, p. 103-105).
Durante a Idade Média aconteceu a primeira grande ruptura dentro da Igreja Católica.
Apesar da divergência de pensamentos e visões, a Igreja se manteve unida, em uma única
organização, até o século X. Em 809 aconteceu o sínodo de Aachen, que acrescentou
no Credo a expressão latina filioque “e do filho”, a respeito da procedência do Espírito:
“creio no Espírito Santo… que procede do Pai e do Filho”. A Igreja do Oriente não aceitou
esse acréscimo. Para a teologia oriental, inclusive para os Padres da Igreja Oriental, o
Espírito procede do Pai através do Filho, mas não procede do Filho. Sendo assim, em
1054 selou-se a ruptura entre a Igreja do Oriente e do Ocidente. Alguns historiadores
consideram que esta divergência doutrinária foi apenas um pretexto para a separação
entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente, mas a ruptura vinha se consolidando ao
longo dos séculos por vários fatores teológicos, doutrinários e políticos – como o não
reconhecimento da autoridade de Roma (RENNER, 2016, p. 106-109).
Para a Igreja Católica, os séculos VII a X foram um período de crise. A cultura greco-
romana estava sucumbindo, diante das invasões bárbaras no Ocidente e da ascenção
do islamismo no Oriente. A Igreja vivia uma estagnação teológica e espiritual. A teologia
praticada nos mosteiros e nas escolas episcopais, em ambiente rural e feudal, era
estática e conservadora, consistindo basicamente em copiar e compilar as obras dos
antigos. Também se exerciam comentários à Sagrada Escritura, tendo por base os
textos patrísticos, muitas vezes recortados e retirados de seu contexto. Em geral, a
teologia havia perdido o seu vigor (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 127).
Nos séculos X a XII, aconteceram mudanças significativas na sociedade e na Igreja.
Surgiram as comunas (cidades emancipadas), as corporações, as ordens religiosas
unificadas (Beneditinos, Carmelitas, Agostinianos, etc.) e as ordens mendicantes
(Franciscanos, Dominicanos, etc.). Trata-se de um período de renovação espiritual,
que provoca uma renovação também da teologia. Além do aspecto espiritual, este é
um período de grandes iniciativas no campo cultural e intelectual: surgem, por exemplo,
as primeiras universidades na Europa (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 128). Todo este clima
de renovação espiritual e cultural vai originar uma nova forma de fazer teologia, que
nós chamamos de Escolástica.
uma mera repetição, mas voltou a ter capacidade de questionar ideias pré-definidas
em busca de novos esclarecimentos (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 128).
A adoção do método dialético criou um conflito entre o que era “tradicional” e
“inovador”. A teologia monástica representava a tendência tradicional e conservadora.
Bernardo de Claraval (1090-1153), por exemplo, criticava a pretensão de penetrar o
mistério divino por meio da dialética e levou adiante a teologia mística. A inovação
ficou por conta dos teólogos escolásticos, como Pedro Abelardo (1079-1142), que
considerava a dialética como o caminho para se chegar à verdade, sendo que nada
era infalível, exceto as Sagradas Escrituras. Mas quem consagrou a dialética como
método foi Pedro Lombardo (1100-1160) em seu Livro das Sentenças. Nesta obra
prima da Escolástica, Lombardo reuniu textos da Bíblia e da Patrística, classificando-os
em grandes temáticas: Trindade, Criação e Pecado original, Redenção, Sacramentos e
Escatologia. As sumas teológicas elaboradas a partir de então adotaram este esquema
temático de Lombardo. O seu método consistia em recolher os textos dos Padres da
Igreja, aparentemente contraditórios, e buscar uma conciliação por meio da dialética
para chegar a conclusões racionais dedutíveis (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 88).
Anselmo de Aosta (1033-1109), também conhecido como Anselmo de Cantuária,
buscou unir a teologia monástica agostiniana e o pensamento especulativo dialético.
Para ele, a fé é absoluta, mas a fé busca a inteligência. A dialética pode transformar
uma verdade na qual já se acredita em uma verdade sabida, pensada e expressa. Ele
propõe passar do “entender para crer” ao “crer para entender” (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 128-129). Anselmo pode ser considerado o fundador do método racional na teologia,
que consiste em buscar a inteligência da fé (como vimos no tópico 1.2). Trata-se de
descobrir a conexão entre os vários mistérios da fé cristã e estabelecer os argumentos
teológicos com critério e lógica (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 86).
Todavia, a teologia oriental não assimilou a dialética. O aspecto contemplativo e
simbólico permaneceram ao centro dos teólogos do Oriente, privilegiando a dimensão
misteriosa e o silêncio, pois nenhuma teologia humana seria capaz de abarcar a
transcendência divina. O Oriente levou adiante a teologia apofática, ou seja, a teologia
negativa: dizer o que Deus não é, pois nenhuma descrição positiva é capaz de conter
todo o seu mistério. Do conflito teológico passou-se ao conflito eclesiástico, que
culminou com uma troca de excomunhões entre o patriarca de Constantinopla, Miguel
Cerulário, e o papa Leão IX, em 1054, selando o cisma entre Igreja do Oriente e do
Ocidente (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 129).
Um dos temas mais conhecidos da teologia de Tomás de Aquino são as cinco vias
que provam a existência de Deus: motor imóvel, primeira causa eficiente, necessidade
absoluta, perfeição absoluta e suprema inteligência. Para ele, o nosso conhecimento
sobre Deus é imperfeito: podemos chegar à conclusão de que Deus existe, mas não
podemos descrever o que Ele é. Só a Revelação nos diz quem é Deus, mas a razão pode
provar a sua existência. A primeira via do argumento teológico de Tomás de Aquino é
o motor imóvel: tudo no universo está em movimento, mas cada ser é movido por um
outro; retrocedendo até o infinito, chegamos em um ser que move todos os outros,
mas não é movido por ninguém. A segunda via é chamada de primeira causa: cada
efeito tem uma causa; retrocedendo novamente ao infinito, chegamos à primeira causa
eficiente que deu origem a todo movimento. A terceira via apresenta a necessidade
absoluta: alguns seres são necessários, outros são possíveis; nenhum ser possível
surge do nada, então é preciso admitir a existência de um ser necessário na origem
de tudo. Em seguida, temos a via da perfeição absoluta: existem graus de perfeição; a
verdade, a bondade e a nobreza do ser humano vieram de um ser ainda mais perfeito,
que só pode ser Deus. E a quinta via é a inteligência suprema: no mundo existe ordem
e finalidade, então deve haver uma inteligência suprema que tudo governa, um divino
arquiteto que ordena todas as coisas (RENNER, 2016, p. 113-115).
Outra doutrina importante de Tomás de Aquino diz respeito à graça divina e à
salvação. Em uma época que enfatizava o mérito humano como modo de se salvar,
Tomás de Aquino afirma que a graça é a obra de Deus na vida dos seres humanos,
conduzindo-os acima da natureza humana para fazê-los participantes da natureza
divina. Portanto, a justificação é fruto da graça de Deus, não mérito humano. Todavia,
a santificação depende do ser humano: a fé e a fidelidade são um compromisso de
vida, um ato de obediência a Deus. A salvação envolve tanto a justificação quanto a
santificação. Pela justificação, Deus nos declara justos e absolvidos; pela santificação,
nos tornamos mais parecidos com Cristo. As duas coisas vão juntas. Um tema
ligado à graça e a questão dos sacramentos, que são portadores da graça divina.
Tomás de Aquino também trouxe uma contribuição importante sobre a Eucaristia: a
transubstanciação significa que a substância do pão e do vinho é transformada em
corpo e sangue de Cristo; a “substância” muda, mas permanecem os “acidentes, ou
seja, as características físicas do pão e do vinho (RENNER, 2016, p. 115-117).
apenas “nomes” ou signos com valor funcional, mas desprovidos de conteúdo objetivo.
A especulação filosófica cede espaço às ciências, que analisam os fatos singulares a
partir de abordagens empíricas. O problema é que a teologia até este momento tinha
usado a filosofia como base de argumentação, sendo assim, acabou ficando sem
chão (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 91-92).
Com o surgimento do nominalismo e a ausência de autores capazes de oferecer
uma resistência consistente dentro da Escolástica, o ambiente teológico mudou
radicalmente. Por um lado, a Escolástica se enfraqueceu, pois não conseguiu ir além
da sua dialética clássica. Por outro lado, surgiu uma nova corrente de pensamento,
de caráter místico, com autores como João Ruysbroeck (1293-1391), Tomas Kempis
(1370-1471), Dionisio (1402-1471) e outros. Tratava-se de uma teologia espiritual, afetiva
e voluntarista, que abriu o caminho para a devotio moderna, ligada ao Humanismo.
Um dos principais representantes desta nova corrente foi Gabriel Biel (1425-1495),
grande influenciador de Lutero (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 91-2).
O Humanismo (século XV) marca o fim da Idade Média e da teologia Escolástica.
A principal proposta do Humanismo é o retorno aos clássicos da literatura grega e
latina. O Humanismo abandonou o método especulativo para se concentrar no estudo
dos textos em si; e transferiu o centro das investigações de Deus ao ser humano:
neste sentido, acabou representando uma atitude anti-escolástica. Mesmo tendo
abandonado o método escolástico, o Humanismo não foi um movimento anti-teológico.
Sua contribuição positiva foi trazer o retorno às fontes: no caso da teologia, inaugurou
o retorno às Sagradas Escrituras, como faziam os Padres da Igreja. As universidades
se engajaram na produção de edições críticas da Bíblia e dos textos patrísticos, na
tradução dos textos originais e nos comentários bíblico-patrísticos. Entre os principais
humanistas cristãos podemos citar Erasmo de Rotterdam (1464-1536), João Fisher
(1459-1535) e Tomás Moro (1478-1535) (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 93-94).
CAPÍTULO 7
A TEOLOGIA DA REFORMA
7.1 Contexto
nossos méritos. Deus declara o pecador justo por causa de Cristo. Da parte sua, o
ser humano deve ser humilde, arrepender-se e pedir a misericórdia de Deus. O canal
para receber a justificação é a fé em Cristo Jesus. A diferença é que, para a Igreja, o
canal da justificação eram os sacramentos. Lutero se opõe a essa visão e afirma que
a justificação é oferta gratuita de Deus, independente do mérito e da ação humana.
Lutero admite que as boas obras são fruto da justificação, mas o foco não está
nas obras da justiça, e sim na fé em Cristo e na misericórdia do Pai. Para ele, o ser
humano é corrupto em sua totalidade, por causa do pecado original. Por outro lado,
quando ocorre a justificação, o homem se torna inteiramente justo e, ao mesmo
tempo, inteiramente pecador. Isso acontece porque a graça é dom totalmente gratuito
de Deus, sem a participação humana, para Lutero (RENNER, 2016, p. 135-136; 146).
que Deus tem razão e nós somos pecadores, mas só a graça de Deus pode perdoar,
não as obras de penitência humana (RENNER, 2016, p. 139-141).
Quanto aos sacramentos, Lutero e outros reformadores consideravam apenas
o batismo e a eucaristia como instituídos pela Bíblia. Para ele, o fundamental no
sacramento é a presença da Palavra unida ao sinal. Sendo assim, ele rejeitou a eficácia
do sacramento por si só (ex opere operato), pois a eficácia estaria na Palavra de Deus,
não na ação sacramental realizada pelos homens. A fé, mesmo sem os sacramentos,
seria capaz de trazer a salvação. Os sacramentos, então, seriam apenas um sinal
visível da graça de Deus, mas esta graça é recebida pela fé, não pelo sacramento
em si. O sacramento exige a fé: o batismo seria a representação litúrgica da doutrina
da justificação pela fé. Mesmo assim, Lutero não rejeita o batismo de crianças, ao
contrário de outros reformadores, como os anabatistas. Para Lutero, mesmo que a
criança ainda não possa ter fé, o batismo infantil seria um sinal visível da imerecida
justificação pela graça de Deus. Quanto à eucaristia, Lutero rejeitou a doutrina da
transubstanciação (mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo
e sangue de Jesus Cristo na consagração) defendida pelos católicos. Para Lutero,
a substância do corpo e sangue de Cristo se une à substância do pão e do vinho
durante a consagração, permanecendo unidos unicamente durante a celebração da
Ceia Eucarística (RENNER, 2016, p. 143-145).
