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INTRODUÇÃO A

TEOLOGIA
PROF. DAVI DAGOSTIM MINATTO
FACULDADE CATÓLICA PAULISTA

Prof. Davi Dagostim Minatto

INTRODUÇÃO
A TEOLOGIA

Marília/SP
2022
Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior


A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma
ação integrada de suas atividades educacionais, visando à
geração, sistematização e disseminação do conhecimento,
para formar profissionais empreendedores que promovam
a transformação e o desenvolvimento social, econômico e
cultural da comunidade em que está inserida.

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emissão de conceitos.
INTRODUÇÃO A TEOLOGIA
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 01 DEFINIÇÃO DE TEOLOGIA 08

CAPÍTULO 02 OS MÉTODOS TEOLÓGICOS 18

CAPÍTULO 03 AS FONTES DA TEOLOGIA 31

CAPÍTULO 04 OS RAMOS DA TEOLOGIA 46

CAPÍTULO 05 A TEOLOGIA PATRÍSTICA 58

CAPÍTULO 06 A TEOLOGIA MEDIEVAL 71

CAPÍTULO 07 A TEOLOGIA DA REFORMA 82

CAPÍTULO 08 A TEOLOGIA NA ERA MODERNA 95

CAPÍTULO 09 A TEOLOGIA NA CONTEMPORANEIDADE 106

CAPÍTULO 10 TEOLOGIA LATINO-AMERICANA 118

CAPÍTULO 11 TEOLOGIA, CIÊNCIA E CULTURA 129

CAPÍTULO 12 FILOSOFIA E TEOLOGIA (FILOSOFIA DA 139


RELIGIÃO)

CAPÍTULO 13 TEOLOGIA E EDUCAÇÃO: O ENSINO 149


RELIGIOSO

CAPÍTULO 14 TEOLOGIA E DIREITOS HUMANOS 160

CAPÍTULO 15 TEOLOGIA E SOCIEDADE (TEOLOGIA SOCIAL) 171

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INTRODUÇÃO

Prezada aluna, prezado aluno, estamos iniciando o nosso percurso de introdução


ao universo da teologia. Esta disciplina é como uma porta de entrada: sem a porta,
não temos acesso à casa; porém, ninguém fica parado na porta o tempo todo. Neste
sentido, esta Introdução à Teologia é um convite para que você entre na casa da
teologia e descubra sempre mais a suas riquezas.
Junto com o convite, queremos oferecer-lhe a “planta da casa”, para que você
conheça a sua estrutura e saiba como se mover dentro deste edifício. Neste e-book,
vamos dividir a planta do edifício teológico em três compartimentos principais: primeiro
precisamos entender o que é a teologia; depois, vamos caminhar por dentro do edifício
teológico ao longo da história; enfim, vamos observar como a teologia se relaciona
com seus vizinhos, ou seja, com as outras disciplinas. Sendo assim, nosso e-book
contém três seções principais: definição de teologia; história da teologia; e a relação
entre teologia e outras disciplinas.
Na primeira seção, vamos começar analisando as definições de teologia. Depois
trataremos dos métodos teológicos, pois toda ciência e toda disciplina tem suas
regras próprias de elaboração teórica. Também observaremos quais são as fontes
da teologia, ou seja, de onde a teologia toma a matéria prima para as suas reflexões.
E apresentaremos de forma panorâmica os vários ramos da teologia, ou seja, as
disciplinas que compõem o universo teológico.
Na segunda seção, vamos fazer um percurso histórico, passando pelas principais
fases da teologia ao longo dos séculos. Em primeiro lugar, temos a teologia patrística
(séculos I-V). Depois a teologia escolástica, durante a Idade Média (séculos V-XV).
A teologia moderna será vista em dois capítulos: um sobre a Teologia da Reforma;
outro sobre a teologia na Era Moderna em geral (séculos XVI-X). Chegaremos, então,
à teologia na Contemporaneidade, com destaque para a Teologia Latino-Americana.
A terceira seção vai colocar a teologia em relação com outras disciplinas ou áreas
do saber humano. Antes de tudo, a tão discutida relação entre teologia e ciência,
com algumas observações também sobre a cultura em geral. Depois trataremos da
mais antiga disciplina que se relaciona com a teologia: a filosofia. Em terceiro lugar,
falaremos da educação em sua relação com a teologia, com destaque para o Ensino

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Religioso. Também vamos apontar para a fundamental relação entre teologia e direitos
humanos. E concluiremos mostrando como a teologia se relaciona com a sociedade,
ou seja, como a teologia ouve os clamores da sociedade e como pode transformar
o meio social.
No final deste percurso, não teremos um conhecimento geral de teologia, mas
teremos a planta do edifício teológico, para podermos entrar e conhecer este edifício
por dentro, contemplando-o com nossos próprios olhos. Este é o convite da Introdução
à Teologia. Então, por favor, vamos entrando no universo teológico a partir das páginas
a seguir!

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CAPÍTULO 1
DEFINIÇÃO DE TEOLOGIA

Olá, prezado estudante! Estamos dando nossos primeiros passos no mundo da


teologia, por isso esta disciplina se chama justamente “Introdução à Teologia”. O
primeiríssimo passo a ser dado consiste em entender o que realmente é a teologia.
Por isso, nesta primeira aula procuraremos elaborar uma definição de teologia.
Começaremos analisando o significado da própria palavra “teologia” e o modo como
esta palavra foi usada ao longo da história até os nossos dias. Em seguida, vamos falar
da teologia em suas várias faces: como ciência da fé, como reflexão da comunidade
eclesial e como disciplina acadêmica. No final, teremos os elementos essenciais para
responder à nossa pergunta inicial sobre o que é a teologia.

1.1 O que é Teologia?

O vocábulo “teologia” é formado por duas palavras gregas: theos, que significa
Deus; e logos, que significa palavra ou discurso. Por definição, a teologia é o discurso
sobre Deus. Em sentido um pouco mais largo, a teologia é o estudo de Deus, dos
ensinamentos religiosos e dos temas pertencentes à esfera do sagrado. A teologia
não é sinônimo de religião, pois a religião está no campo da experiência humana,
não da reflexão. Também não é sinônimo de doutrina, porque a doutrina tem a ver
com ensinamentos e instruções religiosas. Ao contrário, a teologia está no campo da
reflexão sistemática, que segue métodos e princípios específicos. O objeto da reflexão
teológica é a verdade de Deus; e o produto desta reflexão é a fé e a prática religiosa
(EVARISTO FILHO, 2016, p. 18).
No entanto, existem outras ciências que também tem Deus como objeto: a diferença
é o enfoque. A teosofia é um conhecimento de Deus que remonta a uma especulação
filosófica de raiz mística; trata-se de um estudo especulativo da sabedoria divina, típico
das religiões do Extremo Oriente. A teodicéia, em sua acepção original, é a justificativa
da bondade divina em resposta ao problema da existência do mal (teodicéia de Leibniz);
com o tempo, tornou-se sinônimo de “teologia natural”, que busca responder à questão

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se Deus existe e qual é a sua essência, usando apenas os instrumentos da razão


humana (filosofia). À diferença destas duas disciplinas, a teologia procura elaborar
um saber sobre Deus a partir da intuição iluminadora – que chamamos de Revelação
– e traz como resultado o sentimento religioso (a fé), não só o discurso intelectivo
(LIBANIO; MURAD, 2005, p. 63).
Visto que a teologia busca um conhecimento de Deus baseado não só na razão
humana, mas sobretudo na revelação divina, então a Sagrada Escritura é a sua base
principal, é a sua primeira “fonte” – falaremos das fontes da teologia na aula 3. Todavia,
é importante notar que a teologia não nasceu na Bíblia. O Novo Testamento foi escrito
em grego, mas não contém em nenhuma parte a palavra grega theologia. Encontramos
palavras como theópneustos “inspirados de Deus” (2Tm 3,16) e theodídaktoi “aprendizes
de Deus” (1Ts 4,9), mas não “teólogos”. A Primeira Carta de Pedro fala em “dar razão
da vossa fé” (1Pd 3,15), e essa é a ideia neotestamentária mais próxima da definição
de teologia, mas sem usar o termo theologia (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 64).

Título: A Revelação divina na Bíblia como base primária da Teologia


Fonte: https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/old-book-ray-light-12790036

Na verdade, a palavra theologia tem origem pagã. No teatro grego, acima do palco,
havia um lugar onde os deuses apareciam, o theologeion. O verbo theologēo significava
discursar sobre os deuses ou sobre a cosmologia. E o termo theologia era usado no
sentido de ciência das coisas divinas; também podia indicar uma oração em louvor
ou uma invocação a um deus. Neste sentido, o theologos era sobretudo aquele que
discursava sobre os deuses, mas também podia ser um discursador sobre poetas
(como Hesíodo ou Orfeu) ou sobre cosmólogos (como os órficos). Até mesmo os
adivinhos eram chamados de teólogos. Nos primórdios da teologia cristã latina, o
termo theologia era aplicado apenas em sentido pagão, como referência ao estudo

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dos deuses. Até mesmo Agostinho fala de três gêneros de teologias (mítica, natural
e civil) enquanto explicação sobre os deuses (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 64-65).
Talvez Orígenes tenha sido o primeiro a usar a palavra theologia para se referir ao
discurso sobre Deus e sobre Cristo, mas ele também usava o termo theologos em
sentido pagão. Eusébio levou adiante esta assimilação cristã ao falar de uma teologia
sobre Cristo. E a Patrística Grega, a partir do século IV, assumiu o termo theologia para
o discurso sobre Deus, sobre a Trindade e sobre Cristo. No mundo latino, Abelardo
usava a palavra “teologia” para referir-se ao tratado sobre Deus, e “beneficia” para
o discurso sobre Cristo. A Escolástica, apesar de não rejeitar a palavra “teologia”,
preferiu usar outras expressões, como doctrina divina, sacra doctrina, divina institutio,
etc. Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo, preferia o termo doctrina christiana
mais do que “teologia”. No período de Duns Scotus (1266-1308), o termo “teologia” se
tornou sinônimo de sacra doctrina, com uma pequena diferença: “teologia” se referia
sempre a uma atividade especulativa, que na verdade era só uma parte da sacra
doctrina. Essa limitação fez com que a Idade Moderna dividisse a teologia em vários
ramos: teologia mística, teologia moral, apologética, teologia escolástica, entre outras
(LIBANIO; MURAD, 2005, p. 66-67).

ISTO ESTÁ NA REDE

Para aprofundar um pouco mais sobre o significado do termo “Teologia” e o uso


desta palavra desde a Antiguidade até os nossos dias, veja esse breve artigo no
site InfoEscola. São informações complementares em relação ao conteúdo que
acabamos de ver: https://www.infoescola.com/religiao/teologia/

Gonzalez e Perez (2003, p. 10-25) insistem que para entender o que é a teologia
não basta definir o significado desta palavra, mas é preciso responder qual é a função
da teologia. Eles apresentam cinco tarefas principais da teologia:
• A teologia como explicação da realidade: não é uma explicação de como as coisas
funcionam ou de como se formaram, mas de qual é o seu lugar nos propósitos
de Deus.
• A teologia como sistematização da doutrina cristã: desde o início do cristianismo,
a teologia tem a função de organizar e explicitar os pontos principais da fé;
hoje esta função se traduz como avaliar criticamente as novas idéias e novas

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propostas, a partir da doutrina já consolidada, levando esta mesma doutrina a


uma constante renovação.
• A teologia como defesa da fé e como ponte até os crentes: no cristianismo primitivo, o
confronto com a cultura romana gerou muitas críticas às crenças dos cristãos, os
quais eram acusados de serem “ateus” à causa da fé “estranha” que professavam.
Por isso, os primeiros teólogos se ocuparam de defender a fé e construir pontes
com a cultura filosófica da época (teologia apologética).
• A teologia como crítica da vida e da proclamação da igreja: a teologia examina o
modo como a igreja realiza a sua missão de proclamar a Palavra de Deus; não
se trata de fazer uma crítica negativa, mas de auxiliar a igreja para que mantenha
sempre o seu discurso de acordo com o evangelho. A teologia também deve
avaliar a vida da Igreja, ou seja, o modo como organiza suas estruturas, seu
governo e suas iniciativas, para que se mantenha fiel à Revelação.
• A teologia como contemplação: fazer teologia não é só uma questão intelectual
ou uma aplicação correta do método teológico, mas é necessário também ter
fé e devoção diante do mistério divino contemplado.

Para concluir a primeira parte desta aula, vamos destacar a definição de teologia dada
por Karl Rahner (apud MATOS, 2020, p. 17): “É a explanação e explicação consciente
e metodológica da Revelação divina, recebida e aprendida na fé”. Ou seja, a teologia
é a ciência da fé, o esforço humano para compreender e interpretar a experiência
de fé na Igreja e comunicá-la em linguagem e símbolos. A teologia é, praticamente,
o desdobramento teórico e intelectual da fé. A experiência de fé é a sua condição
interna e essencial. Neste sentido, fazer teologia corresponde a aprofundar, justificar
e esclarecer o ato de fé em Deus. Pela teologia, o cristão busca compreender o que
crê, captando pela razão aquilo de que já está convencido pela fé. Vamos aprofundar
a seguir o significado da teologia como ciência da fé.

1.2 Teologia como ciência da fé

Falar da teologia como ciência da fé significa considerar dois aspectos fundamentais:


o conhecimento intelectual (ciência) e a fé. Neste sentido, a teologia se define como
uma reflexão crítica e sistemática sobre a intelecção da fé. Em outras palavras, a
teologia implica um esforço de compreensão da inteligência humana, para aprofundar,

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justificar e esclarecer a própria fé. E a fé é a ligação entre Deus e o homem, portanto, a


teologia visa chegar até Deus. A teologia trata de Deus, mas não de qualquer forma: fala
de Deus pela mediação da fé. Sendo assim, não é possível fazer teologia em sentido
próprio quando não há fé. Por sua vez, a fé implica a acolhida da Palavra de Deus
contida na Sagrada Escritura e na Tradição da Igreja (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 67).
A teologia como inteligência da fé se relaciona ao tema do sentido da vida. O
ser humano não se contenta com explicações parciais e superficiais, mas busca o
sentido pleno de sua existência. O cristão encontra esta razão última em Deus, o
mesmo Deus que se revela na história e, de forma definitiva, na pessoa de Jesus. A
reflexão sobre o Deus de Jesus Cristo traz uma nova compreensão sobre a vida e o
significado da realidade humana. Falar em inteligência da fé não significa referir-se
apenas ao aspecto intelectual, mas sobretudo ao aspecto existencial da teologia: ela
busca trazer respostas quanto ao sentido radical da existência (MATOS, 2020, p. 19).
A definição de teologia como inteligência da fé implica uma grande pluralidade
de teologias, conforme entendemos o significado de “inteligência” e de “fé”. A partir
do significado patrístico de “inteligência”, a teologia seria um conhecimento afetivo,
intuitivo e existencial da fé. Na concepção escolástica, seria a compreensão da fé
em seus princípios constitutivos, em sua estrutura ontológica e em seus elementos
fundamentais. Segundo a visão da filosofia moderna transcendental, a teologia deveria
ser um conhecimento crítico, capaz de questionar os seus próprios fundamentos e o
ato de crer. Para a filosofia hermenêutica, seria uma interpretação da fé, evidenciando
as pré-compreensões do ato de crer. Com as filosofias pragmáticas, a teologia se
apresenta como estudo das condições sociais, políticas, econômicas e ideológicas
do ato de crer. Todas estas definições são possíveis. Em comum, essas definições
mostram que “a teologia eleva o nível de conhecimento, que se tem da fé, conforme
as exigências e demandas da inteligência, da experiência, da vida” (LIBANIO; MURAD,
2005, p. 69).
A fé também comporta uma variedade de concepções. A distinção clássica entre
fides qua (fé pela qual se crê) e fides quae (fé que se crê) pode ser tomada como
uma síntese desta variedade. A fides qua indica o aspecto de confiança presente na
fé, é o ato pelo qual alguém se entrega em liberdade à Palavra de Deus revelada. E
a fides quae é o aspecto objetivo, pois diz respeito ao conteúdo da fé; consiste em
reconhecer a verdade da Palavra revelada. Sendo assim, a teologia só é possível
quando há confiança na revelação divina; e quando há adesão objetiva ao conteúdo

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da revelação. Não há teologia cristã sem fé, assim como não há fé verdadeira sem
um mínimo de intelecção e aprofundamento. A teologia, portanto, é a ciência da fé,
pois reflete sobre a fé, enquanto ato de confiança em Deus, e sobre o conteúdo da fé
(Palavra revelada). Deus está implícito na definição de fé, então teologia é a ciência
de Deus:

Deus é o objeto da teologia – aspecto objetivo – ao qual o teólogo


tem acesso pela fé transmitida na pregação viva da Igreja – aspecto
subjetivo –, e sua reflexão crítica e metódica se faz a respeito de
Deus na mediação da fé acolhida na tradição viva da Igreja” (LIBANIO;
MURAD, 2005, p. 70).

A teologia como ciência da fé ultrapassa o campo restrito do discurso sobre Deus,


pois trata também de temas como a libertação, o mundo, a história, a pregação, a moral,
etc. Todos estes temas, porém, precisam estar relacionados com Deus. Por outro lado,
nem tudo o que se relaciona com Deus é teologia, visto que também outras disciplinas
podem tratar de questões relacionadas com Deus: a etnografia religiosa, a história das
religiões, a antropologia religiosa, etc. O que diferencia estas disciplinas da teologia
é a atitude de fé: fazer teologia é falar de Deus a partir da fé na Revelação divina. É
preciso acrescentar uma outra especificação: nem tudo o que está relacionado com
a fé é teologia. Se a teologia é ciência da fé isso significa que ela está submetida às
exigências da racionalidade de um discurso estruturado segundo regras bem definidas.
Um simples discurso religioso ou piedoso não se configura necessariamente como
teologia. Somente a reflexão da fé feita de forma científica, disciplinada e articulada
poderá ser definida como teologia (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 75-76).

1.3 Teologia como reflexão da comunidade eclesial

A teologia reflete sobre Deus, mas não de forma abstrata. Entre o teólogo e Deus
há uma mediação: a fé transmitida na Igreja. Neste sentido, a comunidade que
professa e vive a sua fé é um elemento essencial da teologia. O teólogo começa a
refletir a partir da fé recebida e vivida em uma comunidade eclesial. Em uma era que
favorece a individualização da fé, é importante salientar esse aspecto comunitário
da teologia, sem o qual não pode existir uma verdadeira reflexão teológica. A fé tem
seu aspecto subjetivo, individual e íntimo. Mas não se limita a isso, pois do contrário
cada um criaria a sua própria religião. A comunidade eclesial é o espaço adequado

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para a transmissão e a reflexão da fé. Na prática, isso significa que a teologia deve
levar em conta as questões, os problemas, as angústias e as dúvidas presentes nas
comunidades concretas. Por outro lado, a comunidade se torna critério de avaliação
da teologia: se esta não responde a seus problemas e não se torna compreensível à
comunidade, acaba se perdendo em um mundo etéreo sem contato com a realidade
(LIBANIO; MURAD, 2005, p. 72-73).
A relação entre teologia e comunidade eclesial acontece por um movimento duplo:
antes de tudo, a teologia reflete sobre a experiência de fé que se realiza na comunidade;
e a comunidade aprofunda a sua fé a partir da reflexão teológica. Em outras palavras,
a comunidade faz teologia, e a teologia forma comunidade. É uma relação mútua. A
linguagem é a mediação entre o âmbito da comunidade e a disciplina teológica, por
isso precisa ser uma linguagem compreensível. Neste sentido, a teologia é a ciência
da linguagem da fé. Assim como os seres humanos constroem a própria identidade
a partir do desenvolvimento da linguagem, assim também a comunidade eclesial
constrói a sua identidade cristã a partir da linguagem teológica. Porém o processo de
fazer teologia não é só uma questão comunitária e humana, mas é um processo de
revelação: o teólogo e a comunidade eclesial precisam desenvolver uma docilidade à
graça de Deus através da fé (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 73-74).

Título: Comunidade eclesial unida a Jesus


Fonte: https://airtonmgusmao.files.wordpress.com/2017/07/comunidade-eclesial-de-base.jpg?w=662

Visto que a fé não é uma atitude simplesmente individual, mas sobretudo comunitária,
assim também a teologia não é uma atividade privada, mas essencialmente eclesial.

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É na comunidade eclesial que a fé nasce e se mantém, por isso a igreja é o espaço


vital da teologia. O objeto primário da teologia é a fé revelada e confiada a todo o
povo de Deus. A teologia reflete e repensa esta fé revelada, em constante diálogo
com a Tradição viva da igreja, ao mesmo tempo atenta às necessidades e urgências
do mundo atual. A comunidade eclesial recebe, antes de tudo, o kerigma (anúncio), e
só depois acontece a didaskalia (ensino). O ponto de partida da teologia é a revelação
ou evento querigmático; o ensinamento e a doutrina vêm em um segundo momento,
como um produto, não como objeto primário de reflexão. Sendo assim, a teologia
parte da Revelação recebida pela comunidade e retorna para a comunidade como
aprofundamento da fé (MATOS, 2020, p.19-20).

1.4 Teologia como disciplina acadêmica

A teologia profissional ou acadêmica segue as exigências do pensamento elaborado


das disciplinas modernas. Tem sua lógica, seu método e forma um sistema, porém
não deixa de ser dinâmica. Seu processo teórico se articula em dois momentos,
como nas outras disciplinas: recolher os dados sobre o tema em questão (auditus
fidei) e realizar uma reflexão especulativa (intellectus fidei). A hermenêutica teológica
utilizada na elaboração teórica comporta alguns passos: a correta utilização dos dados
provenientes da Escritura e da Tradição, a observação das manifestações vitais da
comunidade eclesial, e o conhecimento dos dogmas e das definições do Magistério.
A teologia acadêmica acontece em um espaço formal de ensino que pode ser um
instituto teológico, um seminário ou uma faculdade de teologia. Ao concluir o primeiro
grau (bacharelado), o aluno deve ser capaz de realizar uma síntese dos elementos
centrais do edifício teológico e saber situar as novas reflexões dentro do quadro maior
de referência. Por outro lado, o mestrado e o doutorado têm como propósito ampliar
o leque de conhecimentos e fornecer ao aluno o conhecimento das regras internas
do discurso teológico, ou seja, os mecanismos de elaboração de sua prática teórica.
Deste modo, formam-se pesquisadores na área da teologia, professores universitários
e assessores especializados para a pastoral. O percurso completo deve habilitar o
aluno a fazer e ensinar teologia em nível acadêmico, além de dar-lhe os instrumentos
para interpretar e discutir os temas da atualidade à luz da teologia (LIBANIO; MURAD,
2005, p. 203-204).

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O grande desafio dos teólogos profissionais e dos estudantes de teologia é a


passagem da teologia acadêmica à pastoral. Por exemplo, uma homilia feita em
forma de exegese ou uma catequese que resume a elaboração dogmática da igreja
serão teologicamente corretas, porém pastoralmente inúteis. A pastoral não consiste
simplesmente em adaptar os conteúdos de um curso de teologia, não é tampouco uma
teologia acadêmica simplificada ou resumida. A teologia pastoral tem o seu método e
a sua linguagem própria. Na passagem da teologia acadêmica para a pastoral, utiliza-
se a mesma matéria-prima (a Revelação), mas o produto final é diferente. A pastoral
deve partir dos problemas concretos da comunidade, buscando respondê-los à luz
da Revelação e da reflexão teológica. Por outro lado, a teologia não se limita a trazer
respostas para um determinado contexto comunitário, mas possui um campo muito
mais amplo, em diálogo com as demais ciências humanas nos mais variados contextos.
Em comum, a teologia e a pastoral devem ser dinâmicas e flexíveis, procurando
responder aos novos problemas à luz dos conhecimentos já consolidados (LIBANIO;
MURAD, 2005, p. 205-206).
Entre a teologia acadêmica e a pastoral deve haver diálogo e reciprocidade. Por
um lado, a teologia ilumina a pastoral, auxiliando na compreensão e na interpretação
sempre atual dos dados da fé, e purificando concepções religiosas ultrapassadas ou
fortemente marcadas por ideologias. Por outro lado, a pastoral alimenta a teologia
fornecendo novas perguntas e demandas, como os problemas sociais, as questões
culturais, a religiosidade popular, o protagonismo das mulheres, o movimento ecológico,
entre outros. Por seu contato constante com a realidade humana, a pastoral suscita
novas matrizes teológicas e novos modelos de igreja, que a teologia acadêmica deve
apreciar e confrontar com a Revelação. No entanto, a constante relação entre teologia e
pastoral não pode eliminar a especificidade de ambas. A pastoral não consiste somente
em apresentar reflexões teológicas adaptadas à realidade das pessoas, mas exige
compromisso social, sensibilidade com os sofrimentos e alegrias do povo, metodologia
eficaz e participativa, etc. E a teologia não se limita a refletir sobre uma realidade
pastoral específica, mas comporta um estudo longo e profundo sobre os dados da
Revelação e da Tradição (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 207-208).
O ambiente acadêmico deveria ser o espaço ideal para que a relação entre pastoral
e teologia frutifique. Os alunos envolvidos na realidade pastoral são chamados a trazer
para sala de aula as perguntas autênticas, suscitadas em seu confronto com o mundo.
Os professores e pesquisadores, que muitas vezes também estão envolvidos em

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atividades pastorais, são chamados a manter em seu horizonte as grandes questões


da pastoral e as problemáticas do mundo contemporâneo, para refletir sobre elas à
luz da ciência teológica. A teologia acadêmica e a comunidade de fé crescem quando
há esta intercomunicação. Para “teologizar a pastoral”, Libanio e Murad (2005, p.
210-211) propõem um percurso com quatro passos, que podem ser percorridos por
todos os acadêmicos:
• Recolher os dados que o povo ou determinado grupo eclesial apresenta.
• Sistematizar e organizar conceitualmente os elementos captados a partir de
uma metodologia teológica.
• Fazer uma leitura dos dados organizados a partir de uma dupla ótica: partindo
da teologia, identificar os elementos positivos da prática pastoral e mostrar
seus limites e deficiências; partindo da pastoral, fecundar a teologia como os
elementos advindos da vida das pessoas e grupos.
• Verificar, junto ao grupo eclesial, o trabalho teológico realizado, enriquecendo a
compressão de fé das pessoas com a reflexão teológica elaborada.

Deste modo, a teologia acadêmica se alimenta da pastoral e a ilumina; e a pastoral


se torna mais rica e consciente, graças a sua relação com a teologia acadêmica.
Para concluir esta unidade, vamos elaborar em um parágrafo uma definição de
teologia que contenha os principais elementos vistos nesta aula. Em sentido estrito,
a teologia é o discurso sobre Deus. Em sentido largo, a teologia é o estudo sobre
tudo aquilo que está relacionado com Deus: os ensinamentos religiosos, os temas
da esfera do sagrado, a espiritualidade, a doutrina, a história da salvação, etc. Visto
que também outras disciplinas falam de Deus (a teosofia, a história das religiões, a
antropologia religiosa, etc.), a teologia se distingue pelo método: o seu discurso sobre
Deus se baseia na Revelação divina (que inclui a Bíblia e a Tradição da Igreja) e acontece
dentro de uma comunidade eclesial. Trata-se de uma reflexão que parte da experiência
de fé da comunidade e volta para comunidade como esclarecimento da fé à luz da
Revelação. Por isso, a teologia também é chamada de “ciência da fé”, pois comporta,
por um lado, um esforço da inteligência humana e, por outro lado, uma abertura para
acolher a Palavra de Deus mediante a fé. Enfim, toda a riqueza da ciência teológica
deve alcançar as pessoas em seu cotidiano: essa é a função da teologia acadêmica,
que faz a ponte entre a reflexão teórica e a vida pastoral das comunidades.

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CAPÍTULO 2
OS MÉTODOS TEOLÓGICOS

Prezados estudantes, como sabemos, toda ciência tem um objeto e um método. No


capítulo anterior vimos que o objeto da ciência teológica é Deus e tudo o que se relaciona
a Ele. Nesta unidade, vamos tratar da questão do método: qual o método ou quais
métodos definem um estudo sobre Deus como ciência teológica? O método teológico
mais conhecido e usado é aquele dividido em três etapas: o momento hermenêutico, o
especulativo e o prático. Trataremos desta metodologia geral da teologia na primeira
parte desta unidade. Depois apresentaremos algumas características importantes da
metodologia teológica: os três caminhos da teologia (razão, religiões e Revelação) e
a questão dos limites da linguagem humana diante do Mistério. Na terceira parte da
aula, lançaremos um olhar sobre os métodos teológicos ao longo da história (método
patrístico, escolástico e o Vaticano II), concluindo com os três métodos clássicos que
se consagraram no tempo (método indutivo, dedutivo e defensivo).

2.1 Metodologia teológica em três etapas

Cada método deve ser adequado à natureza do que se busca investigar. Por um lado,
não existe um método único em cada ciência; por outro lado, nem todos os métodos
se aplicam a determinadas ciências. Cada método deve ser avaliado em função das
matérias as quais se aplicam. Em geral, existem métodos positivos, baseados na
observação empírica; outros métodos são baseados na análise conceitual; outros
ainda partem do estudo de documentos históricos, literários, artísticos, etc. Todos
os métodos supõem que os dados primários são interpretados, desenvolvidos e
organizados sistematicamente pelo intelecto humano (MORALES, 2003, p. 71).
No caso da teologia, o método costuma ser dividido em duas ou três fases: o
momento hermenêutico e o momento especulativo; e alguns autores acrescentam o
momento prático. São três procedimentos consecutivos e complementares, como
veremos a seguir.

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2.1.1 Momento positivo ou hermenêutico

A primeira etapa corresponde à escuta da fé (auditus fidei): é o passo mais básico,


pois a fé nasce da escuta (Rm 10,17). A teologia não é uma mera criação do engenho
humano, mas é a resposta à Palavra revelada. O momento positivo ou teologia positiva
busca o conhecimento e a interpretação do conteúdo da Revelação. O conteúdo do
auditus fidei é o conjunto de dados e afirmações que formam o depósito revelado
(Escritura e Tradição). A teologia positiva analisa estes dados no detalhe para descobrir
o sentido preciso de cada um (MORALES, 2003, p. 73). O auditus fidei não é uma
audição passiva, mas crítica e historicamente situada. O ouvinte reconhece, confronta
e enriquece aquilo que ele ouve, pois confronta o conteúdo da audição com a sua
realidade concreta, integrando as suas interrogações e experiências de vida (MATOS,
2020, p. 38-39).
Para Boff (1998, p. 41), a etapa hermenêutica, no ato teológico, é o momento de
recolher os testemunhos que falam do Mistério divino. Os testemunhos primários são a
Sagrada Escritura e a Tradição; secundários são os testemunhos eclesiais (Magistério,
senso dos fiéis, Padres da Igreja, teólogos, etc.); e os testemunhos alheios são externos
à teologia, mas podem ser úteis (religiões não cristãs, filosofia, ciências naturais e
humanas, etc). A escuta positiva da fé compreende a heurística (busca dos textos
corretos e autênticos), a hermenêutica (interpretação dos textos) e a crítica (apreciação
justa destes textos).
A Escritura é a alma da teologia: isso não significa que ela está à serviço da teologia
(como na teologia das teses), mas a teologia está a serviço da Palavra de Deus. Sendo
assim, nesta primeira etapa é necessário aplicar algumas regras hermenêuticas à
leitura da Sagrada Escritura, que Boff (1998, p. 42) assim resume:
• dispor-se à escuta obediente e orante da Palavra;
• situar o texto no contexto histórico e no contexto canônico (em relação aos
demais textos e livros bíblicos);
• descobrir primeiro o sentido textual (original) para depois chegar ao sentido
atual (voltado à prática no presente);
• confrontar a própria leitura com a leitura feita pela Igreja (Tradição e Magistério).

A partir desta hermenêutica, a teologia pode ser entendida como um desdobramento


teórico da Bíblia. Porém, o estudo da Bíblia deve entrar em diálogo com as demais

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disciplinas teológicas, pois estas disciplinas suscitam novas perguntas e novas


hipóteses ao estudo bíblico, enquanto a Bíblia lhes oferece o fundamento e lhes abre
novos aspectos do Mistério de Deus.
Depois da Escritura temos a Tradição (quando escrevemos Tradição com inicial
maiúscula nos referimos à Tradição da Igreja; e tradição com inicial minúscula diz
respeito ao conceito geral). A tradição é aquilo que confere a uma pessoa ou comunidade
uma identidade histórica, um enraizamento vital. Sem uma tradição, as pessoas ou
comunidades tornam-se vítimas das mudanças e da desorientação geral. Todavia, é
preciso diferenciar a verdadeira tradição, que é um processo vivo, dinâmico e criativo,
do tradicionalismo, que consiste na mumificação da tradição. A Tradição da Igreja teve/
tem uma tríplice função ao longo da história: inicialmente ela definiu o texto bíblico;
até hoje ela conserva e transmite o texto inspirado; enfim, ela deve sempre atualizá-lo
criativamente através de novas leituras. De fato, a Sagrada Escritura só irradia seu
sentido pleno quando é interpretada dentro da tradição que a gerou (BOFF, 1998, p. 45).
Um testemunho secundário, porém muito importante, que deve ser considerado
na etapa hermenêutica é o dogma. Do ponto de vista teológico, o dogma é uma
verdade revelada, vinculante e declarada formalmente pelo Magistério. As principais
verdades de fé aparecem na forma de dogmas. Os dogmas não são obstáculos para o
pensamento, mas são bases sólidas que protegem e permitem um progresso seguro
na história da teologia. Nos dogmas, é preciso distinguir entre a substância visada
(conteúdo), que é imutável, e a formulação cultural (enunciado), que pode variar em
cada época e cultura. O importante é que as novas formulações culturais estejam
sempre de acordo com as formulações anteriores. Neste sentido, o dogma permanece
imutável na substância, mas progride e se transforma na sua expressão em cada
novo contexto. O dogma não é objeto simplesmente da reflexão teológica, mas está
finalizado também à confissão de fé e à pregação em geral (BOFF, 1998, p. 47).

2.1.2 Momento especulativo

A etapa especulativa corresponde à experiência da fé (intellectus fidei): é o momento


construtivo do trabalho teológico, que consiste na elaboração do discurso através
do confronto entre fé e razão. O momento especulativo se ocupa em elaborar uma
compreensão e uma síntese ordenada do conteúdo da Revelação. O resultado do
processo especulativo é a elaboração de um discurso teológico ao mesmo tempo

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rigoroso e inovador; original, mas sempre ancorado na Palavra revelada. Na teologia,


a criticidade deve ser sapiencial, tendo em vista a edificação da comunidade cristã,
sem jamais ultrapassar o limiar da Revelação (MATOS, 2020, p. 39-40).
Esta etapa é composta por três operações: análise do conteúdo interno da fé,
buscando as razões do crer; sistematização desse conteúdo mediante uma síntese
articulada; e criação de novas perspectivas teológicas para avançar na compreensão
da fé. Boff (1998, p. 50) assim explica cada uma destas operações:
• Análise teológica: busca explicar e explicitar a lógica da fé, suas raízes e razões
próprias. Este primeiro passo da teologia especulativa mostra as razões do crer
e os modos como se acredita.
• Sistematização teológica: consiste em articular os dados da fé em um todo
orgânico, seguindo o nexo entre os mistérios. É o passo mais importante da
teorização da fé. Contudo, toda teoria da fé é sempre uma síntese aberta, pois
o Mistério supera qualquer teorização.
• Criação: consiste em lançar novas hipóteses teológicas para progredir na
compreensão da fé. Este terceiro passo da teorização garante a renovação
constante da teologia.

Em todo este processo, é preciso distinguir o que é doutrina comum da fé e o que


é opinião ou hipótese. As novas hipóteses renovam a teologia e podem se tornar
doutrinas, mas o processo para se chegar a novas formulações dogmáticas precisa
ser respeitado. Sendo assim, na pregação é preciso ter sempre esta sensibilidade,
para não confundir os fiéis.

ANOTE ISSO

É importante ter clareza quanto a estes dois conceitos clássicos de teologia:


auditus fidei e intellectus fidei. O auditus fidei é o primeiro movimento da teologia,
que consiste em coletar os dados da revelação sobre determinado assunto. E o
intellectus fidei é o movimento reflexivo sobre o dado coletado em busca de maior
compreensão do mesmo. Estes dois momentos fazem parte da metodologia
clássica de teologia. No último século, alguns teólogos acrescentaram um terceiro
passo, a applicatio fidei, que é uma extensão destes conceitos básicos que
acabamos de frisar.

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2.1.3 Momento prático

Trata-se da aplicação da fé (applicatio fidei ou actio fidei): corresponde à atualização da


Palavra de Deus no mundo. A teologia produz conhecimento, mas é um conhecimento
para ser colocado em prática. Neste momento, a reflexão teológica se confronta com
a realidade do mundo, de onde emergem as grandes questões existenciais a serem
iluminadas pela fé. Enfim, a produção teológica volta-se para a pastoral, buscando
edificar a comunidade eclesial e orientando os seus pastores (MATOS, 2020, p. 40).
O método teológico deve chegar até a atualização da fé por uma exigência da própria
fé cristã, que é voltada para a salvação dos seres humanos. Falar em momento prático
ou práxis é falar da vida. Toda a vida humana, em suas múltiplas dimensões (desde a
vida interior até a vida planetária) deve ser alcançada pela teologia. Merece especial
destaque a dimensão social, pois a fé precisa ser traduzida em compromisso social,
em “opção preferencial pelos pobres”. A teologia coloca em diálogo a fé, a realidade
social (material, econômica, política) e as representações culturais (filosofia, ideologias,
religiões). O objetivo da etapa prática da teologia é a atualização da fé, que leva à
lógica do agir. Nesta atualização, começa-se determinando os objetivos da ação; em
seguida, elaboram-se propostas concretas para a práxis; e chega-se à decisão voltada
à determinada ação (BOFF, 1998, p. 54).
A melhor inspiração para o momento prático da teologia nos vem do Vaticano II,
particularmente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes:

Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o


momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho;
para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração,
às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente
e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer
e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e
aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático (Gaudium et
Spes, 1965, n. 4).
É dever de todo o Povo de Deus e sobretudo dos pastores e teólogos,
com a ajuda do Espírito Santo, saber ouvir, discernir e interpretar
as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra
de Deus, de modo que a verdade revelada possa ser cada vez mais
intimamente percebida, melhor compreendida e apresentada de um
modo conveniente (Gaudium et Spes, 1965, n. 44).

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Sendo assim, o método teológico deve, antes de tudo, ler os “sinais dos tempos”
e interpretá-los à luz da Revelação, a fim de anunciar o Evangelho com a linguagem
atual, para que seja compreendido e concretizado na vida dos ouvintes de hoje. Esse
é o objetivo do momento prático dos procedimentos teológicos.
Sintetizando todo esse processo, podemos dizer que a teologia parte da Revelação
e da Tradição, passa por uma profunda reflexão especulativa, e se transforma em
proposta prática de vivência da fé. Percorrendo estes três passos, o teólogo está
praticamente respondendo a esta pergunta básica: o que Deus tem a dizer sobre
esta ou aquela realidade específica? Pois todas as realidades humanas podem ser
iluminadas pela Palavra de Deus através da reflexão teológica. Estes três passos são
complementares. Sem o momento positivo, a teologia teria que refletir sobre dados
incertos e não verificados. Sem a reflexão especulativa, os dados poderiam até ser
bem conhecidos, mas permaneceriam sem significado. E sem a aplicação da fé, tudo
se perderia em teorias, sem implicações para a vida da comunidade.

2.2 Características da metodologia teológica

Uma vez tendo identificado os três momentos principais do método teológico,


vamos falar agora de algumas outras características. Começamos tratando dos três
principais caminhos que a metodologia teológica pode percorrer para chegar a um
conhecimento de Deus: o caminho da razão, das religiões e da Revelação. Em seguida,
falaremos da limitação da linguagem humana, que implica uma limitação da própria
teologia diante do infinito mistério de Deus.

2.2.1 Os três caminhos da metodologia teológica

O objetivo da metodologia teológica é ensinar como praticar a teologia. A partir das


regras básicas de teologia, o acadêmico deve ser capaz de elaborar reflexões sobre
temas teológicos. A teologia, como ciência da fé, tem por tarefa articular os dados
das fé numa síntese orgânica, mostrando a conexão entre os mistérios salvíficos e
articulando-os a partir de temas centrais. O sujeito que faz teologia é toda a comunidade
eclesial, mas o teólogo é aquele que assume de forma mais direta esta tarefa como
um serviço para toda a comunidade.

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Ao longo da história, a teologia percorreu vários caminhos para conhecer a Deus.


Matos (2020, p. 38-39) identifica três principais caminhos:
O caminho da razão: é a via filosófica, que pode alcançar o conhecimento das
verdades naturais sobre Deus, ou seja, a sua existência e atributos essenciais. A
razão filosófica se pergunta sobre o sentido, os valores e o fim da existência. De
fato, a teologia incorpora a filosofia na medida em que reflete a resposta divina
à interrogação humana sobre o sentido da vida e do mundo.
O caminho das grandes religiões: ao vislumbrar o Mistério, as grandes religiões
“refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens” (Nostra
Aetate, 1965, 2b). As religiões históricas manifestam ações do Espírito, pois Deus
atrai todas as criaturas a si por meio do sentimento religioso. São Justino falava
das semina Verbi “sementes do Verbo” presentes em todos os seres humanos, de
modo que toda cultura e toda religião contém em si “sementes” da Verdade, que
podem frutificar até chegar no reconhecimento da Revelação divina em Jesus.

Título: A via das religiões


Fonte: https://bahaiteachings.org/why-do-we-have-religion/

O caminho da Revelação: corresponde à auto-manifestação de Deus, que culmina


na vinda de Jesus ao mundo. A Revelação está contida de modo especial na Sagrada
Escritura. Esse caminho não dispensa a razão humana, mas a ultrapassa, pois
está ligado à intuição, à experiência e ao amor. Mais do que exercício intelectual,
o caminho da Revelação implica um encontro pessoal e comunitário com Deus.

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Esses três caminhos não são separados e excludentes, ao contrário, são


complementares. A teologia percorre a via da razão por ser uma instituição humana;
passa pela estrada da Revelação por ser ao mesmo tempo divina; e atravessa o
caminho religioso por seu aspecto experiencial.

2.2.2 Limitação da linguagem humana na teologia

A teologia trata de um Mistério que ultrapassa os limites da linguagem humana. Por


um lado, sem linguagem não haveria teologia, por outro lado a linguagem se mostra
limitada neste campo. O teólogo faz uso de diversos tipos de linguagem, mesmo
estando consciente que nenhuma modalidade pode abarcar completamente o mistério
divino. A linguagem científica serve para garantir a precisão dos conceitos, mas é
bem limitada. A linguagem poética se adapta melhor ao mistério, graças a sua força
evocativa, sugestiva e intuitiva, porém é claramente incompleta e imperfeita. Enfim, a
linguagem simbólica fala à inteligência, provoca uma conversão e uma ação, estabelece
um diálogo com Deus, porém é imprecisa: serve mais para aquecer o coração do que
expressar conceitos. Cada uma destas linguagens é útil em determinado momento
da teologia, mas nenhuma delas é capaz de esgotar o trabalho teológico (MATOS,
2020, p. 41-42).
Diante da constatação da limitação da linguagem humana, cabe ao teólogo adotar
uma postura de humildade e senso de limite. A reflexão teológica pode dizer algo sobre
Deus, indicar ou evocar o seu mistério, mas não pode falar ou discorrer intelectualmente
de forma completa. Sendo impossível abarcar racionalmente a realidade divina, a
modéstia e a simplicidade se tornam atitudes necessárias para fazer teologia. Por
isso, o teólogo deve buscar as expressões adequadas de pensamento, com clareza
e transparência no discurso. Quem se dedica o estudo da teologia precisa aprender
uma tríplice atitude: amor pelas coisas divinas que deseja conhecer; humildade pela
convicção de se encontrar diante de um grande mistério; e disposição para solicitar
os conhecimentos adquiridos por outras ciências, num gesto de serviço à comunidade
(MATOS, 2020, p. 42). Com estas atitudes, a limitação da linguagem humana deixa
de ser um empecilho à teologia, pois o amor, a humildade, e o espírito de serviço
garantem a autenticidade da reflexão teológica.

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2.3 Métodos teológicos ao longo da história

Ao longo da história, os métodos teológicos foram se desenvolvendo e se modificando,


conforme as perguntas e problemas de cada época. Olhando de forma linear para a
história, destacamos o método patrístico, seguido pelo método escolástico, até chegar
nas indicações metodológicas do Vaticano II. São três momentos metodológicos
importantes em ordem cronológica. Olhando de forma transversal para a história,
destacamos o método dedutivo, indutivo e defensivo, pois estes três métodos aparecem
em várias épocas e continuam válidos ainda hoje.

2.3.1 Breve panorâmica

A história da teologia cristã contempla o uso de diversos modelos metodológicos,


adaptados a cada tempo, sempre com a finalidade de unir as exigências da razão
humana e os imperativos da Revelação divina. A evolução do método teológico está
relacionado com a história da igreja, com o desenvolvimento cultural e com a história
do pensamento humano. Cada etapa da história do método teológico está relacionada
à concepção de teologia e sua função em cada época: a função sapiencial nos séculos
I-XII, a função científica nos séculos XII-XX e a função prática no século XX (MORALES,
2003, p. 72). A seguir, vamos ver esse processo com mais detalhes.
Começamos com o método patrístico. Os Padres da Igreja desenvolveram uma
variedade de métodos teológicos até o século VI, mas podemos elencar alguns aspectos
gerais que são comuns a todos os teólogos deste período. Antes de tudo, os Padres
da Igreja desenvolveram uma reflexão sobre a fé revelada apoiando-se diretamente
nas Sagradas Escrituras, com fins predominantemente apologéticos. A teologia era
concebida como exegese e exposição narrativa da história da salvação. No método
patrístico, a integração entre fé e razão acontecia de forma natural, pois a Tradição
recebida na Igreja era lida à luz da filosofia e da cultura literária profana.
Em seguida, surgiu o método escolástico. O maior representante desse método
certamente foi Tomás de Aquino (1224-1274), o qual aplicou à teologia a concepção
aristotélica de ciência como conhecimento certo por causas. A teologia se tornou, então,
uma disciplina autônoma, com princípios próprios, definida como ciência de Deus e
dos bem-aventurados, sem uma dependência direta da filosofia e de outros saberes
(psicologia, ética, história, etc). É verdade que Tomás de Aquino usou os recursos da

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filosofia aristotélica, porém ele desenvolveu um sistema filosófico-teológico original,


partindo da noção de ser como perfeição de todas as perfeições (MORALES, 2003,
p. 72).

Título: São Tomás de Aquino, pintura de Carlo Crivelli


Fonte: https://www.nationalgallery.org.uk/paintings/carlo-crivelli-saint-thomas-aquinas

O maior evento teológico da história recente certamente foi o Concílio Vaticano


II (1962-1965), o qual não criou um novo método teológico, nem impôs um método
específico, mas destacou alguns elementos essenciais na metodologia teológica. Antes
de tudo, o Vaticano II assinalou que a Sagrada Escritura é o principal eixo de todo
procedimento teológico, e que a sua reta interpretação supõe a escuta dos Padres
da Igreja e o desenvolvimento histórico do dogma. Além disso, o Concílio enfatizou a
dimensão pastoral da teologia ao pedir que os acadêmicos “saibam buscar, à luz da
Revelação, a solução dos problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição
mutável das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens seus
contemporâneos” (Optatam Totius, 1965, n. 16). Os documentos conciliares destacam a
centralidade da Sagrada Escritura, o serviço do Magistério, o valor da teologia patrística,
a relação entre as disciplinas teológicas e os mistérios da fé, a atualização que acontece
na liturgia, entre outros aspectos importantes do fazer teologia (MORALES, 2003, p. 73).

