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                                UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO 
                    ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS  
                                          CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 

PEDRO IVO MONTES NEPOMUCENO 

                       
                                      ATRITO EM RECIFE 
         O embate cultural entre o discurso tradicional de Ariano Suassuna e o    
                                    Manguebeat de Chico Science 

Guarulhos 2021 
PEDRO IVO MONTES NEPOMUCENO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 ATRITO EM RECIFE: O EMBATE CULTURAL ENTRE O DISCURSO 
TRADICIONAL DE ARIANO SUASSUNA E O MANGUEBEAT DE CHICO 
SCIENCE 
 
 
 
 
                                                                   Trabalho de conclusão de curso, apresentado para            
                                                                    obtenção do título de licenciatura no Curso de     
                                                                    Ciências Sociais da Universidade Federal de São  
                                                                    Paulo, UNIFESP.  
 
                                                                   Orientado: Prof. Dr. Marcos Rufino 
 
 
 
 
 
 
 

                                                  Guarulhos 2021 
                                                        RESUMO 

 O  presente  trabalho  visa  analisar  o  conflito  cultural  que  se  estabeleceu  na  década  de  90, 
envolvendo o movimento armorial (tendo Ariano Suassuna como seu maior representante) e o 
manguebeat,  movimento  que  surge  em  Recife  e  engloba  vários  estilos  nacionais  e 
internacionais; como o samba, pop, rock e hip­hop. Tem como seu maior mentor o grupo Chico 
Science  e  Nação  Zumbi.  O  movimento  armorial  possui  um  discurso  de  defesa  da 
tradicionalidade. Esta narrativa já foi exposta outras vezes na história do país. Um dos objetivos 
do  trabalho  é  explorar  como  se  cria  essa  argumentação  feita  por  Suassuna  em  defesa  da 
“tradição” e quais categorias estão por trás desse discurso. Também expor conceitos
antropológicos  que  englobam  esse  atrito.  Será  explorado  alguns  conceitos  chave  como  o  de 
“tradição” e autores como Adam Kuper, Hobsbawn, Terence Ranger, Franz Boas, Roy Wagner 
e Mary Douglas.  

Palavras chaves: Tradição; Manguebeat; Movimento armorial.  

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
                                                 SUMÁRIO 
 
               1 INTRODUÇÃO……………………….………………...………..…..…….…...6 

   2 SURGIMENTO DO MANGUEBEAT E O CONFLITO…………..…...........7 

   2.1 Josué de Castro Como referência……………………………………….......11 

              2.2. A trajetória de Chico Science…………..........………………...…................12 

    2.3. Ariano Suassuna e o movimento “armorial”……………….......…............13 

              3.  A NOÇÃO DE “PUREZA” EM MARY DOUGLAS……………….….…..15 

               4. PARTICULARISMO HISTÓRICO E ACULTURAÇÃO…....….......….....17 

    4.1. Difusão de uma noção boasiana de cultura……………………..................19 

   4.2. O conceito de “aculturação”..........................................................................20 

    5. TRADIÇÃO, CULTURA E O PROBLEMA DA INVENÇÃO……............21 

    5.1. Adam Kuper e a inventividade………………….....……..................…..….23  

    5.2 O conceito de “tradição” para Hobsbawn e Ranger…….……...…..……..24 

    6.  SOMA DOS ESTILOS COMO RESISTÊNCIA…………….…......….…...26 

    CONCLUSÃO……………………………………………...……........………….27 

    REFERÊNCIAS………………………………………………...…......…..……..28 

 
 
 
 
 
 
 
 
 

1 INTRODUÇÃO 
 

     No ano de 1971, em Recife, surge um movimento que foi denominado como “Armorial”.
Essa corrente tem extrema importância para a pesquisa apresentada, que visa analisar o conflito 
desta linha sociopolítica com o manguebeat, manifestação que surge nos anos 90 também em 
Pernambuco. 

     O objetivo do movimento armorial era a manutenção de uma arte erudita e de identidade 
propriamente  brasileira.  Essa  iniciativa  ganha  bastante  força  no  meio  acadêmico  da  cidade, 
onde se localiza até hoje a Universidade Federal de Pernambuco. Seu maior mentor foi Ariano 
Suassuna,  um  grande  escritor responsável por renomadas obras como “O Auto da
Compadecida”, “O Romance d'A Pedra do Reino” e o “Príncipe do Sangue do Vai­e­Volta”. 

      Ariano  Suassuna,  tinha  uma  forte  influência  no  meio  acadêmico  da  cidade.  Tornou­se 
professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco em 1956, foi um dos fundadores 
do Conselho Federal da Cultura que surgiu em 1967. Foi secretário da Educação e Cultura de 
1975 até 1978, onde possuía forte presença tanto no campo político quanto acadêmico. Também 
foi membro da academia pernambucana de letras.   

     Em  meados  da  década  de  70,  com  esse  prestígio  na  sociedade  pernambucana,  Suassuna 
consegue  transformar  seu  movimento  em  ativismo  político.  Com  o  aval  do  Governador  e  o 
apoio  do  Departamento  de Expansão  Cultural  da  Pró­Reitoria  de  Assuntos  Comunitários  da 
Universidade Federal de Pernambuco, se dedica à busca por uma valorização da arte nordestina 
e a tentativa de sua manutenção.  

      O movimento armorial, criado por Ariano Suassuna, tem esse nome devido a sua tentativa 
de ligação do movimento com as raízes nordestinas, já que o termo “armorial”, significa um
conjunto de brasões, insígnias e outros símbolos  que representam um determinado povo. Os 
brasões também remetem à uma ideia de defesa, como se estivessem inserida em uma guerra 
cultural, uma vez que os brasões também são um recurso militar. 

     Com  seus  brasões  específicos,  o  movimento  também  tinha  sua  identidade  própria.    A 
literatura  do  Cordel  ganhou  bastante  destaque  naquele  período  e  foi  um  dos  pilares  do 
movimento. Trata­se de um gênero  literário que emerge de relatos orais e é transferido para 
folhetos.  Esta  arte  se  popularizou  no  século  XVI,  mais  precisamente  no  renascimento.  Com 
outras formas de artes, como teatro em locais públicos, o movimento armorial esteve bastante 
forte e presente no debate acadêmico e cultural da cidade, onde de certa forma, detinha uma 
hegemonia.  Isto  até os  anos  90,  mais  precisamente  em  1991,  quando  surge  uma  banda  com 
nome de “Chico Science e Nação Zumbi” e um novo movimento no cenário de Recife chamado 
Manguebeat.  

     Francisco  de  Assis  França,  mais  conhecido  como  Chico  Science,  nasceu  em  Olinda  em 
março de 1966 e desde novo dizia ser bastante influenciado por artistas estrangeiros. Afirmava 
ser muito admirador de James Brown e outros artistas do estilo soul norte americano.  

    Science começou sua trajetória em Olinda, onde participava de grupos de hip hop no começo 
dos anos 80. Em 1991 ele fundou o grupo Chico Science e Nação Zumbi, que inova juntando 
elementos  tradicionais  do  nordeste,  como  o  maracatu  e  ritmos  europeus  e  norte  americano, 
como rock, ska, soul e música eletrônica.  

