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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PEDRO IVO MONTES NEPOMUCENO
ATRITO EM RECIFE
O embate cultural entre o discurso tradicional de Ariano Suassuna e o
Manguebeat de Chico Science
Guarulhos 2021
PEDRO IVO MONTES NEPOMUCENO
ATRITO EM RECIFE: O EMBATE CULTURAL ENTRE O DISCURSO
TRADICIONAL DE ARIANO SUASSUNA E O MANGUEBEAT DE CHICO
SCIENCE
Trabalho de conclusão de curso, apresentado para
obtenção do título de licenciatura no Curso de
Ciências Sociais da Universidade Federal de São
Paulo, UNIFESP.
Orientado: Prof. Dr. Marcos Rufino
Guarulhos 2021
RESUMO
O presente trabalho visa analisar o conflito cultural que se estabeleceu na década de 90,
envolvendo o movimento armorial (tendo Ariano Suassuna como seu maior representante) e o
manguebeat, movimento que surge em Recife e engloba vários estilos nacionais e
internacionais; como o samba, pop, rock e hiphop. Tem como seu maior mentor o grupo Chico
Science e Nação Zumbi. O movimento armorial possui um discurso de defesa da
tradicionalidade. Esta narrativa já foi exposta outras vezes na história do país. Um dos objetivos
do trabalho é explorar como se cria essa argumentação feita por Suassuna em defesa da
“tradição” e quais categorias estão por trás desse discurso. Também expor conceitos
antropológicos que englobam esse atrito. Será explorado alguns conceitos chave como o de
“tradição” e autores como Adam Kuper, Hobsbawn, Terence Ranger, Franz Boas, Roy Wagner
e Mary Douglas.
Palavras chaves: Tradição; Manguebeat; Movimento armorial.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO……………………….………………...………..…..…….…...6
2.2. A trajetória de Chico Science…………..........………………...…................12
4. PARTICULARISMO HISTÓRICO E ACULTURAÇÃO…....….......….....17
4.1. Difusão de uma noção boasiana de cultura……………………..................19
5.1. Adam Kuper e a inventividade………………….....……..................…..….23
CONCLUSÃO……………………………………………...……........………….27
REFERÊNCIAS………………………………………………...…......…..……..28
1 INTRODUÇÃO
No ano de 1971, em Recife, surge um movimento que foi denominado como “Armorial”.
Essa corrente tem extrema importância para a pesquisa apresentada, que visa analisar o conflito
desta linha sociopolítica com o manguebeat, manifestação que surge nos anos 90 também em
Pernambuco.
O objetivo do movimento armorial era a manutenção de uma arte erudita e de identidade
propriamente brasileira. Essa iniciativa ganha bastante força no meio acadêmico da cidade,
onde se localiza até hoje a Universidade Federal de Pernambuco. Seu maior mentor foi Ariano
Suassuna, um grande escritor responsável por renomadas obras como “O Auto da
Compadecida”, “O Romance d'A Pedra do Reino” e o “Príncipe do Sangue do VaieVolta”.
Ariano Suassuna, tinha uma forte influência no meio acadêmico da cidade. Tornouse
professor de Estética na Universidade Federal de Pernambuco em 1956, foi um dos fundadores
do Conselho Federal da Cultura que surgiu em 1967. Foi secretário da Educação e Cultura de
1975 até 1978, onde possuía forte presença tanto no campo político quanto acadêmico. Também
foi membro da academia pernambucana de letras.
Em meados da década de 70, com esse prestígio na sociedade pernambucana, Suassuna
consegue transformar seu movimento em ativismo político. Com o aval do Governador e o
apoio do Departamento de Expansão Cultural da PróReitoria de Assuntos Comunitários da
Universidade Federal de Pernambuco, se dedica à busca por uma valorização da arte nordestina
e a tentativa de sua manutenção.
O movimento armorial, criado por Ariano Suassuna, tem esse nome devido a sua tentativa
de ligação do movimento com as raízes nordestinas, já que o termo “armorial”, significa um
conjunto de brasões, insígnias e outros símbolos que representam um determinado povo. Os
brasões também remetem à uma ideia de defesa, como se estivessem inserida em uma guerra
cultural, uma vez que os brasões também são um recurso militar.
Com seus brasões específicos, o movimento também tinha sua identidade própria. A
literatura do Cordel ganhou bastante destaque naquele período e foi um dos pilares do
movimento. Tratase de um gênero literário que emerge de relatos orais e é transferido para
folhetos. Esta arte se popularizou no século XVI, mais precisamente no renascimento. Com
outras formas de artes, como teatro em locais públicos, o movimento armorial esteve bastante
forte e presente no debate acadêmico e cultural da cidade, onde de certa forma, detinha uma
hegemonia. Isto até os anos 90, mais precisamente em 1991, quando surge uma banda com
nome de “Chico Science e Nação Zumbi” e um novo movimento no cenário de Recife chamado
Manguebeat.
Francisco de Assis França, mais conhecido como Chico Science, nasceu em Olinda em
março de 1966 e desde novo dizia ser bastante influenciado por artistas estrangeiros. Afirmava
ser muito admirador de James Brown e outros artistas do estilo soul norte americano.
Science começou sua trajetória em Olinda, onde participava de grupos de hip hop no começo
dos anos 80. Em 1991 ele fundou o grupo Chico Science e Nação Zumbi, que inova juntando
elementos tradicionais do nordeste, como o maracatu e ritmos europeus e norte americano,
como rock, ska, soul e música eletrônica.
No mesmo ano de formação da banda, sob sua influência surge o manguebeat, movimento
que tem como nome a mistura da palavra “Mangue” (manguezal, um ecossistema muito
presente no nordeste brasileiro), com a palavra de origem inglesa beat traduzida para o
português como “batida”, importante elemento da música.
