Você está na página 1de 411

INTERDISCIPLINARIDADE

E CONSTRUÇÃO DO
SABER CIENTÍFICO:
ENTRE HISTÓRIA E OS
CAMPOS DO
PENSAMENTO HUMANO

Vol. 2
INTERDISCIPLINARIDADE
E CONSTRUÇÃO DO
SABER CIENTÍFICO:
ENTRE HISTÓRIA E OS
CAMPOS DO
PENSAMENTO HUMANO
Vol. 2

Organizadores:
Jilton Joselito de Lucena Ferreira
Luiz Gervázio Lopes Júnior
Maria Letícia Costa Vieira
1° Edição/ 2023
UICLAP
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico: Entre
História e os Campos do Pensamento Humano Vol. 2
ISBN: 978-65-00-65520-9

Copyright by © Organizadores:
Jilton Joselito de Lucena Ferreira
Luiz Gervázio Lopes Júnior
Maria Letícia Costa Vieira

Ano da Publicação: 2023

Todos os Direitos Reservados


Conforme a Lei 9.610/98 é proibida a reprodução total e parcial ou
divulgação comercial sem a autorização prévia e expressa do autor
e/ou da Editora UICLAP

Os textos deste livro são de total responsabilidade de seus


autores

Impressão:
Editora Uiclap Editora e Distribuidora LTDA - CNPJ:
35.252.144/0001-10 – 2021

Capista:
Maykon Moreno Costa

Diagramação:
David de Souza Marques
Maykon Moreno Costa

Revisão:
Todos/todas os/as autores/autoras revisaram seu texto de forma
individual
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Sumário
TRABALHADORES E ESTADO NOVO NO BRASIL: UM
DEBATE HISTÓRICO E HISTORIOGRÁFICO ACERCA DOS
CONCEITOS DE POPULISMO E TRABALHISMO ................... 15
Pedro Henrique Costa Pessoa

O IMPACTO DA PRESENÇA NORTE-AMERICANA NO


IMAGINÁRIO E COTIDIANO DAS CRIANÇAS PICUIENSES
DA DÉCADA DE 40 ............................................................................. 41
Elielma da Silva Nóbrega

PAU-BRASIL: CONTATOS, CONFLITOS E DISPUTAS


IMPERIAIS NO CONTEXTO DAS VIAGENS
ULTRAMARINAS (SÉCULOS XVI E XVII)................................... 67
Éverton Alves Aragão

CALL CENTER E A TECNOLOGIA EM FUNÇÃO


CONTROLE ........................................................................................... 99
Pedro Henrique Dos Anjos Cabral

CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO INFANTIL PARA O


DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA EM PERÍODO
ESCOLAR .............................................................................................. 121
Luana Furtado da Silva
Zildene Francisca Pereira

7
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICA DOCENTE E


INTERDISCIPLINARIDADE NO CONTEXTO ESCOLAR . 147
Ânglidimogean Barboza Bidô
Maria Paloma Sampaio de Souza

O QUEER TEM A VER?: NOTAS SOBRE A ORGANIZAÇÃO


DO MOVIMENTO HOMOSSEXUAL NA PARAÍBA ............... 171
Luiz Gervázio Lopes Junior

MULHERES REZADEIRAS E A SIMBOLOGIA EM SEUS ATOS


DE FÉ .................................................................................................... 193
Juliana da Silva Guedes
Patrícia Cristina de Aragão

“EMPODERE-SE”: DIÁLOGOS ESCOLARES SOBRE


EMPODERAMENTO FEMININO E A CONSTRUÇÃO DE
UMA CULTURA DE EQUIDADE ................................................. 211
Cristiane Raposo Sousa Araújo

USO DO BANHEIRO POR TRANSEXUAIS: A


RESPONSABILIDADE CIVIL PELO DESRESPEITO À
IDENTIDADE DE GÊNERO / BATHROOM USE BY
TRANSEXUALS: CIVIL RESPONSIBILITY FOR
DISRESPECTING GENDER IDENTITY ................................... 235
Sérgio José Barbosa Júnior

