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Segurança interna,

espionagem oficial e democracia


ANGELO PRIORI*

Escrevi nesse site, no mês de março do praticando uma política de inteligência


corrente ano, dois artigos discutindo a que admite "arranhar direitos dos
questão da violência política nos países cidadãos", além de classificar os
da América Latina, sobretudo nos do movimentos sociais como “forças
cone Sul. Argumentava então, que adversas”. Mais do que isso, para o
existia uma política deliberada no Exército, movimentos populares como o
sentido de forçar um esquecimento sobre MST se equiparam ao “narcotráfico e ao
os horrores e crimes praticados pelas crime organizado”, numa tentativa de
ditaduras militares. Discutia ainda que criminalizar os movimentos sociais e
era preciso que os arquivos da ditadura, torná-los forças que precisam ser
à exemplo do que ocorreram com os das conhecidas, combatidas e "eliminadas".
Delegacias Especializadas de Ordem São os velhos sujeitos “indesejáveis” do
Política e Social (DOPS), fossem abertos Estado Novo e da Ditadura Militar. Os
e colocados à disposição da sociedade, documentos recuperados pelo matutino
pois assim, entidades de direitos paulista nos mostram, pela primeira vez,
humanos e pesquisadores poderiam desde o processo de redemocratização do
jogar luzes nesse passado obscuro da país, os subterrâneos da máquina de
nossa história recente. espionagem do Exército.
Essa tese, defendida por todas as Sabemos que em todo lugar do mundo,
entidades de direitos humanos do país, os Estados mantêm serviços de
deve ganhar um novo alento, espionagem. Até as empresas se utilizam
principalmente agora que veio à tona desse mecanismo. Vejam o recente caso
novas evidências de que o Estado dos grampos do BNDES, aliás realizados
continua com um permanente sistema de por velhos arapongas do extinto SNI.
inteligência, sob a responsabilidade do Nem os próprios partidos de esquerda
Exército brasileiro e centrado no são contra um Serviço de Inteligência.
Gabinete da Segurança Institucional, Mas o modelo precisa ser diferente:
órgão vinculado diretamente ao Palácio apartidário, que não controle o cotidiano
do Planalto. dos cidadãos por suas atividades
Refiro-me aos fatos narrados, políticas e que seja submetido a um
recentemente, pelo jornalista da Folha de rigoroso controle do Congresso
S. Paulo, Josias de Souza, que revelou Nacional, sob o manto da sociedade
documentos secretos obtidos por aquele civil.
jornal, onde o Exército continua
No entanto, o que está acontecendo é Pública com o objetivo de coordenar e
exatamente o contrário. Mesmo com a integrar as atividades de inteligência de
extinção do SNI em 1992, o Estado não todo o país, através de uma rede de
deixou de exercer atividades de controle informações. Caberá à rede, conforme
sobre os movimentos populares e sociais fundamenta o decreto, “identificar,
e continua “fichando” pessoas que acompanhar e avaliar ameaças reais ou
possam ser consideradas nocivas à potenciais, além de promover a coleta,
“ordem social”, os velhos e difamados busca e análise de dados e de produzir
“subversivos”. conhecimentos que subsidiem decisões
A reconstrução de um sistema de na esfera de inteligência dos governos
informação começou ainda no governo federal, estadual e municipal”. Não é
Itamar Franco, quando no dia 13 de mais nada do que a recriação do velho
junho de 1994 foi criada a Escola de SNI com outro nome.
Inteligência Militar do Exército. Essa Atualmente são 541 agentes trabalhando
escola tinha como objetivo modernizar a nessa rede. Praticamente ninguém fica
ação do próprio Exército, preparando-o imune aos espiões do Exército.
para o novo momento histórico Conforme constatou o jornalista Josias
decorrente da "abertura política e da de Souza, eles estão espalhados em todas
anistia" no plano interno, e da as regiões do país e realizam espionagem
"hegemonia dos Estados Unidos", no política, econômica, empresarial e
campo internacional, principalmente social. O Exército chega mesmo a
após a derrocada do Leste Europeu. Para classificar os jornais segundo a sua
isso, como revela os documentos obtidos "posição partidária", "dependência do
pela Folha de S. Paulo, a Escola de poder econômico" e "grau de influência
Inteligência deveria “reeducar velhos exercido pelo governo".
arapongas” e formar espiões para os No entanto, são os movimentos sociais