Zuínglio se afasta de Lutero, para o qual a ideia de lei estava muito próxima à doutrina
da justificação pelas obras.
Quanto aos sacramentos, Zuínglio inicialmente defendia o batismo apenas
para os adultos, que teriam plena consciência e poderiam professar sua fé. No
entanto, com o tempo acabou admitindo o batismo infantil, pois percebeu que os
sacramentos aumentam e ajudam a fé, levando a pessoa à obediência a Cristo. O
batismo infantil seria, então, a iniciação da vida de fé e de discipulado (RENNER,
2016, p. 151).
João Calvino nasceu na França, mas estudou e desenvolveu sua atividade na Suíça.
Ele faz parte da segunda geração de reformadores, sendo muito influenciado por Lutero
e Zuínglio. Em 1559 ele fundou, em Genebra, a Academia, um centro educacional para
dar acesso à instrução a todas as pessoas que assim quisessem. Deste modo, pôde
levar suas ideias teológicas e a leitura da Bíblia para o povo em geral. Calvino também
trouxe uma nova ideia sobre o sentido do trabalho: na Idade Média, o trabalho era
visto como castigo divino; para Calvino, o trabalho era parte da vocação divina, que
traz dignidade ao ser humano e glorifica a Deus (NATEL, 2016, p. 33-34). No campo
religioso, entre outras coisas, ele retirou todas as imagens da sua igreja, pois estava
convencido que esta era uma forma de idolatria.
Em continuidade com os demais reformadores, também Calvino afirmava a
centralidade da Sagrada Escritura, mas acrescentou a defesa da inspiração verbal
das Escrituras: cada palavra da Bíblia teria sido inspirada por Deus exatamente
como foram escritas. Além disso, para Calvino, a mente humana foi tão corrompida
pelo pecado que somente podemos entender a Bíblia quando o Espírito Santo abre
a nossa mente. Juntando estes dois aspectos, a teologia de Calvino considera, por
uma lado, a objetividade da revelação nas Escrituras e, por outro lado, o testemunho
confirmatório e iluminador do Espírito Santo para os cristãos de cada tempo
(RENNER, 2016, p. 152).
Assim como Zuínglio, Calvino também desenvolveu a doutrina da predestinação.
Para ele, tudo o que acontece está debaixo da soberania de Deus. O mal só pode
acontecer quando Deus o permite, por um desígnio misterioso da sua vontade, que
está longe da nossa compreensão. Neste sentido, alguns são predestinados à salvação
eterna, outros à condenação. Aqueles que decidem seguir a Cristo mostram que foram
escolhidos por Deus; e aqueles que recusam seguí-lo é porque não foram escolhidos.
Isso não significa que Deus seja injusto, mas que a sua justiça está muito além da
nossa compreensão (RENNER, 2016, p. 153).
Enquanto a Igreja católica colocava lado a lado a Bíblia e a Tradição como duas fontes
em questões de fé, os reformadores insistiram no valor da Bíblia acima das demais fontes
e normas para a fé e as práticas cristãs. Também modificaram levemente o cânone
bíblico, pois excluíram os livros “apócrifos” (Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, 1
e 2 Macabeus e Baruque) entre aqueles considerados inspirados, igualando o cânon
do AT à Bíblia Hebraica. O movimento de retorno ao texto bíblico já tinha iniciado com
Erasmo de Roterdã, que havia publicado pela primeira vez o NT em grego, acompanhado
por sua tradução em latim. Em 1522, Lutero levou adiante este projeto, traduzindo
a Bíblia para o alemão. A partir de então, várias novas traduções foram surgindo na
Europa, e o povo teve acesso à Bíblia, que até então era propriedade quase exclusiva
dos clérigos. Além do acesso popular à Bíblia, a liberdade para interpretá-la sem o
intermédio de autoridades eclesiásticas fez toda a diferença (NATEL, 2016, p. 96-97).
Para Lutero, por exemplo, a Bíblia deve ser lida em sua totalidade, sempre à luz de
Cristo. Lutero não exclui a tradição, mas ele insiste que somente a Bíblia tem o caráter
de inerrância: as igrejas, os papas, os concílios, os teólogos podem errar, mas a Bíblia
não pode errar, pois é inspirada por Deus do início ao fim. A obediência religiosa é
devida somente a Deus e à sua Palavra. Visto que a Bíblia contém a Palavra de Deus,
Lutero defendia que tudo aquilo que Deus considera necessário para o seu povo se
encontra na Bíblia: aos seres humanos compete ler e praticar o que ali está escrito.
Neste mesmo sentido, Calvino afirmou que o principal papel do pastor/ministro é pregar
a Palavra de Deus. A própria meditação da Bíblia era considerada, por ele, como um
verdadeiro culto a Deus (NATEL, 2016, p. 100-104).
Para os reformadores, toda doutrina que afasta Cristo do centro não é doutrina
cristã. Lutero, particularmente, afirmava que o coração das Escrituras é o Evangelho,
ou seja, a boa nova da vitória de Cristo sobre a morte e o pecado. O Evangelho de
Cristo é o centro da Escritura, portanto é autoridade máxima da vida cristã. Em Jesus
Cristo, Deus se entregou totalmente por nós, pela nossa salvação. No entanto, não
basta conhecer esta doutrina da expiação, pois até mesmo os demônios conhecem
as teorias, segundo Lutero. O que realmente conta é nossa relação pessoal com
A ideia do sola gratia nasceu antes da Reforma Protestante, com Jacques Lefèvre
(1455-1536), o qual afirmava que só pela graça o pecador pode ser salvo, tendo como
base as cartas de Paulo. Lutero afirmava que Deus só acolhe quem está abandonado,
só cura quem é enfermo, só devolve a vista para quem é cego… e só dá a graça para
quem é pecador. Quem se considera santo não abre espaço para a graça e não pode
ser salvo. Só quem se reconhece pecador pode receber a graça, e para a teologia da
Reforma todos somos miseráveis pecadores diante de Deus. Não há mérito humano
que possa ser colocado diante de Deus para exigir a salvação. Só pela graça somos
salvos. A salvação é um favor imerecido que o ser humano recebe de Deus (NATEL,
2016, p. 112-114).
Romanos, Lutero afirmava que nós por nós mesmo somos apenas pecadores, mas
em nosso relacionamento de fé em Cristo somos justos (BARBOSA, 2022, p. 30-42).
A ideia de que tudo deve ser feito somente pela glória de Deus era uma oposição
à glória terrena, almejada pela Igreja católica quando o movimento da Reforma teve
início. A busca da glória terrena era evidenciada na relação entre Igreja e Estado,
quando as autoridades eclesiásticas faziam de tudo para manter seu poder temporal
e seu domínio econômico. Ao perder de vista a centralidade das Escrituras, de Cristo
e da fé, restava somente o interesse humano. Calvino foi o reformador que mais
desenvolveu a ideia da glória de Deus. Para ele, a miséria humana revela a majestade
divina. Deus é soberano no culto, na vida e em tudo o que fazemos: todo o crédito
deve ser direcionado a Ele, não a nós. Nós devemos nos preocupar apenas com o
Reino de Deus e a sua vontade, não com os impérios terrenos e a glória dos homens.
Para a Reforma protestante, em geral, o princípio de Soli Deo Gloria também significa
afirmar a nulidade de todos os ídolos; negar o culto às imagens e aos santos; ter
apenas Jesus como mediador; eliminar a veneração das relíquias; enfim, superar tudo
aquilo que na Igreja poderia tirar a verdadeira centralidade de Deus e a sua glorificação
(BARBOSA, 2022, p. 66-80).
Para concluir, vimos neste capítulo que a Reforma foi preparada por um longo
período, que inclui a decadência moral de parte do clero da Igreja católica, a crise do
papado, a ascensão da burguesia, o humanismo e o Renascimento cultural, o retorno às
fontes (especialmente à Bíblia como fonte da teologia), entre outros fatores. Também
apresentamos brevemente a história e a teologia dos principais reformadores: Lutero
na Alemanha, com destaque à justificação pela graça; Zuínglio e Calvino na Suíça, com
destaque para a centralidade da Bíblia e a teoria da predestinação. E na última parte,
destacamos os principais elementos da teologia da Reforma: a Sagrada Escritura,
Cristo, a graça, a fé e a glória de Deus no centro da vida das Igrejas. Os efeitos da
teologia da Reforma serão observados ainda nos próximos capítulos.
CAPÍTULO 8
A TEOLOGIA NA ERA MODERNA
Nos séculos XVIII e XIX, os avanços continuaram de forma ainda mais radical: o
capitalismo se consolida; a revolução francesa traz novos valores; a revolução industrial
modifica a vida na cidade, e a revolução agrícola transforma o modo de produção no
campo; o Iluminismo domina o ambiente filosófico, com grandes filósofos como Kant
e Hegel; o materialismo histórico de Marx encoraja novas revoluções sociais; entre
outros fatores. A teologia, em geral, não conseguiu acompanhar o acelerado processo
de mudança de mentalidade e colocou-se em uma posição de defesa, reafirmando
o velho sistema aristotélico-tomista como sendo a única “filosofia perene”. Para não
se contaminar com a modernidade, a teologia católica buscou restaurar a teologia
medieval com a neoescolástica, que atingiu o ponto mais alto no Concílio Vaticano I,
ao proclamar o dogma da infalibilidade papal (ver tópico 3.3.2). Permanecendo rígida
em sua postura combativa e na nostalgia de uma cristandade ultrapassada, a teologia
católica deste período negou-se ao diálogo com o mundo moderno (LIBANIO-MURAD,
2005, p. 136).
A teologia católica dos séculos XVI-XVIII caracterizou-se, antes de tudo, pela sua
submissão ao Magistério. Dentro da Igreja, o Magistério nunca foi tão potente como
nesta época, ao mesmo tempo que nunca foi tão questionado fora da Igreja. A teologia
tornou-se como uma arma do Magistério para combater as heresias e eliminar o
dissenso no interior da Igreja. Sua tarefa principal era expor, definir, defender, provar
e confirmar a fé ortodoxa, além de examinar e condenar os erros. Sua função de
pesquisa e aprofundamento genuíno da fé cedeu espaço para a exposição autoritativa
da doutrina. Os teólogos passaram a se dedicar à elaboração do catecismo católico
moderno, buscando garantir a homogeneidade, a ortodoxia e a clareza. O sentido
original da teologia, ou seja, a inteligência da fé acabou sendo substituída pelo rigor
da ortodoxia e a definição doutrinal. Os principais destinatários da teologia eram os
clérigos. O Concílio de Trento regulamentou a formação do clero, tornando obrigatório
o estudo da teologia nos seminários. A iniciativa sem dúvidas era positiva, mas este
foi o início de um longo ciclo no qual a teologia era elaborada exclusivamente por
sacerdotes para ser ensinada quase exclusivamente para futuros sacerdotes (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 136-137).
Na era moderna, a teologia desenvolveu-se especialmente em três grandes áreas:
fundamental, dogmática e moral. A teologia fundamental era, essencialmente, uma
nova apologética, com objetivo de mostrar a credibilidade do testemunho de Jesus
e da Igreja, além de fundamentar racionalmente a necessidade do cristanismo
católico. A moral se estruturava a partir da lei (divina, natural e positiva) e dos dez
mandamentos. E a teologia dogmática adotou o método regressivo: o ponto de partida
é uma tese proveniente dos ensinamentos do Magistério; procura-se provar que este
ensinamento encontra-se na Escritura, além de ser expresso na teologia patrística e
medieval; completa-se com os argumentos racionais da “filosofia perene” de Tomás
de Aquino (momento especulativo). Deste modo, a doutrina católica era revestida de
razoabilidade e coerência com as verdades de ordem natural e sobrenatural (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 137).
Ibáñez-Mendoza (1982, p. 97-102) divide a teologia católica dos séculos XVI-XVII em
três novas vertentes teológicas: teologia positiva, teologia escolástica e teologia moral:
a) Teologia positiva: estudo exegético da Sagrada Escritura e da interpretação feita
pelos Padres da Igreja, para responder aos protestantes. Surgem novas edições
críticas da Bíblia e vários comentários bíblicos, como o comentário da inteira
Bíblia do jesuíta Cornélio a Lápide, o comentário aos evangelhos de João de
Maldonado e o comentário ao Cântico dos Cânticos de Frei Luís de Leão. Entre
os estudiosos da Patrística destacam-se os jesuítas Pedro Canísio, Roberto
Belarmino e Dionísio Petavius.
