Você está na página 1de 242

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ALEXANDRE REIS

“ISSO É MUITO AFRICANO”: DIÁLOGOS MUSICAIS E POLÍTICOS ENTRE


ANGOLA E BRASIL (1950-1980).

NITERÓI
2021

0
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, como requisito para a
obtenção do título de Doutor em História.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Bittencourt – UFF
(orientador)

________________________________________
Prof.ª Dr.ª Andrea Marzano - UNIRIO
(arguidora)

________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rita Chaves - USP
(arguidora)

________________________________________
Prof. Dr. Matheus Pereira – ICS/ULISBOA
(arguidor)

_______________________________________
Prof. Dr. José Otávio Van-Duném - UAN
(arguidor)

1
Ficha Catalográfica:

2
Resumo
O presente trabalho busca examinar os intercâmbios musicais entre Angola e Brasil entre
os anos 1950 e 1980. A cultura, a literatura, e, sobretudo, a música brasileira foram
referenciais importantes para os angolanos em seu processo de construção de sua
identidade nacional. Os angolanos ao ouvir, cantar e dançar a música brasileira se
inspiraram e passaram a valorizar as suas práticas culturais nativas, práticas essas que, no
período colonial, eram deslegitimadas e inferiorizadas. Em seus momentos de lazer e
entretenimento nos clubes e nas suas festividades privadas, ouviam e interpretavam
sambas e sembas, com isso se sentindo mais angolanos. Além disso, inventariar a
circulação musical brasileira em Angola contribui para lançar luz sobre o cotidiano nos
últimos momentos do colonialismo português em Angola. Acompanhar como esses
diálogos e intercâmbios se deram também no período pós independência desvelará as
continuidades e rupturas desse processo.

Palavras-chave: Música; Angola; Brasil; História da África; Colonialismo tardio.

3
Abstract
This paper seeks to examine the musical and political exchanges between Angola and
Brazil between the 1950s and 1980s. Culture, literature, and, above all, Brazilian music
were important references for Angolans in their process of construction of their national
identity. When Angolans heard, sang and danced to Brazilian music, they were inspired
and started to value their native cultural practices, practices that, in the colonial period,
were delegitimized and inferiorized. In their leisure and entertainment moments at the
clubs and in their private festivities, they listened to and interpreted sambas and sembas,
thus feeling more Angolan. Furthermore, taking stock of the Brazilian musical circulation
in Angola helps to enlighten on daily life in the last moments of Portuguese colonialism
in Angola. Monitoring how these dialogues and exchanges took place also in the post-
independence period will reveal the continuities and ruptures in this process.

Key-Words: Music, Angola, Brazil, History of Africa, Late colonialism

4
Para Luara e Luíza Mahin,
meus amores...

5
Sumário
Índice de Ilustrações ........................................................................................................................................................... 7
Lista de abreviaturas........................................................................................................................................................... 8
Agradecimentos................................................................................................................................................................... 9
Apresentação. ................................................................................................................................................................. 12
Capítulo 1 – As relações musicais e políticas entre Brasil e Angola (1950-1960) ................................................... 25
1.1 – Introdução ............................................................................................................................................................ 25
1.1.1 Um parêntesis sobre as mudanças na política econômica de Portugal em relação à Angola. .... 28
1.2 As relações braso-angolanas e o Brasil nos jornais de Angola. ................................................................. 32
1.2.1 Acerca do lusotropicalismo de Gilberto Freyre. ........................................................................................ 43
1.3 Samba, semba e sembistas. ......................................................................................................................................... 49
I.4 Breve Geografia cultural da cidade de Luanda: os cineteatros. ....................................................................... 62
1.5- “Quando começou a guerra colonial não havia tiros em Luanda”: vida social e cultural em tempos de
guerra (1961-1974)......................................................................................................................................................... 71
Capítulo 2 – Cultura, lazer e política Angola e Brasil (1960-1970). ........................................................................... 89
2. 1 Lazer e cotidiano em Luanda no período colonial........................................................................................... 89
2.1.1 – O Lazer em contextos africanos. .............................................................................................................. 90
2.2 – O cotidiano dos setores médios e das classes mais abastadas. .................................................................... 94
2.2.1 A circulação da música popular ou música “cafona” em Luanda. ....................................................... 101
2.3 “Eles e Elas foram o Diabo”: a cena cultural do yé-yé-yé em Angola. ....................................................... 106
2.4 Cotidiano e lazer na área suburbana de Luanda. ............................................................................................. 111
2.5 Os anos finais da década de 1960 e o início da de 1970 em Luanda. .......................................................... 126
Capítulo III. Diálogos musicais e políticos entre Angola e Brasil no período pós independência. ................... 137
3.1 – “Um abraço do samba ao semba”. ................................................................................................................... 137
3.1.1 O contexto político angolano dos anos 1970 e 1980: disputas e dissensos. .................................. 142
Capítulo 3.2 – As relações Brasil-Angola no âmbito das relações exteriores nas décadas de 1970 e 1980. 148
3.3 – Bonga e o Brasil. ................................................................................................................................................ 155
3. 4 A gênese do Projeto Kalunga e seu desenrolar. ............................................................................................. 169
3.5 Mais brasileiros em Angola, mais angolanos no Brasil: Alcione, Beth Carvalho, Os Tincoans, Jurema,
Luiz Ngambi e Waldemar Bastos (1981-1984). ...................................................................................................... 189
3. 8 Das Kizombas à Kizomba – Festa da Raça. ................................................................................................... 215
Considerações finais: ....................................................................................................................................................... 218

6
Índice de Ilustrações
Figura 1 - Jair Rodrigues e Elis Regina em Luanda. ..................................................................................................... 24
Figura 2 - Jânio Quadros na capa do Diário de Luanda (10/09/1959. .................................................................... 34
Figura 3 – Casas de Musseque. ........................................................................................................................................ 49
Figura 4 - Um grupo performando uma Massemba. ...................................................................................................... 59
Figura 5 – Mapa dos musseques de Luanda ................................................................................................................. 62
Figura 6 - Arquitetura do Miramar .................................................................................................................................. 67
Figura 7 – Angêla Maria em Angola ............................................................................................................................... 72
Figura 8 - Anúncio da pela de teatro de revista “Rio Sempre Rio”no Diário de Luanda (10/08/1967, p. 3.) .... 86
Figura 9 - Jovem de 20 anos descrita pela matéria como a funcionária “desempoeirada”. .................................. 96
Figura 10 - Público do Miramar no show de Jair e Elis em 1966.. ............................................................................. 98
Figura 11 - O grupo angolano de "música moderna" Os Rocks. ............................................................................ 108
Figura 12 - O "homenageado" da festa de batizado.. ................................................................................................ 114
Figura 13 – O público do Ngola Cine(Tribuna dos Musseques, 14/09/1967, p.4). ..................................................... 119
Figura 14 - Autoridades e empresários presentes na inauguração do Kilumba Cine .............................................. 122
Figura 15 – Ficha de Bonga na PIDE .......................................................................................................................... 162
Figura 16 – Músicos brasileiros na academia de música de Luanda ....................................................................... 169
Figura 17 - Os músicos cubanos em Angola em 1976. ............................................................................................. 172
Figura 18 - Chegada da comitiva brasileira do Kalunga a Luanda ............................................................................ 175
Figura 19 - Público do Espetáculo na Praça de Touros em Luanda. ................................................................ 178
Figura 20 - Notinha publicada no Jornal O Globo (14/05/1980), p.33. .............................................................. 181
Figura 21 - Uma das quatro páginas da matéria revista Módulo.. ........................................................................... 183
Figura 22 - Beth Carvalho no Cine Karl Marx em Setembro de 1981................................................................ 189
Figura 23 – Capa do Long Play de Luiz N'Gambi, Angola - Folclore e Tradições. ........................................ 193
Figura 24 - Capa do Álbum Estamos juntos de Waldemar Bastos ...................................................................... 199
Figura 25 - Canto Livre de Angola se apresentando na sala Cecília Meireles em 1983.. .............................. 207
Figura 26 - Um dos artistas do Canto Livre de Angola. ......................................................................................... 211
Figura 27 - Diplomatas africanos na Inauguração da estátua de Zumbi dos Palmares.. .................................. 215

7
Lista de abreviaturas

ANANGOLA: Associação dos Naturais de Angola


ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
CDA: Companhia de Discos de Angola
CEI: Casa dos Estudantes do Império
CITA: Centro de Informações e Turismo de Angola
DGS: Direção Geral de Segurança
DIAMANG: Companhia de Diamantes de Angola
FNLA: Frente Nacional de Libertação de Angola
FADIANG: Fábrica de Discos de Angola
MPLA: Movimento Popular de Libertação de Angola
ONU: Organização das Nações Unidas
PCA: Partido Comunista Angolano
PIDE: Polícia Internacional de Defesa do Estado
SCCIA: Serviço de Centralização e Coordenação de Informações de Angola
RTP: Rádio e Televisão de Portugal
TT: Torre do Tombo
UNITA: União Nacional para a Independência Total de Angola
UNTA: União Nacional dos Trabalhadores de Angola
UNAC: União Nacional dos Compositores Angolanos
UPA: União das Populações de Angola
UEA: União dos Escritores Angolanos

8
Agradecimentos.

Agradeço à CAPES por financiar parcialmente a pesquisa e por custear as


passagens para Lisboa, quando do meu estágio de pesquisa nos acervos lisboetas (Edital
CAPES-PRINT).
Ao meu orientador, Marcelo Bittencourt, que me conduziu com paciência,
gentileza, estímulo e compreensão, atributos essenciais nesses tempos pandêmicos.
Trocamos e-mails desde 2016 quando eu ainda procurava me situar sobre o campo dos
estudos africanos. Assim que passei na seleção de doutorado e contei que ia ser pai (o
resultado do exame e da seleção saíram mais ou menos na mesma época), Marcelo
recebeu a notícia de maneira muito tranquila, “o importante é o filho ou filha”. Além
disso, me forneceu acesso a uma quantidade considerável de bibliografias e ao seu
gigantesco acervo de fotos dos jornais angolanos. Nos meus momentos de dúvida e
angústia, Marcelo repetia para mim os argumentos que eu havia escrito nos meus textos
preliminares e que ele havia lido e orientado, dizendo “tá vendo? Você tem um
argumento”. Preciso também mencionar que Marcelo possui uma ampla rede de contatos
pessoais e profissionais que me facultaram acesso a entrevistados e outros
encaminhamentos sem os quais esse trabalho não existira.
Ao Camilo, ao Matheus e a Cláudia, minha profunda gratidão. Matheus, que
sempre foi um grande amigo e um grande entusiasta da pesquisa, me hospedou em sua
casa em Lisboa, digitalizou livros e me ajudou com um sem-número de questões, das
mais simples as mais complexas. Seu Camilo me “adotou” na minha estadia portuguesa
e sempre perguntava se estava tudo e se eu precisava de alguma coisa. Cláudia fez
consideráveis e importantes contribuições à pesquisa ao me ajudar com a seleção do
material da pesquisa nos acervos lisboetas.
Agradeço também aos entrevistados por me cederem um pouco de seu tempo e
sua atenção ao me contarem suas histórias.
Às professoras da banca de qualificação, Andrea Marzano e Rita Chaves, pela
leitura atenta e pelas valiosas críticas e sugestões.
Aos professores Marta Abreu e Alexander Gebara, pelas aulas instigantes durante
as disciplinas de pós-graduação.
À Juliana Bosslet – in memoriam – porque seu trabalho foi uma inspiração para o
meu. Nas minhas incursões aos acervos lisboetas persegui muitos das fontes e dos fundos
que a referida pesquisadora também havia utilizado.

9
Aos colegas e amigos do grupo de pesquisa Áfricas como Karina Ramos, Marilda
Flores, Carolina Bezerra, Amanda Palomo, Priscila Henriques, Camila Costa, Melina
Araújo e Nathália Siqueira que leram trechos desse trabalho com atenção. Ao professores
Sílvio Carvalho e Washington Nascimento pelas sugestões e por franquearem acesso a
algumas fontes de pesquisa.
A Mateus Berger Kushic por compartilhar comigo as transcrições das entrevistas
que realizou em Luanda em 2016.
Aos amigos que fiz na História UFF, meu muito obrigado por compartilharem
comigo as felicidades e angústias do processo: Eric Brasil, Juliana Magalhães, Izabel
Mazzini e Renato Silva.
A todos os funcionários dos acervos por onde passei como Associação Brasileira
de Imprensa, Hemeroteca Municipal de Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal e Acervo
Histórico do Itamaraty. Aos funcionários da pós-graduação, Rayane e Rafael e os demais
colegas.
À minha família pela parceria e suporte de sempre. Minha Mãe Mariza e meus
irmãos Anne e Mário buscavam minha filha na escola nos momentos em que precisei me
ausentar para um congresso, evento ou o período de 30 dias em Lisboa.
Por último e mais importante, meus dois amores Luara e Luíza Mahin. A Luara
agradeço o seu amor e parceria desde 2010 e por sempre me estimular a seguir em frente.
A minha filha Luíza, agradeço por compreender (ou não) as minhas ausências.

10
Por todos os musseques e recantos da cidade onde o povo passa., em encontros, troca de
palavras, naquele sábado, a farra do Bairro Operário estava falada. Verdade que não era sabida de toda
a gente. Precisava cuidado, nessas horas os jipes corriam no meio das cubatas, tentavam atropelar a
teimosa alegria do povo. Só que conhecidos, amigos, aqueles que eram precisos lá, esses sabiam da farra
na casa do sô Mussunda, e farra lá, não digo nada! Aquilo sim: música angolana, comida angolana, era
tudo! Música brasileira e cubana também, o povo só, baião e merengue! E nada de música de rádio, isso
não. Conjunto, mas conjunto do povo, como o Ngola, nessa noite. Toda a manhã, toda a tarde, mamãs e
filhas fizeram as especialidades para levar na farra, a quitaba amarelou sua cor e folhas de bananeiras
esconderam a boa quicuanga. Meninos, logo de manhã, foram no mercado, trouxeram a cola e o
gengibre para fazer boca, esse bom maqueso. Outras mulheres preparavam um peixe bom para não
faltar sempre o velho muzongué, caldo de aguentar forças de farristas já com a madrugada a entrar. Sete
e meia, meninos corriam já, agarrando as gasosas e as garrafas de vinho, cerveja e quitoto, adiantar pôr
nas selhas com gelo. E mamãs gordas ou secas dos anos arrumavam as comidas, sopravam fogareiro ou
ensaiavam mesmo, no terreiro, passos de antiga massemba, lamentando esses meninos de agora não
sabiam essas danças do antigamente: só querem o xaxado, só querem o merengue. E do Prenda, perdido
para lá da cidade, da Boavista, de todos musseques, em pequenos grupos, começaram chegar moços e
moças. Os mestres do conjunto, esses chegaram mesmo na carrinha dum amigo que lhes deixou e foi
embora. Afinaram suas violas, bateram a ngoma e na dikanza Xico fez maravilhas de ritmo “só para
chatear”, como ele falou.

Luandino Vieira – A Vida Verdadeira de Domingos Xavier

11
Apresentação.
É devagar
É devagar
É devagar, é devagar, devagarinho
Martinho da Vila (1995)

Na década de 1990 quando havia algum aniversário ou outra festividade na minha


família, parecidas com as que os angolanos chamam de “farra de quintal”, se tocava
bastante Devagar/devagarinho.1 Nessas ocasiões quando se tocava essa canção do
Martinho, logo um dos meus tios era levado ao meio da “roda” para “dançar no
miudinho”. Associávamos essa canção a ele porque é uma pessoa de voz mansa, jeito
calmo e com fama de “devagar”. Além dessa canção me remeter ao tempo em que tinha
15, 16 anos, me remete também a minha trajetória. Terminei o ensino médio sem saber
muita coisa sobre o ensino superior e a universidade. Minha mãe, trabalhadora do
comércio, só estudou até o primário, e meu pai, serralheiro, até o ensino secundário. Aos
24 anos, nas conversas com meus amigos de bairro (A Engenhoca, subúrbio do município
de Niterói, Estado do Rio de Janeiro) surgiu o tema do ensino superior. Como dos 14 aos
19 anos vendi jornais e revistas, um pouco como os ardinas angolanos, inicialmente
minha primeira opção era cursar jornalismo. Sempre gostei do jornalismo ligado a música
e nessa época, quando trabalhava na banca de jornal, lia bastante as colunas de Nelson
Motta e Ana Maria Bahiana. Mas, pensei na época, “filho de pobre não dá pra ser
jornalista não. O melhor é eu ter uma profissão que eu consiga me empregar sem tanta
dificuldade e com a qual me identificava: professor”. Decisão um pouco inspirada na
afinidade que sentia em relação àqueles e aquelas com quem aprendi História no ensino
básico: Maria Amélia, Álvaro e Paulo César de Araújo, esse último, hoje em dia é uma
grande referência para quem pesquisa História e Música (ARAÚJO, 2002). Os

1
A canção Devagar, Devagarinho pode ser ouvida a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=cK5sXM7j8EY. Acesso em 18/05/2021 às 16 h 00 min.

12
personagens preferenciais da pesquisa de Araújo, os cantores oriundos das classes
populares e que cantavam para as classes populares, pejorativamente chamados pela elite
de “bregas” ou ‘cafonas” fizeram bastante sucesso para os angolanos de diversas classes
sociais (ARAÚJO, 2002).
Devagar/Devagarinho cursei a graduação e o mestrado, conciliando com
demandas da vida, trabalhar, pagar aluguel, preparar aulas, lecionar.
Ao final da graduação, a música, aspecto muito importante na socialização dos
adolescentes e jovens brasileiros, angolanos, de qualquer nacionalidade, volta a se fazer
um pouco mais presente na minha trajetória. Levei as longas conversas ocorridas em
“farras de quintal” e nos intervalos das aulas com os amigos do bairro, vizinhos, amigos
e colegas da graduação em História sobre os músicos, suas trajetórias e a história das
composições para a monografia.
Na dissertação de mestrado busquei lançar outros olhares sobre a relação entre
história, música e política no período ditatorial brasileiro. Consolidou-se na cultura
histórica (GOMES, 2007)2 sobre o período, uma visão sobre os posicionamentos políticos
que privilegiou os artistas e músicos que faziam canções que criticavam a Ditadura e a
censura muitas vezes por uma linguagem cifrada. Em todo caso, defendi e defendo
(SANTOS, 2014) que outros posicionamentos políticos presentes nas canções e
performances de artistas brasileiros eram também muito importantes, tais como a defesa
da igualdade racial e a construção de uma identidade negra positiva. O músico Jorge
Duílio de Lima Menezes, à época conhecido como Jorge Ben, tem em sua obra canções
que elogiam a beleza negra como Negro é lindo (1971), Zula (1971) e Que nega é essa
(1972), que criticam o racismo na sociedade brasileira – “eu só quero viver em paz e ser
tratado de igual” diz a letra de Charles Jr3 (1970) – e que reverenciam o passado nobre e
grandioso dos reinos africanos como em Criola, de 1969, (“filha de nobres africanos/que
por um descuido geográfico/ nasceu no Brasil num dia de carnaval) aludindo a sua mãe
Sílvia Saint Ben Zabela, etíope de nascimento, segundo declarou em diversas entrevistas.
Jorge também declarou algumas vezes à imprensa ter sido convidado a tocar em festivais
na Argélia e que era convidado porque sua estética sonora era considerada “percussiva”,

2 Cultura histórica implica em uma determinada leitura que a sociedade faz de seu passado, leitura essa
sobre a qual, os historiadores não têm a primazia, Cf. Gomes (2007).
3
Para melhor compreensão do texto, serão grafadas em itálico os títulos das canções, os nomes de conjuntos
musicais e expressões em língua estrangeira como em inglês, francês, espanhol ou nas línguas originárias
do território angolano, bem como a palavra semba para acentuar a diferença com a palavra “samba”.
Eventualmente, grafar em itálico substituirá as aspas.

13
“suingada” e “africana”. Essa era a ideia inicial dessa pesquisa e a partir daí fazer um
panorama dos músicos e artistas que fizeram a “viagem de volta”, que navegaram na
Kalunga Grande – Mar – para a idealizada “Mãe África”.
Já na presente etapa, no doutorado, seguindo ainda as ondas que navegam pelo
Atlântico Negro (GILROY, 2001), resolvi olhar para o referido fenômeno tendo como
foco a música brasileira em Angola. Cheguei então ao Projeto Kalunga, um evento em
que mais de 60 artistas e técnicos musicais brasileiros fazem a “viagem de volta” ao
continente africano, especificamente, para Angola.
Na construção e delimitação do que iria pesquisar, reaparece Martinho da Vila,
dessa vez não com Devagar/Devagarinho, mas com Som Africano4, um pot-pourri de
temas chamados de “folclóricos” em Angola. Nessa época busquei me aprofundar nas
temáticas angolanas consumindo e analisando canções e obras literárias como as de
Martinho da Vila, Bonga, Waldemar Bastos, Luandino Vieira, Pepetela e Uanhenga Xitú.
As ruas de areia e os quintais cercados por “aduelas” descritos nesses romances angolanos
lembravam bastante o bairro do Jockey, em São Gonçalo, onde atuo enquanto professor
da educação básica.
A partir do mergulho nas fontes do Projeto Kalunga ocorrido no ano de 1980,5 os
indícios apontavam que não só as músicas brasileiras dos anos 1970 e 1980 eram bem
conhecidas em Angola, mas também a das décadas anteriores, como as de 1960, 1950 e
1940. Em alguns momentos de confraternização do referido projeto, brasileiros e
angolanos cantaram juntos clássicos de Adoniram Barbosa como Saudosa Maloca
(1951)6 e de Ataulfo Alves como Sei que é Covardia de 1959 (MÓDULO, maio/ 1980, p.
43), assim a pesquisa ganhou um novo rumo ao buscar mapear nas três décadas anteriores
ao Kalunga, sobretudo as de 1960 e 1970, a circulação musical brasileira na área urbana
de Angola, com destaque para Luanda e os consequentes sentidos políticos.
A música brasileira chegava a Angola pela programação dos rádios clubes
angolanos, ações incialmente amadoras de radiodifusão, nos 1940 (SANTOS, 2020, p.
290-291), pelos discos levados de navio (KUSCHICK, 2016, p. 216) e vendidos
costumeiramente nas lojas de Luanda e de outras grandes cidades angolanas. Mas mais

4
Som africano pode ser acessado no link: https://music.youtube.com/watch?v=jwX-
mvoyed0&list=RDAMVMjwX-mvoyed0. Acesso em 18/05/2021 às 10 h 00 min.
5
A jornalista Dulce Tupy fez parte da comitiva do ano de 1980 e fez a mais extensa e detalhada matéria
disponível sobre o Projeto publicada na revista módulo, periódico sobre arquitetura, urbanismo e cultura,
cuja editoria era de Oscar Niemeyer.
6
Saudosa Maloca pode ser ouvida no link https://music.youtube.com/watch?v=yjjnl1ksG-
0&feature=share. Acesso em 19/05/2021 às 13 h 00.

14
importante do que isso são quais os significados que a música brasileira tem para os seus
ouvintes e apreciadores angolanos. O depoimento de Carlos Serrano7 ajuda a lançar luz
sobre essas questões: “a forma de combater a musicalidade [portuguesa] é adotando
outras músicas. Congolesas e brasileiras”. E acrescenta: “Ela mexe com o corpo. Dançar
samba mexe com o corpo. Isso é uma característica muito africana” (SERRANO, 2020).
Dessa declaração de Serrano é que advém o nome da tese.
Para adentrar no universo do consumo, recepção e circulação da música brasileira
na área urbana de Angola e buscar apreender os sentidos que os homens e mulheres dessa
terra lhe atribuíam, foi preciso abordar o universo do lazer em contextos africanos.
Escolher que atividades farão em seu tempo livre é “um dos aspectos da vida dos africanos
em contextos urbanos” sobre o qual esse grupo “ainda mantinha” relativo “controle”
(BURNS, 2002, p. 117). “Relativo” porque as autoridades coloniais envidaram esforços
para controlar o tempo livre dos trabalhadores, pois o “ócio” passou a ser visto “pelo
aparato policial e administrativo enquanto propício para o desenvolvimento de ideias
consideradas subversivas”, quais sejam, de contestação a dominação colonial
(BOSSLET, 2017, p. 831).
Tais escolhas acerca do que ouvir, que atividades realizar em seu tempo livre,
passam por alguns condicionantes históricos e econômicos. A partir das décadas de 1930,
e sobretudo, na de 1940, nas regiões ocidental, central e austral do continente africano, à
exemplo da Zâmbia, filmes estadunidenses do gênero Western “antigo e de qualidade B”
eram relativamente baratos de serem adquiridos ou alugados (BURNS, 2002, p. 106). Em
países da África ocidental, como no Senegal, coletâneas de músicas cubanas e caribenhas,
sob o selo G.V.,8 podiam ser ouvidas em lojas de venda de alimentos em Dakar como uma
forma de propagandear os discos e os gramofones também a venda nos mesmos
estabelecimentos (SHAIN, 2002, p. 87), a partir dos anos 1930 e 1940.
Em Angola, principalmente a partir da década de 1940, também chegavam filmes
de “cowboy” e discos de música afro-latina e afro-caribenha. Certamente as emissões dos
rádios clubes angolanos, e, posteriormente, da Emissora Oficial de Angola e da católica

7
Carlos Serrano é natural de Cabinda, Angola, e nascido em 1942. No começo da década de 1960, Serrano
deixa Angola e passa a viver em Portugal, onde inicia seus estudos em nível superior, e, por outros países,
até fixar residência no Brasil. Posteriormente se torna professor da área de antropologia da USP e uma
importante referência no campo dos Estudos Africanos. Destaca-se em sua obra, Angola: o nascimento de
uma nação (SERRANO, 2008).
8
De acordo com Shain não há consenso sobre o significado da sigla. Há as seguintes versões: a) seria uma
abreviação de Grabación Victor, sendo esse último o nome da gravadora; b) seria uma colaboração entre
duas empresas do mercado fonográfico, a Gramophone e a Victor, entre outras (SHAIN, 2002).

15
Rádio Eclésia nos anos 1940 e 1950 (SANTOS, 2020), proviam aos angolanos fados e
“guitarradas”, mas esses escolheram o merengue, a rumba e, principalmente, o samba e o
baião para animar as suas “farras de quintal”, suas festas nos clubes esportivos-recreativos
e seus bailes nos salões de dança das áreas suburbanas. Merece destaque o fato de que o
grupo musical identificado como o precursor do semba, gênero-símbolo da nação
angolana, O Ngola Ritmos, no passado ter se constituído como um conjunto cujo
repertório principal era de samba brasileiro, chamado de Grupo dos Sambas
(NASCIMENTO, 2016, p. 16).
Para mapear a influência e a disseminação da música brasileira pela área urbana
de Angola, me debrucei sobre a imprensa local, analisando jornais e revistas como A
Província de Angola, Notícia e Diário de Luanda. Os periódicos luandenses retrataram a
vida de seus compradores: os setores médios e altos da sociedade do ponto de vista da
renda e em suas páginas foi possível perceber o crescimento da cidade de Luanda através
do aumento do número de cineteatros, boates e dancings, onde as canções brasileiras eram
interpretadas pelas orquestras locais e onde alguns músicos brasileiros se apresentaram.
Mas e os “de baixo”? Uma grande preocupação dos historiadores desde pelo
menos a década de 1960, têm sido se aproximar das “experiências históricas daqueles
homens e mulheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada” (SHARPE, 1992,
p.41). Para tanto foi preciso atentar para os personagens das obras literárias dos escritores
angolanos que retrataram em suas produções os marceneiros, as zungueiras (vendedoras
ambulantes de peixes, frutas e outros alimentos), os relojoeiros, as vendedoras dos
mercados populares, as costureiras, os ardinas, os engraxates (XITU, 2019; VIEIRA,
2012B; VIEIRA, 2012A). Também foi preciso ler nas entrelinhas das fontes da polícia
política, a PIDE,9 buscando os indícios das vivências e experiências desses sujeitos, mas
sempre tendo em conta o alerta de que “os arquivos do colonizador, do dominante, são
sempre muito mais importantes, em quantidade e qualidade”, podendo induzir a uma
visão parcial do processo histórico, relativizando a importância e a atenção dada aos
“arquivos dos colonizados e dos dominados” (CAHEN, 2020, p.258).
Analisar o jornal Tribuna dos Musseques, um jornal um pouco mais barato que os
demais e especialmente voltado para os habitantes das áreas suburbanas, também foi uma
maneira de se aproximar dos “de baixo”. O dito periódico abordava os problemas do

9
Polícia Internacional de Defesa do Estado, a polícia política, órgão de informação e contrainformação,
depois substituído pela Delegação Geral de Segurança (DGS). Consultei no Arquivo Nacional da Torre do
Tombo (ANTT).

16
subúrbio, suas festas e seus costumes. Em todo caso, é preciso cautela ao se debruçar
sobre esse órgão de imprensa, pois esse estava sob a influência da PIDE. Afonso Dias da
Silva, redator do Tribuna, “teria sido pressionado” pela PIDE “para fazer o jornal”
(BOSSLET, 2014, p. 113).
O cotidiano das “pessoas comuns” que viveram a Angola do período colonial foi
em parte descortinado por Marissa Moorman ao enfocar a cena musical dos salões e
clubes recreativos-desportivos do subúrbio como nexos por excelência de construção da
angolanidade e de sentimentos anticoloniais. A pesquisadora matiza e complexifica a
narrativa padrão sobre a história angolana, deslocando o foco das matas e “chanas”
(savanas) próximas às fronteiras, onde ocorria a guerrilha, e das lideranças históricas do
MPLA, que estavam no exterior, para os homens e mulheres “que ficaram”
(MOORMAN, 2008).
A história da música angolana foi também reconstruída por Alves (2015) e Kushic
(2016). Alves dedicou especial atenção as relações entre o texto e o contexto das canções
produzidas em Angola entre as décadas de 1940 e 1970. Já o musicólogo Matheus Kushic,
além do contexto histórico, focalizou principalmente às delimitações estéticas,
harmônicas e melódicas da produção musical angolana, por exemplo, conceituando
subgêneros do semba: o semba kazukuta, o semba senguessa e o semba cadenciado. A
circulação musical brasileira em Angola foi também objeto das reflexões do músico e
antropólogo Ricardo Rêgo (2014). Destacam-se suas observações acerca das questões de
indústria e mercado, bem como dos diálogos dos músicos angolanos com ritmos oriundos
de Cabo Verde, Congo, Antilhas, entre outros.
Os depoimentos dos angolanos (SERRANO, 2020; GONÇALVES, 2020) acerca
da presença musical brasileira em Angola dão conta que nos anos 1950 em determinadas
regiões de Angola, devido à localização geográfica, era possível sintonizar algumas rádio
brasileiras do nordeste do Brasil. Em decorrência, há um gosto construído pelos gêneros
chamados em Angola de “baião” (forró, xaxado, coco, embolada) e também pelo samba,
pela bossa-nova e pela jovem guarda. Perseguir a trajetória desses sujeitos que
apreciavam a musicalidade brasileira enseja se aproximar das experiências desses homens
e mulheres sujeitos ao domínio colonial. Dentre os colonizados havia algumas clivagens
de renda e acesso à formação, como se percebe nos relatos daqueles que possuíam “gira-
discos” (toca discos) em suas famílias e que chegaram ao ensino “liceal” (secundário). É
possível perceber a “voz” desses sujeitos, trabalhadores e trabalhadoras cujos ofícios lhes
possibilitavam uma vida sem excessivos percalços financeiros e daqueles e daquelas que

17
ocupavam postos de trabalho medianos como enfermeiros, trabalhadores de banco e dos
correios, pelas obras literárias que escreveram, pelos seus livros de memórias, pelos
depoimentos que concederam a cineastas, documentaristas e pesquisadores. Um tanto
mais desafiador é se aproximar das experiências do “pobre descalço” (THOMPSON
conforme citado em SHARPE, 1992), daqueles que até 1961 eram chamados de
“indígenas”.10 Contudo, é preciso ter em conta que para os angolanos das famílias negras
e mestiças, mesmo dotados de algum poder aquisitivo e educação, era vedado o acesso a
determinados espaços públicos e privados, dessa maneira, sendo homogeneizados por
representações e práticas colonialistas calcadas no racismo.
A leitura de que os sujeitos aqui enfocados estavam imersos em um sistema
engendrado para explorar pessoas e recursos com base em critérios hierárquicos de raça
e “civilização”, não enseja necessariamente uma visão dicotômica dos processos
históricos, calcado em binômios “explorador/explorado” (COOPER, 2008). Tal visão era
a mais corrente na produção historiográfica das décadas de 1960, 1970 e 1980, que
privilegiou o conceito de “resistência”.11 Nas últimas três ou quatro décadas, os
pesquisadores que se debruçam sobre a História do continente africano têm buscado
perceber os conflitos, contradições e negociações, provendo uma visão mais matizada que
dê conta da “complexidade do cotidiano colonial” e que busque “perceber as diferentes
estratégicas construídas na situação colonial” (BITTENCOURT, 2017).12
Perceber de que modo os angolanos se apropriaram da musicalidade brasileira, de
que maneira essa foi uma referência importante na construção de sua própria identidade
nacional, ao mesmo tempo em que se faz um inventário da cena cultural urbana em
Angola, do lazer e do dia a dia dos homens e mulheres que Certeau chamou de
“ordinários”, possibilitará lançar luz sobre outros aspectos do cotidiano colonial nos
momentos finais do domínio português (2018, p.55). Continuar acompanhando esse
processo, sobretudo, o dos diálogos musicais e políticos entre Angola e Brasil, no período
pós-independência será importante para perceber suas permanências, rupturas e
especificidades.

10
O colonialismo português entre finais do século XIX e início do XX criou classificações jurídicas que
estabeleceram formas “desiguais de cidadania”, quais sejam, “o assimilado e o indígena. Os assimilados,
(...) seriam os africanos que ‘tivessem abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça’ e adotado
hábitos do chamado mundo civilizado (...). Os indígenas, que compunham a esmagadora maioria, seriam
os africanos que continuavam praticando e vivendo a partir dos “‘usos e costumes daquela raça’”
(PEREIRA, 2020, p.28).
11
Ver, por exemplo, Ranger (1991).
12
Ver também os trabalhos de Moorman (2008), Marzano (2018), Thomaz (2012), Pereira (2020), entre
outros.

18
A música, a literatura, os costumes, as telenovelas, o carnaval, uma miríade de
práticas e produtos culturais brasileiros sempre tiveram um enorme impacto sobre os
angolanos. Os romances de Jorge Amado e Graciliano Ramos, especificamente, o modo
como esses dois autores representavam e contavam as histórias do povo pobre, das
populações não-urbanas, foram modelos nos quais os intelectuais angolanos se
inspiraram. Acrescente-se que Amado e Ramos eram especialmente consumidos em
Angola porque eram considerados como “autores marxistas”.13 As referências ao Brasil
estão espraiadas em diferentes aspectos da vida dos angolanos da área urbana: o clube de
futebol Botafogo – importante nexo de agitação anticolonial – tem esse nome em
homenagem ao seu homônimo carioca. Um dos mercados populares mais conhecidos em
Angola tinha o nome Roque Santeiro por conta do impressionante sucesso dessa
telenovela brasileira nesse território na segunda metade dos anos 1980 e nos periódicos
angolanos sempre constavam notícias sobre o contexto político brasileiro e notas sobre
casos peculiares (BITTENCOURT, 2003).
De outro lado, no Brasil, há um arraigado desinteresse pelo que acontece no
continente africano e especificamente sobre o que acontece em Angola. Enquanto os
jornais angolanos noticiavam com muita frequência o que acontece no Brasil, os jornais
brasileiros, no período colonial, traziam notícias sobre o que acontecia em Portugal e
eventualmente registravam uma nota sobre o que ocorria na “África Portuguesa”.14 Já no
período pós independência as temáticas africanas que mais aparecem são das guerras
civis. Como aponta Saraiva (2008): “meios de comunicação insistem em apresentar uma
África indolente e ditatorial, onde o Brasil quase nada tem a fazer” (2008, pp. 89-90). E
como declarou Pepetela: “angolanos olham para o Brasil, mas brasileiros não olham para
Angola” (CARNEIRO, 2011).
Como grande parte das fontes utilizadas nesse trabalho são da imprensa escrita, é
preciso registrar que já é praxe dos historiadores encararem-na não como uma
representação fiel da realidade, mas como um tipo de fonte que precisa ser analisada de
forma crítica, como todas as outras, levando em consideração seus produtores e os
interesses mobilizados por esse grupo (MACIEL, 2007, p.15). Outro ponto a ser
destacado são os limites que os jornais nos impõem sobre a pesquisa em História Social.

13
Tais autores eram também e até mais frequentemente admirados pelos literatos angolanos por abordarem
em suas histórias o povo pobre e negro das periferias das grandes capitais e o povo do “interior”, “do
sertão”.
14
Na coluna “mundo português” do jornal O Globo, por exemplo.

19
Esse tipo de fonte, em geral, pela sua natureza seleciona que conteúdos serão e quais não
serão apresentados ao público e de que forma, com uma metodologia que busca chamar
a atenção do leitor – as manchetes, entre outros aspectos (ZICMAN, 1985, p. 90). Nesse
processo, em geral, os valores e as concepções de mundo dos grupos dominantes vão
sendo veiculados, construindo e reforçando a hegemonia desses mesmos atores sociais
(BARBOSA, 2008, p.2).
Sobre a imprensa angolana do período da, chamada pelos portugueses, “guerra
colonial”,15 Fonseca assinala que essa era caracterizada por “apoio incondicional ao
regime e ao governo e no âmbito internacional atacou as ideias e os países anticoloniais
e socialistas” (2014, p. 238). Já Bosslet faz uma leitura mais aprofundada e matizada dos
jornais e aponta algumas clivagens. Levando em conta os principais periódicos – A
Província de Angola, ABC Diário de Angola e Diário de Luanda –, a pesquisadora indica
que o ABC tinha um perfil mais liberal, e que, conforme declaração de Afonso Dias da
Silva, um de seus redatores, era considerado um veículo “do contra”. O que não quer dizer
que o referido órgão fosse de oposição. Na realidade, justamente por essa imagem
autônoma é que o ABC foi escolhido para sediar um suplemento voltado ao povo dos
subúrbios luandenses: o Tribuna dos Musseques (2014, pp.102 e 126).
Na Hemeroteca Digital Brasileira, acessei os acervos do Jornal do Brasil, Tribuna
da Imprensa e Última Hora. Na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), consultei os
periódicos Cadernos de Terceiro Mundo, Pasquim e Movimento. Consultei ainda através
de seus acervos digitais próprio, o jornal O Globo e Folha de São Paulo. Quanto aos
jornais angolanos e portugueses, na Hemeroteca de Lisboa, consultei os veículos Diário
de Luanda, ABC Diário de Angola, A Província de Angola, Notícia, Semana Ilustrada,
Diário de Notícias e Avante. Alguns anos desses periódicos entre 1949 e 1986 coletei
pessoalmente, alguns outros anos me foram cedidos pelo meu orientador Marcelo
Bittencourt, que também me concedeu acesso ao seu acervo pessoal contendo cópias dos
veículos Revista de Angola, O Comércio, Cultura e Tribuna dos Musseques. No Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, acessei e transcrevi parcialmente alguns processos da
(PIDE), órgão de polícia política de Angola, cujo nome mudou posteriormente para
Delegação Geral de Segurança (DGS).
Entrevistei dois indivíduos que estiveram diretamente envolvidos no Projeto
Kalunga: os jornalistas Fernando Mansur e Dulce Tupy. Ambos fizeram parte da comitiva

15
E pelos africanos de “guerra de libertação”, perspectiva da qual me aproximo.

20
que passou cerca de quinze dias em Angola. Mansur é mais conhecido como radialista,
principalmente pelo período que atuou na JB FM. Já Tupy era bastante reconhecida por
ser uma repórter com posições políticas mais à esquerda e por ser especializada em
música, tendo trabalhado nos veículos da imprensa alternativa Movimento e Módulo, bem
como nos grandes jornais.
No que concerne à História Oral, é preciso ter em conta, conforme assinalaram
Ferreira & Amado que é uma metodologia importante porque possibilita “esclarecer
trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como ser entendidos
ou elucidados de outra forma”, enfocando aspectos que são negligenciados por outras
metodologias como “a subjetividade, as emoções ou o cotidiano” (2006, pp. XIV e
XV).
Realizei também “diálogos à distância”, coletando depoimentos por correio
eletrônico e aplicativo digital de mensagens com angolanos que nasceram entre 1940 e
1960 buscando iluminar o cotidiano da área urbana de Angola no período colonial e no
imediato pós independência. O que aproxima a História Oral dos “diálogos à distância” é
que tanto numa narrativa quanto na outra, trata-se de uma forma de falar distinta da
ordinária, a escolha de palavras, o que dizer, de que modo dizer, consistem numa
“performance pública” daquele sujeito dirigida ao interlocutor (SANTHIAGO &
MAGALHÃES, 2020, pp.2, 3 e 6).
Algumas das fontes desse trabalho são do campo diplomático, e, em decorrência,
foi preciso, para contextualizar, refletir sobre as relações luso-brasileiras, e,
posteriormente braso-angolanas do ponto de vista das relações internacionais. Como
apontam Filho & Lessa (2007), as relações Brasil e Portugal sempre foram pautadas por
certo sentimentalismo:

(...) em termos de política internacional, em que os interesses devem reger - e


regem - as relações entre os Estados, o comportamento baseado no
sentimentalismo toma-se altamente prejudicial para quem o abraça e o transforma
em diretriz de política externa, mesmo que isso venha a afetar o seu
relacionamento com outros Estados. Assim, as relações entre Brasil e Portugal,
dado o seu marcante caráter baseado no sentimentalismo, interferiram
intensamente nas relações entre o Brasil e o continente africano, principalmente
em virtude da postura brasileira diante do colonialismo português (FILHO &
LESSA, 2007,p. 54)

Nos anos do pós-independência angolano a política externa brasileira empreende


esforços em se aproximar dos países africanos de língua portuguesa, buscando intensificar

21
seu comércio internacional com a África de uma forma geral. Já o Estado de Angola, sob
a liderança de Agostinho Neto, e, depois de José Eduardo dos Santos busca garantir seus
interesses vitais como a soberania, a preservação da integridade territorial, entre outros
(PEREIRA, 2015, p. 209-215).

***

Iniciei minha incursão pelos jornais, revistas, romances e documentários com a


ideia construída de que, tal como a literatura brasileira para os escritores de Angola, para
os músicos angolanos, a música brasileira foi um referencial importantíssimo. Também
considerava que os artistas brasileiros que fariam mais sucesso seriam os artistas do
“samba tradicional” na ótica de José Ramos Tinhorão, aqueles oriundos das “classes
populares” (LAMARÃO, 2008, p.44). Em todo caso, a incursão pelos jornais luandenses
e pelas obras literárias desvelou um panorama muito mais diverso, mostrando como
Dircinha Batista e Jorge Goulart – cantores da Era do Rádio, cujo repertório era
principalmente de sambas-canção – eram bastante famosos na área urbana de Luanda e
seus arredores na década de 1950. Outro ponto a se destacar é que os cantores e cantoras
dessa época, a exemplo de Ivon Curi, lançavam álbuns singles de ritmos variados como
samba, baião, marchinhas. Dito de outro modo, não havia uma segmentação tão estrita no
mercado musical brasileiro.
A pesquisa de fontes revelou um panorama muito mais complexo e nuançado da
circulação musical em Angola. O show business luandense era bastante cosmopolita e
recebia atrações musicais vindas da África do Sul, de Cabo Verde, dos Estados Unidos,
da França e um número considerável de artistas brasileiros, alguns bastante famosos e
outros nomes desconhecidos do grande público, apenas com alguma relevância nos bares,
boates e teatros das grandes cidades brasileiras, principalmente Rio de Janeiro e São
Paulo.
Os angolanos consumiam e apreciavam muito o samba, mas outros gêneros
também como o baião de Carmélia Alves, A bossa nova de Elis Regina e Jair Rodrigues,
a música romântica de Carmen Silva, Ivon Curi, Nelson Ned e Roberto Carlos, entre
outros. Contudo, as referências ao samba e ao carnaval carioca são muitas e frequentes.
Dessa forma, no capítulo 1, analisar-se-ão também os discursos dos intelectuais
angolanos acerca das pretendidas aproximações e filiações entre semba e samba e os

22
significados desse último para os angolanos, bem como a circulação musical brasileira
em Angola nos 1950 e 1960.
O segundo capítulo também enfoca o período colonial e, da mesma forma, busca
retratar o lazer e o show business da área urbana de Luanda, mas centrado no final da
década de 1960 e começo da de 1970, indicando as mudanças e uma tênue “abertura” ou
“distensão” do controle colonial sobre certos aspectos da vida cultural, ensejando o que
ficou conhecido como “ações psicossociais”.
Já no final da década de 1970, em um contexto político totalmente diverso, em
que Angola já se encontrava independente e quando ocorria a disputa por hegemonia entre
os movimentos que combateram o colonialismo, nomeadamente o MPLA e a UNITA;
uma série de importantes contatos acontecem entre músicos brasileiros e angolanos nos
eventos chamados de Projeto Kalunga e Canto Livre de Angola. O primeiro, ocorrido no
ano de 1980, consistiu na visita de um grupo significativo de músicos brasileiros,
jornalistas, técnicos e produtores musicais às terras angolanas. Compunha esta comitiva
Chico Buarque, Martinho da Vila, D. Ivone Lara, Clara Nunes, Djavan, Miúcha, Edu
Lobo, Francis e Olívia Hime, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Dorival Caymmi, João
do Vale, entre outros. Foi seguido pelo Canto Livre de Angola, quando músicos angolanos
como Carlitos Vieira Dias e Felipe Mukenga “retribuíram” a visita e excursionaram pelo
Brasil, em 1983. Assim, nesse terceiro capítulo, analisar-se-ão os significados políticos
de suas canções e discursos, a conjuntura das relações Brasil e Angola naquele momento
e a memória do tempo colonial.

23
Figura 1 - Foi em Angola que nasceu o samba, mas eles não sabiam”, título da matéria sobre a visita de Jair
Rodrigues e Elis Regina a Luanda. Na ocasião organiza-se um almoço “dançante”, quando os artistas brasileiros
assistem e dançam ao som dos grupos locais Ngola Ritmos e Fogo Negro. Revista Notícia (12/03/66), (s/p),
Hemeroteca Municipal de Lisboa.

24
Capítulo 1 – As relações musicais e políticas entre Brasil e Angola (1950-
1960)

1.1 – Introdução

Na presente etapa, busca-se traçar um panorama sobre a circulação musical


brasileira em Angola nos anos 1950 até abril de 1974. O início do recorte se deve a
natureza de parte das fontes, quais sejam, os jornais do começo dos anos 1950 que são
menores em relação ao número de páginas e dão menos destaque ao noticiário da vida
cultural da cidade de Luanda. Em meados da década de 1960, a cobertura jornalística da
cidade muda, os jornais aumentam sua quantidade de páginas e o noticiário e os anúncios
sobre a vida cultural crescem exponencialmente. Tal fato se deve a estratégia portuguesa
de dar impulso a vida econômica e cultural de Angola, com o objetivo de manter o seu
domínio colonial sobre as terras angolanas, principalmente na década de 1960, após o
estourar da luta armada anticolonial. Também fazia parte de tais ações o estímulo a que
um número cada vez maior de novos colonos portugueses se estabeleça em Angola. Se
na década de 1940, jornais como A Província de Angola tinham cerca de oito páginas e o
noticiário cultural correspondia, quando muito, a um quarto de uma página, no final da
década de 1960 essa mesma seção tinha três páginas.
No que concerne ao consumo de atrações musicais e culturais, a área urbana de
Angola, sobretudo Luanda, era uma região muito cosmopolita. Seus moradores, fossem
os das classes mais abastadas, fossem os pertencentes aos setores médios, fossem “os de
baixo”, 16 consumiam westerns estadunidenses, música brasileira e cubana. Seus
habitantes mais ricos assistiam espetáculos de artistas de renome mundial como o francês
Charles Aznavour, enquanto seus estratos médios podiam ouvir a transmissão do referido
show pelo rádio. Os muito pobres podiam encontrar alguma oportunidade de ouvir um

16
Sendo a sociedade angolana atravessada pela situação colonial e pelo racismo inerente a tal processo, os
setores mais abastados correspondiam, quase que invariavelmente, à parcela branca da população, ao grupo
classificado como “colonos”. Nos setores médios também predominavam os colonos, mas havia uma
parcela de descendentes de antigas elites negras do século XIX e dos grupos familiares que eram
classificados juridicamente como “assimilados” até 1961. Já o grupo mais pobre era composto pela imensa
maioria da população negra, que na maioria das vezes, era classificado, até o começo da década de 1960
como “indígenas”.

25
samba, um merengue ou um tango em alguma festividade particular nos salões das casas
dos musseques ou quando “as turmas” passavam cantando na rua durante o carnaval.17 Os
nem tão pobres assim podiam eventualmente assistir a um filme hollywoodiano como
Tarzan ou um franco-brasileiro como Orfeu Negro no cineteatro Colonial levando seu
banco de casa ou sentando-se em uma lata quando os bancos e cadeiras estivessem
lotados. 18
Vale registrar que a efervescente vida cultural luandense não apaga a violência da
situação colonial. Ao contrário, justamente por haver a exploração dos contratantes
portugueses sobre os negros contratados a preços módicos para o plantio de café no norte
de Angola, por exemplo, é que a vida a cultural da “parte rica” de Luanda fervilhava. Já
os que estavam nas partes pobres de Luanda, e, atravessados por outras formas de
opressão colonial, buscavam alívio nos “divertimentos”, fazendo rodas de samba e semba
em seus quintais, e, com isso, se sentindo mais angolanos.
Essencial para se depreender como os artistas brasileiros chegam à Angola, seja
pelas ondas do rádio, seja pelos discos, seja se apresentando nos cineteatros é
compreender as mudanças no panorama político e econômico angolano a partir de 1961,
pois tal estratégia foi configurada pelo Estado Português como um modo de buscar manter
os territórios africanos sob seu domínio e, por isso, tais temas serão abordados nessa fase.
Também se abordará nesse capítulo um panorama das relações Brasil e Angola
no âmbito diplomático, e como essas são representadas nos periódicos angolanos, bem
como as conexões culturais entre esses dois países, e, por vezes, como estas são acionadas
na referida esfera diplomática.
As práticas culturais e suas formas, quais sejam, a maneira como os gêneros
musicais são descritos pelos músicos e intelectuais angolanos, suas supostas filiações e
referências cruzadas – como as relações entre samba e semba – são essenciais para se

17 Conforme Weza: “as turmas surgiram no princípio dos anos 50 (...). As principais atividades
eram as serenatas que faziam em diferentes bairros. Mais tarde fizeram salões nos quintais porque
a polícia os proibiu de ocupar espaços das ruas”. Tais agrupamentos eram compostos por
adolescentes e jovens que se reuniam para interpretar músicas brasileiras, congolesas, latinas e os
gêneros populares nativos de angola. Weza acrescenta: “as turmas utilizavam chocalhos,
membranofones de percussão, tambores e outros instrumentos que utilizavam por ocasião do
carnaval” (2007, p.30).
18 Sobre os cineteatros populares em Angola e especificamente sobre o Cine Colonial, Gomes

relata: “outras salas mais ao alcance dos bolsos do povo, como é o caso do Cine Colonial em
Luanda. Supremamente conhecido como “Clô Clô”, no bairro de S. Paulo, quando esgotada a sua
lotação, servia uma cadeira trazida de casa ou mesmo a utilização do chão como assento”
(GOMES, 2010).

26
compreender os significados políticos que esses atores sociais lhes atribuem e esse debate
está presente na atual etapa.
Para melhor compreender alguns dos temas tratados, também se abordará de
maneira breve a geografia da cidade de Luanda.
Optou-se por uma divisão temática no presente capítulo, de modo a compreender
como determinados gêneros musicais circulavam em Luanda e arredores como o samba
e a música romântica. Outra divisão temática é a por níveis de renda em relação ao lazer
e ao cotidiano, ora enfocando as classes mais abastadas e os estratos médios, ora
enfocando os mais pobres.

27
1.1.1 Um parêntesis sobre as mudanças na política econômica de Portugal em
relação à Angola.

Na segunda metade dos anos 1940, agentes coloniais franceses e ingleses


trabalharam junto a seus respectivos aparatos estatais pela implementação de políticas
que levassem desenvolvimento econômico e social às suas possessões africanas. Já em
Portugal, ideias acerca da necessidade de se superar o modelo colonial exploratório
clássico, e, subsequentemente, adotar um padrão modernizante, começam a circular no
final dos anos 1950. Tal processo advém do diálogo que os intelectuais ligados aos
institutos de investigação ultramarinos portugueses ensejaram com seus pares franceses
e ingleses e, sobretudo, da conjuntura internacional de questionamento ao sistema
colonial que se aprofundou no referido período. Tal como outras nações europeias,
Portugal busca intervir de maneira contundente na economia e na política das suas, agora
chamadas, “províncias ultramarinas”,19 sob o pretexto do desenvolvimento dessas regiões
e dos povos que as habitavam (CASTELO, 2014, p.513).

Mesmo sem uma indução mais direcionada do Estado, ocorrida na década de


1960, Angola experimenta uma considerável circulação de recursos advindos das
atividades econômicas exportadoras, o que ensejou um expressivo crescimento urbano na
capital. Nas décadas de 1940 e de 1950, Luanda entra em processo de urbanização
crescente, em grande parte isso se deve às exportações de café e a alta das cotações da
referida commodity, pois entre 1948 e 1957 centenas de prédios novos são construídos
por ano (BOSSLET, 2014, p. 29). Além do café, que é o segundo produto que mais rendeu
divisas à Angola, os produtos mais lucrativos foram “por ordem decrescente (em valor),
os diamantes, (...), o milho, o açúcar e o algodão”, e, é importante acrescentar que, o
“incremento da atividade exportadora refletiu-se nas receitas do Estado pois, a partir de
1944, o imposto indígena deixou de ocupar a primeira posição” (PACHECO ET AL.,
2018, p.94).

19
Em meados da década de 1950, buscando se contrapor as críticas no âmbito internacional de que ainda
possui colônias, Portugal passa a nomeá-las como “províncias ultramarinas”, acionando um argumento de
que seriam outras porções do território português e não um processo de ocupação, dominação e submissão
de outro povo e seu respectivo território. Ver Castelo(1999).

28
Os levantes anticoloniais ocorridos em Angola nos anos de 1960, e, sobretudo,
1961, aceleram a dinâmica de desenvolvimento que Portugal vinha adotando no ultramar
através de seus “Planos de fomento”, cujos programas, majoritariamente, visavam
investimentos em infraestrutura e comunicações objetivando facilitar as exportações,
principalmente, em Angola e Moçambique. No período de 1959-1964 é que aparece pela
primeira vez – e de maneira tímida – nos programas de fomento dotações para “instrução
e saúde” e “melhoramentos locais” (CASTELO, 2014, p.513).

Nesse processo, uma modificação econômica importante ocorrida em 1961 foi a


criação do Espaço Económico Português (EEP) de livre circulação de mercadorias,
capitais e pessoas, que estabeleceu uma Zona de Comércio Livre (ZCL) entre Portugal,
as regiões de Madeira e Açores e as chamadas províncias ultramarinas em solo africano
ensejando uma extinção progressiva das taxas aduaneiras (PACHECO ET AL., 2018,
p.95).

Em Angola tais reformas econômicas permitem a instalação de indústrias, mesmo


que sejam de segmentos já existentes em Portugal – visto que na lógica clássica do
colonialismo, à colônia caberia o papel de fornecer matérias-primas e consumir os
industrializados vindos da metrópole – assim, a produção da indústria de transformação
angolana aumentou fortemente na década de 1960 (FERREIRA, 1985, pp. 98-99).
Também fez parte desse processo a concessão de facilidades a instalação de novas
atividades econômicas e à entrada de capitais estrangeiros, ensejando uma relativa
autonomia econômica em relação a Portugal e um crescimento anual médio do PIB em
cerca de 7% de 1960 a 1974 (PACHECO ET AL., 2018).

Tais modificações na política econômica em relação as “províncias ultramarinas”


que começam a ser esboçadas em 1961 e implementadas ao longo da década de 1960
podem ser percebidas nos periódicos angolanos. O jornal A Província de Angola em
06/01/1962 noticia a “contribuição voluntária da Diamang sob a forma de empréstimo
(...) a ser aplicado na província”, o que fazia parte das novas diretrizes de se aplicar parte
significativa dos lucros obtidos no desenvolvimento do território onde foi auferido. Já em
1963 tais iniciativas transparecem nos periódicos em matérias que dão conta da
inauguração de um banco de fomento e novas linhas áreas da TAP (Transportes Aéreos
Portugueses) e o impulso ao desenvolvimento industrial.

29
A revista Notícia (12/10/1963) traz uma ampla cobertura da visita do presidente
Américo Thomaz20 e sua presença numa feira industrial, destacando que foi montado em
Angola o primeiro automóvel, uma land rover-união. Acrescente-se que o número de
automóveis em Angola salta de cerca de 10 mil veículos em 1950 para mais de 160 mil
em 1972, indicando os significados que tais artefatos tinham para algumas parcelas da
sociedade angolana: status, distinção, modernidade, e, ao mesmo tempo, simbolizavam,
principalmente para os entusiastas do automobilismo enquanto esporte, o progresso
econômico, social e cultural da província (BITTENCOURT & MELO, 2016, p.197, 202,
204). Vale destacar que o desenvolvimento da indústria do petróleo em terras angolanas
foi um fator importante para o fenômeno do automobilismo e para o consumo de veículos
no geral e que tal setor da economia – o petrolífero – se torna a principal fonte de
exportações a partir de 1972 (VALÉRIO & FONTOURA, 1994, p. 1197).

Como se perceberá mais adiante, o progresso e o desenvolvimento econômico de


Angola e sobretudo de sua capital, estão intimamente relacionados com o crescimento e
a diversificação de suas atividades culturais nos cineteatros, restaurantes, boates, bares,
cafés e atividades festivas nos clubes. Em todo caso, vale destacar que havia o impulso e
até o financiamento direto do Estado português à determinadas atividades culturais

Sobre os preços na vida cotidiana dos luandenses, a título de exemplo, cabe


registrar que jornais como o A Província de Angola e o Diário de Luanda eram diários e
custavam 2$00, enquanto o Tribuna dos Musseques era semanal, saindo as quintas-feiras
a um preço de 1$00 na segunda metade da década de 1960.21 Em comparação, os
rendimentos de um trabalhador urbano poderiam alcançar em média a 600$00 e seus
custos com moradia, também em média, podiam chegar a 200$00.22 Considerando os
outros gastos da família como a subsistência alimentar, vestimentas, por vezes transporte,
é plausível supor que outros membros do grupo familiar exercessem outras atividades
econômicas, como “zungar” pela cidade vendendo frutas e outros alimentos ou
estendendo seus panos sobre os quais dispunham as mercadorias, ocupação geralmente
feminina e retratada em diversas obras literárias e nas matérias jornalísticas sobre feiras
e mercados. Dito de outra forma, não eram todas as famílias das áreas suburbanas que

20
A posição de presidente era mais simbólica do que efetiva, sendo a de presidente do conselho de
ministros, posição ocupada por Salazar (entre 1932 e 1968) e depois por Marcelo Caetano (de 1968 a 1974),
a que detinha de fato o poder decisório.
21
O Tribuna dos Musseques começou como um encarte do Jornal ABC Diário de Angola
22 Essa discussão será detalhada mais à frente.

30
podiam comprar um jornal ou uma revista, mas, é plausível inferir que as notícias do
Tribunas dos Musseques “circulassem” entre os moradores dessa região.

31
1.2 As relações braso-angolanas e o Brasil nos jornais de Angola.

O Brasil tem uma história de afastamentos e aproximações com o continente


africano. O fato de que, praticamente, metade da população brasileira ser descendente dos
africanos trazidos à força no período escravista nos aproxima. Os mais de trezentos anos
de contatos deixaram marcas profundas na sociedade brasileira (CORREA &
BITTENCOURT, 2012). Os liames entre Angola e Brasil na era da escravidão atlântica
eram tão intensos que Angola quase “acompanhou” o Brasil em seu processo de
independência no primeiro quartel do período oitocentista (FERREIRA, 2012, pp. 203-
240). Já o afastamento pode ser detectado, por exemplo, pelas aspirações de nossas elites,
sobretudo as de finais do século XIX e início do XX, em europeizar os costumes e as
práticas culturais brasileiras e embranquecer a população (CORREA & BITTENCOURT,
2012). Ao longo do século XX, o afastamento e o desinteresse pelo continente africano,
sobretudo no plano das relações institucionais entre Estados, perduraram até o início da
década de 1960 quando intelectuais e diplomatas influenciaram a política diplomática
brasileira dando um novo enfoque à relação com os países africanos (DÁVILA, 2010).
Vale destacar que iniciativas individuais ou coletivas de aproximação empreendidas por
religiosos, intelectuais e artistas ocorreram antes e continuaram a ocorrer ao longo desse
período (BUTLER, 2011). 23
Especificamente em relação a Angola, este panorama das relações institucionais
entre os dois países segue este padrão: intensos contatos comerciais e políticos do período
moderno até a primeira metade do século XIX e certo afastamento da segunda metade do
“oitocentos” até as três décadas finais do século XX.24
Em todo caso, reduzindo um pouco a escala e enfocando as práticas artísticas e
culturais, é possível perceber que no âmbito cultural – um esteio para a política em um

23 Sobre africanos e seus descendentes libertos ou nascidos livres que buscavam retornar ao continente ver
Parés (2019).
24 O Brasil teve uma política de avanços e recuos em relação aos países africanos, o que será abordado com

mais detalhes mais à frente. Ver Também Dávila (2010).

32
sentido amplo – Angola e Brasil tiveram outros pontos de contato. É possível encontrar
estas relações no campo literário, como demonstra Tania Macedo ao analisar a influência
de literatos brasileiros bastante ativos nas décadas de 1920 a 1950 sobre os escritores de
Angola como Maurício Gomes:
Ribeiro Couto e Manuel Bandeira/ Poetas do Brasil/ Do Brasil, nosso irmão/
Disseram: ‘É preciso criar a poesia brasileira/ De versos quentes, fortes, como o
Brasil/ sem macaquear a literatura lusíada’/ Angola grita pela minha voz/ Pedindo
aos seus filhos nova poesia (MACÊDO, 2008).

Na mesma perspectiva, Rita Chaves assevera que os angolanos buscavam se


afastar dos cânones literários lusitanos e estabelecer seus próprios temas, formas e
estéticas. Nesse processo, os literatos brasileiros mostravam os caminhos possíveis de
como gestar uma literatura nacional angolana usando a língua portuguesa, considerada
um dos vetores da dominação colonial: valorizar e empregar as expressões do falar dos
“de baixo”, permeado por expressões das línguas africanas nativas e colocar como
personagens principais de suas estórias os pobres, os trabalhadores, os indígenas,25 em
suma, os marginalizados. Nesse processo, o Brasil, considerado “país irmão” pelos
intelectuais dos países africanos de colonização portuguesa, aparece com uma importante
referência: “projetava-se no presente ‘livre’ da sociedade brasileira, a possibilidade de
um futuro menos opressivo em terras africanas”, avalia Chaves (CHAVES, 2016, p. 35).
O “livre” que Chaves relativiza refere-se ao fato de o Brasil já ser independente desde
finais do século XIX e não a conjuntura política brasileira da primeira metade do século
XX que alternou períodos mais ou menos democráticos com períodos ditatoriais como o
Estado Novo.
Por outro lado, o Brasil também é reivindicado – pelos agentes do aparato
governamental luso e pelos intelectuais ligados a esse projeto colonial – como um
exemplo do sucesso da colonização portuguesa. Tal visão está intimamente relacionada
com o corpus ideológico do lusotropicalismo, chave teórica do pensador brasileiro
Gilberto Freyre que advoga que a colonização lusa em regiões tropicais seria
“excepcional”. 26

25 Os naturais de Angola que mais se aproximavam do modelo “civilizacional” imposto por Portugal – falar,
ler e escrever português, ter uma profissão, ser monogâmico, vestir roupas “ocidentais” – deveriam provar
esta condição para alcançar o estatuto de assimilado. Os que não atendiam estes requisitos – ou seja, falavam
na maior parte do tempo a língua originária, viviam e se vestiam de maneira entendida como tradicional,
entre outros aspectos – eram considerados “indígenas” (designação mais comum no século XX) ou
“gentios” (nomenclatura do século XIX), e, portanto, estavam sujeitos ao imposto anual e ao trabalho
forçado, entre outros arbítrios impostos pelo aparato colonial.
26
Tal ideário será analisado de maneira mais detalhada no decorrer desse trabalho.

33
Figura 2 - Jânio Quadros na capa do Diário de Luanda (10/09/1959), Hemeroteca Municipal de Lisboa.

O que acontecia no Brasil, seja no plano institucional, como as notícias sobre


eleições e sobre a política brasileira, seja no âmbito das artes e espetáculos, era tratado
como tema de interesse pela imprensa na Angola colonial. Em 10/09/1959, o periódico
ABC Diário de Angola destacou em sua capa uma entrevista com o então candidato à
presidência da república Jânio Quadros com a chamativa manchete “Se eleito visitarei
Angola”. No mesmo veículo e no mesmo mês, outra manchete indagava: “Os comunistas
preparam um golpe de estado no Brasil?” (12/09/1959). O mesmo se dá em relação a
outras figuras importantes da política brasileira de finais dos anos 1950 até meados dos
anos 1970: declarações de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e dos ditadores militares
Castelo Branco, Médici, Geisel, Figueiredo, entre outros, estamparam a primeira página
dos grandes jornais luandenses.
Quanto às artes e espetáculos, transparece nos jornais um constante e significativo
consumo de música e espetáculos brasileiros e um grande destaque para fotos e notícias

34
do carnaval carioca. Em 1958, por exemplo, os palcos luandenses receberam Carmélia
Alves e seus Cangaceiros, considerada a rainha do baião.27 O Anúncio do ABC Diário de
Angola (21/06/1958) propagandeava sua apresentação naquele dia às 16h no cinema
Tropical e, mais cedo, uma homenagem “promovida pelos Ngola Ritmos, que contará de
um almoço típico e de uma batucada”. 28É possível encontrar pelos jornais angolanos de
finais da década de 1950 e ao longo das de 1960-1970, como se verá ao longo deste
trabalho, um número significativo de artistas e companhias artísticas brasileiras se
apresentando em Angola.
Como mencionado anteriormente, a literatura brasileira foi um paradigma
importante para os intelectuais de Angola, e, na mesma perspectiva, a música também
representou um modelo importante. Conforme Chaves, 2005 (p. 34) Muitas vezes música
e literatura estavam imbricadas em uma determinada leitura que encarava o Brasil e os
brasileiros – por meio de uma lente por vezes superdimensionada – como um exemplo
tropical, original e libertário, como se pode perceber pelos escritos de Ernesto Lara:
Sou um angolano capaz de sentir o Brasil, (...), capaz de sambar com intenção ao
som de uma marchinha de Luiz Gonzaga, ouvindo o bater ritmado dum tambor
com acompanhamento de reco-reco. O mesmo reco-reco que foi exportado no
bojo das Caravelas, com os escravos de Angola. Sou capaz de entender uma noite
de luar, uma noite de batuque, como Catulo da Paixão Cearense (CHAVES, 2005,
p.35).

“O Brasil não foi colônia”, diz a chamada da matéria em um trecho da capa do


Diário de Luanda. A notícia versa sobre uma tese defendida pelo historiador brasileiro
Tito Lívio Ferreira em um evento da área em 1958 e que teria sido aprovado, apesar das
críticas de, segundo o autor, o jornalista angolano Gastão de Bettencourt, alguns
“historiadores renitentes”. Bettencourt, em uma página quase inteira do jornal, lista os
argumentos do intelectual brasileiro e tece grandes elogios ao posicionamento de Ferreira
indicando ser uma oportunidade “excepcional neste momento em que tanta se fala de
colonialismo”. Em suma os argumentos noticiados são: os habitantes do Brasil eram
lusitanos e súditos de Portugal até que em 1824 alcançaram a cidadania brasileira com a
promulgação da primeira constituição e que o Brasil até 1815 era uma província do
Império português, sendo alçada a categoria de reino unido a Portugal de 1815 a 1822. O
estudo também recomenda que no ensino de história no Brasil se retire dos livros

27 Uma amostra de Carmélia Alves se apresentando ao lado de Luiz Gonzaga em vídeo pode ser vista no
link: https://www.youtube.com/watch?v=oRob5aGNasg acesso em 04/09/2019 às 12 h 00 min.
28 Jonuel Gonçalves (2020), depoimento, conta que a difusão do baião se dava pela Rádio Jornal do

Comércio de Pernambuco, pois suas ondas alcançavam parte de Angola (SANTOS, 2007, p. 53).

35
didáticos o termo “Brasil-Colônia”, substituindo-o por “Brasil-Lusitano” e que isto seria
necessário para corrigir as “inverdades” que maculariam a imagem da “obra civilizadora”
lusitana, pois:

Portugal ao longo de trezentos anos conquistou, devassou, defendeu, povoou e


civilizou [sic] a América Portuguesa, com o trabalho sobre-humano de subjugar
a selva, dominar a natureza, educar e instruir o luso-brasiliense, de forma a
plasmar-lhe psicologia lusíada iluminada pelos raios do luso-cristianismo
(DIARIO DE LUANDA, 21/02/1958, p. 5).

Note-se que tanto o intelectual que defendeu a referida tese quanto o jornalista
que a elogia estão embebidos na lógica do lusotropicalismo de Gilberto Freyre alegando
que o Brasil não foi uma colônia de Portugal. Na década de 1950, membros do governo
português estabeleceram um profundo diálogo com o ensaísta brasileiro e buscam
disseminar suas ideias para parte dos membros da burocracia estatal, sobretudo os ligados
à área de relações exteriores, justamente para que essas servissem de base para o
argumento de que Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, entre outros, não
eram colônias, mas “províncias ultramarinas” do Estado Português. Como resposta aos
questionamentos dirigidos a Portugal pela assembleia das Nações Unidas em 1961, o
ministro dos Negócios Estrangeiros cita diretamente os pressupostos de Gilberto Freyre
para subsidiar suas réplicas (CASTELO, 2012, p. 97).29

Percebe-se pela matéria, que o Brasil é um ativo importante na estratégia


discursiva lusitana de que possuíam um tipo de ação nos trópicos que não reproduziria o
binômio exploratório “Metrópole-colônia”. Em vez disso, nessa ótica, Portugal estaria
apenas levando a cargo sua, em tese, custosa e trabalhosa missão de levar cristianismo e
progresso aos que mais precisariam. Fazia parte desta tática buscar e manter o apoio do
Brasil nas votações e resoluções das Organizações das Nações Unidas acerca do
colonialismo luso. O Estado português, a comunidade luso-brasileira do Rio de Janeiro –
então capital federal nos anos 1950 – e associações comerciais lusitanas investiram
laboriosamente em um lobby para angariar simpatias entre a impressa e entre políticos

29
Ressalte-se que Freyre, a convite de Portugal, visita o “ultramar português” entre os anos de 1951 e
1952. Suas reflexões a partir de tais visitas constam em duas publicações: Aventura e rotina e Um
brasileiro em terras portuguesas (Castelo, 2012, p.93).

