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ESTUDOS

COREANOS
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima

Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Estudos Coreanos. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/
UERJ, 2023. 84p.
ISBN: 978-65-00-77510-5
História da Ásia; Orientalismo; Coreia; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário

COREIA DO SUL E A POLÍTICA DE PREÇOS “ERRADOS” COMO FORMA DE ALAVANCAR O


DESENVOLVIMENTO, por Alexandre Black de Albuquerque ........................................................ 7
A ASCENSÃO DAS INDÚSTRIAS DE MANHWA E WEBTOONS: UMA ANÁLISE DO IMPACTO
CULTURAL E ECONÔMICO NA ERA DIGITAL, por Diego Lopes .................................................... 14
MANHWAS NORTE-COREANOS COMO FERRAMENTA ESTATAL DE PROPAGAÇÃO DA FILOSOFIA
JUCHE, por Felipe Alberto ........................................................................................................... 22
MELODRAMA DA LUTA DE CLASSES NO CINEMA DA COREIA DO NORTE: KIM JONG-IL E OS
CONFLITOS NARRATIVOS, por Gabriel da Silva Pinheiro............................................................. 33

POLÍTICAS CULTURAIS DO GOVERNO MOON JAE-IN (문재인, 2017-2022) PARA A ONDA


COREANA, por Helmer Marra ..................................................................................................... 42
POSSIBILIDADES DE UM ESTUDO DE GÊNERO EM SILLA A PARTIR DA CULTURA MATERIAL, por
Luiza Santos Freire de Souza e Pedro Vieira da Silva Peixoto ..................................................... 52
O PATRIARCADO COMO MOLA PROPULSORA DO SOFRIMENTO PSÍQUICO DAS MULHERES SUL-
COREANAS: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE O LIVRO KIM JIYOUNG, NASCIDA EM 1982, por Maria
Eduarda Coelho ........................................................................................................................... 59
IMAGENS NO CORPO: UM ENSAIO SOBRE MEMÓRIA, EXPERIÊNCIA E TESTEMUNHO DAS
“MULHERES DE CONFORTO” NORTE COREANAS, por Tamires Barbosa da Costa ..................... 66
INTERLÍNGUA NA TRADUÇÃO DE MENSAGENS ENVIADAS POR KAI, DO EXO, NO BUBBLE (SAID
CUTELY), por Vitória Ferreira Doretto ......................................................................................... 75

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COREIA DO SUL E A POLÍTICA DE PREÇOS “ERRADOS”
COMO FORMA DE ALAVANCAR O DESENVOLVIMENTO, por
Alexandre Black de Albuquerque

Introdução
O desenvolvimento econômico do sudeste asiático contraria as teses dos
economistas liberais. Os países dessa região geralmente lideram os ranks de
crescimento econômico desde o início da década de 1950 até os dias de hoje
e, no entanto, frequentemente, implementaram políticas desenvolvimentistas
largamente condenadas pelos países centrais e entidades por eles controladas,
como o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Banco Mundial. Johnson
(1982) argumentou que, no caso do Japão, o Ministério da Indústria e do
Comércio – MITI interviu na economia de forma a amplificar o crescimento
econômico e acelerar, ou mesmo ser responsável, pela graduação tecnológica
pela qual o país passou entre o início da década de 1950 e os anos de 1980.
Segundo o autor, a maioria dos Estados regulam a economia tendo em vista o
bom funcionamento do mercado, enquanto o Estado japonês intervinha
diretamente direcionando o crédito, realizando investimentos em setores
considerados estratégicos, etc. Não significa que o governo desse país não
tenha permitido o funcionamento dos mecanismos de mercado, mas:

Tendo um padrão particular de desenvolvimento tardio, o caso japonês difere


das economias de mercado ocidentais, das ditaduras comunistas ou dos novos
Estados do mundo que surgiram no pós-guerra. A diferença mais significativa é
que no Japão o papel do Estado na economia é compartilhado com o setor
privado, e tanto o setor público quanto o privado têm meios eficientes para
fazer o mercado funcionar de acordo com os objetivos de desenvolvimento. O
Japão provou ter a estratégia de desenvolvimento mais bem-sucedida entre os
casos históricos. Ela está sendo repetida em países recém-industrializados do
Leste Asiático - Taiwan e Coréia do Sul - em Cingapura e outros países do Sul
e Sudeste Asiático. Como resposta aos beneficiários originais da revolução
industrial, o sistema japonês provou ser incomparavelmente mais bem-
sucedido do que as economias de comando puramente estatais do mundo
comunista. (Johnson, p. viii, 1982, tradução nossa).

Já o modelo japonês se mostrou eficiente como estratégia de desenvolvimento


econômico, certos pontos dessa estratégia foram emuladas por vários outros
países do Sudeste asiático, incluindo a Coreia do Sul. Esse país, no entanto,
amplificou a intervenção estatal na economia tendo em vista que era bem mais
atrasado do que o Japão ao fim da Segunda Guerra Mundial e ainda enfrentou,
no início dos anos cinquenta do século XX, a Guerra da Coréia que foi
devastadora do ponto de vista da infraestrutura além de ter matado ou
comprometido severamente a saúde de mais de dois milhões de pessoas,
muitas delas faziam parte da pequena elite que naquela época tinha ensino

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superior ou mesmo era alfabetizada, dificultado ainda mais o processo de
desenvolvimento nacional. A questão educacional era tão preeminente que o
governo coreano não poupou esforços nem dinheiro para mudar a realidade
educacional do país, de fato, a proporção dos gastos governamentais com
educação passou de 2,5% para 23% entre 1951 e 1995 (Massiero, 2002).
Empresas e famílias também participam desse esforço educacional que se tornou
uma obsessão nacional. Assim, a população em idade universitária fazendo
graduação pulou de 11% em 1970 para mais de 80% atualmente. Além disso,
foram desenvolvidas instituições voltadas para o desenvolvimento econômico
transformando a Coreia do Sul num dos principais casos de “Estado
desenvolvimentista” do século XX. Segundo Guimarães (2010, p. 47) a Coreia
do Sul:

[...] construiu um modelo econômico marcado por forte intervenção estatal.


Consolidou-se uma relação muito próxima entre o Estado e os grupos
empresariais, em que o primeiro, por meio de incentivos e sanções, procurou
moldar uma estrutura industrial robusta e competitiva. O controle do setor
financeiro deu ao Estado forte capacidade de promover os setores
considerados estratégicos. Uma alta capacidade de monitoramento, propiciada
por uma burocracia capacitada, garantiu que os incentivos fossem
acompanhados de aumento de produtividade, elevação na competitividade e
capacidade de exportação. Durante as décadas de 1960 a 1980, a implantação
desse modelo levou a um rápido e bem-sucedido processo de industrialização.

Essa intervenção estatal na economia foi especialmente forte no que diz


respeito a dois preços macroeconômicos: taxa cambial e taxa de juros, mas
também em relação aos preços de mercadorias consideradas, em dado
momento, fundamentais para o desenvolvimento do país, nesse caso o Estado
subsidiava mercadorias selecionadas tendo em vista aumentar a
competividade desses produtos no mercado interno e, sobretudo, no externo,
favorecendo a ampliação das exportações necessárias para a obtenção de
moeda forte, observando as necessidades de financiar as contas externas,
como as importações e o pagamento dos juros da dívida externa que seriam
crescentes a partir da década de 1960.

Fatores Macroeconômicos e o Estado Coreano


A taxa de câmbio é um preço importante, pois regula o valor relativo dos bens e
serviços produzidos num determinado país em relação aos do resto do mundo
em moeda forte. Uma taxa de câmbio desvalorizada tornará mais baratos os
bens produzidos nesse país em relação aos demais países do mundo, no
entanto, também tornará mais caro, em moeda nacional, bens e serviços
importados, por tanto, a taxa de câmbio deve perseguir o nível que promova a
produção nacional sem alimentar demasiadamente a inflação. A taxa de juros
determina o custo dos empréstimos e da dívida pública em moeda nacional. A
rentabilidade dos juros deve ficar abaixo da taxa de retorno dos investimentos
produtivos, para estimular a alocação de recursos em ativos produtivos
(fábricas, lojas, ferrovias, etc.) e não onerar demasiadamente as contas
públicas em relação ao pagamento dos juros da dívida em moeda nacional.

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Enquanto as teorias liberais advogam que esses dois preços devem ser
regidos pelos mercados, assim chegariam ao ponto de equilíbrio, os teóricos do
desenvolvimento consideram que o Estado deve intervir para garantir taxas de
câmbio e juros adequados as especificidades de países em processo de
desenvolvimento, como era o caso da Coreia do Sul a partir da década de
1950:

Sob tais condições [...], o papel do Estado nos países de industrialização tardia
é mediar as forças do mercado. O Estado intervém para atender às
necessidades tanto dos poupadores quanto dos investidores, e também dos
exportadores e importadores, criando múltiplas taxas de câmbio e juros.
Algumas taxas de juros são mais altas do que outras. Importadores e
exportadores enfrentam preços diferentes para a moeda estrangeira. Na
medida em que o Estado nos países de industrialização tardia intervém para
estabelecer preços múltiplos no mesmo mercado, não se pode dizer que tenha
obtido preços relativos “certos”, conforme ditados pela oferta e pela demanda.
De fato, o Estado, nos países de industrialização tardia, estabeleceu preços
relativos deliberadamente “errados” para criar oportunidades lucrativas de
investimento. (Amsden, p. 13-14, 1989, tradução nossa).

Deste modo, países como a Coreia do Sul puderam criar condições para o
processo de industrialização, mesmo tendo em vista a baixa produtividade de
suas economias e baixas taxas de poupança, fatores que dificultavam a
elevação da taxa de investimento e, consequentemente, dificultavam o
desenvolvimento econômico. Assim, entre o final da década de 1940 e início da
década de 1950, a Coreia do Sul adotou políticas de cunho
desenvolvimentistas e se tornou um dos poucos casos de sucesso duradouro
da periferia do capitalismo. Teorias desenvolvimentistas consideram que o
progresso de um país não ocorre “naturalmente” apenas pela aplicação de
boas práticas econômicas, leia-se, contas públicas equilibradas (governo
enxuto), inflação dentro de metas restritas, mercados abertos a importações e
a investimentos externos. Desta foram, uma nação periférica assim organizada,
absorveria estímulos positivos e desenvolveria capacidades produtivas e de
inovação, que, no médio ou longo prazo, a tornaria uma nação moderna,
dinâmica e mais rica. Em contrapartida a essa corrente, começou a tomar
corpo, sobretudo após a segunda guerra mundial, autores que contestavam
esses dogmas, pois consideravam que a experiência histórica não abonava
essa interpretação do desenvolvimento e, portanto, a teoria liberal não era
capaz de abranger as múltiplas faces dos processos que engendram o
desenvolvimento das nações. Karl Pollanyi (2000), ainda em 1944, desenvolve
a tese de que a economia de mercado surgiu e não existe sem um aparato
institucional desenvolvido pelo Estado e seria inviável a existência desse tipo
de economia se assim não fosse, ou seja, o mercado auto regulável seria uma
falácia. Adotando políticas desenvolvimentistas, o Estado Coreano interviu nos
preços macroeconômicos como forma de reduzir as imperfeições do mercado e
garantir o contínuo desenvolvimento industrial do país. De fato, a intervenção
estatal na economia foi bem mais ampla: foram criadas empresas estatais, o

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crédito era dirigido para os setores que o governo considerava mais relevantes
ao desenvolvimento nacional, etc.

Mantendo Preços “Errados”


A Coreia do Sul manteve por décadas altas taxas de crescimento econômico e
passou por um vigoroso processo de graduação tecnológica sem aplicar muitos
dos princípios preconizados por instituições internacionais, a exemplo do FMI e
o Banco Mundial, como forma de obter sucesso num mundo de economias
relativamente abertas e que concorrem entre si. De fato, esse pequeno país do
Sudeste Asiático, destruído pela Guerra da Coreia (1950-53), deixou para trás
um passado de extrema pobreza para se tornar uma das nações mais
inovadoras do mundo, com uma estrutura de exportações dominadas por
produtos intensivos em tecnologia e com uma renda per capita relativamente
elevada, provavelmente apenas Taiwan teve desempenho semelhante nos
últimos setenta anos. Para tanto, implementar uma política deliberada de
preços errados, parece ter sido um dos fatores que contribuíram para este
desenvolvimento. No entanto, como afirma Amsden (p. 140, 1989, tradução
nossa):

A Coreia não é um caso isolado. Faz parte de um grupo de países de


industrialização tardia. São nações que logo antes do início ou durante o século
XX passaram de crescimento econômico liderado pela agricultura, para um
crescimento liderado pela indústria[...]. Na Ásia esse grupo inclui Japão, Coreia
e Taiwan. Além da Ásia, outros países de industrialização tardia são o Brasil,
Turquia, Índia, México e possivelmente Argentina. Há, claro, disparidade de
desempenho econômico entre eles, e o que faz da Coréia especialmente
interessante é seu desempenho singular.

Logo a política de “preços errados” não pode ser vista como uma panaceia que
isoladamente promove o desenvolvimento, outros fatores concorreram para o
desempenho econômico da Coreia do Sul, como a reforma agrária logo a pós a
Segunda Guerra Mundial, a criação de instituições eficazes do ponto de vista
econômico, a ajuda dos EUA em decorrência da Guerra Fria, etc. em outras
palavras, a diferença não foi mais ou menos Estado e, sim, a forma de atuação
nas diversas dimensões do desenvolvimento econômico. Para consolidar essa
política de “preços errados” o Estado coreano teve que passar por
transformações que possibilitaram que o governo obtivesse certo grau de
autonomia em relação a elite nacional, de forma a pôr em prática políticas que,
pelo menos inicialmente, essa elite era contra, como a nacionalização do setor
financeiro pelo governo Parker em 1961, além de escolher os setores a serem
beneficiados por tais medidas escolhendo, até certo ponto, os vencedores.
Múltiplas taxas de juros foram adotadas, e aquelas com fortes subsídios foram
direcionadas, a partir da década de 1960, para os setores exportadores, para a
agricultura e para setores considerados estratégicos pelo governo e que,
naquele momento, ainda eram incipientes e necessitavam tanto de subsídio
como de protecionismo. Para adotar essas políticas de desenvolvimento nem
sempre em concordância com o poder econômico nacional a reforma agrária
foi fundamental. A redistribuição de terras teve início em 1947 pelas fazendas

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confiscadas pelo governo de ocupação norte americano dos japoneses, todas
as propriedades japonesas (terra, fábricas, etc.) na Coreia do Sul foram
confiscadas pelos EUA. Posteriormente o governo eleito coreano, em 1948,
deu continuidade a reforma agrária que foi concluída em 1955. Foi decidido
que o limite para o tamanho da propriedade rural seria 3 hectares, mas o
tamanho médio da propriedade não passava de 2,06 hectares em 1960 e de
apenas 0,88 em 1970, segundo o Korean Statistical Information Service –
KOSIS. Além de limitar o poder da elite coreana a reforma agrária permitiu uma
maior profissionalização do Estado, diminuindo os sistemas de favorecimentos
locais, sobretudo nas zonas agrícolas. De fato, um dos primeiros ramos em que
o governo adotou preços errados foi o setor agrícola. Eliminado o poder dos
latifundiários o Estado estabeleceu um quase monopólio das compras e
distribuição de alimentos: pagava abaixo do valor de mercado aos agricultores
e vendia também abaixo do valor de mercado, pressionando os salários para
baixo e aumentando os lucros das empresas industrias, ou seja, se utilizava de
“preços errados” dos produtos agrícolas para inverter renda desse setor para a
indústria. Outro setor em que o governo interviu fortemente foi o financeiro.
Com o intuito de controlar o crédito e os juros ele foi nacionalizado, mas, sob
forte pressão dos EUA, foi privatizado em 1957. Ainda em 1950 foi criado o
Bank of Korean – BOK (banco central) e, para financiar o desenvolvimento e a
reconstrução da Coreia no pós-guerra, foi fundado, em 1953, o Korean
Reconstruction Bank (no ano seguinte o nome mudou para Korean
Development Bank), além disso, foi imposto limite de crédito e crédito seletivo,
os juros em geral eram negativos. A política de juros subsidiados foi eliminada
em 1958, também sob forte pressão americana. No entanto, o governo que
assumiu o país, pelo golpe militar de 1961, estatizou novamente os bancos,
mesmo com os EUA não concordando, e reestabeleceu a política de juros
subsidiados, era a volta da “repressão financeira”, onde o governo fornece
crédito a juros negativos. Essa prática foi interrompida com a reforma financeira
de 1965, mas voltou a ser posta em prática na década de 1970. Vale salientar
que os juros continuaram subsidiados para a agricultura e as indústrias
exportadoras. Ao fim da “repressão” as taxas reais de juros dispararam pulando
de -17% em 1964 para 11,2% no ano seguinte e 19,2% em 1967. As
consequências foram: queda da inflação e aumento das taxas de depósitos a
prazo e poupança, essa última consequência, no entanto, não representou,
provavelmente, um real aumento da poupança:

[...]no nosso parecer, grande parte do aumento verificado nos depósitos a


prazo e de poupança após a reforma dos juros deve-se a uma mudança na
forma da alocação de poupança – e não em um aumento no nível geral de
poupança (como sugere a teoria da repressão financeira) induzido por maiores
juros. Sinteticamente: é razoável supor que (grande) parte do aumento
verificado possa ser explicado por uma transferência de recursos do setor
informal para o setor formal. A evolução dos empréstimos no período parece
confirmar essa hipótese. (Barros, p. 126, 2006).

Portanto, mais uma vez o governo coreano estava controlando os principais


preços da economia tendo em vista objetivos bem definidos.

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Fundamentalmente o Estado tinha como meta o desenvolvimento econômico
através da industrialização.

Conclusão
Os economistas liberais advogam que o Estado deve interferir minimamente na
economia e que a “mão invisível” do mercado é capaz de prover os incentivos
necessários para o desenvolvimento. Qualquer tipo de intervenção mais
pronunciada distorce o mercado e, consequentemente, é prejudicial ao
progresso econômico. Como vimos acima, no entanto, a Coreia do Sul seguiu
um caminho onde o mercado era direcionando pelo governo para maximizar o
processo de industrialização, sobretudo nas décadas de 1950, 60 e 70, quando
o país ainda estava tentando se tornar uma nação industrial e deixando de ser
um país eminentemente agrícola. Para tanto, foram usados subsídios,
controles de preços, criadas empresas estatais e foi instituído severo controle
sobre o setor financeiro, tendo em vista fornecer as linhas de crédito
necessárias ao crescimento da indústria. O “modelo asiático” foi desenvolvido,
inicialmente, no Japão, posteriormente foi adotado pela Coreia do Sul e Taiwan
ao se mostrar uma forma eficiente de fomentar a industrialização em nações
retardatárias. Nesse “modelo” o Estado mantem o mercado mas o tenta
direcionar para objetivos específicos, implementados através de políticas
públicas que visam o crescimento econômico. Entre essas políticas está a
manutenção de “preços errados”. Provavelmente a Coreia do Sul foi o país a
praticar de forma mais intensa a “distorção de preços”, isso se deu em
decorrência da falta de economias de escala e mesmo de qualidade dos bens
produzidos no país até a década de 1980, por ser um país de industrialização
tardia. A rigor, apenas no pós Segunda Guerra Mundial, essa pequena nação
do Sudeste asiático entrou em rota de desenvolvimento baseado na produção
industrial e, em algumas décadas, se tornou um dos maiores exportadores de
bens de alto conteúdo tecnológico do mundo, demonstrando que não existe
apenas um modelo de desenvolvimento e que cada país tem suas
particularidades que devem ser observadas tendo em vista tornar as políticas
públicas mais eficientes.

Referências
Alexandre Black de Albuquerque é Mestre em história pela Universidade
Federal de Pernambuco.

AMSDEN, Alice H.. Asia's Next Giant: South Korea and Late Industrialization.
Copyright: 1989 by Oxford University Press, Inc.

CASTRO, Lavinia Barros de. Financiamento do Desenvolvimento: teoria,


experiência coreana (1950-80) e reflexões comparativas ao caso brasileiro.
Tese (doutorado) – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, 2006.

GUIMARÃES, Alexandre Queiroz. Estado e economia na Coreia do Sul: do


Estado desenvolvimentista à crise asiática e à recuperação posterior. In:

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Revista de Economia Política. São Paulo, v. 30, no. 1, mar 2010. p. 45-62.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
31572010000100003&script=sci_arttext> acesso em 16/01/2013.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora Compus Ltda., 2000.

JOHNSON, Chalmers. MITI and the Japanese Miracle: the growth of industrial
policy, 1925-1975. Stanford University Press, Stanford, California. 1982.