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2.3.2 Métodos indutivo, dedutivo e defensivo

Ao longo da história, três métodos teológicos se afirmaram como principais


procedimentos usados para fazer teologia: os métodos dedutivo, indutivo e defensivo.
O método dedutivo caracteriza-se como uma teologia “a partir de cima” (katábasis).
É o método preferido da Escolástica, por exemplo. Ele parte do dogma, que é a
formulação da Revelação, e é utilizado para trazer maior compreensão dos dados
revelados. Seguindo a via da analogia com as realidades humanas, destacam-se as
semelhanças e as diferenças em relação à Revelação. E a analogia da fé serve para
mostrar como as verdades de fé se explicam e se relacionam entre si. A teologia
dedutiva trabalha com silogismos: parte de afirmações universais ou princípios da fé
(premissa maior), estabelece afirmações de natureza filosófica (premissa menor) e
conclui com afirmações teológicas. Por exemplo: Jesus é verdadeiro homem (Concílio
de Calcedônia); ora, um verdadeiro homem tem liberdade e consciência humanas; logo,
Jesus tem a mesma liberdade e consciência nossa. Sendo assim, o método dedutivo
tira as consequências dos princípios de fé. Seu objetivo é declarar e explicitar o que
está na Revelação, contribuindo para que a inteligência da fé cresça sempre mais.
Para facilitar a intelecção da fé, a teologia dedutiva formula afirmações de fé claras e
distintas. Em seguida, procura provar tais afirmações usando os dados da Escritura,
dos Padres da Igreja, dos Concílio e da própria reflexão especulativa (LIBANIO-MURAD,
2005, p. 101-102).
O método indutivo caracteriza-se como um teologia “a partir de baixo” (anábasis).
Na história da teologia, este método dominou a partir do Concílio Vaticano II. A teologia
indutiva parte dos questionamentos que surgem na realidade humana e dos problemas
concretos da vida. Percorre o caminho da experiência ao dogma, ao contrário da teologia
dedutiva. O primeiro passo da teologia indutiva é o ver, identificando os problemas da
vida; o passo seguinte consiste em refletir sobre estes problemas à luz da Revelação.
Sendo assim, o objetivo do método indutivo não é sistematizar as verdades de fé já
aceitas (como na teologia dedutiva), mas conectar essas verdades com a experiência
humana. Visto que a experiência é muito diversificada, assim também as teologias
indutivas se ramificam em uma ampla pluralidade. A teologia indutiva pode partir de
duas experiências fundamentais: a pergunta pelo sentido da experiência existencial; e
a pergunta pelo sentido da práxis (questões sociais e históricas). Em ambos os casos,

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a teologia está enraizada na realidade histórico-cultural na qual ela nasce (LIBANIO-


MURAD, 2005, p. 103-104).

ISTO ESTÁ NA REDE

Os métodos dedutivo e indutivo não são exclusivos da teologia, mas são métodos
científicos utilizados em uma grande variedade de disciplinas. Em geral, o método
indutivo parte da observação da realidade e chega a uma conceituação básica;
o método dedutivo transforma os conceitos básicos em teorias. Para conhecer
mais sobre este tema, veja esse artigo sobre a metodologia científica: https://www.
metodologiacientifica.org/metodos-de-abordagem/metodo-dedutivo-e-metodo-
indutivo/

O terceiro método é o defensivo, que consiste precisamente na defesa da fé a


partir da ciência teológica. Este método pode ser dividido em duas partes: o momento
apologético e o momento teológico. A apologética visa provar racionalmente o valor
da Revelação sobrenatural e a importância da Igreja que recebe e transmite fielmente
esta Revelação (depósito da fé). Já o momento teológico se ocupa em responder aos
questionamentos feitos contra a veracidade ou congruência da Revelação (as falsas
filosofias) ou contra uma verdade presente no depósito de fé da Igreja (a heresia).
Visto que cada heresia procura negar uma verdade revelada específica, o trabalho do
teólogo consiste em mostrar como aquela verdade teológica está em harmonia com
outras verdades reveladas, que não são negadas pelo herege. De fato, as heresias
não se sustentam, porque acabam derrubando inclusive as doutrinas defendidas pelo
herege. Quanto às falsas filosofias, a teologia se defende expondo a falsidade ou o
equívoco dos questionamentos dirigidos a certos conceitos teológicos, mostrando que
a dificuldade apresentada não é real (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 109). Este método
foi predominante nos primeiros séculos do cristianismo, com os padres apologistas.
Todavia, ainda hoje é útil para dar razão à fé diante dos questionamentos das ciências
modernas.
Resumindo o conteúdo deste capítulo, começamos tratando das três etapas
do método teológico: o momento hermenêutico ou positivo, que recolhe os dados
da Revelação (contidos primariamente na Sagrada Escritura e na Tradição, e
secundariamente no Magistério e no senso dos fiéis); o momento especulativo, que
elabora uma compreensão e uma síntese ordenada do conteúdo da Revelação; e

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o momento prático, que atualiza a fé na vida concreta das pessoas. Em seguida,


apresentamos algumas das principais características da metodologia teológica: ela
percorre o caminho da razão (filosofia), das grandes religiões e da Revelação; e está
limitada pela linguagem humana, que pode falar de Deus, mas não é capaz de abarcar
todo o seu mistério. Enfim, destacamos a importância do método patrístico, do método
escolástico e do Vaticano II na história da metodologia teológica; e o valor dos métodos
dedutivo, indutivo e defensivo como metodologias consolidadas ao longo da história.

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CAPÍTULO 3
AS FONTES DA TEOLOGIA

Prezados e prezadas estudantes, neste capítulo vamos tratar de um dos assuntos


mais importantes da Teologia Fundamental: as fontes da teologia ou lugares teológicos.
Nossa apresentação segue a ordem de importância: a primeira e mais importante fonte
da teologia é a Sagrada Escritura. De fato, a Bíblia é o lugar teológico compartilhado
por todas as confissões cristãs e permanece sendo a regra de fé para todos. Depois da
Bíblia temos a Tradição. Para a teologia católica, Escritura e Tradição estão unidas e
juntas contêm a Revelação. Outras confissões cristãs também consideram a Tradição
como parte da teologia, mas sem dar a mesma importância que observamos no
catolicismo. A terceira fonte teológica tem ainda menos aceitação da maioria das
confissões cristãs, mas é fundamental para a teologia católica: o Magistério, que inclui
os ensinamentos dos bispos e do papa. Por fim, falaremos também de um quarto
lugar teológico, que nem sempre é considerado uma fonte: o sensus fidei ou sentido
da fé do povo cristão. Com isso, teremos um quadro completo sobre o terreno onde
se desenvolve a teologia.

3.1 Sagrada Escritura

Tudo aquilo que recebe o nome de “cristão” deve partir sempre e necessariamente
da Sagrada Escritura. Qualquer teoria, ideia, ideologia ou prática que não tem seu
fundamento na Bíblia não pode ser considerada cristã. Por isso, começaremos falando
da Sagrada Escritura como fonte principal da teologia. Em seguida, acrescentaremos
algumas anotações importantes sobre a interpretação da Bíblia na Igreja.

3.1.1 A Sagrada Escritura como fonte

A Revelação divina é transmitida pela Sagrada Escritura e pela Tradição, as quais


formam o depositum fidei, ou seja, o patrimônio sagrado da fé. Por isso dizemos que
o cristianismo não é a “religião do Livro”, mas da Palavra de Deus, ou seja, do Verbo
Encarnado que se comunica. A Escritura não é simplesmente palavra escrita, letra
morta, mas Palavra eterna do Deus vivo, que continua se manifestando através do
Espírito Santo, o qual abre a nossa mente para compreendermos a Revelação, assim
como fez Jesus no caminho de Emaús (Lc 24,45). Em certo sentido, a Revelação já

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está terminada, pois Cristo é a plenitude da manifestação divina; no entanto, essa


Revelação ainda não está completamente explicitada. A comunidade de fé continua
descobrindo as inexauríveis riquezas da Palavra de Deus ao longo dos séculos, de
modo que a reflexão teológica nunca se encerra (MATOS, 2020, p. 29-30).

ANOTE ISSO

O conceito de depositum fidei (depósito da fé) aparece constantemente na teologia


católica. O depositum fidei é o conjunto de todas as verdades consideradas como
reveladas, contidas na Sagrada Escritura e na Tradição. Portanto, depositum fidei
é sinônimo de doutrina, no sentido da doutrina cristã recebida dos apóstolos e
transmitida aos seus sucessores.

A Palavra de Deus é a base perene da teologia, ou seja, é a sua fonte constitutiva.


A identidade da teologia cristã e a sua ortodoxia estão fundamentadas na Revelação
contida na Bíblia. A Sagrada Escritura contém o testemunho categorial, isto é, o registro
humano canônico da Palavra de Deus. Ela é a teologia na sua forma mais elementar,
nuclear, primária. A Palavra de Deus é maior do que a Bíblia, mas a Bíblia é a “morada”
da Palavra de Deus no nosso mundo: palavras humanas pronunciadas por autores
sagrados, os quais transmitiram, pela ação do Espírito Santo, a Revelação divina. “Em
virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como
amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele” (Dei
Verbum, 1965, n. 2). Este encontro entre Deus e os seres humanos é o que chamamos
de “história da salvação”. A Escritura é, fundamentalmente, a memória desta história
de salvação, que constitui a sua unidade orgânica (MATOS, 2020, p. 30-31).
Tudo parte de uma iniciativa de Deus, que se auto-comunica salvíficamente com
os seres humanos. Ao longo da história, Deus se comunicou através de homens e
mulheres que colocaram por escrito o que receberam, transmitindo a comunicação
divina para outras pessoas. São os autores inspirados, e os escritos que eles deixaram
para nós constituem a Bíblia, que é a norma de fé e vida de judeus e cristãos. A
Escritura judaica está contida naquilo que os cristãos chamam de Antigo ou Primeiro
Testamento. Por sua vez, o Novo Testamento é reconhecido como inspirado apenas
para os cristãos. Em comum, o Antigo e o Novo Testamentos estão voltados para um
único propósito: a salvação da humanidade (LIBANIO, 2014, p. 218-219).

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Visto que a Bíblia nasceu como testemunho do povo de Deus no AT e da Igreja


primitiva no NT, ela pertence sempre à comunidade de fé. Por isso, a Bíblia deve ser lida
e interpretada pela Igreja enquanto comunidade de fé. Mesmo as leituras individuais
devem estar sempre em sintonia com a interpretação eclesial (sentire cum Ecclesia).
Para poder ler de maneira proveitosa a Sagrada Escritura, o cristão deve colocar-se
em uma atitude de docilidade e receptividade, não de interesse seletivo e manipulador.
Não basta ler com o intelecto, é preciso antes de tudo amar a Deus, adorá-lo, confiar
Nele; além de observar seus mandamentos e praticar a justiça e a caridade em relação
ao próximo. Somente com essa atitude, os mistérios divinos contidos nas Sagradas
Escrituras se abrem à compreensão humana (MATOS, 2020, p. 31).
O centro e a plenitude da Revelação é Jesus Cristo: “Muitas vezes e de modos
diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias, que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1). A Igreja confessa que a autocomunicação
de Deus se deu de forma plena na pessoa histórica de Jesus Cristo, mediador entre
Deus e os seres humanos. Por isso, a leitura cristã interpreta toda a Bíblia à luz de
Cristo e de seus ensinamentos (MATOS, 2020, p. 31).
Na teologia cristã, a Bíblia é a autoridade máxima da fé. Todavia, existe também
uma hierarquia de verdades dentro da Bíblia, especialmente na relação entre Novo
e Antigo Testamentos: para os cristãos, o NT é o critério principal. É verdade que o
AT é condição indispensável para compreender o NT, porém a interpretação cristã lê
o AT à luz de Jesus e dos escritos apostólicos. A vida e a fé da comunidade cristã
primitiva (NT) vem em primeiro lugar, na teologia cristã; em seguida, tudo o que tem
a ver com a fé e a vida do Povo de Deus no AT adquire valor, pela exemplaridade da
sua caminhada na história da salvação (MATOS, 2020, p. 33).

1.1.2 A interpretação da Sagrada Escritura

Na Igreja, a Revelação (Palavra-proposta) tem a primazia; só depois vem a teologia


(palavra-resposta). Primeiro vem a história da salvação e a aliança de amor de Deus
com os seres humanos; depois vem a teologia que reflete sobre tudo isso. A fé nasce
da escuta da Palavra de Deus, não da especulação teológica (MATOS, 2020, p. 32).
Por isso dissemos, já no primeiro capítulo, que toda teologia deve colocar-se sempre
a serviço da Palavra de Deus. Parte deste serviço à Palavra consiste em interpretá-la.

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Existem algumas regras básicas para a correta interpretação da mensagem religiosa


contida na Bíblia. Matos (2020, p. 32) assim resume essas regras interpretativas:
• Dispor-se à escuta da Palavra com sinceridade, em espírito de obediência e oração.
• Ler o texto no seu contexto histórico e canônico (ou seja, em relação aos outros
livros bíblicos), tendo Cristo como centro e ápice.
• Identificar primeiro o sentido textual (original) e, a partir dele, chegar ao sentido
atual, finalizando com a prática do amor, inspirada na leitura do texto.
• Confrontar toda interpretação com a leitura feita pela Igreja na sua Tradição
e nos pronunciamentos do Magistério, mantendo assim a comunhão eclesial.

A teologia medieval distinguia dois sentidos principais nas Escrituras: literal e


espiritual. O sentido literal corresponde aos acontecimentos narrados, ou seja, o
sentido das palavras em si. Por outro lado, o sentido espiritual vai além das palavras
e além da própria intenção do autor, pois é o significado inspirado por Deus. Este
sentido espiritual se manifesta especialmente de três modos: sentido típico, quando
alguma situação no AT era prefiguração da obra de Cristo no mundo; sentido moral
ou tropológico, quando prefigura ou se refere a uma conduta que os cristãos devem
observar; e sentido escatológico ou analógico, quando prefigura as penas ou as alegrias
no reino dos céus no fim dos tempos (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 167-168).
O Concílio Vaticano II trouxe importantes contribuições quanto à interpretação da
Bíblia na Igreja. O documento conciliar que trata da divina Revelação, a Dei Verbum,
sintetiza o trabalho de interpretação da Bíblia em dois momentos: identificar o sentido
original e encontrar o sentido profundo, que na exegese se chama sensus plenior
(sentido mais profundo). Eis a descrição do primeiro passo:

Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens
e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber
o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar com atenção o que
os hagiógrafos realmente quiseram significar e que aprouve a Deus
manifestar por meio das suas palavras. Para descobrir a intenção dos
hagiógrafos, devem ser tidos também em conta, entre outras coisas,
os “géneros literários”. Com efeito, a verdade é proposta e expressa de
modos diversos, segundo se trata de géneros históricos, proféticos,
poéticos ou outros. Importa, além disso, que o intérprete busque o
sentido que o hagiógrafo em determinadas circunstâncias, segundo
as condições do seu tempo e da sua cultura, pretendeu exprimir e
de fato exprimiu servindo-se dos gêneros literários então usados (Dei
Verbum, 1965, n. 12a).

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Esse é o papel da exegese: descobrir o sentido original do texto bíblico, a partir dos
métodos exegéticos disponíveis, particularmente o método histórico-crítico, dentro do
qual se encontra a crítica dos gêneros literários. Todavia, esse esforço não é suficiente
para alcançar o sentido pleno dos textos bíblicos, então o documento acrescenta:

Mas, como a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o


mesmo espírito com que foi escrita, não menos atenção se deve dar,
na investigação do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à
unidade de toda a Escritura, tendo em conta a Tradição viva de toda
a Igreja e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar, de harmonia
com estas regras, por entender e expor mais profundamente o
sentido da Escritura, para que, mercê deste estudo de algum modo
preparatório, amadureça o juízo da Igreja. Com efeito, tudo quanto
diz respeito à interpretação da Escritura, está sujeito ao juízo último
da Igreja, que tem o divino mandato e o ministério de guardar e
interpretar a palavra de Deus (Dei Verbum, 1965, n. 12b).

Sendo assim, para se chegar ao sentido profundo de um texto bíblico, é preciso ler
cada parte em sintonia com todo, considerando a unidade da Sagrada Escritura. Em
segundo lugar, confrontar a própria interpretação com a Tradição da Igreja e com a
analogia da fé – ou seja, não estar em contradição com o conjunto de verdades de
fé reconhecidas na Igreja. Por fim, o documento conciliar lembra que a Igreja pode
pronunciar um juízo sobre o trabalho dos exegetas, pois é sua missão guardar e
interpretar a Palavra de Deus. Em poucas palavras, a interpretação da Bíblia na Igreja
parte dos métodos exegéticos científicos, passa pela Tradição e permanece em sintonia
com Magistério, para garantir a unidade doutrinária cristã.

3.2 Tradição

Depois ou ao lado da Escritura temos a Tradição. Como já dissemos acima,


para a teologia católica, a Tradição está unida à Bíblia como testemunha da
Revelação divina. Outras confissões cristãs também levam em conta a Tradição,
pelo menos até certo ponto, como o Luteranismo, por exemplo, mas mantêm
uma proeminência muito clara da Sagrada Escritura. Nesta seção, vamos primeiro
apresentar o significado da Tradição como fonte da teologia; depois trataremos
da relação entre Escritura e Tradição.

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3.2.1 A Tradição eclesial como fonte

Dissemos acima que a Revelação está contida, sobretudo, na Bíblia, mas não está
contida exclusivamente na Bíblia. A Revelação divina também manifesta-se na Tradição da
Igreja. De fato, a Revelação contém palavras e eventos salvíficos, e a história da salvação
continua ao longo dos séculos. A Tradição comporta a vida de fé da Igreja, a doutrina, a
liturgia, as formulações dogmáticas, o testemunho dos Padres da Igreja e dos mestres
espirituais, as devoções populares, a arte cristã, etc. Por isso é chamada de Tradição
viva da Igreja. A Sagrada Escritura e a Tradição juntas contêm a Revelação de Deus em
palavras e na vivência de fé da comunidade, ontem e hoje (MATOS, 2020, p. 33).
A Tradição é fonte não no sentido de apresentar doutrinas próprias, ausentes
na Escritura, mas no sentido de explicitar e interpretar as verdades reveladas nas
Sagradas Escrituras. Algumas verdades se encontram na Bíblia de forma muito concisa
e simplificada: a Tradição tem a função de ampliar e explicitar tais verdades, mostrando
todo o seu significado para a Igreja. A Tradição enriquece a compreensão da Bíblia.
Isso só pode acontecer através da ação do Espírito Santo, segundo as palavras de
Jesus: “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará
tudo e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14,26). O Espírito não mata a letra,
mas dá-lhe vida (cf. 2Cor 3,6): neste sentido, a Tradição, iluminada pelo Espírito Santo,
não elimina nem substitui a Escritura, mas garante que as palavras contidas na Bíblia
continuem sempre vivas e atuais. Em síntese, a Tradição transmite e interpreta a
Escritura (LIBANIO, 2014, p. 223-224).
É preciso ainda distinguir entre dois tipos de Tradição: apostólica e eclesial. A
Tradição apostólica escreveu o NT e permanece como condição formal para explicitar
o seu sentido. A Tradição eclesial prolonga dinamicamente a Tradição apostólica,
atualizando-a e criando novas tradições, adaptadas a cada cultura e a cada época.
A Tradição apostólica é a norma crítica de todas as tradições eclesiásticas, pois é a
Palavra de Deus inspirada. Por um lado, a Tradição eclesial atualiza a apostólica; por
outro lado a Tradição apostólica orienta e corrige a eclesial (BOFF, 1998, p. 45-46).

3.2.2 Relação entre Escritura e Tradição

A relação entre Escritura e Tradição já foi uma questão polêmica na história das
igrejas. No período da Reforma protestante (século XVI), as igrejas reformadas passaram

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a admitir somente a Escritura como fonte da Revelação (sola Scriptura). No lado católico,
o Concílio de Trento chegou a defender que a Escritura e a Tradição eram duas fontes
de Revelação independentes. Somente com o Concílio Vaticano II chegou-se a uma
conciliação neste ponto. O primeiro esquema sobre a Revelação, apresentado aos
padres conciliares, foi chamado De doubus fontibus e era uma re-proposta da doutrina
tridentina tal e qual. No entanto, o desejo ecumênico de João XXIII levou os padres
a abandonarem tal esquema. O documento final sobre a Revelação, a constituição
dogmática Dei Verbum traz uma nova impostação: a Escritura e a Tradição estão
intimamente unidas, pois ambas têm a mesma nascente e transmitem a Revelação
(LIBANIO, 2014, p. 221-222).

A Sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente


unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da
mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao
mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi
escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por
sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a
palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo
aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a
conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação;
donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a
sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas
devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e
reverência (Dei Verbum, 1965, n. 9).

A Tradição pode ser considerada como complemento formal da Escritura, pois


auxilia na sua correta interpretação e na descoberta de novas verdades teológicas. Não
é um complemento material, pois neste caso estaríamos admitindo que a Tradição
contém verdades reveladas que não estão presentes na Escritura. Quando falamos
de um complemento formal, estamos dizendo que as verdades contidas na Tradição
já se encontram, pelo menos implicitamente, na Sagrada Escritura. Neste sentido, a
Tradição é a transmissão viva da Palavra de Deus, pois traz novas interpretações das
verdades presentes na Escritura. Depois de séculos de discussão, hoje há um bom
nível de acordo no âmbito ecumênico, especialmente entre luteranos e católicos, sobre
a relação entre Escritura e Tradição: ambas as confissões admitem a preeminência
das Sagradas Escrituras, mas não excluem a função de um ministério docente nem
a legitimidade de tradições doutrinais nas Igrejas; não existem tradições apostólicas
historicamente verificáveis fora das Escrituras; e nem todas as doutrinas cristãs se

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encontram explicitamente na Bíblia, mas podem ser dela deduzidas (MORALES, 2003,
p. 62-63).
Segundo Matos (2020, p. 33), a Tradição tem, em relação à Escritura, uma função
receptiva, conservativa, inovadora e explicativa; e a Escritura tem, em relação à
Tradição, um função normativo-crítica. Vamos tentar esmiuçar esta definição. A função
receptiva significa que a Tradição acolhe a Escritura: isso aconteceu, historicamente,
especialmente no momento em que a Tradição definiu o cânone bíblico. É conservativa
no sentido que hoje temos acesso à Bíblia porque a Tradição da Igreja conservou o
seu texto intacto ao longo dos séculos. A função inovadora tem a ver com as novas
interpretações feitas pela Tradição, trazendo à luz elementos implícitos na Bíblia. E a
função explicativa acontece cada vez que a Tradição ilustra e atualiza os textos bíblicos.
Por outro lado, a função normativo-crítica da Escritura em relação à Tradição significa
que a única norma absoluta da teologia é a própria Sagrada Escritura: nenhum dado
da Tradição pode contradizer o conteúdo da revelação bíblica.

3.3 Magistério

Toda religião tem um magistério, ou seja, a instituição de mestres que ensinam os


princípios religiosos e morais daquele grupo religioso específico. Todavia, só a Igreja
católica formalizou o Magistério como uma instituição bem definida, que se tornou
determinante até mesmo para o modo como se faz teologia. O Magistério não está
acima nem do lado da Sagrada Escritura, mas está sempre à serviço da mesma. Se
colocamos a Tradição ao lado da Escritura, então o Magistério eclesial está à serviço
de ambas. Em todo caso, a teologia católica deve se ater à Bíblia, à Tradição e aos
pronunciamentos do Magistério. Por isso, vamos falar sobre a função do Magistério
na teologia católica; também trataremos da questão do dogma, que está intimamente
ligada à missão do Magistério na Igreja.

3.3.1 O Magistério na Teologia católica

Para a teologia católica, o Magistério da Igreja é o guardião e o garante das verdades


reveladas, contidas na Escritura e na Tradição. Os apóstolos receberam de Cristo o
dom do Espírito Santo e a missão de ensinar a mensagem divina. Os sucessores dos
apóstolos são os bispos, unidos com o papa, que tem o primado de Pedro. São eles –

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os bispos e o papa – que exercem o Magistério na Igreja. A autoridade do Magistério


está fundada na própria Sagrada Escritura: “Como o Pai me enviou, assim também
vos envio” (Jo 20,21); “Quem vos ouve, a mim ouve” (Lc 10,16). A declaração mais
solene de Jesus transmitindo aos apóstolos e a seus sucessores esta autoridade
magisterial encontra-se em Mt 28,18-20: “Foi-me dada toda autoridade no céu e sobre
a terra. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos… ensinando-as
a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos”. Ou seja, Jesus transmite a sua autoridade aos apóstolos
e promete estar com eles ao longo de todos os séculos, até mesmo quando aqueles
apóstolos já não estariam fisicamente na terra, mas estariam os seus sucessores
(IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 114-116).
Na Igreja primitiva, os apóstolos exerceram conscientemente esta autoridade, como
vemos em declarações como estas: “Nós somos testemunhas destas coisas, nós e o
Espírito Santo, que Deus concedeu aos que lhe obedecem” (At 5,32); “pareceu bem ao
Espírito Santo e a nós” (15,28). No período pós-apostólico, os Padres da Igreja também
testemunharam a consciência da autoridade do Magistério. Irineu de Lião (130-202
d.C.), por exemplo, afirma que os apóstolos entregaram à Igreja toda as verdades
reveladas: as verdades que deixaram escritas encontram-se nas Sagradas Escrituras;
e as verdades que transmitiram oralmente continuam sendo ensinadas pela Tradição
nas igrejas. Tertuliano (160-220 d.C.) declara que só estamos na verdade quando
caminhamos segundo os ensinamentos que a Igreja recebeu dos apóstolos, os quais
receberam de Cristo, o qual recebeu de Deus (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 116-117).
Na história recente, o documento da Igreja mais importante sobre o Magistério é,
sem dúvida, a constituição dogmática Dei Verbum. A função do Magistério é assim
descrita pelos padres conciliares:
O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou
contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja
autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não
está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando
apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a
assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente
e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto
propõe à fé como divinamente revelado. É claro, portanto, que a sagrada
Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o
sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam
que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu
modo, sob a acção do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente
para a salvação das almas (Dei Verbum, 1965, n. 10).

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Nesta definição, o Magistério é qualificado como “vivo” no sentido que atua no


presente, atento às circunstâncias mutáveis, atualizando a mensagem divina presente
na Escritura e na Tradição. O Magistério está à serviço da Palavra de Deus, portanto
não a pode manipular, mas deve interpretar com autenticidade o seu verdadeiro
sentido. Na Igreja católica, só o Magistério tem autoridade para interpretar elementos
da Revelação de forma autêntica e definitiva, mas nada impede que o Magistério se
coloque à escuta dos teólogos e do povo de Deus. Por outro lado, os fiéis e os teólogos
devem uma obediência de fé aos pronunciamentos autênticos do Magistério. É o
mesmo Espírito que dá assistência à Igreja e ao seu Magistério, que inspira os fiéis
e que ilumina a mente dos teólogos, então não deveria haver contradição entre eles,
se forem igualmente dóceis ao Espírito Santo. O Magistério acolhe as intuições dos
teólogos, avalia e define seus limites e seu alcance; e a teologia oferece novas ideias ao
Magistério, acolhe as suas definições e ilustra o conteúdo dos seus pronunciamentos
para os fiéis (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 118-119).
Podemos dividir a atuação do Magistério em quatro categorias, seguindo a exposição
de Ibáñez-Mendoza (1982, p. 120-125):
• Magistério ordinário dos bispos: o ensino quotidiano dos bispos, em suas dioceses,
em matéria de fé e costume; inclui também as cartas pastorais, exortações,
pregações, sínodos diocesanos, etc.
• Magistério extraordinário dos bispos: quando os bispos se reúnem em colégio
episcopal junto com o papa, particularmente em um concílio.
• Magistério ordinário do papa: ensinamentos quotidianos em homilias, audiências,
mensagens; inclui também as encíclicas, cartas apostólicas, exortações
apostólicas, etc.
• Magistério extraordinário do papa: em pronunciamento ex cathedra, ou seja, em
proclamações dogmáticas solenes.

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Título: Os bispos e os convidados durante o Concílio Vaticano II


Fonte: https://www.crossroadsinitiative.com/wp-content/uploads/2019/12/vatican-II-counsel.jpeg

3.3.2 O Magistério e o dogma

O Magistério inclui todos os pronunciamentos e ensinamentos dos pastores da


Igreja, especificamente dos bispos e do papa enquanto bispo de Roma. Toda vez
que a Igreja se pronuncia, oficialmente, em matéria de fé e doutrina, ou em questões
morais e disciplinares, está exercendo o seu magistério. Para exercer seu magistério,
os pastores da Igreja recorrem às Sagradas Escrituras, à Tradição, aos santos Padres
e aos grandes teólogos. O Magistério da Igreja exerce a sua máxima autoridade ao
proclamar um dogma (LIBANIO, 2014, p. 227).
O dogma é “uma declaração formal e vinculante do Magistério eclesiástico sobre
uma determinada verdade revelada” (MATOS, 2020, p. 35). Em outras palavras, o dogma
é uma doutrina que a Igreja propõe como de fé divina, ou seja, como divinamente
revelado. Por isso, o Vaticano I definiu, no documento Dei Filius (24 de abril de 1870),
que “deve-se, pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na Palavra
de Deus escrita e transmitida, e que pela Igreja, quer em declaração solene, quer pelo
Magistério ordinário e universal, nos é proposto a ser crido como revelado por Deus”
(DENZIGER, n. 3011, apud LIBANIO, 2014, p. 226). O dogma, portanto, é a mais solene
declaração do Magistério. Todavia, a função do Magistério não se reduz a proclamar
dogmas: há o Magistério ordinário, que trata de questões importantes para a vida
da Igreja, mas que não precisam de uma declaração solene. Os fiéis também devem

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obediência de fé ao Magistério ordinário, mas devem obediência de fé divina apenas


às proclamações dogmáticas.
Como acenamos no capítulo anterior, o que é definitivo no dogma é a sua substância
ou conteúdo essencial. Porém a sua expressão ou forma verbal é contingente, pois é
determinada pela cultura e pelo momento histórico da sua proclamação. Sendo assim,
o dogma é irreformável quanto à verdade de fé que transmite, ou seja, não pode ser
alterado substancialmente. Todavia, o dogma está aberto a novas formulações e
interpretações, pois cada sentença dogmática deve ser historicamente situada. Na
história do dogma, há uma descontinuidade formal dentro da continuidade substancial.
A teologia tem a função de explicar, interpretar e elucidar o dogma. Em relação às
verdades proclamadas dogmaticamente, a teologia deve uma submissão de fé; por
outro lado, em relação aos ensinamentos do Magistério, deve uma submissão religiosa
de vontade e inteligência (MATOS, 2020, p. 35).
Há uma questão muito delicada e muito discutida quanto ao Magistério: a infalibilidade
do romano pontífice quando define algo ex cathedra. Esta infalibilidade foi definida pelo
Vaticano I no documento Pastor Aeternus (18 de abril de 1870) e aplica-se apenas para
as definições dogmáticas proclamadas solenemente pelo sumo pontífice. Significa
que o papa, quando define uma verdade de fé como revelada, em comunhão com toda
a Igreja, não erra em sua definição, pois neste momento ele não fala por si mesmo,
mas fala como sucessor de Pedro. A partir do Vaticano I, o romano pontífice exerceu
esta infalibilidade em apenas duas ocasiões: ao proclamar os dogmas marianos da
Imaculada Conceição e da Assunção (LIBANIO, 2014, p. 226-227). Existem algumas
condições para que esta infalibilidade papal seja exercida: aplica-se apenas à matéria
de fé e de costume; quando o papa fala em nome de toda a Igreja; a intenção de
exercer o magistério supremo deve ser explicitamente declarada; não aplica-se aos
ensinamentos quotidianos, mas apenas às definições dogmáticas solenes (IBÁÑEZ-
MENDOZA, 1982, p. 123-124).

3.4 Sensus fidei

O sensus fidei (sentido da fé) nem sempre é considerado como uma fonte da Teologia,
mas um documento de 2014, da Comissão Teológica Internacional, declarou claramente
que o sensus fidei é um locus teológico. Mas antes de tratarmos deste aspecto, vejamos
como o documento define o sensus fidei, dividindo-o em dois aspectos: “usamos o

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termo sensus fidei fidelis para se referir à capacidade pessoal do crente de fazer um
discernimento justo em matéria de fé, e o de sensus fidei fidelium para se referir ao
instinto de fé da própria Igreja”. Como vemos nesta passagem, este instinto de fé (sensus
fidei) pode ser observado em cada fiel singularmente (acrescenta-se a especificação
fidelis), mas pode ser considerado também em sua amplitude, ou seja, no conjunto
dos fiéis que formam a Igreja (acrescenta-se a especificação fidelium). No caso do
senso de fé de cada fiel singularmente, encontramos esta definição:

O sensus fidei fidelis é uma espécie de instinto espiritual que capacita o


fiel a julgar de forma espontânea se algum ensinamento particular ou
determinada prática está ou não em conformidade com o Evangelho e
com a fé apostólica. Ele está intrinsecamente ligado à própria virtude
da fé; decorre da fé e é uma propriedade dela. Pode ser comparado a
um instinto, porque não é primariamente o resultado de deliberação
racional, mas assume a forma de um conhecimento espontâneo e
natural, um tipo de percepção (O Sensus Fidei na vida da Igreja, 2014,
n. 49).

Sendo um instinto espiritual, o sensus fidei não corresponde a uma mera opinião
humana, mas consiste na fé espontânea do cristão que permanece unido a Cristo e
dócil ao Espírito Santo. Quanto ao senso de fé da Igreja como um todo, o documento
traz esse esclarecimento sobre a origem do conceito:

O conceito de sensus fidelium começou a ser desenvolvido e ser


utilizado de forma mais sistemática no tempo da Reforma, embora
o papel decisivo do consensus fidelium no discernimento e no
desenvolvimento da doutrina em matéria de fé e de moral já tinha
sido reconhecido durante os períodos patrístico e medieval (O Sensus
Fidei na vida da Igreja, 2014, n. 22).

ISTO ACONTECE NA PRÁTICA

Uma manifestação prática e visível do sesus fidei e do sensus fidelium é a chamada


“religiosidade popular”. A religiosidade popular não nasce de prescrições oficiais
da Igreja, mas nasce de forma espontânea no meio dos fiéis, os quais sentem
intuitivamente que esta ou aquela forma de religiosidade é autêntica. Pensemos,
por exemplo, nas devoções populares como as procissões, as peregrinações, as
romarias, as visitas aos santuários e templos, as orações populares e familiares, os
jejuns não prescritos, os grupos de oração espontâneos, etc.

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A ideia de que os fiéis em sua totalidade não erram em matéria de fé e costume


já estava presente desde o início da história do cristianismo, mas passou a ser
reconhecida de forma conceitual a partir da Reforma, ganhando novos desdobramentos
especialmente a partir do século XIX. O Vaticano II, mesmo não usando o termo sensus
fidelium, resumiu bem esta doutrina consolidada nos últimos séculos:

O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo,


difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de
caridade, oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios
que confessam o Seu nome. A totalidade dos fiéis que receberam a
unção do Santo, não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade
peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo
todo, quando este, desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis,
manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes (Lumen
Gentium, 1965, n. 12).

Este sentido de fé permite ao povo cristão reconhecer, de forma natural e espontânea,


os ensinamentos divinos contidos nas Sagradas Escrituras, na Tradição e no Magistério.
Além disso, o sensus fidelium traz novas intuições que podem se tornar doutrinas,
sempre que estão em conformidade com as demais fontes da teologia. O fundamento
do sensus fidelium está no fato que a fé é um bem comum, concedido por Deus a todo
o seu povo. Até mesmo a Sagrada Escritura nasceu do testemunho de fé do povo de
Deus, manifestando como o sentido de fé dos crentes como um todo realmente é um
lugar teológico (MORALES, 2003, p. 58-59). A este ponto, voltamos à questão inicial para
entendermos em que sentido o sensus fidei pode ser considerado um lugar teológico:

Como ela está a serviço da inteligência da fé, a teologia procura [...]


oferecer a ela mesma uma precisão objetiva sobre o conteúdo de sua
fé, o que depende necessariamente da existência do sensus fidelium
e de seu exercício correto. Este sensus fidelium não é apenas objeto
da atenção dos teólogos, mas constitui um fundamento e um locus
para o seu trabalho. A própria teologia tem uma relação dupla com o
sensus fidelium. Por um lado, os teólogos dependem do sensus fidei,
porque a fé que eles estudam e explicam vive no povo de Deus [...]. Por
outro lado, os teólogos ajudam os fiéis a expressar o sensus fidelium
autêntico, lembrando-lhes as linhas essenciais da fé e ajudando-lhes
a evitar desvios e confusões causadas pela influência de elementos
imaginários provenientes de outros lugares (O Sensus Fidei na vida
da Igreja, 2014, n. 81).

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Em outras palavras, o sensus fidei não pode ser colocado ao lado da Escritura e da
Tradição como uma fonte independente, mas pode ser considerado um lugar teológico
na medida em que reflete o modo como os fiéis compreendem, professam e praticam
a Palavra de Deus. Por outro lado, a teologia deve auxiliar os fiéis, esclarecendo as
doutrinas, explicando as Sagradas Escrituras, levando a um amadurecimento da fé:
deste modo, o sensus fidelium mantém a sua autenticidade e sua ligação com a fonte
principal da teologia, que é a Revelação.
Para concluir, vimos nesta aula quais são as principais fontes da teologia. A primeira e
mais importante fonte é a Sagrada Escritura, que contém a Revelação divina, cujo ponto
mais alto é a vinda de Cristo Jesus no mundo. Destacamos que a interpretação da Bíblia
deve seguir alguns métodos exegéticos e deve acontecer sempre em comunhão com a
Igreja. A segunda fonte é a Tradição que, junto à Escritura e nunca sem ela, configura-
se como testemunha da Revelação. A Tradição não é uma fonte independente, mas
ela é capaz de explicitar verdades reveladas que se encontram apenas implicitamente
na Sagrada Escritura. Vimos também que o Magistério pode ser considerado um lugar
teológico, pelo menos dentro da teologia católica, pois os sucessores dos apóstolos (os
bispos unidos ao papa) receberam a missão de transmitir e interpretar autenticamente
a Palavra de Deus. Por fim, falamos do sensus fidei como lugar teológico, visto que este
instinto espiritual dos fiéis favorece a compreensão e a vivência dos ensinamentos
divinos contidos na Revelação. Escritura, Tradição, Magistério e sensus fidei formam
um quadro completo sobre o terreno de onde surge a teologia.

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CAPÍTULO 4
OS RAMOS DA TEOLOGIA

Prezadas alunas e alunos, nas aulas anteriores estabelecemos as bases da teologia:


seu significado e objeto, seu método e suas fontes. Nesta aula, vamos olhar de forma
panorâmica todo o campo da teologia, ou seja, todos os seus ramos ou disciplinas.
Antes de tudo, destacamos que há uma forte unidade na teologia, dada por seu objeto
essencial, que é Deus. Todavia, essa unidade não significa uniformidade, ao contrário,
existem vários ramos na teologia, sendo que cada um deles é uma expressão da
riqueza do discurso teológico. Todos os ramos da teologia, também chamados de
disciplinas teológicas, estão unidos entre si e se explicam mutuamente. Na primeira
parte deste capítulo, apresentaremos as disciplinas propriamente teológicas (teologia
fundamental, dogmática, bíblica, moral, etc.). E na segunda parte, acrescentaremos
algumas disciplinas que normalmente fazem parte dos cursos de teologia, mas não
seguem o método teológico: especificamente o Direito Canônico e a História da Igreja.

4.1 Disciplinas propriamente teológicas

Apresentamos a seguir as principais disciplinas teológicas. Isso não significa que


todos os cursos de teologia apresentarão essas disciplinas, usando esta nomenclatura.
Cada curso de teologia tem as suas especificidades e pode dar mais ênfase para um
ou outra área da teologia. Os títulos a seguir formam o quadro básico de disciplinas
teológicas que normalmente estão presentes nos cursos de teologia, mas podem
receber outra nomenclatura, ou podem ser subdivididas ou agrupadas diversamente.

4.1.1 Teologia Fundamental

A teologia fundamental apresenta as bases do conhecimento teológico. Seu principal


tema é o conceito de Revelação, do qual deriva o tema da salvação: ou seja, trata da
iniciativa divina de se auto-manifestar e da resposta humana que se concretiza no
ato de crer. Aqui estão incluídos temas como o mistério divino, a liberdade humana, a

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possibilidade de conhecer a Deus, a participação humana no projeto de salvação, etc.


A teologia fundamental é o setor teológico mais próximo ao diálogo com as ciências
e outras formas de saber: por um lado, ela busca descrever como conhecemos a
Deus; por outro lado, se empenha em compreender a mentalidade contemporânea e
seus questionamentos à fé. Por isso, a fundamental faz uma ponte entre a teologia
e as ciências de cada período histórico. Também mantém contato constante com a
experiência existencial e religiosa, para verificar como a fé entra na vida das pessoas
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 213-214).
A atual teologia fundamental corresponde à antiga apologética, porém com
uma enorme diferença. O objetivo da apologética era refutar as falsas doutrinas e
demonstrar a verdade cristã. A metodologia consistia no uso de silogismos lógicos,
com argumentações complexas e altamente filosóficas, para demonstrar a credibilidade
e a excelência da fé católica. Atribuía a si mesma o status de ciência objetiva com o
propósito de defender e justificar a fé mediante argumentos estritamente racionais,
sem apelos à crença (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 214). Esta forma de fazer teologia
predominou do século XVI ao XVIII, quando os manuais de apologética contrastavam os
racionalistas e os protestantes, usando um esquema teológico tripartido: a existência
de Deus; a existência da verdadeira religião, o cristianismo; e a existência da verdadeira
Igreja, a católica (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 148).
Este esquema apologético foi superado nos últimos séculos e hoje a teologia
fundamental se ocupa especialmente de dois grandes blocos: a introdução à teologia
(que é o conteúdo do nosso e-book) e a hermenêutica da existência cristã. A introdução
à teologia se ocupa do fundamento do conhecimento teológico, que inclui o estatuto
epistemológico (capítulo 1 deste e-book), o método (capítulo 2), a evolução histórica da
teologia (capítulos 5-10), as tarefas da teologia e sua relação com as demais ciências
(capítulos 11-15). O círculo hermenêutico da existência cristã parte da Revelação e do
processo de interpretação da mesma; mostra a seguir os elementos constitutivos da fé;
reflete sobre a fé em seus aspectos objetivos (verdades de fé) e subjetivos (experiência
humana); explica a relação entre a fé e a Revelação, bem como entre a Tradição, a
Escritura e o Magistério (capítulo 3 deste e-book). Dentre todos estes temas, o mais
importante, que acaba definindo a teologia fundamental, é o conceito de Revelação
como fundamento da própria teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 214-215).
A Revelação é, portanto, o tema central da teologia fundamental: Deus que se
manifesta à humanidade, tendo em Jesus o ponto mais alto desta revelação histórica.

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Como resposta humana, a teologia fundamental introduz o conceito de fé, por meio
da qual o ser humano acolhe a Palavra de Deus. A abertura constante à Revelação
manifesta o caráter religioso do ser humano, por isso a teologia fundamental se
aproxima da antropologia teológica. Além destas temáticas tradicionais, a teologia
fundamental tem incluído novas temáticas, como o ateísmo, as religiões não cristãs,
as ciências humanas, entre outras (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 148).

4.1.2 Teologia dogmática

A dogmática, também chamada de teologia sistemática, é a área mais abrangente


dos cursos de teologia, pois inclui várias disciplinas: cristologia, eclesiologia, Trindade,
antropologia teológica (criação, pecado, graça e salvação), escatologia, mariologia,
etc. Os sacramentos às vezes são incluídos na dogmática, outras vezes são tratados
à parte, junto com a liturgia. A dogmática estuda o dado revelado, aprofundado e
reinterpretado pela Tradição e pelas intervenções do Magistério ao longo dos dois
mil anos de história da Igreja, por isso é a parte mais extensa da teologia (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 224).
Falar em teologia dogmática não significa falar em dogmas da teologia, por isso alguns
autores preferem a nomenclatura “teologia sistemática”, pois inclui todo o patrimônio
de vida e de reflexão dos cristãos. Em todo caso, a teologia dogmática ou sistemática
não busca simplesmente repetir a doutrina consolidada ao longo dos séculos sobre
Cristo, a Igreja, os sacramentos, a salvação, o pecado, etc., mas visa trazer todo este
patrimônio teológico para os nossos dias, com a linguagem e a sensibilidade dos nossos
contemporâneos. Neste processo, ela integra em seu discurso a experiência subjetiva,
reelabora conceitos e confronta-se com a problemática humana de cada tempo. Por
um lado, a teologia dogmática precisa reconhecer a historicidade e provisoriedade de
suas afirmações; por outro lado, deve evitar o relativismo dissolvente. A fidelidade à
Tradição e a abertura à compreensão de fé conforme os esquemas mentais atuais
devem andar juntas na teologia sistemática, em uma renovação constante do seu
aparato conceitual (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 222-223).
A teologia sistemática pode ser subdividida em várias disciplinas ou partes de uma
disciplina, conforme o elenco (não exaustivo) a seguir:

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• Soteriologia: doutrina da salvação, incluindo temas como a fé, a graça, o pecado,


a redenção, a conversão, a justificação e a santificação, entre outros.
• Cristologia: estudo sobre a pessoa, a vida e a missão de Cristo a partir dos
testemunhos bíblicos (especialmente os evangelhos) e extrabíblicos (Tácito,
Suetônio, Plínio, Flávio Josefo, etc.). A natureza humana e divina de Jesus é
um dos pontos centrais desta disciplina.
• Doutrina de Deus: inclui temas como a existência de Deus, o dogma da Trindade,
a possibilidade de conhecer a Deus, as heresias teológicas (agnosticismo,
politeísmo, dualismo, arianismo, etc.), os atributos de Deus (eternidade,
onipresença, onisciência, onipotência, etc.).
• Hamartiologia: é o estudo do pecado, especialmente o pecado original e a
natureza pecadora do ser humano. Inclui também a questão do mal, a tentação,
as consequências do pecado, a remissão, etc.
• Pneumatologia: doutrina do Espírito Santo, também chamada de “paracletologia”.
Trata da natureza do Espírito Santo e de seus atributos (onipotente, eterno,
santificador, dispensador de dons, intercessor, etc.), os símbolos do Espírito
(água, vento, fogo, óleo e pomba) e seus dons (sabedoria, ciência, fé, profecia,
línguas, etc), o fenômeno de Pentecostes, entre outros temas (INTERSABERES,
2014, p. 15-259).

A teologia dogmática é a principal área que diferencia a teologia católica em relação


aos evangélicos e aos ortodoxos. Os evangélicos dão maior relevo à teologia bíblica,
aceitando apenas a dogmática dos primeiros concílios ecumênicos. No entanto, algumas
Igrejas protestantes também elaboraram seus tratados de teologia sistemática, como
podemos ver no trabalho de grandes teólogos como Karl Barth, Paul Tillich, Wolfhart
Pannenberg e Jürgen Moltmann. Por outro lado, os ortodoxos aceitam as afirmações
dogmáticas até a patrística tardia (séculos V a VIII), além de alguns pronunciamentos
do magistério católico romano. A grande diferença é sua teologia mais tradicional
e mística, menos especulativa que a teologia ocidental (LIBANIO-MURAD, 2005, p.
225). O Concílio Vaticano II deu novos rumos à teologia dogmática, tornando-a mais
ecumênica ao colocar a Sagrada Escritura como ponto de partida:

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A teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se


proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos
Padres da Igreja oriental e ocidental para a interpretação e transmissão
fiel de cada uma das verdades da Revelação, bem como a história
posterior do Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da
Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação
de forma perfeita, aprendam a penetrá-los mais profundamente pela
especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre
eles. Aprendam a vê-los presentes e operantes nas ações litúrgicas e em
toda a vida da Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução dos
problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável
das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens
seus contemporâneos (Optatam Totius, 1965, n. 16).

Segundo esta definição, a teologia dogmática deve ter a Sagrada Escritura como
ponto de partida para cada tema, além de ser o critério para propor soluções aos
problemas humanos. Em um segundo momento, vem a contribuição da patrística e da
história do dogma. Só depois disso tem lugar a especulação como aprofundamento
teológico, seguindo o método escolástico. Por fim, toda a reflexão da teologia dogmática
tem uma finalidade prática: enriquecer a liturgia e a vida da Igreja, e contribuir na
evangelização dos povos em novos contextos.