ANOTE ISSO
diálogo entre Igreja e mundo moderno, um diálogo que poderia ser favorável para ambos.
Além disso, muitos sacerdotes e missionários se dedicavam com exemplar ardor à
pastoral e à evangelização, mas sentiam que a teologia aprendida nos seminários
estava distante da realidade vivida no dia a dia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 138).
Não é possível apresentar nestas páginas todos os grandes teólogos dos séculos
XIX e XX, por isso trazemos apenas quatro representantes que marcaram a teologia
moderna e prepararam a teologia contemporânea: Barth, Brunner, Bultmann e Rahner.
Os três primeiros são teólogos ligados à Reforma, enquanto Rahner é um dos maiores
representantes da teologia católica do último século.
as suas reflexões. Assim, descobriu que a Bíblia não contém pensamentos corretos
do ser humano sobre Deus, mas pensamentos corretos de Deus sobre o ser humano.
Contrariando a teologia liberal da época, Barth defendeu a tese da inspiração verbal
das Escrituras (Deus inspirando cada palavra). Para ele, a Bíblia está acima da razão, e
a teologia não poderia se basear em nada além da Bíblia. Todavia, para Barth, a Bíblia
não é a Palavra de Deus em si mesma, mas é um instrumento da Palavra de Deus. Ou
melhor, a Palavra de Deus é um acontecimento, e o centro deste acontecimento é a
pessoa de Jesus Cristo. Neste sentido, a Bíblia deveria ser a única fonte da teologia e
da pregação da Igreja, sempre colocando Cristo no centro (RENNER, 2016, p. 161-163).
é Deus: nenhuma definição teológica pode dar uma palavra final sobre isso (RENNER,
2016, p. 162-164).
Também Brunner pertencia à Igreja Reformada da Suíça e atuou por oito anos
como pastor. Estudou teologia na Alemanha e lecionou na Inglaterra, na Suíça, no
Japão e nos Estados Unidos. Escreveu especialmente sobre teologia dogmática e
sistemática. Para ele, a essência do cristianismo está no encontro de Deus com a
humanidade. Para conhecer a Deus não basta a razão, é preciso a revelação. O Deus
que conhecemos é o Deus que se revela, não o deus produzido pelos filósofos. A
verdade não é encontrada pelo pensamento e pela filosofia, mas pelo encontro com
Deus, que torna o ser humano responsável. Para Brunner, a revelação tem um caráter
pessoal: não é somente uma informação sobre Deus, mas a presença pessoal de Deus
que estabelece uma relação com o ser humano. A Bíblia é somente uma revelação
indireta de Deus, pois a única revelação direta é a pessoa de Jesus Cristo (RENNER,
2016, p. 165-167).
Brunner desenvolveu uma teologia dialética ou teologia da crise: quando o ser
humano se encontra com Deus, ele tem duas opções: dizer “não” a Deus e caminhar para
a morte espiritual; ou dizer “sim” a Deus e deixar-se transformar em uma criatura nova.
É precisamente no momento de crise que o ser humano precisa tomar esta decisão.
Seguindo Martin Buber, Brunner distingue o conhecimento de objetos (objetivo) e o
conhecimento de pessoas (subjetivo). Para ele, a Bíblia está no campo do conhecimento
subjetivo, mesmo que as igrejas tenham tratado do conhecimento bíblico como objetivo.
Outros temas presentes na teologia de Brunner são: a ressurreição, a centralidade de
Cristo na salvação, a necessidade da fé pessoal em Jesus, a igreja como comunhão,
não como instituição, e a Bíblia como regra de ação e de fé. Todavia, ele rejeitou
algumas doutrinas cristãs como a ascensão, o inferno e o nascimento virginal de
Jesus (RENNER, 2016, p. 167-168).
CAPÍTULO 9
A TEOLOGIA NA
CONTEMPORANEIDADE
Não é possível apresentar a teologia do último século, até os dias de hoje, em uma
linha reta. Na verdade, diversas teologias se desenvolveram paralelamente, às vezes
dialogando entre si, outras vezes seguindo cada uma a sua própria estrada. Nesta
seção, vamos estudar brevemente pelo menos quatro correntes teológicas, deixando
claro desde já que cada uma destas grandes correntes poderia ser subdividida em
muitas linhas teológicas específicas. A primeira grande corrente é a teologia católica,
que passou por um processo de renovação com o Concílio Vaticano II; depois temos
a teologia evangélica, derivada da teologia protestante, mas com novos enfoques;
a teologia escatológica, que é uma nova tendência e reúne teólogos de todas as
confissões cristãs; e a teologia pentecostal, que parte da ideia de um reavivamento
no Espírito Santo e está presente nas novas igrejas cristãs, mas também nas igrejas
históricas.
ANOTE ISSO
A mais influente obra de Moltmann foi Teologia da Esperança, de 1964. Neste livro,
Moltmann apresenta a revelação como sendo promessa divina, e a salvação como
obra histórica de Deus pertencente ao futuro. O Reino de Deus está no centro das suas
reflexões teológicas, um reino que só Deus pode concretizar em definitivo, e que o fará
no futuro escatológico. Mesmo assim, o poder futuro de Deus irrompeu na história,
segundo o teólogo alemão, criando uma nova era de paz e justiça no presente. Deus
está presente na história, porém esta história caminha para um término glorioso que se
realizará plenamente apenas no futuro escatológico. Para Moltmann, a ressurreição de
Cristo é a garantia de tudo isso, porque é uma antecipação concreta do reino de Deus,
que se realizará plenamente quando todos os mortos se levantarão e as promessas
divinas de novo céu e nova terra serão cumpridas (OLSON, 2003, p. 978-979).
Pannenberg é conhecido especialmente por sua publicação de cristologia intitulada
Deus e homem (1964). Nesta obra, ele afirma o caráter verificável do evento histórico da
ressurreição corpórea de Jesus Cristo, contra os teólogos liberais, que consideravam
a ressurreição corpórea como um mito. Na mesma linha de Moltmann, Pannenberg
interpreta a ressurreição de Cristo como um evento escatológico, uma antecipação do
futuro reino de Deus. Para ele, Deus existe sobretudo no futuro, mas entra no presente
como um poder que irrompe na história antes do tempo, ou melhor, antes do Reino
de Deus. Em outras palavras, Deus se relaciona com a história humana, mas não
depende dela (OLSON, 2003, p. 979-980).
Para a teologia escatológica, Deus se relaciona com o mundo e, mas sem dominá-
lo, pois Ele deu liberdade a este mundo. Todavia, este mundo em que vivemos não é
ainda o Reino de Deus, por isso aqui existe o mal – e os teólogos deste período falavam
de um mal bem concreto, como o holocausto. Deus oferece à história humana a sua
própria liberdade, e sobre com a humanidade e pela humanidade. Deus não é indiferente
à história, tanto que enviou o seu Filho para antecipar o futuro Reino de Deus; e o
Espírito Santo continua agindo no presente para manifestar o amor de Deus e para
liberar a força espiritual da esperança na história humana. Todavia, somente no fim
dos tempos, Deus virá ao mundo para aniquilar todo mal e todo pecado, inaugurando
definitivamente o seu reino (OLSON, 2003, p. 980-981).
Ao longo de toda a história, a teologia sempre dialogou com a cultura do seu tempo.
Todavia, na primeira parte do período moderno (séculos XVI-XVIII), a teologia se fechou
ao diálogo, especialmente a teologia católica, por medo de se contaminar com as novas
ideias. O resultado foi a criação de um monólogo: a teologia falando consigo mesma,
sem ser ouvida e sem ouvir as perguntas reais das pessoas. A situação mudou a
partir do século XIX, como vimos na aula anterior: surgiram novas correntes teológicas
que retomaram o diálogo com a modernidade, apesar de algumas reações contrárias
dentro da Igreja católica. No campo protestante, sempre houve mais facilidade em
dialogar com a modernidade, mas também surgiram correntes fundamentalistas
que se isolaram em um mundo separado, como vimos acima. Todavia, olhando para
os últimos séculos, podemos afirmar que a tendência da maior parte das teologias
(católica, protestante, evangélica, etc.) é o diálogo com a modernidade.
O pensamento moderno é marcado pelo conhecimento empírico, diferente do
conhecimento dedutivo da era medieval. Neste sentido, a teologia passou a enfatizar
o aspecto da encarnação de Cristo e a encarnação da sua mensagem, mais do que
a transcendência divina. Deus se dá a conhecer na história do seu povo e fala aos
seres humanos com linguagem humana, através do Verbo feito carne. Há uma virada
antropológica: passa-se a falar de Deus a partir da humanidade de Jesus. A experiência
de Jesus, dos apóstolos e dos demais autores bíblicos adquire uma grande importância
na reflexão teológica historicizada. Antropologia e cristologia começam a andar lado
a lado (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 148-149).
Outra expressão importante da contemporaneidade é a teologia da secularização.
Não que a teologia tenha deixado de lidar com o sagrado, mas passou a olhar para as
realidades seculares com maior atenção. O mundo tal como ele é também passou a
integrar a reflexão teológica: problemas sociais e econômicos, desafios da sociedade,
o meio ambiente, a psicologia humana, etc. As realidades seculares são inseridas,
deste modo, no projeto salvífico de Deus (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 150).
CAPÍTULO 10
TEOLOGIA LATINO-AMERICANA
Caros alunos e alunas, neste capítulo vamos dar continuidade ao tema do capítulo
anterior, ou seja, vamos continuar falando da teologia contemporânea, porém com
enfoque à região latino-americana. Como já vimos no capítulo anterior, a teologia
contemporânea é plural, e isto vale também para a América Latina. Todavia, há uma
forma de teologia que se desenvolveu de forma mais ampla na América Latina, a ponto
de ser considerada por muitos estudiosos como uma “teologia latino-americana”: a
teologia da libertação. Sendo assim, o enfoque deste capítulo será sobre a teologia
da libertação na América Latina. Porém, não esqueçamos que na América Latina
também se desenvolveu uma teologia católica mais tradicional, uma teologia evangélica
e uma teologia pentecostal – das quais já tratamos no capítulo anterior. Portanto,
começaremos este capítulo tratando especificamente da teologia da libertação; depois
acrescentaremos alguns outros elementos essenciais da teologia latino-americana.
Toda teologia depende, pelo menos em parte, do contexto histórico que lhe deu
origem. O contexto histórico inclui o movimento de ideias e os elementos culturais,
mas inclui também a situação social, política e econômica. A Teologia da Libertação
surgiu sobretudo para trazer respostas a uma situação de dominação e opressão.
A teologia da libertação trata dos dados da Revelação, assim como todas as formas
de teologia. A diferença é que a teologia da libertação faz isso a partir da realidade
humana, mais especificamente, da realidade dos mais pobres. Metodologicamente,
a teologia da libertação é constituída por três momentos ou passos: momento pré-
teológico, momento teológico e momento práxico. Estes três momentos também
podem ser expressos pela fórmula clássica do ver, julgar e agir.
O esquema metodológico do ver, julgar e agir, foi formalmente indicado pela Igreja
católica na encíclica Mater et Magistra de João Paulo II, no ano 1961. A partir de
então, a teologia da libertação também adotou de forma decisiva estes passos
metodológicos. Na verdade, este esquema metodológico vai muito além da teologia,
pois costumamos usá-lo no nosso dia-a-dia em muitos ambientes, sem percebê-lo.
Trata-se de um método simples e eficiente para a tomada de decisão em qualquer
âmbito. Por exemplo, os gestores de uma empresa, antes de tomarem uma decisão
(agir), costumam fazer um bom diagnóstico das tendências do mercado (ver) e
avaliam as informações coletadas a partir de algum aparato teórico de marketing ou
de compra e venda (julgar). Um pai e mãe de família, antes de fazerem um passeio
com as crianças no domingo, avaliam as condições meteorológicas e o dinheiro
disponível (ver), depois decidem a partir de sua realidade concreta (julgar) e saem
com as crianças à passeio (agir). E em tantas outras situações cotidianas usamos
este esquema metodológico simples, mas eficiente.
partir dos critérios da fé. As sociologias são tomadas como instrumentos da teologia,
não como definidoras da teologia. O teólogo deve escolher o instrumental sociológico
mais adequado a partir de critérios científicos e a partir dos critérios da fé. Em cada
momento histórico, poderá haver uma sociologia diferente que auxilie o teólogo em
seu trabalho de análise da realidade com os olhos da fé (LIBANIO-MURAD, 2005, p.