36
brasileiros. Parte desta estratégia consistia em custear missões oficiais de políticos
brasileiros30 e também medalhas e títulos honoríficos. 31

A área de relações exteriores lusitanas logrou êxito em conquistar o suporte até de


alguns presidentes brasileiros, aliás, da maioria deles. Getúlio Vargas, Café Filho e
Juscelino Kubistchek foram mandatários que demonstraram simpatia pela causa
portuguesa. Vargas, por exemplo, em seu mandato na década de 1950, assinou o tratado
de amizade e aliança, que estipulava que Brasil e Portugal deveriam se consultar
mutuamente e previamente em relação a posicionamentos diplomáticos (DÁVILA, 2010,
p. 39).

Já no governo Jânio Quadros, desenha-se uma política externa relativamente mais


autônoma que desejava afirmar o país como um poder emergente, uma liderança dos
países do “terceiro mundo”. Nessa perspectiva, Quadros buscava implementar uma
política externa que distanciava o Brasil de alinhamentos automáticos – com os Estados
Unidos, por exemplo, posicionamento que ocorria até então – e buscava novas alianças e
acordos diplomáticos, em uma postura pragmática e independente. “O Brasil negociará
com a ‘cortina de ferro’ no seu governo?”, perguntou o jornalista Ernesto Lara do Diário
de Luanda em 1960. Jânio responde que sim, que em um eventual governo seu, a nação
brasileira compraria e venderia sem restrições ideológicas (ABC DIARIO DE ANGOLA,
10/09/1959, p.7). Vale destacar que alguns meses mais tarde, esta tendência
independentista de Quadros foi um dos fatores que dispararam a crise que pôs fim ao seu
governo. Jânio ensaia uma política similar a dos “não-alinhados”, bloco de países que se
declarariam autônomos em relação as ações no campo geopolítico dos países capitalistas
e socialistas (BISSIO, 2015). Expoentes do movimento, os chefes-de-estado Gamal
Abdel Nasser (Egito) e Jawaharlal Nehru (Índia) eram modelos nos quais Jânio se
inspirava. Significativas foram algumas de suas primeiras missões diplomáticas logo no
início de sua presidência: Emirados Árabes, Índia, Iugoslávia e Japão.

É no governo Quadros que se ensaia uma virada na política externa brasileira,


buscando um distanciamento de Portugal e uma aproximação em relação aos países
africanos e sua autodeterminação. Mais uma vez, a onipresença intelectual de Gilberto

30 Uma delegação de 13 deputados brasileiros, por exemplo, esteve em missão por Angola no começo da
década de 1960 (BITTENCOURT, 2002, p.324).
31 Segundo Dávila: “it was easy for Portuguese diplomats to find and court supportive politicians. They

were treated to trips to Portugal and the colonies and in return defended Portuguese colonialism in Brazil.”
E também: “It was an easy deal for a Brazilian legislator to score a trip to Portugal and to the beaches of
Mozambique” (DÁVILA, 2010 p. 54).

37
Freyre no pensamento social brasileiro tem um papel basilar. De acordo com Dávila,
Freyre influencia diplomatas de correntes opostas do ponto visto ideológico: os que
secundam a lógica lusotropicalista de que Portugal tinha uma ação nos trópicos
eminentemente sui generis e que tal fato justificaria a manutenção das “províncias
ultramarinas”; e, aqueles que acreditavam que a ausência de preconceito racial entre
descendentes de europeus e africanos no Brasil credenciavam o país a atuar como, nas
palavras de Quadros, “uma ponte entre a África e o Ocidente” (DAVILA, 2010, p. 35).
Além disso, mesmo com um mandato curto – oito meses –, Quadros foi pioneiro ao abrir
embaixadas em Gana, Nigéria e Senegal (DAVILA, 2010, p. 49). Logo no início de seu
mandato, Jânio marcou uma posição autônoma em relação a Portugal ao oferecer asilo ao
paquete Santa Maria, navio que foi sequestrado por militares e ativistas que faziam
oposição ao Salazarismo. A ação, inclusive, foi programada para coincidir com o início
dos mandatos de Quadros e do estadunidense John Kennedy, ambos já haviam dado sinais
de que apoiavam o fim do colonialismo sobre a Ásia e África (BOSLET, 2014, p. 124).

Goulart deu seguimento à política externa “independente” de Quadros e deu


continuidade ao “não alinhamento”, além de apoiar o direito à autodeterminação dos
povos, o que contrariava os interesses lusos no continente africano.

Quanto à conjuntura brasileira, os periódicos de Angola secundaram a narrativa


dos civis-militares brasileiros sobre a derrubada de Goulart: a de que em 1964 foi posta
em curso uma “revolução democrática” insuflada por políticos como Carlos Lacerda e
por “militares rebeldes”. As fotos presentes na edição de 25/04/1964 da revista Notícia
mostram a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) em chamas, descrita como
“centro de agitação comunista”; e, imagens de Lacerda, sendo felicitado por populares na
rua com legendas que o apontam como um dos líderes da “Revolução que trinfou no
Brasil” (NOTÍCIA, 25/04/1964). A narrativa do “anticomunismo”, do financiamento
internacional – do “ouro de Moscou” – estava presente nos dois países.32 Como aponta
Juliana Bosslet, os agentes do Estado português e parte da imprensa angolana
denunciaram às ações armadas de fevereiro e março de 1961 que deram início a luta
armada anticolonialista como orquestradas por “estrangeiros” ligados a União Soviética
(BOSSLET, 2014, p. 52).

32
Na conjuntura da Guerra Fria, principalmente entre as décadas de 1950 e 1970, movimentos com
tendências anticoloniais, independentistas, socialistas, nacionalistas, revolucionários e sociais-democratas
de vários matizes eram

38
Ainda do ponto de vista dos contatos e conexões entre Brasil e Angola no âmbito
político, é preciso sublinhar as inciativas do MPLA em estabelecer no Brasil no período
de 1961 a 1964 contatos com a militância estudantil, sindicatos, jornalistas, intelectuais,
entre outros, através de representantes no país como o brasileiro Fernando Mourão – que
foi colega na Universidade de Coimbra de futuros líderes independentistas africanos
como Amílcar Cabral –, o angolano José Gonçalves, que posteriormente voltaria a Angola
para fazer parte da luta pela independência, e do luso-brasileiro José Maria Nunes Pereira
– que em Portugal teve contato com os nacionalistas africanos quando frequentava a Casa
dos Estudantes do Império. Estes e outros compunham o Movimento Afro-Brasileiro pela
Libertação de Angola (MABLA). Tais militantes enfrentaram sérias dificuldades com o
golpe de 1964 incluindo detenção e tortura (LIMA, 2015). “Sou preso em 8 de abril, me
liberaram e no dia 21 de junho vem nova prisão”, declarou Nunes Pereira em entrevista
aos historiadores Amílcar Pereira e Verena Alberti (2007, p.130). A PIDE chegou
inclusive a atuar no Brasil com a anuência de Carlos Lacerda, à época governador do
Estado da Guanabara, e do setor de inteligência da Marinha (ALBERTI & PEREIRA,
2007). Por conta da atuação das forças de segurança brasileiras, o MABLA foi
desarticulado. Alguns de seus militantes deixaram o Brasil, mas outros permaneceram
atuando nos meios acadêmicos, diplomáticos e culturais como Nunes Pereira e Mourão.

Um ponto alto das demonstrações de apoio do Brasil a “causa lusitana” foram os


exercícios militares realizados em conjunto que culminaram com a visita da esquadra
naval brasileira a Luanda em fevereiro de 1967. Os exercícios e cerimônias que
envolveram soldados, oficiais e membros do corpo diplomático brasileiro foram vistos
como um franco gesto de apoio ao colonialismo português, o que atraiu os protestos de
embaixadores africanos no Brasil e críticas na imprensa de países como a Nigéria
(DÁVILA, 2010, pp.148-150). De fato, o gesto de apoio à manutenção das colônias
portuguesas no continente africano foi inequívoco quando se considera as declarações e
discursos do chanceler Ouro Preto à imprensa angolana: “É com maior emoção que saúdo
todos os portugueses da província ultramarina de Angola”, estampou em manchete na
capa O Diário de Luanda (05/02/1967, p.1).

Como esperado, não faltaram discursos e representações nos jornais sobre as


33
conexões musicais e culturais entre Brasil e Angola. O Diário de Luanda (04/02/67,

33
Clube social e desportivo originado do associativismo trabalhadores das estradas de ferro de Angola.

39
p.8) anuncia o “Festival Luso-Brasileiro de Música” a ser realizado no dia sete do mesmo
mês no estádio do Clube Ferroviário que contaria com “além de algumas atrações
brasileiras”, grupos locais como Ngola Ritmos, Sara Chaves, Conchinha de Mascarenhas
e os grupos carnavalescos Kimala e Legião dos Pescadores da Samba Grande. Alguns
dias depois, o jornal descreve o evento dizendo que a apresentação da banda da Marinha
brasileira trouxe o “Carnaval carioca” para o Estádio do ferroviário, que todos dançaram
os sambas executados pelos músicos da esquadra e que a festa terminou de maneira
inusitada: em cortejo até o cineteatro Tívoli, onde se realizava um baile de carnaval e
quando a banda levou “o samba ao cinema da... Samba”. 34 Mais significativo ainda é um
artigo opinativo publicado no ABC Diário de Angola (10/02/1967, p.6) assinado por
Moutinho Pereira:

Reencontro de irmãos.
Até que enfim meus irmãos brasileiros nos reencontramos. Parecia tão difícil, não
é? Mas de verdade, esse afastamento foi unilateral. Aqui sempre seguimos o que
se passava em vossa terra, que é nossa também. Ou desde quando os irmãos
fecham as portas na cara uns dos outros? Agora tudo está bem outra vez. (...)
E temos tantas coisas para vos contar – a vocês que são povo e não aos
diplomatas. (...)
Podemos falar do café, do feijão, do ferro e cobre. E, também, das nossas cidades
e hábitos comuns.
Talvez não saibam irmãos, mas ‘Aruanda’ é o ‘paraíso’ nos vossos terreiros de
‘umbundu’ [umbanda]. ‘Aruanda’ é esta vossa cidade
Talvez não saibam irmãos. Mas a vossa música, a música brasileira, nasceu aqui,
em Angola. Vocês lhe deram umas voltas, estilizaram-na, mas resulta no mesmo.
Topa?
Talvez, não saibam irmãos. Mas o ‘funge’ nosso é a ‘fubá’ de vocês. E há mais
coisas, muitas, tantas! Alguns dos vossos etnólogos já descobriram qualquer
coisa. Gilberto Freyre é tão vosso como nosso. Ele entendeu e por isso nós o
escutamos. Ele está certo. (...)
A comunidade Luso-Brasileira, que nos estreita, agora, será o princípio de um
futuro já próximo? O Portugal de lá, o Brasil. Angola, Guiné, Moçambique, Cabo
Verde, S. Tomé – já pensaram no que seria essa imensa força toda junta?
Mas isso são coisas de políticos, meus irmãos. Porque nós há muito tempo, desde
o princípio, que somos o mesmo povo, o povo mais mestiçado do Mundo (...)
(ABC Diário de Angola (10/02/1967, p. 6).

34 “Samba” é o nome do bairro onde se localizava o Tívoli. Diário de Luanda, 09/03/1967, p.6.

40
Como se percebe, o articulista faz questão de frisar que o afastamento foi
“unilateral”. Uma referência aos governos Jânio Quadros e João Goulart com suas
políticas externas de cariz “independentista”.

Após a demonstração explícita dada pela visita da esquadra naval brasileira em


1967, o Estado brasileiro evitou fazer novas demonstrações de grande monta que
pudessem vir a justificar embaraços em suas relações com as novas e independentes
nações africanas.

A política externa brasileira dos ditadores militares segue a linha do


comprometimento com Portugal até o começo dos anos 1970. Neste período, as altas taxas
de crescimento do “milagre brasileiro” chamam a atenção de todo o mundo e também de
Portugal que decide abrir parte de seus mercados em Angola e Moçambique ao Brasil,
buscando associar a sua imagem à “pujança” econômica do Brasil. Os jornais angolanos,
como ressaltado por Dávila, qualificavam o dinamismo econômico brasileiro como
passível de o tornar o “Japão da década de 70” (DÁVILA, 2010, p. 146). A Província de
Angola, por exemplo, destaca em extensa matéria a visita do secretário provincial de
finanças de Angola ao Brasil para prospectar investimentos brasileiros. “Os investimentos
brasileiros em Angola serão sempre bem acolhidos”, disse o secretário Costa Oliveira e
acrescenta que possíveis parcerias viriam a acontecer nos setores têxteis e de calçados (A
PROVÍNCIA DE ANGOLA, 29/09/1972, p.5).

A diplomacia portuguesa tenta ao máximo se aproximar do Brasil, inclusive


fazendo ofertas que diminuiriam as tarifas de exportação aos produtos brasileiros e
facilitaria acordos comerciais em torno da extração de petróleo angolano pela Petrobrás.
O que coloca em rota de colisão o Chanceler do governo Médici, Gibson Barbosa, com o
poderoso ministro da economia Delfim Neto. Esse último estava sendo “cortejado” pelo
governo português com estas propostas no campo econômico no intuito de atrair mais
apoio do Brasil aos interesses portugueses no continente. O chanceler vence o embate
com Delfim Neto e convence Médici e o futuro presidente-ditador Geisel, então
presidente da Petrobrás, a manter uma política pragmática e autônoma para com os países
da África. O ápice dessa política foi a tour de Barbosa por quase uma dezena de países
africanos no ano de 1974 objetivando fortalecer ou estabelecer relações diplomáticas com
o continente e afirmar o país como player importante frente aos países do chamado
terceiro mundo e mais especificamente no Atlântico Sul.

41
Gibson Barboza e Antônio Azeredo da Silveira, quem o sucedeu no cargo de
chanceler durante o governo Geisel, fizeram esforços no sentido de mediar negociações
entre Chefes de Estado africanos e Portugal objetivando o fim da guerra colonial e a
independência das colônias lusófonas. O estado luso em um primeiro momento sinalizou
positivamente, mas depois voltou atrás. Marcelo Caetano, então o líder máximo do Estado
Novo lusitano, sinalizou que aceitaria a mediação do Brasil no conflito das colônias
portuguesas se este aceitasse que Portugal mediasse o conflito da administração Geisel
com as guerrilhas brasileiras, o que encerrou as negociações (DÁVILA, 2010).

As idas e vindas do Estado brasileiro em relação aos países africanos causaram


um estremecimento das relações com alguns países como Moçambique, que deu várias
mostras de que se ressentia da política brasileira ambígua e titubeante. Na intenção de
“remediar” tais danos, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer formalmente a
independência de Angola (DÁVILA, 2010).

42
1.2.1 Acerca do lusotropicalismo de Gilberto Freyre.

Gilberto Freyre exerceu – e sob certos aspectos ainda exerce – um grande impacto
no pensamento social brasileiro, posto que seus pressupostos extrapolaram os muros da
academia e se espraiaram pela sociedade em geral. Em um momento da história do país
no qual as teorias racialistas – que ensejavam uma “crença” de que haveria graus
hierárquicos entre os grupos humanos e que a mestiçagem entre tais agrupamentos
gestaria indivíduos que herdariam as “piores” características dos dois povos – estavam
em voga, o intelectual defendeu o inverso. Freyre valoriza as matrizes indígenas e
africanas presentes na formação do povo brasileiro e reverencia a hibridização
sociocultural supostamente harmônica, que teria ocorrido no Brasil entre portugueses, os
povos trazidos à força da África e os povos originários que aqui já estavam. Em todo caso,
o pensador pernambucano reserva aos lusos o protagonismo nesse processo de
“interpenetração cultural” dada a sua alegada vocação para tal.

Como observa Cláudia Castelo, em Casa Grande e Senzala, obra que focaliza o
processo de “interpenetração cultural” no Brasil, são lançadas as bases teóricas que
posteriormente embasariam o “lusotropicalismo”, chave de leitura que amplia para as
demais terras dominadas e ocupadas pelos portugueses nos “trópicos”, sobretudo em solo
africano, a ideia da “excepcionalidade” da colonização portuguesa. Os portugueses, na
lógica freyreana, seriam dotados de “versatilidade” e “ausência de orgulho racial”. Nessa
perspectiva, tais características teriam sido construídas pelo contato dos habitantes de
Portugal com outros povos, como o judeu - com os quais teriam aprendido a “mobilidade”
- e com os mouros, dos quais teriam assimilado o pendor para a “adaptabilidade social” e
para a “mistura racial”. Essa alegada propensão para a miscigenação, defende Castelo,

43
não deve ser entendida como uma particularidade dos portugueses nos trópicos, porque
nos casos em que ocorreu de forma considerável, no Brasil, por exemplo, se deu por
questão circunstancial, qual seja, “o número reduzido de mulheres brancas” (CASTELO,
2011, pp, 262, 263, 268, 276).

De acordo com esse conjunto de ideias advogadas por Freyre, os portugueses –


diferentemente de alemães, ingleses e franceses – teriam um modo próprio de estar nos
trópicos; uma maneira mais “plástica” e tolerante, uma colonização supostamente mais
“branda”. E, como assinala Cláudia Castelo, dentro dessa ótica, tais qualidades lusitanas
não se dariam “por interesse político ou econômico”, mas por uma suposta “empatia inata
e criadora” (CASTELO, 2013, s/p.)
Esse modo de “ser e estar” no mundo que, em tese, seria mais dado ou propício a
“interpenetração cultural” com as populações nativas dos territórios africanos;
encontraria evidência no fato de que parte considerável dos cargos do aparato de governo,
sobretudo até o século XIX, era ocupada por membros das elites locais. No entanto, como
aponta Valentin Alexandre, essa justificativa de que os portugueses tinham uma relação
“privilegiada” com os habitantes dos territórios que ocupavam não se devia a uma alegada
predisposição específica dos lusos à convivência harmoniosa com povos não-europeus,
mas à uma característica própria das estruturas dos Impérios de Antigo Regime que
conferiam significativa autonomia as lideranças locais (ALEXANDRE, 1999, p. 5).
O pensamento freyreano encontrou ressonância entre os intelectuais portugueses
e sobre uma parcela dos intelectuais angolanos. As críticas que surgiram no período
ocorreram de maneira clandestina por conta do contexto ditatorial salazarista sendo uma
delas a do nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade que escreveu sob pseudônimo
na revista Presence Africaine, em 1955, assinalando que o lusotropicalismo era “método
de colonização”. No referido artigo, Andrade denuncia que a insistência de Freyre nos
aspectos culturais desconsidera os aspectos políticos e econômicos do domínio português,
e, acrescenta, que não é possível falar em harmonia racial quando as culturas nativas
passam por um processo de apagamento frente a assimilação e ao trabalho forçado
(DÁVILA, 2010, p.20).
Pinto de Andrade também chama atenção para o fato de que tal conjunto de ideias
que visava “integrar” os diferentes povos, pressupunha uma igualdade de condições para
acesso às oportunidades, o que, na realidade não acontecia, pois mesmo os assimilados
foram sendo alijados de participar de certas instâncias da vida econômica e política. “Nos

44
territórios tropicais sob soberania lusa nunca se verificou um casamento de duas culturas,
mas uma relação de cultura dominante sobre culturas dominadas”, sustenta o intelectual
angolano (DÁVILA, 2010, p.20).
Ainda sobre o espraiamento e vulgarização das ideias lusotropicalistas, outro
nacionalista africano, o guineense Amílcar Cabral, assinala que o referido ideário foi
convertido em uma eficiente peça de propaganda chegando a ressoar até mesmo em
líderes africanos independentistas. Cabral relatou que a delegação de seu país recebeu
pouca atenção em um congresso de lideranças africanas no ano de 1960, pois os delegados
dos países anglófonos e francófonos não percebiam que Angola, Guiné Bissau, Cabo
Verde, Moçambique e demais territórios sob domínio português também passavam pelas
agruras do jugo colonial (CASTELO, 1999, p.101).
Cahen fez uma síntese dos principais argumentos usados na literatura acadêmica
para contestar o pensamento freyreano, dos quais destacam-se dois: a) o excessivo
“culturalismo” ao endereçar as mazelas do colonialismo não às estruturas econômicas e
políticas, mas a culturas “exógenas”, se referindo à aguda exploração exercida pelas
empresas coloniais de capital belga como a Cotonang, b) a atenuação e a romantização
das relações hierárquicas entre a “Casa Grande” e a “Senzala, entre o “Sobrado” e os
“Mucambos”, vistas da “varanda” da Casa Grande. Em outros termos, seus pressupostos
foram enunciados sempre do ponto de vista senhorial (CAHEN, 2018, p. 308).
Outra das ponderações de Cahen sobre a obra freyreana que merece ser destacada
chama atenção ao fato de que a interpenetração cultural “desejável”, para Freyre, só se
realizaria em um sentido: o que “aportuguesaria”, embranqueceria, “civilizaria”,
cristianizaria os africanos e indígenas e não contrário. O ensaísta 35pernambucano afirmou
em O Mundo que o português criou que a atuação dos lusos no Brasil ensejou uma
sociedade em que possibilitaria uma “constante mobilidade – de classe para classe e até
de raça para outra”, assim assinalando de maneira implícita que hierarquizava o referido
processo de mestiçagem, colocando um grupo racial em uma posição de superioridade
em relação ao outro. Tais assertivas se tornam explicitas quando de seu contato com o
povo cabo-verdiano que o pensador considera com traços por demais “negroides” [sic] e

35
Digo ensaísta porque secundo a crítica já feita por muitos intelectuais de que os pressupostos de Freyre
por carecerem de empirismo se distanciam das práticas sociológicas de seu tempo e se aproximam do ensaio
literário (CAHEN, 2018), e, como pontua Claudia Castelo: “na verdade, a civilização que Gilberto Freyre
descreve e interpreta não existe, é antes uma aspiração, um destino” (CASTELO, 2011, p. 270).

45
“demasiado” africanos e, como pontua Michel Cahen, na ótica freyreana “nem sempre a
mestiçagem é positiva: depende do sentido” (CAHEN, 2018,pp. 318-319).
Crítica comum a muitos pesquisadores sobre as proposições de Gilberto Freyre
acerca da alegada harmonia racial ensejada pelos portugueses nos trópicos é a sua ênfase
na “sensualidade”. “A sociedade brasileira foi moldada por uma tendência portuguesa
especial para a mistura sexual e cultural” , assinala Jerry Dávila ao resumir alguns dos
pressupostos do ensaísta pernambucano (DÁVILA, 2010, p.12). Aspecto ressaltado
também por Mário Pinto de Andrade, que avalia que Freyre não consegue depreender a
realidade da situação colonial por conta de sua “crença religiosa” na aptidão dos lusos
para viver em zonas tropicais e “arranjar uma mulher de cor” (conforme citado em
DÁVILA, 2010. p.20).
Em Casa Grande e Senzala, de acordo com Cláudia Castelo, o ensaísta atribui ao
contato dos portugueses com os mouros sua tendência para a poligamia e seu “gosto” pela
“procriação”, além disso, permeiam suas obras qualificações atribuídas a ação portuguesa
como “voluptuosa”, capaz de “salpicar virilmente seu sangue” em diferentes povos
(CASTELO, 2011, p.264, 267, 263). Tais adjetivações aparecem também em seu livro
Novo Mundo nos Trópicos quando advoga que a “energia criadora” e que os “instintos”
dos portugueses eram afirmados pela sua “atividade extremamente procriadora de bons
machos e bons polígamos” [sic] (FREYRE, 2015, p. 197). Tais perspectivas quanto à
sexualidade e sensualidade são também exploradas por Jerry Needel: “Para Freyre, a
atividade sexual e a dominação racial são metáforas uma da outra (NEEDELL, 1995, p.
70).
As teorias freyreanas foram recebidas, com algumas ressalvas, de maneira
positiva nos meios acadêmicos e culturais lusitanos. Como destaca Castelo, teceram-se
elogios “a metodologia e a temática, a erudição e o estilo literário. (...) A centralidade da
mestiçagem biológica foi reconhecida e bem aceita”. Um desses intelectuais, Manuel
Múrias ressaltou que “mais importante que a mestiçagem em si” seria a “capacidade de”,
ou seja, concordando com a tese da “predisposição” dos portugueses à esse processo. Já
no meio político, a acolhida não foi tão favorável. Vicente Ferreira que havia sido alto-
comissário em Angola discordou das teses de Freyre quanto à miscigenação, que não
deveria “merecer aplausos” e que o processo, na sua visão, ensejaria “degenerescência
dos caracteres psíquicos e somáticos” [sic]. (Castelo, 2012, p.80, 76, 84).
As obras de Gilberto Freyre da década de 1950 foram fortemente influenciadas
por sua relação com as autoridades do governo português. Como destaca Dávila, o

46
governo luso foi “um patrono generoso”, pois “patrocinou muitas de suas viagens,
publicou suas palestras em vários idiomas”, entre outros (DAVILA, p.20). O ministro das
colônias – posteriormente chamado de ministro do Ultramar – Manoel Sarmento
Rodrigues convida Gilberto Freyre a visitar as “províncias” em solo africano para que
este conhecesse como “estudioso” esses territórios. Entre 1951 e 1952, o intelectual
pernambucano visita Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e Macau, tendo
estado em Portugal continental também para encontros oficiais, conferências e palestras
(CASTELO, 2012, pp. 89 e 90). Em uma dessas viagens o antropólogo vaticinou que
futuros “Brasis” estariam sendo criados na África de expressão portuguesa (DAVILA,
2010, p. 188). Sobre a temática do lusotropicalismo, publicou ainda as obras Integração
portuguesa nos trópicos (1958) e O luso e o trópico (1961), cujo ideias principais não
diferem muito das publicadas anteriormente (CASTELO, 2011, p.269).
Nos anos 1960 houve algumas tentativas mais sistemáticas, ainda que tímidas, de
colocar o lusotropicalismo em prática como agenda política, sobretudo na gestão de
Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1962. Era preciso “a criação de
comunidades multirraciais” e a “implantação de novas civilizações luso-tropicais”,
registrou Moreira quando da publicação de uma série de decretos extinguindo o trabalho
forçado e criando juntas de povoamento que incluíam africanos nos colonatos antes
destinados aos portugueses do continente (CASTELO, 2012, pp. 61-62).
Outras mudanças aparecem nas memórias dos “retornados”,36 colonos portugueses
vindos de Angola ou mesmo nascidos em Angola e demais colônias que foram para
Portugal ou Brasil entre 1974 e 1975. Como indica Fonseca, o governo português buscava
ganhar a disputa no “plano das mentalidades”: “o quadro administrativo atenuou modos”,
pois “muitos funcionários vinham de Cabo Verde”37 e outros vinham da metrópole, com
formação no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, influenciados por Adriano
Moreira, por isso alcunhados de “adrianinhos” (FONSECA, 2009, p. 118).

36
Sobre retornados ver a tese de Marilda Flores (2020, p. 17): “aqueles que estavam chegando a Portugal,
oriundos das antigas colônias em África, fugindo da Guerra Colonial (1961-1974) ou dos embates
resultantes do movimento pela independência”.
37
Ana Sofia Fonseca é jornalista e faz um extenso trabalho de recolha das memórias dos retornados no
livro Angola Terra Prometida. Em todo caso é preciso cautela na análise das memórias, como assinala
Chaves (2019, pp. 3-4), os retornados precisavam lidar com as representações que os associavam ao
Salazarismo e ao derrotado projeto colonial e que “em confronto com essa nova situação, os “retornados”
precisariam elaborar outras imagens de si próprios e da experiência agora condenada”. Em outras palavras,
uma memória que envolve esse passado nas terras africanas em uma grande nostalgia dos, qualificados por
Ana Fonseca (2009, p. 16) como “os melhores anos”.

47
Dentre os intelectuais angolanos, Mário Antônio de Oliveira esposou de maneira
bastante significativa as ideias de Gilberto Freire. Ao longo de “Luanda, Ilha Crioula", o
intelectual angolano até chega a usar algumas poucas vezes a expressão
“lusotropicalismo” e embora não gaste muitas linhas falando sobre o termo, o conceito
permeia todo o seu ensaio, pois reforça todo o tempo o ideário da “interpenetração
cultural”: “em tudo, a presença de duas culturas que não se opõe uma à outra, antes se
interpenetram”. Na mesma perspectiva, Oliveira defende que a mestiçagem em Luanda e
em outros pontos do território angolano ocorria em um plano “mais cultural que racial,
pois muitos dos mestiços que me refiro tinham a cor preta” (OLIVEIRA, 1968, p. 48 e
52).
Contestando o ideário da “excepcionalidade” da colonização portuguesa, que
subsidia a tese da “Ilha Crioula” de Luanda, Roquinaldo Ferreira aponta que na
Senegâmbia, Costa do Ouro, Golfo do Benin e Baía do Biafra ocorreram processos de
fluidez cultural, de hibridização, similares ao de Luanda, sendo a duração e a intensidade
a principal diferença. Em todo caso, nessas outras regiões em que os contatos comerciais
foram constantes, parte dos indivíduos dessas respectivas sociedades articulavam ao
mesmo tempo repertórios culturais europeus e africanos no falar, no vestir, nos processos
de literacia, nos costumes em geral, indicando que o que ocorreu em Luanda não foi
excepcional, mas comum a diversas regiões que tiveram contato com comerciantes e
soldados de origem europeia (FERREIRA, 2006). Acerca dos processos de mestiçagem
cultural, Linda Heywood inverte a chave de leitura lusotropicalista colocando os povos
africanos, e não os portugueses, como os protagonistas do processo de hibridização por
conta da “tendência das culturas Banto em se transformar ao longo do tempo, absorvendo
elementos externos” (HEYWOOD, 2002, p.93).

48
1.3 Samba, semba e sembistas.

Figura 3 – Nas áreas suburbanas de capital de Angola, Luanda, nos quintais de moradias como essas
da foto, no período colonial, costumavam acontecer as chamadas “farras de quintal”. Fonte: José de
Souza Bethencourt - Subsídios para o estudo sociológico de Luanda, p.161. 38

38
Bettencourt (1965) foi um cientista social que atuava em Angola e que buscava investigar a urbanização
da cidade de Luanda tendo como foco as áreas suburbanas no período colonial. Esse pesquisador e alguns
de seus pares que se debruçaram sobre a mesma problemática, como Ramiro Monteiro Ladeiro e Ilídio do
Amaral, tinham laços com o aparato colonial. Ressalte-se que os trabalhos desse grupo de pesquisadores
eram carregados de uma visão eurocêntrica que estereotipava os moradores dessas localidades
(MOORMAM, 2008, p. 63).

49
No romance A vida verdadeira de Domingos Xavier escrito por Luandino Vieira39
narra-se uma “farra de quintal” que é como os angolanos descrevem uma festividade
privada entre amigos e vizinhos. Tais festividades, com comida, bebida, música ao vivo
ou reproduzida em “giras-discos” eram, em geral, realizadas nos quintais de casas
localizadas nas áreas suburbanas de Luanda. De acordo com Weza (2007) havia o hábito
de se fazer salões nos quintais, uma vez que a polícia da época proibia de se usar os
espaços públicos.40 Em uma das cenas da referida obra literária realiza-se uma grande
“farra” com “música angolana” e “comida angolana”, “música brasileira e cubana”
(VIEIRA, 2012, p. 91) e nela se apresenta o grupo Ngola Ritmos. Zé Maria, um dos
membros do referido grupo, em um determinado momento fala a audiência declarando
que a próxima canção que executariam seria um “samba da autoria do nosso irmão
fundador do conjunto: Carlos Aniceto” (VIEIRA, 2012).41

Nesse livro de Vieira retrata-se a conjuntura repressiva na área urbana de Angola


no começo da década de 1960, sobretudo em suas localidades suburbanas quando equipes
das forças de segurança patrulhavam tais regiões e praticavam arbitrariedades com os
moradores. Os personagens debatem se era adequado fazer uma “farra” quando tantos de
seus companheiros, angolanos nacionalistas, estavam presos ou haviam sido vitimados
pela repressão do Estado ou dos particulares, ao que Sô Mussunda, quem estava
organizando a festa, responde e ao mesmo tempo questiona: “os nossos irmãos estão
presos, é verdade. Mas nós não continuamos a viver, a lutar?” E acrescenta que a
festividade seria uma forma de homenagear seus “irmãos africanos” que estavam presos
e ao mesmo tempo expressar a vitalidade do povo que, apesar de reprimido com violência,
resistia (VIEIRA, 2012a pp.91-92).

39
Sobre a trajetória de Luandino Vieira, a União dos Escritores de Angola, registra: “Português de
nascimento, passou a juventude em Luanda, onde concluiu os estudos secundários. Por combater nas forças
do MPLA durante a Guerra Colonial, contribuindo para a criação da República Popular de Angola, adquiriu
a cidadania angolana. Preso pela PIDE, pela primeira vez em 1959, acusado de ligações ao movimento
independentista (Processo dos 50), acabaria condenado a catorze anos de prisão, em 1961. (...). Luandino
cumpriu a pena de prisão no Campo do Tarrafal, em Cabo Verde”. Conforme
https://www.ueangola.com/bio-quem/item/872-luandino-vieira. Acesso em 26/01/2021 às 11 h 00 min.
40
José Weza nasceu em Luanda em 1957. Como músico, integrou os grupos Anangola e Balança 8. Como
escritos produziu a obra O percurso histórico da música urbana luandense.
41 Rita Chaves aponta que a convivência de Vieira, quando criança, nas áreas suburbanas com o povo pobre de

Luanda e com os meninos negros e mestiços, o marcaram profundamente, construindo uma “poderosa
experiência” que transparece em sua produção literária (CHAVES, 2000, pp. 77-78).

50
O Carlos Aniceto a quem se alude é Liceu Vieira Dias,42 líder do conjunto Ngola
Ritmos. O momento descrito em que se interpreta o referido samba, embora ficcional, traz
elementos inspirados na realidade. O samba citado como sendo composto por Vieira Dias
existiu. Em documentário do ano de 2010 do cineasta Jorge Antônio, acompanhado do
músico e memorialista Mário Rui Silva, Liceu canta e toca essa mesma canção descrita
no romance de Xavier cuja letra diz: “Esse mundo anda empenhado/ Em me afastar/(...)
Qual será ele o segredo/ Que me sinto preso/Sem poder lutar”. E o líder do Ngola Ritmos
de fato se encontrava no período recluso na época, pois havia sido preso em 1959 por
agitação política.

É possível que Luandino Vieira tenha ouvido pessoalmente o aludido samba em


alguma “farra” muito similar a que descreveu em seu romance. Vale também destacar
que em A vida verdadeira de Domingos Xavier, essa cena em que se toca um samba, é
seguida por outra em que se anuncia na “farra” que um irmão angolano faleceu após ser
torturado pela polícia política do colonialismo português. Esse personagem – o
trabalhador que dá nome ao livro – é homenageado por todos na festa. E o fato de Liceu
compor um samba, mais de um, é ilustrativo do contexto luandense dos anos 1940 à 1970
em que a efervescência cultural estava imbricada à mobilização política.

A Liceu é atribuído o feito de ter adaptado ritmos entendidos como tradicionais


como a kazukuta, a kabetula, a dizanda e o kaduque para violão, e, sintetizando
ligeiramente um processo complexo, desta fusão originou-se o semba (ALVES, 2015).
Este cantor e compositor é considerado por muitos o “pai da música angolana” e um
grande herói nacional, em parte, também por conta de suas ligações com a militância
anticolonial, chegando inclusive a ser preso em 1959, junto com outro membro do Ngola,
Amadeu Amorim, no chamado “Processo dos 50”.43

Vieira Dias fazia parte de células de mobilização política que, entre outras
atividades, distribuíam panfletos pelas áreas suburbanas. Algumas das canções dos Ngola
foram escolhidas para abrir as transmissões do Angola Combatente, programa de rádio

42 A alcunha de “Liceu” foi dada a Vieira Dias porque no período e na região onde nasceu havia o costume
de apelidar a criança de modo alusivo a algum “fato relevante que tivesse acontecido próximo ou na data
do nascimento da mesma [...], [e] alguns dias antes, em 19 de fevereiro de 1919 o Liceu de Luanda [...] fora
inaugurado” (NASCIMENTO, 2016, p.77).
43
Ao longo dos anos 1950 grupos de nacionalistas angolanos promoviam ações políticas clandestinas em
que contestavam o domínio colonial português sobre Angola como distribuição de panfletos, reuniões e
eventos de caráter sócio recreativo como piqueniques e “farras” que tinham também o intuito de divulgar
os ideais nacionalistas. Sobre o referido “processo dos 50” ver Cunha (2011).

51
do MPLA transmitido a partir de Brazzaville, em parte pelo seu conteúdo, mas
principalmente porque eram cantadas em quimbundo, acionando uma identidade
angolana (NASCIMENTO, 2016).

Ainda sobre sua trajetória, é importante referir que o músico é oriundo de uma das
“famílias tradicionais” de Angola, grupo que exerceu relativo poder e influência na
sociedade, sobretudo por parte considerável do século XIX. Além dos Vieiras Dias, fazem
parte desse grupo as famílias Mingas, Van-Dunem, Pinto de Andrade, entre outras. Os
membros desses agrupamentos familiares tiveram acesso à educação e ocupavam postos
de certo relevo na administração colonial, compondo, dessa forma, uma “classe
intermediária” entre os colonos portugueses mais abastados e a maior parcela da
população, os que eram chamados de “gentios” – designação mais comum até meados do
século XIX – ou “indígenas” (NASCIMENTO, 2020, pp.120-121). Vale destacar que
essa camada intermediária, por conta das legislações promulgadas entre o final da década
de 1920 e início da de 1930 era enquadrada, do ponto de vista do status jurídico, como o
grupo dos “assimilados”, ou seja, “eram os antigos indígenas que haviam adquirido a
cidadania portuguesa, após provarem satisfazer cumulativamente” certos requisitos como
o domínio da língua portuguesa e ter uma profissão, entre outros. Tal estatuto – o que
classificava os africanos entre “indígenas” e “assimilados” – foi extinto em 1961, somente
após o início da luta de libertação angolana (MENESES, 2010, p.85).

Membros da família Vieira Dias fizeram parte da fundação da Liga Nacional


Africana (LNA), entidade fundada em 1930 e que reunia os nascidos em Angola,
sobretudo os negros e mestiços, para atividades de caráter recreativo-social, culturais e
esportivas, bem como ações de caráter educacional e de ajuda mútua. Parte dos associados
da LNA, anteriormente haviam composto a Liga Angolana, associação que foi
desmantelada em 1922 pelo governo colonial por se colocar ao lado dos camponeses que
se insurgiram conta o trabalho forçado na “revolta de catete”, evidenciando um caráter
político e contestatório que também esteve presente na LNA só que articulado de maneira
menos direta utilizando subterfúgios e estratégias “intelectuais e artísticas que
propagavam ideais valorativos dos africanos, dentro de uma concepção de Estado
Nacional Português” (BRICHTA, 2012, p. 97). Liceu e o Ngola Ritmos se apresentaram
na LNA algumas vezes, como em 1959 quando foram qualificados pela imprensa como
“o facho maior do folclore angolano” (A PROVÍNCIA DE ANGOLA, 24/02/1959, p.5).

52
Vieira Dias e seus parceiros musicais, antes de formarem o Ngola Ritmos fizeram
parte de outras bandas interpretando ritmos afro-americanos como o Boogie Woogie e
ritmos latinos. Diz Liceu em entrevista a Mário Rui Silva: “constituímos uma orquestra
[a] que demos o nome Ritmo Tropical (...), nos anos 40. Depois disso fizemos o Grupo
dos Sambas” (ANTÔNIO, 2010). Já na segunda metade dos anos 1940, Vieira Dias e seus
companheiros começam a interpretar e rearranjar os temas musicais populares cantados
nas línguas nativas, como indica Nascimento (2020, p.239), porque não podiam mais
cantar de maneira tão “aberta”, cantadas em português, o que, infere-se, aponta para a
necessidade de ocultar as mensagens, as ideias contestatórias que se pretendia comunicar
através da música.

Um episódio emblemático ocorrido com o Ngola se deu na década de 1950


(ANTÔNIO, 2010), quando são hostilizados no cineteatro Nacional por cantarem suas
canções nas línguas originárias angolanas e ao trocarem o repertório para “fados
estilizados à africana”, a reação da plateia muda de vaias para aplausos. Alguns anos
depois, o Ngola passa a ser aceito e apreciado mesmo cantando nas línguas originárias, é
louvado como o maior representante do “folclore angolano”. Nessa perspectiva é que são
convidados para se apresentar em Lisboa em um programa da RTP (Rádio e TV
portuguesa) na primeira metade da década de 1960. Nessa ocasião são descritos como um
grupo que apresentará “o colorido de um folclore muito especial” (ANTONIO, 2010).

Nota-se esse mesmo “diálogo” entre os folclores do continente e do ultramar em


um festival de folclores angolano organizado por Luiz Montez, em 1962, quando os
grupos angolanos executaram números do “folclore metropolitano”, o que, segundo o
articulista do A Província de Angola (07/10/1962, p.3), “veio a realçar os sentimentos
que ligam todos os portugueses”.

Sobre o uso do termo folclore no período colonial para se referir as tradições


locais, nota-se um imbricamento com o uso que os portugueses faziam para descrever as
diversas práticas culturais regionais do continente, quais sejam, danças e festas
tramontanas, beirãs, alentejanas, minhotas, entre outras. Algumas dessas tradições foram,
inclusive, praticadas no chamado “ultramar” em eventos e festivais, em geral, pelas
associações regionais nas “Casas” (da Beira, do Minho, entre outros) e alguns em estádios
de futebol (MELO, 2004, pp. 7-8). Assim, a prática de e o gosto construído por
apresentações artísticas consideradas representativas de uma determinada cultura e do
modo de ser e viver do povo de uma determinada região também possibilitou o

53
“consumo” dos eventos, performances e shows do folclore angolano nativo (MELO,
2004, pp. 7-8 ).

Gomes aponta que o “enquadramento” das práticas culturais angolanas que


posteriormente foram chamadas de semba no rótulo de “folclore” ensejou um processo
de controle e subalternização dessas práticas musicais. Nessa ótica, o Estado colonial
estimulou ou patrocinou um tipo de “entretenimento musical que se pretendia anódino e
não subversivo”, criando ou emulando “um ambiente plurirracial”, ao mesmo tempo em
que atendia as demandas do setor de turismo por atrações musicais “exóticas” e
“autênticas” (GOMES, 2021, p.200).

Ainda sobre o Ngola Ritmos, na grande maioria das imagens em que são retratados
se apresentando em Angola, o grupo está trajado à “moda ocidental” com ternos e
gravatas. Já na sua performance em Lisboa todos estão vestidos de maneira “folclórica”
com os pés descalços, os homens sem camisa, e, como registrou Marissa Moorman (2004)
no título de um de seus artigos “botando um pano e vestindo como nossos avós”.

Ressalta-se: os homens e mulheres que engendraram o semba tinham uma


vivência cosmopolita e assistiam a filmes estadunidenses, consumiam música brasileira,
latino-americana e caribenha, e, ao mesmo, reafirmavam a sua angolanidade trajando os
“panos” eventualmente. É preciso destacar que: para os lusitanos do continente, o Ngola
mostrava os muitos folclores que existiam nas terras portuguesas do “Minho ao Timor”,
já para os próprios músicos angolanos, infere-se que, justamente por ter um folclore tão
único e diverso, se pensavam como outro povo, outra nação e tinham o direito de escolher
seu destino. Cabe destacar que o enquadramento das práticas musicais das quais o Ngola
foi precursor como “folclore” enseja em um despojamento de seus sentidos críticos
originais e a sua qualificação em uma categoria que os subalterniza (GOMES, 2021, pp.
230-231).

Nessa ocasião em que se apresentaram na TV portuguesa, o Ngola Ritmos


interpretou, entre outras, a canção Manazinha que traz de maneira cifrada em sua letra
uma crítica ao colonialismo luso em Angola: “As aves vêm aí/ Vamos fugir/ Vamos fugir
para onde, irmão? Mandaram-me ovos de crocodilo”, sendo essas imagens de aves de
rapina e repteis ferozes, uma alusão ao domínio português. Tais ações implicam no que
Certeau chamou de “jogar/desfazer o jogo do outro”: “uma arte de golpes, de lances, um
prazer em alterar as regras do espaço opressor” (CERTEAU, 2018, p. 74).

54
Memorialistas (WEZA, 2007, p.31) e críticos musicais (FORTUNATO, 2018)44
apontam que havia outros conjuntos em atividade que são contemporâneos do Ngola
Ritmos como Kimbandas do Ritmo, Grupo São Salvador, Garda e Seu Conjunto e Trio
Assis. Tais agrupamentos, nas festas de quintal ou nos eventos nos clubes, interpretavam
os gêneros musicais que mais agradavam as audiências da época, quais sejam, músicas
latinas, afro-americanas e brasileiras. Na década seguinte, a de 1950, as Turmas,
agrupamentos de dez a quinze adolescentes e jovens que se apresentavam nos mesmos
moldes da geração anterior e também pelas ruas em cortejo no período de Carnaval
(WEZA, 2007, p.30), performavam os mesmos tipos de ritmos. Também tocavam temas
carnavalescos angolanos, mas grande parte do que era tocado era de compositores
brasileiros (REGO, 2014, p.78).

Algumas destas turmas e grupos tinham nomes que remetiam a influência


brasileira sobre a cena cultural angolana, sobretudo luandense, Turma do Brasil e Escola
do Semba. Ainda sobre Liceu, este já declarou, conforme assinala Marisa Moorman, que
tocar música brasileira “nos levou a descobrir o valor que a nossa própria música tem”. E
sobre estas influências, a pesquisadora assinala:

Através de uma prática cultural estrangeira, Vieira Dias e outros de sua geração
retornaram a sua própria cultura. Uma prática cultural cosmopolita os levou de
volta para casa. Eles começaram a enfatizar a africanidade de sua herança cultural
[esta que] era tão depreciada pela sociedade colonial (MOORMAN, 2008, p.90).45

Como indica José Weza, o samba exerce uma grande influência na área urbana de
Angola, o que possivelmente ocorria “por estar mais próximo de um ritmo local” (WEZA,
(N. Lopes, 2014)declarou o crítico musical Jomo Fortunato em entrevista ao musicólogo
Mateus Kushic.46 Fortunato também assinala que Ataulfo Alves e Pixinguinha eram os
artistas mais conhecidos e apreciados pela geração do Ngola Ritmos (Dias, 2015).

Carlitos Vieira Dias, filho de Liceu, em entrevista à Kushic (2016) afirmou que o
samba era bastante consumido na cidade de Luanda e que se ouvia e se tocava muito as

44
Artigo não assinado no Jornal de Angola. Em todo caso, o estilo corresponde ao do crítico musical Jomo
Fortunato, principalmente no que concerne a sua chave de leitura da “modernidade estética da Música
Popular Angolana”.
45
No original: Through a foreign musical practice, Vieira Dias and others of his generation returned to
their own culture. Cosmopolitan practice led them back home. They began to emphasize the Africanness
of their cultural heritage that was so denigrated by colonial society. Tradução livre minha (Moorman, 2008,
p.90).
46
Agradeço ao pesquisador Mateus Kushic por ter me cedido as entrevistas que realizou em Angola em
2015.

55
canções dos sambistas Ataulfo Alves e Noite Ilustrada. Na mesma declaração, Carlitos
também cita Jackson do Pandeiro, Carmélia Alves e Ivon Curi (KUSHIC, 2016). Como
se pode perceber, a imagem do Brasil em Angola estava tão associada ao samba que, por
vezes, outros artistas mais identificados com outros gêneros como o baião ou a música
romântica eram também relacionados ao samba. Em parte, isso se deve ao fato deste
gênero – o samba – ser a “espinha dorsal” (LOPES, 2014, p.595) da música brasileira.
Vale também demarcar que o samba nas décadas de 1930 e 1940 é alçado a símbolo da
cultura nacional no Brasil, em um processo complexo em que o Estado tem um papel
importante (VIANNA, 1995, p.125). Ainda sobre o Carlitos Vieira Dias, este também
declarou que o pai fazia “sambas à angolana” (KUSHIC, 2016, p. 47). Um destes é o
citado em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, como já mencionado, e que aparece
no documentário de Jorge Antônio sendo interpretado pelo próprio Carlos Aniceto.

Como indica Washington Nascimento (2016, p.91), pelo teor da letra


possivelmente esse samba foi composto na prisão do Tarrafal47 para onde Liceu foi
enviado após ser preso em 1959 e de alguma forma chegou às mãos ou aos ouvidos de
Luandino Vieira, que o incluiu em seu romance.

Outra referência ao samba e aos gêneros musicais brasileiros no repertório do


Ngola transparece no documentário O ritmo do Ngola Ritmos de Antônio Ole (1978). No
documentário, Belita Palma comenta que o choro “carinhoso” fazia muito sucesso na sua
voz (Pixinguinha e João de Barros) e “A moringa está pesada”,48 essa, uma canção que
em relação ao gênero está mais próxima do mambo cubano que do samba-canção
brasileiro. Originalmente a canção é de fato um mambo chamado de La Mucura e foi
gravada pela brasileira Dircinha Batista em 1950 em um single.49

A música brasileira, sobretudo o samba e o “baião” possivelmente começou a


circular nas áreas urbanas de Angola na década de 1940. Shain (2002) aponta que ritmos
latinos começaram a circular pela África ocidental no mesmo período através das rádios

47
Localizada na região de Tarrafal na Ilha caboverdiana de Santiago, a referida colônia penal ficou
conhecida como o “Campo da Morte Lenta”, por conta das arbitrariedades cometidas contra os presos
políticos que para lá eram enviados. Cf. https://www.dw.com/pt-002/tarrafal-o-campo-da-morte-lenta/g-
17784093. Consulta em 29/09/2021 às 16 h 00 min.
48 É possível ver Belita Palma e Ngola Ritmos interpretando esta canção no link abaixo, ao que tudo indica,

um trecho do documentário O Rimo do Ngola Rimos: https://www.youtube.com/watch?v=KpT9wCgChY8.


Acesso 22/08/2019 às 14 h 00 min.
49
Ver Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira: https://dicionariompb.com.br/dircinha-
batista/discografia. Acesso em 25/01/2021 às 11h 00 min.

56
voltadas para soldados franceses – e soldados nativos das colônias francesas em África –
que atuavam na região no contexto da Segunda Guerra Mundial.

Em Angola, no final da década de 1930 começam a se constituir “Rádio Clubes”,


experiências amadoras de radiodifusão. Tais iniciativas ocorreram nas principais cidades
como, Luanda, Benguela e Lobito, e tinham uma programação de apenas algumas horas
por dia, em geral, no horário do almoço ou à noite de segunda a sexta, sendo o sábado
executado com uma programação estendida e o domingo com um horário reduzido. O
pesquisador Rogério Santos indica que a programação de tais inciativas radiofônicas era
composta por noticiários sobre a metrópole, notícias locais, notícias sobre esportes e
cinema e programas divididos por gêneros específicos: marchas, sinfonias, “música pra
dançar” e “programa brasileiro”, a partir das programações publicadas em veículos de
imprensa, por exemplo, do ano de 1941. Santos aponta que a música brasileira era
executada tanto na sessão própria quanto na sessão “música pra dançar” que além da
brasileira executava alguns gêneros estadunidenses como o swing a partir de “discos de
78 rpm”50(SANTOS, 2020, pp.291 -293).

Sobre a chegada de tais discos à Angola, Carlitos Vieira Dias conta que vinham
pelos “barcos comerciais” que chegavam às terras angolanas, e, infere-se que tal processo
tenha ganhado força na década de 1940, uma vez que o pai de Carlitos e seus parceiros,
como já mencionado, fizeram parte de conjuntos musicais que interpretavam músicas
estadunidenses e brasileiras no mesmo período (DIAS, 2015).

O jornalista e professor universitário Jonuel Gonçalves,51 em depoimento,


relembra que quando criança – em meados dos anos 1940 e começo dos de 1950 – ouvia-
se bastante Rádio Clube de Angola e que se tocava muita música brasileira
(GONÇALVES, 2020). O professor universitário e pesquisador Carlos Serrano também
lembra que durante sua adolescência no Lubango, no Sul de Angola, nos anos 1950,
conseguia sintonizar com seu rádio à pilha as emissões radiofônicas do nordeste do Brasil,
principalmente das cidades de Recife e Olinda (SERRANO, 2020), fato que também foi
mencionado por Gonçalves, que recorda especificamente da Rádio Jornal do Comércio
de Pernambuco.

50
78 RPM (Rotações por minuto) refere-se ao tipo de técnica que era usada para gravação e reprodução
de sons através dos “discos”.
51
Jonuel Gonçalves nasceu em Luanda em 1943, por lá esteve nos 1940 e 1950, passou parte da década de
1960 no Brasil, entre outros deslocamentos. Nos últimos 30 ou 40 anos, construiu carreira como jornalista,
economista, escritor e professor universitário no Brasil.

57
Outros gêneros musicais brasileiros, como a Jovem Guarda, influenciaram os
músicos angolanos. Carlitos Vieira Dias,52 que também é músico lembra que colaborou
com os arranjos e a gravação de um single do Ngoleiros em que adaptaram uma canção
brasileira. O referido disco, de um lado trazia composição que posteriormente se tornaria
um dos clássicos da música angolana, Lemba, e do outro, A minha cidade, 53 canção feita
em homenagem à Luanda baseada em Pra Chatear, gravada pelo brasileiro Roni Von:
“Minha cidade é linda/ É de bem querer/ A minha cidade é linda/ Hei de amá-la até
morrer/ Da ilha até o sambila tem muita coisa pra ver (...)”.54

O músico e antropólogo Ricardo Rêgo, a partir de sua convivência com artistas


africanos quando de seu exílio na França nos anos de 1960 e 1970, indica que em geral
músicos angolanos como Bonga e Mário Clington conheciam muito bem a música
brasileira e a interpretavam em seus shows. Ainda, de acordo com Villas, diversos artistas
angolanos tiveram contato com a música brasileira: “Era o nosso forte, era o que nós
fazíamos mais. Tudo que era do Martinho da Vila eu cantei”, declarou Dionísio Rocha
do Ngoleiros do Ritmo ao pesquisador (REGO, 2014, p.51).

Como vêm sendo demonstrado, o samba e a música brasileira em geral foram um


paradigma importante para os músicos angolanos. Em todo caso, há uma visão bastante
difundida no senso comum e, também, defendida por alguns acadêmicos de que o samba
seria uma derivação do semba angolano. É possível encontrar esta visão também entre o
público angolano e entre os artistas brasileiros. Matéria da Revista Notícia de 1966
(12/03, s/p) sobre as apresentações de Elis Regina & Jair Rodrigues em Luanda noticiava:
“Foi em Angola que nasceu o samba, mas eles não sabiam” (Figura 1). A matéria descreve
um show particular feito pelo Ngola Ritmos para que os cantores conhecessem a música
angolana. A reportagem continua e assim descreve uma das canções angolanas
executadas por um dos grupos locais:

Parece mesmo samba, mas não é. Trata-se de uma letra cantada em coro num
antigo bailado de Ambaca, chamado Caduque, de onde nasceria a massemba. Mas
para Jair tudo era samba. Só com custo ele se apercebia de que não estava no
Brasil. E quando o grupo Fogo Negro entrou a dançar, ele brilhou como passista
(NOTÍCIA, 12/03/1966, s/p).

52
Carlitos declarou que integrou ou colaborou eventualmente com os Ngoleiros do Ritmo, África Show,
Os Merengues, Banda Maravilha, entre outros (FORTUNATO, 2015).
53
A canção Pra Chatear pode ser ouvida no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=Nv1SZ03SRqM. Acesso em 23/01/2020 às 16 h 00 min.
54
A canção Minha Cidade pode ser ouvida no link a seguir: https://youtu.be/-kUA60WkjEs. Acesso em
23/01/2020 às 15 h 30 min.

58
Quando apresentados ao ritmo “kaduque”, Jair e Elis reconheceram ali alguma
familiaridade com os ritmos brasileiros. Para o músico e escritor angolano José Weza, o
kaduque de Ambaca (Mbaka) está relacionado ao lundu brasileiro e, por conseguinte, a
massemba e ao samba:

De notar que a chamada dança Lundu que surgiu na Baía [Bahia] (...) aparece
também em Lisboa nos fins da década de 1770. Trata-se de uma dança que está
relacionada com o kaduque de Mbaka (...) e que veio a ser das danças mais
populares em Luanda. É uma dança erótica levada pelos escravos ao Brasil. (...)
A palavra lundu vem de kilundu (...) que quer dizer espírito, ser do mundo
invisível. (...) O seu diminutivo é kalundu. No Brasil, o encontro forçado entre
portugueses e africanos (...) com o ritmo de cadência angolana kaduque/semba
deu origem ao samba (WEZA, 2007, p.20).

Figura 4 - Um grupo performando uma Rebita, também chamada de Massemba. Fonte: Tribuna dos
Musseques (17/08/1967, p. 1))
Figura 12 - Foto de um grupo de Rebita no jornal Tribuna dos Musseques

Em uma perspectiva semelhante, o intelectual brasileiro Nei Lopes (1998, p.595),


ao descrever a etimologia da palavra samba, indica que esta deriva da “raiz
multilinguística semba, [significa] ‘rejeitar’, ‘separar’, remetendo ao movimento físico
produzido na umbigada, que é a característica principal dos povos bantos”, tronco ao qual
pertencem os diversos povos originários que habitam Angola.

Retomando a descrição de Weza sobre o kaduque, este dançava-se ao som do


ngoma – tambor coberto de peles nos dois lados –; dikanza, instrumento similar ao reco-
reco brasileiro, mas vale lembrar que o angolano é maior quanto as dimensões; e uma lata
de percussão. Posteriormente, o acordeom substitui o tambor e a lata, e, adiciona-se o

59
pandeiro. Outra mudança é que a prática muda do quintal para os salões luandenses e os
trajes assumem certa formalidade. Para os homens, as vestimentas eram terno ou smoking
e para as mulheres o trajar era à besangana: “panos vistosos e [adornando a cabeça] lenços
garridos ou penteados altos e fofos”, escreveu José Redinha55 (BOLETIM CULTURAL
DE LUANDA nº 16, 1967, p. 57) à moda quimbunda.

Em entrevista a Mateus Kushic, Carlitos Vieira Dias faz um relato similar sobre a
Massemba e assinala que os portugueses a chamavam de “Rebita” – possivelmente
porque quando se executa o gesto da “umbigada”, levanta-se, “arrebita-se”, ligeiramente
os quadris. Diz Carlitos que a dança chamada “kaduko” (kaduque) ocorria nas
festividades entre os “pretos assimilados e a burguesia colonial, quando foi introduzida a
concertina”, instrumento musical semelhante ao acordeom só que menor, a dança passou
para o salão e “chamaram de rebita, mas é massemba”. Carlitos conta também que foi ao
Brasil em algum dos eventos organizados por Martinho da Vila e num evento assistiu
uma apresentação de Jongo e, na sua avaliação, há similaridades quanto às formas
culturais (DIAS, 2015).

A massemba foi constantemente acionada como a principal fonte do semba, e foi


elemento importante numa das mais discutidas interpretações da presença colonial
portuguesa em Angola por um viés culturalista. Em geral a massemba, chamada de rebita
pelos portugueses, era acionada como um exemplo perfeito do lusotropicalismo
português e sua consequente mestiçagem cultural: tradições europeias – a dança estilo
cotillon, o acordeão, o traje masculino – e africanas como a dikanza, a umbigada, o traje
feminino, recombinam-se em um fluxo de hibridismo entre as culturas. Dessa forma a
massemba é usada como um símbolo do encontro de classes e raças, como defende o
intelectual angolano Mário Antônio de Oliveira, a partir da descrição dessa prática feita
por Óscar Ribas: “atraiu a Massemba, não apenas varões de baixo nível (...). Não apenas
gente negra (...). Até europeus nela se comprazeram” (BOLETIM C. LUANDA, n. 11,
1966, p.60).

Para Mário António, por conta dos históricos contatos entre europeus, africanos e
“americanos”; algumas localidades costeiras e insulares africanas produziram sociedades
culturalmente complexas com influências múltiplas. Na década de 1960, Oliveira defende

55
De acordo com Patrícia Matos, José Redinha (1905‐1983) foi “um importante etnógrafo que produziu
vários trabalhos e relatórios sobre diversas zonas culturais de Angola”. Ele também exerceu a função de
conservador do Museu do Dundo (MATOS, 2009, p. 42).

60
que a cultura de Luanda era significativamente hibridizada, diferente da vivida em seu
entorno e exemplificava essa crioulidade recorrendo a massemba como uma prática
cultural com caracteres lusitanos e angolanos, assim, comprovando a suposta
excepcionalidade da colonização portuguesa. “são essas danças exemplo da
interpenetração de elementos reinóis com elementos locais através do tempo”, escreveu
Mário Antônio no Boletim Cultural de Luanda (1966, p.61).56

Outro intelectual que escreveu para o mencionado Boletim e, em consonância com


Mário Antônio, dissertou sobre as interpenetrações culturais entre lusitanos e africanos
foi José Redinha ao abordar, entre outras práticas, o samba e o carnaval:

A expressão ‘Carnaval de Luanda’ generalizou-se à Província para designar o


carnaval aculturado, o Entrudo ocidental, adotado e bantuizado pelos africanos
(...).
O mesmo se verificou na sua transculturação para o Brasil onde ficou conhecido
pelo ‘Carnaval do Rio’(...).
Tanto em Luanda como no Rio de Janeiro, os carnavais são sínteses históricas
dos três ciclos interpenetrados afro-luso-brasileiros (...) (BOLETIM C. DE
LUANDA, nº 22, 1969, p. 55). 57
Acerca destes intercâmbios estéticos e melódicos, o escritor angolano Mário Rui
Silva assevera: “ritmos e danças de Angola que, levados pelos escravos para fora do país,
regressavam à terra modificados, influenciando os jovens angolanos que neles se
identificavam” (conforme citado em REGO, p.106). Em entrevista a Matheus Kushic,
Bonga deu um depoimento similar: “os negros idos de África levaram o semba consigo”
(BONGA, 2015).

Vale acrescentar que o samba carioca, depois considerado um gênero nacional, foi
engendrado nas primeiras três décadas do século XX, tendo esse processo se consolidado
nos anos 1930, 58 enquanto o semba angolano tem a sua gênese e consolidação nas décadas
de 1940 à 1960 (ALVES, 2015, pp. 77-100). Não cabe aqui avaliar a paternidade de um
gênero sobre o outro. Importa é registrar que são dois gêneros que tem matrizes africanas
ou afro-diaspóricas que foram postos em diálogo em momentos específicos de suas
respectivas histórias.

56
Em seu ensaio Mário António lança mão de outros exemplos que, na sua perspectiva, denotam a
interpenetração cultural como as festas populares, a religiosidade, a língua, a literatura, a vida privada, entre
outros. Cf. (OLIVEIRA, 1968).
57 Boletim Cultural de Luanda da Câmara Municipal de Luanda, nº 22, jan./ fev./ mar 1969, HML, 2001.
58 Para trabalhos sobre samba ver CUNHA (2016), HERTZMAN (2013) e VIANNA (1995).

61
I.4 Breve Geografia cultural da cidade de Luanda: os cineteatros.

Figura 5 - “Croqui” do ano de 1961 que busca mapear os musseques de Luanda. As áreas não tracejadas e mais
próximas da faixa litorânea são as áreas mais “urbanizadas”, dotadas de casas de alvenaria e ruas e avenidas de
asfalto. As áreas tracejadas são as mais pobres, com construção precarizadas e vias públicas de areias (Mourão,
2006, p. 233).

A Luanda da década de 1930 era ocupada principalmente na “baixa” – cidade


baixa – por famílias de origem europeia. Essa região é a mais próxima da faixa litorânea,
de frente para a baía de Luanda (figura II) e, como indica Weza (2007, p. 32), era habitada
por um número pequeno de portugueses e seus descendentes que tinham ocupações como
de proprietários de pequenas empresas de serviço, comerciantes e funcionários da
burocracia estatal e uma grande maioria de nativos que “constituíam a força de trabalho
nesses estabelecimentos” e também como funcionários de nível médio e baixo do
funcionalismo.

62
Como indicam Domingos & Peralta (2013, pp. 9-10) ao abordar as cidades
coloniais, tais espaços foram conformados pelas dinâmicas imperiais e produziram
“lógicas de estratificação social” que ensejaram “poderosos processos de racialização e
categorização”. Nos anos 1920 são estabelecidos os bairros indígenas destinados a
população africana e tais medidas tinham um cunho “altamente discriminatório” e
segregacionista (MOURÃO, 2006, p. 243).
Tais parâmetros foram determinados pelo alto comissário de Angola à época,
Norton de Mattos, que preconizava “a mais escrupulosa separação” entre europeus e
indígenas, e, conforme decreto dessa mesma autoridade, datado de 27/10/1922, “será
absolutamente proibida a moradia de indígenas fora desses bairros” (CASTELO, 1999,
p.85). Note-se que, a despeito do imaginário social construído a partir da década de 1930
com a primeiras obras de Gilberto Freyre, mas que ganharia força no discurso colonial
português, sobretudo, nos anos 1950 e que mirava as décadas e os séculos anteriores da
ação portuguesa em solo africano, buscando e ressaltando exemplos de “interpenetração
cultural”, como a Massemba no século XIX, como fez Mário Antônio, o racismo e o
etnocentrismo perpassaram parte considerável dos agentes do Estado colonial português
em suas ideologias e práticas.59 Como indica Marzano (2018, p. 83), nos anos de 1930 e
1940, Portugal era atravessado pela “ascensão do racismo e o incremento de leis e práticas
discriminatórias nas colónias”, e, como indicado pela portaria de Norton de Mattos, o
mesmo se dava na década de 1920.
A região “intermediária”, do ponto de vista do poder aquisitivo de seus moradores,
a “Ingombota”, localizava-se logo a seguir, distanciando-se da baía e ligeiramente mais a
leste, região de moradia dos estratos médios da sociedade luandense, das chamadas
“famílias tradicionais”. Os moradores dessa região posteriormente foram sendo
empurrados pelo afluxo maior de chegada de colonos portugueses nos anos 1940 e 1950,
para o Bairro Operário que se localiza – no mapa acima – um pouco a oeste de quem olha
da baía. Outras famílias, de poder aquisitivo menor ainda, foram para as demais regiões
periféricas onde as moradias são ainda mais precarizadas, os musseques.
Com o dinamismo econômico de Angola, e, mais especificamente, da cidade de
Luanda na década de 1960, há um imbricado crescimento dos serviços e do comércio

59
Como abordado anteriormente, na década de 1930 e 1940, as teses de Gilberto Freyre quanto a
mestiçagem e à convivência harmoniosa entre “as raças “foi, com algumas ressalvas bem, recebida no meio
intelectual lusitano. Já no meio político, ou seja, aqueles que desenhavam e implementavam as políticas
coloniais, as premissas freyreanas receberam significativa oposição.

63
ligados ao entretenimento como os bares, boates, dancings e cineteatros. Sobre esses
últimos, a quantidade de salas passa de uma nos anos 1930 – O Nacional – para mais de
uma dezena na década de 1960.
Inaugurado em 01/01/1932, o cineteatro Nacional localizava-se na Avenida
Álvaro Ferreira próximo ao Largo Dom Afonso Henriques – hoje Largo Lumeji – com
capacidade de 900 lugares na região da “Baixa de Luanda”. Em sua estreia recebeu
Zabumba, uma obra do Teatro de Revista trazida por uma companhia portuguesa. Era
“um local frequentado por indivíduos da alta sociedade”, conforme assinalou Lemos
(2019, p. 84).
Pelas páginas dos periódicos angolanos é possível encontrar a sua programação
que consistia em apresentações de espetáculos do chamado Teatro de Revista ou filmes
hollywoodianos como E Vento Tudo Levou (P. DE ANGOLA, 11/02/1948, p.1) e A
Derrocada De Um Império (P. DE ANGOLA, 05/02/1948, p.1). Quanto a esse último, é
interessante notar que se trata de filme que conta a “luta desesperada” do povo mexicano
“para libertar seu país do jugo do governo europeu”. 60 O Nacional também recebia festas,
desfiles de modelos, peças de teatro de revista, entre outras atividades culturais
(GARCIA, 2016, p.173)
Primeiro cineteatro voltado às classes populares, o Colonial inicia suas atividades
em 1940, e, segundo, Yolanda Lemos (2019, p. 85) era mais frequentado pelos negros
assimilados e era “carinhosamente chamado como ‘Clô-Clô’”. Conforme Soares (2015,
p. 133), localizava-se na rua da missão de São Paulo, fronteira entre o Bairro São Paulo
e o Bairro Operário. O Colonial era dotado de lugares com escala de valores, sendo os
mais baratos os dotados de bancos de cimento – localização popularmente chamada de
“pedra fria” – sendo esses últimos os que custavam a metade do preço. Quando lotado,
havia ainda a opção de levar uma cadeira de casa, o que barateava ainda mais o valor do
ingresso (GOMES, 2010).
Sobre o Colonial, Jacques Arlindo dos Santos conta que a partir de uma
determinada data, o referido equipamento cultural passou a ser um “cinema
exclusivamente de negros”, o que, infere-se ocorreu na segunda metade dos anos 1940.
(SANTOS, 1999) O mesmo autor relata uma situação em que uma moradora do Bairro

60
Filme que conta a história da disputa entre o presidente Juarez do México e o Imperador Maximiliano,
nomeado por Napoleão III como governante do referido país. No original o filme chama Juarez e apresenta
uma narrativa de luta pela liberdade contra um governo autocrático. Cf.
https://www.youtube.com/watch?v=BZ7qIlD0ssU. Consulta em 12/01/2021 às 14 h 30 min.