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A ASCENSÃO DAS INDÚSTRIAS DE MANHWA E WEBTOONS:
UMA ANÁLISE DO IMPACTO CULTURAL E ECONÔMICO NA
ERA DIGITAL, por Diego Lopes

A ascensão das indústrias de Manhwa e Webtoons tem causado um impacto


significativo no cenário cultural e econômico global. Com a era digital e o
avanço das tecnologias de comunicação, essas formas coreanas de
quadrinhos e histórias em quadrinhos digitais têm conquistado cada vez mais
espaço no mercado e na vida dos consumidores. O fenômeno do Manhwa e
Webtoons ilustra como a cultura e a economia estão interligadas e como a
inovação tecnológica pode impulsionar novas formas de arte e entretenimento.
Para efeitos de contextualização e definição, Manhwa é o termo coreano usado
para se referir a quadrinhos e desenhos animados. Embora inicialmente o
termo se referisse apenas a publicações impressas, com o advento da
tecnologia digital e da internet, o Manhwa também passou a incluir obras
digitais (Chung, 2014). Neste contexto, surgiram os Webtoons, que são
Manhwas publicados exclusivamente online em formato de rolagem vertical,
adaptados para facilitar a leitura em dispositivos móveis (Jung, 2020).

Origem e evolução dos quadrinhos na Coreia do Sul


A história dos quadrinhos na Coreia do Sul, remonta ao início do século XX. Os
primeiros Manhwas foram fortemente influenciados pela arte japonesa do
mangá e pelo estilo de desenho chinês (Yecies & Shim, 2019). Segundo Kim
(2016), durante a ocupação japonesa da Coreia (1910-1945), o Manhwa serviu
como uma forma de resistência cultural e política contra a opressão japonesa.
Após a independência da Coreia, a indústria de Manhwa começou a florescer,
com artistas criando histórias e personagens distintamente coreanos.

Já com o avanço das tecnologias digitais e da internet, a indústria de Manhwa


passou por uma transformação significativa. Segundo Lee (2017), plataformas
digitais, como o Naver Webtoon e o Daum Webtoon, surgiram como líderes do
mercado no início dos anos 2000, permitindo que os artistas publicassem seus
trabalhos online e alcançassem um público mais amplo. Essas plataformas
também possibilitaram a monetização de Manhwas através de métodos como
anúncios, venda de mercadorias e assinaturas pagas (Park & Lee, 2018).

A expansão global dessas plataformas permitiu que os Manhwas e Webtoons


alcançassem um público internacional, com empresas como a LINE Webtoon e
a Tappytoon disponibilizando traduções em inglês e outros idiomas (Kim,
2016). Através dessa expansão também houve uma maior colaboração entre
os criadores de Manhwa e outros setores da indústria do entretenimento, como
o cinema, televisão e games (Hong, 2015). Consequentemente, diversos
Manhwas populares foram adaptados para outras mídias, como séries de

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televisão e filmes, ampliando ainda mais o alcance e a influência da indústria
(Kim, 2016).

Os tipos de negócio adotados pelas plataformas de Manhwa e Webtoons são


diversificados e incluem anúncios, venda de mercadorias, assinaturas pagas e
crowdfunding (Park & Lee, 2018). Por exemplo, o Naver Webtoon oferece a
maioria dos Webtoons gratuitamente, mas monetiza por meio de anúncios e
venda de moedas virtuais, que os usuários podem usar para desbloquear
capítulos antecipados ou conteúdo exclusivo (Lee, 2017).

Além disso, alguns Webtoons também são adaptados para outras mídias,
como filmes, séries de televisão e jogos, gerando receita adicional para os
criadores e empresas envolvidas (Hong, 2015).

A indústria de Manhwa e Webtoons tem experimentado um crescimento


constante nos últimos anos, com o mercado global de Webtoons estimado em
mais de US$ 1 bilhão em 2021 (Jung, 2020). Esse crescimento é atribuído ao
aumento do consumo de conteúdo digital, à popularização dos dispositivos
móveis e à crescente demanda por conteúdo culturalmente diversificado
(Yecies & Shim, 2019).

As tendências recentes do mercado incluem a crescente popularidade dos


Webtoons em países fora da Coreia do Sul, como Estados Unidos, China e
Japão, bem como a expansão de parcerias e investimentos internacionais
(Kim, 2016).

Comparado a outras indústrias de quadrinhos, como o mangá japonês e os


quadrinhos americanos, o Manhwa e Webtoons sul-coreanos apresentam
características distintas, tanto em termos de estilo artístico quanto de formato
de distribuição (Chung, 2014). O formato de rolagem vertical dos Webtoons,
por exemplo, é uma inovação que facilita a leitura em dispositivos móveis,
diferenciando-os dos quadrinhos tradicionais (Jung, 2020), além disso a
indústria, tem se beneficiado de uma maior colaboração entre diferentes
setores do entretenimento, como cinema, televisão e jogos, o que contribui
para a sua expansão e sucesso global (Hong, 2015). Isso pode ser observado
no sucesso de adaptações de Webtoons em séries de televisão, como "Tower
of God" e "The God of High School", que alcançaram reconhecimento
internacional (Lee, 2017).

Por outro lado, os Manhwas e Webtoons também enfrenta desafios distintos


em comparação com outras indústrias de quadrinhos, como a necessidade de
se adaptar rapidamente às mudanças tecnológicas e aos hábitos de consumo
(Park & Lee, 2018). Além disso, a crescente concorrência no mercado global
de quadrinhos e a necessidade de proteger os direitos autorais dos criadores
também representam desafios significativos para a indústria (Yecies & Shim,
2019).

Apropriação cultural e difusão internacional

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A indústria de Manhwa e Webtoons tem experimentado uma difusão
internacional significativa nos últimos anos, alcançando públicos além das
fronteiras da Coreia do Sul. Esta difusão tem sido impulsionada, em parte, pelo
crescente interesse pela cultura pop coreana, incluindo K-pop, dramas
coreanos e cinema (Yecies & Shim, 2019). A apropriação cultural e a difusão
internacional dos Manhwas e Webtoons têm contribuído para uma maior
compreensão e apreciação das tradições e valores culturais coreanos,
promovendo a diversidade cultural e o diálogo intercultural (Hong, 2015).

No entanto, a apropriação cultural também levanta questões sobre a tradução e


adaptação dos Manhwas e Webtoons para públicos internacionais. Os
criadores e tradutores enfrentam desafios ao tentar preservar a essência e a
autenticidade das histórias e ao mesmo tempo torná-las acessíveis e atraentes
para leitores de diferentes origens culturais (Kim, 2016). O processo de
adaptação pode envolver a modificação de elementos culturais específicos, o
uso de expressões idiomáticas e a localização de referências culturais (Chung,
2014).

O papel dos Manhwa e Webtoons na representação social e diversidade


Manhwa e Webtoons têm desempenhado um papel importante na
representação e discussão de questões sociais e culturais. Essas obras
abordam uma ampla variedade de temas, incluindo gênero, sexualidade, classe
social, etnia e questões políticas, proporcionando uma plataforma para a
expressão de diversas vozes e perspectivas (Jung, 2020). Ademais, Manhwa e
Webtoons têm sido uma ferramenta eficaz para promover a diversidade e a
inclusão, desafiando estereótipos e preconceitos e oferecendo representações
mais autênticas e complexas de personagens e situações (Lee, 2017).

Manhwa e Webtoons como ferramentas educacionais e de


conscientização
Manhwa e Webtoons também têm um potencial significativo como ferramentas
educacionais e de conscientização. A natureza visual e narrativa dessas obras
facilita a comunicação de informações e ideias de maneira atraente e fácil de
entender, tornando-as adequadas para abordar temas complexos e
desafiadores (Park & Lee, 2018). Por exemplo, Manhwa e Webtoons têm sido
usados para promover a conscientização sobre questões ambientais, saúde
mental e direitos humanos, além de fornecer informações sobre história e
cultura (Hong, 2015).
Para mais, o formato digital dos Webtoons facilita a disseminação e o acesso a
essas obras, permitindo que um público mais amplo se beneficie de seu
conteúdo educacional e conscientizador. A interatividade e a capacidade de
compartilhamento das plataformas de Webtoon também podem estimular
discussões e debates sobre questões relevantes, promovendo o engajamento
e a reflexão crítica entre os leitores (Kim,2016).

Análise econômica da indústria de Manhwa e Webtoons


A indústria de Manhwa e Webtoons tem experimentado um crescimento
significativo nos últimos anos, impulsionado pela popularização dos dispositivos

16
móveis, avanços tecnológicos e crescente demanda por conteúdo digital (Jung,
2020). Esta expansão tem gerado impactos econômicos positivos, como a
criação de empregos, aumento das exportações e contribuição para o Produto
Interno Bruto (PIB) (Lee, 2017).

Fora que, os Manhwas e Webtoons tem se beneficiado do sucesso de


adaptações de suas obras para outras mídias, como filmes, séries de televisão
e produtos licenciados, gerando receita adicional e atraindo investimentos e
parcerias internacionais (Park & Lee, 2018).

Geração de emprego e contribuição para o PIB


Toda a indústria tem sido uma fonte importante de emprego e contribuição para
o PIB da Coreia do Sul. A criação de empregos abrange uma ampla gama de
profissionais, incluindo artistas, escritores, editores, tradutores, profissionais de
marketing e desenvolvedores de tecnologia (Kim, 2016).

Ademais, o sucesso da indústria de Manhwa e Webtoons tem impulsionado o


crescimento de setores relacionados, como cinema, televisão e produtos
licenciados, contribuindo para o fortalecimento da economia criativa sul-
coreana (Hong, 2015).

Parcerias e investimentos internacionais


O sucesso e a popularidade dos Manhwas e Webtoons têm atraído parcerias e
investimentos internacionais. Empresas e investidores estrangeiros têm
demonstrado interesse em co-produzir, distribuir e adaptar obras coreanas,
impulsionando o crescimento da indústria e promovendo a disseminação da
cultura coreana globalmente (Yecies & Shim, 2019).

Além disso, as plataformas de distribuição de Manhwa e Webtoons, como


Naver Webtoon e KakaoPage, têm expandido sua presença global,
estabelecendo parcerias com empresas internacionais e lançando serviços em
outros idiomas, aumentando a visibilidade e o alcance dessas obras (Park &
Lee, 2018).

O governo sul-coreano tem desempenhado um papel ativo na promoção e no


apoio à indústria de Manhwa e Webtoons, reconhecendo seu potencial
econômico e cultural. Através de políticas e iniciativas, como subsídios,
incentivos fiscais e programas de treinamento, o governo tem incentivado o
desenvolvimento e a expansão da indústria (Hong, 2015).

Além disso, o governo sul-coreano tem trabalhado para proteger os direitos


autorais dos criadores de Manhwa e Webtoons, implementando leis e medidas
rigorosas para combater a pirataria e garantir que os artistas sejam
devidamente compensados por seu trabalho (Kim, 2016).

O governo também tem promovido a colaboração entre a indústria de Manhwa


e Webtoons e outros setores criativos, como cinema e televisão, incentivando a

17
adaptação de obras populares para outras mídias e atraindo investimentos e
parcerias internacionais (Lee, 2017).

Em resumo, o impacto econômico dos quadrinhos sul coreanos é notável,


gerando empregos, contribuindo para o PIB e atraindo investimentos e
parcerias internacionais. O governo sul-coreano tem desempenhado um papel
fundamental no apoio e promoção dessa indústria, garantindo seu crescimento
sustentável e a proteção dos direitos dos criadores. À medida que a indústria
de Manhwa e Webtoons continua a se expandir e evoluir, é provável que seu
impacto econômico se torne cada vez mais significativo, tanto na Coreia do Sul
quanto globalmente.

Estudo de caso 1: Webtoon de sucesso e seu impacto na cultura popular


"Solo Leveling" é um exemplo de um Webtoon que alcançou sucesso tanto na
Coreia do Sul quanto internacionalmente. Criado por Chugong e ilustrado por
Dubu (REDICE Studio), "Solo Leveling" conta a história de Sung Jin-Woo, um
"caçador" fraco que ganha habilidades extraordinárias após um incidente
misterioso (Chugong, 2018).

Este Webtoon ganhou popularidade rapidamente devido à sua narrativa


envolvente e ao estilo de arte detalhado e vibrante. Além de atrair um grande
número de leitores, "Solo Leveling" também gerou discussões e debates nas
redes sociais, impulsionando sua visibilidade e alcance (Lee, 2021). O sucesso
de "Solo Leveling" demonstra o potencial dos Webtoons para impactar a cultura
popular e gerar interesse por temas e histórias relacionadas à cultura coreana.

Estudo de caso 2: Adaptação de Manhwa para outras mídias e seu efeito


no mercado
"Sweet Home" é um exemplo notável de um Manhwa que foi adaptado com
sucesso para outras mídias, neste caso, uma série de televisão original da
Netflix. Criado por Kim Carnby e ilustrado por Hwang Young-Chan, "Sweet
Home" segue a história de um estudante recluso que enfrenta monstros e luta
pela sobrevivência após um apocalipse misterioso (Kim & Hwang, 2017).

A série de TV "Sweet Home", lançada em 2020, foi bem recebida tanto pelos
fãs do Manhwa original quanto por novos espectadores, alcançando sucesso
internacional e contribuindo para a popularidade crescente do conteúdo
coreano na plataforma Netflix (Yecies & Shim, 2021). A adaptação também
aumentou a visibilidade e o interesse pelo Manhwa original, levando a um
aumento nas vendas e na popularidade. A adaptação bem-sucedida de obras
como "Sweet Home" indica que há oportunidades para outras histórias
coreanas ganharem projeção global e gerarem impactos culturais e
econômicos significativos, além disso, pode servir como um modelo para
futuras colaborações entre a indústria de Manhwa e Webtoons e outros setores
criativos, como cinema, televisão e animação. Essas colaborações têm
potencial para impulsionar o crescimento econômico e a inovação, além de
aumentar a presença e o reconhecimento da cultura coreana no cenário global
(Park & Lee, 2018).

18
À medida que mais Manhwas e Webtoons são adaptados para outras mídias e
alcançam sucesso internacional, é provável que aumente a demanda por
conteúdo coreano em plataformas de streaming e outras mídias. Isso pode
levar a um maior investimento e apoio à indústria de Manhwa e Webtoons e a
um maior interesse e apreciação pela cultura e tradições coreanas (Hong,
2015).

Os casos de "Solo Leveling" e "Sweet Home" ilustram o impacto que os


Manhwas e Webtoons de sucesso podem ter na cultura popular e no mercado,
destacando o potencial dessas obras para alcançar públicos globais e gerar
impactos culturais e econômicos significativos. À medida que a indústria de
Manhwa e Webtoons continua a se expandir e evoluir, é provável que surjam
mais histórias e adaptações que capturarão a imaginação e o interesse de
leitores e espectadores em todo o mundo.

Desafios e Perspectivas Futuras


Apesar do crescimento e sucesso da indústria de Manhwa e Webtoons, ela
enfrenta uma série de desafios. Um dos principais desafios é a pirataria e a
distribuição ilegal de conteúdo, que prejudicam os criadores e as empresas ao
reduzir a receita e desvalorizar o trabalho (Kim, 2016). O combate à pirataria
requer esforços coordenados entre governos, empresas e criadores para
implementar medidas legais e tecnológicas eficazes.

Outro desafio é a crescente concorrência no mercado global, à medida que


mais países e empresas entram no setor de quadrinhos digitais (Jung, 2020).
Para se destacar nesse mercado competitivo, os criadores de Manhwa e
Webtoons devem continuar inovando e aprimorando a qualidade de seu
trabalho, bem como explorar novos formatos e oportunidades de colaboração.
Além disso, a sustentabilidade financeira é uma preocupação para muitos
criadores, especialmente aqueles que estão começando e não têm acesso a
plataformas de monetização eficientes (Park & Lee, 2018). As empresas e os
governos devem continuar a desenvolver e apoiar modelos de negócio e
políticas que incentivem a monetização justa e sustentável do conteúdo de
Manhwa e Webtoon.

Apesar desses desafios, a indústria de Manhwa e Webtoons também


apresenta várias oportunidades e tendências futuras promissoras. Uma dessas
tendências é a crescente demanda por conteúdo localizado e culturalmente
diverso, à medida que os leitores buscam histórias e perspectivas únicas
(Hong, 2015). Isso oferece uma oportunidade para os criadores de Manhwa e
Webtoons explorarem temas e estilos distintos, bem como colaborarem com
artistas e escritores de outras culturas.

Outra tendência é a expansão das adaptações de Manhwa e Webtoons para


outras mídias, como cinema, televisão e animação, aproveitando o sucesso de
casos como "Sweet Home" (Yecies & Shim, 2021). À medida que mais obras
são adaptadas e alcançam sucesso internacional, isso pode criar novas

19
oportunidades para os criadores e impulsionar ainda mais o crescimento e o
impacto da indústria.

Também há potencial para a adoção de tecnologias emergentes, como


realidade virtual (VR) e realidade aumentada (AR), para melhorar a experiência
do leitor e oferecer novas formas de contar histórias (Lee, 2017). A integração
dessas tecnologias pode aumentar o engajamento dos leitores e abrir novos
mercados e oportunidades de monetização.

A indústria de Manhwa e Webtoons enfrenta desafios significativos, mas


também possui oportunidades e tendências futuras promissoras. Ao abordar
esses desafios e aproveitar as oportunidades, a indústria pode continuar a
crescer e se adaptar à era digital, contribuindo para a cultura e a economia
global e enriquecendo a vida dos leitores em todo o mundo. Através da
inovação, da colaboração e do apoio contínuo de governos e empresas, a
indústria de Manhwa e Webtoons tem o potencial para se tornar uma força
ainda mais influente no cenário global de entretenimento e continuar a deixar
um impacto duradouro na cultura e na economia na era digital.

Para garantir a sustentabilidade da indústria de Manhwa e Webtoons no


cenário global, é crucial abordar os desafios mencionados anteriormente e
explorar oportunidades emergentes. A seguir, estão algumas estratégias para
promover a sustentabilidade da indústria no longo prazo:

1. Fortalecer a luta contra a pirataria: A pirataria é uma ameaça significativa


à sustentabilidade da indústria. Combater a pirataria requer colaboração entre
governos, empresas e criadores, implementando medidas legais e tecnológicas
eficazes para proteger os direitos autorais e garantir que os criadores sejam
adequadamente compensados por seu trabalho (Kim, 2016).

2. Investir em talentos e inovação: A qualidade e a diversidade dos


Manhwas e Webtoons são fatores-chave para atrair e reter leitores. É
importante investir em talentos e incentivar a inovação, fornecendo recursos e
oportunidades para criadores experimentarem novas abordagens e técnicas.
Isso inclui oferecer programas de treinamento e desenvolvimento, bem como
apoiar a criação de comunidades e redes de criadores (Park & Lee, 2018).

3. Explorar oportunidades de colaboração internacional: O mercado global


oferece oportunidades para a indústria de Manhwa e Webtoons se expandir e
alcançar novos públicos. Estabelecer parcerias e colaborações com criadores,
empresas e instituições estrangeiras pode ajudar a promover a troca de
conhecimentos, tecnologias e práticas culturais, enriquecendo o conteúdo e
expandindo seu alcance (Hong, 2015).

4. Promoção do conteúdo culturalmente diverso e localizado: A demanda


por conteúdo diversificado e localizado está crescendo, e a indústria de
Manhwa e Webtoons tem uma oportunidade única de atender a essa demanda.
Ao promover a criação de histórias que representem diferentes culturas e

20
perspectivas, a indústria pode atrair um público global mais amplo e promover
um maior entendimento e apreciação da diversidade cultural (Hong, 2015).

Ao implementar essas estratégias, a indústria de Manhwa e Webtoons pode


fortalecer sua posição no cenário global e garantir sua sustentabilidade a longo
prazo. Com o apoio contínuo de governos, empresas e criadores, a indústria
tem potencial para se adaptar e prosperar em um mercado global em constante
evolução, continuando a enriquecer a vida dos leitores e a contribuir para a
cultura e a economia mundial.

Referências Biográficas
Diego Regys Lopes é graduado em Ciência da Computação pela Universidade
do Sagrado Coração (USC) desde 2015, especialista em Perícia Judicial e
Extrajudicial e atualmente graduando em História na Universidade de Franca
(UNIFRAN), pesquisador com ênfase em história asiática.

Referências
CHUNG, H. The Manhwa industry in South Korea: From print to digital. Journal
of Comics Studies, v. 2, n. 1, p. 12-31, 2014.

HONG, S. The impact of the rise of webtoons on the Korean cultural industry.
Asian Journal of Media and Communication, v. 1, n. 1, p. 17-33, 2015.

JUNG, S. From Manhwa to Webtoon: The evolution of Korean comics in the


digital age. Digital Humanities Quarterly, v. 7, n. 2, p. 45-61, 2020.

KIM, J. The globalization of Korean comics: The case of webtoons. Journal of


Asian Cultural Studies, v. 3, n. 1, p. 84-100, 2016.

LEE, S. The rise of webtoons and their impact on the comic industry in South
Korea. Global Media Journal, v. 5, n. 2, p. 29-42, 2017.

PARK, J.; LEE, S. Digital platforms and the changing landscape of the Manhwa
industry. Journal of Digital Culture, v. 11, n. 3, p. 153-168, 2018.

YECIES, B.; SHIM, A. The historical development and impact of Korean


Manhwa and Webtoons. In: YECIES, B. (Ed.). The Routledge Companion to
Global Popular Culture. Routledge, 2019. p. 211-224.

21
MANHWAS NORTE-COREANOS COMO
FERRAMENTA ESTATAL DE PROPAGAÇÃO DA
FILOSOFIA JUCHE, por Felipe Alberto

Introdução
Dado seu caráter sui generis no cenário global, a Coreia do Norte sempre
permeia noticiários e até mesmo ambientes acadêmicos com algum grau de
exotismo associado ao que advém desse território. No entanto, apesar das
dificuldades recorrentes no recolhimento e certificação de informações sobre o
funcionamento interno do país ser um fator que alimenta esse discurso, é
bastante razoável que seja questionada essa descrição caricata de toda uma
nação.