GÊNERO: ENTRE DOBRAS E DESDOBRAMENTOS ......... 263


Liliann Rose Pereira de Freitas

8
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ANÁLISE SOBRE A RELAÇÃO DE GÊNERO NA ESCOLA


DENTRO DO CONTEXTO EDUCACIONAL EM TEMPOS DE
PANDEMIA .......................................................................................... 289
Ewerton Rafael Raimundo Gomes
Ana Carolina de Souza Ferreira
Patrícia Cristina de Aragão

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL NO


EMPODERAMENTO NEGRO-BRASILEIRO ........................... 309
Patrícia da Silva Souza
Patrícia Cristina de Aragão

O ESTUDO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NOS CURSOS DE


FORMAÇÃO DE PROFESSORES.................................................. 337
Ana Carla Pinheiro Alves
Gonçalo Ferreira Parnaíba

NEGROS NO ENSINO SUPERIOR: PERSPECTIVAS


DECOLONIAIS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS .................. 363
José Renan da Silva Souza

A FAVELA COMO PROBLEMA: MITO DA RURALIDADE E


DA MARGINALIZAÇÃO. UM DIÁLOGO SUSCITADO NA
DISCIPLINA “AS CIDADES DO SÉCULO XX: UM OLHAR
PARA AS FAVELAS E OUTRAS HABITAÇÕES DE BAIXA
RENDA- COC/FIOCRUZ ................................................................. 389
Leiana Isis Soares de Oliveira

9
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

10
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

APRESENTAÇÃO

A interdisciplinaridade é uma abordagem que busca integrar


diferentes áreas de conhecimento para propor novos debates e
diálogos, solucionar problemas e construir novos saberes. A ideia é
que, ao trabalhar em conjunto, as diversas disciplinas possam
complementar-se e criar uma visão mais abrangente e profunda do
objeto de estudo.
Neste intento, no contexto da ciência, a interdisciplinaridade
pode ser, particularmente, uma grande ferramenta para abordar
questões complexas que exigem uma compreensão ampla e integrada
de diferentes fenômenos, nosso livro se apresenta com essa intenção.
Torna-se importante para superar as limitações impostas pela
divisão tradicional das disciplinas acadêmicas. Cada disciplina tem seu
próprio objeto de estudo e métodos específicos de investigação, o que
pode levar a uma fragmentação do conhecimento e a uma dificuldade
em lidar com problemas complexos que ultrapassam as fronteiras
disciplinares. Ao integrar diferentes disciplinas, é possível superar
essas limitações e criar um conhecimento mais completo e integrado.
Essa discussão se apresenta com um papel importante na
história e nos campos do conhecimento humano. Na história, a
interdisciplinaridade tem sido utilizada para obter uma compreensão
mais completa e profunda dos eventos e processos históricos. A

11
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

história não é apenas sobre a descrição de eventos passados, mas


também sobre a análise e interpretação desses eventos, e para isso é
necessário utilizar diferentes fontes e métodos de análise.
Nos campos do conhecimento humano, a
interdisciplinaridade é fundamental para entender a complexidade dos
problemas e fenômenos estudados. É a partir da integração dessas
disciplinas que podemos compreender a relação entre a mente e o
corpo, a evolução da linguagem e a forma como os seres humanos se
relacionam com o mundo ao seu redor.
Desse modo, a interdisciplinaridade é uma abordagem
essencial para a construção do saber científico e nos reunimos com o
intuito de agregar conhecimento e disseminar as novas pesquisas, a
compreensão dos fenômenos históricos e o desenvolvimento dos
campos do conhecimento humano. Ao integrar diferentes áreas de
conhecimento, conseguimos então, uma visão mais abrangente e
profunda do mundo e dos problemas que enfrentamos.
Caros leitores, desejamos uma experiência proveitosa em
nossos dois volumes.

Luiz Gervázio Lopes Júnior


Maria Letícia Costa Vieira
Jilton Joselito de Lucena Ferreira

12
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA E
PERÍODO COLONIAL

13
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

14
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPITULO 1

TRABALHADORES E ESTADO NOVO NO BRASIL: UM


DEBATE HISTÓRICO E HISTORIOGRÁFICO ACERCA
DOS CONCEITOS DE POPULISMO E TRABALHISMO

Pedro Henrique Costa Pessoa1

Resumo: O presente trabalho pretende revisitar parte da


historiografia nacional para problematizarmos o modo como os
trabalhadores foram enxergados nos trabalhos acadêmicos a partir da
segunda metade do século vinte. A partir da historicização do tema,
apresentamos uma crítica aos conceitos de populismo e trabalhismo,
com o intuito de apontarmos as limitações e os avanços dessas chaves
teóricas nos estudos acerca do proletariado brasileiro. Teoricamente,
o texto está amparado em autores como como Weffort (1980), Ianni
(1968), Gomes (1988), Ferreira (1997, 2001) e Demier (2013, 2014).
Palavras-Chave: Populismo. Trabalhismo. Trabalhadores.