Esse movimento já tinha uma base sonora nos anos 70 com Robertinho do Recife, um
guitarrista e produtor musical, mas ganha corpo e nome com Chico Science e Fred 04, que não
apenas desenvolveram o estilo musical, mas também exaltaram ideias e contestações que são
um dos aspectos que o movimento retrata, não apenas no âmbito sonoro mas também político
social. O manguebeat, além de influenciar a música, também provocou modificações nas artes
plásticas, moda e cinema.
Fred Rodrigues Montenegro, conhecido como Fred 04, foi um grande nome do manguebeat
e amigo pessoal de Chico Science. No ano de 1992 ele escreve o primeiro manifesto do
movimento. Fred foi estudante de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco e nessa
exposição de ideias o autor explora o bioma mangue, mostrando a sua riqueza e diversidade,
relacionandoo com a cidade de Recife e sua história, mostrando a ligação entre esses dois
espaços. O manguebeat tinha uma proposta completamente distinta do movimento armorial,
um dos objetivos desse movimento era a mistura de diversos gêneros de diferentes países.
O símbolo clássico do manguebeat é uma antena parabólica fincada na lama, explicitando
bem o que o movimento propunha, a mistura dos componentes culturais tradicionais com novos
estilos, onde a lama simboliza o “tradicional” e a antena o “tecnológico”. A antena também faz
referência a sinais captados, onde no conceito do manguebeat seria a atração de diversas
culturas para o mesmo movimento. A Nação Zumbi tinha uma parte de percussão que
reproduzia fortemente o maracatu, principalmente pela força da zabumba, e instrumentos
elétricos, como guitarras e contrabaixos. No próprio visual de Chico Science se percebe essa
mistura, ele usava óculos escuros num estilo “moderno” junto com um chapéu bem típico de
Olinda.
Suassuna critica fortemente o movimento reproduzido por Science afirmando que ele deixa
“impuro” a cultura local, reivindicando uma tradicionalidade regional. O escritor evita chamar
Chico Science pelo seu segundo nome alegando estrangeirismo, e o chama de “Chico Ciência”.
Há relatos expostos pelo próprio Ariano Suassuna de discussões entre ambos. O escritor
questiona Chico Science, afirmando que era desnecessário juntar os ritmos. Science responde
afirmando que a mistura era uma forma de valorizar a cultura local. Outro trecho interessante
que mostra a proposta do manguebeat está na fala de Renato Lins, amigo de Science e um dos
fundadores do movimento:
Aliás, é dessa paixão pelo funk, o primeiro amor consciente de Chico (Science) no mundo da
música, que veio a valorização da batida, do ritmo, a grande contribuição dos negros para a
música popular do século XX. Surgiu daí o impulso primordial que vai levar uma Nação Zumbi
a redescobrir o côco, o maracatu e outros ritmos locais. É o groove do Maracatu que vai chamar
a atenção da banda, e não uma suposta necessidade de se preservar a cultura popular. Nesse
ponto, as diferenças entre o Mangue e o movimento Armorial são intransponíveis. A tentação
de colocar numa espécie de solução em formol as manifestações populares nunca fez parte de
nossos planos. Muito pelo contrário, a ideia era dar condições para que elas pudessem dialogar
com o mundo contemporâneo, fertilizando-se no processo e assim voltando à vida. (LINS:
2004).
Esse debate se prolonga, havendo defensores pelos dois lados; aqueles que defendem a
reivindicação de Suassuna em manter a cultura local “pura”, e outros simpatizantes ao
manguebeat, que defendiam a riqueza que o movimento trouxe na mistura de estilos propostos
pelos mangueboys e manguegirls (assim que eram intitulados os integrantes do manguebeat).
Nesse ambiente que o embate se dá.
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2 SURGIMENTO DO MANGUEBEAT E O CONFLITO
Robertinho do Recife é considerado por alguns como o expoente da guitarra elétrica no
Brasil. Desde cedo já demonstrou interesse pela música. Aos 12 anos já tocava guitarra e tinha
enorme facilidade com o instrumento. Nos anos 60 viaja para os Estados Unidos e adquire
bastante conhecimento de música country e blues. Em sua carreira explorou e tocou diversos
estilos musicais, desde heavy metal até música voltada ao público infantil. O guitarrista expôs
que em início de carreira sofreu enorme influência de artistas estrangeiros como Rolling Stones,
Beatles e Jimi Hendrix.
Foi envolvido com o movimento underground de Recife, onde em 1973 participa do disco
“Satwa” de Lailson de Holanda Cavalcanti e Lula Côrtes, e cria o solo para a música “Blues do
Cachorro muito Louco”, que é considerado para alguns críticos como marco inaugural da
música psicodélica de Recife. Nesta mesma época o músico faz aparições com um instrumento
chamado “cítara”, bastante popular na Índia, mesclando elementos orientais com o rock
progressivo.
Robertinho do Recife junto com Pepeu Gomes é considerado um dos fundadores da
chamada “Escola brasileira de guitarra”. Ele próprio já declarou não gostar muito desse rótulo,
dizendo que não crê em uma “guitarra brasileira”, mas sim na multiplicidade da criação musical
que transcende qualquer nacionalidade específica.
Esse conceito musical já estava presente no seu primeiro disco solo chamado “Jardim da
Infância”, onde em diversas canções percebese a mistura de jazz, rock e ritmos regionais.
Conciliando triângulo (um instrumento muito forte na cultura regional de Pernambuco),
zabumba (outro instrumento de percussão também muito popular nessa região) com a guitarra
elétrica. Nesse contexto se vê uma forte preparação para o que vem em seguida, o manguebeat,
e sua proposta de englobamento multicultural.