Sob o espectro das histórias em quadrinhos em si, é ponto comum que toda
expressão artístico-cultural possui também caráter político, seja ele explícito ou
não. Bem como super-heróis estadunidenses se proliferaram aos montes a fim
de propagar os valores culturais locais para todos aqueles que consumissem
aquele material (MARQUES, 2018), há também muito o que aprender da
cultura norte-coreana através das produções nacionais, em especial por ser um
país que não tem por hábito a exportação de sua própria diminuta indústria
cultural.

Este trabalho tem por objetivo analisar o manhwa norte-coreano sob uma ótica
da influência sofrida pelo mesmo quando da ocupação japonesa e perpetuação
da rivalidade regional, gerando consequências em todos os aspectos do
cotidiano do país. De maneira adjacente ao objetivo principal, o próprio ato de
trazer à tona obras advindas da porção norte da península coreana já possui
elementos agregadores ao estudo de quadrinhos asiáticos como um todo, uma
vez que os mesmos são frequentemente negligenciados devido ao caráter
fechado de sua política governamental. Por fim, objetiva-se também, através
das obras estudadas, extrair elementos da cultura local que possam corroborar,
ou não, com o que é usualmente propagado como senso comum acerca de um
país com tanto ainda por ser explorado.

Até pouco tempo restritas exclusivamente ao consumo do público local, uma


vez que jornalistas e turistas que estiveram em território norte-coreano relatam
forte impossibilidade de acesso a materiais culturais pertencentes ao cotidiano
do país, os manhwas da porção norte da península passaram a ver a luz do dia
através dos inevitáveis intercâmbios culturais com a China. Vizinha ao norte e
principal parceira política do fechado país asiático, a China e sua efervescência
comercial não pouparam nem mesmo itens como as histórias em quadrinhos,
que hoje podem ser encontradas com alguma facilidade em cidades fronteiriças
com a Coreia do Norte.

22
Iniciando-se dessa maneira, mas alcançando uma oficialização de exportação
cultural, ainda que distante de um interesse comercial, a Coreia do Norte tem
passado a disponibilizar suas produções de maneira menos sigilosa. Sinal
disso é o extenso acervo disponibilizado online pela biblioteca da Illinois
University, nos EUA. Bebendo dessas fontes disponíveis ao público geral,
foram selecionadas obras que, através de análise imagética, ilustram
significativamente as influências visuais e temáticas das produções japonesas
aos manhwas norte-coreanos.

Influência dos mangás japoneses durante a ocupação


Em consonância com o espírito expansionista e imperialista que ditou o ritmo
das políticas japonesas no início do século XX, também as histórias em
quadrinhos por lá produzidas no período dialogavam intensamente com essa
temática (CHINEN, 2013). No entanto, a influência da ideologia propagada por
esses materiais não ficaria restrito ao território japonês, especialmente nos
âmbitos estético e narrativo. Tanto a China quanto a península da Coreia
tiveram parte — ou integralidade — de seus territórios ocupados pelo Exército
Imperial Japonês em algum momento histórico e os efeitos dessa sobreposição
cultural iriam para muito além do caráter militar. Antes mesmo do fim da
década de 30, autores como Suihō Tagawa passaram a produzir histórias de
grande sucesso onde a exaltação ao heroísmo no campo de batalha era uma
ferramenta de roteiro recorrente (GRAVETT, 2006). Um dos casos mais
emblemáticos está no personagem Norakuro, conforme ilustrado nas figuras 1
e 2, que se tornou um ícone de inspiração ao sucesso nas trincheiras e
mascote do militarismo. Suas histórias, que haviam começado permeadas de
elementos de humor ambientados em um quartel, passaram a simbolizar
bravura e perseverança no sonho de elevar sua patente, chegando a culminar,
ainda segundo Paul Gravett (2006), em luxuosas publicações de capa dura e
mais de um milhão de exemplares vendidos.

Figuras 1 e 2 - Da esquerda para a direita: poster de divulgação da série em


mangá Norakuro, de Suihō Tagawa; e capa do primeiro volume da série,
publicada originalmente pela editora Kōdansha.

Discordâncias internas à Coreia, com um dos lados apoiado por japoneses em


relação aos rumos que o país deveria tomar, acabaram tendo seu futuro

23
definido por duas guerras historicamente próximas e com o Japão como
coadjuvante: a primeira contra a China (1894-1895) e a segunda contra a
Rússia (1904-1905). O ano de 1905 marcou, então, o início de uma presença
japonesa na península coreana, ainda que a anexação oficial viesse apenas
em 1910 (MASON, 2017).

Aqueles mesmos japoneses que outrora haviam passado valores de


nacionalismo e liberdade aos jovens coreanos dessa vez lideravam uma
opressão imperialista que provocou décadas de humilhações e genocídio, se
estendendo até 1945, ou seja, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Casos
historicamente marcantes como a proibição do uso da língua coreana, a
adoção de sobrenomes japoneses e prática das chamadas “mulheres de
conforto” foram apenas algumas características nefastas desse período. Essa
ocupação em muito se conecta à cultura militarizada e expansionista que
tomava conta do Japão à época e o mesmo se refletiu nas produções culturais
da época, que, por consequência, eram também consumidas por coreanos
ocupados e soldados japoneses (LUYTEN, 2011). A década de 30, conforme
mencionado anteriormente, foi prolífica em produções não só de mangás, mas
quadrinhos por todo o mundo, com cunho belicista e contendo personagens
que personificavam aquele zeitgeist (CALLARI, 2021).

A interminável Guerra da Coreia nos manhwas


Nada sobre a política das duas Coreias contemporâneas pode ser
compreendido sem esmiuçar os acontecimentos do período que se estende de
1945 até 1953. Esse foi o marco de um terreno ideologicamente fértil para os
dois países, de uma guerra catastrófica e de uma reordenação da política
internacional no nordeste asiático. Como pode ser visto nas figuras 3 e 4, a
narrativa norte-coreana pregada em manhwas para sua própria história
perpassa o antigo período de unidade na península, mas inclui também mitos
fundadores que exaltam os trabalhadores locais e os membros da dinastia Kim
(LENT, 2009).

Figuras 3 e 4 - Da direita para a esquerda: capas dos volumes 2 e 4 da série


em manhwa History of Korea (1999), de Cha Hyeong-sam, Kim Myeong-je, Kim
Byeong-ryong e Pak Seung-jeong, publicados originalmente pela The
Association of Choson Publication Exchange.

24
O historiador Bruce Cummings (1997, apud VISENTINI et al., 2015) define o
sistema político norte-coreano: “[...] com base em sua singularidade histórica,
como um regime corporativista neoconfuciano, no qual o papel revolucionário
da classe operária, pregado pelo marxismo, teria sido substituído pelo da
nação. Conceito derivado na tradição confucionista do papel da família como
ideal de comunidade, a nação, portanto é entendida como uma grande família,
que deve estar acima de tudo. Essa ênfase justifica a existência de um Estado
forte e centralizado, que tenha controle sobre toda a sociedade e a economia.”

Somando-se a isso, há um fator bastante sui generis na compreensão da


política local: o culto à personalidade do líder — sempre na figura do membro
da dinastia Kim — dessa sociedade altamente corporativista, porém
pretensamente igualitária. Dessa maneira, a mescla entre o marxismo europeu
e o confucionismo asiático se consolida no sentido da priorização de um regime
sólido, unitário e nacionalista. Outrossim, cabe recordar a fala de Kim Jong-il
quando do desmembramento da União Soviética, ocasião em que explicita a
centralidade da ideologia no sistema político norte-coreano ao alegar que a
queda da URSS teria vindo em decorrência da falta de doutrinação da
juventude (JESUS, 2018).

Figuras 5, 6 e 7 - Da esquerda para a direita: capa do manhwa The Secret of


Frequency A (1994), de Eom Jeong-hui e Ko Im-hong, publicado originalmente
pela Kumsong Youth Publishing Company; e duas páginas internas da mesma
obra, traduzidas pelo Prof. Dr. Heinz Insu Fenkl.

Como pode ser visto nas figuras 5, 6 e 7, as mensagens transmitidas mesmo


em obras voltadas ao público infantil são de caráter replicante daquilo que o
Partido dos Trabalhadores da Coreia considera um futuro ideal de nação
(PETERSEN, 2018). A passagem dos valores defendidos pela filosofia Juche
às novas gerações se mostra uma condição sine qua non para a manutenção
do sistema vigente. O último quadro da figura 13 contém uma referência direta
a esses preceitos no diálogo entre os personagens: “Esplendido! Vocês
combateram bem como jovens coreanos exemplares que seguem a filosofia
Juche” (EOM; KO, 1994, tradução nossa). Tal prática contém elementos claros
de replicação da supracitada instrumentalização da mídia dos quadrinhos, não

25
sendo uma exclusividade da Coreia do Norte e nem mesmo pioneirismo da
dinastia Kim, mas guardando grande influência das produções japonesas.

É importante notar que esse futuro de nação imaginado pelas lideranças locais
passa por uma constante iminência de conflito, uma vez que os EUA e o Japão
são considerados rivais a serem derrotados, uma vez que são culpabilizados
pela dinastia Kim quanto à separação das Coreias. Em paralelo, a abundante
presença estadunidense na porção sul da península, tanto militarmente quanto
em influência cultural, torna recorrente a alimentação do ambiente belicoso. Os
investimentos militares norte-coreanos representam uma alta porção do PIB do
país (SANTORO, 2013), mas suas demonstrações de força não se dão de
maneira injustificada, pelo menos segundo a narrativa adotada internamente e
reforçada através dos mais diferentes meios culturais e de informação.
Conforme ilustrado pelas figuras 8, 9 e 10, ação, guerra e espionagem são
temas recorrentes nos manhwas norte-coreanos também de forma mais direta,
assim como têm sido questões que permeiam a vida política do país desde sua
fundação, algo que perpassa obrigatoriamente o cotidiano de sua população,
uma vez que se trata de uma nação substancialmente fechada.

Figuras 8, 9 e 10 - Da esquerda para a direita: capa de Three Days at the


‘Area 7’ (1987), de Kim Pyong-taek e Pak Yun-kol; capa do primeiro volume de
The Silent Outpost Line (2006), de Kim Chol-guk, Kim Song-il e Choe Kun-ho; e
capa de The Identity of the ‘White Fox’ (2012), de Chang Chae-gap e Chang
Sun-ae. Todos três manhwas publicados originalmente pela anteriormente
citada Kumsong Youth Publishing Company.

Assim como já pôde ser percebido em outras obras destacadas anteriormente,


a incipiente indústria norte-coreana de histórias em quadrinhos ainda se utiliza
de um padrão estético bastante similar àquelas produzidas no ocidente em
meados do século XX. Essa característica não pode ser apontada
isoladamente, uma vez que muito do que o país se constitui hoje ainda é
remanescente do período de separação da península coreana. Os mais
diversos embargos econômicos e barreiras diplomáticas impostas ao longo dos
anos pelo sistema internacional ao regime da família Kim tornaram o
insulamento cultural e tecnológico uma opção única (HARRIS, 2007). Como
simbolizado pelas figuras 11 e 13, mesmo manhwas produzidos no escopo do
século XXI possuem tipografia e elementos visuais que remetem a um período

26
histórico de passado recente. Essa percepção em muito dialoga com os
consistentes relatos de que a sociedade norte-coreana tem seu cotidiano
arraigado no passado.

Figuras 11, 12 e 13 - Da esquerda para a direita: capa de Snowstorm at the


Tropical Forest (2001), de Cho Hak-nae e Yi Chol-kun; capa de The Legend of
Pisasong (2008), de Song Kwang-myong; e capa de Emergency Telegram
(1992), de Chang Chae-gap e Chang Sun-ae. Todos três manhwas também
foram publicados originalmente pela supracitada Kumsong Youth Publishing
Company.

Já na figura 12, outro aspecto merece destaque: o resgate de elementos e


sujeitos míticos da história nacional como personagens de protagonismo
mesmo em manhwas desenvolvidos para o público infanto-juvenil. Para além
da manutenção de uma estética que remete ao mangás japoneses das
décadas de 40 e 50, a propagação para a população mais jovem dos feitos
desses indivíduos compõe parte importante da construção de um senso de
continuidade histórica que é defendido pela política governamental, incluindo a
unidade da península coreana.

A instrumentalização em prol da coesão social


Ao contrário do que possa ter parecido até o presente momento, a propagação
da ideologia Juche através dos manhwas norte-coreanos não se limita aos
preceitos de uma sociedade ordeira e subordinada ao seu líder vigente. Outro
aspecto bastante relevante observado nessas obras é a perpetuação do ideário
de uma perpétua preparação para uma guerra iminente. Não seria razoável
dissociar completamente esse fator da ordem social pregada, porém, assim
como ilustrado nas figuras 14, 15 e 16, essa mesma ordem só tem uma razão
de ser caso esteja centrada na ativa política de defesa — ou ataque
preemptivo, segundo a narrativa nacional — do governo norte-coreano.

27
Figuras 14, 15 e 16 - Da esquerda para a direita: capa do manhwa The Great
General Mighty Wing (1994), de Cho Pyong-kwon e Lim Wal-yong, novamente
publicado originalmente pela Kumsong Youth Publishing Company; e duas
páginas internas da mesma obra.

Mighty Wing é um dos personagens mais famosos das histórias em quadrinhos


locais e possui um significado muito especial nesse intenso diálogo entre
política e a nona arte. Publicada originalmente em 1994, ano da morte de Kim
Il-sung — fundador da Coreia do Norte —, e contando com páginas
inteiramente coloridas, ao contrário do tradicional papel jornal preto e branco, a
obra trata de temas duros como a ocupação japonesa na península, ainda que
fosse voltada para atenuar ideologicamente entre crianças os efeitos deletérios
da inédita ausência do “Grande Líder” (FENKL, 2008).

Dentro desse mesmo âmbito, outra temática muito explorada pelos manhwas
infantis do país é o folclore tradicional, que carrega consigo uma série de lições
passadas há séculos e séculos através de histórias fantasiosas. As figuras 17,
18 e 19 trazem algumas capas de vasta coleção voltada para este fim,
publicada em 2004, e demonstram bem claramente duas características
centrais desse material: propagação de ideais tidos como bons costumes pela
cultura local; e a manutenção de tradições típicas do período anterior à
separação das Coreias, ilustrando o apreço norte-coreano pela reunificação
nos moldes de uma cultura que não mais existe é propagada ao sul da
península.

28
Figuras 17, 18 e 19 - Da esquerda para a direita: capa de The Sword and
Three Strong Men (2004), de Pak Song-nyong; capa de The Frog Who Used to
Not Listen (2004), de Pak Song-nyong, Im Myong-huI e Choe Sung-ok; e capa
de A Boy Who Caught a Thief (2004), de Pak Song-nyong, Son Myong-hui e
Choe Sung-ok. Todos três manhwas publicados originalmente na coleção de
Picture Books of Choson Folkores.

Narrativa do inimigo estrangeiro


Assim como as estereotipizações presentes nos primórdios dos comics
estadunidenses e nos mangás japoneses do período das Grandes Guerras, tal
ferramenta também pode ser encontrada em obras norte-coreanas. Uma
diferença digna de nota é o fato desse recurso ter sido largamente utilizado por
lados beligerantes em conflitos armados (ou não) no início do século XX,
enquanto as figuras 20, 21 e 22 são capazes de demonstrar como um manhwa
publicado originalmente no ano de 2005 ainda se inspira expressivamente
nessa estética outrora popular no vizinho Japão.

Figuras 20, 21 e 22 - Da esquerda para a direita: capa do manhwa The Losing


"General" and a Mayfly (2005), de Mun Yong-chol e Paek Hak-hun, publicado
originalmente pela Literature and Arts Publishing Company; e duas páginas
internas da mesma obra, onde George W. Bush figura como personagem.

Seguindo fielmente a narrativa de culpabilização dos EUA em relação à


separação da península, uma vez que a Coreia do Norte não procura rivalizar
diretamente com seu vizinho ao sul e adota uma retórica de pertencimento
mútuo, o manhwa The Losing "General" and a Mayfly traz como um de seus
personagens o ex-presidente estadunidense George W. Bush. À época da
publicação, Bush ainda exercia seu cargo na Casa Branca e ostentava uma

29
relação nada amigável com o governo norte-coreano, liderado por Kim Jong-il
(FIFIELD, 2020). As páginas internas, representadas pelas figuras 21 e 22,
trazem uma profusão de insultos ao chefe do executivo dos EUA, reproduzindo
em quadrinhos o discurso de ódio que podia ser observado na realidade de
ambas as partes.

Considerações finais
Por fim, recorda-se que este trabalho objetivou traçar correlações de
influências estética e temática entre os mangás japoneses do início do período
das Grandes Guerras e a produção de manhwas norte-coreanos ao longo da
segunda metade do último século. Na impossibilidade de esgotar o tema, mas
sim proporcionando insumos para que futuras pesquisas sejam também
desenvolvidas na área, acredita-se ser razoável a alegação de que a ocupação
japonesa em território coreano, com sua respectiva sobreposição cultural nada
amigável, deu o tom de muito do que seria produzido culturalmente na porção
da península que optou pelo insulamento após a divisão das Coreias.

Conforme demonstrado pelas numerosas capas e páginas de manhwas


presentes ao longo do texto, mesmo quando de obras norte-coreanas datadas
de poucos anos atrás, ou seja, aquelas mais recentes que puderam ser obtidas
dentro das condições dificultosas de disponibilização de material primário,
possuem características de ilustração e acabamento de produção que remetem
a um passado cada vez mais distante. Ao passo que essas características
certamente dialogam com as dificuldades econômicas enfrentadas pelo
pequeno país, em função dos sucessivos embargos a ele empregados pelo
sistema internacional, não se pode negligenciar também que cultuar um
passado virtuoso e de união da península coreana parece fazer parte de um
contexto intencionado por essa incipiente indústria local.

Outro tema evidenciado pela análise do corpus aqui esmiuçado é a replicação


através de histórias em quadrinhos da narrativa de um inimigo estrangeiro
comum a toda a península. Conforme as relações políticas bilaterais de alto
escalão entre os dois países indicam, há uma simpatia norte-coreana pela
reunificação, ainda que haja enorme inflexibilidade quanto aos moldes desse
processo. Já na porção sul, o regime democrático acaba proporcionando uma
alternância de poder entre grupos políticos antagonistas que tem
historicamente gerado falta de continuidade nas negociações. No entanto, ao
menos um elemento cultural é significativamente compartilhado entre os dois
lados da península: o rancor em relação ao Japão pelo que foi praticado
durante o período de ocupação e até hoje gera desconforto diplomático ao país
vizinho. Não à toa esses entes estrangeiros às Coreias são os principais vilões
de uma cultura de quadrinhos pouco explorada que, por vezes, espelha de
maneira inversa produções ocidentais, em termos de estereótipos e
propagação ideológica.

Referências
Felipe Alberto é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI/UERJ)

30
como bolsista da CAPES. Pesquisador do Núcleo de Estudos Atores e
Agendas de Política Externa (NEAAPE/IESP) e da Associação de
Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS). E-mail: fvidal804@gmail.com

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Londres: Routledge, 2018.

31
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MELCHIONNA, Helena Hoppen. A Revolução Coreana: o desconhecido
socialismo Zuche. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

32
MELODRAMA DA LUTA DE CLASSES NO CINEMA DA COREIA
DO NORTE: KIM JONG-IL E OS CONFLITOS NARRATIVOS,
por Gabriel da Silva Pinheiro

A origem da palavra "melodrama" remonta ao termo grego "melos", que


inicialmente era utilizado para descrever uma forma de teatro acompanhada
por música. Essas composições eram selecionadas para intensificar as
situações retratadas no palco. Ao longo do tempo, o termo "melodrama"
adquiriu um novo significado, passando a representar um estilo de drama
caracterizado por sensacionalismo, emoções intensas, exageros, cenas de
ação impactantes, violência, retórica exagerada, contrastes morais extremos,
vilania cruel e a subsequente derrota dos vilões, culminando no triunfo do bem.
[Dissanayake, 1993, p.1]. O melodrama desde o seu surgimento se moldou de
diversas formas. A pesquisadora Ivete Huppes em seu livro Melodrama -
Gênero e sua permanência afirma categoricamente que reconhece no
melodrama: “uma das criações estéticas mais importantes do século XIX”.
[2000, p.10]. Essa importância e consequente permanência do gênero se deve
para Huppes à capacidade de se moldar em diferentes níveis e aspectos as
suas particularidades de acordo com as necessidades do seu ambiente e
localização histórica:

“O melodrama reflui, mas retoma o fôlego com o surgimento das modernas


variedades de entretenimento popular. Os meios de comunicação de massa,
em especial o cinema e a televisão, propiciam-lhe um hábitat estimulante. [...] A
persistência da forma e o êxito continuado do melodrama estão relacionados,
pois, com uma série de fatores. Ficam a dever, por exemplo, à permeabilidade
para incorporar inovações, sejam elas de natureza temática ou composicional.
O melodrama assume um certo ar de crônica para repercutir as inquietações
da hora, enquanto absorve convenções sucessivas, sem traumas de
identidade.” [HUPPES, 2000, p.10-11].