176-177).
O momento teológico consiste em buscar uma resposta à pergunta levantada
pela situação analisada com as mediações sociais, à luz da Revelação divina. Ou
seja, a partir dos dados da realidade, já interpretados pela análise social escolhida em
acordo com os critérios da fé, passa-se à elaboração teológica propriamente dita, que
é sempre uma elaboração feita em confronto com a Revelação. Tendo presente que
a revelação, em sentido largo, inclui a Bíblia e a Tradição da Igreja, podemos afirmar
que este confronto entre tradição teológica da Igreja e análise social da realidade se
enriquecem uma à outra: a realidade social é enriquecida pela fé da Igreja; e a Tradição
viva da Igreja cresce com os novos dados da realidade social na qual os cristãos estão
inseridos. O fruto da teologia da libertação é esta “novidade” que atinge a realidade
(enriquecida pela fé) e a Tradição (enriquecida pela realidade). O momento teológico
tem como resultado uma compreensão da problemática latino-americana iluminada
pela fé, e uma nova interpretação da Palavra de Deus, vista a partir desta problemática
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 179).
Na teologia da libertação, o momento propriamente teológico corresponde ao
triângulo hermenêutico: texto, contexto e pré-texto. Na hermenêutica bíblica, o texto
equivale às Escrituras propriamente ditas; o contexto é a vida da Igreja, incluindo o
Magistério, a Tradição, as teologias, etc.; e o pré-texto é a realidade social atual. O
momento pré-teológico serve para dar uma correta visão do pré-texto dentro do qual
devemos ler o texto bíblico, permanecendo em nosso contexto eclesial. A função da
teologia é articular estes três momentos (texto, contexto e pré-texto) para nos levar
a uma correta e frutífera leitura da Revelação divina e da realidade social concreta.
No fundo, a teologia está respondendo a esta questão fundamental: o que Deus diz
sobre esta realidade concreta? Deste modo, a Revelação divina continua eloquente
no presente histórico da Igreja (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 180).
O terceiro e último passo é o momento práxico. Toda teologia é uma sabedoria,
um saber racional e uma reflexão crítica da práxis. A patrística enfatizou a dimensão
sapiencial da teologia; a escolástica acentuou o aspecto do saber racional; e a teologia
da libertação está mais ligada à práxis. Todavia, todas estas teologias devem incluir
os três aspectos: o que muda é a acentuação. A teologia da libertação se configura,
então, como uma crítica da prática teológica, das práticas pastorais e das práticas
político-sociais dos cristãos e da sociedade em geral.
A práxis também pode ser dividida em três níveis: a prática intra-teológica, intraeclesial
e sociopolítica. A tarefa crítica intra-teológica consiste em analisar os conceitos cristãos,
dando-lhe novas expressões e significados, a partir da realidade atual. Por exemplo,
o conceito de “graça” provém de uma tradição filosófica metafísica, indicando uma
intervenção divina na natureza humana; na teologia da libertação, este conceito se
expressa como “graça libertadora”, ou seja, uma ajuda divina que liberta os pobres de
sua situação de opressão. Em segundo lugar, a prática intraeclesial leva a uma nova
compreensão do que é ser Igreja. Fala-se de uma “eclesiologia militante”, um novo
modelo eclesial que busca superar a lógica do poder ou autoritarismo religioso (tão
combatido por Jesus) em prol da lógica da igualdade entre todos os irmãos em Cristo.
Enfim, temos a prática social: a fé é reinterpretada a partir das questões levantadas
pela práxis. Por um lado, a teologia é reelaborada a partir das perguntas da práxis
(questionamentos dos cristãos engajados, dos movimentos sociais, das pastorais, por
comunidades eclesiais de base, dos grupos de defesa dos direitos humanos, etc); por
outro lado, a teologia ilumina o compromisso destes grupos envolvidos com missões
concretas na sociedade e na Igreja. Para que este processo se realize, o teólogo
deve estar constantemente em diálogo com os agentes de pastoral, com os cristãos
comprometidos, com os movimentos sociais, etc. Deste modo, a teologia responderá
às perguntas reais e será capaz de transformar a realidade (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 183-184).
Estas e outras vias podem ser percorridas pela teologia da libertação. Algumas
expressões históricas desta teologia podem ter sido superadas, mas o propósito da
teologia da libertação continua sendo atual e urgente: iluminar a realidade social a
partir da Revelação divina e transformar esta mesma realidade a partir da fé.
Nesta segunda parte do capítulo, vamos destacar dois elementos que receberam
especial atenção na teologia latino-americana, tanto na teologia da libertação, quanto
em outras correntes teológicas: a cristologia e a eclesiologia.
CAPÍTULO 11
TEOLOGIA, CIÊNCIA E CULTURA
Prezados estudantes, estamos iniciando aqui a terceira parte do nosso e-book, que
trata sobre a relação entre a teologia e outras disciplinas. Neste capítulo, falaremos da
relação entre a teologia, a ciência e a cultura. Em primeiro lugar, apresentaremos uma
breve panorâmica histórica da relação entre teologia e ciência. Em seguida, vamos
tratar da cosmologia como um espaço para o diálogo entre teologia, filosofia e ciência.
E a terceira seção deste capítulo será dedicada à relação entre teologia e cultura.
Visto que a teologia e a ciência são realidades históricas, então a relação entre elas
depende fundamentalmente do conceito de ciência e de teologia em cada momento
da história. Conforme mudam as condições sociais, as cosmovisões, as ideologias e
a consciência humana, assim também varia a relação entre ciência e fé.
Historicamente, a primeira forma de relação entre teologia e ciência foi a submissão
da ciência à teologia. De fato, a teologia adquiriu certo caráter científico com Tomás
de Aquino. Neste momento, a ciência era definida pelo conceito aristotélico de ciência:
um conhecimento certo e sempre válido, resultado de deduções lógicas. O objetivo
da ciência era conhecer as causas e as razões do ser. Neste sentido a teologia era
entendida como ciência, ou seja, como um conhecimento certo e dedutivo. No sentido
moderno, a teologia não poderia ser definida como ciência, pois não há evidências
imediatas para os seus princípios, ou seja, para verdades reveladas. Mas no sentido
aristotélico-escolástico, a teologia era considerada uma ciência superior às ciências
humanas, pois ela recebe os seus princípios diretamente da ciência de Deus. Essa era
a hierarquia das ciências: a ciência de Deus é subordinante e está acima de todas as
formas de conhecimento humano; a teologia é uma ciência subalterna à ciência divina;
e as demais ciências eram subordinadas à teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 79-80).
O conflito entre ciência e teologia surge quando nasce uma nova definição de
ciência. Historicamente falando, isso aconteceu na Idade Moderna, a partir de Copérnico,
artificial, que não se sustentou. Aconteceu então a ruptura entre ciência e teologia.
As ciências modernas seguiram sua própria estrada, com metodologias próprias,
totalmente independentes da teologia. E a teologia passou a esforçar-se para ser
reconhecida pelas ciências e não ser relegada ao mundo das fábulas. Com o advento
do positivismo filosófico e científico no século XIX, as ciências exatas e experimentais
tornaram-se o modelo principal para todas as outras ciências. As ciências humanas
ficaram em uma posição subordinada, menos precisas, porém ainda importantes,
pois tratam do sentido das coisas. Para o positivismo, somente o conhecimento
experimental e verificável é realmente científico; e somente o mundo do fenômeno é
objeto da ciência, enquanto a realidades transcendentes ficavam de fora. A teologia
perdeu espaço neste contexto positivista. O objeto da teologia é Deus, uma realidade
transcendente e não verificável no sentido positivista. Por isso, a teologia e a religião
ficaram alienadas deste mundo científico (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 82-84).
Todavia, a pretensão da ciência positivista de ter o monopólio da verdade não
durou muito. A hermenêutica do século XX mostrou que não há dados puros, pois
todos os dados são interpretados; e não há ciência plenamente objetiva, pois toda
percepção do objeto passa necessariamente pelo sujeito. A filosofia da linguagem
nos lembrou que toda realidade é mediada e interpretada pela linguagem, e não há
conhecimento puro e objetivo. As teorias científicas se multiplicaram, muitas conflitivas
entre si, mas cada uma com seu valor, mostrando que nenhuma ciência particular
pode ter o monopólio da verdade. Neste novo contexto, surgiu uma nova relação
entre teologia e as ciências, que poderíamos chamar de relação de paridade. Trata-
se de reconhecer que ambas, a ciência e a teologia, quando se convertem em teoria,
refletem a interpretação do sujeito e são traduzidas em determinada linguagem. Este
sujeito pode ser a comunidade científica, ou o teólogo, ou a comunidade dos fiéis.
O sujeito se relaciona com o objeto através de modelos, categorias ou paradigmas,
sem os quais não seria possível interpretar o dado. Muda o objeto, muda o sujeito,
mas o mecanismo é o mesmo: a realidade é interpretada a partir de um modelo e é
mediada por uma linguagem. Não há um caminho diferente nem para a ciência, nem
para a teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 83-84).
Hoje, compreende-se que a comunidade científica trabalha com paradigmas, e os
paradigmas mudam. A objetividade absoluta do positivismo não existe mais. Paradigma
é “o conjunto de pressupostos conceituais e metodológicos de determinada tradição
científica e a partir dos quais os fenômenos são interpretados” (LIBANIO-MURAD, 2005,
viemos? Para onde vamos? Qual é a origem do universo? E a origem do ser humano?
E qual será o nosso fim? São perguntas que não podem ser respondidas por uma
única ciência, por isso a cosmologia é um interessante ramo do conhecimento no
qual conflui ciência, filosofia e teologia.
A cosmologia moderna se desenvolveu no âmbito da ciência, tendo como principais
representantes Darwin e Wallace com a teoria da evolução (1859); e Albert Einstein
(1879-1955) com a Teoria da Relatividade Geral. Todavia, hoje se reconhece que a ciência
só é capaz de descrever parte da realidade, ou seja, os fenômenos da natureza. Mas
o sentido ou essência de tudo o que existe não pode ser descoberto pela ciência. Na
verdade, o significado de uma realidade não pode ser esgotado por nenhuma teoria
científica, filosófica ou teológica. Por isso, a cosmologia comporta o pluralismo teórico,
pois nossa compreensão de uma realidade será mais ampla na medida em que mais
teorias a descrevem sob diferentes pontos de vista (CRUZ, 2012, p. 268-283).
universo pode ser modelado como um fluido; etc. Seguindo este modelo, as
galáxias seriam distribuídas de maneira homogênea e simétrica (CRUZ, 2012,
p. 286-291).
do universo. Nenhuma teoria ou modelo permanece válido para sempre. Além disso,
nenhuma teoria é capaz de descrever todos os aspectos da realidade. Quando a
ciência esquece o seu limite, ela acaba perdendo inclusive o seu caráter científico e
se torna um dogma. A filosofia tem a tarefa de lembrar os limites da ciência e afirmar
a complementaridade entre ciência e religião. Neste sentido, o diálogo entre ciência
e teologia pode e deve ser mediado pela filosofia em sua tarefa epistemológica de
apontar os limites de cada âmbito do conhecimento humano (CRUZ, 2012, p. 327-329).
A definição de cultura é muito ampla. Para falar da relação entre teologia e cultura,
é preciso definir o conceito de cultura implicado nessa relação. Morales (2003, p.
117) se refere à cultura como tudo aquilo que o ser humano realiza para transformar
o mundo em que vive. Fazer cultura é algo essencial ao ser humano, desde quando
Deus entregou a terra aos homens e mulheres para que cuidassem dela. A cultura
não se manifesta só nos aspectos intelectuais, educativos e artísticos da sociedade,
mas compreende também a técnica, a política, a economia e toda atividade ligada à
capacidade humana de criar. Por isso, o Vaticano II afirma que “é próprio da pessoa
humana necessitar da cultura, isto é, de desenvolver os bens e valores da natureza,
para chegar a uma autêntica e plena realização. Sempre que se trata da vida humana,
natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas” (Gaudium et Spes, 1965, n. 53).