64
Operário teria sido impedida de entrar por ser branca, o que depois foi esclarecido e a
entrada admitida: a jovem fazia parte de umas das famílias bem conhecidas do Bairro
Operário e, embora “muito clara” quanto ao tom de pele, definitivamente não era branca.
O episódio possibilita vislumbrar um pouco do cotidiano luandense do período colonial
eivado de distinções e hierarquias raciais. Pelos periódicos dos anos 1940 e 1950, e, com
menos frequência, nos do começo dos anos 1960, é possível encontrar nos anúncios das
atividades esportivas e culturais essas distinções de preço por categoria jurídica –
indígenas e assimilados – e atravessada por outras gradações como de profissão e de
gênero (BITTENCOURT, 2011, pp. 101-102).
Marcelo Bittencourt, ao analisar as práticas sociais relacionadas ao “esporte
bretão” em Angola no mesmo período, pondera sobre um evento da segunda divisão do
campeonato de futebol noticiado pelo Jornal de Angola em 1954, em que há preços
distintos para camarotes, bancadas e “peão” e dentro desses “espaços” havia preços
diferenciados para que “senhoras” (5$00) e “militares não graduados” (5$00) acessassem
a bancada que habitualmente custava 7$00. Já aos indígenas estava reservado o “peão
lateral” (3$00). “Sem que se mencionasse a ‘cor’(...), as divisões de ordem racial estavam
evidentes”, pontua Bittencourt e reforça que “os lugares – eu acrescentaria, ‘os lugares
sociais’ – estavam definidos de maneira muito direta”. (BITTENCOURT, 2011, pp. 101-
102).
Como observou Andrea Marzano, “o racismo, a tendência a segregação” eram
“pressupostos fundamentais do colonialismo português das décadas de 1930 e 1940”, e,
como demonstra Bittencourt, da de 1950 também. Marzano lança luz sobre o cotidiano
segregador do colonialismo português em Angola no referido período examinando, por
exemplo, destacando casos em que editoriais e notas nos jornais luandenses clamavam a
administração pública que “fossem “enxotados” dos “passeios públicos”, em outras
palavras, das calçadas das partes mais prósperas da cidade, “os pretos descalços”. A
pesquisadora também reflete sobre a “rebeldia” de um jardineiro, que supostamente
embriagado de acordo com as notas dos jornais, buscava impedir que brancos se
sentassem no jardim da Mutamba, que estava aos seus cuidados: “Se bancos de praça
podiam ser reservados aos europeus, por que não destinar alguns para os africanos?”
(MARZANO, 2018, p. 99, 86-88).
Retornando ao episódio do Cinema Colonial, o que importa considerar não é se o
caso relatado por Jacques dos Santos é fático ou anedótico, outrossim, que é
representativo do cotidiano colonial atravessado por hierarquias raciais e distinções

65
segregacionistas. Ademais, como rememora Santos (1999), “nos anos que se seguiram a
sua inauguração se vendiam três classes de bilhetes: para brancos, para assimilados e para
indígenas” e que tais classificações correspondiam, respectivamente quanto a localização
dentro do dito cineteatro, à “superiores, plateias e gerais”. Infere-se que a mudança
posterior que tornou o Colonial em “exclusivamente cinema de negros”, como era comum
acontecer, conforme vêm sendo abordado, não seja uma política oficial baseada em
“regimentos” e “diplomas”, mas uma prática social cotidiana, como reforça Marzano,
“não eram segredo pra ninguém”. Assim, é possível inferir que no recorte temporal em
questão seria “incomum” uma pessoa branca frequentar o dito cineteatro (SANTOS,
1999, p.67). Tomando um exemplo de fora de Luanda, em alguns cineteatros, além da
divisão dos lugares por “status jurídico”, havia determinados filmes que eram proibidos
aos considerados “não civilizados”, como refere Gomes (2010), no Cine Benguela, em
alguns cartazes de filmes havia a “classificação”: “Interdito a Indígenas”.
Diversos memorialistas indicam que os tipos de filme que mais faziam sucesso no
Colonial eram os de ação: “o que estimula os distribuidores a buscarem cada vez mais
‘westerns’, os filmes de ‘capa e espada’ e os de aventura” (SANTOS, 1999, p. 68), e, nos
veículos de imprensa é possível encontrar exemplos como Zorro, O Vingador (A
PROVÍNCIA DE ANGOLA, 11/02/1948, p. 1), O Reis dos Cowboys (A PROVÍNCIA
DE ANGOLA, 11/06/1949), Os Piratas do Mar das Trevas (A PROVÍNCIA DE
ANGOLA, 02/10/1948, p.1), e, destaque-se, Copacabana (A PROVÍNCIA DE
ANGOLA, 02/10/1948, p. 1), filme hollywoodiano estrelado pela brasileira Carmen
Miranda.61 Os relatos sobre o dito cineteatro popular também apontam para a interação
entre a plateia e a película como “gritos de ‘cuidado com o bandido’ ou ‘olha pra trás’”
(SOARES, 2015).
O Restauração começou suas atividades em 1951 e localizava-se em uma das
principais vias do centro da cidade (antiga Álvaro Ferreira, atual Avenida 1º Congresso
do MPLA). Era majoritariamente utilizado pela elite luandense contando, inclusive, com
um camarote presidencial e recebia com alguma frequência espetáculos internacionais,
como em 1961, quando lá se apresentou o ballet da Ópera de Paris (GARCIA, 2016, p.

61
É um típico filme de Hollywood, como muitos dos anos 1940 e 1950, que enunciam uma visão
homogeneizada e exótica da música e dos músicos e artistas latinos, incluindo os vindos do Brasil como a
luso-brasileira Carmen Miranda. Certamente o filme deve ter chamado a atenção do público luandense por
conta de Miranda e suas interpretações musicais sendo uma delas Tico Tico no Fubá (de Zequinha de
Abreu). Uma performance de Tico Tico no Fubá pode ser acessada no link a seguir:
https://youtu.be/mDdeq3Sn1ZA. Acesso em 12/03/2021.

66
177). Nesse espaço se apresentou em 1963, a brasileira Ângela Maria (ABC D. DE
ANGOLA, 17/10/1963, p.2).
Os cineteatros em Angola entre as décadas de 1940 e 1970 funcionavam como um
importante local de sociabilidade, principalmente nos finais de semana, com as exibições
de filmes de praxe, e, também com apresentações musicais de artistas locais ou
estrangeiros, e dentre esses se destacam os brasileiros, peças de teatro, óperas, ballets,
concertos de música erudita, performances do gênero Teatro de Revista e
confraternizações diversas como formatura de estudantes secundaristas. Em decorrência,
o número de salas cresce de maneira exponencial chegando em 1956, para toda Angola,
a 19 salas de cinema em funcionamento (JESUS, 2013, p. 183) e para Luanda, esse
número no ano de 1960 era de 5 salas (GARCIA, 2016, p. 170)

Figura 6 - Uma parte da arquitetura do Miramar


(conforme citado em SOARES, 2015, p. 135).

Em 1959 é inaugurado o Miramar. Esse se destaca pelo tipo de arquitetura, sem


paredes laterais, buscando integrar a instalação a paisagem, que no caso, ensejou a
construção do dito cinema no bairro de mesmo nome, no topo de uma encosta e com vista
para a baia de Luanda. Quanto ao público, era também um local mais frequentado pela
setores médios e pelas classes mais abastadas da cidade. Sobre o Miramar, a jornalista
Rita Garcia registrou:
Poucas experiências terão sido tão memoráveis quanto ver filmes à luz das
estrelas, projectados num ecrã [tela] de 23 metros de comprimento com a
marginal [principal avenida da cidade de Luanda à beira-mar] , os navios e o
cheiro a maresia em pano de fundo (GARCIA, 2016, p.176).

Voltado para um público mais popular é inaugurado em 1963, o Ngola Cine e em


seu evento de abertura exibiu gratuitamente para crianças desenhos animados diversos, e,

67
na seção subsequente, o longa Spartacus (1960), estrelado por Kirk Douglas (ABC
DIÁRIO DE ANGOLA, 16/09/1963). É interessante notar que a película retrata a história
do escravo-gladiador do Império Romano, ou seja, conta a história de uma revolta das
classes subalternas contra um poder central, uma analogia que poderia ser feita em relação
a luta anticolonial em Angola. Não há indícios de que alguma restrição ou interdito tenha
sido feito em relação à Spartacus, mas houve restrições quanto ao filme A Queda do
Império Romano, filme que motivou o diretor da PIDE a escrever para a comissão de
censura recomendando que esse tipo de produção não fosse apresentado ao público
daquele cinema “na sua maioria constituído por africano menos evoluídos”(BOSSLET,
2014, p. 136). É provável que o que tenha chamado a atenção do agente da polícia política
não seja o conteúdo em si, mas a menção a queda de um império em seu título, o que
possivelmente poderia, na concepção do policial, favorecer alguma leitura que aludisse a
“queda” do domínio português sobre Angola. Como demonstrou Marissa Moorman,
muitas vezes os agentes do Estado Colonial Português eram atravessados por
“nervosismo” e “paranoia” e viam possibilidades de “subversão” em todos os lugares
(MOORMAN, 2018).
Sobre o N’Gola Cine e demais cinemas para os moradores da área suburbana, Ana
Fonseca assinala que “nos espaços mais frequentados por negros”, o governo colonial
disporia os filmes que considerava mais adequados a esse público, “cowboizadas,
portanto”, se referindo a filmes do gênero western, indicando a ação da censura prévia
sobre os filmes (FONSECA, 2009, p. 277). Como exemplo é possível citar alguns dos
filmes exibidos no dito cineteatro em 1964 – cujos títulos nem sempre correspondem a
uma tradução exata do original – como Cheyenne, o Rei do Oeste (ABC Diário de Angola,
04/07/1964, p. 2), Texas (ABC Diário de Angola, 11/07/1964, p. 2), O Pistoleiro Negro
(ABC Diário de Angola, 01/08/1964, p. 2), Cheyenne Enfrenta Emboscada (ABC Diário
de Angola, 01/08/1964, p. 2), entre outros.
O público do Ngola Cine vinha principalmente do Bairro Operário, Bairro Popular
de São Paulo, Rangel, Marçal e de outras partes periféricas de Luanda. Nesse mesmo
cineteatro acontecia na segunda metade da década de 1960, as quintas-feiras o espetáculo

68
O Dia do Trabalhador que contava com a participação de grupos considerados folclóricos
como Ngoleiros do Ritmo e Os Kiezos.62
Sobre a frequência aos cinemas na década de 1960, o angolano Aníbal Pedreira
em entrevista a pesquisadora Yolanda Lemos comenta:

Muitas pessoas o frequentavam? Ficavam muito cheias, as salas?


AP: Sim, muita gente. Já havia alguns cinemas durante muitos anos, mas de um
momento para o outro, principalmente com a enorme chegada de portugueses,
Luanda ficou com uma sociedade de consumo muito movimentada nesta área de
diversão, e, sobretudo, os cinemas. Construíram tantos cinemas e durante certo
tempo, só se via estas salas cheias, principalmente nos fins de semana. Mais tarde,
as pessoas habituaram-se a ir aos cinemas até nos dias de semana. Estou a falar
essencialmente em Luanda.

Esta atividade de ir ao cinema era um luxo na época, ou qualquer pessoa o


podia fazer? Qual era o preço de um bilhete?
AP: Não era barato. Havia estes cinemas mais baratinhos: o Cine Colonial, o
N’Gola Cine. Mas não era nada proibitivo. Um casal que trabalhasse, iam com a
maior facilidade ao cinema, sem precisar de estar à espera do fim do mês. Iam ao
cinema e depois ceavam na esplanada. Para muita gente, não havia o hábito
porque também, havia autossegregação. Muitas pessoas não gostavam ir a sítios,
porque achavam que era “programa dos brancos”. Eu nunca tive este tipo de
complexo, eu ia aonde quisesse, independentemente de quem fosse. No Cinema
Restauração, posteriormente, inventaram um “estúdio”, e fui um grande
espectador porque inventaram os bilhetes de estudante, cerca de dez escudos, que
era um bocado da semanada que eu recebia e permitia ir lá com frequência. E
havia sessões à tarde, mesmo em dias de semana (Conforme citado em LEMOS,
2019, pp. 272-273).

Percebe-se pelo seu relato, que Pedreira era um angolano negro ou mestiço
oriundo de uma família que não era “despossuída” em termos financeiros. Em outro
momento de seu relato comenta que ia ao cinema “de boleia” – “carona” – com os pais
indicando que a família tinha veículo próprio. Destaca-se também que recebia alguns
recursos de seus pais para o lazer, conforme seu comentário de que recebia uma
“semanada”, o que é também indicativo que fazia parte de uma família pertencente aos
estratos médios da sociedade angolana. Pedreira também comenta que morou no Lubango
para estudar, indicando mais uma vez o poder aquisitivo da família que podia manter
financeiramente o filho em outra cidade.
Outro ponto a se destacar de seu relato é a sua percepção sobre as tensões raciais
e o preconceito nos centros urbanos em Angola. Além de obviamente ser uma percepção

62
Em 1963, outro cinema nas áreas populares, o São João, é inaugurado. Outra sala cujo público é mais
“popular” é o Kilumba Cine, inaugurado em 1970. Optei por destacar aqui os cinemas que mais aparecem
nas fontes como lócus de apresentações musicais, sobretudo, àquelas que eram feitas por artistas brasileiros.

69
pessoal, é preciso ressaltar que seu relato foi dado 50 anos depois, no final da década de
2010, e, portanto, a construção de sua memória pode ter passado por processos que
valorizam mais algumas situações em detrimentos de outras. Em outro momento de sua
entrevista declara:

De alguma forma, sentiram e de que forma sentiram separatismo (exclusão


racial ou social) ao frequentar estes equipamentos?
AP - Em Luanda não. Poderia haver um resquício em qualquer momento, mas
essencialmente em Luanda (e estou a dizer esta cidade com rigor porque nós
íamos mesmo a estes cinemas aonde a população negra era pouca), sentíamos
pouco. Não era Angola toda assim. Não vamos confundir Luanda com Angola,
porque a capital foi sempre diferente, aliás, a maior multirracialidade existia ali,
não só nos cinemas, como nos liceus, escolas, etc. Nunca senti isso, mas estou a
falar por mim. Mas Luanda engana, porque quando saímos desta cidade, víamos
que não era bem assim. Vou dar agora o exemplo do Lubango: vivi lá como
estudante e parte da minha família é dali. Tive de me aperceber sozinho (e nunca
perguntei a ninguém), que quando íamos todos em grupo, nos reuníamos à porta
do liceu e descíamos o velho “picadeiro”, as pessoas iam ficando nos cafés.
Reparei que os cafés mais conceituados na rua eram para os brancos e os negros
iam para os bairros suburbanos. Isso para mim não funcionava, eu frequentava o
café que me apetecia. Senti algumas vezes um ambiente pesado pela minha
presença, mas não era nada, além disso. Moçâmedes era um bocado pior. Uma
cidade mais pacata, mas tudo era mais acentuado (conforme citado em LEMOS,
2019, p. 272-274).

Mais uma vez é preciso ressaltar que a memória enquanto fenômeno social e uso
do passado pode valorizar ou sublimar certos aspectos das experiências de um indivíduo
ou grupo. As leituras do passado construídas pelos “retornados” que se deslocaram dos
territórios africanos para Portugal após a revolução dos Cravos em 1974 e as
independências em 1975, sejam as proferidas em entrevistas a jornalistas e
63

pesquisadores, sejam as descritas em livros autobiográficos e retratadas em obras


literárias que utilizam elementos da história de vida do autor ou de seus familiares, tem a
especificidade de retratar a Angola do período colonial como a “terra prometida”
(FONSECA, 2009). Para esses que se estabeleceram na “metrópole” – ou em outras
localidades como o Brasil – a terra deixada para trás ficou marcada na memória como um
Éden, um “paraíso perdido” do qual se foi expulso, como observou Tania Macêdo (2020,
p. 118), uma visão sobre o passado que olvida o cotidiano violento e racista do
colonialismo.
O relato de Pedreira contrasta com o de muitos outros que relatam o racismo e a
exclusão em Luanda. Weza (2007, p.71) indica que certas casas noturnas de Luanda

63
Aníbal Pedreira se mudou para Lisboa em 1978, cf. (LEMOS, 2019, p. 123).

70
interpunham inúmeras dificuldade a admissão de clientes negros, chegando a vedar
explicitamente o acesso em algumas ocasiões. Já o músico Dom Caetano conta que
quando jovem em Luanda, para assistir ao espetáculo do músico estadunidense Percy
Sledge – que, a propósito, era um artista negro64 – teve se passar por “criado” de seu amigo
branco para ser admitido no estabelecimento onde se realizaria o show (GOMES, 2021,
p. 207)

1.5- “Quando começou a guerra colonial não havia tiros em Luanda”:65


vida social e cultural em tempos de guerra (1961-1974).

A referida declaração sobre a “guerra colonial” foi dada pela compositora Ana
Maria de Mascarenhas no documentário O lendário Tio Liceu e o Ngola Ritmos de Jorge
Antônio (2010). Nesse ponto da película, um pouco antes da declaração de Mascarenhas,
o cineasta apresenta filmagens de arquivo que ilustram a guerra colonial: soldados
disparando, um veículo blindado avançando por uma clareira, entre outras. Em seguida,
apresenta imagens da vida noturna em Luanda e dentre estas é possível vislumbrar os
letreiros luminosos de inúmeras casas noturnas, restaurantes, bares e boates. Ana
Mascarenhas acrescenta: “daí que os portugueses, a burguesia portuguesa continuava a
fazer sua vida normal. Passeios, boates, piqueniques, idas ao Mussulo”. 66
A declaração da compositora e a narrativa fílmica construída por Francisco
Antônio conseguem ilustrar bem, com ressalvas, o contexto da cidade de Luanda na
década de 1960 e em parte da primeira metade da de 1970. É preciso demarcar que tal
visão na maior parte do tempo de fato correspondeu à realidade: enquanto a maior parte
dos conflitos armados ocorria nas regiões próximas às fronteiras, em Luanda a vida social
fervilhava. Ricos e pobres, brancos e negros, guardadas as devidas proporções e

64
Para imagen de Percys Sledge, ver o link a seguir https://www.gettyimages.no/photos/percy-sledge.
Acesso 18/05/2021 às 09 h 00 min.
65 Frase da compositora Ana Maria de Mascarenhas no documentário O lendário Tio Liceu do Ngola Ritmos

(ANTÔNIO, 2010).
66 Idem. Mussulo é uma área de veraneio luandense.

71
diferenças, continuaram indo ao trabalho de segunda a sexta e buscando algum
divertimento nos fins de semana.

Figura 7 - Revista Notícia 14/09/63, p.35.

No entanto é preciso demarcar que a luta anticolonial se fez sentir sim em Luanda,
quando, a despeito da memória construída por Mascarenhas e do que a película de
Francisco Antônio enuncia, muitos tiros foram dados em Luanda, a começar pelas ações
deflagradas em fevereiro de 1961 por grupos armados que lutavam contra o colonialismo
luso.67 No dia 4 de fevereiro daquele ano, tais grupos atacaram unidades das forças de
segurança em Angola como a cadeia de São de Paulo. O objetivo era libertar presos

67Vale destacar que em dezembro de 1960 e janeiro de 1961 ocorrem as revoltas na região do Cassange,
região que fica 700 km a leste de Luanda e próximo à fronteira com o Congo-Kinshasa, empreendida pelos
camponeses algodoeiros que prestavam serviço a Cotonang. De acordo com Bittencourt, ao analisar
documentação da PIDE, os levantes ocorreram em resposta à aguda exploração a que os trabalhadores eram
submetidos e, conforme registrado no relatório da PIDE, “contra injustiças que o governo não ignora e que
a muito deseja ver banidas” (BITTENCOURT, 2002, p.63). De acordo com a jornalista Ana Sofia Fonseca,
conforme depoimento que colheu de um dos inspetores do Gabinete de Negócios Políticos, o estado de
desnutrição destes camponeses era alarmante: “milhares de agricultores famintos levantam-se contra os
males do colonialismo (...). A tropa responde às suas catanas e canhangulos [arma de disparo “artesanal”]
com rajadas de metralhadora e bombas de Napalm” (FONSECA, 2009, p.90).

72
políticos – indivíduos e grupos que agiam clandestinamente criticando o domínio lusitano
através, por exemplo, da distribuição de panfletos, dentre as mais diversas atividades de
contestação, e que foram detidos pela polícia política portuguesa, a PIDE – e chamar a
atenção internacional para o caso angolano. 68
Os jornais angolanos a partir do dia cinco de fevereiro noticiaram de maneira
sucinta o ocorrido enfatizando mais a comoção causada na cidade durante o enterro dos
agentes de segurança mortos na ação do que detalhes ou motivações para o ataque, a não
ser ilações de que teria planejamento “externo”, ou seja, por influência de países ou
organizações comunistas. O Comércio de 04/02/1961, na chamada da matéria na capa da
edição, atribuiu à tentativa de libertar os presos políticos a “agitadores vindos do exterior
e que obedecem às ordens dos comunistas”. O mesmo veículo em 06/02/1961(p.6):
“constituiu esmagadora manifestação de toda população da cidade o funeral dos agentes
caídos no cumprimento do dever”. A mesma edição traz também uma notícia que Galvão,
o militar anti-salazarista que liderou o sequestro do paquete Santa Maria, teria exultado
ao saber dos ataques em Luanda e que estes teriam sido ordenados por ele e seu superior,
o também oposicionista General Delgado. No dia seguinte, 07, ainda O Comércio
reproduz matéria do jornal espanhol ABC qualificando Delgado e Galvão como “parte do
comunismo internacional”. A mesma retórica volta a aparecer em 22/02/1961(p.4):
“agitadores vindos do exterior e que obedecem às ordens dos comunistas”.
É interessante notar que a vida cultural na cidade não é interrompida. No dia 5, de
acordo com o jornal O Comércio, haveria diversas sessões de filmes nos cinemas
Restauração, Tropical, Nacional, Colonial e Miramar. No mesmo dia, o Diário de
Luanda estampava na capa a manchete “Funeral conjunto dos agentes da ordem que
tombaram no cumprimento do dever”, e, algumas páginas depois propagandeava a estreia
de um conjunto de música “típica” espanhola, Trio Andaluzia, na boate Bamby Dancing.
Seguindo a cobertura dos periódicos, na noite do dia 10/02 por volta das 23 h
ocorre novo ataque a cadeia de São Paulo: “reprimida uma tentativa de alguns
bandoleiros”, estampa um dos jornais (O COMÉRCIO, 11/021961, p.1). Mais uma vez, a
despeito dos conflitos armados e da comoção na cidade, a programação cultural segue
com normalidade. Dois dias depois, dia 12, O Diário de Luanda (capa), dá destaque ao
espetáculo Holiday on Ice que estreou no dia anterior no Estádio dos Coqueiros,

68Segundo Bittencourt, os ataques foram também “animados” pela série de contestações ao Salazarismo do
período e ao colonialismo, quais sejam, a revolta da baixa do Cassange e a expectativa de que o navio Santa
Maria seria usado para atacar tropas portuguesas em Angola (BITTENCOURT, 2002, p. 69).

73
apresentação artística sobre patins que mescla dança, malabarismo e outras artes cênicas.
Vale destacar que compareceram ao evento o governador geral e o chefe das forças
armadas, infere-se que num esforço para aparentar normalidade diante da tensão pela qual
passava a cidade de Luanda.
Na segunda quinzena de março do mesmo ano, um novo fato político vai abalar
Angola. Os ataques a fazendas e postos de administração lusos que vitimaram centenas
de colonos brancos, mestiços e trabalhadores africanos no norte do país realizado pela
UPA (União dos Povos Africanos) liderada por Holden Roberto, que no ano seguinte
daria origem a FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola). Este foi o ataque de
maior envergadura do período e que mais mortandade causou. Mais uma vez, a cobertura
jornalística atribui a inspiração a “elementos estrangeiros”: “Atos de malvadez instigados
do exterior”, estampou na capa O Diário de Luanda (17/03/1961). No mesmo veículo,
dias depois: “Só sabiam expressar-se em francês os principais cabecilhas dos criminosos
(...) o que vem a confirmar a origem externa do assalto ao nosso congo”.
Novamente, a vida cultural da cidade segue seu curso normal. Alguns dias depois,
em 25/03/61, apresenta-se no Miramar, o brasileiro Ivon Curi que “ovacionado ontem
pelo público apresenta um novo recital de canções” (DIÁRIO DE LUANDA, 25/03/61,
p. 2). 69 Na imprensa brasileira, a cobertura dá mais destaque a pressão internacional sobre
Portugal para que inicie um processo de reformas que conduza a autonomia de Angola
(O Globo, 20/03/1961). 70
Embora as atividades culturais prossigam isso não quer dizer que a cidade
estivesse em um clima que seria considerado normal. Ao contrário, nos jornais aparecem
matérias, declarações e editoriais que diziam que era preciso “serenidade, mas também
firmeza”. Como aponta Juliana Bosslet, notas nos jornais pediam calma, o fim dos boatos
e que se deixasse a “manutenção da ordem” às forças de segurança, ou seja, tentava se
evitar “justiçamentos”. Segundo Bittencourt, há uma disputa entre a PIDE e a Polícia de
Segurança de Pública (PSP), essa última acusando a primeira de, no afã de combater a
“subversão antilusitanas”, ser conivente com as ações dos esquadrões da morte formados
por brancos que caçavam e matavam africanos indiscriminadamente como resposta a
morte dos agentes nas ações armadas nacionalistas de fevereiro. Já a PIDE acusava a PSP
de ser leniente quanto à subversão dos africanos (BITTENCOURT, 2002, p.40-41).

69Curi também esteve se apresentando em Luanda em 1959 (ABC Diário de Angola, 02/11/1959, p. 7).
70 Vale ressaltar que o periódico carioca reproduz o posicionamento oficial do governo português
reproduzindo o termo “terroristas”.

74
A perseguição ao povo dos Musseques foi retratada pela canção Monami Zeca do
Ngola Ritmos, a letra diz:

Meu Filho José, não saia de casa, há muito perigo nas ruas. Se você ficar, sei que
vamos amanhecer juntos. Mas como sei que quando eu adormecer você vai sair,
peço a Deus para trazê-lo de volta inteiro. 71

“Já havia a PIDE e os bufos. Grupos que andavam de farolim na testa e na calada
da noite matavam quem não fosse branco” (MATETA, 2010, s/p) recordou o músico
Amadeu Amorim em entrevista ao Jornal de Angola ao comentar a conjuntura da época
e como estas foram retratadas nas canções do Ngola Ritmos. É possível encontrar relatos
similares nos acervos da PIDE, em correspondências trocadas entre células de um mesmo
grupo de ação do MPLA acerca da conjuntura angolana no período:
Continua no Bairro Operário os bárbaros espancamentos perpetrados por
elementos dos ditos comandos aos moradores negros, perante a indiferença da
polícia militar de serviço. Estes, a maior parte das vezes, colaboram com os
referidos comandos. Lamenta-se o fato de que entre os grupos de bandidos (...)
se encontram indivíduos cá nascidos (ANTT/PIDE/DGS/UI 17911).

Marcelo Bittencourt destaca que após as ações de fevereiro e março de 1961,


seguiu-se uma violenta ofensiva portuguesa empreendida pelos braços do Estado, como
Polícia de Segurança Pública, o Exército e a PIDE, e, também a realizada pelos grupos
paramilitares de colonos que perseguiam indiscriminadamente os africanos nos
musseques (BITTENCOURT, 2002, p. 94-95).
Como se pode depreender, a assunção de que não havia guerra em Luanda precisa
ser problematizada. Seus reflexos se fazem sentir na capital angolana, sobretudo nos
musseques. Conforme Bosslet, ao analisar a documentação da PIDE, são inúmeros os
relatos de conflitos raciais nas áreas mais pobres de Luanda. Mais uma vez recorrendo ao
processo decorrente da prisão do grupo de ação Nzaji:

No bairro Cazenga, dois garotos – um branco e outro negro – de, se tanto, 8 a 10


anos de idade, brincam jogando a bola. Às páginas tantas pegam-se ao soco. O
garoto portuga sai derrotado e vai para a casa todo choroso, dizendo ao pai que
“O PRETO BATEU-ME”. O pai dele não fez mais que pegar em uma pistola e
disparar três tiros aos quais atingiram o garoto angolano no peito, matando-o. O

71Tradução de acordo com texto disposto na capa do álbum Origens (1973) de Martinho da Vila. A letra
original em língua tradicional é: Munani cotundê cotundegole/ Munami zê caiê movungumone/ Ai munami
zambiamiê/Ai munami zambiamiê/ Munami zê caiê movungumone/ (...) Munami umbolo gui sambila
querie/ Munami zê caiê movungumone”. Há outra canção angolana, famosa na voz de Lourdes Van Dunnen
também chamada Monami cuja história é sobre uma mãe que perdeu um de seus filhos (ALVES, 2015, p.
79).

75
pai deste ao saber do ocorrido não fez que pegar em uma catana e corta aos
bocados o garoto portuga. Depois disso, no referido bairro, gerou-se tamanha
confusão que (...) [requisitaram] a presença da polícia militar
(ANTT/PIDE/DGS/UI 17911).

Comerciantes portugueses, em geral, nas suas desavenças com clientes negros ou


mestiços por preço de produtos ou mau atendimento, chamavam a polícia, e, acusavam
seus contentores de subversivos. Documentação citada por Bosslet registra: “tem sido
alertado o pessoal da PSP, sobre falsas queixas de subversão originadas por vinganças
pessoais” (BOSLET, 2014, p. 143). Por exemplo, a prisão de um indivíduo que “foi
denunciado a PIDE por sua sogra, com quem teve uma zanga, alegando esta que ele fazia
reuniões políticas em casa” (ANTT/PIDE/DGS/UI 17911, p. 177). Outro dos casos levou
a prisão de mais de uma centena de populares que hostilizaram o dito comerciante e
apedrejaram seu estabelecimento. Outro problema comum que foi investigado pela PIDE
era relativo aos abusos do exército, que na década de 1960 ganhou também a atribuição
de atuar na segurança pública.

Compareceram neste comando da PM/RMA em (...) 30/10/1961 as


africanas Adelaide Daniel, solteira, de 43 anos (...) e Ester de Lança
Fragoso, solteira, de 36 anos, moradoras do B.O. [Bairro Operário] a
participar que nos últimos dias grande número de militares, incluindo
paraquedistas, praticam distúrbios, agridem os moradores daquele bairro,
não tem o devido respeito com as senhoras, tentando às vezes entrar na
própria residência (ANTT/PIDE/DGS/BAIRRO OPERÁRIO/ Dinf.1ª/
15/12/61/UI 2085).

São diversos os relatos como: explosões de granadas por capricho dos soldados,
invasões a residências, abusos sexuais, roubo, entre outras arbitrariedades. Mais um
motivo de distúrbios nos musseques era a própria atuação opressiva da polícia e a resposta
dos moradores destas regiões, em geral, dada sob a forma de pauladas e pedradas.
Ainda de acordo com Bosslet:
Nota-se que, em Luanda, quem (...) semeava a tensão entre a população não eram
os temidos inimigos da pátria, terroristas a soldo do estrangeiro, mas os próprios
agentes da ordem. A população dos musseques, exposta a atos de violência (...),
muitas vezes reagia agredindo policiais e militares. Quando o faziam, tornavam-
se logo suspeitos de fazer parte das temidas organizações subversivas
(BOSSLET, 2014, p. 152).

É possível encontrar indícios dessa repressão nos jornais luandenses. O Diário de


Luanda (17/06/61, p. 9) traz uma nota indicando que no musseque Rangel, um indígena
foi preso por “incitar outros a prática de atos subversivos”. Em todo caso, a cobertura

76
sobre tais eventos entre os populares e a polícia ou o exército nunca é muito detalhada.
Os referidos conflitos destacados pela documentação da PIDE que, por vezes, levaram a
prisão de dezenas de pessoas não aparecem nos jornais. Infere-se que a ausência de tais
ocorrências nos jornais se dá justamente para não estimular mais enfrentamentos, além
do fato de que os jornais passaram a enfrentar uma censura prévia mais rigorosa a partir
de 1961.
Continuando a incursão pelos periódicos, percebe-se que no ano de 1961, a vida
cultural de Luanda segue com certa normalidade. O consumo de atrações culturais e
gêneros musicais pelo público luandense de cinemas e boates é bastante variado. Há
referências a ritmos brasileiros e ao que é chamado pelos jornais de “yé-yé-yé”, ou seja,
a maneira angolana de fazer “rock”. 72 O Diário de Luanda de 21/06/61 anuncia no Chá
das seis e meia: “os rocks, conjunto angolano, superiores intérpretes de música moderna”
e “a muita apreciada Mina Jardim, das mais aplaudidas cançonetistas do Bossa Nova”73.
As sessões de cinema ao longo deste ano permanecem normais e constantes no Miramar,
Restauração, Tropical, Colonial e no Nacional. Neste último, destaca-se a exibição de
uma atração brasileira de música e dança: o espetáculo “um brasileiro em Portugal” do
Ballet Brasília Show.74 Ainda em 1961, o Diário de Luanda (09/09/1961, p.2) anuncia no
Nacional a Companhia Brasileira de Revistas com o espetáculo Gosto que me enrosco:
“com Eva Todor, uma rajada da boa graça e da música popular do folclore do país irmão”.
A imprensa luandense dá um relativo destaque à temporada do comediante
brasileiro José Vasconcelos em 1962 e seu show Eu sou o espetáculo (DIÁRIO DE
LUANDA, 24/03/1962, p.3). Já em 1963 o destaque é dado a tournée da cantora Ângela
Maria que foi a Angola às expensas das Forças Armadas Portuguesas para cantar para os
soldados. As declarações de Ângela e as descrições da imprensa reproduzem algumas das
ideias acerca da relação entre Angola e Brasil: o, por vezes idealizado, ideário de um
“retorno” a terra natal – “sinto-me felicíssima por estar em terras de meus avós” ( P. DE
ANGOLA, 31/08/1963, p.3), declarou a cantora – e, implicitamente, a da ação portuguesa
como engendradora de sociedades mestiças e supostamente harmoniosas, assim, a cantora
é descrita pelo jornal angolano como a “a sapoti, fruto doce, moreno e pequenino do
Brasil”. Já a imprensa brasileira registra o apoio inconteste da cantora ao salazarismo. De

72E que no Brasil ficou conhecido como Jovem Guarda, o que será tratado mais à frente.
73Minah Jardim é uma cantora angolana de um grupo de rock local chamado “Bossa Nova”. Note-se que
o sentido dado à expressão bossa nova não é o mesmo que no Brasil.

74 O show business luandense recebe artistas brasileiros bastante conhecidos e outros nem tanto.

77
acordo com O Globo, a cantora quando em Lisboa antes de embarcar para Luanda, leu,
em programa da TV portuguesa, uma carta de apoio a Salazar, alegando falar em nome
do povo brasileiro, criticando o posicionamento da diplomacia brasileira na ONU quanto
às questões portuguesas. Declarou ainda que “era autêntica luso-tropical, pois os avós
maternos foram de Angola e os paternos de Portugal Continental” (O GLOBO,
12/09/1963, p.12).
É possível acompanhar esse crescimento populacional e econômico pelos
anúncios das sessões de cinema nos jornais. Em 1961, o Diário de Luanda (25/03/1961,
p.2) anuncia sessões em 5 cinemas – Miramar, Restauração, Tropical, Nacional e
Colonial. Em 1966, o A Província de Angola anuncia mais de 10 salas, e, às salas já
citadas, somam-se outras 5: Avis, Tívoli, Império, São João e Ngola Cine. Umas das mais
luxuosas era a do Avis, onde, de acordo com Ana Fonseca, “cada estreia é um
acontecimento. As senhoras ostentam luxos” e “desfilam orgulhosas na sua estola de
visom ou raposa” (FONSECA, 2009, p. 269).
Foi no Avis e no Miramar que Elis Regina e Jair Rodrigues se apresentaram em
1966. Os artistas brasileiros fazem duas apresentações no mesmo dia, a primeira no final
da tarde no cinema Miramar e a segunda as 21h no Aviz, numa estratégia do produtor
Monteiro Torres da empresa Sulcine para conseguir atingir o maior número possível de
espectadores e assim conseguir viabilizar a tournée. Disse Torres ao Diário de Luanda
que ao somar as passagens com o cachê do grupo artístico daria “mais de 300 contos”
(DIÁRIO DE LUANDA, 27/02/1966, p. 10).

Sendo acompanhados pelo Zimbo Trio – Hamilton Godoi (piano), Luís Chaves
(contrabaixo) e Rubinho Barsot (bateria) – Jair e Elis apresentaram nos palcos luandenses,
pela descrição do repertório constante no jornal A Província de Angola (01/03/1966,
p.12), o mesmo do famoso show Dois na Bossa com clássicos de Tom Jobim e Vinícius
de Morais (O morro não tem vez), Cartola (O Sol nascerá/ A Sorrir) e Zé Ketti (As velas,
A voz do morro), entre outros, e que posteriormente foi lançado em Long Play em 1966.
Entretanto, aparentemente o show não entusiasmou os angolanos. “Luanda não soube
ver” diz a chamada da matéria da revista Notícia (12/03/1966) aludindo a uma procura de
ingressos menor que o esperado. Quando perguntada sobre a receptividade do público,
Elis respondeu: “Não é culpa do público (...). O público do Aviz foi muito bom. O que se
passa é que ele está mal-informado. Não conhece a atual música brasileira”. E depois lista
aqueles que considera os grandes nomes da música brasileira de seu tempo: “Edu Lobo,

78
Baden Powell, Vinícius, Geraldo Vandré”. Note-se que são nomes da bossa nova ou da
vertente “nacional-popular”. 75

É importante destacar que desde o lançamento de Chega de Saudade em 1959,


considerado o marco inicial da bossa nova, a música brasileira passa por importantes
transformações estéticas e sonoras. Se antes o que se valorizava eram os sambas-canções,
boleros e marchinhas em tom grandiloquente com acompanhamento de orquestra e
cantado por vozes poderosas como as de Orlando Silva e Francisco Alves, com a bossa
nova, o que se buscava eram apresentações contidas e minimalistas, por vezes só com o
acompanhamento de um violão. Certamente, os cantores populares do rádio continuaram
produzindo e sendo consumidos por significativas parcelas do público brasileiro e pelo
público angolano, mas a grande novidade do cenário musical nacional, simbolizando
modernidade e distinção, era a bossa nova. E este foi o cerne do show de Jair & Elis em
Luanda: um gênero musical baseado no samba que dialogava com o cool jazz
estadunidense – gênero com uma estética sonora mais contida que boleros e marchas –
que buscava “traduzir” para o piano, contrabaixo acústico e bateria, o ritmo e a sonoridade
de um pandeiro e de um tamborim. Caetano Velloso em meados da década de 1960
defende em suas entrevistas, artigos, livros e em seu disco-manifesto Tropicália, que a
bossa-nova ao recombinar elementos vistos como tradicionais e outros entendidos como
modernos ou “estrangeiros” retomava a “linha evolutiva” da música brasileira, paradigma
que o artista dizia seguir ao incorporar guitarras as suas composições superando a
dicotomia MPB versus Jovem Guarda (NAPOLITANO, 2001; ARAÚJO, 2002).

Mais um aspecto diferenciava os sambas-canções, boleros e marchinhas da bossa


nova e da corrente “nacional-popular”: as temáticas das canções engajadas e o conteúdo
crítico de algumas canções. O Morro não tem vez (Vinícius de Morais/Tom Jobim),
descrito no A província de Angola como parte do repertório de Elis, por exemplo, diz:
“Escravo no mundo em que estou/ Escravo no reino em que sou/Mas acorrentado
ninguém pode amar/Mas acorrentado ninguém pode amar”. A letra é uma crítica à
desigualdade sócio racial brasileira e sua relação com as heranças da escravidão presentes

75Em meados da década de 1960 duas correntes musicais estavam em oposição: uma vertente “nacional-
popular” derivada da bossa cujos principais expoentes eram Edu Lobo, Elis Regina, Geraldo Vandré, entre
outros, e, a Jovem Guarda, vertente de Roberto Carlos, Erasmo e Wanderleia, que era inspirada no rock
inglês e estadunidense. A primeira tinha canções engajadas em suas temáticas que buscavam retratar os
problemas sociais e as dificuldades do povo. Um exemplo foi o show Opinião em que Nara Leão divide o
palco com Zé Kéti, cantando o cotidiano e os problemas do morro, e Joao do Vale cantando as dificuldades
do Nordeste. A segunda vertente era mais conhecida por suas temáticas lírico-amorosas. Ver Santos (2014),
Napolitano (2001), entre outros.

79
nos morros e favelas cariocas, desigualdade essa, que em alguma medida era similar a
que ocorria nos musseques luandenses durante a exploração colonial. O Província de
Angola também relaciona os principais sucessos de Jair e dentre esses está Garoto de
Morro: “Garoto nascido em barraco de zinco/No morro sem água de barro batido/ Que
veste farrapo de roupa esmolada/ (...) Que corre e se esconde do homem fardado” Infere-
se que Jair e Elis pouco soubessem sobre o cotidiano angolano em contexto de guerra.
Suas apresentações se restringiram aos referidos cinemas nas áreas mais prósperas da
cidade e sua circulação, ao que indicam as matérias da imprensa local, seguiu o mesmo
padrão.

Também é plausível inferir que os cinco artistas brasileiros – incluindo o Zimbo


Trio – pouco soubessem sobre a chamada “guerra colonial” e as demandas dos
nacionalistas angolanos. Os jornais brasileiros trazem pouquíssimas notícias sobre as
colônias portuguesas na África. O jornal O Globo, por exemplo, em fevereiro e março de
1966 – período em que Elis e Jair passaram por Luanda – dá diminuto enfoque ao conflito
em Angola. O que se destaca é que o periódico carioca secunda a posição de seus
congêneres angolanos e portugueses: a de que nas outras “províncias do ultramar
português” atuam “grupos terroristas”. Em sua edição de 23/02/1966 (p.8), o referido
órgão traz uma pequena nota sobre o número de baixas portuguesas no enfrentamento ao
dito “terrorismo”: oitocentos e dezoito. Já sua edição de 25 de março (p.8) do mesmo ano
destaca declarações de Salazar de que, ao contrário do que enuncia a ONU, Angola,
Moçambique e Guiné não teriam “nacionalismos específicos” e que os ataques “são
dirigidos por estrangeiros”.

É preciso destacar, como já abordado, que Portugal exercia no Brasil um eficiente


lobby sobre a maior parte da imprensa, autoridades do poder executivo e membros do
poder legislativo. Havia vozes dissonantes, como as dos intelectuais ligados ao já citado
MABLA, porém estas tinham pouco alcance na grande imprensa, de modo que a narrativa
dominante era a posição pró-salazarista de que na “guerra do Ultramar” os soldados
portugueses combatiam os “terroristas” financiados pelo “comunismo internacional”.
Vale também lembrar que, em tempos de guerra fria, o tom dos veículos de comunicação
brasileiros quanto às questões internas era muito similar ao de seus pares lusitanos e
angolanos, qual seja, o de rejeição a ideias socialistas e comunistas.

Tal qual a bossa nova de cariz nacional-popular, o semba angolano também possui
conteúdo e formas críticas. Em decorrência, em Angola, composições foram censuradas

80
e músicos perseguidos. Especificamente em relação ao grupo Ngola Ritmos, seu líder
Liceu Vieira Dias e outro integrante, Amadeu Amorim, foram presos em 1959, outros
foram transferidos para fora da capital como Euclides – Fontinhas – de modo que o
conjunto passou por um período de desarticulação. Posteriormente recebe a adição de
novos membros e continua em atividade. No que concerne à forma das canções, ao
interpretar os gêneros considerados “folclóricos”, utilizando instrumentos entendidos
como tradicionais como as ngomas e o dikanza, e, nas línguas originárias angolanas, o
Ngola sofreu resistências do público com alto poder aquisitivo das boates e cinemas de
elite de Luanda. Significativo, e relatado em diversas obras como documentários e relatos
memorialísticos (ANTÔNIO, 2010; WEZA, 2007) é o episódio dos anos 1950 em que o
conjunto de Liceu é vaiado e chamado pejorativamente de “mussequeiros” em um dos
cineteatros da “baixa”. Como acrescenta Ana Fonseca, “cantar em quimbundo é grito de
revolta”. Alguns anos mais tarde, o Ngola Ritmos ganhou a aprovação de boa parte da
sociedade angolana e passa a ser reconhecido e apreciado como “o facho maior do
folclore angolano” (ABC DIÁRIO DE ANGOLA, 24/02/1959, p.5) e, por conta desse
status “representativo” da cultura nacional, é comumente convidado a apresentar a música
angolana a personalidades estrangeiras. Apresentaram-se para Carmélia Alves em 1958 e
– conforme figura I – para Jair e Elis em 1966.

Quanto ao conteúdo crítico das canções, para exemplificar, é possível citar a


canção Mbirim Mbirim, do Ngola, que em um trecho que diz “não queremos convivência
com sapos”, se referindo aos portugueses (WEZA, 2007, p.51). Já no documentário de
Antônio Ole, o referido grupo apresenta uma canção com uma temática ainda mais crítica:
“recusamos quando vos trazem pra cá/Vocês vem pra cá para aprender a ler e escrever”,
referindo-se à uma parcela dos portugueses recém-chegados à Angola que, mesmo
analfabetos, ocupavam postos de trabalho melhores que os dos angolanos.76 Pelos indícios
sugeridos pela leitura dos periódicos e das fontes memorialísticas, é possível concluir que
estas canções com temas mais contundentes não fossem performadas em todos os espaços
onde se apresentavam, visto que parte dos colonos portugueses e dos angolanos
identificados com o ideal da nação portuguesa “do Minho ao Timor” – Leste – entendiam
as língua originárias ou porque a PIDE tinha os seus informantes. Dionísio Rocha, do

76Jonuel Gonçalves declarou em entrevista a Juliana Bosslet que era impressionante a quantidade de
portugueses analfabetos nos momentos finais do colonialismo em Angola e que, chegaria, a 10% da
população lusitana em Angola, número que condiz com a quantidade de analfabetos em Portugal, de
aproximadamente 25 % (BOSLET, 2014, p. 33).

81
Negoleiros do Ritmo, relatou suas memórias sobre as canções com temáticas críticas:
“muitas vezes, cantávamos em festas particulares o ‘Caputo Muangole Uandala
Cutugiba’, uma versão directa dos Ngola Ritmos, que significa ‘os brancos em Angola
querem matar-nos’”. Na mesma perspectiva o músico Prado Paim indica que presenciou
os conflitos e escreveu uma canção sobre:

‘Etu Twambundo’ (Nós os Negros), que escreveu em 1961. ‘Ia a caminho do


trabalho quando me deparei com um tiroteio na Rua da Brigada e três pessoas
morreram à minha frente. Continuei o percurso até ao serviço, mas, mesmo a
trabalhar, não me sentia bem. Agarrei numa caneta e uma folha e escrevi a letra
da música’. Escrever era uma coisa e apresentá-la em público outra. ‘Preparei
essa música para cantá-la no Ngola Cine, num espectáculo promovido pelo
empresário Luís Montez. [Um] amigo (...) disse: Mano vais cantar essa música?
Não tens medo de ser preso ou morto? Respondi-lhe que não fazia mal porque
muitos já tinham sido presos e não ia ser o primeiro. Ganhei coragem e cantei, o
público gostou e aplaudiu de pé. Ao sair do palco, tive medo de ser apanhado pela
PIDE e ser preso. Felizmente, nada aconteceu’ (JORNAL DE ANGOLA,
17/11/2015, s/p).

As tensões políticas também chegaram aos Festivais da Canção. Em 1966 Sara


Chaves ganha o Festival da Canção de Luanda com a canção Maria Provocação de
Adelino Tavares e Ana Maria Mascarenhas. A composição é desclassificada em algumas
categorias porque o júri não aceitou como “musicalmente correto” o acompanhamento
feito pelo Ngola Ritmos e seus violões, ngomas e dikanza, visto que o padrão era
acompanhamento por orquestra.77 Em todo caso, Sara Chaves ganha a categoria de
intérprete e sagra-se como uma das mais importantes artistas angolanas de sua época.
Tavares e Ana Maria Mascarenhas e o Ngola defendem também Mulata é a noite, essa
na voz da irmã de Ana Maria, Conchita de Mascarenhas. As duas canções são, sob certos
aspectos, revolucionárias para a época, pois trazem, além da estética sonora que se
aproxima dos gêneros africanos, a temática da vida nos musseques.

77 Revista Buala: “Nessa noite de setembro de 1966, no cinema Aviz, ouviu-se música tipicamente
angolana. O sucesso foi estrondoso, assim como estrondosa foi a decepção quando anunciaram que ‘Maria
Provocação’ não podia ser considerada concorrente ao festival, porque a organização não autorizava que
os instrumentos típicos do Ngola Ritmos fossem integrados na orquestra. O júri classificou apenas a letra
da ‘Maria Provocação’ em 1º lugar e deu-me o 1º prémio de interpretação. Esta música fez uma carreira de
sucesso e ainda em 1998 se cantava em Luanda. O duo Ouro Negro gravou-a em Portugal e Martinho da
Vila no Brasil.” Disponível em https://www.buala.org/pt/palcos/sara-chaves-as-chaves-dos-seus-cantos.
Acesso em 28/11/2019 as 23 h 00 min.

82
A letra de Mulata é a noite diz: “Como eu/ A noite nasceu mulata/ Na escuridão
da cubata [barraco]/ É pecado do subúrbio/ Mulata/ É distúrbio no musseque”. Já a de
Maria Provocação, gravada por Martinho da Vila no álbum Novas Palavras (1983), diz:

Foi ela quem provocou toda a Maka [confusão] nos musseques/Foi Ela/ Quem
convenceu o primeiro/ Pra junto do missangueiro/ Que havia ao meio da rua/
E disse/ Daquele jeito/ Em que ninguém a imita /Metade da esteira é sua/ Logo
depois da rebita
Foi ela/ Quem agarrou o segundo /No quintalão lá do fundo/ Que havia ao fundo
da rua/ E disse/ Daquele jeito/ Em que ninguém a imita/ Metade da esteira é sua/
Logo depois da rebita.
Foi ela/ Quem arrastou o terceiro/ Pra junto do embondeiro/ Que havia no fim da
rua/ E disse/ Daquele jeito/ Em que ninguém a imita/ Metade da esteira é sua/
Logo depois da rebita/Foi ela/ Quem provocou /Toda a maka no musseque
Foi ela/ E esses moleques que estavam fora/Da combinação desta barona [mulher
bonita] / Agora/ Chamam-lhe Maria Provocação/Chamam-lhe Maria Provocação.

Já no documentário O Lendário Tio Liceu (2010) há outros trechos dessa canção:


“Da moça mestiça.../ Mamã que não sabe da missa a metade/ Que julga que a filha apenas
trabalha/ Num bar dum hotel que há lá na cidade”. O que é uma alusão a prostituição.
Segundo documentação da PIDE analisada por Bosslet (2014, p. 147), a referida polícia
política considerava que os distúrbios causados pelos militares nos musseques e bairros
populares eram causados pela “atração” que o “elevado índice de prostituição” e consumo
de álcool exercia nessas localidades. Visão essa que não era muito diferente da dos
cientistas sociais do período como José de Souza Bettencourt, Ilídio do Amaral e Ramiro
Monteiro Ladeiro, intelectuais que nos anos 1960 estudaram os musseques, e associaram
essas localidades a miséria e a prostituição (MOORMAN, 2004, pp.75-77).

Ainda sobre o posicionamento da PIDE ressaltado por Bosslet, esses –agentes da


polícia – consideravam que os musseques eram “um ambiente contrário à moral e aos
bons costumes, mas que não deixa de ser, mais ou menos, próprio a tais localidades”
(BOSLET, 2014, p. 147-148). É possível ler essas considerações da PIDE a contrapelo:
não é a oferta de prostituição que atrai os soldados a essas regiões, mas o contrário. Na
mesma perceptiva, Marissa Moorman aponta, ao analisar um trecho do romance Nosso
Musseque de Luandino Xavier, que “do ponto de vista dos musseques, soldados brancos
e homens brancos em geral eram o problema; não a prostituição”, aludindo ao fato de que
muitas vezes as famílias nos musseques escondiam suas jovens filhas temendo o ataque

83
dos soldados que batiam a porta perguntando se ali havia “mulheres à venda”
(MOORMAN, 2014, pp. 76-77). 78

Ainda sobre Maria Provocação, Sara Chaves declarou em uma entrevista do ano
de 2014:

Ganhei o prémio de interpretação, cantando uma música que foi desclassificada.


Não tem lógica nenhuma, mas vou explicar o que aconteceu. A canção foi
incluída nas músicas concorrentes a esse festival. Chegou a minha vez, fui
anunciada e cantei a canção. O público levantou-se a aplaudir. Aquela canção era
uma “pedrinha no charco”, falava da prostituição. Era um tema tabu. Todos
sabiam que existia, mas ninguém se referia a isso. A letra é de Ana Maria de
Mascarenhas, compositora angolana que ainda hoje compõe, e de Adelino
Tavares da Silva, jornalista português, que escreveu músicas fantásticas de “sabor
angolano”. Essa música não foi incluída. Quando foram conhecidos os resultados
do festival, ficámos a saber que “Maria Provocação” fora desclassificada. Foi
uma surpresa muito grande, porque a música agradou ao público. Pensámos que
o tema havia tido influência nessa desclassificação, porque ofendia a moral
burguesa desse tempo. Disseram-nos também que foi desclassificada porque o
conjunto N’gola Ritmos, os instrumentos do conjunto, não estavam integrados na
orquestra. Foi um caso muito discutido. Apesar de tudo, “Maria Provocação” foi
a música que ficou. Ainda hoje se canta e se recorda em Angola. Já estive em
Angola duas vezes depois da independência e fui obrigada a ir ao palco cantar a
“Maria Provocação” (CHAVES, 2014). 79

Note-se que em Angola se fazia uma clara distinção entre o que se considerava
“canção” e as músicas chamadas de “folclóricas”. Sara Chaves quebra esse paradigma ao
recombinar tradições musicais entendidas como europeias – o acompanhamento por
orquestra – e tradições entendidas como africanas, no caso, os instrumentos percussivos.
É importante perceber que Chaves, Mascarenhas e o Ngola ensejam um processo de
bricolagem cultural em que as tradições populares e as temáticas do povo são buscadas,
tal como ocorreu na literatura angolana de Luandino Vieira e Uanhenga Xitú. Como já
dito, esse processo de “trazer o povo” também ocorria na corrente musical brasileira
ligada a bossa nova, e, como também já abordado, as temáticas das desigualdades sociais
cantadas por Jair & Elis não empolgaram muito o público angolano.

Avançando um pouco no tempo, de 1966 para 1970, é possível encontrar outros


indícios de que a bossa nova e o jazz não agradavam muito o público luandense,
aparentemente mais acostumado a repertórios mais populares. Matéria da revista Notícia

78 No original: In this reading, from the perspective of the musseques, white soldiers and white men in
general were the problem; not prostitution. Tradução livre minha (MOORMAN, 2014, pp. 76-77).
79 Entrevista concedida ao departamento de Ciências da Comunicação da Universidade autônoma de

Lisboa. Disponível em https://ualmedia.pt/sara-chaves-a-radio-foi-crucial-para-o-exito-do-25-de-abril/.


Consulta em 01/11/2019 às 21 h 00 min.

84
descreve que o grupo Os Brazucas, especializado nos referidos gêneros, teve de adaptar
seu repertório ao público luandense. “Nenhum deles se lembra de ter tocado um bolero
antes de vir para Luanda” descreve o jornalista, e, acrescenta que o público luandense tem
um interesse maior por um tipo de música com um apelo mais “popular” e exemplifica
pontuando que Roberto Carlos faz muito sucesso em Luanda (Notícia, 31/01/1970, pp.
52-53). Um dos integrantes dos Brazucas declarou sobre a audiência em Angola: “não
queremos dizer que o público não esteja preparado pra isso [o tipo de música que
apresentaram], apenas não tomou conhecimento” (Notícia, 31/01/1970, pp. 52-53). Pelo
que indica a matéria, o público luandense, especialmente o de boates e casas de shows,
aprecia um repertório brasileiro mais próximo do samba, do carnaval e das canções
populares com temática lírica amorosa.

A imagem alegre e festiva do carnaval carioca é quase sinônima da de Brasil para


os angolanos, ao menos para os angolanos da classe média, majoritariamente branca,
luandense que tinha poder aquisitivo para frequentar algumas das requintadas boates da
cidade como a citada Tamar: “são dois andares de festa (...), a pista de dança tem chão de
vidro, luzes a iluminar as fantasias”, descreve a jornalista Ana Sofia Fonseca. A casa
noturna tinha com frequência, entre seu público, fazendeiros de café que, ainda de acordo
com Fonseca, por vezes a alugavam para festas particulares. O repertório da Tamar era
geralmente composto de shows artístico-musicais que mesclavam esquetes de humor,
teatro e muita música e dança. A referida casa recebeu um número significativo de
espetáculos internacionais, com destaque para companhias brasileiras. Um anúncio
ocupando uma página inteira do Diário de Luanda (16/04/1966, p.5) propagandeava:
“Show Brasil (...). Toda a alegria esfuziante do Carnaval Carioca”. A programação era
composta, entre outras atrações por uma “cantora sambista”, por uma “sambista de brec”
e por um “ballet” com dançarinas brasileiras que, pela imagem que acompanha a matéria,
usam trajes que remetem as passistas das escolas de samba cariocas.

Ainda em 1966, o festival da canção de Luanda teve a participação, como atração


principal do cantor brasileiro Agostinho dos Santos, intérprete da canção Manhã de
Carnaval (Luiz Bonfá), famosa por conta do filme Orfeu Negro (1959) do cineasta
francês Marcel Camus. A película ficou mundialmente conhecida após ganhar o festival
de Cannes e é, em parte, responsável pela construção de uma imagem do Brasil no
exterior que remete a festa, alegria, sensualidade e exotismo associada ao samba, ao
carnaval e aos morros cariocas. Quando de sua candidatura a Cannes, Orfeu sofre certa

85
resistência da diplomacia brasileira que temia que o filme causasse uma imagem negativa
do Brasil no mundo por conta de seus “personagens negros e das favelas” (FLÉCHETE,
2009, p.48). A produção de Camus é baseada na peça de Vinícius de Morais de 1956 e
que foi encenada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Posteriormente, a produção de
Camus recebe pesadas críticas de intelectuais brasileiros por apelar a certo exotismo e
irrealismo por conta de cenas em que em meio a uma situação cotidiana, compras na feira,
por exemplo, irrompe uma roda de samba e um bloco de carnaval. Foi qualificado pela
intelectualidade brasileira como uma obra que reforça o exotismo para o público francês
e “macumba para turistas”, segundo Caetano Veloso (Como citado (FLÉCHET, 2009, p.
51).

Figura 8 - Anúncio de Rio Sempre no Diário de Luanda (10/08/1967, p. 3.)

Quanto ao público de angola, os indícios apontam que Orfeu Negro agradou as


plateias luandense dos cinemas. O periódico A Província de Angola (30/03/1962, p.5),
assim o propagandeia: “um deslumbramento de cores, ritmo e ternura, o carnaval carioca,
o desfile das escolas de samba, a alegria contagiante daqueles dias de loucura”. Infere-se
que o filme de Camus foi um vetor importante na construção dessa imagem brasileira

86
exótica, alegre, quente e sensual associada ao samba que circulava por Angola, sobretudo,
para o público dos estratos médios e mais abastados que frequentavam as boates e
cinemas da parte mais próspera da capital.
Recorrendo ao mesmo tipo de imagem alegre e festiva sobre o Brasil – descrito
como “o país do ritmo” (DIÁRIO DE LUANDA, 13/08/1967, p.3) os shows Rio Sempre
Rio, Bossa e Balanço, As Garotas do Embalo, Vem quente que eu estou fervendo e
Aguarela Brasileira são espetáculos que fazem sucesso em Luanda em 1967. Todos são
da companhia do diretor Lauro Silva e recorrem ao gênero Teatro de Revista, que, surgido
em finais do século XIX e tendo se consolidado na década de 1920, é um tipo de show
que mescla música, teatro, humor e paródia, passando “em revista” – revendo –
acontecimentos recentes. De acordo com Neyde Veneziano (2011, pp. 2-3)) o Teatro de
Revista adaptou algumas convenções das operetas populares como “música pontuando
entradas e saídas” e a “apoteose” – essa última de maneira carnavalizada. Ainda segundo
Neyde:
Quando a revista empurrou a opereta para zonas periféricas, os procedimentos
provenientes do teatro lírico já se haviam transmutado em meio aos populares
ritmos e melodias afro-brasileiros. O edifício dramatúrgico-revisteiro
permaneceu de pé e imutável por mais tempo, arregimentando tipos, assuntos e
sons genuinamente brasileiros (...). O teatro de revista foi, indubitavelmente, o
gênero que melhor representou a ideia que o Brasil tinha de si, dentro da tríade
ideológica: mulher, malandragem e carnaval, signos da pátria convertidos em
padrão de representação teatral (VENEZIANO, 2011, pp. 2-3).

As revistas brasileiras apresentadas em Luanda correspondiam de maneira


bastante fiel a esse modelo. A descrição de Rio Sempre Rio dada pelo Diário de Luanda
enuncia a estrutura do show: a parte musical, interpretada por Joãozinho Bossa Nova e
seus “êxitos do Brasil”, e, a parte da sensualidade: com strip-tease de algumas artistas e
monólogos de malícia e humor. Faz parte também do modelo desse tipo de espetáculo o
número principal da vedete – nos jornais luandenses chamada de vedeta – e os
apresentados em Luanda não são diferentes. A vedete é a estrela principal deste gênero e
apresenta um número que alia humor e a malícia, quando, geralmente, desce do palco e
interage com a plateia. Interessante notar que o espetáculo seguinte, Bossa e Balanço, tem
uma travesti como vedete, (DIÁRIO DE LUANDA, 17/09/1967, p.7).
No sentido inverso, indo de Angola para o Brasil, em 1967 o Duo Ouro Negro se
apresenta no Festival Internacional da Canção (FIC) de 1967. Raul Indpwo e Milo
MacMahon formaram a dupla angolana mais conhecida fora do país tendo se apresentado
em terras brasileiras, em Portugal e em mais de 20 países. O A Província de Angola

87
noticia que em 1966, os artistas excursionaram por 20 cidades estadunidenses (A
PROVÍNCIA DE ANGOLA, 21/06/66, p.14). Gravaram sucessos brasileiros como “A
Banda”, “Menino de Braçanã”, “Trem das Onze”, “Arrastão”, entre outras. Indpwo e
MacMahon, de acordo com Amanda Palomo, dois artistas mestiços cujo repertório era
composto, principalmente, por canções que faziam referência as temáticas angolanas
como a canção Luanda e por músicas nas línguas originárias como Kirikutela, Muxima,
Kabulo, entre outras, foram em grande parte responsáveis por “edificar (principalmente
no exterior) as ideias de ‘sociedade multirracial’ e de ‘integração’” (ALVES, 2015, 134-
135). No Brasil, a dupla defende Portugal no FIC de 1967 com a canção cantada em língua
originária do povo imbangala, Até a vista, mulata no ritmo kwela (O GLOBO,
27/10/1967, p.15). Novamente, a referência e a suposta paternidade entre semba e samba
é acionada: “na realidade, grande parte dos ritmos brasileiros nasceu em Angola”,
declarou MacMahon ao Globo. É importante destacar, que o Ouro Negro tem parte
significativa de seu repertório composto por canções brasileiras e que alguns de seus
álbuns foram produzidos pelo músico brasileiro Sivuca.
Nas próximas linhas, se dará seguimento a investigação sobre a presença musical
brasileira em Angola, sendo essa uma janela privilegiada para se mirar o cotidiano
colonial, as hierarquias sociais e raciais e as políticas de controle do colonialismo, tendo,
nessa etapa, um foco maior a segunda metade da década de 1960 e começo da de 1970.

88
Capítulo 2 – Cultura, lazer e política Angola e Brasil (1960-1970).

2. 1 Lazer e cotidiano em Luanda no período colonial.

Os anos sessenta são o epicentro de todas as mudanças: o começo da guerra, a


euforia das festas, as novas leis, o boom econômico. (...)
A baía de Luanda, os gelados do baleizão, as praias de água quente, o cheiro de
terra encarnada. O dinheiro, as amizades férreas, os criados de sobra. As mangas
maduras, os cinemas elegantes, a rádio ousada, o sabonete Lux e o Life Buoy. O
dia quente de sol, a noite vestida de estrelas. O horizonte a perder de vista. A
Cuca gelada, as festas de garagem, os shows. (...) Manhãs a caçar elefantes.
Tardes a ouvir discos (FONSECA, 2014, pp.17-18).

Como vêm sendo exposto, Luanda e seus arredores na década de 1960 e começo
da de 1970 compunham uma metrópole, no sentido geográfico do termo, qual seja, uma
grande cidade cosmopolita com um município como centro irradiador e seus municípios
ou cidades-satélites, em franca expansão por conta do dinamismo econômico pelo qual
passava Angola, o que, por sua vez, como já abordado anteriormente, é fruto da iniciativa
lusitana de concentrar os capitais auferidos no chamado ultramar nas próprias
“províncias” e das parcerias com o capital privado estrangeiro.
Tais iniciativas faziam parte do esforço português para reter as colônias africanas,
e, outra estratégia para alcançar tal intuito, era o aumento da imigração de colonos brancos
para Angola. Muitos se concentraram na capital, fazendo com que o número de brancos
em Luanda salte de cerca de 20 mil em 1950 para mais de 124 mil em 1970
(BITTENCOURT, 2017, p. 877). Já outra parte destes portugueses migrantes são
alocados em novos assentamentos relativamente mais distantes da capital, em núcleos de
povoamento criados especificamente para recebê-los (FLORES, 2020, p. 36).
Encontra-se também pelos jornais diversos anúncios de tratores, caminhões e
equipamentos de construção, um indicativo de que a cidade e a “província” em geral
estavam em constante construção e expansão. Pelos periódicos angolanos é possível

89
também encontrar anúncios de relógios de ouro (de 10 mil escudos), “gira-discos”,
máquinas de escrever, aparelhos de ar-condicionado, refrigeradores, cremes faciais,
câmeras fotográficas, entre outros produtos e serviços “não essenciais” indicando o poder
de consumo dos setores médios e das parcelas mais abastada da sociedade.
Esses grupos da sociedade, principalmente os de Luanda, compostos em sua
maioria pelos colonos recém-chegados, pelos angolanos brancos e uma minoria de negros
e mestiços, realizam e participam de concursos de beleza, touradas, competições
automobilísticas; movimentam lojas de roupas, bares, cafés e restaurantes, e,
principalmente à noite, cinemas e boates. Quanto aos cinemas, estes em 1972 chegam ao
número de 15 em funcionamento por Luanda e arredores ao mesmo tempo. Aos já citados
cinemas em 1966, somam-se mais 5: Kipaka Cine, LIS, África Cine e Kilumba Cine. Esse
último inaugurado em 1969 em Viana, localidade próxima de Luanda que foi alçada a
categoria de município em 1965, denotando o crescimento da Grande Luanda”. 80 Para
toda a colônia de Angola, esse número chega a 48 salas em 1973 e “realizam-se acima de
16 mil sessões” (FONSECA, 2009, p.277).
Para melhor compreender o processo de impulso da cena cultural luandense, o
crescimento da “indústria do lazer”, é preciso compreender as especificidades do lazer
em contextos africanos e especificamente em Angola, como se verá a seguir.

2.1.1 – O Lazer em contextos africanos.

O lazer, em termos gerais, é associado ao descanso, à renovação das “energias”


após as demandas intrínsecas a uma extenuante rotina laboral. É também o momento em
que as pessoas exercem as atividades ligadas a sociabilidade: passar tempo com a família
ou “em comunidade”, reafirmando os laços com o grupo do qual faz parte
(AKYEAMPONG & AMBLER, 2002, p.3). Frequentemente a concepção de lazer é
acionada “em sintonia com a tentativa de imposição de uma determinada noção de tempo
e de disciplina de trabalho”, como aponta Bosslet (2017, p.832),.
Os debates teóricos, acerca do lazer enquanto um conceito profícuo de análise nas
ciências sociais, indicam que do ponto de vista da temporalidade, tais discursos costumam
ser acionados quando da emergência dos processos de industrialização. Outro foco de

80Usarei esta expressão para designar Luanda e cidades limítrofes ou “Luanda e arredores”. O Kilumba
será abordado mais a frente porque denota ser uma sala voltada a um público mais popular.

90
análise dos intelectuais que se debruçam sobre a relação “lazer-trabalho” é relativo ao
modo como se articula a tensão entre capacidade do Estado em conformar e ordenar a
vida cotidiana das pessoas comuns e a agência dos “de baixo” frente a esse processo
(AKYEAMPONG & AMBLER, 2002, p.3).
Em contextos africanos, os estudos sobre o lazer precisam se defrontar com novos
desafios. Ambler ilustra as tensões entre as expectativas que os europeus tinham em
relação ao lazer e a dos africanos citando o caso dos mineiros de uma localidade da
Rodésia do Norte (atual Zâmbia) na primeira metade do século XX, que se recusavam a
participar dos jogos de futebol e outras atividades esportivas organizados pela gerência
da instalação argumentando que não estavam sendo remunerados pelo “tempo extra
(AKYEAMPONG & AMBLER, 2002, p. 6)”. 81
Em outras palavras, para os administradores europeus era preciso “ordenar” o
“tempo livre” (AMBLER, 2003, p.3-5), ou, como pontua Bosslet (2017, p. ) para Luanda
dos anos 1960 e 1970, o esporte e outras práticas relacionadas ao lazer eram “atividades
vistas como ferramentas de moralização, (...), eram incentivadas” como uma forma de
afastar os africanos das atividades “indesejáveis” como as atreladas ao consumo de álcool,
entendidas como foco de indisciplina. Já para os trabalhadores africanos o “tempo-livre”
deveria ser fruído de acordo com suas próprias concepções de repouso e entretenimento.
Ecos desse discurso podem ser encontrados nas matérias e editoriais do jornal
Tribuna dos Musseques, periódico dedicado às populações das regiões suburbanas de
Luanda, que em sua edição de 03/08/1967(p.1), em sua capa, denuncia a “A falta de
divertimentos nos bairros suburbanos” e que tais atividades seriam essenciais para se
refazer “das canseiras e fadigas de uma semana de trabalho”. Ainda nessa matéria,
Manuel Dias Pacavira – o autor – faz um apelo ao Instituto de Trabalho e Assistência
Social (ITAS) para que tal órgão subvencionasse atividades que provessem os
“divertimentos”, ou seja, atividades de lazer.
É plausível supor que Pacavira tivesse alguma ideia de que para os membros do
governo colonial fosse interessante intervir ou estimular algumas ações voltadas para o
lazer. O órgão de impressa do qual fazia parte tinha estreitas relações com o aparato
colonial e conforme entrevista de outro dos jornalistas do Tribuna, Afonso Dias da Silva,
à Marcelo Bittencourt, a criação do referido periódico tinha sido idealizada por Aníbal de
São José Lopes, diretor da PIDE em Angola (BITTENCOURT, 2017, p.887).