Título: A teologia como uma biblioteca dividida em várias seções


Fonte: https://spurgeonline.com.br/artigos/bibliografia-teologica-da-escola-teologica-charles-spurgeon/

4.1.3 Teologia Bíblica

O estudo da Sagrada Escritura deve ser a alma da teologia, segundo a Dei Verbum
(1965, n. 24). A teologia bíblica tem ocupado grande espaço nos cursos de teologia,

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sendo normalmente muito apreciada pelos estudantes. Também no ambiente eclesial,


a leitura pessoal e comunitária da Bíblia ganhou especial destaque nas últimas
décadas. Todavia, o conflito de interpretações acaba ofuscando esse interesse geral
pela Sagrada Escritura: há um conflito entre leitura social e leitura espiritualista; e
um aumento vertiginoso de grupos neopentecostais que utilizam a Bíblia de forma
fundamentalista (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 216). Em todo caso, a Bíblia permanece
no foco, e a teologia tem a tarefa de auxiliar na sua correta interpretação. O estudo
da Bíblia tem uma dupla função em relação às demais disciplinas teológicas: colocar
as bases ou fundamentos para as principais verdades teológicas; além de enriquecer,
repensar e renovar os dados da teologia (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 155.
No âmbito acadêmico, normalmente a teologia bíblica se divide em três grandes
blocos: introdução geral, estudo dos livros do AT e dos livros do NT. Na introdução
geral, estuda-se de forma panorâmica a história do antigo Israel e dos inícios da
Igreja, o processo de passagem das tradições orais à escrita, os gêneros literários, os
métodos exegéticos, além de alguns temas partilhados com a teologia fundamental,
como a revelação, a inspiração e a interpretação. O segundo bloco costuma estudar
o AT a partir dos grupos de livros: Pentateuco, Livros Históricos, Profetas e Livros
Sapienciais. E no terceiro bloco, estuda-se os Evangelhos, os Escritos Paulinos, as
Cartas Católicas e o Apocalipse. Alguns cursos de teologia incluem também o estudo
das línguas bíblicas: o hebraico e o grego (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 216-217).
A exegese bíblica não é uma tarefa de estudantes no nível de bacharelado, mas
é um pressuposto de toda teologia bíblica. A exegese (do grego exegesis, “tirar para
fora”) busca captar o sentido da letra da Escritura, utilizando métodos científicos.
A ciência exegética requer conhecimento das línguas originais da bíblia (hebraico,
aramaico e grego), conhecimentos históricos e arqueológicos, confronto com a literatura
mesopotâmica e egípcia, familiaridade com a literatura rabínica intertestamentária
(século IV a.C. ao I d.C.). O principal método exegético utilizado nos últimos séculos é o
método histórico crítico, que faz uma leitura diacrônica do texto, incluindo vários passos:
crítica textual, análise linguística e semântica, crítica literária, estudo dos gêneros
literários, crítica das tradições e crítica da redação. Entre os métodos sincrônicos,
destaca-se a análise retórica e a análise narrativa. São métodos complexos, que o
estudante de teologia não precisa dominar, mas deve saber da sua existência. A
exegese não é teologia, mas é uma etapa que precede a teologia bíblica. Por sua vez,
a teologia bíblica faz uma ponte entre o estudo científico da Bíblia (história, literatura,

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filologia, etc.) e a fé da Igreja, mostrando o sentido da Palavra de Deus para os cristãos


(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 217-218).

4.1.4 Teologia Moral

Por um tempo, a moral foi considerada como a parte prática da teologia, enquanto
a dogmática era a parte teórica. Atualmente se compreende que toda teologia tem
seu aspecto pragmático, e que a moral também tem uma ampla base teórica, por
isso também é uma disciplina teológica. Dito isso, é claro que a moral é a parte da
teologia que mais tem influência na vida pessoal e comunitária dos estudantes. De
fato, a teologia moral reflete sobre a resposta que o cristão dá a Deus no âmbito
pessoal, interpessoal, comunitário, social e político. Trata-se de um saber crítico sobre
o compromisso ético dos cristãos, vivido à luz da fé. Na teologia moral, confluem as
exigências da sociedade e da cultura e, ao mesmo tempo, as exigências do ser cristão
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 221).
Historicamente, a teologia moral nasceu entre os séculos XII e XV na forma de manual
para os confessores, com toda a casuística do que deveria ser considerado pecado ou
não. O problema desta forma de teologia moral é que o discurso era pouco teológico,
pouco ligado à dogmática, praticamente reduzido às regras de comportamento. A
renovação da teologia moral, que aconteceu a partir do Vaticano II, colocou ao centro
da moralidade o ser humano livre: o homem responde livremente ao chamado divino,
percebido através da sua consciência, com o objetivo de realizar o sentido da sua
vida, que é a felicidade eterna. Todo este processo é guiado pelo Espírito Santo, que
conduz a humanidade à salvação e à santificação. Os conceitos de ética e de teologia
dogmática estão juntos aqui, para dar sentido àquilo que chamamos de teologia moral
(MORALES-FIDALGO, 2015, p. 152).
A teologia moral se divide em dois grandes blocos: a teologia moral fundamental e as
reflexões éticas específicas. A moral fundamental compreende a reflexão global sobre
as bases e os critérios do agir cristão. Trata também da relação entre a moral cristã e
outras ciências humanas, como a filosofia, a medicina, a psicologia, a antropologia e
a economia. Para estabelecer seus princípios teológicos, a moral fundamental busca
inspiração na Escritura e na Tradição. Por outro lado, a reflexão ética específica deve
lidar com diversos setores da vida humana: moral social e política, moral sexual e
familiar, bioética, ética ecológica, entre outras (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 221-222).

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Um dos principais méritos da teologia moral é a sua capacidade de estabelecer


um diálogo com a sociedade e com a comunidade científica. Outro ponto positivo é
que ela ajuda a superar a distância entre reflexão acadêmica e vida pessoal, entre
teologia e pastoral. Refletir sobre os valores éticos a serem praticados pelos cristãos
é fundamental para se construir uma verdadeira comunidade eclesial cristã. Por outro
lado, o grande desafio da teologia moral hoje é superar a distância entre a visão oficial
da Igreja, a prática dos fiéis e os apelos do nosso tempo. Esse desafio se torna ainda
maior quando consideramos o subjetivismo ético moderno, a falta de consenso na
comunidade científica em questões importantes, a pluralidade axiológica da sociedade,
etc. Apesar das dificuldades, o diálogo deve permanecer para que a teologia moral e
a sociedade cresçam juntas (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 222-223).

4.1.5 Teologia sacramental e litúrgica

A sacramentária e a liturgia não são apenas disciplinas teológicas, mas dimensões


da vida cristã. A liturgia não era parte da grade curricular antiga, pois somente na
década de 1930 foi incorporada como disciplina em alguns cursos de teologia. Porém,
foi o Vaticano II que colocou a liturgia como uma disciplina necessária e importante
em todos os cursos de teologia católicos (Sacrosanctum Concilium, 1963, n. 16). O
objeto da teologia litúrgica é bastante amplo: inclui todas as celebrações litúrgicas da
Igreja, seus elementos espirituais, místicos, históricos, práticos e disciplinares. Do ponto
de vista da história, trata da celebração desde os tempos bíblicos, na Igreja primitiva,
passando por todas as fases de desenvolvimento da liturgia até nossos dias. Pela
via prática, estuda as liturgias atuais nas comunidades eclesiais e a sua inculturação.
Na questão teológico especulativa, reflete sobre o sentido da liturgia para a vida da
Igreja. Quanto aos aspectos disciplinares, considera as normas litúrgicas praticadas
pela Igreja. Por fim, a tarefa da teologia litúrgica é integrar todos estes aspectos da
vida e da reflexão sobre a celebração cristã (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 222-223).
A teologia sacramental é uma atualização da teologia do mistério, praticada pelos
Padres da Igreja, que valorizavam os aspectos simbólicos da celebração da fé e
relacionam cada sacramento à realidade da encarnação. A realidade sacramental é
apresentada como sendo a essência do cristisnismo: de fato, nos tornamos cristãos
por meio do sacramento do batismo e da crisma, nos alimentamos sacramentalmente
na eucaristia, assumimos nossa vocação pelos sacramentos do matrimônio e da

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ordem, e assim por diante. Todos estes sacramentos só se tornam inteligíveis dentro
da eclesiologia, pois fazem parte da vida da Igreja. Além disso, a própria Igreja é
sacramento de Deus, ou seja, é sinal da presença de Cristo e de seu Reino no mundo
(MORALES-FIDALGO, 2015, p. 151).

4.1.6 Teologia Pastoral

A teologia pastoral usa os dados de outras áreas da teologia (especialmente da


teologia bíblica e dogmática), destacando a mensagem de salvação ali presente, para
torná-la operativa e eficaz no mundo. O campo operativo da teologia pastoral é a vida
e a missão da Igreja. Neste sentido, o estudo da história completa este quadro, pois
a teologia pastoral procura identificar as situações históricas concretas nas quais
se desenvolve a ação evangelizadora da Igreja. A relação entre Igreja e sociedade é
fundamental nesta reflexão pastoral. O diálogo ecumênico é imprescindível, além do
diálogo com outras religiões. Por isso, entre os valores mais enfatizados pela teologia
pastoral estão a liberdade religiosa e a tolerância (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 155).
Os pressupostos básicos da teologia pastoral são esses: Deus tem um plano de
salvação para toda a humanidade; a Igreja aconteceu no mundo por vontade divina
e está à serviço de todos os seres humanos; Jesus enviou seus discípulos, isto é, a
Igreja como um todo, para evangelizar todos os povos, levando a graça da salvação
em cada ambiente onde chega o evangelho (MORALES-FIDALGO, 2015, p. 156).

ISTO ESTÁ NA REDE

A teologia pastoral entrou para a grade curricular dos cursos de teologia nas
últimas décadas apenas. No Brasil e na América Latina, ela se desenvolveu de
forma mais evidente do que em outras partes do mundo: basta observar o número
de mestrados e doutorados em Teologia Pastoral no Brasil, por exemplo. Para
conhecer um pouco mais sobre este ramo da teologia, veja este artigo de Misael
Batista do Nascimento, mestre em Educação e pastor presbiteriano. Aqui ele
apresenta a definição, o centro e o método da Teologia Pastoral: https://www.
misaelbn.com/definicao-centro-e-metodo-da-teologia-pastoral/

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4.2 Disciplinas pré-teológicas

Algumas disciplinas estudadas dentro dos cursos de teologia não são propriamente
teológicas, pois não seguem o método teológico visto no capítulo 2 deste e-book, e
não partem das fontes da teologia, apresentadas no capítulo 3. Podemos chamá-las
de “disciplinas pré-teológicas”, porque apresenta aspectos importantes da vida eclesial
e preparam o terreno da teologia.

4.2.1 Direito Canônico

A maioria dos cursos de teologia, pelo menos os cursos católicos com formato
clássico, inclui o estudo das normas da Igreja. Por ser uma instituição, a Igreja tem
uma estrutura organizada, com leis e regulamentos internos. O principal conjunto de
normas e prescrições jurídicas recebe o nome de Código de Direito Canônico (CDC).
Há uma longa história até a formulação atual e bastante completa do CDC. A
primeira tentativa de fazer uma coletânea jurídica das disposições eclesiásticas
aconteceu em 380 d.C., na Síria, com as chamadas “Constituições Apostólicas”. Os
concílios celebrados na Igreja no século IV também recolheram várias normas. Até
o século XI prevaleceu esse modelo normativo sinodal, marcado pelas resoluções
dos sínodos e concílios. Os decretos papais também eram importantes, mas não
determinantes. No século XII houve uma guinada histórica na direção de um direito
eclesiásico centralizado, quando a Igreja Latina reuniu as principais determinações
jurídicas em uma forma mais ou menos articulada. Porém, só em 1917 foi promulgado
o primeiro CDC sistemático. Com as reformas do Vaticano II, em 1983 aconteceu a
promulgação do atual CDC, dando uma nova configuração jurídica à Igreja. O CDC de
1983 é estruturado da seguinte forma: normas gerais, direito constitucional, magistério,
ministério de santificação (incluindo o direito sacramental), direito sobre os bens,
direito penal e direito processual (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 226-227).
A teologia estuda o direito canônico para compreender o seu valor e o seu conteúdo.
Todavia, esse estudo difere muito em comparação com as disciplinas propriamente
teológicas: no caso do direito canônico, a matéria prima não é a Revelação, nem
a Tradição, nem a especulação teológica, mas as leis eclesiásticas. Como pré-
requisito, é preciso conhecer a linguagem e a lógica do sistema jurídico. A disciplina
Direito Canônico costuma ser dividida em dois blocos de estudo: o direito canônico

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fundamental, que apresenta a aluno a história do CDC, sua finalidade e os instrumentos


para compreender a sua linguagem; e o bloco dos temas específicos, como o direito
sacramental, matrimonial, penal, normas da vida consagrada, entre outros (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 227-228).

4.2.2 História da Igreja

A teologia é uma realidade que se constrói na história, por isso o estudo da história
da Igreja é importante em cursos de teologia. As opções pastorais, as configurações
jurídicas da Igreja, o desenvolvimento do dogma – tudo isso vai se transformando ao
longo da história. Aqui entra o papel da História da Igreja, que estuda as grandes fases
da história universal, inserindo aí as transformações que a comunidade eclesial passou
ao longo do tempo, nos diversos contextos sócio-culturais. É o estudo da história que
nos traz uma compreensão da relação entre Igreja e mundo, incluindo os conflitos de
mentalidade, as ideias e movimentos sociais, os períodos de abertura e fechamento
no diálogo, entre outras situações (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 229).
Assim como o direito canônico, a história eclesiástica não é uma disciplina
propriamente teológica, pois o seu objeto não é a Revelação, mas sim os eventos e
ideias do passado, que repercutem ainda hoje na Igreja. Neste sentido, é uma disciplina
pré-teológica. Visto que a história estuda as configurações eclesiais diacronicamente,
ela não chega à essência teológica da Igreja, mas concentra o seu olhar sobre os
aspectos mutáveis. A história não é uma ciência exata, mas interpretativa. O resultado
final depende de vários fatores. Para começar, existem vários possíveis enfoques para a
historiografia eclesial: história dos personagens, culturalismo, história das mentalidades,
história da Igreja a partir dos pobres (modelo latino-americanno), etc. Em segundo
lugar, existem paradigmas eclesiológicos, ou seja, modelos de Igreja que o historiador
tem em mente ao selecionar e organizar os dados históricos. Conforme o enfoque e
o paradigma adotado, os resultados podem ser diferentes (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 299-230).
Nos cursos acadêmicos, a disciplina História da Igreja costuma ser vista como
algo mais simples de entender, pois não apresenta o mesmo grau de especulação
da teologia dogmática. Por outro lado, a quantidade de conteúdo a ser estudado
normalmente é maior, pois a história da Igreja abarca um período de 2000 anos:
selecionar e sintetizar os eventos mais importantes neste longo espaço de tempo é um

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desafio considerável. Seguindo a classificação tradicional da historiografia, a História


da Igreja pode ser dividida em quatro partes: História da Igreja Antiga, História da Igreja
Medieval, Igreja no Período da Modernidade e Igreja no Período Contemporâneo. No
nosso contexto, alguns cursos acrescentam a História da Igreja na América Latina e
no Brasil. Em todo caso, a organização e o número de horas-aula para cada período
da história pode variar em cada curso de teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 230).
Enfim, a teologia pode ser dividida em vários ramos, com finalidade didática,
sem perder a sua unidade, que é dada por seu objeto principal: Deus. As disciplinas
propriamente teológicas são aquelas que, de algum modo, fazem um discurso sobre
Deus; que partem da Revelação como princípio metodológico fundamental; e que
buscam os dados para a reflexão na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério (as
fontes da teologia). Nesta categoria, estão incluídas a teologia fundamental, dogmática,
bíblica, moral, litúrgico-sacramental e pastoral. Outras disciplinas estudadas em cursos
de teologia não tratam diretamente do objeto da teologia (Deus) e não se baseiam
nas fontes próprias da teologia, mas de alguma forma preparam o terreno da teologia:
são elas, particularmente, o direito canônico e a história da Igreja. Com esses ramos
de estudo, temos uma visão geral do conteúdo de um curso de teologia, sabendo
que cada curso terá as suas especificidades e poderá enriquecer este quadro geral.

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CAPÍTULO 5
A TEOLOGIA PATRÍSTICA

Prezados estudantes, nas aulas anteriores apresentamos os elementos introdutórios


que definem a teologia (definição, método, fontes e ramos). Agora estamos iniciando
a segunda parte da nossa disciplina, que trata da história da teologia. Serão seis aulas
sobre essa temática, começando com a história dos primeiros séculos de teologia
cristã, ou seja, a Teologia Patrística. Começaremos com uma contextualização histórica
da época dos Padres da Igreja. Depois apresentaremos uma breve cronologia das
principais fases da patrística e dos mais importantes Padres de cada fase. Por fim,
vamos elencar algumas características da teologia patrística como um todo. Este
percurso nos colocará em contato com uma pequena parcela da imensa riqueza
teológica deixada pelos Padres da Igreja.

5.1 Contexto

A teologia patrística compreende o período desde a geração imediatamente posterior


aos apóstolos até o início da teologia medieval (século VII). No período apostólico, o
foco era o anúncio do evangelho e a conversão de mais pessoas para o cristianismo.
Terminada esta fase de expansão inicial, novos desafios se colocavam para os cristãos.
O primeiro grande desafio era traduzir a boa nova do evangelho na linguagem da cultura
grega. Em segundo lugar, justificar a fé cristã diante daqueles que consideravam a nova
doutrina como carente de fundamentos e de valor. Tudo isso só era possível graças
à diminuição ou cessação das perseguições políticas, depois que o cristianismo foi
reconhecido como uma das religiões do Império Romano no 313, com Constantino. Os
cristãos puderam, então, organizar o seu processo de iniciação (catequese) por meio
de reflexões sempre mais sistemáticas. Nascia, assim, a teologia patrística (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 116).
A fé cristã passou a ser expressa com a linguagem da filosofia grega, em um rico
processo de inculturação. Todavia, esse processo também carregava os seus problemas
e riscos: na tentativa de conciliar conceitos cristão e pensamento helenista, surgiam

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imprecisões e dúvidas; e nasceram grupos radicais que acabaram descaracterizando a


identidade cristã (donatistas, docetistas, gnósticos, etc.). Com o surgimento de heresias,
aumenta também o debate de ideias, que provoca o desenvolvimento da teologia, a
busca de maior precisão terminológica e o aprofundamento da mensagem contida na
Sagrada Escritura. Os concílios Ecumênicos, que se multiplicam nesta época (Niceia,
Éfeso, Calcedônia, Constantinopla, etc.), testemunham a efervescência do debate
teológico, que aos poucos foi determinando a doutrina da Igreja (LIBANIO-MURAD,
2005, p. 116-117).

ISTO ESTÁ NA REDE

Heresias dos primeiros séculos. No esforço de expressar a fé cristã usando a


linguagem da filosofia grega, muitos desvios acabaram acontecendo nos primeiros
séculos do cristianismo: nasceram assim as primeiras heresias. Os Padres da
Igreja contribuíram copiosamente no combate às heresias dos primeiros séculos.
Para conhecer um pouco mais sobre estas heresias, acesse o link a seguir: https://
coldcasechristianity.com/writings/heresias-cristas-historicas/. Este artigo apresenta
as heresias até o século XVII, organizando-as em heresias relacionadas à natureza
de Deus, de Jesus, da Salvação, do homem e da Igreja: para a presente aula, é
importante ler as heresias até o século V.

5.2 Cronologia dos Padres da Igreja

Não é possível apresentar aqui, nem mesmo de forma resumida, a contribuição


de todos os Padres da Igreja. Por isso, vamos organizar nossa breve exposição a
partir das quatro principais fases da Patrística: Padres Apostólicos (séculos I-II d.C.);
Padres Apologistas (século II d.C.); Escolas Teológicas (séculos III-IV d.C.); e o apogeu
(séculos IV-V). Em cada uma destas fases, vamos tratar especificamente de alguns
representantes, como forma de exemplificação. Para a fase do apogeu, vamos falar
apenas do seu maior representante, Agostinho de Hipona.

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Título: Os Padres da Igreja, miniatura da Miscelânea de Esvetoslau I de Kiev


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Church_Fathers#/media/File:Otsy.jpg

5.2.1 Padres Apostólicos (séculos I-II)

São considerados Padres Apostólicos os primeiros escritores cristãos, que não


fazem parte do grupo dos apóstolos, mas tiveram algum contato com os mesmos, e
viveram no período dos séculos I e II d.C. Outra característica fundamental é que estes
escritores contribuíram para a edificação da Igreja, influenciando significativamente
na formulação dos princípios cristãos. No atual status dos estudos da patrística, oito
autores são anoverados entre os Padres Apostólicos: Clemente de Roma, o autor da
Didaqué, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Papias de Hierápolis, Pastor de
Hermas e as epístolas de Barnabé e de Diogneto (RENNER, 2016, p. 37). São autores
que procedem de modo análogo aos autores do Novo Testamento, tanto nas temáticas,
quanto no método de ensino espontâneo. Em comum, todos eles fundamentam sua
doutrina nas Sagradas Escrituras e escrevem obras de caráter exortativo (IBÁÑEZ-
MENDOZA, 1982, p. 77).
Assim que a Igreja começou a se expandir, já no final do século I, precisou elaborar
respostas à diversas questões que eram apresentadas pelo ambiente filosófico da
época: o mistério da Trindade, a encarnação de Jesus Cristo, a relação entre graça
divina e liberdade humana, a relação entre razão e fé, etc. O problema de fundo foi o

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contato do cristianismo com a cultura grega, que tinha uma forma de pensamento
diferente, diferentes princípios e valores, nem sempre facilmente conciliáveis com os
valores cristãos. O trabalho dos Padres Apostólicos foi fundamental para abrir as portas
da cultura grega para o cristianismo e criar uma base de entendimento entre estes
dois mundos. Aqueles que se converteram ao cristianismo precisavam compreender
a nova doutrina, e os Padres Apostólicos proporcionaram esta compreensão através
dos seus escritos (RENNER, 2016, p. 37-38).
O primeiro Padre Apostólico que podemos citar é Clemente de Roma (30-100 d.C.),
o qual foi colaborador de Paulo e bispo de Roma no final do século I d.C. Na carta
aos Filipenses, Paulo dá testemunho dele: “Também a ti, leal companheiro, peço que
as ajudes, pois elas lutaram comigo na causa do evangelho, junto com Clemente e
meus outros colaboradores…” (Fil 4,3). De acordo com Irineu de Lião, Clemente foi o
terceiro sucessor de Pedro na condução da Igreja de Roma. Seu principal escrito foi a
chamada “Primeira Epístola de Clemente”, de 95 d.C., tendo como destinatária a igreja
de Corinto. A preocupação central da carta era a organização eclesiástica (RENNER,
2016, p. 38-39).
Inácio de Antioquia (35-108 d.C.) foi bispo da cidade de Antioquia da Síria, mas foi
martirizado em Roma pelo imperador Trajano (97-117 d.C.). Provavelmente ele conheceu
alguns dos apóstolos. Escreveu várias cartas: aos Efésios, aos Romanos, a Filadélfia,
e Esmirna, a Trálias, a Magnésia e a Policarpo, seu amigo. Em sua teologia, Inácio
dava ênfase à encarnação de Jesus, contra o gnosticismo, que estava se difundindo
na época. Para o gnosticismo, de fato, a encarnação de Cristo era apenas aparente.
Inácio também pregava o arrependimento dos hereges, a prática do bem aos cristãos,
e alertava a todos sobre as falsas doutrinas que se infiltravam na Igreja (RENNER,
2016, p. 39-40).
Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.) foi discípulo do apóstolo João, segundo a
tradição. Além disso, ele teria sido instituído bispo da Ásia pelos próprios apóstolos.
Na Igreja de Esmirna, escreveu várias cartas às comunidades e a outros bispos. A
única carta que chegou até nós foi a sua Epístola aos Filipenses (110 d.C.), na qual
Policarpo trata da fé em Cristo e exorta os cristãos à vida virtuosa e às boas obras. Do
ponto de vista doutrinário, Policarpo combateu a doutrina de Marcião, o qual negava
o valor do Antigo Testamento para os cristãos (RENNER, 2016, p. 40).

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5.2.2 Os apologistas (século II)

Com o surgimento de várias heresias, especialmente a partir do século II d.C.,


os autores cristãos tiveram que responder aos heréticos, apresentando a doutrina
correta da Igreja. Os autores que assim fizeram são chamados de Padres Apologistas.
Muitos Apologistas foram contemporâneos dos Padres Apostólicos, mas, à diferença
destes últimos, utilizavam de forma decisiva a filosofia grega para defender seus
entendimentos. No confronto com o mundo pagão, os cristãos foram acusados com as
mais absurdas alegações: de serem um grupo que praticava orgias, bebedeiras, incestos,
canibalismo, etc. Quando não se chegava a tanto, eram pelo menos considerados como
ignorantes, incapazes de dialogar com a aristocracia. Quem respondeu com grande
categoria a todas estas acusações foram os Apologistas (RENNER, 2016, p. 49-50).
Para mostrar que os cristãos não tinham nada de ignorantes, os Apologistas usaram
a mais alta expressão cultural e intelectual da época: a filosofia grega. Com argumentos
filosóficos, eles podiam defender o cristianismo diante das classes aristocráticas e
diante das autoridades. Era importante convencer as autoridades sobre a idoneidade
do cristianismo, pois o povo em geral era muito influenciado por estas autoridades.
Podemos dizer que os Apologistas transformaram o pensamento cristão em uma
teologia propriamente dita, ou seja, uma análise racional e coerente da mensagem
cristã. Eles levaram o cristianismo da condição de marginalizado para a condição de
uma verdadeira religião, com uma doutrina elaborada, filosoficamente fundamentada
(RENNER, 2016, p. 50).
Um dos maiores apologistas foi Tertuliano (160-230 d.C.) de Cartago. Ele era advogado
e se converteu ao cristianismo aos 40 anos, passando a usar suas habilidades para
defender a fé cristã. Por mais que tenha sido um grande apologista, Tertuliano nunca
foi canonizado, pois a tradição afirma que ele teria abandonado a Igreja, no fim de sua
vida, para juntar-se ao grupo separatista chamado montanismo. No entanto, é preciso
reconhecer que ele foi um importante combatente contra as heresias da época e um
defensor da sucessão apostólica: para ele, os bispos deveriam ter alguma ligação
histórica com os apóstolos para serem considerados realmente seus sucessores
(RENNER, 2016, p. 52-53).
A doutrina da salvação elaborada por Tertuliano seguia o sistema judicial, com o
qual ele estava acostumado. Para ele, a salvação dependia do estilo de vida de cada
um, pois o modo como se vive deve ser compatível com a lei de Deus. A lei precisa ser

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ensinada e praticada. A salvação é a recompensa pelas boas obras dos seres humanos,
e a condenação é a punição pelas ações más. Essa doutrina acaba criando a imagem
de um Deus juiz diante do qual o ser humano deve ter medo. Para Tertuliano, Cristo
é o mestre que proclama a nova lei, fortalecendo a vontade do ser humano para que
possa escolher o caminho do bem (RENNER, 2016, p. 53-54).
Com certeza uma das principais contribuições de Tertuliano está na doutrina sobre
a Trindade Divina. Ele combateu diversas heresias neste campo, como aquela de
Praxeas, para o qual Deus era um só e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram
simplesmente “máscaras” usadas por este Deus ao longo da história, não pessoas
divinas. Para Tertuliano, o Pai, o Filho e o Espírito são pessoas divinas, inseparáveis,
mas distintas. As três pessoas da Trindade são Deus desde sempre, e agem sempre
unidos. Tertuliano também combateu o modalismo: os modalistas afirmavam que o
Pai, o Filho e o Espírito são simplesmente modos diferentes da mesma pessoa divina.
Ao contrário, Tertuliano insiste que o Pai, o Filho e o Espírito são diferentes pessoas
da mesma Trindade divina. No entanto, ele admite uma subordinação do Filho e do
Espírito Santo ao Pai. Mais tarde, a Igreja irá afirmar que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são da mesma natureza, sem superioridade de um sobre os demais (RENNER,
2016, p. 54-55). Porém, é preciso reconhecer que Tertuliano foi um dos primeiros
autores cristãos a teorizar a Trindade, então ainda não havia uma definição oficial da
Igreja a este respeito.
Outro importante apologista foi Justino Mártir (100-165 d.C.). Ele nasceu na cidade
de Siquém, filho de pais pagãos, e na mesma cidade foi martirizado no ano 165
d.C. Justino era um filósofo platônico, mas dava grande importância também ao
pitagorismo e ao aristotelismo. Para ele, a filosofia não contém toda a verdade, por
isso é preciso dar prosseguimento à reflexão na busca constante da verdade. Justino
criou uma mediação entre a filosofia e o pensamento cristão através do conceito de
Logos: para os gregos, o Logos é o princípio mediador entre o mundo das ideias e
o mundo concreto; para o evangelho de João, o Logos é Cristo, sabedoria de Deus.
Colocando estes dois princípios lado a lado, Justino afirma que todos aqueles que
tentaram viver de acordo com o Logos, mesmo antes da vinda de Cristo, poderiam ser
considerados cristãos de alguma forma. Os autores cristãos posteriores rejeitaram
essa ideia. Justino também escreveu Apologias aos imperadores Antonio Pio e Marco
Aurélio, exortando-os a serem justos com os cristãos; e escreveu o “Diálogo com
Trifão”, defendendo que Jesus é messias (RENNER, 2016, p. 56-57).

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5.2.3 As Escolas Teológicas (séculos III-IV)

Passado o período de maior defesa da fé cristã, teve início um processo de


sistematização da doutrina, nos séculos III e IV, com as Escolas Teológicas. Estas
escolas buscaram construir um sistema cristão harmônico, aprofundando as verdades
reveladas a partir da filosofia grega. A primeira que podemos citar é a Escola de
Alexandria, a qual pertencem Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, Cirilo e outros.
Algumas características importantes desta escola teológica são: a especulação com
base na filosofia neoplatônica; e a exegese alegórica da Bíblia (interpretar as imagens
bíblicas além do sentido literal). Clemente de Alexandria contrapõe a filosofia e a gnosis
pagã com a doutrina e a gnosis cristã, tendo a Sagrada Escritura como base. Orígenes
fez a primeira tentativa de expor as verdades reveladas de forma sistemática, em seu
Tratado sobre os Princípios, organizando-as em quatro partes: Deus e os espíritos;
o mundo, os homens, a redenção e a vida eterna; o livre arbítrio e a luta entre bem e
mal; e a Sagrada Escritura (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 78).
A Escola de Antioquia se caracteriza pela especulação filosófica aristotélica e por
uma exegese bíblica não alegórica. A esta escola pertencem alguns autores como
Luciano de Antioquia, Paulo de Samosata, Teodoro, Cirilo de Jerusalém, João Crisóstomo
e outros. Cirilo de Jerusalém escreveu as Catequeses Mistagógicas, que tinham como
objetivo educar os catecúmenos que se juntavam ao cristianismo: essa obra é o
mais completo registro sobre as práticas litúrgicas do século IV. Teodoro escreveu as
Homilias Catequéticas sobre os sacramentos e a teologia ascética. João Crisóstomo
deixou importantes contribuições sobre o sacramento da Ordem e sacerdócio cristão
(IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 78-79).
Enfim, temos os Padres Capadócios, especialmente Basílio, Gregório de Nissa e
Gregório Nazianzo. Foram grandes combatentes contra a heresia ariana, que negava a
divindade de Jesus. Os três grandes Padres Capadócios fizeram a primeira elaboração
sistemática da teologia trinitária, usando conceitos da filosofia grega neoplatônica.
Basílio trouxe uma precisão terminológica importante ao usar os conceitos de essência,
natureza e pessoa. Gregório de Nissa acrescentou a ideia de união hipostática para
explicar a encarnação, ou seja, a união das naturezas divina e humana de Jesus. E
Gregório Nazianzo trouxe contribuições especialmente no campo da pneumatologia,
ao introduzir a ideia de que o Espírito procede do Pai, diferente do Filho que é gerado
(IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 79-80).

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5.2.4 Agostinho de Hipona (353-430 d.C.)

Agostinho de Hipona, também chamado simplesmente de santo Agostinho, é


sem dúvida o mais influente Padre da Igreja do Ocidente. Sua contribuição teológica
determinou muitos aspectos da doutrina cristã até hoje, como a questão da graça e
do batismo. Ele nasceu no município de Tagaste, na província romana da Numídia,
no norte da África. Estudou retórica em Cartago, onde adotou a doutrina maniqueísta
e passou a levar uma vida depravada. Em 383 mudou-se para Roma para ensinar
retórica. Pouco mais tarde encontrava-se em Milão, onde teve contato com o bispo
Ambrósio, que lhe proporcionou a conversão ao cristianismo e lhe batizou em 387.
Um ano depois resolveu voltar para a África, mas sua mãe Mônica morreu na cidade
portuária de Óstia enquanto aguardavam para embarcar. Já em Hipona, foi ordenado
sacerdote em 391 e bispo em 395, e ali permaneceu até o fim de sua vida, pregando
e escrevendo inúmeras obras teológicas.

Título: Santo Agostinho, pintura de Philippe de Champagne


Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Saint_Augustine_by_Philippe_de_Champaigne.jpg

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Quanto à filosofia, Agostinho caracteriza-se como neoplatônico. O neoplatonismo


dos séculos III a VI enfatizava os aspectos espirituais e cosmológicos da filosofia de
Platão. Seguindo o neoplatonismo, Agostinho identificou o bem absoluto com o Deus
cristão. Todavia, o neoplatonismo considerava que apenas o espírito é bom, enquanto
a carne é má, criando um cristianismo sem o Cristo encarnado, por isso Agostinho
acabou abandonando essa corrente filosófica. Além disso, para Agostinho, a razão
humana não era suficiente para compreender a Deus. Para ele, a doutrina cristã começa
pela fé, depois vem o entendimento: crer para entender. A filosofia é fundamental, mas
a fé é que tem a última palavra (RENNER, 2016, p. 86-88).
A doutrina de Agostinho sobre a Igreja começou a ser formulada no confronto contra
os donatistas, os quais afirmavam que a Igreja deveria ser composta por um pequeno
grupo de crentes “perfeitos”, e que os pecadores não poderiam ser admitidos. Essa
regra se aplicava especialmente para os cristãos que teriam negado a sua fé durante
a perseguição de Diocleciano nos anos 303 a 305 d.C. Em linha com o evangelho,
Agostinho defende a possibilidade de perdão a todos. Para ele, a Igreja se espalha em
todo o mundo, contendo dentro de si tanto o bem, quanto o mal. A separação definitiva
acontecerá somente no juízo final, conforme a parábola do trigo e do joio (Mt 13,24-
43). A santidade da Igreja não depende exclusivamente dos seres humanos, que são
pecadores por natureza, mas depende de Cristo. E a Igreja de Cristo, Igreja invisível,
não equivale a uma organização eclesiástica externa e humana, mas é composta por
todos os cristãos unidos pelo Espírito Santo (RENNER, 2016, p. 86-90).
Outra questão importante na teologia de Agostinho é a relação entre pecado e graça.
Tudo parte do conceito de livre arbítrio: o ser humano é livre por natureza, podendo
escolher entre o bem e o mal. Todavia, esta liberdade só é plena com a ajuda da
graça, pois com o pecado original surgiu em nós a tendência para escolher o mal: só
a graça pode equilibrar novamente esta balança. Mesmo assim, esta tendência para
o mal não tira a nossa liberdade, apenas afeta o nosso julgamento da realidade. Para
Agostinho, nós já nascemos com a mancha do pecado original. Só Jesus pode nos
dar a graça que nos livra dos efeitos desse pecado original e nos traz a salvação. A
salvação, portanto, é atribuída somente à graça e é irreversível, ou seja, Deus a realizou
de uma vez por todas em Jesus. Todavia, esta graça não tira a liberdade humana e
não obriga ninguém a aceitar a salvação: cada um pode escolher entre a graça e a
condenação. Para Agostinho, a graça não é concedida ao ser humano porque ele crê,
mas para que possa crer, ou seja, tudo é iniciativa de Deus e até mesmo a fé é dom

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de Deus. A graça perdoa os pecados, regenera e cria nova vontade no ser humano,
de modo que ele possa escolher o bem e rejeitar o mal (RENNER, 2016, p. 88-90).

ANOTE ISSO

Pecado original: condição pecadora de todos os seres humanos desde a queda do


primeiro homem. A queda é aquele ato fundamental de desobediência de Adão e
Eva (Gn 3,1-24). Agostinho foi o principal formulador da doutrina do pecado original,
que influenciou toda a história sucessiva da Igreja. As principais bases bíblicas para
o conceito de pecado original são: Sl 51,5; Rm 5,12 e 1Cor 15,22.

Do tema da graça se desprende o tema do batismo. A graça do batismo é tão


forte que não importa quem realizou o batismo: se foi um apóstolo ou um herético,
o batismo tem o mesmo valor, pois a água é sempre a mesma criação de Deus, e as
palavras do evangelho são sempre as mesmas e não falham. O batismo não depende
das qualidades do ministro, ao contrário do que afirmavam os donatistas. O batismo
é necessário para lavar o ser humano do pecado original. Esta teoria de Agostinho
levou a Igreja a adotar o batismo de crianças, pois só os batizados teriam a salvação,
então seria importante batizar as crianças o mais cedo possível. Agostinho chegou a
lançar a ideia de um limbo para onde as crianças não batizadas seriam enviadas: não
é nem o céu, porque não receberam o batismo, nem o inferno, pois não cometeram
pecados pessoais. A Igreja católica nunca aceitou esta teoria. Por outro lado, Agostinho
defendia uma preparação para o batismo, pois o sacramento não salva de forma
mágica, mas exige um compromisso dos cristãos. Esta ideia permanece válida e de
difícil aplicação ainda hoje (RENNER, 2016, p. 90-92).

5.3 Características da teologia patrística

Entre as principais características da teologia patrística, podemos dizer que se trata


de uma teologia intuitiva, mística; capaz de unir inteligência e fé; capaz de dialogar com
a cultura grega e o mundo hebraico ao mesmo tempo, sem renunciar a especificidade
de Cristo; essencialmente bíblica e litúrgica. O grande princípio patrístico, formulado
por Agostinho de Hipona, diz muito sobre o modo como esta teologia se desenvolveu:
“crer para entender, entender para crer”. A razão e a fé vão juntas, o conhecimento

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profano do mundo e a revelação bíblica se aproximam. O ponto de partida pode ser


a natureza, a história, a Escritura ou a liturgia: tudo vai ao encontro da inteligência
espiritual, iluminada pelo Verbo encarnado e pelo Espírito Santo. Os protagonistas
deste movimento teológico são conhecidos como “Padres da Igreja”. A maioria deles
são pastores (bispos, padres ou leigos comprometidos), em constante contato com a
Bíblia e com a experiência litúrgico-eclesial das comunidades (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 117-118). Por isso, a patrística desenvolveu uma teologia essencialmente bíblica,
litúrgica, eclesial, inculturada e plural, como veremos a seguir.

5.3.1 Bíblica

No início da Patrística, no século II, a Bíblia ainda estava sendo formada: somente
em 1442, com o Concílio de Florença, teremos uma definição final de todos os livros
que compõem o cânone bíblico. Sendo assim, a patrística não só refletiu sobre os
textos bíblicos, como também contribuiu de forma decisiva para a definição dos livros
inspirados. Toda reflexão teológica elaborada pelos Padres da Igreja é essencialmente
bíblica. A Bíblia (isto é, aquilo que conheciam da Bíblia) era a principal fonte da teologia
e da vida eclesial no período patrístico (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 119).
A leitura bíblica dominante durante a patrística é a interpretação simbólica.
Nesta forma de interpretar, confluem as tradições hebraicas e helenísticas. Com o
neoplatonismo, surgiu a leitura analógica: analogia vem do grego, an-agogé, que significa
“conduzir para cima” – no platonismo, é a elevação do espírito às realidades celestiais.
Para os Padres da Igreja, a analogia corresponde ao sentido espiritual ou místico
das Escrituras. Da interpretação simbólica ou analógica, passa-se à hermenêutica
alegórica: interpretação das imagens do texto bíblico que vai além do sentido original.
Na interpretação alegórica, o sangue nos umbrais das portas dos israelitas (Ex 12) se
torna prefiguração do sangue de Cristo na cruz; as águas do Mar Vermelho se tornam
símbolo das águas do batismo (Ex 14), e assim por diante (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 119-120).

5.3.2 Litúrgica

A Igreja do Oriente considera que a liturgia é a “primeira teologia”. Para os Padres


da Igreja, especialmente os Padres gregos, a teologia articula o discurso sobre Deus

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(reflexão sobre a Revelação) com o falar para Deus (liturgia). O rito litúrgico é a teologia
em ação, a qual representa simbolicamente a Palavra de Deus. De fato, a teologia dos
Padres nasceu e chegou até nós como explicação dos mistérios vividos na liturgia.
Aqueles que se convertiam ao cristianismo, primeiro faziam experiência da celebração
dos sacramentos (especialmente o batismo), e só depois recebiam uma catequese
sobre o significado daquela experiência (mistagogia). A liturgia já estava organizada
como uma expressão completa da fé quando a reflexão teológica começou a se
desenvolver (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).
A relação entre a liturgia e a teologia se dá, na patrística, em mão dupla: a liturgia
gera teologia, e a teologia se expressa na liturgia. De fato, na celebração litúrgica
nasce a homilia, da qual provém a exegese dos textos bíblicos. Por isso a liturgia é
um locus theologicus para os Padres da Igreja: ela é a principal expressão de fé da
Igreja. Por sua vez, a teologia desemboca na expressão de louvor e adesão a Deus,
transformando-se novamente em liturgia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).

5.3.3 Crística e eclesial

A reflexão teológica dos Padres está centrada em Cristo, pois para eles Cristo é o
centro do próprio cosmos: à imagem do Verbo encarnado e por meio dele, Deus criou
o universo e os seres humanos. Se Cristo é o centro, a Igreja está intimamente unida
a Ele, em uma realidade mistérica. Unindo estes dois aspectos, podemos dizer que
a pessoa de Jesus Cristo, em sua relação com a Igreja, é a principal chave de leitura
teológica da patrística (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121).
O estudo da Bíblia, na patrística, não tinha o estatuto científico da exegese moderna,
mas se realizava no contato com a comunidade eclesial e era a ela destinado. As
homilias, as cartas e os ensaios eram voltados para a Igreja. A reflexão teológica
estava fortemente ligada à vida concreta das pessoas e das comunidades. A Bíblia
era interpretada na Igreja e por ela. Assim aconteceu, inclusive, a definição do cânone
bíblico: a comunidade eclesial se reconhece nos livros bíblicos que ela mesma aceita
como inspirados, e se sente responsável pela correta conservação e transmissão da
mensagem de fé ali contida. Neste sentido, a Bíblia pertence à Igreja (pois foi gerada
dentro da vida eclesial), e o centro da Bíblia é Cristo. Por isso, Cristo e a Igreja são
elementos essenciais da reflexão teológica patrística (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 121-
122).

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5.3.4 Criativa, inculturada e plural

Uma das principais tarefas da patrística foi inculturar a fé cristã no mundo helenista.
A Igreja precisava estabelecer um diálogo com a civilização grega e com a cultura
intelectual. Era preciso ter uma grande criatividade para apresentar o conteúdo da
Revelação bíblica com uma linguagem filosófica. As principais correntes filosóficas
no período da patrística eram o neoplatonismo e o estoicismo. Os Padres Capadócios
no Oriente, e Agostinho no Ocidente, são os grandes representantes do diálogo entre
Sagrada Escritura, categorias cristãs e neoplatonismo. Esta ousadia de reler e aprofundar
os dados da fé cristã, formulados originalmente com categorias hebraicas, traduzindo-
os com uma linguagem filosófica-helenística, é o grande exemplo de criatividade dos
Padres. Não só criatividade: esta foi uma importante inculturação da teologia e do
cristianismo no contexto helenístico da época (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 122-123).
Ao procurar dar respostas a questões de comunidades eclesiais inseridas em diferentes
contextos, a patrística desenvolve uma grande pluralidade de teologias. Os Padres gregos e
os Padres latinos discutem diferentes questões, e cada escola teológica vai acrescentando
novas perspectivas. A patrística é plural, mas sem perder a unidade da fé: a Bíblia como
ponto de partida e a figura de Jesus Cristo como centro unificador. A articulação entre
revelação bíblica, centralidade do mistério de Cristo e a inculturação no mundo filosófico
helenístico permanecem sendo um grande exemplo deixado pelos Padres da Igreja, os
quais deram origem a uma grande pluralidade de reflexões teológicas, sem renunciar à
unidade que existe na Igreja (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 123).
Ao longo desta aula, vimos, antes de tudo, que o contexto histórico no qual se
desenvolveu a patrística era marcado pela expansão do cristianismo, pelo diálogo
com a cultura grega e pela luta contra as heresias. Na segunda parte deste capítulo,
apresentamos a cronologia dos Padres da Igreja de forma bem panorâmica, destacando
as principais fases da patrística: os Padres Apostólicos, que formularam os princípios
cristãos; os Padres Apologistas, que defenderam o cristianismo das acusações feitas
pelos pagãos e lutaram contra as heresias; as Escolas Teológicas, que começaram
a sistematizar a doutrina cristã; e o apogeu com Agostinho de Hipona, cuja teologia
sobre a graça e o batismo foram determinantes para a história do cristianismo. Enfim,
destacamos as principais características da teologia patrística: bíblica, litúrgica, crística-
eclesial e inculturada-plural. Assim conseguimos contemplar um pouco da riqueza da
teologia dos Padres da Igreja.

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CAPÍTULO 6
A TEOLOGIA MEDIEVAL

Caras alunas e caros alunos, continuando o nosso percurso sobre a história da


teologia, vamos falar nesta aula de um período longo e muito importante para o
desenvolvimento da teologia cristã: a Idade Média (séculos V-XV). Começaremos
com uma contextualização geral deste período. Em seguida, apresentaremos o
desenvolvimento cronológico da teologia medieval, que recebe o nome de Escolástica,
destacando as suas principais fases e mais proeminentes autores. Dentre estes
autores, daremos destaque a Tomás de Aquino, que é o maior representante da
teologia escolástica. Por fim, identificaremos algumas das principais características
da teologia medieval.

6.1 Contexto

A historiografia considera como Idade Média o período que vai desde a queda do
Império Romano do Ocidente (século V) até a conquista de Constantinopla pelo Império
Turco-Otomano (século XV). Do ponto de vista teológico, a Idade Média começa depois
do silêncio teológico que se instaurou com a morte de santo Agostinho e vai até os
primórdios da Reforma Protestante.
No período da Idade Média, a Igreja Católica passou pelo seu maior crescimento
e expansão. No ano 384, o cristianismo se tornou religião oficial do Império Romano,
com o Edito de Tessalônica, do imperador Teodósio I. Assim acabou o período de
perseguição contra os cristãos e a necessidade de defender a fé, que caracterizaram
parte da patrística. Com as conversões em massa o número de cristãos crescendo
exponencialmente, houve uma diminuição do fervor e o desaparecimento do martírio.
Diante deste quadro, os cristãos que pretendiam manter o martýrion “testemunho”
decidiram abandonar o convívio social para se recolher em eremitérios e mosteiros.
A instituição monástica surge no final da Patrística vai caracterizar todo o período
medieval. O mosteiro se tornou, assim, não só o centro espiritual, mas o centro
intelectual e cultural da Idade Média (RENNER, 2016, p. 103-105).