     No mesmo ano de formação da banda, sob sua influência surge o manguebeat, movimento 
que  tem  como  nome  a  mistura da palavra “Mangue” (manguezal, um ecossistema muito
presente  no  nordeste  brasileiro),  com  a  palavra  de  origem  inglesa  beat  traduzida  para  o 
português como “batida”, importante elemento da música. 

     Esse  movimento  já  tinha  uma  base  sonora  nos  anos  70  com  Robertinho  do  Recife,  um 
guitarrista e produtor musical, mas ganha corpo e nome com Chico Science e Fred 04, que não 
apenas desenvolveram o estilo musical, mas também exaltaram ideias e contestações que são 
um dos aspectos que o movimento retrata, não apenas no âmbito sonoro mas também político 
social. O manguebeat, além de influenciar a música, também provocou modificações nas artes 
plásticas, moda e cinema.  

      Fred Rodrigues Montenegro, conhecido como Fred 04, foi um grande nome do manguebeat 
e  amigo  pessoal  de  Chico  Science.  No  ano  de  1992  ele  escreve  o  primeiro  manifesto  do 
movimento. Fred foi estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco e nessa 
exposição de ideias o autor explora o bioma mangue, mostrando a sua riqueza e diversidade, 
relacionando­o  com  a  cidade  de  Recife  e  sua  história,  mostrando  a  ligação  entre  esses  dois 
espaços.  O  manguebeat tinha  uma  proposta  completamente  distinta  do  movimento  armorial, 
um dos objetivos desse movimento era a mistura de diversos gêneros de diferentes países.  
     O símbolo clássico do manguebeat é uma antena parabólica fincada na lama, explicitando 
bem o que o movimento propunha, a mistura dos componentes culturais tradicionais com novos 
estilos, onde a lama simboliza o “tradicional” e a antena o “tecnológico”. A antena também faz
referência  a  sinais  captados,  onde  no  conceito  do  manguebeat  seria  a  atração  de  diversas 
culturas  para  o  mesmo  movimento.  A  Nação  Zumbi  tinha  uma  parte  de  percussão  que 
reproduzia  fortemente  o  maracatu,  principalmente  pela  força  da  zabumba,  e  instrumentos 
elétricos, como guitarras e contrabaixos. No próprio visual de Chico Science se percebe essa 
mistura, ele usava óculos escuros num estilo “moderno” junto com um chapéu bem típico de
Olinda.       

     Suassuna critica fortemente o movimento reproduzido por Science afirmando que ele deixa 
“impuro” a cultura local, reivindicando uma tradicionalidade regional. O escritor evita chamar 
Chico Science pelo seu segundo nome alegando estrangeirismo, e o chama de “Chico Ciência”.  

     Há  relatos  expostos  pelo  próprio  Ariano  Suassuna  de  discussões  entre  ambos.  O  escritor 
questiona Chico Science, afirmando que era desnecessário juntar os ritmos. Science responde 
afirmando que a mistura era uma forma de valorizar a cultura local. Outro trecho interessante 
que mostra a proposta do manguebeat está na fala de Renato Lins, amigo de Science e um dos 
fundadores do movimento:  

Aliás, é dessa paixão pelo funk, o primeiro amor consciente de Chico (Science) no mundo da
música, que veio a valorização da batida, do ritmo, a grande contribuição dos negros para a
música popular do século XX. Surgiu daí o impulso primordial que vai levar uma Nação Zumbi
a redescobrir o côco, o maracatu e outros ritmos locais. É o groove do Maracatu que vai chamar
a atenção da banda, e não uma suposta necessidade de se preservar a cultura popular. Nesse
ponto, as diferenças entre o Mangue e o movimento Armorial são intransponíveis. A tentação
de colocar numa espécie de solução em formol as manifestações populares nunca fez parte de
nossos planos. Muito pelo contrário, a ideia era dar condições para que elas pudessem dialogar
com o mundo contemporâneo, fertilizando-se no processo e assim voltando à vida. (LINS:
2004).  

    

     Esse  debate  se  prolonga,  havendo  defensores  pelos  dois  lados;  aqueles  que  defendem  a 
reivindicação de Suassuna em manter a cultura local “pura”, e outros simpatizantes ao
manguebeat, que defendiam a riqueza que o movimento trouxe na mistura de estilos propostos 
pelos mangueboys e manguegirls (assim que eram intitulados os integrantes do manguebeat). 
Nesse ambiente que o embate se dá. 

 
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2 SURGIMENTO DO MANGUEBEAT E O CONFLITO

     Robertinho  do  Recife  é  considerado  por  alguns  como  o  expoente  da  guitarra  elétrica  no 
Brasil. Desde cedo já demonstrou interesse pela música. Aos 12 anos já tocava guitarra e tinha 
enorme  facilidade  com  o  instrumento.  Nos  anos  60  viaja  para  os  Estados  Unidos  e  adquire 
bastante conhecimento de música country e blues. Em sua carreira explorou e tocou diversos 
estilos musicais, desde heavy metal até música voltada ao público infantil. O guitarrista expôs 
que em início de carreira sofreu enorme influência de artistas estrangeiros como Rolling Stones, 
Beatles e Jimi Hendrix.  

      Foi envolvido com o movimento underground de Recife, onde em 1973 participa do disco 
“Satwa” de Lailson de Holanda Cavalcanti e Lula Côrtes, e cria o solo para a música “Blues do
Cachorro muito Louco”, que é  considerado  para  alguns  críticos  como  marco  inaugural  da 
música psicodélica de Recife. Nesta mesma época o músico faz aparições com um instrumento 
chamado “cítara”, bastante popular na Índia, mesclando elementos orientais com o rock
progressivo.  

      Robertinho  do  Recife  junto  com  Pepeu  Gomes  é  considerado  um  dos  fundadores  da 
chamada “Escola brasileira de guitarra”. Ele próprio já declarou não gostar muito desse rótulo,
dizendo que não crê em uma “guitarra brasileira”, mas sim na multiplicidade da criação musical 
que transcende qualquer nacionalidade específica.  

      Esse conceito musical já estava presente no seu primeiro disco solo chamado “Jardim da
Infância”, onde em diversas canções percebe­se  a  mistura  de  jazz,  rock  e  ritmos  regionais. 
Conciliando  triângulo  (um  instrumento  muito  forte  na  cultura  regional  de  Pernambuco), 
zabumba (outro instrumento de percussão também muito popular nessa região) com a guitarra 
elétrica. Nesse contexto se vê uma forte preparação para o que vem em seguida, o manguebeat, 
e sua proposta de englobamento multicultural.  

       Um  dos  principais  nomes  do  manguebeat,  Fred  04,  afirma  ter  sido  influenciado  por 
diversos artistas, tanto estrangeiros, como Creedence Clearwater Revival, e brasileiros como 
Jorge Ben, Tim Maia e o próprio Robertinho do Recife,  mas é no punk em que se identifica 
mais fortemente. No início dos anos 80 cria a banda Trapaça. Entra em contato com o punk da 
periferia de São Paulo, e se insere na cena Hard Core da capital paulista. 

 
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     No ano de 1984, um pouco mais maduro, funda a banda “Mundo Livre S/A” já em Recife,
onde  misturou  elementos  do  samba,  samba­rock, MPB  e  punk. Em  1992 torna­se  central  na 
criação  do  movimento  manguebeat,  junto  com  seu  colega  também  jornalista,  Renato  Lins, 
escreve o manifesto “Caranguejos com Cérebro”. O texto ganha bastante visibilidade após uma
reportagem exibida pela emissora MTV sobre o novo movimento. Essa matéria  foi ao ar em 
janeiro de 1993.  