Um dos principais nomes do manguebeat, Fred 04, afirma ter sido influenciado por
diversos artistas, tanto estrangeiros, como Creedence Clearwater Revival, e brasileiros como
Jorge Ben, Tim Maia e o próprio Robertinho do Recife, mas é no punk em que se identifica
mais fortemente. No início dos anos 80 cria a banda Trapaça. Entra em contato com o punk da
periferia de São Paulo, e se insere na cena Hard Core da capital paulista.
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No ano de 1984, um pouco mais maduro, funda a banda “Mundo Livre S/A” já em Recife,
onde misturou elementos do samba, sambarock, MPB e punk. Em 1992 tornase central na
criação do movimento manguebeat, junto com seu colega também jornalista, Renato Lins,
escreve o manifesto “Caranguejos com Cérebro”. O texto ganha bastante visibilidade após uma
reportagem exibida pela emissora MTV sobre o novo movimento. Essa matéria foi ao ar em
janeiro de 1993.
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se
encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos
movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os
mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha.
Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são
tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão
dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas
do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose
econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome
da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento
acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para
saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias.
O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é
matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão
crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as
baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda
resta de fertilidade nas veias do Recife.
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Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo
de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*,
capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de
conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a
se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena
musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de
moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas
e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
Dentro do Manifesto, percebese a sofisticada união entre conceitos científicos e artísticos
junto com uma forte crítica social, principalmente em relação às formas que o poder público se
relaciona com o bioma.
No primeiro parágrafo, quando os autores se referem à "troca da água doce com a água
salgada”, se referindo ao manguezal, se vê uma clara alusão à suas formas de enxergar o mundo
e a cultura. Da mesma forma que o mangue acolhe as duas “formas” de água, o manguebeat
absorve diversos ritmos e culturas.
Já no segundo parágrafo, os criadores do manifesto explicitam números que mostram a
riqueza do mangue, e como ele se relaciona com a cidade, mostrando a relação que o bioma
“natural” tem com a metrópole, e como este bioma está convergido com o urbanismo, tanto do
ponto de vista econômico, quanto do cultural e folclórico. No último parágrafo de “Mangue, o
conceito”, é colocado a riqueza biológica do mangue no seu caráter científico. Vale lembrar
que a cientificidade também conota um caráter de “moderno”, enquanto o mangue carrega um
símbolo de “tradicionalidade”.
O segundo parágrafo deste último capítulo, é focado em remeter o lado multicultural de seu
movimento. Quando escrevem que em 91 se organizou um certo núcleo de pesquisa pop, que
tinha como objetivo “engendrar um ‘círculo energético’ capaz de conectar as boas vibrações
dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop, nasce o símbolo principal do
manguebeat, a antena parabólica fincada na lama.
Na parte final do manifesto, Fred e Lins fazem uma referência a Josué de Castro, figura
importante no cenário nacional, principalmente no combate à fome, onde em 1942 criou o
Serviço de Alimentação da previdência social (SAPS). Este acadêmico inspirou claramente os
criadores do manguebeat.
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2.1 Josué de Castro como referência
Josué de Castro era médico, natural de Recife, lecionou Antropologia física na Universidade
do Distrito Federal em 1935 no Rio de Janeiro. Em 1938 sua pesquisa o leva à Universidade de
Roma, também esteve presente em Nápoles e Gênova.
O médico também era escritor de outros estilos literários. Em 1967 escreveu o romance
“Homens e caranguejos”, em homenagem ao Brasil, já que foi exilado em decorrência da
ditadura militar, permaneceu na França até sua morte em 1973. Este romance narra a história
de um garoto de Recife, que tem que lidar com sua condição de pobreza material e se vê, desde
cedo, tendo que trabalhar no mangue para sobreviver. Da influência desse título nasce o nome
do manifesto escrito pelos mangueboys, “Caranguejos com cérebro”.
No romance, existe uma menção de uma estranha mimetização entre caranguejos e humanos,
onde que, para o autor: “a sociedade dos mangues é uma sociedade imprensada entre estas duas
estruturas esmagantes” (p. 14), se referindo à estrutura agrária feudal e a capitalista. Esta
mimese a que o autor se refere, é pelo fato dos homens, assim como os crustáceos, estarem
inseridos na lama do mangue, viverem de migalhas, famintos e muitas vezes andarem para trás,
metaforicamente se remetendo à sua condição precária de vida, e a dificuldade de se emancipar.
Na Canção Da Lama ao Caos, composta por Chico Science em 1994, que também dá nome
ao título do álbum, existe uma clara referência da relação que Josué de Castro desenvolveu no
seu romance. No refrão: “Da lama ao caos, do caos à lama, um homem roubado nunca se
engana”, o compositor já afirmou em entrevista que se remeteu ao caranguejo, que vaga entre
a lama (seu habitat) e o caos (a captura pelo humano), e relacionouo ao trabalhador, que se
locomove entre a lama (seu local de trabalho) e o caos (a cidade). Na própria canção, Science
cita o nome de Castro no trecho: “O Josué nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem
mais urubu ameaça” (CHICO SCIENCE E NAÇÃO ZUMBI, 1994), denunciando a miséria e
degradação social que o proletário estava inserido naquele contexto.
Em outra declaração, Science declarou a influência que Castro teve, tanto em sua obra
quanto em seu estilo de pensar:” Na imagem de Josué somos ‘caranguejos com cérebro’, como
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nos pescadores que ele descreveu no livro ‘Homens e caranguejos’. Eles pescam e comem
caranguejos, para depois excretálos num ciclo caótico. Fazemos uma música caótica.”