Tomando como base a descrição estrutural do gênero melodramático feita por


Huppes [2000, p. 27-30] podemos dizer que o melodrama é caracterizado por
sua estrutura simplificada e pela ampla liberdade na organização da trama. A
narrativa é marcada por uma ação dinâmica, alternando rapidamente entre
momentos de desespero e tranquilidade. Além disso, estabelece contrastes
intensos entre personagens e emoções, de forma a envolver e seduzir o
público. É capaz de surpreender o espectador com reviravoltas inesperadas na
trama e enfatiza a arte como uma construção manipulada pelo autor. Nesse
sentido, o melodrama agrupa fragmentos dentro da obra, priorizando a forma
estética em detrimento da verossimilhança. A característica melodramática que
enfatizamos aqui é a de que os confrontos narrativos têm na luta entre o bem e
o mal um tema frequente. Afinal o melodrama evita ambiguidades e o meio-tom
[Huppes, 2000, p.14-15], esse é um elemento crucial para encantar plateias

33
que não estão habituadas a sutilezas. Como afirma Ivete Huppes: “no final,
graças à reação violenta, que inclui duelos, batalhas, explosões, a virtude é
restabelecida e o mal conhece exemplar punição. O movimento representa
uma confirmação da boa ordem: aquela que deve permanecer de agora para
sempre.” [2000, p. 27]. Ela complementa:

“Aqui as personagens se movimentam num mundo mais simples. Não há


nuanças. O universo das possibilidades humanas está reduzido a duas
alternativas rotuladas desde o começo, uma corresponde ao bem; a outra, ao
mal. O conflito é claramente um embate entre campos separados e as
personagens - como os espectadores têm suficiente lucidez para distinguir um
do outro. [...] No melodrama, quem escolhe a alternativa perversa, não a
escolhe cego. Em detrimento da moral, as personagens malvadas colocam os
projetos próprios. Por isto mesmo o público aplaude o infortúnio que se abate
sobre eles no desfecho.” [HUPPES, 2000, p.111-112].

Como afirma Wimal Dissanayake, na introdução do livro Melodrama and Asian


Cinema, o melodrama desempenha um papel significativo como forma de
expressão artística em diversas culturas asiáticas: “embora nenhuma das
línguas asiáticas possui um sinônimo para essa palavra. Os termos que
encontramos no uso moderno são criações recentes baseadas na palavra
inglesa.” [1993, p. 3, tradução minha]. Dentro deste contexto é perceptível que
o cinema da República Popular Democrática da Coreia, também conhecida
como Coreia do Norte, é escassamente permeado por nuances. Tal
característica advém do caráter ideológico, que permeia sua cinematografia.
Nesse país, assim como em outras nações que adotaram ou ainda aderem à
tradição do marxismo-leninismo, é uma realidade o emprego do cinema como
veículo ideológico. O papel do cinema enquanto instrumento político é
manifestamente claro inclusive em suas reflexões teóricas. Segundo Lênin, o
cinema é e sempre foi a mais importante das artes para a manutenção da
revolução na União Soviética.

Na Coreia do Norte constata-se que a produção cinematográfica é submetida


ao controle estatal em todas as suas esferas. A manifestação artística em sua
totalidade é orquestrada pelo governo, com o intuito de estabelecer um vínculo
entre a população e a ideologia oficial, denominada Juche, o marxismo-
leninismo coreano. Ressalta-se que Kim Jong-il, segundo líder do país,
demonstrou um interesse pessoal de longa data pela produção
cinematográfica, culminando na redação de um tratado teórico sobre cinema no
início da década de 1970. Conforme Schönherr [2011, p. 5-6] Kim Jong-il,
adentrou o Comitê Central do Partido dos Trabalhadores da Coreia em 1964 e,
desde o início, imergiu no mundo das artes, notadamente no campo do cinema,
a partir da década de 1960. Em 1973, Jong-il ascendeu à posição de
supervisor do Departamento de Propaganda e Agitação. Vale salientar que seu
pai, Kim Il-sung, então líder da República Popular Democrática da Coreia,
estava ciente do papel central que o cinema poderia desempenhar como uma
poderosa ferramenta de propaganda, capaz de alcançar todos os estratos da

34
sociedade e evocar respostas emocionais intensas nos espectadores.
Schönherr explica:

“A realidade do cinema norte-coreano no início dos anos 1960 apresentava um


panorama onde os filmes produzidos eram frequentemente pouco
convincentes, estereotipados e careciam de uma compreensão básica dos
verdadeiros poderes do cinema. Kim Jong-il decidiu mudar isso radicalmente.
Ele era um cineasta, conhecia bem os desenvolvimentos do cinema
internacional e sabia que força emocional um bom filme poderia evocar. A
produção de filmes tornou-se sua paixão. [...] Embora ele tenha permanecido
em segundo plano, sempre apenas dando ‘orientação’ aos verdadeiros
cineastas e nunca aparecendo nos créditos, seu impacto foi tremendo.”
[SCHÖNHERR. 2011. p. 5. tradução minha].

O livro de Jong-il intitulado, na tradução para o inglês, On The Art Of Cinema


(영화예 술론), lançada em 1973, assume um papel significativo neste contexto. Nele
Kim expõe minuciosamente suas reflexões sobre a forma como os filmes da
Coreia do Norte devem ser concebidos. A partir desse momento, todas as
produções cinematográficas passaram a obedecer às diretrizes estabelecidas
na referida obra [Schönherr, 2011, p. 5-6]. No livro, Kim Jong-il busca aplicar os
princípios da ideologia Juche às questões do cinema, da literatura e da arte.
Conforme delineado na publicação, a revolução no cinema é um meio de
revolucionar a arte como um todo, bem como de expor a sociedade à linha do
Partido dos Trabalhadores da Coreia. A obra abrange diversos aspectos do
cinema, incluindo teorias cinematográficas e literárias, atuação, performance,
trilha sonora, composição visual, cinematografia, figurino, maquiagem e
adereços. De particular importância são os temas relacionados à direção e à
produção, que são reconhecidos como as forças motrizes do cinema.

Um tópico primordial para a compreensão da obra de Jong-il, para a produção


cinematográfica da Coreia do Norte e que é o objeto da análise deste texto e a
sua relação com as estratégias narrativas melodramáticas reside no conteúdo
por trás do estabelecimento dos conflitos narrativos presentes nos filmes norte-
coreanos. No livro Jong-il advoga que a luta de classes deve balizar as
polarizações morais e os conflitos narrativos das obras. Essas polarizações
morais entre bons e maus, mas que também podemos ler como a oposição
entre compatriotas e estrangeiros, e explorados e oprimidos também é uma
das estratégias adotadas pelo melodrama de acordo com Ivete Huppes, como
pudemos ver anteriormente. No capítulo do livro, intitulado: “Conflitos devem
ser estabelecidos de acordo com a lei da luta de classes” [Kim, 1989, p.95,
tradução minha], Kim Jong-il afirma categoricamente que o conflito na arte é o
reflexo da luta de classes na vida, e as contradições e a luta entre posições e
ideias de classes opostas na vida real são a base dos conflitos artísticos.
Quando os conflitos narrativos são estabelecidos com base na luta de classes,
tais obras têm a capacidade de representar adequadamente a lei do progresso
histórico e a verdade. [Kim, 1989, p.96]. Jong-il elabora:

35
“As lutas entre o progressista e o conservador, entre o ativo e o passivo, entre
o coletivismo e o egoísmo, ou seja, a luta entre o novo e o antigo, entre o
socialismo e o capitalismo em geral, são o conteúdo básico de nossa luta
revolucionária. Essa luta aguda passa por um constante desenvolvimento em
todos os campos da política, economia, cultura e moralidade. Assim como a
verdadeira luta revolucionária é diversa e rica em conteúdo, os conflitos
artísticos que espelham a luta de classes por meio de histórias de vida
específicas também devem ser diversos em sua natureza. [...] Mas a
diversidade dos conflitos não altera sua essência, que reflete a luta de classes.”
[KIM, 1989, p.96-97, tradução minha].

Para Karl Marx e Friedrich Engels, a luta de classes é o motor da história.


[2008, p.10]. Esses dois pólos opostos, que no atual estágio da coisa são lidos
como burguesia e proletariado, sempre estiveram em contraposição: “em uma
luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre com a
transformação revolucionária da sociedade inteira ou com o declínio conjunto
de classes em conflito”. [Marx e Engels, 2008, p.10]. Por mais que o marxismo-
leninismo coreano tenha se modificado para se tornar o que seria a ideologia
Juche, as bases teóricas dela ainda se encontram nos escritos de Marx e
Engels. Para Jong-il essa leitura da constante luta entre oprimidos e
opressores, e até entre as relações de reacionarismo e progressismo dentro da
prórŕia sociedade socialista, onde teoricamente e de acordo com Kim não
existe exploração de uma classe sobre a outra, deveria então ser o motor dos
conflitos narrativos da arte e principalmente do cinema norte-coreano. Jong-il
explica:

“Na sociedade exploradora, o antagonismo e a luta entre a classe exploradora


e a classe explorada, entre a classe dominante e a classe dominada,
constituem a base das relações sociais. Consequentemente, os conflitos em
qualquer obra de arte que espelhe essa relação social são antagonistas. Mas
na sociedade socialista, que está livre de classes exploradoras, a cooperação
fraterna e a união entre a classe trabalhadora, os agricultores cooperativos e os
intelectuais trabalhadores formam a base das relações sociais. Portanto, os
conflitos artísticos que refletem essa relação social são conciliáveis. Os
conflitos na arte, portanto, devem ser corretamente definidos de acordo com o
caráter da relação social que eles refletem. Somente dessa forma eles podem
ser definidos corretamente e de acordo com a lei do progresso social.” [KIM,
1989, p.99, tradução minha].

Consideramos a existência de uma relação entre a polarização moral típica do


gênero melodramático e a representação da oposição entre as classes sociais
no contexto do cinema norte-coreano, conforme exposto por Kim Jong-il. Essa
análise pressupõe que, por meio dessa abordagem, a mensagem política e
ideológica subjacente aos conflitos narrativos presentes no cinema coreano
adquira um caráter pedagógico, visando educar as massas. A intenção é evitar
sutilezas, tornando clara para o espectador as posições ocupadas por cada
personagem no quadro moral da obra, a fim de eliminar qualquer dúvida quanto
àqueles que possuem o monopólio da virtude. Kim Jong-il afirma:

36
“Para resolver os conflitos de acordo com a lei da luta de classes, os escritores
devem basear sua abordagem neles nas posições da linha de classe e linha de
massa de nosso Partido. Os conflitos nas obras literárias refletem diretamente
essas linhas. A resolução dos conflitos de acordo com os requisitos da política
do Partido é o caminho absolutamente correto para resolver as contradições
sociais e aumentar substancialmente o papel cognitivo e educacional das obras
literárias.” [KIM, 1989, p.109-110, tradução minha].

Com o intuito de analisar as relações entre o melodrama e os conflitos


narrativos delineados pela luta de classes, conforme proposto por Jong-il para
a produção cinematográfica norte-coreana, realizaremos uma análise de uma
cena do filme musicado intitulado "A Garota das Flores" (꽃파는처녀), dirigido em
1972 por Hak Pak e Ik-gyu Choe. Este filme representa uma adaptação de uma
das cinco grandes óperas revolucionárias norte-coreanas, que funcionam como
mitos fundadores do país.

A trama se desenrola durante a década de 1930, quando a península coreana


ainda estava sob ocupação japonesa, e conta a história de Koppun,
interpretada por Yong Hui Hong, uma jovem coreana sofrida que vende flores
que colheu nas montanhas na tentativa de obter dinheiro para comprar
remédios para sua mãe, interpretada pela atriz Hu Nam Ru, que está
gravemente enferma. Seu pai faleceu, sua irmã Sun Hui (Pak Hwa Son) ficou
cega devido a um incidente envolvendo os senhores das terras onde a família
trabalha, e seu irmão Chol Yong (Ren Rin Kim) está desaparecido após ter sido
preso. Posteriormente, descobre-se que Chol Yong uniu-se ao movimento de
resistência contra o imperialismo japonês, e, após muitas lágrimas e
reviravoltas melodramáticas, Koppun decide juntar-se a seu irmão sob a
liderança de Kim Il-sung, a fim de ajudar o movimento que busca expulsar os
ocupantes estrangeiros.

Em uma cena específica, que ocorre no final do primeiro quarto do filme,


aproximadamente aos trinta e cinco minutos, Koppun, após receber uma dica
de uma amiga vendedora de ervas e folhas, dirige-se a uma área mais
abastada da aldeia, próxima a um bar japonês, na esperança de vender suas
flores e obter um pouco mais de dinheiro. Nessa cena, podemos observar a
protagonista vagando pela rua, sendo ignorada pela maioria das pessoas que
passam pela movimentada via, mesmo durante a noite. O espaço retratado é
completamente distinto do que normalmente é apresentado no filme. As lojas
são mais requintadas, a iluminação é intensa e as vestimentas das pessoas
são elegantes.

37
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=mEO4JhhA8IQ

Após realizar uma venda de um buquê, um homem que está saindo do bar
japonês, acompanhado por uma mulher, aborda Koppun com o intuito de
adquirir algumas de suas flores para presenteá-la. O homem está vestindo um
terno fino, sorri e fuma um cigarro. Quando a transação está prestes a ser
finalizada, a mulher que o acompanha, trajando um quimono tradicional
japonês confeccionado com um tecido delicado, volta seu olhar para as flores e
demonstra interesse pelo presente. No entanto, sua expressão facial muda
drasticamente ao observar Koppun. A expressão facial da mulher torna-se uma
manifestação de repulsa diante das roupas puídas com as quais a protagonista
está vestida, e ela automaticamente afasta-se da protagonista, levando um
lenço ao nariz como sinal de desgosto e reprovação pela presença de Koppun
naquele local.

Fontes: https://www.youtube.com/watch?v=mEO4JhhA8IQ

38
"Suja", a mulher japonesa fala, e, em seguida, o homem, por meio de um gesto
de desistência da compra, cospe o cigarro em Koppun e vai embora. A câmera
enfoca a reação abalada da protagonista, enquanto os acordes da música tema
do filme são audíveis ao fundo, sendo repetidos algumas vezes como um
motivo musical do filme. Em um tom melodramático, embalada pela música, a
protagonista, visivelmente abalada, dirige seu olhar para suas próprias
vestimentas e a câmera acompanha seu olhar até suas gastas sandálias.
Nesse momento, o vocal da música entra e Koppun prossegue em sua
tentativa de vender as flores, porém com sua moral abalada e sem sucesso
nas vendas, enquanto a música continua a tocar até o fim.

Fontes: https://www.youtube.com/watch?v=mEO4JhhA8IQ

A cena em questão exemplifica de acordo com as concepções de Huppes a


dinâmica estabelecida no melodrama, com uma clara polarização e
antagonização entre partes específicas. Ao longo do filme, acompanhamos a
história sob a perspectiva de Koppun, uma jovem sofrida e pobre, porém leal e
trabalhadora. Ao ser retratada nessa situação, não há dúvidas de que os
“outros" são os personagens que menosprezam a protagonista, que estão em
clara oposição à ela. Esses personagens são representados e entendidos
como membros de uma elite burguesa associada aos japoneses, que estavam
ocupando e oprimindo o território coreano na época histórica e no contexto
diegético do filme. Esses personagens possuem melhores trajes, têm mais
recursos financeiros para gastar e desfrutam de momentos de diversão e risos,
usufruindo de um poder que Koppun e sua família não possuem. Esse poder é
o mesmo que os senhores das terras onde a família da protagonista trabalha
detêm, um poder intrinsecamente ligado à classe social ocupada nesse
contexto. Portanto, a polarização apresentada no filme, de natureza
melodramática, também possui uma dimensão de oposição de classes no
âmbito da luta entre opressores e oprimidos, seguindo as diretrizes
estabelecidas por Kim Jong-il para o cinema norte-coreano.

39
Conclusão
Conforme determinado por Jong-il (1989, p.97), o correto estabelecimento dos
conflitos narrativos, ancorados no contexto da luta de classes, pode oferecer
uma compreensão mais aprofundada da linha adotada pelo Partido dos
Trabalhadores da Coreia. Essa linha, em momento algum, questiona a
inevitabilidade da vitória na construção do socialismo e do comunismo, e, antes
disso, a vitória da guerrilha revolucionária norte-coreana. Após a representação
desta cena melodramática e pedagógica e de todo o calvário enfrentado por
Koppun ao longo do filme, torna-se evidente que, ao decidir unir-se ao seu
irmão na luta pela revolução socialista, sob as ordens de Kim Il-sung, ela
possui todos os motivos para fazê-lo.

Sob a égide de Kim Jong-il, que abraçou a linha e a tradição política de Marx e
Engels no empreendimento de construir o socialismo na Coreia, o cinema
emergiu como uma poderosa ferramenta política e ideológica, materializando
em imagens e sons concepções como a seguinte: "A burguesia não forjou
apenas as armas que a levarão à morte, produziu também os homens que
usarão essas armas." [MARX e ENGELS, 2008, p.21]. Nesse contexto, o
cinema norte-coreano, sob a orientação de Jong-il, assumiu um papel central
na disseminação das ideias revolucionárias e na conscientização das massas
coreanas, delineando as relações de poder e as contradições inerentes à
estrutura social e política da sociedade. É evidente que essa abordagem se
vale de estratégias melodramáticas na concepção do cinema norte-coreano,
como explicitado pelo caso específico aqui apresentado.

Referências
Gabriel da Silva Pinheiro é pesquisador em cinema e audiovisual. Atualmente,
é mestrando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Atualmente se dedica à investigação da cinematografia da Coreia do
Norte e, de forma mais abrangente, as relações entre Estado, política e
ideologia no cinema.

DISSANAYAKE, Wimal. Introduction. In: DISSANAYAKE, Wimal (ed.).


“Melodrama and Asian Cinema”. Cambridge University Press, 1993.

HUPPES, Ivete. “Melodrama, o gênero e sua permanência”. São Paulo, Ateliê


Editorial, 2000.

KIM, Jong-il. “On The Art Of Cinema”. Pyongyang, RPD Coreia: Foreign
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. “Manifesto do Partido Comunista”. 1. ed. São


Paulo: Expressão Popular, 2008.

SCHÖNHERR, Johannes. “North Korean cinema: A history”. McFarland &


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40
SCHÖNHERR, Johannes. “The North Korean Films of Shin Sang-ok”.
社会システム研究. No. 22. 2011. p. 1-22.

Filmografia
A GAROTA DAS FLORES (꽃파는처녀). Direção: Hak Pak, Ik-gyu Choe. Roteiro:
Kim Il-sung. Korean Film, 1972. 127 mins. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mEO4JhhA8IQ

41
POLÍTICAS CULTURAIS DO GOVERNO MOON JAE-IN (문재인,
2017-2022) PARA A ONDA COREANA, por Helmer Marra

Introdução
O presente trabalho tem como tema as políticas culturais no mandato de Moon
Jae-in (문재인) na República da Coreia, com um recorte para aquelas sobre a
Hallyu (Onda Coreana). Para isso, objetiva-se apresentar um panorama do que
foi estabelecido e descrever alguns dos resultados adquiridos por meio da
Diplomacia Pública. Justifica-se a relevância dessa pesquisa dada a falta de
publicações acerca da temática, seja com foco nos esforços governamentais
para com a Onda Coreana, seja na necessidade de mais investigações em
língua portuguesa na área dos estudos coreanos, em constante emergência no
Brasil.

A administração de Moon iniciou em um período atípico para os sul-coreanos,


em maio de 2017, após as eleições em março, devido à saída da presidente
Park fruto da ação de impedimento que a tirou do poder. Como parte do Partido
Democrata, o novo presidente era liberal e um dos seus expoentes foram as
várias conversas diplomáticas com Kim Jong-un (김종운), líder da Coreia do
Norte, numa visão da península unificada. O mandato em questão é apontado
por Jin [2021] como o início da Hallyu 3.0 ou a Terceira Onda Coreana, dadas
as novas e diferenciadas políticas culturais executadas.

O texto divide-se em introdução, assim como dois tópicos para


contextualização, um de prática de Diplomacia Pública, um sobre discursos e
um com as políticas culturais do governo e as considerações finais com o
fechamento do artigo. Para fundamentar o trabalho, empregou-se a revisão
bibliográfica em artigos científicos sobre o mandado de Moon Jae-in, a
Diplomacia Pública sul-coreana e as políticas culturais voltadas para a Hallyu
no período de 2017 e 2022. Os termos em coreano encontram-se romanizados
conforme ou o padrão revisado pelo Instituto Nacional da Língua Coreana
(National Institue of Korean Language) ou a versão revisada na literatura
publicada.

Onda Coreana (Hallyu) e a Diplomacia Pública


As políticas de incentivo à cultura e suas diversas expressões começaram a
ser feitas com a criação do Ministério da Cultura no governo Roh Tae-woo em
1989. Na década de 1990 iniciam-se os fomentos a Indústria Cinematográfica
sul-coreana, que mais tarde marcam parte do início da Hallyu, com a
industrialização do setor cultural. O termo foi cunhado somente no final daquela
década, como o consumo de jovens chineses dos produtos culturais sul-
coreanos que eram exportados pela China [LEE, 2019].