81
Especificamente, refere-se ao campo de mineração Roan Antelop.

91
Destaque-se que na Angola dos anos 1960 e 1970 havia uma considerável relação
entre o estímulo ao lazer e a chamada “ação psicossocial”, um conjunto de estratégias
empreendidas pelos agentes do Estado colonial português para aproximar e “conquistar”
os corações e mentes das populações africanas. Em outras palavras, só o esforço de
enfrentamento bélico aos movimentos independentistas, na lógica do governo colonial
lusitano, não seria suficiente para assegurar a hegemonia sobre os territórios africanos.
Seria preciso “incitar, por um lado, as populações de cor ainda fiéis a manterem-se
conosco e conseguir, por outro lado, que as populações rebeldes abandonem o
adversário”, conforme documentação do Gabinete dos Negócios Políticos citada por
Bittencourt (2017, p. 879). Ainda, como salientou Bosslet (2017, p. 835), as preocupações
das autoridades portuguesas em Angola caminhavam no sentido de que o controle sobre
as populações submetidas teria de ir além da mera coerção policial e atuar de maneira
menos direta.
O pleito feito por Pacavira no Tribuna dos Musseques de que deveria haver a
subvenção dos órgãos do Estado às atividades esportivas, culturais e recreativas, foi
atendido. O jornalista anotou que seria simpático que “se efetivasse o campeonato
suburbano de quem vem se falando a muito” (TRIBUNA DOS MUSSEQUES, 03/08/1967)
e, de fato, em finais de 1967 ocorre um torneio esportivo organizado pelo Instituto do
Trabalho, Previdência e Ação Social (ITPA). Vale acrescentar que não por acaso o diretor
do referido Instituto, juntamente com membros das forças de segurança e da PIDE, fazia
parte de um Grupo de Trabalho criado pelo governador geral de Angola para lidar com
as “questões suburbanas”. Conforme citou Bosslet (2017, p. 833) a partir das atas das
reuniões do referido comitê, “só medidas repressivas ou de vigilância não resolveriam o
problema”.
O campeonato suburbano a que se alude era composto de algumas modalidades
esportivas, das quais a mais destacada era o futebol. O referido torneio organizado pelo
ITPA em conjunto com as empresas privadas operava dentro dessa lógica de controle do
tempo livre dos membros da classe trabalhadora e do reforço ao preparo físico desses para
seus ofícios, evitando o que consideravam prejudicial ao seu desempenho laboral: a
frequência a estabelecimentos voltados para o consumo de bebidas alcóolicas
(BITTENCOURT, 2017, pp.879-880, 883).
É preciso destacar que além dos eventos esportivos, fazia parte do foco dessas
ações de controle dos funcionários ligados ao aparato colonial, os eventos recreativos-
musicais e sociais. Mais uma vez recorrendo a matéria de Pacavira, esse argumenta que

92
o ITPA deveria também fomentar e subvencionar a criação de novos centros sociais e
atrações musicais nas áreas suburbanas, sobretudo as dos “gêneros folclóricos”, para que
o divertimento dos moradores dessas localidades não se restringe-se a “nocais e cucas”.82
É interessante notar que as empresas de cerveja se tornaram as principais
patrocinadoras dos eventos esportivos em um processo que relaciona os esforços do
Estado em ações de controle e “atração” dos estratos mais pobres da população para sua
órbita, e, a expansão econômica ocorrida em Angola, possibilitando que seus produtos –
a cerveja, por exemplo – chegasse a novos consumidores (BITTENCOURT, 2017, p.
883). O mesmo aparato colonial que desejava disciplinar os trabalhadores estimulando as
práticas esportivas e afastando-os do consumo excessivo de álcool, modificou
ligeiramente suas táticas, usando o futebol e a cerveja – que já fazia parte da experiência
cotidiana daqueles sujeitos – como forma de se aproximar e manter esse grupo da
população sob sua influência (BITTENCOURT, 2017, p. 892).
Destaque-se que tempos depois a Cuca, além dos torneios suburbanos, passou a
patrocinar também eventos gratuitos de música ao ar livre nas áreas do subúrbio, festival
que tinha a direção artística do empresário Luiz Montez, o Kutonoka (GARCIA, 2016, p.
122).
Quando se alude as atividades providas pelos centros sociais, a reportagem do
Tribuna se refere a associações como o Centro Social de São Paulo, cuja programação
de 1968, por exemplo, abarcava cortejos carnavalescos (23/08), exibições de ginástica
(03/09), jogos “amistosos” de futebol (10/09), “Matinê dançantes” (17/09), “Soirée
dançante” com grupos folclóricos de rebita (TRIBUNA DOS MUSSEQUES, 24/08/1967,
p. 7).
Os esforços dos administradores coloniais em “direcionar” a cena musical dos
clubes associativos (MOORMAN, 2008, p.34) e os campeonatos de futebol
(BITTENCOURT, 2017), revelaram ser mais do que a lógica clássica em relação ao lazer,
de controle e disciplina sobre os trabalhadores. Estavam também imbuídos de ação
psicossocial. Ainda assim tais iniciativas tiveram, em muitos casos, os efeitos inversos ao
pretendido, reforçando os laços de identidade e os sentimentos nacionalistas.
O grande impulso às atividades culturais dos anos 1960 e 1970, vale ressaltar,
estava intimamente relacionado ao acentuado dinamismo econômico em Angola, e, como

82
Marcas de cervejas angolana.

93
se verá adiante, ajuda a explicar a grande circulação de artistas brasileiros em território
angolano no período em questão.

2.2 – O cotidiano dos setores médios e das classes mais abastadas.

No início dos anos sessenta, a província recebe a mais distinta das boates. No
começo da ilha, a Tamar depressa ganha nome. São dois andares de festa,
mulheres bonitas a incentivar homens a beber. Muitos dos melhores artistas de
passagem pela cidade, Roberto Carlos na dianteira, atuam no seu placo
(FONSECA, 2014, p.18)

Como vêm sendo abordado, no período em questão houve um “boom” econômico


que impactou a indústria do lazer e do entretenimento, sobretudo em Luanda. Um número
crescente de cineteatros, boates, dancings, cafés, bares e restaurantes vai sendo
inaugurado e frequentado pelos setores da sociedade com maior poder aquisitivo, o que,
em se tratando de uma sociedade hierarquizada do ponto de vista racial, que ainda
carregava as heranças das estratificações que classificavam seus componentes entre
“civilizados”, “assimilados” e “indígenas”, significa dizer os setores mais brancos dessa
sociedade.
Ainda sobre o cotidiano da elite e dos setores médios, os luandenses da “Baixa” e
adjacências ouviam pelo rádio ou pelos toca-discos, grupos e cantores dos mais diversos
lugares como os britânicos Beatles (FONSECA, 2009, p. 133), o francês Serge
Gainsbourg (FONSECA, 2009, p. 137) e o brasileiro Wilson Simonal. Os primeiros e o
segundo aparecem no relato de Eduarda Taboada à jornalista Ana Fonseca sobre sua
adolescência em Luanda nos 1960 e 1970: levava a vida de uma jovem de classe média
do Brasil, de Portugal ou dos Estados Unidos; escrevendo suas reminiscências em diários,
bebendo Coca-Cola e ouvindo All you need is Love pelo rádio e Je T'ame por fitas cassetes
trazida de Lisboa. Vale destacar que a canção de Gainsbourg com referências sonoras a
um ato sexual (gemidos e suspiros) foi proibida tanto no Brasil quanto em Portugal e
circulava clandestinamente a partir de gravações caseiras de “k7”. O terceiro é anunciado
e recomendado pela sessão de cultura do Diário de Luanda (16/07/1967, p.2) e poderia
ser encontrado em lojas luandenses como a Lusolândia e a Lello.

94
Para estes adolescentes e jovens abastados da Grande Luanda, sobretudo para as
moças, a guerra parecia uma coisa distante. Já para os rapazes, a guerra estava presente
ao menos no horizonte. Matéria da Revista Notícia de Julho de 1970 busca acompanhar
e retratar o dia a dia de oito jovens de 20 anos de ambos os sexos. O estudo em nível
secundário e superior faz parte do cotidiano da maioria dessa amostra de entrevistados,
bem como frequentar boates como opção de lazer. Esportes como motociclismo e
basquetebol fazem parte das atividades de alguns destes indivíduos. Infere-se, pelas
atividades e hábitos, que a amostragem de entrevistados privilegiou os estratos médios e
ricos da sociedade. Alguns destes jovens, por exemplo, indicaram planos de estudar no
exterior. Outros que já estudavam em Angola, mencionaram o receio de “fazer a tropa”
após os estudos. Pelas imagens que acompanham as notícias, deste grupo da juventude
angolana, dois são negros. O rapaz negro retratado é o que já é soldado, mas que cumpre
uma rotina burocrática por Luanda e é também músico com planos de retomar a carreira
que havia sido interrompida pela desarticulação do conjunto musical do qual fazia parte
com as convocações dele e dos companheiros para a frente de batalha. A moça negra é
descrita como tendo a África “nos lábios e nas veias” e que sempre nos fins de semana
tem “uma festa particular, um baile, um passeio (...), uma boate (descente, acrescenta)”
(A NOTÍCIA, 17/07/1970, pp. 76-87).
Vale ratificar que a cidade de Luanda era extremamente dividida entre a cidade
“do asfalto” e a “de areias” – musseques – no que concerne ao âmbito social e racial. A
primeira, a dos brancos, a segunda, a dos negros. A divisão da cidade não era institucional,
mas o processo de impulso ao colonialismo e fixação de novos colonos brancos foi
empurrando as antigas famílias de assimilados e os descendentes das antigas famílias da
“elite crioula” do século XIX para fora das áreas com maior estrutura – asfalto e
iluminação – como a Baixa e as Ingombota, para o Bairro Operário e para os musseques
mais próximos. E quanto mais próxima da condição de indígena era a família, mais longe
do centro da cidade iria se estabelecer, indo para os musseques mais distantes
(NASCIMENTO, 2015).
Mesmo não havendo quesitos raciais textualmente determinados na ocupação da
cidade, houve políticas da câmara municipal de Luanda de expropriação de áreas na
região das Ingombota sob o argumento da necessidade de melhorias na “urbanização”
(FONSECA, 2009, p. 32). Entretanto, mesmo em menor medida era possível encontrar
famílias negras e mestiças nos estratos médios da sociedade angolana e habitando áreas
medianas, como indicado pelos relatos dos jovens angolanos retratados na matéria da

95
revista Notícia, sendo a moça negra uma servidora pública descrita pelo jornalista como
“linda, elegante, desempoeirada” (A NOTÍCIA, 17/07/1970, pp. 76-87). Esse último
adjetivo dado pelo jornalista, pode ser lido à contrapelo: indica que ele esperava uma
funcionária “empoeirada”, o que permite associar o termo “esperado” ao local de
moradia, também “esperado”, o musseque, o bairro improvisado, sem asfalto, coberto de
areia e poeira.

Figura 9 - Jovem de 20 anos descrita pela matéria como a funcionária “desempoeirada” (Revista
Notícia, 17/07/1970, s/p).

Como vêm sendo abordado, embora a capital de Angola fosse uma cidade bastante
dividida do ponto de vista racial, havia as exceções que confirmavam a regra. Da mesma
forma que um números pequeno de famílias negras e mestiças viviam nas áreas menos
pauperizadas, havia brancos pobres nas áreas suburbanas. Bosslet (2014, p. 76) evidencia
tais casos ao analisar a notícia de uma família branca que sofreu um despejo em 1972 do
bairro da Cuca, área periférica da capital. Conforme Moorman (2004, p. 43), muitos
colonos brancos que chegaram nos anos 1960 eram pobres e vinham a Angola em busca

96
de uma vida supostamente melhor do ponto de vista econômico, e, em decorrência,
realizavam construções irregulares nos musseques ou em suas “franjas”. Além disso,
ainda de acordo com Moorman, esses novos colonos brancos eram também responsáveis
pela maioria das atividades econômicas irregulares nos musseques: “estudo de 1964
mostrou que no musseque Prenda, 95% atividades do mercado negro [sic] ocorriam em
estabelecimentos de propriedade branca” (MOORMAN, 2004, p. 43).
Marcelo Bittencourt também dá indícios da circulação de brancos e negros pelos
mesmos espaços ao abordar o futebol luandense e como numa mesma divisão disputavam
clubes que eram lidos como “clubes de brancos” e outros como “clubes de mestiços” o
que “põe em causa uma imagem congelada que posiciona brancos de um lado e negros
do outro no cotidiano da vida colonial” (BITTENCOURT, 2010, p.111).
Quanto ao cenário musical e de espetáculos, percebe-se pela leitura dos jornais e
revistas angolanos, um relativo convívio entre brancos e negros nestes espaços. Pelas
fotos que acompanham algumas das matérias – e, note-se que, muitas estão com um
desgaste natural do tempo sobre os jornais que prejudica a avaliação fenotípica de modo
que as análises aqui tecidas devem ser cuidadosas – observa-se uma maioria branca nas
plateias. Há negros e mestiços nos recintos como consumidores e frequentadores, mas em
menor medida. Vale registrar que a elite branca luandense frequentava o Aviz, o
Restauração e a Tamar para consumir artistas negros e mestiços como os locais Eleutério
Sanches, Lourdes Van Dunnen, Lily Tchiumba, João Arsénio, Negoleiros do Ritmo, Os
Cunhas, entre outros. E, os também negros e mestiços estrangeiros, como o estadunidense
Percy Sledge, os brasileiros Carmem Silva, Martinho da Vila e Jair Rodrigues, os cabo
verdianos do grupo A Voz de Cabo Verde, os madagascarenhos Les Rivers (um conjunto
de rock) e os grupos locais de “música jovem” ou yé-ýé-yé locais como “Os Rocks”.
Certamente que isso não significa dizer que a sociedade luandense era mais
harmoniosa racialmente ou despida de preconceitos por consumir artistas negros. Ao
contrário, nestes espaços admitiam-se por vezes, negros e mestiços como provedores de
entretenimento, mas nem sempre como frequentadores e consumidores. Como indica José
Weza ao se referir a algumas boates, clubes, casas noturnas e cineteatros como Nacional,
Tropical e Sporting da Maianga onde “não era permitida a entrada de qualquer indivíduo
e a discriminação racial era muitas vezes evidente” (WEZA, 2007, p.71).

97
Figura 10 - Público do Miramar no show de Jair e Elis em 1966. A luz da foto e o desgaste natural dificulta
avaliar a composição racial com exatidão, mas estima-se um público branco em sua maior parte (A
NOTÍCIA 12/03/1966, s/p).

Outro gênero que circulava por estas casas noturnas e cineteatros era a chamada
“música moderna” ou “yé-yé-yé”, ou seja, música pop e rock, conjuntos musicais, com
guitarra, baixo e bateria. Em 1964 no Nacional aconteceu a “eleição do melhor par a
dançar Rock” com os conjuntos Rocks, Bossa Nova, Jactos, Joe Mendes e seus
eletrônicos (Diário de Luanda, 25/01/1964, p.3). Interessante notar que em Luanda
quando a expressão “bossa nova” é usada, aparentemente, não é no mesmo sentido
original, uma vez que, no Brasil, bossa nova e rock são gêneros bastante distintos e
chegaram a compor correntes musicais que se antagonizavam. Em meados da década de
1960, no Brasil, quem ia ao programa O Fino da Bossa não deveria ir ao programa Jovem
Guarda (REIS, 2014, p. 58). A mesma matéria do Diário de Luanda anuncia também um
concurso do “melhor conjunto de Luanda intérprete de música moderna” a ocorrer em
01/02/1964 e que as “provas” seriam nas modalidades “twist, rock, bossa nova, slow rock,
bolero rock” (Diário de Luanda, 25/01/1964, p.3).
José Weza destaca que em determinado momento – o que pela leitura dos
periódicos angolanos estima-se que seja na segunda metade da década de 1960 – a CITA
passou a determinar que uma parte dos shows nas boates e cineteatros tivesse conteúdo
“nacional” e que isso beneficiou conjuntos como os Negoleiros do Ritmo e Os Gingas
(WEZA, p.71). A boate Tamar, por exemplo, anunciou em abril de 1966 uma
diversificada programação: um strip-tease com “Nadya e sua jiboia” seguido de um show
de Lourdes Van-Dunem em “folclore de angola” e completando a noite mais uns quatro
shows diferentes com dançarinas (Diário de Luanda 01/04/1966, p.8). Esse tipo de
espetáculo com dançarinas era comum nas diversas boates e dancings da cidade como

98
Embaixador, Marialvas, Estoril, Copacabana, Choupal, Bambi, entre outras (DIÁRIO
DE LUANDA, 29/03/1964, p.2). Algumas dessas casas atraiam certa clientela
masculina:
Gruta, Rex e Copacabana. Estes clubes de striptease eram locais impróprios para
raparigas de boas famílias. O baterista Álvaro Santos, que tocava ao vivo no
Gruta, só ousava mostrar o espaço a sobrinha Dina durante o dia. À noite dizia
que não era sitio para ela. O cabaré, localizado num primeiro andar à entrada da
Ilha de Luanda, fazia parte do roteiro nocturno de muitos homens endinheirados.
Quem não gostasse do espaço, podia ir ao bar 007. nas traseiras, ou a Tamar ali
perto. No Rex e no Copacabana, no Bairro de São Paulo, as noites não diferiam
muito das do Gruta e chamavam o mesmo tipo de cliente masculino, com
negócios próprios e algum poder económico. Havia mulheres, sim, mas nenhum
destes três sítios tinha o rótulo de bar de engate: esse estatuto ficava para o Bambi
e o Cortiço, que abriam durante a tarde e estavam mais vocacionados para facilitar
encontros carnais (GARCIA, 2019, p.148).

Voltando ao consumo de espetáculos musicais internacionais, indicativo do


cosmopolitismo luandense, nas boates e cineteatros se consumiam atrações e shows de
artistas de Cabo Verde, da África do Sul, de Madagascar, dos Estados Unidos, da França,
do Paraguai, shows de Fado e shows de músicas e danças típicas da Espanha. Também
passaram por estas casas noturnas companhias de dança da Rússia, circos europeus e
brasileiros, recitais de música clássica com artistas do Brasil e de Portugal, entre outras
atrações. Bem como, o já citado teatro de revista brasileiro.
Em 1966 se apresenta em Luanda o famoso cantor francês Charles Aznavour e é
assim propagandeado no A Província de Angola (07/01/1966, p. 2): “tal como as capitais
de todo o mundo Luanda também vai admirar o monstro sagrado da canção”. O show é
transmitido pelo rádio também. Já em 1972, a capital de Angola recebe o artista
estadunidense Percy Sledge (A Província de Angola, 07/09/1972, p. 4) e sua equipe de 24
integrantes. Sledge é um intérprete conhecido pela canção mundialmente famosa When a
man loves a woman e descrito pela imprensa como “o rei do spiritual”.
Outro artista internacional que fez bastante sucesso em Luanda é o brasileiro
Martinho da Vila que lá esteve em 1972. Seus relatos memorialísticos sobre esta primeira
visita são bastante intensos. Ao relatar um de seus shows, declarou a plateia estar muito
emocionado, por estar, provavelmente, “em terras de seus bisavós”. Note-se que Martinho
foi sem seus músicos “privativos”, sendo acompanhado pelos angolanos “Os Cunhas”,
diferentemente de outros artistas estrangeiros como Roberto Carlos ou Percy Sledge com
suas, numericamente, grandiosas equipes e bandas (VILA, 1998, p. 31)

99
Mesmo tendo pouco tempo de carreira – seu primeiro Long Play é de 1969 –,
Martinho já era bastante conhecido em terras angolanas. Uma de suas apresentações na
parte mais “rica” de Luanda foi no Avis:

(...) “fui cantar para a elite portuguesa.


A porta do cinema estava preta de negros, pra me verem entrar, alguns, aquela
altura já meus conhecidos.
Perguntei ao empresário português, meu contratante, se poderia botar alguns
amigos pra dentro e ele me disse.
-Convite cá já não temos mais e lugares sentados não os há, mas se eles quiserem
ficar em pé não há problema. Vá lá na portaria e indica quem são os seus amigos.
Eu nem me preocupei com os conhecidos. Falei da porta para os que estavam a
vista.
-Entra pessoal!
Foi uma confusão! A negrada invadiu o recinto dos brancos e eu fiz uma
apresentação para a plateia miscigenada (VILA, 1998, p. 31).

Como é sabido, nos fenômenos das memórias individuais e coletivas algumas


lembranças são mais significativas do que fáticas. É possível que o referido evento tenha
ganhado contornos mais grandiosos na memória de Martinho. Ainda sobre a primeira
visita de Martinho a Angola, o músico também excursionou pelas províncias de Benguela,
Lobito, Huambo, entre outras. Seus intensos contatos com o povo e com os músicos
angolanos começaram a se refletir na sua produção artística e em diversos outros projetos
ao longo dos anos 1970 e 1980 (VILA, 1998, pp. 31-39).
Como se percebe, os artistas brasileiros dos mais diversos segmentos e gêneros eram
bastante consumidos na cena cultural luandense. A seguir, será abordado um gênero que merece
especial destaque dada o seu expressivo sucesso entre os angolanos das diversas classes sociais.

100
2.2.1 A circulação da música popular ou música “cafona” em Luanda.

Anteriormente, abordou-se a relativa resistência ou falta de empolgação do


público angolano de cineteatros luxuosos e das boates à música brasileira no estilo bossa
nova e jazz e à artistas com temáticas engajadas. Nas falas de Elis Regina e do grupo de
jazz Os Brazucas, destacou-se a percepção dos mesmos de que o público luandense “não
conhecia” o que de mais “moderno” e “sofisticado” se produzia na música brasileira.
Esses últimos declaram que nunca antes lhes haviam solicitado que tocassem um
“bolero”. No entanto, os gêneros conhecidos como Sambão-Jóia, o bolero abrasileirado e
a balada romântica foram muito populares no Brasil das décadas de 1960 e 1970
vendendo milhões de discos. Os expoentes destes gêneros foram Waldick Soriano,
Nelson Ned, Benito de Paula, Paulo Sérgio, Roberto Carlos, Carmen Silva, entre outros
(ARAÚJO, 2002, p. 12) Destaca-se que Ned, Carlos e Silva se apresentaram em Luanda
entre 1960 e 1970.
Tais cantores e cantoras populares no Brasil eram qualificados por grande parte
da crítica e da intelligentsia como “bregas” ou “cafonas”, denotando um julgamento de
valor em relação a estes artistas. Jornalistas e críticos como Nelson Motta, Tárik de Souza
e José Ramos Tinhorão ou não escreviam em suas colunas e livros sobre estes artistas ou
indiretamente escreviam avaliações que punham em dúvida a qualidade musical desses
intérpretes e compositores. Alguns críticos mais agudos como Marcel Delon, pontuavam
que este tipo de música “não ensina nada”, que serviria apenas para “embalar corações e
mentes menos exigentes” e que não teriam “qualidade artística” (conforme citado por
ARAÚJO, 2002, p.111). Pejorativamente, muitas vezes esses artistas eram referidos
como “cantores das empregadas domésticas”, mas é interessante notar que em Luanda
eram consumidos pelas elites e setores médios que frequentavam espaços como os
cineteatros Aviz e Restauração e a boate Tamar. Note-se que tais músicos eram o produto
principal das gravadoras brasileiras, os que davam um largo retorno comercial em
oposição, ou complementação, a um grupo de artistas da faixa de “prestígio” como
Caetano Veloso, Milton Nascimento e outros (ARAÚJO, 2002, p.111), que davam status
as empresas do mercado fonográfico, mas lucro inferior que os cantores e cantoras
populares.

101
Pode-se admitir que a excelente recepção dos chamados “cafonas” em Angola se
dá também pela familiaridade que o público local tinha com boleros. Como chama a
atenção Rego, boleros, merengues e ritmos afro-cubanos já circulavam desde os anos
1940 pela África Centro Ocidental. Em parte, pelas rádios da resistência francesa – no
contexto da Segunda Guerra mundial – em territórios africanos que buscavam tocar estes
gêneros que consideravam negros para atrair a audiência de africanos, e, em parte pela
circulação dos chamados discos “GVs” (SHAIN, 2002). Ainda segundo Rego, para
grande parte dos músicos brasileiros, o próprio semba angolano remete a sonoridade
caribenha ou cubana (REGO, 2016, pp. 87-89).
Por volta da década de 1930, gravadoras europeias como EMI passaram a
comercializar a preços acessíveis discos de música cubana e caribenha pela África
Ocidental. Tais coletâneas eram chamadas “G.V. Series” e circularam por países como
Senegal, Nigéria, Gana e nos dois Congos, sobretudo o antigo Zaire (REGO, 2016, pp.
87-89). E, pode se inferir, dos Congos chegou a Angola, uma vez que havia uma grande
circulação cultural e de pessoas entre as referidas colônias (REGO, 2016, pp.88-90).
Alguns dos músicos angolanos precursores do semba circularam pelos dois Congos,
sobretudo o “Kinshasa”,83 bem como seus correspondentes que engendraram a rumba
congolesa (REGO, 2016, pp.88-90) circularam por Angola (REGO, 2016, pp.88-90).84
Richard Shain analisa dessa forma o sucesso das canções afro-cubanas na África
Ocidental:

(...) Era a familiaridade da música. As formas musicais cubanas mais famosas


derivam em parte do senegalês africano (…). Boncana Maiga, flautista e
arranjador nigeriano, diz que para os africanos, a música afro-cubana como a
charanga fornece um espelho e o abalo estético de ouvir ritmos familiares em
novos contextos. Vários fatos históricos explicam as genealogias compartilhadas
das músicas urbanas africanas. Primeiro, os africanos foram forçados a migrar
para o século XIX [para Cuba]. Como resultado desse movimento populacional,
[aumenta] infusão contínua de novas músicas africanas em Cuba. A música
ouvida nas décadas de 1950 e 1960 era de apenas três ou quatro gerações
[distantes das produzidas] na África. Além disso, nas plantações cubanas, os
africanos escravizados podiam manter algumas de suas tradições religiosas.
Alguns tambores africanos percorrem [de volta] a jornada através do Atlântico e

83
A República Democrática do Congo também chamada de “Congo-Kinshasa”, enquanto que a República
do Congo também é chamada de “Congo-Brazaville”, em referência ao nome de suas capitais.
84 “O guitarrista angolano Manoel de Oliveira é frequentemente citado em Angola, quando se trata de

música congolesa e guitarra zairense. A ele justamente é creditado uma contribuição importante na
consolidação deste estilo. Manuel de Oliveira nasceu nos anos 20, na cidade de São Salvador, que foi a
capital do antigo império do Congo. Hoje esta cidade é Mbanza-Congo, capital da província angolana do
Zaire, ao norte do país. Nesta região fronteiriça Manuel, como em geral os músicos de sua região, ouvia as
músicas bakongos, e muitos deles iam buscar trabalho em Kinshasa, atraídos pela grande efervescência
musical da capital zairense.” Cf. Rego (2016, p.90).

102
se infiltram na música popular cubana apenas para ressurgir na música africana
na década de 1930 (SHAIN, 2002, p. 91).

Esse “gosto” construído por gêneros cubanos como o merengue, a rumba, e,


sobretudo, o bolero (ritmo lento, feito para dançar a dois, com temáticas lírico-amorosas)
auxiliou, defendo, a difusão da música brasileira chamada “cafona” pelos palcos e rádios
angolanos, uma vez que o repertório destes cantores e cantoras era de boleros brasileiros
e “baladas românticas”. Há significativos relatos de que artistas angolanos foram
influenciados pelos cantores deste gênero. A título de ilustração: Luiz Visconde, que
recebeu o epíteto de “o maior cantor romântico de Angola”, já interpretou canções de
Nelson Gonçalves (WEZA, 2007, p. 56). Pedrito interpretava sucessos de Agnaldo
Timóteo e Lindomar Castilho (WEZA, 2007, p. 93). Não tanto na chave romântica, mas
na “chave caribenha”, Sara chaves interpretava Carmen Miranda (REGO, 2016, p. 91).
Isso ajuda a entender o grande sucesso de Roberto Carlos em Angola, cujo repertório é
composto principalmente de baladas românticas e, em menor medida, de boleros como
Não é por mim (1961). É preciso destacar que Roberto Carlos não é um artista enquadrado
totalmente dentro do gênero “cafona”, pois ganha legitimidade tendo algumas de suas
canções gravadas por grandes nomes da MPB como Maria Betânia, mas tem um
repertório de canções românticas que o aproxima dos artistas do chamado “brega” como
Agnaldo Timóteo e Carmen Silva.
Fazem parte do repertório de Roberto Carlos em finais da década de 1960 e início
da de 1970 canções no estilo jovem guarda, com uma estética sonora próxima do rock,
como Se você pensa (1968), e, principalmente baladas românticas As canções que você
fez pra mim (1968), O tempo vai apagar (1968), Sua estupidez (1969), Não tenho nada a
perder (1969), Minha senhora (1970), Detalhes (1971), Amada Amante (1971), entre
outras. Na já citada reportagem do ano de 1970 sobre o grupo Os Brazucas, um dos
integrantes comenta que Roberto Carlos já não tem a mesma popularidade de antes no
Brasil, o que na realidade é mais julgamento de valor do que um critério comercial, pois
o referido artista continuou por parte significativa dos anos 1970 como um campeão de
vendas. “Pois, Roberto Carlos ainda é ‘menino bonito’ em Luanda” (Notícia, 31/01/1970,
pp. 52), respondeu o jornalista de A Notícia (31/01/1970, pp. 52), ao membro dos
Brazucas, ou seja, ainda faz bastante sucesso. Nas propagandas dos jornais, os seus shows
em 1972 por Luanda, alguns deles no Avis, são anunciados como tendo “1000 quilos de
aparelhagem sonora” e “toneladas de talento”, dando a entender que a estrutura das
apresentações foi excepcional para os padrões luandenses.

103
Também em 1972, se apresenta em Luanda a cantora Carmen Silva (A
PROVÍNCIA DE ANGOLA, 02/12/1972, p.3) cujo repertório também é composto de
boleros e baladas românticas como Adeus Solidão (1969) e Não vou mais amar ninguém
(1971). “Na voz de Carmen Silva ouvem-se ecos do porão do primeiro navio negreiro e
lamentos do terreiro da primeira senzala” (ARAÚJO, 2002, p. 175) descreve Paulo César
Araújo sobre sua trajetória, remetendo ao fato do pai de Carmen ter nascido em 1866,
portanto, antes da abolição da escravidão no Brasil. Silva teve uma infância pobre e difícil
e na juventude foi empregada doméstica. Ao chegar ao estrelato chegou a ser cogitada
pelas gravadoras como uma artista de samba, mas recusou. “‘Só porque sou negra tenho
que cantar samba?’ A gente tem que cantar aquilo que o coração sente, né?”, declarou
Silva sobre a questão (Conforme citado em ARAÚJO, 2002, p. 175).
Outro cantor popular que se apresenta em Luanda na mesma época é Cláudio
Fontana no Restauração (A PROVÍNCIA DE ANGOLA 02/12/1972, p.3). Fontana
também tem um repertório de baladas românticas sendo uma delas Estou amando uma
garota de cor cujo refrão diz: “a felicidade não tem forma e não tem cor/ em você existe
o verdadeiro amor”, temática que não soaria estranha a ouvidos acostumados ao ideário
lusotropicalista de convivência “harmoniosa” entre as raças. Outra letra de Fontana, esta
interpretada por Toni Tornado, é E se Jesus fosse um homem de cor? em que pergunta:
“você teria por ele o mesmo amor/ Se Jesus fosse um homem de cor?”. Ainda de acordo
com Paulo César Araújo esta canção foi composta justamente após suas apresentações
em Angola em 1972:

Quando eu cheguei na portaria de um hotel em Luanda, testemunhei uma cena


que me marcou muito: vi um cidadão branco, português, agredir de uma forma
terrível um negro que estava ali carregando as malas dos hóspedes. E aquilo me
chocou muito na hora. Aí eu fui para o quarto do hotel e fiquei pensando: ‘Meu
Deus! Se o Cristo que eu amo, e que toda a humanidade ama, não fosse branco e
de olhos azuis, como nos é pintado e mostrado, será que as pessoas o amariam da
mesma forma? Será que esse cidadão que eu vi agora bater nesse negro, teria por
Cristo algum amor se Ele fosse um homem de cor?’ Enfim, a coisa foi se
avolumando e eu saí de Luanda com esse tema na cabeça. Mais tarde, ao retornar
ao Brasil, num daqueles momentos com vontade de compor, peguei o violão e fiz
Se Jesus fosse um homem de cor (Conforme citado em ARAÚJO, 2002, p. 182).

A referida canção incomodou algumas autoridades religiosas e dos órgãos de


segurança. Tornado e Fontana foram chamados à polícia para dar explicações. Os
questionamentos recaíram, sobretudo, sobre Tornado, que durante as performances desta
composição em seus shows erguia e cerrava o punho, no gesto conhecido como do

104
movimento “Black Power”. Não chegaram a ser presos, mas estes e outros episódios
fizeram com que Tornado se exilasse em países como Uruguai, Egito, Tchecoslováquia,
Angola, 85 entre outros (ALVES, 2015).
Cabe ressaltar que, ao que indicam as fontes, os nomes de “prestígio” da MPB
como Milton Nascimento, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros, não se
apresentaram em Angola no período de 1961 a 1974. Em parte, porque, como vêm sendo
demonstrado, os artistas que tinham maior recepção em Angola eram os mais populares,
os cantores e cantoras de músicas românticas. Contribui para tal situação também o já
referido e forte lobby português sobre a imprensa brasileira, que reproduzia quase que
integralmente a versão lusitana sobre os “terroristas” a soldo do estrangeiro e certo
desinteresse da mídia e da sociedade brasileira em geral pelo continente africano, a não
ser em uma perspectiva “congelada”, de um passado idílico. A África daquele presente
das lutas anticoloniais pouco apareceu nas canções dos músicos brasileiros,86 e, mais uma
vez, isso se deve ao relativo desconhecimento do que se passava no continente.
Os músicos brasileiros, também tiveram influência na circulação de outro gênero
musical na área urbana: a chamada “música jovem”, como se verá a seguir.

85Até o momento não encontrei nos jornais referência a Toni Tornado.


86A exceção é uma canção de Tim Maia chamada Rodésia, mas é posterior ao período ora abordado. É de
1976. A letra diz: “Em Guiné-Bissau/Não está legal/ Muito menos na Rodésia/África do Sul/ Pegue o
sangue azul/ Mande para as cucuias/ Só assim vão ver/ Que o preto é bom/ Mas é valente também/ Meu
irmão de cor/ Chega de pudor/ Pois assim não é possível/Toma o que é seu/ Pois foi quem te deu/ Bela
natureza triste/ Foi deixar pra lá/ Mas assim não dá/ Veja o que aconteceu/ Vai bem devagar/ Vai bem como
és/ Mas vai bem objetivo/ Pegue o que é seu/ Viva livre em paz/ Pois a tua terra é esta/ Sei que és do som /
Não és de matar/ Mas não vais deixar pra lá”. Um clipe dessa canção pode ser visto no seguinte link
https://www.youtube.com/watch?v=iSXicp6WZ40. Acesso 03/12/2019 às 14 h 15 min.

105
2.3 “Eles e Elas foram o Diabo”:87 a cena cultural do yé-yé-yé em Angola.

Esse é o título de uma notícia de um jornal luandense em dezembro de 1963. Nela


se descrevem um show ocorrido na boate Etoile em que “pulou-se, cantou-se e gritou-se”
em um “ambiente eufórico”. A mesma matéria do A Província de Angola acrescenta: “o
ritmo dessas músicas modernas – e passageiras, felizmente, para muitos – provoca uma
loucura de criar cabelos brancos” e que a apresentação ficou a cargo do conjunto Os
Jactos com a participação de integrantes dos grupos, também de música moderna, Joe
Mendes e os Eletrônicos e Bossa Nova (.
“Música moderna” ou “ligeira” é a maneira como os portugueses, angolanos e
moçambicanos descreviam o rock inglês e estadunidense. Outra maneira como o gênero
foi descrito é yé-yé ou ié-íé, e, como registra Cardão, a expressão advém da “interjeição
bastante utilizada nas canções rock (...) dos The Beatles, como ‘She Loves Yeah Yeah’”
(CARDÃO, 2013, pp. 333-334). Já no Brasil tal movimento foi descrito como Jovem
Guarda ou iê-iê-iê.
Ainda sobre a notícia do evento em Luanda com os grupos de rock locais, percebe-
se uma leve crítica ao gênero musical indicando ser uma moda passageira para o agrado
de muitas pessoas. Já na imprensa lisboeta, como aponta Cardão, as críticas eram mais
acirradas e, em resumo, acionavam os seguintes argumentos: a saudade e a melancolia
eram características formadoras do temperamento, da nação e da música portuguesa em
contraposição a alegria e aos exageros do rock, bem como se tratava de música sem
profundidade (CARDÃO, 2013, p.334).
Mas como o rock chegou a Luanda? Da mesma forma que nos outros lugares do
mundo. Pelo cinema e pelos discos de vinil. Em 1964, o cineteatro Restauração exibiu o
filme A Procura do Ídolo, protagonizado pelo cantor francês de rock Johnny Hallyday, e,
também fazia parte do evento a apresentação ao vivo do conjunto angolano de "ritmos
modernos" Joe Mendes e os Eletrônicos.88 Também em 1964 há a exibição do filme Vem

87
Título da matéria no A Província de Angola (01/12/1963, p.9).
88
Diario de Luanda, 1963.

106
Dançar comigo de Elvis Presley. Turma Bossa Nova, exibido em 1966 no cineteatro
Tívoli, é outro filme com a mesma temática e que tinha em seu elenco diversos grupos
com uma estética sonora "moderna" como The Dave Clarke Five, The Animals, The
Standels, Freddie Bell and The Bell Boys e outros com uma sonoridade não tão próxima
do rock com The Jimmy Smith Trio e Stan Getz e Astrud Gilberto. É interessante notar
que o nome adaptado do filme – Turma Bossa Nova – faz referência não ao gênero
musical brasileiro que rearticula samba e cool jazz e cujos maiores expoentes são João
Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Morais, mas a tudo que os angolanos entendiam como
"novo" e "moderno" em termos musicais, abarcando o rock, o rythm and blues e a bossa
nova brasileira. Também por isso um dos grupos angolanos de rock já mencionados se
chamava Bossa Nova.
Conforme declarou Gonçalves (2020), as músicas da Jovem Guarda tiveram um
grande impacto sobre a juventude angolana: “era comum aos dois lados em combate uma
música do Roberto Carlos, Quero que tudo vá pro inferno”, aludindo ao fato de que os
jovens soldados, quer do exército colonial, quer dos movimentos independentistas,
atribuíam a essa canção significados belicosos. Gonçalves declara também que, um pouco
antes da chegada das canções de Roberto e Erasmo, chegaram os filmes estadunidenses
relacionados a cena cultural da “música jovem” como Rock Around the Clock e que foi
“um acontecimento!”.
A chegada de filmes e discos de rock estadunidense estimulou uma cena local em
que os jovens luandenses começaram a formar bandas, como as acima descritas, para
fazer covers das canções estadunidenses, das da Jovem Guarda e compor e interpretar as
suas próprias. Vale destacar que o “yé-yé” fazia sucesso entre os estratos médios da
sociedade, principalmente entre os moradores do “asfalto”, mas também encontrava
adeptos entre os moradores da área suburbana de Luanda como se verá a seguir.
No cineteatro Nacional em fevereiro de 1964 aconteceram dois eventos de rock.
No primeiro uma competição para eleger o “melhor par a dançar o rock de 1964” com
apresentações dos conjuntos Rocks, Bossa Nova, Jactos, Joe Mendes e os seus
eletrônicos. E no dia seguinte, no “Festival de música moderna”, os mesmos
agrupamentos disputaram o título de “melhor conjunto intérprete de música moderna”, e,
para isso tiveram de interpretar os subgêneros twist, rock-bossa nova, slow-rock e bolero-
rock. Vale lembrar que no Brasil da década de 1960 tais justaposições e bricolagens
musicais seriam impensáveis, quando rock e bossa nova chegaram a compor correntes

107
musicais que se antagonizavam em um determinado momento da década de 1960, como
na emblemática passeata contra a guitarra elétrica (GUIMARÃES, 2014).

Figura 11 - O grupo angolano de "música moderna" Os Rocks. Fonte: Comunidade Conjuntos antigos de Angola
(página de Facebook).

Já o diálogo do rock com o bolero, ritmo cubano, aparenta ser uma fusão
tipicamente angolana uma vez que a circulação de ritmos latinos e caribenhos pela África
Ocidental e Centro-Ocidental já acontecia desde o final da década de 1940.
Como já mencionado, além dos discos, a “música moderna” poderia ser
consumida presencialmente em eventos nos cineteatros de Luanda. Além das já citadas
competições no Nacional, ocorreu, também em 1964, outra no cineteatro Restauração:
Os Eletrônicos, Herbert et Les Jeunes, Incógnitos e Os Rocks, sendo este último o
vencedor. A descrição da final do campeonato dá alguma ideia da recepção do rock em
Luanda, indicando que parte dos luandenses pretendiam estar atualizados e conectados
com o que de mais moderno se produzia na indústria da música, sem, no entanto, incorrer
no que consideravam posturas “exageradas”:

Não vamos aqui: filosofar sobre a autêntica epidemia de ritmos


modernos, com o «twist» à cabeça, que vai por este mundo fora não podendo
faltar a nossa cidade da Luanda que pretende ser progressiva e atualizada em
todos os capítulos.
Com alguns resultados perniciosos, se os seus executantes ou simples
apreciadores tenderem para uma vida desregrada e censurável de “teddy-boy”, os
ritmos modernos — e o «twist» é o seu mais frisante exemplo — tem o condão,
na verdade, de atrair a juventude, desde os mais tenros anos. Já temos visto
crianças de quatro ou cinco anos, apenas completamente entregues ao balançar
característico do “twist”. E há muitos adultos (mesmo muitos) que deliram com
essas danças nas “boites”, chegando a competir com os profissionais do baile...

108
(...) O festival terminou como tinha começado: num ambiente de euforia, em que
as palmas se misturaram com os gritos de entusiasmo duma juventude que gosta
de expandir os nervos.
Dentro daquele limite que devem ser apreciados os ritmos modernos,
pode afirmar-se que a iniciativa de Angola Filmes atingiu o seu objetivo que era,
recrear a gente nova.

Percebe-se que em Luanda, diferentemente de Lisboa, as críticas não são no


sentido de que o rock seria algo estranho ou oposto à cultura e à identidade local, mas a
um suposto comportamento desregrado que em alguns casos viria atrelado ao consumo
do referido ritmo musical.
Quanto aos consumidores e apreciadores de rock em Luanda, estes pertenciam a
diferentes classes sociais. Certamente que o maior poder de consumo das elites e estratos
médios, majoritariamente brancos, permitia um maior acesso aos discos, roupas e as
apresentações ao vivo em recintos como o Nacional, o Aviz e o Restauração. Esse
processo é semelhante ao que ocorria em Lisboa, como aponta Cardão: “faziam parte da
juventude yé-yé apenas os jovens que podiam adquirir os novos bens de
consumo”(Cardão, 2013, p. 352). Nessa perspectiva, para se frequentar esses cineteatros,
clubes e boates era preciso ter um considerável poder aquisitivo.
O Ngola Cine, voltado para um público mais popular no seu evento de todas as
quintas-feiras, O Dia do Trabalhador, contava com a participação de grupos considerados
folclóricos como Negoleiros do Ritmo e Os Kiezos e, eventualmente, com grupos de
música moderna como Os Rocks que lá se apresentaram em 09/05/1964 (Diário de
Luanda, p.2). A “música jovem” esteve presente em outras apresentações no Ngola, como
na da cantora local Maria Benvinda que “adora os jovens yé-yé de cabeleira cumprida e
calça boca-de-sino”, conforme registrou o jornal Tribuna dos Musseques (28/09/1967, p.
p.5), na sua cobertura semanal sobre as atrações culturais e os “divertimentos” disponíveis
nas áreas mais pobres de Luanda.
É possível encontrar nos demais periódicos angolanos, outros indícios de que a
música e a estética rock circulavam entre os menos abastados da capital angolana. O
Tribuna dos Musseques de 11/05/1967 faz um panorama dos “divertimentos” disponíveis
na área suburbana. O jornalista Adriano Sebastião relata sua visita ao salão de bailes Giro-
Giro descrevendo a “perícia” das frequentadoras na dança: “acompanha perfeitamente os
ritmos modernos”, e, acrescenta, “um tipo até fica de boca aberta só de ver (...) tudo
inebriado com os ritmos yé-yé”. Como vêm sendo abordado, o sucesso dos ritmos
modernos em Luanda teve ao menos dois vetores importantes de disseminação: os filmes

109
de Elvis Presley, e, como assinala Gomes (2021, p.209), “principalmente o yé-yé cantado
em português do Brasil”, já que o sucesso da Jovem Guarda “era comprovado pelas
versões reproduzidas por jovens cantores angolanos, do asfalto ao musseque”
Em outro artigo escrito no Tribuna (25/08/1967, p. 2), um morador do subúrbio
alerta para o “perigo”, na sua concepção, que um jovem com predileção por “camisas mil
flores” e “calças bocas-de-sino, portanto, todo yé-yé”, representa à virtude das jovens do
local. O autor chama a atenção para a possibilidade de um destes jovens “seduzir as moças
menores, desencaminhá-lo-ás (...). Coitadas são então desfloradas por esses yé-yés
gatunos sebentos”.
Há também um anúncio da barbearia do Senhor Celestino Mandavela (TRIBUNA
DOS MUSSEQUES, 16/08/1967, p.4), informando que realizava primorosos cortes de
cabelo nos estilos “corte-cheio, corte à mamã, corte-escovinha, babirói e yé-yé”. Na
mesma página há um poema de outro colaborador intitulado “Menina yé-yé”:

“menina yé-yé de mini-saia/ que tem preso esse coração meu/ (...) Menina a yé-
yé, meias furta-cor/ Vês que estou quase morrendo de dor? (...) Pois olhe então
menina, peço-te Para baixar esta saia depressa/ Pra usar um par de meias
transparente/ Pra não dançar somente a nova-bossa / (...) Siga meus conselhos
atrevidos/ E te darei uma vida cheia de carinho”.

Note-se que em Luanda a cultura do rock da década de 1960, com suas canções e
estética – no que concerne a aparência, vestimenta, estilo de cabelo e comportamento –
era bem disseminada tanto na área “urbana” como na área suburbana. Acrescente-se que
para muitos luandenses não havia contradição ou dicotomias entre os ritmos modernos e
os chamados “folclóricos”, pois em uma mesma programação em um cineteatro ou um
dos clubes conviviam e alternavam-se grupos dos dois gêneros. Em um salão de baile do
subúrbio, na mesma noite se toca “Ngola Ritmos”, “todos dançam aquilo com pose” e se
dançam os ritmos “yé-yé” (Tribuna dos Musseques, 11/05/1967, p. 3)

110
2.4 Cotidiano e lazer na área suburbana de Luanda.
O brasileiro a dançar no Giro-Giro encontra par (Tribuna dos Musseques, 11/05/1967, p. 3).

Luanda cresce dia a dia a olhos vistos como se costuma dizer, ninguém disso põe a menor dúvida, pois a
existência de bairros nos locais em que outrora eram precipícios (...), bairros como (...) populares números 1,
2 e 3, Terra Nova, Cazenga (Tribuna dos Musseques, 11/05/1967, p. 3).

Como vêm sendo abordado, Luanda passa por um processo de expansão a partir
dos anos 1940, com a chegada de novas levas de colonos portugueses e com o dinamismo
econômico impulsionado pela produção e exportação de produtos primários como o café.
Tal movimento ganha impulso a partir do estourar da luta armada anticolonial porque
uma das táticas empregadas para manter as chamadas “províncias ultramarinas” como
territórios portugueses foi um acentuado fomento a atividade econômica em Angola. O
planejamento urbano idealizado pelas autoridades coloniais (CASTELO, 1999;
MOURÃO, 2006) pressupunha uma “zona urbana” orbitada pelos bairros destinados aos
trabalhadores, especialmente o bairro operário (popularmente conhecido como “B.O.”) e
o bairro indígena. Com o avançar das décadas de 1950 e, sobretudo, da de 1960, a área
“suburbana” se expandiu ainda mais. Esse subúrbio era composto pelo já citados bairros
destinados aos trabalhadores e as populações nativas, pelos bairros populares,
caracterizados por residências cuja construção foi subvencionada pelo governo colonial
e pelos musseques, as regiões mais precarizadas, com vias públicas “de areia” e casas
cujas construções poderiam ser de pau a pique e de materiais improvisados como madeira,
zinco e papelão.
Habitavam o subúrbio luandense os descendentes das “famílias tradicionais”,
aqueles que até 1961 tinham a classificação jurídica de assimilado, e, em se tratando das
regiões mais pauperizadas, os que, até antes da extinção do referido estatuto que eram
classificados como “indígenas”. Homens e mulheres que durante na maior parte dos dias
exerciam os seus respectivos ofícios, e, eventualmente, às noites durante a semana, e,
mais frequentemente aos sábados e domingos, buscavam opções de lazer. Os
divertimentos, em geral, consistiam nos campeonatos suburbanos de futebol
(BITTENCOURT, 2017) que ocorriam nos clubes esportivos-recreativos, eventos do tipo
“soirée dançante” que ocorriam nos mesmos clubes ou nos bailes em recintos como o
Giro-Giro mencionado acima, onde se poderia dançar a música romântica brasileira dos

111
cantores populares, a Jovem Guarda e o samba, em paralelo com a música angolana,
ritmos congoleses, latinos e caribenhos.
No subúrbio luandense, se localizava Ngola Cine, onde se apresentou em 1972,
Martinho da Vila. O artista descreve que foi seu primeiro show em Angola e que foi “para
os negros” – em oposição, na sua narrativa, ao show que fez para os brancos nos
cineteatros de luxo – e que o Ngola era grande e tinha “gente que nem formiga” (DA
VILA, 1998, p. 27). O músico conta ainda que depois de alguns dias da sua primeira
apresentação em Luanda, “dribla” sua segurança – possivelmente provida pela PIDE – e
aceita um convite para uma festa no musseque Sambizanga onde confraterniza com a
população local, come mufete, bebe caparroto89 e diz se sentir no Morro dos Macacos ou
então na Serrinha.
Segundo seus relatos, o artista chegou a declarar em um dos seus shows em
Angola: “lá no Brasil hoje se comemora o sesquicentenário da independência. Espero
quando aqui voltar encontrar um país livre” (VILA, 1998, p. 31). Desta fala, depreende-
se que o show que Martinho descreve em seu livro ocorreu em 07/09/1972, no aniversário
de 150 anos da independência do Brasil. “Deu um branco no povo e eu fiquei muito
perdido. Alguém puxou uns aplausos que foram aumentando, aumentando, até todos
aplaudirem corajosa e calorosamente” (VILA, 1998, p. 31), continua Martinho em sua
descrição. Um pouco mais adiante no seu relato, o cantor acrescenta: “Depois que soube
que os que se excederam na vibração foram presos pela PIDE, a terrível organização
policial portuguesa” (VILA, 1998, p. 31).
Os órgãos da Ditadura brasileira estiveram atentos às mobilizações dos sujeitos
negros. Após o retorno de sua primeira visita a Angola, Martinho declarou que tomou
uma “reprimenda dos militares” porque “comecei a falar que aqueles países iam ficar
independentes” (SANCHEZ, 2010). O cantor conta ainda que não chegou a ser preso
porque era um cantor famoso e que ficou “marcado” como um integrante do “movimento
negro”: “Para a ditadura era pior ser do movimento negro do que ser comunista”
(SANCHEZ, 2010).
O referido Ngola Cine é o único cinema cuja programação sai com detalhes no
Tribuna dos Musseques, o que é indicativo de seu público mais popular, no que concerne
ao poder aquisitivo, dado o público-alvo do jornal. No Tribuna encontramos matérias que
“denunciam” os problemas dos subúrbios: reclamação de que as fontes d’águas – único

89
Mufete é um tipo de preparo de peixe, qual seja, assado na brasa sem retirada das vísceras. Caparroto,
um tipo local de destilado.

112
provimento de alguns musseques sem água encanada – funcionam num horário escasso,
o coletivo que passa atrasado ou em número reduzido, entre outros problemas. Por suas
páginas é possível encontrar uma parte da vida social das áreas suburbanas onde viviam
trabalhadores do comércio, da construção civil, zungueiras (vendedoras ambulantes de
peixes, laranjas e outros alimentos), quituteiras, lavadeiras e indivíduos cujos ofícios lhes
granjeavam uma vida com menos dificuldades composta por servidores públicos,
alfaiates, costureiras, mecânicos, relojoeiros, músicos e bancários. Há sempre referência
à casamentos e batizados e suas respectivas “farras”, as comemorações que avançavam
da tarde para a noite e madrugada adentro com bebida, comida e música.
Tomando emprestada a citação que Martinho da Vila faz em seu livro de memórias
de um poema de Agostinho Neto, nos musseques aos sábados se ouve sempre “som de
viola/ acompanhado de uma voz que canta sambas indefinidos” (conforme citado em DA
VILA, 1998, p.37). O Tribuna de 06/07/1967 (pp. 06-07) descreve uma animada festa de
batizado do menino José C. Castro, filho de Paulo F. de Castro e D. Felipa D. de Castro.
A matéria descreve o “repasto” composto de uma funjada de porco90 e bebidas diversas,
destacando que o evento foi animando por uma excelente “discoteca” e que ela seria
“talvez a melhor dos nossos musseques” indicando que a família possuía muitos discos
de gêneros variados, sendo alguns deles, possivelmente, de artistas brasileiros.
Na mesma matéria o jornalista Manuel Pedro Pacavira, 91escolhe três personagens
para entrevistar: duas moças e um rapaz. Nos três casos são jovens estudantes ou
trabalhadores que já passaram pelos estudos. Percebe-se aí a intenção do jornalista em
elogiar ou dar “bons exemplos” de conduta do e para o povo dos subúrbios. Uma das
jovens se chama Domingas Saveia, cursou o “Liceal”, tem curso de datilógrafa e é
funcionária pública. Após concluir os estudos liceais, Domingas tinha o projeto de cursar
uma academia de música no Brasil. A outra jovem Maria Helena Manuel Diogo é
professora primária no musseque Prenda e está “a fazer o exame do 5º ano de Letras”. E

90
Funge é uma massa cozida feita a base de diferentes farinhas, quais sejam, fuba de bombó (um preparo
específico de farinha de mandioca), fubá de milho, entre outras, em geral acompanhada de carnes como
porco, peixe ou frango, acompanhado também de feijão com óleo de palma. Conforme a tese de doutorado
(no prelo) de Karina Ramos (2021): “Kuzumbuca: panelas sem tampa. Territorialidades, experiências
sociais e trocas culturais do consumo alimentar em Luanda, PUC - RJ.
91
Manoel Pedro Pacavira, segundo a União dos Escritores de Angola, nasceu em 1939, tendo, portanto, em
1967, cerca de 28 anos. Ainda sobre a biografia disponibilizada por essa instituição, Pacavira chegou a ser
preso pela PIDE, sendo enviado a prisão do Tarrafal em Cabo Verde. Ver d’ALMEIDA (2014) e
https://www.ueangola.com/bio-quem/item/9-manuel-pedro-pacavira. Acesso em 16/05/2021 às 16 h 00
min.

113
o jovem do sexo masculino é Afonso Côrtes de Lemos, auxiliar de farmácia e está na
etapa de “conclusão dos estudos”, presumidamente os estudos em nível secundário.

Figura 12 - O "homenageado" da festa de batizado. Fonte: Tribuna dos Musseques, 06/07/1967, pp.
06-07. Percebe-se aqui e nas demais edições do órgão de imprensa, a intenção dos jornalistas e redatores
em fazer uma espécie de "crônica" da vida social dos moradores do subúrbio. O que, em comparação,
não ocorre nos grandes jornais como A Província de Angola ou Diário de Luanda. Há alguma crônica
de costumes nas revistas Semana Ilustrada e, principalmente, Notícia, mas, em geral sem cobrir eventos
privados.
Figura 13 - O homenageado na festa de batizado. Fonte Tribuna dos

Essa prática de dignificar a postura dos moradores dos musseques aparece também
na coluna “figuras do nosso meio”, onde aparecem pequenas biografias dos moradores
“famosos dos musseques”, em geral homens e mulheres detentores de um “ofício” ou
com algum nível de estudo. Os homens são sempre representados em terno e gravata em
uma imagem que evoca respeitabilidade. A edição de 13/07/1967 traz a biografia de
Matheus José, proprietário e responsável técnico da Relojoaria Santo Antônio. Na edição
de 06/07/1967 a homenageada nessa coluna é Luíza Paulo Escórcio, “modista” cujos
vestidos e trajes são apreciados pelos moradores do musseque Rangel. Não há referência
a cor nas matérias, como já é tradicional na imprensa luandense, mas a imensa maioria
das fotos do Tribuna, ao contrário dos grandes jornais e revistas como A Província de
Angola e Notícia, evidenciam mulheres e homens negros.

114
O ABC Diário de Angola, de acordo com BOSSLET (2014, p. 102), jornal que
originou o Tribuna dos Musseques, era considerado um jornal com certa independência
em relação ao governo colonial e justamente por esse posicionamento editorial foi
escolhido para dar origem ao suplemento semanal, depois periódico separado.
A diretriz editorial do dito periódico deveria ser estabelecida de modo que o
Tribuna “defenda com sinceridade as vossas aspirações, sem chocar com a política de
Estado (TT/PIDE/DGS/Proc. 15.12/A/2)”, conforme os processos da PIDE sobre o dito
jornal. “Organizado e publicado por vocês [dos subúrbios] sem que se saiba apoiado por
nós (governo)”. Tais informações constam no mesmo processo em que Afonso Dias da
Silva, fundador do jornal, comparece na sede da polícia política em 1973 para questionar
as mudanças na direção do periódico que estariam se fazendo sentir na linha editorial,
afastando, assim, os leitores mais tradicionais por conta da criação ou o reforço na
imagem de “jornal do governo”. “O nosso jornal devia estar sempre, integrado na própria
técnica de subversão (conquista das massas menos evoluídas)”, continua Dias da Silva
citando as instruções dadas pelo Coronel Braga Paixão, autoridade ligada aos órgãos de
informação encarregado de supervisionar o referido órgão de imprensa
(TT/PIDE/DA/PI/15.12/A/2/NT/2084).
Percebe-se também a ressonância das diretrizes dos órgãos da polícia política no
elogio implícito que se faz aos jovens suburbanos que tiveram acesso a educação formal
e ocupam postos de trabalho medianos do ponto de vista da estratificação social. Como
defendeu Dias da Silva, “o leitor suburbano sentia-se dignificado, satisfeito, e ia
conhecendo individualmente o seu próprio meio”. No mesmo trecho do processo em que
defende as linhas editoriais do semanário, o redator prossegue dizendo que era preciso
“moralizar as pequenas iniciativas do habitante nativo suburbano” e “reconhecer o bem
para ser louvado”. Em alguns círculos do subúrbio, sobretudo nos mais letrados, o
Tribuna dos Musseques era encarado com certa desconfiança, por haver suspeitas de ser
“Jornal da PIDE” – o que de fato era – e também por ser considerado “simplório”. “Até
aqueles africanos mais evoluídos”, escreveu o redator em comunicação aos órgãos de
informação, “diziam ‘É jornal para preto do Musseque” (...) passaram a ler as escondidas”
(TT/PIDE/DA/PI/15.12/A/2/NT/2084). Infere-se que devido a tais desconfianças um dos
jovens que teve o perfil descrito na matéria, Afonso Lemos, auxiliar de farmácia, tenha
sido “esquivo a conversas”, escreveu Pacavira (Tribuna dos Musseques, 06/07/1967, p.
7).

115
Conforme Bosslet (2014, p. 103), Manuel Dias Pacavira, Adriano Sebastião e Dias
da Silva eram militantes nacionalistas que já haviam sido presos, e, postos em liberdade
assistida, tiveram de colaborar com os órgãos de segurança organizando e publicando o
dito jornal. Ou seja, trata-se de um jornal criado com o objetivo de “atrair” a população
dos musseques para a órbita colonial, conferindo a esses espaços urbanos uma imagem
de ordem e paz, que seriam resultado dessa forma “particular” dos colonizadores
portugueses.
Em todo caso, os referidos colaboradores do jornal de fato se empenharam em
retratar a vida nos musseques e suas demandas e necessidades. Observa-se que os
principais jornalistas do Tribuna – Dias da Silva, Sebastião e Pacavira – eram angolanos
dos estratos médios que tiveram acesso ao ensino formal antes da década de 1960,
indicando seu pertencimento ao grupo dos que até 1961 eram juridicamente classificados
como “assimilados”, e, possivelmente às chamadas famílias tradicionais. Tais indivíduos
e seu grupos familiares não eram residentes necessariamente nas áreas mais carentes dos
subúrbios, mas por estas áreas circulavam com frequência, não só pelo ofício de se redigir
as matérias, mas também por afinidade. Como indica Marissa Moorman (2014), os
musseques foram o locus preferencial onde se engendrou a “angolanidade”. Mas também
cabe ressaltar que por vezes, estes colaboradores do jornal, exprimiam certos julgamentos
moralistas – e, como mencionado, fazia parte das diretrizes do dito jornal “moralizar” as
iniciativas dos habitantes do subúrbio” – quanto ao que consideravam “excessos” nas
“farras”. Elogiam, por exemplo, a anfitriã do já citado batizado por encerrar as
comemorações as 21 h.
Quanto ao lazer e aos “divertimentos”, já nos primeiros números, o Tribuna dos
Musseques denunciava a ausência de políticas de lazer voltadas à população dos
subúrbios e para a “falta de divertimentos” no geral. Na edição de 03/08/1967 (p.02) ao
vocalizar as demandas dos moradores na coluna Mosaico da Cidade, o jornal chama a
atenção para a falta de um cinema no bairro do Cazenga. Reclamam da falta de asfalto na
rua do cinema Império, ocasionando poeira levantada por carros em alta velocidade, o
“que chega a sujar a indumentária das senhoras e cavalheiros que frequentam aquele
recinto” (Tribuna dos Musseques, 06/06/1967). Clamam ao Instituto de Trabalho
Previdência e Ação Social também pela construção ou o apoio à construção de outros
cinemas e centros recreativos-culturais como o do Bairro Popular de São Paulo. Segundo
o periódico, “os homens amordaçados das canseiras e fadigas da lida diária” precisam de
divertimentos, que maior será a sua produtividade no trabalho se for “antecedido de horas

116
bem alegres que facultem o seu bom humor” (Tribuna dos Musseques, 03/08/1967). Os
redatores também sugerem que seja dado apoio aos grupos “folclóricos” para que se
apresentem nos bares locais. Como se verá logo adiante tal clamor foi atendido com a
realização de shows ao ar livre e gratuitamente nas áreas suburbanas.
Sobre as farras, é preciso relembrar que, como já abordado, em A Vida Verdadeira
de Domingos Xavier, nas festividades nos musseques, se toca “música brasileira e música
cubana”. Em diversas obras literárias de escritores angolanos encontram-se referências à
música brasileira e a música cubana ou latina juntas. Em Manana, romance de Uanhenga
Xitu, ao se descrever uma festa de aniversário no musseque “dançaram-se tangos, congas,
mikunzas (marchas), sambas e rumbas” (XITU, 2019, p. 82). Nessa parte do livro também
aparecem as GVSeries como coletâneas de músicas latinas e o pequeno luxo que algumas
famílias, nesse caso a família de um “mestre marceneiro”, do musseque tinham: um
gramofone novo. Outros detalhes do cotidiano dos habitantes do subúrbio transparecem
nessa passagem do livro: a festa que ultrapassa o quintal e invade a rua de terra batida, a
iluminação da rua que teve de ser provida por um vizinho que emprestou um lampião, a
sutil rivalidade entre negros e mestiços, o aprendiz de marceneiro já adulto, que, por conta
dos costumes, só pode tomar um copo de cerveja após pedir licença aos mais velhos
(XITU, 2019).
O memorialista José Weza (2007, p.31) acrescenta que “o bolero e a rumba, (...)
o merengue (...) e também a música brasileira” circulavam bastante pelas áreas urbanas
de Angola nas décadas de 1940 a 1960. Note-se que o músico-memorialista além de
agrupar os gêneros musicais vindos da Américas do Sul e Central, ele agrupa “música
brasileira” sob um guarda-chuva, o que, indica que debaixo abrigaria samba, samba-
canção, música romântica e outro guarda-chuva menor chamado “baião”, e sob esse estão
xaxado, baião, coco, embolada, forró. Sobre esse último, ao relatar suas memórias de
infância no musseque Marçal, o intelectual Jofre Rocha (pseudônimo literário do político
angolano Roberto de Almeida) relata:

Deve ter sido num período entre os anos de 1952 e 1954 e eu, jovem adolescente,
espreitava ao cair da noite, entre as aduelas de um quintal, para o salão onde
decorria uma festa [...].

À hora do baile, Mendes [de Carvalho, o escritor Uanhenga Xitú] revelou-se um


descontraído e exímio dançarino. Era o tempo dos baiões como o ‘Xaxado’ de
Luiz Gonzaga, ‘Sábia na Gaiola’ de Carmélia Alves [...]. E também os sambas e

117
marchas de Emilinha Borba, Jorge Goulart, Blackout e outros cantores brasileiros
(MELO & SANTOS, 2007, p. 20).

O relato memorialístico de Rocha dá mais detalhes sobre o cotidiano dos


musseques. Há que se destacar que Mendes de Carvalho é descrito como “aquele patrício
enfermeiro” que iria partir para o Congo ou de lá estava retornando, por isso a realização
da comemoração. Note-se que não é a primeira referência à moradores do subúrbio com
ensino em nível secundário e técnico, denotando algumas clivagens de renda e instrução
dentro dos musseques.
A circulação desses sujeitos letrados pelo subúrbio contribuiu para que os temas
considerados “genuinamente africanos” estivessem presentes nos romances, poemas e
canções desses intelectuais que, em sua maioria, foram os militantes nacionalistas que no
mesmo período faziam parte dos movimentos anticoloniais. Destaque-se que, a vivência
considerada “africana” era ao mesmo tempo cosmopolita, pois atravessada pelas
influências literárias – brasileiras, sobretudo – e musicais de Cuba, Argentina, Porto Rico,
Congos e Brasil.
Os preços também variavam de acordo com o local e o público. Segundo Bosslet,
em 1968, uma entrada para o Restauração custava 20$00, enquanto no Ngola, 7$50. Ao
passo que o “salário-mínimo” do período era de 25$00 a diária, o que, estima-se,
descontando-se os descansos semanais, chegaria a pouco mais de 600$00(BOSSLET,
2014, p. 138). Outro dado que nos ajuda a pensar sobre o custo de vida do período e a
vida dos trabalhadores dos musseques é o valor de um aluguel de uma “casa de um quarto
feita de madeira”: 250$00 por mês. Certamente as famílias trabalhadoras dos musseques
precisavam lançar mão de várias estratégias pra sobreviver, dar conta de aluguéis, quando
fosse o caso, alimentação e demais de gastos da vida cotidiana. Tais valores variam de
acordo com tempo, espaço, ocupação e conjuntura dentro da mesma cidade. Já em 1971,
matéria da revista Notícia (28/08/1971, pp. 16-21) indica que um trabalhador do comércio
ganhava entre 2.000$00 e 2.500$00 escudos, mas que os do “subúrbio” tinham
estabelecimentos que funcionavam das 6 as 24 h pagando vencimentos entre 1.200$00 e
2.000$00.

118
Figura 13 – O público do Ngola (Tribuna dos Musseques, 14/09/1967, p.4).

O N’Gola é inaugurado em novembro de 1963, localizado entre a estrada do


Catete e Avenida do Brasil e com uma capacidade de mais de 900 lugares. O N’Gola Cine
às quintas-feiras tem uma programação elogiada e com bastante cobertura do Tribuna,
por vezes dedicando uma página inteira do jornal – em formato tabloide – a sinopse dos
filmes ou a cobertura dos shows da semana anterior. Nesse dia entre uma sessão de filme
e outra acontece o espetáculo O Dia do Trabalhador organizado pelo produtor cultural
Luiz Montez, personagem bem conhecida do mundo artístico local e considerado um
grande promotor do “folclore angolano”, que é como os periódicos se referem aos
músicos e conjuntos que tocam ritmos nativos nas línguas originárias como Ngola Jazz
(Diário de Luanda, 11/02/1965, p.3), o precursor Ngola Ritmos, Kimbandas do Ritmo
(Diário de Luanda, 07/01/1965, p. 05), entre outros. Por ocasião do carnaval de 1965, o
referido cineteatro ofereceu uma ampla programação:
Quatro noites de constante alegria! Grandiosos Bailes abrilhantados com música
de dança pelos famosos conjuntos N’Goleiros do ritmo, Os Gingas, Ases do
Ritmo, Raios Negros e Fernando Kariba em ritmos modernos. Desfile das turmas
de Carnaval em concurso: 14 Pares da Tuna Portuguesa (Ilha de Luanda), Turma
da Samba Grande, União Fera (Musseque Cassequel), Kambanzas do Ritmo,
União Os Kibandos e equipe Malemba (Musseque Mota) (DIÁRIO DE
LUANDA, 27/02/1965).

Em 1967, O Tribuna dos Musseques dedica uma matéria a descrever a


apresentação de Lourdes Van Dunnen no dito cineteatro: “só uma estrela como Lourdes
Van-Duném consegue iluminar o coração dos trabalhadores que, cansados e amordaçados

119
pelas lutas diárias, ali vão buscar novidades” (Tribuna dos Musseques, 14/09/1967, p.4).
Interessante notar que o repórter – não identificado – menciona também que só o “brilho”
da cantora foi capaz de iluminar “uma noite tão escura”, o que, infere-se, seja uma alusão
à falta de iluminação nos musseques.
Sobre Luís Montez, esse iniciou suas atividades de promoção cultural no final dos
anos 1950 com o Cazumbi, um programa voltado para crianças com brincadeiras e
palhaços que nos anos 1960 se notabilizou no Miramar, sendo este um espetáculo que
pela localização possivelmente não tinha um público popular (Tribuna dos Musseques,
14/09/1967, p.8). Em todo caso, Montez é mais conhecido pela dedicação ao “folclore
angolano”, tendo, inclusive, organizado eventos na Liga Nacional Africana como em
Setembro de 1967 quando produziu um show em homenagem ao intelectual especializado
em folclore angolano Óscar Ribas. Deste espetáculo participaram os conjuntos Anazanga,
Os Gingas, N’Goleiros do Ritmo, Lilly Tchiumba, Tonito, entre outros.
O apreço de Montez à música popular angolana ou “folclórica” é bastante
reconhecido pelos setores artísticos Angola, conforme aponta canção de 2012 do cantor
angolano Maya Cool que evidencia uma memória sobre o referido produtor cultural:
“Falo-te dos Kutonoka/ Recordando Luís Montez/ Aquele negueta português/ Coisa boa
que ele fez/Nos nossos bairros Operário/ Sambila, Cazenga, Bairro Indígena” (Conforme
citado em GARCIA, 2019, p. 122). Note-se que Montez é referido como “negueta
português”, ou seja, branco português. O produtor musical é branco sim, mas nascido em
Angola, Malange, de primeira geração. Apesar do distanciamento proposto pela
referência ao português, sua defesa da música angolana e suas excelentes relações com
os músicos lhe granjearam o respeito até mesmo dos artistas angolanos mais jovens
(PÚBLICO, 30/06/2010).
O Kutonoka, surgido na segunda metade da década de 1960, foi outra das
iniciativas do referido produtor, era um evento semanal com músicos angolanos que
ocorria a cada semana em um musseque diferente ao ar livre e gratuitamente graças ao
patrocínio de empresas angolanas tais como a cervejaria Nocal, sendo posteriormente
incorporado pela CITA (Centro de Informações Turísticas de Angola). Montez conta que
teve a ideia do Kutonoka a partir do Dia do Trabalhador:

Várias vezes fomos abordados por pessoas que queriam um ingresso para o show,
mas que não tinham condições econômicas para satisfazer esse desejo. Isso me
deixou inquieto, porque eu queria oferecer algum tipo de contato com nossos
artistas de graça, mas eu teria que arcar com todos os custos. Obviamente, isso

120
não iria funcionar. Foi então que, quando fui contatado por uma empresa de
cerveja que queria lançar seu produto entre as massas, sugeri os esboços de um
show. E foi assim que Kutonoka, esse interessante show, surgiu com o apoio de
Nocal (Conforme citado em MOORMAN, 2004, pp. 162-163).