Introdução
Do intervalo entre as duas últimas décadas do século vinte até
os dias atuais, as dinâmicas sociais, econômicas e políticas do mundo

1Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Especialista em


História Local pelo Núcleo de Pesquisa e Extensão em História Local (NUPEHL)
da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Graduado em História pela
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Natural de Campina Grande.
costapedrohp@gmail.com

15
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

inteiro acabaram exercendo mudanças que nos trouxeram novos


paradigmas para o homem dito moderno. O trabalhador brasileiro
sofre um processo cada vez maior de uberização e precarização do
trabalho. Pouco a pouco, a globalização que o Brasil vai fazendo parte
parece ter o homem do neoliberalismo como meta, pois as recentes
reformas trabalhistas e da previdência já nos mostram de maneira
muito contundente o cenário de lamentações que atravessa o
trabalhador brasileiro assalariado que, nos parâmetros atuais, já não
podemos chamar de trabalhador da indústria, vide o processo de
desindustrialização que o país atravessa, sobretudo nas últimas quatro
décadas.
Sendo assim, a problemática aqui estudada tenta compreender
como esses trabalhadores foram e podem ser observados à luz da
historiografia. Será o trabalhador um sujeito passivo às necessidades
do Estado? É possível apontar que as relações da contemporaneidade
são somente uma extensão daquilo que o trabalhador sempre
representou para as engrenagens das relações de produção do
capitalismo? Como a historiografia definiu esse trabalhador, em
especial a partir da década de 1930, onde o varguismo deixa como
legado alterações estruturais em vários aspectos da sociedade
brasileira? Lançaremos mão de um breve debate para que possamos
propor respostas para questões que são tão históricas quanto atuais.
Sem que precisemos nos estender sobre tal questão, é importante

16
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

lembrarmos que as palavras que serão lidas daqui em diante fazem


parte de um objeto de estudo maior, pois são um recorte da minha
dissertação de mestrado, intitulada “Do Getulismo ao Queremismo:
transição democrática na Paraíba (1942-1945)”2 que buscou realizar um
estudo aprofundado sobre a adesão ao varguismo em pleno processo
de “redemocratização” que o país atravessou a partir de 1945.

1 O surgimento do trabalhador na historiografia brasileira

“[...] E um fato novo se viu


Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não
.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte

Era o terno do patrão


Que o casebre onde morava

2
Defendida no ano de dois mil e vinte e um através do Programa de Pós-Graduação
em História (PPGH) da Universidade Federal de Campina Grande.

17
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Era a mansão do patrão


Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução. [...]3

O trecho do poema escrito por Vinicius de Moraes no ano de


1956 evoca, para o autor, uma tomada de consciência do operário
urbano que durante muito tempo tivera se mantido “alienado” diante
do dia a dia marcado pela exploração nas relações de trabalho. É o
despertar do trabalhador. No entanto, o poema escrito em meados da
década de 1950 explicita outras tônicas da política nacional do período:
as tensões nacionais decorrentes do recém-suicídio do então
presidente Getúlio Vargas dois anos antes e, além disso, as novas
problematizações acerca da participação das massas populares na
política nacional, expressas também através de um grupo de
intelectuais que buscava, entre outras coisas, compreender esse novo
ator político.
Segundo Ângela de Castro Gomes (2001), o ano de 1952

3 MORAES, Vinicius de. O operário em construção. In: Poemas brasileiros sobre


trabalhadores. Belo Horizonte. FALE/UFMG. 2011.