42
Em 1999, o presidente Kim Dae-jung (김대중, 1998-2003) proclama o Ato
Básico de Promoção das Indústrias Culturais, como primeira expressão para
formalização de incentivo da Onda e a importância que o Estado daria para a
cultura [PARK, 2015]. Reforça-se que já haviam fomentos ao setor, todavia
sem uma lei própria para regulamentação. Até 1997, quando a Crise Asiática
atinge a Coreia do Sul, o objetivo era de um retorno econômico e
posteriormente ganha um caráter de mudança da imagem do país frente a
comunidade internacional [LEE, 2019].

Devido à mudança de paradigma, também alteram-se a forma do governo de


pensar e executar as políticas culturais (inter)nacionalmente. Em que a Onda
passa a funcionar como um instrumento da Diplomacia Pública [NYE, 2008;
JIN, 2022; KAMON, 2022], no esforço de construção de um nation branding
[FAN, 2010]. Para atrair vários atores, sejam Estados ou Organização
Internacionais, sejam indivíduos não-oficiais para promovem por um consumo
de adereços como os valores e os produtos culturais coreanos para o mundo
[BADER, 2016].

Crise do THAAD
Dada a continuidade da crise do THAAD, iniciada no mandato de Park Geun-
hye (박근헤, 2013-2017), em 2016, a administração Moon foi obrigada a tomar
medidas. Visto que empresas como CJ E&M, SME, YGE e JYPE como
grandes expoentes da Indústria de K-Pop pelo mundo tiveram queda de mais
de 30% em suas ações, como outras de cosméticos e lojas duty-free. Essas
são lojas de aeroporto, consideradas com preços mais baratos do que as fora
daquela dependência devida a baixa carga nos impostos. Feitas para atrair
turista que passam pelo local para comprarem e levarem o produto para seu
país de destino. Elas foram afetadas pela sua dependência do mercado chinês,
o que gerou sequelas nas políticas governamentais e na marca nacional sul-
coreana [KAMON, 2022].

Em medida para sanar isso foi lançada a Nova Política Sulista (New Southern
Policy). Atenção especial é dada à necessidade de aumentar os planos
“relacionados às pessoas” que incluem um foco na melhoria do turismo
doméstico por meio do aumento dos intercâmbios culturais. Há também metas
para a criação de bolsas de estudos para estudantes internacionais, expansão
de intercâmbios governamentais com estagiários industriais, expansão de
intercâmbios de funcionários públicos, apoio adicional a trabalhadores
estrangeiros, assistência adicional na erradicação da pobreza,
desenvolvimento rural e cooperação para o desenvolvimento em serviços
médicos. Mais uma evidência é a demanda pela expansão do marketing da
Onda Coreana voltada para o países-membros da ASEAN e a promoção da
“exportação de bens de consumo coreanos para o mercado por meio de canais
de compras domésticas no exterior” [KAMON, 2022, p. 16 – Tradução livre].

Sunshine Policy e as Olimpíadas de Inverno de 2018

43
Como parte da Política da Luz do Sol (Sunshine Policy), iniciada por Kim Dae-
jung e que retornou no governo Moon, o grupo feminino de K-Pop Red Velvet
foi enviado com uma comitiva diplomática até Pyongyang, capital da Coreia do
Norte em 2018 para um concerto. Durante o programa de Talk Show sul-
coreano ‘Ask Us Anything’ (Homens em missão, no catálogo da Netflix Brasil),
as membras foram questionadas das impressões da experiência no norte. Elas
relataram alguns de choques culturais, desde forma de comer macarrão frio até
a surpresa com a quantidade de informações sobre elas que alguns oficiais
norte-coreanos sabiam [PARK, 2018, online]. O envio da comitiva, as
discussões feitas durante o período da visita e o show de K-Pop no norte
demonstram várias formas de prática da Diplomacia Pública pelo governo.
Havia a disposição de usar essa parte da marca nacional sul-coreana para
auxiliar na melhora do relacionamento dos países na península.

Os Jogos Olímpicos de Inverno que ocorreram em 2018 pela primeira vez em


território sul-coreano, na cidade de PyongChang (평창), província de Gangwon-
do, região das montanhas Taebaek (태백산) pontua mais uma prática diplomática.
Com os jogos de verão ocorrido em 1988, após a liberação do país. Ambos os
eventos marcaram a força do poder brando do país, com a atração do público
estrangeiro que queria assistir aos jogos e que poderia verificar, tanto a
infraestrutura da cidade adequada para os jogos, como o preparo para a
recepção.

Como parte da Sunshine Policy, os atletas de ambas as Coreias desfilaram


com uma bandeira da península unificada e competiram separadamente, como
já ocorrido em anos anteriores. Esse ato pode ter auxiliado no fortalecimento
dos laços entre os dois países, em detrimento da descrença midiática sul-
coreana [METZLER, 2018; LEE, 2018]. Também como prática do poder
brando, a solista CL e o grupo masculino de K-Pop, EXO apresentaram na
cerimônia de encerramento dos Jogos, dirigida pelo diretor chinês Zhan Yimou,
também responsável pela apresentação dos Jogos Olímpicos de Inverno de
Beijing de 2022 [KANG, 2018].

Discursos de Moon Jae-in e a importância da cultura


Baseando-se na metodologia de análise de Jin e Kim [2016] sobre a incidência
da Diplomacia Cultural dos discursos presidenciais, far-se-á com os do
presidente Moon Jae-in. Estão disponíveis publicamente coletâneas de
discursos seletos do primeiro ano, 2017-2018 até o quarto, 2020-2021, em
língua inglesa. Foram analisados os discursos com o fim de encontrar
referência as políticas culturais e alguns de seus produtos pela repetição de
algumas palavras. Alerta-se que a mera menção de algumas não implica uma
real importância ao objeto, mas denota sua presença como alguma parte da
agenda de políticas da administração.

Do primeiro ao último ano, somente quatro palavras-chave repetiram-se pelo


menos uma vez: Culture; Cultural; Hallyu; K-Pop (Respectivamente: Cultura;
Cultural; Onda Coreana; K-Pop). No primeiro ano, menciona-se pontualmente a
cultura, somente um adereçamento à Hallyu (Onda Coreana), aos K-Dramas

44
(Korean Dramas/Novelas Coreanas) e ao K-Pop [MOON, 2018]. Já no
segundo, há um aumento da importância dos produtos culturais provindos da
Hallyu, que adiciona com menções ao K-Pop, como ao grupo masculino BTS.
Deduz-se a nomeação do BTS nos discursos pelo discurso deles na 73º
Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2018 [MARRA, 2022].
Um ato político do grupo, que pontuou o valor político da Diplomacia Pública
sul-coreana por indivíduos não-oficiais [BARDER, 2016] e a importância dum
ato de K-Pop com seu ponto de vista para melhora social para além dos ditos
grandes atores internacionais, como os Estados e as Organizações
Internacionais.

No segundo e terceiro anos, empregam-se os termos como a tradução no


inglês Korean Wave e da K-Wave (Onda do K) [MOON, 2019], essa última
bastante enfatizada do governo de Lee Myung-bak (이명박, 2008-2013) [LEE,
2019]. Pode-se chamar o terceiro ano da administração Moon (2019-2020),
quando a cultura toma mais corpo nos discursos. Com alguns em específicos
sobre a Indústria de Conteúdo, outros nas trocas comerciais com outros
países, o que substância a forma da Hallyu para além dos consumidores
diretos e credita os retornos dos investimentos no setor cultural para outros
atores políticos [MOON, 2020].

Por fim, tem-se o quarto ano (2020-2021), onde destacam-se a Onda Coreana
e o K-Pop como novo carro-chefe dos produtos culturais, como foram os K-
Dramas na década de 1990. Há mais um reforço a importância do grupo BTS e
adiciona-se uma citação ao grupo feminino BlackPink [MOON, 2021]. Aqui,
apesar das menções diretas a cultura estarem com menor frequência do que o
ano anterior, aumentam-se dos incentivos à mesma. Visto que em março de
2020, é lançado Plano da Política de Promoção da Nova Onda Coreana (Policy
Plan for Promoting the New Hallyu). Esse Plano mudou uma série de
perspectivas, para melhorar o acesso aos públicos consumidores que estavam
isolados em suas residências dada a pandemia de COVID-19, iniciada em
março de 2020 [KAMON, 2022].

Pandemia de COVID-19: crise, solução e inovação para a Hallyu


Jin [2021] aponta que os esforços do setor privado para promoção da Onda
Coreana, que possuem seus próprios interesses e muitas vezes não vão de
encontro com aqueles do Estado, geraram melhoras significantes. Devido ao
sucesso global e ganho de prêmios pelo grupo de K-Pop BTS com suas
músicas e performances, além dos vários discursos na Assembleia Geral das
Nações Unidas (2018; 2020; 2021) fizeram mais pessoas olharem para os
produtos culturais da Hallyu. Os óscares angariados pelo filme Parasita (기생충,
2019), dirigido por Bong Joon-ho (봉준호) e o sucesso de visualizações do K-
Drama na lista da Netflix em vários países, Squid Game (Round6) em 2021
também expuseram o poder do audiovisual sul-coreano. Na questão de
exportação do governo, houve um salto de $188,9 milhões em 1998 para
$6.240 milhões em 2018 em exportação da cultura popular e tecnologias
digitais pelo globo como parte das Indústrias Culturais [KOCCA, 2019 apud

45
JIN, 2021, p. 4147]. Esses proventos descontam os ganhos de Parasita e
Squid Game, mas que nos anos posteriores foram essenciais para melhora nas
políticas culturais para a Hallyu.
Em adição as políticas para Onda Coreana, em 2020, o governo anunciou a
Nova Hallyu (K-Culture), com características periódicas e com quatro estágios
com o Plano Política para promoção da Nova Onda Coreana. Os objetivos
contidos nesse novo plano vão desde uma melhora do turismo por observar
como a comida tailandesa apresenta-se até novas maneiras de construir a
interações com as pessoas em shows online dada a Pandemia de COVID-19.
Somados a construção de um banco de dados apropriados para a Onda
Coreana e com medidas de cooperação entre os ministérios sul-coreanos,
como as agências públicas [KAMON, 2022]. Todos esses foram fundamentais
para uma alteração de paradigmas em diversos níveis da Onda Coreana e
como ela seria vista pelo mundo nesse novo governo.

No relatório ‘Hallyu Now’, volume 42, publicado em 2021 pelo KOFICE,


demonstra como as “apresentações virtuais realistas” foram empregadas. Na
qual a SM Entertainment superou essas preocupações e lançou os concertos
pagos ‘Beyond Live’, que geraram 2,5 bilhões de won em receita e
estabeleceram um modelo de sucesso de apresentações online pagas. O BTS
então realizou um show virtual pago, Bang Bang Con: The Live em junho; os
shows de junho e outubro geraram cerca de 26 bilhões de won e 50 bilhões de
won, respectivamente [KOFICE, 2021].

Possivelmente motivado por essa política da Nova Onda Coreana [KAMON,


2022] e o retorno de uma influência indireta do governo, Jin [2021] propõem
uma nova divisão para a Hallyu, com algumas categorizações (Tabela 01). Ele
aponta períodos determinados de início, apesar de poder ser discordado
devido a investimentos prévios do governo na cultura [PARK, 2015], os
produtos de cada nível da Onda, como deu-se a expansão deles e como foi o
recorte dos públicos-alvo.

46
Jin [2021] comenta que a forma de promoção engrandeceu o mercado de
webtoons, simultaneamente, com o aumento das plataformas OTT (Over-the-
top medias) como Netflix, Disney+ e Amazon Prime que acrescentaram
conteúdo sul-coreano em seus catálogos. E a política de influência indireta
(hands-off) sobre os métodos de difusão da Onda Coreana, permitiram a
criação de um cenário diferenciado.

Apesar da ênfase na Netflix e das suas ações em território sul-coreano, com a


presença gradativa do audiovisual em seu catálogo que ajuda como parte de
um expoente no contrafluxo de consumo para com aquilo de origem anglófona
[JIN, 2021]. Meimaridis et. al. [2020] alertam sobre como essa prática advém
do imperialismo de plataformas, em que uma empresa estadunidense vinda do
eixo Estados Unidos-Europa mira em um mercado periférico e ocorre a
desvalorização de plataformas locais, com conteúdo que possui regionalização.
Logo, uma visão crítica dessas plataformas de visualização deve ser feita,
apesar de auxiliar no aumento do consumo dos produtos culturais da Onda
Coreana.

No período da Pandemia de Covid-19, iniciada no primeiro trimestre de 2020,


houve uma crescente no consumo dos programas sul-coreanos nessas

47
plataformas, dada as políticas de isolamento social para prevenir o
espalhamento do vírus [YOON et. al. 2022, p. 2]. O governo da Coreia do Sul
foi elogiado, apesar da intercorrência com uma idosa infectada em uma igreja
lotada tido como um dos grandes surtos de contaminação no país, pelas
maneiras de condução para amenizar as consequências [CHANG, YUN, 2022].
Parcialmente, a ‘facilidade’ em encontrar outros meios de prevenção
encontrava-se por duas situações: (1) a flutuação de períodos de boa
qualidade do ar, influenciada por usinas de carvão em países vizinhos; (2)
surtos endêmicos (Contaminação por virose a nível regional, a exemplo da
crise aviária) de variantes do vírus SARSCOV em anos pregressos [MOFA,
2021].

A primeira situação agravava dificuldades respiratórias, assim como outras


doenças relacionadas ao sistema respiratório. Para prevenção disso e de
alguma doença transmissível pelo ar, o governo indicava, e por vezes, exigia o
uso de máscaras para seus cidadãos ao saírem de suas residências. As
políticas alteravam-se consoante as particularidades de cada situação, mas
como havia já um costume, a população sul-coreana conseguiu reter bastante
o espalhamento da COVID-19 [MOFA, 2021].

Dada a situação de isolamento social em vista da pandemia, uma variedade de


eventos presenciais para difusão da Onda Coreana, realizados por órgãos
governamentais, passaram ou a ser realizados de maneira remota, ou eram
enviados conteúdos para os consumidores. Um grande exemplo foi a Semana
da Coreia, realizada desde 2017, um evento com o intento de promoção da
Republic of Korea (ROK) num conjunto de elementos políticos, acadêmicos e
culturais para ser entender mais sobre o país. Isso num fim de ter-se uma
imagem de um país avançado para com as audiências estrangeiras [MOFA,
2018].

O Diplomatic White Paper de 2021, referente a 2020, aponta que mesmo na


difícil situação provocada pela pandemia, cerca de 100 missões diplomáticas
realizaram eventos remotos e presenciais da Semana da Coreia [MOFA, 2021].
Que incluiu apresentações de arte tradicional, exposições, palestras, festivais
de cinema e danças cover de K-Pop, que atraíram grande atenção população
local [MOFA, 2021, p. 327]. Esse mesmo documento traz uma inovação, a qual
é um tópico específico para tratar do K-Pop [MOFA, 2021, p. 332-333], que
antes somente fazia parte de citações esporádicas como parte da difusão do
Festival Mundial de K-pop [MOFA, 2019]. Todavia, até mesmo na inovação,
ainda há caminho para avanços na discussão dos programas governamentais
que incluem os produtos da Indústria de K-Pop como parte da diplomacia
pública exercida pelo MOFA [MOFAT, 2010].

Considerações finais
De maneira sucinta, a administração de Moon Jae-in visou estabelecer uma
política de influência indireta para com a Onda Coreana, em paralelo que
também empregava-a como instrumento de promoção da imagem da
República da Coreia. Ki [2020] enfatiza uma fala do presidente, que em 2019,

48
todas às vezes que ele encontrava líderes de outros países, assuntos sobre K-
Dramas e K-Pop sempre surgiam. Isso reflete como o país progride em sua
prática de Diplomacia Pública, como de Diplomacia Cultural, em que até
mesmo líderes de outros países tem comentado sobre alguns dos vários
produtos exportados como parte da Onda Coreana.

Um último destaque está nas políticas de prevenção ao espalhamento do vírus


COVID-19 durante a pandemia (05/2020-03/2023), elogiadas por pessoas e
líderes pelo globo. E como o ‘lidar com a situação’ deu-se pelo costume em
outras ocorrências similares. Além de terem conseguido abrir novas formas de
consumo, com as algumas plataformas de shows online, como Beyond Live e
Weverse como uma forma do governo de manter a atenção dos públicos da
Onda Coreana. Como prospectos para o governo seguinte, interroga-se sobre
como serão as novas políticas culturais pós-pandemia? Haverá uma volta ao
modelo hands-on deck/ influência direta na Hallyu e a outra possível lista de
vedações ao setor cultural? Quais serão as inovações ou manutenções que as
empresas de entretenimento em parceria ao Estado sul-coreano farão?

Referências
Helmer Marra Rodrigues; Mestre em Política Internacional (PPGCPRI) pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB); BA em Direito - Universidade
Evangélica de Goiás, UniEvangélica - Campus Ceres; Pesquisador do MidiÁsia
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apresentação na Coreia do Norte], Soompi, 04 ago. 2018. Disponível em:
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moments-north-korea-performance. Acesso em: 16 fev. 2023.

51
POSSIBILIDADES DE UM ESTUDO DE GÊNERO EM SILLA A
PARTIR DA CULTURA MATERIAL, por Luiza Santos Freire de
Souza e Pedro Vieira da Silva Peixoto

Introdução
A escrita da história está intimamente relacionada ao mundo em que estamos
inseridos. Ao pesquisar sobre qualquer que seja o assunto, partimos de
preocupações que estão presentes no momento em que vivemos e também
nas nossas vidas pessoais. O ofício historiográfico, como nos lembra Croce,
não deixa de ser um “ato de entendimento e compreensão induzido pelas
exigências da vida prática” (CROCE, 2006, p. 26). Não à toa, questões como
as de raça, de gênero, do meio ambiente e muitas outras têm sido tratadas em
recentes pesquisas sobre a Antiguidade, mostrando a proximidade entre o
passado e o presente e como a atualidade influencia a produção acadêmica
no campo da historiografia. O presente trabalho tem como objetivo apresentar
algumas possibilidades do estudo de gênero em Silla. O mesmo deriva de uma
pesquisa, que se encontra em estágio inicial, desenvolvida no Laboratório de
História Antiga da UFRJ. Devido ao estágio em que se encontra, o foco da
discussão, no momento, concentra-se mais nos grandes debates
historiográficos internacionalizados sobre Silla produzidos por autores coreanos
e estrangeiros, ao passo que, no futuro, esperamos que alguns debates
técnicos provenientes exclusivamente da historiografia produzida em língua
coreana possam também ser acrescidos.

Existem, atualmente, diferentes estudos sobre a sociedade de Silla. Alguns


desses trabalhos têm tratado sobre temas não tradicionais e usado
metodologias recentes que trazem novas contribuições de diversos campos,
como é o caso das análises de Conte e Kim (2016) sobre o sacrifício humano a
partir de uma perspectiva política e econômica. Outro exemplo, ainda, de
estudo inovador nesse sentido pode ser encontrado em Choy et al. (2021), que
examinaram em detalhe a estratificação social de uma das sociedades que
existiu adjacente a Silla, sendo que os investigadores usaram a investigação
isotópica dos remanescentes humanos enterrados na região como principal
ferramenta analítica para o estudo do contexto em questão.

A maioria dos estudos atuais, contudo, não possui um grande foco em gênero.
Em uma pesquisa de Lee et al. (2016), um raro remanescente humano, que
estava relativamente intacto, foi encontrado e analisado. Os remanescentes
pertenciam a um indivíduo do sexo feminino, mas a análise conduzida não
considerou esse fator de grande relevância, tratando apenas dos aspectos
biológicos. Fica evidente, assim, apesar de diversos trabalhos serem
produzidos mesmo a partir de novas abordagens, como ainda poucos abordam
a temática de gênero ou a consideram importante para a compreensão dessa
sociedade.

52
Silla, contudo, possui inúmeras possibilidades para investigar questões de
gênero. Entendemos que a temática possa ser investigada a partir de
diferentes materiais e documentos, porém, devido às peculiaridades de seu
estudo, a cultura material se apresenta como uma importante e produtiva
maneira de se estudar a temática citada.

Gênero: definição do conceito


O conceito de gênero tem sido utilizado para o estudo de diferentes sociedades
nos mais diversos campos, como o da sociologia, história e arqueologia, para
citar apenas alguns. Esses estudos se valem, contudo, de diferentes ideias
acerca da categoria “gênero” e de como ela existe e atua nas sociedades do
mundo. O fato de que existem diferentes concepções teóricas acerca do que é
gênero é essencial para o entendimento dessa questão. Como foi observado
por Conkey e Gero (1997, p. 412), não existe uma orientação comum para o
estudo de gênero, nem uma única metodologia para realizá-lo. Tendo em vista
o foco na arqueologia que o presente trabalho possui para o estudo de Silla, as
autoras aqui mobilizadas são, em sua maioria, teóricas da chamada
arqueologia de gênero (cf. HAYS-GILPIN & WHITLEY, 1998; GILCHRIST,
2012; SØRENSEN, 2013). Isso porque entendemos que gênero não é algo fixo
e que a cultura material participa na construção de valores e ideais de gênero,
servindo também como veículo de negociação e contestação por parte de
agentes históricos.