Mangue, o conceito.

Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se
encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos
movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os
mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.

Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados


estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação
para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies
comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.

Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha.
Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são
tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.

Manguetown, a cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão
dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas
do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.

Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a


cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose
econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome
da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento
acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Mangue, a cena

Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para
saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias.
O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é
matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão
crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as
baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda
resta de fertilidade nas veias do Recife.
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Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo
de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*,
capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de
conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.

Hoje, Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da


modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda,
Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua,
conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química
aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.

Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a
se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena
musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de
moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas
e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.

Manifesto: Caranguejo com Cérebro, 1992.

     Dentro do Manifesto, percebe­se a sofisticada união entre conceitos científicos e artísticos 
junto com uma forte crítica social, principalmente em relação às formas que o poder público se 
relaciona com o bioma. 

      No  primeiro  parágrafo,  quando os  autores  se  referem  à  "troca  da  água  doce  com  a  água 
salgada”, se referindo ao manguezal, se vê uma clara alusão à suas formas de enxergar o mundo
e a cultura. Da mesma forma que o mangue acolhe as duas “formas” de água, o manguebeat 
absorve diversos ritmos e culturas.   

      Já  no  segundo  parágrafo,  os  criadores  do  manifesto  explicitam  números  que  mostram  a 
riqueza do mangue, e como ele se relaciona com a cidade, mostrando a relação que o bioma 
“natural” tem com a metrópole, e como este bioma está convergido com o urbanismo, tanto do 
ponto de vista econômico, quanto do cultural e folclórico. No último parágrafo de “Mangue, o
conceito”, é colocado a riqueza biológica do mangue no seu caráter científico. Vale lembrar
que a cientificidade também conota um caráter de “moderno”, enquanto o mangue carrega um
símbolo de “tradicionalidade”.  

       Na parte “mangue, a cidade” é mostrado dados históricos, a invasão holandesa em


Pernambuco e como no desenvolvimento da cidade os autores criticam a ideia de ”progresso”,
onde  muitos  mangues  foram  destruídos  e  muita  riqueza  foi  perdida.  Nesta  parte,  a  crítica  à 
desigualdade social também é evocada, pois o “progresso” prejudicou o ambiente daquele
espaço específico (o mangue), que por consequência expandiu a miséria da cidade. 
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     O trecho “mangue a cena”, se inicia com uma evocação: “Emergência! Um choque rápido 


ou o Recife morre de infarto!”. Colocando o propósito do manifesto, mostrando como o
manguebeat não se resumiu a um estilo  musical,  mas estava carregado de todo um conceito 
sociopolítico no Recife dos anos 90. O manifesto valoriza o mangue e a sua riqueza natural, 
afirmando que, a sua morte acarretaria tragédia também para o lado urbano.  

     O segundo parágrafo deste último capítulo, é focado em remeter o lado multicultural de seu 
movimento. Quando escrevem que em 91 se organizou um certo núcleo de pesquisa pop, que 
tinha como objetivo “engendrar um ‘círculo energético’ capaz de conectar as boas vibrações 
dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop, nasce o símbolo principal do 
manguebeat, a antena parabólica fincada na lama.   

       Na parte final do manifesto, Fred e Lins fazem uma referência a Josué de Castro, figura 
importante  no  cenário  nacional,  principalmente  no  combate  à  fome,  onde  em  1942  criou  o 
Serviço de Alimentação da previdência social (SAPS). Este acadêmico inspirou claramente os 
criadores do manguebeat.  

   

 
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2.1 Josué de Castro como referência 

      Josué de Castro era médico, natural de Recife, lecionou Antropologia física na Universidade 
do Distrito Federal em 1935 no Rio de Janeiro. Em 1938 sua pesquisa o leva à Universidade de 
Roma, também esteve presente em Nápoles e Gênova.  

      Castro ganha bastante prestígio no meio acadêmico. Em 1946 publica o livro “Geografia da


fome” e mais tarde, em 1951, lança a obra “Geopolítica da fome”. Livros que tiveram grande
impacto no cenário internacional e foram traduzidos para 24 idiomas.  

      O  médico também  era  escritor  de outros  estilos  literários.  Em  1967  escreveu  o  romance 
“Homens e caranguejos”, em homenagem ao  Brasil,  já  que  foi  exilado  em  decorrência  da 
ditadura militar, permaneceu na França até sua morte em 1973. Este romance narra a história 
de um garoto de Recife, que tem que lidar com sua condição de pobreza material e se vê, desde 
cedo, tendo que trabalhar no mangue para sobreviver. Da influência desse título nasce o nome 
do manifesto escrito pelos mangueboys, “Caranguejos com cérebro”.  

     No romance, existe uma menção de uma estranha mimetização entre caranguejos e humanos, 
onde que, para o autor: “a sociedade dos mangues é uma sociedade imprensada entre estas duas 
estruturas esmagantes” (p. 14),  se  referindo  à  estrutura  agrária  feudal  e  a  capitalista.    Esta 
mimese  a  que o  autor  se  refere,  é  pelo  fato  dos  homens,  assim  como os  crustáceos,  estarem 
inseridos na lama do mangue, viverem de migalhas, famintos e muitas vezes andarem para trás, 
metaforicamente se remetendo à sua condição precária de vida, e a dificuldade de se emancipar.  

      Na Canção Da Lama ao Caos, composta por Chico Science em 1994, que também dá nome 
ao título do álbum, existe uma clara referência da relação que Josué de Castro desenvolveu no 
seu romance. No refrão: “Da  lama  ao  caos,  do  caos  à  lama,  um  homem  roubado  nunca  se 
engana”, o compositor já afirmou em entrevista que se remeteu ao caranguejo, que vaga entre 
a lama (seu habitat) e o caos (a captura pelo humano), e relacionou­o ao trabalhador, que se 
locomove entre a lama (seu local de trabalho) e o caos (a cidade). Na própria canção, Science 
cita o nome de Castro no trecho: “O Josué nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem
mais urubu ameaça” (CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI, 1994), denunciando a miséria e 
degradação social que o proletário estava inserido naquele contexto.  

      Em  outra  declaração,  Science  declarou  a  influência  que  Castro  teve,  tanto  em  sua  obra 
quanto em seu estilo de pensar:” Na imagem de Josué somos ‘caranguejos com cérebro’, como
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nos pescadores que ele descreveu no livro ‘Homens e caranguejos’. Eles pescam e comem
caranguejos,  para  depois  excretá­los num ciclo caótico. Fazemos uma música caótica.”
(GIRON, 1994, p. 5­5) 

      Josué  de  Castro  influenciou  não  apenas  Science,  mas  todos  inseridos  no  movimento 
manguebeat.  O autor do manifesto, Fred 04, jornalista e leitor de Castro, em sua banda Mundo 
Livre S/A, adotou o conceito cultural do movimento e mesclou diversos ritmos e conceitos. Seu 
primeiro trabalho, o disco “Samba esquema noise”, faz referência ao antigo trabalho de Jorge 
Ben “Samba esquema novo”. 