Entre cultura e teologia existe uma relação de reciprocidade. A cultura encontra na
religião e na espiritualidade o seu próprio sentido e a força moral para contribuir com
a formação e o bem-estar das pessoas. Por sua vez, a teologia precisa da cultura para
enriquecer e renovar constantemente a sua reflexão sobre as questões que afetam
os seres humanos de cada tempo. Desde o seu surgimento, o cristianismo sempre
esteve em diálogo com a cultura de cada época e lugar: os Padres da Igreja e os
teólogos escolásticos dialogaram com a cultura filosófica grega e romana; os teólogos
renascentistas (Nicolau de Cusa, Erasmo, Tomás Moro, etc) dialogaram com a cultura
humanística e científica. Houve certa ruptura entre a Igreja e a cultura no período
da Modernidade, quando a cultura europeia procurou emancipar-se da influência do
cristianismo, e o pensamento cristão acabou se fechando em seu próprio recinto. Mas
a partir do século XIX houve uma retomada do diálogo entre teologia e cultura moderna,
com autores como John Henry Newman (1801-1890). E o Vaticano II restabeleceu o
pleno contato entre a Igreja e as culturas (MORALES, 2003, p. 118-121).
ANOTE ISSO
A partir destas e de outras contribuições dadas pelo Magistério e pelos teólogos, hoje
se compreende que o cristianismo precisa das culturas para se concretizar no mundo.
Por outro lado, as culturas humanas podem ser enriquecidas pelo Evangelho. Não existe
uma única cultura no mundo. As culturas são plurais, então o cristianismo também
se desenvolve de forma plural, inculturando-se em diferentes ambientes humanos.
Por consequência, a teologia é plural. Mas a pluralidade da teologia não depende
exclusivamente da pluralidade de culturas. Na verdade, o mistério divino é tão rico
que não poderia ser expresso através de um único tipo de pensamento. Sendo assim,
cada forma de pensamento e cada cultura pode refletir um diferente aspecto da única
verdade revelada. Deus se comunica de modos diferentes e por meio de situações
e linguagens diferentes. Esta pluralidade já está presente na Bíblia, que contém leis,
profecias, história, evangelho, cartas, etc. Por isso, a tradição teológica cristã é plural
desde o início. Por exemplo, os cristãos do Oriente desenvolveram mais profundamente
a teologia mística e espiritual, enquanto o Ocidente se concentrou sobre os aspectos
racionais da teologia, além da sua atuação prática (MORALES, 2003, p. 126-127).
A pluralidade teológica, ligada à variedade de culturas no mundo, certamente é
uma riqueza na história do cristianismo, mas é preciso tomar alguns cuidados para
que a pluralidade não se converta em um vale tudo. Por isso, Morales (2003, p. 128)
enumera alguns critérios para avaliar a validade da pluralidade teológica:
• O pluralismo da teologia deve construir-se sobre o reconhecimento do caráter
objetivo e transcendente da fé, a mesma fé professada e transmitida pela Igreja;
• Toda verdadeira teologia nasce e se desenvolve dentro da comunhão e da vida
eclesial;
• O critério fundamental para toda teologia cristã é a Sagrada Escritura;
• A terminologia e o modo como se expressa a fé varia com o tempo, mas os
elementos essenciais da fé (divindade de Cristo, Trindade, salvação, etc.) não
podem ser comprometidos.
Enfim, o diálogo entre teologia e cultura pode trazer benefícios para ambas. A cultura
se torna mais humana quando é alcançada pela teologia; e a teologia se torna mais
rica e plural em seu contato com as culturas. Mas a relação entre cultura e teologia
não implica a identificação de uma com a outra: cada uma mantém a sua própria
identidade e a sua autonomia, pois do contrário não seria um diálogo, mas uma fusão
ou confusão.
CAPÍTULO 12
FILOSOFIA E TEOLOGIA
(FILOSOFIA DA RELIGIÃO)
sua estruturação. Há uma grande pluralidade de filosofias: algumas podem ser mais
úteis, outras menos. O importante é que a teologia mantenha sempre o espírito ou
postura filosófica. A filosofia contribui especialmente com o seu aspecto de reflexão. De
fato, a razão teológica supõe o trabalho de uma razão filosófica. A filosofia, enquanto
atitude, serve à teologia de três modos: como parceira exigente no diálogo cultural;
como mestra na arte de pensar; e como base para elaborar criticamente o fundo
filosófico das questões teológicas. Enfim, até mesmo para poder dialogar com as
outras ciências, a teologia precisa do preparo filosófico-crítico que lhe garante um
bom nível de cientificidade (BOFF, 1998, p. 68-69).
Um bom trabalho teológico supõe uma filosofia como base ou instrumento intelectual.
A filosofia garante o rigor metodológico da teologia. Todavia, é preciso garantir certo
equilíbrio: a filosofia não pode invadir e desconfigurar a teologia em seus aspectos
pastorais e espirituais. A teologia trata do Mistério divino, que vai além de qualquer
razão filosófica. Ao lado da Sagrada Escritura, a filosofia contribui para criar uma
linguagem precisa na teologia, atendendo as expectativas legítimas da racionalidade
humana (MORALES, 2003, p. 74).
A relação entre teologia e filosofia se estabeleceu, historicamente, desde as origens
da teologia sistemática, com os Padres da Igreja. Por isso, muitos institutos teológicos
ainda exigem o estudo da filosofia como pré-requisito para cursos de teologia. Esta
relação tradicional entre a filosofia e a teologia se deve a algumas razões: elas partilham
alguns temas como o sentido da vida, os valores éticos, as realidades últimas, etc.;
ambas têm um discurso relativamente abstrato; e a filosofia parece ser uma introdução
ideal para a teologia. A relação entre filosofia e teologia é uma questão teológica: a
filosofia normalmente não se pergunta sobre esta relação. Então a resposta depende
do modo como cada teologia olha para a filosofia. Em alguns períodos da história, a
teologia esteve claramente aliada à teologia, em outros momentos preferiu separar-se
(GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 26-27).
Título: Detalhe da obra “A criação de Adão” de Michelangelo, símbolo da relação entre filosofia e religião
Fonte: https://www.estudopratico.com.br/filosofia-da-religiao/
A relação ideal entre filosofia e teologia é o equilíbrio, sem prejuízo de uma ou de outra
disciplina, mas este equilíbrio nem sempre foi mantido ao longo da história. Em alguns
momentos predominou a filosofia e a dialética, originando teologias racionalistas que
acabaram negando algumas verdades reveladas. Em outros momentos, a ausência da
filosofia fez surgir teologias sem rigor metodológico ou precisão linguística. Por isso, é
importante estabelecer alguns critérios para que a teologia adote de forma correta as
filosofias adequadas. Morales (2003, p. 75-76) enumera alguns critérios importantes:
A Igreja nunca estabeleceu uma única filosofia como sendo a base obrigatória para
a teologia. Todas as filosofias que respeitem os princípios básicos acima elencados
podem relacionar-se, de modo frutuoso, com a teologia. Deste modo, haverá um
equilíbrio entre razão e fé, que traz benefícios para ambas.
Há uma corrente filosófica específica que pode trazer grandes contribuições para
a teologia e que, de fato, está incluída em alguns currículos de estudos teológicos: a
filosofia da religião. Trata-se de uma filosofia que reflete sobre a religião e as religiões
unicamente a partir da razão. O objeto de estudo é a religião e as condições de sua
possibilidade. A filosofia da religião busca esclarecer a possibilidade e a essência
da religião na existência humana, ou seja, estuda a consciência humana e a sua
autocompreensão a partir do absoluto, enquanto atingível pela inteligência. A filosofia
da religião trata da abertura do homem ao mistério que o envolve, considerando as
duas possíveis respostas humanas: aceitar ou rejeitar este mistério (ZILLES, 1991, p. 5).
Se o objeto de reflexão da filosofia da religião é a própria religião, então precisamos
antes de tudo entender o que é religião. A definição geral de religião é a relação
entre o homem e Deus, entre o humano e o divino. Mas a religião é um fenômeno
humano, não divino; é o modo como o ser humano se coloca diante de Deus. O ser
humano coloca-se em relação a algo maior do que ele mesmo e sente-se desafiado,
interpelado pelo divino. Por isso, a filosofia da religião não fala apenas do ser humano,
mas também se refere a este ser transcendente, que chamamos de Deus. Todavia, o
discurso religioso contém conceitos que se opõem à filosofia, como a revelação e a
redenção. São realidades provenientes da transcendência, não da razão humana. Neste
ponto, a filosofia da religião concretiza perfeitamente a relação entre filosofia e teologia,
pois precisa estabelecer uma mediação entre conceitos estritamente teológicos e a
razão filosófica (ZILLES, 1991, p. 6-7).
Mesmo sem receber o nome de “filosofia da religião”, a filosofia grega, desde a sua
origem, trata também de questões religiosas, pois a questão filosófica sobre Deus era
fundamental na vida dos cidadãos na Grécia Antiga. A filosofia grega, ao descrever o
cosmos, pensou a presença do divino como fundamento originário (Anaximandro), como
ser imutável (Parmênides), como logos enquanto ordem do mundo (Heráclito), como
noús enquanto princípio do movimento (Anaxágora), como causa primeira (Aristóteles),
e assim por diante. Durante a Idade Média, nenhuma filosofia da religião era necessária,
visto que a teologia e a filosofia coincidiam.
Com a ruptura entre teologia e filosofia, durante o iluminismo, surge um discurso
puramente filosófico sobre a religião. Os precursores desta corrente filosófica foram
os idealistas Kant e Hegel; a obra do cardeal Newman; a filosofia dialógica de F. Ebner
e M. Buber; a fenomenologia de E. Husserl e M. Scheler; e a filosofia existencial de
G. Marcel, M. Heidegger e K. Jaspers. A obra de Kant, intitulada A Religião nos Limites
da Simples Razão expressa bem o objetivo da filosofia da religião: entender a religião
apenas através da razão. Todos estes filósofos pensaram Deus a partir do homem,
por isso fizeram filosofia, não teologia (lembremos que a teologia sempre parte da
Revelação), porém uma filosofia voltada especificamente para temas religiosos (ZILLES,
1991, p. 8-9).
A filosofia da religião como disciplina é recente, como vimos acima, mas a religião
como tema da filosofia esteve presente ao longo de toda a história da filosofia.
Este artigo da professora de Direito Gisele Leite traz uma breve panorâmica sobre
a história da relação entre filosofia e teologia, até a origem da filosofia da religião
como disciplina:
https://jus.com.br/artigos/86278/consideracoes-preliminares-sobre-a-filosofia-da-
religiao
A filosofia da religião não deve ser confundida com uma religião filosófica, nem
com filosofia religiosa. Trata-se de indagação filosófica, com método filosófico,
sobre questões religiosas. Mais especificamente: trata-se de uma filosofia capaz de
analisar e criticar corretamente o mundo humano da fé e da religião. Existem filosofias
que explicam o fenômeno religioso, mas não podem ser consideradas “filosofia da
religião”, pois explicam atribuem tal fenômeno a elementos externos: libido, situação
socioeconômica, projeção psicológica, instrumento de alienação, etc. Por outro lado, as
filosofias que estão à serviço da fé também não podem ser chamadas de “filosofia da
religião”, como é o caso da filosofia de Boaventura ou de Tomás de Aquino. A filosofia
da religião deve investigar de forma objetiva o fenômeno religioso tal como este se
apresenta, para chegar a uma definição de Deus como ser supremo, não o Deus de
uma religião específica (ZILLES, 1991, p. 17).