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Durante a Idade Média aconteceu a primeira grande ruptura dentro da Igreja Católica.
Apesar da divergência de pensamentos e visões, a Igreja se manteve unida, em uma única
organização, até o século X. Em 809 aconteceu o sínodo de Aachen, que acrescentou
no Credo a expressão latina filioque “e do filho”, a respeito da procedência do Espírito:
“creio no Espírito Santo… que procede do Pai e do Filho”. A Igreja do Oriente não aceitou
esse acréscimo. Para a teologia oriental, inclusive para os Padres da Igreja Oriental, o
Espírito procede do Pai através do Filho, mas não procede do Filho. Sendo assim, em
1054 selou-se a ruptura entre a Igreja do Oriente e do Ocidente. Alguns historiadores
consideram que esta divergência doutrinária foi apenas um pretexto para a separação
entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente, mas a ruptura vinha se consolidando ao
longo dos séculos por vários fatores teológicos, doutrinários e políticos – como o não
reconhecimento da autoridade de Roma (RENNER, 2016, p. 106-109).
Para a Igreja Católica, os séculos VII a X foram um período de crise. A cultura greco-
romana estava sucumbindo, diante das invasões bárbaras no Ocidente e da ascenção
do islamismo no Oriente. A Igreja vivia uma estagnação teológica e espiritual. A teologia
praticada nos mosteiros e nas escolas episcopais, em ambiente rural e feudal, era
estática e conservadora, consistindo basicamente em copiar e compilar as obras dos
antigos. Também se exerciam comentários à Sagrada Escritura, tendo por base os
textos patrísticos, muitas vezes recortados e retirados de seu contexto. Em geral, a
teologia havia perdido o seu vigor (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 127).
Nos séculos X a XII, aconteceram mudanças significativas na sociedade e na Igreja.
Surgiram as comunas (cidades emancipadas), as corporações, as ordens religiosas
unificadas (Beneditinos, Carmelitas, Agostinianos, etc.) e as ordens mendicantes
(Franciscanos, Dominicanos, etc.). Trata-se de um período de renovação espiritual,
que provoca uma renovação também da teologia. Além do aspecto espiritual, este é
um período de grandes iniciativas no campo cultural e intelectual: surgem, por exemplo,
as primeiras universidades na Europa (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 128). Todo este clima
de renovação espiritual e cultural vai originar uma nova forma de fazer teologia, que
nós chamamos de Escolástica.

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Título: Universidade de Paris, tipicamente medieval, fundada em 1170


Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/historia/universidades-na-idade-media.htm

6.2 Cronologia da Escolástica

A teologia que se desenvolveu durante a Idade Média recebe o nome de Escolástica.


O termo “escolástica” vem do latim schola, que significa “escola” e se refere ao método
de ensino utilizado nas universidades da Idade Média, entre o ano 1100 e 1500. Para
os escolásticos, a teologia era a base de resposta para quase todos problemas da
vida. Por isso, desenvolveram a teologia acima de qualquer outra ciência. A filosofia
permaneceu como base da teologia, assim como na Patrística, mas agora a filosofia
aristotélica tinha o primeiro lugar. A Escolástica é responsável pela maior sistematização
que a fé cristã conheceu até hoje (RENNER, 2016, p. 110-111).

6.2.1 Os inícios (séculos X-XII)

Um fator essencial para o nascimento da Escolástica foi a redescoberta dos escritos


aristotélicos, entre os anos 1120 e 1160, particularmente os escritos sobre a teoria
crítica do saber e da demonstração (Analíticos I e II, Tópicos e raciocínios sofistas). A
partir de então, adotou-se o método dialético para fazer teologia, usando a tensão sic
et non (afirmação e negação) para chegar à verdade. Com isso, a teologia não era mais
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uma mera repetição, mas voltou a ter capacidade de questionar ideias pré-definidas
em busca de novos esclarecimentos (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 128).
A adoção do método dialético criou um conflito entre o que era “tradicional” e
“inovador”. A teologia monástica representava a tendência tradicional e conservadora.
Bernardo de Claraval (1090-1153), por exemplo, criticava a pretensão de penetrar o
mistério divino por meio da dialética e levou adiante a teologia mística. A inovação
ficou por conta dos teólogos escolásticos, como Pedro Abelardo (1079-1142), que
considerava a dialética como o caminho para se chegar à verdade, sendo que nada
era infalível, exceto as Sagradas Escrituras. Mas quem consagrou a dialética como
método foi Pedro Lombardo (1100-1160) em seu Livro das Sentenças. Nesta obra
prima da Escolástica, Lombardo reuniu textos da Bíblia e da Patrística, classificando-os
em grandes temáticas: Trindade, Criação e Pecado original, Redenção, Sacramentos e
Escatologia. As sumas teológicas elaboradas a partir de então adotaram este esquema
temático de Lombardo. O seu método consistia em recolher os textos dos Padres da
Igreja, aparentemente contraditórios, e buscar uma conciliação por meio da dialética
para chegar a conclusões racionais dedutíveis (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 88).
Anselmo de Aosta (1033-1109), também conhecido como Anselmo de Cantuária,
buscou unir a teologia monástica agostiniana e o pensamento especulativo dialético.
Para ele, a fé é absoluta, mas a fé busca a inteligência. A dialética pode transformar
uma verdade na qual já se acredita em uma verdade sabida, pensada e expressa. Ele
propõe passar do “entender para crer” ao “crer para entender” (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 128-129). Anselmo pode ser considerado o fundador do método racional na teologia,
que consiste em buscar a inteligência da fé (como vimos no tópico 1.2). Trata-se de
descobrir a conexão entre os vários mistérios da fé cristã e estabelecer os argumentos
teológicos com critério e lógica (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 86).
Todavia, a teologia oriental não assimilou a dialética. O aspecto contemplativo e
simbólico permaneceram ao centro dos teólogos do Oriente, privilegiando a dimensão
misteriosa e o silêncio, pois nenhuma teologia humana seria capaz de abarcar a
transcendência divina. O Oriente levou adiante a teologia apofática, ou seja, a teologia
negativa: dizer o que Deus não é, pois nenhuma descrição positiva é capaz de conter
todo o seu mistério. Do conflito teológico passou-se ao conflito eclesiástico, que
culminou com uma troca de excomunhões entre o patriarca de Constantinopla, Miguel
Cerulário, e o papa Leão IX, em 1054, selando o cisma entre Igreja do Oriente e do
Ocidente (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 129).

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6.2.2 Alta Escolástica (século XIII)

A partir do século XIII, a teologia é ensinada e praticada sobretudo nas “escolas”, ou


seja, nas universidades que vão surgindo nos centros urbanos, não mais exclusivamente
nos mosteiros em ambiente rural. Algumas universidades foram fundadas por reis,
imperadores e papas, como a Universidade de Salerno, organizada por Constantino o
Africano em 1080; de Toledo, instituída pelo papa Inocêncio III em 1085; de Nápoles,
fundada por Frederico II em 1227; e de Salamanca, idealizada por Alfonso IX de Leão
em 1227. Outras nasceram pela organização de estudantes em torno de grandes
mestres, como a Universidade de Bolonha, especializada no estudo do Direito; de Paris,
voltada sobretudo para a filosofia e a teologia; e de Oxford, conhecida pelos estudos
em ciências experimentais (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 88-89).

ISTO ESTÁ NA REDE

A instituição de ensino superior, que nós chamamos de Universidade, surgiu


na Idade Média, ligada, em certo modo, com a Escolástica. Entre as primeiras
universidades, algumas foram fundadas pela Igreja, para cultivar o estudo da
teologia e de outras ciências humanas; outras foram fundadas por reis, para
disputar com a Igreja no campo cultural. Para conhecer mais sobre a origem das
universidades na Idade Média, leia o artigo a seguir: https://vidanauniversidade.com.
br/historia-da-universidade-origens-do-conceito/

Durante a Escolástica, a teologia é chamada de “doutrina sagrada” e se coloca entre


as outras ciências ou artes ensinadas nas universidades. Predomina a análise metódica
e crítica e o raciocínio dialético como formas de fazer teologia no Ocidente. A filosofia
aristotélica é a mais estudada e aplicada nos estudos teológicos: especialmente as
obras Metafisica, Política e Tratado da alma, além de alguns escritos cosmológicos.
Como em todos os momentos de inovação, surgem também grupos conservadores:
por exemplo, algumas universidades na França proíbem a leitura das obras aristotélicas
em 1212 e 1220 (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 130).
A Escolástica não se concentrou somente sobre a teologia, ao contrário, desenvolveu
a filosofia e outras ciências humanas de forma autônoma, sem a necessidade de
passar pelo crivo das autoridades eclesiásticas. Surge neste período certa tensão
entre o pensamento profano e a doutrina eclesiástica: é claro que a Igreja ainda tinha

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influência sobre as universidades, mas as ciências humanas seguiram seus próprios


passos. No plano do pensamento, estabelece-se uma clara distinção entre “crer” e
“compreender”. O conhecimento passa a ter um valor em si, independente de estar
ligado à fé (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 130).
Neste período, destacam-se as escolas Dominicana (decididamente aristotélica e
racional) e Franciscana (mais ligada à mística). Um dos grandes autores da Escola
Dominicana foi Alberto Magno (1196-1280). Diante das condenações feitas pela Igreja
ao aristotelismo em 1210 e 1212, Alberto Magno assumiu a tarefa de purificá-lo e
introduzi-lo novamente na teologia, defendendo o caráter científico da teologia, dentro
da concepção aristotélica de ciência filosófica. O principal representante da Escola
Franciscana foi Boaventura (1221-1274). Como teólogo franciscano, Boaventura
consegue realizar uma conciliação entre a dialética aristotélica e a teologia monástica
de inspiração agostiniana. Outro nome importante desta época é Duns Scotus (1266-
1308). Ele desenvolveu uma teologia da encarnação, argumentando que a glória de
Deus e de Jesus Cristo é o verdadeiro motivo da encarnação; e defendeu que a Virgem
Maria foi concebida de forma imaculada, tornando-se um dos maiores inspiradores
do dogma da Imaculada Conceição (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 88-90).

6.2.3 Tomás de Aquino (1225-1274)

Sem dúvidas, Tomás de Aquino é o maior representante da Escola Dominicana


e da Escolástica como um todo. Em sua genialidade, ele combinou rigor teórico,
criatividade e ousadia. Ele foi, ao mesmo tempo, fiel à Revelação bíblica e muito
atento às exigências da epistemologia aristotélica. Escreveu inúmeras obras filosóficas,
teológicas e apologéticas: Comentários às Sentenças, Suma contra os Gentios, Comentários
às obras de Aristóteles, Quaestiones disputatae, Comentários às Sagradas Escrituras, etc.
Sua maior obra recebe o nome de Suma Teológica, que se tornou o principal manual
de teologia católica nos séculos subsequentes. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino
recapitula a tradição patrística, especialmente Agostinho, e a integra com a filosofia
aristotélica, colocada à serviço da fé. Com isso, ele alcança um unidade teocêntrica
da doutrina cristã, criando um equilíbrio entre fé e razão, e entre aspecto positivo e
especulativo da teologia (ver tópico 2.1) (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 90-91).
As teorias de Tomás de Aquino chegaram a ser condenadas pela Igreja no início
(em 1277, 1284 e 1296). Todavia, em seguida, o tomismo se tornou a doutrina oficial

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da Ordem Dominicana, e a Suma Teológica se tornou o principal manual de estudo


teológico das universidades, superando inclusive as Sentenças de Lombardo (IBÁÑEZ-
MENDOZA, 1982, p. 91). O Vaticano II recomenda o estudo de Tomás de Aquino como
guia para penetrar os mistérios da salvação por meio da especulação (Optatam Totius,
1965, n. 16).

Título: Tomás de Aquino, de Carlo Crivelli (século XV)


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Aquinas

Um dos temas mais conhecidos da teologia de Tomás de Aquino são as cinco vias
que provam a existência de Deus: motor imóvel, primeira causa eficiente, necessidade
absoluta, perfeição absoluta e suprema inteligência. Para ele, o nosso conhecimento
sobre Deus é imperfeito: podemos chegar à conclusão de que Deus existe, mas não
podemos descrever o que Ele é. Só a Revelação nos diz quem é Deus, mas a razão pode
provar a sua existência. A primeira via do argumento teológico de Tomás de Aquino é
o motor imóvel: tudo no universo está em movimento, mas cada ser é movido por um
outro; retrocedendo até o infinito, chegamos em um ser que move todos os outros,

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mas não é movido por ninguém. A segunda via é chamada de primeira causa: cada
efeito tem uma causa; retrocedendo novamente ao infinito, chegamos à primeira causa
eficiente que deu origem a todo movimento. A terceira via apresenta a necessidade
absoluta: alguns seres são necessários, outros são possíveis; nenhum ser possível
surge do nada, então é preciso admitir a existência de um ser necessário na origem
de tudo. Em seguida, temos a via da perfeição absoluta: existem graus de perfeição; a
verdade, a bondade e a nobreza do ser humano vieram de um ser ainda mais perfeito,
que só pode ser Deus. E a quinta via é a inteligência suprema: no mundo existe ordem
e finalidade, então deve haver uma inteligência suprema que tudo governa, um divino
arquiteto que ordena todas as coisas (RENNER, 2016, p. 113-115).
Outra doutrina importante de Tomás de Aquino diz respeito à graça divina e à
salvação. Em uma época que enfatizava o mérito humano como modo de se salvar,
Tomás de Aquino afirma que a graça é a obra de Deus na vida dos seres humanos,
conduzindo-os acima da natureza humana para fazê-los participantes da natureza
divina. Portanto, a justificação é fruto da graça de Deus, não mérito humano. Todavia,
a santificação depende do ser humano: a fé e a fidelidade são um compromisso de
vida, um ato de obediência a Deus. A salvação envolve tanto a justificação quanto a
santificação. Pela justificação, Deus nos declara justos e absolvidos; pela santificação,
nos tornamos mais parecidos com Cristo. As duas coisas vão juntas. Um tema
ligado à graça e a questão dos sacramentos, que são portadores da graça divina.
Tomás de Aquino também trouxe uma contribuição importante sobre a Eucaristia: a
transubstanciação significa que a substância do pão e do vinho é transformada em
corpo e sangue de Cristo; a “substância” muda, mas permanecem os “acidentes, ou
seja, as características físicas do pão e do vinho (RENNER, 2016, p. 115-117).

6.2.4 Escolástica Tardia (séculos XIV a XV)

Depois do florescimento da teologia no século XIII, os séculos XIV e XV foram


marcados pela decadência e pela divisão da teologia em “partidos”. A Escola Dominicana
continua tendo certo destaque, nas universidades de Paris e de Florença, levando
adiante a sua teologia realista. Por outro lado, a Escola Franciscana desenvolveu
uma teologia independente, seguindo o método de Duns Scotus, até chegar ao
nominalismo de Guilherme de Ockham (1330-1349) em Oxford. Para o nominalismo,
os conceitos filosóficos não representam necessariamente uma realidade, mas são

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apenas “nomes” ou signos com valor funcional, mas desprovidos de conteúdo objetivo.
A especulação filosófica cede espaço às ciências, que analisam os fatos singulares a
partir de abordagens empíricas. O problema é que a teologia até este momento tinha
usado a filosofia como base de argumentação, sendo assim, acabou ficando sem
chão (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 91-92).
Com o surgimento do nominalismo e a ausência de autores capazes de oferecer
uma resistência consistente dentro da Escolástica, o ambiente teológico mudou
radicalmente. Por um lado, a Escolástica se enfraqueceu, pois não conseguiu ir além
da sua dialética clássica. Por outro lado, surgiu uma nova corrente de pensamento,
de caráter místico, com autores como João Ruysbroeck (1293-1391), Tomas Kempis
(1370-1471), Dionisio (1402-1471) e outros. Tratava-se de uma teologia espiritual, afetiva
e voluntarista, que abriu o caminho para a devotio moderna, ligada ao Humanismo.
Um dos principais representantes desta nova corrente foi Gabriel Biel (1425-1495),
grande influenciador de Lutero (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 91-2).
O Humanismo (século XV) marca o fim da Idade Média e da teologia Escolástica.
A principal proposta do Humanismo é o retorno aos clássicos da literatura grega e
latina. O Humanismo abandonou o método especulativo para se concentrar no estudo
dos textos em si; e transferiu o centro das investigações de Deus ao ser humano:
neste sentido, acabou representando uma atitude anti-escolástica. Mesmo tendo
abandonado o método escolástico, o Humanismo não foi um movimento anti-teológico.
Sua contribuição positiva foi trazer o retorno às fontes: no caso da teologia, inaugurou
o retorno às Sagradas Escrituras, como faziam os Padres da Igreja. As universidades
se engajaram na produção de edições críticas da Bíblia e dos textos patrísticos, na
tradução dos textos originais e nos comentários bíblico-patrísticos. Entre os principais
humanistas cristãos podemos citar Erasmo de Rotterdam (1464-1536), João Fisher
(1459-1535) e Tomás Moro (1478-1535) (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 93-94).

6.3 Características da Escolástica

A teologia escolástica caracteriza-se, sobretudo, pela sistematização da fé, não


tanto pela criação de novas ideias (ao contrário da Patrística que era caracterizada
pela sua imensa criatividade). Neste processo de sistematização, a lógica exercia um
papel fundamental. Nenhuma afirmação ilógica poderia ser considerada verdadeira. A
lógica era um instrumento básico para que a teologia chegasse às respostas corretas,

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eliminando as falsas. Renner (2016, p. 111-112) elenca três características importantes


da teologia escolástica: a razão como caminho para o conhecimento teológico, pois
a fé busca o entendimento; a preocupação de encontrar pontos de intercepção entre
a filosofia pagã e a revelação divina; o método de ensino baseado no comentário de
grandes teólogos e filósofos do passado. Em poucas palavras, para os escolásticos,
o pensamento racional, auxiliado pela graça divina, poderia encontrar as respostas
para todos os problemas da vida.
Na Escolástica, a partir de Tomás de Aquino, o princípio patrístico “crer para
compreender” se torna “crer e compreender”. A teologia nasce da conjugação entre a
ciência de Deus (comunicada pela Revelação) e a ciência do homem, alcançada pela
reflexão autônoma (filosofia). A Escolástica, em geral, realizou uma síntese entre a
filosofia grega (especialmente, Aristóteles) e os elementos tradicionais da fé e da cultura
cristã (Bíblia e Padres da Igreja). Foi a Escolástica que elevou a teologia ao status
de “ciência da fé”. Mesmo desenvolvendo um alto grau de especulação intelectual,
não se afastou da experiência mística e da prática da caridade – pelo menos até a
Alta Escolástica, mas na Escolástica Tardia esta separação começou a acontecer. A
Escolástica caracterizou-se pela capacidade de realizar conciliações: entre fé e razão,
entre filosofia e teologia, entre mística e prática, etc. Apesar das distinções entre
as escolas teológicas – especialmente entre os autores das ordens Franciscana e
Dominicana –, a teologia escolástica desenvolveu uma grande unidade de pensamento
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 131-132).
Como limitação da teologia Escolástica, podemos destacar que se tratou de uma
teologia produzida pelo clero e para o clero. Não era uma teologia ligada à experiência
dos leigos. O cristãos não clérigos deviam ouvir e aprender do clero, a quem era
dada, com exclusividade, a potestade de ensinar. Outro limite provém da característica
central da Escolástica: aristotelismo. Ao tornar-se uma ciência – segundo o modelo
aristotélico de ciência – a teologia escolástica definiu seu objeto como sendo as verdades
necessárias e universais, excluindo as situações contingentes e particulares. Como
consequência, acabou ignorando o lado concreto, histórico, experimental e pessoal
da fé cristã. Partindo dos dados revelados como “seguros”, a elaboração teológica
se tornou uma “ciência de conclusões”, essencialmente dedutiva. O componente
intuitivo, experiencial e espiritual, que caracterizou a patrística, ficou em segundo plano.
Predomina, na Escolástica, o conceitualismo, muitas vezes árido e abstrato, pouco
concreto e apaixonado. A principal contribuição da Escolástica foi o fato de dar para

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a teologia um aspecto científico e racional. No entanto, com o passar do tempo, este


se tornou o seu grande limite, pois acabou favorecendo a separação entre teologia
científica e espiritualidade (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 1332-133).
Enfim, vimos ao longo deste capítulo que a Escolástica nasceu em um período de
crise da cultura greco-romana (séculos VII a X) e crise dentro da Igreja, pela estagnação
teológica e a falta de inovações. Neste contexto, a Escolástica trouxe novas formas
de fazer teologia e novo vigor, especialmente a partir do século X. Até mesmo as
Universidades, no Ocidente, nasceram deste ímpeto da Escolástica pela busca do saber.
O método escolástico, muito ligado à dialética grega, foi se estabelecendo com grandes
teólogos, como Pedro Lombardo e Anselmo de Aosta. No período da Alta Escolástica
(século XIII), destacamos a Escola Dominicana, com Alberto Magno e Tomás de Aquino,
e a Escola Franciscana, com Boaventura e Duns Scotus. Foi dado especial destaque
a Tomás de Aquino e sua contribuição para a teologia, particularmente quanto à
questão da existência de Deus, a doutrina da graça e da salvação, e a Eucaristia. Na
Escolástica tardia, falamos especialmente de Guilherme de Ockham e o nominalismo.
Por fim, explicitamos algumas características positivas da teologia escolástica (a razão
como caminho para o conhecimento teológico, a filosofia e a Revelação andando
juntas, etc.) e alguns limites (clericalização da teologia e distanciamento do aspecto
histórico e experiencial da fé). Com a crise da Escolástica, surgirão novas formas de
teologia, que veremos nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 7
A TEOLOGIA DA REFORMA

Prezadas e prezados estudantes, na aula anterior tratamos da teologia na Idade Média.


Sendo assim, nosso próximo passo é falar da teologia no período da modernidade. No
entanto, no início da modernidade houve um movimento social, religioso e teológico de
grandes proporções, que precisa de uma apresentação à parte. Por isso, neste capítulo,
nos concentramos sobre a teologia da Reforma, que praticamente marca o início do
período moderno para o cristianismo. Começaremos com uma contextualização geral
do século XVI, destacando alguns eventos e personagens que prepararam a Reforma.
Em seguida, apresentaremos brevemente a história e a teologia dos três principais
reformadores: Lutero, Zuínglio e Calvino. Enfim, destacaremos os elementos marcantes
da teologia da Reforma, ou seja, as cinco sola: sola Scriptura, solo Christo, sola gratia,
sola fide e soli Deo gloria.

7.1 Contexto

O século XVI é o século da Reforma Protestante, mas este momento histórico


foi preparado por um longo processo, incluindo especialmente os últimos séculos
da Idade Média. Trata-se de um período de turbulentas transformações na Europa,
provocadas pelo descontentamento geral em relação à concentração do poder nas
mãos dos monarcas (Estado) e do papa (Igreja). A crise do final da Idade Média
incluía todos os âmbitos da vida humana: social, econômico, político, religioso,
etc. Natel (2016, p. 22-23) faz um elenco das razões que levaram ao movimento
da Reforma:
• Crise interna da Igreja Católica Romana: comportamento imoral de parte do clero;
prática da simonia, ou seja, a venda de bens espirituais e cargos eclesiásticos,
especialmente para os senhores feudais.
• Plena ascensão da burguesia europeia: buscavam o lucro nas atividades mercantis
e apresentavam oposição aos dogmas de fé.

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• Absolutismo do poder real: reis que controlavam a Igreja e as práticas religiosas


para legitimar seu poder.
• Mentalidade renascentista: caracterizada pelo individualismo, o racionalismo, a
retomada das culturas clássicas grega e latina, a volta às fontes da antiguidade
que trouxe um novo senso crítico.
• Surgimento do humanismo: movimento literário que colocava o ser humano ao
centro e buscava inspiração na Antiguidade Clássica.
• A invenção da imprensa de tipos móveis (1439), que facilitou a divulgação das
informações.

Renner (2016, p. 125-126) resume os últimos séculos da Idade Média (XIII-


XV) como um período marcado pela decadência cultural da Europa e da Igreja
católica. A autoridade civil do papa passava por duros questionamentos e já não
se sustentava como antes. Grande parte do clero era conhecido publicamente pela
imoralidade, pela riqueza escandalosa e pela corrupção. Os mosteiros resistiram
por mais tempo, mas parte da vida monástica também foi atingida por esta onda
de corrupção. A situação do poder temporal da Igreja se agravou quando o papa
Bonifácio VIII declarou, em 1294, que os governantes seculares deveriam obedecer
a Igreja, e encontrou forte resistência de muitos governantes, entre os quais se
destaca o parlamento da Inglaterra, que determinou que o clero não seria mais
submisso ao papa. Na França, o rei Filipe IV proibiu que qualquer dinheiro saísse
de seu país, desafiando a autoridade do papa. Bonifácio VIII o excomungou, mas o
rei da França respondeu enviando um destacamento do seu exército para prender o
papa. Pouco mais tarde, Filipe IV promoveu a eleição de um papa francês, Clemente
V, o qual transferiu a sede papal para Avignon, na França.
Por três décadas, dois papas governaram a Igreja simultaneamente, um em Roma,
outro em Avignon. Cada nação aderia ao papa que melhor defendia os seus interesses.
Diante da impossibilidade de um acordo entre os dois papas, membros da Igreja
convocaram um concílio geral em Pisa, no ano 1409, e elegeram um terceiro papa
(Alexandre V) que deveria ser o único reconhecido por todos. Todavia, nada se resolveu,
e em 1417 o Concílio de Constança destituiu os três papas e elegeu Martinho V como
único papa da Igreja.
No âmbito cultural, surgiu o Renascimento, que durou desde o fim do século XIV
até o século XVII. O Renascimento cultural pretendia, entre outras coisas, livrar-se do

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poder da Igreja e garantir a liberdade de pensamento e de decisão. O interesse pela


arte e pela ciência estava no centro deste movimento (RENNER, 2016, p. 126).
Entre os personagens que prepararam o caminho da Reforma temos o inglês João
Wycliffe (1330-1384). Grande crítico da hierarquia da Igreja, chegou a chamar o papa
de anticristo, e os padres de ladrões e raposas malignas. Também argumentava contra
as indulgências da Igreja e a teologia da transubstanciação. Ele defendia a teoria
da predestinação: a Igreja verdadeira é formada pelos predestinados à salvação. O
papa deveria ser o líder dos predestinados, mas quando escolhe o poder, se torna um
anticristo e um herege permanente (RENNER, 2016, p. 127-128). Wycliffe também
defendia a separação entre Igreja e Estado: a Igreja deveria testemunhar a pobreza, não
controlar a economia e a política. Por isso, ele defendia a insurreição dos camponeses
contra a Igreja para recuperar os bens que o poder eclesiástico havia confiscado.
Outra contribuição importante de Wycliffe foi sua tradução da Bíblia para o inglês
(NATEL, 2016, p. 24).
Outro personagem importante antes da Reforma foi o holandês Erasmo de Roterdã
(1466-1536). Filósofo e humanista, Erasmo era um reformador, mas não pretendia
uma cisão na Igreja: ele almejava ver a Igreja reformada e unida, não separada. Em
muitos aspectos ele concordava com Lutero, mas nunca se posicionou oficialmente
por Lutero ou pelo papa: Erasmo buscava a sabedoria pura, por isso se recusava a
tomar partido. Sua maior contribuição provavelmente foi a publicação de uma edição
crítica do Novo Testamento Grego em 1516, acompanhada por uma tradução em
Latim e anotações. Era o início do retorno à Sagrada Escritura, que alguns anos mais
tarde seria uma das bases da Reforma de Lutero.

7.2 Principais Reformadores (Cronologia)

Entre os reformadores podemos citar Martinho Lutero (1483-1546), Ulrico Zuíglio


(1484-1531), Thomas Müntzer (1489-1525), Filipe Melâncton (1497-1560), João
Calvino (1509-1564), John Knox (1514-1572) e Menno Simons (1496-1561). A seguir,
apresentaremos uma breve contextualização e as ideias fundamentais dos três
principais reformadores deste período: Lutero, Zuínglio e Calvino.

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7.2.1 Lutero (1483-1546)

Título: Martinho Lutero


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Martinho_Lutero

Martinho Lutero deu início ao movimento de Reforma protestante no cristianismo.


Depois de formar-se em direito, tornou-se monge agostiniano e passou a dedicar-se
à teologia, especialmente ao estudo da Bíblia e às Sentenças de Pedro Lombardo.
Tudo começou a mudar em sua vida depois de visitar Roma, em 1510, e constatar
ali a corrupção e a imoralidade da Igreja, especialmente de seus líderes. Nos anos
seguintes, terminou o seu doutorado em teologia e passou a ensinar em Wittenberg.
O estudo da carta de São Paulo aos Romanos quanto ao tema da graça de Deus foi
moldando o seu modo de pensar, nos anos 1514 a 1516. Lutero chegou a afirmar
que quando entendeu que a justiça de Cristo é imputada (transferida) sobre nós, os
portões do paraíso pareciam se abrir para ele. O ponto central da sua compreensão da
carta aos Romanos é que a justiça de Deus é dada gratuitamente, e não depende do
mérito humano. A insistência massacrante da Igreja sobre a questão do mérito estava
caindo por terra. A gota d’água, para Lutero, foi quando um vendedor de indulgências
apareceu na sua cidade em 1517: diante da “comercialização” do Reino de Deus, ele

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decidiu escrever as 95 Teses e fixá-las na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg


(NATEL, 2016, p. 26-27).
Lutero pretendia, inicialmente, abrir um debate teológico e promover uma reforma
da Igreja. Mas a resistência das autoridades eclesiásticas e as circunstâncias políticas
acabaram gerando uma cisão na Igreja. O ponto central de suas 95 teses era a questão
da indulgência concedida pelo papa. Inicialmente a compra de indulgências podia
ser uma forma de gratidão pelo perdão recebido, mas na época de Lutero tinha se
convertido num verdadeiro comércio, especialmente para arrecadar fundos para a
construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Segundo Lutero, o sistema de vendas
de indulgência eliminava a necessidade de uma verdadeira conversão, especialmente
quando era aplicada para as almas no purgatório, como se a salvação pudesse ser
comprada. O debate entre Lutero e os líderes religiosos durou alguns anos, mas diante
da sua recusa em se retratar, ele foi excomungado em 1520. Depois de passar um
ano escondido para se proteger, ele voltou ao convívio social decidido a promover sua
Reforma da Igreja (RENNER, 2016, p. 131-132).
Quanto à doutrina defendida por Lutero, o primeiro aspecto fundamental é a
centralidade da Sagrada Escritura: o fundamento da Igreja é a Bíblia, e a Tradição
precisa assumir o segundo lugar, não o primeiro, como se fazia em sua época. A
Bíblia é autoridade absoluta quando há divergência com a Tradição. Lutero não exclui
o valor da Tradição, mas coloca a Bíblia como norma para a Tradição. A Igreja não
pode ser juiz sobre o significado da Escritura, pois a Palavra de Deus é maior do
que a própria Igreja. Lutero, então, cria o princípio metodológico de que a Bíblia deve
ser interpretada pela própria Bíblia, ou seja, é preciso considerar o “contexto total”, a
Revelação por completo, tendo Cristo no centro. Para Lutero, a Igreja tinha chegado
a um estado lastimável por causa da negligência à Palavra de Deus. A celebração da
missa católica, no tempo de Lutero, enfatizava os aspectos rituais praticados pelos
sacerdotes, tendo o povo como meros espectadores. Ao contrário, Lutero insiste na
centralidade da Palavra de Deus para que toda a congregação seja beneficiada pela
pregação (RENNER, 2016, p. 132-134; 147).
O tema da justificação estava em alta na época de Lutero. Justificação significa
tornar-se justo aos olhos de Deus e corresponde à salvação. A Igreja afirmava que a
justificação dependia da justiça encontrada na pessoa, que era demonstrada pelas
boas obras. Para Lutero, o ser humano é pecador e não pode tornar-se justo por suas
próprias forças. A nossa justificação acontece pelos méritos de Cristo, não pelos

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nossos méritos. Deus declara o pecador justo por causa de Cristo. Da parte sua, o
ser humano deve ser humilde, arrepender-se e pedir a misericórdia de Deus. O canal
para receber a justificação é a fé em Cristo Jesus. A diferença é que, para a Igreja, o
canal da justificação eram os sacramentos. Lutero se opõe a essa visão e afirma que
a justificação é oferta gratuita de Deus, independente do mérito e da ação humana.
Lutero admite que as boas obras são fruto da justificação, mas o foco não está
nas obras da justiça, e sim na fé em Cristo e na misericórdia do Pai. Para ele, o ser
humano é corrupto em sua totalidade, por causa do pecado original. Por outro lado,
quando ocorre a justificação, o homem se torna inteiramente justo e, ao mesmo
tempo, inteiramente pecador. Isso acontece porque a graça é dom totalmente gratuito
de Deus, sem a participação humana, para Lutero (RENNER, 2016, p. 135-136; 146).

ISTO ESTÁ NA REDE

A palavra “justificação” é um termo técnico das discussões teológicas do século XVI,


mas por trás deste conceito está a doutrina bíblica desenvolvida por São Paulo na
Carta aos Romanos. Esta doutrina foi causa de dissenso entre católicos e luteranos
por séculos, mas em 1999, uma Declaração Conjunta assinada pela Igreja Católica
e pela Federação Luterana Mundial consagrou o entendimento consensual das
duas igrejas sobre esta temática. Para saber mais sobre esta Declaração Conjunta
e o seu significado para ambas as igrejas, leia o artigo a seguir: https://www.ihu.
unisinos.br/78-noticias/559244-de-motivo-de-controversia-a-espaco-de-conciliacao-
com-luteranos-cristo-nossa-justica

Ligado ao tema da justificação, temos a questão do arrependimento e o perdão


dos pecados. Para Lutero, quanto mais o ser humano pensa que pode se aproximar
de Deus por meio das obras, menos buscará o verdadeiro arrependimento pelo perdão
dos pecados. O arrependimento não deveria ser uma ação penitencial temporária, mas
uma conversão para a vida inteira. Neste sentido, para Lutero, o importante é que o ser
humano se arrependa sinceramente e confesse o seu pecado a Deus, mas a mediação
do sacerdote não seria necessária. Neste ponto, Lutero se confrontou de forma direta
com a Igreja Católica, que defendia a necessidade de confissão ao sacerdote e da
sujeição ao papa para receber a salvação de Deus. Lutero faz a passagem de uma visão
legalista da confissão para uma visão relacional, pois para ele o mais importante é a
comunhão pessoal do pecador com Deus. Para Lutero, confessar significa reconhecer

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que Deus tem razão e nós somos pecadores, mas só a graça de Deus pode perdoar,
não as obras de penitência humana (RENNER, 2016, p. 139-141).
Quanto aos sacramentos, Lutero e outros reformadores consideravam apenas
o batismo e a eucaristia como instituídos pela Bíblia. Para ele, o fundamental no
sacramento é a presença da Palavra unida ao sinal. Sendo assim, ele rejeitou a eficácia
do sacramento por si só (ex opere operato), pois a eficácia estaria na Palavra de Deus,
não na ação sacramental realizada pelos homens. A fé, mesmo sem os sacramentos,
seria capaz de trazer a salvação. Os sacramentos, então, seriam apenas um sinal
visível da graça de Deus, mas esta graça é recebida pela fé, não pelo sacramento
em si. O sacramento exige a fé: o batismo seria a representação litúrgica da doutrina
da justificação pela fé. Mesmo assim, Lutero não rejeita o batismo de crianças, ao
contrário de outros reformadores, como os anabatistas. Para Lutero, mesmo que a
criança ainda não possa ter fé, o batismo infantil seria um sinal visível da imerecida
justificação pela graça de Deus. Quanto à eucaristia, Lutero rejeitou a doutrina da
transubstanciação (mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo
e sangue de Jesus Cristo na consagração) defendida pelos católicos. Para Lutero,
a substância do corpo e sangue de Cristo se une à substância do pão e do vinho
durante a consagração, permanecendo unidos unicamente durante a celebração da
Ceia Eucarística (RENNER, 2016, p. 143-145).

7.2.2 Zuínglio (1484-1531)

Título: Ulrico Zuínglio


Fonte: http://www.e-cristianismo.com.br/images/Artigos/ulrich_zwingli.jpg

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Ulrico Zuínglio foi o líder da Reforma Protestante na Suíça, especialmente em Zurique.


Ele foi mais radical do que Lutero em sua reforma, pois pretendia limpar a Igreja dos
vestígios católicos, como a missa, a penitência, as imagens, a veneração de Maria, a
oração pelos mortos, etc. É verdade que Zuínglio não desenvolveu uma teologia no
mesmo nível de Lutero ou Calvino, mas é preciso considerar que toda a sua reforma
aconteceu no espaço de apenas 10 anos, visto que ele morreu muito jovem (com apenas
47 anos). Em sua breve vida, Zuínglio foi um intelectual humanista, que encontrou
nas Sagradas Escrituras o fundamento da fé cristã, e buscou nas fontes clássicas da
Antiguidade as bases intelectuais para a sua doutrina (NATEL, 2016, p. 36).
A Palavra de Deus está no centro da Reforma de Zuínglio. A Sagrada Escritura só é
compreensível para quem recebe o dom do Espírito Santo, de modo que pessoas simples
podem entender claramente a Bíblia, enquanto os especialistas podem interpretar mal,
se não tiverem o dom do Espírito. Além disso, para Zuínglio, a Palavra de Deus não
se limita às Escrituras, mas abrange tudo o que Deus revela por meio do seu Santo
Espírito. A reforma da Igreja só aconteceria, segundo Zuínglio, por meio da pregação
do evangelho puro de Cristo. Por isso, ele dedicava uma hora por dia em cinco dias
da semana para a exposição das Escrituras a quem quisesse participar (RENNER,
2016, p. 149-150).
Um ponto polêmico da doutrina de Zuínglio é a ideia de predestinação. Para ele,
tudo é predestinado por Deus e nenhum ser humano pode determinar as coisas por
si mesmo. Levando ao extremo, Zuínglio chegou a considerar que até os crimes
cometidos pelas pessoas foram predestinados por Deus, por razões que vão além
da nossa compreensão, mas tudo de alguma forma contribui para a glória de Deus.
Zuínglio desenvolveu a ideia de predestinação como uma forma de superar a doutrina
da justificação pelas obras, pois não há obra boa ou má que possa ser plenamente
imputada ao ser humano. Sendo assim, só quem é predestinado por Deus à salvação
será realmente justificado. É claro que aqui chegamos em um ponto da doutrina de
Zuínglio que nem os católicos nem os demais reformadores concordavam (RENNER,
2016, p. 150-151).
Tendo o objetivo de reformar a sociedade como um todo, Zuínglio era contrário à
separação entre Igreja e Estado. O Estado também deveria fazer parte da reforma,
pois a lei de Cristo seria para a sociedade como um todo, não apenas para os cristãos.
A lei de Cristo deveria levar todos os seres humanos a andarem pelo caminho da
justiça. Neste sentido, o discipulado e a santificação são essenciais. Neste ponto,

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Zuínglio se afasta de Lutero, para o qual a ideia de lei estava muito próxima à doutrina
da justificação pelas obras.
Quanto aos sacramentos, Zuínglio inicialmente defendia o batismo apenas
para os adultos, que teriam plena consciência e poderiam professar sua fé. No
entanto, com o tempo acabou admitindo o batismo infantil, pois percebeu que os
sacramentos aumentam e ajudam a fé, levando a pessoa à obediência a Cristo. O
batismo infantil seria, então, a iniciação da vida de fé e de discipulado (RENNER,
2016, p. 151).

7.2.3 Calvino (1509-1564)

Título: João Calvino


Fonte: https://www.biography.com/religious-figure/john-calvin

João Calvino nasceu na França, mas estudou e desenvolveu sua atividade na Suíça.
Ele faz parte da segunda geração de reformadores, sendo muito influenciado por Lutero
e Zuínglio. Em 1559 ele fundou, em Genebra, a Academia, um centro educacional para
dar acesso à instrução a todas as pessoas que assim quisessem. Deste modo, pôde
levar suas ideias teológicas e a leitura da Bíblia para o povo em geral. Calvino também
trouxe uma nova ideia sobre o sentido do trabalho: na Idade Média, o trabalho era
visto como castigo divino; para Calvino, o trabalho era parte da vocação divina, que
traz dignidade ao ser humano e glorifica a Deus (NATEL, 2016, p. 33-34). No campo

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religioso, entre outras coisas, ele retirou todas as imagens da sua igreja, pois estava
convencido que esta era uma forma de idolatria.
Em continuidade com os demais reformadores, também Calvino afirmava a
centralidade da Sagrada Escritura, mas acrescentou a defesa da inspiração verbal
das Escrituras: cada palavra da Bíblia teria sido inspirada por Deus exatamente
como foram escritas. Além disso, para Calvino, a mente humana foi tão corrompida
pelo pecado que somente podemos entender a Bíblia quando o Espírito Santo abre
a nossa mente. Juntando estes dois aspectos, a teologia de Calvino considera, por
uma lado, a objetividade da revelação nas Escrituras e, por outro lado, o testemunho
confirmatório e iluminador do Espírito Santo para os cristãos de cada tempo
(RENNER, 2016, p. 152).
Assim como Zuínglio, Calvino também desenvolveu a doutrina da predestinação.
Para ele, tudo o que acontece está debaixo da soberania de Deus. O mal só pode
acontecer quando Deus o permite, por um desígnio misterioso da sua vontade, que
está longe da nossa compreensão. Neste sentido, alguns são predestinados à salvação
eterna, outros à condenação. Aqueles que decidem seguir a Cristo mostram que foram
escolhidos por Deus; e aqueles que recusam seguí-lo é porque não foram escolhidos.
Isso não significa que Deus seja injusto, mas que a sua justiça está muito além da
nossa compreensão (RENNER, 2016, p. 153).

7.3 Perspectiva teológica da Reforma

Diante da decadência da Igreja no final da Idade Média, a Reforma trouxe de volta


para o debate os temas teológicos básicos da fé e da prática cristã, fundamentando-
os nas Sagradas Escrituras. A Reforma colocou novamente no centro os elementos
verdadeiramente centrais do cristianismo: a Bíblia, Cristo, a graça, a fé e a glória de Deus.
Estes cinco valores ficaram conhecidos como as cinco Solas da teologia da Reforma
Protestante. É claro que cada tradição protestante desenvolveu suas particularidades
teológicas, enfatizando este ou aquele aspecto. Mas estes cinco elementos estão
presentes, de forma geral, em toda a Reforma, por isso trataremos deles com mais
detalhe a seguir.

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7.3.1 Sola Scriptura

Enquanto a Igreja católica colocava lado a lado a Bíblia e a Tradição como duas fontes
em questões de fé, os reformadores insistiram no valor da Bíblia acima das demais fontes
e normas para a fé e as práticas cristãs. Também modificaram levemente o cânone
bíblico, pois excluíram os livros “apócrifos” (Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, 1
e 2 Macabeus e Baruque) entre aqueles considerados inspirados, igualando o cânon
do AT à Bíblia Hebraica. O movimento de retorno ao texto bíblico já tinha iniciado com
Erasmo de Roterdã, que havia publicado pela primeira vez o NT em grego, acompanhado
por sua tradução em latim. Em 1522, Lutero levou adiante este projeto, traduzindo
a Bíblia para o alemão. A partir de então, várias novas traduções foram surgindo na
Europa, e o povo teve acesso à Bíblia, que até então era propriedade quase exclusiva
dos clérigos. Além do acesso popular à Bíblia, a liberdade para interpretá-la sem o
intermédio de autoridades eclesiásticas fez toda a diferença (NATEL, 2016, p. 96-97).
Para Lutero, por exemplo, a Bíblia deve ser lida em sua totalidade, sempre à luz de
Cristo. Lutero não exclui a tradição, mas ele insiste que somente a Bíblia tem o caráter
de inerrância: as igrejas, os papas, os concílios, os teólogos podem errar, mas a Bíblia
não pode errar, pois é inspirada por Deus do início ao fim. A obediência religiosa é
devida somente a Deus e à sua Palavra. Visto que a Bíblia contém a Palavra de Deus,
Lutero defendia que tudo aquilo que Deus considera necessário para o seu povo se
encontra na Bíblia: aos seres humanos compete ler e praticar o que ali está escrito.
Neste mesmo sentido, Calvino afirmou que o principal papel do pastor/ministro é pregar
a Palavra de Deus. A própria meditação da Bíblia era considerada, por ele, como um
verdadeiro culto a Deus (NATEL, 2016, p. 100-104).

7.3.2 Solo Christo

Para os reformadores, toda doutrina que afasta Cristo do centro não é doutrina
cristã. Lutero, particularmente, afirmava que o coração das Escrituras é o Evangelho,
ou seja, a boa nova da vitória de Cristo sobre a morte e o pecado. O Evangelho de
Cristo é o centro da Escritura, portanto é autoridade máxima da vida cristã. Em Jesus
Cristo, Deus se entregou totalmente por nós, pela nossa salvação. No entanto, não
basta conhecer esta doutrina da expiação, pois até mesmo os demônios conhecem
as teorias, segundo Lutero. O que realmente conta é nossa relação pessoal com

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Deus. Para garantir a centralidade de Cristo, Lutero desenvolveu a teologia da cruz,


que acabou influenciando todo o pensamento da reforma e a teologia dos séculos
seguintes, em geral. Para a teologia da cruz, o amor de Deus se manifesta na cruz
de Cristo. O centro da revelação se encontra onde menos se espera, na cruz, para
confundir a sabedoria humana. Todavia, só quem está disposto a encontrar-se com
Cristo crucificado poderá encontrar a salvação. Portanto, Cristo deve ser o centro
da pregação cristã: o Cristo histórico, o Cristo crucificado, exatamente como Ele se
manifestou à nós em sua encarnação (NATEL, 2016, p. 108-111).

7.3.3 Sola Gratia

A ideia do sola gratia nasceu antes da Reforma Protestante, com Jacques Lefèvre
(1455-1536), o qual afirmava que só pela graça o pecador pode ser salvo, tendo como
base as cartas de Paulo. Lutero afirmava que Deus só acolhe quem está abandonado,
só cura quem é enfermo, só devolve a vista para quem é cego… e só dá a graça para
quem é pecador. Quem se considera santo não abre espaço para a graça e não pode
ser salvo. Só quem se reconhece pecador pode receber a graça, e para a teologia da
Reforma todos somos miseráveis pecadores diante de Deus. Não há mérito humano
que possa ser colocado diante de Deus para exigir a salvação. Só pela graça somos
salvos. A salvação é um favor imerecido que o ser humano recebe de Deus (NATEL,
2016, p. 112-114).

7.3.4 Sola Fide

A ideia de que a justificação vem pela fé é essencialmente bíblica, desenvolvida


pelo apóstolo Paulo. Na história da Igreja, o primeiro teólogo a levar adiante com
veemência esta doutrina foi Agostinho de Hipona, conhecido como doutor da graça
pelo modo como defendia a justificação pela fé. Todavia, no século XVI, a venda de
indulgências havia tomado o lugar da fé no caminho para a salvação. Lutero se opôs
vigorosamente à venda de indulgências e recuperou a doutrina cristão genuína da
justificação pela graça mediante a fé. O centro desta doutrina está nas palavras de
Paulo: “ele [o evangelho] é a força de Deus para a salvação de todo aquele que crê,
[...] porque nele a justiça de Deus se revela da fé para a fé, conforme está escrito: o
justo viverá da fé” (Rm 1,16-17). Diante deste e de outras passagens da Carta aos

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Romanos, Lutero afirmava que nós por nós mesmo somos apenas pecadores, mas
em nosso relacionamento de fé em Cristo somos justos (BARBOSA, 2022, p. 30-42).