      É possível notar na sonoridade da banda Mundo Livre S/A, a influência principalmente nas 
distorções  da  banda  The  Clash,  junto  com  o ritmo  de  Jorge  Ben  Jor.  No  ano  de  87,  em  sua 
primeira demo, a banda já tinha feito uma inesperada junção da música Fio Maravilha de Jorge 
Ben, com a música Big Mouth Strike Again, da banda inglesa The Smiths. Eles deram o nome 
dessa música de Jorge Ben Tries it Against. Samba Esquema Novo é lançado no mesmo ano 
que “Da Lama ao Caos”, de Chico Science e Nação Zumbi.  

2.2 A trajetória de Chico Science 

     Chico Science cresceu no Bairro Rio Doce onde pegava caranguejos no mangue para vender 
na feira. Desde novo se dizia apreciador de Michael Jackson. Em 1984 entra para um dos grupos 
de hip hop mais relevantes de Recife, o Legião Hip­Hop.  

     Em 1987, criou uma banda com o nome de Loustal, em referência ao quadrinista francês, 
Jacques Loustal. Nesse grupo, Chico Science, Alexandre Dengue, e Lúcio Maia inserem vários 
estilos musicais no mesmo contexto,  como o ska, soul, funk e hip hop. 

     Em 1991, Science entra em contato com um grupo que fazia um trabalho de inclusão social 
na  periferia  de  Recife,  mais  precisamente  em  Olinda.  O  bloco  afro  Lamento  Negro,  unia 
maracatu, coco de roda e samba­reagge. Ele convida o grupo a se reunir com a sua  banda e 
nisso formam o Chico Science e Lamento Negro, que mais tarde se consolidaria como Chico 
Science e Nação Zumbi.  

     No mesmo ano, a banda faz sua primeira apresentação no espaço "Oásis" em Olinda, junto 
com o Mundo Livre S/A. Esse cenário ganha bastante repercussão principalmente pela  mídia 
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local. No início, Chico Science se referia a seu estilo apenas como “mangue”, mas como no
primeiro  disco  do  Mundo  Livre  S/A  existia  uma  música  com  o  nome  de  manguebit  e  após 
repetidas menções da imprensa, o movimento se difunde como manguebeat.  

      O  manguebeat  se  popularizou  principalmente  em  1992,  na  publicação  do  manifesto 
“Caranguejos com Cérebro” e se consolidou com os lançamentos de “Samba esquema noise” e
“Da lama ao caos” ambos em 1994. No encarte de “Da lama ao caos” está presente o manifesto
escrito por Fred 04 e seu amigo jornalista, Renato Lins. 

     Nos  títulos  das  músicas  do  disco  já  está  presente  o  conceito  do  manguebeat  e  sua 
abrangência. Como no caso do “Maracatu de Tiro Certeiro”, que faz referência à música do
grupo Beastie Boys “Sure Shot”. A música “Samba Makossa" remete a “soul makossa”, música
do artista camaronês Manu Dibango. A faixa “Côco Dub”, faz alusão ao “côco” nordestino e 
ao dub jamaicano. Mostrando a proposta do movimento de interação entre as culturas.  

     Para Suassuna estas misturas são nocivas para a cultura local, pois estaria “contaminando”
a sua concepção de cultura “pura”. 

2.3 Ariano Suassuna e o movimento “armorial” 

     Ariano  Suassuna  nasceu  em  João  Pessoa  em  1927.  Seu  pai  era  presidente  do  Estado  da 
Paraíba. O fundador do “movimento armorial” nasceu na sede do poder executivo paraibano, o 
Palácio da Redenção.  Formou­se em Ciências Jurídicas e Sociais, no ano de 1945 na Faculdade 
de Direito do Recife. Foi fundador e membro do Conselho Federal de Cultura e em 1970 inicia 
o “Movimento Armorial”, interessado na divulgação da cultura nordestina.  

     Suassuna perdeu seu pai na década de 30, evento que o marcou profundamente e influenciou 
a  sua  forma  de  escrita.  Em  seu  discurso,  quando  é  convidado  a  fazer  parte  da  academia 
pernambucana de letras, afirma que escreve para denunciar e protestar contra a morte de seu 
genitor.  Nos  anos  90  é  membro  da  academia  brasileira  de  letras,  onde  ocupou  a  cadeira  de 
número 32.  

     O Movimento Armorial surge com influência de outro movimento, o “Regionalismo”, que


era liderado por Gilberto Freyre nos anos 50. Dentro do movimento armorial, estão diversas 
formas de arte, a Literatura de Cordel é uma delas e o influenciou muito na sua formação como 
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escritor. Para Suassuna, o Cordel é um representante “legítimo” da arte popular brasileira. Ele
afirma:  

Eu acho que do ponto de vista político por exemplo, uma manifestação de cultura popular como a
literatura do cordel tem o seu equivalente no campo político no Arraial de Canudos. Um folheto como
O homem da vaca e o poder da fortuna, de Francisco Sales Arêda, expressa uma forma de arte que é
feita a margem de influências ou deformações impostas de fora (do Brasil) ou de cima (de outras classe
sociais). (LINS, 2007, p 52)

Além da literatura de cordel, o movimento teve representantes em teatros, literatura, danças, 
artes plásticas, músicas e etc.  

     A  ideia  defendida  pelos  armorialistas  não  se  limitavam  apenas  à  romantização  do  sertão, 
mas também criou­se bases de diálogos com o meio urbano. O multiartista Antônio Nóbrega, 
um dos herdeiros do movimento armorial afirma: “Meu  recorte  armorial  é  mais  um  recorte 
urbano que propriamente rural ou sertanejo. O sertão para mim é uma paisagem longínqua, ela 
não faz parte das minhas vísceras culturais” (Antônio, Movimento Armorial, 50 anos do convite 
para que o Brasil mire as suas entranhas,Revista EL País, 2020).  

    Nóbrega foi convidado pelo próprio Suassuna a fazer parte do Quinteto Armorial, um grupo 
musical que construiu uma nova sonoridade com instrumentos próprios, como marimbaus (um 
berimbau invertido).  

     Antônio Nóbrega pertencia à classe média alta de Recife, frequentou a Escola de Belas Artes, 
cursando música. Era bem próximo de Ariano Suassuna, este que era considerado um mestre 
de  cerimônias  nos  eventos  do  movimento  armorial,  sempre  presente,  proclamava  a  sua 
concepção  de  cultura  e  explicava  cada  instrumento  popular  e  gênero  inserido  em  cada 
apresentação.  

     Cinquenta anos após o surgimento do movimento armorial, Nóbrega ainda crê em criar um 
estilo  propriamente  brasileiro  e  popular,  mas  diferente  de  Suassuna,  mescla  elementos 
ocidentais  e  europeus,  com  elementos  indígenas  e  africanos.  Ele  afirma  que  sozinho,  não  é 
possível se criar nada.  

    Percebe­se como Suassuna  é  filho de seu tempo, e como sua concepção de cultura estava 
ancorada em algo difundido pelo mundo, vindo de Franz Boas. Um de seus discípulos (Antônio 
Nóbrega) percebeu que a ideia do movimento armorial estava ultrapassada e assim como todo 
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movimento, sofre mudanças, mas o objeto de estudo que se baseia esta pesquisa é o conflito 
que se deu entre Suassuna e Science, o movimento armorial ganha outros contornos já no início 
do século XXI.  

    Houveram alguns avanços significativos desde a formação do movimento armorial, como a 
inclusão de instrumentos como a viola, o cordel e a xilogravura  no meio acadêmico de uma 
forma institucionalizada, gerando um enriquecimento dentro da própria academia.   