CAPÍTULO 13
TEOLOGIA E EDUCAÇÃO:
O ENSINO RELIGIOSO
Prezado estudante, tendo em conta tudo o que vimos até aqui, certamente você
percebeu que a teologia não é apenas uma pesquisa ou uma ciência elitista, mas
trata-se de um âmbito do saber que procura criar pontes com a sociedade. O caminho
entre qualquer ciência e a sociedade é a educação. Sendo assim, podemos supor
que existe alguma ligação também entre a teologia e a educação, pois do contrário
deveríamos projetar uma teologia isolada do mundo, sem efeitos sobre as pessoas –
em poucas palavras, uma ciência infrutífera. Mas qual seria a ligação entre teologia
e educação? Para responder a esta pergunta, começaremos com o primeiro passo
do método teológico: analisar o que a Sagrada Escritura fala sobre a educação. Em
segundo lugar, vamos tentar definir qual é a abordagem cristã da educação. O terceiro
passo será mais concreto: trataremos da disciplina presente no sistema educacional
brasileiro que mais se aproxima da teologia, ou seja, o Ensino Religioso. No final, vamos
relacionar estes três temas para entender qual é a relação entre teologia e educação.
Na Bíblia, os Livros Sapienciais são aqueles que mais claramente tratam da educação
dos filhos, especialmente Provérbios, Jó, Eclesiastes (Qohelet), Sirácida e Sabedoria.
Porém, encontramos algumas menções sobre a educação em todas as partes da Bíblia.
O mundo antigo não diferenciava teoria e prática. Em geral, a sabedoria era definida
como habilidade, mais especificamente: conhecimento e habilidades necessárias
para lidar com a vida no mundo. Em hebraico, sabedoria é hôkmah, que indica a
capacidade de bem conduzir a própria vida. Trata-se de conhecimento que orienta
a vida. A sabedoria de Israel reflete sobre problemas que afetam diretamente às
pessoas, como as desigualdades sociais, as injustiças, o tema da morte e de quem
é Deus. As respostas partem das experiências e das observações do sábio, que são
as lições que ele tira para a vida. O sábio israelita é aquele que observa com atenção
Em Israel, no período bíblico, não existiam escolas como aquelas que conhecemos
hoje, mas é provável que existisse um espaço para a instrução nos ofícios e nas artes,
fora da família. Descobertas arqueológicas recentes trouxeram à luz antigas tábuas
de argila contendo exercícios escolares no Egito, na Mesopotâmia e em Israel (pelo
menos no período da diáspora), como é o caso do Calendário de Gezer.
A principal “escola” era aquela dos levitas, sacerdotes, profetas, sábios e escribas
(1Sm 2,21-26; 2Rs 12,3). Os santuários eram os principais locais para esta forma de
educação: em Silo, Siquém, Betel, Hebron e Jerusalém. A Bíblia apresenta Samuel
como aprendiz do sacerdote Eli em Silo (1Sm 1,21-28); e fala da “Escola palaciana”
de Salomão, seguindo o modelo egípcio (1Rs 9,17; 11,1). Provavelmente, o ensino
mais técnico acontecia no palácio. No templo, a educação era voltada para a leitura,
a escrita, o culto, a música, os calendários e tradições nacionais. Existiam também as
“escolas” dos profetas. Algumas indicações presentes nos livros proféticos nos levam
a concluir que alguns profetas, como Sofonias, Ezequiel, Jeremias e talvez Malaquias,
provavelmente frequentaram a escola da corte. Outros profetas criaram uma “escola”
de discípulos: é o caso de Elias (1Rs 18,13), Eliseu (2Rs 2,1-19) e Isaías, na segunda
e terceira parte de seu livro. No exílio na Babilônia, vemos israelitas destacando-se
nas escolas reais, como (Dn 1,3-5), Sasabassar (Esd 1,8-11), Zorobabel (Esd 2,2),
Neemias (Ne 1,1-11) e Esdras (Esd 7,12-26), que alcançaram grande estima diante
das autoridades babilônias por sua sabedoria (GARMUS, 2005, p. 35-37).
À medida que se desenvolveu, a sinagoga tornou-se um local de instrução. Até
mesmo o ministério de Jesus na sinagoga consistia em “ensinar” (Mt. 4,23). Os jovens
eram treinados na própria sinagoga ou em um espaço adjacente. Em um estágio
posterior, o professor às vezes ensinava em sua própria casa, como é evidenciado pela
expressão aramaica para “escola”, bêt sāpherâ, ou seja, “casa do professor”. Outro local
usado pelos rabinos eram os pórticos do Templo, e Jesus também fez uso deste espaço
para ensinar (Mt 26,55). No período da Mishnah (70-200 d.C.), rabinos eminentes tinham
suas próprias escolas de ensino superior. Esse recurso provavelmente começou na
época de Hillel e Shammai, os famosos rabinos do século I a.C. Uma escola primária
era chamada bêt has-sepher, “casa do livro”, enquanto o ensino superior acontecia na
bêt midrāsh, “casa de estudo” (PAYNE, 1996, p. 292-293).
Como vimos acima, os primeiros tutores foram os pais, exceto no caso dos filhos
reais (2 Reis 10,1). Após o período de Esdras, surgiu uma nova profissão, a de escriba
(sopher), o professor na sinagoga. Os “sábios” (hākām) parecem ter sido um grupo
diferente dos escribas, mas sua natureza e função exatas são obscuras. No período
do NT, havia três graus de professor: o hākām, o sopher e o hazzān (oficial), em ordem
decrescente. Nicodemos era presumivelmente do mais alto grau, os “mestres da lei”
(Lc 5,17). Idealmente, eles não deveriam ser pagos pelo ensino, mas normalmente
recebiam uma remuneração pelo tempo dedicado aos discípulos (PAYNE, 1996, p. 293).
A educação não era ampla no período inicial. O menino aprenderia a instrução moral
ordinária de sua mãe, e um ofício, geralmente agrícola, além de alguns conhecimentos
religiosos e rituais, de seu pai. As festas religiosas também ensinavam história da nação
(cf. Ex 13,8). Assim, mesmo no período mais antigo, a vida cotidiana e as crenças e
práticas religiosas eram inseparáveis. Essa inseparabilidade continua na sinagoga,
onde as Escrituras se tornaram a única autoridade tanto para a crença quanto para
a conduta diária. A educação, então, era e permaneceu religiosa e ética: “O temor do
Senhor é o princípio do conhecimento, mas os insensatos desprezam a sabedoria e
a disciplina” (Pr 1,7). A educação das meninas estava totalmente nas mãos de suas
mães. Elas aprendiam as artes domésticas e os valores morais; também podiam
aprender a ler para se familiarizar com a Lei. O AT traz alguns exemplos de mulheres
cultas, como a mãe do rei Lemuel que provou ser uma professora preparada para ele
(Pr 31,1) (PAYNE, 1996, p. 293-294).
Quanto à metodologia, o método de ensino em Israel e no Antigo Oriente, em geral,
consistia na exortação, na repetição e nas punições. Na tradição oral, é importante a
memorização, que vem especialmente mediante a repetição. Por isso lemos: “Estejam
no teu coração estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás a teus filhos, delas
falarás quando estiveres sentado em tua casa ou andando a caminho, quando te
deitares ou quando levantares” (Dt 6,6-7). A disciplina era rigorosa, contemplando até
mesmo o castigo físico: “Quem poupa a vara odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na
hora precisa” (Pr 13,24). Ou então: “aquele que ama seu filho, castiga-o com frequência,
para que se alegre com isso mais tarde, e não tenha de bater à porta dos vizinhos.
[...] Aquele que estraga seus filhos com mimos terá que lhes pensar as feridas” (Ecl
30,1.7). E ainda: “Ouvi, filhos meus, a instrução de um pai; sede atentos, para adquirir a
inteligência, porque é sã a doutrina que eu vos dou; não abandoneis o meu ensino” (Pr
4,1-2). Estes e outros exemplos mostram como as punições faziam parte do método
de ensino antigo (GARMUS, 2005, p. 37-39).
No NT, Jesus traz várias inspirações quanto ao método cristão de ensino. Antes
de tudo, ele formou um grupo de discípulos. Na antiguidade, era comum que os
grandes mestres tivessem discípulos, como os profetas Elias e Eliseu no AT, e como
Sócrates no mundo grego. Os discípulos de Jesus não aprendiam apenas ouvindo,
mas sobretudo convivendo com Jesus e vendo o seu exemplo. Em sua metodologia,
Jesus costumava falar em parábolas, ou seja, pequenas histórias ou imagens narradas,
fáceis de memorizar e com fortes lições de vida. Enfim, Jesus tratava de questões
concretas da vida (o amor ao próximo, a reconciliação, o desapego dos bens materiais,
etc) e falava com todos (multidões, ricos, pobres, militares, sacerdotes, mestres da lei,
gente simples, mulheres e homens). Ele ensinava a viver em harmonia com o próximo
e com Deus neste mundo (MORALES, 2015, p. 62-68). Em síntese, a metodologia de
Jesus nos incentiva a ensinar com a vida, além das palavras; a usar uma linguagem
adequada e envolvente; e a ensinar a boa convivência com todos.
O Ensino Religioso é uma das dez áreas de conhecimento definidas pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 1998. O
Não é simples delinear o perfil pedagógico do Ensino Religioso, pois este componente
curricular não foi concebido como elemento integrante de uma área maior, como a
educação. A fonte principal para entender o desenvolvimento do Ensino Religioso no
Brasil é a legislação, não as pesquisas educacionais. Normalmente os pesquisadores
associam este componente curricular com as teorias pedagógicas, porque existe certa
proximidade entre estas correntes de estudo. De fato, as concepções de educação,
escola, professor, currículo e outros segmentos acabam interferindo no Ensino Religioso
(JUNQUEIRA, 2016, p. 130-131).
Visto que a fonte principal para o Ensino Religioso no Brasil é a legislação,
vamos partir desta base segura. A Base Nacional Comum Curricular atual prevê o
Ensino Religioso como a quinta área do Ensino Fundamental (depois da Linguagem,
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas). Os objetivos apresentados
para o Ensino Religioso ajudam a esclarecer a concepção que se tem deste
componente curricular:
Nestes objetivos, fica claro que o Ensino Religioso não é confessional, mas busca
construir um ambiente de diálogo e compreensão em relação às diferentes culturas
e tradições religiosas. A interdisciplinaridade é outra característica fundamental,
enfatizada pelo documento:
O Ensino Religioso como componente curricular pode ser definido como parte
integrante na formação básica do cidadão; como conhecimento que subsidia o
educando para a vida; ou como disciplina que conduz para a sensibilidade ao mistério e
à alteridade. O grande problema do Ensino Religioso é a falta de clareza conceitual sobre
alguns temas fundamentais, tais como religião, credo, instituição religiosa, fé, crença,
mito, rito, espiritualidade, devoção popular, sagrado, secularização, etc. Muitos destes
conceitos pertencem à teologia, mas não são compartilhados suficientemente com o
campo do Ensino Religioso nas escolas. A sociedade facilmente desconfigura estes
CAPÍTULO 14
TEOLOGIA E
DIREITOS HUMANOS
Prezado acadêmico, o título deste capítulo é bastante amplo: teologia e direitos humanos.
A partir deste título, nós poderíamos falar sobre a teologia como fundamento dos direitos
humanos; ou sobre as diferenças entre as proposições teológicas e os direitos humanos;
ou sobre a semelhança entre estes dois campos do saber; ou ainda sobre a relação entre
eles. Bem, na verdade, vamos tratar um pouco sobre cada uma destas questões, dando
maior ênfase aos fundamentos bíblico-teológicos dos direitos humanos na primeira parte;
e sobre a relação entre teologia e direitos humanos na segunda parte. As diferenças e
semelhanças entre estes dois campos do saber aparecerão ao longo de todo o capítulo.
Para que os direitos humanos existam como tais, não é necessário que sejam fundamentados
pela teologia. O ser humano é o fundamento de seus próprios direitos. No entanto, a teologia
se interessa por tudo aquilo que é humano, visto que o caminho para conhecer a verdade
divina é a relação entre Deus e os seres humanos. O ponto mais alto da obra de criação de
Deus é o ser humano. Isso nos faz supor que existem fundamentos bíblicos e teológicos para
os direitos dos seres que coroam a criação de Deus, seres com os quais Deus estabeleceu
uma aliança. Vamos delinear os fundamentos dos direitos humanos primeiramente através
da antropologia teológica; a seguir identificaremos os fundamentos bíblicos; e por fim os
fundamentos propriamente teológicos.
No centro da questão dos direitos humanos temos uma ou mais concepções de ser humano.