7.3.5 Soli Deo Gloria

A ideia de que tudo deve ser feito somente pela glória de Deus era uma oposição
à glória terrena, almejada pela Igreja católica quando o movimento da Reforma teve
início. A busca da glória terrena era evidenciada na relação entre Igreja e Estado,
quando as autoridades eclesiásticas faziam de tudo para manter seu poder temporal
e seu domínio econômico. Ao perder de vista a centralidade das Escrituras, de Cristo
e da fé, restava somente o interesse humano. Calvino foi o reformador que mais
desenvolveu a ideia da glória de Deus. Para ele, a miséria humana revela a majestade
divina. Deus é soberano no culto, na vida e em tudo o que fazemos: todo o crédito
deve ser direcionado a Ele, não a nós. Nós devemos nos preocupar apenas com o
Reino de Deus e a sua vontade, não com os impérios terrenos e a glória dos homens.
Para a Reforma protestante, em geral, o princípio de Soli Deo Gloria também significa
afirmar a nulidade de todos os ídolos; negar o culto às imagens e aos santos; ter
apenas Jesus como mediador; eliminar a veneração das relíquias; enfim, superar tudo
aquilo que na Igreja poderia tirar a verdadeira centralidade de Deus e a sua glorificação
(BARBOSA, 2022, p. 66-80).
Para concluir, vimos neste capítulo que a Reforma foi preparada por um longo
período, que inclui a decadência moral de parte do clero da Igreja católica, a crise do
papado, a ascensão da burguesia, o humanismo e o Renascimento cultural, o retorno às
fontes (especialmente à Bíblia como fonte da teologia), entre outros fatores. Também
apresentamos brevemente a história e a teologia dos principais reformadores: Lutero
na Alemanha, com destaque à justificação pela graça; Zuínglio e Calvino na Suíça, com
destaque para a centralidade da Bíblia e a teoria da predestinação. E na última parte,
destacamos os principais elementos da teologia da Reforma: a Sagrada Escritura,
Cristo, a graça, a fé e a glória de Deus no centro da vida das Igrejas. Os efeitos da
teologia da Reforma serão observados ainda nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO 8
A TEOLOGIA NA ERA MODERNA

Caros estudantes, no capítulo anterior falamos sobre uma parte da teologia na


era moderna, ou seja, a teologia da Reforma. Neste capítulo, trataremos da teologia
moderna em geral, incluindo teólogos protestantes e católicos. Mas por que vimos
a teologia da Reforma, em particular, antes de falar da teologia moderna, em geral?
Porque toda a teologia na era moderna se desenvolveu ou como uma resposta católica
à Reforma protestante, ou como uma continuação da teologia da Reforma. Na primeira
parte deste capítulo, apresentaremos as reações católicas à Reforma; na segunda
parte, as novas perspectivas teológicas da modernidade; e na terceira parte, os maiores
teólogos deste período, incluindo teólogos católicos e protestantes.

8.1 Reações católicas à Reforma (séculos XVI-XVIII)

A reação formal da Igreja Católica diante da Reforma Protestante veio com o


movimento conhecido como “Contra-Reforma”, que incluía a nova catequese promovida
pelos jesuítas, a reativação do tribunal da Inquisição, definições doutrinárias claras no
Concílio de Trento (1545-1563), a formação teológica dos sacerdotes, etc. Entre os
teólogos que se destacaram nos século XVI e XVII podemos citar Inácio de Loyola, João
da Cruz e Teresa d’Ávila na teologia espiritual; os jesuítas Francisco Suárez, Gabriel
Vásquez e Luiz Molina na Escola de Salamanca; e Roberto Belarmino como elaborador
do grande Catecismo Romano. Em geral, trata-se de uma “teologia combativa” contra
os reformadores (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 135-136).

ISTO ESTÁ NA REDE

“A contrarreforma é entendida como a reação da Igreja Católica ao avanço do


protestantismo pela Europa. Ela se deu por meio de uma série de ações realizadas
pela Santa Sé, que incluíram a catequização de pessoas por meio dos jesuítas, a
reativação do tribunal da Inquisição, a proibição de certos livros etc. Alguns dos
princípios estabelecidos para a reforma da Igreja Católica foram debatidos durante
o Concílio de Trento”. Veja mais sobre este tema em: https://brasilescola.uol.com.br/
historiag/contra-reforma.htm

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Nos séculos XVIII e XIX, os avanços continuaram de forma ainda mais radical: o
capitalismo se consolida; a revolução francesa traz novos valores; a revolução industrial
modifica a vida na cidade, e a revolução agrícola transforma o modo de produção no
campo; o Iluminismo domina o ambiente filosófico, com grandes filósofos como Kant
e Hegel; o materialismo histórico de Marx encoraja novas revoluções sociais; entre
outros fatores. A teologia, em geral, não conseguiu acompanhar o acelerado processo
de mudança de mentalidade e colocou-se em uma posição de defesa, reafirmando
o velho sistema aristotélico-tomista como sendo a única “filosofia perene”. Para não
se contaminar com a modernidade, a teologia católica buscou restaurar a teologia
medieval com a neoescolástica, que atingiu o ponto mais alto no Concílio Vaticano I,
ao proclamar o dogma da infalibilidade papal (ver tópico 3.3.2). Permanecendo rígida
em sua postura combativa e na nostalgia de uma cristandade ultrapassada, a teologia
católica deste período negou-se ao diálogo com o mundo moderno (LIBANIO-MURAD,
2005, p. 136).
A teologia católica dos séculos XVI-XVIII caracterizou-se, antes de tudo, pela sua
submissão ao Magistério. Dentro da Igreja, o Magistério nunca foi tão potente como
nesta época, ao mesmo tempo que nunca foi tão questionado fora da Igreja. A teologia
tornou-se como uma arma do Magistério para combater as heresias e eliminar o
dissenso no interior da Igreja. Sua tarefa principal era expor, definir, defender, provar
e confirmar a fé ortodoxa, além de examinar e condenar os erros. Sua função de
pesquisa e aprofundamento genuíno da fé cedeu espaço para a exposição autoritativa
da doutrina. Os teólogos passaram a se dedicar à elaboração do catecismo católico
moderno, buscando garantir a homogeneidade, a ortodoxia e a clareza. O sentido
original da teologia, ou seja, a inteligência da fé acabou sendo substituída pelo rigor
da ortodoxia e a definição doutrinal. Os principais destinatários da teologia eram os
clérigos. O Concílio de Trento regulamentou a formação do clero, tornando obrigatório
o estudo da teologia nos seminários. A iniciativa sem dúvidas era positiva, mas este
foi o início de um longo ciclo no qual a teologia era elaborada exclusivamente por
sacerdotes para ser ensinada quase exclusivamente para futuros sacerdotes (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 136-137).
Na era moderna, a teologia desenvolveu-se especialmente em três grandes áreas:
fundamental, dogmática e moral. A teologia fundamental era, essencialmente, uma
nova apologética, com objetivo de mostrar a credibilidade do testemunho de Jesus
e da Igreja, além de fundamentar racionalmente a necessidade do cristanismo

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católico. A moral se estruturava a partir da lei (divina, natural e positiva) e dos dez
mandamentos. E a teologia dogmática adotou o método regressivo: o ponto de partida
é uma tese proveniente dos ensinamentos do Magistério; procura-se provar que este
ensinamento encontra-se na Escritura, além de ser expresso na teologia patrística e
medieval; completa-se com os argumentos racionais da “filosofia perene” de Tomás
de Aquino (momento especulativo). Deste modo, a doutrina católica era revestida de
razoabilidade e coerência com as verdades de ordem natural e sobrenatural (LIBANIO-
MURAD, 2005, p. 137).
Ibáñez-Mendoza (1982, p. 97-102) divide a teologia católica dos séculos XVI-XVII em
três novas vertentes teológicas: teologia positiva, teologia escolástica e teologia moral:
a) Teologia positiva: estudo exegético da Sagrada Escritura e da interpretação feita
pelos Padres da Igreja, para responder aos protestantes. Surgem novas edições
críticas da Bíblia e vários comentários bíblicos, como o comentário da inteira
Bíblia do jesuíta Cornélio a Lápide, o comentário aos evangelhos de João de
Maldonado e o comentário ao Cântico dos Cânticos de Frei Luís de Leão. Entre
os estudiosos da Patrística destacam-se os jesuítas Pedro Canísio, Roberto
Belarmino e Dionísio Petavius.

Título: Cornelius Cornelii a Lapide


Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Cornelius_a_Lapide

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b) Teologia Escolástica: além do método positivo, muitos teólogos voltaram a usar


o método especulativo da Escolástica. Destaca-se o dominicano Tomás de Vio
Cayetano, grande comentador de Tomás de Aquino; a Escola de Salamanca,
com vários teólogos dedicados ao estudo do direito internacional e do método
teológico; e os jesuítas Molina, Gabriel Vázquez e Francisco Suárez, que foram
além do tomismo ao criar uma teologia mais psicológica e moral. Em geral, a
escola jesuíta deu maior ênfase à teologia da graça e à questão da liberdade
humana.

ANOTE ISSO

Método positivo e método especulativo são os dois principais métodos de estudo


filosóficos e são opostos. O método positivo ou positivismo é o estudo que parte
da observação de dados empíricos e é ligado à ciência. Já o método especulativo
ou filosofia especulativa é um método lógico-dedutivo, ligado à metafísica, que se
desenvolve mediante o conceito de causa e efeito.

c) Teologia moral e espiritual: a elaboração sistemática da teologia moral teve


início com um grupo de teólogos carmelitas descalços de Salamanca, tendo
como base teórica principal a Suma Teológica de Tomás de Aquino. Por sua vez,
a teologia espiritual foi promovida também por religiosos e religiosas carmelitas,
em especial São João da Cruz e Santa Tereza d’Ávila, além Frei Luís Granada e
São Francisco de Sales. A teologia espiritual era caracterizada por sua índole
cristocêntrica e eclesial-comunitária.

Apesar de algumas tentativas de renovação, a teologia católica dos séculos XVI-


XVIII se caracteriza como antimoderna e manualística, em confronto contra a Reforma,
ensaiando uma retomada da escolástica medieval. Por um lado, a tentativa de criar uma
teologia com rigor científico (segundo a concepção aristotélico-tomista de ciência) levou
a formulação de doutrinas claras e objetivas, todavia, por outro lado, acabou criando
um abismo entre discurso teológico e espiritualidade cristã, entre dimensão cognitiva
da fé e aspecto existencial-celebrativo. A teologia ministrada preferencialmente nos
seminários acabou se isolando das questões cotidianas do mundo secular. E as
insistentes condenações às novas formas de pensamento acabaram impedindo o

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diálogo entre Igreja e mundo moderno, um diálogo que poderia ser favorável para ambos.
Além disso, muitos sacerdotes e missionários se dedicavam com exemplar ardor à
pastoral e à evangelização, mas sentiam que a teologia aprendida nos seminários
estava distante da realidade vivida no dia a dia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 138).

8.2 Novas perspectivas teológicas (séculos XIX-XX)

Terminado o período de maior confronto e polêmicas entre católicos e protestantes,


a teologia conheceu um movimento de renovação e mudança, nos séculos XIX e XX,
tanto em âmbito católico quanto em âmbito evangélico. O ponto de chegada desta
teologia em mudança é o Concílio Vaticano II, que também é o ponto de partida para
uma nova era de diálogo – na organização deste e-book, o Vaticano II marca o início
da teologia contemporânea.
Duas escolas de teologia marcam o século XIX: a Escola de Tübigen e a Escola
Romana. A Escola de Tübigen, na Alemanha, foi fundada em 1817 como Faculdade
de Teologia Católica. Em diálogo com o romantismo e o idealismo alemão, a Escola
buscou unir o método especulativo (escolástico) com o método histórico-positivo. Passa
a interpretar os dados da Revelação a partir do conceito de história e historicidade
do romantismo alemão. A Igreja também é vista como um lugar de continuidade
da auto-manifestação divina. Tübigen inicia um verdadeiro movimento de retorno às
fontes: à Bíblia, à tradição patrística e à escolástica clássica (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 139-140).
Por sua vez, a Escola Romana surgiu como uma tentativa de renovar os decadentes
estudos teológicos em Roma no início do século XIX. Vários professores do Colégio
Romano foram protagonistas desta renovação, como Passaglia, Schrader e Franzelin.
Eles dedicaram-se ao estudo dos Padres da Igreja nas línguas originais (latim e grego)
e trouxeram as descobertas da arqueologia aos seus estudos bíblicos. Além disso,
iniciaram um diálogo com a Escola histórica alemã. Juntas, as Escolas Romana e
de Türbingen representam a tendência da teologia do século XIX: estudos positivos,
críticos e históricos; atenção às descobertas arqueológicas; diálogo com a modernidade;
leitura crítica da Bíblia; história dos dogmas, etc. Em poucas palavras, a abordagem
histórica começa a fazer a diferença na teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 140).
Deste modo, o século XX inicia-se com um novo ânimo na teologia católica, com
estudo de exegese, de patrologia, história das religiões, história dos dogmas e história

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da Igreja. No âmbito eclesial, o papa Leão XIII dá início ao movimento neotomista a


partir da encíclica Aeterni Patris (1879) com a intenção de abrir um diálogo com os
problemas modernos, mas ao mesmo tempo pôr limites às novas tendências. Sua
encíclica Rerum novarum (1891), sobre os problemas de desigualdade social e justiça
social, marcou o início de uma postura da Igreja em relação à sociedade, colocando-
se claramente ao lado das classes trabalhadoras e dos mais pobres. No início do
século XX, surgiu também a Apologética da imanência, com Maurice Blondel (1861-
1949). Para a apologética da imanência, o ser humano tem uma tendência natural à
transcendência: este é o espaço da Revelação divina, que acontece na história e na
experiência humana. A filosofia de Blondel foi inovadora ao propor uma conciliação
entre imanência e transcendência (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 141).
Nem tudo foi tentativa de conciliação no início do século XX. O movimento “modernista”,
com teólogos como Schleiermacher, Sabatier e Loisy, propôs uma reformulação dos
conceitos de revelação e de dogma, introduzindo aspectos evolucionistas e imanentistas:
a revelação seria um fenômeno localizado na consciência, carente de objetividade; e
os dogmas seriam símbolos que podem mudar substancialmente ao longo do tempo.
Pio X reagiu energicamente contra o modernismo com a encíclica Pascendi Dominici
Gregis em 1907, condenando as afirmações dos modernistas e incentivando novos
estudos bíblicos para afirmar o caráter sobrenatural da revelação e a origem divina
da Igreja (IBÁÑEZ-MENDOZA, 1982, p. 104).
No período do entreguerras (1918-1939), os estudos bíblicos e históricos foram
tímidos. Destacam-se, porém, os estudos bíblicos de Marie-Joseph Lagrange; as obras
cristológicas de Grandmaison, Lebreton e Karl Adam; e o humanismo cristão de Jacques
Maritain. Importante também a nova eclesiologia, que enfatiza as dimensões espiritual
e comunitária da Igreja, em contraposição ao juridicismo e ao individualismo. Surge o
movimento querigmático, com teólogos de Innsbruck (Áustria) como Josef Jungmann,
Hugo Rahner e Johannes Lotz. Ao lado da teologia erudita, que desenvolve a reflexão
sistemática, este grupo propôs a criação de uma teologia querigmática, voltada para a
pregação, com caráter mais contextual e ênfase no plano salvífico de Deus na história.
Era uma primeira abertura da teologia para a pastoral e o início de uma renovação
que ainda precisava crescer (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 144-145).
Nas décadas de 1940 e 1950 surgiram vários movimentos teológicos que prepararam
o Vaticano II: o movimento de volta às fontes, com publicações de edições críticas dos
Padres da Igreja; o movimento litúrgico que valorizou a liturgia como fonte de reflexão

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teológica, trazendo uma nova concepção de Igreja comunidade e Igreja sacramento de


salvação; o movimento bíblico, encorajado pela encíclica Divino afflante Spiritu (1943)
de Pio XII, reconhecendo oficialmente os gêneros literários da Bíblia.
Todavia, neste período surge também a chamada Nova Teologia, com teólogos
como Jean Daniélou, Henri de Lubac e Yves Congar. Eles promoveram a volta às
fontes e a aplicação dos métodos histórico-críticos, além do estudo da evolução do
dogma. Retomaram, de forma equilibrada, as problemáticas que o modernismo havia
enfrentado de forma extremada (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 145). No entanto, a resposta
oficial da Igreja foi dura novamente. Com a encíclica Humani Generis (1950), Pio XII
condena vários aspectos da Nova Teologia: ligação com as novas ciências (como o
evolucionismo); caráter historicista; tentativa de conciliação com os protestantes; a
moral de situação; etc. Desta vez, porém, os aspectos positivos da Nova Teologia tiveram
continuidade, especialmente seu retorno às fontes bíblicas e patrísticas (IBÁÑEZ-
MENDOZA, 1982, p. 105-106).
Olhando de forma panorâmica sobre o período de renovação da teologia, nos séculos
XIX e XX, observamos que em alguns momentos a Igreja reagiu de forma enérgica
contra as inovações, mas em outras ocasiões promoveu o revigoramento da pesquisa
teológica e o retorno às fontes. Em geral, o clima que marcou as últimas décadas
antes do Concílio Vaticano II era positivo, otimista e cheio de vigor na direção de uma
decisiva renovação teológica da Igreja.

8.3 Grandes teólogos dos séculos XIX-XX

Não é possível apresentar nestas páginas todos os grandes teólogos dos séculos
XIX e XX, por isso trazemos apenas quatro representantes que marcaram a teologia
moderna e prepararam a teologia contemporânea: Barth, Brunner, Bultmann e Rahner.
Os três primeiros são teólogos ligados à Reforma, enquanto Rahner é um dos maiores
representantes da teologia católica do último século.

8.3.1 Karl Barth (1886-1968)

Membro da Igreja Reformada da Suíça, Barth foi pastor e professor de teologia


em Genebra. Começou sua carreira como teólogo liberal, mas logo abandonou a
corrente liberal para fazer sua própria estrada, buscando na Bíblia a fonte para todas

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as suas reflexões. Assim, descobriu que a Bíblia não contém pensamentos corretos
do ser humano sobre Deus, mas pensamentos corretos de Deus sobre o ser humano.
Contrariando a teologia liberal da época, Barth defendeu a tese da inspiração verbal
das Escrituras (Deus inspirando cada palavra). Para ele, a Bíblia está acima da razão, e
a teologia não poderia se basear em nada além da Bíblia. Todavia, para Barth, a Bíblia
não é a Palavra de Deus em si mesma, mas é um instrumento da Palavra de Deus. Ou
melhor, a Palavra de Deus é um acontecimento, e o centro deste acontecimento é a
pessoa de Jesus Cristo. Neste sentido, a Bíblia deveria ser a única fonte da teologia e
da pregação da Igreja, sempre colocando Cristo no centro (RENNER, 2016, p. 161-163).

Título: Karl Barth


Fonte: https://www.biografiasyvidas.com/biografia/b/barth_karl.htm

Em seu entendimento sobre Deus, Barth afirmava que Deus é totalmente


transcendente: a Bíblia pode nos dar apenas uma representação humana de quem é
Deus. Sendo absoluto, Deus não precisa do mundo nem do ser humano, mas em seu
infinito amor, criou o mundo e se revelou aos homens. A religião, para Barth, não é
necessária, pois é apenas uma tentativa humana de conhecer a Deus, e muitas vezes
acaba substituindo Deus por um deus projetado pelos nossos desejos. Por isso, Barth
diferencia fé e religião: a revelação é acolhida pela fé, não pela religião, nem mesmo
pela razão. Quanto à doutrina da salvação, Barth se afastou tanto dos teólogos liberais
(que eram universalistas e afirmavam que no final todos seriam salvos), quanto dos
fundamentalistas (que insistiam nos temas do inferno e purgatório). Para Barth, Jesus
morreu por todos, então todos poderiam ser salvos, mas quem decide sobre cada um

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é Deus: nenhuma definição teológica pode dar uma palavra final sobre isso (RENNER,
2016, p. 162-164).

8.3.2 Emil Brunner (1889-1966)

Também Brunner pertencia à Igreja Reformada da Suíça e atuou por oito anos
como pastor. Estudou teologia na Alemanha e lecionou na Inglaterra, na Suíça, no
Japão e nos Estados Unidos. Escreveu especialmente sobre teologia dogmática e
sistemática. Para ele, a essência do cristianismo está no encontro de Deus com a
humanidade. Para conhecer a Deus não basta a razão, é preciso a revelação. O Deus
que conhecemos é o Deus que se revela, não o deus produzido pelos filósofos. A
verdade não é encontrada pelo pensamento e pela filosofia, mas pelo encontro com
Deus, que torna o ser humano responsável. Para Brunner, a revelação tem um caráter
pessoal: não é somente uma informação sobre Deus, mas a presença pessoal de Deus
que estabelece uma relação com o ser humano. A Bíblia é somente uma revelação
indireta de Deus, pois a única revelação direta é a pessoa de Jesus Cristo (RENNER,
2016, p. 165-167).
Brunner desenvolveu uma teologia dialética ou teologia da crise: quando o ser
humano se encontra com Deus, ele tem duas opções: dizer “não” a Deus e caminhar para
a morte espiritual; ou dizer “sim” a Deus e deixar-se transformar em uma criatura nova.
É precisamente no momento de crise que o ser humano precisa tomar esta decisão.
Seguindo Martin Buber, Brunner distingue o conhecimento de objetos (objetivo) e o
conhecimento de pessoas (subjetivo). Para ele, a Bíblia está no campo do conhecimento
subjetivo, mesmo que as igrejas tenham tratado do conhecimento bíblico como objetivo.
Outros temas presentes na teologia de Brunner são: a ressurreição, a centralidade de
Cristo na salvação, a necessidade da fé pessoal em Jesus, a igreja como comunhão,
não como instituição, e a Bíblia como regra de ação e de fé. Todavia, ele rejeitou
algumas doutrinas cristãs como a ascensão, o inferno e o nascimento virginal de
Jesus (RENNER, 2016, p. 167-168).

8.3.3 Rudolf Bultmann (1884-1976)

Teólogo alemão e luterano, Bultmann é considerado por muitos como o maior


estudioso do NT do século XX. Certamente é um dos mais influentes. Dedicou-se

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sobretudo aos estudos bíblicos, desenvolvendo consideravelmente a exegese histórico-


crítica. Para Bultmann, Deus é totalmente diferente do ser humano, totalmente
transcendente. O ser humano só pode conhecer a Deus por meio da fé, respondendo
à revelação de Deus pela Palavra. A revelação não é comunicação de verdades sobre
Deus, mas encontro pessoal com Deus (RENNER, 2016, p. 168-169).
O ponto central e mais polêmico da cristologia de Bultmann é que o NT não está
interessado no Jesus histórico, mas no Cristo da fé. Em outras palavras, o NT não traz
notícias sobre a história de Jesus, mas apresenta o Jesus pregado pela Igreja primitiva.
A questão central é a fé, não o conhecimento histórico sobre Jesus. A presença de
Deus no mundo acontece de forma subjetiva, na experiência pessoal de fé. Até mesmo
a ressurreição narrada no NT teria sido, para Bultmann, uma experiência pessoal dos
discípulos, não uma notícia objetiva para todos. A missão principal de Jesus, para
Bultmann, é o chamado à decisão: Jesus queria chamar os seus discípulos a aceitarem
e obedecerem à sua mensagem. Por isso, a teologia não deveria se preocupar em
discutir os fatos históricos, mas levar a uma tomada de decisão por parte de quem
ouve o evangelho, transferindo um momento escatológico do passado (a revelação de
Cristo) para o presente da Igreja através da pregação. Esta distinção entre o Cristo da
fé e o Jesus histórico foi levada ao extremo por Bultmann, tanto que a ressurreição
é vista por ele não como um fato ou acontecimento real, mas como um dado da fé,
que deve ter um significado para o crente (RENNER, 2016, p. 170-171).
Quanto à Bíblia, os teólogos liberais pretendiam liberar a Bíblia dos mitos que ali
se encontram, para poder encontrar as verdades eternas além dos mitos. Bultmann
se afasta desta perspectiva e afirma que os mitos fazem parte da mensagem cristã
e da revelação: não é preciso eliminar os mitos, mas interpretá-los corretamente. Esta
interpretação é necessária porque há uma grande distância temporal entre os autores
bíblicos e nós. A Bíblia usa a linguagem mítica, pois era uma linguagem comum e
compreensível no período em que foi escrita, mas estranha para o leitor de hoje.
Lendo os mitos na Bíblia, precisamos identificar qual é o seu significado para nós hoje,
segundo Bultmann. Por exemplo, quando o evangelho narra que Jesus ressuscitou
Lázaro, não se trataria de um fato histórico, mas de uma mensagem teológica, ou seja:
Jesus tem o poder de nos trazer uma vida nova, com um novo sentido. Sendo assim,
o cerne das narrações milagrosas não seria o milagre em si, mas o ensinamento que
transmitem (RENNER, 2016, p. 171-172).

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8.3.4 Karl Rahner (1904-1984)

Rahner é considerado um dos maiores teólogos católicos do século XX. Nascido na


Alemanha, Rahner se tornou sacerdote jesuíta e ensinou em Innsbruck, na Áustria. Ele foi
um dos principais assessores teológicos do Concílio Vaticano II. Em 1965, fundou a revista
internacional de teologia Concilium, que até hoje é referência em pesquisas teológicas.
Em sua teologia, Rahner considera que Deus é mistério em si mesmo, ou seja, Deus
é desconhecido e, ao mesmo tempo, conhecido pelo ser humano. Sendo absolutamente
transcendente, só a revelação pode tornar Deus conhecido. Deus é infinito e não pode
ser conhecido plenamente pelo ser humano, mas Ele se revelou de forma universal
e continua a estabelecer relações pessoais com cada ser humano. Para Rahner, há
dois tipos de revelação: a revelação transcendental, que acontece nas experiências
espirituais pessoais, que comunica Deus, mas não pode ser formulada conceitualmente;
e a revelação categórica ou real, que traz um conhecimento profundo sobre Deus e
sua natureza, pois é Deus que se manifesta e se dá a conhecer aos seres humanos
(RENNER, 2016, p. 177-179). A Bíblia faz parte da revelação categórica.
Rahner costuma ser lembrado especialmente pelo seu conceito original de “cristão
anônimo”. Aqueles que estão fora da Igreja e que ignoram Cristo podem ser salvos:
as pessoas de bem, que seguem a própria consciência (pois Deus fala na consciência
humana), levando uma vida moralmente sadia, essas pessoas são os “cristãos
anônimos” e podem receber a salvação de Cristo. Deus comunicou a sua graça a
todos os seres humanos (1Tm 2,4), não só aos cristãos declarados, mas também aos
cristãos anônimos. Deus se revela interiormente a todos os seres humanos (revelação
transcendental), comunicando a sua graça: quem segue esta graça, levando uma vida
moral de acordo com a lei da consciência, mesmo sem ouvir falar de Jesus, encontrará
a salvação. Somente quem rejeita a graça de Deus se exclui da salvação.
Enfim, na primeira parte deste capítulo, vimos que a teologia católica dos séculos
XVI-XVIII se desenvolveu como uma reação contra a Reforma Protestante e como
uma tentativa de reforma interna da Igreja Católica. Na segunda parte, notamos que
os séculos XIX e XX foram um período de renovação da teologia católica, alternando
momentos de inovação com momentos de maior cautela e contenção. E na terceira
parte, apresentamos alguns dos maiores teólogos da modernidade: Barth e Brunner
da Igreja Reformada da Suíça; Bultmann representando a teologia luterana; e Rahner
representando a teologia católica. Todos eles trouxeram inovações para a teologia,
sem deixar de lado a grande tradição cristã.
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CAPÍTULO 9
A TEOLOGIA NA
CONTEMPORANEIDADE

Prezadas e prezados estudantes, a contemporaneidade é o período em que estamos


vivendo. Sendo assim, a teologia contemporânea ainda está em processo, ainda está
percorrendo a sua história. Neste sentido, este capítulo não poderá realizar plenamente
o que se propõe: não é possível apresentar, nem mesmo de forma resumida, toda
a amplitude da teologia na contemporaneidade. Sendo assim, precisamos fazer
algumas escolhas. Para termos uma noção da diversidade e da pluralidade da teologia
contemporânea, vamos começar falando sobre as principais grandes correntes
teológicas que se desenvolveram no último século. Depois, destacaremos algumas
características ou tendências que mais ou menos se aplicam a toda esta pluralidade
de teologias.

9.1 Diversidade Teológica na Contemporaneidade

Não é possível apresentar a teologia do último século, até os dias de hoje, em uma
linha reta. Na verdade, diversas teologias se desenvolveram paralelamente, às vezes
dialogando entre si, outras vezes seguindo cada uma a sua própria estrada. Nesta
seção, vamos estudar brevemente pelo menos quatro correntes teológicas, deixando
claro desde já que cada uma destas grandes correntes poderia ser subdividida em
muitas linhas teológicas específicas. A primeira grande corrente é a teologia católica,
que passou por um processo de renovação com o Concílio Vaticano II; depois temos
a teologia evangélica, derivada da teologia protestante, mas com novos enfoques;
a teologia escatológica, que é uma nova tendência e reúne teólogos de todas as
confissões cristãs; e a teologia pentecostal, que parte da ideia de um reavivamento
no Espírito Santo e está presente nas novas igrejas cristãs, mas também nas igrejas
históricas.

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9.1.1 Teologia Católica

O marco histórico da teologia católica contemporânea é certamente o Concílio


Vaticano II (1962-1965). Ao longo de toda a modernidade, a teologia católica deu
alguns passos à frente, no sentido de renovar-se, mas as constantes intervenções
dos papas contra tudo aquilo que pudesse parecer “moderno” acabaram inibindo o
progresso da reflexão teológica. Neste sentido, o Vaticano II representa uma nova
postura da Igreja diante da modernidade e diante do espírito de renovação iniciado
nas décadas anteriores.
O Concílio Vaticano II foi convocado pelo papa João XXIII (que governou a Igreja
de 1958 a junho de 1963), mas foi conduzido em grande parte por Paulo VI (junho de
1963 a 1978). Não foi um concílio como os precedentes, pois não promulgou nenhum
novo dogma, nem alterou radicalmente a doutrina da Igreja, mas deu o grande passo
de abrir a Igreja para o diálogo com a modernidade, com as novas ciências, com
o protestantismo e com as religiões mundiais. Além disso, o Vaticano II deu maior
espaço aos leigos na vida da Igreja, superando o antigo clericalismo centralizador. E
aboliu a lista de livros proibidos, dando maior liberdade aos teólogos católicos para
desenvolverem seus estudos sem uma censura prévia da Igreja (OLSON, 2003, p.
958-959).
Talvez a mudança mais relevante para a teologia católica, a partir do Concílio, foi a
afirmação clara da supremacia da Sagrada Escritura sobre as demais fontes da teologia.
É claro que o Vaticano II não aboliu a ideia das duas fontes, Escritura e Tradição, mas
é significativo o fato de ter declarado que a Escritura tem a proeminência. Com isso,
os documentos do Concílio incentivaram uma nova fase de estudo e ensino da Bíblia
no ambiente teológico católico. Esta iniciativa criou um importante campo de diálogo
com as Igrejas da Reforma, tanto que alguns teólogos protestantes foram inclusive
convidados como conselheiros durante o Concílio, como Karl Barth, por exemplo.
Nas décadas sucessivas, o diálogo entre católicos e protestantes se intensificou,
especialmente no campo dos estudos bíblicos (OLSON, 2003, p. 959).
Entre os teólogos católicos que trabalharam como conselheiros no Concílio, o
mais influente foi certamente Karl Rahner (ver tópico 8.3.4). O aspecto central da
sua teologia, que provavelmente influenciou as conclusões do Concílio, é a ideia de
que a Revelação é possível e racionalmente justificável. Rahner, de fato, desenvolveu
uma teologia filosófico-apologética, buscando demonstrar cientificamente que os

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seres humanos são, por natureza, receptivos à auto-revelação de Deus. A teologia de


Rahner também é marcada pela abertura ao diálogo com todas as religiões, e esta é
uma característica evidente dos documentos do Vaticano II. Nas décadas sucessivas
ao Concílio, os teólogos católicos promoveram o diálogo com os protestantes e outras
religiões; dedicaram-se de maneira particular à teologia bíblica, à antropologia teológica,
à teologia fundamental e outras novas correntes teológicas (LSON, 2003, p. 960-963).

9.1.2 Teologia Evangélica

No século XX, ao lado da teologia protestante tradicional, surgiu a teologia denominada


“evangélica”. Algumas igrejas que se consideram herdeiras da Reforma passaram a
usar o adjetivo “evangélico” na sua própria denominação, como a Igreja Evangélica
Luterana da América, formada em 1988 pela fusão de duas denominações luteranas
anteriores; e o Movimento Evangélico de Renovação na Inglaterra, que corresponde
ao movimento metodista dos irmãos Wesley. Enquanto a teologia protestante clássica
foi se desenvolvendo como teologia liberal, os movimentos evangélicos se opuseram
a esta nova ortodoxia e passaram a desenvolver uma teologia mais fundamentalista,
denominando-a “evangélica”. No entanto, os liberais moderados também adotaram o
novo termo, já em 1890, na Inglaterra, a partir da autodenominação de “liberalismo
evangélico”. No entanto, a maioria dos teólogos protestantes do século XX distinguem
a teologia liberal da teologia evangélica (OLSON, 2003, p. 951-953).
Entre os anos 1940 e 1950, os protestantes conservadores começaram a se separar
dos evangélicos fundamentalistas. Ambos os grupos concordavam com a teoria da
inspiração sobrenatural da Bíblia e com as doutrinas da Igreja primitiva, expressas
no Credo de Nicéia (325 d.C.). No entanto, para os evangélicos fundamentalistas, a
inspiração implica uma exatidão técnica absoluta de cada pormenor que se encontra na
Bíblia. Quanto à interpretação bíblica, eles desenvolveram uma hermenêutica literalista,
interpretando de forma literal as mensagens bíblicas sobre a origem do mundo e o
fim dos tempos. Por outro lado, a teologia protestante conservadora rejeita estas
interpretações fundamentalistas da Bíblia e se mantém na corrente exegética moderna,
que interpreta muitos episódios da Sagrada Escritura como simbólicos, não literais.
Outro ponto de discordância era o diálogo com outras confissões cristãs, inclusive
com os católicos, levado adiante pelos protestantes tradicionais, mas rejeitado pelos
evangélicos (OLSON, 2003, p. 953-954).

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Nas décadas de 1950 e 1960, os evangélicos foram superando as posturas mais


fundamentalistas e começaram a desenvolver uma teologia própria, combinando
a ortodoxia e o pietismo protestantes, com um toque de reavivamento. Buscavam
uma alternativa para o fundamentalismo rígido e sectário e também para a teologia
protestante liberal, por isso, podem ser chamados de “novos evangélicos”. Dentro do
grupo dos novos evangélicos, alguns teólogos se inclinaram mais para a ortodoxia
protestante, evitando demasiado pietismo e reavivamento para continuarem centrados
no conteúdo doutrinário cristão. Outros penderam para o pietismo e o reavivamento,
porém sem deixar de lado as doutrinas bíblicas consolidadas.
No entanto, o movimento dos novos evangélicos não conseguiu eliminar as diferenças
entre as duas posições. Nas décadas de 1980 e 1990 passaram a seguir caminhos bem
distintos. Os evangélicos mais ligados à ortodoxia protestante adotaram a Confissão
de Fé Westminster como padrão doutrinário máximo: para eles, a doutrina sobre a
inspiração e a inerrância da Bíblia é a essência do cristianismo. Por outro lado, os
evangélicos mais ligados ao pietismo deram maior destaque à experiência espiritual,
ao reavivamento, à regeneração e à santificação como essenciais para o cristianismo
(OLSON, 2003, p. 955-956).

ISTO ESTÁ NA REDE

A Confissão de Fé Westminster foi elaborada por uma assembleia de teólogos


predominantemente calvinistas, em Westminster, no ano 1643, com o objetivo
de criar uma maior uniformidade da fé e da prática em todo o reino de Charles
I na Inglaterra. Posteriormente, esta confissão foi adotada por muitas igrejas
presbiterianas e reformadas ao redor do mundo. Dividida em 33 capítulos, a
Confissão de Westminster apresenta os principais pontos da ortodoxia reformada
da época, como a autoridade das Escrituras, a doutrina da Trindade, o lívre arbítrio,
a justificação, o culto, os sacramentos, os sínodos, etc. Para saber mais sobre
esta importante confissão de fé, veja este artigo de Joel Beeke: https://www.
seminariojmc.br/index.php/2018/09/06/a-confissao-de-fe-de-westminster-na-
historia/

Vimos acima como a teologia evangélica acabou se ramificando em várias correntes,


mas há alguns elementos comuns entre todas estas versões da teologia evangélica.
Antes de tudo, todos os teólogos evangélicos compartilham a cosmovisão cristã

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básica: a crença na transcendência e na atividade sobrenatural de Deus; a Bíblia


como divinamente inspirada e infalível em questões de fé e moral; Jesus Cristo como
Salvador crucificado e ressuscitado e como Senhor do universo; a conversão como
única iniciação religiosa autêntica; o evangelismo como transmissão do evangelho a
todos os seres humanos. Além disso, todos os novos evangélicos também rejeitam a
teologia liberal e o fundamentalismo, preferindo uma visão mais equilibrada (OLSON,
2003, p. 956).
O mais influente teólogo evangélico foi, certamente, Carl F. H. Henry (1913-2003),
teólogo batista que estabeleceu os moldes intelectuais do novo movimento, em
um esforço para superar tanto o fundamentalismo quanto a teologia liberal. Outro
personagem importante foi Donald G. Bloesch (1928-2010), que buscou conciliar a
ortodoxia e o pietismo através da sua “teologia da Palavra e do Espírito”. Para ele, a
mensagem do evangelho, da cruz e da ressurreição de Cristo é o coração da teologia
evangélica. Neste sentido, Bloesch estava disposto a dialogar com católicos ortodoxos
orientais e romanos, com protestantes e com qualquer teologia cristã que colocasse
no centro estes elementos essenciais do cristianismo (evangelho, cruz e ressurreição
de Cristo). É verdade que a teologia evangélica nasceu, no início do século XX, como
uma teologia fundamentalista, porém alcançou uma posição de equilíbrio e capacidade
de diálogo com os grandes teólogos do novo evangelismo, como Henry e Bloesch
(OLSON, 2003, p. 957-958).

9.1.3 Teologia Escatológica

A teologia escatológica foi iniciada, no período pós-Segunda Guerra Mundial, por


dois grandes teólogos protestantes alemães: Jürgen Moltmann (*1926) e Wolfhart
Pannenberg (1928-2014). Ambos autores despertaram um novo interesse pelo realismo
escatológico da teologia cristã clássica. Tratava-se de uma reação à teologia liberal
que havia relegado os temas escatológicos e a crença no Reino de Deus na terra à
mitologia. Também os teólogos do Evangelho Social falavam do Reino de Deus, porém
como uma nova ordem social humana, não tanto no sentido da vinda de Cristo e do
reino escatológico de Deus. Por outro lado, os fundamentalistas eram obcecados pela
especulação sobre temas escatológicos, dando muita ênfase à grande tribulação e ao
anticristo. Diante destes dois extremos, Moltmann e Pannenberg procuraram resgatar
a abordagem realista da escatologia bíblica (OLSON, 2003, p. 976-977).

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ANOTE ISSO

O Evangelho Social foi um movimento social dentro do protestantismo liberal,


que se desenvolveu no século XX. Este movimento tinha como objetivo alcançar
a justiça social a partir da ética cristã. Assim como a oração do Pai Nosso afirma
“venha a nós o vosso Reino (Mt 6,10), assim também os teólogos do Evangelho
Social acreditavam que o Reino de Deus precisava se concretizar na terra e isso
exigia um esforço dos seres humanos para eliminar os males que ainda estão no
nosso meio. Também defendiam a justiça social e o compromisso cristão com os
mais pobres.

A mais influente obra de Moltmann foi Teologia da Esperança, de 1964. Neste livro,
Moltmann apresenta a revelação como sendo promessa divina, e a salvação como
obra histórica de Deus pertencente ao futuro. O Reino de Deus está no centro das suas
reflexões teológicas, um reino que só Deus pode concretizar em definitivo, e que o fará
no futuro escatológico. Mesmo assim, o poder futuro de Deus irrompeu na história,
segundo o teólogo alemão, criando uma nova era de paz e justiça no presente. Deus
está presente na história, porém esta história caminha para um término glorioso que se
realizará plenamente apenas no futuro escatológico. Para Moltmann, a ressurreição de
Cristo é a garantia de tudo isso, porque é uma antecipação concreta do reino de Deus,
que se realizará plenamente quando todos os mortos se levantarão e as promessas
divinas de novo céu e nova terra serão cumpridas (OLSON, 2003, p. 978-979).
Pannenberg é conhecido especialmente por sua publicação de cristologia intitulada
Deus e homem (1964). Nesta obra, ele afirma o caráter verificável do evento histórico da
ressurreição corpórea de Jesus Cristo, contra os teólogos liberais, que consideravam
a ressurreição corpórea como um mito. Na mesma linha de Moltmann, Pannenberg
interpreta a ressurreição de Cristo como um evento escatológico, uma antecipação do
futuro reino de Deus. Para ele, Deus existe sobretudo no futuro, mas entra no presente
como um poder que irrompe na história antes do tempo, ou melhor, antes do Reino
de Deus. Em outras palavras, Deus se relaciona com a história humana, mas não
depende dela (OLSON, 2003, p. 979-980).
Para a teologia escatológica, Deus se relaciona com o mundo e, mas sem dominá-
lo, pois Ele deu liberdade a este mundo. Todavia, este mundo em que vivemos não é
ainda o Reino de Deus, por isso aqui existe o mal – e os teólogos deste período falavam
de um mal bem concreto, como o holocausto. Deus oferece à história humana a sua

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própria liberdade, e sobre com a humanidade e pela humanidade. Deus não é indiferente
à história, tanto que enviou o seu Filho para antecipar o futuro Reino de Deus; e o
Espírito Santo continua agindo no presente para manifestar o amor de Deus e para
liberar a força espiritual da esperança na história humana. Todavia, somente no fim
dos tempos, Deus virá ao mundo para aniquilar todo mal e todo pecado, inaugurando
definitivamente o seu reino (OLSON, 2003, p. 980-981).

9.1.4 Teologia Pentecostal

Na história recente das Igrejas, é preciso considerar também a teologia pentecostal.


Tradicionalmente, considera-se que o movimento pentecostal começou em 1906,
em Los Angeles, quando William J. Seymour pregou o batismo no Espírito Santo,
dando origem ao chamado “Avivamento da Rua Azusa”. Os primeiros missionários
pentecostais chegaram ao Brasil entre 1910 e 1911, vindo dos Estados Unidos, e deram
origem à Congregação Cristã no Brasil. Mas o movimento Pentecostal se expandiu
no Brasil apenas a partir da década de 1940. Fazem parte deste movimento, além da
Congregação Cristã no Brasil, a Assembleia de Deus e a Igreja Deus é Amor. Na década
de 1970 surge uma nova corrente, derivada do pentecostalismo: o neopentecostalismo.
Entre as principais igrejas do movimento neopentecostal temos a Igreja Universal do
Reino de Deus, a Internacional da Graça de Deus, a Comunidade Sara Nossa Terra e
a Renascer em Cristo.
Existem numerosos desdobramentos do movimento pentecostal e neopentecostal.
Trata-se de um movimento multifacetado, rico em expressões religiosas diversificadas.
Não é possível aqui elencar a especificidade de cada uma das Igrejas pentecostais
e neopentecostais, então apresentaremos de forma geral os principais elementos
teológicos deste amplo movimento, deixando claro que a riqueza teológica de cada
grupo específico vai muito além do que podemos delinear nestas poucas páginas.

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Título: Típica celebração neopentecostal


Fonte: https://domtotal.com/noticias/index.jsp?id=1258786

Um traço popular e característico das igrejas pentecostais e, especialmente,


neopentecostais é a chamada “teologia da prosperidade”. Esta perspectiva teológica
foi elaborada e difundida por Kenneth Hagin (1917-2003). No Brasil, os maiores
representantes desta corrente teológica são os pastores Edir Macedo e R. R. Soares.
Em geral, a teologia da prosperidade defende que a bênção financeira é o desejo de
Deus para os cristãos, e que a fé pode trazer maior riqueza material para o fiel. Na
Bíblia, existem promessas de prosperidade. Ora, se os humanos tiverem fé em Deus,
Ele irá cumprir suas promessas de segurança e prosperidade. Por desenvolverem
mais a teologia da prosperidade, os neopentecostais superaram a postura pentecostal
tradicional de rejeição à busca de riqueza e dos prazeres do mundo. O ascetismo dos
pentecostais clássicos não está presente na teologia neopentecostal (LIMA, 2016, p.
121-126).
Quanto à Sagrada Escritura, o pentecostalismo considera que a Bíblia contém a
totalidade da revelação de Deus. Esta revelação pode ser dividida em duas categorias:
a revelação geral, que é a autocomunicação de Deus através das obras da criação e
através da história humana; e a revelação específica, que é o modo como Deus dá a
conhecer o seu plano de redenção, e está contida na Bíblia. Só a revelação especial
pode trazer a salvação. Esta revelação especial se dá de forma pessoal, pois os autores
bíblicos conheceram a Deus ao fazer comunhão pessoal com Ele. Jesus Cristo é o
ponto mais alto desta revelação pessoal de Deus aos homens, mas toda a Escritura

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contém a revelação especial de Deus. Outro ponto importante da teologia bíblica


pentecostal é a autoridade plena das Sagradas Escrituras em questões de fé e moral: a
tradição das Igrejas só tem autoridade se estão de acordo com as Escrituras. A Bíblia
é a única norma absoluta em matéria de fé e prática cristã. Este ponto da doutrina
pentecostal exclui também a mediação do magistério eclesiástico na interpretação da
Bíblia: a Sagrada Escritura fala diretamente ao indivíduo, com a autoridade de Deus
(LIMA, 2016, p. 129-132).
A pneumatologia é outro âmbito importante da teologia pentecostal e
neopentecostal. Na verdade, a pneumatologia a doutrina do Espírito Santo é o
coração do pentecostalismo. O evento do Pentecoste, em At 2,1-4, marcou o início
de uma nova era: o tempo do Espírito Santo, prometido no AT e realizado na vida da
primeira comunidade cristã. Para que a Igreja de hoje viva na mesma linha da Igreja
apostólica, é preciso passar por um reavivamento no Espírito Santo. O primeiro e
mais importante passo é o batismo no Espírito Santo. O conceito de batismo no
Espírito é central em todo o pentecostalismo, inclusive no movimento pentecostal
católico. O batismo no Espírito Santo encontra-se na Bíblia (Mt 3,11; Mc 1,8; Lc
3,16; At 11,16; etc.): era parte da missão de Jesus trazer o batismo no Espírito;
e os apóstolos só começaram a sua missão depois de receberem este batismo.
Ser batizado no Espírito significa experimentar a plenitude do Espírito Santo e de
seus dons. É reviver a experiência do dia de Pentecoste (At 2,1-4). Para a maioria
dos pentecostais, o dom das línguas (falar línguas estranhas, como aconteceu
em At 2,4) é uma evidência física do batismo no Espírito. A finalidade do batismo
no Espírito é revestir o fiel com o poder do Espírito Santo para servir os irmãos e
para testemunhar a Palavra de Deus (LIMA, 2016, p. 138-151).

ISTO ACONTECE NA PRÁTICA

Na prática, as celebrações pentecostais costumam ter pregações fervorosas,


normalmente baseadas na Bíblia, às vezes em um único versículo bíblico, com
destaque aos textos que falam do Espírito Santo. Outro elemento comum nas
celebrações pentecostais é a invocação do Espírito Santo, acompanhada por
manifestações físicas da presença do Espírito, como a glossolalia (falar em línguas)
e a experiência de êxtase religioso. Orações de cura e expulsão do poder maligno
também são incluídas normalmente.

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9.2 Características da Teologia Contemporânea

Como vimos acima, a teologia contemporânea é muito ampla e diversificada. Não é


possível estabelecer de modo preciso todas as características das inúmeras correntes
teológicas atuais. Porém, podemos identificar algumas características que resumem
as tendências da teologia contemporânea. Portanto, apresentamos a seguir as três
principais tendências ou características da teologia contemporânea, segundo Libanio
e Murad (2005, p. 147-152).