     J.  Borges,  com  84  anos,  artista  plástico,  afirma  querer  manter  a  cultura  brasileira  viva. 
Amigo  íntimo  de  Suassuna,  afirma  ser  pertencente  ao  movimento  armorial  e  expõe  sua 
xilografia em diversos países. Na mesma entrevista dada ao jornal El País, também contribuída 
por Nóbrega, afirma que o  “armorialismo” está fraco e é raro ver defensores de uma cultura 
restritamente brasileira, diz com um certo tom de lamentação. Borges também tece críticas ao 
finado Suassuna, dizendo que o “armorial” era focado na elite de Pernambuco, enquanto seu 
trabalho tinha mais base nas camadas mais populares, talvez pela forte influência que Suassuna 
exercia no meio político, fez o crer que o escritor tenha se afastado um pouco da classe popular 
de Recife. 

    Mostra­se  como  que  o  movimento  armorial  se  transformou  durante  um  tempo,  mas  a 
concepção  de  Suassuna  na  época  do  conflito  com  Science  era  de  que:  a  aculturação,  ou 
influência de outras culturas sobre a sua, seria uma deformação. Mostra­se como seu discurso 
se baseia em alicerces de “cultura limpa” ou “pura”.  

       3 A NOÇÃO DE PUREZA EM MARY DOUGLAS 

Nesse sentido é importante trazer conceitos antropológicos, como o desenvolvido por Mary 
Douglas, que debatem a questão colocada por Suassuna de cultura “suja” e como surge essa
concepção de “sujeira”.  

    Douglas foi uma antropóloga norte americana que desenvolveu um estudo sobre a noção de 
“pureza e perigo”.  A autora problematiza esses conceitos, afirmando que existe uma relação 
direta deles com a tentativa de ordenar as coisas. Seu estudo enriquece a pesquisa quando se 
nota,  na  lógica  da  exposição  de  Ariano  Suassuna  a  sua  tentativa  de  colocar  como  ”sujo” o 
manguebeat.   
16

     Ela discorre sobre esses conceitos afirmando que a “sujeira” está ligada com a “desordem”,
onde seriam elementos que estariam no âmbito do “inclassificado”, pois assumiriam posições 
ambíguas dentro da estrutura social. A “poluição” pode emergir quando as regras morais se
apresentam de uma forma mais afrouxada. A visão que Ariano Suassuna tem do manguebeat é 
a mesma de “poluição”, quando afirma que esse estilo está `'contaminando" a “tradição”
regional que ele defende e entende como “descontaminado”.  

     Percebe­se que na teoria de Douglas, tem como questão central a ordem das coisas, onde o 
perigo está inserido e pode aparecer principalmente no território do inclassificado e indefinido, 
visto  que,  existe  um  limite  social  para  as  classificações  e  simbolizações.  Nesta  lógica  que 
Suassuna tem  imensa dificuldade de assumir o movimento  manguebeat como  legitimamente 
recifense.   

     Alguns  estudos  de  Douglas  a  respeito  dos  nativos  do  Congo  Belga,  abriu  portas  para  a 
antropologia refletir principalmente sobre as sociedades em que fazemos parte, e não apenas 
outras. A noção de sujeira gera um ordenamento próprio, onde a busca por limpeza não está 
estritamente ligado à evitar doenças, a visão de sujeira demarca fronteiras. Aquilo que  é visto 
como “sujo”, seria o que não se enquadra no sistema de classificação. Ela cita o exemplo do
consumo de carne de porco que é evitado por religiões muçulmanas e judaicas. Essas proibições 
estariam relacionadas a noção de “impureza”, assim como nos Yorubá, que só se alimentam 
com a mão direita pois a esquerda é também vista como “impura”. Para Mary Douglas, a sujeira
pode  penetrar­se  colocando  em  xeque  certas  convenções  sociais,  qualquer  coisa  fora  do  seu 
lugar representa um risco. Nesse sentido Suassuna reproduz uma fala em que o manguebeat se 
enquadraria em “impuro”, pois o movimento de Chico Science coloca em “desordem” a noção 
de cultura de Ariano Suassuna.    

      
17

 4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E ACULTURAÇÃO 
        

   .  

    Na  antropologia  diversos  pensadores  e  diversas  escolas  de  pensamento  criaram  e 


contribuíram para um melhor entendimento da realidade, Franz Boas é um nome extremamente 
importante.  Ele  inovou  e  construiu  conceitos  e  métodos  que  o  tornaram  um  clássico  na 
disciplina.  Importante  elucidá­lo  para  compreender  de  onde  vem  a  narrativa  histórica  que 
Suassuna se baseia.  

     Antes  de  Boas,  a  teoria  sobre  uma  evolução  cultural  estava  totalmente  presente  no  meio 
acadêmico, principalmente em meados do século XIX e início do XX. Essa teoria se tratava de 
defender a tese de que as sociedades percorrem uma trajetória de estágios, com forte influência 
do positivismo. Acreditava­se que as diferentes culturas iam do simples para o complexo e que 
nas  sociedades  estavam  presentes  leis  definidas.  A  Europa  era  vista  como  o  estágio  mais 
avançado, que se auto intitulava “civilizada”, com um forte teor eurocêntrico. Boas desconstrói 
toda essa linha de pensamento.  

     Para Boas os métodos acadêmicos não deveriam estar ancorados no eurocentrismo, e nem 
classificar determinadas culturas em estágios predeterminados. Ele defendia que a história das 
sociedades  não  possuem  leis  definidas,  pois  os  desenvolvimentos  culturais  seguem  uma 
trajetória própria.  

     O particularismo histórico de Boas seria visto como um método histórico de análise cultural. 
Ele propunha, metodologicamente, substituir a concepção dedutiva pela indutiva. A semelhança 
de práticas ou objetos em diferentes locais do planeta, não deveria ser tratado como início do 
estudo, mas sim como objetivo a ser analisado. 

      Boas crítica o método comparativo (usado pelos evolucionistas) e cria seu método chamado 
“particularismo histórico”. Este método cria bases para o discurso que surge em Recife pela 
fala de Suassuna.  O método comparativo tinha como regra a tentativa de encontrar semelhanças 
em culturas diversas com o intuito de classificar em qual estágio aquela cultura estaria inserida. 
Esta  metodologia  disseminou  no  mundo  a  ideia  de  que  a  história  seguia  um  caminho  único, 
ignorando os processos internos das culturais locais. Para Celso de Castro:  
18

 
“Temos outro método que em muitos aspectos é bem mais seguro. O estudo detalhado de
costumes em sua relação com a cultura total da tribo que os pratica, em conexão com uma
investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas, propicia-nos quase sempre
um meio de determinar com considerável precisão as causas históricas que levaram à
formação dos costumes em questão e os processos psicológicos que atuaram em seu
desenvolvimento.”

(CASTRO, 2004, p.33)

Ou seja, para Celso de Castro o método histórico é mais eficaz pois leva em consideração 
a relação entre a cultura estudada com ambientes vizinhos e a influência que pode ser exercida 
entre  ambos.  Também  tenta­se  anular  o  âmbito  eurocêntrico  do  método  comparativo,  não 
colocando a Europa como último estágio da civilização e leva em conta os processos históricos 
que as culturas foram submetidas e os fatores psicológicos que a formaram. Mas essa sofisticada 
teoria  de  Franz  Boas  fez  surgir  uma  concepção  de  cultura  onde  se  acreditava  que,  pelo 
particularismo histórico e específico de cada ambiente, a cultura teria um caráter desagregado, 
onde costumes e hábitos não se relacionariam e formariam uma cultura “cristalina”. 