Retomando aos cineteatros, o número crescente de salas dos anos 1960 a 1970
indica que os moradores das áreas suburbanas podiam consumir os chamados
“divertimentos”. A revista Semana Ilustrada ao comentar a inauguração do Kilumba Cine
em Viana, em 1969, destaca esse cenário do dinamismo econômico se expandindo para
os “subúrbios” e cidades-satélites ao mesmo tempo em que indica que Estado e iniciativa
privada traçaram alianças dentro da já referida lógica de “fomento à colônia”. O tom da
matéria elogia a iniciativa da empresa Sulcine no sentido de não objetivar uma imediata
lucratividade, mas uma “enraização válida e sem dúvida impulsionadora do
desenvolvimento de uma urbe”, o que, infere-se, indica que o local e o público a que se
destina não permitiriam a cobrança de ingressos com preços elevados.
Nas fotos do evento, na plateia, observa-se uma absoluta maioria de negros, o que
contrasta com fotos, por exemplo, do público presente no show de Jair e Elis no Aviz em
1966. A mesma reportagem destaca outra iniciativa da Sulcine, dessa vez no Aviz: a
promoção e realização de uma pequena caravana de artistas brasileiros por Angola,
Moçambique e outros países africanos. O grupo é composto do conjunto Os modernos do
Samba – e recorre-se novamente a imagem festiva relacionada ao gênero, pois nas
imagens os artistas executam movimentos performáticos com pandeiro e tamborim – e
uma dupla composta pelo já citado Jorge Goulart e a violonista Rosa de Valença. Goulart
é um artista da “era do rádio”, mais famoso na década de 1950 por interpretar samba-
canção. Valença é uma instrumentista bastante reconhecida no meio e que na década de
1960 e 1970 atuou acompanhando diversos músicos de prestígio do samba e da MPB
(SEMANA ILUSTRADA Nº 97, 01/05/1969, p.17).

121
Figura 14 - Autoridades e empresários presentes na inauguração do Kilumba Cine (SEMANA
ILUSTRADA Nº 97, 01/05/1969, p.17).

Outro aspecto da circulação de filmes em Angola eram as sessões de cinema ao ar


livre promovidas pela câmara municipal de Luanda nos musseques. O Boletim Cultural
de Luanda – órgão noticioso do poder legislativo – publicou em 1966 um balanço de suas
atividades do ano anterior e alguns registros fotográficos de sessões na Ilha de Luanda, e
nos musseques Prenda, Palanca, Rangel, Lixeira, Sambizanga, Cazenga, entre outros. Os
números divulgados pela referida comissão foram: sessões mensais, 8; sessões no ano,
96; filmes exibidos, 36; assistência por sessão, média, 950; assistência no ano 91. 200
(BOLETIM C. DE LUANDA nº 13. P.65).
Sobre o lazer e o cotidiano dos populares há ainda que se ressaltar os eventos em
bares, clubes recreativo-esportivos e estádios. Os eventos maiores, realizados em estádios
indicam certa amplitude de público do ponto de vista do poder aquisitivo. Em 1962 ocorre
no estádio do Sporting o evento “Miscelânia Tropical”, um festival folclórico reunindo
grupos dos mais diversos locais de Angola. Do “leste” veio o Grupo Folclórico do Dilolo,
de Malange compareceu o grupo Muenho Ua N’gana, de Luanda estiveram presentes
Ngoleiros do Ritmo, Fogo Negro e a cantora Alba Clington acompanhada do grupo
N’gola Ritmos (Diário de Luanda, 22/09/1962, p. 5). Outro festival com músicas ditas
folclóricas foi realizado em 24/11/1962, dessa vez um concurso para eleger o melhor

122
conjunto “intérprete do folclore angolano” no Estádio Municipal. O preço dos ingressos
indica que era um evento que se pretendia atingir um público de várias faixas de renda:
cadeiras da pista, 25$00; senha de camarote, 20$00; bancada, l5$00; geral, 7$50. O preço
de Bancada para militares fardados (soldados e cabos), 10$00. O referido festival tinha
como concorrentes os grupos N’Gola Ritmos, Negoleiros do Ritmo, Kimbandas do Ritmo,
entre outros. Tinha também apresentações – não concorrentes – de Fogo Negro, Conchita
de Mascarenhas, Trio Feminino, entre outros (A Província de Angola, 24/11/1962, p.3).
Acrescente-se que o referido evento de setembro de 1962 foi organizado por Luís
Montez que: “mais uma vez sem qualquer ajuda, que bem merecia, volta hoje a apresentar
um espetáculo baseado no folclore angolano que ele tanto tem feito por divulgá-lo,
arcando sozinho com todas as responsabilidades” (A Província de Angola, 29/09/1962,
p.3). O produtor vocaliza a intenção de “alcançar as massas”: “o objetivo será o de mostrar
o autêntico folclore angolano à massa populacional da cidade” (A Província de Angola,
25/08/1962, p. 3). A mesma matéria dá conta de que Montez recentemente havia levado
um grupo “folclórico” para se apresentar em Lisboa: o Fogo Negro. Sobre o nome do
evento (“Miscelânea Tropical”), Montez declara que a intenção era fazer jus a uma
programação mais variada, e, além disso, um dos grupos locais – o do Dilolo –
apresentaria não só práticas de sua localidade de origem, mas também “danças regionais
da nossa metrópole”, descreve o Diário de Luanda (22/09/1962, p. 5). Note-se que o
“folclore angolano” é encarado como um dos muitos folclores que compõe a
“multirracial” nação portuguesa do “Minho ao Timor”.
É preciso também destacar os bares e restaurantes dos musseques como locus de
sociabilidade e opção de lazer, conforme crônica do colaborador do Tribuna dos
Musseques, Sebastião André:
Despertado por todos estes encantos do “Musseque” — cruzando-se
continuamente com raparigas bonitas e bem arranjadinhas, que dá gosto olhar
para elas sem qualquer má intenção não tardará em chegar à ‘Estrada da Brigada’,
o ponto que parece ser a capital dos 'Musseques'. (...)

Encontrará ainda na ‘Estrada da Brigada’ o bar ‘Timpanas’, que foi propriedade


do bem conhecido Senhor Roseiras, onde poderá saborear uns ‘cacussos assados’,
regados com molho de gindungo acompanhando-os com umas cucas, vinho
branco ou tinto — depende o gosto de cada um — e no final, tomar um café e um
ou dois cálices de conhaque do bom (...).

Já que chegamos a este ponto, não deixo de fazer menção à conhecida ‘Rua da
Vaidade’, a rua do Musseque Rangel onde às noites se vê mais namorados
abraçados e alguns encostados aos guarda-lamas dos calhambeques, que são
entregues para concerto ao Sr. Ferreira ‘mecânico’. Se subir pela rua da ‘Casa
Banga’ a rua onde mora a garota do Chico, o proprietário do ‘Rádio Esperança’

123
— encontrará ao centro, a ‘sede’ do Club Desportivo de Bom Jesus, que de
quando em vez é invadido por centenas de pessoas, quando a direção oferece uma
farra aos seus sócios (...).

Assinalemos apenas o ‘Bairro Popular n.º 2 de S. Paulo’, com o seu esplêndido


N'GOLA CINE. que com a colaboração do Sr. Luís Montês, apresenta às quintas-
feiras o programa denominado ‘O DIA DO TRABALHADOR’, no qual tomam
parte, vários conjuntos do folclore de Angola, como “Os Gingas”, com o seu
muito famoso solista ‘O Dúia’, o ‘Munzangola’ com o seu maravilhoso solista
‘O Marito’, os ‘Kimbandas do Ritmo’ com o nosso muito conhecido ‘Mervil’ no
reco-reco, o ‘N’gola Ritmos’ o conjunto sem rival e, outros que também merecem
a nossa estima (...) ( Tribuna dos Musseques, 21/09/1977, p. 6).

Como se percebe, o cronista do referido jornal popular traça um panorama dos


bares, restaurantes e clubes das áreas populares de Luanda. Note-se a referência ao
consumo de bebidas e comidas e aos valores despendidos, denotando, como já vem sendo
abordado, que uma parte da população dos musseques tinha, embora modesto, certo poder
aquisitivo. Também como já abordado, a partir da leitura da sessão “Figuras do nosso
meio” do Tribuna dos Musseques, havia uma parcela significativa de moradores dessas
regiões da cidade que eram servidores públicos de cargos menores e pequenos
comerciantes como alfaiates, mecânicos, ferroviários, relojoeiros, “modistas”
(costureiras), professoras primárias, entre outras ocupações.
Outros locais de sociabilidade também aparecem no relato de Sebastião André: os
clubes recreativos-esportivos ou apenas recreativos. De acordo com Moorman (2004, p.
160-161), a partir de entrevistas com músicos e moradores desses bairros populares:

No Bairro Operário, Ambrizetes, Ginásio Futebol Clube e Grupo Baião; em


Sambizanga, o Braguês, Kudissanga Kwamakamba e Salão dos Anjos; no bairro
São Paulo, Centro Social de São Paulo e União Desportivo de São Paulo; em
Rangel, Sporting do Rangel e Salão Vermelho; no Marçal, Bom Jesus, Giro Giro,
Luar das Rosas, Salão Caravana e Sporting Club de Maxinde; na região da Ilha,
Marítimo da Ilha; no Prenda, Las Palmas; entre outros (MOORMAN, 2004, p.
161).

A partir da década de 1970 é possível encontrar os anúncios dos bailes nos clubes
populares pelos jornais angolanos, o que não acontecia em meados dos anos 1960. A
Província de Angola (21/10/72, p.3) anuncia a “Noite de Folclore Angolano” com o grupo
Ngoleiros do Ritmo no Sporting Clube do Maxinde e o Viana Futebol Clube anuncia
“baile até de madrugada ao som dos três melhores conjuntos de Angola”.
Outro aspecto do lazer das classes populares era ir à praia. Um dos pontos mais
concorridos era a Ilha do Mussulo, em um primeiro momento a “praia dos ricos”, aonde

124
só se chegava de barco. Posteriormente, o acesso dos populares ao Mussulo podia ser
feito a bordo de barcos voltados para a população menos abastada:

Mas o sossego da elite não durou para sempre. Ciente da boa oportunidade de
negócio, o velejador Elísio Guimarães decidiu criar uma carreira regular para
tornar o Mussulo mais acessível à população. Os negros chamavam-lhe
‘machimbombo do mar’, mas o verdadeiro nome do barco que fazia a travessia
para o Mussulo era Ca Posoka, expressão para ‘está bonito’ em umbundo.
Funcionava das 7h30 às 18h00, tinha dois andares e levava duzentas pessoas de
cada vez. A democratização do Mussulo fez aparecer novos restaurantes e
negócios (GARCIA, 2018, pp. 119-120).

Sobre a referida segregação racial que delimitava a “praia dos ricos” da “praia dos
pobres”, o músico Dionísio Rocha comentou em uma entrevista do ano de 2015:

Eu e os meus amigos tínhamos o hábito de todos os domingos, irmos dar um


mergulho junto à Marinha de Guerra, na Ilha de Luanda. Esse local era muito
frequentado pelos jovens do Bairro Operário e Marçal (...). Num belo domingo,
decidi ir para a Floresta da Ilha, zona dominada pelos colonos. Quando me
apanharam a fazer praia naquele local, fui expulso a pontapé (JORNAL DE
ANGOLA, 2015).

Como se percebe, os moradores das áreas suburbanas de Luanda e municípios


vizinhos como Viana, buscavam os “divertimentos” nos clubes esportivos-sociais, nos
salões de baile, nas farras em seus quintais, nos shows e filmes exibidos nos cineteatros
localizados no subúrbio e na fruição em espaços públicos como as praias. Em parte
significativa dessas ocasiões a música brasileira esteve presente no repertório das bandas
que animavam os eventos, nas “rodas de música” ocorridas nas festas privadas, nos “gira-
discos” dos salões de baile e até ao vivo com os próprios artistas, à exemplo de Martinho
da Vila que se apresentou no Ngola Cine. Vale destacar que embora a vida parecesse
transcorrer tranquilamente, uma vez que os habitantes do subúrbio tinham acesso a
diversas programações culturais, o peso da situação colonial e do racismo inerente a essa,
se fazia presente na vida cotidiana desses sujeitos, em sua grande maioria negros e
mestiços, que suas festividades arbitrariamente encerradas pelas forças de segurança e
seu acesso por vezes vedado em determinados estabelecimentos privados e espaços
públicos. A seguir, serão abordadas as mesmas temáticas do lazer e da circulação da
música brasileira em Angola, tendo como foco os anos finais do colonialismo em Angola.

125
2.5 Os anos finais da década de 1960 e o início da de 1970 em Luanda.

A PIDE tem atuado sob todas as formas e com tal ferocidade que somente se compara a polícia
nazi. Umas vezes bate, prende, mata, outras promove socialmente meia dúzia de indivíduos;
promove bailaricos, espetáculos ditos de folclore e cinematográficos e organiza manifestações
esportivas a nível suburbano, única e simplesmente para distrair o povo [comunicação interna
entre o comitê de ação Nzaji e a direção do MPLA no exterior, 09/03/1970].92

A gente andava com LP pra cá e pra lá, sentava-se nos intervalos da escola, levava
violão pra escola, nos intervalos a galera mostrava os discos, (...) a gente levava toca-discos
portáteis pra cervejarias e ficava ali tomando café e ouvindo música [Nuno Mindelis, se
referindo ao período de 1970 a 1974 quando era adolescente].

Para os angolanos que faziam parte dos estratos médio e altos da sociedade, do
ponto de vista do poder aquisitivo, na virada da década de 1960 para de 1970, viver na
área urbana de Angola, com destaque para Luanda, significava uma vida tranquila e sem
preocupações. Para os jovens filhos de “colonos”, a guerra parecia uma coisa distante,
iam à escola pela manhã e depois das aulas se encontravam para falar sobre música, ouvir
álbuns, passear de moto pela praia, fazer “farras” em suas casas quando ouviam artistas
estrangeiros como o estadunidense Jimi Hendrix e o brasileiro Jorge Ben e frequentavam
cafés, bares, cineteatros e cervejarias (MINDELIS, 2021).
Para os angolanos das áreas suburbanas, sobretudo os dos musseques, como
abordado anteriormente, a guerra se fazia sentir cotidianamente na repressão imposta por
tropas do exército e da polícia. Dentre esse grupo suburbano, para os negros e mestiços
com algum poder aquisitivo a frequência em determinados espaços era negada. Esse é um
caso analisado por Bosslet, a partir de documentação da PIDE, ao descrever uma situação,
ocorrida em 1969, na qual três casais de africanos são propositalmente ignorados na
cervejaria Noite e Dia, nos arredores do musseque Marçal. Um dos integrantes do grupo
foi reclamar sobre aquela situação injusta com os atendentes do estabelecimento

92
No começo dos anos 1970, a PIDE desarticulou o chamado “Comitê de Ação Nzaji” que era composto
por diversas células de 3 indivíduos. Nas documentações anexadas ao processo constam extensas arguições
sobre as atividades de tais grupos como agitação política, colagem de cartazes, pichações, distribuição de
panfletos, planos para um possível sequestro de avião, entre outros. Comunicações entre tais agrupamentos
e a direção do MPLA no exterior dão conta sobre o cotidiano na área urbana de Angola, movimentações da
PIDE e dos apoiadores chamados de “bufos” e sugestões de “pauta” para o programa Angola Combatente
(ANTT, PIDE, NIT 807, m079, anexo 3).

126
“alegando ser tão português quanto os demais fregueses que estavam a ser devidamente
servidos”, e, ato contínuo, o grupo foi retirado pela polícia (BOSSLET, 2018, p. 62).
Embora se refira aos anos 1940, é também perfeitamente aplicável no período em questão,
a assertiva de Marzano de que “havia uma crença na legitimidade do uso da força policial
no ordenamento de um espaço público tão segregado quanto possível” (MARZANO,
2018, p. 62).
A despeito dos esforços tímidos de algumas poucas autoridades coloniais
portuguesas – sobretudo durante a passagem rápida de Adriano Moreira pelo ministério
do Ultramar no começo dos anos 1960 – em transformar em prática o que havia só na
teoria, qual seja, o ideário lusotropicalista de harmonia racial, as tensões raciais e o
preconceito se agudizaram naqueles tempos. Como aponta Bittencourt, “é recorrente a
afirmação quanto ao recrudescimento do racismo” por parte da população branca e que
tais práticas foram acirradas pelo temores em relação ao levantes anticoloniais
(BITTENCOURT, 2017, p. 886).
O acionamento de uma identidade “portuguesa” como argumento para combater
práticas racistas, em outros termos, a reverberação do discurso lusotropicalista de que não
importando a cor ou a origem, todos seriam portugueses, pode ser percebido em uma carta
enviada ao semanário Tribuna dos Musseques. O leitor Luiz Adriano, de Benguela,
escreveu em 1968 ao dito periódico: “sou salazarista de corpo e alma. Apoio o governo
e, sendo todos nós portugueses, por que razão não há ministros de cor...”, questiona. No
caso em questão a carta não chegou a ser publicada por conta de uma divergência entre o
redator do jornal, Afonso Dias da Silva, a favor da publicação, e, Norberto de Castro,
membro do corpo diretivo do jornal, contrário a publicação por alegar que ela tinha
“conteúdo político” (TT/PIDE/DA/PI/15.12A/2/NT/2084/fl.49).
Como mencionado anteriormente, Dias da Silva já havia sido investigado pela
PIDE por supostas “atitudes subversivas”. Os indícios apontam que haveria uma espécie
de acordo entre o referido redator e a polícia política. Em todo caso, não cabe aqui o
enquadramento desse sujeito como um “colaborador” à serviço do colonialismo, mas
perceber de que forma o poder colonial era engendrado e questionado em seus interstícios
(COOPER, 2008, pp. 55-56). Em mais de uma oportunidade, o redator do dito órgão de
impressa se engajou em pautas jornalísticas que buscavam melhorias para as populações
suburbanas, majoritariamente negras e mestiças, demandando investimento público para
apresentações musicais, denunciando as dificuldades em se acessar as moradias

127
financiadas pelo governo, atuando, dessa forma, dentro de instituições que estavam a
serviço do aparato colonial português, mas, ao mesmo tempo, contestando-o.
Em seus momentos de lazer, os jovens angolanos dos estratos médios da
sociedade, eventualmente, também se envolviam em atividades políticas. Autos da
Delegação Geral de Segurança em Angola que tratam de inquérito aberto acerca do
Comitê Nzaji do ano de 1971 indicam que no final da década de 1960, Antônio Carlos
Jorge e José Van-Dunem, participavam de “festas e farras que serviam de pretexto” para
agitação política. Tais festividades, ainda de acordo com os depoimentos, ocorriam em
meio a “grande efervescência no meio estudantil africano”. Outra seção do mesmo
processo da polícia política aponta que quando frequentavam o bar Ginga, Jorge e Van-
Dunem iniciaram diálogos e articulações políticas com o “europeu José Joaquim
Fernandes, dizendo-lhe que era rapaz ‘fixe’”, dito de outro modo, “que compartilhava”
as ideias independentistas e que era “partidário do MPLA”
(PT/TT/PIDE/DC/001/197911/fls. 18-19,44-45).
Como já vêm sendo descrito, as atividades anticoloniais não transparecem nos
órgãos de imprensa angolanos, e, isso se dá, pelo alinhamento de tais veículos em maior
ou menor grau ao salazarismo e à censura prévia. A Província de Angola de 23/04/1974,
por exemplo, traz em sua capa o aviso “visado pela censura”.
Pelas páginas da imprensa angolana, a guerra é representada nas “matas” com uma
profusão de fotos de soldados descendo de helicópteros, andando a cavalo por picadas ou
investigando possíveis acampamentos temporários dos movimentos anticoloniais que na
imprensa eram chamados de “terroristas”. A revista Notícia de 13/06/1970 traz uma
extensa matéria com muitas fotos intitulada “Guerra a cavalo”, na qual o repórter
Fernando Farinha descreve que passou um período de quinze dias com uma tropa montada
percorrendo uma área de atuação do MPLA, bem distante dos centros urbanos de
Angola.93 O jornalista narra que a tropa abateu um homem, uma mulher e “resgatou” uma
criança, que teria sido “evacuada pouco depois num helicóptero” (A NOTÍCIA,
13/06/1970). Em entrevista concedida a Torres no ano 2012, Farinha relatou que suas
matérias além da censura civil, passavam também pela supervisão do comando militar,
ao qual se reportava diretamente, e que a palavra “guerrilheiro” era proibida para se referir
aos movimentos de libertação. Em suma, a cobertura “foi sempre favorável à força

93
Não há menção se na região norte ou leste e isso se dá porque as reportagens suprimiam determinados
dados, segundo o jornalista, “por questões de segurança”.

128
portuguesa envolvida na guerra (...) facto que tornou o discurso panfletário e
propagandístico”, pontua Torres (2012, p. 78).
O discurso de adesão ao projeto colonial português da revista Notícia se torna
ainda mais evidente em sua edição de 13/06/1970 quando traz um extenso “balanço” dos
“10 anos de guerra” descrevendo os três movimentos independentistas, suas ideologias,
suas operações, a quantidade de soldados, quantas armas teriam sido apreendidas nas
operações do exército, entre outros detalhes. O balanço é finalizado com um tom ainda
inequívoco de propaganda do colonialismo luso acionando dois argumentos, o de que os
“movimentos ditos anticolonialista” não conseguiram mobilizar “as massas”, e, que a
“verdadeira batalha” travada por Portugal deve ser pela “educação” e “promoção social”.
Percebe-se aqui uma reverberação dos discursos e estratégias das autoridades ligadas ao
aparato colonial classificadas como “ação psicossocial”, quais sejam, táticas para “a
conquista de corações e mentes” que viriam acompanhadas de medidas concretas como
expansão do acesso ao ensino, pois, de acordo com esses agentes, era preciso mostrar
“estarmos dispostos” a resolver “os problemas que lhe afligem” (conforme citado em
BOSSLET, 2017, p. 832).
Esse mesmo veículo que retrata a guerra “nas matas”, dava muito mais destaque
ao cotidiano da cidade de Luanda, como uma cidade em expansão retratando seus
mercados, seus prédios e os diversos problemas de uma metrópole como os relacionados
ao trânsito, ao transporte e à habitação (BOSSLET, 2014). Destaca-se também na
cobertura desse periódico peças extensas de jornalismo fotográfico com foco na crônica
do cotidiano angolano, sobretudo luandense, com reportagens de temas amenos e tons
anedóticos (TORRES, 2012, p.16). Por vezes dedicavam algumas sessões a
acontecimentos da vida social e cultural da cidade, como a excursão da cantora brasileira
Maysa por Angola no final de 1969 (A NOTÍCIA, 03/01/1970, p.47).
Tanto em A Notícia quanto em outros veículos angolanos, não se percebe
claramente o cotidiano de ações de contestação ao colonialismo na área urbana de Angola,
sobretudo em Luanda. O já referido processo da PIDE de 1971 sobre o grupo de ação
NZAJI menciona que seus membros realizaram pichações e colagens de cartazes com
mensagens que fazem referência ao MPLA nas paredes do Giro-Giro, um dos centros
recreativos da área suburbana onde se cantava e se dançava os gêneros chamados de
folclóricos e outros com os quais os angolanos se identificavam como os afro-caribenhos,
o samba e a música romântica brasileira. Matéria da revista Semana Ilustrada
(22/02/1969, p. 8) descreve – sob o ponto de vista dos colonos, carregado de

129
estigmatizações – os bailes do referido salão: “É o Giro-Giro, parque de diversões,
bebedeiras, facadas, pancadarias grossas e cerveja a jorros”. Nesses estabelecimentos os
angolanos experimentavam certa “soberania” como demonstrou Moorman (2008), em
outras palavras, em seus momentos de festividade esses homens e mulheres fruíam, se
vestiam, cantavam e dançavam do jeito que quisessem, fora do arbítrio português, e, com
isso, reforçando os laços da efervescente “angolanidade”.
Mesmo em meio a repressão empreendida pela PIDE e pelas forças de segurança,
principalmente nas áreas suburbanas, e mesmo com a guerra ocorrendo no interior ou nas
regiões próximas às fronteiras, a vida cultural fervilhava. O memorialista Jacques Arlindo
dos Santos lembra que os salões e centros recreativos eram o local preferencial onde
atuavam artistas como Elias Diá Kimuezo, Teta Lando, Vum-Vum entre outros, e que a
frequência em tais locais era bastante concorrida, promovendo aglomerações em seu
entorno, o que atraía a atenção das tropas portuguesas que “deliciava-se em afastar
compulsivamente todos os ajuntamentos que se faziam” nos “recintos recreativos nos
subúrbios luandenses” (SANTOS, 1999, p. 66).

Na Luanda “de asfalto”, os bares, boates e cineteatros ofereciam inúmeras opções


de shows com artistas internacionais, dentre os quais destacam-se os brasileiros, sejam os
menos conhecidos como o sambista Ari Lopes e a dançarina Glória Norton em 1969
(SEMANA ILUSTRADA, 04/10/1969, p.6), a dançarina Elízia Barreto descrita como “uma
baiana autêntica” que “dança o candomblé numa boate de Luanda” pela Semana Ilustrada
(09/08/1969, pp. 2-3). Dentre os brasileiros mais conhecidos destacam-se os que se
apresentaram em 1972: Roberto Carlos, Nelson Ned, Carmen Silva, Cláudio Fontana e
Martinho da Vila. O cantor carioca relembra que após alguns shows em Luanda, tinha
por contrato que se apresentar no Lobito e em Benguela e que após conversar
reservadamente com “os angolanos” – os que em geral se autonomeiam “filhos da terra”
ou dentro do mesmo grupo como “patrícios” – exigiu fazer a viagem para o sul de carro
e não de avião para “apreciar a paisagem” o que exasperou um dos responsáveis por lhe
acompanhar por Angola, porque, de acordo com esse colono, “pode ter guerrilheiros
assassinos, animais selvagens” se referindo aos movimentos de libertação (VILA, 1998,
p. 44).

Acerca do lazer para os luandenses do asfalto, a cobertura dos veículos de


imprensa tem uma profusão de matérias sobre ir à praia nos fins de semana. Manchete do
ABC Diário de Angola (25/11/1971) proclama “e ao sétimo dia o luandense descansa das

130
fadigas da semana”, ilustrando a extensa matéria com considerável número de fotos de
banhistas. Como pontuou Bosslet (2014, p. 137), tais matérias afirmam que a praia tem
um caráter “democrático” o que contradiz as fotos que em geral acompanham tais
matérias pois, “é difícil localizar um negro sequer nas imagens”. Tal fato se dá porque os
órgãos de imprensa reproduzem as ideias e os valores do grupo social ao qual pertencem
os jornalistas, em geral dos setores médios e das classes abastadas, dos seus empregadores
e patrocinadores, e, também busca atender as expectativas do seu público-alvo. Além
disso, a imprensa atua simbolicamente como portadora das hierarquias sociais, como
indicam Morel & De Barros ( 2003, p. 106).

Como vem sendo abordado, embora o ideário lusotropicalista perpasse os


discursos oficiais das autoridades coloniais portuguesas e o imaginário de parcelas da
sociedade angolana, na prática, Luanda era uma cidade atravessada pela segregação racial
em seus espaços públicos e nos estabelecimentos privados sem que isso precisasse ser
escrito ou posto em letra de lei, ou, como assinalou Marzano (2018, p.83) quando se refere
as representações e práticas racistas no cotidiano luandense, essas “não eram segredo pra
ninguém”.

A imprensa angolana também registrava uma profusão de eventos como festivais


de cabelereiros (Notícia, 06/10/1973, p.73), competições de hipismo (Província de
Angola, 05/04/1974, p.6), competições de pesca esportiva com participantes estrangeiros
vindos da África do Sul e da Rodésia94 (Província de Angola, 05/04/1974, p. 29), mais
uma vez evidenciando que a guerra não se fazia sentir para determinadas camadas da
população de Luanda, sobretudo a população “do asfalto”. Uma das matérias abordava o
planejamento de um concurso de beleza (“miss”) e aventava a possibilidade de convidar
modelos brasileiras (Notícia, 07/04/1973, pp. 34-41).

Os angolanos negros são mais comumente e profusamente retratados no Tribuna


dos Musseques. Já nos grandes veículos de imprensa como A Notícia e Semana Ilustrada
suas imagens são registradas com menor frequência, em geral, quando trazem matérias
mostrando trabalhadores como os vendedores de picolé, motoristas do Machimbombo
(ônibus), engraxates (BOSSLET, 2014). Eventualmente, fotografias de negros e mestiços

94
A África do Sul à época vivia sob o regime do Apartheid e a Rodésia, atual Zimbabué, havia promovido
uma independência da Inglaterra em 1965, mas com um governo racista, controlado pela minoria branca.
O perfil desses dois países auxilia o entendimento quanto a participação de turistas sul-africanos e
rodesianos no espaço colonial português em Angola.

131
parecem em matérias que buscam apresentar o cotidiano e “os divertimentos” em paralelo
com a população branca, e, por vezes, ressalta-se a “confraternização” entre os dois
grupos. Extensa reportagem da Notícia (27/10/1973) retrata pessoas frequentando
restaurantes e casas de show como o Marítimo na ilha de Luanda e uma festa num
“quintalão no Bairro Operário” onde “a velha mulemba deita as suas barbas”. Sobre o
Marítimo o jornalista descreve um casal que dança “abraçados à asfixia” uma canção do
brasileiro Lindomar Castilho, Eu vou rifar meu coração (1973), 95 e acrescenta “aqui as
pessoas são pessoas, (...) a moça branca e o rapaz de cor. Quem chateia? (...).”

Em outro ponto da matéria, percebe-se que a suposta “confraternização” ou


“convivência harmoniosa” baseada no ideário lusotropicalista não é horizontal: “Os
estratos sociais só se misturam de cima pra baixo e nunca de baixo pra cima. Essa é a
primeira lei da física social descoberta sábado à noite”. E, destaque-se, tal ideário
verticalizado, sob certos aspectos, está em consonância com o lusotropicalismo freyreano.
Como sublinhou Cahen, para Freyre, a “glória” do “império português” não foi porque
“conquistasse e subjugasse bárbaros para os dominar e os explorar do alto”, mas porque
“dominou as populações nativas, misturando-se com elas e amando com gosto”. Assim,
a revista reverbera duas leituras complementares e não excludentes do lusotropicalismo:
a de que haveria nas terras dominadas pelos portugueses uma convivência harmoniosa
entre as camadas sociais, e, aqui, leia-se raciais, uma vez que tais periódicos
frequentemente não fazem alusão direta a raça, mas a “classes sociais”, e, que tais
relações se engendram verticalmente, “de cima pra baixo”. Como ressalta Cahen (2018,
p. 312): “o multiculturalismo de Freyre é claramente desigual e colonial: a civilização
vem do centro português”.

Algum contato entre grupos distintos do ponto de vista social e racial ocorriam
nas escolas de Luanda. Em todo caso, nesses estabelecimentos, de acordo com os relatos
dos memorialistas, predominavam estudantes brancos, como asseverou Bosslet (2014, p.
135), “a falta deles”, dos “africanos”, “em outros ambientes da sociedade nem sempre
chamava a atenção de todos aqueles jovens”. O angolano João Augusto, em entrevista a
Ana Fonseca, conta que trabalhava na cantina do Liceu Salvador Correia em Luanda e

95
Há uma pequena diferença na maneira em que o jornalista cita a letra. Na matéria de A Notícia a letra é
citada como “eu vou vender meu coração/vou fazer leilão”, e, a letra original é “vou rifar meu coração/vou
fazer leilão”. Infere-se que o jornalista não conheça bem a letra. Em todo caso, vale destacar que os artistas
populares como Lindomar Castilho, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Carmem Silva, Nelson Gonçalves,
entre outros, são bem conhecidos e consumidos em Angola.

132
que viu, após 1961, o número de estudantes negros e mestiços aumentarem: “gosta de ver
os ‘patrícios’96 em sala de aula. São filhos de assimilados, gente com capacidade
financeira para fazer a vida na cidade de asfalto” (FONSECA, 2009, p. 150).

João Melo, jornalista e escritor angolano, dá declarações no mesmo sentido, pois


conta que tanto sua mãe quanto seu padrasto eram funcionários públicos. Rememora que
estudou no dito Liceu e que por lá passaram todas as figuras do nacionalismo angolano
se referindo a geração anterior a sua. E que na época em que estudou nessa escola
secundária “já havia um número razoável (...) de pretos e mestiços”, mas que a maior
parte dos estudantes eram filhos de colonos portugueses. Melo lembra que havia uma
cumplicidade especial entre os pretos e mestiços que estudavam no Liceu e com alguns
jovens brancos das famílias nacionalistas, e, que dentro desse grupo se comentava
discretamente temas que ouviam no programa de rádio do MPLA, o Angola Combatente,
bem como causava expectativa notícias de colegas de 16 e 17 anos que fizeram “o salto”,
em outros termos, que conseguiam fugir e fazer parte da guerrilha (MELO, 2021).

Moorman chama a atenção para a prática dos jovens da época conversarem sobre
os temas transmitidos pelas rádios dos movimentos de libertação: “apreciando e
debatendo detalhes” e identificando “nomes codificados de amigos (...) ou contatos”
(MOORMAN, 2018, pp.253-254). Essas comunicações cifradas entre as células
apoiadoras do MPLA em Luanda e os dirigentes do partido ligados a transmissão do
Angola Combatente podem ser percebidas nos autos sobre o grupo Nzaji. Comunicação
de 07/01/1970 remetida pelo referido comitê de ação solicitava ao Angola Combatente
que transmitisse as seguintes mensagens: “camaradas, é necessário que se façam
exortações (...) aos seguintes militantes (...) Ngonji, Kimbari, Kissunbe
(TT/PIDE/DGS/SC/PR/17911/CI/2/NT 7807/fl. 190). As células também pediam que se
transmitissem, em paralelo com orientações verdadeiras, orientações fictícias: “atenção
Comitê Canhangulo, põe em ação plano 3 (...); atenção Comitê Hiena, acendam as luzes”.

96
Fonseca também registra que o mesmo Videira nos anos 1950, antes de trabalhar no Liceu, era “criado”
de uma família do asfalto. Morava nas áreas suburbanas de Luanda e para adentrar a “cidade dos brancos”
era preciso “mostrar o bilhete de trabalho”, evidenciando que até 1961 João Augusto era juridicamente
classificado como “indígena”, estando, portanto, sujeito a formas compulsórias de trabalho. Chama a
atenção em seu relato uma situação em que atrasou uma tarefa corriqueira dada pelo “patrão” para jogar
futebol com os amigos do musseque, sendo por isso punido com castigos físicos – “quinze palmatoadas –
por um agente da esquadra, possivelmente um soldado “cipaio”, como eram chamados os africanos
encarregados do policiamento da cidade (FONSECA, 2009, pp.56-57).

133
No que concerne ao lazer, aos “divertimentos” e a suas relações com a
musicalidade, João Melo lembra que já assistiu em uma “festa de quintal” uma
apresentação do Ngola Ritmos e que nessas ocasiões se ouvia predominantemente música
angolana, mas, que eventualmente também se executavam nos “gira-discos” canções
brasileiras como as de Ângela Maria, apreciadas por sua mãe. Lembra que chegou a
assistir Martinho da Vila no Ngola Cine em 1972 quando tinha entre 16 e 17 anos e que
esse cineteatro se localizava nos arredores do “bairro popular nº 2”, que era composto por
casa populares financiadas pelo Estado, que em geral eram destinadas ao “pequeno
funcionalismo público” e a outros trabalhadores de rendimentos modestos, mas não
excessivamente baixos.97 Acrescenta que as rádios angolanas executavam um número
significativo de músicas brasileiras e que nos clubes suburbanos se tocava principalmente
“música angolana, congolesa, música do caribe e do brasil era mais samba” (MELO,
2021).

Sendo cerca de quatro anos mais novo do que Melo, Nuno Mindelis (2021), que
em 1974 tinha aproximadamente 14 anos, conta que nos seus tempos de Liceu o número
de negros e mestiços nas salas de aula estava em paridade com o de brancos. Se tal
paridade é factível ou não, o que é preciso sublinhar sobre tal relato é que determinadas
memórias construídas indicam um caminho “através e para além dos fatos, permitindo
descobrir os seus significados” (PORTELLI, 1991, p.2). Como Chaves (2019) e Macêdo
(2020) alertaram, frequentemente o grupo social dos retornados faz uma leitura de seu
passado carregada de nostalgia e reelaborações.

Mindelis recorda que os adolescentes de sua época ouviam bastante músicas


inglesas e estadunidenses, grupos e artistas como Otis Redding e Percy Sledge, e,
brasileiras de artistas como Edu Lobo, Baden Powell e Secos e Molhados. O músico
também lembra que o clima entre os adolescentes do período era de muita liberalidade,
quando conversavam e debatiam sobre os mais diversos temas como consumo de Liamba
(maconha), música, cinema, o movimento hippie e demais assuntos próprios das

97
Mais alguns detalhes das memórias e trajetórias de João Melo merecem ser destacadas: é filho de um
advogado nacionalista que partiu para o exílio quando ele era criança. Foi criado pela mãe e pelo padrasto,
em companhia de filhos de outra união do padrasto no “bairro popular nº 1” que relata ser um bairro com
residências destinadas aos pequenos e médios funcionários públicos. Antes de cursar o Liceu cursou a
escola primária no bairro do Maculusso e a escola preparatória no bairro Vila Alice. Ao completar 18 anos
em 1973, seguiu para Lisboa para cursar jornalismo.

134
juventudes das grandes cidades do mundo como Rio de Janeiro e São Francisco nos EUA
(MINDELIS, 2021).

Carlos Fernandes, atualmente funcionário do corpo diplomático angolano em


Lisboa, relembra que por volta de 1972 e 1973, em determinados círculos, já se falava
abertamente em independência. Tal qual no relato de João Melo, Fernandes recorda que
havia “identificação” entre os angolanos nacionalistas das diferentes camadas sociais e
grupos somáticos e relata que sua mãe, que gostava muito de dançar, eventualmente
pegava um táxi e seguia para um dos clubes suburbanos: “uma senhora da burguesia como
minha mãe ia tranquilamente ao Sporting do Maxinde dançar”. Narra também uma outra
situação em que seu pai, um conhecido advogado nacionalista que posteriormente
comporia o “Movimento Democrático de Angola” (MDA), agremiação que apoiou o
MPLA após 1974, foi homenageado por Elias Diá Kimuezo durante uma de suas
apresentações em um clube suburbano nesse período de meados da década de 1970 que
antecederam os eventos do 25 de abril em Lisboa (FERNANDES, 2020).

Já pouco depois da Revolução dos Cravos, os efeitos das tensões e das mudanças
se fazem sentir no cotidiano e no lazer. Aníbal Pedreira, em entrevista a pesquisadora
Yolanda Lemos, descreve esse contexto:

Aliás, começou a ser até inconveniente e aos poucos deixámos de frequentar os


cinemas porque, em Luanda pelo menos, começou a ser controlada pelos
militares. O militar tinha direito de ir ao cinema, mas carregavam armas e
imagine, as armas ali ao nosso lado. As espingardas caiam e o filme a passar.
Principalmente ali no Cine Avis, havia um quartel ao lado e iam constantemente
para lá (LEMOS, 2019, p. 272).

Pedreira se refere ao conturbado contexto entre 1974 e 1975 em Angola, quando


o governo provisório do movimento dos “capitães de abril” assume o poder na capital do
país e inicia um processo de desarticulação das estruturas do fascismo português. Em
território angolano, esse contexto ensejou o fim da guerra entre as tropas lusitanas e os
três movimentos independentistas, mas também significou instabilidade na capital e no
restante das zonas urbanas ocasionando uma mobilização constante de soldados nessas
regiões.
A circulação musical brasileira em Angola ganha novos contornos no pós-
independência. O entrelaçamento entre política e cultura, no que diz respeito às
apresentações dos artistas brasileiros em terras angolanas ganha um contorno mais

135
evidente, influenciado pelas circunstâncias e especificidades da época. Para melhor
apreender tal conjuntura, é preciso abordar as disputas políticas do referido recorte
temporal.

136
Capítulo III. Diálogos musicais e políticos entre Angola e Brasil no
período pós independência.

3.1 – “Um abraço do samba ao semba”.

Para diversos intelectuais, músicos e artistas brasileiros negros e não negros, a


ideia de uma “mitologia coletiva da terra natal” (homeland) e de “um retorno idealizado
à terra natal” – a “Mãe África” – são elementos discursivos centrais nas suas produções
artísticas e na construção de suas identidades (SAFRAM, 1991, pp.83-84 apud BUTLER,
2001, p.191). Em diversos contextos, tempos e lugares, essa matriz foi evocada para o
fortalecimento das identidades negras na Diáspora (SANSONE, 2017). Tal evocação é
central em muitos dos embates políticos de suas respectivas conjunturas. No Brasil dos
anos 1970 e 1980, a luta por mais direitos, pela denúncia do racismo e da ideia de
democracia racial têm como força aglutinadora esta noção de um passado comum.
Valorizar esse passado, essa África grandiosa do passado mais distante, era valorizar a si
mesmo no presente (REIS, 2014, p. 138) e ao mesmo tempo fortificar laços de pertença
essenciais às mobilizações coletivas.
Embora as conjunturas dos países africanos nas décadas de 1970 e 1980 fossem
pouco conhecidas no Brasil, alguns eventos culturais funcionaram como ponto de contato
entre o Brasil e Angola. E também foram significativos do ponto de vista político. Esse é
o caso, por exemplo, da visita do músico angolano Bonga em 1978, quando faz uma série
de shows pelo Brasil em parceria com Martinho da Vila. A partir de seus discursos e
entrevistas à época, e, principalmente, da análise de suas canções lançadas entre as
décadas de 1970 e 2000, é possível perceber sua denúncia acerca da exploração colonial
engendrada pelos portugueses em Angola e seu “desencanto” com os rumos políticos do
país após a independência.
De forma ampliada e em sentido oposto, o Projeto Kalunga, ocorrido em maio do
ano de 1980, e que consistiu na visita de um grupo de cerca de 60 músicos, jornalistas,
técnicos e produtores musicais brasileiros as terras angolanas, gerou, entre os angolanos,
novas percepções sobre o Brasil e os brasileiros ao mesmo tempo em que possibilitou
novas visões sobre aquela Angola do pós-independência. Compunha essa comitiva Chico
Buarque, Martinho da Vila, D. Ivone Lara, João Nogueira, Clara Nunes, Djavan, Miúcha,
Edu Lobo, Francis e Olívia Hime, Quinteto Violado, conjunto Nosso Samba, Elba

137
Ramalho, Geraldo Azevedo, alguns integrantes do MPB4 e do grupo Fundo de Quintal,
Danilo e Dorival Caymmi, João do Vale, os instrumentistas Café, Chico Batera, os
produtores Novelli e Fernando Faro, entre outros.
Conforme se pretende demonstrar os músicos brasileiros do Projeto Kalunga vão
a Angola mobilizados, principalmente, por duas razões: uma articulação de músicos
engajados no campo da esquerda que buscavam construir alianças com outros músicos e
com autoridades do mesmo espectro político, e, uma busca idealizada que consistiria em
um “retorno às raízes africanas.” Também em 1980, sendo que em outubro, Angola
recebe a cantora Alcione e em 1981, Beth Carvalho.
Pelas declarações dadas pelos integrantes da comitiva liderada por Chico Buarque
e Fernando Faro em maio de 1980 e as dadas por Alcione também em 1980, é possível
perceber o quanto os angolanos conhecem bem a música brasileira, desde os sambas e
baiões dos anos 1930 e 1940, passando pela bossa nova de final da década de 1950 e
começo da de 1960 até a música brasileira que vinha sendo produzida mais recentemente
naquela quadra da história. Mais uma vez é preciso dizer que isso se deve a proximidade
da língua, mas também a uma profunda identificação dos angolanos para com os
brasileiros. É possível inferir que as realidades dos morros e favelas cariocas presentes
no samba e na MPB, bem como as temáticas cantadas pelos gêneros do nordeste que
aludiam à pobreza e à migração, pudessem soar semelhantes às questões locais para os
angolanos.
Após voltarem de Angola, os músicos brasileiros trouxeram em sua bagagem
cultural, as experiências vividas em solo africano e os respectivos temas, histórias, sons
e repertórios. Começa a circular pelo Brasil um pouco da música angolana, mesmo que
de forma incipiente e numa escala muito menor que o consumo de repertórios brasileiros
em território angolano. Mas num dado momento histórico, qual seja, na década de 1980,
começa a tomar impulso certo interesse pelas “coisas africanas” no Brasil. Exemplo desse
processo é o fato do músico angolano Luiz Ngambi, que já morava em terras brasileiras
desde meados da década de 1970, lançar em 1981 o álbum chamado Angola – Folclore e
Canções Tradicionais no Brasil. Ressalta-se que Ngambi não era um músico reconhecido
em seu país como um artista de gêneros folclóricos, mas da chamada “música moderna”,
ou seja, de rock.
Em 1983 chega ao Brasil, o Canto Livre de Angola, quando músicos angolanos
“retribuíram” a visita feita pelo Kalunga e excursionaram pelo Brasil. Também em 1983,

138
outra comitiva de brasileiros vai à Angola, entre os quais a quase desconhecida no Brasil,
mas muito famosa naquele país, sambista Jurema e o grupo Os Tincoans.
Houve também o evento Kizombas, que consistiu em encontros bienais no Brasil
de músicos e artistas de Angola, Moçambique, da região do Caribe, enfim, de várias
partes do Atlântico Negro (GILROY, 2001) a partir de 1984. Também em 1984, o cantor
angolano Waldemar Bastos grava um álbum no Brasil.
Ao longo da década de 1980 e 1990, tendo como um marco importante, o Projeto
Kalunga, o intercâmbio cultural entre o Brasil e os países africanos, sobretudo com
Angola, vai se adensando. Mesmo que incipiente, um interesse pelos cantares, pela
culinária, pelas culturas africanas de uma maneira difusa, ganha certo volume no Brasil.
De outro lado, o Brasil se torna um destino de visita importante para africanos, sobretudo
os falantes de língua portuguesa, em busca de estudo, lazer, turismo e negócios, e, no caso
específico de Angola, da fuga da guerra civil. Mais uma vez as proximidades culturais, o
tributo que uma parcela significativa dos brasileiros presta as suas heranças africanas,
consistem em elementos importante dessa conexão. Matérias de jornais cariocas de finais
da década de 1980 qualificam o Brasil como o “Eldorado do turismo africano” (O
GLOBO, 27/03/1988, p.25). Também nessa época, Martinho da Vila continua atuando
como um importante ponto de contato entre Angola e Brasil, pois, na segunda metade dos
anos 1980, continuou mobilizando seus parceiros sambistas da Grêmio Recreativo e
Escola de Samba Unidos de Vila Isabel e seus familiares, destacando-se Ruça,98 para
shows e eventos em Angola. Parte desse frutífero diálogo pode ser percebido no samba-
enredo e no respectivo desfile Kizomba – Festa da Raça (1988).
Também é nesse período de final da década de 1980 e início da de 1990 que o
cantor angolano radicado no Brasil, Abel Dueré começa a sua carreira no Brasil. Sua
estética sonora combina a música brasileira, o semba angolano e outros ritmos negros das
Américas e do Caribe.
O retorno a “mãe-África” foi uma motivação importante para muitos dos músicos
e intelectuais brasileiros que atuaram nessa rede de contatos e nessa travessia atlântica.
Como mencionado anteriormente esse foi um dos motores motivacionais dos músicos e
produtores que fizeram parte do Projeto Kalunga. Dorival Caymmi, segundo Dulce Tupy
(2017),99 foi a Angola para conhecer “seu berço”, ou seja, para conhecer “suas raízes”. D.

98
Esposa de Martinho da Vila naquela época, produtora musical e artística, dirigente da Vila Isabel no
período.
99 A jornalista Dulce Tupy me concedeu esta entrevista em sua residência em Saquarema em 24/03/2017.

Tupy foi uma atuante jornalista da grande imprensa e da imprensa alternativa no final da década de 1970 e

139
Ivone Lara declarou no Programa Ensaio ao relatar suas memórias sobre o projeto nos
anos 1990: “minha bisavó era angolana” (FARO, 1995). Como já citado, Martinho da
Vila também declarou que provavelmente tinha ascendentes angolanos. A jornalista
Dulce Tupy, que também fez parte da comitiva, declarou que sempre se interessou pelas
culturas de matriz africana e que tinha interesse sobre as lutas de libertação dos povos
africanos, tendo, inclusive, traduzido matérias da revista Afrique-Asie sobre esses temas
para o jornal Movimento.
Mais uma vez a visão bastante difundida no senso comum e também por alguns
acadêmicos de que o semba angolano derivou no samba brasileiro transparece nos
discursos dos referidos artistas e nas matérias de imprensa. Como exemplo é possível
citar matéria do jornal O Globo (07/01/1983, p. 25), que ao noticiar a visita de 21 artistas
angolanos – a equipe do Canto Livre de Angola – ao Brasil, descreve que a comitiva
estava no Brasil para mostrar “sua música, sobretudo a semba, da qual provém o nosso
samba”. O músico Chico Buarque, peça central do Projeto Kalunga, tinha algumas
expectativas similares sobre a música angolana: “eu imaginava antes que fosse uma
espécie de samba. Não é. É um merengue. A música antilhana está mais próxima”
(MOVIMENTO, 15/06/1980, p. 19).
Outro episódio que demonstra o relativo desconhecimento dos brasileiros, mesmo
os que ativamente buscavam informações sobre os contextos africanos e angolanos, foi o
descrito por Dulce Tupy acerca da visita de Dorival Caymmi a ilha do Mussulo “para
conhecer o culto à Iemanjá”. É interessante ressaltar que as matrizes culturais angolanas
são do tronco banto, sendo Iemanjá uma divindade do panteão iorubano vindo da Nigéria
e do Benin e cujo culto foi reconstruído no Brasil atravessado e rearticulado (MINTZ &
PRICE, 2003) com outras matrizes culturais. As deidades iorubanas presentes nas
religiões afro-brasileiras são bastante conhecidas e citadas em diversas obras da música
popular brasileira. Já as entidades e deidades dos povos angolanos como as Kiandas100 –
e os Inquices, deuses, eram pouco conhecidos no Brasil da década de 1980. Cabe ressaltar
que a hegemonia iorubá espraiada no senso comum, nas práticas culturais populares, nas

início da de 1980. Especificamente sobre o Kalunga, escreveu matérias para os veículos alternativos
Movimento e Módulo e que são os mais detalhados relatos encontrados sobre o evento, uma vez que a
repórter fez parte da comitiva.
100 De acordo com Nascimento: “Kiandas e kitutas são gênios da natureza, pertencem ao imaginário

Kimbundu e não podem ser confundidas com as sereias, mito ocidental criado a partir da tradição greco-
romana.” Porém há “um entrelaçamento entre os universos locais e europeus, e a incorporação, por parte
dos primeiros, de denominações (imaginários e valores) do colonizador europeu, trazidos, sobretudo, pelos
missionários cristãos” (NASCIMENTO, 2017, p.5).

140
temáticas das canções dos artistas da chamada MPB, corresponde a um processo histórico
complexo que não encontra abrigo numa correlação direta com os números de africanos
escravizados que chegaram ao Brasil, tendo em conta sua região de origem na África. A
grande maioria dos escravizados que chegou ao Brasil veio da região Central da África,
enquanto da África Ocidental (Nigéria e Benin), os números foram bem menores
(ALENCASTRO, 2020).
O presente capítulo busca traçar um panorama das relações culturais entre Brasil
e Angola no período em que esse país africano já havia alcançado a independência.
Pretende também observar as relações diplomáticas entre esses dois países de lados
opostos do mesmo oceano, atentando sobretudo para os jornais e a documentação
diplomática, analisando quando um viés culturalista é acionado como estratégia para a
operacionalização das relações internacionais.
O projeto Kalunga, a visita de Alcione e a de Beth Carvalho e o projeto Kizomba,
são pontos de contato que tiveram consequências artísticas, e que, eventualmente tiveram
sentidos políticos. Ou seja, é possível questionar de que modo às canções angolanas
gravadas por músicos brasileiros evocam a memória do tempo colonial e de que modo e
o porquê desta memória estar sendo acionada no “tempo da liberdade”. Essas são questões
que devem ser analisadas nessa etapa.
Da mesma forma serão analisadas as canções e as declarações dos músicos Bonga,
Luiz Ngambi e Waldemar Bastos que excursionaram ou residiram no Brasil em diferentes
momentos e que evocam a memória do tempo colonial, bem como o “desencanto” destes
artistas sobre os rumos da Angola independente em suas produções. Outros pontos de
contato entre os dois países tratados no capítulo em questão serão o projeto Kizombas,
evento idealizado por Martinho da Vila que reuniu brasileiros, sul-africanos, angolanos,
congoleses, entre outros, no Rio de Janeiro. Além disso, Da Vila continuou visitando ou
organizando comitivas artísticas para as terras angolanas, como a que levou a sambista
Jurema e o grupo Os Tincoans em 1984 e a visita do próprio Martinho em 1987. Já nos
finais dos anos 1980 e início dos 1990, têm início a carreira do angolano Abel Dueré no
Brasil.

141
3.1.1 O contexto político angolano dos anos 1970 e 1980: disputas e dissensos.

11/11/1975. Em nome do povo angolano, o comitê central do Movimento


Popular de Libertação em Angola, MPLA, proclama, solenemente, perante a
África e o mundo, a independência de Angola.

Trecho do file O lendário Tio Liceu e o Ngola Ritmos (JORGE


ANTÔNIO).

Mais uma vez recorrendo à obra de Jorge Antônio, em determinado momento de


sua película, o cineasta, constrói uma narrativa que mostra imagens da assinatura dos
acordos de transição de poder entre Portugal e os três movimentos de libertação (MPLA,
UNITA e FNLA), seguidas por imagens das mobilizações de tropas por Luanda e de tiros
cruzando o ar, tencionando enunciar ao seu espectador os conflitos entre esses grupos
pela hegemonia em Angola, e as palavras de Agostinho Neto, presidente do MPLA, – em
epigrafe – proclamando a independência de Angola. Birmingham (2002, p.137) chamou
atenção que, nas vinte e quatro horas que antecederam a proclamação feita pelo líder do
MPLA, as tropas do Zaire101, de Mobutu, apoiando a FNLA, pressionavam o movimento
de Neto pelo Norte, enquanto ao Sul, o MPLA e seus aliados cubanos, continham o
avanço das tropas sul-africanas, em apoio a UNITA. Os conflitos de 1975 adentraram o
ano de 1976 e ficaram conhecidos como a “segunda guerra de independência”
(BIRMINGHAM, 2002, p.145).
Patrick Chabal sublinha o “peso da história” no engendramento dos conflitos entre
os grupos nacionalistas angolanos, enfatizando as diferenças entre dois grupos principais:
os descendentes das elites nativas, também chamadas de “famílias tradicionais”
(MOURÃO, 2006, p. 217), cujo poder foi enfraquecido com a agudização da situação
colonial em Angola em finais do século XIX e início do século XX e “os africanos do
interior, pobres, sem formação e negligenciados, na base de uma ordem social
estratificada de maneira bastante rígida” (CHABAL, 2002, pp. 108-110). O segundo
grupo, em termos gerais, compôs a base social da FNLA, no norte do país, e da UNITA,
cuja atuação foi principalmente no leste e no sul do território angolano, enquanto o
primeiro grupo compôs o núcleo da liderança do MPLA.

101
Atualmente chamado de República Democrática do Congo (RDC) ou Congo-Kinshassa.

142
Vale destacar que UNITA e FNLA se aliaram durante certo tempo logo após os
eventos da “batalha de Luanda”, declarando uma outra independência no Huambo e
fazendo dessa região a capital do “governo democrático” de Angola, em contraposição
ao “governo popular” do MPLA, sediado em Luanda. Em todo caso, a aliança logo se
desfez e o movimento de Holden Roberto, a FNLA, entrou em um processo de declínio.
A UNITA, encabeçada por Jonas Savimbi, se torna o principal rival do MPLA, e
a principal estratégia de seu líder foi mobilizar uma retórica de “legitimidade africana”
em oposição à ideologia “‘marxista’ e ‘cosmopolita’ (leia-se: ‘não negra’) e obter apoio
externo sempre que possível” (CHABAL, 2002, p.7). A UNITA protagonizou em Angola
uma rivalidade política que se repetiu em outros países africanos, entre “modernizadores”
e “tradicionalistas” (CHABAL, 2002, p.7).
Em parte, o sucesso do MPLA em assegurar o domínio sobre a capital se deve a
boa recepção que esse grupo teve nessa cidade. O movimento encontra em Luanda um
cenário de muita mobilização política em torno de variadas tendências de esquerda. Tais
movimentos organizados em células de mobilização política e em grupos de estudos
atuavam “em nome” do MPLA antes de sua chegada à capital. Ao chegar em Luanda, o
partido de Agostinho Neto se depara com essa juventude mobilizada e com ela
estabeleceu ligações, que mesmo eivada de dissensos pontuais, é convergente. Membros
desses diversos grupos e tendências buscaram participar das “engrenagens” do MPLA.
Ao mesmo tempo, numa via de mão dupla, o MPLA se fortalece (em Luanda) com o
apoio dessas tendências (MARQUES, 2012, pp. 54-68).
Nito Alves, um comandante militar do MPLA que teve relativo sucesso nas
campanhas em que esteve à frente, desponta como uma liderança desses grupos e células
políticas mais à esquerda, em relação ao grupo mais sênior e mais pragmático, composto
por Agostinho Neto, Lúcia Lara e outros militantes históricos do partido. Alves tinha
como principais aliados José Van-Dunem, uma liderança jovem do MPLA que chegou a
fazer parte do comitê central, e, Sita Valles, militante experiente do Partido Comunista
Português, com uma grande capacidade de articulação, sobretudo com a juventude
intelectualizada. Além disso, as ideias de Nito Alves, principalmente suas falas e
discursos que denunciavam a carestia do povo pobre e a presença de mestiços em cargos-
chave do partido, encontravam grande ressonância nos musseques (MARQUES, 2012)
A proeminência de Nito e de seus aliados chama a atenção das lideranças mais
antigas do MPLA e um processo de cerceamento e contenção é iniciado. Em 1976, uma
comissão de inquérito é aberta para apurar a acusação de fraccionismo sobre Alves, em

143
outras palavras, um desvio da filosofia política geral do partido. No entanto, Alves não
recua, ao contrário, intensifica suas críticas ao núcleo duro do partido. Em maio de 1977,
o processo de sindicância é concluído e indica a destituição de Nito Alves e de José Van-
Dunem de seus cargos. A resposta nitista vem alguns dias mais tarde com ataques a cadeia
de Luanda, a tomada da Rádio e outras ações armadas na madrugada e manhã de
27/05/1977 que vitimaram alguns membros fiéis ao núcleo tradicional do MPLA.
Entretanto, a resposta do MPLA, com um marcante suporte das tropas cubanas,
no mesmo dia consegue sobrepujar a tentativa de golpe. A reação foi dura e severa: “foi
com (...) agressividade patente e em tom de revanchismo que começaram a acontecer as
prisões e execuções de nitistas” e de indivíduos suspeitos de terem ligações com o
movimento. Nos dias que se seguem, ocorrem muitas torturas, execuções sumárias e
recolhimento em “campos de reeducação”. O 27/05/1977 marcou indelevelmente a
história de Angola e do MPLA, que recebeu críticas de chefes de Estado africanos e da
anistia internacional, conforme registrou Marques (2012, p.87), “as estimativas são
assustadoras, variando entre 20 mil a 80 mil”.
A tentativa de golpe influenciou os rumos do MPLA ocasionando mudanças na
maneira como o partido se organizava e conduzia o país. Suas aspirações de expandir sua
base social e seus filiados foram refreadas, dando preferência a “pureza ideológica” de
seus membros, o que levou a um processo mais restrito de filiação ao partido e de
concentração de poderes, configurando “um partido de vanguarda ainda mais ‘elitista’
com o objetivo de supervisionar todos os aspectos da política e da sociedade”, analisou
Chabal (2002, pp. 60-61).
O processo de centralização do poder político foi percebido e sumarizado por
Nuno Vidal a partir dos seguintes aspectos e ações tomadas por Agostinho Neto e pelo
comitê central do MPLA que colocavam nas mãos da Presidência da República, poderes
que antes cabiam ao conselho da Revolução: a) a figura do presidente se torna o chefe de
governo, papel que antes cabia ao primeiro-ministro, acumula poderes legislativos e o
poder de nomear ou dispensar comissários provinciais, b) o presidente passar a ter o poder
de dispensar o primeiro ministro e outros membros do primeiro escalão do governo, c) as
atribuições do conselho da revolução e do conselho dos ministros são absorvidas por uma
comissão chefiada por Agostinho Neto, c) Já em 1978, o cargo de primeiro-ministro é
extinto e os comissários provinciais passam a responder de maneira direta à Presidência
da República (VIDAL, 2003, p.7).

144
Alguns artistas de renome da música angolana como Urbano de Castro, Davi Zé
e Arthur Nunes foram vitimados na “purga” de 1977. Marissa Moorman postula que é
possível que a “notoriedade” destes personagens em Luanda, sua importância na cena
cultural dos clubes, os fizeram alvos preferenciais da violência política. Defende também
que a “soberania cultural” e os espaços autônomos construídos por esses músicos e pelos
consumidores nos clubes das zonas periféricas contrastava com a postura centralizadora
e verticalizada que o MPLA assumiu ao chegar a Luanda e que se aprofundou na esteira
dos eventos de 1977 (Moorman, 2008, 196-202).
É importante destacar que a produção musical no pós-independência assume
rumos diferentes. Se antes os músicos, os gêneros musicais e os temas cantados evocavam
a “angolanidade” de uma determinada forma, em outros termos, afinal só o fato de se
cantar em uma língua nativa, performando um gênero considerado “folclórico”, já era
uma afirmação de identidade, de ser angolano. Após 1975, ganham destaque canções que
enunciam diretamente em suas letras os lemas do MPLA.
Avante o poder popular, por exemplo, canção do artista Santos Junior, diz que
“quem manda é o povo/E o povo é MPLA”. Valódia, do mesmo artista, é uma canção que
homenageia um comandante que “tombou nas mãos dos imperialistas”. 102 Sobre essa
última, Marissa Moorman observou que tem um compasso um pouco mais lento que os
sembas tradicionais da década de 1960 e que “não era música pra dançar, mas com um
tom solene (...)” que transforma o luto em ação. Massacre do Kifangondo, do artista
Santocas, também uma canção com temas revolucionários do mesmo período, rememora
a batalha ocorrida entre o MPLA e a FNLA em 10/11/1975, em uma região que se situa
na direção norte-nordeste de Luanda, na qual o movimento de inspiração socialista
sagrou-se vencedor. A referida composição tem um andamento quase tão lento e solene
quanto Valódia lamentando, “ali morreram, camaradas”. Certamente para a maioria dos
militantes mais seniores, Massacre do Kifangondo era uma canção que evocava um tom
solene, mas os jovens pareciam lhe atribuir um sentido diverso, conforme declarou Paulo
Lara, membro das FAPLA e que na segunda metade dos anos 1970 tinha cerca de 20
anos.

Todas essas músicas eram também usadas nas diferentes festas. Lembro-me por
exemplo de uma delas em que se dançava ‘o massacre de Kifangondo’, uma
melodia que servia perfeitamente para dançar colado ao par da sua escolha o

102
A canção Valódia pode ser ouvida no link a seguir: https://youtu.be/5HjHWlmPIfI. Acesso em
30/05/2021 às 07 h 00 min.

145
aproveitar as palavras mais ‘emocionantes" da música como ‘aí morreram
camaradas, aí morreram angolanos... O povo não esqueceu Kifangondo’ para,
oportunisticamente, colar-se ainda mais ao parceiro/a. Foram momentos próprios
daquela altura, em que no meio da violência que se vivia, não impedia que a
juventude aproveitasse qualquer oportunidade para uma boa festa e não havia
música que não justificasse uma boa dança, mesmo se por vezes, surgissem
combatentes que geralmente justamente inconformados com tamanha ‘falta de
respeito’ para os seus colegas falecidos suspendiam a festa, quando não
chegassem a partir o gira-disco ou a agredir os participantes. Mas é um fato que
foram músicas que, naquela altura, por mais primárias e menos poéticas que
fossem, tiveram importância na mobilização da juventude e não deixavam de
exprimir o que realmente as pessoas sentiam (LARA, 2020).

A cena cultural após a emancipação tinha a interferência direta do Estado através


de variadas iniciativas na literatura, nas artes, no cinema e, sobretudo, na música, que
recebiam patrocínio do MPLA. Parte dessa estratégia era estimular a participação dos
artistas angolanos em eventos fora do país, com destaque para países do bloco socialista
que tinham aliança mais direta com Angola, como Cuba e Rússia (MOORMAN, 2008, p.
199). A visita dos músicos angolanos ao Brasil no projeto Canto Livre de Angola (em
1983) e participações eventuais no Kizombas (1984 e 1986) também são feitas dentro
dessa lógica. A diferença é que o Brasil, mesmo não fazendo parte do bloco socialista,
configurava um parceiro comercial muito importante como evidencia declaração do
ministro do comércio interno, Carlos Van Dunem, em missão diplomática ao Brasil no
começo do ano de 1980, ao dizer que os produtos e serviços brasileiros ocupavam o
primeiro lugar nas importações feitas por Angola. Como se percebe, tais políticas
culturais estavam aliadas às estratégias diplomáticas do MPLA.103

No plano interno tais ações se configuravam em patrocínios às atividades nos


clubes localizados nas áreas suburbanas Maxinde, Giro Giro, Centro Recreativo União
de São de Paulo, entre outros, à produção de álbuns musicais como A Luta continua
(produzido em 1975 pelo Departamento de Imprensa e propaganda do MPLA e gravado
em Moçambique), e à produção de filmes, peças, entre outras atividades (Moorman, 2008,
204-212).

Especificamente sobre a cena musical, alguns eventos nos clubes tinham as


despesas de comida e bebida quase que integralmente custeadas pelo governo, cobrando
apenas o ingresso a valores módicos, os quais seriam integralmente revertidos para a

103
A canção Massacre de Kifangondo pode ser acessado no link a seguir: https://youtu.be/6SDi44J_7p0 .
Acesso em 30/05/2021 às 8 h 00 min.

146
remuneração dos músicos. “A música da época não era comercializada e havia aquele
sentimento de que: estamos todos politicamente envolvidos”, declarou o músico Santocas
em entrevista à Moorman (2008, p.207).

A política cultural do governo angolano, sintetizada no lema “trabalhar com rostos


felizes, não rostos tristes” de José Eduardo dos Santos, o presidente que assume o governo
de Angola após a morte de Agostinho Neto em 1979, também patrocinou a vinda de
artistas internacionais como a banda antilhana Kassav (Moorman, 2008, p.212). Nesse
mesmo processo, foram convidados a se apresentar em Angola tendo as despesas pagas
pelos órgãos ligados ao MPLA vários artistas brasileiros, como os do Projeto Kalunga
(1980), Alcione (1980), Beth Carvalho (1981), a comitiva composta por Jurema e o grupo
Os Tincoans (1983) e as visitas de Martinho da Vila na segunda metade da década de
1980, como se verá mais adiante.

147
Capítulo 3.2 – As relações Brasil-Angola no âmbito das relações
exteriores nas décadas de 1970 e 1980.

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola em 1975. A


ação rápida da chancelaria brasileira e a consequente resolução tomada pelo presidente-
ditador Geisel buscava remediar o que consideravam um erro do passado: o ora tácito,
ora explícito apoio ao colonialismo português na África. Após a Revolução dos Cravos
(1974) em Portugal, e em decorrência dos acordos para a transição de poder nas ex-
colônias africanas, a diplomacia brasileira enxergava os países africanos de língua oficial
portuguesa como potenciais parceiros comerciais que lhes garantissem mercados para
seus produtos e fornecimento de commodities essenciais como petróleo, uma vez que o
Brasil não era autossuficiente quanto à produção petrolífera no período. No entanto, a
postura conciliadora com o colonialismo português causou embaraços às relações com as
nascentes nações africanas tal como Moçambique, cuja área diplomática não foi receptiva
aos esforços de aproximação de sua correspondente brasileira.104
Esse esforço foi tentado ainda no segundo semestre de 1974, quando as
autoridades brasileiras buscaram abrir uma representação especial (DÁVILA, 2010, p.
207) em Moçambique e outra em Angola, sendo recebidos friamente pelos representantes
da vitoriosa FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), enquanto em Angola
acenos favoráveis foram emitidos pelos três movimentos que disputavam a independência
e o futuro governo. Outro gesto de desagravo dos moçambicanos foi não convidar o
Brasil, “para profundo desgosto do Itamaraty (...) para os festejos de Independência
Moçambicana” (MOVIMENTO, 15/06/1980, p. 14). Moçambique não só não convidou
os representantes oficiais do Estado Brasileiro para as cerimônias da independência, como
invitou o ex-governador de Pernambuco, e, notório militante de esquerda, Miguel Arraes.
Os membros da FRELIMO se ressentiam profundamente da inação brasileira frente às
lutas de libertação dos países africanos (DÁVILA, 2010, p. 208, 214).
Como apontou Dávila (2010, p. 204), pode causar estranhamento, o fato de que,
o Brasil, uma ditadura de direita, em tempos de Guerra Fria reconhecesse a independência
em 1975 de um país governado por um partido de esquerda, o MPLA, que depois se
assumiria enquanto marxista-leninista. No entanto, o pronto reconhecimento da

104Vale lembrar que os anos 1970 e 1980 são marcados pelos incidentes da “crise do petróleo” quando um
consórcio de países do oriente médio, nas disputas bélicas ou diplomáticas com os Estados Unidos e outros
países, empreende retaliações elevando o preço do petróleo, ocorrendo um destes episódios em 1973. Já
em 1979, a crise foi deflagrada pela desestruturação da produção iraniana durante a revolução cultural
islâmica naquele país.