18
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

marca o surgimento de um grupo de intelectuais4 paulistas e cariocas


responsáveis pela criação do Instituto Brasileiro de Economia,
Sociologia e Política (IBESP). Um dos primeiros trabalhos lançados
pelo grupo se chamava “O que é Ademarismo?”5 buscando realizar uma
problematização em torno de um conceito chave da política nacional:
o populismo.
Assim, esses autores pretenderam exercer “um papel de
vanguarda esclarecida que, produzindo uma nova visão de mundo,
abasteceria projetos políticos capazes de solucionar problemas
estratégicos” (GOMES, 2001, p.22). Nesse sentido, para tal grupo, a
solução dos problemas do Brasil perpassava pela superação do
populismo, caracterizado em três frentes: 1) o populismo enquanto
um fenômeno de política de massas, vinculado a proletarização dos
trabalhadores, que ainda “sem consciência”, agiam como uma massa
homogênea, necessitando, obviamente, da sua emancipação para
liberta-se desse mal; 2) o populismo seria fruto da conformidade das
classes dominantes do país que durante uma crise de
representatividade gerada pela Revolução de 1930, precisou
conquistar apoio político das massas emergentes; 3) por último, a
cereja do bolo do populismo, “o surgimento de um líder populista, do

4Nomes como Alberto Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Hermes


Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida Magalhães e Hélio Jaguaribe
formaram o chamado Grupo de Itatiaia.
5 Em alusão ao então governador de São Paulo, Ademar Pereira Barros.

19
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

homem carregado de carisma, capaz de mobilizar as massas e


empolgar o poder”. (GOMES, 2001, p.25).
Assim, essa primeira interpretação do populismo no Brasil
teve seu pensamento posto em xeque quando outro grupo de
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) resolveu debruçar-
se sobre o tema. Destaca-se o professor Francisco Weffort6, professor
de ciência política da instituição durante a década de 1960.
Se anteriormente a palavra populismo servia para adjetivar
negativamente ações políticas, a partir de então a análise modifica-se
para um caráter científico do olhar intelectual. Assim, os populistas
deixam de ser os políticos que enganavam o povo com promessas não
cumpridas ou os que angariavam votos através de um falso discurso.
É a passagem do termo do senso comum à ciência. O populismo torna-
se, portanto, um conceito, uma chave interpretativa de um passado.
Segundo Francisco Weffort no clássico O populismo na política
brasileira (1978), o nosso populismo é fruto de uma longa
transformação da sociedade advinda das mudanças das relações de
produção. Portanto, o impacto da crise econômica do capitalismo

6 Cientista político brasileiro, professor titular da Universidade de São Paulo (USP)


e também chegou ocupou o posto de ministro da Cultura durante os dois governos
de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998). Com vasta publicação ao longo da
carreira, pode-se ainda citar os títulos: Por que democracia? (1984), Qual
Democracia (1992) e Formação do pensamento político brasileiro (2006) como
sendo suas obras mais destacadas.

20
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

proveniente da grande depressão em 1929, acaba afetando o Brasil de


maneira contundente. Esse abalo ocorrido nas oligarquias ligada à
agricultura – sobretudo ao café no sudeste e sul do país – veio
acompanhado de uma crise do controle do poder social pelas classes
dominantes, que uma vez perdendo seu prestígio no então modelo de
capitalismo liberal-oligárquico, foram obrigadas a incluir outros atores
na cena política nacional (WEFFORT, 1978, p.49).
Assim, estava inaugurado no Brasil um Estado de compromisso
entre os setores da classe dominante, com uma incorporação das
massas populares à política brasileira de uma maneira moderada pela
própria classe dominante. É importante frisar que as concepções
liberais acerca do período até então apontavam uma massa sem
qualquer tipo de consciência de classe, ligados à política somente pela
inexperiência, caídos de paraquedas no cenário nacional emergente.
Para combater tal ponto de vista, Francisco Weffort aponta
que
O condicionamento da emergência política
das classes populares pelo Estado também
sofre a interação de fatores ligados ao
próprio comportamento popular. Seria
ingênuo supor que, somente para atender às
necessidades do seu jogo interno, o Estado
estivesse “inventado” uma nova fôrça social.
Uma noção como esta não tem nenhum
apoio histórico, não obstante possa parecer
real quando a análise da emergência da classe

21
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

popular se realiza apenas do ponto de vista


da classe dominante e de sua crise interna
(WEFFORT, 1978, p.71).
Sobre os apontamentos do autor no que tange a participação
da classe trabalhadora, afastando-se das concepções liberais – as quais
depreciavam a capacidade de ação da classe trabalhadora – Francisco
Weffort, por mais de uma vez, parece apontar as condições históricas
para justificar que