     Para Boas existia uma dinâmica no processo cultural, na relação com os indivíduos inseridos 
nessas sociedades, pois da mesma forma que o indivíduo é formado pela cultura ele também 
pode alterar seu corpo social, seu olhar é mais focado na cultura estudada ao invés de generalizar 
e comparar diversas culturas. Seus estudos revolucionaram a forma do fazer antropológico, mas 
difundiu a  ideia de que a cultura seria algo estático, onde poderia se perder em contato com 
outras e possuía uma característica de isolamento, o que é problemático, pois com a evolução 
da antropologia e o surgimento de novas teses, hoje sabe­se, que a cultura denota um caráter 
extremamente de interação.  

   

  

 
19

4.1 Difusão de uma noção boasiana de cultura 

   

     Franz Boas é sem dúvida um grande nome dentro da Antropologia, sua metodologia ajudou 
os estudos antropológicos, principalmente no que se refere ao trabalho no campo e a etnografia. 
Seu particularismo  histórico criou bases  sólidas para que outras teorias emergissem, como o 
funcionalismo e o estruturalismo. 

     Mas esse discurso criou ideias em volta do conceito de “cultura” que ainda perduram. Em
uma visão baseada em sua teoria, acredita­se na ideia de cultura “pura”, onde há um receio de
aproximação de culturas distintas e para essa crença uma cultura pode ser “contaminada” ou
“perdida”. Neste ponto, essa noção desencadeada por intérpretes de Boas converge com a
pesquisa. Quando o movimento armorial adota esta concepção de “cultura pura”, tentando de 
alguma forma deslegitimar o que não se enquadraria para eles como cultura “tradicional”  e 
regional, faz­se necessário uma tentativa de compreensão deste discurso, e de desconstrução de 
certos conceitos. 

     O discurso em defesa da manutenção da cultura já foi emitido em várias ocasiões. A fala de 
Ariano Suassuna resgata essa ideia e tem uma direta ligação com a visão boasiana de cultura, 
onde em defesa da tradicionalidade ele reivindica uma cultura “legítima”, afirmando que o
maracatu e outras vertentes típicas do nordeste estavam sendo perdidas pela inserção de outros 
componentes culturais.   

     Essas  teses  emitidas  por  Ariano  Suassuna,  defendem  uma  visão  onde,  uma  certa  cultura 
impõe­se sobre a outra, acarretando um desaparecimento cultural. Essa defesa está ancorada na 
crença  de  que  a  cultura  possui  uma  característica  de  isolamento  e  não  de  contato,  a  mesma 
concepção de Boas e o seu particularismo histórico.  

    Este legado que Boas disseminou, esteve presente no debate social em diversos períodos. Um 
exemplo  foi a marcha contra a guitarra elétrica que ocorreu em 17 de julho de 1967. Com o 
respaldo de não se perder aspectos culturais brasileiros, alguns artistas protestaram contrário a 
este instrumento musical, alegando que a sua presença seria um perigo para a manutenção da 
nossa cultura. 

      Esse evento que também ficou conhecido como “Passeata da MPB” reuniu diversos artistas
e figuras importantes do cenário nacional. Elis Regina liderou esse movimento. Gilberto Gil, 
Jair Rodrigues e Edu Lobo também se juntaram à passeata.  
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     É compreensível a motivação desse movimento, dado que o Brasil dos anos sessenta tenha 
passado por um processo de globalização intensa, assim como muitos outros países. É possível 
traçar um paralelo desse discurso com a formação da bossa nova, essa que era vista como uma 
ameaça ao samba, que tinha status de música “autêntica” brasileira. Mas não foi apenas aqui
que esse discurso ecoou. Dois anos antes, em 1965, houve muita repulsa quando Bob Dylan, 
nome clássico da  música  folk norte­americana, aderiu a guitarra e recebeu  duras críticas dos 
que afirmavam uma possível perda de identidade do músico de Minnesota.   

      

       

4.2 O conceito de “Aculturação”  

  

     Em relação ao termo “Aculturação”, ele se remete ao processo de mudança cultural, que se
dá pela interação entre duas ou mais culturas. É uma dinâmica comum nas relações culturais e 
descreve o contato de culturas e quando uma  influência e é influenciada por outra. Objeto de 
extrema  relevância  para  esta  discussão,  pois  o  que  os  membros  do  movimento  liderado  por 
Suassuna propõe, é um freamento do processo de aculturação e a manutenção da sua concepção 
de cultura “não contaminada”.  

      Segundo o antropólogo Roque Laraia, os sistemas culturais em nenhum momento ficam em 
um estado imóvel, o seu processo é dinâmico: 

   
  […] qualquer sistema cultural está num contínuo processo de modificação. Assim sendo, a
mudança que é inculcada pelo contato não representa um salto de um estado estático para um
dinâmico, mas, antes, a passagem de uma espécie de mudança para outra. O contato, muitas
vezes, estimula a mudança mais brusca, geral e rápida do que as forças internas. (LARAIA, 2013,
p.96)   

 
      A “aculturação”, está diretamente ligada à relação entre diferentes culturas. Possui seu
dinamismo próprio e os efeitos que esse contato acarreta gera novas formas e costumes. Não 
existe cultura “pura”, a própria formação de “cultura” é e sempre foi pela comunicabilidade
entre os seres humanos. Neste sentido que uma defesa de “legitimidade cultural” é impossível,
visto que, a cultura nunca esteve e nem estará em um estado límpido   
21

      Melville  J.  Herskovits,  antropólogo  norte  americano,  debateu  amplamente  esse  conceito. 
Fruto  da  escola  boasiana,  elaborou o conceito de “aculturação” a partir do legado de Franz
Boas, transformando­o em um objeto de estudo na antropologia.  

      Boas acreditava em um “Geist”, que seria um “gênio de um povo”, desse modo, cada cultura
molda e absorve elementos externos para inserir  em seus próprios padrões. Para Herskovits, 
que  estudou  por  um  período  os  afrodescendentes  nos  Estados  Unidos,  os  traços  culturais 
africanos  estariam  sobrevivendo  num  âmbito  mais  profundo  na  cultura  ocidental,  pois  os 
“gênios” europeus estariam se sobrepondo aos africanos. 

      Melville Herskovits criou uma “escala de aculturação”, com a intenção de verificar o quanto 


o  grupo havia “mantido” a sua cultura ou englobado culturas distintas. Essa concepção está
ancorada na ideia de que a cultura possui traços específicos que podem ser perdidos, adquiridos, 
ou  até  mesmo  dominador  sobre  outras.  Isso  é  problemático,  pois  nega  a  possibilidade  de 
inventividade e resistência de certas culturas.  

     E nesse sentido que está baseado a tese de Ariano Suassuna, que pela aculturação a cultural 
regional pernambucana estaria “perdendo” a sua identidade. Negligenciando o fato da própria
cultura de Recife estar em constante mudança e reinvenção.  