Sendo assim, para buscar os fundamentos bíblicos-teológicos dos direitos humanos, o primeiro
passo é visitar a antropologia cristã. Para o cristianismo, o ser humano é o destinatário da
mensagem e da prática do Evangelho. É verdade que a finalidade da religião é prestar um
culto a Deus, mas quem pode prestar-lhe tal culto é a pessoa humana, chamada à comunhão
com Ele por meio de Jesus Cristo. Até mesmo para falar sobre o projeto salvífico de Deus no
mundo, a teologia cristã deve refletir sobre o ser humano, sua natureza e missão no mundo,
além da sua dimensão escatológica. De fato, para a antropologia cristã, o ser humano foi
criado para alcançar a sua realização na vida terrena e a bem-aventurança na vida eterna
(DIEHL, 2018, p. 126-128).
Para a doutrina cristã, a dignidade do ser humano se apoia sobre dois fatos fundamentais,
segundo Diehl (2018, p. 128-130): a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança
de Deus; e a redenção realizada por Jesus, o Filho de Deus que assumiu a natureza
humana, elevando-a à dignidade divina, até o ponto de dar a sua vida para redimir a nossa
humanidade. Estes dois mistérios da fé cristã estão ligados, pois a obra redentora de Cristo
restituiu ao ser humano a perfeita imagem de Deus, que ele havia ofuscado com o pecado.
Em outras palavras, a imagem de Deus em nós provém da criação, mas foi ofuscada
pelo pecado; esta imagem volta a ser perfeita mediante a redenção realizada por Cristo,
mas com a nossa participação, que consiste na conversão dos pecados para chegar à
salvação plena. Para entender melhor esta ideia, é interessante retomar a teologia de
alguns padres da Igreja do século III d.C. Para Irineu de Lião (130-202 d.C.), na relação entre
criatura humana e Deus há uma distinção entre imagem (aspecto ontológico) e semelhança
(aspecto moral). E para Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.), a imagem de Deus no ser
humano não pode ser destruída, pois depende apenas de Deus; mas a semelhança pode
ser perdida, pois depende da resposta humana também: o pecado ofusca a semelhança
entre nós e Deus, mas não afeta a imagem ontológica de Deus em nós (DIEHL, 2018, p.
130-131).
Outro conceito fundamental da antropologia cristã para fundamentar os direitos
humanos, segundo Diehl (2018, p. 133-135), é a unidade entre a dimensão espiritual e a
corpórea do ser humano. Este princípio foi afirmado enfaticamente pelo Concílio Vaticano II:
• Direito à vida (Ex 20,13; Dt 5,17): o mandamento de não matar lembra que a
vida humana é um dom protegido por Deus.
• Direito à honra (Ex 20,16; Dt 5,20): a proibição de levantar falso testemunho
aponta para o direito da pessoa humana à honra e à boa reputação.
• Direito à propriedade (Ex 20,15.17; Dt 5,19.21): ao desautorizar a cobiça e o
roubo, a Lei de Deus está protegendo os bens e as posses de cada pessoa.
É claro que a Lei mosaica também inclui elementos que não estão de acordo com
os direitos humanos reconhecidos na modernidade, como a pena de morte para vários
delitos, mas neste ponto tratava-se de uma lei semelhante às demais leis do Oriente
Antigo. Aqui estamos destacando os detalhes da Lei bíblica que a diferenciam das
outras normas da época, pois nestes detalhes se encontram alguns fundamentos
dos direitos humanos em geral. Por exemplo, a Lei mosaica apresenta uma inédita
preocupação em defender os pobres, os fracos e os explorados: os direitos das viúvas,
dos órfãos e dos estrangeiros (Ex 22,20-23); a proibição de cobrar dívidas dos mais
pobres até o ponto de deixá-los sem comida e roupas (Ex 22,24-26). Estas e outras
normas em defesa do direito dos mais pobres e indefesos eram dirigidas ao povo
de Israel, mas a Bíblia as concebe como sendo universais: de fato, quando os povos
violam esses direitos fundamentais, Deus os castiga (cf. Am 1-2) como se estes povos
também fossem regidos por tais princípios morais . (DIEHL, 2018, p. 137-139).
Lendo estes mandamentos à luz da literatura profética dos séculos VIII e VII a.C.,
compreendemos que estes direitos defendidos pela Torah eram frequentemente violados.
Os profetas Amós, Oseias, Jeremias, Isaías e Miquéias denunciavam fortemente os
ricos, latifundiários, proprietários, governantes que enriqueceram explorando os pobres
e humildes. As duras palavras de Amós dão o tom destas denúncias: “vendem o
justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias” (Am 2,6). Oseias fala de um
processo de Deus contra os habitantes da terra, pois só existe “perjúrio e mentira,
assassinato e roubo, adultério e violência, e o sangue derramado soma-se ao sangue
derramado” (Os 4,2). A ligação entre os mandamentos e a preservação da liberdade
e da justiça no meio do povo fica evidente na frase de abertura do decálogo: “Eu sou
Iahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2).
Neste sentido, os mandamentos são a garantia do direito à liberdade para todo o povo
(SOARES, 2012, p. 209-212).
No NT, Jesus não aboliu a Torah, mas deu-lhe pleno cumprimento, elevando o direito
dos mais pobres a um nível ainda maior. Eis alguns elementos dos direitos humanos
presentes nos evangelhos:
• Identificação de Jesus com os que padecem necessidades e injustiças: o modo
como nos comportamos em relação aos menos favorecidos da sociedade se
torna o critério fundamental para entrar ou não no Reino dos Céus (Mt 25,31-46).
• Exortação para a prática da caridade e da justiça para com o próximo (Lc 10,30-
37).
• A não distinção de pessoas por causa de sexo, etnia ou posição social (Mt 8,5-
13; 11,19; 15,21-28; Lc 5,29-32; etc.).
• O mandamento aos apóstolos para que sejam servidores, não dominadores (Mt
20,24-28; Mc 10,41-45; Lc 22,24-30; Jo 13,12-17).
Além destes episódios, temos outras indicações importantes quanto aos direitos das
pessoas ao longo dos evangelhos. Por exemplo, a crítica de Jesus ao legalismo dos
fariseus quanto ao sábado (Mt 12,1-14; Mc 2,23-28; Lc 6,1-5) mostra que, para Jesus,
as leis foram feitas para os homens, não o contrário; e estas leis devem sempre prezar
pela vida. Nos escritos paulinos, encontramos a defesa da igualdade entre judeus e
gentios (pagãos), bem como a ideia de que em Cristo desaparecem as diferenças de
sexo, condição social, etnia e outras (Rm 10,12; Gl 3,28). A carta de Tiago condena
o tratamento desigual entre pobres e ricos na comunidade cristã (Tg 1,9-11; 2,1-13).
E as cartas de João enfatizam que o amor a Deus está estritamente ligado ao amor
ao próximo (1Jo 4,7-21). Enfim, o NT não fala especificamente em direitos dos seres
humanos, mas traz várias novidades para a época em que foi escrito, mostrando como
Deus se coloca sempre ao lado dos menos favorecidos (DIEHL, 2018, p. 139-141).
A reflexão teológica sobre o ser humano, seus direitos e deveres morais, começou
com os Padres da Igreja (ver capítulo 5 deste e-book). Para eles, assim como os judeus
foram preparados para a vinda de Cristo por meio da Revelação bíblica, assim também
os pagãos foram preparados por meio da filosofia. Os filósofos gregos, especialmente
os estóicos, diziam que a lei moral está implícita na natureza e que os homens podem
ter acesso a elas por meio da razão. Os Padres da Igreja retomaram esta filosofia
das leis naturais, defendendo que Deus havia colocado tais leis na natureza. Sendo
assim, os pagãos também possuíam uma concepção moral positiva, que não se opõe
à moral bíblica. Como consequência, os Padres da Igreja afirmam a existência de
princípios morais válidos para toda a humanidade, fundados em Deus: direito à vida,
à propriedade, à família, etc. (DIEHL, 2018, p. 142-144).
Além das leis naturais, os Padres da Igreja denunciavam as situações que geram
privação dos meios necessários para a sobrevivência das pessoas. Para eles, não
era aceitável que em uma sociedade cristã alguns acumulassem grandes riquezas,
enquanto a maioria não tinha o necessário para viver. Porém, a solução não estaria na
criação de leis civis, para os Padres da Igreja, mas na atuação consciente dos cristãos,
que deveriam dar exemplo de comportamento aos pagãos. Na Idade Média, a teologia
escolástica desenvolveu ulteriormente a teoria de uma lei natural, entendida como
uma participação da criatura humana na lei divina. Os escolásticos diferenciavam
a Lei de Deus (que se encontra na Bíblia), a lei natural (princípios morais que Deus
inscreveu no coração do homem e que podem ser alcançados pela razão) e lei civil
(definidas pelas sociedades). Neste sentido, por mais que cada sociedade tenha suas
leis próprias, todas compartilhariam aqueles princípios que dependem da lei natural
(DIEHL, 2018, p. 144-145).
Na Era Moderna, a teologia foi desafiada pela descoberta do Novo Mundo, com
povos completamente alheios aos costumes europeus (América Latina e África). Os
direitos reconhecidos aos europeus não se estenderam aos povos colonizados, levando
a uma exploração desumana destes povos por parte dos colonizadores europeus.
Diante disso, a Escola de Salamanca formulou a ideia do ius gentium, o “direito das
gentes”, postulando direitos que fossem comuns a todos os povos, independentemente
de sua adesão ou não à fé cristã. Os pensadores de Salamanca, partindo da teologia
de Tomás de Aquino, defenderam que o domínio da terra é um direito natural, não
eclesiástico, de modo que os indígenas das Américas deveriam ser reconhecidos
como senhores de duas terras e de seus bens (DIEHL, 2018, p. 146).
Até o início do século XX, a teologia católica usou a teoria sobre a lei natural
para fundamentar os direitos do ser humano, além da noção escolástica de uma lei
inscrita por Deus no coração humano, acessível por meio da razão. Porém, ao longo
do século XX, o diálogo entre a teologia e a filosofia personalista trouxe um novo
embasamento teórico para os direitos humanos. A Comissão Teológica Internacional,
em seu documento intitulado Dignidade e Direitos da Pessoa Humana (1983), afirma que
A história dos últimos séculos mostrou que, na realidade, os direitos humanos não
são verdades axiomáticas e nem verdades absolutas, ou seja, não são leis naturais: as
inúmeras atrocidades cometidas por seres humanos em plena consciência mostraram
que sem uma lei civil não há garantias de que os direitos humanos sejam respeitados
– basta lembrar dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
O reconhecimento dos direitos humanos é fruto de um processo histórico e é uma
construção da comunidade política. Ao ler este processo histórico à luz da fé, muitos
teólogos enxergam os direitos humanos como “sinais dos tempos”, pois mostram a
grandeza e o potencial dos seres humanos (OLIVEIRA, 2013, p. 150-153).
O aspecto dos direitos humanos que mais interessa à teologia é a liberdade religiosa.
No contexto dos direitos humanos, Moltmann afirma que a liberdade religiosa é o
conceito político para aquilo que chamamos de religião. Somente onde há liberdade
religiosa é que as religiões podem realmente se manifestarem, e inclusive quem não
tem religião pode se manifestar. A teologia reflete sobre os direitos humanos, não
como fundadora de seu discurso, mas como parte da pluralidade humana. Visto que
a teologia carrega memórias e esperanças edificadas na ação de Deus no mundo,
ela não pode compactuar com a violência ou qualquer ação de negação da vida.
Muitas ideias são compartilhadas pela tradição teológica e pelos direitos humanos,
como vimos acima. O desafio para a teologia é encontrar um modo de levar a sua
contribuição positiva também para aqueles que não compartilham a mesma fé cristã;
é motivar a responsabilidade pelo cuidado do mundo sem se tornar ideologia; é propor
um modelo de fraternidade para a sociedade, evitando a omissão diante da violência
(OLIVEIRA, 2013, p. 154-156).