9.2.1 Teologia em diálogo com a modernidade

Ao longo de toda a história, a teologia sempre dialogou com a cultura do seu tempo.
Todavia, na primeira parte do período moderno (séculos XVI-XVIII), a teologia se fechou
ao diálogo, especialmente a teologia católica, por medo de se contaminar com as novas
ideias. O resultado foi a criação de um monólogo: a teologia falando consigo mesma,
sem ser ouvida e sem ouvir as perguntas reais das pessoas. A situação mudou a
partir do século XIX, como vimos na aula anterior: surgiram novas correntes teológicas
que retomaram o diálogo com a modernidade, apesar de algumas reações contrárias
dentro da Igreja católica. No campo protestante, sempre houve mais facilidade em
dialogar com a modernidade, mas também surgiram correntes fundamentalistas
que se isolaram em um mundo separado, como vimos acima. Todavia, olhando para
os últimos séculos, podemos afirmar que a tendência da maior parte das teologias
(católica, protestante, evangélica, etc.) é o diálogo com a modernidade.
O pensamento moderno é marcado pelo conhecimento empírico, diferente do
conhecimento dedutivo da era medieval. Neste sentido, a teologia passou a enfatizar
o aspecto da encarnação de Cristo e a encarnação da sua mensagem, mais do que
a transcendência divina. Deus se dá a conhecer na história do seu povo e fala aos
seres humanos com linguagem humana, através do Verbo feito carne. Há uma virada
antropológica: passa-se a falar de Deus a partir da humanidade de Jesus. A experiência
de Jesus, dos apóstolos e dos demais autores bíblicos adquire uma grande importância
na reflexão teológica historicizada. Antropologia e cristologia começam a andar lado
a lado (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 148-149).
Outra expressão importante da contemporaneidade é a teologia da secularização.
Não que a teologia tenha deixado de lidar com o sagrado, mas passou a olhar para as

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realidades seculares com maior atenção. O mundo tal como ele é também passou a
integrar a reflexão teológica: problemas sociais e econômicos, desafios da sociedade,
o meio ambiente, a psicologia humana, etc. As realidades seculares são inseridas,
deste modo, no projeto salvífico de Deus (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 150).

2.2.2 Teologia plural

O mundo se tornou decididamente plural na contemporaneidade, e a teologia precisou


considerar a pluralidade da realidade para continuar a responder às demandas de
hoje. A teologia perdeu o seu caráter compacto de monobloco e assumiu uma enorme
pluralidade de enfoques. Se a teologia continua em diálogo com a filosofia, como
sempre fez, a própria filosofia se dividiu em várias correntes e matrizes diferentes,
por isso a teologia pode variar conforme a base filosófica adotada. Outro fator que
determina a pluralidade da teologia é a presença das Igrejas em contextos plurais: ao
invés de impor uma única cultura, as teologias cristãs passaram a dialogar com as
culturas locais, buscando novas formas de expressar a verdade da salvação de Deus
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 150-151).
Teologia plural significa ser também teologia ecumênica. Tendo superado o espírito
combativo e polêmico, a teologia católica passou a dialogar com a teologia protestante.
Com o surgimento de novas correntes evangélicas e pentecostais dentro da Reforma,
este diálogo teológico-ecumênico se tornou ainda mais desafiador. Nem todos os
religiosos querem o diálogo: alguns grupos preferem o isolacionismo. Todavia, a
tendência geral da teologia cristã é a pluralidade, o diálogo, o entendimento dentro
de uma grande diversidade, sem perder a própria identidade.

2.2.3 Confronto com a subjetividade e a historicidade

A mentalidade histórica também gera teologia plural. Quanto a teologia se confronta


com cada momento da cultura humana, ela assume novas formas. A teologia
historicizada leva em conta a concepção de sujeito em cada período. O problema é que,
no Ocidente, esta ligação da teologia com a cultura implica estar atrelada a diversas
formas do mesmo individualismo: na Idade Média, tratava-se do indivíduo obediente
e submisso à tradição e às autoridades eclesiásticas; na pós-modernidade, trata-se

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de um indivíduo atado à sua subjetividade e às suas experiências como critério de


verdade e de comportamento.
A partir da virada antropocêntrica moderna, passamos a viver uma subjetividade
exacerbada. Neste contexto, algumas correntes teológicas cedem à tendência histórica
do momento, outras procuram oferecer alguma resistência, enfatizando o aspecto
social e comunitário da fé. Nasce assim a teologia da esperança, a teologia política e
a teologia da libertação (da qual falaremos no próximo capítulo). Outro desafio atual é
o individualismo “eletrônico”, ligado às tecnologias da comunicação que podem tanto
criar comunhão, quanto isolar. Este é um desafio novo para o qual a teologia ainda
precisa buscar respostas (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 151-152).
Em poucas palavras, ao longo deste capítulo percebemos a partir de vários pontos
de vista que a teologia contemporânea é plural e diversificada. Na primeira parte,
apresentamos quatro campos teológicos que se desenvolveram em paralelo no
último século, às vezes dialogando, outras vezes seguindo a sua própria estrada: a
teologia católica e sua renovação pós-Vaticano II; a teologia evangélica, com grupos
fundamentalistas, grupos liberais e outros procurando a conciliação ao colocar a Palavra
de Deus no centro; a teologia escatológica, recuperando a dimensão do Reino de Deus
como um evento futuro; e a teologia pentecostal, destacando o protagonismo do Espírito
Santo na vida dos fiéis. Por fim, destacamos três entre as principais características
ou tendências da teologia na contemporaneidade: a teologia em diálogo com a
modernidade; a pluralidade de enfoques e correntes teológicas; e o confronto com a
historicidade e a subjetividade pós-modernas.

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CAPÍTULO 10
TEOLOGIA LATINO-AMERICANA

Caros alunos e alunas, neste capítulo vamos dar continuidade ao tema do capítulo
anterior, ou seja, vamos continuar falando da teologia contemporânea, porém com
enfoque à região latino-americana. Como já vimos no capítulo anterior, a teologia
contemporânea é plural, e isto vale também para a América Latina. Todavia, há uma
forma de teologia que se desenvolveu de forma mais ampla na América Latina, a ponto
de ser considerada por muitos estudiosos como uma “teologia latino-americana”: a
teologia da libertação. Sendo assim, o enfoque deste capítulo será sobre a teologia
da libertação na América Latina. Porém, não esqueçamos que na América Latina
também se desenvolveu uma teologia católica mais tradicional, uma teologia evangélica
e uma teologia pentecostal – das quais já tratamos no capítulo anterior. Portanto,
começaremos este capítulo tratando especificamente da teologia da libertação; depois
acrescentaremos alguns outros elementos essenciais da teologia latino-americana.

10.1 A Teologia da Libertação

Para apresentar de forma geral a teologia da libertação na América Latina,


devemos começar considerando o contexto histórico no qual esta teologia nasceu
e se desenvolveu. Em seguida, estudaremos a estrutura metodológica da teologia
da libertação, que constitui a própria identidade desta corrente teológica. Por fim,
apresentaremos brevemente a avaliação crítica feita por Libanio e Murad, com algumas
perspectivas para o futuro da teologia da libertação.

10.1.1 Contexto histórico

Toda teologia depende, pelo menos em parte, do contexto histórico que lhe deu
origem. O contexto histórico inclui o movimento de ideias e os elementos culturais,
mas inclui também a situação social, política e econômica. A Teologia da Libertação
surgiu sobretudo para trazer respostas a uma situação de dominação e opressão.

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Enquanto a América do Norte e a Europa pós-Segunda Guerra Mundial desenvolveu um


capitalismo mais humano, com melhores salários e dignidade dos trabalhadores, os
países do resto do mundo viviam um capitalismo tardio, periférico, secundário, marcado
pela desigualdade e exploração dos mais pobres. Neste contexto, na década de 1960,
os sociólogos latino-americanos, Fernando H. Cardoso e Enzo Faletto elaboraram a
teoria da dependência e da libertação, em oposição à teoria do desenvolvimento, que
favorecia apenas os ricos. Ou seja, o uso do termo “libertação” aparece, primeiramente,
no âmbito político-econômico (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 161-163).

Título: Desigualdade na América Latina


Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51406474

Ao lado das teorias sociológicas de libertação surgiram também os movimentos


de libertação por todo o continente latino-americano: ligas camponesas, sindicatos
rurais e urbanos, movimento de educação de base, escolas radiofônicas, centros de
cultura popular, associações diversas. O campo da educação também acompanhou os
movimentos sociais, especialmente com o método pedagógico da conscientização, de
Paulo Freire (década de 1980). Neste momento, a Igreja latino-americana não ignorou
o apelos das pessoas, mas colocou-se ao lado do povo: assim nasceu, inevitavelmente,
uma teologia ligada aos mais pobres e oprimidos, que recebeu o nome de “Teologia
da Libertação”.

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Vários pronunciamentos do Magistério da Igreja deram as bases para o surgimento


da Teologia da Libertação, entre os quais se destacam as encíclicas Mater et Magistra
(1961) e Pacem in terris (1963) de João XXIII; e a constituição pastoral Gaudium et Spes
do Concílio Vaticano II (1965). No meio popular religioso, surgiram as Comunidades
Eclesiais de Base, dando a voz para os cristãos da periferia. Tudo isso contribuiu
para o nascimento de uma teologia que visava refletir sobre a fé cristã, partindo da
situação de pobreza e opressão vivida pela maioria dos povos latino-americanos, e
buscando possibilitar experiência de libertação (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 164-167).
Quanto ao movimento de ideias e elementos culturais, a teologia da libertação se
insere no horizonte filosófico e cultural da modernidade. Trata-se, sobretudo, do método
indutivo: o ponto de partida é a experiência humana concreta, interpretada à luz da
Revelação. Não interessa apenas a doutrina, mas também a experiência do sujeito
que crê. A teologia da libertação é herdeira da teologia liberal europeia, mas com uma
diferença importante: não busca simplesmente resgatar o sentido da Revelação para
o homem moderno, mas procura recuperar esse sentido no contexto de opressão e
desigualdade nos territórios latino-americanos e outros continentes do Terceiro Mundo
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 169-170).

10.1.2 Estrutura da Teologia da Libertação

A teologia da libertação trata dos dados da Revelação, assim como todas as formas
de teologia. A diferença é que a teologia da libertação faz isso a partir da realidade
humana, mais especificamente, da realidade dos mais pobres. Metodologicamente,
a teologia da libertação é constituída por três momentos ou passos: momento pré-
teológico, momento teológico e momento práxico. Estes três momentos também
podem ser expressos pela fórmula clássica do ver, julgar e agir.

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ISTO ACONTECE NA PRÁTICA

O esquema metodológico do ver, julgar e agir, foi formalmente indicado pela Igreja
católica na encíclica Mater et Magistra de João Paulo II, no ano 1961. A partir de
então, a teologia da libertação também adotou de forma decisiva estes passos
metodológicos. Na verdade, este esquema metodológico vai muito além da teologia,
pois costumamos usá-lo no nosso dia-a-dia em muitos ambientes, sem percebê-lo.
Trata-se de um método simples e eficiente para a tomada de decisão em qualquer
âmbito. Por exemplo, os gestores de uma empresa, antes de tomarem uma decisão
(agir), costumam fazer um bom diagnóstico das tendências do mercado (ver) e
avaliam as informações coletadas a partir de algum aparato teórico de marketing ou
de compra e venda (julgar). Um pai e mãe de família, antes de fazerem um passeio
com as crianças no domingo, avaliam as condições meteorológicas e o dinheiro
disponível (ver), depois decidem a partir de sua realidade concreta (julgar) e saem
com as crianças à passeio (agir). E em tantas outras situações cotidianas usamos
este esquema metodológico simples, mas eficiente.

O momento pré-teológico consiste em conhecer a experiência de Deus no pobre e em


sua luta. Trata-se não de um conhecimento comum, imediato, mas um conhecimento
científico, mediado pelas ciências sociais. Por isso, esta primeira análise feita pelo
teólogo não é propriamente uma análise teológica, mas pré-teológica. Neste primeiro
momento, é preciso apropriar-se das análises da realidade feitas pela ciência social,
mas não de qualquer forma, e sim usando sempre os critérios teológicos. Em poucas
palavras, trata-se de conhecer profundamente os dados interpretados cientificamente
pela sociologia, confrontado-os com a revelação divina. Neste ponto, nasceu um
preconceito injustificado contra a teologia da libertação: de ser aliada ao marxismo.
De fato, a análise marxista da realidade foi importante em um período da nossa história,
para desvendar a lógica opressora e perversa do capitalismo, que produziu desigualdade
e injustiças sociais incontáveis. Mas a teologia da libertação pode usar dados de
quaisquer abordagens socioanalíticas, desde que sejam análises que favoreçam os
mais pobres, não que sustentem os opressores (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 174-175).
Neste primeiro momento, o teólogo deve ter o cuidado para não absolutizar a
autonomia da fé e negar a realidade concreta; nem absolutizar determinada abordagem
sociológica e esquecer o valor fundamental da Revelação. É preciso colocar as
categorias socioanalíticas em diálogo com os valores religiosos e os elementos da fé.
Neste sentido, cada instrumental teórico da sociologia deve ser escolhido e criticado a

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partir dos critérios da fé. As sociologias são tomadas como instrumentos da teologia,
não como definidoras da teologia. O teólogo deve escolher o instrumental sociológico
mais adequado a partir de critérios científicos e a partir dos critérios da fé. Em cada
momento histórico, poderá haver uma sociologia diferente que auxilie o teólogo em
seu trabalho de análise da realidade com os olhos da fé (LIBANIO-MURAD, 2005, p.
176-177).
O momento teológico consiste em buscar uma resposta à pergunta levantada
pela situação analisada com as mediações sociais, à luz da Revelação divina. Ou
seja, a partir dos dados da realidade, já interpretados pela análise social escolhida em
acordo com os critérios da fé, passa-se à elaboração teológica propriamente dita, que
é sempre uma elaboração feita em confronto com a Revelação. Tendo presente que
a revelação, em sentido largo, inclui a Bíblia e a Tradição da Igreja, podemos afirmar
que este confronto entre tradição teológica da Igreja e análise social da realidade se
enriquecem uma à outra: a realidade social é enriquecida pela fé da Igreja; e a Tradição
viva da Igreja cresce com os novos dados da realidade social na qual os cristãos estão
inseridos. O fruto da teologia da libertação é esta “novidade” que atinge a realidade
(enriquecida pela fé) e a Tradição (enriquecida pela realidade). O momento teológico
tem como resultado uma compreensão da problemática latino-americana iluminada
pela fé, e uma nova interpretação da Palavra de Deus, vista a partir desta problemática
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 179).
Na teologia da libertação, o momento propriamente teológico corresponde ao
triângulo hermenêutico: texto, contexto e pré-texto. Na hermenêutica bíblica, o texto
equivale às Escrituras propriamente ditas; o contexto é a vida da Igreja, incluindo o
Magistério, a Tradição, as teologias, etc.; e o pré-texto é a realidade social atual. O
momento pré-teológico serve para dar uma correta visão do pré-texto dentro do qual
devemos ler o texto bíblico, permanecendo em nosso contexto eclesial. A função da
teologia é articular estes três momentos (texto, contexto e pré-texto) para nos levar
a uma correta e frutífera leitura da Revelação divina e da realidade social concreta.
No fundo, a teologia está respondendo a esta questão fundamental: o que Deus diz
sobre esta realidade concreta? Deste modo, a Revelação divina continua eloquente
no presente histórico da Igreja (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 180).
O terceiro e último passo é o momento práxico. Toda teologia é uma sabedoria,
um saber racional e uma reflexão crítica da práxis. A patrística enfatizou a dimensão
sapiencial da teologia; a escolástica acentuou o aspecto do saber racional; e a teologia

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da libertação está mais ligada à práxis. Todavia, todas estas teologias devem incluir
os três aspectos: o que muda é a acentuação. A teologia da libertação se configura,
então, como uma crítica da prática teológica, das práticas pastorais e das práticas
político-sociais dos cristãos e da sociedade em geral.
A práxis também pode ser dividida em três níveis: a prática intra-teológica, intraeclesial
e sociopolítica. A tarefa crítica intra-teológica consiste em analisar os conceitos cristãos,
dando-lhe novas expressões e significados, a partir da realidade atual. Por exemplo,
o conceito de “graça” provém de uma tradição filosófica metafísica, indicando uma
intervenção divina na natureza humana; na teologia da libertação, este conceito se
expressa como “graça libertadora”, ou seja, uma ajuda divina que liberta os pobres de
sua situação de opressão. Em segundo lugar, a prática intraeclesial leva a uma nova
compreensão do que é ser Igreja. Fala-se de uma “eclesiologia militante”, um novo
modelo eclesial que busca superar a lógica do poder ou autoritarismo religioso (tão
combatido por Jesus) em prol da lógica da igualdade entre todos os irmãos em Cristo.
Enfim, temos a prática social: a fé é reinterpretada a partir das questões levantadas
pela práxis. Por um lado, a teologia é reelaborada a partir das perguntas da práxis
(questionamentos dos cristãos engajados, dos movimentos sociais, das pastorais, por
comunidades eclesiais de base, dos grupos de defesa dos direitos humanos, etc); por
outro lado, a teologia ilumina o compromisso destes grupos envolvidos com missões
concretas na sociedade e na Igreja. Para que este processo se realize, o teólogo
deve estar constantemente em diálogo com os agentes de pastoral, com os cristãos
comprometidos, com os movimentos sociais, etc. Deste modo, a teologia responderá
às perguntas reais e será capaz de transformar a realidade (LIBANIO-MURAD, 2005,
p. 183-184).

10.1.3 Avaliação crítica e perspectivas

Um dos principais limites da teologia da libertação está na adoção de um modelo


de análise social com bases filosóficas frágeis, que se demonstrou insuficiente diante
das transformações do mundo nas últimas décadas: o modelo marxista. Os ideais
da teologia da libertação permanecem válidos: justiça social, liberdade, fraternidade,
etc. Todavia, é preciso ampliar as análises sociológicas para poder ler a realidade
complexa do mundo neo-liberal, que tem efetivamente gerado tanta desigualdade,
pobreza e injustiças (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 186).

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A opção preferencial pelos pobres, central e fundamental na teologia da libertação, é


mais importante do que nunca em nossos dias. Além disso, ao contrário do que muitos
críticos argumentam, esta não é uma opção ideológica, mas é simplesmente a opção
necessária para quem quer seguir a Cristo. De fato, em 2004, o Pontifício Conselho
Justiça e Paz publicou o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, a pedido do então papa
João Paulo II. Inicialmente, a visão dos teólogos da libertação e do referido Pontifício
Conselho não pareciam tão compatíveis, mas nos últimos anos tem-se chegado a um
bom nível de acordo. Talvez essa seja uma estrada interessante para a teologia da
libertação no presente momento histórico da Igreja (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 187).
À respeito da atividade teológica propriamente dita, uma crítica constante é que
a teologia da libertação teria subordinado a transcendência da Revelação divina à
práxis, ou seja, teria reduzido a fé a uma dimensão puramente imanente, histórica e
política. Todavia, esta crítica não se aplica para a maioria dos teólogos da libertação,
os quais costumam dar o devido valor às Sagradas Escrituras e à Tradição da Igreja,
inclusive às leituras espirituais dos Padres da Igreja. O fato de enfatizar os aspectos
sociais da Revelação bíblica e da Tradição da Igreja não significa ignorar o âmbito da
fé (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 189).
A teologia da libertação pode ter futuro, na mesma medida em que, infelizmente, a
pobreza e as injustiças sociais não dão sinal de diminuição, mas continuam a crescer
na América Latina e no mundo. Hoje, além da pobreza no terceiro mundo, cresce o
número de pobres nos países ricos e aumenta o número de imigrantes e refugiados
no mundo inteiro. A diferença é que agora o binômio não é, como no início, entre
opressão e libertação, mas entre exclusão e opressão. O neoliberalismo não gera o
mesmo nível de opressão que o capitalismo industrial dos séculos passados, mas cria
uma massa muito maior de excluídos (pobres; imigrantes; pessoas discriminadas pela
raça, cor, gênero ou religião; pessoas sem acesso ao mundo digital, etc.). Portanto,
se a teologia está atenta à realidade concreta do mundo atual, ela continuará a ser
também teologia da libertação (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 191).
Libanio e Murad (2005, p. 192-193) apresentam uma série de tendências que podem
abrir novos espaços para a teologia da libertação, entre os quais destacamos alguns:
• Ir além da eclesiologia das comunidades eclesiais de base para criar uma
eclesiogênese, ou seja, uma reinterpretação do poder e do ministério da Igreja:
a Igreja como rede de comunidades que partilham a fé, os sacramentos, os
problemas sociais e os anseios espirituais.

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• Da salvação como libertação e justiça para uma concepção mais ampla de


salvação divina, que inclui todos os aspectos da vida humana e da conservação
do meio ambiente como obra de Deus.
• Leva a teologia da transformação social para uma teologia das culturas,
possibilitando um diálogo entre o evangelho e a questão da consciência negra
e os direitos dos povos indígenas.
• Criar um novo equilíbrio entre a teologia da práxis e a espiritualidade mística,
tão valorizada nos tempos atuais.
• Relacionar a devoção mariana e as questões mariológicas com o movimento
feminista, dando mais espaço às mulheres nos ambientes de estudos de
• teologia e na pastoral cristã.

Estas e outras vias podem ser percorridas pela teologia da libertação. Algumas
expressões históricas desta teologia podem ter sido superadas, mas o propósito da
teologia da libertação continua sendo atual e urgente: iluminar a realidade social a
partir da Revelação divina e transformar esta mesma realidade a partir da fé.

10.2 Outros elementos da Teologia Latino-Americana

Nesta segunda parte do capítulo, vamos destacar dois elementos que receberam
especial atenção na teologia latino-americana, tanto na teologia da libertação, quanto
em outras correntes teológicas: a cristologia e a eclesiologia.

10.2.1 Cristologia Latino-Americana

A opção pelos pobres, própria da teologia da libertação, depende também de uma


cristologia de base: a cristologia da humanidade de Jesus. A humanidade de Jesus é o
conceito central da cristologia latino-americana. Deste conceito central desprendem-se
outros temas importantes: o reino de Deus; o seguimento de Cristo; os valores morais
vividos e defendidos por Jesus; etc. Basicamente, a teologia latino-americana se articula
em torno da cristologia: Jesus, sua pessoa e sua ação. Evidentemente os teólogos
latino-americanos não estão isolados, mas desenvolveram sua cristologia a partir das
contribuições dos estudos feitos no mundo todo, especialmente a pesquisa sobre o
Jesus histórico e sobre o contexto da Palestina no século I d.C. A cristologia latino-

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americana insere-se na tradição teológico-eclesial contemporânea, contextualizando-a


na situação concreta do nosso continente (MANZATTO, 2019, p. 32-34).
A cristologia do Vaticano II também levou em conta, entre tantos aspectos, a
perspectiva da ação de Jesus, partindo do conceito central de encarnação. O Verbo
se encarnou em um mundo cultural concreto, dentro da história. Nesta perspectiva, a
humanidade de Jesus, sua ação e a história passam a ser valorizadas pela cristologia
católica em geral – e estes aspectos serão particularmente enfatizados pela cristologia
latino-americana, em sua recepção das contribuições do Vaticano II. A partir dos
estudos histórico-críticos da Bíblia, compreende-se melhor a vida de Jesus e o seu
projeto para a humanidade: Jesus agiu trazendo a libertação para os pobres do seu
tempo; Ele morreu na cruz porque os poderosos não aceitaram sua pregação sobre o
Reino de Deus como um reino de irmãos; e Ele ressuscitou para renovar a esperança
da comunidade cristã nascente diante da perseguição que esta também enfrentava
(MANZATTO, 2019, p. 35-39).
Os dois elementos mais característicos da cristologia latino-americana são o
enfoque sobre Jesus histórico e o conceito de seguimento de Cristo. Quando
falamos de “Jesus histórico”, na verdade, estamos simplesmente olhando para
Jesus a partir do ponto de vista da história: seu contexto histórico, suas ações,
suas pregações naquele contexto específico, etc. É diferente do conceito do “Cristo
da Fé”, que consiste na reflexão sobre os dogmas cristológicos (natureza humana
e divina de Jesus; relação com o Pai e com o Espírito; etc.). Jesus viveu em um
período de domínio romano sobre os judeus da Palestina, um domínio que oprimia
e gerava pobreza; Ele também enfrentou a segregação imposta pelos chefes dos
judeus, quando excluíam os samaritanos, os pecadores, os impuros, os pobres,
etc. Neste contexto, Jesus denunciou a ganância dos poderosos e a hipocrisia
dos líderes religiosos; acolheu os pecadores; deu pão aos famintos e saúde aos
doentes; e anunciou um Reino de fraternidade e igualdade. A partir desta cristologia
histórica, surge o segundo conceito: o seguimento de Jesus. Seguir este Jesus
histórico, que viveu na Palestina do século I, significa assumir os seus valores no
nosso presente: a igualdade, a caridade, o respeito pela vida; acolher os pecadores
e os excluídos; agir em favor dos pobres; transformar as estruturas da sociedade
que geram desigualdade e divisão; enfim, participar do projeto de Jesus de trazer
o Reino de Deus neste mundo (MANZATTO, 2019, p. 47-85).

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10.2.2 Eclesiologia Latino-Americana

A eclesiologia latino-americana enfrenta um desafio básico, que é um desafio da


Igreja no mundo todo: o surgimento do cristão não eclesial, ou seja, aquele cristão que
vive a sua fé apenas na subjetividade, sem buscar uma comunidade para partilhar a
sua fé. Este modelo de um cristianismo apenas subjetivo e individualista é próprio da
cultura pós-moderna. Porém, trata-se de um modelo que não se sustenta. O cristianismo
é comunitário-eclesial por natureza, desde a sua origem. Jesus confiou a missão
de anunciar o evangelho e de batizar para a comunidade dos apóstolos, não para
indivíduos isoladamente. A sua própria missão era unir a humanidade a Deus e os seres
humanos entre si. O maior mandamento deixado por Jesus é o mandamento do amor
ao próximo, como ele nos amou (Jo 13,34), e não é possível viver este mandamento
sem o próximo e sem a prática concreta da caridade. Portanto, ser cristão significa criar
comunidade com os laços do amor divino. E a Igreja é, necessariamente, comunhão:
uma comunhão fundada no mistério da Trindade, revelado por Jesus (CIPOLINI, 2019,
p. 97-99).
O Vaticano II provavelmente foi o Concílio que mais refletiu sobre a Igreja, sua
natureza e sua missão. Convidou a Igreja a ser mais missionária e mais atenta às
alegrias, às esperanças e aos problemas do mundo atual. Para promover a união
das Igrejas latino-americanas e promover uma constante reflexão sobre a missão da
Igreja, foi criado em 1956 a Conselho Episcopal Latino-Americana (CELAM), que reúne
periodicamente os bispos de todos os países da América Latina e do Caribe para
definir as diretrizes conjuntas de ação. Neste sentido, a eclesiologia latino-americana
foi se configurando sempre mais como uma eclesiologia de comunhão e de missão.

ISTO ESTÁ NA REDE

O CELAM foi criado em 1956, em conexão com a Primeira Conferência Geral do


Episcopado Latino-americano, realizada no Rio de Janeiro em 1955. Desde então,
já foram realizadas pelo menos outras quatro conferências gerais na América
Latina, além de outras iniciativas do episcopado. Para saber um pouco mais sobre
o CELAM e as Conferências Episcopais, veja este artigo de Sandra Arenas: http://
teologicalatinoamericana.com/?p=1475

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Sem entrar em detalhes sobre as inúmeras reflexões eclesiológicas feita das


Conferências Episcopais Latino-America e elaboradas pelos teólogos deste continente,
vamos apenas sintetizar os elementos que formam a identidade da Igreja na eclesiologia
latino-americana. As quatro notas tradicionais da eclesiologia (unidade, santidade,
catolicidade e apostolicidade) são reinterpretadas a partir do modelo de igreja como
comunhão, voltada para a solidariedade com os pobres, sendo sacramento de salvação-
libertação. Quanto à unidade, a eclesiologia latino-americana destaca a união na oração
e na celebração, mas também na partilha de bens materiais como fruto da justiça.
A santidade é fruto da união da Igreja com Jesus, por meio do Espírito Santo: esta
santidade se concretiza no compromisso com um mundo como Deus deseja, ou
seja, um mundo onde reine a justiça e a paz. A catolicidade indica a universalidade da
Igreja, que consiste em anunciar o evangelho a todos, sem excluir ninguém: isso só
é possível quando somos capazes de incluir os últimos, os pobres, os excluídos pela
sociedade. E a apostolicidade lembra que a Igreja é fundada no testemunho evangélico
dos apóstolos: uma Igreja missionária como eles foram missionários; uma Igreja reunida
em torno da escuta da Palavra e da partilha do pão eucarístico e dos bens materiais,
como era a Igreja apostólica (CIPOLINI, 2019, p. 142-145).
Enfim, ao longo deste capítulo falamos sobre a teologia da libertação, desenvolvida
na América Latina: falamos brevemente do contexto de surgimento desta corrente
teológica; apresentamos os seus três momentos metodológicos (momento pré-teológico,
momento teológico e momento práxico, ou seja, ver, julgar e agir); e concluímos com
algumas reflexões críticas e perspectivas elaboradas por estudiosos. Na segunda parte,
acrescentamos dois elementos essenciais da teologia latino-americana, que são dois
conceitos importantes da própria teologia da libertação, mas vão muito além desta
impostação teológica: a cristologia (Jesus encarnado que desafia a nossa realidade
histórica) e a eclesiologia (a igreja dos discípulos de Jesus, que deve continuar a sua
missão no mundo).
Com isso, encerramos a parte do nosso e-book dedicada à história da teologia e,
nos próximos capítulos, trataremos da relação entre a teologia e outras disciplinas,
como a ciência, a filosofia, o direito, entre outras.

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CAPÍTULO 11
TEOLOGIA, CIÊNCIA E CULTURA

Prezados estudantes, estamos iniciando aqui a terceira parte do nosso e-book, que
trata sobre a relação entre a teologia e outras disciplinas. Neste capítulo, falaremos da
relação entre a teologia, a ciência e a cultura. Em primeiro lugar, apresentaremos uma
breve panorâmica histórica da relação entre teologia e ciência. Em seguida, vamos
tratar da cosmologia como um espaço para o diálogo entre teologia, filosofia e ciência.
E a terceira seção deste capítulo será dedicada à relação entre teologia e cultura.

11.1 Relação entre teologia e ciência ao longo da história

Visto que a teologia e a ciência são realidades históricas, então a relação entre elas
depende fundamentalmente do conceito de ciência e de teologia em cada momento
da história. Conforme mudam as condições sociais, as cosmovisões, as ideologias e
a consciência humana, assim também varia a relação entre ciência e fé.
Historicamente, a primeira forma de relação entre teologia e ciência foi a submissão
da ciência à teologia. De fato, a teologia adquiriu certo caráter científico com Tomás
de Aquino. Neste momento, a ciência era definida pelo conceito aristotélico de ciência:
um conhecimento certo e sempre válido, resultado de deduções lógicas. O objetivo
da ciência era conhecer as causas e as razões do ser. Neste sentido a teologia era
entendida como ciência, ou seja, como um conhecimento certo e dedutivo. No sentido
moderno, a teologia não poderia ser definida como ciência, pois não há evidências
imediatas para os seus princípios, ou seja, para verdades reveladas. Mas no sentido
aristotélico-escolástico, a teologia era considerada uma ciência superior às ciências
humanas, pois ela recebe os seus princípios diretamente da ciência de Deus. Essa era
a hierarquia das ciências: a ciência de Deus é subordinante e está acima de todas as
formas de conhecimento humano; a teologia é uma ciência subalterna à ciência divina;
e as demais ciências eram subordinadas à teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 79-80).
O conflito entre ciência e teologia surge quando nasce uma nova definição de
ciência. Historicamente falando, isso aconteceu na Idade Moderna, a partir de Copérnico,

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Galileu Galilei e Newton. Deixando de lado o método dedutivo e metafísico, a ciência


moderna adotou o método empírico. O ponto de partida passou a ser a experiência
verificável, os fenômenos, as causas segundas, as leis físicas. O que garante a verdade
científica é a racionalidade da experiência, e as certezas dependem da verificação
experimental. Neste novo contexto da ciência, a teologia acabou perdendo espaço.
A teologia dependia das certezas da fé e se apoiava na autoridade das Escrituras.
A ciência e a teologia seguiram, então, caminhos diferentes, uma criticando a outra:
a ciência desprezava o conhecimento teológico por não ser verificável; e a teologia
condenava a ciência moderna por sua pretensão de autonomia. A condenação da
Inquisição contra Galileu Galilei em 1633 marcou profundamente este conflito, e só
foi retirada formalmente por João Paulo II em 1982 (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 81-82).

Título: Galileu Galilei


Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Galileu_Galilei

Inicialmente, muitos teólogos tentaram harmonizar as novas descobertas da ciência


com as verdades bíblicas e teológicas, mas tratava-se de uma harmonização muito

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artificial, que não se sustentou. Aconteceu então a ruptura entre ciência e teologia.
As ciências modernas seguiram sua própria estrada, com metodologias próprias,
totalmente independentes da teologia. E a teologia passou a esforçar-se para ser
reconhecida pelas ciências e não ser relegada ao mundo das fábulas. Com o advento
do positivismo filosófico e científico no século XIX, as ciências exatas e experimentais
tornaram-se o modelo principal para todas as outras ciências. As ciências humanas
ficaram em uma posição subordinada, menos precisas, porém ainda importantes,
pois tratam do sentido das coisas. Para o positivismo, somente o conhecimento
experimental e verificável é realmente científico; e somente o mundo do fenômeno é
objeto da ciência, enquanto a realidades transcendentes ficavam de fora. A teologia
perdeu espaço neste contexto positivista. O objeto da teologia é Deus, uma realidade
transcendente e não verificável no sentido positivista. Por isso, a teologia e a religião
ficaram alienadas deste mundo científico (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 82-84).
Todavia, a pretensão da ciência positivista de ter o monopólio da verdade não
durou muito. A hermenêutica do século XX mostrou que não há dados puros, pois
todos os dados são interpretados; e não há ciência plenamente objetiva, pois toda
percepção do objeto passa necessariamente pelo sujeito. A filosofia da linguagem
nos lembrou que toda realidade é mediada e interpretada pela linguagem, e não há
conhecimento puro e objetivo. As teorias científicas se multiplicaram, muitas conflitivas
entre si, mas cada uma com seu valor, mostrando que nenhuma ciência particular
pode ter o monopólio da verdade. Neste novo contexto, surgiu uma nova relação
entre teologia e as ciências, que poderíamos chamar de relação de paridade. Trata-
se de reconhecer que ambas, a ciência e a teologia, quando se convertem em teoria,
refletem a interpretação do sujeito e são traduzidas em determinada linguagem. Este
sujeito pode ser a comunidade científica, ou o teólogo, ou a comunidade dos fiéis.
O sujeito se relaciona com o objeto através de modelos, categorias ou paradigmas,
sem os quais não seria possível interpretar o dado. Muda o objeto, muda o sujeito,
mas o mecanismo é o mesmo: a realidade é interpretada a partir de um modelo e é
mediada por uma linguagem. Não há um caminho diferente nem para a ciência, nem
para a teologia (LIBANIO-MURAD, 2005, p. 83-84).
Hoje, compreende-se que a comunidade científica trabalha com paradigmas, e os
paradigmas mudam. A objetividade absoluta do positivismo não existe mais. Paradigma
é “o conjunto de pressupostos conceituais e metodológicos de determinada tradição
científica e a partir dos quais os fenômenos são interpretados” (LIBANIO-MURAD, 2005,

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p. 83). Quando um novo fenômeno é descoberto e não cabe dentro do paradigma


vigente, elabora-se um novo paradigma: nada é imutável. Nos últimos séculos,
passamos do paradigma ptolomaico para o newtoniana, e deste para o einsteiniano.
A teologia também usa modelos e paradigmas para entender o seu objeto principal,
que é Deus em sua autocomunicação na história. Em outras palavras, a teologia se
aproxima da Revelação divina com categorias, matrizes ou paradigmas interpretativos.
Neste sentido, o estatuto epistemológico da teologia não difere essencialmente das
ciências. Por isso, hoje estamos em um novo momento da relação entre ciência e
teologia: o diálogo.
A teologia pode dialogar com as ciências humanas, exatas, biológicas, etc. Cada
âmbito do conhecimento humano pode criticar e ao mesmo tempo contribuir com o
outro âmbito. A teologia tem o objetivo de desvelar o sentido último e transcendente
da vida humana, ou seja, o mistério de Deus. Por sua vez, a ciência procura desvelar
os mistérios do mundo físico, criado por Deus. Sendo assim, a teologia e a ciência se
complementam, ao invés de se opor, como se pensou nos séculos passados. Para
Karl Rahner, a teologia é uma concepção da existência humana e, como tal, antecede
à ciência em sua concepção de mundo e do homem. Se Deus é o princípio de toda
a realidade, então a teologia, ao tratar de Deus, reflete sobre toda a realidade da
experiência humana. Esta é a mesma realidade que, em um segundo momento, se
torna objeto da ciência. Enfim, o diálogo entre ciência e teologia é atual e necessário
(LIBANIO-MURAD, 2005, p. 84-87).
Resumindo o nosso breve percurso histórico: no início, a ciência era subordinada
à teologia (período da Escolástica); em seguida, surgiu um conflito entre teologia e
ciência (início da Modernidade) que acabou criando uma ruptura entre estes dois
âmbitos do conhecimento (Modernidade); no século XX instaurou-se uma relação de
paridade, no sentido de reconhecer os limites tanto da ciência quanto da teologia; e
nas últimas décadas, esta relação se tornou mais positiva, sendo caracterizada pelo
diálogo e pela complementaridade.

11.2 A cosmologia moderna entre filosofia e teologia

A cosmologia é o estudo da origem e da composição do universo. Neste sentido


largo, a cosmologia está presente desde o início da filosofia, com os pré-socráticos.
As perguntas essenciais da cosmologia são bem conhecidas por todos nós: de onde

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viemos? Para onde vamos? Qual é a origem do universo? E a origem do ser humano?
E qual será o nosso fim? São perguntas que não podem ser respondidas por uma
única ciência, por isso a cosmologia é um interessante ramo do conhecimento no
qual conflui ciência, filosofia e teologia.
A cosmologia moderna se desenvolveu no âmbito da ciência, tendo como principais
representantes Darwin e Wallace com a teoria da evolução (1859); e Albert Einstein
(1879-1955) com a Teoria da Relatividade Geral. Todavia, hoje se reconhece que a ciência
só é capaz de descrever parte da realidade, ou seja, os fenômenos da natureza. Mas
o sentido ou essência de tudo o que existe não pode ser descoberto pela ciência. Na
verdade, o significado de uma realidade não pode ser esgotado por nenhuma teoria
científica, filosófica ou teológica. Por isso, a cosmologia comporta o pluralismo teórico,
pois nossa compreensão de uma realidade será mais ampla na medida em que mais
teorias a descrevem sob diferentes pontos de vista (CRUZ, 2012, p. 268-283).

ISTO ESTÁ NA REDE

A Teoria da Gravidade Geral, de Einstein, revolucionou a física moderna e superou o


modelo das leis de Isaac Newton. Muitos aspectos desta teoria também já foram
superados, mas várias intuições de Einstein foram confirmadas por descobertas ou
experimentos científicos recentes. Para saber um pouco mais sobre esta teoria e
suas aplicações, leia ou assista esta interessante reportagem da BBC News: https://
www.bbc.com/portuguese/geral-48398691

A cosmologia moderna teve seu início no trabalho do cientista Albert Einstein. O


objetivo da cosmologia, para Einstein, é obter a estrutura geométrica e a distribuição de
matéria do universo. Este propósito poderia ser alcançado estudando as leis da física,
especialmente a lei gravitacional. As hipóteses de Einstein hoje são, de certa forma,
superadas. Todavia, são essas hipóteses que definem os objetivos da cosmologia
moderna:
• A primeira hipótese é que as leis físicas localmente verificáveis (dentro do sistema
solar) devem ser válidas em regiões do universo que ainda não podemos alcançar
com nossas tecnologias atuais.
• A segunda hipótese é que os objetos cosmológicos interagem gravitacionalmente.
• A terceira hipótese inclui várias pressuposições físico-matemáticas: o princípio
da simetria das formas geométricas no universo; a pressuposição de que o

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universo pode ser modelado como um fluido; etc. Seguindo este modelo, as
galáxias seriam distribuídas de maneira homogênea e simétrica (CRUZ, 2012,
p. 286-291).

Título: A teoria da gravidade no cotidiano


Fonte: https://www.comciencia.br/relatividade-no-cotidiano/

Estas hipóteses de Einstein o levaram a imaginar o universo como algo ordenado e


estático. Todavia, a cosmologia que se desenvolveu a partir de Einstein se afastou deste
modelo e verificou que o universo está em expansão, ou seja, o universo é dinâmico
e seu conteúdo material muda com o tempo. Uma das principais consequências da
teoria da expansão é a ideia do big bang: se o universo está em expansão desde a sua
origem, então na sua “origem” ele deveria estar em um estado concentrado ao extremo,
com densidade e temperaturas infinitas. Em um determinado momento, por algum
motivo, começou a expansão: é o que chamamos de big bang. Todavia, a física não é
capaz de explicar como e por que esta massa original teria aparecido. A física pode
explicar o que teria acontecido depois do big bang, mas não antes nem a sua razão.
A teoria do big bang, portanto, não nega a ideia filosófico-teológica da “criação”, mas
supõe uma ideia de criação. Sendo assim, a cosmologia se torna um campo propício
para o encontro entre ciência, filosofia e teologia (CRUZ, 2012, p. 291-294).
Diante das teorias da relatividade geral, da expansão do universo, do big bang e de
qualquer outra teoria cosmológica, a filosofia tem a tarefa de lembrar os cientistas que
toda teoria, por mais consistente e importante que seja, é apenas uma representação

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do universo. Nenhuma teoria ou modelo permanece válido para sempre. Além disso,
nenhuma teoria é capaz de descrever todos os aspectos da realidade. Quando a
ciência esquece o seu limite, ela acaba perdendo inclusive o seu caráter científico e
se torna um dogma. A filosofia tem a tarefa de lembrar os limites da ciência e afirmar
a complementaridade entre ciência e religião. Neste sentido, o diálogo entre ciência
e teologia pode e deve ser mediado pela filosofia em sua tarefa epistemológica de
apontar os limites de cada âmbito do conhecimento humano (CRUZ, 2012, p. 327-329).

11.3 Teologia e cultura

A definição de cultura é muito ampla. Para falar da relação entre teologia e cultura,
é preciso definir o conceito de cultura implicado nessa relação. Morales (2003, p.
117) se refere à cultura como tudo aquilo que o ser humano realiza para transformar
o mundo em que vive. Fazer cultura é algo essencial ao ser humano, desde quando
Deus entregou a terra aos homens e mulheres para que cuidassem dela. A cultura
não se manifesta só nos aspectos intelectuais, educativos e artísticos da sociedade,
mas compreende também a técnica, a política, a economia e toda atividade ligada à
capacidade humana de criar. Por isso, o Vaticano II afirma que “é próprio da pessoa
humana necessitar da cultura, isto é, de desenvolver os bens e valores da natureza,
para chegar a uma autêntica e plena realização. Sempre que se trata da vida humana,
natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas” (Gaudium et Spes, 1965, n. 53).
Entre cultura e teologia existe uma relação de reciprocidade. A cultura encontra na
religião e na espiritualidade o seu próprio sentido e a força moral para contribuir com
a formação e o bem-estar das pessoas. Por sua vez, a teologia precisa da cultura para
enriquecer e renovar constantemente a sua reflexão sobre as questões que afetam
os seres humanos de cada tempo. Desde o seu surgimento, o cristianismo sempre
esteve em diálogo com a cultura de cada época e lugar: os Padres da Igreja e os
teólogos escolásticos dialogaram com a cultura filosófica grega e romana; os teólogos
renascentistas (Nicolau de Cusa, Erasmo, Tomás Moro, etc) dialogaram com a cultura
humanística e científica. Houve certa ruptura entre a Igreja e a cultura no período
da Modernidade, quando a cultura europeia procurou emancipar-se da influência do
cristianismo, e o pensamento cristão acabou se fechando em seu próprio recinto. Mas
a partir do século XIX houve uma retomada do diálogo entre teologia e cultura moderna,
com autores como John Henry Newman (1801-1890). E o Vaticano II restabeleceu o
pleno contato entre a Igreja e as culturas (MORALES, 2003, p. 118-121).

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Paulo VI falou sobre a necessidade de evangelizar a cultura “a partir sempre da


pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com
Deus” (Evangelii Nuntiandi, 1975, n. 20). Para ele, o evangelho não se identifica com
a cultura, mas a cultura é o espaço no qual o cristianismo se desenvolve no mundo:

O Evangelho e a evangelização, independentes em relação às culturas,


não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de
as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas. A ruptura
entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época,
como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos
os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura,
ou mais exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas
mediante o impacto da Boa Nova. Mas um tal encontro não virá a
dar-se se a Boa Nova não for proclamada (Evangelii Nuntiandi, 1975,
n. 20).

Também João Paulo II procurou promover um autêntico encontro entre cultura e


fé como dois elementos que contribuem, juntos, para a edificação da cidade terrena.
O papa polonês deu especial destaque para o tema da busca da verdade, como
fundamento da liberdade humana; e a liberdade como condição imprescindível para
haver cultura. Para ele, a verdadeira cultura é capaz de humanizar e garantir a liberdade
integral dos seres humanos, para que realizem plenamente a sua vocação no mundo.
A cultura é o espaço amplo no qual a Igreja se comunica com as pessoas, por isso o
papa João Paulo II criou, em 1982, o Pontifício Conselho para a Cultura, para promover
ainda mais o diálogo entre Evangelho e cultura e para incentivar os cristãos a serem
apóstolos no seu trabalho e na sua atividade no mundo (MORALES, 2003, p. 123-125).

ANOTE ISSO

Provavelmente uma das grandes contribuições de João Paulo II para o diálogo


entre teologia e cultura foi a sua encíclica intitulada Fides et Ratio, de 1998, sobre
a relação entre fé e razão. As palavras iniciais da encíclica se tornaram célebres
e continuam a ressoar como um convite para buscar a verdade através da fé e
da razão: “A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas
quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem
colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última
análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar
também à verdade plena sobre si próprio”.

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A partir destas e de outras contribuições dadas pelo Magistério e pelos teólogos, hoje
se compreende que o cristianismo precisa das culturas para se concretizar no mundo.
Por outro lado, as culturas humanas podem ser enriquecidas pelo Evangelho. Não existe
uma única cultura no mundo. As culturas são plurais, então o cristianismo também
se desenvolve de forma plural, inculturando-se em diferentes ambientes humanos.
Por consequência, a teologia é plural. Mas a pluralidade da teologia não depende
exclusivamente da pluralidade de culturas. Na verdade, o mistério divino é tão rico
que não poderia ser expresso através de um único tipo de pensamento. Sendo assim,
cada forma de pensamento e cada cultura pode refletir um diferente aspecto da única
verdade revelada. Deus se comunica de modos diferentes e por meio de situações
e linguagens diferentes. Esta pluralidade já está presente na Bíblia, que contém leis,
profecias, história, evangelho, cartas, etc. Por isso, a tradição teológica cristã é plural
desde o início. Por exemplo, os cristãos do Oriente desenvolveram mais profundamente
a teologia mística e espiritual, enquanto o Ocidente se concentrou sobre os aspectos
racionais da teologia, além da sua atuação prática (MORALES, 2003, p. 126-127).
A pluralidade teológica, ligada à variedade de culturas no mundo, certamente é
uma riqueza na história do cristianismo, mas é preciso tomar alguns cuidados para
que a pluralidade não se converta em um vale tudo. Por isso, Morales (2003, p. 128)
enumera alguns critérios para avaliar a validade da pluralidade teológica:
• O pluralismo da teologia deve construir-se sobre o reconhecimento do caráter
objetivo e transcendente da fé, a mesma fé professada e transmitida pela Igreja;
• Toda verdadeira teologia nasce e se desenvolve dentro da comunhão e da vida
eclesial;
• O critério fundamental para toda teologia cristã é a Sagrada Escritura;
• A terminologia e o modo como se expressa a fé varia com o tempo, mas os
elementos essenciais da fé (divindade de Cristo, Trindade, salvação, etc.) não
podem ser comprometidos.

Enfim, o diálogo entre teologia e cultura pode trazer benefícios para ambas. A cultura
se torna mais humana quando é alcançada pela teologia; e a teologia se torna mais
rica e plural em seu contato com as culturas. Mas a relação entre cultura e teologia
não implica a identificação de uma com a outra: cada uma mantém a sua própria
identidade e a sua autonomia, pois do contrário não seria um diálogo, mas uma fusão
ou confusão.