O populismo como estilo de governo,


sempre sensível às pressões populares, ou
como política de massas, que buscava
conduzir, manipulando suas aspirações, só
pode ser compreendido no contexto do
processo de crise política e de
desenvolvimento econômico que se abre
com a revolução de 30 (WEFFORT, 1980,
p.61).
Segundo o autor, o populismo no Brasil foi presente e atuante
de maneira direta entre os anos de 1930 e 1964, tendo vários
representantes, entre eles Getúlio Vargas, Ademar de Barros e João
Goulart. A ruptura da chamada República Liberal com a Revolução
de 1930 inaugurou no Brasil novas práticas políticas, através do
populismo o autor defende que as massas foram colocadas no
centro do jogo político, porém, o modelo assumiu “diversas facetas
e estas foram frequentemente contraditórias" (WEFFORT, 1980,
p.61). O populismo marca a inauguração de uma época marcada pela

22
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

intensificação das relações entre classes dominantes, o Estado e os


populares, sendo o Estado o mediador das relações entre os outros
dois através da figura carismática de Getúlio Vargas, líder que já
anunciava suas pretensões antes mesmo da Revolução ter
acontecido como pode ser observado na sua fala

se nosso protecionismo (refere-se ao


protecionismo por parte do Estado) favore
aos industriais em favor da fortuna
particular impõe-se também o dever de
ajudar ao proletário com medidas que lhe
assegurem relativo conforto e estabilidade
e o amparem na enfermidade como na
velhice. (WEFFORT apud OLYMPIO,
1980, p.66)
Na medida em que Getúlio Vargas assume o poder e
inaugura uma agenda voltada às massas, esse populismo é visto como
"um modo determinado e concreto de manipulação das classes
populares, mas foi também uma expressão das suas insatisfações"
(WEFFORT, 1980, p.62). É válido dizer ainda que embora o
cientista político tenha apontado sobre a ideia de manipulação do
Estado em relação aos trabalhadores, ele aponta ainda que “a
manipulação nunca foi absoluta" (WEFFORT, 1980, p.62).

As contribuições propostas por Francisco Weffort serviram


de base para que outros autores pudessem ora concordar, ora se
opor ao autor, mas a proposta legada de que o populismo pode ser

23
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

caracterizado como Estado de compromisso ou Estado de massas foram


alvos de crítica por parte de historiadores durante a década de 1980,
tema que será tratado a seguir. Esse conceito inspirado na tradição
gramsciana de Estado bonapartista, isto é, caracterizado pela
ausência de hegemonia da classe dominante, será trabalhado no
segundo capítulo neste trabalho, levando em consideração a
importante análise do periodo getulista proposta por Felipe
Demier7 na sua tese de doutoramento.

Outro autor contemporâneo a Francisco Weffort é Octávio


Ianni, intelectual responsável por também formular ideias acerca do
populismo enquanto fenômeno social brasileiro durante o período
que vai de 1930 a 1964. Entre outros textos, o autor publicou a obra
O colapso do populismo no Brasil (1968), quatro anos após o golpe
militar que colocaria um fim na curta experiência de democracia
ocorrida entre os anos de 1945 e 1964.

Segundo Octávio Ianni, “é no século XX que o povo


brasileiro surge, sobretudo após a 1° guerra” (IANNI, 1968, p.13).
Ao fazer uma análise sobre a década de 1920 no Brasil, o autor
aponta que o tenentismo 8 já formara as bases do que viria o

7 DEMIER, Felipe. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): um ensaio de


interpretação histórica. Editora Mauad. 2013. Rio de Janeiro.
8 O tenentismo foi um movimento político-militar, baseado em uma série de

rebeliões de jovens oficiais de baixa e média patente do Exército Brasileiro

24
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

processo de transformação que o Brasil iria mergulhar, isso por que,


de maneira direta, o movimento formou-se com base nas seguintes
condições: urbanização, crescimento da classe média e as
contradições entre as estruturas crescentes. Portanto, “as lutas
políticas travadas a partir de 1922 estão relacionadas com a
necessidade de constituir-se um sistema cultural e instituicional
adequado à civilização urbano-industrial em formação.” (IANNI,
1968, p.16).