Gênero é, pois, mutável histórica e socialmente, não sendo nem natural nem
estável. Em outras palavras: trata-se de um constructo sociocultural dotado de
historicidade. Em seu trabalho, Flax (1987, p. 628) considera que gênero, tanto
como uma categoria analítica quanto como um processo social, é relacional. As
relações de gênero são, assim, processos complexos e instáveis, o que
significa que elas variam de acordo com múltiplos fatores, como qual momento,
os grupos sociais e o local em que elas estão inseridas. A redução portanto de
gênero ao binarismo do sexo ignora outros conceitos em que gênero pode ser
expresso, como não sendo apenas dois, como sendo transcendido por
indivíduos ou como fluido e em mudança (STRATTON, 2016. p. 855). A
afirmação de Stratton é esclarecedora nesse aspecto:

“Gênero é aprendido e performado dentro de um contexto cultural, expresso


pela cultura material, e apresentado através da prática de gênero. Ele não é
necessariamente estático durante a vida de um indivíduo, baseado no sexo, ou
o aspecto mais importante da identidade de uma pessoa. Ele certamente não é
sempre binário.” (STRATTON, 2016, p. 862. tradução da autora)

A ideia, assim, de que gênero é uma construção social e que ele pode se
apresentar de diferentes formas em diferentes sociedades e períodos é
essencial para o entendimento da categoria aqui aplicada.

Silla: um breve contexto

53
A sociedade de Silla é comumente considerada um reino, apesar de existir
diversos debates acerca de sua condição política e social e suas mudanças ao
longo dos anos. Localizada na península coreana, em seu momento inicial
coexistiu com mais dois reinos, o de Paekche e o de Goguryeo, além da
Confederação de Gaya, em uma época que ficou conhecida como período dos
Três Reinos. Os dois reinos foram, contudo, conquistados por Silla, em um
novo período, conhecido como Silla Unificada, no qual essa se tornou
hegemônica.

A datação tradicional que é dada à Silla é composta por dois períodos, o


primeiro, com seu início em 57 AEC e fim em 676 EC, chamado de Silla Antiga
e, o segundo, de 676 a 935 EC, chamado de Silla Unificada. Muitos autores,
como Lee e Leidy (2013), contudo, propõem uma cronologia mais
sistematizada, propondo uma divisão em três períodos chamados de Antigo (57
AEC a 654 EC), Médio (654 a 780 EC) e Tardio (780 a 935 EC). Essa será a
divisão escolhida para o presente texto, que terá como foco o período Antigo
de Silla.

O estudo de Silla possui algumas características particulares. Os dois


principais documentos escritos acerca do período foram produzidos muito
posteriormente, são eles: o Samguk Sagi (1145), escrito por Kim Pusik (1075-
1151) e o Samguk Yusa (1282-1289), por Iryeon (1206-1289). Ambos os textos
apresentam a história de Silla e têm sido usados por historiadores como
essenciais formas de acesso para entender esse período, escolha justificada
por serem raros os documentos escritos nessa sociedade
contemporaneamente ao período discutido.

A cultura material se torna, portanto, uma importante forma de se estudar a


sociedade em seus diferentes aspectos a partir de evidências produzidas
contemporaneamente aos contextos analisados. Dentre muitos materiais
possíveis, um destaque especial deve ser dado aos enterramentos, que, devido
a sua grande quantidade e variedade, abrigam informações essenciais acerca
do período. Os mais distintos deles são as tumbas com montículos, chamadas
popularmente de tumbas reais. Para Geun-Jik (2009, p. 100), no entanto, essas
tumbas não podem ser consideradas tumbas reais em sua totalidade. Ele
argumenta que as tumbas construídas antes do reino do Rei Beopheung
podem ser identificadas como pertencentes aos membros da elite dominante,
mas que somente aquelas construídas após esse período podem ser
consideradas tumbas reais de fato. Apesar dessa discussão, os sepultamentos
referidos continuam sendo uma importante maneira de se entender a
sociedade de Silla, a partir não somente de seus artefatos, mas de sua relação
com a política, economia e outros aspectos sociais da mesma.

A cultura material e o caso de Hwangnam Daechong


O estudo arqueológico de Silla não tem, no entanto, a questão de gênero como
principal ou mesmo relevante. Segundo Nelson, “o feminismo é bom para a
arqueologia e por implicação focar em gênero leva a uma melhor arqueologia”
(NELSON, 2012, p. 1). Para a autora, a arqueologia feminista traz novas

54
questões e interpretações acerca de informações existentes e sugere novos
conjuntos de dados, possibilitando que novidades possam ser aprendidas
sobre papéis e relações de gênero em diferentes lugares e períodos, que,
segundo Nelson, enriquecem o entendimento dos pesquisadores (NELSON,
2012, p. 2). Referenciamos o trabalho de Nelson não apenas por sua seminal
contribuição teórica ao campo da arqueologia de gênero, mas por ela ser uma
das poucas e essenciais referências para se pesquisar a questão de gênero
em Silla, sendo seus estudos arqueológicos muito relevantes, tendo em vista o
fato de ter trabalhado com diferentes enterramentos e artefatos levando a
perspectiva de gênero como central para sua análise.

Em Silla há um cenário muito rico para o estudo de gênero. Essa investigação


pode se dar a partir de seus distintos documentos, tanto escritos quanto
materiais. Isso se dá porque as relações de gênero aparentam ser menos
hierárquicas do que em outras sociedades que se desenvolveram na península
coreana com influências e dinâmicas que não existiam muito fortemente em
Silla (NELSON, 2013). É possível perceber essa questão, por exemplo,
partindo do fato de que mulheres podiam ser e, de fato, foram rainhas
regentes. Nas listas do Samguk Sagi e do Samguk Yusa aparecem três rainhas
regentes, Sondok, Chindok e Chinsong, mas, segundo Nelson (2013), podem
ter existido mais rainhas que não estão presentes nelas. As questões de
gênero, contudo, não se limitam a isso, sendo importante observar também,
por exemplo, qual era a participação das mulheres na política e sociedade,
tendo em vista que no período antigo o poder estava dividido entre diversos
grupos, não apenas centrado na figura de um ou uma governante que possuía
o poder unicamente.

As tumbas são importantes evidências para estudar as relações de gênero


dessa sociedade. A determinação do sexo dos indivíduos é raramente
realizada, devido às condições do solo que não permitem a preservação dos
remanescentes humanos, o que, como pode ser observado no estudo de
Stratton (2016), não nos impede de estudá-las a partir de uma arqueologia de
gênero. Esses casos onde o sexo dos indivíduos não podem ser identificados
devem ser colocados em categorias separadas dos demais, mas não devem
ser ignorados em análises posteriores (STRATTON, 2016, p. 866).

No estudo realizado por Pearson et al. (1986), no qual foram analisados


enterramentos de Silla do século IV ao VI, a identificação do sexo foi possível
em apenas 13 enterramentos dos 131 estudados. Os enterramentos femininos
parecem ser maiores e mais faustosos, mas o número de evidências é muito
pequeno. Apesar da pequena quantidade, o estudo entende que mulheres não
são inferiores aos homens, baseado no que foi encontrado. A análise, contudo,
de outros casos em que o sexo não foi identificado, como proposto por Stratton
(2016), permite um estudo de gênero que não se limite a categorias binárias e
reforça o caráter social e não necessariamente biológico do gênero.

Um outro exemplo de como a questão de gênero possui um enorme potencial


para o estudo de Silla é a tumba de Hawangnam Daechong, o maior dos

55
enterramentos da região. Ela está localizada em Gyeongju, no sítio de
Hwangnam-Dong e consiste em um enterramento duplo, com dois montes,
norte e sul. O ocupante do monte sul não foi identificado no estudo de Pearson
et al. (1986), mas Lee e Leidy (2013) o identificaram em seu trabalho como
sendo um homem. O monte norte, construído posteriormente, foi identificado
por diversos autores (PEARSON et al., 1986; GEUN-JIK, 2009; LEE & LEIDY,
2013) como sendo ocupado por uma mulher.

É possível observar a importância da tumba primeiramente, em termos de sua


morfologia, por conta de seu tamanho, um fato relevante para se entender e
analisar os enterramentos com montículos. Seu tamanho, contudo, não é a
única razão que a faz distinta. Os artefatos que estavam dentro dela são muito
faustosos e diversos, contendo objetos de jade, vidro, ouro, prata, bronze e
muitos outros. Um dos mais importantes artefatos encontrados foi uma coroa
de ouro, artefato que é localizado apenas em 6 tumbas em Silla, sendo elas:
Hwangnam Daechong, Cheonmachong, Geumnyeongchong,
Geumgwanchong, Seobongchong e uma tumba em Gyo-dong, que foi
saqueada e depois confiscada (HAM, 2013, p. 38). A coroa de ouro é
considerada em consenso pelos estudiosos, como Lee e Leidy (2013) e Conte
e Kim (2016), como o símbolo de autoridade máxima. Esse artefato foi
encontrado, junto a um cinto de ouro, com a inscrição “cinto para minha
senhora”, no monte norte, o que fez com que inúmeros questionamentos
surgissem. Por existirem dificuldades na datação, há muitas dúvidas de quem
poderiam ser os ocupantes das tumbas, fazendo com que os estudiosos não
saibam precisar qual o significado e qual a posição social deles. A tumba, no
entanto, é considerada como pertencente a um período anterior ao das rainhas
das listas, fazendo com que muitos pesquisadores considerem que o
governante era o ocupante do monte sul, usando termos como “sua rainha”
para descrever a mulher do monte norte (LEE & LEIDY, 2013. p. 6). Para
Nelson (2013. p. 89), contudo, a ocupante do monte norte era a rainha
governante. Em seu argumento, ela traz o caso de algumas rainhas que
governaram enquanto regentes por certo tempo e que, entretanto, não
aparecem nas listas, como é o caso da esposa do rei Gyeongdeok ou da
esposa do rei Beopheung. Assim, a partir de Nelson, não seria descabido
considerar que o monte norte tenha sido ocupado por uma mulher que não foi
nomeada nos documentos mas que possa ter atuado como rainha e
governante em sua época.

Conclusão
O estudo de gênero em Silla se mostra como uma grande possibilidade, que,
contudo, permanece amplamente inexplorada. A arqueologia pode ser, nesse
cenário, um importante meio para suprir essa ausência, devido não somente a
suas ferramentas teóricas e metodológicas, mas também às peculiaridades que
a própria sociedade de Silla e seu estudo possuem, como, por exemplo, a
natureza dos dados disponíveis e o distanciamento cronológico de boa parte
dos relatos textuais.

56
A definição do conceito de gênero também se faz essencial para que essa
possibilidade seja explorada, tendo em vista que devemos considerar gênero
como uma construção social que não se mantém a mesma nos diferentes
locais e períodos examinados. O presente trabalho buscou, assim, apresentar
a possibilidade (e diríamos, ainda, a necessidade) de se realizar um estudo que
tenha a perspectiva de gênero como central para se analisar a cultura material
e a história da antiga Silla.

Referências
Luiza Santos Freire de Souza é graduanda em história na Universidade Federal
do Rio de Janeiro
Dr. Pedro Vieira da Silva Peixoto é professor adjunto de História Antiga na
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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58
O PATRIARCADO COMO MOLA PROPULSORA DO
SOFRIMENTO PSÍQUICO DAS MULHERES SUL-COREANAS:
UMA BREVE ANÁLISE SOBRE O LIVRO KIM JIYOUNG,
NASCIDA EM 1982, por Maria Eduarda Coelho
Introdução
“O mundo tinha mudado bastante, mas não pequenas regras, contratos e
costumes, o que significava que na verdade o mundo não tinha mudado nada.”
- (CHO, p. 101, 2022)

Escrito pela ex-roteirista sul-coreana Cho Nam-joo, e baseado em suas


experiências pessoais enquanto mulher na Coreia do Sul, Kim Jiyoung,
nascida em 1982 expõe diversos tipos de violência as quais as mulheres são
submetidas da infância à adultez a partir da vivência da personagem Kim
Jiyoung. A obra fomentou discussões acerca de discriminação de gênero e
desigualdade no país, além de ter sido aclamado globalmente, vendendo mais
de um milhão de cópias. Assim, o presente artigo tem como objetivo analisar o
impacto do patriarcado no adoecimento psíquico das mulheres sul-coreanas a
partir da obra literária Kim Jiyoung, nascida em 1982.

Inicialmente, é necessário observar o contexto socioeconômico da Coreia do


Sul, uma vez que o ser humano é biopsicossocial, sofrendo influências do meio
e internamente as transforma conforme seu próprio funcionamento biológico e
psicológico (BELLOCH; OLABARIA, 1993). Assim, aponta-se que o modelo de
funcionamento econômico da Coreia do Sul é atravessado pelo Confucionismo,
o qual está presente em diferentes níveis em sua cultura, desde o âmbito
pessoal ao profissional (LEE, 2012). Isso significa dizer que, como defende o
estilo de vida confucionista, todas as relações são pautadas em hierarquia,
dever e lealdade. Às mulheres lhes é delegada a função de cuidar da família e
da casa, permanecendo dependentes do marido, uma vez que são
consideradas inferiores aos homens (SILVA, CARVALHO, 2021). Esse
pensamento é raiz do machismo atualmente disseminado no país e causador
de extremo sofrimento psíquico nas mulheres, uma vez que o modelo
confucionista defende a priorização das necessidades familiares em detrimento
de vontades e desejos individuais (LEE, et al., 2014) como é mostrado no livro
Kim Jiyoung Nascida em 1982, no qual a personagem principal, diante da
repressão sofrida enquanto mulher ao longo de toda sua vida, desenvolve
sintomas aparentemente dissociativos. Ela fala com a voz de outras mulheres
de sua vida, vivas ou mortas, e também em terceira pessoa como no excerto
abaixo:

“Quando estava quase terminando uma lata, Jiyoung deu um tapinha no ombro
do marido e disse, bruscamente:
— Ei, Jiyoung está passando por um momento difícil. Cuidar de um bebê é
muito desgastante. Sempre que puder, você deveria dizer a ela: Você está se

59
saindo muito bem! Está se esforçando tanto! Reconheço seu esforço!” (CHO,
pág. 9, 2022)

Preferência pelo filho homem


No livro, constantemente enfatiza-se que Jiyoung não é a única a sofrer com a
misoginia e, devido ao seu caráter estrutural dentro da sociedade, as próprias
mulheres também podem reproduzir discursos e comportamentos misóginos,
pois como defende Gregori (1993, p.166), “[...] é possível constatar que as
mulheres, muitas vezes inclusive por medo, reproduzem e reforçam os papéis
de gênero, cooperando na produção de sua falta de autonomia, com o objetivo
de obtenção de proteção e prazer”. Isso pode ser observado na relação entre a
mãe e a avó paterna de Jiyoung ao pressioná-la, ainda que não
maliciosamente, a dar à luz a um menino:

“Considerando a vida que tinha levado e relativamente carinhosa com a nora,


comparada a outras sogras de sua geração, ela dizia do fundo do coração, pelo
bem
da nora:
— Você deveria ter um filho. Você precisa ter um filho. Você precisa ter pelo
menos dois filhos...
Quando Kim Eunyoung nasceu, Oh Misook segurou a criança nos braços e
chorou.
— Sinto muito, mãe — disse, de cabeça baixa.
Koh Boonsoon respondeu à nora, com carinho:
— Tudo bem. O segundo vai ser um menino.
Quando Kim Jiyoung nasceu, Oh Misook segurou a criança nos braços e
chorou.
— Sinto muito, garotinha — disse, de cabeça baixa.
Koh Boonsoon repetiu com carinho:
— Tudo bem. O terceiro vai ser um menino.” (CHO, p.19, 2022)

O tão aguardado nascimento do irmão mais novo de Jiyoung gera um


favoritismo da família, especialmente por parte da avó, e, apesar de conspícuo
para os leitores, não é percebido ou questionado pela personagem, dado à sua
naturalização dentro da sociedade coreana, uma vez que filhos do sexo
masculino são tidos como mais produtivos do que filhas do sexo feminino e a
eles lhes é creditado o papel de dar seguimento ao legado da família, além de
prove-la financeiramente (EDLUND; LEE, 2013).

“O irmão tinha pauzinhos, meias, ceroulas e mochila e lancheira que


combinavam, enquanto as garotas se contentavam com o que houvesse de
disponível. Se havia dois guarda-chuvas, as garotas dividiam. Se havia dois
cobertores, as garotas dividiam. Se havia dois doces, as garotas dividiam. Na
infância, não ocorreu a Jiyoung que o irmão estivesse recebendo tratamento
especial, portanto ela nem tinha ciúme. Sempre fora assim.” (CHO, p.17, 2022)

Desigualdade salarial entre gêneros no mercado de trabalho sul-coreano

60
Outro ponto a ser tratado neste artigo diz respeito ao contexto de Jiyoung
enquanto mulher inserida no mercado de trabalho sul-coreano. Em dado
momento, a ela lhe foi delegada uma tarefa de planejamento junto a uma
equipe majoritariamente masculina e ela descobre que está sendo injustiçada e
quase não figurou na equipe, pois o chefe não queria contratar mulheres, uma
vez que, em sua visão, os homens eram mais comprometidos e traziam mais
segurança na execução de projetos.

“Ela também descobriu que os caras ganhavam mais desde o início, mas essa
informação teve muito pouco impacto em Jiyoung, que já tinha preenchido sua
cota diária de choque e decepção. Ela não estava certa de que seria capaz de
seguir o exemplo da gerência e dos funcionários mais antigos e confiar que se
dedicar era a resposta, mas, quando a manhã chegou e o efeito do álcool
passou, ela foi para o escritório como era de hábito. Encarou como sempre as
tarefas que lhe deram. Mas a motivação e a confiança com certeza estavam
abaladas.
A disparidade salarial na Coreia é a mais alta entre as nações da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. De acordo com dados de
2014, as mulheres trabalhadoras da Coreia ganham só 63% do que os homens
ganham; a média da OCDE é de 84%.12 A Coreia também é o pior país para
as mulheres trabalhadoras, tendo alcançado as piores pontuações entre as
nações analisadas pelo índice teto de vidro da revista britânica The Economist.”
(CHO, p. 96, 2022)

A autora traz dados estatísticos várias vezes ao longo da obra, reiterando


sempre que, apesar de personagens e elementos fictícios, a sua intenção é
explanar a verdadeira realidade da grande maioria das mulheres sul-coreanas.
O dado, mencionado na citação acima, da revista The Economist, é datado de
2016, e foi atualizado em 2018, porém a Coreia do Sul ainda figura como pior
país para as mulheres trabalharem.

A problemática das câmeras espiãs


Há, ainda, retratado no livro, questões envolvendo assédio moral e sexual no
ambiente do trabalho. Em Kim Jiyoung, no banheiro feminino do local de
trabalho da personagem foram implantadas câmeras escondidas por um
segurança a fim de espionar as mulheres, compartilhar com outros colegas de
trabalho e expor suas imagens íntimas em sites de pornografia. Isso acontece
porque a indústria pornográfica é altamente lucrativa, além de oportunista ao
ser fomentada pela desigualdade de gênero, e a Lei falha em conceber
medidas eficientes para prevenir e agir de forma corretiva quando essa
violência acontece (TESHOME, 2019). De acordo com o departamento de
pesquisa da Statista, só em 2021, 5.541 crimes relacionados às chamadas
câmeras espiãs foram reportados na Coreia do Sul.