(GIRON, 1994, p. 55)
Josué de Castro influenciou não apenas Science, mas todos inseridos no movimento
manguebeat. O autor do manifesto, Fred 04, jornalista e leitor de Castro, em sua banda Mundo
Livre S/A, adotou o conceito cultural do movimento e mesclou diversos ritmos e conceitos. Seu
primeiro trabalho, o disco “Samba esquema noise”, faz referência ao antigo trabalho de Jorge
Ben “Samba esquema novo”.
É possível notar na sonoridade da banda Mundo Livre S/A, a influência principalmente nas
distorções da banda The Clash, junto com o ritmo de Jorge Ben Jor. No ano de 87, em sua
primeira demo, a banda já tinha feito uma inesperada junção da música Fio Maravilha de Jorge
Ben, com a música Big Mouth Strike Again, da banda inglesa The Smiths. Eles deram o nome
dessa música de Jorge Ben Tries it Against. Samba Esquema Novo é lançado no mesmo ano
que “Da Lama ao Caos”, de Chico Science e Nação Zumbi.
2.2 A trajetória de Chico Science
Chico Science cresceu no Bairro Rio Doce onde pegava caranguejos no mangue para vender
na feira. Desde novo se dizia apreciador de Michael Jackson. Em 1984 entra para um dos grupos
de hip hop mais relevantes de Recife, o Legião HipHop.
Em 1987, criou uma banda com o nome de Loustal, em referência ao quadrinista francês,
Jacques Loustal. Nesse grupo, Chico Science, Alexandre Dengue, e Lúcio Maia inserem vários
estilos musicais no mesmo contexto, como o ska, soul, funk e hip hop.
Em 1991, Science entra em contato com um grupo que fazia um trabalho de inclusão social
na periferia de Recife, mais precisamente em Olinda. O bloco afro Lamento Negro, unia
maracatu, coco de roda e sambareagge. Ele convida o grupo a se reunir com a sua banda e
nisso formam o Chico Science e Lamento Negro, que mais tarde se consolidaria como Chico
Science e Nação Zumbi.
No mesmo ano, a banda faz sua primeira apresentação no espaço "Oásis" em Olinda, junto
com o Mundo Livre S/A. Esse cenário ganha bastante repercussão principalmente pela mídia
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local. No início, Chico Science se referia a seu estilo apenas como “mangue”, mas como no
primeiro disco do Mundo Livre S/A existia uma música com o nome de manguebit e após
repetidas menções da imprensa, o movimento se difunde como manguebeat.
O manguebeat se popularizou principalmente em 1992, na publicação do manifesto
“Caranguejos com Cérebro” e se consolidou com os lançamentos de “Samba esquema noise” e
“Da lama ao caos” ambos em 1994. No encarte de “Da lama ao caos” está presente o manifesto
escrito por Fred 04 e seu amigo jornalista, Renato Lins.
Nos títulos das músicas do disco já está presente o conceito do manguebeat e sua
abrangência. Como no caso do “Maracatu de Tiro Certeiro”, que faz referência à música do
grupo Beastie Boys “Sure Shot”. A música “Samba Makossa" remete a “soul makossa”, música
do artista camaronês Manu Dibango. A faixa “Côco Dub”, faz alusão ao “côco” nordestino e
ao dub jamaicano. Mostrando a proposta do movimento de interação entre as culturas.
Para Suassuna estas misturas são nocivas para a cultura local, pois estaria “contaminando”
a sua concepção de cultura “pura”.
Ariano Suassuna nasceu em João Pessoa em 1927. Seu pai era presidente do Estado da
Paraíba. O fundador do “movimento armorial” nasceu na sede do poder executivo paraibano, o
Palácio da Redenção. Formouse em Ciências Jurídicas e Sociais, no ano de 1945 na Faculdade
de Direito do Recife. Foi fundador e membro do Conselho Federal de Cultura e em 1970 inicia
o “Movimento Armorial”, interessado na divulgação da cultura nordestina.
Suassuna perdeu seu pai na década de 30, evento que o marcou profundamente e influenciou
a sua forma de escrita. Em seu discurso, quando é convidado a fazer parte da academia
pernambucana de letras, afirma que escreve para denunciar e protestar contra a morte de seu
genitor. Nos anos 90 é membro da academia brasileira de letras, onde ocupou a cadeira de
número 32.
escritor. Para Suassuna, o Cordel é um representante “legítimo” da arte popular brasileira. Ele
afirma:
Eu acho que do ponto de vista político por exemplo, uma manifestação de cultura popular como a
literatura do cordel tem o seu equivalente no campo político no Arraial de Canudos. Um folheto como
O homem da vaca e o poder da fortuna, de Francisco Sales Arêda, expressa uma forma de arte que é
feita a margem de influências ou deformações impostas de fora (do Brasil) ou de cima (de outras classe
sociais). (LINS, 2007, p 52)
Além da literatura de cordel, o movimento teve representantes em teatros, literatura, danças,
artes plásticas, músicas e etc.
A ideia defendida pelos armorialistas não se limitavam apenas à romantização do sertão,
mas também criouse bases de diálogos com o meio urbano. O multiartista Antônio Nóbrega,
um dos herdeiros do movimento armorial afirma: “Meu recorte armorial é mais um recorte
urbano que propriamente rural ou sertanejo. O sertão para mim é uma paisagem longínqua, ela
não faz parte das minhas vísceras culturais” (Antônio, Movimento Armorial, 50 anos do convite
para que o Brasil mire as suas entranhas,Revista EL País, 2020).
Nóbrega foi convidado pelo próprio Suassuna a fazer parte do Quinteto Armorial, um grupo
musical que construiu uma nova sonoridade com instrumentos próprios, como marimbaus (um
berimbau invertido).