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Em síntese, na primeira parte deste capítulo fizemos um breve percurso histórico


sobre a relação entre teologia e ciência, começando com a ciência subordinada à
teologia, passando pelo conflito e ruptura entre estas duas áreas do conhecimento
humano até chegar à relação de paridade e ao diálogo positivo entre ciência e fé na
contemporaneidade. Na segunda parte, falamos sobre a cosmologia desenvolvida
a partir de Einstein, que tem se caracterizado como uma ciência que conhece seus
próprios limites e pode se abrir à transcendência e às contribuições da teologia. E na
última parte, destacamos que o diálogo entre teologia e cultura está presente desde
o surgimento do cristianismo e tem sido incentivado pelo Magistério da Igreja. Enfim,
quando a teologia, a ciência e a cultura se abrem para dialogar entre si, todas crescem
com esta intercomunicação.

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CAPÍTULO 12
FILOSOFIA E TEOLOGIA
(FILOSOFIA DA RELIGIÃO)

Caras alunas e caros alunos, no capítulo precedente começamos a tratar da relação


entre a teologia e outras disciplinas, falando especificamente sobre a sua relação com
a ciência e a cultura. Neste capítulo, vamos falar sobre a filosofia em sua relação com
a teologia. Certamente a filosofia é o âmbito do conhecimento humano que mais se
aproxima da teologia. Por isso, na primeira parte deste capítulo, vamos apresentar os
fundamentos desta relação entre filosofia e teologia, mostrando como esta relação
se deu em alguns períodos da história, e destacando os critérios para que a teologia
adote certa perspectiva filosófica. Na segunda parte deste capítulo, vamos tratar de
um tema correlato: a filosofia da religião. Falaremos especificamente da filosofia da
religião como disciplina acadêmica e acrescentaremos algumas tarefas da filosofia
da religião no mundo ocidental contemporâneo.

12.1 A relação entre Filosofia e Teologia

Todas as ciências podem servir à teologia como instrumentos ou mediações. A


teologia serve-se dos recursos das várias ciências, respeitando a autonomia específica
de cada uma delas. Por um lado, a teologia pode criticar as pretensões pseudo-filosóficas
das ciências a partir da transcendência da fé; por outro lado, ela recebe uma contribuição
crítica das ciências, para purificar e aprofundar a própria razão teológica. Neste sentido,
a ciência humana que mais contribui com a teologia é a filosofia. A teologia utiliza
da filosofia (e demais ciências) a partir de dois critérios básicos: assunção do que é
positivo, isto é, elementos compatíveis com a fé; e rejeição do que é negativo, ou seja,
elementos que não se harmonizam com a fé revelada (BOFF, 1998, p. 67-68).
Visto que a fé é uma resposta humana à proposta divina, ela pressupõe sempre
uma filosofia como postura existencial de buscar um sentido radical à vida. Neste
sentido, a filosofia é intrínseca à fé e tem uma função estrutural na teologia. A teologia
não precisa nem deve incorporar uma filosofia específica como sistema único para a

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sua estruturação. Há uma grande pluralidade de filosofias: algumas podem ser mais
úteis, outras menos. O importante é que a teologia mantenha sempre o espírito ou
postura filosófica. A filosofia contribui especialmente com o seu aspecto de reflexão. De
fato, a razão teológica supõe o trabalho de uma razão filosófica. A filosofia, enquanto
atitude, serve à teologia de três modos: como parceira exigente no diálogo cultural;
como mestra na arte de pensar; e como base para elaborar criticamente o fundo
filosófico das questões teológicas. Enfim, até mesmo para poder dialogar com as
outras ciências, a teologia precisa do preparo filosófico-crítico que lhe garante um
bom nível de cientificidade (BOFF, 1998, p. 68-69).
Um bom trabalho teológico supõe uma filosofia como base ou instrumento intelectual.
A filosofia garante o rigor metodológico da teologia. Todavia, é preciso garantir certo
equilíbrio: a filosofia não pode invadir e desconfigurar a teologia em seus aspectos
pastorais e espirituais. A teologia trata do Mistério divino, que vai além de qualquer
razão filosófica. Ao lado da Sagrada Escritura, a filosofia contribui para criar uma
linguagem precisa na teologia, atendendo as expectativas legítimas da racionalidade
humana (MORALES, 2003, p. 74).
A relação entre teologia e filosofia se estabeleceu, historicamente, desde as origens
da teologia sistemática, com os Padres da Igreja. Por isso, muitos institutos teológicos
ainda exigem o estudo da filosofia como pré-requisito para cursos de teologia. Esta
relação tradicional entre a filosofia e a teologia se deve a algumas razões: elas partilham
alguns temas como o sentido da vida, os valores éticos, as realidades últimas, etc.;
ambas têm um discurso relativamente abstrato; e a filosofia parece ser uma introdução
ideal para a teologia. A relação entre filosofia e teologia é uma questão teológica: a
filosofia normalmente não se pergunta sobre esta relação. Então a resposta depende
do modo como cada teologia olha para a filosofia. Em alguns períodos da história, a
teologia esteve claramente aliada à teologia, em outros momentos preferiu separar-se
(GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 26-27).

12.1.1 Três tipos de relação entre filosofia e teologia

A relação entre filosofia e teologia, ao longo da história, revestiu especialmente


três formatos: oposição, coincidência e convívio ditado por uma hierarquia entre elas.
Vejamos com mais detalhes o significado de cada uma destas possíveis relações.

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Em alguns períodos da história, houve oposição entre filosofia e teologia. Tertuliano


(160-220 d.C) acreditava que a filosofia poderia levar a teologia ao erro. Acontece que
no seu período circulavam algumas doutrinas filosóficas consideradas heréticas pela
Igreja, como o gnosticismo (que negava a encarnação de Cristo) e o marcionismo
(que negava a validade do AT). Os erros na teologia dependeriam desta aproximação
com algumas filosofias, para Tertuliano. No século XX, também Karl Barth rejeitou o
uso da filosofia pela teologia, pois nas gerações anteriores muitos teólogos alemães
haviam produzido sistemas teológicos que se confundiam com a filosofia. Além disso,
Barth pensava que a teologia deveria ser uma disciplina autônoma, sem depender da
filosofia ou de qualquer outra ciência (GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 27-28).
Em outros momentos, aconteceu uma coincidência entre filosofia e teologia.
Para alguns teólogos, visto que a verdade é uma só, então a filosofia e a teologia
dizem a mesma coisa. Tipicamente, estes teólogos tomam a teologia do momento e
mostram como esta coincide com a teologia. Esta foi a postura de Orígenes no século
III em relação ao platonismo. Também Duns Escoto colocou a teologia em relação ao
neoplatonismo. Recentemente, Rudolf Bultmann (1884-1976) fez coincidir a teologia e
o existencialismo, entre outros casos semelhantes (GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 28-29).
A terceira posição consiste em estabelecer uma hierarquia entre filosofia e teologia.
A filosofia é considerada como uma introdução à teologia. Esta é a posição de grandes
teólogos, como Justino Mártir (100-165) e Tomás de Aquino (1225-1274). Em sua
Apologia, Justino afirma que o cristianismo tem o melhor da filosofia antiga. Para ele,
a doutrina do Verbo ou Logos é o elemento comum entre o evangelho e a filosofia
grega. Os filósofos chegaram a certo conhecimento da verdade graças às sementes
do Verbo, ou seja, o mesmo Verbo encarnado (Jesus) revelou alguns aspectos da
verdade aos filósofos, mas a plenitude da revelação acontece somente em Jesus.
Sendo assim, a teologia cristã contém o conhecimento filosófico e vai além deste
conhecimento. Por sua vez, Tomás de Aquino usou a filosofia aristotélica como base
para a sua teologia. Para ele, visto que a verdade é una, não poderia haver contradição
entre filosofia e teologia. A diferença é que a filosofia ascende à verdade por meio da
razão, e a teologia descende até a verdade por meio da Revelação. Deste modo, a
verdade teológica é mais segura que a filosófica (GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 30-31).
Para Tomás de Aquino e outros teólogos escolásticos, a filosofia era “serva” da teologia,
não no sentido de submissão, mas no sentido que a teologia usava os instrumentos
da filosofia sem renunciar à centralidade da Revelação bíblica em suas reflexões.

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Título: Detalhe da obra “A criação de Adão” de Michelangelo, símbolo da relação entre filosofia e religião
Fonte: https://www.estudopratico.com.br/filosofia-da-religiao/

Enfim, a relação entre filosofia e teologia depende da concepção de teologia em


cada período. Se a teologia é concebida como uma explicação da realidade, então ela
coincide com a filosofia, como a filosofia de Hegel, que era um sistema para explicar
toda a realidade, e alguns teólogos a igualaram com a teologia. Se a teologia é uma
apologia, então a filosofia serve como uma ponte para convencer os não crentes a
respeito das verdades da fé. Se a teologia é uma crítica da realidade e da proclamação
da Igreja, então a filosofia se torna um dos muitos elementos do mundo onde a
Igreja vive e proclama a Palavra. Tudo depende de como se compreende a teologia
(GONZALEZ-PEREZ, 2003, p. 31).

12.1.2 Alguns critérios teológicos na adoção de uma filosofia

A relação ideal entre filosofia e teologia é o equilíbrio, sem prejuízo de uma ou de outra
disciplina, mas este equilíbrio nem sempre foi mantido ao longo da história. Em alguns
momentos predominou a filosofia e a dialética, originando teologias racionalistas que
acabaram negando algumas verdades reveladas. Em outros momentos, a ausência da
filosofia fez surgir teologias sem rigor metodológico ou precisão linguística. Por isso, é
importante estabelecer alguns critérios para que a teologia adote de forma correta as
filosofias adequadas. Morales (2003, p. 75-76) enumera alguns critérios importantes:

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Buscar uma atitude filosófica que aceite a existência da Verdade e a capacidade


da razão humana de conhecer esta Verdade e expressá-la mediante a linguagem.
Filosofias que admitem os aspectos religiosos da existência humana e a possibilidade
de doutrinas de fé como objeto de conhecimento, não apenas como fruto de
sentimentos e da subjetividade.
Filosofias realistas, que afirmam o mundo como algo real, não apenas como produto
mental (como acontece no idealismo radical).
Deve ser uma filosofia que reconheça a existência de Deus e a relação entre Deus
e o mundo, ou seja, Deus como criador e diferente das criaturas.
Quanto ao ser humano (homem e mulher), a filosofia adotada deve postular a
unidade entre o espiritual e o somático, isto é, entre corpo e alma: sem negar a
existência da alma e sem desprezar o mundo material e o corpo.

A Igreja nunca estabeleceu uma única filosofia como sendo a base obrigatória para
a teologia. Todas as filosofias que respeitem os princípios básicos acima elencados
podem relacionar-se, de modo frutuoso, com a teologia. Deste modo, haverá um
equilíbrio entre razão e fé, que traz benefícios para ambas.

12.2 Filosofia da Religião

Há uma corrente filosófica específica que pode trazer grandes contribuições para
a teologia e que, de fato, está incluída em alguns currículos de estudos teológicos: a
filosofia da religião. Trata-se de uma filosofia que reflete sobre a religião e as religiões
unicamente a partir da razão. O objeto de estudo é a religião e as condições de sua
possibilidade. A filosofia da religião busca esclarecer a possibilidade e a essência
da religião na existência humana, ou seja, estuda a consciência humana e a sua
autocompreensão a partir do absoluto, enquanto atingível pela inteligência. A filosofia
da religião trata da abertura do homem ao mistério que o envolve, considerando as
duas possíveis respostas humanas: aceitar ou rejeitar este mistério (ZILLES, 1991, p. 5).
Se o objeto de reflexão da filosofia da religião é a própria religião, então precisamos
antes de tudo entender o que é religião. A definição geral de religião é a relação
entre o homem e Deus, entre o humano e o divino. Mas a religião é um fenômeno
humano, não divino; é o modo como o ser humano se coloca diante de Deus. O ser
humano coloca-se em relação a algo maior do que ele mesmo e sente-se desafiado,

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interpelado pelo divino. Por isso, a filosofia da religião não fala apenas do ser humano,
mas também se refere a este ser transcendente, que chamamos de Deus. Todavia, o
discurso religioso contém conceitos que se opõem à filosofia, como a revelação e a
redenção. São realidades provenientes da transcendência, não da razão humana. Neste
ponto, a filosofia da religião concretiza perfeitamente a relação entre filosofia e teologia,
pois precisa estabelecer uma mediação entre conceitos estritamente teológicos e a
razão filosófica (ZILLES, 1991, p. 6-7).

12.2.1 A filosofia da religião como disciplina

Mesmo sem receber o nome de “filosofia da religião”, a filosofia grega, desde a sua
origem, trata também de questões religiosas, pois a questão filosófica sobre Deus era
fundamental na vida dos cidadãos na Grécia Antiga. A filosofia grega, ao descrever o
cosmos, pensou a presença do divino como fundamento originário (Anaximandro), como
ser imutável (Parmênides), como logos enquanto ordem do mundo (Heráclito), como
noús enquanto princípio do movimento (Anaxágora), como causa primeira (Aristóteles),
e assim por diante. Durante a Idade Média, nenhuma filosofia da religião era necessária,
visto que a teologia e a filosofia coincidiam.
Com a ruptura entre teologia e filosofia, durante o iluminismo, surge um discurso
puramente filosófico sobre a religião. Os precursores desta corrente filosófica foram
os idealistas Kant e Hegel; a obra do cardeal Newman; a filosofia dialógica de F. Ebner
e M. Buber; a fenomenologia de E. Husserl e M. Scheler; e a filosofia existencial de
G. Marcel, M. Heidegger e K. Jaspers. A obra de Kant, intitulada A Religião nos Limites
da Simples Razão expressa bem o objetivo da filosofia da religião: entender a religião
apenas através da razão. Todos estes filósofos pensaram Deus a partir do homem,
por isso fizeram filosofia, não teologia (lembremos que a teologia sempre parte da
Revelação), porém uma filosofia voltada especificamente para temas religiosos (ZILLES,
1991, p. 8-9).

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Título: Immanuel Kant, um dos precursores da Filosofia da Religião


Fonte: https://projetophronesis.files.wordpress.com/2010/04/immanuel-kant.jpg?w=584

De fato, o iluminismo criou uma ruptura entre experiência religiosa e atividade


filosófica. Refletir sobre Deus e prestar-lhe culto passaram a ser duas coisas bem
distintas. Assim, criava-se o terreno para o surgimento da filosofia da religião como
disciplina autônoma. Esta passagem aconteceu no século XX, quando a filosofia da
religião começou a ser reconhecida como disciplina autônoma. Sua aparição pode ser
datada nas décadas de 1930 e 1940, sendo desenvolvida inicialmente pelos filósofos
analíticos (ingleses, alemães e americanos) e pelos filósofos da fenomenologia
hermenêutica e dialética (Ricoeur, Derrida; Vattimo, Vaz, Chesterton e outros) (CRUZ,
2012, p. 163-166).
A filosofia da religião não estuda apenas o fenômeno religioso, mas busca esclarecer
o ser e a essência da religião, ou seja, indaga sobre o que é propriamente religião.
Todavia, a filosofia não é religião. A reflexão sobre o Deus que se revela na Bíblia
se chama “teologia”. A reflexão puramente racional sobre Deus se chama “filosofia”.
Existem contatos entre a filosofia da religião e as religiões propriamente ditas, mas
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a filosofia da religião não determina o que é ou não matéria de fé, simplesmente


analisa a religião como objeto de seu estudo. Hegel afirma que a filosofia e a religião
tem um objetivo em comum: encontrar a verdade. Mas a religião exprime a verdade
na forma de representação ou sentimento, enquanto a filosofia a apresenta de forma
conceitual. Além disso, a filosofia da religião não pode estar aliada a nenhuma religião
específica: ela simplesmente busca entender a essência e o sentido da religião na vida
das pessoas. A religião é anterior à filosofia e não depende dela para continuar a ser
religião. No entanto, a reflexão filosófica pode influenciar alguns aspectos da religião,
pois a religião se vê sob o olhar crítico da filosofia (ZILLES, 1991, p. 9-11).

ISTO ESTÁ NA REDE

A filosofia da religião como disciplina é recente, como vimos acima, mas a religião
como tema da filosofia esteve presente ao longo de toda a história da filosofia.
Este artigo da professora de Direito Gisele Leite traz uma breve panorâmica sobre
a história da relação entre filosofia e teologia, até a origem da filosofia da religião
como disciplina:
https://jus.com.br/artigos/86278/consideracoes-preliminares-sobre-a-filosofia-da-
religiao

12.2.2 Tarefas da Filosofia da Religião

A filosofia da religião não deve ser confundida com uma religião filosófica, nem
com filosofia religiosa. Trata-se de indagação filosófica, com método filosófico,
sobre questões religiosas. Mais especificamente: trata-se de uma filosofia capaz de
analisar e criticar corretamente o mundo humano da fé e da religião. Existem filosofias
que explicam o fenômeno religioso, mas não podem ser consideradas “filosofia da
religião”, pois explicam atribuem tal fenômeno a elementos externos: libido, situação
socioeconômica, projeção psicológica, instrumento de alienação, etc. Por outro lado, as
filosofias que estão à serviço da fé também não podem ser chamadas de “filosofia da
religião”, como é o caso da filosofia de Boaventura ou de Tomás de Aquino. A filosofia
da religião deve investigar de forma objetiva o fenômeno religioso tal como este se
apresenta, para chegar a uma definição de Deus como ser supremo, não o Deus de
uma religião específica (ZILLES, 1991, p. 17).

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No mundo Ocidental, marcado pelo iluminismo e pela secularização, a filosofia da


religião tem a função de esclarecer racionalmente a religião. Esta função se desdobra
em três questões fundamentais.
A primeira questão, segundo segundo Zilles (1991, p. 17), consiste em compreender
o abismo entre tradição religiosa e a religião subjetiva, marcada pelas experiências da
intersubjetividade crítica moderna. O iluminismo acabou dissolvendo alguns aspectos
das tradições religiosas ocidentais, como, por exemplo, a aliança entre certos regimes
políticos e instituições religiosas. Por outro lado, purificou o conceito de Deus e
conservou a autêntica tradição da fé. Então, este abismo entre tradição religiosa e
a intersubjetividade moderna pode ser também uma nova oportunidade para que a
religião purifique suas instituições.
A segunda questão ou função da filosofia da religião é estabelecer uma nova relação
entre o cristianismo e as demais religiões. O cristianismo deixou de ser, também no
Ocidente, a religião única e global. O iluminismo reconheceu o direito de todas as
religiões de se autoproclamar religião verdadeira. Não é mais suficiente dizer que
as outras religiões contêm apenas sementes da verdade ou que todos são “cristãos
anônimos” (ver tópico 8.3.4). É preciso estabelecer um diálogo entre iguais, e a filosofia
da religião tem um papel fundamental nesta tarefa.
E a terceira questão tem a ver com entender o lugar e função da religião e das igrejas
no novo mundo político-social. O iluminismo declarou a liberdade de todos como princípio
da ética e da política, de modo que nenhuma instituição religiosa pode ser imposta a
todos os cidadãos. Neste novo contexto de liberdade religiosa, a filosofia da religião
tem a função de facilitar o conhecimento crítico das verdades religiosas (ZILLES,
1991, p. 18-19).
Apesar de todas as críticas da filosofia moderna ao cristianismo e às religiões em
geral, o sentimento religioso e a fé em um ser supremo não diminuíram nos últimos
séculos. Nietzsche chegou a dizer que Deus está morto, mas fato é que Deus continua
sendo invocado pela humanidade, como sempre foi. Algumas formas religiosas foram
superadas, outras surgiram, mas o fenômeno religioso não cessou nem diminuiu. Esta
resistência das religiões é objeto de estudo da filosofia das religiões. Em outras palavras,
a teologia da religião busca explicitar as possibilidades contemporâneas de afirmação
da existência de Deus; a experiência de fé e suas relações com a racionalidade; a
natureza da religião; a análise do fenômeno religioso; as relações entre ética, política e

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religião; a racionalidade das afirmações religiosas; a experiência mística; entre outros


temas atuais (CRUZ, 2012, p. 158-162).
A filosofia trata das experiências humanas. Ora, a religiosidade é uma experiência
autenticamente humana, então a filosofia não pode negligenciar a experiência religiosa
com a pretensão de ser mais racional. Por outro lado, a filosofia precisa aceitar que
a religião, sendo uma experiência suprarracional, vai além dos limites da razão pura.
A filosofia reflete sobre a experiência religiosa das pessoas, porém não é possível
investigar de forma objetiva este tipo de experiência. Para conhecer a experiência
religiosa da humanidade, dependemos do testemunho de fé de pessoas concretas.
Por isso, a filosofia da religião não pode ser comparada com uma ciência empírica. Há
sempre algo de transcendente no objeto da filosofia da religião, mesmo que este objeto
seja limitado à experiência religiosa das pessoas. Enfim, a experiência religiosa é um
desafio paradoxal para a filosofia da religião: ao mesmo tempo, é a melhor maneira
de definir a religião filosoficamente, mas esta definição nunca poderá ser considerada
objetivamente completa e definitiva (CRUZ, 2012, p. 175-179).
Em síntese, vimos na primeira parte deste capítulo que a relação entre filosofia e
teologia existe desde o surgimento da teologia, visto que esta necessita de uma base
filosófica para formular os seus conceitos. Apresentamos as três principais formas
históricas de relação entre filosofia e teologia: oposição, coincidência e sobreposição
hierárquica. E destacamos alguns critérios para a adoção de uma filosofia como base
para a teologia: filosofias que postulam a existência de Deus e da verdade, a experiência
religiosa e a unidade entre corpo e alma, entre outros. Na segunda parte do capítulo,
elaboramos uma breve introdução à filosofia da religião, explicitando antes de tudo
o objeto desta filosofia: a religião, sua essência e as condições de sua possibilidade.
Também falamos sobre o surgimento da filosofia da religião como disciplina autônoma
na história. E identificamos algumas tarefas da filosofia da religião, entre as quais a
principal é esclarecer racionalmente a religião, mostrando a relação entre tradição
religiosa e religiosidade subjetiva, entre cristianismo e demais religiões, e entre religião
e mundo político social. Enfim, a filosofia, a teologia e a religião são esferas autônomas,
mas com profundas relações entre si.

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CAPÍTULO 13
TEOLOGIA E EDUCAÇÃO:
O ENSINO RELIGIOSO

Prezado estudante, tendo em conta tudo o que vimos até aqui, certamente você
percebeu que a teologia não é apenas uma pesquisa ou uma ciência elitista, mas
trata-se de um âmbito do saber que procura criar pontes com a sociedade. O caminho
entre qualquer ciência e a sociedade é a educação. Sendo assim, podemos supor
que existe alguma ligação também entre a teologia e a educação, pois do contrário
deveríamos projetar uma teologia isolada do mundo, sem efeitos sobre as pessoas –
em poucas palavras, uma ciência infrutífera. Mas qual seria a ligação entre teologia
e educação? Para responder a esta pergunta, começaremos com o primeiro passo
do método teológico: analisar o que a Sagrada Escritura fala sobre a educação. Em
segundo lugar, vamos tentar definir qual é a abordagem cristã da educação. O terceiro
passo será mais concreto: trataremos da disciplina presente no sistema educacional
brasileiro que mais se aproxima da teologia, ou seja, o Ensino Religioso. No final, vamos
relacionar estes três temas para entender qual é a relação entre teologia e educação.

13.1 A Educação na Bíblia

Na Bíblia, os Livros Sapienciais são aqueles que mais claramente tratam da educação
dos filhos, especialmente Provérbios, Jó, Eclesiastes (Qohelet), Sirácida e Sabedoria.
Porém, encontramos algumas menções sobre a educação em todas as partes da Bíblia.
O mundo antigo não diferenciava teoria e prática. Em geral, a sabedoria era definida
como habilidade, mais especificamente: conhecimento e habilidades necessárias
para lidar com a vida no mundo. Em hebraico, sabedoria é hôkmah, que indica a
capacidade de bem conduzir a própria vida. Trata-se de conhecimento que orienta
a vida. A sabedoria de Israel reflete sobre problemas que afetam diretamente às
pessoas, como as desigualdades sociais, as injustiças, o tema da morte e de quem
é Deus. As respostas partem das experiências e das observações do sábio, que são
as lições que ele tira para a vida. O sábio israelita é aquele que observa com atenção

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os acontecimentos, interpela a experiência própria e a dos outros para determinar as


leis e os ciclos, cujo conhecimento seja útil para ordenar a vida. Em outras palavras,
procura de estilo ético e de comportamento prático e compreensivo, adequado às
situações nas quais ele e seus seguidores vivem (CAZAVECHIA, 2015, p. 4-8). Sendo
assim, a educação nos tempos bíblicos era necessariamente uma educação prática,
para a vida.

13.1.1 Locais e ocasiões de ensino

Devemos destacar desde o início que a principal entidade educacional na Antiguidade


era a família, que não se restringia aos parentes consanguíneos, mas incluía todos os
que viviam na mesma casa. De fato, haviam três níveis na organização social primitiva,
no AT: a tribo, o clã e a família (Js 7,16-18). O modelo vigente era claramente patriarcal.
Na “casa do pai” vivia o chefe da família, sua mulher, filhos e esposas, netos, servos...
até três gerações podia habitar na mesma casa (Gn 46,8-27). Neste ambiente, a tarefa
educativa cabia especialmente aos pais. O pai tinha a tarefa de ensinar aos filhos
os valores que também ele havia recebido: os mandamentos divinos, as tradições
religiosas e nacionais, etc. Ensinar o temor de Deus era uma das condições para
conservar a posse da terra prometida (Dt 6,7; 11,19; 32,46). Em algumas ocasiões,
o pai exercia o papel de “catequista”, explicando os eventos salvíficos para os filhos:
“E quando vossos filhos vos disserem: ‘Que significa esse rito?’ – respondereis: ‘É o
sacrifício da Páscoa, em honra do Senhor que, ferindo os egípcios, passou por cima
das casas dos israelitas no Egito e preservou nossas casas’” (Ex 12,26-27) (GARMUS,
2005, p. 30-31)
A educação de casa era complementada pela liturgia e os ensinamentos no templo.
Os meninos acompanhavam os pais nas peregrinações aos santuários (1Sm 1,24)
nacionais e, mais tarde, ao templo de Jerusalém (Dt 16,16). Na Festa das Tendas, por
exemplo, fazia-se a leitura pública da Torá para “o povo, homens, mulheres, crianças e
o estrangeiro que habita em tuas cidades, para que, ouvindo essa leitura, aprendam a
temer o Senhor, vosso Deus, e ponham cuidadosamente em prática todas as prescrições
dessa lei” (Dt 31,12). A liturgia, especialmente por meio da oração dos Salmos, era um
meio de ensinar, particularmente quando se recitavam os Salmos que narram a história
da salvação (Sl 78; 105; 107) e exaltam a Torá (Sl 19; 119) (GARMUS, 2005, p. 34).

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Em Israel, no período bíblico, não existiam escolas como aquelas que conhecemos
hoje, mas é provável que existisse um espaço para a instrução nos ofícios e nas artes,
fora da família. Descobertas arqueológicas recentes trouxeram à luz antigas tábuas
de argila contendo exercícios escolares no Egito, na Mesopotâmia e em Israel (pelo
menos no período da diáspora), como é o caso do Calendário de Gezer.

ISTO ESTÁ NA REDE

O Calendário de Gezer é uma inscrição em pedra de calcário, descoberta em


1908 na antiga cidade de Gezer, em Israel. A tabuinha representa uma atividade
de escribas, descrevendo as atividades agrícolas locais, escrita em proto-cananeu,
muito próximo ao antigo fenício. Para saber mais sobre esta interessante
descoberta de um exercício escribal antigo (século X a.C.), acesse este link: https://
reformadoresdasaude.com/conhecimento/index.php?sis=184&per=VC2-E15-P

A principal “escola” era aquela dos levitas, sacerdotes, profetas, sábios e escribas
(1Sm 2,21-26; 2Rs 12,3). Os santuários eram os principais locais para esta forma de
educação: em Silo, Siquém, Betel, Hebron e Jerusalém. A Bíblia apresenta Samuel
como aprendiz do sacerdote Eli em Silo (1Sm 1,21-28); e fala da “Escola palaciana”
de Salomão, seguindo o modelo egípcio (1Rs 9,17; 11,1). Provavelmente, o ensino
mais técnico acontecia no palácio. No templo, a educação era voltada para a leitura,
a escrita, o culto, a música, os calendários e tradições nacionais. Existiam também as
“escolas” dos profetas. Algumas indicações presentes nos livros proféticos nos levam
a concluir que alguns profetas, como Sofonias, Ezequiel, Jeremias e talvez Malaquias,
provavelmente frequentaram a escola da corte. Outros profetas criaram uma “escola”
de discípulos: é o caso de Elias (1Rs 18,13), Eliseu (2Rs 2,1-19) e Isaías, na segunda
e terceira parte de seu livro. No exílio na Babilônia, vemos israelitas destacando-se
nas escolas reais, como (Dn 1,3-5), Sasabassar (Esd 1,8-11), Zorobabel (Esd 2,2),
Neemias (Ne 1,1-11) e Esdras (Esd 7,12-26), que alcançaram grande estima diante
das autoridades babilônias por sua sabedoria (GARMUS, 2005, p. 35-37).
À medida que se desenvolveu, a sinagoga tornou-se um local de instrução. Até
mesmo o ministério de Jesus na sinagoga consistia em “ensinar” (Mt. 4,23). Os jovens
eram treinados na própria sinagoga ou em um espaço adjacente. Em um estágio
posterior, o professor às vezes ensinava em sua própria casa, como é evidenciado pela
expressão aramaica para “escola”, bêt sāpherâ, ou seja, “casa do professor”. Outro local

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usado pelos rabinos eram os pórticos do Templo, e Jesus também fez uso deste espaço
para ensinar (Mt 26,55). No período da Mishnah (70-200 d.C.), rabinos eminentes tinham
suas próprias escolas de ensino superior. Esse recurso provavelmente começou na
época de Hillel e Shammai, os famosos rabinos do século I a.C. Uma escola primária
era chamada bêt has-sepher, “casa do livro”, enquanto o ensino superior acontecia na
bêt midrāsh, “casa de estudo” (PAYNE, 1996, p. 292-293).

13.1.2 Educadores e métodos

Como vimos acima, os primeiros tutores foram os pais, exceto no caso dos filhos
reais (2 Reis 10,1). Após o período de Esdras, surgiu uma nova profissão, a de escriba
(sopher), o professor na sinagoga. Os “sábios” (hākām) parecem ter sido um grupo
diferente dos escribas, mas sua natureza e função exatas são obscuras. No período
do NT, havia três graus de professor: o hākām, o sopher e o hazzān (oficial), em ordem
decrescente. Nicodemos era presumivelmente do mais alto grau, os “mestres da lei”
(Lc 5,17). Idealmente, eles não deveriam ser pagos pelo ensino, mas normalmente
recebiam uma remuneração pelo tempo dedicado aos discípulos (PAYNE, 1996, p. 293).
A educação não era ampla no período inicial. O menino aprenderia a instrução moral
ordinária de sua mãe, e um ofício, geralmente agrícola, além de alguns conhecimentos
religiosos e rituais, de seu pai. As festas religiosas também ensinavam história da nação
(cf. Ex 13,8). Assim, mesmo no período mais antigo, a vida cotidiana e as crenças e
práticas religiosas eram inseparáveis. Essa inseparabilidade continua na sinagoga,
onde as Escrituras se tornaram a única autoridade tanto para a crença quanto para
a conduta diária. A educação, então, era e permaneceu religiosa e ética: “O temor do
Senhor é o princípio do conhecimento, mas os insensatos desprezam a sabedoria e
a disciplina” (Pr 1,7). A educação das meninas estava totalmente nas mãos de suas
mães. Elas aprendiam as artes domésticas e os valores morais; também podiam
aprender a ler para se familiarizar com a Lei. O AT traz alguns exemplos de mulheres
cultas, como a mãe do rei Lemuel que provou ser uma professora preparada para ele
(Pr 31,1) (PAYNE, 1996, p. 293-294).
Quanto à metodologia, o método de ensino em Israel e no Antigo Oriente, em geral,
consistia na exortação, na repetição e nas punições. Na tradição oral, é importante a
memorização, que vem especialmente mediante a repetição. Por isso lemos: “Estejam
no teu coração estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás a teus filhos, delas
falarás quando estiveres sentado em tua casa ou andando a caminho, quando te
deitares ou quando levantares” (Dt 6,6-7). A disciplina era rigorosa, contemplando até
mesmo o castigo físico: “Quem poupa a vara odeia seu filho; quem o ama, castiga-o na
hora precisa” (Pr 13,24). Ou então: “aquele que ama seu filho, castiga-o com frequência,

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para que se alegre com isso mais tarde, e não tenha de bater à porta dos vizinhos.
[...] Aquele que estraga seus filhos com mimos terá que lhes pensar as feridas” (Ecl
30,1.7). E ainda: “Ouvi, filhos meus, a instrução de um pai; sede atentos, para adquirir a
inteligência, porque é sã a doutrina que eu vos dou; não abandoneis o meu ensino” (Pr
4,1-2). Estes e outros exemplos mostram como as punições faziam parte do método
de ensino antigo (GARMUS, 2005, p. 37-39).
No NT, Jesus traz várias inspirações quanto ao método cristão de ensino. Antes
de tudo, ele formou um grupo de discípulos. Na antiguidade, era comum que os
grandes mestres tivessem discípulos, como os profetas Elias e Eliseu no AT, e como
Sócrates no mundo grego. Os discípulos de Jesus não aprendiam apenas ouvindo,
mas sobretudo convivendo com Jesus e vendo o seu exemplo. Em sua metodologia,
Jesus costumava falar em parábolas, ou seja, pequenas histórias ou imagens narradas,
fáceis de memorizar e com fortes lições de vida. Enfim, Jesus tratava de questões
concretas da vida (o amor ao próximo, a reconciliação, o desapego dos bens materiais,
etc) e falava com todos (multidões, ricos, pobres, militares, sacerdotes, mestres da lei,
gente simples, mulheres e homens). Ele ensinava a viver em harmonia com o próximo
e com Deus neste mundo (MORALES, 2015, p. 62-68). Em síntese, a metodologia de
Jesus nos incentiva a ensinar com a vida, além das palavras; a usar uma linguagem
adequada e envolvente; e a ensinar a boa convivência com todos.

Título: Jesus ensinando às pessoas


Fonte: https://christ.org/questions-and-answers/how-did-jesus-teach/

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A partir desta panorâmica sobre a educação na Bíblia e nos tempos bíblicos,


destacamos antes de tudo que a educação era essencialmente religiosa e prática. A
primeira forma de ensino acontecia em casa, com os pais. Narrar os eventos de salvação
era um dos modos de ensinar. A liturgia, o culto e as festas religiosas também eram
momentos importantes de aprendizado religioso. Em seguida, o santuário, depois a
sinagoga e, por fim, a igreja, também se tornaram locais privilegiados para ensinar a
cultura e os valores religiosos. Para os autores bíblicos, a principal fonte de sabedoria,
além da inspiração divina, é a experiência de vida e a capacidade de observar o mundo
ao redor. A partir da observação, eles tratavam de problemas que afetam diretamente
às pessoas, como as desigualdades sociais e as injustiças; temas existenciais, como
a morte, o sentido da vida, a vida após a morte, o sofrimento, etc.; e temas religiosos,
como o temor do Senhor.

13.2 A abordagem cristã da educação

Os termos latinos educare e educere significam literalmente “conduzir para fora”. A


partir da etimologia da palavra “educar”, a educação não deveria apenas ensinar algo
de fora para ser interiorizado, mas sobretudo tirar de dentro do aluno todas as suas
potencialidades para conhecer e aprender. Esta definição se aplica bem para a educação
cristã, fundamentada na Bíblia: não se trata apenas de ensinar um conteúdo, mas
interpretar as experiências da vida dos educandos. Neste sentido, falar em educação
cristã não significa necessariamente falar em doutrinação ou em educação confessional.
Uma educação que busca “humanizar” as pessoas, que incentiva o cuidado com as
obras da criação (meio ambiente), que forma seres humanos éticos e justos – tudo
isso faz parte de uma abordagem cristã da educação (LOPES, 2019, p. 118-120).
É claro que quando falamos especificamente de uma “educação cristã” estamos
nos referindo ao ensino dos textos bíblicos e dos princípios religiosos cristãos. Uma
coisa é o ensino religioso, que trata de todas as religiões, e outra coisa é a educação
cristã, que é mais específica. Outra coisa ainda é a educação teológica: o ensino da
teologia em faculdades ou institutos de educação superior. Porém, quando falamos
em “abordagem cristã da educação” estamos nos referindo às inspirações que a Bíblia
e a teologia podem oferecer para a educação em geral (LOPES, 2019, p. 120-122).
Lopes (2019, p. 124-139) procura delinear a abordagem cristã da educação a partir
dos termos utilizados na Bíblia para tratar do ensino. O primeiro termo importante,

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em grego, é o verbo didasko (ensinar). Na cultura grega, a palavra didasko denotava a


atividade de um professor, cujo objetivo era desenvolver as capacidades do seu aluno. Na
Septuaginta (a bíblia em grego), a palavra didasko é usada no sentido de uma instrução
para a vida, para viver segundo a vontade de Deus (Dt 11,19; 2Sm 22,35). Ensinar era
de responsabilidade de todo o povo: pais, sacerdotes, profetas no AT; apóstolos e
comunidade no NT. Outro termo importante é didáskalos (professor, mestre). Todos
aqueles que ensinavam alguma coisa (técnicas, um ofício, música, leitura, valores morais,
etc.) eram chamados de didáskalos na bíblia e no mundo grego. Jesus também era
chamado de didáskalos porque ensinava a cumprir a vontade de Deus. Temos também
a palavra didaskalía e didachê, que significam “ensino”. O ensino de Jesus e a doutrina
dos apóstolos são chamados de didachê no NT. Estes e outros termos – como katêchêo
(instruir), paradosis (tradição) e paidagogos (educador) – mostram que a educação na
Bíblia era dirigida sobretudo a ensinar a viver e a cumprir a vontade de Deus.
Mas em que sentido a abordagem cristã da educação pode contribuir com a educação
em geral? Algumas características da educação cristã podem ser inspiradoras, neste
sentido. Antes de tudo, a educação cristã visa conduzir as pessoas a usarem as suas
capacidades reflexivas para se relacionarem com Deus, consigo mesmas e com a
natureza. A abordagem cristã da educação leva necessariamente a valorizar todas as
pessoas como “semelhantes” (educação moral); e a cuidar da natureza como se cuida
de um presente de Deus (educação para a preservação do meio ambiente). Também
promove a reconciliação entre as pessoas, colocando no centro o valor do perdão e
do diálogo. Outro aspecto importante da educação cristã é a questão social: edificar
uma sociedade justa, onde todos tenham acesso aos mesmos recursos, pois todos
fomos criados iguais perante a Deus (LOPES, 2019, p. 139-146).
Em poucas palavras, a abordagem cristã da educação nos leva a projetar uma
educação que promova uma boa convivência entre as pessoas, a preservação do meio
ambiente, a reconciliação entre os seres humanos e a justiça social. Neste sentido,
até mesmo a educação civil “não confessional” pode receber válidas contribuições da
abordagem cristã da educação.

13.3 O Ensino Religioso no projeto educacional brasileiro

O Ensino Religioso é uma das dez áreas de conhecimento definidas pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 1998. O

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Ensino Religioso é uma área de conhecimento voltada para a dimensão religiosa do


ser humano, incluindo a inter-relacionalidade, o respeito à diversidade, o conhecimento
do fenômeno religioso e as expressões culturais. O objeto de estudo desta disciplina
é, claramente, o fenômeno religioso, que inclui: a diversidade religiosa, a experiência
de transcendência, os gestos e símbolos sagrados, os textos sagrados e os ritos das
diversas tradições (JUNQUEIRA, 2016, p. 127-130).

Título: Ensino Religioso pela diversidade religiosa


Fonte: https://www.neipies.com/ensino-religioso-no-novo-ensino-medio/

Não é simples delinear o perfil pedagógico do Ensino Religioso, pois este componente
curricular não foi concebido como elemento integrante de uma área maior, como a
educação. A fonte principal para entender o desenvolvimento do Ensino Religioso no
Brasil é a legislação, não as pesquisas educacionais. Normalmente os pesquisadores
associam este componente curricular com as teorias pedagógicas, porque existe certa
proximidade entre estas correntes de estudo. De fato, as concepções de educação,
escola, professor, currículo e outros segmentos acabam interferindo no Ensino Religioso
(JUNQUEIRA, 2016, p. 130-131).
Visto que a fonte principal para o Ensino Religioso no Brasil é a legislação,
vamos partir desta base segura. A Base Nacional Comum Curricular atual prevê o
Ensino Religioso como a quinta área do Ensino Fundamental (depois da Linguagem,
Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas). Os objetivos apresentados
para o Ensino Religioso ajudam a esclarecer a concepção que se tem deste
componente curricular:

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Considerando os marcos normativos e, em conformidade com as


competências gerais estabelecidas no âmbito da BNCC, o Ensino
Religioso deve atender os seguintes objetivos: (a) Proporcionar a
aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos,
a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos
educandos; (b) Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade
de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos
direitos humanos; (c) Desenvolver competências e habilidades que
contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de
vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo
de ideias, de acordo com a Constituição Federal; (d) Contribuir para
que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir
de valores, princípios éticos e da cidadania (BNCC, 2017, p. 438).

Nestes objetivos, fica claro que o Ensino Religioso não é confessional, mas busca
construir um ambiente de diálogo e compreensão em relação às diferentes culturas
e tradições religiosas. A interdisciplinaridade é outra característica fundamental,
enfatizada pelo documento:

O conhecimento religioso, objeto da área de Ensino Religioso, é


produzido no âmbito das diferentes áreas do conhecimento científico
das Ciências Humanas e Sociais, notadamente da(s) Ciência(s)
da(s) Religião(ões). Essas Ciências investigam a manifestação dos
fenômenos religiosos em diferentes culturas e sociedades enquanto
um dos bens simbólicos resultantes da busca humana por respostas
aos enigmas do mundo, da vida e da morte. De modo singular,
complexo e diverso, esses fenômenos alicerçaram distintos sentidos
e significados de vida e diversas ideias de divindade(s), em torno dos
quais se organizaram cosmovisões, linguagens, saberes, crenças,
mitologias, narrativas, textos, símbolos, ritos, doutrinas, tradições,
movimentos, práticas e princípios éticos e morais. Os fenômenos
religiosos em suas múltiplas manifestações são parte integrante do
substrato cultural da humanidade (BNCC, 2017, p. 438).

O Ensino Religioso como componente curricular pode ser definido como parte
integrante na formação básica do cidadão; como conhecimento que subsidia o
educando para a vida; ou como disciplina que conduz para a sensibilidade ao mistério e
à alteridade. O grande problema do Ensino Religioso é a falta de clareza conceitual sobre
alguns temas fundamentais, tais como religião, credo, instituição religiosa, fé, crença,
mito, rito, espiritualidade, devoção popular, sagrado, secularização, etc. Muitos destes
conceitos pertencem à teologia, mas não são compartilhados suficientemente com o
campo do Ensino Religioso nas escolas. A sociedade facilmente desconfigura estes

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conceitos, criando grande confusão no processo de ensino. A partir desta deturpação


conceitual, chega-se rapidamente à intolerância religiosa. Assim, o âmbito do Ensino
Religioso se torna ainda mais desafiador. Ao contrário da educação propriamente
cristã, o Ensino Religioso nas escolas não pode ser confessional. Porém, o propósito
de ambos é o mesmo: formar pessoas civilizadas, humanizar a sociedade, propagar
valores morais válidos para todos, etc. Esta é a grande contribuição do Ensino Religioso
para a educação em geral (JUNQUEIRA, 2016, p. 135-136).
A importância do Ensino Religioso está em evidenciar as contribuições que as
tradições religiosas deram para o processo civilizatório da humanidade, inclusive para
as outras áreas do conhecimento. A dificuldade em concretizar este propósito reside
em nossa herança cultural, que tende a considerar algumas tradições religiosas como
superiores em relação a outras. O Ensino Religioso não pode estabelecer juízos de
valores sobre as religiões, mas deve legitimar cada tradição religiosa, mostrando a
relação entre a religião e a cultura onde ela nasceu. O mundo não tem uma única
cultura, por isso não tem uma única religião. Neste sentido, o Ensino Religioso deve
educar os estudantes para a diversidade e a tolerância religiosa, tornando-os mais
humanos (JUNQUEIRA, 2016, p. 136-137).
O conhecimento religioso é um patrimônio da humanidade e deve estar à disposição
da escola e dos educandos. Este conhecimento ajuda a entender os movimentos
específicos de cada cultura e colabora na construção de uma autêntica cidadania. Para
viver democraticamente em uma sociedade plural, é preciso respeitar as diferentes
culturas e tradições religiosas. Um dos desafios da escola é conhecer e valorizar
cada grupo que compõe a sociedade. O Ensino Religioso pode trazer uma grande
contribuição para realizar este propósito. O educando deverá aprender a conviver com
as diferentes tradições religiosas, vivendo a sua própria cultura, mas respeitando as
expressões culturais diversas. O preconceito é sempre fruto da falta de conhecimento.
Conhecer as religiões e as culturas é a melhor maneira de superar os preconceitos e
promover a tolerância religiosa e o convívio respeitoso com o diferente (JUNQUEIRA,
2016, p. 138-139).
Recapitulando, na primeira parte deste capítulo, destacamos que a educação na
Bíblia e nos tempos bíblicos era essencialmente religiosa e prática: ensinava a louvar
a Deus e a viver bem no mundo. Os pais foram os primeiros educadores, seguidos
pelo templo, a sinagoga e as escolas rabínicas. Na segunda parte, falamos sobre a
abordagem cristã da educação: uma educação que promova uma boa convivência entre

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as pessoas, a preservação do meio ambiente, a reconciliação entre os seres humanos


e a justiça social. E na terceira parte, vimos que o Ensino Religioso trata, claramente,
do fenômeno religioso. Seu principal objetivo é proporcionar o conhecimento das
diferentes tradições religiosas da humanidade, para favorecer o respeito pela diversidade
religiosa. Os valores cultivados por esta disciplina são valores fundamentais em nossa
sociedade: diálogo, respeito, liberdade, pluralismo de ideias, experiência religiosa, etc.
A partir desta breve síntese, percebemos que a educação na Bíblia, a abordagem
cristã da educação e o Ensino Religioso nas escolas têm alguns elementos comuns:
educar para a vida concreta; valorizar a experiência transcendente ou espiritual de
todas as pessoas; e favorecer a boa convivência, o respeito e o amor ao próximo.
Portanto, a relação entre teologia e educação está no fato de que ambas promovem
os valores da harmonia, boa convivência, amor, liberdade, diálogo, respeito, enfim, a
humanização da humanidade.

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CAPÍTULO 14
TEOLOGIA E
DIREITOS HUMANOS

Prezado acadêmico, o título deste capítulo é bastante amplo: teologia e direitos humanos.
A partir deste título, nós poderíamos falar sobre a teologia como fundamento dos direitos
humanos; ou sobre as diferenças entre as proposições teológicas e os direitos humanos;
ou sobre a semelhança entre estes dois campos do saber; ou ainda sobre a relação entre
eles. Bem, na verdade, vamos tratar um pouco sobre cada uma destas questões, dando
maior ênfase aos fundamentos bíblico-teológicos dos direitos humanos na primeira parte;
e sobre a relação entre teologia e direitos humanos na segunda parte. As diferenças e
semelhanças entre estes dois campos do saber aparecerão ao longo de todo o capítulo.