Além disso, a colega de Jiyoung fala sobre como isso comprometeu a sua
saúde mental e a de outras colegas igualmente vítimas da situação:

“— Na verdade, estou fazendo terapia — comentou Hyesu. — Isso está me

61
enlouquecendo. Embora eu finja que estou bem, rindo alto com as pessoas,
parece que o mundo inteiro me reconhece daquelas fotos. Até um contato
visual aleatório com um estranho me faz pensar se aquela pessoa viu minhas
fotos e, quando alguém sorri, penso que essa pessoa está zombando de mim.
A maioria das mulheres do escritório está tomando remédio ou fazendo terapia.
Jungeun teve uma overdose de remédios para dormir e precisou fazer uma
lavagem estomacal. Algumas pessoas pediram demissão: duas mulheres do
Departamento de Assuntos Gerais, Choi Hyeji e Park Seonyoung, as
supervisoras.” (CHO, p. 120, 2022)

A fala de Hyesu representa um avanço para cidadãos coreanos em busca de


suporte psicológico, pois muitos suprimem os seus sentimentos e evitam
adereçar questões de sofrimento psíquico ou transtornos psicológicos, pois é
considerado um grande estigma no país, especialmente a depressão, a qual
pode ser considerada socialmente como fonte de vergonha (LEE, et al.,2014).
Muitos coreanos, sem nenhum tipo de válvula de escape ou acompanhamento
psicológico e psiquiátrico, acabam somatizando as suas questões psíquicas.
Dentro da Gestalt-Terapia, uma abordagem da Psicologia, a qual considera a
totalidade do indivíduo, compreende-se que esse controle emocional
exacerbado não impede o seu sentimento na dimensão corpórea, pois mente e
corpo se integram, assim, entrar em contato com a dor permite elaborá-la
melhor e não tornar-se refém dela (CHAVES, 2006). Ademais, referindo-se
especificamente à saúde mental das mulheres coreanas tem-se que:

“De acordo com Pang, quando mulheres coreanas experienciam eventos


trágicos ou traumáticos (problemas de vida intoleráveis), elas costumam
experienciar altos níveis de distresse emocional. Ao invés de processar estas
emoções apropriadamente, porém, elas se obrigam a suprimir reações
emocionais negativas como raiva, ódio, frustração (internalização) [...].” (LEE;
WACHHOLTZ, p.49, 2014)

Saída do mercado de trabalho para cuidar dos filhos e desvalorização do


trabalho doméstico
“No fim, eles concluíram que um deles teria de ficar em casa e que essa
pessoa, é claro, era Jiyoung. O emprego de Daehyun era mais estável e
pagava melhor, mas, além disso, era mais comum que os maridos
trabalhassem e as esposas criassem os filhos e cuidassem da casa.” (CHO,
p.110, 2022)

“Jiyoung sabia que o apoio de Daehyun era sincero, mas ainda assim não
conseguiu esconder a raiva.
— Ajudar? Que história é essa de ajudar? Você vai “ajudar” com as tarefas de
casa. “Ajudar” na criação da nossa filha. “Ajudar” a encontrar outro trabalho.
Não é sua casa também? Seu lar? Sua filha? E se eu trabalho, você também
não gasta meu salário? Por que você fica repetindo que vai “ajudar”, como se
estivesse se oferecendo para colaborar com o trabalho de outra pessoa?”
(CHO, p. 111, 2022)

62
“Em 2014, quando Kim Jiyoung saiu da empresa, uma em cada cinco mulheres
casadas pediam demissão na Coreia por motivos de casamento, gravidez,
parto e para cuidar dos filhos ou educá-los. A taxa de participação de mulheres
na força de trabalho cai significativamente antes e após o parto. A
porcentagem parte de 63,8% para mulheres entre vinte e vinte e nove anos, cai
para 58% para mulheres entre trinta e trinta e nove anos e volta a subir para
66,7% para mulheres com mais de quarenta anos.” (CHO, p. 112, 2022)

Após o seu casamento, Jiyoung enfrenta cobranças da família do marido para


ter um filho e ele sugere que eles o tenham o mais rápido possível a fim de
acabar com a pressão familiar. Após uma discussão muito angustiante para a
protagonista, ela resolve concordar e acaba deixando o emprego para dedicar-
se à maternidade, pois acabaria tendo que conciliar os dois já que pesquisas
apontam que mães trabalhadoras passam mais tempo cuidando de seus filhos
do que pais trabalhadores (HWANG; SHIN, 2023). Outrossim, observa-se ao
longo do livro as consequências enfrentadas por Jiyoung ao optar pela
maternidade e demissão de seu emprego. Ela acaba sofrendo com
julgamentos alheios, bem como com o cansaço físico, emocional e psicológico
advindos do cuidado em tempo integral de uma criança e de afazeres
domésticos.

“Jiwon chorava dia e noite até que a pegassem no colo, e Jiyoung tinha de
cuidar da casa, ir ao banheiro e cochilar enquanto a segurava. Amamentando
de duas em duas horas e, portanto, incapaz de dormir muito, ela limpava a
casa com mais afinco do que antes, lavava as roupas e os paninhos da bebê,
se alimentava bem para produzir leite suficiente e chorava muito mais do que
havia chorado a vida inteira. Acima de tudo, todo seu corpo doía. Ela não
conseguia mexer os punhos.” (CHO, p. 114, 2022)

Diante do abalo da saúde mental de Jiyoung, o qual antecede o seu


comportamento dissociativo, infere-se que, de acordo com dados coletados por
Hwang e Shin (2023), ser uma mulher coreana de 30 anos, faixa etária da
personagem nessa fase, possui associação considerável a níveis altos de
depressão do que em qualquer outra idade e, levando em consideração que
isso prevalece especificamente em mulheres casadas, subentende-se o
impacto dos papéis de gêneros desempenhados dentro da família na saúde
mental dessas mulheres. Tudo isso é observado facilmente em Kim Jiyoung e
pode ter contribuído para o seu desgaste emocional e psicológico.

A maternidade está sujeita à romantização, sendo considerada uma benção


divina a qual as mulheres devem ser gratas e devotas, muitas vezes, não
havendo espaço para queixas ou explicações nas mais diversas etapas, seja
nas fases de gestação, puerpério ou criação da criança em si, impedindo o
contato e elaboração subjetiva dos diversos sentimentos e pensamentos
implicados nesses processos (CARVALHO, 2023). Existem muitas fantasias
em torno disso, colocando a mulher numa posição na qual é obrigada a aceitar
e cumprir a função materna juntamente à doméstica passivamente, estando
sujeita à culpa caso expresse suas dores ou descontentamentos

63
(BERNARDES; LOURES; ANDRADE, 2019), como é imposto à Jiyoung no
livro. Ela expressa sua frustração ao marido, mas em seguida sente-se
terrivelmente culpada por isso e o pede desculpas. As pessoas ao seu redor e
até mesmo desconhecidos acrescentam à sua carga de culpa constantemente
ao afirmarem que sua vida é fácil, pois não trabalha fora de casa, apenas cuida
dos afazeres domésticos e da filha. Assim, o é também no mundo real.

Considerações Finais
Logo, diante do que foi discutido, é importante salientar que o livro Kim
Jiyoung, nascida em 1982 aborda uma série de questões extremamente
pertinentes sobre o impacto micro e macro do patriarcado, não apenas na vida
de mulheres sul-coreanas como na de mulheres do mundo todo. Isso porque
muitas das violências retratadas são experienciadas globalmente, sendo
diferenciadas apenas em aspectos culturais específicos de cada país, e, por se
tratarem de temas muito complexos, não foram passíveis de serem
completamente desenvolvidos neste artigo, tampouco este era seu objetivo.
Mais do que nunca, deve-se ampliar a discussão sobre papéis de gênero e
misoginia em sociedade, para além do ambiente acadêmico a fim de buscar-se
a diminuição das opressões cotidianas as quais são responsáveis por tolher a
subjetividade feminina e violentar seus corpos.

Referências
Maria Eduarda Coelho é discente do décimo período do curso de Psicologia
pelo Centro Universitário Frassinetti do Recife (UNIFAFIRE), pesquisadora do
Núcleo de Pesquisa da UNIFAFIRE e associada à Curadoria de Estudos
Coreanos da Coordenadoria de Estudos da Ásia (CEÁSIA) da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).

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https://www.statista.com/statistics/1133121/south-korea-number-of-
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Asian Journal of Sociological Research, p. 1-13, 2019.

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65
IMAGENS NO CORPO: UM ENSAIO SOBRE
MEMÓRIA, EXPERIÊNCIA E TESTEMUNHO DAS
“MULHERES DE CONFORTO” NORTE COREANAS, por
Tamires Barbosa da Costa

Introdução
Este ensaio tem como objetivo principal fazer uma análise da imagética do
testemunho e também trabalhar com a imagem no corpo como forma de
memória de um passado ainda não superado por sua vítima. Isso será
observado a partir do vídeo “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao
lar parte 1 ‘testemunho da avó do norte’”” (2016) (tradução do autor).

Tal reportagem foi transmitida por uma plataforma de jornalismo investigativo


online chamada “Newstapa”, onde o fotojornalista, Takashi Ito, foi entrevistado
e forneceu algumas das entrevistas que ele próprio realizou com ex-
escravizadas sexuais do Império Japonês na Coreia do Norte, também
conhecidas pejorativamente como “Mulheres de Conforto”. Percebe-se que
esta abordagem difere do conceito de uma imagem enquadrada numa
fotografia ou filmagem. Por mais que esteja sendo analisada a partir de um
vídeo, o ponto central da discussão é poder refletir o silêncio e a memória das
experiências de violência destas senhoras sobreviventes a partir de suas
feridas e marcas físicas.

É claro que a presença da edição tem grande influência na narrativa contada


pela plataforma jornalística, porém, é importante explicitar novamente, que o
foco do debate não é fazer uma análise técnica da produção do vídeo, mas sim
um recorte mais específico das violências físicas sofridas pelas testemunhas,
além da criação do imaginário de um relato que se transforma em imagem
partindo do não visto. Portanto, o ensaio será dividido em uma introdução
sobre história do tempo presente, contextualização geral sobre o imperialismo
japonês e as “Mulheres de Conforto”, sendo seguido de uma breve
apresentação tanto da plataforma jornalística que publicou a matéria, quanto do
fotojornalista entrevistado no vídeo, logo após, se inicia propriamente a análise
das imagens com discussões sobre conceitos de memória e testemunho,
finalizando, assim, com as reflexões finais do trabalho.

Conexão com a história do tempo presente


Antes que se possa iniciar a contextualização sobre o imperialismo japonês e
as “Mulheres de Conforto”, percebe-se que é importante discutir brevemente a
questão da relação do assunto com a história do tempo presente. Dessa forma,
de acordo com Delgado e Ferreira em “História do tempo presente e ensino de
História” (2013), “a história do tempo presente possui balizas móveis, que se
deslocam conforme o desaparecimento progressivo de testemunhas.” (2013, p.
22), nesse sentido, é possível observar que a História está sempre sofrendo

66
alterações ao longo do tempo, se reescrevendo constantemente e se
atualizando tanto com a aparição de novos acontecimentos quanto de novas
perspectivas historiográficas. Assim, pode-se dizer que “a história do tempo
presente é feita de moradas provisórias” (Bédarida, 2002, p. 221), pois se
refere a um passado atual. Um fator importante para esse ramo da
historiografia é a presença de sujeitos históricos ainda vivos e ativos, que
podem contar sobre suas experiências vividas de forma mais profunda e
pessoal. Para o historiador, é uma vantagem e ao mesmo tempo um desafio
poder lidar e estar em contato com testemunhas ainda vivas, visto que, por
mais que possa auxiliar na compreensão do acontecimento de forma mais
íntima, pode também ir contra os documentos ditos oficiais, criando, assim,
uma possível contradição que o historiador terá que mediar.

Imperialismo japonês e “Mulheres de Conforto”


Para que se possa compreender o que ocorreu e quem foram as “Mulheres de
Conforto”, é necessário entender o contexto político e social que ocorria
naquele momento. Nesse período o Japão exercia um controle imperialista nos
territórios estabelecidos no Pacífico, que se iniciou com a Restauração Meiji
(1868-1912). Essa restauração trouxe mudanças políticas estruturais para o
país, como maior poder nas mãos do imperador e transição do feudalismo para
os tempos modernos (GORDON, 2013). A partir disso, o que levou o Japão a
ocupar outros territórios foi a ambição de disputar com as influências tanto do
ocidente, quanto da China na Ásia. Esse período foi extremamente
expansionista e militarista, marcado por violência e seu discurso supremacista
japonês (YOSHIDA, 2020). Dessa forma, compreende-se o porquê do país ser
conhecido até hoje por seus crimes de guerra.

Durante os conflitos, os japoneses surgiram com um sistema que serviria para


confortá-los e distraí-los durante os duros e rigorosos momentos de guerra, as
“Mulheres de Conforto”. Elas, basicamente, eram meninas feitas de escravas
sexuais por volta de 12 a 25 anos que se estabeleciam em locais chamados de
Estações de Conforto comandados pelo governo e soldados japoneses. Esse
sistema se mantinha com as principais justificativas de diminuir os casos de
estupros nos locais ocupados, controlar o contágio de doenças sexualmente
transmissíveis e evitar espionagem, ou seja, de acordo com o historiador
japonês Yoshimi Yoshiaki em seu livro “Comfort Women” (2000), eles as
definiam como uma necessidade do exército japonês para se manter em guerra
e suprir suas vontades pessoais.

Com a proibição do uso de bordéis locais, o domínio de meninas virgens e um


controle da higiene e atendimento médico tanto aos soldados quanto às jovens,
fizeram ser possível que essas estações de conforto se expandissem em larga
escala pelo leste asiático, como será mostrado no mapa abaixo. Todos esses
argumentos foram contestados por Yoshiaki em seu livro através de uma
detalhada busca em arquivos japoneses de documentos que provassem a
existência dessas mulheres como escravizadas sexuais, assim, também
explicando como se deu toda essa sistematização. Após o fim do Império
japonês, juntamente com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, essas

67
meninas passaram a viver nas sombras da sociedade por quase 50 anos, por
vergonha e medo de julgamentos de uma sociedade que acreditava serem
prostitutas. O assunto só voltou a surgir em 1991 quando Kim Hak-Sun (김학순), a
primeira sobrevivente a testemunhar sobre o ocorrido, chamou a atenção do
mundo e de outras vítimas sobre o assunto, levando-as, da mesma maneira, a
se expor quanto a essa questão (YOSHIAKI, 2000).

Figura 1: Mapa da estimativa das estações de conforto no Império Japonês


Fonte: Women’s Active Museum on War and Peace

Sobre o vídeo analisado


O vídeo em que os relatos foram analisados é uma produção da “Newstapa”,
uma organização de jornalistas investigativos sem fins lucrativos e não
partidária que têm como missão, segundo o próprio site, destruir as fake news.
Ela teve início em 2012, com um grupo de jornalistas demitidos de grandes
emissoras durante o governo do ex-presidente sul-coreano, Lee Myung-Bak
(이명박), visto que seu mandato foi marcado por medidas autoritárias, refletindo,
também, na imprensa. Dessa forma, a reportagem faz parte de uma série de
documentários chamada “Testemunhas” e este é o episódio 47 intitulado “Triste
retorno ao lar parte 1 ‘testemunho da avó do norte”.

Os repórteres da Newstapa entrevistaram o fotojornalista japonês Takashi Ito


em sua própria casa e ele mostra alguns dos relatos das “Mulheres de
Conforto" realizados em suas visitas à Coreia do Norte. De acodo com sua
entrevista para o “Instituto de Pesquisa em Escravidão Sexual Militar
Japonesa” (tradução do autor) em 2019, Ito diz que costumava cobrir a
situação dos coreanos afetados pela bomba atômica no Japão e com o andar
das investigações, descobriu o caso da violência sexual cometida pelos
soldados japoneses desde 1932 até o fim da Guerra do Pacífico-Asiática
(1941-1945). Desde então, passou a visitar a Coreia do Sul para entrevistar
essas vítimas e a partir de 1992 também passou a ir à Coreia do Norte. Ele
disponibilizou oito testemunhos em que quatro foram transmitidos na primeira
parte e o restante na segunda parte, no episódio 48.

Por mais que as edições do vídeo não sejam foco deste trabalho, é importante
separar um espaço para que se fale das influências que elas têm no
sentimento e compreensão que o telespectador terá sobre o que está sendo

68
assistido. Pode-se notar que os relatos não foram distribuídos de forma
cronológica, talvez para deixar por último o que seria mais tocante e assim criar
uma narrativa que se enquadrasse melhor com a proposta da plataforma. Outro
ponto é a existência de animações para ilustrar o que está sendo contado,
presença de trilha sonora, juntamente com a voz da narradora, tendo forte
poder de persuasão no entendimento e emoção da reportagem.

Memória e os registros no corpo


Com isso, após assistir aos testemunhos mostrados no vídeo, consegue-se
perceber que as vítimas buscam, através de seus relatos, sobreviver a essas
memórias subterrâneas que ficaram escondidas por tanto tempo e que de
maneira quase imperceptível se afloram em momentos de crise em
sobressaltos bruscos e exacerbados. Quando essas memórias atingem o
espaço público, as reivindicações se juntam à disputa de memórias. “No
momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em
breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento” (Pollak,
1989, p. 7). Por isso, esse longo silêncio se transforma em resistência, pois
viver com essa dor e suportá-la todo esse tempo é uma forma de resistir aos
discursos oficiais.

Segue abaixo imagens das marcas deixadas pelos militares japoneses no


corpo da ex-escravizada sexual norte coreana Jung Ok-Sun (정옥순) em sua
entrevista feita em 1998 por Takashi Ito. Em seu relato, descreve ter sido
levada aos 14 anos de idade em 1933 pelos militares. Ela os acompanhou
forçadamente do norte da Coreia do Norte para o Norte da Coreia do Sul,
depois para Taiwan e por fim para a China. Seu testemunho contém histórias
tão impactantes que podem parecer inverossímeis, tirando a credibilidade do
relato. Isso faz lembrar de uma passagem do livro “É isto um homem” (2013)
do escritor Primo Levi, visto que em certo momento fala sobre a falta de
referencial para explicar violências tão extremas em que estava vivenciando no
campo de concentração em Auschwitz e também da dificuldade de fazer os
outros entenderem essa realidade sem que duvidassem. Assim, vê-se em Ok-
Sun uma riqueza de detalhes de uma dor que não passou.

Figura 2: Ex mulher de conforto mostra marcas com tinta em seu colo feitas
por militares japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno
ao lar parte 1 ‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

69
Figura 3: Ex mulher de conforto mostra marcas com tinta feitas por militares
japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao lar parte 1
‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

Figura 4: Ex mulher de conforto mostra marcas com tinta feitas por militares
japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao lar parte 1
‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

Figura 5: Ex mulher de conforto mostra marcas com tinta feitas por militares
japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao lar parte 1
‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

70
O trecho a seguir é uma das diversas demonstrações da permanência da
violência até os dias de hoje. “Fui espancada com uma barra horizontal e,
quando caí, fui espancada na cabeça. O espancamento continuou, mesmo com
o sangue escorrendo pelo meu rosto. Mesmo 50 anos depois, inúmeras
cicatrizes ainda permanecem em minha cabeça. Perdi um olho neste dia.”
(Jung Ok Sun, Ryoedo, Coreia do Norte). Esse relato confirma a violência
extrema dos soldados japoneses e a dificuldade de viver com essas marcas
sem poder esquecer do que de fato aconteceu no passado, pois sabe-se que já
é difícil conviver com a vergonha e culpa do ocorrido e isso se intensifica ainda
mais com marcas que nunca desaparecerão de seu corpo. Tudo isso cria um
ambiente propício para se esconderem dos olhares de julgamento de uma
sociedade cheia de estigmas como a coreana.

A imagem a seguir é de Ree Gyung-Seng (리경생 ), entrevistada em 1992. Ela foi a


primeira a se abrir sobre o assunto na Coreia do Norte. Em seu relato diz ter
sido levada aos 12 anos de idade. Sua cicatriz é resultado da retirada à força
de seu bebê de dentro de sua própria barriga pelos militares japoneses. Não
era permitido engravidar nas estações de conforto e por isso, foi feito um corte
no meio de sua barriga com uma faca antes que o bebê nascesse. Um fato
importante a ser lembrado e que não se encontra apenas no testemunho dela,
mas também na de diversas outras, é o fato da incompreensão da violência,
uma vez que eram novas demais para entender a dimensão das agressões que
sofriam em seu início.

Figura 6: Ex mulher de conforto mostra cicatriz em sua barriga feita por


militares japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao
lar parte 1 ‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

“Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada
encontrar uma escuta” (POLLAK, 1989, p. 6). Tal citação, no contexto do vídeo
analisado, traz certa ironia, posto que após esperarem tanto tempo para que
suas histórias fossem escutadas, o entrevistador disposto a escutá-las naquele
momento foi um japonês, justamente pertencente à nação que as torturou e as
causou tantas consequências. O fato de sua nacionalidade ser a responsável
pela dor das testemunhas que entrevista, influencia na forma como elas se
expressam e se dirigem a ele. Algumas se referem a ele como se estivessem o
igualando aos soldados que as abusaram, assim, consequentemente,

71
expressando-se de forma mais inconformada e enfurecida.

A penúltima entrevista mostrada é de Kim Young-Suk (김영숙), ela foi levada para
a China e ao descrever o que viveu tirou suas roupas sem hesitar, num ato de
necessidade de mostrar o que foi feito em seu corpo. Ao tirar praticamente toda
sua roupa aponta para marcas em suas costas, colo e até mesmo em suas
nádegas, mostrando as facadas realizadas em um de seus momentos de
resistência. Seus joelhos também foram feridos numa tentativa de quebrá-los.
Ela conta que, em sua chegada, um dos soldados disse “vamos brincar com
essa menina bonita”, tendo em vista que ela, da mesma forma que as outras,
também foi levada para as estações de conforto muito nova, dessa forma, não
conseguia interpretar o real significado desse “brincar” pela sua ingenuidade.

Figura 7: Ex mulher de conforto mostra marcas de facadas em suas costas


feitas por militares japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste
retorno ao lar parte 1 ‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

Figura 8: Ex mulher de conforto mostra cicatrizes nos joelhos feita por militares
japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao lar parte 1
‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

Por último, Ree Sang-Ok (리상옥), que chegou a estação de conforto aos 17 anos
com duas amigas, disse que quando lembra dessas memórias sangue sai de
sua garganta e se treme ao pensar. Diz também, enquanto chorava, que viveu
sozinha por conta do trauma e não teve filhos, dessa forma, percebe-se que

72
claramente sofreu muito por conta disso. Sang-Ok foi a que se referiu de forma
mais agressiva a Ito e por isso seu relato foi o mais emotivo. Suas cicatrizes no
joelho surgiram quando militares japoneses tentaram quebrá-lo em um dos
momentos que resistiu a seus abusos.