Antônio Nóbrega pertencia à classe média alta de Recife, frequentou a Escola de Belas Artes,
cursando música. Era bem próximo de Ariano Suassuna, este que era considerado um mestre
de cerimônias nos eventos do movimento armorial, sempre presente, proclamava a sua
concepção de cultura e explicava cada instrumento popular e gênero inserido em cada
apresentação.
Cinquenta anos após o surgimento do movimento armorial, Nóbrega ainda crê em criar um
estilo propriamente brasileiro e popular, mas diferente de Suassuna, mescla elementos
ocidentais e europeus, com elementos indígenas e africanos. Ele afirma que sozinho, não é
possível se criar nada.
Percebese como Suassuna é filho de seu tempo, e como sua concepção de cultura estava
ancorada em algo difundido pelo mundo, vindo de Franz Boas. Um de seus discípulos (Antônio
Nóbrega) percebeu que a ideia do movimento armorial estava ultrapassada e assim como todo
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movimento, sofre mudanças, mas o objeto de estudo que se baseia esta pesquisa é o conflito
que se deu entre Suassuna e Science, o movimento armorial ganha outros contornos já no início
do século XXI.
Houveram alguns avanços significativos desde a formação do movimento armorial, como a
inclusão de instrumentos como a viola, o cordel e a xilogravura no meio acadêmico de uma
forma institucionalizada, gerando um enriquecimento dentro da própria academia.
J. Borges, com 84 anos, artista plástico, afirma querer manter a cultura brasileira viva.
Amigo íntimo de Suassuna, afirma ser pertencente ao movimento armorial e expõe sua
xilografia em diversos países. Na mesma entrevista dada ao jornal El País, também contribuída
por Nóbrega, afirma que o “armorialismo” está fraco e é raro ver defensores de uma cultura
restritamente brasileira, diz com um certo tom de lamentação. Borges também tece críticas ao
finado Suassuna, dizendo que o “armorial” era focado na elite de Pernambuco, enquanto seu
trabalho tinha mais base nas camadas mais populares, talvez pela forte influência que Suassuna
exercia no meio político, fez o crer que o escritor tenha se afastado um pouco da classe popular
de Recife.
Mostrase como que o movimento armorial se transformou durante um tempo, mas a
concepção de Suassuna na época do conflito com Science era de que: a aculturação, ou
influência de outras culturas sobre a sua, seria uma deformação. Mostrase como seu discurso
se baseia em alicerces de “cultura limpa” ou “pura”.
3 A NOÇÃO DE PUREZA EM MARY DOUGLAS
Nesse sentido é importante trazer conceitos antropológicos, como o desenvolvido por Mary
Douglas, que debatem a questão colocada por Suassuna de cultura “suja” e como surge essa
concepção de “sujeira”.
Douglas foi uma antropóloga norte americana que desenvolveu um estudo sobre a noção de
“pureza e perigo”. A autora problematiza esses conceitos, afirmando que existe uma relação
direta deles com a tentativa de ordenar as coisas. Seu estudo enriquece a pesquisa quando se
nota, na lógica da exposição de Ariano Suassuna a sua tentativa de colocar como ”sujo” o
manguebeat.
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Ela discorre sobre esses conceitos afirmando que a “sujeira” está ligada com a “desordem”,
onde seriam elementos que estariam no âmbito do “inclassificado”, pois assumiriam posições
ambíguas dentro da estrutura social. A “poluição” pode emergir quando as regras morais se
apresentam de uma forma mais afrouxada. A visão que Ariano Suassuna tem do manguebeat é
a mesma de “poluição”, quando afirma que esse estilo está `'contaminando" a “tradição”
regional que ele defende e entende como “descontaminado”.
Percebese que na teoria de Douglas, tem como questão central a ordem das coisas, onde o
perigo está inserido e pode aparecer principalmente no território do inclassificado e indefinido,
visto que, existe um limite social para as classificações e simbolizações. Nesta lógica que
Suassuna tem imensa dificuldade de assumir o movimento manguebeat como legitimamente
recifense.
Alguns estudos de Douglas a respeito dos nativos do Congo Belga, abriu portas para a
antropologia refletir principalmente sobre as sociedades em que fazemos parte, e não apenas
outras. A noção de sujeira gera um ordenamento próprio, onde a busca por limpeza não está
estritamente ligado à evitar doenças, a visão de sujeira demarca fronteiras. Aquilo que é visto
como “sujo”, seria o que não se enquadra no sistema de classificação. Ela cita o exemplo do
consumo de carne de porco que é evitado por religiões muçulmanas e judaicas. Essas proibições
estariam relacionadas a noção de “impureza”, assim como nos Yorubá, que só se alimentam
com a mão direita pois a esquerda é também vista como “impura”. Para Mary Douglas, a sujeira
pode penetrarse colocando em xeque certas convenções sociais, qualquer coisa fora do seu
lugar representa um risco. Nesse sentido Suassuna reproduz uma fala em que o manguebeat se
enquadraria em “impuro”, pois o movimento de Chico Science coloca em “desordem” a noção
de cultura de Ariano Suassuna.
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4 PARTICULARISMO HISTÓRICO E ACULTURAÇÃO
.
Antes de Boas, a teoria sobre uma evolução cultural estava totalmente presente no meio
acadêmico, principalmente em meados do século XIX e início do XX. Essa teoria se tratava de
defender a tese de que as sociedades percorrem uma trajetória de estágios, com forte influência
do positivismo. Acreditavase que as diferentes culturas iam do simples para o complexo e que
nas sociedades estavam presentes leis definidas. A Europa era vista como o estágio mais
avançado, que se auto intitulava “civilizada”, com um forte teor eurocêntrico. Boas desconstrói
toda essa linha de pensamento.