novos tempos, com o objetivo de quem são mais enfaticamente
defender o “bem público, a salvação monitorados. Aliás, a criação do
pública e a ordem pública”. Mesmo que Subsistema de Inteligência de Segurança
para atingir esses objetivos, tivessem que Pública (Decreto No. 3.448/00, de 08 de
“arranhar direitos dos cidadãos, numa maio de 2000) que me referi acima foi
espécie de arbítrio necessário”. realizado exatamente após o Governo
No ano de 1997, o governo FHC deu um Federal admitir que estava mal
novo passo, encaminhando projeto de lei informado sobre o MST e sobre o
ao Congresso Nacional, propondo a movimento dos caminhoneiros. Para
criação da Agência Brasileira de quem não se lembra, no início do mês de
Informações (ABIN). O Congresso maio do ano 2000, militantes do
Nacional votou a matéria apenas no ano Movimento dos Trabalhadores Sem
de 1999 e no dia 07 de dezembro, o Terra (MST) ocuparam e acamparam em
Presidente Fernando Henrique Cardoso 14 prédios públicos por todo o país; e os
sancionou a Lei No. 9.883/99, caminhoneiros fizeram uma conturbada
instituindo a ABIN e o Sistema greve, ameaçando o abastecimento em
Brasileiro de Informações (SISBIN). E todo o território nacional. Na época o
mais recentemente, no dia 8 de maio de governo FHC avaliava que se existisse
2000, o Governo Federal publicou o um “sistema de coletas de informações
Decreto No. 3.448/00, criando um em todo o país” tanto a greve dos
Subsistema de Inteligência de Segurança caminhoneiros como as ocupações do
MST poderiam ser evitadas (FSP, 09 brasileiros que defendem causas – que
maio 2000). lhes parecem justas – com instrumentos
Para se ter uma idéia de como esse que a opinião pública não reconhece
sistema de espionagem trata os como legítimos”. E não deixa de retomar
movimentos sociais, amparo-me nos o velho e usual chavão de que as
exemplos divulgados pelo Exército organizações sociais e manifestações
através do General de Divisão Luiz públicas são vítimas dos agitadores
Cesário da Silveira Filho, Chefe do infiltrados que agem para manobrar a
Centro de Comunicação Social do massa para os seus interesses políticos.
Exército, no 07 de agosto de 2001, e “Normalmente, os anseios dessa parcela
publicado na Folha de S. Paulo no dia da população são explorados por
seguinte. Diz o general: lideranças que têm interesses e objetivos
divergentes da massa manobrada,
“O Exército, didaticamente, instigando-a à violência e à quebra das
denomina da seguinte maneira os normas de convivência pacífica”.
objetivos da busca de informações:
a) "inimigo: mentor de uma ameaça O maior exemplo disso, o Exército busca
externa; b) "forças adversas": os no Movimento dos Trabalhadores Sem
segmentos radicais infiltrados em Terra (MST), para qualificá-lo como
grupos, movimentos sociais, “força adversa” símbolo. Diz o general,
entidades e organizações não- enfaticamente:
governamentais, de cunho
ideológico ou não - atuando no país “Em verdade, a adjetivação aplica-
ou no exterior - com potencial para se àqueles que, abrigados pelo
realizar ações ilegais que venham a movimento, atuam, de forma
comprometer a ordem pública e, até flagrante, à margem da lei e da
mesmo, a ordem interna do país”. ordem, defendendo uma estratégia
revolucionária por descrer na via
O general enfatiza ainda que é de suma pacífica eleitoral, invadindo e
importância compreender a diferença causando danos a prédios públicos e
entre os termos "força adversa" e propriedades privadas; obstruindo
"inimigo", pois assim se pode rodovias e pontes; agindo com
estabelecer procedimentos, técnicas e violência física contra pessoas;
equipamentos utilizados pelo Exército. incitando à desobediência civil e,
Segundo ele, o objetivo em relação ao portanto, colocando em risco a lei e
“inimigo” é neutralizá-lo, ao passo que a ordem pública”.
em relação às “forças adversas” a Daí que, para combater esses sujeitos
conduta tem que ser outra. “indesejados” a conduta tem que ser
No entendimento do Exército e da outra, mesmo que essa conduta arranhe
Agência Brasileira de Informações os direitos constitucionais dos cidadãos,
(ABIN), as “forças adversas” são ao passo de incentivar a sua
constituídas, na maioria das vezes, “por “eliminação”. E a democracia e a
liberdade ainda respiram sufocadas!

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ANGELO PRIORI é Doutor em
História e presidente da Associação dos
Docentes da UEM (Aduem)

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