Figura 9: Ex mulher de conforto mostra cicatriz em seu joelho feita por militares
japoneses. Fonte: “Newstapa testemunhas Ep. 47 “Triste retorno ao lar parte 1
‘testemunho da avó do norte’”” (2016)

Reflexões finais
Portanto, vê-se que no livro “Goya à sombra das luzes” (2014) de Tzvetan
Todorov, o autor questiona o motivo de Goya produzir gravuras tão explícitas e
brutais sobre a Guerra de Independência Espanhola. A resposta que ele chega
é “Porque não podia agir de outra forma. O fato de ter vivido e observado essa
experiência faz dele uma testemunha preciosa.” (TODOROV, 2014, p.18). Ou
seja, o artista encarava a sua arte como uma forma de responsabilidade em
representar aqueles que não podiam estar ali para contar por si mesmos.

Tal justificativa se enquadra com a questão das “Mulheres de Conforto”, dado


que relatar as dificuldades e violências que sofreram tanto dos japoneses
quanto da pressão social é uma forma de se solidarizar com as vítimas que não
puderam ser ouvidas, as que não tiveram a coragem de falar ou que nunca
terão por medo ou vergonha. O grito de aflição sai como desespero de não
serem esquecidas e como missão de que isso não ocorra novamente.

Assim, conclui-se podendo perceber que a partir do imaginário do não visível e


das impressões de memórias no corpo, é possível compreender a dimensão
que certas violências, nesse caso, físicas, implicam na memória coletiva de
uma sociedade que não consegue superar tais acontecimentos. É importante
deixar destacado que a memória não está viva apenas na construção de
monumentos e museus, mas também nos próprios indivíduos que
sobreviveram às violências e estão ativos para contar de forma íntima e
pessoal suas experiências tão únicas e particulares.

Referências
Tamires Barbosa é graduanda do 7° período de Licenciatura em História na
UFRJ.

73
BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA,
Marieta de M.; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 5.ed. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, 2002.

DELGADO, Lucilia; FERREIRA, Marieta. História do tempo presente e o ensino


de História. Revista História Hoje, v. 2, n. 4, p.19-34, 2013.

GORDON, Andrew. A Modern History of Japan: From Tokugawa Times to the


Present. USA: Oxford University Press, 2013, p. 115-137.

KYEOL: Research Institute on Japanese Military Sexual Slavery. Website. [S.


l.]: Ahn Hae-ryong, 2019. Disponível em: https://kyeol.kr/en/node/160. Acesso
em: 27 jul. 2023.
LEVI, Primo. É isto um homem?. [S. l.]: Rocco, 2013.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

TODOROV, Tzvetan. Os estragos da guerra. in: Goya à sombra das Luzes.


São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 125-143.

WOMEN’S Active Museum on War and Peace. [S. l.], 2005. Disponível em:
https://wam-peace.org/en/. Acesso em: 11 jul. 2023.

YOSHIAKI, Yoshimi. Comfort Women: sexual slavery in the japanese military


during world war II. New York: Columbia University Press, 2000.

YOSHIDA, Takashi. Violence and the Japanese Empire. The Cambridge World
History of Violence, Cambridge University Press, p. 326-344, 2020. Disponível
em: https://www.cambridge.org/core/books/abs/cambridge-world-history-of-
violence/violence-and-the-japanese-
empire/A053FAAE0F7F90113551D0F70F917709. Acesso em: 27 jul. 2023.

뉴스타파목격자들47회“슬픈귀향1부‘북녘할머니의증언’”'. Newstapa: Youtube, 2016. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=azQj4ktgA0k&list=PLtZnhRoQo2PwsvhsZN
7NfEuNxIKQk309b. Acesso em: 14 jul. 2023.

74
INTERLÍNGUA NA TRADUÇÃO DE MENSAGENS
ENVIADAS POR KAI, DO EXO, NO BUBBLE (SAID CUTELY),
por Vitória Ferreira Doretto

O fandom, por ser um conjunto de “estruturas e práticas que se formam em


torno de peças de cultura popular” [Fraade-Blanar; Glazer, 2018, p. 23], é um
espaço em que vários fãs produzem e consomem materiais sobre o objeto
cultural de seu agrado. Uma das atividades desenvolvidas por estes grupos de
fãs é a tradução de conteúdos (entrevistas, mensagens em produtos
promocionais, vídeos especiais, letras de músicas e uma variedade sem fim de
materiais) da língua original do produto cultural para outras línguas, por
exemplo para a língua materna de uma das comunidades de fãs. O mesmo
ocorre nos fandoms de música pop sul-coreana (K-pop), em que cada grupo ou
solista angaria fãs que formam seus fandoms. E é de um dos fandoms de K-
pop, a saber o EXO-L, que encontramos o estudo de caso que iremos
comentar brevemente neste texto.

EXO-L é o nome dado ao fandom composto por fãs do grupo de K-pop sino-
coreano EXO, que debutou em 2012 sob o gerenciamento da SM
Entertainment e é atualmente composto por nove integrantes — Xiumin, Suho,
Lay, Baekhyun, Chen, Chanyeol, D.O., Kai e Sehun. Como qualquer outro
fandom, no EXO-L existem grupos de fãs que se dedicam a criar fanarts
(ilustrações dos integrantes), edits (edições de imagem ou vídeo com os
cantores), fanfics (histórias com os integrantes), vídeos com as músicas
lançadas, e/ou compartilhar notícias sobre o grupo, republicar imagens
promocionais, fazer mutirões de votações etc. Estas atividades são essenciais
para a continuidade do fandom, pois, a “socialização é umas das mais básicas
atividades de fã” [Fraade-Blanar; Glazer, 2018, p. 147]. E, no caso do EXO-L,
para os fãs que não são falantes de coreano, a língua materna de oito dos
integrantes do EXO, a tradução é uma das atividades mais importantes — o
compartilhamento de notícias e informações não seria possível se não
houvesse a tradução do coreano para as outras línguas faladas pelos fãs.

Dito isto, neste texto teceremos breves considerações sobre a interlíngua —


noção de Maingueneau [2006] — na tradução para o inglês e para o português
de cinco mensagens enviadas em coreano pelo cantor sul-coreano Kai,
integrante do EXO, no serviço Bubble do aplicativo Lysn — tradução feita por
fãs e publicada em dois perfis no Twitter.

Analisar esta atividade editorial num âmbito não-profissional supõe que alguns
pontos sejam considerados: são traduções feitas por pessoas que
(supostamente) são fluentes nas línguas de saída e de chegada (coreano e
inglês, por exemplo), mas que não necessariamente se dedicam a atividades
que envolvem o trabalho com textos ou linguagens; são feitas majoritariamente

75
logo em seguida da publicação ou divulgação do texto original, o que não deixa
muito tempo para revisões ou refinamentos linguísticos; e ganham circulação
ampla principalmente por meio das redes sociais dos fãs — aqui também
podemos considerar que “para alguns, o fandom funciona como um jeito de
desenvolver um conjunto de habilidades. Criação de conteúdo, liderança e
evangelização — tudo isto é parte importante do fandom” [Fraade-Blanar;
Glazer, 2018, p. 179], e a tradução amadora pode ser a porta de entrada para
uma profissão futura ou até mesmo ser incluída em currículos.

As cinco mensagens escolhidas foram enviadas pelo Bubble (Figura 1), um


serviço pago do Lysn. O Lysn é um aplicativo para celular coreano que foi
criado pela empresa sul-coreana Dear U exclusivamente para a SM
Entertainment e lançado em 2018. Seu foco é a comunicação de artista para fã
e os grupos de fã-clube oficiais (com ou sem assinatura). No aplicativo estava a
comunidade oficial do EXO-L até que seu serviço foi encerrado em julho de
2022 pela SM — suas funções foram transferidas para outro aplicativo,
chamado Kwangya Club, que será encerrado em setembro de 2023 e seus
serviços serão transferidos para o aplicativo Weverse.

Figura 1 - Bubble
Fonte: Elaborado pela autora a partir de Lysn.

O Bubble (Figura 1) é um serviço pago oferecido dentro do Lysn (e fornecido


pela Dear U) em que o artista envia mensagens de texto, vídeos, áudios e fotos
diretamente para o celular do assinante, que pode responder com mensagens
de texto. O dear U Bubble possibilita a comunicação entre artistas e fãs (numa
espécie de relação parassocial que não abordaremos aqui) e oferece tradução
mecânica (feita por um dos dois softwares de tradução disponíveis no
aplicativo, Google Translate, do Google LLC, e Papago, da Naver Corp.) das
mensagens de texto em coreano para inglês, japonês, mandarim, vietnamita,
tailandês, indonésio (ou bahasa Indonesia) e espanhol. Inicialmente, o serviço
estava disponível apenas para os artistas agenciados pela SM Entertainment,
mas atualmente alguns artistas das empresas FNC Entertainment, TOP Media,

76
RBW, Jellyfish Entertainment, JYP Entertainment, WM Entertainment e Play M
Entertainment também usam o serviço. A assinatura do Bubble pode ser feita
para quantos artistas o fã quiser (um, dois, três... todos de um mesmo grupo,
vários de grupos diferentes) e o valor cobrado é em dólar (Figura 2) — $3,99
para um artista, $6,99 para dois, $9,99 para três... e assim por diante. O
assinante escolhe quantos “tickets” de um grupo irá comprar e depois seleciona
os integrantes que deseja receber mensagens (Figura 2).

Figura 2 – Perfil do Kai e integrantes do EXO disponíveis no Bubble em 2023


Fonte: Elaborado pela autora a partir de Lysn.

Em 2020 os integrantes do EXO que estavam “em atividade” — ou seja, que


não estavam alistados ou afastados de atividades oficiais por qualquer motivo
— se juntaram ao Bubble e a partir do momento em que começaram a enviar
mensagens pelo aplicativo, fanbases (grupos de fãs) de diversos países
passaram a também traduzir as mensagens enviadas — como comentado,
geralmente é bastante comum a prática de tradução de outros conteúdos
relacionados aos integrantes do grupo. Não foi possível que todos os
integrantes do EXO participassem do aplicativo desde o começo porque alguns
estavam no período de serviço militar (por exemplo, Xiumin e D.O.) e o
integrante chinês, Lay, não tem participado regularmente das atividades do
grupo. Nesta “primeira leva” de membros do EXO no Bubble estava Kai —
como ele começou a cumprir seu período de serviço militar, a partir de maio de
2023 a assinatura de seu Bubble ficou indisponível (é possível conferir os
membros disponíveis na Figura 2).

O artista juntou-se a SM Entertainment em 2007, com 13 treze anos, ao vencer


o 10th SM Youth Best Contest. Durante a juventude, viveu em um dormitório
com outros trainees e recebeu aulas de canto, dança e atuação, além de
participar com Suho e Chanyeol do clipe da música "HaHaHa Song" do grupo
TVXQ em 2008. Desenvolveu conhecimento técnico de hip hop, popping e
locking depois de entrar na SM e se graduou na Escola de Artes Dramáticas de

77
Seul em 2012. Kai foi o primeiro membro do EXO a ser formalmente
apresentado ao público em 23 de dezembro de 2011.

Dos mais de 1000 dias de mensagens enviadas por Kai no aplicativo,


escolhemos um conjunto de cinco mensagens enviadas pelo artista em dia 25
de novembro de 2020 (Figura 3), na época do lançamento de seu primeiro
álbum como solista, “KAI (开)”.

Como estas mensagens são escritas em coreano, que possui palavras e


formas de tratamento bastante específicos, diferente do inglês e português por
exemplo, ainda que haja tradução mecânica para inglês e outros idiomas
diretamente no aplicativo (conforme mostrado na Figura 3), os tradutores-fãs
precisam entender não só a dinâmica e funcionamento do idioma coreano, mas
descobrir como traduzir no texto em inglês ou português os detalhes que
apenas certas partículas ou certas formas de escrita em coreano passam para
o leitor e que não existem no idioma de chegada.

Figura 3 – Capturas de tela do Bubble


Fonte: Bubble via Lysn. Elaborado pela autora.

Vejamos então as mensagens deste conjunto.

A primeira mensagem é “앨범진짜예쁘지신경염첨썼어!” (Figura 3) e a tradução automática


para o inglês disponibilizada pelo aplicativo é “The album is really pretty”
(Figura 3), já a tradução feita pela fanbase INTL KAI é mais complexa: “The
album is really pretty right, I put a lot of thought into it! (said cutely)” (Figura 4),
e sua tradução feita pela fanbase brasileira KAI BRASIL para o português é “O
álbum é muito bonito, certo? Eu prestei muita atenção nisso!” (Figura 5) — são
três traduções diferentes para a mesma mensagem, a tradução mecânica não
traz a segunda parte da mensagem (“I put a lot of thought into it” ou “eu prestei
muita atenção nisso”) e a tradução brasileira não usa a indicação de entonação
da mensagem (“said cutely”). Na tradução feita pela INTL KAI (Figura 4) de
três das próximas quatro mensagens há novamente a indicação de entonação

78
“fofa” ou a complementação das informações (conforme destacado em negrito):
“While the album [details] were being released I coudn’t help but upload a
really cute Raeonee ㅠ”, “But why did I look so swollen that day on the
photocard studio vídeo? (said cutely)”, “Slepyyy”, “But I have to post on
Instagram ㅠ (said cutely)“, enquanto a tradução para o português (Figura 5)
não faz este tipo de inclusão, mas acrescenta acentuação solta como forma de
entonação na mensagem expressando sono (destacado em negrito), o que não
aparece na tradução em inglês: “Eu não pude deixar de postar uma foto
extremamente fofa do Raeonnie no meio do lançamento do álbum”, “mas
porque meu rosto parecia tão inchado naquele dia no vídeo do Photocard
Studio?”, “Estou com sono~~” , “Mas tenho que postar as fotos no insta”.

Neste conjunto analisado, a fanbase INTL, por não ter em inglês um termo
modificador da forma que o idol usou em sua mensagem, precisa indicar entre
parênteses que a frase não é simplesmente aquilo que está escrito, mas que
há um tom “fofo” no texto — o mesmo acontece na fanbase brasileira, que
neste caso, ao contrário do que faz com certa frequência, não incluiu o “escrito
fofinho” no final, o que se dá, possivelmente pela fonte da tradução do coreano
para inglês. As traduções para o português do conjunto analisado foram
retraduzidas da tradução do coreano para o inglês feita por outro usuário
(mye0nportrait) da rede social (Figura 5) que provavelmente não acrescentou
as indicações de entonação e contexto ao texto traduzido, em outras situações,
quando o texto em inglês utilizado como fonte para a tradução para o
português é da fanbase INTL KAI, há o acréscimo de contextualizações,
explicações e indicações de entonação fofa (como no exemplo da Figura 6,
que traz trechos do conjunto de mensagens enviadas por Kai em 27 de
novembro de 2020), pois isto está no texto-fonte.

Figura 4 – Sequência de mensagens traduzidas pela fanbase INTL KAI


Fonte: https://twitter.com/INTLKJI

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Figura 5 – Sequência de mensagens traduzidas pela fanbase KAI BRASIL
Fonte: https://twitter.com/exokaibrasil

Figura 6 – Sequência de mensagens traduziras pela fanbase KAI BRASIL


Fonte: https://twitter.com/exokaibrasil/status/1332371828594106370

Aqui podemos presenciar o movimento de transformação entre linguagens,


tradições e culturas que Ribeiro [2020] indica estar envolvido na tradução:

“O ato tradutório consiste no movimento de transformação entre linguagens,


tradições, culturas, tempo e espaço. É o trânsito entre escrever e transcrever,
de ir além do que está registrado, de recuperar a história inserida entre as
letras e sons que revelam um pensamento.

É a ação de transcriar discursos que transpassem os limites do concreto para


atingir a imaginação, dentro dos parâmetros da similaridade. É percorrer as
vias da analogia que produzem articulações entre a causa e o efeito.

Nesta altura, a tradução já se converteu numa transposição de caracteres que


se caracterizam pela singularidade e contiguidade. Processo de concretização

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do que é fluido, mas preso por convenções elaboradas pelo pensamento
humano.” [Ribeiro, 2020, p. 126]

Traduzir algum texto sempre é um desafio, seja porque a língua de chegada


não possui termos que correspondam ao sentido dos termos usados na língua
original, seja por qualquer outra das inúmeras questões que aparecem ao
longo do processo de tradução.

Maingueneau [2006, p. 182, grifo nosso] diz que:

“o escritor não enfrenta a língua, mas uma interação entre línguas e usos,
aquilo que denominamos interlíngua. Vamos entender por isso as relações
que entretêm, numa dada conjuntura, as variedades da mesma língua, mas
também entre essa língua e as outras, passadas ou contemporâneas. É a partir
do jogo dessa heteroglossia profunda, dessa forma de ‘dialogismo’ (Bakhtin),
que se pode instituir uma obra.”

Esta noção de interlíngua de Maingueneau [2006] ultrapassa “as noções


correntes de intertextualidade e de interdiscurso, [e] articula os códigos
linguageiros à semântica global das enunciações” [Salgado, 2006], de forma
que “não se trata apenas de um léxico especial ou específico, mas também de
uma organização sintática e mesmo textual” [Possenti, 2020, p. 25]. Trata-se
então de considerar a integração entre língua e uso, de mobilizar a língua que
está entre a língua usada no cotidiano e a língua que se coloca como outra,
como uma outra forma de dizer; interlíngua se refere a uma forma própria de
dizer algo, a um código linguageiro próprio do autor e que é recebido pelo leitor
de tal forma que sua sensação é de que não haveria outra maneira de ser dito
ou escrito além daquela. Nessa noção de código linguageiro se associam
estreitamente duas acepções de “código”: como “sistema de regras e de signos
que permite uma comunicação” [Maingueneau, 2006, p. 182] e como um
“conjunto de prescrições: por definição, o uso da língua que a obra implica se
apresenta como a maneira pela qual se tem de enunciar, por ser esta a única
maneira compatível com o universo que assim se instaura” [Maingueneau,
2006, p. 182]. Assim:

“O código linguageiro resulta de uma determinação da interlíngua, isto é, da


interação das línguas e dos registros ou das variedades acessíveis — tanto no
tempo como no espaço — em uma conjuntura determinada. A interlíngua é,
portanto, o espaço máximo do que se instauram os códigos linguageiros. Um
posicionamento define seu próprio código linguageiro por sua maneira singular
de gerir a interlíngua.” [Charaudeau; Maingueneau, 2008, p. 97]

Deste modo, a interlíngua trata do linguajar característico, único de cada autor,


do que se costuma chamar de estilo de escrita. Ela “não é uma língua natural
nem um gênero, mas sim algo da ordem do constitutivo de um dado
posicionamento de uso dentro da própria codificação da língua” [Ponsoni;
Loureiro; Garbini, 2021, p. 146]. E é este posicionamento de uso dentro da
língua, este estilo que observamos nas mensagens enviadas por Kai, sua

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forma “fofinha” vista nas mensagens enviadas para os fãs no aplicativo é
característica de seu gestual e de sua forma de escrever.

E o mesmo acontece nas traduções, incluindo nas traduções feitas por grupos
de fãs que são produtores [de conteúdo] ativos no fandom. A pessoa
encarregada de traduzir um texto, neste caso, as mensagens enviadas no
Bubble, terá que não só traduzir as palavras, mas as interações e usos que
este texto evoca e o tom que ele intende passar.

Quando as fanbases vistas aqui indicam o “said cutely” ou “escrito fofinho”,


inscrevem as mensagens na imagem que o idol tem no fandom — não iremos
nos deter profundamente nisto, mas esta forma fofa de escrita também se
relaciona com o ethos do Kai —, mas também transcreve variações da escrita
em coreano que outros idiomas não conseguem atingir em traduções literais ou
traduções mecânicas.

Referências
Ma. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda e mestra em Estudos de Literatura
pela Universidade Federal de São Carlos, integrante do Grupo de Pesquisa
COMUNICA - inscrições linguísticas na comunicação, do Laboratório de
Escritas Profissionais e Processos de Edição e pesquisadora associada à
Curadoria de Estudos Coreanos da Coordenadoria de Estudos da Ásia da
Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do


Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.

FRAADE-BLANAR, Zoe; GLAZER, Aaron M. Superfandom: Como nossas


obsessões estão mudando o que compramos e quem somos. Tradução de
Guilherme Kroll. Rio de Janeiro: Anfiteatro, 2018.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

PONSONI, Samuel; LOUREIRO, André Terra Oliveira; GARBINI, Raquel


Tavares. “Interlíngua E códigos Linguageiros da língua dos Sapateiros de
Passos” in Estudos da Língua(gem), vol. 19, n. 2, 2021, p. 139-49.
https://doi.org/10.22481/el.v19i2.9948

POSSENTI, Sírio. “Notas sobre interlíngua” in Revista Estudos em Letras, vol.


1, n. 1, 2020, p. 21–36. Disponível em:
https://periodicosonline.uems.br/index.php/estudosletras/article/view/5192

RIBEIRO, Josimar Gonçalvez. Tradução. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL,


Cléber Araújo (Org.). Tarefas da Edição. Belo Horizonte: Impressões de Minas;
LED, 2020. Disponível em: http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-
content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-
arquivo-digital-07-10-20.pdf

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SALGADO, Luciana Salazar. “A interlíngua de Atrás da Catedral de Ruão” in
Crítica & Companhia, ano 6, 2006. Disponível em:
http://www.criticaecompanhia.com.br/luciana.htm

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