Para Boas os métodos acadêmicos não deveriam estar ancorados no eurocentrismo, e nem
classificar determinadas culturas em estágios predeterminados. Ele defendia que a história das
sociedades não possuem leis definidas, pois os desenvolvimentos culturais seguem uma
trajetória própria.
O particularismo histórico de Boas seria visto como um método histórico de análise cultural.
Ele propunha, metodologicamente, substituir a concepção dedutiva pela indutiva. A semelhança
de práticas ou objetos em diferentes locais do planeta, não deveria ser tratado como início do
estudo, mas sim como objetivo a ser analisado.
Boas crítica o método comparativo (usado pelos evolucionistas) e cria seu método chamado
“particularismo histórico”. Este método cria bases para o discurso que surge em Recife pela
fala de Suassuna. O método comparativo tinha como regra a tentativa de encontrar semelhanças
em culturas diversas com o intuito de classificar em qual estágio aquela cultura estaria inserida.
Esta metodologia disseminou no mundo a ideia de que a história seguia um caminho único,
ignorando os processos internos das culturais locais. Para Celso de Castro:
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“Temos outro método que em muitos aspectos é bem mais seguro. O estudo detalhado de
costumes em sua relação com a cultura total da tribo que os pratica, em conexão com uma
investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas, propicia-nos quase sempre
um meio de determinar com considerável precisão as causas históricas que levaram à
formação dos costumes em questão e os processos psicológicos que atuaram em seu
desenvolvimento.”
Ou seja, para Celso de Castro o método histórico é mais eficaz pois leva em consideração
a relação entre a cultura estudada com ambientes vizinhos e a influência que pode ser exercida
entre ambos. Também tentase anular o âmbito eurocêntrico do método comparativo, não
colocando a Europa como último estágio da civilização e leva em conta os processos históricos
que as culturas foram submetidas e os fatores psicológicos que a formaram. Mas essa sofisticada
teoria de Franz Boas fez surgir uma concepção de cultura onde se acreditava que, pelo
particularismo histórico e específico de cada ambiente, a cultura teria um caráter desagregado,
onde costumes e hábitos não se relacionariam e formariam uma cultura “cristalina”.
Para Boas existia uma dinâmica no processo cultural, na relação com os indivíduos inseridos
nessas sociedades, pois da mesma forma que o indivíduo é formado pela cultura ele também
pode alterar seu corpo social, seu olhar é mais focado na cultura estudada ao invés de generalizar
e comparar diversas culturas. Seus estudos revolucionaram a forma do fazer antropológico, mas
difundiu a ideia de que a cultura seria algo estático, onde poderia se perder em contato com
outras e possuía uma característica de isolamento, o que é problemático, pois com a evolução
da antropologia e o surgimento de novas teses, hoje sabese, que a cultura denota um caráter
extremamente de interação.
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4.1 Difusão de uma noção boasiana de cultura
Franz Boas é sem dúvida um grande nome dentro da Antropologia, sua metodologia ajudou
os estudos antropológicos, principalmente no que se refere ao trabalho no campo e a etnografia.
Seu particularismo histórico criou bases sólidas para que outras teorias emergissem, como o
funcionalismo e o estruturalismo.
Mas esse discurso criou ideias em volta do conceito de “cultura” que ainda perduram. Em
uma visão baseada em sua teoria, acreditase na ideia de cultura “pura”, onde há um receio de
aproximação de culturas distintas e para essa crença uma cultura pode ser “contaminada” ou
“perdida”. Neste ponto, essa noção desencadeada por intérpretes de Boas converge com a
pesquisa. Quando o movimento armorial adota esta concepção de “cultura pura”, tentando de
alguma forma deslegitimar o que não se enquadraria para eles como cultura “tradicional” e
regional, fazse necessário uma tentativa de compreensão deste discurso, e de desconstrução de
certos conceitos.
O discurso em defesa da manutenção da cultura já foi emitido em várias ocasiões. A fala de
Ariano Suassuna resgata essa ideia e tem uma direta ligação com a visão boasiana de cultura,
onde em defesa da tradicionalidade ele reivindica uma cultura “legítima”, afirmando que o
maracatu e outras vertentes típicas do nordeste estavam sendo perdidas pela inserção de outros
componentes culturais.
Essas teses emitidas por Ariano Suassuna, defendem uma visão onde, uma certa cultura
impõese sobre a outra, acarretando um desaparecimento cultural. Essa defesa está ancorada na
crença de que a cultura possui uma característica de isolamento e não de contato, a mesma
concepção de Boas e o seu particularismo histórico.
Este legado que Boas disseminou, esteve presente no debate social em diversos períodos. Um
exemplo foi a marcha contra a guitarra elétrica que ocorreu em 17 de julho de 1967. Com o
respaldo de não se perder aspectos culturais brasileiros, alguns artistas protestaram contrário a
este instrumento musical, alegando que a sua presença seria um perigo para a manutenção da
nossa cultura.
Esse evento que também ficou conhecido como “Passeata da MPB” reuniu diversos artistas
e figuras importantes do cenário nacional. Elis Regina liderou esse movimento. Gilberto Gil,
Jair Rodrigues e Edu Lobo também se juntaram à passeata.
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É compreensível a motivação desse movimento, dado que o Brasil dos anos sessenta tenha
passado por um processo de globalização intensa, assim como muitos outros países. É possível
traçar um paralelo desse discurso com a formação da bossa nova, essa que era vista como uma
ameaça ao samba, que tinha status de música “autêntica” brasileira. Mas não foi apenas aqui
que esse discurso ecoou. Dois anos antes, em 1965, houve muita repulsa quando Bob Dylan,
nome clássico da música folk norteamericana, aderiu a guitarra e recebeu duras críticas dos
que afirmavam uma possível perda de identidade do músico de Minnesota.