14.1 Fundamentos bíblico-teológicos dos Direitos Humanos

Para que os direitos humanos existam como tais, não é necessário que sejam fundamentados
pela teologia. O ser humano é o fundamento de seus próprios direitos. No entanto, a teologia
se interessa por tudo aquilo que é humano, visto que o caminho para conhecer a verdade
divina é a relação entre Deus e os seres humanos. O ponto mais alto da obra de criação de
Deus é o ser humano. Isso nos faz supor que existem fundamentos bíblicos e teológicos para
os direitos dos seres que coroam a criação de Deus, seres com os quais Deus estabeleceu
uma aliança. Vamos delinear os fundamentos dos direitos humanos primeiramente através
da antropologia teológica; a seguir identificaremos os fundamentos bíblicos; e por fim os
fundamentos propriamente teológicos.

14.1.1 Antropologia cristã

No centro da questão dos direitos humanos temos uma ou mais concepções de ser humano.
Sendo assim, para buscar os fundamentos bíblicos-teológicos dos direitos humanos, o primeiro
passo é visitar a antropologia cristã. Para o cristianismo, o ser humano é o destinatário da
mensagem e da prática do Evangelho. É verdade que a finalidade da religião é prestar um

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culto a Deus, mas quem pode prestar-lhe tal culto é a pessoa humana, chamada à comunhão
com Ele por meio de Jesus Cristo. Até mesmo para falar sobre o projeto salvífico de Deus no
mundo, a teologia cristã deve refletir sobre o ser humano, sua natureza e missão no mundo,
além da sua dimensão escatológica. De fato, para a antropologia cristã, o ser humano foi
criado para alcançar a sua realização na vida terrena e a bem-aventurança na vida eterna
(DIEHL, 2018, p. 126-128).
Para a doutrina cristã, a dignidade do ser humano se apoia sobre dois fatos fundamentais,
segundo Diehl (2018, p. 128-130): a criação do homem e da mulher à imagem e semelhança
de Deus; e a redenção realizada por Jesus, o Filho de Deus que assumiu a natureza
humana, elevando-a à dignidade divina, até o ponto de dar a sua vida para redimir a nossa
humanidade. Estes dois mistérios da fé cristã estão ligados, pois a obra redentora de Cristo
restituiu ao ser humano a perfeita imagem de Deus, que ele havia ofuscado com o pecado.

Título: A Criação do Mundo


Fonte: https://it.m.wikipedia.org/wiki/File:Battistero_di_San_Giovanni_mosaics_n13.jpg

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Sendo assim, o conceito essencial para afirmar teologicamente a dignidade humana


é o imago Dei (imagem de Deus). O documento Comunhão e serviço: a pessoa humana
criada à imagem e semelhança de Deus (2004), da Comissão Teológica Internacional,
coloca no centro este conceito:

O conceito veterotestamentário do ser humano criado à imago Dei


reflete em parte o pensamento do antigo Oriente Próximo, segundo
o qual o rei era a imagem de Deus na terra. A interpretação bíblica é,
porém, diferente, enquanto estende o conceito de imagem de Deus
a todos os seres humanos. A Bíblia se diferencia ulteriormente do
pensamento do Oriente Próximo ao ver o ser humano como dirigido
antes de tudo não para o culto dos deuses, mas para o cultivo da
terra (cf. Gn 2,15). Ligando, por assim dizer, o culto mais diretamente
com o cultivo da terra, a Bíblia compreende que a atividade humana
nos seis dias da semana tem por meta o sábado, dia de bênção e
santificação (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2004, n. 8).

A partir desta afirmação da Comissão Teológica Internacional, entendemos que a


Bíblia relaciona a dignidade do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus,
com o direito ao trabalho e ao repouso, à semelhança de Deus que criou o mundo em
seis dias e no sétimo dia descansou. O segundo aspecto antropológico fundamental
que deriva do conceito de imago Dei é a dimensão relacional do ser humano:

Em segundo lugar, o relato da criação do Gênesis põe em evidência


que o ser humano foi criado não como um ser isolado: “Deus criou
o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea
os criou” (Gn 1,27). Deus colocou os dois primeiros seres humanos
em relação um com o outro, cada um com um parceiro do outro
sexo. Afirma a Bíblia que o ser humano existe em relação com outras
pessoas, com Deus, com o mundo e consigo mesmo. De acordo
com este conceito, o ser humano não é um indivíduo isolado, mas
pessoa: um ser essencialmente relacional (COMISSÃO TEOLÓGICA
INTERNACIONAL, 2004, n. 10).

A dimensão relacional ou comunitária do ser humano não é um acréscimo, mas é


essencial para realizar a semelhança com Deus, pois Ele também é essencialmente
relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo e relação com os seres humanos.
Como dissemos acima, os dois conceitos teológicos principais que fundamentam a
dignidade humana são o imago Dei e a redenção. O documento da Comissão Bíblica
Internacional também trata deste aspecto, destacando que em Jesus o ser humano
realiza a imagem perfeita de Deus:

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Como a imagem perfeita de Deus é o Cristo em pessoa (2Cor 4,4; Cl


1,15; Hb 1,3), o ser humano deve ser a ele conformado (Rm 8,29) para
se tornar filho do Pai através do poder do Espírito Santo (Rm 8,23).
Com efeito, para “tornar-se” imagem de Deus, é indispensável que
o ser humano participe ativamente na sua transformação segundo
o modelo da imagem do Filho (Cl 3,10), que manifesta a própria
identidade através do movimento histórico desde a sua Encarnação
até a Glória. Segundo o modelo traçado em primeiro lugar pelo Filho,
a imagem de Deus em cada pessoa é constituída pelo seu próprio
percurso histórico que parte da criação, passando pela conversão do
pecado, até à salvação e ao seu cumprimento (COMISSÃO TEOLÓGICA
INTERNACIONAL, 2004, n. 12).

Em outras palavras, a imagem de Deus em nós provém da criação, mas foi ofuscada
pelo pecado; esta imagem volta a ser perfeita mediante a redenção realizada por Cristo,
mas com a nossa participação, que consiste na conversão dos pecados para chegar à
salvação plena. Para entender melhor esta ideia, é interessante retomar a teologia de
alguns padres da Igreja do século III d.C. Para Irineu de Lião (130-202 d.C.), na relação entre
criatura humana e Deus há uma distinção entre imagem (aspecto ontológico) e semelhança
(aspecto moral). E para Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.), a imagem de Deus no ser
humano não pode ser destruída, pois depende apenas de Deus; mas a semelhança pode
ser perdida, pois depende da resposta humana também: o pecado ofusca a semelhança
entre nós e Deus, mas não afeta a imagem ontológica de Deus em nós (DIEHL, 2018, p.
130-131).
Outro conceito fundamental da antropologia cristã para fundamentar os direitos
humanos, segundo Diehl (2018, p. 133-135), é a unidade entre a dimensão espiritual e a
corpórea do ser humano. Este princípio foi afirmado enfaticamente pelo Concílio Vaticano II:

O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo,


pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os quais,
por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente
o Criador. Não pode, portanto, desprezar a vida corporal; deve, pelo
contrário, considerar o seu corpo como bom e digno de respeito,
pois foi criado por Deus e há-de ressuscitar no último dia. Todavia,
ferido pelo pecado, o homem experimenta as revoltas do corpo. É,
pois, a própria dignidade humana que exige que o homem glorifique
a Deus no seu corpo, não deixando que este se escravize às más
inclinações do próprio coração. [...] Pela sua interioridade, transcende
o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo que ele alcança
quando reentra no seu interior, onde Deus, que perscruta os corações,
o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte.
Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal, [...] atinge a
verdade profunda das coisas (Gaudium et Spes, 1965, n. 14).

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Se o ser humano é corpo e alma ao mesmo tempo, então ambas as dimensões


lhe devem ser asseguradas na vida em sociedade. Como consequência, faz parte dos
direitos humanos – desde a sua criação como unidade corporal e espiritual – o cuidado
do corpo humano (saúde, alimentação, vestes, etc.) e da espiritualidade (liberdade
religiosa, experiência do transcendente, etc.). Todos estes direitos são, teologicamente,
inalienáveis à pessoa humana, pois procedem da dignidade que Deus lhe deu no próprio
ato da criação. Todo ser humano, desde a sua concepção até a sua morte natural,
goza de sua dignidade como imagem de Deus, independente de suas capacidades
físicas ou intelectuais e independente de seus atos.

14.1.2 Fundamentos Bíblicos

O conceito de “direitos humanos” é recente na história. Portanto, não vamos encontrar


na Bíblia uma sistematização dos direitos humanos, mas podemos identificar algumas
enunciações de direitos atribuídos por Deus aos seres humanos, os quais contrariam
as concepções da antiguidade.
Antes de tudo, na Bíblia, a fonte de todo direito e toda justiça não são os acordos
entre os homens, mas Deus, o Criador do Universo. Em primeiro lugar, para o livro da
Gênesis, o senhorio do ser humano sobre as obras da Criação foi concedido por Deus
(Gn 1,26-30), não conquistado pelos homens; e o objetivo deste domínio permitido
aos homens era garantir o cuidado da natureza. Em segundo lugar, as leis presentes
na Torah (Pentateuco) atribuem a Deus o caráter de legislador. Algumas normas são
específicas para o povo hebreu, outras podem ser aplicadas a todos os povos. A
Lei mosaica foi redigida na forma de deveres, não direitos, seguindo o mesmo tom
das leis dos outros povos antigos. No entanto, estas normas acabaram conferindo
implicitamente alguns direitos ao ser humano, entre os quais Diehl (2018, p.135-136)
elenca estes:
• Direito ao repouso (Ex 20,8-11; Dt 5,12-15): a obrigação de cessar o trabalho no
sábado traz em si a ideia de um direito ao repouso semanal, uma concepção
ausente nas legislações dos povos vizinhos a Israel.
• Proteção à família e ao casamento (Ex 20,12.14.17; Dt 5,16.18.21): a obrigação
de honrar pai e mãe e a proibição do adultério supõem o reconhecimento da
importância da instituição familiar como fundamento da sociedade humana.

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• Direito à vida (Ex 20,13; Dt 5,17): o mandamento de não matar lembra que a
vida humana é um dom protegido por Deus.
• Direito à honra (Ex 20,16; Dt 5,20): a proibição de levantar falso testemunho
aponta para o direito da pessoa humana à honra e à boa reputação.
• Direito à propriedade (Ex 20,15.17; Dt 5,19.21): ao desautorizar a cobiça e o
roubo, a Lei de Deus está protegendo os bens e as posses de cada pessoa.

É claro que a Lei mosaica também inclui elementos que não estão de acordo com
os direitos humanos reconhecidos na modernidade, como a pena de morte para vários
delitos, mas neste ponto tratava-se de uma lei semelhante às demais leis do Oriente
Antigo. Aqui estamos destacando os detalhes da Lei bíblica que a diferenciam das
outras normas da época, pois nestes detalhes se encontram alguns fundamentos
dos direitos humanos em geral. Por exemplo, a Lei mosaica apresenta uma inédita
preocupação em defender os pobres, os fracos e os explorados: os direitos das viúvas,
dos órfãos e dos estrangeiros (Ex 22,20-23); a proibição de cobrar dívidas dos mais
pobres até o ponto de deixá-los sem comida e roupas (Ex 22,24-26). Estas e outras
normas em defesa do direito dos mais pobres e indefesos eram dirigidas ao povo
de Israel, mas a Bíblia as concebe como sendo universais: de fato, quando os povos
violam esses direitos fundamentais, Deus os castiga (cf. Am 1-2) como se estes povos
também fossem regidos por tais princípios morais . (DIEHL, 2018, p. 137-139).
Lendo estes mandamentos à luz da literatura profética dos séculos VIII e VII a.C.,
compreendemos que estes direitos defendidos pela Torah eram frequentemente violados.
Os profetas Amós, Oseias, Jeremias, Isaías e Miquéias denunciavam fortemente os
ricos, latifundiários, proprietários, governantes que enriqueceram explorando os pobres
e humildes. As duras palavras de Amós dão o tom destas denúncias: “vendem o
justo por dinheiro e o indigente por um par de sandálias” (Am 2,6). Oseias fala de um
processo de Deus contra os habitantes da terra, pois só existe “perjúrio e mentira,
assassinato e roubo, adultério e violência, e o sangue derramado soma-se ao sangue
derramado” (Os 4,2). A ligação entre os mandamentos e a preservação da liberdade
e da justiça no meio do povo fica evidente na frase de abertura do decálogo: “Eu sou
Iahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2).
Neste sentido, os mandamentos são a garantia do direito à liberdade para todo o povo
(SOARES, 2012, p. 209-212).

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No NT, Jesus não aboliu a Torah, mas deu-lhe pleno cumprimento, elevando o direito
dos mais pobres a um nível ainda maior. Eis alguns elementos dos direitos humanos
presentes nos evangelhos:
• Identificação de Jesus com os que padecem necessidades e injustiças: o modo
como nos comportamos em relação aos menos favorecidos da sociedade se
torna o critério fundamental para entrar ou não no Reino dos Céus (Mt 25,31-46).
• Exortação para a prática da caridade e da justiça para com o próximo (Lc 10,30-
37).
• A não distinção de pessoas por causa de sexo, etnia ou posição social (Mt 8,5-
13; 11,19; 15,21-28; Lc 5,29-32; etc.).
• O mandamento aos apóstolos para que sejam servidores, não dominadores (Mt
20,24-28; Mc 10,41-45; Lc 22,24-30; Jo 13,12-17).

Além destes episódios, temos outras indicações importantes quanto aos direitos das
pessoas ao longo dos evangelhos. Por exemplo, a crítica de Jesus ao legalismo dos
fariseus quanto ao sábado (Mt 12,1-14; Mc 2,23-28; Lc 6,1-5) mostra que, para Jesus,
as leis foram feitas para os homens, não o contrário; e estas leis devem sempre prezar
pela vida. Nos escritos paulinos, encontramos a defesa da igualdade entre judeus e
gentios (pagãos), bem como a ideia de que em Cristo desaparecem as diferenças de
sexo, condição social, etnia e outras (Rm 10,12; Gl 3,28). A carta de Tiago condena
o tratamento desigual entre pobres e ricos na comunidade cristã (Tg 1,9-11; 2,1-13).
E as cartas de João enfatizam que o amor a Deus está estritamente ligado ao amor
ao próximo (1Jo 4,7-21). Enfim, o NT não fala especificamente em direitos dos seres
humanos, mas traz várias novidades para a época em que foi escrito, mostrando como
Deus se coloca sempre ao lado dos menos favorecidos (DIEHL, 2018, p. 139-141).

14.1.3 Fundamentos Teológicos

A reflexão teológica sobre o ser humano, seus direitos e deveres morais, começou
com os Padres da Igreja (ver capítulo 5 deste e-book). Para eles, assim como os judeus
foram preparados para a vinda de Cristo por meio da Revelação bíblica, assim também
os pagãos foram preparados por meio da filosofia. Os filósofos gregos, especialmente
os estóicos, diziam que a lei moral está implícita na natureza e que os homens podem
ter acesso a elas por meio da razão. Os Padres da Igreja retomaram esta filosofia

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das leis naturais, defendendo que Deus havia colocado tais leis na natureza. Sendo
assim, os pagãos também possuíam uma concepção moral positiva, que não se opõe
à moral bíblica. Como consequência, os Padres da Igreja afirmam a existência de
princípios morais válidos para toda a humanidade, fundados em Deus: direito à vida,
à propriedade, à família, etc. (DIEHL, 2018, p. 142-144).
Além das leis naturais, os Padres da Igreja denunciavam as situações que geram
privação dos meios necessários para a sobrevivência das pessoas. Para eles, não
era aceitável que em uma sociedade cristã alguns acumulassem grandes riquezas,
enquanto a maioria não tinha o necessário para viver. Porém, a solução não estaria na
criação de leis civis, para os Padres da Igreja, mas na atuação consciente dos cristãos,
que deveriam dar exemplo de comportamento aos pagãos. Na Idade Média, a teologia
escolástica desenvolveu ulteriormente a teoria de uma lei natural, entendida como
uma participação da criatura humana na lei divina. Os escolásticos diferenciavam
a Lei de Deus (que se encontra na Bíblia), a lei natural (princípios morais que Deus
inscreveu no coração do homem e que podem ser alcançados pela razão) e lei civil
(definidas pelas sociedades). Neste sentido, por mais que cada sociedade tenha suas
leis próprias, todas compartilhariam aqueles princípios que dependem da lei natural
(DIEHL, 2018, p. 144-145).
Na Era Moderna, a teologia foi desafiada pela descoberta do Novo Mundo, com
povos completamente alheios aos costumes europeus (América Latina e África). Os
direitos reconhecidos aos europeus não se estenderam aos povos colonizados, levando
a uma exploração desumana destes povos por parte dos colonizadores europeus.
Diante disso, a Escola de Salamanca formulou a ideia do ius gentium, o “direito das
gentes”, postulando direitos que fossem comuns a todos os povos, independentemente
de sua adesão ou não à fé cristã. Os pensadores de Salamanca, partindo da teologia
de Tomás de Aquino, defenderam que o domínio da terra é um direito natural, não
eclesiástico, de modo que os indígenas das Américas deveriam ser reconhecidos
como senhores de duas terras e de seus bens (DIEHL, 2018, p. 146).
Até o início do século XX, a teologia católica usou a teoria sobre a lei natural
para fundamentar os direitos do ser humano, além da noção escolástica de uma lei
inscrita por Deus no coração humano, acessível por meio da razão. Porém, ao longo
do século XX, o diálogo entre a teologia e a filosofia personalista trouxe um novo
embasamento teórico para os direitos humanos. A Comissão Teológica Internacional,
em seu documento intitulado Dignidade e Direitos da Pessoa Humana (1983), afirma que

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o personalismo comunitário supera o naturalismo materialista e o existencialismo ateu,


pois considera o homem como um ser comunitário com abertura à transcendência.
Para a filosofia personalista, todo ser humano é sujeito de direitos e deveres, em
sua dimensão relacional. A partir desta noção personalista, a teologia afirma que os
direitos humanos têm o seu fundamento em Deus, pois Deus criou os seres humanos
para se relacionarem entre si. A dignidade de cada ser humano provém do fato que
cada um foi criado por Deus e redimido por Jesus, sem distinção de pessoas (DIEHL,
2018, p. 147-148).

14.2 Relação entre Teologia e Direitos Humanos

A história dos últimos séculos mostrou que, na realidade, os direitos humanos não
são verdades axiomáticas e nem verdades absolutas, ou seja, não são leis naturais: as
inúmeras atrocidades cometidas por seres humanos em plena consciência mostraram
que sem uma lei civil não há garantias de que os direitos humanos sejam respeitados
– basta lembrar dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
O reconhecimento dos direitos humanos é fruto de um processo histórico e é uma
construção da comunidade política. Ao ler este processo histórico à luz da fé, muitos
teólogos enxergam os direitos humanos como “sinais dos tempos”, pois mostram a
grandeza e o potencial dos seres humanos (OLIVEIRA, 2013, p. 150-153).

Título: Campo de Concentração em Auschwitz


Fonte: https://www.bbc.com/news/world-europe-50743973

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ISTO ESTÁ NA REDE

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco histórico na defesa


dos direitos fundamentais. A declaração foi elaborada por representantes de
diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, e foi
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de
dezembro de 1948, como norma comum para todos os povos e nações. Para
conhecer melhor esta importante Declaração, acesse este link: https://www.unicef.
org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

O aspecto dos direitos humanos que mais interessa à teologia é a liberdade religiosa.
No contexto dos direitos humanos, Moltmann afirma que a liberdade religiosa é o
conceito político para aquilo que chamamos de religião. Somente onde há liberdade
religiosa é que as religiões podem realmente se manifestarem, e inclusive quem não
tem religião pode se manifestar. A teologia reflete sobre os direitos humanos, não
como fundadora de seu discurso, mas como parte da pluralidade humana. Visto que
a teologia carrega memórias e esperanças edificadas na ação de Deus no mundo,
ela não pode compactuar com a violência ou qualquer ação de negação da vida.
Muitas ideias são compartilhadas pela tradição teológica e pelos direitos humanos,
como vimos acima. O desafio para a teologia é encontrar um modo de levar a sua
contribuição positiva também para aqueles que não compartilham a mesma fé cristã;
é motivar a responsabilidade pelo cuidado do mundo sem se tornar ideologia; é propor
um modelo de fraternidade para a sociedade, evitando a omissão diante da violência
(OLIVEIRA, 2013, p. 154-156).
A teologia não pode ser indiferente, mas precisa ser comprometida com a realidade
concreta das pessoas, como faziam os profetas no AT, Jesus e os apóstolos no NT,
os Padres da Igreja na época deles, e assim por diante. Os profetas denunciavam as
injustiças sociais e anunciavam a esperança e a possibilidade de mudança de rumo
para o povo. É isso que a teologia deve continuar fazendo. Neste sentido, a teologia
é um saber conjugado com os direitos humanos. Os direitos humanos podem ser
entendidos como um compromisso teológico, no horizonte profético de uma relação
de Deus com o mundo. Não o deus dos discursos abstratos, mas o Deus que se
apresenta no rosto das pessoas que sofrem com o racismo, com o sexismo, com o
etnocentrismo, com a miséria e com todo o tipo de segregação e violência. Se a teologia
por si só não consegue falar com todas as pessoas, os direitos humanos podem ser

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vistos como uma extensão pública da teologia, pois são capazes de mobilizar as
pessoas para a responsabilidade comum. Mas não basta mudar a mentalidade de
algumas pessoas. Para que as conquistas relacionadas aos direitos humanos sejam
permanentes, é preciso que se tornem leis comuns para toda a humanidade (OLIVEIRA,
2013, p. 156-158).
Além dos inegáveis pontos de acordo entre teologia e direitos humanos, ainda há
muita estrada a ser percorrida para alcançar uma boa relação entre teologia/religião
e direitos humanos na sociedade atual. Hoje vemos radicalismos e fundamentalismos
religiosos que atrapalham o diálogo entre teologia e direitos humanos: igrejas que
renunciam seu caráter profético para se aliarem à política; a intolerância e a demonização
de algumas religiões; a resistência em aceitar os novos modelos de família; preconceito
de gênero; a questão do aborto, que divide opiniões; etc. Como ponto de partida, é
preciso buscar uma nova compreensão do papel da religião na sociedade: a religião
não deve se ausentar do debate público, mas não precisa se impor. Em uma sociedade
plural, cada religião/teologia pode dar a sua contribuição, mas não pode pretender ser
a única. Quando uma única verdade tenta se impor, o resultado é a violência, e isso é o
contrário do princípio da liberdade religiosa. O engajamento com os direitos humanos
é um bom espaço de ação para a teologia no mundo, para promover o bem comum,
a justiça, a tolerância, a luta contra a desigualdade e contra todo tipo de violência.
Neste intuito, a teologia deve dialogar com outras áreas e grupos que também lutam
pelos direitos humanos; e deve dar voz para aqueles que têm seus direitos negados
(OLIVEIRA, 2013, p. 158-160).
Em síntese, na primeira parte deste capítulo tratamos dos fundamentos bíblico-
teológicos dos direitos humanos. O primeiro bloco de fundamentação teológica está
ligado à antropologia cristã: o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus; e
a unidade entre a dimensão espiritual e corpórea. Os fundamentos bíblicos encontram-
se, sobretudo, nos mandamentos de Deus em vista da liberdade e da justiça. E os
fundamentos teológicos podem ser encontrados no conceito patrístico e escolástico de
“direito natural”; ou no conceito moderno de “direito das gentes”; ou ainda na filosofia/
teologia personalista que define o ser humano como relacional. Na segunda parte,
falamos especificamente sobre a relação entre teologia e direitos humanos, observando
que existem muitas semelhanças entre as asserções destas duas áreas do saber, mas
também existem diferenças. A liberdade religiosa é o conceito central para relacionar
teologia e direitos humanos. E o engajamento pelos direitos humanos é um bom
campo de ação para a teologia no mundo de hoje.
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CAPÍTULO 15
TEOLOGIA E SOCIEDADE
(TEOLOGIA SOCIAL)

Caros alunos e alunas, chegamos ao último capítulo do nosso e-book e, para completar
a apresentação das relações entre teologia e outras áreas do saber, vamos falar sobre a
relação entre teologia e sociologia. Alguns autores chamam esta abordagem sociológica
da teologia de “teologia social”, mas esta não é uma nomenclatura muito utilizada.
Todavia, a ligação entre a teologia e a sociedade em geral, essa sim é notada pela
maioria dos autores, porque a teologia tem uma dimensão prática inegável, como
vimos no capítulo 2. Por isso, vamos começar este capítulo tratando da relação entre
teologia e sociedade. Depois vamos apresentar brevemente a doutrina social da Igreja.
E na terceira parte, vamos destacar um dos conceitos centrais da teologia social: a
diaconia, pois a teologia é também um serviço à humanidade.

15.1 Relação entre Teologia e Sociedade

O significado dos conceitos de cada disciplina dependem do chão histórico no qual se


apoiam. Isso não é diferente com a teologia. Não existe uma teologia etérea, no vácuo.
Toda teologia nasce em um determinado contexto histórico-social. Inclusive a Revelação
bíblica aconteceu em contextos sociais e históricos específicos. A nossa compreensão
de Deus depende, em parte, da nossa realidade histórico-social. O objeto primário da
teologia é Deus, e Ele é eterno, porém Ele se revela no tempo, na história humana, na
vida de sociedades concretas. Por isso, não é possível criar uma teologia desenraizada,
indiferente em relação à sociedade. A reflexão teológica deve considerar as provações
e as aspirações de um povo em particular, em um contexto social definido, ou então
viverá em um monólogo que nada produz. O teólogo é uma agente social, situado
em algum lugar social, usando a linguagem de determinada sociedade, respondendo
a perguntas colocadas por uma comunidade humana (FERRARO, 2012, p. 70-73).
A fé em Deus nasce e é vivida em um contexto sócio-histórico, pois o sujeito de fé
são homens e mulheres concretos, que vivem em uma sociedade. A fé busca iluminar

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a mente para encontrar soluções para as necessidades e conflitos que atingem o


ser humano. A teologia tem o seu fundamento na fé, por isso ela tem como função
primordial traduzir a Revelação em novos contextos, tornando-se, assim, um elemento
de compreensão e solução dos problemas que surgem na história humana. Os profetas
se comprometeram em defender o direito dos pobres e dos explorados de seu tempo;
Jesus se colocou ao lado dos oprimidos e humilhados no seu ambiente concreto:
portanto, a teologia não pode se esquivar de seu compromisso de libertação na
sociedade (FERRARO, 2012, p. 74).
A ligação entre teologia e sociedade provoca transformações na teologia e na
sociedade. Começamos evidenciando como o compromisso social produz um novo modo
de viver, transmitir e celebrar a fé. Diante dos problemas sociais (desigualdade, pobreza,
exclusão, etc.), a fé em Deus ultrapassa as impossibilidades históricas e motiva a
esperança. Quando alguém lê o presente histórico à luz da Revelação bíblica, percebe
que Deus é capaz de salvar o seu povo de toda e qualquer situação de opressão.
A fé se concretiza na história e faz nascer uma nova esperança. O novo modo de
viver a fé consiste justamente em partilhar “as alegrias e esperanças, as tristezas e
angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que
sofrem” (Gaudium et Spes, 1965, n.1). O compromisso histórico pela construção de uma
sociedade mais justa é a mais eloquente forma de evangelização. O exemplo deixado
por Jesus nos leva a buscar uma sociedade baseada na fraternidade, na partilha, na
solidariedade, na igualdade, no respeito e no amor. Anunciar um Deus abstrato não tem
efeito na vida das pessoas, mas os cristãos devem anunciar o Deus que se encarna
na nossa realidade social e a transforma, tal como Ele se revelou na Bíblia e se revela
na atualidade (FERRARO, 2012, p. 75-78).
Em segundo lugar, esta ligação entre teologia e sociedade também leva à construção
de um novo projeto social. Trata-se do compromisso da teologia de traduzir a Revelação
em soluções para os problemas humanos. “A fé ilumina todas as coisas com uma luz
nova, e faz conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa
forma, orienta o espírito para soluções plenamente humanas” (Gaudium et Spes, 1965,
n. 11). A contribuição dos cristãos na construção de um novo projeto social deve partir
de uma leitura da Bíblia a partir do ponto de vista dos menos favorecidos: os pobres,
as mulheres, os indígenas e os afrodescendentes, os idosos e os jovens, etc. Este tipo
de leitura vai transformando aos poucos a sociedade, a partir do compromisso dos
cristãos, pois há uma estreita relação entre o modo como compreendemos Deus (um

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Deus libertador ou um Deus opressor) e a ordem social que criamos. Para transformar
a sociedade, precisamos primeiro purificar a nossa fé e a nossa concepção de Deus,
a partir de uma hermenêutica histórico-social da Bíblia e das verdades teológicas
(FERRARO, 2012, p. 79-81).

15.2 A Doutrina Social da Igreja

A doutrina social da Igreja católica foi apresentada de forma sistemática no


Compêndio da Doutrina Social da Igreja, do Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, em 2004.
A abordagem do Compêndio segue a metodologia teológica consolidada, buscando os
fundamentos da doutrina social da Igreja na Sagrada Escritura e na Tradição, além
das inúmeras referências ao Magistério, especialmente a encíclica Rerum Novarum
(1891), do papa Leão XIII.

ISTO ESTÁ NA REDE

A encíclica Rerum Novarum foi um divisor de águas na história da doutrina social da


Igreja. Foi o primeiro documento pontifício dedicado à questão das condições das
classes trabalhadoras. A encíclica critica a falta de princípios éticos e valores morais
na sociedade de seu tempo, causando sérios problemas sociais. Para responder a
este problema, o documento propõe alguns princípios que deveriam guiar a justiça
na vida social, econômica e industrial, como a justa distribuição de riqueza, a
intervenção do Estado na economia a favor dos mais pobres, a caridade para com
a classe operária, etc. Para saber mais sobre esta encíclica e a sua importância e
influência na definição dos Direitos trabalhistas modernos, veja este interessante
artigo de Wander Pereira e Nádia Carrer de Ruman de Bortoli: https://jus.com.br/
artigos/29884/uma-analise-da-rerum-novarum-e-suas-influencias-no-direito-do-
trabalho

Um dos conceitos centrais do Compêndio é a justiça social: “A justiça social,


exigência conexa com a questão social, que hoje se manifesta em uma dimensão
mundial, diz respeito aos aspectos sociais, políticos e econômicos e, sobretudo, à
dimensão estrutural dos problemas e das respectivas soluções” (Compêndio da Doutrina
Social da Igreja, 2004, n. 201). A justiça social coloca no centro a pessoa humana, sua
dignidade e seus direitos, indo além dos critérios da utilidade e do valor econômico,

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que a sociedade capitalista tantas vezes considera como primordial. Na perspectiva


cristã, os valores que constroem a justiça social são o amor e a solidariedade. Sendo
assim, para se chegar a uma sociedade justa, o primeiro passo é o respeito pela
dignidade da pessoa humana. O fim último da sociedade é o ser humano, por isso
toda instrumentalização da pessoa humana, visando o lucro e o poder, é socialmente
injusta. O caráter transcendente do ser humano que se relaciona com Deus e participa
do seu projeto salvífico é uma garantia da sua dignidade inviolável (WANDERLEY,
2012, p. 159-161).

Título: Desigualdade e Justiça social


Fonte: https://formacao.cancaonova.com/igreja/doutrina/doutrina-social-da-igreja-nao-e-ideologia/

O Compêndio também destaca a concepção do ser humano como um ser social:

A pessoa é constitutivamente um ser social, porque assim a quis


Deus que a criou. A natureza do homem se patenteia, destarte, como
natureza de um ser que responde às próprias necessidades a base
de uma subjetividade relacional, ou seja, à maneira de um ser livre
e responsável, que reconhece a necessidade de integrar-se e de
colaborar com os próprios semelhantes e é capaz de comunhão com
eles na ordem do conhecimento e do amor (Compêndio da Doutrina
Social da Igreja, 2004, n. 149).

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Sendo assim, é necessário supor uma integração entre indivíduo e sociedade, não
uma oposição. A ideia de uma subjetividade relacional leva a esta integração, pois
pensa o ser humano como alguém voltado para a colaboração e a comunhão com os
seus semelhantes. Quando falta esta colaboração e comunhão, surgem as injustiças
sociais e a violência. Neste momento, a doutrina social da Igreja se coloca ao lado dos
injustiçados, violados, pobres, humilhados, defendendo os seus direitos e denunciando
o pecado social. Todavia, a doutrina social não pode apenas intervir nos momentos
dramáticos, mas deve também projetar e propor uma sociedade mais justa, com
responsabilidades econômicas, políticas e administrativas. Todos os cristãos, não
apenas os líderes religiosos, devem assumir este compromisso social permanente
(WANDERLEY, 2012, p. 161).
Além dos fundamentos bíblicos e teológicos, a doutrina social da Igreja se constitui
também a partir das contribuições das ciências sociais e humanas. Trata-se de uma
doutrina interdisciplinar, aberta às ciências e às problemáticas da atualidade, sem
renunciar à fé. Por outro lado, as ciências humanas e sociais também podem buscar
inspiração na abordagem da doutrina social da Igreja. A colaboração é mútua. Deste
modo, os cristãos poderão realmente evangelizar o social, ou seja, “fazer ressoar
a palavra libertadora do Evangelho no complexo mundo da produção, do trabalho,
do empresariado, das finanças, do comércio, da política, do direito, da cultura, das
comunicações sociais, em que vive o homem” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
2004, n. 70).
A doutrina social da Igreja afirma que todos são responsáveis pelo bem comum,
e cada um deve buscar o bem do outro como se fosse próprio. Já em 1931, Pio XI
ensinava, na encíclica Quadragesimo Anno (n. 167), que os bens da criação devem ser
repartidos tendo em vista a justiça social e o bem comum, contudo não é o que se
observa na sociedade, onde um número pequeno de ultra-ricos concentra grandes
rendas, enquanto um grande número de pobres tem o mínimo para viver. Não só
os indivíduos devem buscar o bem comum, mas o Estado também tem o dever de
garantir a coesão, a unidade e a organização da sociedade civil. Para o cristianismo,
o conceito de “bem comum” inclui os bens materiais necessários para se viver bem,
mas inclui também os bens espirituais, a transcendência, a salvação realizada por
Cristo Jesus (WANDERLEY, 2012, p. 162-165).
É necessário buscar a destinação universal dos bens da criação. Os direitos civis,
como o direito de propriedade e o livre comércio, estão subordinados à destinação

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universal dos bens, que é considerado um direito natural: “A destinação universal dos
bens comporta um esforço comum que mira obter [...] para todos os povos as condições
necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para
a promoção de um mundo mais humano” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
2004, n. 175). Enfim, a destinação universal dos bens não é simplesmente um gesto
de caridade, é uma obrigação da justiça social.
Um tópico importante da doutrina social, que nem sempre é bem compreendido, diz
respeito ao conceito de caridade. Ao contrário do que muitos pensam, caridade não é
sinônimo de assistencialismo. Para a doutrina social, a caridade supõe e transcende
a justiça, a qual deve ser completada pela caridade. A caridade conduz os homens e
os povos a viverem na unidade, na fraternidade e na paz:

A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça,


por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento
de si própria, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o
amor plasmar a vida humana nas suas várias dimensões” (Compêndio
da Doutrina Social da Igreja, 2004, n. 206).

De fato, a justiça costuma ser imposta de fora ou de cima, enquanto a caridade


transforma por dentro: só esse tipo de transformação do ser humano pode ser
duradoura, a transformação interior. Não estamos falando de uma caridade individual,
simplesmente, mas de uma caridade social e política, ou seja, voltada para a vida em
sociedade, que se concretiza em ações pelo bem comum, que cria comunhão. Se o
ser humano se deixar transformar pela caridade, então se construirá a “civilização
do amor”, onde todos poderão viver de forma plena (WANDERLEY, 2012, p. 165-166).

15.3 O conceito de diaconia na Teologia Social

O termo grego diakonia é usado cerca de cem vezes no NT e significa “serviço”,


mais especificamente, “serviço ao próximo” ou “serviço à mesa”. O termo diakonos é
aplicado aos servos domésticos e governantes (Rm 13,4, aos discípulos de Jesus
(Mt 23,11), aos pregadores da Palavra (1Cor 3,5; Ef 6,21) e aos homens e mulheres
que servem a Deus (Lc 10,40; Rm 16,1). Todos os cristãos são chamados a servir
uns aos outros (1Pd 4,10). A diaconia significa cuidar, comprometer-se com o outro,
acolher, promover o bem-estar. Trata-se de um serviço que cria vínculos com os irmãos,
formando comunidade (PEZZINI, 2016, 27-28).

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A diaconia e a missão são inseparáveis na Igreja. Por exemplo, a missão de Jesus é


o serviço, que se concretiza em gestos concretos, mas tem seu ápice na sua entrega
pela salvação da humanidade. Antes de subir ao céu, Ele confiou a missão/diaconia
de anunciar o evangelho a todos os cristãos: “Ide por todo o mundo, proclamai o
evangelho a toda criatura” (Mc 16,15). Exercer a diaconia significa abraçar a própria
missão na Igreja, sendo motivado pela fé em Cristo. Mas não é servir apenas na Igreja:
a nossa diaconia é dirigida a todas as pessoas, ao vizinho, ao amigo, ao estranho, a
todos aqueles que precisam de ajuda. O serviço ao próximo deve ser realizado sempre,
no dia a dia, tanto que encontramos em At 6,1 a expressão “diaconia diária” (PEZZINI,
2016, p. 29-30).
A diaconia pode ser vista pelo menos em três linhas de atuação da Igreja, conforme
Pezzini (2016, p. 30-31):
• Diaconia como ação social da Igreja: trata-se de uma ação motivada pela fé, ou
seja, a teologia colocada em prática. Pode ser uma ação de responsabilidade
individual ou coletiva, como expressão da fé.
• Diaconia como forma específica do ministério da Igreja: é o serviço exercido
nos vários ministérios dentro da Igreja, um trabalho do indivíduo em vista da
comunidade.
• Diaconia como princípio fundamental da Igreja: o serviço visto como dimensão
essencial da própria natureza da Igreja.

A diaconia como ação social é muito ampla e inclui todas as atividades dos cristãos
no sentido de suprir as necessidades materiais das pessoas, aliviar o sofrimento
humano, atenuar ou eliminar os males sociais, etc. O propósito social da diaconia é
dar melhores condições de vida para as pessoas, suprindo as carências humanas
fundamentais no âmbito material: moradia, alimentação, saúde, trabalho, educação,
etc. Ao longo da história, a Igreja muitas vezes cumpriu estes serviços sociais, que
hoje deveriam ser de responsabilidade dos Estados, mas nem sempre são plenamente
realizados pelas estruturas estatais. Sendo assim, a Igreja deve continuar lutando por
melhores condições de vida na sociedade, sem descuidar dos aspectos espirituais.
A diaconia da Igreja inclui o serviço religioso (pregação, aconselhamento, momentos
de oração, etc.) e a assistência social (PEZZINI, 2016, p. 31-32).

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ISTO ACONTECE NA PRÁTICA

As Igrejas cristãs no Brasil (Católica, Protestantes, Evangélicas, etc.) costumam


desenvolver ações sociais importantes, como a distribuição de cestas básicas,
pastoral carcerária, visita aos doentes, pastoral da terra, casas de repouso para
idosos, assistência a migrantes, centros de tratamento para dependentes químicos,
programas de capacitação profissional para os mais pobres, casas de hospitalidade,
entre tantas outras iniciativas para servir aos mais necessitados.

No AT, a diaconia é exercida continuamente em ações sociais do povo de Deus


ou em ações do próprio Deus. Os profetas exortaram o povo para que pratique a
misericórdia (Mi 6,8; Jr 22,3; Os 6,6). A Torah prescreveu o mandamento do amor ao
próximo (Lv 19,18) e o cuidado especial para com os mais frágeis e vulneráveis, como
o órfão, a viúva, o pobre, o enfermo e o estrangeiro (Lv 19,10-15). Lendo o AT como
um todo, vemos que Deus criou o mundo e deu todos os bens da criação para os
seres humanos, para que nada faltasse a cada um dos habitantes da terra, e o seu
povo é convocado para a diaconia que consiste em garantir que todos tenham uma
vida digna (PEZZINI, 2016, p. 32).
Jesus e os apóstolos são herdeiros desta diaconia do AT, mas a estenderam
também aos gentios. Para o cristianismo, toda a humanidade é destinatária do
nosso serviço. O maior modelo de diaconia na Bíblia é, certamente, o próprio Cristo
Jesus. Ao longo de sua vida, Ele praticou o amor altruísta, serviu a todos sem
interesses, até o ponto de dar a própria vida. Jesus acolhia a todos, sem distinção,
homens e mulheres, ricos e pobres, sofredores, doentes, excluídos, estrangeiros,
pecadores, etc. Jesus se apresenta como koiné, “servo”, e sintetiza a sua missão
em termos de serviço: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Ele se preocupa com as
necessidades físicas, emocionais e espirituais das pessoas: realiza curas, distribui
o pão, anuncia o evangelho, consola, etc. É o verdadeiro diácono da humanidade.
Este mesmo amor com o qual Jesus serviu a humanidade deve ser o modo como
os cristãos servem: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu
vos amei” (Jo 15,12). Neste sentido, a ação social da Igreja é um desdobramento
do mandamento do amor (PEZZINI, 2016, p. 33 e 40).

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Título: O Lava-pés, ícone do serviço de Cristo à humanidade


Fonte: https://www.churchofjesuschrist.org/media/image/jesus-washing-apostles-feet-5dd1342?lang=eng

Quando o termo diakonos (aquele que serve) entrou no NT, já tinha um significado
concreto na Grécia Antiga. Diácono era o garçom que servia alimento para as pessoas,
em uma espécie de restaurante público, criado para garantir a sobrevivência dos mais
necessitados. De fato, a instituição do diaconato no NT segue esta mesma linha:

Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram


murmurações dos helenistas contra os hebreus. Isto porque, diziam
aqueles, suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição
diária. Os Doze convocaram então a multidão dos discípulos e
disseram: “Não é conveniente que abandonemos a Palavra de
Deus para servir às mesas. Procurai, antes, entre vós, irmãos, sete
homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós
os encarregaremos desta tarefa. Quanto a nós, permaneceremos
assíduos à oração e ao ministério da Palavra” (At 6,1-4).

O diaconato é o único ministério cristão que surgiu de uma fato social, para resolver
a situação social das viúvas helenistas, que estavam sendo negligenciadas em suas
necessidades. O diaconato nasce para distribuir alimento aos necessitados da Igreja
primitiva. Além dos diáconos propriamente ditos, todos os cristãos exerciam a diaconia

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na comunidade apostólica: “Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham


tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos,
segundo as necessidades de cada um” (At 2,44-45). A distribuição dos bens materiais
visando o bem comum é uma forma concreta de servir ao próximo e de concretizar o
mandamento do amor. A diaconia nas igrejas inclui tudo aquilo que os cristãos fazem
em favor das pessoas, favorecendo uma vida digna, além do cuidado da natureza
como obra de criação de Deus (PEZZINI, 2016, p. 36-39).
Para concluir, destacamos que o primeiro tema deste capítulo foi a relação entre
teologia e sociedade: o compromisso social transforma nosso modo de viver, transmitir
e celebrar a fé; e a fé concretizada na histórica transforma a sociedade em um ambiente
mais justo e fraterno. A doutrina social da Igreja foi o tema da segunda parte, com
destaque para o conceito de justiça social, o ser humano como um ser social, a
questão do bem comum e a destinação universal dos bens, além do conceito cristão
de caridade, que complementa a justiça. Por fim, falamos do conceito de diaconia na
teologia social, um conceito presente ao longo de toda a revelação bíblica: na exortação
dos profetas à misericórdia, no mandamento de amor ao próximo, nas ações de Jesus
a favor dos pobres e excluídos, nas práticas concretas da Igreja apostólica, etc. E
as Igrejas são chamadas a continuar exercendo a diaconia no mundo, através da
pregação, da caridade e de tudo aquilo que os cristãos fazem em favor das pessoas.

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CONCLUSÃO

Caro estudante, estamos chegando ao fim do nosso percurso, e agora temos o


desenho completo da planta da casa da teologia, aliás, já estamos dentro deste edifício
e já caminhamos por seus principais compartimentos. Este e-book tinha como objetivo
ajudar-lhe a entrar no edifício teológico, mas a partir de agora, você é convidado(a) a
permanecer, pois outras disciplinas do curso vão lhe mostrar vários detalhes da casa
da teologia que não tivemos ainda a oportunidade de observar com calma, neste
breve percurso.
Para entender melhor quais foram os compartimentos do edifício que nós visitamos
até agora, vamos repassar brevemente os principais conceitos e conteúdos desta
Introdução à Teologia.
Na primeira seção deste e-book, procuramos entender o que é a teologia.
Primeiramente, definimos a teologia como um discurso sobre Deus e tudo o que
está relacionado com Deus, a partir da Revelação bíblica, sendo chamada também
de “ciência da fé” (cap. 1). Depois analisamos o método teológico em seus três
principais momentos: hermenêutico/positivo, especulativo e prático (cap. 2). Também
apresentamos as fontes da teologia: Sagrada Escritura, Tradição, Magistério e sensus
fidei, enfatizando que a Escritura tem proeminência sobre todas as demais fontes ou
lugares teológicos (cap. 3). E fizemos uma breve exposição dos ramos da teologia,
que inclui algumas disciplinas propriamente teológicas, como a teologia fundamental,
dogmática, bíblica, moral, litúrgico-sacramental e pastoral; e disciplinas auxiliares,
como o Direito Canônico e a história da Igreja (cap. 4).
Na segunda parte desta Introdução à Teologia, contemplamos de forma panorâmica
a história da teologia. Nos primeiros séculos, desenvolveu-se a teologia patrística, que
formulou os princípios cristãos, defendeu o cristianismo das acusações feitas pelos
pagãos, combateu as heresias, etc. (cap. 5). Em seguida, a teologia escolástica, que
imprimiu um caráter mais científico à teologia cristã a partir da filosofia aristotélica,
transformando as reflexões teológicas em um sistema doutrinário bem elaborado
(cap. 6). O início da Modernidade (século XVI) foi marcado pela teologia da Reforma
e o retorno à Sagrada Escritura como fonte principal ou única (sola Scriptura) da
teologia (cap. 7). A partir do século XVII, a Igreja católica também buscou renovar

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a sua teologia, de modo que chegamos aos séculos XIX e XX com grandes nomes,
como Barth e Bultmann representando a teologia protestante, e Rahner na teologia
católica (cap. 8). Quanto à teologia contemporânea, destacamos a sua pluralidade
e diversidade, que inclui correntes teológicas em diálogo com a pós-modernidade
e correntes mais fundamentalistas (cap. 9). E concluímos este percurso histórico
tratando especificamente da teologia latino-americana, com destaque para a teologia da
libertação, a cristologia do Jesus encarnado na história e a eclesiologia do discipulado
(cap. 10).
Na terceira e última seção, observamos como a teologia se relaciona com as outras
disciplinas ou áreas do saber humano. Falamos sobre a relação entre teologia e ciência,
que atualmente é marcada pelo diálogo positivo; além da proximidade entre teologia e
a cultura humana desde o início do cristianismo (cap. 11). Depois tratamos da relação
entre filosofia e teologia, existente desde o surgimento da teologia, visto que esta
necessita de uma base filosófica para formular os seus conceitos (cap. 12). Também
argumentamos que a teologia pode contribuir com a educação, especialmente através
do Ensino Religioso, ao promover os valores humanos como o diálogo, a harmonia,
a boa convivência, o amor, a liberdade, o respeito, a experiência transcendental, etc.
(cap. 13). Mostramos a importância da relação entre teologia e direitos humanos,
pois existem fundamentos bíblico-teológicos para os direitos humanos, e porque a
liberdade religiosa é um valor comum entre estas duas áreas (cap. 14). Enfim, tratamos
da relação entre teologia e sociedade, com destaque para o compromisso social da
fé, a doutrina social da Igreja e a diaconia exercida pelos cristãos no mundo (cap. 15).
Eis a planta da casa da teologia. A partir do que estudamos, prezadas alunas
e alunos, temos uma visão geral do que é a teologia, de como ela se desenvolveu
ao longo da história e de como ela pode contribuir no conjunto das disciplinas ou
saberes humanos. Com estes instrumentos, podemos, a partir de agora, entrar cada
vez mais no universo teológico, descobrindo as suas riquezas e acrescentando a
nossa contribuição.

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