148
independência angolana atende a lógica do pragmatismo: Angola poderia ser a porta de
entrada para os mercados africanos. Já no imediato pós-independência, o Brasil
contribuiu para a normalização do fornecimento de gêneros alimentícios em território
angolano através da rede de supermercados Pão de Açúcar e vendeu também
“automóveis, caminhões, tecidos” e diversos outros produtos (MOVIMENTO,
15/06/1980, p. 14).
O radialista Fernando Mansur, participante do Projeto Kalunga, quando
perguntado sobre essa aparente contradição respondeu que um lema do governo militar
relativo às suas relações exteriores que era bastante acionado na época era o do
“pragmatismo responsável” (MANSUR, 2018). 105 De fato, essa era uma diretriz
formulada pelo chanceler Azeredo da Silveira – na administração Geisel – em relação à
política internacional. “A política externa deve ser instrumental para o desenvolvimento
econômico e social do país, deve abrir para o Brasil as opções do futuro”, declarou
Silveira em seu discurso de posse em 1974 (conforme citado em LIMA, 2018, p. 294).
Na mesma perspectiva, Lima e Moura destacam que o projeto de desenvolvimento
nacional urdido pelos governos militares demandava mais energia (petróleo),
financiamento e mercados; elementos que adviriam de um reposicionamento diplomático
que buscasse tornar o Brasil uma nação relevante e atuante no “concerto das nações”. A
ideia era de que cada solução ou negociação que o país realizasse no âmbito diplomático
deveria ser regida por “considerações pragmáticas; cada problema receberia um
tratamento particular, procurando medir‑se em cada caso qual o ‘interesse nacional’”
(SOARES & MOURA, 2018, p.339).
Matéria do Jornal O Globo (15/04/1976, p.18) indica o interesse dos dois governos
em estabelecer acordos acerca da exploração de petróleo em terras angolanas. A mesma
notícia também dá conta de que naquele ano, contratos estavam sendo firmados para que
empresas brasileiras vendessem 200 ônibus a Angola através de financiamentos providos
por bancos estatais daqui e que estavam previstas visitas de ministros de Estado angolanos
ao Brasil para formalizar tais parcerias e novos acordos para fornecimento de material
hospitalar, navios de carga e barcos pesqueiros. Os esforços brasileiros deram frutos e no
ano de 1980, Angola já vendia cerca de oito mil barris de petróleo para Petrobrás,
tornando-se uma fonte importante, mesmo que em menor escala do que fornecedores
como Venezuela. Ao longo do ano de 1979, por exemplo, o Brasil recebe com frequência

105 Fernando Mansur me concedeu esse depoimento no Hotel APA em Copacabana em 29/08/2018.

149
a visita de funcionários de alto escalão do governo angolano, tendo como pauta
importante dessas comitivas os contratos petrolíferos, como a visita de Carlos Alberto
Van Dunem – titular da pasta de comércio – ao Itamaraty, sendo recebido pelo chanceler
Saraiva Guerreiro (Jornal do Brasil, 25/01/1980, p.3). 106
É importante lembrar que isso ocorria em meio às crises de fornecimento
ocasionadas pelos conflitos no Oriente Médio, em decorrência da revolução iraniana e da
guerra Irã-Iraque.
Vale acrescentar, sobre a conjuntura angolana, que o fim da chamada “guerra de
libertação” dos movimentos angolanos contra Portugal, e, a posterior independência,
começa a se desenhar com a Revolução dos Cravos em 1974 que põe termo ao fascismo
português e leva ao poder um governo provisório lusitano encabeçado por militares de
esquerda. O novo governo português estabelece um cessar fogo com o MPLA, a UNITA
e a FNLA – os três movimentos anticoloniais – e busca negociar um acordo de paz que
viabilizasse uma independência tripartite, com a realização de eleições. O que não se
concretizou. Os três movimentos entraram em disputa pelo controle de Angola dando
início a uma guerra civil que, a despeito de alguns intervalos e acordos temporários de
paz, dura de 1975 até 2002. Também é preciso lembrar que os referidos movimentos
recebiam apoios militares e diplomáticos, diretos e indiretos, de grandes potências
mundiais como União Soviética e Estados Unidos e outros players internacionais
relevantes como China, África do Sul e Cuba.
Em 11 de novembro 1975, a independência é declarada pelo MPLA, movimento
que controlava Luanda e grande parte do território. No entanto, o dito movimento que
controlava a capital enfrentava a oposição dos exércitos da FNLA e da UNITA, bem como
dos seus respectivos apoios militares, sendo o de maior peso, o ensejado pela África do
Sul ao movimento liderado por Jonas Savimbi (presidente da UNITA). Já em relação ao
movimento de Agostinho Neto, o MPLA, o principal apoio vinha das tropas cubanas.
Como já mencionado, os esforços brasileiros em se aproximar dos países africanos
falantes de língua portuguesa tinham o objetivo de ampliar as relações políticas, e,
sobretudo, comerciais, com o continente africano de uma forma geral. Além disso, o
Estado Brasileiro de finais dos 1970 e início dos 1980 buscava se firmar como um player
relevante no Atlântico Sul. O Itamaraty neste período buscou retomar, não de maneira

106A mesma matéria indica que em 1979, o Brasil recebeu também, em diferentes meses, os ministros
angolanos, de comércio exterior, Roberto Victor Francisco de Almeida, e, Jorge Augusto de Moraes, de
Petróleos.

150
voluntariosa, mas pragmática, a tendência independentista lançada por Jânio Quadros no
começo dos anos 1960. Essa tendência tem seu ponto alto na gestão dos chanceleres
Gibson Barbosa, Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, que com poucas variações,
primaram pelo “pragmatismo responsável” nas relações exteriores. Barbosa coloca no ar
em 1972 a “embaixada voadora” (DÁVILA, 2010, 165), 107 encabeçando pessoalmente
uma missão diplomática pela África Ocidental: Costa do Marfim, Gana, Togo, Dahomé
(atual Benim), Zaire (atual República Democrática do Congo), Camarões, Nigéria,
Senegal e Gabão. Já Guerreiro empreendeu uma “hábil expedição” (MOVIMENTO,
15/06/1980, p. 14) em 1980 pela Tanzânia, Zâmbia, Moçambique, Zimbábue e Angola.
É preciso destacar que o Movimento era um jornal da imprensa alternativa,
portanto, de tendência editorial à esquerda, assim o elogio à política externa brasileira
quando qualificam como habilidosa a gestão de Saraiva Guerreiro se dá por conta do
distanciamento de uma política anterior, qual seja, a do alinhamento automático aos
Estados Unidos, tendência que prevaleceu na segunda metade dos anos 1960.
Outro ponto a se destacar da referida matéria são os esforços brasileiros para tentar
“pacificar” a relação com Moçambique. O chefe da missão diplomática brasileira em
terras moçambicanas, Ronald Morais, tenta, em vão, levar Martinho da Vila para se
apresentar em uma Feira Agrícola, Comercial e Industrial naquele país em 1976. Note-se
nesse episódio a prática comum do Itamaraty em aliar a difusão cultural com a promoção
comercial, o que também pode ser percebido em relação ao Projeto Kalunga como se verá
a seguir. Mas as relações entre os dois países só começam a se “normalizar” a partir da
atuação de Ítalo Zappa, designado pelo Itamaraty para substituir Morais. Anteriormente
Zappa era o chefe da Divisão para África do Itamaraty, o que demonstra a importância
que o Chanceler Azeredo da Silveira dava a questão moçambicana (MOVIMENTO,
15/06/1980, p. 14). Registre-se também que Ítalo Zappa é visto por destacados membros
do corpo diplomático como detentor de posições políticas “à esquerda” (DÁVILA, 2010,
p.194).
Também é possível notar o empenho brasileiro em fomentar as relações com
Angola pelo tom dos relatórios diplomáticos. No início do ano de 1980, o encarregado de
negócios da representação brasileira em Luanda remete um pormenorizado parecer sobre
as relações entre as duas nações:

107Referência ao fato de ter passado cerca de um mês viajando pelos referidos países a bordo de um avião
da Força Área Brasileira equipado de maneira similar a uma embaixada.

151
Foram muito intensificados os contatos, tanto no campo político, quanto cultural,
e, sobretudo, comercial. Além do número crescente de bolsistas angolanos no
Brasil, o ano foi marcado pela ida de cinco missões governamentais de alto nível,
das quais três chefiadas por ministros de Estado
(MRE/BRASEMB/LUANDA/DAF II/ Nº 11/ 07/01/1980).

O relatório segue descrevendo minuciosamente a venda de carros, caminhões e


ônibus, vagões ferroviários, além de novos contratos de fornecimento do mercado Pão de
Açúcar para o abastecimento de Luanda, novos acordos com a Petrobrás, entre outros.
Destaca-se também que o relatório brasileiro enfoca similarmente os negócios realizados
por Angola com outros países como Bélgica, Áustria, Itália, Estados Unidos, Hungria e
Arábia Saudita o que demonstra o que Nunes Pereira (2015) chamou de “paradoxo
angolano”, ou seja, que mesmo tendo alianças políticas e militares com o bloco socialista,
a maior parte das transações comerciais angolanas era realizada com países capitalistas
do chamado “ocidente”. Em 1979, cerca de 60% do que Angola importava vinha da
América do Norte e da Europa, que eram também as regiões que mais adquiriam produtos
angolanos, numa proporção de 50% das exportações totais (PEREIRA, 2015, p. 237). O
MPLA “não fazia a política externa da liberdade, mas a da necessidade”, avaliou Nunes
Pereira (2015, p. 70) sobre o imperativo de buscar apoios militares nos países socialistas
para se defender dos ataques da FNLA, da UNITA e da África do Sul e ao mesmo tempo
realizar negócios com os países do “ocidente” para obter os recursos que custeassem o
esforço de guerra e satisfizesse as necessidades de abastecimento do povo angolano.
Quanto ao âmbito cultural, o relatório também comemora o “impulso” das
relações enfatizando a visita do escritor Jorge Amado e dos professores Fernando Mourão
e José Honório Rodrigues. Destaque-se que Amado é uma referência importante para o
público angolano, sendo bastante apreciado por seus romances cujas temáticas desvelam
as desigualdades sociais brasileiras, a luta operária e, sobretudo, a vida do povo pobre e
negro da Bahia, seu cotidiano, seus costumes, suas festas e sua religião. Nessa etapa do
documento pode-se perceber o planejamento inicial do Projeto Kalunga quando se relata
que havia sido acordada a visita de um “grupo musical liderado por Chico Buarque de
Holanda” (MRE/BRASEMB/LUANDA/DAF II/ Nº 11/ 07/01/1980).
Vale registrar que, embora a chancelaria brasileira, pelo tom dos relatórios,
comemore os resultados do aprofundamento das relações culturais, o protagonismo de
fato pela realização do evento coube ao governo do MPLA e aos artistas do Kalunga,
visto que o Estado brasileiro pouco ou nada contribuiu financeiramente para a realização
do evento. “Estamos do lado do povo brasileiro e não do Brasil oficial e por isso chegamos

152
aqui sem nenhuma colaboração do governo”, declarou Chico Buarque (Cadernos T.
Mundo nº 25, maio de 1980, p.107). Uma notícia do Jornal do Brasil (16/05/1980, p.2)
dá conta que o Itamaraty ofereceu ajuda, a qual sofreu uma recusa discreta. Entretanto, a
diplomacia brasileira “colheu os frutos” do Projeto Kalunga: “O grupo conseguiu, em
poucos dias, fazer o que os acordos culturais oficiais não conseguem em anos”.
Destaca-se, ainda, na documentação diplomática, a cooperação técnica e
acadêmica entre o Brasil e os países africanos de língua portuguesa, da qual o Estado
brasileiro se beneficia, pois, assim como no intercâmbio cultural, tais concessões lhes
granjeiam “créditos morais” que podem garantir vantagens em negociações políticas e
econômicas. Pelos despachos e telegramas da representação brasileira em Luanda, bem
como do Departamento de Difusão Cultural do Itamaraty é possível encontrar pedidos
com diversos fins: livros infantis requeridos pela Organização da Mulher Angolana,
revistas solicitadas pelo Instituto Angolano de Cinema, solicitações de livros de literatura
e poesia brasileira por autoridades angolanas, arranjos para realização de festivais de
cinema, entre outros (MRE/DDC/1980-1983).
É preciso destacar que o Ministério das Relações Exteriores brasileiro já envidava
esforços no sentido de fazer das práticas culturais, sobretudo literatura e música, ativos
nas negociações diplomáticas desde meados da década de 1940. Aspecto esse que se
consolida na década de 1960 com a criação da Divisão de Difusão Cultural (DDC).
Inicialmente, a política cultural do Itamaraty enfocava práticas culturais entendidas como
da “alta cultura”, desprivilegiando as da cultura popular, como o samba.108 Mas a demanda
por certas produções culturais brasileiras no exterior redirecionou tais esforços para a
chamada música popular com foco no samba e na chamada música popular brasileira.
Os artistas da chamada MPB como Caetano Veloso e Chico Buarque, apesar
serem considerados artistas “filo-comunistas” por setores da ditadura militar brasileira,
ainda assim receberam o apoio financeiro para a participação de festivais musicais na
Europa como o MIDEM em Cannes. Já na década de 1970, o Brasil lança o “programa
de cooperação cultural entre o Brasil e os países africanos” que envolvia não apenas o
Ministério das Relações Exteriores, mas também o Ministério da Educação com ações de
financiamento para pesquisadores brasileiros e bolsas de estudo no Brasil para estudantes
africanos. Assim, de acordo com Dumont & Fléchet, a diplomacia brasileira compreendeu

Vale lembrar o caso já citado da diplomacia brasileira ter desvalorizado o filme “Orfeu Negro” de 1959
108

por enfocar os personagens negros, a vivência dos morros cariocas e suas práticas culturais.

153
“que o soft power 109 era uma ferramenta apreciável para (...)consolidar sua inserção no
cenário internacional e afirmar suas posições econômicas” (2014, p. 216).

109Soft Power é a capacidade de influenciar e de conseguir resultados no plano das relações internacionais
com base na legitimidade que esse país alcança no “concerto das nações”, granjeada através de sua cultura,
seus valores, sua ideologia, sua prosperidade, seu modelo a ser seguido. Cf. Nye (1990, p. 166-167).

154
3.3 – Bonga e o Brasil.

É na batida! É na rítmica! Você toca um semba sincopado, ele entra imediatamente num
samba brasileiro. A instrumentação é que já diferencia, mas cola tremendamente. E os negros
idos de África levaram o semba consigo [Bonga em entrevista ao musicólogo Mateus Kushic]110

José Adelino Barceló de Carvalho, o músico angolano Bonga, é mundialmente


conhecido. Em suas entrevistas e declarações destaca-se o reconhecimento à influência
brasileira na música angolana. O músico e antropólogo Ricardo Rêgo relatou que no
período em que esteve exilado assistiu e por vezes esteve se apresentando nos mesmo
espaços artísticos que Bonga, que a época era parceiro musical do brasileiro Tião Perazo:
“fazia seus sets musicais, com um repertório quase que integralmente brasileiro, com
exceção de uma ou duas músicas angolanas” (REGO, 2014). Além disso, Bonga passou
algumas temporadas no Brasil em 1978 participando de shows e da gravação de um álbum
de Martinho da Vila. Barceló de Carvalho é possivelmente o artista angolano mais
conhecido e reconhecido dentro e fora de Angola. Já se apresentou e gravou álbuns em
países como França, Portugal, Holanda e Brasil, entre outros. Sua carreira começa na
década de 1970, mais especificamente com o lançamento do Long Play Angola 72. Em
depoimento ao pesquisador Filomeno Lopes, Bonga conta suas impressões do Brasil:

Eu, quando fui ao Brasil pela primeira vez, cheguei a Salvador da Bahia e
encontrei retratadas na sociedade brasileira de Salvador da Bahia muitas coisas
que nós em Angola já esquecemos porque esses assuntos já não são tratados em
Angola pelos assimilados, pelos imitadores do branco português. E é essa a casta
de pseudointelectuais que dirige o país com estruturas do branco e não com o
reconhecimento do valor das coisas ancestrais e eu me pergunto: porquê? Porque
não lhes convém, porque eles não sabem e não lhes interessa saber e isso é muito
triste. É o caso da instrumentação típica, tradicional angolana, que está
representada no Brasil, por exemplo. Quando eles falam no birimbão, para nós é
o ungo; quando eles falam em atabaque, para nós é o batuque. Quando falam
daqueles pratos típicos tradicionais que o assimilado não come, em Angola,
porque ele só come bife, batatas fritas, bacalhau com natas, eu fico muito triste e
digo assim: espera aí, afinal acabou uma revolução, mas terá que entrar outra. A
revolução da afirmação de um povo e de toda a sua têmpera, de toda a sua estética
na forma que tem de assumir de acordo com as suas origens (LOPES, 2013, p.70).

Como vêm sendo debatido ao longo desse trabalho, para Bonga, para alguns
músicos angolanos e para parte dos nacionalistas em geral, a maneira como os brasileiros,

110
Agradeço ao Mateus Kushic a gentileza de me ceder essas e outras entrevistas que realizou em 2015
em Luanda. Cf. Bonga (2015).

155
grosso modo, ou pelo menos uma parcela significativa desses, lidam com suas raízes
africanas é significativa. É preciso fazer a ressalva que no período em questão, qual seja,
o período que Bonga circulou pelo Brasil (1970-1990), o país era111 estruturalmente
desigual do ponto de vista da raça. Homens e mulheres que descendem dos africanos que
para cá foram trazidos à força, ocupavam poucos postos de poder na sociedade e o
racismo era bastante agudizado na época, embora se expressasse de formas sutis por
vezes. Ainda assim, no âmbito cultural, as raízes africanas constituíam e constituem a
base das nossas principais práticas culturais no campo da música, da culinária.
Bonga é filho de pai angolano, Pedro Moreira de Carvalho, e mãe congolesa
(RDC), Ana Raquel. O artista tem cerca de nove irmãos e nasceu em 05/09/1942
(PASCOAL, 2018, p.40) em Porto de Kipiri e costuma dizer que sua vivência no interior
– na casa que sua família mantinha nessa região – foi muito importante pra sua formação:

Mais de 30 a 35 quilómetros de Luanda. É na zona do Bengo, a norte de Luanda.


Os meus pais tinham ali uma chitaka, uma espécie de horta onde plantávamos a
jinguba [amendoim], batata-doce, mandioca. Eu nasço ali acidentalmente, porque
não vivíamos lá, vivíamos em Luanda. Foi uma coincidência. Mas nasci ali e,
como tradicionalista que sou, tenho muito orgulho em ter nascido naquele lugar
específico (PÚBLICO, 2015). 112

O artista comenta que passou a maior parte de sua infância e adolescência em


Luanda quando enfrentava as dificuldades da vida nos musseques nas décadas de 1940 e
1950: sem água encanada, precisava buscar água nos chafarizes e fontanários e que a
iluminação a noite era provida por candeeiros de óleo de palma. Declarou também que
não havia um bom convívio entre as pessoas da baixa e dos musseques. “Dificilmente a
gente ia à casa de um branco”, contou Bonga (PÚBLICO, 2015). Ainda sobre os
musseques e sobre as mobilizações anticoloniais, afirmou: “ao acordar nessas casas em
que vivíamos havia um panfleto que nos caía no quintal e que não sabíamos qual era
proveniência e estava a nos alertar de coisas muito sérias” (SPTtv, 2014).
O cantor costuma comentar que muito importante na sua formação, na sua infância
e juventude, foi a convivência com suas avós, D. Engrácia e D. Matilde e que com elas
aprendeu danças, cantares, histórias, contos, provérbios populares e a culinária das
populações nativas de Angola. Bonga deve o seu conhecimento de quimbundo por conta
de seu convívio cotidiano com essas ascendentes, pois uma delas – Engrácia – se

111
E ainda é, só que alguns avanços ocorreram desde então, fruto da luta desses sujeitos.
112 Inserções minhas.

156
expressava quase que exclusivamente nessa língua e muito pouco em português. Bonga
comenta que com as avós aprendeu o “valor das tradições que nós praticamos. Ela vestia
aqueles panos das tradições, o Kimone, as missangas, os colares e tudo mais”, referindo-
se a D. Matilde (PASCOAL, 2018, p.40).
Bonga também declarou ter feito parte de grupos musicais e turmas que à época
eram chamados de folclóricos como os Ilundos, Kimbandas do Ritmo e Kissueia da
Banga (PASCOAL, 2018, p.40).

Fundei os grupos folclóricos [...] e nós erámos miúdos e não nos dávamos conta
que estávamos fazendo uma revolução sócio-cultural-musical da nossa época
[...]. Havia um fulgor de apresentação de coisas que eram nossas (SPTtv,
08/06/2014).

Como se pode perceber por essa assertiva, o potencial crítico ao colonialismo não
residia somente no conteúdo das letras das canções, mas no próprio gênero musical
símbolo da nacionalidade angolana: o semba. Outro aspecto do semba era que os músicos
e compositores que o produziam, além de, buscar recuperar e adaptar temas e ritmos do
cancioneiro popular faziam-no nas línguas tradicionais como o quimbundo, o quicongo
ou o umbundo. O próprio nome artístico de Barceló de Carvalho já denota esta intenção:
“sua primeira rebeldia contra o branco foi a de adotar um nome bantu” conforme
qualificou O Globo (02/12/1977, p.37). Também indica uma “busca pelas raízes”, pois a
palavra “bonga” significa “procura”.
Em todo caso, para além da forma havia críticas diretas no conteúdo das canções.
Em uma de suas entrevistas à rádio Luanda Antena Comercial em 2010, o músico
rememora as canções carnavalescas recitando alguns trechos na língua nativa e depois
fazendo a tradução: “Vão se embora/ Vão se embora/ deixa-nos em paz”, diz refrão de
um desses temas carnavalescos, relembra o artista. “Receberam a terra e encheram-se/
São pançudos”, relembra outro verso satírico em que os angolanos criticam os
portugueses, no trecho de uma canção que ficou famosa em um carnaval de sua juventude
(RODRIGUES, 2020).
Sobre esse período em que a população angolana enfrentava o jugo colonial, o
cantor relatou em suas entrevistas que “o clima era grave” com “porrada” e “prisões
arbitrárias” (PASCOAL, 2018, p.29 e 31). Bonga assinala que mesmo em um clima tenso
e repressivo – ou justamente por haver uma conjuntura de opressão e para se conseguir
suportá-la – era preciso “a alegria de viver, a força de viver e de dar volta por cima, (...)
uma atitude de esperança”, e, acrescenta, que era necessário ocupar o espaço público

157
“porque apresentávamos outras formas de nos verem a nós, de nos respeitarem e de nos
valorizarem” (PASCOAL, 2018, p.29 e 31).
O artista também relata que esses grupos carnavalescos eram compostos
principalmente por moradores dos musseques. “O carnaval era uma manifestação cultural
muito forte”, que vinha do musseque enuncia Bonga, e, acrescenta que “era uma
manifestação de rua com as turmas dos bairros, e que, nessas ocasiões, tais indivíduos e
conjuntos através de suas canções criticavam “a sociedade que se vivia então”
(RODRIGUES, 2020). Esse potencial crítico do carnaval pode ser vislumbrado no filme
Carnaval da Vitoria do cineasta Antônio Ole. A referida película registra a histórica
festividade ocorrida em 1978, a primeira no período do pós-independência, e, em certo
momento retrata o celebre grupo carnavalesco Kabocomeu quando um de seus foliões
declara:

"O enfeite do kazukuta,113 o nome é Kabocomeu, mas o batuque é kazukuta [se


referindo ao gênero musical] O equipamento do kazukuta é máscara. Com muitos
enfeites. Uns tens a pasta... (...). São médicos. (...) O batuque está a tocar com
muitas carinhas. (...)".

As “carinhas” fazem alusão às máscaras e aos adereços relativos à fantasia.


Quando o folião se refere aos médicos, está remetendo à prática já antiga do bloco de
caricaturar os grandes personagens da sociedade, de criticar o colonizador. Em outro
momento do média-metragem, o narrador ressalta a tradição crítica dessa associação
carnavalesca no desfile de 1978: “Kazukuta Kabocomeu mostra como é que os colonos
roubavam nas medições os terrenos das lavras do povo”. Na cena, um folião de capacete
branco, interpretando um colonizador, conta notas de dinheiro e depois as esconde em
uma caixa. Em uma entrevista de rádio do ano de 2010, Bonga relembra essas práticas
culturais e os grupos que as ensejavam como A Cidrália e Os Invejados, grandes grupos
carnavalesco que retratavam a sociedade já naquele tempo. “Havia a dança do maiado.
(...) Essa dança do maiado fazia umas caretas, trazia umas máscaras enormes, cada uma
delas com a cara de um dirigente qualquer”, acrescenta o cantor. E declara também “o

113Kazukuta: é música, ao mesmo tempo, a dança por excelência que é de sapateado lento, seguido de
oscilações corporais, firmando-se o bailarino, ora no calcanhar, ora na ponta dos pés, apoiando-se sobre
uma bengala ou guarda-chuva. Os tocadores usam instrumentos como latas, dikanzas, garrafas, arcos de
barril e, para algumas variações rítmicas, a corneta de latão (caixa corneta). Os bailarinos trajam-se de
calças listradas e casacas devidamente ornamentadas, representando alguns postos do exército, com uma
máscara, representando alguns animais, para melhor caricaturar o inimigo (o opressor). (...) No fundo é
mesmo um Semba (PASCOAL, 2018, p.37). Ressalte-se que kazukuta e kabetula são gêneros angolanos
que foram justapostos a outros estrangeiros como o samba e a rumba congolesa e ensejaram o semba.

158
angolano nunca teve medo de dizer aquilo que pensava através da estética, ainda que de
kaxexe”, ou seja, de maneira dúbia e indireta, às escondidas (RODRIGUES, 2020).
Invejados e Cidrália são dois grupos carnavalescos rivais surgidos em Luanda,
conforme indica Marzano na década de 1930. Tais rivalidades eram baseadas, em geral,
nas regiões de moradia na capital, mas também, em lógica correlata de construção de
identidade, que opunha os moradores “antigos” dos musseques aos “recém-chegados”, os
que foram “empurrados” das áreas mais centrais da cidade para as mais pauperizadas por
conta do aumento no fluxo da chegada de colonos (NASCIMENTO, 2015). No caso da
Cidrália e dos Invejados, os primeiros são os recém-chegados e os últimos os que
tradicionalmente já moravam nos musseques. Vale enfatizar que os dois grupos faziam
parte da grande massa dos “colonizados”, evidenciando os conflitos e as clivagens dentre
os grupos subalternizados (MARZANO, 2016, pp.77-78)).
Retomando a trajetória de Barceló de Carvalho, o músico prestou o serviço militar
obrigatório pelo tempo regulamentar, época em que consultou seus pais sobre a questão.
Segundo contou em depoimento ao pesquisador Filomeno Lopes, foi por insistência deles
que ingressou no exército e que por conta da sua “especialidade” – possivelmente por ter
o ensino em nível médio ou técnico – não iria para o front de batalha, pois tinha a função
de “Cabo Escriturário”. Na ocasião seu pai lhe aconselhou que se “tiver que fazer guerra”
que ele poderia fugir, pois “somos nacionalistas, não vamos guerrear africano contra
africano” (LOPES, 2013, p.37).
Após ter servido ao exército, Bonga – que estudou no colégio da “Casa da Beira”
– trabalhou na junta de estradas, um órgão do governo local, e em um “gabinete de
radiologia” (PASCOAL, 2018, pp. 40-43). Fez carreira no atletismo profissional como
corredor de provas de 100, 200 e 400 metros. Atuou e ganhou títulos e premiações por
clubes angolanos, como São Paulo e Atlético de Luanda. Foi justamente sua carreira
esportiva que o fez sair de Angola em 1966 para atuar em clubes portugueses como o
Sport e o Benfica onde se sagrou campeão nacional (Entrevista SPTtv).114
O primeiro álbum de Bonga foi gravado na Holanda pelo selo Morabeza Records
de propriedade do cabo-verdiano Djunga de Biluca. A gravadora e seu proprietário tinham
ligações com o PAIGC (Partido Africano para a independência de Guiné-Bissau e Cabo
Verde) e usavam a música como uma forma de divulgar as lutas dos povos africanos
contra o colonialismo (MOORMAN, 2019, p. 449). Conforme matéria do Público (2015),

114Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fSJKTvFeB7o. Acesso em 07/01/2020 às


09 h 45 min.

159
o álbum era uma obra “denunciando o colonialismo, cantando a pobreza, a injustiça, a
dureza da emigração”.
Dentre as canções do álbum, destacam-se Balumukeno, Mona ki ngi xica, Muimbu
uá Sabalu e Uengi Dia Ngola. A letra de Balumukeno denuncia a exploração colonial e
faz um chamamento à ação:

A kuetu mbote kamba diam


-as pessoais boas são minhas amigas
Mbundu josso ji pangue jiami
-todos os negros são meus irmãos
Tua tu banetu ni muxima
-damo-nos de coração
Kiene ki imoxi
-somos unidos
Iene iu kua vala
-foi para isso que nascemos
Iene ua okidi
-é a nossa verdade
Kidi ia ixietu
-a verdade da nossa terra
Aná ndengue ondo Dimuka
-as crianças crescerão alegremente
Ondo kuenda kia mbote kina
-hão de caminhar por verdes campos
Kia mbote ongila-ngilia ietu
-pelos caminhos da liberdade
Ienc ngi banza, iene ngi sota
-é o que penso, por ser verdade
Diatalenu pe, Balumukenu
-despertem, levantem-se
Ki ngi mono omutu kia mbote kina
-quando encontro um meu irmão africano
Tu zuela mbote-tu xika oh ngoma
-falamos e sentimo-nos bem, celebramos com batuque

Tubanga uma ngola mua ngola


-Angola é minha terra, é o nosso caminho
(...)
Tuexile ni nzala okiki uezelessa kia
-tirou-nos a nossa terra
Olo ku tu Beta, olo ku tu giba, mamá
-agora só nos bate, nos mata
Oló ku tu beta
-agora só nos bate (PASCOAL, 2018, pp. 54-56).

Outra canção é Mona ki ngi xica e é possível conhecer o tema da canção por conta
da regravação feita por Lilly Tchiumba em 1975 no álbum Songs of my people gravado
nos Estados Unidos. Na capa não há uma tradução literal, mas um resumo do que a canção

160
conta: “A filha que deixo para trás – antes de morrer, um pai pede que seus amigos cuidem
da filha e trabalhem para o povo”. 115 À agência de notícia Deutsche Velle116 declarou que
essa referência era principalmente aos angolanos que precisam emigrar por perseguição
política: “o pai, o avô ou o tio têm que emigrar e deixam aquela criança que não sabe o
que lhe vai acontecer, sendo ele o responsável por ela” (2019, s/p).
Muimbu uá Sabalu é uma composição que denuncia a violência do trabalho
compulsório chamado de “contrato” e as “rusgas”, ocasiões em que as forças de segurança
faziam diversas operações para prender os chamados indígenas que porventura não
estivessem de posse de documentação que comprovasse estarem realizando algum tipo
de trabalho. Diz a letra da canção: "Mo netu uá Kaisule a mutu mi/ Kiseleku S. Tomé
kakexilie in ma/ Ducumentu uai ikudila”, e, cuja tradução aproximada é “mandaram
nosso filho caçula para S. Tomé/ não tinha documento foi a chorar” (PASCOAL, 2018,
pp. 44-45).
Críticas a exploração colonial também aparecem em Uengi Dia Ngola: “Captitu
mua ngola/ ua tu mono kiá/ ima ia vulu kia/ mua ngola senbele ó mudima ai ucuputu”. E
traduzindo para o português, “o governo português em Angola viu que as nossas riquezas
eram muitas, inclusive, os limões foram levados para Portugal” (PASCOAL, 2018, pp.44-
45).
Em paralelo a sua agência política através das canções, Bonga também atuou em
uma célula de mobilização anticolonial. Documentação da PIDE o identifica como um
dos contatos do grupo de ação Nzaji, uma subdivisão do MPLA. O papel do artista, à
época atleta, era receber e encaminhar mensagens. No relatório, o agente da PIDE
descreve que um dos membros do comitê Nzaji “aliciou o atleta de Benfica de Lisboa,
José Adelino Barceló de Carvalho, a fim de que este indivíduo, na capital recebesse as
mensagens idas de Luanda e as remetesse para o MPLA, em Brazzaville”
(ANTT/PIDE/DGS/RN nº 51/ 1973/DSInf-2/fls. 1-2).
Outras informações no arquivo da PIDE sobre Bonga o classificam como
“elemento do MPLA” e que gravou um Long Play sobre “a vida dos povos africanos” –
quando o artista estava na Holanda – que estava circulando na Guiné Bissau. A delegação
em Bissau informa ainda que recentemente haviam chegado à capital daquele país 50

115 No original: “The Daughter that I Leave Behind: Before dying a father asks his friends to take care of
his daughter and to work for the people”. Disponível em http://flashstrap.blogspot.com/2012/05/my-
anguish-exciting-voice-lilly.html. Acesso em 04/12/2019 às 14 h 30 min.
116
O fato da carreira de Bonga ser constantemente retratada em diversos órgãos de imprensa europeus, à
exemplo do lusitano público e da agência alemã de notícias, Deutsche Velle, ilustra sua notoriedade.

161
cassetes e 100 discos do Angola 72 vindos dos países baixos. Pelo tom do parecer a
divisão guineense apenas acompanhava as vendas dos discos com atenção, mas,
aparentemente não havia uma preocupação em proibir a sua comercialização e é plausível
supor que isso se devia as diferenças linguísticas: na Guiné Bissau se falam mais de uma
dezena de línguas locais, enquanto o álbum de Bonga foi gravado em quimbundo de
Angola. Vale acrescentar que alguns dos discos de Bonga chegavam a Angola de maneira
clandestina: “Os embarcados cabo verdianos levaram para Angola e foram logo presos.
Tinha muita conotação política. Era um chamamento à mobilização geral do povo pra se
defender” (I. GONÇALVES, 2014).

Figura 15 - Documentos da pasta da PIDE sobre o grupo de ação Nzaji do qual Bonga participava como
um contato. Fonte: ANTT/PIDE/ UI 17911.

Quando recebe a informação de que os membros do Nzaji são presos pela PIDE,
Bonga deixa Portugal e se muda para Holanda. Posteriormente morou na Bélgica e na
Alemanha, mas depois fixa residência na França, quando se apresentava com o brasileiro
Tião Perazzo e com o guineense Jó Maka, e, como já mencionado, também interpretavam
sucessos brasileiros em suas apresentações. A música brasileira foi um referencial muito
importante para Bonga, conforme entrevista que concedeu a Rego:

Eu sou de uma geração angolana que cresceu escutando música brasileira e


música portuguesa. A razão é simples, na minha juventude não se ouvia música
angolana na Rádio. Nessa época o governo colonial português não tinha interesse
em que fosse divulgada a música de Angola porque como sabemos a música em
Angola era um meio de resistência. Então o que nós escutávamos na Rádio, era a
música de Ataulfo Alves, Jackson do Pandeiro, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha,

162
Originais do Samba, Ary Barroso e outros artistas brasileiros. A música brasileira
foi a que acompanhou a minha juventude (2014, p.96).

O grupo formado por Barceló de Carvalho, Perazzo, Maka e outros colaboradores


eventuais, africanos e sul-americanos, chamava-se Edja Kungali. Tais diálogos são
perceptíveis na estética musical dos três primeiros álbuns de Bonga, Angola 72, Angola
74 e Raízes (1975). Sodade, canção mundialmente famosa na voz de Cesária Évora, foi
regravada por Bonga em seu segundo Long Play; Ramedji Djá Tem, outra canção com
uma sonoridade “das ilhas” faz parte do repertório de Raízes. Esse mesmo álbum, mostra
influências brasileiras perceptíveis, que traz versões de Pisa na Fulô, sucesso de João do
Vale mais conhecido na voz de Luiz Gonzaga; e Capoeira, regravação de pontos da
dança-arte marcial de mesmo nome.
Ramedi Djá tem é também uma denúncia da opressão colonial de Portugal sobre
os territórios africanos como Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau. Cantada na língua
crioula de Cabo Verde e sendo uma coladera, gênero musical cabo-verdiano, a canção
relata o sofrimento e a angústia do narrador, em um segundo momento afirma que já se
tomou – o povo – consciência e conta do próprio destino e que já há um remédio pra
acabar com esse sofrimento; o que, infere-se, seja dar cabo do colonialismo. Em outro
momento o narrador da canção indica que é tempo de “começar uma nova vida”. Ao final
da canção há um discurso de Bonga:
“Injustiça fervendo no corpo/
Saudade acaba/ Revolta vem/
Justiça! Já [é] tempo de igualdade!
Do povo de África [se] libertar
Medo já acaba
Justiça já tem”.117

Em 1977, Bonga chega ao Brasil para participar da gravação de um álbum de


Martinho da Vila. “Um presente da África Negra” é o título de uma matéria sobre essa
parceria (O Globo, 02/12/1977, p. 37). “Presente” é o nome do álbum de Martinho e neste
Bonga participa da gravação da canção Mudiakime em língua original cuja tradução quer
dizer: “O drama dos velhos /Para com a juventude /Atrevida e irrequieta/ Nas peripécias/

117Tradução livre minha. https://www.youtube.com/watch?v=390Hv77C_Uk. Acesso em 24/05/2021 às


16 h 00 min.

163
Condenam o ultrapassado/ Cada velho a seu tempo”. 118 Como visto anteriormente, o
respeito aos mais velhos, o respeito à tradição e aos costumes são aspectos muito
importantes para o artista, o que transparece em diversas de suas composições e nas suas
declarações.
Em uma entrevista no ano de 2015 comentou sua discordância em relação aos
jovens que não mostram um interesse grande pelo semba e investem em outros gêneros,
se referindo aos ritmos mais aceitos pela juventude como o kuduro ou o hip hop
estadunidense. “Então vamos dizer que não tivemos pais? Avós? Não tivemos história?
(...) Pergunto eu: o angolano não está a se ver no espelho?” declarou o artista (Portal de
Angola, 15/03/2015). A letra de Hora Kota, composição de Bonga, diz: “O pai do pai do
teu Kota/ Isso não é recuar/ É somente afirmar quem és tu pra onde vás/ (...) Não te
esqueças da raiz”. Marissa Moorman chama a atenção para a metáfora da raiz que está
presente não só em Angola, mas em outros fluxos e lugares da diáspora africana,
significando um fundamento cultural que “sustenta” o “tronco” da identidade musical
africana ou de matriz africana (2019, p. 447). 119 Para Bonga, o cerne da angolanidade é
respeitar as tradições e seus detentores – os kotas, os mais velhos – e ter lutado contra o
colonialismo ou caso se tenha nascido após o período colonial, respeitar a memória da
luta. “Eu tenho têmpera de combatente, mas não combatente com armas. (...) pela defesa
da coisa nossa” afirmou o Barcelos de Carvalho ao falar sobre Angola 72 que foi “um
chamamento [a mobilização política]” (Entrevista SPTtv, 2014).
Em 1978 Bonga participa no Brasil ao lado do grupo Os Ticoãs e do saxofonista
Paulo Moura do show Intercâmbio cuja intenção era mostrar três aspectos diferentes da
cultura afro: o “folclore angolano”, os cantos do candomblé e da umbanda da Bahia e
jazz/blues, respectivamente.
Na ocasião, o artista mais uma vez defendeu o respeito às tradições africanas, pois
a matéria indica que recebeu convites dos Estados Unidos, mas que “só canta em seu
idioma pátrio”. Disse ainda: “sou contra o samba adulterado, o rock e tudo aquilo que
deturpe a imagem do negro” (O Globo 01/02/1978, p. 34). Além disso, o artista angolano
elogiou o “interesse genuíno” de Moura e do grupo baiano sobre as culturas africanas:

118 Conforme texto disposto na capa do álbum Presente: Ngandalami ngandalami / Ku ngitombami /
Ondofua-eu topia uá vulu kia/ Ngala ni minami /Muene uala ni moné /Ngandalami topia/ Mukonda
ngalami/ Ni mivu je/ Eme nga kuka kia/ Nga toba kana/ Ki ngi kuata ngo/ Ngondo benka mu manhero.
119 Moorman também defende que a tradição caminha ao lado do cosmopolitismo já que Bonga circulou

por Rotterdam, Rio e Paris, e, tais influências são tão importantes para a sua formação enquanto artistas
quanto sua adolescência e juventude em contato com as práticas chamadas “folclóricas” (MOORMAN,
2019).

164
Quem assistir ao show vai notar esse caráter de resistência cultural africana. Eu
procuro introduzir o espectador nesse clima, explicando a realidade do povo de
lá. (...) A gente já nasce com o cordão umbilical ligado as raízes culturais. E muito
diferente do que se costuma dizer por aí. Muitos como o Gilberto Gil, por
exemplo, foram ao Festival de Artes Negras, em Lagos, só por curtição (O Globo
01/02/1978, p. 34).

Bonga está se referindo ao Festival de Artes e Culturas Negras de 1977 na Nigéria


que teve, entre outros, como participantes brasileiros Gilberto Gil e Paulo Moura. Ainda
em 1977, Gil lançou o álbum Refavela em que transparecem algumas temáticas
relacionadas à sua viagem como nos seguintes versos:

A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/Quando se arranca/Do seu
barraco/ Prum bloco do BNH/ A refavela, a refavela, ó/ Como é tão bela, como é
tão bela, ó A refavela/.
(...) Batuque puro/ De samba duro de marfim/ Marfim da costa/ De uma Nigéria/
Miséria, roupa de cetim (...).

Ao falar sobre sua viagem Gil revela que ficou impressionado com os grandes
conjuntos habitacionais de Lagos e na canção os comparou com os seus similares
brasileiros feitos pela BNH (Banco Nacional de Habitação). 120
É difícil inferir a exata medida da crítica de Bonga a Gil, mas, é possível
depreender que ele esteja se referindo a uma suposta falta de um esforço maior de
pesquisa em relação aos ritmos, temáticas e línguas que considera genuinamente africanas
por parte do compositor baiano. Em comparação, Martinho da Vila desde 1973 grava
canções angolanas ditas “folclóricas” que expressavam, de maneira cifradas, mensagens
críticas ao colonialismo português e no ano anterior a essa declaração (1977) gravou uma
canção em parceria com Bonga.
Acompanhando um pouco mais a carreira de Bonga, merecem destaque as
canções da década de 1990 e 2000 Mariquinha vem comigo pra Angola, Olhos Molhados
e Carripana. A primeira chama chama os angolanos para voltarem a sua terra, convida
estrangeiros a visitar o país e faz um apelo para que a paz seja mantida – um cessar-fogo
na guerra civil entre UNITA e MPLA havia sido negociado na época:

Mariquinha vem comigo pra angola / Vem ver minha terra, minha gente/ Acabar
com a guerra, sim de verdade/ Ai que canseira, mas somos irmãos/ Mariquinha
vem comigo pra angola/ (...) Paz em angola, mantida/ Com liberdade, pra sermos
felizes/ Mariquinha vem comigo pra angola.

120 Cf. https://www.youtube.com/watch?v=K3d_9TkZkcU. Acesso em 21/12/2019 às 12 h 00 min.

165
A crítica de Bonga a “falta de diálogo” (PÚBLICO, 2015), o apelo de que a guerra
deve acabar é perceptível também nas suas declarações à imprensa. “Depois da
independência era pra gente celebrar com kizomba [festa] todos os dias, abraços e beijos,
‘a terra agora é nossa’. Mas não foi possível o verdadeiro reencontro” (PÚBLICO, 2016).
O artista conta que no passado se encontrou com Holden Roberto e com Jonas Savimbi e
que por isso teve problemas: “Quando ousei ver (...) o Savimbi, arrisquei ser torturado.
Eu não tinha nada a ver com aquela ideologia dele, mas gostava daquela têmpera de
africano, que falava e gesticulava” (PÚBLICO, 2016). Por esse encontro, declarou ter
ficado marcado como “vendido” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2018) e ainda outros
problemas:

[Entrevistador]nos anos 1980, viu algumas canções serem censuradas pelo


governo de uma Angola independente.
-Bonga. Veja-se o ridículo. Tudo por causa de políticos maquiavélicos.
-E: Que canções eram essas que foram censuradas?
-B: Eram as canções normais que a gente canta quando sente que há um clima
que queremos denunciar. Mas, quando fui proibido, as pessoas continuavam a
dançar em casa as canções (PÚBLICO, 2015).

Olhos Molhados (1988) fala do desencantamento com os rumos no país no pós-


independência:

Tenho uma lágrima no canto do olho (...).


Avozinha está sozinha a ver a morte aproximar
Sacrifícios aumentados
Redobram o nosso padecer
Tenho uma lágrima no canto do olho (...).
Se um dia a mais
Se um dia ao menos
Pudessem ver e ter
Na corrida para o poder
Primeiro é o pão
Para se comer (...).
Velhos e velhas chorando
Da alegria passageira
Com a promessa da conversa
Dos homens da nossa terra
Tenho uma lágrima no canto do olho (...).
Velhos outrora respeitados
Era assim nos outros tempos
Hoje amizade e família
São manobrados pelo contexto
Tenho uma lágrima no canto do olho (...).
Os velhos morreram cedo
Os filhos irão também

166
Filhos pequenos estão com medo
Da situação que se mantém
Tenho uma lágrima no canto do olho (...).
Olhos castiços embaciados
Olhos vorazes comendo tudo
Olhos doentes empobrecidos
Olhos molhados emancipados
Tenho uma lágrima no canto do olho.

Como se percebe, a canção fala de um desencanto com o pós-independência. Se


no tempo da luta anticolonial esperava-se que as injustiças seriam sanadas com a
independência, no tempo da “liberdade” nota-se que as esperanças não foram atendidas e
as más condições socioeconômicas dos “de baixo” persistem. Os mais pobres ganharam
a independência, mas continuam sofrendo a pobreza, a desigualdade social e a ineficácia
ou inexistência das políticas públicas: “olhos molhados emancipados”. Há um
desencantamento por conta das promessas e sonhos que as lutas independentistas não
atenderam. O tema do “desencantamento”, das expectativas não cumpridas após a
emancipação, é bastante recorrente nas declarações que o artista costuma dar:

Vamos ter as nossas terras, os nossos países, o nosso futuro,' coisas melhores mas
a gente fica de boca aberta vendo que as coisas se degradam, vendo que não há
maneira de a gente enveredar por um sistema de liberdade, de democracia, de
desenvolvimento para os nativos, para os negros lá nos confins das grandes
paragens, das províncias (PASCOAL, 2018, pp. 30-31).

Carripana (2012) é uma canção de exaltação a Luanda e suas práticas artísticas,


e, que mesmo em meio aos problemas sociais evidenciados em Olhos Molhados, na visão
talvez um pouco idealizada do cantor, continuam a ser praticadas. Diz a letra: “A cidade
de Luanda tá maneira/ Uma era conturbada já passou/ (...) A rebita da Massemba a cada
um/Seja qual for a patente do cidadão/ (...) Kabetula/ Kazukuta (...)/ Tem o semba
kilapanga no salão (...)”. Percebe-se mais uma vez, portanto, a importância da tradição
para Bonga.
Bonga ao longo das décadas de 1990, 2000 e 2010 eventualmente visitou o Brasil
para apresentações, como em 2015,121 quando ao conversar com a plateia fez comentários
espirituosos e comparações entre o povo brasileiro e o angolano: “Tem fubá aqui? Tem
ou não tem? (...) Vizinha tem uma farinha aí? E a vizinha tem. Na Europa mandar chamar
a polícia!”. Mais adiante nesse “discurso”, o artista declara que o que importa, na sua

121
Registro etnográfico feiro pelo musicólogo Mateus Kushic em 2015 no Brasil, a quem agradeço.

167
concepção, “é a vivência das pessoas uma com as outras, é isso, é a tradição africana. (...)
Espero que vocês não percam isso”, se referindo aos brasileiros.
Continuando a análise sobre os pontos de contato e as trajetórias individuais que
iluminam as relações culturais entre o Brasil e Angola, na sequência serão abordadas as
dinâmicas do Projeto Kalunga, iniciativa que até aquele momento mobilizou de uma
única vez o maior número de artistas brasileiros para uma viagem a Angola

168
3. 4 A gênese do Projeto Kalunga e seu desenrolar.

Figura 16 - João Nogueira, D. Ivone Lara, Clara Nunes e Martinho da Vila na academia de música de Luanda.
Ao fundo, uma foto do recentemente falecido Presidente Agostinho Neto. 122

Membros do governo angolano estiveram diretamente envolvidos na concepção


do Projeto Kalunga. No primeiro semestre de 1979 a embaixada do Brasil em Luanda
remete ao Itamaraty uma comunicação intitulada de “convite a artistas brasileiros” e em
anexo um telegrama ao cantor Chico Buarque de Holanda (MRE/DDC/DAF II nº 053,
25/04/1979). Tupy (MÓDULO, 1980, p.42) indica que o autor do convite foi o Secretário
de Estado de Cultura, Antônio Jacinto. Vale destacar que Jacinto foi um eminente poeta

122
Carlos Ferreira, atualmente membro do corpo diplomático angolano em Lisboa, em depoimento,
assinalou que era muito comum haver retratos de Agostinho Neto em instituições de diversa natureza em
Angola e que isso ocorria por Neto ser considerado “‘o fundador da nação’. Por volta de 1985, começaram
a diminuir os retratos do presidente Neto (...). A verdade é que foi se sentindo uma necessidade do
presidente José Eduardo de se impor, digamos assim”(FERNANDES, 2021). Ou seja, Ferreira ressalta que
José Eduardo buscava reforçar a sua imagem enquanto líder da nação, e, em consonância, era preciso evitar
ações que destacassem a imagem de quem o precedeu. Sobre o reforço das imagens e sobre o culto à
personalidade, Antônio (2013, p. 76) destaca que no período do imediato pós-emancipação era comum ao
final de reuniões em comitês ou repartições se saudar verbalmente o líder da nação – “Viva o camarada
presidente” – e recitar outras “palavras de ordem”, e, que nas matérias televisas em que se entrevistavam
membros do governo, sempre, ao fundo, estava uma foto de José Eduardo dos Santos na parede do gabinete
da referida autoridade (ANTONIO, 2013, p.87).

169
e escritor angolano que se engajou na causa nacionalista e anticolonial, chegando a ficar
recluso na prisão do Tarrafal em Cabo Verde.
É significativo que Chico Buarque tenha sido designado pelos angolanos como a
“liderança” do projeto. Buarque é internacionalmente conhecido como um artista
engajado, cujas composições retratavam os problemas sociais brasileiros e criticavam o
regime militar. Canções como Cálice (1973), Apesar de você (1970) e Deus lhe pague
(1971) são emblemáticas de seu repertório e de sua oposição à ditadura através da arte
fazendo com que Chico aos olhos do Brasil e do mundo fosse identificado como um artista
de esquerda.
Um elemento importante na sua atuação enquanto “músico-militante”, na segunda
metade da década de 1970 e início da de 1980, foi seu profundo diálogo e relacionamento
com atores políticos, funcionários de governo e artistas do país que se tornou a principal
referência latino-americana e “atlântica” de uma experiência socialista: Cuba. Em 1978,
Chico foi convidado a atuar como jurado de um concurso de arte na referida nação centro-
americana, e, para tanto, seus trajetos de viagem não puderam ser feitos de maneira direta
a partir do Brasil, uma vez que o governo brasileiro não mantinha relações diplomáticas
com o país insular. Ao chegar de volta ao Brasil, Buarque foi levado de maneira coercitiva
a prestar esclarecimentos ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), a polícia
política da ditadura militar brasileira (J. DO BRASIL, 21/02/1978, p.6).
Cerca de um ano depois, em 1979, Chico retorna, a pedido do governo cubano,
comandando uma delegação de artistas brasileiros para o Carifesta, um festival
internacional reunindo artistas latinos e caribenhos cuja edição de 1979 foi em Havana
em comemoração aos 20 anos da revolução socialista naquele país. Também fizeram parte
da comitiva artística Djavan, Zezé Motta, Simone e Gonzaguinha. Os artistas brasileiros
voltaram contando suas impressões sobre as possíveis similaridades culturais entre os
dois países como no carnaval e sobre o encontro com o líder Fidel Castro (MOVIMENTO,
19/08/1979, p.18). Nessa mesma ocasião, os membros da comitiva artística contaram que
músicos brasileiros como Vinicius de Moraes, Caetano Velloso e Gal Costa eram bem
conhecidos na ilha (MOVIMENTO, 19/08/1979, p.18).
Vale assinalar que a música brasileira exerceu, em certa medida, uma significativa
influência sobre correntes da música cubana nos anos 1960, 1970 e 1980. Em 1968,
Alberto Guevara, um nome importante da produção cultural cubana, esteve no Brasil e
ficou positivamente impressionado com o engajamento da juventude em relação aos
festivais musicais, com a efervescência da cena musical brasileira e sua relação com as

170
trilhas sonoras da produção cinematográfica. Guevara volta a Cuba e, inspirado, pela cena
musical do Brasil, cria o Grupo de Experimentação Sonora (GES) que buscava agregar e
dar formação profissional a jovens músicos para que estes atuassem como compositores
de trilhas sonoras para os filmes produzidos sob a coordenação do ICAIC (Instituto
Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos), organização por ele dirigida. Foi em
parceria com o GES que o uruguaio Daniel Viglietti em 1973 gravou o álbum Trópicos123
no qual parte das canções eram versões em espanhol de composições de Chico Buarque
como Dios le pague e Construcción. Por sua vez, Buarque gravou canções dos
compositores da Nova Trova como “Canción” [De qué calada manera] 124 em seu Long
Play de 1984. Já “Yolanda”, outra composição cubana, foi lançada no Brasil por
Simone125 no álbum Desejos em dueto com Buarque (SARMENTO, 2016, pp.46 e 96).
Fizeram parte do GES nomes que se tornariam posteriormente bem conhecidos e
associados à Nova Trova: Pablo Milanés, Noel Nicola, Silvio Rodriguez, entre outros. Os
jovens músicos cubanos foram influenciados por uma leitura especifica da música
brasileira que privilegiava correntes que, por vezes, entraram em conflito como a
“nacional-popular”126 e o tropicalismo. A primeira era valorizada pelos cubanos porque
trazia para as letras e composições questões sociais como desigualdade e pobreza e a
última porque retoma o paradigma da “linha evolutiva” da Música Popular Brasileira,
“mesclando o folclórico e o tradicional com timbres novos”(VILLAÇA, 2004, p.261). O
“embate” estético e político entre essas duas correntes no Brasil, se deu quando a do
“nacional-popular” passou a combater inovações estéticas e melódicas que eles entediam
como estrangeiras, como a incorporação da guitarra elétrica. O ponto alto dessas disputas
foi o ano de 1967, período de efervescência dos Festivais da Canção. Contudo, as
divergências foram acomodadas passados um ano ou dois desse ápice.127

123 O álbum poderá ser ouvido no link: https://www.youtube.com/watch?v=-4HCOsUqMvc. Acesso


17/11/2020 às 16 h 00 min.
124 A canção pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=Yo4U2kyD7dU. Acesso

18/11/2020 às 16 h 00 min.
125 A canção pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=t2M-g93otiQ. Acesso

em 18/11/2020 às 16 h 30 min.
126
Napolitano mapeia os debates estético-ideológicos do que posteriormente se convencionou chamar MPB
dos anos 1950 e 1960 apontando que parte considerável dos artistas do período buscava uma “Bossa Nova
nacionalista”, de modo que a música fosse um “meio para problematizar a nação” (NAPOLITANO, 2001:
p. 30).
127
Sobre os debates em torno da consolidação da Música Popular Brasileira, ver Napolitano (2001). Sobre
o ano de 1967, e as disputas musicais e políticas especificamente, ver o documentário Uma noite em 67
disponível em: https://youtu.be/_pethu9seDU. Acesso em 25/05/2021 às 11: h 00 min.

171
Figura 17 - Os músicos Vicente Feliu e Sílvio Rodrigues e o militar Major Rodriguez em Cabinda (Angola) em
1976.

Parte desses artistas cubanos também circulou por Angola alguns anos antes –
mais especificamente na segunda metade da década de 1970 – da comitiva liderada por
Chico Buarque. Conforme indica Amanda Alves, esses “diálogos transatlânticos”
renderam composições com alusão às temáticas de Cuba feitas por artistas angolanos e
canções que traziam referências as questões de Angola compostas pelos cantores cubanos.
128 Pablo Milanés, por exemplo, gravou em canção o poema Havemos de voltar129 de
Agostinho Neto. Já a angolana Belita Palma gravou uma canção em homenagem a Fidel
Castro.130
Como vêm sendo descrito, ativistas, músicos, governos e movimentos sociais “de
esquerda” da Américas do Sul, do Caribe e do continente africano travaram alianças e
diálogos no que Henighan (2009) chamou de uma “cultura transatlântica revolucionária”
que tinha Cuba como ponto fulcral. Tais intercâmbios e enlaces, em geral, iniciavam com
fornecimento de armamento e treinamento militar, oferta de asilo e de cursos em nível
técnico e superior, e, em alguns casos específicos – como a relação cubano-angolana – se
ampliavam para conexões no campo cultural (HENIGHAN, 2009, p.234 e 245). O
intercâmbio dos músicos e ativistas brasileiros com seus pares angolanos e membros do
governo do MPLA segue uma perspectiva diferente, no sentido de que são mais

128 Agradeço a Amanda Palomo às indicações acerca desses eventos. Uma reflexão da autora acerca do
tema pode ser conferida em https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2017/7/18/7/dilogos-
transatlnticos-a-trajetria-de-msicos-cubanos-na-guerra-civil-de-angola. Acesso em 14/10/2020 às 18 h 30
min.
129 A canção pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=t6bwmaBHQkM. Acesso

em 15/10/2020 às 16 h 30 min.
130 A canção pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=Nym89P40ISM. Acesso

em 16/10/2020 às 17 h 00 min.

172
amplamente costuradas a posteriori a aproximação entre os governos dos dois países,
especialmente na esfera comercial, mas também comporta suas especificidades que, como
abordadas anteriormente, perpassam as ligações históricas e as proximidades linguísticas
entre Angola e Brasil.
Ainda sobre as relações cubano-angolanas, a presença militar das tropas do país
caribenho em Angola ao lado do MPLA foi decisiva para que esse enfrentasse seus
adversários – A FNLA e a UNITA – e disputas internas como o levante armado de Nito
Alves em 1977. Além disso, as afinidades entre cubanos e angolanos perpassavam outros
aspectos como a composição racial da população, visto que grande parte do povo de Cuba
tem características fenotípicas que evidenciam a sua ascendência africana; e a trajetória
de luta de seus povos, guardadas as devidas proporções e especificidades, contra o
racismo e a exploração colonial (HENIGHAN, 2009, p.237).
O radialista angolano Antônio Videira,131 em depoimento sobre as afinidades entre
cubanos e angolanos, ressaltou essas proximidades quanto à convivência multirracial: 132

Há uma questão da multirracialidade nos cubanos e também (...) em Angola.


Apesar de, antes da independência, ter havido o regime fascista português, havia
nos locais boa relação entre os brancos europeus, os brancos nascidos cá, também
africanos negros e uma grande classe de mestiços locais de Luanda e de Angola
em geral. E Cuba também tem essa característica de ser multirracial. Então foi
muito fácil a integração e a inter-relação entre cubanos e angolanos não só a nível
militar (...), mas também entre os cubanos e a população local (...).
Mandaram pra cá muitos professores e muitos médicos. Muitos cubanos casaram
cá e muitas cubanas também casaram cá. (...)
(...) Os cubanos misturavam-se alegremente. Misturavam também em termos de
relação afetiva, em termos de casamentos. Em termos de vivência comum das
festas, e, sobretudo, com a mesma identificação musical. (...)
Havia mesmo essa relação bastante fraterna. Os cubanos iam a festas e
organizavam festas (...). Houve uma grande afabilidade entre cubanos e
angolanos (VIDEIRA, 2020). 133

131 Antônio Videira é natural de Angola, músico e radialista, e nasceu no ano de 1965, assim, suas memórias
da década de 1980, se referem a seus anos de adolescência e juventude.
132
Por conta do escopo desse trabalho, não cabe dissertar aqui longamente sobre as questões raciais em
Cuba. Em todo caso, é preciso registrar que alguns pesquisadores como o cubano Carlos Moore têm
apontado que o governo cubano durante muitos anos não reconhecia o problema das desigualdades raciais
na ilha centro-americana, e, em consequência, não empregava políticas públicas de larga escala para lidar
com a questão. Benedicto (2010, pp. 53-54) aponta que no final da década de 2000, apenas 3 % dos
estudantes universitários cubanos eram negros e que, nas forças armadas, o mesmo grupo correspondia a
apenas 10% dos cargos de alta patente. Assinale-se que de acordo com censo de 2012 a população cubana
é composta por cerca de 64% de pessoas brancas e 36% de negros e mestiço (SOUZA, 2016, p.211). Ver
também (MOORE, 2010).
133 Há memórias divergentes sobre a presença cubana em Angola. Algumas dessas leituras do passado não

são positivas como a de Videira e associam fortemente a presença dos cubanos na contenção e combate à
angolanos ligados a facção de Nito Alves na tentativa de golpe de 1977. Um dos casos rememorados em
relação ao 27 de maio foi o que relaciona as tropas cubanas à repressão a um ato realizado pelas populações

173
Sobre as tensões raciais em Angola no período colonial, conforme já abordado,
essas eram bastante agudas, havendo muitas vezes a interdição às pessoas negras de
frequentar determinados espaços, não pela força da lei, mas das práticas sociais na vida
cotidiana (Marzano, 2018). Em todo caso, em determinados espaços e mais para o final
do período colonial, em alguma medida, passa a existir certa convivência entre brancos,
negros e mestiços. Já sobre a memória construída por Videira acerca do período pós-
independência, essa reverbera bastante o discurso da multirracialidade exarado pelo
MPLA ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980, que buscava agregar à luta anticolonial e
ao partido-movimento os chamados mestiços e os chamados brancos progressistas. 134
Retornando ao Projeto Kalunga, como demonstrado, o diálogo de Chico Buarque
com artistas e autoridades cubanas, somado a referida aliança e fraternidade entre os
governos e os povos cubano e angolano, foram fundamentais para sua escolha como a
figura que lideraria a comitiva musical brasileira em Angola. Essa atuação de Buarque
enquanto músico engajado foi ressaltada em uma de suas entrevistas concedidas a Dulce
Tupy no ano de 1980: na matéria, o artista e a jornalista conversam sobre a atuação como
organizador do show anual de Primeiro de Maio no Rio de Janeiro – evento do dia do
trabalhador que congrega as centrais sindicais, seus filiados, artistas e militantes diversos
– , seu papel enquanto organizador das comitivas musicais brasileiras à Cuba, à Angola e
a Portugal, no evento comemorativo da Revolução dos Cravos promovido pelo jornal
Avante, periódico ligado ao Partido Comunista Português.

dos musseques em frente ao palácio de governo, manifestação dispersada “à rajada, julgando que muitas
foram as pessoas que neste incidente perderam a vida (PORTELLA & LEIRIA, 2019)
134 Sobre a defesa da multirracialidade por parte do MPLA e disputas em torno dessa questão, ver Pinto,

(2012). Sobre os chamados brancos progressistas-nacionalistas em Angola ver Pimenta (2004). Ver também
(BITTENCOURT, 2008).

174
Figura 18 - Chegada da comitiva a Luanda. Jornal O Movimento, 14 a 20/07/1980, p. 19.

Cabe registrar que o nome do projeto, “Kalunga”, escolhido por Fernando Faro e
Chico Buarque tem um significado bastante simbólico: “Kalunga é o mundo do mistério,
do segredo, do sacrifício e da privação. Achei-o fantástico”, disse Faro, de acordo com
matéria do Cadernos de Terceiro Mundo (maio/1980, p. 108). Sobre o termo, Robert
Slenes alerta que as línguas do tronco banto são muitas e diversas podendo adquirir
centenas de variações de uma costa a outra do continente africano, mas que em Angola o
significado desta palavra é praticamente o mesmo seja em quimbundo, umbundo ou
kikongo. O pesquisador indica que além de mar, Kalunga “significava também a linha
divisória (...) que separava o mundo dos vivos daqueles dos mortos”, dessa forma fazer
esta travessia poderia significar “morrer” ou “renascer”, dependendo do sentido em que
se atravessasse (SLENES, 1992, p.53).
O Kalunga começa em 07/05/1980 quando o Boeing 707 da TAAG (Transportes
Aéreos Angolanos) levando a comitiva brasileira aporta em Luanda. Na capital, a
delegação é recebida por representantes do Estado angolano. O evento fazia parte das
comemorações do Dia do Trabalhador organizado pela UNTA (União Nacional dos
Trabalhadores Angolanos). Os primeiros três dias são destinados a visitas oficiais,
coletivas de imprensa e a preparação do primeiro show na Praça de Touros135 conforme
reportagem de Dulce Tupy:

135Percorrendo os jornais angolanos percebi um interesse e uma amplitude da cobertura jornalística sobre
espetáculos de Tauromaquia (touradas). Muitas matérias falavam sobre eventos ocorridos nessa espécie de
“estádio” dedicada às touradas, a Praça de Touros.

175
A equipe técnica que prepara o palco e aparelhagem já estão de mão na massa.
São eles: Marcelo, Bolino, Zé Luís, Alexandre, Roberto, Ângelo, Lelé e Caldeira.
Mais tarde eles confessariam as dificuldades para a montagem desse mini
Woodstock socialista (Módulo, maio/1980, p.43).

Este primeiro show e os demais tiveram uma mesma estrutura que buscava
apresentar alguns dos gêneros mais conhecidos da música brasileira. Era composto por
partes como a que apresentava canções populares entendidas como “nordestinas” ou
regionais (João do Valle, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo). Outra parte dedicada à Bossa
Nova com Novelli, Francis e Olívia Hime, Miúcha. Um esquete de samba com João
Nogueira, Clara Nunes e Dorival Caymmi, seguida por uma de MPB com Chico Buarque
e Djavan e outro número dedicado ao samba com Martinho da Vila e D. Ivone Lara.
O músico e antropólogo Ricardo Rêgo, ao analisar os registros filmográficos de
uma das apresentações do Kalunga na Praça de Touros em Luanda, assinalou que o
público presente reagiu com simpatia às seções dedicadas à bossa nova e outros gêneros
apresentadas. Mas que demonstrou muito entusiasmo com as apresentações dos artistas
ligados ao samba como João Nogueira, Clara Nunes, D. Ivone Lara, e que, chegou a fazer
“coro” em algumas canções apresentadas por Dorival Caymmi como O que é que a
baiana tem?, Maracangalha e Saudades da Bahia (REGO, 2014, pp.45-46).
Como vêm sendo abordado, os angolanos conhecem bastante a música brasileira
e o samba foi uma referência muito importante para os músicos de semba. Weza afirma
que, entre os anos 1930 e 1950, muitos gêneros estrangeiros como o jazz, o samba, o
merengue e o blues circulavam por Luanda e por algumas outras áreas urbanas de Angola.
E que “as simpatias recaíram para o samba”, porque sua sonoridade, aos ouvidos
angolanos, remetia a ritmos e práticas culturais consideradas tradicionais de Angola e
“por estar mais diretamente ligado à população mestiça” (WEZA, 2007, p.28). 136 O
depoimento do pesquisador angolano Carlos Serrano ajuda a entender esse processo, pois
o intelectual assinala que os nacionalistas angolanos buscavam se distanciar de formas e
estéticas entendidas como portuguesas, e, ao mesmo tempo, se aproximar de
musicalidades percebidas como africanas que remetiam aos seus aspectos percussivos e
performáticos:

A música brasileira...o cântico, a forma de cantar, um sotaque diferente. E ela


mexe. Ela mexe com o corpo (SERRANO, 2020).

136Quando fala de “população mestiça”, Weza o faz a partir de um ponto de vista da cultura musical. Em
outro trecho do mesmo parágrafo, acrescenta: “Luanda daquele tempo era já uma cidade mestiça sob vários
aspectos da vida musical cotidiana” (WEZA, 2007, p.28).

176
João Nogueira fez uma avaliação similar à de Serrano quando declarou, em
entrevista dada no ano de 1980, após o retorno da comitiva do Kalunga: “Eles conhecem
e cantam a música brasileira como muito jovem brasileiro não conhece nem canta (...).
Não adianta. Crioulo não canta fado” (J. do Brasil, 15/08/1980, B, p.7). Em uma
perspectiva parecida, o escritor José Gonçalves assevera que os angolanos sempre
estiveram muito atentos à música do Brasil:

Música brasileira era (...) das músicas mais tocadas em Angola quando eu era
criança e adolescente (...). Em Luanda havia a Rádio Clube de Angola. (...)
Passavam muita música do Brasil. Depois Luanda foi ganhando mais Rádios (...).
Havia a rádio oficial do governo, a rádio católica (...). E todas passavam muita
música brasileira (...). E de tudo quanto era estilo. E bastante atualizadas
(GONÇALVES, 2020).

Gonçalves também acrescenta que as “ondas” de algumas rádios do nordeste


brasileiro alcançavam Luanda e que um aspecto “atrativo” da música brasileira era que
era muito “dançável” (GONÇALVES, 2020).
Retomando a descrição das apresentações, Ricardo Rêgo também destacou a
grande ressonância que as canções e os discursos de Chico Buarque tiveram no público
como sua interpretação de Pedro Pedreiro, precedida por uma fala que ligava a letra da
canção ao fato do evento ter sido organizado pela União Nacional dos Trabalhadores
Angolanos:

O discurso socialista, internacionalista, em nome dos trabalhadores, encontrava


eco na caravana brasileira, que retribuía no mesmo registro (...)
Os aplausos do público no início da música [Pedro Pedreiro],137 revelam mais
uma canção reconhecida pelo público. E foram muitos os aplausos ao final da
mesma.
Chico Buarque traz ainda sua música [Tanto Mar]138 que fala da Revolução dos
Cravos, em Portugal, a qual abriu o caminho para o fim da colonização
portuguesa na África. (...)
Os aplausos entusiastas ao final confirmaram o quanto a música falou aos
angolanos (REGO, 2014, pp.45-46).

137 Letra de Pedro Pedreiro: “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem/ Manhã, parece, carece de esperar
também/Para o bem de quem tem bem/De quem não tem vintém/Pedro pedreiro fica assim pensando/Assim
pensando o tempo passa/E a gente vai ficando pra trás/Esperando, esperando, esperando/Esperando o
sol/Esperando o trem/ Esperando o aumento/ Desde o ano passado/Para o mês que vem/ Pedro pedreiro
penseiro esperando o trem/ Manhã, parece, carece de esperar também/ Para o bem de quem tem bem/ De
quem não tem vintém/ Pedro pedreiro espera o carnaval/ E a sorte grande no bilhete pela federal/ Todo
mês/ Esperando, esperando, esperando/Esperando o sol/ Esperando o trem/Esperando o aumento/ Para o
mês que vem/ Esperando a festa/ Esperando a sorte/ E a mulher de Pedro/ Esperando um filho/ Pra esperar
também.”.
138 Letra de Tanto Mar: “Foi bonita a festa, pá/ Fiquei contente/ Ainda guardo renitente/ Um velho cravo

para mim/ Já murcharam tua festa, pá/ Mas certamente/ Esqueceram uma semente/ Em algum canto de
jardim/ Sei que há léguas a nos separar/ Tanto mar, tanto mar/ Sei também quanto é preciso, pá/ Navegar,
navegar/ Canta a primavera, pá/Cá estou…”.