Em relação ao termo “Aculturação”, ele se remete ao processo de mudança cultural, que se
dá pela interação entre duas ou mais culturas. É uma dinâmica comum nas relações culturais e
descreve o contato de culturas e quando uma influência e é influenciada por outra. Objeto de
extrema relevância para esta discussão, pois o que os membros do movimento liderado por
Suassuna propõe, é um freamento do processo de aculturação e a manutenção da sua concepção
de cultura “não contaminada”.
Segundo o antropólogo Roque Laraia, os sistemas culturais em nenhum momento ficam em
um estado imóvel, o seu processo é dinâmico:
[…] qualquer sistema cultural está num contínuo processo de modificação. Assim sendo, a
mudança que é inculcada pelo contato não representa um salto de um estado estático para um
dinâmico, mas, antes, a passagem de uma espécie de mudança para outra. O contato, muitas
vezes, estimula a mudança mais brusca, geral e rápida do que as forças internas. (LARAIA, 2013,
p.96)
A “aculturação”, está diretamente ligada à relação entre diferentes culturas. Possui seu
dinamismo próprio e os efeitos que esse contato acarreta gera novas formas e costumes. Não
existe cultura “pura”, a própria formação de “cultura” é e sempre foi pela comunicabilidade
entre os seres humanos. Neste sentido que uma defesa de “legitimidade cultural” é impossível,
visto que, a cultura nunca esteve e nem estará em um estado límpido
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Melville J. Herskovits, antropólogo norte americano, debateu amplamente esse conceito.
Fruto da escola boasiana, elaborou o conceito de “aculturação” a partir do legado de Franz
Boas, transformandoo em um objeto de estudo na antropologia.
Boas acreditava em um “Geist”, que seria um “gênio de um povo”, desse modo, cada cultura
molda e absorve elementos externos para inserir em seus próprios padrões. Para Herskovits,
que estudou por um período os afrodescendentes nos Estados Unidos, os traços culturais
africanos estariam sobrevivendo num âmbito mais profundo na cultura ocidental, pois os
“gênios” europeus estariam se sobrepondo aos africanos.
E nesse sentido que está baseado a tese de Ariano Suassuna, que pela aculturação a cultural
regional pernambucana estaria “perdendo” a sua identidade. Negligenciando o fato da própria
cultura de Recife estar em constante mudança e reinvenção.
5 TRADIÇÃO, CULTURA E O PROBLEMA DA INVENÇÃO
Para Wagner a cultura se torna visível no choque que ocorre com outra, principalmente
quando se dá no trabalho de campo. Quando o manguebeat entra em contraste com a literatura
de Cordel e outros elementos do movimento armorial, a cultura defendida por Suassuna fica
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mais evidente para ele, é pelo choque que ela se torna claramente visível, e nesse contexto que
ele tenta "defendêla".
Como todo processo de construção nacional, a invenção da brasilidade passa a definir como
puro ou autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação. O autêntico é sempre
artificial, mas, para ter “eficácia simbólica”, precisa ser encarado como natural, aquilo que
“sempre foi assim”. O samba de morro, recém-inventado, passa a ser considerado o ritmo mais
puro, não contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado (afastando
qualquer possibilidade de mudança mais evidente) com o intuito também de se preservar a
“alma brasileira”. (VIANNA, 1995, p.152-153)
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5.1 Adam Kuper e a inventividade
Outro autor que discute sobre o conceito de “invenção” é Adam Kuper. Uma das questões
centrais do antropólogo, é a dificuldade que certos padrões classificatórios nos proporcionam.
As sociedades ditas como “primitivas” não podem ser enquadradas nesses conceitos ocidentais,
que são marcados por uma concepção colonialista e diretamente ligado à invenção. Pois é um
conceito criado pelos ocidentais e por sociedades específicas.
Da mesma forma que “cultura” também é invenção, a narrativa que se cria em torno da
defesa de certa cultura, negligenciase sua forma inventiva. O manguebeat estava inserido como
agente de invenção cultural, mas a crítica que recebia, ignorava esse seu caráter.
Adam Kuper analisa o método e os trabalhos antropológicos desde o século XIX, onde os
“primitivos” eram vistos mais ligados à um âmbito “religioso”, enquanto os “modernos” eram
detentores e produziam a racionalidade. Kuper faz uma forte crítica desses parâmetros
epistemológicos, afirmando que eles possuíam um caráter colonialista, colocando certos
comportamentos dos nativos como exóticos ou estranhos. Isso seria claramente uma “invenção”
ocidental. Para ele é necessário uma reformulação da prática científica e também de seus
conceitos operacionais.
A enunciação proclamada pelo movimento armorial estava carregado de um caráter
inventivo, Suassuna acreditava que a sua concepção de cultura tinha surgido de uma forma
“espontânea”, por isso reivindicava uma “autenticidade”, não percebendo o processo de
invenção que todas as culturas, inclusive a sua, estava inseridas. Por meio dessas invenções de
“tradições” e defesa do “autêntico”, ele reivindica uma manutenção de “pureza” inatingível,
desqualificando o manguebeat mesmo ele sendo produto legítimo de Recife. Da mesma forma
que “cultura” é algo que se inventa, a “tradição” possui a mesma lógica.
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Junto com a inventividade por parte dos artistas de Recife, existe a reprodução de um
discurso de defesa da “tradição”, este que é um conceito amplamente discutido nas ciências
humanas. Do mesmo jeito que nós ocidentais criamos conceitos como “natureza” e “cultura”,
a “tradição” também é algo que está no âmbito da invenção.