A teologia não pode ser indiferente, mas precisa ser comprometida com a realidade
concreta das pessoas, como faziam os profetas no AT, Jesus e os apóstolos no NT,
os Padres da Igreja na época deles, e assim por diante. Os profetas denunciavam as
injustiças sociais e anunciavam a esperança e a possibilidade de mudança de rumo
para o povo. É isso que a teologia deve continuar fazendo. Neste sentido, a teologia
é um saber conjugado com os direitos humanos. Os direitos humanos podem ser
entendidos como um compromisso teológico, no horizonte profético de uma relação
de Deus com o mundo. Não o deus dos discursos abstratos, mas o Deus que se
apresenta no rosto das pessoas que sofrem com o racismo, com o sexismo, com o
etnocentrismo, com a miséria e com todo o tipo de segregação e violência. Se a teologia
por si só não consegue falar com todas as pessoas, os direitos humanos podem ser
vistos como uma extensão pública da teologia, pois são capazes de mobilizar as
pessoas para a responsabilidade comum. Mas não basta mudar a mentalidade de
algumas pessoas. Para que as conquistas relacionadas aos direitos humanos sejam
permanentes, é preciso que se tornem leis comuns para toda a humanidade (OLIVEIRA,
2013, p. 156-158).
Além dos inegáveis pontos de acordo entre teologia e direitos humanos, ainda há
muita estrada a ser percorrida para alcançar uma boa relação entre teologia/religião
e direitos humanos na sociedade atual. Hoje vemos radicalismos e fundamentalismos
religiosos que atrapalham o diálogo entre teologia e direitos humanos: igrejas que
renunciam seu caráter profético para se aliarem à política; a intolerância e a demonização
de algumas religiões; a resistência em aceitar os novos modelos de família; preconceito
de gênero; a questão do aborto, que divide opiniões; etc. Como ponto de partida, é
preciso buscar uma nova compreensão do papel da religião na sociedade: a religião
não deve se ausentar do debate público, mas não precisa se impor. Em uma sociedade
plural, cada religião/teologia pode dar a sua contribuição, mas não pode pretender ser
a única. Quando uma única verdade tenta se impor, o resultado é a violência, e isso é o
contrário do princípio da liberdade religiosa. O engajamento com os direitos humanos
é um bom espaço de ação para a teologia no mundo, para promover o bem comum,
a justiça, a tolerância, a luta contra a desigualdade e contra todo tipo de violência.
Neste intuito, a teologia deve dialogar com outras áreas e grupos que também lutam
pelos direitos humanos; e deve dar voz para aqueles que têm seus direitos negados
(OLIVEIRA, 2013, p. 158-160).
Em síntese, na primeira parte deste capítulo tratamos dos fundamentos bíblico-
teológicos dos direitos humanos. O primeiro bloco de fundamentação teológica está
ligado à antropologia cristã: o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus; e
a unidade entre a dimensão espiritual e corpórea. Os fundamentos bíblicos encontram-
se, sobretudo, nos mandamentos de Deus em vista da liberdade e da justiça. E os
fundamentos teológicos podem ser encontrados no conceito patrístico e escolástico de
“direito natural”; ou no conceito moderno de “direito das gentes”; ou ainda na filosofia/
teologia personalista que define o ser humano como relacional. Na segunda parte,
falamos especificamente sobre a relação entre teologia e direitos humanos, observando
que existem muitas semelhanças entre as asserções destas duas áreas do saber, mas
também existem diferenças. A liberdade religiosa é o conceito central para relacionar
teologia e direitos humanos. E o engajamento pelos direitos humanos é um bom
campo de ação para a teologia no mundo de hoje.
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 170
INTRODUÇÃO A TEOLOGIA
PROF. DAVI DAGOSTIM MINATTO
CAPÍTULO 15
TEOLOGIA E SOCIEDADE
(TEOLOGIA SOCIAL)
Caros alunos e alunas, chegamos ao último capítulo do nosso e-book e, para completar
a apresentação das relações entre teologia e outras áreas do saber, vamos falar sobre a
relação entre teologia e sociologia. Alguns autores chamam esta abordagem sociológica
da teologia de “teologia social”, mas esta não é uma nomenclatura muito utilizada.
Todavia, a ligação entre a teologia e a sociedade em geral, essa sim é notada pela
maioria dos autores, porque a teologia tem uma dimensão prática inegável, como
vimos no capítulo 2. Por isso, vamos começar este capítulo tratando da relação entre
teologia e sociedade. Depois vamos apresentar brevemente a doutrina social da Igreja.
E na terceira parte, vamos destacar um dos conceitos centrais da teologia social: a
diaconia, pois a teologia é também um serviço à humanidade.
Deus libertador ou um Deus opressor) e a ordem social que criamos. Para transformar
a sociedade, precisamos primeiro purificar a nossa fé e a nossa concepção de Deus,
a partir de uma hermenêutica histórico-social da Bíblia e das verdades teológicas
(FERRARO, 2012, p. 79-81).
Sendo assim, é necessário supor uma integração entre indivíduo e sociedade, não
uma oposição. A ideia de uma subjetividade relacional leva a esta integração, pois
pensa o ser humano como alguém voltado para a colaboração e a comunhão com os
seus semelhantes. Quando falta esta colaboração e comunhão, surgem as injustiças
sociais e a violência. Neste momento, a doutrina social da Igreja se coloca ao lado dos
injustiçados, violados, pobres, humilhados, defendendo os seus direitos e denunciando
o pecado social. Todavia, a doutrina social não pode apenas intervir nos momentos
dramáticos, mas deve também projetar e propor uma sociedade mais justa, com
responsabilidades econômicas, políticas e administrativas. Todos os cristãos, não
apenas os líderes religiosos, devem assumir este compromisso social permanente
(WANDERLEY, 2012, p. 161).
Além dos fundamentos bíblicos e teológicos, a doutrina social da Igreja se constitui
também a partir das contribuições das ciências sociais e humanas. Trata-se de uma
doutrina interdisciplinar, aberta às ciências e às problemáticas da atualidade, sem
renunciar à fé. Por outro lado, as ciências humanas e sociais também podem buscar
inspiração na abordagem da doutrina social da Igreja. A colaboração é mútua. Deste
modo, os cristãos poderão realmente evangelizar o social, ou seja, “fazer ressoar
a palavra libertadora do Evangelho no complexo mundo da produção, do trabalho,
do empresariado, das finanças, do comércio, da política, do direito, da cultura, das
comunicações sociais, em que vive o homem” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
2004, n. 70).
A doutrina social da Igreja afirma que todos são responsáveis pelo bem comum,
e cada um deve buscar o bem do outro como se fosse próprio. Já em 1931, Pio XI
ensinava, na encíclica Quadragesimo Anno (n. 167), que os bens da criação devem ser
repartidos tendo em vista a justiça social e o bem comum, contudo não é o que se
observa na sociedade, onde um número pequeno de ultra-ricos concentra grandes
rendas, enquanto um grande número de pobres tem o mínimo para viver. Não só
os indivíduos devem buscar o bem comum, mas o Estado também tem o dever de
garantir a coesão, a unidade e a organização da sociedade civil. Para o cristianismo,
o conceito de “bem comum” inclui os bens materiais necessários para se viver bem,
mas inclui também os bens espirituais, a transcendência, a salvação realizada por
Cristo Jesus (WANDERLEY, 2012, p. 162-165).
É necessário buscar a destinação universal dos bens da criação. Os direitos civis,
como o direito de propriedade e o livre comércio, estão subordinados à destinação
universal dos bens, que é considerado um direito natural: “A destinação universal dos
bens comporta um esforço comum que mira obter [...] para todos os povos as condições
necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para
a promoção de um mundo mais humano” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
2004, n. 175). Enfim, a destinação universal dos bens não é simplesmente um gesto
de caridade, é uma obrigação da justiça social.
Um tópico importante da doutrina social, que nem sempre é bem compreendido, diz
respeito ao conceito de caridade. Ao contrário do que muitos pensam, caridade não é
sinônimo de assistencialismo. Para a doutrina social, a caridade supõe e transcende
a justiça, a qual deve ser completada pela caridade. A caridade conduz os homens e
os povos a viverem na unidade, na fraternidade e na paz:
A diaconia como ação social é muito ampla e inclui todas as atividades dos cristãos
no sentido de suprir as necessidades materiais das pessoas, aliviar o sofrimento
humano, atenuar ou eliminar os males sociais, etc. O propósito social da diaconia é
dar melhores condições de vida para as pessoas, suprindo as carências humanas
fundamentais no âmbito material: moradia, alimentação, saúde, trabalho, educação,
etc. Ao longo da história, a Igreja muitas vezes cumpriu estes serviços sociais, que
hoje deveriam ser de responsabilidade dos Estados, mas nem sempre são plenamente
realizados pelas estruturas estatais. Sendo assim, a Igreja deve continuar lutando por
melhores condições de vida na sociedade, sem descuidar dos aspectos espirituais.
A diaconia da Igreja inclui o serviço religioso (pregação, aconselhamento, momentos
de oração, etc.) e a assistência social (PEZZINI, 2016, p. 31-32).
Quando o termo diakonos (aquele que serve) entrou no NT, já tinha um significado
concreto na Grécia Antiga. Diácono era o garçom que servia alimento para as pessoas,
em uma espécie de restaurante público, criado para garantir a sobrevivência dos mais
necessitados. De fato, a instituição do diaconato no NT segue esta mesma linha:
O diaconato é o único ministério cristão que surgiu de uma fato social, para resolver
a situação social das viúvas helenistas, que estavam sendo negligenciadas em suas
necessidades. O diaconato nasce para distribuir alimento aos necessitados da Igreja
primitiva. Além dos diáconos propriamente ditos, todos os cristãos exerciam a diaconia
CONCLUSÃO
a sua teologia, de modo que chegamos aos séculos XIX e XX com grandes nomes,
como Barth e Bultmann representando a teologia protestante, e Rahner na teologia
católica (cap. 8). Quanto à teologia contemporânea, destacamos a sua pluralidade
e diversidade, que inclui correntes teológicas em diálogo com a pós-modernidade
e correntes mais fundamentalistas (cap. 9). E concluímos este percurso histórico
tratando especificamente da teologia latino-americana, com destaque para a teologia da
libertação, a cristologia do Jesus encarnado na história e a eclesiologia do discipulado
(cap. 10).
Na terceira e última seção, observamos como a teologia se relaciona com as outras
disciplinas ou áreas do saber humano. Falamos sobre a relação entre teologia e ciência,
que atualmente é marcada pelo diálogo positivo; além da proximidade entre teologia e
a cultura humana desde o início do cristianismo (cap. 11). Depois tratamos da relação
entre filosofia e teologia, existente desde o surgimento da teologia, visto que esta
necessita de uma base filosófica para formular os seus conceitos (cap. 12). Também
argumentamos que a teologia pode contribuir com a educação, especialmente através
do Ensino Religioso, ao promover os valores humanos como o diálogo, a harmonia,
a boa convivência, o amor, a liberdade, o respeito, a experiência transcendental, etc.
(cap. 13). Mostramos a importância da relação entre teologia e direitos humanos,
pois existem fundamentos bíblico-teológicos para os direitos humanos, e porque a
liberdade religiosa é um valor comum entre estas duas áreas (cap. 14). Enfim, tratamos
da relação entre teologia e sociedade, com destaque para o compromisso social da
fé, a doutrina social da Igreja e a diaconia exercida pelos cristãos no mundo (cap. 15).
Eis a planta da casa da teologia. A partir do que estudamos, prezadas alunas
e alunos, temos uma visão geral do que é a teologia, de como ela se desenvolveu
ao longo da história e de como ela pode contribuir no conjunto das disciplinas ou
saberes humanos. Com estes instrumentos, podemos, a partir de agora, entrar cada
vez mais no universo teológico, descobrindo as suas riquezas e acrescentando a
nossa contribuição.
REFERÊNCIAS
GARMUS, Ludovico. A educação dos filhos nos livros sapienciais. Estudos Bíblicos,
v. 23, n. 85, p. 30-43, 2005.
LIBANIO, João Batista. Introdução à Teologia Fundamental. São Paulo: Paulus, 2014.
OLIVEIRA, Kathlen Luana de. Teologia e direitos humanos: reivindicações por novos
relacionamentos. PLURA, Revista de Estudos de Religião, v. 4, n. 1, p. 150-164, 2013.
PAYNE, David F.. Education. In: MARSHALL, I. Howard; PACKER, James I.; MILLARD,
Alan; WISEMAN, Donald J. New Bible Dictionary. Downers Grove: Intervarsity Press,
1996. p. 292-294.