177
O Jornal de Angola repercutiu uma declaração de Djavan que enunciava um
engajamento que em geral destoava de sua imagem pública: “Através de nossas canções
(...), nós lutamos pela nossa libertação (...) alertando todo mundo, falando os problemas
que se ligam com a repressão capitalista”. Sobre essa declaração, o antropólogo
questiona: “terá realmente ele se referido nestes termos a seu trabalho artístico e à
repressão capitalista, ou se trata de uma livre interpretação literária da parte do jornalista
angolano?” (REGO, 2014, p.43).
Após algumas cerimônias oficiais e do show para autoridades no Cine Teatro Karl
Marx (no período colonial chamado de Avis), a delegação musical e técnica segue para
Benguela em pequenos aviões bimotores. Posteriormente se apresentam no Lobito. O
último show é realizado em Luanda com a participação especial de músicos angolanos
como Waldemar Bastos (Módulo maio/1980, pp. 42-45).

Figura 19 - Público do Espetáculo na Arena de Touros em Luanda. Fonte: Revista Módulo (Maio/1980).

Como mencionado anteriormente, a jornalista Dulce Tupy classifica o evento


como um “mini Woodstock socialista”. Esta mesma leitura também volta a aparecer em
seu depoimento.
Era um evento político. Foi uma tentativa de aproximação de Brasil com Angola
para consolidar o processo de libertação de Angola. Até porque não estava
consolidado nessa época. Embora existisse o governo formal de Angola existiam
mais dois grupos. Principalmente o grupo do Savimbi, um guerrilheiro da UNITA
[União Nacional para a Independência Total de Angola], que queria o poder de

178
qualquer maneira. E cometia verdadeiras atrocidades pra atingir o poder. E a
África do Sul com suas baterias aéreas, com o apoio dos Estados Unidos,
invadindo Angola. Então, uma das formas que se encontrou no âmbito da
esquerda internacional era levar um grupo pra dar visibilidade para o que estava
acontecendo em Angola. Levar um grupo forte com artistas brasileiros com
padrão e qualidade internacional. A começar pelo próprio Chico Buarque que
gozava de grande respeito na mídia.
[...] “Tira essa bota de cima de mim", se dizia em Angola. O Bhota não podia
entrar em Angola de jeito nenhum. Nós fomos lá pra o Bhota não entrar em
Angola de jeito nenhum ( TUPY, 2017).

É preciso problematizar o depoimento de Tupy. A referida jornalista se assume


enquanto uma militante de esquerda, alguém com ideias próximas ao socialismo. Dentre
os movimentos de libertação angolanos, o MPLA foi o que mais alianças travou ou
buscou construir com militantes ou movimentos de esquerda. Nos seus primórdios teve
relações com o PCP (Partido Comunista Português) e ao longo do processo de libertação,
e, de maneira mais intensa após a independência, recebeu o apoio da União Soviética, e,
sobretudo, de Cuba. Assim, é plausível considerar que a jornalista, e grande parte dos
integrantes do Kalunga, tenha assumido o “lado” do MPLA na guerra civil em virtude de
suas afinidades ideológicas.
Há que se considerar também que os movimentos angolanos em disputa
mobilizavam determinadas retóricas nas batalhas discursivas, quase tão importantes
quanto às batalhas de fato. A UNITA acusava o MPLA de querer importar “doutrinas
estrangeiras” a Angola – o socialismo e o comunismo – e de ser comandada por
“mulatos”, enquanto o MPLA acusava a UNITA de ser apoiada pela África do Sul do
apartheid e pelo imperialismo estadunidense, o que de fato acontecia e, em especial no
caso sul-africano, fragilizava o objetivo da Unita de conquistar apoio internacional. Além
disso, nessa guerra de informação, ambos os movimentos mobilizavam “propaganda” de
que o “outro lado” era o mais “cruel”, o mais “violento” ou o que mais recrutava à força.
Também cabe ressaltar que o MPLA sempre buscou ativamente granjear apoio
internacional e que chegou a ter, como mencionado anteriormente, simpatizantes e
militantes ativos no Brasil. Assim, O Projeto Kalunga está em consonância com essa
prática comum do partido-movimento de buscar apoios e alianças com indivíduos e
grupos de fora do país ou mesmo, de forma mais institucional, com os governos de outros
países.
Vale ainda lembrar que, além do MPLA e da UNITA disputando Angola, havia
um terceiro movimento, a FNLA (Frente Nacional Libertação de Angola) de Holden
Roberto, que se originou da UPA (União das Populações de Angola), cujo envolvimento

179
nos levantes do início de 1961 é conhecido pelo assassinato de colonos brancos e,
sobretudo, de trabalhadores africanos. Em todo caso, a FNLA pouco a pouco perde
relevância nas disputas angolanas, sendo a UNITA o principal rival do MPLA na década
de 1980.
Quantos aos ataques da África do Sul, mencionados no depoimento de Dulce
Tupy, estes ocorriam desde 1975, quando o referido país deu apoio às ações da UNITA e
da FNLA no intuito de tomar Luanda e proclamar a independência. Seu avanço foi
contido pelas tropas do MPLA apoiadas por forças cubanas e, dado o insucesso, as forças
sul-africanas recuam. Cabe demarcar que a África do Sul, governada por uma minoria
branca racista, buscava desestabilizar os países vizinhos como Angola e Moçambique na
intenção de que governos de maioria negra ou de tendência à esquerda não se tornassem
exemplos ou fontes de apoio político, econômico e militar aos movimentos que
internamente lhes faziam oposição.139 Outro aspecto era que a África do Sul era
indiretamente apoiada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, interessados em conter o
avanço de movimentos ou regimes socialistas no continente africano, através de ajuda
financeira e política (PEREIRA, 2015, pp. 77-78).
Em 1980 tais ataques persistem. Em maio, mês de realização do Kalunga, o jornal
lusitano Diário Popular (26/05/1980, p. 12) informa a invasão de forças da África do Sul
nas regiões de Cunene e Cuando-Cubango. O também português Avante (29/05/1980,
p.11) noticia que mais de 200 angolanos são mortos por um ataque das “tropas racistas
sul-africanas” deflagradas por unidades compostas por “helicópteros de combate,
veículos blindados e apoio de artilharia” vindas da fronteira com a Namíbia, que no
período sofria uma ocupação da África do Sul e era chamada de Sudoeste Africano. O
mesmo veículo (AVANTE, 10/07/1980, p. 11) noticia que no mês de junho do mesmo
ano a contraofensiva angolana é vitoriosa e expulsa as tropas da África do Sul.
A “Bota” a que Dulce Tupy se refere é a do próprio Pierre Wilhelm Botha,
Primeiro-Ministro da África do Sul no período de 1978 a 1984. A jornalista também
comentou que houve uma ameaça de bombardeio quando os membros do Kalunga
estavam em Benguela: “chegando em Benguela veio aquela sirene. Apagou a luz. Era um
bombardeio da África do Sul [...]. Não chegou a ter bombardeio, mas era uma ameaça”.
Ainda sobre o contexto de conflitos militares durante a estada do grupo do Projeto

139O temor dos sul-africanos era que o apoio que Angola prestava a SWAPO (Organização dos Povos do
Sudoeste Africano, em inglês) da Namíbia através de campos de treinamento militar fosse estendido às
organizações antiapartheid que atuavam na África do Sul.

180
Kalunga em Angola, Tupy (2017) comentou que a segurança dos brasileiros foi provida
pelos militares cubanos e que houve reuniões de orientação sobre o que não poderia ser
fotografado tais como instalações e aparatos militares. Ainda sobre esse contexto, o
radialista Fernando Mansur declarou que em alguns momentos da visita a alimentação
era fornecida de maneira racionada, sendo que em outros momentos – nas recepções
oficiais com a presença de autoridades angolanas – era oferecida em um padrão mais
“turístico” (MANSUR, 2018).
Após pouco mais de dez dias em solo angolano a comitiva do Kalunga chega de
volta ao Rio de Janeiro em 18/05/1980. Na grande imprensa brasileira – O Globo
(14/05/1980, p. 33), Jornal do Brasil (19/05/1980, p. 21) – é possível encontrar pequenas
reportagens e notas sobre o evento, mas nenhuma matéria mais densa. O destaque maior
dado pela grande imprensa foi a ambulância deixada de prontidão para atender Martinho
da Vila, que, temia-se, passava por um infarto ou derrame. Martinho passava por uma
“estafa”, de acordo com a notícia (O Globo, 19/05/1980, p.6). O próprio cantor declarou
em sua autobiografia: “retornei de lá maluco, piradinho mesmo, resultado de muita
emoção, muita tensão (...). Estafei-me (DA VILA, 1998, p. 46).

Figura 20 - Notinha publicada no Jornal O Globo (14/05/1980), p.33.

A cobertura mais completa do evento foi feita pelos veículos da chamada imprensa
alternativa como Módulo, Movimento e Cadernos do Terceiro Mundo, o que
possivelmente indica uma mistura de desinteresse e preconceito em relação aos países
africanos e algum nível de autocensura por se tratar de um país governado por um
movimento-partido de tendências marxista-leninista, considerando que o Brasil passava
por uma ditadura militar que chegou ao poder com discursos e práticas de perseguição a

181
militantes e organizações de inspiração socialista. Como já mencionado, os órgãos de
impressa não são neutros e, em geral, seus posicionamentos refletem interesses “de
classe” dos jornalistas ou de certos grupos econômicos com estreitas relações com os
veículos (CRUZ & PEIXOTO, 2007, p. 257-258). Já a imprensa alternativa buscava se
contrapor a esse modelo, ensejando posicionamentos que consideravam “independentes”
em relação ao empresariado brasileiro. Em todo caso, também não eram neutros, uma vez
que assumiam um lado. A diferença era que, em geral, não assumiam pra si esse lugar da
“isenção jornalística”. Vale também destacar que alguns desse veículos como o Cadernos
de Terceiro Mundo continham anúncios – ou seja, propaganda paga – de empresas
angolanas como a SONANGOL.

182
Figura 21 - Uma das quatro páginas da matéria revista Módulo. Autoria de Dulce Tupy (maio, 1980).

Mais uma vez de acordo com Dulce Tupy (2017), após a chegada do voo, houve
certo temor de que a comitiva tivesse problemas com os órgãos de segurança do regime
militar. O que poderia soar contraditório já que o Itamaraty, sob a orientação do próprio
Figueiredo, buscava construir uma política externa que se distanciava de alinhamentos
ideológicos e priorizava os interesses comerciais do Brasil. Acrescente-se que os
membros do corpo diplomático brasileiro, inclusive, comemoraram os resultados do
Projeto Kalunga para as relações institucionais Brasil-Angola. Em todo caso, tais temores

183
não eram infundados e tinham os seus precedentes como a já citada detenção de Chico
Buarque após retornar de um festival em Cuba (Folha S. Paulo 21/02/1978, p. 7). Da
mesma forma é preciso ter em conta que havia clivagens dentre os diversos atores sociais
e grupos que compunham o regime militar, uns mais inclinados à abertura, outros mais
próximos da “linha dura”. O processo de “abertura política” no Brasil não foi retilíneo,
outrossim, eivado por avanços e recuos.
Quanto aos resultados artísticos do intercâmbio Brasil-Angola, é possível
encontrar algumas reverberações na obra dos brasileiros que estiveram envolvidos no
Kalunga. A mais conhecida canção criada e que possui as referências mais diretas ao
referido projeto é Morena de Angola de Chico Buarque, mais conhecida na voz de Clara
Nunes, também integrante do Kalunga. A “morena que leva o chocalho na canela” é uma
alusão a uma dança “folclórica” apresentada aos integrantes da comitiva artística
brasileira. A letra traz outras referências como:

Será que no meio da mata, na moita, a morena inda chocalha.


Será que ela não fica afoita pra dançar na chama da batalha (...).

Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe de Benguela


Será que tá no remelexo e abandonou meu peixe na tigela

Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela


Eu acho que deixei um cacho do meu coração na Catumbela

Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela


Morena, bichinha danada, minha camarada do MPLA.

É plausível supor que “batalha” seja alusivo aos conflitos armados com os quais
o MPLA se defrontava, que foi em “Catumbela” na província de “Benguela” o local onde
os brasileiros assistiram a esse conjunto de dança folclórica – “à noite, a programação (...)
nos leva a um fausto banquete ao ar livre com espetáculo de dança” (MÓDULO,
maio/1980, p. 44) – e na última estrofe há a clara menção ao “MPLA”, indicando as
simpatias do compositor com o partido-movimento e seu projeto político da época. No
que diz respeito à repercussão na imprensa, a canção foi descrita por um de seus
produtores musicais – Geraldo Vespar – como “uma espécie de maxixe, aquela coisa meio
ancestral, (...) ritmo africano” (O GLOBO, 15/09/1980, cultura, p.21).
Já Djavan gravou Nvula Leza Kia (“A chuva já chegou”) com Gilberto Gil no
álbum Seduzir (1981). Uma canção com uma estética sonora que remete aos sons
caribenhos e com letra em uma das línguas originárias composta pelo angolano Felipe

184
Mukenga (CASTRO, 2016, p. 8). A letra diz “A chuva já chegou/ Obrigado Meu Deus/
As coisas que eu plantei já crescem/ Por causa da Chuva já crescem”. 140
Outra canção com temática angolana composta por Djavan é Luanda (1981): “Foi
numa noite de Luanda/ que um clarão me abalou em Lobito/ Como fosse um raio de susto,
um facho místico (...)”. De acordo com o depoimento de Mansur (2018), o clarão a que
Djavan se refere foi o de uma bomba disparada por uma aeronave dos opositores do
MPLA, possivelmente algum ataque da África do Sul, em um local não muito distante do
hotel onde a comitiva estava hospedada, pois presenciaram o fulgor da explosão. Nelson
Motta relata outro acontecimento passado com Djavan e que remete aos conflitos em
Angola: que ao acordar tarde e perder a “comitiva principal” que os levava de ônibus por
uma das cidades do roteiro – possivelmente no eixo Lobito-Benguela –, embarcou em um
segundo coletivo e esse foi “atacado [a tiros] por forças guerrilheiras
contrarrevolucionárias” em uma “estrada deserta no meio da selva africana [sic]”. 141
D. Ivone Lara lança em 1981 a canção Axé de Yanga (Pai Maior) no álbum Sorriso
Negro. Em suas entrevistas na época do lançamento declarou que fez a canção em
homenagem a seu bisavô que seria angolano. De acordo com as memórias familiares que
lhe foram transmitidas, esse antepassado nos momentos de necessidade chama a Pai
Yanga e isso faria parte de suas tradições religiosas advindas de suas heranças angolanas.

Vovô veio de Angola


Com seu mano Tio José
Trouxe cravos, trouxe rosas
Pra salvar filhos de fé
E rezou a ladainha
Pra Jesus de Nazaré
Ianga, Ianga que tipoi Ianga
Didianga me
Eu dei pulos de alegria
Chorei de emoção

140 Letra em quimbundo conforme disposto no encarte do Long Play: “Nga sakidila ngna nzambie/ Nvula
iea kia mbeji ienii/ Kima nga kunu ikula kia/ Mukonda dia nvula ikula kia”.
141 Tal relato, intitulado por Nelson Mota em sua coluna no jornal O Globo, como “uma aventura africana”

e descrito de forma pitoresca soa pouco verossímil, mas está em consonância com outros relatos sobre o
Kalunga acerca da ameaça de ataques aéreos. O restante da nota do colunista dá conta que os shows foram
assistidos por cerca de 15 mil pessoas em Luanda e teve números parecidos em relação ao público nas
outras cidades. Acrescenta também que as rádios angolanas tocavam música brasileira na maior parte do
dia em homenagem ao evento e que uma multidão se formou no aeroporto na cerimônia de despedida da
caravana.

185
Quando a Vovó Maria
Me levando pela mão
Disse filha Pai Ianga
É a nossa proteção
Ianga, Ianga que tipoi Ianga
Didianga me
Tia Teresa nos contava
A história do vovô
Que tirava irmão do tronco
Escondido do senhor
Pra curar seus ferimentos
Com o banho de abô
Ianga, Ianga que tipoi Ianga
Didianga me.

É possível depreender da letra da canção e dos relatos de D. Ivone à imprensa que


essa religiosidade remete as tradições da Umbanda, religião de base afro-brasileira que
rearticula os cultos aos orixás jeje-iorubanos com deidades da religiosidade ameríndia,
cristianismo e o culto aos ancestrais das tradições banto, esse último configurado no
“Preto Velho”. De acordo com Nei Lopes, os nomes dessas figuras já remetem a essa
ancestralidade banto: “Vovó Cabinda”, “Vovó Maria de Benguela”, “Pai Joaquim
D’Angola”, são nomes que fazem referência às terras angolanas, assim como “Aruanda”,
terra mítica desses ancestrais deificados, seria uma referência a capital de Angola,
Luanda. O pesquisador também chama a atenção para e etimologia da palavra umbanda:
essa remete ao umbundo e ao quimbundo e seus significados aludem tanto a “arte de
curar” ou feitiçaria – mbamba e kimbanda, respectivamente, nas referidas línguas nativas
angolanas (LOPES, 2014, p.543, 633).
Quanto ao fato de D. Ivone Lara e sua família construírem uma memória de terem
antepassados angolanos, não importa aqui considerar se isso corresponde inteiramente a
realidade. O que importa não é se seus antepassados eram de fato angolanos, mas o quanto
essa memória compartilhada é significativa, e, como indica Portelli, de que modo essa
construção memorialística “amplia um acontecimento individual (factual ou não),
transformando-o na formalização simbólica e narrativa de autorrepresentações
partilhadas por uma cultura”. Assim, D. Ivone e sua família e parte numerosa e

186
significativa dos brasileiros, têm a África e os africanos como uma de suas matrizes
formadoras (PORTELLI, 2010, pp. 120-121).
É preciso navegar (1980) composta por João Nogueira, que também fez parte da
comitiva, traz um significativo relato sobre o projeto (DE CASTRO, 2016, p.7):

É preciso navegar
Pra poder se esclarecer
Do lado de lá do mar
É preciso ver pra crer

Gente que lutou para se libertar


Ver no amanhã
Novo sol chegar
Ter que trabalhar, reconstruir.
Bom futuro há de vir

Eu vi Luanda, Benguela.
Lobito e outras mais
Na Catumbela, o Samba.
Jorrou, me deu sinais.
Que naquela terra cantaram
Sambaram meus avós

Ilha de Mussulo teve gente que chorou (...).

Samba vem lá de Angola


Não vem da Bahia, não.
Samba vem lá de Angola
Não vem lá do Rio, não.

Nogueira, na canção, expressa sua admiração pelo povo angolano que buscava
reconstruir o país após a guerra de libertação, e, que ainda estava em meio a uma guerra
civil. Suas declarações à imprensa também seguem essa perspectiva: “o povo lá trabalha
com muito amor para soerguer o país” (J. do Brasil, 15/08/1980, B, p.7). Quando faz
menção à Catumbela, o sambista alude ao mesmo episódio narrado por Chico Buarque
em Morena de Angola, que foi quando a comitiva presenciou as performances ditas
“folclóricas” em que os dançarinos se exibiam com chocalhos atados “às canelas”. Para
Nogueira, algo nas danças o remeteu ao samba brasileiro.
O músico alude também a um debate bastante acirrado entre artistas e críticos
musicais, sobre “as origens do samba”: para alguns o samba teria vindo da Bahia, já que
haveria um grande número de baianos ou descendentes de baianos entre os precursores
do samba na cidade do Rio de Janeiro. Para outros, os cariocas é que seriam os principais
protagonistas da gênese e consolidação do samba enquanto gênero. Cunha (2016, p. 2411)

187
demonstra que essa rivalidade ocorria principalmente entre esses sujeitos produtores –
como Sinhô e João da Bahiana – dessas práticas culturais com canções sendo lançadas
com provocações e outras, em seguida, com “respostas”, e, que, tal rivalidade era
exagerada pela indústria fonográfica como estratégia para alavancar as vendas. A
pesquisadora também vai indicar que a ideia de que os baianos constituíam um grupo
grande, e, talvez hegemônico em termos numéricos, dentre as várias identidades regionais
(mineiros) e nacionais (portugueses, espanhóis, etc.) no Rio de Janeiro precisa ser
problematizada, visto que os números relativos às migrações interprovinciais demonstram
que os baianos não eram o grupo mais numeroso (CUNHA, 2015, pp. 2582-2702).
Em todo caso, não cabe aqui perseguir “as origens” do samba. O que importa dizer
é que o samba é dotado de uma gramática africana (MINTZ & PRICE, 2003) e que
enquanto gênero teve entre seus protagonistas nas décadas de 1910, 1920 e 1930, um
grande número de sujeitos negros, baianos e descendentes de baianos, cariocas e
fluminenses e alguns poucos portugueses, espanhóis e italianos. A consolidação do samba
carioca enquanto gênero nacional teve a participação de ações do Estado e de intelectuais,
ao dialogar, enaltecer e legitimar o samba, o que, em um percurso histórico complexo ao
longo das primeiras três décadas do século XX (CUNHA, 2015, BRASIL, 2016).
Perceber os discursos que os atores sociais acionam acerca das práticas culturais,
principalmente quando essas estão intimamente relacionadas ao processo de construção
de suas respectivas identidades é importante. Contudo, mais profícuo do ponto de vista
da história social é buscar depreender os sentidos que esses sujeitos atribuem a essas
práticas e de que modo isso se relaciona com a política do cotidiano e com a política
oficial, dito de outro modo, o “porquê” dos angolanos se identificarem com o samba
brasileiro, e, de outro lado, os motivos que levam os brasileiros a considerarem familiares
as práticas culturais dos angolanos bem como de que modo as relações entre samba e
semba foram usadas como política cultural pelo Estado angolano. Nesse sentido, é preciso
continuar acompanhando os trânsitos culturais e políticos entre Brasil e Angola no final
dos anos 1970 e início dos 1980.

188
3.5 Mais brasileiros em Angola, mais angolanos no Brasil: Alcione, Beth
Carvalho, Os Tincoans, Jurema, Luiz Ngambi e Waldemar Bastos (1981-
1984).

Figura 22 - Beth Carvalho se apresentando no Cine Karl Marx em Setembro de 1981. Fonte: Acervo Edgar Lenrouth.
142

O radialista Fernando Mansur relatou que uma das ausências mais sentidas na
caravana do Projeto Kalunga foi à de Alcione. “A camarada Alcione não veio?”
(MANSUR, 2018), questionavam-lhe os angolanos. Mansur narrou que o programa

142Agradeço ao colega pesquisador Matheus Pereira por me ceder às fotos do Arquivo Edgard Lenrouth
sobre a visita de Beth Carvalho.

189
televisivo da cantora era bem conhecido em Angola (MANSUR, 2018). Alerta Geral, que
também é o nome do álbum do ano anterior, foi um programa mensal da Rede Globo
estrelado pela cantora que estreou em 1979, e, pelo que conta o radialista, era comumente
exibido pela Televisão Pública de Angola (TPA) e fazia um considerável sucesso entre a
população. Nesse programa musical a cantora recebia outros artistas do samba e da
música brasileira em geral como Clara Nunes, Martinho da Vila, João Nogueira, Beth
Carvalho, Jair Rodrigues, Benito de Paula, Elza Soares, entre outros. Pelas matérias da
imprensa brasileira, a cantora não fez parte do Kalunga por conta de outros compromissos
profissionais assumidos que coincidiam com a visita da comitiva liderada por Chico
Buarque em maio.
Os angolanos teriam que esperar por aproximadamente mais 5 meses até que
Alcione fosse excursionar por Angola entre o final de outubro e o começo de novembro
de 1980 (J. do Brasil, 27/10/1980, B, p.9), quando foi muito bem recebida:

“Lá eles sabem tudo — tudo mesmo — de nossa música, e nós não sabemos quase
nada deles. Às vezes vinha aquela garotada toda, com a professora do colégio
trazendo, até o hotel onde a gente estava. De repente uma menininha me dava
uma flor e começava a cantar Elba Ramalho outro vinha e cantava Fagner, outro
cantava Chico [Buarque], outra Clara [Nunes], outro meu repertório quase
inteirinho. Escute: não tenho esse negócio de falsa modéstia, nem pretendo ser
melhor do que ninguém, mas o cantor brasileiro mais popular de Angola sou eu.
Pode perguntar pro Chico [porque Chico Buarque esteve lá poucos meses na
caravana do Kalunga] (...) fui recebida com honras de ministro de estado, todo
lugar que eu ia era recebida pelo governador da região, com batedor na frente do
carro e tudo. Eu não podia sair na rua, sozinha. E as plateias que me assistiam,
então, era a mesma vibração que você viu no Seis e Meia do Teatro João Caetano
[uma série de shows que ela fez no Brasil em período próximo a sua ida para
Angola]. Uma coisa inacreditável. Já pensou o que é interpretar músicas de um
disco recente meu e o pessoal cantar junto? E num país que está lá longe?”
(MANCHETE, Ed. 1532, 19/09/1981). 143

Conforme declara Alcione e conforme vêm sendo abordado, os angolanos


conhecem e consomem a música brasileira desde a década de 1940 e 1950, sendo o samba
brasileiro, gênero principal da cantora, uma significativa referência para os músicos
angolanos que engendraram o semba. O angolano Carlos Fernandes, em depoimento,
expos que artistas de “samba-canção” eram muito conhecidos: “desde o Lúcio Alves
[cantor de sucesso da “era do rádio” de final dos anos 1940 e início dos 1950], os mais
velhos ouviam e dançavam essas músicas” (FERNANDES, 2021). Carlito Vieira Dias –

143 Um trecho de Alcione falando sobre sua experiência em Angola pode ser visto no seguinte link:
https://youtu.be/jRKcqePsYn8. Acesso em 27/01/2021 as 23 h 30 min.

190
em entrevista ao musicólogo Matheus Kushic – declarou que seu pai, Liceu do Ngola
Ritmos, compunha sambas a moda angolana e que: “naquele tempo do meu pai eles
tocavam muitos sambas; o samba era uma música muito ouvida aqui”. Na mesma
declaração, Vieira Dias cita artistas brasileiros de diversos gêneros: “nós ouvíamos aqui
o Ataulfo Alves, a Carmélia Alves e seus Cangaceiros. (...) O Noite Ilustrada, o Jackson
do Pandeiro!” (KUSCHICK, 2016, p. 47). Paulo Lara, filho de Lúcio Lara144, em
depoimento, recordou, que em sua casa, quando era criança, ouvia-se bastante música
brasileira e lembrou-se de algumas canções: Sei que é Covardia (Ataulfo Alves),145 O Bem
do Mar (Dorival Caymmi) 146 e A Felicidade (Vinicius de Moraes), essa última um tema
de abertura do filme Orfeu Negro. Como se percebe, a música brasileira, assim como a
literatura, sempre despertou um grande interesse nos angolanos, e, como já indicado, isso
se deve a identificação entre os povos brasileiro e angolano, mas também a uma cena
cultural, mais precisamente uma indústria cultural mais diversificada e com redes
internacionais desenvolvidas que promoviam um fluxo mais intenso do Brasil para
Angola.
Nesse sentido, é preciso ter em conta que a Rede Globo de Televisão, emissora
que cedeu o programa de Alcione para ser exibido pela TPA, está presente em Angola
desde 1975 quando foi exibida a primeira telenovela brasileira: Gabriela, baseada na obra
de Jorge Amado (LOURENÇO, 2018, p.102). Foi seguido por outros folhetins que
fizeram bastante sucesso em terras angolanas como Cambalacho, O Bem Amado, Roque
Santeiro, entre outras. Essa última, inclusive, deu nome ao principal mercado popular da
capital angolana, bastante ativo nas décadas de 1980, 1990 e 2000. A emissora carioca
chegou às terras angolanas como parte de uma estratégia de internacionalização e de
venda de seus produtos televisivos. Inicialmente, a Globo começou a ceder alguns de seus
programas gratuitamente a alguns países, tal qual Angola, como forma de divulgação e
de granjear status internacional, mas já prevendo ações de comercialização (VALENTIM,
2007, p. 14).
Como se pode imaginar as novelas brasileiras transmitidas pela Globo também
eram um canal privilegiado de divulgação cultural. Com elas ingressavam em Angola um

144 Filho de Lúcio Lara, que foi uma figura de elevada relevância no MPLA, tendo sido secretário geral do
partido. Ao final de sua adolescência, Paulo Lara já ingressava nas FAPLA (Forças Armadas Populares
de Libertação de Angola).
145 A canção Sei que é Covardia pode ser acessada no link a seguir: https://youtu.be/ZSbQnrk0FSE.

Acesso em 19/01/2021 às 16 h 00 min.


146A canção A Felicidade pode ser ouvida no link a seguir
https://www.youtube.com/watch?v=NKhlJVy99sI. Acesso em 31/12/2020 às 21 h 30 min.

191
jeito de falar, um conjunto de personagens representativos quer da vida urbana quer da
vida rural, artistas, temas que mobilizavam a sociedade brasileira e, evidentemente,
músicas que acompanhavam esses folhetins.
Ainda sobre Alcione, matéria do Jornal do Brasil (24/11/1980, B, p.9) indica que
a artista recebeu patrocínio da Secretaria Cultural de Luanda, da SONANGOL147 angolana
e da brasileira BRASPETRO,148 e, noticia também que Alcione tinha o repertório bastante
conhecido por conta de sua execução constante na Rádio Nacional de Angola e dos “tapes
de Alerta Geral exibido na Televisão Popular”. A imprensa reporta outros detalhes da
excursão: o fato de os passaportes da comitiva da artista ficarem “apreendidos” por
agentes angolanos até o dia da volta, as constantes interrupções no abastecimento de água
mesmo nos hotéis, as “cicatrizes” da guerra civil na capital, os lemas marxistas e frases
de Agostinho espalhadas em cartazes e pinturas por todas as áreas urbanas, a ausência de
lojas de bens de consumo, entre outros aspectos (J. do Brasil, 26/11/1980, B, p.16).
De volta ao Brasil, Alcione gravou em seu álbum de 1981 a canção
Nzambi/Muadiakime,149 um pot-pourri com dois clássicos angolanos, tendo o segundo já
sido gravado por Martinho da Vila em seu álbum de 1972 – Origens.
Também em 1981, Beth Carvalho faz uma tournée por Angola. Nos jornais
brasileiros há apenas pequenas notas sobres esse evento indicando que a artista por lá
esteve entre 10 e 17 de setembro do referido ano (J. do Brasil, 06/09/1981, B, p.5). No
entanto, pelo lado angolano, há registros fotográficos bem detalhados.
Ainda em 1981, o angolano Luiz N’gambi lança seu primeiro álbum no Brasil
intitulado Angola: Folclore e Canções tradicionais.150 Segundo entrevistas concedidas a
imprensa brasileira e portuguesa, N’gambi estabeleceu-se no Brasil no começo da década
de 1970 e aqui permaneceu em atividade ao lado de sua esposa, a também cantora Paula
Ribas. N’gambi e Ribas, que é portuguesa, se conheceram em Angola no final da década
de 1960. Á época Luiz N’gambi fazia parte do conjunto angolano de música moderna Os
Rocks 151 Vale ratificar que o referido conjunto venceu concursos em Angola “de melhor
conjunto de rock” e, por isso, chegaram a fazer relativo sucesso em Lisboa e a concorrer

147 Empresa angolana de exploração de Petróleo


148 Subsidiária da Petrobrás dedicada à exploração de petróleo fora do Brasil.
149 Um trecho Alcione e Martinho da Vila interpretando Muadiakime em uma edição especial do programa

Alerta Geral pode ser acessado no link a seguir https://youtu.be/rkiBND9M3dM. Acesso em 27/01/2021
as 23 h 30 min. Infere-se que a gravação seja do ano de 1981.
150 O álbum pode ser acessado no link a seguir: https://www.reverbnation.com/lu%C3%ADsngambi/songs.

Acesso em 20/12/2020 às 17 h 30 min.


151 Sobre os rocks ver a parte I da tese.

192
em festivais europeus representando Portugal (CARDÃO, 2013). Ngambi conviveu com
Ribas quando a cantora foi convidada para eventos e festivais em Angola. Em meados da
década de 1970, casaram-se e se estabeleceram em Portugal. Poucos anos depois, a
cantora passa a ser frequentemente requisitada a se apresentar no Brasil e por isso se muda
com N’gambi para as terras brasileiras.
Em todo caso, o período em que Luiz N’gambi esteve mais ativo foi na década de
1980 (J. do Brasil, 03/08/1981, B, p.5). Nos jornais brasileiros é possível encontrar
anúncios de seus shows, sobretudo em eventos relacionados a comunidade lusitana no
Brasil, quando, em conjunto com sua companheira, apresentavam um repertório que
reunia clássicos da música angolana, fados e outros gêneros típicos de Portugal, sucessos
da música internacional e canções brasileiras.
No álbum de 1981, lançado no Brasil, o artista regrava clássicos angolanos que já
estavam se tornando conhecidos no Brasil no começo da década de 1980 como
Muadiakime (gravada por Alcione) e Monami Zeca (gravada por Martinho da Vila).

Figura 23 - Long Play de Luiz N'Gambi, Angola - Folclore e Tradições.

A mudança de repertório de “música moderna” para um repertório voltado para


“canções tradicionais”, pode-se inferir, foi uma estratégia para se inserir no mercado
musical brasileiro. No começo da década de 1980, como vêm sendo demonstrado, por
conta dos intercâmbios culturais iniciados pelo Projeto Kalunga, havia no Brasil um
relativo interesse por músicos e músicas com um enfoque “tradicional” africano, o que
foi algumas vezes apontado nas diversas reportagens como uma busca pelas “raízes
africanas” da música brasileira. Essa perspectiva sobressai também no texto de

193
apresentação do Long Play, escrito pelo português João Alves das Neves, à época
professor da Faculdade Casper Líbero em São Paulo, expressando a narrativa que conecta
samba e semba. “O brasileiríssimo samba veio de Angola”, registra Neves, e, ao mesmo
tempo recorre à citação de Câmara Cascudo para enunciar que o samba “veio” do semba
(NEVES, 1981).
Do repertório gravado nesse disco destacam-se canções que acionam a memória
do tempo colonial e denunciam as explorações a que os angolanos estavam submetidos.
A maior parte das canções é do cancioneiro popular angolano, sendo algumas de domínio
público, e que, posteriormente, foram rearranjadas por artistas como Liceu Vieira Dias.
Fazem parte desse Long Play, além das já citadas, as canções Mana Fatita, Birin Birin,
Henda I Xala, Marimbondo, Hoola Hoop, Nga Kuambela, Makezu, Samba, e, destacam-
se Muxima e Tuala Ni Ji Henda.152
“Muxima” quer dizer coração e alude a Igreja de Nossa Senhora de Muxima,
erigida em homenagem a Sant Ana (Santana), que seria a avó de Jesus Cristo no credo
católico. A canção conta a história de uma disputa entre duas mulheres em que uma acusa
a outra de feitiçaria e para se defender a acusada diz: “se você acha que sou uma feiticeira/
leve-me a Igreja de Santana” – Ki wangyambê wanga wami/ Ka ngibeke bhwa Santana –
onde, esperava-se que, algum tipo de intervenção mágico-religiosa equacionaria a
contenda. Muxima é uma canção muito significativa para os angolanos, como apontado
por Moorman (2008, pp. 148-150) , considerada por alguns como um hino “não oficial”
da Nação, e na mesma perspectiva, o cantor Bonga declarou em 2019 sobre Muxima: “é
como a bandeira de Angola”153
Já Tuala Ni Ji Henda aborda a situação dos contratados em Angola:

“O nosso pai foi trabalhar na roça do branco/ E desde que partiu não retorna a
casa/ Eh Papai, temos saudade (...) / Se tens problemas, se estás perdido/ Iremos
procurar-te/ Se estás morto, nós choraremos/ E também pediremos a Santana/
Para que te leve aos céus/Eh Papai, temos saudade (N’GAMBI, 1981).”

Como já abordado, até quando vigorou o estatuto do Indigenato, os angolanos


considerados “incivilizados”, chamados de indígenas – designação do século XX – ou

152 Tuala Ni-Ji Henda pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=WqRli3bqoA0.
Acesso em 15/12/2020 às 15 h 30 min.
153 Entrevista de Bonga pode ser acessada no link a seguir: https://media.rtp.pt/agoranos/artigos/tributo-

duo-ouro-negro-nelo-carvalho. Acesso 15/12/2020 as 16 h 00 min.

194
“gentios” – nomenclatura do século XIX – estavam sujeitos ao arbítrio do trabalho
forçado nas roças de café, de algodão e nas mais diversas atividades econômicas. Tais
práticas foram engendradas para garantir a exploração barata do trabalhador africano
gerando lucro e riqueza para seus “contratantes”, grupo formado pelos colonos
portugueses. O termo “contrato” não correspondia à realidade, pois dá a entender que
haveria escolha por parte dos nativos angolanos em aceitar o trabalho. Não havia. Os que
faziam parte desse grupo que não cumpria os requisitos “da civilização” - ter um ofício,
ter um grau mínimo de instrução, demonstrar o domínio dos códigos culturais do ocidente,
entre outros – eram arregimentados a força pelos chefes dos postos administrativos, pelas
lideranças tradicionais e, por vezes, pelas forças de policiamento nativas, chamadas de
“cipaios” (CARVALHO, 1999, p.69). Tais relações de exploração foram eternizadas pela
canção Monangambé, de Ruy Mingas, cuja letra é originalmente um poema de Antônio
Jacinto: “Quem faz o branco prosperar, ter barriga grande, ter dinheiro? Quem? (...) Quem
capina e em paga recebe desdém, fuba podre, peixe podre, panos ruins, cinquenta
angolares, ‘porrada se refilares’?”. 154
Ngambi com Paula Ribas voltam a gravar juntos em 1982 no álbum Navegar é
Preciso. O referido “disco” teve uma produção “fora de comércio”, conforme consta no
encarte do Long Play 155, sendo encomendado e patrocinado por uma empresa de cerâmica
(Cordeiro) cujo proprietário era de origem portuguesa. O texto de apresentação desse
disco de Ribas e Ngambi reproduz alguns dos mitos fundadores da nação portuguesa
como a de um povo que exortava ser preciso navegar e “descobrir” novas terras,
conquistar mercados no Brasil e em terras africanas e o faz com relação à história do
fundador da cerâmica Cordeiro, que teria saído de Portugal, se fixado no Brasil no início
do século XX, e, posteriormente, expandido seus negócios para os países africanos que à
época eram “províncias ultramarinas” de Portugal. De fato, o álbum parecia pertencer a
outro tempo. A seleção do repertório de canções também reproduz, de maneira
subjacente, outro dos mitos que os lusitanos construíram acerca de si mesmos: a ideia
lusotropical de um povo supostamente afeito a plasticidade e aos intercâmbios culturais,
pois traz canções relacionadas ao fado enquanto gênero e músicas tradicionais angolanas
e moçambicanas. 156

154 Mongambé significa contratado. A canção pode ser ouvida no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=aWNHLD6UhEo. Acesso em 20/01/2021 as 13 h 00 min.
155 Acervo pessoal.
156
Destacam-se algumas canções desse álbum: Um fado, composição de Ivan Lins, é descrita no texto do
Long Play como canção que traria “traços de portugalidade em corações brasileiros”; Palamé é um clássico

195
Em dezembro de 1983, uma nova comitiva de brasileiros se desloca a Angola
composta por jogadores de futebol como Ademir Menezes, Zizinho e Afonsinho e
músicos como Luiz Carlos da Vila, Luiz Vieira, Jurema e Os Tincoans. O evento fez parte
das comemorações de aniversário da independência de Angola, festejos esses que se
iniciaram em novembro e se alongaram até o mês seguinte. A delegação é liderada por
Lícia Maria, a “Ruça”, esposa de Martinho da Vila. O convite, inicialmente, havia sido
feito pelo governo angolano a Martinho, mas esse justificou sua impossibilidade de
comparecer devido a compromissos profissionais no Brasil, e, por isso, pediu que sua
esposa o representasse (O Pasquim, ed. 758, 05 a 11/01/1984, p. 16).
A parte esportiva consistiu em amistosos em que os dois times brasileiros – um
composto de jogadores mais seniores e outros com um elenco mais jovem – competiam
com times angolanos, em geral, ligados às associações de trabalhadores (O Pasquim, ed.
758, 05 a 11/01/1984, p. 16).
Quanto à parte musical, matérias da imprensa brasileira descrevem o evento como
“Samba e Semba, um encontro marcado há três séculos em Angola” (O Globo,
20/12/1983, S, Caderno, p.8). Relata-se, ainda, que o evento é iniciado com a
apresentação dos Kiezos, seguido de Tony do Fumo, Elias Diá Kimuezo e Bonga. A sessão
brasileira do espetáculo foi iniciada pelos Tincoans, que apresentaram parte de seu
repertório característico de criações e recriações de canções ligadas aos cultos afro-
brasileiros. Seguido por Luiz Carlos da Vila; por Tião motorista, representando o samba
de roda da Bahia; Luiz Vieira, cujo repertório foi descrito como de “gêneros regionais”
do Nordeste, e tendo Jurema como a atração principal (O Globo, 20/12/1983, S, Caderno,
p.8).
Os jornais brasileiros dão conta que a cantora Jurema seria “mais conhecida em
Angola do que na rua onde mora em Olaria” (O Globo, 2012/1983, p.8). A notoriedade
da sambista carioca em terras angolanas se daria por seu repertório, com canções que
retratam o cotidiano da população pobre dos morros da cidade do Rio de Janeiro como
Deus dá a farinha – “e o diabo rasga o saco do pobre”, diz a letra – e O samba não pode
parar,157 mas, principalmente, porque gravações de um de seus shows, cedidas pela Rede

angolano vindo do cancioneiro nativo, mas rearranjado e popularizado, posteriormente, pelo Ngola Ritmos
cujo tema versa sobre a rivalidade entre dois homens por uma mulher; do cancioneiro moçambicano vem
Iliza, um clássico que se popularizou a partir de Fanny Mpfumo, artista que é considerado o “pai da
marrabenta”, gênero-símbolo desse país. Essa seria uma cantiga popular sobre um interlocutor que chama
a atenção da jovem chamada “Elisa” para que ela engome sua saia (PEREIRA, 2018).
157 O álbum de mesmo nome da cantora pode ser ouvido no link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=_kx7YfOyYpA. Acesso dia 20/01/2021 às 14 h 00 min.

196
Globo a TPA, eram constantemente exibidas e reprisadas (U. Hora, 21/12/1983, S.
Caderno, p.1).
Outro ponto de destaque da visita da comitiva brasileira foi seu contato com Liceu
Vieira Dias, fundador do Ngola Ritmos: “que proporcionou (...) momentos da maior
importância ao falar das origens culturais comuns entre Brasil e África e da perda da
herança cultural angolana nesses quatro séculos de colonialismo” (U. Hora, 21/12/1983,
S. Caderno, p.1).
É preciso destacar que após esse primeiro contato com o público angolano, Os
Tincoans, ou pelo menos dois de seus três integrantes, se estabeleceram em terras
angolanas. Mateus Aleluia, em suas entrevistas e depoimentos a programas de TV e de
internet, relembra esse evento e relata terem sido indicados por Martinho da Vila porque
a produção artística do grupo remete às culturas africanas. Aleluia acrescenta que foram
muito bem recebidos e que por sugestão de Liceu Vieira Dias foram agregados a um
projeto institucional de pesquisa sobre as relações musicais Brasil e Angola:

Parecia coisa de filme hollywoodiano. (...) Nós fomos muito bem recebidos.
Quando nós cantamos Deixa a Gira Girar eles sabiam a música toda. Quando
nós cantamos Cordeiro de Nanã, o coro... [dizendo que o público fez coro, cantou
junto, dando a entender que o público conhecia bem a música]. Foi assim então
que o Liceu Vieira Dias (...) disse que nós teríamos que ficar pra conhecer aquela
cultura que já nos conhecia. Não porque tinham ouvido o nosso disco, mas
também tinham ouvido o nosso disco, mas nós saímos de lá. Algo de nosso estava
lá. 158

A vivência em Angola transparece nas canções que Aleluia gravou após seu
retorno ao Brasil, cerca de 20 anos depois. Em Fogueira Doce (2017) 159 o cantor
homenageia a capital de Angola: “Fogueira doce/ Sol madrugando/É Luanda e basta/
Beleza divinal/ Maravilha/ É o sol se pondo É Luanda e basta/ Beleza sem igual”. Já em
Palavra Que Reza (Palavra de Imbondeiro), 160 o artista alude às relações culturais e
musicais Brasil-Angola: “Dance um semba/ Ou um samba merengado/ Põe afoxé no
xaxado/E na Ballabina põe um semba tropical”. “Samba merengado” é uma alusão à

158 Entrevista de Matheus Aleluia à TVE Bahia pode ser acessada no link:
https://www.youtube.com/watch?v=hskU4Ztp-A0&t=1735s. Acesso em 27/01/2021 às 19 h 45 min.
159 A canção pode ser ouvida no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=L0c8rdH6KT8. Acesso

em 25/01/2021 às 17 h 00 min.
160 Canção do ano de 2010. Pode ser ouvida no link:
https://www.youtube.com/watch?v=pFxpVOecbRM&list=PLRJS5APJQjNsUyRqYgW7njTQJZAFxPEx
U&index=6. Acesso em 25/01/2021 às 18 h 00 min.

197
percepção que alguns músicos brasileiros têm ao ouvir um semba, a de que se aproxima,
musicalmente, da sonoridade deste gênero caribenho.
Em 1984, chega ao Brasil o músico Waldemar Bastos. O artista nasceu em
M’banza Congo e morou em diversas partes de Angola devido ao fato de seus pais serem
enfermeiros, e, por isso, constantemente deslocados para diferentes províncias. Fez parte
de “conjuntos de baile”, segundo relatou em entrevista a uma rádio da Galícia (Espanha),
ou seja, conjuntos que tocavam variados ritmos em festas de jovens. Contou ainda ter sido
preso pela polícia política na Angola colonial aos 19 anos por “suspeita de atos
subversivos, mas não comprovaram nada, no fundo era porque eu era um jovem artista
que cantava coisas que as pessoas gostavam” (BASTOS, 2018). Após a independência
circulou por Brasil, Portugal, Alemanha, entre outros. Bastos também declarou que
sempre buscou fazer sua arte de maneira “independente”, indicando que havia pressões
em Angola sobre os artistas para que tivessem determinados posicionamentos políticos.
“Não aceitavam que nós fossemos livres enquanto artistas”, disse o cantor à rádio galega.
Waldemar Bastos faz alusão aos muitos músicos que aderiram integralmente ao projeto
do MPLA e começaram a fazer de sua produção um meio direto e inequívoco de
intervenção política. Tais estratégias eram para “consolidar a independência”, e, também
para “mobilizar as massas”, declararam os artistas Santocas e Carlos Lamartine,
respectivamente (MOORMAN, 2008, p. 204). 161

161Embora fora do recorte cronológico da pesquisa, Bastos declarou que em 2016 ainda era persona non
grata em Angola, de acordo com matéria da Deutsche Welle: “‘onde vou atuar, há presença, há intimidação,
e ultimamente vamos considerar mesmo [que houve] algumas abordagens’ [...] Abordagens que, segundo
o músico, são feitas ‘em tom de advertência’. E a perseguição ‘é nítida em todo o lado’”. Disponível em
https://www.dw.com/pt-002/waldemar-bastos-denuncia-persegui%C3%A7%C3%A3o-do-regime-de-
angola/a-19349925.

198
Figura 24 - Capa do Álbum Estamos juntos. Acervo Pessoal. Note-se que na arte de capa a água do
mar emula o mapa do Brasil e da África, estando o artista do meio fazendo a ligação e “dizendo”
“estamos juntos”. Acervo pessoal.

Em contraposição, sobre seu posicionamento, Dulce Tupy comentou que, em sua


opinião, Bastos não era “muito firme politicamente”. Há que se lembrar das afinidades
ideológicas de Dulce com o MPLA.
Em 1980 já era um músico bem conhecido em Angola, tendo se apresentando
junto com os integrantes do Kalunga no último show do projeto na Praça de Touros. Não
fez parte da comitiva do Canto Livre de Angola, mas teve uma canção – Velha Chica –
incluída no repertório. Seu diálogo com os integrantes do Kalunga foi bastante profícuo
tendo o músico Novelli – produtor técnico da comitiva brasileira em Angola – realizado
a direção musical do seu álbum Estamos Juntos, que por sinal é um lema do MPLA,
gravado no Brasil e lançado em 1984. Além disso, participaram das gravações também
como intérpretes Chico Buarque, João do Vale, Martinho da Vila, e, como instrumentistas
e arranjadores Danilo e Dorival Caymmi, o percursionista Café e o também angolano
Fontinhas do Ngola Ritmos.162 Sobre seus diálogos musicais no Brasil, o artista afirmou
que Chico Buarque lhe orientou a procurar as gravadoras e caso não tivesse sucesso, lhe
procurasse que buscaria fazer a articulação: “‘Waldemar, nós aqui no Brasil vamos estar

162 http://grandesvozes.com/pt/archivos/1951 podcast com a entrevista de Waldemar Bastos.

199
ao teu lado. Não estás sozinho’. E foi assim que Chico Buarque de Holanda me deu a
mão” (BASTOS, 2018).
Percebe-se nas canções desse álbum muitas referências a elementos considerados
significativos para os angolanos, que remetem a identidade, a memória e a experiência do
que era compreendido como “ser angolano” àquela época: marimbondos, cajueiros, a
zungueira 163 que passa vendendo laranja, a Mulemba, as acácias floridas, cola e gengibre
de manhã, o som do kissange e da puíta. Das oito canções164 do álbum, destacam-se
Colonial e Velha Chica, que evidenciam as memórias sobre o tempo em que Angola
estava sobre o domínio português. Vale assinalar que Velha Chica tem a participação de
Martinho da Vila que chegou a gravar essa canção em 1981.165
A temática das relações familiares sendo atravessadas pelo colonialismo é
abordada em Colonial. A canção, um tema “folclórico” recolhido por Bastos, conta a
história de uma mulher angolana que vive com um português e que, a partir da chegada
de uma carta trazida pelo navio “Colonial” soube que será abandonada, pois a esposa e a
família “oficial” chegarão em breve a Angola. Diz o trecho final da composição: (...) “E
sua gente, que ela tinha desprezado, para viver com o branco goza a sua vaidade”. 166

163
Descrevendo brevemente algumas das outras canções do álbum: Marimbondo fala do inseto e das
paisagens tropicais de Angola: (...) “Tinha flores nas acácias/ tinha abelhas nos jardins/ (...) Quando vi o
marimbondo/Vinha zunindo e voando; As zungueiras que passam vendendo frutas são o tema de Tereza
Ana: “Olha a laranja/ Minha senhora/ Olha a tangerina/ Tem maboquinha docinha/ (...) Com teus panos/
Com teus lindos olhos olhar/ Contigo a sombra da mulemba sentar”. Maboque é uma fruta agridoce comum
em Angola. Já mulemba é uma árvore de grande porte e de copa frondosa, muito apreciada em Angola pela
sombra,
164
Ainda sobre as canções desse álbum, Humbiumbi Yangue que também foi gravada por Djavan no álbum
Seduzir (1980), é outro tema folclórico recolhido do cancioneiro popular. A letra traduzida, e que nessa
parte da canção é interpretada por João do Valle, diz: Meu Humbiumbi Yangue [pássaro]/ Levanta voo e
vamos/ Coitado de tchimbamba [pássaro]/ Que se arrasta no chão/ Teus companheiros voam/ Levanta voo
e vamos/ Coitado de tchimbamba/ Que se arrasta no chão. É possível inferir que o pássaro seja uma metáfora
para liberdade, ou seja, para a emancipação política. Mungueno aborda o tema do lamento pelo filho que
faleceu e é recorrente no cancioneiro angolano. Nesse álbum de Bastos ele aparece na composição, onde a
mãe lamenta a perda do filho que foi pescar e não voltou. A letra da canção narra a história do jovem que
sai de casa domingo de manhã para pescar, fumando seu cigarro “negrita” e a mãe diz “tem cuidado como
andas meu filho”. E no final da canção vê-se o desfecho: “E logo de manhã/ Senhora do pano preto [em
referência ao luto] / Chorando seu Monami/ A beira da sua cubata”. Lubango, que nesta gravação tem a
participação de Chico Buarque, fala da cidade de mesmo nome na província de Huíla e suas belezas naturais
como a fenda de Tundavala na Serra da Leba. A marimba, a puíta, o kissange, os batuques e as cantigas
populares aparecem na canção Carnaval. Há também uma referência ao poema “Havemos de voltar” de
Agostinho Neto porque este é recitado na abertura do filme “Carnaval da Vitória”.
165
Velha Chica, interpretada por Martinho da Vila pode ser acessada no link a seguir:
https://music.youtube.com/watch?v=64Xv70YBd2w&feature=share. Acesso em 27/05/2020 às 11 h 00
min.
166 Letra original disposta no encarte do Long Play “Estamos Juntos”: “Colonial ueza ni correio/ Mukanda

uá tundo kuputo/ Ué lemba dia pio/ Maka ma vulué/ Olo dingonga/ Tica uala ni uanga/”.

200
Cabe aqui um parêntese acerca das relações familiares entre brancos, negros e
mestiços em Angola. Antes do maior impulso ao colonialismo em finais do século XIX
e, principalmente, no início do XX, era mais comum a situação do colono branco que
tinha relações de concubinato com mulheres africanas, gerando descendentes mestiços.
Algumas destas relações não foram consensuais, outrossim, violentas como se pode
depreender de outro tema popular recolhido e musicado pelo Ngola Ritmos chamado de
Monami.167 Na canção, uma mãe tenta apaziguar e consolar seu filho pela falta que sente
do pai, que não conhece. A mãe lhe diz que ele é fruto de uma relação dela com um ser
místico, uma ave migratória: “Meu filho não chores/ Fecundei-te com a ave da desgraça”.
Ao que um vizinho se intromete na conversa e lhe responde: “Ó mulher estás a mentir/ O
teu filho é fruto da fome/ A ave que fecunda pessoas não existe” (ANTÔNIO, 2010;
WEZA, 2007, p.53), dando a entender que a mulher fez favores sexuais a um colono
português em troca de comida. Em todo caso, muitas famílias inter-raciais foram
formadas com base no amor e no consentimento. Os já citados por diversas vezes
Agostinho Neto e Liceu Vieira Dias, por exemplo, se casaram com mulheres brancas,
respectivamente Maria Eugênia e Natércia (NASCIMENTO, 2018).
Os mestiços, principalmente aqueles cuja condição era mais perceptível pelo
fenótipo, sofriam certa resistência em alguns estratos da sociedade angolana. Eram
olhados com desconfiança e por vezes chamados de “filhos de cobra” por serem filhos de
homens brancos, especialmente durante a luta de libertação e no imediato pós-

independência. O discurso racial e étnico diversas vezes foi mobilizado em disputas


políticas em Angola. A UNITA acusava o MPLA de privilegiar os “crioulos de Luanda”,
aqueles que evidenciavam uma mestiçagem fenotípica ou cultural, e por muitos de seus
dirigentes terem estudado no exterior, por exemplo. E internamente, o MPLA já chegou
a alterar a composição de suas estruturas organizacionais de modo a combater essa
acusação e ter em postos de comandos mais militantes ditos “genuinamente africanos”
(PINTO, 2012).
A mais famosa canção do álbum e provavelmente a composição angolana mais
conhecida no exterior é Velha Chica, cuja gravação contou com a participação de
Martinho da Vila:
Antigamente, a velha chica.
Vendia cola e gengibre

Há outra canção Monami mais conhecida na voz de Lourdes Van Dunnen e que versa sobre a perda de
167

um filho.

201
E lá pela tarde ela lavava a roupa
Do patrão importante
E nós os miúdos lá da escola
Perguntávamos à vovó chica
Qual era a razão daquela pobreza
Daquele nosso sofrimento

Xé menino, não fala política.


Não fala política, não fala política.
Mas a velha chica embrulhada nos pensamentos
Ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento.

Xé menino, não fala política.


Não fala política, não fala política.

E o tempo passou e a velha chica, só mais velha ficou.


Ela somente fez uma kubata com teto de zinco, com teto de zinco.

Xé menino, não fala política, não fala política.

Mas quem vê agora


O rosto daquela senhora, daquela senhora.
Já não vê as rugas do sofrimento, do sofrimento, do sofrimento!
Xé menino, não fala política.
Não fala política, não fala política.
E ela agora só diz:

- Xé menino, posso morrer, posso morrer.


Já vi angola independente!
- Xé menino, posso morrer, posso morrer.
Já vi angola independente!

Note-se que a canção foi escrita no pós-independência, mas evoca a memória do


tempo do colonizador, o tempo da pobreza, da exploração e da censura, como diz a
personagem-título “não fala política” para o jovem-narrador, pois corria o risco de sofrer
represálias e perseguições, o que, como já mencionado, ocorreu com o próprio Waldemar.
Ratifica-se que a canção foi apresentada pelo Canto Livre de Angola nas suas
apresentações pelo Brasil e que em geral era um ponto alto do show quando todo o grupo
e o público cantavam em uníssono “posso morrer/já vi Angola independente/”, conforme
relato de Martinho da Vila: “Delírio total. Choros e risos ao mesmo tempo. Alguns
brasileiros chegaram à histeria” (DA VILA, 1998, p. 47).
Ao longo dos anos 1980 e 1990, Bastos continuou sua carreira gravando e
excursionando por países europeus e pelos Estados Unidos, mantendo Portugal como sua
base. Do seu álbum PretaLuz de 1998, destacam-se duas canções: Rainha Ginga e
Sofrimento. A primeira fala sobre a Rainha da Matamba e do Cassange do século XVII,
que, entre diversos outros feitos, exigia ser tratada como igual pelos europeus e travou

202
alianças com os holandeses contra os portugueses quando teve seus interesses
contrariados. A letra da referida canção diz: “Nas margens da minha terra/ Nas margens
do Rio Congo/ Nasceu a mulher mais bela/ Mulher mais linda/Ginga/ (...) Nasceu a
mulher guerreira/ (...)”.
Já Sofrimento (1998) fala dos conflitos do MPLA versus UNITA dos anos 1990 e
sobre a pobreza e o atraso no desenvolvimento ocasionado pelos 13 anos de guerra
anticolonial, somados aos mais de 20 anos – quando do lançamento da canção – de guerra
civil. A canção também faz um apelo pela reconciliação:

Pra quê tanto ódio


Se somos irmãos
Que temos,
Que temos,
Que temos
Que dar as mãos.
Pra quê tanta dor,
Pra quê tanto ódio
Se somos irmãos
Que temos,
Que temos,
Que temos
Que dar as mãos.

Olha o sofrimento,
Olha o sofrimento
Que vem cá de dentro
A nossa terra está a morrer.
Olha o tormento,
Olha o tormento
Que vem cá de dentro
A nossa terra
Está a sofrer demais.
Olha aquela mamã
Já não tem lágrimas
Já não tem lamento,
A nossa terra está a morrer.
Angola é tão grande
Tão rica e tão linda
Que dá para todos nós
E para aquela mamã
Angola (...).

Angola é tão bela


Angola é tão linda
Tão rica e tão grande
Que dá para todos nós
E para aquela mamã
Angola
Angola viva

203
Angola viva

É preciso destacar que o diálogo musical de Bastos com a musicalidade e os


músicos brasileiros foi essencial para a sua carreira. Foi após a gravação de seu primeiro
álbum Estamos Juntos no Brasil, com a colaboração de Chico Buarque, Martinho da Vila
e do produtor Novelli, que Bastos iniciou sua carreira internacional. Matéria do jornal
Última Hora (S. Caderno, 27/06/1984, p.1) aponta que a partir do “ritmo” de Waldemar
Bastos percebe-se que “os laços culturais Brasil-África foram mantidos através dos
séculos”.

204
3. 5 “Chegaram para mostrar a semba e outras bossas”:168 O Canto Livre de
Angola no Brasil.

Em janeiro de 1983, no mesmo ano em que a comitiva brasileira aporta em Luanda


para a comemoração da independência angolana, chegou ao Brasil uma delegação de mais
de 30 angolanos, entre músicos e equipe de apoio. Compunham a comitiva nomes bem
conhecidos na cena local de Angola como Elias Diá Kimuezo, Carlos Burity, Pedrito,
Dina Santos, Joi Arthur, Robertinho, Joãozinho, Candinho, Zé Fininho, Rodolfo Kituxi,
Paulo Kaita, Mestre Geraldo, Velho Bastos. D. Sofia, entre outros. E, acrescente-se, 12
dançarinos entre homens e mulheres. Os mais conhecidos a fazer parte do grupo eram os
músicos Carlitos Vieira Dias, filho de Liceu Vieira Dias do célebre Ngola Ritmos, André
Mingas169 e Felipe Mukenga.170 Mingas na época era também diretor nacional de
massificação cultural. Já Mukenga exercia o cargo de diretor da companhia estatal de
discos. Destaca-se que a maioria dos componentes da comitiva não era de artistas
profissionais, mas de trabalhadores de variados ofícios, que nas horas vagas praticavam
a sua música e a sua dança (CADERNOS T. MUNDO nº 52, fev./1983, p.52).
A comitiva recebeu o nome de “Canto Livre de Angola”, uma alusão ao fato de o
país ter se libertado do colonialismo, e buscava “retribuir” o Projeto Kalunga. Além disso,
tinha também como intuito aprofundar o intercâmbio cultural Brasil/Angola. “Nosso
governo tem muito interesse em estreitar os laços (...), devido a tantas características
culturais que nos unem” (O Globo, 07/01/1983, p. 25), declarou Júlio Silva, outro
funcionário do governo angolano envolvido com a realização do evento. Quanto ao
custeio, o órgãos do Estado de Angola assumiram os custos de transporte para a comitiva.
A BRASPETRO,171 que, vale lembrar, estava operando em parceria com a angolana
SONANGOL (Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola), custeou o deslocamento

168 Título da matéria do jornal O Globo (07/01/1983, p. 25).


169 Nas décadas de 90, 2000 e 2010, Mingas (1950-2011) permaneceu em atividade como político, tendo
ocupado cargos de vice-ministro da Cultura em Angola e, nos seus últimos anos de vida, o cargo de Cônsul
de Angola em São Paulo no Brasil. Também nos seus últimos anos de vida (em 2011), o músico lança o
álbum É Luanda no Brasil. O álbum É Luanda pode ser ouvido no link:
https://youtube.com/playlist?list=PL2JePsr4L0LaC4ZRd5FJeUR5_k9rHr2bP. Acesso em 20/12/2021 às
17 h 0 min).
170 Mukenga é um artista angolano bem conhecido internacionalmente. De meados dos anos 1990 até

meados dos anos 2000, viveu em Portugal e de lá excursionou para diversos países europeus, bem como
para o Brasil e para Moçambique. Ver:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/notic
ias/lazer-e-cultura/2013/11/51/certo-distanciamento-entre-velha-novas-geracoes-musicos-Filipe-
Mukenga,2111cc49-deee-4422-9bbd-e1e5d90b91d5.html. Acesso em 20/12/2020 às 18 h 0 min.
171 Empresa brasileira criada para explorar petróleo no exterior.

205
interno e a estadia. Já a produção do show – som e iluminação – foi custeada pessoalmente
por Martinho da Vila, que assumiu a função de diretor artístico do evento. Martinho
declarou não esperar nenhum tipo de lucro, mas que, ao menos espera “não perder
dinheiro” (O Globo, 07/01/1983, p. 25). Acrescente-se que a comitiva excursionou por
Rio, São Paulo, Salvador e voltou ao Rio para o último show na quadra da Escola de
Samba Império Serrano.
O show foi gravado e virou um Long Play. Na capa do álbum destaca-se um texto
de Martinho da Vila “apresentando” o evento que, para o artista, é uma festa. E que em
Angola, como no Brasil, para tudo se faz festa. “Caiu um Mirage! Vamos festejar!”,
registrou Da Vila na capa do disco se referindo aos caças de fabricação francesa utilizados
pelo África do Sul nos seus ataques ao território angolano. O Canto Livre de Angola,
apesar do contexto de guerra, veio ao Brasil para mostrar, segundo seus organizadores,
“a nossa música e cantar e sorrir como todo mundo” (CADERNOS T. MUNDO nº 52,
fev./1983, p.52).
O espetáculo era dividido em uma parte com músicas tradicionais como a Rebita
e canções carnavalescas, outra com práticas culturais chamadas por André Mingas de
“folclore” e que seriam onde “a colonização portuguesa não se fez sentir” (C. Terceiro
Mundo nº 52, fevereiro/1983, p.75) e a terceira com a “música moderna” apresentada pelo
próprio Mingas e por Felipe Mukenga em estilo “voz e violão”.
O primeiro show no Rio de Janeiro aconteceu na sala Cecília Meireles e reuniu
um público de centenas de pessoas, dentre elas nomes bem conhecidos da música
brasileira como Alcione, Clara Nunes, Elton Medeiros, Djavan, João do Vale, Nara Leão,
Paulinho da Viola, entre outros. Conforme narrado por Martinho da Vila (1998, p. 46),
em seu livro de memórias, as performances deixaram o público bastante comovido e
descreve que Mestre Geraldo fez “a plateia chorar de emoção com sua sanfona”.

206
Figura 25 - Canto Livre de Angola se apresentando na sala Cecília Meireles em 1983. Pelos trajes e pela posição dos
artistas, nesse momento do espetáculo estavam dançando uma Rebita. Foto disposta na capa do álbum. Acervo pessoal.

De acordo com o disposto na capa do Long Play – gravado a partir do primeiro


show no Rio de Janeiro – e da minuciosa descrição feita pela reportagem do Cadernos de
Terceiro Mundo (nº 52, fevereiro/1982, pp.72-82), um dos quadros da apresentação
consistia numa apresentação de sembas “tradicionais” e de Rebita, como já exposto, uma
prática em geral usada como um exemplo perfeito da “interpenetração cultural” entre
elementos africanos e portugueses por alguns intelectuais angolanos que aderiam ao
lusotropicalismo. André Mingas declarou que era uma dança muito utilizada como
espetáculo para turistas, que, em todo caso, era uma prática muito importante para os
angolanos: “A colonização é um fenômeno do qual não podemos nos isolar. É por nós
negada profundamente, mas é algo que está em nós. Deixou marcas e influenciou a nossa
atitude para com o mundo” (CTM nº52, fevereiro/1982, p. 76).
Spírito Santo, intelectual e músico do grupo Vissungo, escreveu para o C.
172

Terceiro Mundo uma crítica ao espetáculo buscando mostrar as aproximações entre a


música brasileira e a angolana. Quantos aos instrumentos, o músico chamou a atenção

172“Músico, pesquisador e escritor, 67 anos [atualmente 73], estudou teoria musical em curso dirigido pelo
Maestro Guerra Peixe. Projetista de Arquitetura formado pelo Senai, Escritor, Artesão e Arte educador.
Criou no Rio de Janeiro em 1975 o grupo de pesquisa etnomusical Vissungo, realizando ampla pesquisa de
campo, coletando e elaborando material da música negra tradicional, do interior dos estados de Minas
Gerais, Espírito Santo, Bahia, e São Paulo e especializando-se em música afro-brasileira e artesanato
musical. Compositor, realizou com o Vissungo a trilha sonora dos filmes Chico Rey, de Walter Lima Júnior
e a música de cena em Natal da Portela, de Paulo Cesar Sarraceni, entre outros. Gravou discos com Milton
Nascimento, Wagner Tiso, Tetê Espíndola e Clementina de Jesus.”, cf.
https://spiritosanto.wordpress.com/category/curriculum-vitae/. Acesso em 05/01/2020 às 16 h 45 min. Ver
também https://www.youtube.com/watch?v=r-jHMsS3Xs0. Acesso em 05/01/2020 às 16 h 45 min.

207
que o Hungu seria muito semelhante ao berimbau, a puíta à cuíca, o dikanza ao reco-reco
e as ngomas aos tambores que no Brasil recebem nomes como “angoma” ou tambu.
Quanto às danças, lembrou que a Massemba – Rebita – é dançada de forma similar ao
Jongo ou Caxambu do interior do Estado do Rio. Ainda sobre a Rebita considerou que se
parecia um pouco com a “dança de quadrilha” brasileira. O estudioso também pontuou
que o kalundu angolano se assemelha ao lundu brasileiro. Em todo caso, o primeiro
remete mais a uma dança de invocação de espíritos, o que, de acordo com o que foi
noticiado na imprensa ocorreu de fato no primeiro show quando uma das dançarinas
“entrou em transe” (CTM nº52, fevereiro/1983 p.75). A reportagem questionou André
Mingas se havia alguma contradição entre um movimento-partido marxista-leninista e
práticas religiosas populares, ao que respondeu que tais práticas eram perseguidas no
tempo colonial e que agora no pós-independência esses hábitos religiosos podiam ser
vividos livremente, mas não eram estimulados pelo partido e que se fazia um trabalho
político de conscientização sobre estas questões. O dirigente angolano comentou: “após
a independência imaginávamos que tais manifestações acabariam. Mas não. Há pouco
tempo percebemos que grande parte das pessoas tem um tratador” (CTM nº52,
fevereiro/1983 p.76).
Essa figura do tratador, por vezes chamado de kimbanda, aparece em algumas
obras literárias angolanas como em Predadores de Pepetela, quando a personagem
Bebiana temendo pelo destino de sua família após as primeiras eleições do pós-
independência, “negociara protecções com as mais-velhas do mercado de S. Paulo e
kimbandas afamados por blindarem corpos e destinos” (PEPETELA, 2007, p. 6). Mingas
elabora um pouco mais as diretrizes do partido sobre a relação com os costumes religiosos
do povo angolano e dá como exemplo a festa da ilha – de Luanda – quando, no passado,
os pescadores ofereciam presentes ao mar para evitar as Calemas, quando o mar está
revolto e invade a orla derrubando as casas dos pescadores. O dirigente também explica
que as orientações do MPLA são para que se faça um trabalho de conscientização nas
escolas, continuou André Mingas, para que a Calema passe a ser entendida como um
fenômeno da natureza com uma explicação científica e a festa da ilha passe a ocorrer, não
mais como manifestação religiosa, mas como prática cultural.
Ainda sobre o espetáculo, a seção classificada por Mingas como “folclórica” e, da
qual faz parte a já citada performance de Kalundu, traz outro número com um tocador de
tchiumba – instrumento que Spírito Santo descreve como similar a uma cítara. Nessa
etapa, interpreta-se uma canção, cujo tema é um lamento pela morte de um amigo que

208
faleceu no campo de batalha e outra com temática lírico-amorosa. Essas partes do show
seriam, de acordo com Mingas, as que não foram “maculadas” pela colonização e seriam
“o que nós somos de fato e para onde caminhamos” (CTM nº52, fevereiro/1983, p.73).
Percebe-se aqui que algumas práticas chamadas de “folclóricas” pelos angolanos
são usadas como símbolos importantes na construção de uma identidade nacional no pós-
independência. Esse processo ensejado pelos intelectuais, músicos e membros do governo
de Angola no referido período não é tão diferente do que ocorreu com os países europeus
e americanos quando do processo de formação de seus respectivos estados nacionais.
Nesses últimos, em meio a um mundo “moderno” – contemporâneo, na realidade – com
fábricas, trens e máquinas, onde o “futuro” é um referencial significativo, percebem-se a
existência de “fragmentos de estrato anterior” (SEGATO, 1989, p.82). Em todo caso, é
preciso ressalvar que nas sociedades europeias, essas “antiguidades” foram constituídas
pela hibridização entre as heranças latinas e as chamadas “bárbaras”, enquanto nas
Américas e no continente africano, tais “fragmentos” seriam oriundos de trocas culturais
entre os grupos europeus e os povos originários dessas regiões – ou os trazidos à força –
e outros fragmentos “cristalizados” dessas referidas populações locais. 173 De acordo com
Segato (1989, p.85): “saberes tradicionais do povo, vistos, da perspectiva de uma nação
(...), como fragmentos idiossincráticos de cultura (...) pertencentes a esse povo e que
podiam ser resgatados pela nação” e serem usados como símbolos demarcadores de
diferença, de uma identidade (SEGATO, 1989). 174
Esse processo de “eleição” de determinados símbolos – práticas culturais, danças,
cantares – regionais, ou característicos de um determinado grupo etnolinguístico, para
serem alçados a um patamar nacional, pode ser percebido em outra das recém-
independentes nações africanas de língua portuguesa, em Moçambique, como aponta

173 E para o caso africano, postulo, alguns desses “fragmentos cristalizados” eram frutos de trocas
endógenas, ou seja, entre povos diferentes dentro do mesmo conjunto geográfico.
174 Conforme Segato, desde o séc. XVII, na Europa, intelectuais chamavam a atenção para o contraste entre

os padrões de comportamento institucionalizado e o “saber” das “pessoas comuns”, também referenciados


como “superstições” e “antiguidades”. Ou as diferenças entre a cultura patrícia e a plebeia, essa última,
eivada de “pequenas tradições” e “resíduos do passado” (THOMPSON, 1998). Também, como pontuou
Abreu, expressa certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a outras práticas
culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças
possam ser vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou, inversamente, como dependente e
carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes” (ABREU, 2003, p. 11). Já no século XIX, o
termo Folk Lore – para o qual uma das traduções é “tradições populares” – ganha força. Em geral, a busca
por examinar, registrar e documentar essas “antiguidades populares” esteve, sobretudo no oitocentos e no
novecentos, ligado a construção da ideia de nação e era uma preocupação mais voltada para os fenômenos
dessas “sobrevivências”. Contudo, a virada que ocorre em meados do século XX acerca do conceito de
cultura – agora entendido como um processo dinâmico que engloba hábitos, valores, modos de fazer –
esvaziou os estudos de folclore (SEGATO, 1989).