 
  

5 TRADIÇÃO, CULTURA E O PROBLEMA DA INVENÇÃO 

     Roy Wagner em “A invenção da Cultura" aprofundou­  se  nessa  discussão  sobre 


"inventividade" e de como a “Cultura” é concebida, não do ponto de vista artificial mas sim do 
ponto de vista de criação. Discussão importante quando se debate ideias como “tradição” e
“cultura”. Importante trazer esses conceitos, presentes principalmente nesta obra escrita por
Wagner em 1975, para entender como Suassuna e Chico Science estão em constante processo 
de “invenção cultural”.  

     Para  Wagner  a  cultura  se  torna  visível  no  choque  que  ocorre  com  outra,  principalmente 
quando se dá no trabalho de campo. Quando o manguebeat entra em contraste com a literatura 
de Cordel e outros elementos do  movimento armorial, a cultura defendida por Suassuna  fica 
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mais evidente para ele, é pelo choque que ela se torna claramente visível, e nesse contexto que 
ele tenta "defendê­la".   

     Para  estudar  as  culturas  é  necessário  conhecer  ambas  simultaneamente,  proporcionando 


estudos que se possam criar uma análise que às relacione, Roy Wagner diz que o antropólogo 
“inventa” a cultura que está estudando. Essa invenção do pesquisador é no seu próprio
entendimento, as analogias que são criadas estão remetidas de dentro de sua própria cultura, ele 
afirma que “o estudo da cultura é  cultura” (Pág. 68). Assumindo este caráter de “invenção”
tanto do manguebeat, como do movimento armorial, não é possível decretar que o movimento 
liderado por Chico Science tem caráter “artificial”, enquanto o movimento do Suassuna seria
“autêntico”. Os dois movimentos são criados com suas lógicas internas e possuem sua
importância local.  

     Focando­se a respeito do conceito de “invenção” colocado por Roy Wagner, ele se refere 


mais à arte do que necessariamente à ciência ou técnicas. Ele exemplifica citando artistas como 
Bruegel, Rubens, Beethoven e o jazz. A percepção que fica é que o autor coloca que, por ser 
inventivo, não quer dizer que tudo é permitido, como no jazz, que o improviso deve ser levado 
a sério e não se pode perder as relações com a convenção. Quando Suassuna reivindica uma 
tradicionalidade de Recife, ele está em um processo de inventividade de sua própria cultura.  

     Hermano Vianna discorreu um pouco sobre essa questão de “invenção” e o requerimento de


uma “autenticidade cultural”.  

  
Como todo processo de construção nacional, a invenção da brasilidade passa a definir como
puro ou autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação. O autêntico é sempre
artificial, mas, para ter “eficácia simbólica”, precisa ser encarado como natural, aquilo que
“sempre foi assim”. O samba de morro, recém-inventado, passa a ser considerado o ritmo mais
puro, não contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado (afastando
qualquer possibilidade de mudança mais evidente) com o intuito também de se preservar a
“alma brasileira”. (VIANNA, 1995, p.152-153)

    

        

 
23

5.1 Adam Kuper e a inventividade       

  

      Outro autor que discute sobre o conceito de “invenção” é Adam Kuper. Uma das questões
centrais do antropólogo, é a dificuldade que certos padrões classificatórios nos proporcionam. 
As sociedades ditas como “primitivas” não podem ser enquadradas nesses conceitos ocidentais, 
que são marcados por uma concepção colonialista e diretamente ligado à invenção. Pois é um 
conceito criado pelos ocidentais e por sociedades específicas. 

      Da  mesma  forma  que “cultura” também é invenção, a  narrativa  que  se  cria  em  torno  da 
defesa de certa cultura, negligencia­se sua forma inventiva. O manguebeat estava inserido como 
agente de invenção cultural, mas a crítica que recebia, ignorava esse seu caráter.  

      Adam Kuper analisa o método e os trabalhos antropológicos desde o século XIX, onde os 
“primitivos” eram vistos mais ligados à um âmbito “religioso”, enquanto os “modernos” eram
detentores  e  produziam  a  racionalidade.  Kuper  faz  uma  forte  crítica  desses  parâmetros 
epistemológicos,  afirmando  que  eles  possuíam  um  caráter  colonialista,  colocando  certos 
comportamentos dos nativos como exóticos ou estranhos. Isso seria claramente uma “invenção”
ocidental.    Para  ele  é  necessário  uma  reformulação  da  prática  científica  e  também  de  seus 
conceitos operacionais.  

     A  enunciação  proclamada  pelo  movimento  armorial  estava  carregado  de  um  caráter 
inventivo,  Suassuna  acreditava  que  a  sua  concepção  de  cultura  tinha  surgido  de  uma  forma 
“espontânea”, por isso reivindicava uma “autenticidade”, não percebendo o processo de
invenção que todas as culturas, inclusive a sua, estava inseridas. Por meio dessas invenções de 
“tradições” e defesa do “autêntico”, ele reivindica uma manutenção de “pureza” inatingível,
desqualificando o manguebeat mesmo ele sendo produto legítimo de Recife. Da mesma forma 
que “cultura” é algo que se inventa, a “tradição” possui a mesma lógica. 

     

 
24

  5.2 O conceito de “tradição” para Hobsbawm e Ranger 

  

     Junto  com  a  inventividade  por  parte  dos  artistas  de  Recife,  existe  a  reprodução  de  um 
discurso  de defesa da “tradição”, este que é um conceito amplamente discutido nas ciências
humanas. Do mesmo jeito que nós ocidentais criamos conceitos como “natureza” e “cultura”,
a “tradição” também é algo que está no âmbito da invenção. 

      Hobsbawn e Terence Range discutem isso na obra “As invenções das tradições”, onde os


autores afirmam:

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente


regulada por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual
ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado.”(HOBSBAWN, E., RANGER, T, 1997, p10)

     Pode­se claramente perceber que essas práticas evocadas pelos autores são reproduzidas por 
Ariano  Suassuna  quando  ele  defende  repetidamente  a  manutenção  de  certas  ações.  Onde  os 
valores vão se moldando pelo seu discurso e esta ritualização em busca do passado é percebido 
quando Suassuna cria, politicamente, meios de tentar reafirmar o passado daquela região. Pois 
é disto que se trata o movimento armorial, a tentativa de estabelecer uma relação contínua com 
um passado específico.  

     Hobsbawn e Ranger afirmam que: “as ‘tradições inventadas’ caracterizam­se por estabelecer 


com ele uma continuidade bastante artificial” (p. 10). Para eles, estas práticas são reações a
situações novas que deságuam em dois possíveis incidentes, ou assumem a forma de alusão  a 
situações anteriores ou estabelecem seu passado próprio através da repetição.  

     Os autores também diferenciam a “tradição” do “costume”, onde nas tradições o caráter de
invariabilidade  é  central,  e  o  passado  defendido  os  fazem  repetir  práticas  de  uma  forma 
sistemática. Nesse sentido que é possível colocar o argumento dos defensores do  movimento 
armorial no âmbito de defesa de “tradição inventada”, pois a sua defesa se aflorar quando surge
o  manguebeat  ­  caracterizado como o “novo” ­  e  suas  tentativas  em  vários  ambientes  de 
defender  suas  ideias,  se  baseia  na  tentativa  de  repetir  hábitos  antigos  como  a  literatura  do         
Cordel, a xilogravura e diversas outras práticas que estão inseridas no movimento . Hobsbawn 
25

e Ranger afirmam que o “costume” não tem o sentido de invariabilidade, diferente da alegação 


de  Ariano  Suassuna,  que  reforça  a  tentativa  de  manutenção  por  via  de  seu  movimento  com 
ferramentas políticas e discursivas.  