Podese claramente perceber que essas práticas evocadas pelos autores são reproduzidas por
Ariano Suassuna quando ele defende repetidamente a manutenção de certas ações. Onde os
valores vão se moldando pelo seu discurso e esta ritualização em busca do passado é percebido
quando Suassuna cria, politicamente, meios de tentar reafirmar o passado daquela região. Pois
é disto que se trata o movimento armorial, a tentativa de estabelecer uma relação contínua com
um passado específico.
Os autores também diferenciam a “tradição” do “costume”, onde nas tradições o caráter de
invariabilidade é central, e o passado defendido os fazem repetir práticas de uma forma
sistemática. Nesse sentido que é possível colocar o argumento dos defensores do movimento
armorial no âmbito de defesa de “tradição inventada”, pois a sua defesa se aflorar quando surge
o manguebeat caracterizado como o “novo” e suas tentativas em vários ambientes de
defender suas ideias, se baseia na tentativa de repetir hábitos antigos como a literatura do
Cordel, a xilogravura e diversas outras práticas que estão inseridas no movimento . Hobsbawn
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Nesses debates sobre a invenção de certas tradições, onde Hobsbawn e Ranger se debruçam
e se aprofundam para explorar e entender como as tradições são inventadas. Percebese como
diversos conceitos são criados socialmente e metodologicamente para se classificar certos
aspectos e facilitar o entendimento da realidade. O conceito de “tradição” se enquadra nesse
âmbito.
O problema também se dá pelas limitações de certos conceitos que criamos, e pelo fato de
serem inventivos e não naturais. É isso que Adam Kuper, em sua obra, “A reinvenção das
sociedades primitivas” nos coloca.
6 SOMA DOS ESTILOS COMO RESISTÊNCIA
Nessa discussão sobre o conflito, cabe o debate sobre como certas culturas resistem e criam
estratégias de autopreservação.
A “resistência” do manguebeat tem algo de particular que é a sobrevivência por
englobamentos de estilos. Enquanto vemos diversas culturas “resistirem”, reivindicando uma
certa manutenção de suas tradições (se nota isto na fala de Suassuna), o manguebeat tem como
luta e resistência a incorporação de diversos ritmos. Ele se consolida na renovação de termos
culturais.
Importante lembrar que é no próprio contato de culturas que gera a riqueza de um povo ou
movimento. LéviStrauss se debruçou fortemente a respeito dessas questões em Raça e
História, escrito em 1952. Como não existe um isolacionismo cultural e nas relações que as
especificidades culturais se formam, o manguebeat se desenvolve desta forma, no convívio e
choque de estilos que sua riqueza emerge e ganha o mundo.
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No Recife do final do século XX, Ariano Suassuna detinha um forte prestígio e capital
político e questionava essa intenção de junção musical vinda dos mangueboys. Filho de um
grande nome da política paraibana, membro da academia pernambucana de letras, exsecretário
da Educação e Cultura, a fala de Suassuna, tinha enorme ressonância no meio social nordestino.
. Sua luta com o movimento armorial foi extremamente dura, devido ao valor que o poder
público depositava na camada liderada por Ariano Suassuna. Um problema que se coloca, era
a existência de uma coerção vinda dos órgãos culturais do estado em relação a seu poder de
legitimar ou não o que seria uma cultura “puramente” de Recife, negligenciando as artes e
culturas que surgiram na periferia da capital. Além do manguebeat, a banda “devotos do ódio”
é um claro exemplo da riqueza que surge dessas camadas, uma banda punk que emerge na
periferia de Recife na mesma época da cena mangue.
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CONCLUSÃO
Após todas essas colocações, percebese como a episteme antropológica é complexa. Nesta
pesquisa, que amplamente discutiu o choque entre Suassuna e Science, claramente é percebido
uma maior quantidade de críticas feitas ao escritor do que ao músico.
Como já explanado, Ariano Suassuna é filho de seu tempo, nascido nos anos 20, bebeu de
diversas fontes literárias, e se ancorou no que estava vigente cientificamente em sua época.
Uma fase em que a antropologia estava fundamentada em conceitos boasianos.
Chico Science nasceu em um período completamente diferente, onde sua concepção de
mundo era drasticamente distinta da visão dos anos 50 e 60. Science também era filho de seu
tempo, seu ponto de vista estava baseado numa antropologia mais recente, onde o conceito de
cultura foi minuciosamente trabalhado e explorado por diversos autores.
Assim como os dois artistas explorados na pesquisa, também sou filho do meu tempo, e não
tenho a pretensão de mostrar um trabalho totalmente imparcial. Sou apoiado na antropologia
do século XXI, com ajuda de Roy Wagner, Eduardo Viveiros de Castro, Geertz dentre tantos
outros nomes importantes.
Assumir que a minha visão antropológica exposta nesta pesquisa é parcial, e que a constante
crítica a respeito da visão de Suassuna também se estabelece pelas minhas experiências
pessoais, que me atravessaram e ainda atravessam em qualquer produção, seja acadêmica ou
não, é parte do processo de construção. Assumindo meu apreço por Chico Science e sua rica
obra deixada, já que infelizmente nos deixou em um acidente de carro, o debate não é
invalidado, principalmente pelo fato da impossibilidade de se criar uma ciência completamente
imparcial, seja ela de qualquer área, humanidades, exatas ou biológicas.
Ariano Suassuna não é isento de críticas, assim como qualquer pessoa, e suas concepções
contraditórias não mancham sua belíssima história e obra, o que apenas mostra que é humano
e está sujeito à erros. Uma mensagem importante que se nota, é que mesmo em movimentos
extremamente distintos, Suassuna e Science se respeitavam e evoluíram juntos, alavancando a
riquíssima cultura de Recife.
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construção da cultura. Revista InterLegere, Vol 2, p. 45 25/2019
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