209
Macagno (2009, p.23), quando intelectuais e membros da FRELIMO resignificaram os
assim chamados “usos e costumes gentílicos” buscando compor uma cultura nacional.
Contudo, o processo angolano e o moçambicano guardam algumas dessemelhanças, já
que nesse último ocorreu um ativo, direcionado e intencional processo de “engenharia
cultural” ensejando a bricolagem de práticas artísticas de diferentes regiões do país. “Uma
dança tipicamente (...) do Sul, mistura-se com elementos (...) do Norte e, assim, fazem-se
várias misturas. Mas este é um trabalho feito de propósito por pessoas conhecedoras (...)
como coreógrafos”, declarou o intelectual moçambicano Raul Honwana (conforme citado
em (MACGANO, 2009, p.23).
Note-se que, neste período após a emancipação, em Angola, usa-se as práticas
culturais populares como símbolo de angolanidade consideradas “puras”, que não teriam
sido mescladas com princípios culturais entendidos como exógenos ou “do colonizador”,
em contraposição, como já debatido, ao uso que se fazia, no tempo do colonialismo, da
Rebita, uma prática cultural que mesclava elementos europeus e africanos, sendo eleita
como uma síntese da suposta cultura crioula. A Rebita continuou sendo dançada após
1975, não como arquétipo lusotropicalista, mas, da perspectiva dos intelectuais e músicos
da jovem nação, como um dos signos de um povo que traz as marcas da situação colonial
e ao mesmo tempo busca se afirmar enquanto africano, assim, a prática cultural “foi
adaptada a novos propósitos” (THOMPSON, 2001, p.281), demostrando como o campo
da cultura pode ser um locus das disputas e batalhas entre grupos opostos (ABREU, 2003,
p.9).
Acerca das trocas e empréstimos no campo da cultura, embora as falas de Mingas
sobre o kalundu evoquem ideias de pureza e autenticidade, no que diz respeito a essa
prática, é preciso ressaltar que a oposição binária da “cultura do colonizador versus
cultura tradicional africana” não dá conta da complexidade de tais processos. Nem sempre
os africanos se apresentam como os “intransigentes defensores da tradição”
(MARZANO, 2016a , p. 472), pois o intercâmbio, a aglutinação e a articulação de
distintos repertórios culturais ao mesmo tempo é uma característica comum a muitos
povos africanos, como chamou a atenção Ferreira (2006, p. 29), ao destacar a
“plasticidade da cultura Mbunda” que teria originado em Angola uma síntese cultural cuja
predominância seria de princípios africanos.
Ainda sobre a visita dos artistas angolanos, vale também enfatizar a declaração de
Mingas de que a Rebita continua sendo importante para os angolanos, mesmo com a
consciência de que é um produto do “fenômeno da colonização”. Para reforçar os liames

210
da “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2006) da Angola independente era preciso
eleger alguns símbolos – como o semba e as práticas “folclóricas” – e recorrer a algumas
operações que reforçassem uma identidade que fosse comum a todos os angolanos, dentre
estas, por exemplo, o combate ao “tribalismo”, privilegiando a identidade nacional em
detrimento da do grupo etnolinguístico. Fábio Baqueiro (2019,p 93) chama atenção ao
fato de que a direção do processo “de seleção, promovendo os traços culturais adequados
aos objetivos da independência e da unidade nacional” eram ensejados pela organização
nacionalista, que no caso referido era o MPLA.

Figura 26 - Um dos artistas do Canto Livre de Angola tocando uma dikanza. A legenda original da foto
diz "Quando o povo cria está defendendo seus valores". Fonte: Cadernos T. Mundo nº 52,
fevereiro/1980, p. 80.

Além das já citadas performances “folclóricas”, uma parte do show foi dedicada
a apresentar um panorama do semba com conhecidas canções e temas populares como
Monami,175 Carnaval, Kisselenguenha, Lemba, Ka-Kinheto, Kalumba,176 N’gi Tabule,
Endjomba, entre outros, a maioria em línguas originárias. Dentre as canções apresentadas

175 Uma performance de Monami pode ser ouvida no link:


https://www.youtube.com/watch?v=8BsfQlPOSMg. Acesso em 06/01/2020 às 17 h 15 min.
176 Uma performance de Kalumba pode ser ouvida no link:

https://www.youtube.com/watch?v=Avud5sEPIXs&list=PLbr6NQ84vJ0ounUyLBmFVtS_TWLanjncU&
index=5. Acesso em 06/01/2020 às 17 h 00.

211
as mais conhecidas são Mama Lala, Makezu e Morro da Maianga e a partir dessas é
possível conhecer um pouco mais sobre alguns aspectos que os angolanos consideram
fundamentais à sua identidade e sobre a memória do tempo colonial. 177
A primeira, Mama Lala, é um tema popular que fala sobre o Carnaval, sendo a
personagem-título da canção a “Rainha” de um grupo carnavalesco muito conhecido e
afamado nas décadas de 1930 e 1940: Os Invejados, que tinha esse nome por ser
“acusado” de invejar outro grupo, A Cidrália. As duas referidas agremiações são as que
ficaram mais conhecidas dentre as muitas que saíam dos musseques para desfilar na baixa
e arredores no período mencionado. Quando estes grupos rivais se encontravam podiam
ocorrer grandes conflitos, em geral, em torno da tentativa de “sequestro” da Rainha do
adversário. Aos Invejados é atribuída uma imagem “arruaceira” de “gente dos
musseques”, visão cultivada pelo grupo rival nos versos dos enredos que satirizavam o
opositor. Já aos cidralinos é atribuída – pelos invejados – a imagem daqueles que, embora
se achem melhores, foram “expulsos” das Imgombotas para morar e se tornar vizinhos de
seus rivais nos musseques (MARZANO, 2016, pp. 76-80).
Antigamente, estávamos bem!
Mas, com a vinda dos ingomboteiros para o musseque,
É muito roubo, muito roubo no musseque!
Vão se embora, vão se embora,
Para a vossa Luanda! (Conforme citado em MARZANO, 2016, p.79)

Já Makezu teve a melodia feita por Ruy Mingas, irmão de André Mingas, a partir
do poema de Viriato da Cruz:
O pregão da vó Ximinha
Ta mesmo como seus panos
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos

A vó Xima tá velhinha
Mas de manhã, manhãzinha.
Pede licença ao reumático
E num passo nada prático
Faz riscadinhas na areia
Na areia

Lá vai para o Cajueiro


Que se levanta altaneiro
No roteiro dos caminhos
Das gentes que vão pra baixa

177A gravação completa do LP pode ser ouvida no link:


https://www.youtube.com/watch?v=yYynnMMbT4w. Acesso em 06/01/2020 às 17:15.

212
Nem criados, nem pedreiros.
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das avenidas de alcatrão
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira
Uaquê, Makezu, Makezu ê.

A canção é uma referência às quitandeiras, vendedoras que estendem seus panos


com seus produtos em locais ao ar livre em mercados informais ou nos grandes mercados.
No caso específico, trata-se da venda de noz-cola (makezu), produto natural rico em
cafeína que tradicionalmente era consumido de manhã pelos angolanos, mas, infere-se
que, com o crescimento de Luanda, os hábitos de consumo vão mudando e a quitandeira
já não consegue clientes com facilidade.
Morro da Maianga é outro poema musicado por Ruy Mingas, dessa vez da autoria
de Mário Antônio de Oliveira, o já citado autor de “Luanda Ilha Crioula”:

Noites de luar no morro da Maianga


Anda no ar uma canção de roda

Banana Podre não tem fortuna


Fruta Tá, fruta Tá.
Entra aqui, sai ali.
Fruta Tá, fruta Tá.

Moças namorando nos quintais de madeira


Velhas falando conversas antigas
Sentada na esteira, homens embebedando-se nas tabernas.
E os emigrados das ilhas
Os emigrados das ilhas, com o sal do mar nos cabelos.
Os emigrados das ilhas, que falam de bruxedos e sereias.
E tocam violão e puxam facas nas brigas

Oh, ingenuidade das histórias infantis.


Oh namoro de moças sem cuidado
Oh historias de velhas
Proletários esquecendo-se nas tascas
Emigrantes que puxam facas nas brigas
E os sons do violão
Os cânticos da missão
Os homens, os homens.
As tragédias dos homens
Os homens, os homens.
As tragédias dos homens

Mário Antônio fala com nostalgia de um passado para ele recente, estima-se que
esteja abordando a Luanda dos anos 1940 ou 1950 quando em algumas partes da capital

213
ainda não havia uma exacerbada divisão entre “cidade do asfalto” e os musseques. O livro
de memórias do angolano Martins Soares (2015) descreve que parte do bairro da Maianga
tinha casas de alvenaria, mas que no restante do bairro, dos fundos do hospital Maria Pia
até a Praia do Bispo, a maioria das casas era de madeira e zinco ou de pau a pique.
Possivelmente, nessas construções mais populares é que se presenciariam as “velhas
sentadas em esteiras”. Soares também relata ter sido vizinho de Mário Antônio na
Maianga (SOARES, 2015, pp. 144-147).
Quantos aos “emigrados das ilhas”, infere-se que a referência seja em relação aos
cabo-verdianos que foram mandados a Angola em ondas desde a década de 1910 como
contratados, passando pelos que chegaram nos anos 1940 dado um período de seca e fome
nas referidas ilhas, chegando até aos que foram enviados a Angola após a eclosão da luta
anticolonial em 1961 como quadros da administração (CARDOSO, 2015).
Vale ainda destacar que Mario Antônio de Oliveira, além de seus escritos sobre a
crioulidade para veículos como o Boletim Cultural da Câmara Municipal de Luanda, foi
também um poeta muitas vezes premiado, que fez parte das células iniciais da luta
clandestina pela independência de Angola. Era um partidário da autonomia angolana,
antes de ir para Lisboa estudar e assumir uma perspectiva analítica amparada nos ideais
lusotropicalistas de Gilberto Freyre. 178
Os angolanos do Canto Livre de Angola voltariam ao Brasil nos eventos que foram
chamados de Kizombas, como se verá a seguir.

Cf. União dos escritores Angolanos. Disponível em https://www.ueangola.com/bio‐quem/item/828‐


178

m%C3%A1rio‐ant%C3%B3nio. Acesso em 30/11/2019 às 15 h 00 min.

214
3. 8 Das Kizombas à Kizomba – Festa da Raça.

Figura 27 - Inauguração da estátua de Zumbi dos Palmares no Rio de Janeiro em Novembro de 1986. A
legenda original diz: "na plateia, brasileiros e diplomatas africanos homenagearam o herói”. Fonte Revista
Manchete.

Em 1984 ocorre na cidade do Rio de Janeiro o Kizombas – Encontro Internacional


de Artes Negras, com apresentações no sambódromo e no Pavilhão de São Cristóvão. O
evento reúne artistas e músicos negros de África do Sul, Angola, Cabo Verde, Congo,
Cuba, Estados Unidos Nigéria, Guiana Francesa, Moçambique, entre outros. O encontro
consistiu também de uma seção gastronômica e exposições de arte e artesanato, bem
como uma parte dedicada a sessões religiosas. Quanto aos artistas brasileiros, fizeram
parte das apresentações Gilberto Gil, Zezé Mota, Moraes Moreira, Sivuca, Elba Ramalho,
Luís Melodia, Agepê, Paulinho da Viola, Nei Lopes, Rildo Hora, Dafé, João Bosco,
Bebeto, D. Ivone Lara, entre outros. A organização ficou a cargo da produtora de
Martinho da Vila e teve o apoio acadêmico da Universidade Cândido Mendes, da empresa
de aviação Varig, das secretarias de cultura do município e do Estado, tendo, inclusive
seus ingressos vendidos a preços populares nas agências do BANERJ (J.do Brasil,
14/11/1984, B, p. 2). A cobertura da imprensa indica que o evento nasceu de uma
articulação entre o, vice-governador e secretário de educação e cultura, Darcy Ribeiro e

215
Martinho da Vila (J.do Brasil, 16/11/1984, B, p. 8). Contou também com a colaboração
na concepção e na produção de outros ativistas e artistas negros como Zózimo Bulbul,
Haroldo Costa, Jorge Coutinho e Milton Gonçalves. À época integrante do IPCN
(Instituto de Pesquisa de Culturas Negras) Gonçalves deu a seguinte declaração:

Fazer uma grande festa com todo o povo africano foi sempre um dos maiores
desejos de minha vó. Nesta festa, ela iria bater ganzá e conversar muito em
quimbundo e em iorubá, crioulo, gege, nagô, ketu, enfim, falaria em todos os
dialetos e de todo jeito africano (...). Será uma grande festa onde vários países
africanos e representantes da comunidade negra do mundo estarão presentes
(ÚLTIMA HORA, 28/09/1974, p. 3).

Destacam-se algumas declarações dos artistas e autoridades africanas durante o


evento. Jorge Macedo, que liderou a comitiva angolana, ressaltou a relação histórica e
cultural entre Angola e Brasil: “A África deu muita contribuição a música brasileira.
Viemos aqui para reforçar esses laços”. Já o representante da comitiva dos artistas sul-
africanos no exílio assinalou que veio para “mobilizar o povo brasileiro (...) contra o
regime racista da África do Sul onde, entre outras coisas, o negro não pode votar” (J.do
Brasil, 17/11/1984, p. 14).
A segunda edição do Kizomba acontece em 1986 dessa vez tendo a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro como sua principal sede, com exceção do dia 20 de novembro,
quando os shows ocorrem em palco montado próximo a estátua de Zumbi dos Palmares.
A concepção, produção e direção artísticas ficaram a cargo de Martinho da Vila, Haroldo
Costa, Jorge Coutinho, Milton Gonçalves, entre outros. Entre os participantes
estrangeiros destacam-se a comitiva artístico-cultural sul-africana,179 O Canto Livre de
Angola180 e o grupo de gospel estadunidense The Ebony Ecumenical Ensemble.
Representando o Brasil, destacam-se o próprio Martinho da Vila, Leci Brandão e Elza
Soares.
A estátua de Zumbi dos Palmares na Avenida Presidente Vargas havia sido
inaugurada poucos dias antes da abertura do Kizomba em 09/11/1986 tendo a presença de
governador Leonel Brizola e de seu vice Darcy Ribeiro, que estava em campanha para

179 Destaque-se que a comitiva não tinha ligações com o governo que estava no poder na África do Sul, à
época o violento governo do apartheid conduzido por P.W. Botha, de modo que os artistas e militantes que
se apresentaram eram ligados à oposição, qual seja, aos movimentos que aglutinavam em torno do
Congresso Nacional Africano, partido-movimento de Nelson Mandela.
180
As matérias jornalísticas não descrevem os nomes que fizeram parte da delegação angolana que recebeu
novamente o nome de O Canto Livre de Angola. Infere-se que alguns dos artistas da comitiva anterior
estejam nesse grupo.

216
suceder Brizola no governo. A estátua é uma réplica de uma peça de arte nigeriana
exposta no museu de Londres. Como aponta Mariza Soares (1999, p. 128): “na falta de
um verdadeiro Zumbi, o vice-governador opta por um verdadeiro africano, e, mais que
isso, na África, por sua melhor arte”. A revista Manchete (Nº 1805, nov. /1986, p. 151)
destacou o discurso de Ribeiro sobre a escolha do modelo para a estátua: “retrata com
certeza a dignidade e a beleza da face negra”,
Ainda de acordo com Soares (1999, p. 119), o PDT (Partido Democrático
Trabalhista) de Leonel Brizola, a época governador do Estado do Rio de Janeiro, buscou
traçar alianças com ativistas negros e com o movimento negro. Eram aliados de Brizola
no período o notório militante e deputado Abdias Nascimento, o deputado estadual José
Miguel – autor do projeto de lei que possibilitou a criação da estátua de Zumbi – e o
secretário de habitação Carlos Alberto de Oliveira (CAÓ), autor da lei 7.716/89 que pune
crimes de racismo. Fez parte do projeto pedetista uma série de ações para a população
negra do Rio de Janeiro. Pelas falas e discursos dos atores sociais da época, Soares (1999,
p. 120) identifica três apropriações do “discurso da negritude”: o primeiro, ligado à festa
representado na construção da passarela do Samba (a Apoteose); o segundo, as raízes de
um passado africano e a memória da escravidão, configurado pela ereção da estátua de
Zumbi; e a dos direitos, simbolizada na criação da escola Tia Ciata na avenida presidente
Vargas com foco no atendimento a “meninos de rua”.
Cabe ressaltar que a relação do PDT com o movimento negro ou com ativistas
negros foi de avanços e recuos, consensos e dissensos, exemplo disso foi a ausência de
algumas lideranças negras importantes na inauguração da estátua de Zumbi em 1986
(SOARES, 1999, p. 130). Alguns desses dissensos foram explorados pela imprensa tais
como O Globo (10/11/1986, p.12) que deu destaque a fala do militante negro Ubirajara
Silva afirmando que o projeto original previa uma estátua de corpo inteiro e teria sido
tocado às pressas porque se aproximava a data das eleições para o governo estadual e para
a presidência. A revista Manchete (Nº 1805, nov. /1986, p. 151) relata que em meio ao
som de centenas de atabaques se ouvia um coro de “Um, dois, três, quatro, cinco mil...
queremos Brizola presidente do Brasil”. A notícia destaca ainda que Brizola e Darcy
mobilizaram as equipes das secretarias estaduais para impedir que faixas do PDT fossem
postas no monumento, na intenção de afastar a acusação de “exploração eleitoreira” do
evento.
É preciso destacar também que Brizola antes de sua eleição para governador já
mantinha uma relação com militantes afro-brasileiros e africanos. Em 1980, o líder

217
pedetista liderou uma comitiva de seu partido objetivando estabelecer relações com o
MPLA e a FRELIMO. Em Angola tiveram audiência com Lúcio Lara e Lopo Nascimento,
entre outros. Já em Moçambique foram recebidos pelo presidente Samora Machel (CTM
nº 28, 1980, p.92 e 93).
Os eventos Kizombas, bem como seus antecessores como o Canto Livre de Angola
e o Projeto Kalunga, foram pontos altos na relação cultural-política Brasil-Angola, que
ganha prosseguimento com desfile Kizomba (1988) da Vila Isabel, como se verá nas
próximas linhas.

Considerações finais:

O Brasil, a cultura, a literatura e sobretudo, a música brasileira foram paradigmas


importantes para os angolanos de vários matizes ideológicos no período em questão.
Acerca das supostas derivações ou filiações entre o samba e o semba, é preciso
demarcar que o samba que se hegemonizou como “nacional” no Brasil foi o produzido
no Rio de Janeiro. Como assinala Luiz Antônio Simas, “o samba do Rio de Janeiro nasceu
no Rio de Janeiro e o samba da Bahia nasceu na Bahia”.181 Ao que pontua Simas,
acrescento: o samba não veio de Angola. O samba carioca é um gênero produzido por
descendentes de africanos, alguns oriundos de famílias já estabelecidas no Rio de Janeiro
a algumas gerações, alguns outros que migaram da Bahia ou que são descendentes de
baianos, outros que migraram do vale do paraíba para a capital, sendo descendentes da
última geração de africanos escravizados. Esse gênero musical foi engendrado baseado
em elementos, princípios e em uma gramática africana (MINTZ & PRICE, 2003),
dialogou com outros gêneros musicais que circulavam pela cosmopolita cidade do Rio de
Janeiro como a valsa, a polca, a marcha, e alguns gêneros também afro-diaspóricos como,
o jazz e o foxtrot e foi ganhando a forma que se consolidou ao longo da década de 1930.
Assim o samba, que é entendido como o gênero-símbolo da brasilidade é afro-brasileiro,
o que quer dizer que tem inegavelmente heranças africanas, mas que seu processo de
engendramento é inerente ao processo histórico brasileiro.
O semba passa por um processo similar: gestado numa capital também
cosmopolita, Luanda, esse gênero “convivia” nos clubes, palcos e cinemas com a rumba

181
A declaração de Luiz Antônio Simas pode ser acessada no link a seguir
https://www.youtube.com/watch?v=a6RcxOpxDP0

218
cubana, o samba brasileiro e a rumba congolesa. Os sujeitos considerados precursores do
semba eram ávidos consumidores e intérpretes de música do Brasil, não só, mas
principalmente de samba. Reuniam-se em seus quintais para tocar e cantar canções de
Pixinguinha, Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Ary Barroso, entre outros (REGO,
2014, p. 96), e, posteriormente, formaram grupos e executavam estas mesmas canções
pelos palcos, clubes e cineteatros da cidade.
Ainda sobre “parentescos” entre os gêneros musicais, merecem destaque duas
considerações feitas por músicos dos dois lados do Atlântico: o angolano Paulo Flores
diz que o semba “ritmicamente é um quatro por quatro que serve um pouco de matriz a
muitos ritmos como a capoeira, o baião”,182 e, o brasileiro Martinho da Vila, que conviveu
de maneira muito próxima com o semba e com os sembistas, que afirmou que semba “é
parente distante do principal ritmo do Brasil, mas é irmão mais velho dos sons da América
Central”183 como o calipso.
Contudo, mais importante que as formas musicais e melódicas são os significados
políticos que performar ou entrar em contato com estes gêneros assumiam para estes
sujeitos. Nas “rotas” e “raízes” do Atlântico Negro (GILROY, 2001), os dois gêneros se
cruzaram e se entrecruzaram em momentos diferentes de suas respectivas histórias, mas
as reverberações de suas ondas definitivamente se fizeram sentir nos dois lados do
oceano.
Como vêm sendo demonstrado, Liceu Vieira e seus parceiros musicais,
considerados os precursores do semba, no seu contato com o samba brasileiro, passaram
a valorizar mais as práticas musicais da sua terra. Se aproximar do samba os distanciava
dos referenciais portugueses e os aproximavam dos seus referenciais africanos. Esta
mesma geração que cantava e tocava samba, começou a exibir de maneira mais clara os
atributos das culturas nativas de Angola recolhendo e rearranjando temas musicais
populares dos povos locais e cantando nessas respectivas línguas. Ao fazê-lo,
engendraram o ritmo-símbolo da identidade nacional angolana: o semba. Um passo
importantíssimo para a soberania cultural e condição preponderante para a autonomia
política (MOORMAN, 2008).

182
https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/as-pessoas-continuam-a-acreditar-que-e-possivel-fazer-um-
pais-melhor/. Acesso em 30/08/2021 às 14:00.
183
https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/228-a-influ%C3%AAncia-africana-na-
m%C3%BAsica-popular. Acesso em 30/08/2021 às 14 h 30 min.

219
É possível inferir que as realidades dos morros e favelas cariocas presentes no
samba e na MPB, bem como as temáticas cantadas pelos gêneros do nordeste que aludiam
à pobreza e à migração pudessem soar semelhantes às questões locais para os angolanos
nacionalistas. Gonçalves (2020) pontua que as canções de compositores renomados da
Música Popular Brasileira como Vinicius de Moraes e Chico Buarque chamavam bastante
a atenção dos intelectuais e escritores angolanos. Também para esse grupo, o “irmão mais
velho” do outro lado do Atlântico teve sucesso porque “se libertou primeiro” e porque
engendrou uma cultura e uma identidade própria, distinta da de Portugal. Ainda para esses
que buscavam construir a nação angolana, a imagem alegre e festiva da música brasileira
– em oposição à imagem melancólica, saudosa e triste da música lusitana – remetia às
heranças africanas, talvez angolanas, do Brasil.
A música romântica brasileira e as canções com temáticas tristes relacionadas ao
universo lírico-amoroso faziam sucesso tanto para o grupo dos “colonos” quanto para os
“angolanos nacionalistas”. Quanto à estética e a sonoridade, tal fato se deve a circulação
desde a década de 1940 dos gêneros latinos e caribenhos pela costa ocidental do
continente africano. Especificamente em relação ao segundo grupo, mesmo quando
consumiam gêneros musicais e canções que possuíam temáticas lamentosas, os angolanos
nacionalistas o faziam rejeitando a chave portuguesa do fado e adotando uma chave latina,
que em maior ou menor medida tinha aspectos afro-americanos: ouviam e dançavam
tangos, boleros e as músicas românticas brasileiras. Vale também acrescentar que a
circulação desses cantores populares em Angola se deve ao seu grande sucesso comercial
no Brasil, e, como já abordado, os angolanos sempre estiveram atentos à música brasileira
no geral.
Para os que se identificavam como “colonos” e, portanto, entendiam Angola como
uma província ultramarina de Portugal, o Brasil seria a “prova” de que a ação portuguesa
nos trópicos tinha logrado êxito: acreditavam que o “irmão brasileiro” via a si mesmo e
era visto por outros povos como um exemplo de tolerância e convivência harmoniosa
entre as raças. Em todo caso, hoje se sabe que tal crença era um mito. No âmbito músico-
cultural, esse grupo entendia o samba e o carnaval também como um produto da suposta
“síntese luso-africana” que só foi possível, dentro da – equivocada – perspectiva
lusotropical, dada à suposta ação portuguesa benevolente e integradora nos trópicos e suas
características. Em decorrência, uma estratégia recorrente do Estado colonial português
era se aproximar do Brasil e garantir a sua aliança no plano diplomático. Eventualmente
a cultura e a música brasileira eram referenciais acionados em conjunto com as táticas no

220
campo das relações internacionais, como na ocasião em que a Marinha brasileira foi a
Luanda realizar exercícios militares em fevereiro de 1967. No mesmo período, Gilberto
Gil se apresentou em Angola por cerca de 10 dias “a convite do Itamaraty” (Diário de
Notícias, 04/02/1967, 1ª sessão, p.6).
Um aspecto importante no consumo e circulação da música brasileira em Angola,
que perpassava tanto as canções românticas de compasso mais lento quanto as canções
de andamento mais rápido e com temáticas diversas, eram as suas apropriações quanto ao
ato de dançar e às sociabilidades decorrentes. “Era muito dançável”, declarou Jonuel
Gonçalves se referindo a música brasileira e relata, ainda, que um de seus companheiros
da luta nacionalista, tinha o apelido de “Baião” porque era um exímio dançarino
184

(GONÇALVES, 2020). A perícia e a performance no ato de dançar eram “critério de


valorização social” (GOMES, 2021, p. 198).
Após a independência angolana em 1975, o Brasil se torna um parceiro
diplomático e de negócios essencial ao governo do MPLA. As exportações brasileiras de
produtos e serviços contribuíram para o enfrentamento dos desafios do pós-
independência. Ao mesmo tempo, o MPLA ao final da segunda metade dos anos 1970
impulsiona uma política cultural que busca atender às preferências musicais e artísticas
de parcelas significativas do povo trazendo artistas estrangeiros que faziam sucesso em
Angola, como a banda antilhana Kassav e os diversos brasileiros que lá estiveram no
início da década de 1980, como os que tinham ligação com o projeto Kalunga e os que
fizeram excursões individuais como Alcione e Beth Carvalho.
Além disso, buscar apoios, intercâmbios e alianças no plano internacional já era
uma estratégia corrente do MPLA desde os tempos da luta anticolonial. A diferença é que
as alianças naquele período estavam sendo estabelecidas com base em intercâmbios
culturais, mas que também proviam dividendos políticos. Nesse sentido, eventualmente
são acionados pelos angolanos os laços históricos entre Angola e Brasil, mobilizando a
“retórica da irmandade”, como os apelos realizados pelo ministro angolano do comércio,
Carlos Van-Duném em uma solenidade no Itamaraty quando pede ao governo brasileiro:
“olhe para Angola como um país irmão” porque “foi vítima da ferocidade do mesmo
colonizador” (J. do Brasil, 04/12/1979, p. 6).
Parece evidente que o movimento de intercâmbio cultural e político ensejado por
intelectuais e artistas brasileiros, artistas e dirigentes governamentais angolanos iniciado

184
Baião era o apelido de Fernando Teixeira, que depois integrou cargos de primeiro escalão no governo
angolano no período pós independência.

221
pelo Projeto Kalunga, como vêm sendo abordado, é um fluxo contínuo ao longo dos anos
1980, com o Canto Livre de Angola de 1983 e com os Kizombas de 1984 e 1986. Se para
o primeiro grande evento, o protagonismo e a liderança couberam a Chico Buarque, para
o segundo e terceiro evento, Martinho da Vila se torna a peça fundamental e o ponto de
contato com Angola, sendo referido diversas vezes nos jornais e nas declarações de
diversos atores socais correlacionados a esse processo como um “embaixador angolano
informal no Brasil”. Para além de sua intervenção e coordenação direta da comitiva
angolana de artistas que esteve no Brasil em 1983, esteve indiretamente na organização
de outra comitiva, a de 1984, quando delegou para sua esposa Lícia Maria, A Ruça, a
direção artística dessa delegação. Além disso, continuou, com a parceria de Ruça, ao
longo dos anos subsequentes realizando outros eventos em Angola com sua participação
ou indicando os artistas que fariam parte das comitivas.
O fluxo de brasileiros em Angola para trabalhar na área da construção civil,
especialmente os vinculados nesse caso a construtora Odebrecht, foi acompanhado de um
fluxo crescente de africanos, sobretudo de angolanos, cabo-verdianos, são-tomenses e
guineenses para o Brasil. Os jornais brasileiros chamam a atenção para uma constante
corrente de estudantes africanos – com bolsas do Itamaraty – que se estabelecem
temporariamente no Rio de Janeiro buscando se capacitar para compor os quadros
administrativos dos jovens governos das nascentes nações africanas independentes.
Também se destaca, ainda de acordo com a imprensa do Brasil, uma grande
movimentação de turistas africanos, alguns bastante interessados em adquirir
significativas quantidades de roupas, sapatos e aparelhos eletroeletrônicos de pequeno
porte (J. do Brasil, 07/12/1986, pp.39-40).
Esse intercâmbio de pessoas, gêneros musicais e produtos culturais entre o
continente africano e o Brasil na década de 1980, sobretudo no Rio de Janeiro, encontrava
aqui uma “embaixada informal” no restaurante “D’África”, localizado na Lapa e dirigido
por João dos Santos, brasileiro que viveu em Angola. Na referida casa comercial serviam-
se pratos angolanos e marfinenses como muamba de galinha e peixe à cote d’ivoire e
sediava apresentações de grupos musicais africanos como Ngoleiros do Ritmo, quando de
sua estadia no Brasil para participação no Kizombas de 1986 e de grupos afro-brasileiros
como o Vissungo que se inspiravam diretamente em gêneros africanos contemporâneos
(J. do Brasil, 07/12/1986, pp.39-40)
Também circulava pelo D’África, o grupo angolano Afra Sound Stars. Membros
do referido conjunto tiveram uma parceria com o angolano radicado no Brasil, Abel

222
Dueré. Em suas entrevistas nos jornais e revistas brasileiros, o artista comenta que teve a
inspiração de “retomar” as suas “raízes africanas” após assistir os grupos baianos de axé
e samba-reggae durante o carnaval. Gravou seu primeiro trabalho, Crioulinha, pela RCA
em 1989, que foi descrito pela crítica musical como um misto de reggae, merengue e
“kilapanga, ritmo, folclórico angolano” (O GLOBO, 05/07/89, S. Caderno, p.3). Dueré
conta que saiu de Angola em meados dos anos 1970 “fugindo dos conflitos da guerra
civil”, passou por Portugal e depois se fixou no Brasil por volta de 1978 e que trabalhou
nos ramos de construção e decoração, antes de se dedicar de maneira mais sistemática à
música (O Globo, 02/10/1989, p.24).
Em 1987, Martinho da Vila, acompanhado de Ruça e seus filhos, retorna a Angola
liderando uma comitiva de sambistas da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel (O
GLOBO, 17/06/1987, p. 13). Seu intenso diálogo com os angolanos e outros africanos de
outras nacionalidades está intimamente relacionado à sua atuação enquanto músico-
militante no Brasil. Seus posicionamentos e sua mobilização contra o apartheid sul-
africano são bem conhecidos, chegando a interceder diretamente para que Roberto Carlos
recusasse convites de se apresentar na África do Sul (O GLOBO, 10/03/1988, p.30).185
Martinho, em entrevista à Silva (2014, p. 63-64), afirma que foi por conta de suas
conversações com o escritor angolano Manoel Rui, acerca dos projetos de divulgação da
cultura angolana no Brasil, que foi desenhando em parceria com sua esposa à época, Ruça,
o samba-enredo Kizomba – A festa da Raça, conforme conta na sinopse do enredo de
1988 redigida por Martinho da Vila:

Foram convidadas personalidades da África do Sul e de Angola, países estes que


participarão do evento a ser realizado em novembro de 1988. Grupos folclóricos
brasileiros de outros estados que participaram das Kizombas, também estarão
representados. (...) Paulo Brazão, um dos fundadores da escola, será o Abre-Alas,
representando um SOBA, o grande chefe e o desfile encerrar-se-á (...)logo depois
do quadro que reverencia os grandes líderes tendo à frente a Ala Antiapartheid
(conforme citado por SILVA, 2014, p.59).

185
A matéria do Globo trata da repercussão de um amistoso a ser realizado por jogadores de futebol
brasileiros na África do Sul liderado por Afonsinho. Sobre o evento, Ruça comenta: “não posso entender.
Ele é muito politizado, tem participações cm grandes causas sociais e de repente, se junta a um grupo que
se propõe a ganhar um dinheiro que certamente terá marcas do sangue derramado pelo negro sul-africano”,
se referindo a Afonsinho. Também comenta que “Roberto Carlos recebeu uma proposta milionária para
fazer um show em Johanesburgo”, mas foi convencido a não aceitar por intervenção de Martinho (O
GLOBO, 10/03/1988, p. 30).

223
Como descrito, o histórico desfile da Vila Isabel em 1988 contou com a
participação de militantes e artistas angolanos, moçambicanos, namibianos e sul-
africanos – alguns membros da SWAPO186 e CNA187 – como componentes, espalhados,
pelas alas para garantir o anonimato e a segurança.
A década de 1980 foi um momento singular em que um pouco mais das culturas
africanas, sobretudo da angolana, foi difundida pelo Brasil, e isso fez parte de um amplo
processo de mobilização dos movimentos negros brasileiros e de iniciativas individuais
de artistas e músicos. Esse fluxo não teve a mesma dimensão que a música brasileira em
Angola, mas plantou a semente. Conforme demonstrado anteriormente, os angolanos
conhecem, consomem, apreciam e se espelham na música brasileira dos anos 1940 e
1950, época dos sambas-canções e baiões, dos anos 1960 e 1970, período dos diversos
tipos de samba, da bossa nova, da música engajada e da consolidação da MPB. Já os
brasileiros pouco ou nada conheciam sobre a música angolana ou sobre a realidade
daquele país. Em todo caso, os anos 1980 foram um período especial em que um pouco
dessa cultura musical circulou de maneira mais evidente no Brasil, sobretudo no Rio de
Janeiro, em paralelo, e, em consonância com o “crescendo” de mobilizações dos
movimentos negros por conta do centenário da abolição da escravidão, reforçando os
laços de pertença e o sentido de coletividade desse grupo ainda com seus respectivos
aliados não-negros da classe artística, do mundo da política oficial e da intelectualidade.
Já para o final da década de 1980 e adentrando a de 1990, percebe-se que as
relações do Brasil com os países africanos, sobretudo com Angola, do ponto de vista
cultural, ganham certo aprofundamento e prosseguimento a partir das iniciativas
individuais e coletivas de artistas e de alguns atores governamentais. Martinho da Vila
permanece como um importante ponto de contato entre Brasil e Angola. Os constantes
contatos de Martinho e Ruça serviram de inspiração para alguns dos temas relacionados
ao histórico samba-enredo Kizomba – Festa da Raça de 1988. A letra do referido samba
faz referência direta à Angola já em seu título, “kizomba”, que quer dizer “festa” e em
alguns de seus versos – “vem a lua de Luanda para iluminar a rua/ nossa sede é nossa
sede/ de que o apartheid se destrua” – remetendo as agressões sul-africanas a Namíbia e

186
Organização do povo do sudoeste africano (em inglês: South West Africa People's Organisation),
movimento-partido independentista da Namíbia.
187
Congresso Nacional Africano, movimento-partido em defesa dos direitos políticos dos negros sul-
africanos e contra o apartheid.

224
ao sul do território angolano que vinham ocorrendo ao longo de todo os anos 1980 e que
continuavam a ocorrer no de 1988.188
Embora não faça parte do recorte temporal delimitado para essa pesquisa, os
intercâmbios culturais e artísticos permanecem em seu fluxo constante, embora talvez um
pouco menos caudaloso que entre as décadas de 1950 a 1980, e fazendo caminhos através
de outras “correntes”. A partir do final da década de 1990, O rapper Gabriel, o Pensador
fez bastante sucesso e influenciou uma geração de jovens músicos angolanos do chamado
“rap de intervenção social”. Em uma outra “corrente” o fluxo Brasil-Angola permanece
com os cantores românticos nas décadas de 1990 e 2000, 2010: artistas como Roberta
Miranda, seguida pelos artistas do “novo sertanejo”.
No sentido inverso, de Angola para o Brasil, nos anos 2000 e, sobretudo, 2010, a
kizomba, dança angolana, faz sucesso com a abertura de diversas academias de dança no
lado de cá do Atlântico. Também é da década de 2010 que o kuduro passa a circular pelo
Brasil por conta de sua inclusão na abertura da telenovela Avenida Brasil.
Retornando à década de 1980, mais especificamente em 1988, quando eu tinha
oito anos de idade, a Vila Isabel de Martinho fez um desfile histórico cuja repercussão
atravessou o Atlântico. Não tenho memória sobre o desfile, nem memória “transmitida”
da família. Nos carnavais da década de 1980, em geral, minha família dava um jeito de
se apertar na casa de meu avô paterno, Seu Waldemar pescador, em Araruama. A rotina
das crianças era passar o dia na lagoa e dormir cedo. Os adultos provavelmente passavam
a noite conversando e jogando cartas. Em finais dos anos 2000, durante a graduação,
enquanto escrevia planos de aula que relacionavam História e música, é que me dou conta
da importância desse samba-enredo, campeão do Carnaval de 1988, ano do centenário da
abolição. Certamente eu já conhecia Kizomba de alguma “farra de quintal”, muito
provavelmente, as que aconteciam na casa do meu cunhado, sambista e compositor da
G.R.E.S Unidos do Porto da Pedra, mas só nesse período, no final da década de 2000, é
que analiso cuidadosamente estrofe por estrofe, arquitetando de que modo trabalhar esse
importante documento histórico e estético com meus alunos do ensino fundamental e

188Matéria do Globo de Maio de 1988 sobre os ataques sul-africanos e da UNITA ao sul de Angola: “a
conturbada região sul, onde os guerrilheiros da Unita, apoiados por Pretória, exigem a presença ali de uma
formidável força militar [angolana], integrada também por tropas cubanas”. (...) Por todos os lados da
estrada, grupos de soldados das Forças Armadas para a Libertação de Angola (Fapla) surgem em meio a
camuflagens enquanto outros ocupam postos em suas trincheiras. A impressão é a de que se preparam para
algo como o que acontecera na véspera, dia 12 de maio passado, quando pelo menos 150 obuses de longo
alcance foram lançados na região pelas forças sul-africanas estacionadas a 50 quilômetros de Cuíto
Canavale.

225
médio. Atualmente, no final do ano de 2021, e depois dessa jornada navegando na
Kalunga, reafirmo a minha certeza da importância de Kizomba enquanto símbolo de um
momento especial na história das relações musicais e políticas entre Angola e Brasil...

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO/PIDE DGS.

IAN/TT, PIDE/DGS, Del.A. PInf., Proc. 15.12-A/2 - Tribuna dos Musseques.


IAN/TT, PIDE/DGS, Dinf Ia,Proc. 15.12.C, NT. 2085 - Bairro Operário.
IAN/TT/PIDE/DC/001/197911 – Grupo Nzaji.

ENTREVISTAS (REALIZADAS PELO AUTOR E POR OUTROS


PESQUISADORES) E DIÁLOGOS A DISTÂNCIA:

Bonga. (2015). Bonga (M. Kushic) [Comunicação pessoal].

Dias, C. (2015). Carlitos Vieira Dias (M. Kushic) [Comunicação pessoal].

Fernandes, C. (2020, setembro 11). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de


Mensagens].

Gonçalves, J. (2020, setembro 11). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de


Mensagens].

Lara, P. (2020, setembro 5). [Entrevista de A. Reis; E-mail].

Mansur, F. (2018, agosto 29). [Comunicação pessoal].

Mindelis, N. (2021, fevereiro 3). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de


Mensagens].

Melo, J. (2021, maio 31). [Entrevista de A. Reis; Videochamada].

226
Serrano, C. (2020, setembro 9). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de Mensagens].

Videira, A. (2020, outubro 12). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de Mensagens].

Tupy, D. (2017, março 24). [Comunicação pessoal].

LITERATURA:
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Lcya, 2013.
PEPETELA. Geração da Utopia. São Paulo: Lcya, 2013.
PEPETELA. Predadores. Rio dc Janeiro: Lingua Geral, 2008.
VIEIRA, José Luandino. A vida verdadeira de Domingos Xavier. 6a edição. Lisboa:
Edições 70 / União dos Escritores Angolanos, 1979.
Xitu, U. (2019). Manana: Uanhenga Xitu (Edição Crítica). Paco e Littera.

PERIÓDICOS:

A Província de Angola. Luanda. 1949,1961, 1962, 1963, 1959, 1966 e 1972. Hemeroteca
Municipal de Lisboa.
A Província de Angola. Luanda. 1974 e 1975. Acervo pessoal de Marcelo Bittencourt.
Hemeroteca Municipal de Lisboa.
ABC Diário de Angola. Luanda. 1963, 1966, 1967, 1972. Hemeroteca Municipal de
Lisboa.
ABC Diário de Angola. Luanda. 1967, 1968 e 1969. Acervo pessoal de Marcelo
Bittencourt.
Cultura: jornal de artes e letras. 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019. Acervo
pessoal de Marcelo Bittencourt.
Diário de Luanda. Luanda. 1961, 1962, 1963, 1964, 1965, 1966, 1967, 1970, 1971, 1972.
Hemeroteca Municipal de Lisboa.
O Comércio. Luanda. 1961. Acervo pessoal de Marcelo Bittencourt.
Revista Notícia. 1966, 1970, 1972. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Revista Notícia. Luanda. 1974 e 1975. Acervo pessoal de Marcelo Bittencourt.
Revista Semana Ilustrada. Luanda, 1970 e 1971. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Revista Semana Ilustrada. Luanda, 1969 e 1970. Acervo pessoal de Marcelo Bittencourt.
Tribuna dos Musseques. 1967 e 1968. Acervo pessoal de Marcelo Bittencourt

227
Diário de Notícias. 1980, 1983, 1984. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Avante. 1980, 1983 e 1984. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
O Globo (acervo digital on line). 1961-2000.
Veja (acervo digital on line). 1961-2000.
Diário de Notícias. 1967. Hemeroteca Digital Brasileira.
Jornal do Brasil. 1961-1988. Hemeroteca Digital Brasileira.
Revista Manchete. 1967 e 1980. Hemeroteca Digital Brasileira.
Tribuna da Imprensa. 1961-1988. Hemeroteca Digital Brasileira.
Última Hora. 1961-1988. Hemeroteca Digital Brasileira.
O Pasquim. 1980, 1981, 1983, 1984. Associação Brasileira de Imprensa
Jornal O Movimento. 1980, 1981, 1983 e 1984. Associação Brasileira de Imprensa
Cadernos de Terceiro Mundo. 1980,1981, 1983 e 1984. Associação Brasileira de
Imprensa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Abreu, M. (2003). Cultura popular: Um conceito e várias histórias. In Ensino de História,


Conceitos, Temáticas e Metodologias. Casa de Palavra.

Akyeampong, E., & Ambler, C. (2002). Leisure in African history: An introduction. The
International Journal of African Historical Studies, 35(1), 1–16.

Alberti, V., & Pereira, A. A. (2007). Entrevista com José Maria Nunes Pereira. Revista
Estudos Históricos, 1(39), 121–156.

Alexandre, V. (1999). Prefácio. In C. Castelo (Org.), O modo português de estar no


mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961).
Afrontamento.

Alves, A. P. (2015). Angolano Segue em Frente: Um panorama do cenário musical urbano


de Angola entre as décadas de 1940 e 1970. Doutorado em História. Universidade
Federal Fluminense.

228
Ambler, C. (2003). Writing African leisure history. Leisure in urban Africa, 12–18. The
International journal of African historical studies, 35(1), 119-136.

Anderson, Benedict. (2006). Imagined communities: Reflections on the origin and spread
of nationalism. Verso books.

Antônio, J. (2010). O lendário Tio Liceu e Ngola Ritmos. [Documetário].


Mukixe/LXFilmes.

Antônio, N. D. (2013). Transição pela transação: Uma análise da democratização em


Angola [PhD Thesis]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Araújo, P. C. (2002). Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura
militar. Editora Record.

Baqueiro, F. (2019). Batalhas da cultura. In L. Sansone & C. Furtado (Orgs.), Lutas pela
memória em África (p. 93).

Barbosa, M. (2008). Por uma história cultural da imprensa brasileira. Lumina - Revista
do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora
/ UFJF, 2(Juho), 1–8.

Benedicto, R. (2010). Prefácio. In C. Moore (Org.), Karl Marx e Friedrich Engels frente
ao racismo e à escravidão. Sao Paulo: CENAFRO.

Bettencourt, J. de S. (1965). Subsídio para o Estudo Sociológico da população de Luanda.


Boletim do Instituto de Investigação Científica de Angola, I(2), 83–130.

Birmingham, D. (2002). Angola. In P. Chabal (Org.), A history of postcolonial Lusophone


Africa. Indiana University Press.

Bissio, B. (2015). Bandung, não alinhados e mídia: O papel da revista “Cadernos do


Terceiro Mundo” no diálogo sul-sul. Austral Revista Brasileira de Estratégia e Relações
Internacionais, 4(8), 21–42.

Bittencourt, M. (2002).“Estamos Juntos!” O MPLA e a luta anticolonial (1961-1974).


Luanda: [Doutorado em História Social]. Universidade Federal Fluminense.

229
____________ (2003). As relações Angola-Brasil: Referências e contatos. In R. Chaves,
T. Macêdo, & C. Secco (Orgs.), Brasil-África, como se o mundo fosse mentira (p. 79–
110). Imprensa Universitária Maputo.
_____________ (2010). Jogando no campo do inimigo: Futebol e luta política em
Angola. In V. A. de Melo, M. Bittencourt, & A. Nascimento (Orgs.), Mais do que um
jogo: O esporte no continente africano.
______________ (2017). O futebol nos musseques e nas empresas de Luanda (1950-
1960). Análise Social, 52(225), 874–893.

Bittencourt, M., & Melo, V. A. de. (2016). Esporte, economia e política: O automobilismo
em Angola (1957-1975). Topoi (Rio de Janeiro), 17, 196–222.

Bonga. (2015). Bonga (M. Kushic) [Comunicação pessoal].

Bosslet, J. (2017). Lazer em Luanda: O controlo do tempo livre dos trabalhadores ea


manutenção da ordem colonial (1961-1975). Análise Social, 52(225), 830–847.
__________ (2018). Tão português como eles. Africana Studia, 30.
__________ (2014). A Cidade e a Guerra: Relações de poder e subversão em São Paulo
de Assunção de Luanda (1961-1975).

Brasil, E. (2016). Carnavais Atlânticos: Cidadania e cultura negra no pós-abolição. Rio


de janeiro e Port-of-Spam (1838-1920) [Doutorado em História Social]. UFF.

Brichta, L. (2012). A bem da nação: Literatura, associativismo e educação no Brasil e


em Angola (1930-1961).

Burns, J. (2002). John Wayne on the Zambezi: Cinema, Empire, and the American
Western in British Central Africa. The International Journal of African Historical
Studies, 35(1), 103–117.

Butler, K. D. (2011). A nova negritude no Brasil: Movimentos pós-abolição no contexto


da diáspora africana. Experiências da emancipação: biografias, instituições e
movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 137–156.

Cahen, M. (2018). A mestiçagem colonialista ou a colonialidade de Gilberto Freyre na


colonialidade do Brasil. Portuguese Studies Review, 26(1), 299–349.

230
_________ . (2020). Do ultramar ao pós-colonial. Reflexões de um historiador sobre
Moçambique contemporâneo nos arquivos de Portugal e Moçambique. Práticas da
História. Journal on Theory, Historiography and Uses of the Past, 10, 249–267.

Cardão, M. (2013). A juventude pode ser alegre sem ser irreverente. O concurso Yé-Yé
de 1966-67 e o luso-tropicalismo banal. In N. Domingos & E. Peralta (Orgs.), Cidade e
império: Dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais (p. 319–360). Edições 70.

Cardoso, P. (2015, julho 20). Contratados, colonos e emigrantes cabo-verdianos. BUALA.


https://www.buala.org/pt/a-ler/contratados-colonos-e-emigrantes-cabo-verdianos.

Carneiro, J. (2011, setembro 8). Angolanos olham para o Brasil, mas brasileiros não
olham para Angola. BBC NW+NEWS Brasil.
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/09/110908_angola_entrevista_jc.

Carvalho, S. (1999). A identidade literária na literatura angolana (1975-1985). Cadernos


CESPUC de Pesquisa Série Ensaios, 5, 203–221.

Castelo, C. (1999). O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a


ideologia colonial portuguesa (1933-1961).
__________. (2011). Uma incursão no lusotropicalismo de Gilberto Freyre. Blogue de
História Lusófona, 6(1), 261–280.
__________. (2013). O luso-tropicalismo e o colonialismo português tardio. BUALA.
https://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo
___________. (2014). “ Novos Brasis” em África: Desenvolvimento e colonialismo
português tardio. Varia História, 30, 507–532.

Castro, M. B. (2016). Diário do Projeto Kalunga: Memórias e narrativas de uma missão


de músicos brasileiros na Guerra Civil de Angola. Textos Escolhidos de Cultura e Arte
Populares, I(13).

Certeau, M. de. (2018). A Invenção do cotidiano: As artes do fazer. Tradução Ephain


Alves. Petrópolis: Vozes.

Chabal, P. (2002). Lusophone africa in historical and comparative perspective. In P.


Chabal (Org.), A history of postcolonial Lusophone Africa. Indiana University Press.

231
Chaves, R. (2000). José Luandino Vieira: Consciência nacional e desassossego. Revista
de Letras, 77–98.
______________ (2005). O Brasil na cena literária dos países africanos de língua
portuguesa. Angola e Moçambique: Experiência Colonial e Territórios Literários, São
Paulo, Ateliê Editorial, 275-286.
_______________ (2019). Autobiografias em Moçambique: A escrita como monumento
(2001-2013). Revista de História (São Paulo).

Cooper, F. (2008). Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial na África. Anos


90, 15(27), 21–73.

Correa, S. M. de S., & Bittencourt, M. (2012). Africa e Brasil: Uma história de


afastamentos e aproximações. Métis: história & cultura, 10(19), Article 19.
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/1678

Cruz, H. de F., & Peixoto, M. do R. da C. (2007). Na oficina do Historiador. Revista


Projetos História.

Cunha, A. (2011). “Processo dos 50”: Memórias da luta clandestina pela independência
de Angola. Revista angolana de sociologia, 8, 87–96.

Cunha, M. C. P. (2015). Não tá sopa”: Sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890


a 1930. UNICAMP.

d’Almeida, L. (2014). Angola e o movimento revolucionário dos Capitães de Abril em


Portugal, de Manuel Pedro Pacavira. Uma obra importante de memórias para
compreender a queda do fascismo em Portugal e a «descolonização» de Angola.
Mulemba. Revista Angolana de Ciências Sociais, 4 (8), 555–561.

Da Vila, M. (1998). Kizombas, andanças e festanças. Record.

Dávila, J. (2010). Hotel trópico. Duke University Press.

De Alencastro, L. F. (2020). O trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul.


Companhia das Letras.

232
de Matos, P. F. (2009). Projectos coloniais e seus efeitos: O caso do trabalho de José
Redinha desenvolvido no Museu do Dundo. Poiésis-Revista do Programa de Pós-
Graduação em Educação, 2(4), 42–61.

Domingos, N., & Peralta, E. (2013). A cidade e o colonial: Introdução. Cidade e império:
dinâmicas coloniais e reconfigurações pós-coloniais, IX–L.

Ferreira, E. (1985). A lógica da consolidação da economia de mercado em Angola, 1930-


74. Análise Social, 83–110.

Ferreira, M., & Amado, J. (2006). Usos e abusos da história oral. Editora FGV.

Ferreira, R. (2006). “Ilhas Crioulas”: O significado plural da mestiçagem cultural na


África Atlântica. Revista de História, 155, 17–41.
__________. (2012). Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola and Brazil
during the era of the slave trade. Cambridge University Press.

Filho, P. P., & Lessa, A. C. M. (2007). O Itamaraty e a África: As origens da política


africana do Brasil. Revista Estudos Históricos, 1(39), 57–81.

Fléchet, A. (2009). Um mito exótico? A recepção crítica de Orfeu negro de Marcel Camus
(1959-2008). Significação: Revista de Cultura Audiovisual, 36(32), 43–62.

Fonseca, A. S. (2009). Angola, terra prometida: A vida que os portugueses deixaram.


Esfera dos Livros.

Fonseca, I. de A. (2014). A imprensa e o império na África Portuguesa, 1842 -1974.


Universidade de Lisboa Instituto de Ciências Sociais.

Freyre, G. (2015). Novo mundo nos trópicos. Global Editora e Distribuidora Ltda.

Garcia, R. (2016). Luanda, como ela era: 1960–1975. Lisboa Oficina do Livro.

Gilroy, P. (2001). O arlântico negro: Modernidade e dupla consciência. Editora 34.

Gomes, Â. de C. (2007). Cultura política e cultura histórica no Estado Novo. In M. Abreu,


R. Soihet, & R. Gontijo (Orgs.), Cultura política e leituras do passado: Historiografia e
ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira (p. 43–63).

233
Gomes, M. (2010). Cinema dos tempos que já lá vão... BUALA.
https://www.buala.org/pt/cidade/cinema-dos-tempos-que-ja-la-vao

Gomes, P. (2021). Lazer, Cultura Popular e Colonialismo em Luanda: sociabilidades e


resistências translocais numa história sobre música e automóveis (1957-1975), [Tese de
Doutorado], Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.

Gonçalves, I. (2014). STPtv—Entrevista a Bonga.

Guimarães, V. (2014). A passeata contra a guitarra e a “autêntica” música brasileira.


Identidades brasileiras: composições e recomposições, 145–173.

Henighan, S. (2009). The Cuban fulcrum and the search for a transatlantic revolutionary
culture in Angola, Mozambique and Chile, 1965–2008. Journal of Transatlantic Studies,
7(3), 233–248.

Heywood, L. M. (2002). Portuguese into African: The eighteenth-century central African


background to Atlantic creole cultures. Central Africans and cultural transformations in
the American diaspora, 91, 113.

Jesus, L. S. B. de. (2013). Imagens em Angola, imagens da memória: Cinemas, marcas e


descobertas (tempos das lutas anticoloniais, tempos das independências), [Tese de
Doutorado], Programa de Pós Graduação em História, Universidade de Brasílias.

Kuschick, M. B. (2016). Kotas, mamás, mais velhos, pais grandes do semba: A música
angolana nas ondas sonoras do atlântico negro [ Tese de Doutorado], Programa de Pós-
Graduação em Antropologia, Universidade de Campinas.

Lamarão, L. Q. (2008). As muitas histórias da MPB: As ideias de José Ramos Tinhorão.


Lara, P. (2020, setembro 5). [Entrevista de A. Reis; Email].

Lemos, Y. A. A. de. (2019). Os cinemas em Angola nas décadas de 60 e 70 do séc. XX:


De um passado para um futuro [Dissertação de Mestrado]. Mestrado Integrado em
Arquitetura. Universidade de Lusíada.

Lima, V. de S. (2015). Uma luta de todos: O Movimento Afro-Brasileiro Pró-Libertação


de Angola (MABLA) (1961 a 1974) e a campanha de apoio à autonomia dos povos
africanos [Comunicação em congresso].

234
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439866536_ARQUIVO_Umalutade
todos.pdf

Lopes, F. (2013). Bonga Kwenda: Um combatente angolano da liberdade africana.


Harmattan Italia.

Lopes, N. (2014). Enciclopédia brasileira da diáspora africana. Selo Negro Edições.

Lourenço, A. (2018). Marcas culturais da telenovela brasileira nos mercados de Luanda.


[Dissertação de Mestrado]. Programa Strictu Sensu em Sensu, Universidade Católica de
Brasília.

Macêdo, T. C. de. (2008). A presença da literatura brasileira na formação dos sistemas


literários dos países africanos de língua portuguesa. Via Atlântica, 13, 123–152.
_______________ . (2020). O “romance português de retornados”: a viagem de retorno
ao império colonial português. Revista Mulemba, 12(22), 115–126.

Macgano, L. (2009). Fragmentos de uma imaginação nacional. Revista Brasileira de


Ciências Sociais:, 24, 17–35.

Maciel, L. A. (2007). Imprensa, história e memória: Da unicidade do passado às outras


histórias. Patrimônio e Memória, 5(2), 58–81.

Marques, I. L. G. (2012). Memórias de um golpe: O 27 de maio de 1977 em Angola.


Niterói, Universidade Federal Fluminense.

Marzano, A. (2016a). Cruzes e Festiços: Identidades e trocas culturais nas práticas


fúnebres em Angola. Varia História, 32.
___________. (2016b). “Nossa dança, nossos pais, nossos filhos”. Apontamentos para
uma História Social do Carnaval Luandense “Our dance, our fathers, our children”. Notes
for a social history of luanda’s carnival. ℡ Tempo, Espaço e Linguagem, 7(2), 67–88.
___________ . (2018). “O que não é segredo não se pode descobrir”. A imprensa e o
cotidiano colonial em Luanda. Africana Studia, 30.

Mateta, R. (2010). Nacionalistas falam do papel do conjunto “Ngola Ritmos”. Jornal de


Angola. Disponível em
http://jornaldeangola.sapo.ao/politica/nacionalistas_falam_do_papel_do_conjunto_ngol
a_ritmos

235
Melo, D. (2004). Longe da vista, perto do coração: O associativismo regionalista no
império português. Comunicação ao VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências
Sociais, 16, 17–18.

Melo, D. de, & Santos, J. A. (Orgs.). (2007). O homem da quijinga. Chá de Caxinde.

Meneses, M. P. G. (2010). O ‘indígena’ africano e o colono ‘europeu’: A construção da


diferença por processos legais1. e-cadernos CES, 07. https://doi.org/10.4000/eces.403

Mindelis, N. (2021). [Entrevista de A. Reis; Aplicativo Digital de Mensagens].

Mintz, S. W., & Price, R. (2003). O nascimento da cultura afro-americana: Uma


perspectiva antropológica. Pallas Editora.

Moorman, M. (2019). Bonga\’ s transatlantic routes. Revista TransVersos, 15, 445–452.


________, M. (2008). Intonations: A social history of music and nation in Luanda,
Angola, from 1945 to recent times. Ohio University Press.
_________, M. (2018). Guerrilla Broadcasters and the Unnerved Colonial State in Angola
(1961–74). The Journal of African History, 59(2), 241–261.

Morel, M., & de Barros, M. M. (2003). Palavra, imagem e poder: O surgimento da


imprensa no Brasil do século XIX. Ed. DP & A.

Mourão, F. A. A. (2006). Continuidades e descontinuidades de um processo colonial


através de uma leitura de Luanda: Uma interpretação do desenho urbano. Terceira
Margem.

Napolitano, M. (2001). Seguindo a canção. São Paulo: Annablume.

Nascimento, W. S. (2015). Das ingombotas ao bairro operário: Políticas metropolitanas,


trânsitos e memórias no espaço urbano luandense (Angola, 1940-1960). Locus: Revista
de História, 21(1).
________________. (2016). Liceu Vieira Dias eo N’gola Ritmos: Música e resistência
anticolonial em Angola. Odeere, 1(1), 75–98.
________________. (2017). Universo mítico-religioso Kimbundu e trânsitos culturais
em Uanhenga Xitu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32.

236
Needell, J. D. (1995). Identity, race, gender, and modernity in the origins of Gilberto
Freyre’s oeuvre. The American Historical Review, 100(1), 51–77.

Neves, J. (1981). Música de Angola [Texto em capa de álbum fonográfico “Folclore e


Canções Tradicionais”.].

Nye, J. S. (1990). Soft power. Foreign policy, 80, 153–171.

Oliveira, M. A. (1968). Luanda," ilha" crioula. Agência-Geral do Ultramar.

Pacheco, L. M., Costa, P., & Tavares, F. O. (2018). História económico-social de Angola:
Do período pré-colonial à independência.

Parés, L. N. (2019). Libertos africanos, comércio atlântico e candomblé: A história de


uma carta que não chegou ao destino. Revista de História (São Paulo).

Pascoal, F. (2018). Bonga: Marcas na oralidade angolana. Perfil Criativo.

Pereira, J. M. N. (2015). O paradoxo angolano: Uma política externa em contexto de


crise (1975-1994). Editorial Kilomelombe, Limitada.

Pereira, M. (2020). “Grandiosos Batuques”: Tensões, arranjos e experiências coloniais


em Moçambique (1890-1940). Imprensa de História Contemporânea.

Pimenta, F. (2004). Ideologia nacional dos brancos angolanos (1900-1975). VIII


Congresso Luso‑Afro‑Brasileiro de Ciências Sociais, A Questão Social no Novo Milénio.

Pinto, T. P. L. (2012). Etnicidade e racismo em Angola: Da luta de libertação ao pleito


eleitoral de 1992 [Dissertação de Mestrado]. Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal Fluminense.

Portella, C., & Leiria, L. (2019). Cuba e União Soviética em Angola: 1977.

Portelli, A. (1991). The Death of Luigi Trastulli and Other Stories: Form and Meaning
in Oral History. SUNY Press.

Ranger, T. O. (1991). Iniciativas e resistência africanas em face da partilha e da conquista.


In A. Boaheb (Org.), História Geral da África: A África sob dominação colonial, 1880-
1935.: Vol. II.

237
Rodrigues, J. (2020). Programa Café da manhã com Bonga Kwenda.
<https://www.podomatic.com/podcasts/cafelac>

Santhiago, R., & de Magalhães, V. B. (2020). Rompendo o isolamento: Reflexões sobre


história oral e entrevistas à distância. Anos 90, 27, 1–18.

Santos, A. R. dos. (2014). Eu quero ver quando Zumbi chegar: Política, negritude e
relações raciais na obra de Jorge Bem (1963-1976).

Santos, J. A. (1999). ABC do Bê Ó. Luanda: Chá de Caxinde.

Santos, R. (2020). A rádio colonial em Angola. Leya.

Saraiva, J. F. S. (2008). A África na ordem internacional do século XXI: Mudanças


epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória? Revista Brasileira de Política
Internacional, 51, 87–104.

Sarmento, T. M. P. (2016). Essa canção não é mais que mais uma tradução? Análise de
versões de canções da Nova Trova cubana por Chico Buarque [PhD Thesis].
Universidade de São Paulo.

Segato, R. L. (1989). A antropologia e a crise taxonômica da cultura popular. Anuário


Antropológico, 13(1), 81–94.

Serrano, C. M. H. (2008). Angola: Nascimento de uma Nação: Um estudo sobre a


construção da identidade nacional. Kilombelombe.

Shain, R. M. (2002). Roots in reverse: Cubanismo in twentieth-century Senegalese music.


The International journal of African historical studies, 35(1), 83–101.

Sharpe, J. (1992). A História vista de Baixo. In P. Burke & J. Sharpe (Orgs.), A escrita
da História: Novas Perspectivas. UNESP.

Silva, E. P. N. da. (2014). Azul celeste em vermelho: O projeto carnavalesco de Martinho


e Ruça na Unidos de Vila Isabel entre 1988 e 1990 [Dissertação de Mestrado], Programa
de Pós-graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Slenes, R. (1992). “Malungu, ngoma vem!”: África coberta e descoberta do Brasil.".


Revista USP, 12, 48–67.

238
Soares, L. (2015). Mu Ukulu, Luanda de antigamente. Cultiva Livros.

Soares, M. de C. (1999). Nos atalhos da memória. In P. Knaus (Org.), Cidade vaidosa:


Imagens urbanas do Rio de Janeiro. (p. 117–135). Ed. Sette Letras.

Soares, M. R., & Moura, G. (2018). A trajetória do pragmatismo: Uma análise política
externa brasileira. In S. E. Lima (Org.), O pragmatismo responsável Na visão da
diplomacia E da academia. FUNAG.

Souza, B. O. (2016). A ambígua condição negra em Cuba: Relações raciais e


mobilizações coletivas antirracistas [Tese de Doutorado], Programa de Pós Graduação
em História, Universidade Federal Fluminense.

Thomaz, F. do N. (2012). Casaco que se despe pelas costas: A formação da justiça


colonial e a (re) ação dos africanos no norte de Moçambique, 1894-c. 1940, [Tese de
Doutorado], Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense.

Thompson, E. P. (1998). Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Cia das Letras.
_____________ . (2001). Folclore, antropologia e história social. Cia das Letras.

Torres, S. M. M. (2012). Guerra Colonial na revista Notícia. A cobertura jornalística do


conflito ultramarino português em Angola [PhD Thesis]. Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.

Tupy, D. (2017). [Entrevista de A. Reis; Pessoalmente. Gravação Digital.].

Valentim, A. (2007). Internacionalização da Rede Globo: Estudo de caso da exportação


de telenovelas. [Trabalho de conclusão de curso em Relações Internacionais, Centro
Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, São Paulo.

Valério, N., & Fontoura, M. P. (1994). A evolução económica de Angola durante o


segundo período colonial—Uma tentativa de síntese. Análise Social, 1193–1208.

Veneziano, N. (2011). O sistema vedete. Repertório, Salvador, 17, 58–70.

Vianna, H. (1995). O mistério do samba. Zahar.

239
Vidal, N. (2003). The genesis and development of the Angolan political and
administrative system from 1975 to the present. Lusophone Africa: intersections between
the social sciences.

Vieira, J. L. (2012a). A vida verdadeira de Domingos Xavier. Leya.


_________. (2012b). Nosso musseque. Leya.

Vilas Boas de Sa Rego, R. (2014). Circulação de Musica Popular entre Brasil e Angola
[PhD Thesis]. Paris, EHESS.

Villaça, M. (2004). Polifonia tropical: Experimentalismo e engajamento na música


popular (Brasil e Cuba, 1967-1972). Humanitas.

Weza, J. (2007). O percurso histórico da música urbana Luandense: Subsídio para a


história da música Angolana. Governo da Província de Luanda.

Xitu, U. (2019). Manana: Uanhenga Xitu (Edição Crítica). Paco e Littera.

Zicman, R. B. (1985). História através da imprensa: Algumas considerações


metodológicas. Projeto História: revista do programa de estudos pós-graduados de
história, 4.

WEBGRAFIA:

https://www.publico.pt/2015/08/23/culturaipsilon/noticia/coracao-angolano-voz-de-
musseque-1705354. Acesso em 02/12/2019 às 20 h 30 min.

https://www.youtube.com/watch?v=fSJKTvFeB7o. Acesso em 03/12/2019 às 10 h 30


min.

https://www.dw.com/pt-002/os-angolanos-est%C3%A3o-todos-na-expetativa-diz-
bonga/a-45368406. Acesso em 06/12/2019 às 20 h 30 min.

240
https://www.portaldeangola.com/2015/03/15/bonga-hora-kota-para-mim-nao-e-apenas-
o-kambua-que-faz-parte-deste-disco-e-principalmente-a-simbologia-fonetica-utilizada-
para-chegarmos-ao-povo/. Acesso em 10/12/2019 às 13h 15 min.

https://www.publico.pt/2015/08/23/culturaipsilon/noticia/coracao-angolano-voz-de-
musseque-1705354. Acesso em 12/12/2019 às 9h 00 min.

https://www.publico.pt/2016/12/27/culturaipsilon/entrevista/bonga-partidos-nao-
deviam-ter-tanto-dinheiro-nem-conservarse-tanto-no-poder-1756163. Acesso em
14/12/2019 às 17 h 30 min.

https://www.dn.pt/edicao-do-dia/29-ago-2018/bonga-nao-me-fale-da-lusofonia-se-faz-
favor-9771859.html. Acesso em 19/12/2019 às 15 h 00.

https://expresso.pt/life_style/gente/eu-nao-faco-politica-e-o-meu-sogro-nao-faz-
concertos=f591271. Acesso em 23/12/209 às 16 h 45 min.

http://jornaldeangola.sapo.ao/entrevista/foram_os_maus_tratos__que_causaram_a_revol
ta_contra_os_colonos. Acesso em 27/12/2019 às 17 h 30 min.

241

Você também pode gostar