     Nesses debates sobre a invenção de certas tradições, onde Hobsbawn e Ranger se debruçam 
e se aprofundam para explorar e entender como as tradições são inventadas. Percebe­se como 
diversos  conceitos  são  criados  socialmente  e  metodologicamente  para  se  classificar  certos 
aspectos e facilitar o entendimento da realidade. O conceito de “tradição” se enquadra nesse
âmbito.  

     O problema também se dá pelas limitações de certos conceitos que criamos, e pelo fato de 
serem inventivos e não naturais. É isso que Adam Kuper, em sua obra, “A reinvenção das
sociedades primitivas” nos coloca.  

6 SOMA DOS ESTILOS COMO RESISTÊNCIA 

    Nessa discussão sobre o conflito, cabe o debate sobre como certas culturas resistem e criam 
estratégias de autopreservação.  

     A “resistência” do manguebeat  tem  algo  de  particular  que  é  a  sobrevivência  por 
englobamentos de estilos. Enquanto vemos diversas culturas “resistirem”, reivindicando uma 
certa manutenção de suas tradições (se nota isto na fala de Suassuna), o manguebeat tem como 
luta e resistência a incorporação de diversos ritmos. Ele se consolida na renovação de termos 
culturais.  

     Importante lembrar que é no próprio contato de culturas que gera a riqueza de um povo ou 
movimento.  Lévi­Strauss  se  debruçou  fortemente  a  respeito  dessas  questões  em  Raça  e 
História, escrito em 1952. Como não existe  um  isolacionismo cultural e nas relações que as 
especificidades culturais se formam, o manguebeat se desenvolve desta forma, no convívio e 
choque de estilos que sua riqueza emerge e ganha o mundo.  
26

     No  Recife  do  final  do  século  XX,  Ariano  Suassuna  detinha  um  forte  prestígio  e  capital 
político  e  questionava  essa  intenção  de  junção  musical  vinda  dos  mangueboys.  Filho  de  um 
grande nome da política paraibana, membro da academia pernambucana de letras, ex­secretário 
da Educação e Cultura, a fala de Suassuna, tinha enorme ressonância no meio social nordestino.  

     Por outro lado, o  manguebeat surge com  jovens  inseridos no  movimento underground de 


Recife, totalmente fora da cena fonográfica hegemônica e também excluído do meio acadêmico. 
Esses jovens estavam entediados com o excesso de erudição que definiam a cultura da cidade, 
e criaram a cena mangue. Percebe­se que na sua raiz já tinham elementos de protesto e a crítica 
direcionada às elites, sejam elas econômicas, culturais ou acadêmicas.   

 .   Sua luta com o movimento armorial foi extremamente dura, devido ao valor que o poder 
público depositava na camada liderada por Ariano Suassuna. Um problema que se coloca, era 
a existência de uma coerção vinda  dos órgãos culturais do estado em relação a seu poder de 
legitimar ou não o que seria uma cultura “puramente” de Recife, negligenciando as artes e
culturas que surgiram na periferia da capital. Além do manguebeat, a banda “devotos do ódio”
é  um  claro  exemplo  da  riqueza  que  surge  dessas  camadas,  uma  banda  punk  que  emerge  na 
periferia de Recife na mesma época da cena mangue. 

     Vale­se ressaltar que o conceito de “resistência” também está inserido no âmbito da


“invenção”, para ganhar o respeito e ser aceito como “cultura de recife”, o manguebeat aceita 
e recria essa categoria de “resistente”. Sua ideia é difundida não apenas para fora de Recife mas
também para diversos locais do mundo. Essa “reinvenção” se dá na aceitação de vários estilos.
Da mesma forma que Roy Wagner afirma que a “cultura” se mostra no choque, principalmente
para o antropólogo em campo, o Manguebeat é o choque em si, e nos mostra o problema que 
se dá ao tentar demarcar onde termina uma cultura e se inicia outra.  

 
27

CONCLUSÃO 

      

     Após todas essas colocações, percebe­se como a episteme antropológica é complexa. Nesta 
pesquisa, que amplamente discutiu o choque entre Suassuna e Science, claramente é percebido 
uma maior quantidade de críticas feitas ao escritor do que ao músico.  

      Como já explanado, Ariano Suassuna é filho de seu tempo, nascido nos anos 20, bebeu de 
diversas  fontes  literárias,  e  se  ancorou  no  que  estava  vigente  cientificamente  em  sua  época. 
Uma fase em que a antropologia estava fundamentada em conceitos boasianos.  

     Chico  Science  nasceu  em  um  período  completamente  diferente,  onde  sua  concepção  de 
mundo era drasticamente distinta da visão dos anos 50 e 60. Science também era filho de seu 
tempo, seu ponto de vista estava baseado numa antropologia mais recente, onde o conceito de 
cultura foi minuciosamente trabalhado e explorado por diversos autores.  

     Assim como os dois artistas explorados na pesquisa, também sou filho do meu tempo, e não 
tenho a pretensão de mostrar um trabalho totalmente imparcial. Sou apoiado na antropologia 
do século XXI, com ajuda de Roy Wagner, Eduardo Viveiros de Castro, Geertz dentre tantos 
outros nomes importantes.   

     Assumir que a minha visão antropológica exposta nesta pesquisa é parcial, e que a constante 
crítica  a  respeito  da  visão  de  Suassuna  também  se  estabelece  pelas  minhas  experiências 
pessoais, que me atravessaram e ainda atravessam em qualquer produção, seja acadêmica ou 
não, é parte do processo de construção. Assumindo meu apreço por Chico Science e sua rica 
obra  deixada,  já  que  infelizmente  nos  deixou  em  um  acidente  de  carro,  o  debate  não  é 
invalidado, principalmente pelo fato da impossibilidade de se criar uma ciência completamente 
imparcial, seja ela de qualquer área, humanidades, exatas ou biológicas.  

     Ariano Suassuna não é isento de críticas, assim como qualquer pessoa, e suas concepções 
contraditórias não mancham sua belíssima história e obra, o que apenas mostra que é humano 
e está sujeito à erros. Uma mensagem importante que se nota, é que mesmo em movimentos 
extremamente distintos, Suassuna e Science se respeitavam e evoluíram juntos, alavancando a 
riquíssima cultura de Recife.   

      
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 REFERÊNCIAS: 

BARBOSA, Isabela. Entre o fogão e a ciência: a comida como objeto de estudo na 
construção da cultura. Revista Inter­Legere, Vol 2, p. 4­5 25/2019   

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1957. Homens e caranguejos. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense. 2007. 

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 FONSECA, Nara. O Manguebeat como Política de Representação, XXVIII Congresso 
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GIRON, Luiz Antônio, Chico Science "envenena" o maracatu. Folha de São Paulo. 
São Paulo, 31 de março de 1994.  

GUIMARÃES, Valéria. A passeata contra a guitarra e a “autêntica” música brasileira. 


Editora Unesp. São Paulo, 2014. 
              

HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A Invenção das tradições.  2ed., São Paulo:  Paz e   
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LARAIA, R.B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 
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29

LÉVI­STRAUSS, Claude. Raça e História. In: Antropologia Estrutural II. Rio de 
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