Essa nova face da sociedade brasileira industrializada terá a


participação de países como Inglaterra, Alemanha e Estados
Unidos, porém, seu ápice de investimento estrageiro entre os anos
de 1942-1949 ocorre a partir da hegemonia do capital estadunidense,
isso significa dizer que “a história da industrialização no Brasil é ao
mesmo tempo a história das relações com os países que
desepenham papéis hegemônicos.” (IANNI, 1968, p.23).

Essa divisão de etapas do processo de industrialização


analisado por Octávio Ianni fora dividido em três fases: 1) Estado
intervencionista para a burguesia cafeicutora através da depreciação
da moeda brasileira; 2) expansão dos setores industriais por Getúlio
Vargas a partir de 1930, constituindo um modelo de “substituição

(tenentes), de camadas médias urbanas, que estavam insatisfeitos com o governo da


República Oligárquica no início da década de 1920 no Brasil.

25
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

de importações”; 3) o terceiro modelo seria o “desenvolvimento


associado”, ou seja, uma mistura entre a inserção do capital
estrangeiro e o investimento nacional, ocorrido a partir da entrada
do Brasil na Segunda Guerra mundial. O autor aponta duas
constatações em relação ao nosso processo de industrialização, são
elas: a escolha da “região Centro-Sul como núcleo hegemônico da
economia nacional” e “a formação de movimentos massa, como
estruturas políticas e ideológicas de sustentação do poder político
orientado para o desenvolvimento industrial.” (IANNI, 1968, p.27-
35).

Segundo Octávio Ianni, a política de massas foi um dos


componentes fundamentais do modelo “getuliano” de
desenvolvimento econômico. Esse modelo é

A Combinação dos interêsses econômicos e


políticos do proletariado, classe média e
burguesia industrial é um elemento
importante do Getulismo. Essa
combinação efetiva e tática de interêsses
destina-se a favorecer a criação e expansão
do setor industrial, tanto quanto do setor de
serviços. Em concomitância, criam-se
instituições democráticas, destinadas a
garantir o acesso dos assalariados a uma
parcela do poder. Na verdade, criam-se as
condições de luta para uma participação
maior no produto. Em plano mais largo,
trata-se de uma combinação de fôrças

26
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

destinada a ampliar e acelerar os


rompimentos com a sociedade tradicional e
os setores externos predominantes. Em
verdade, foi com base no nacionalismo-
desenvolvimenta, como núcleo ideológico
da política de massas – em que se envolvem
civis e militares, liberais e esquerdistas,
assalariados e estudantes universitários –
que se verificara a interiorização de alguns
centros de devisão importantes para a
formulação da política econômica. A
crescente participação do Estado na economia é, ao
mesmo tempo, uma exigência e uma consequência
dêsse programa de nacionalização das decisões.
(IANNI, 1968, p.56)
Ao tratar acerca do papel dos trabalhadores durante o
primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o autor parece
depreciar a ação dos trabalhadores, sobretudo, os sindicalizados,
considerando-os como pelegos9. Sobre a relação entre o governo e

9 Termo utilizado para designar o dirigente sindical que defende as orientações do


Ministério do Trabalho entre a classe trabalhadora, cumprindo assim o papel de
intermediário entre os sindicatos e o governo. Em seu sentido próprio, a palavra
designa a pele de carneiro que é colocada entre a sela e o corpo do cavalo com a
finalidade de amaciar o contato entre o cavaleiro e o animal. Na maioria das vezes
os dirigentes pelegos transformam o sindicato em um órgão essencialmente
assistencial e recreativo, evitando que sirva de canal para reivindicações de melhores
salários e condições de trabalho. Em muitos casos, os pelegos mantêm sindicatos
chamados "de fachada" ou "de carimbo", entidades sem existência real que vivem
do imposto sindical obrigatório recolhido de cada trabalhador, sindicalizado ou não.
Muitas vezes, a designação pelego é atribuída aos dirigentes das federações e
confederações sindicais, que têm acesso direto Ministério do Trabalho e vivem à sua
sombra.

27
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

os sindicatos, deixa claro que “os sindicatos e seus dirigentes


reduzem-se a instrumentos de manobras políticas às vezes
totalmente alheias aos interêsses dos assalariados.” (IANNI, 1968,
p.56).

O tipo de análise que reduz os sindicatos ao peleguismo


demonstrou-se insuficiente para pensar as questões importantes do
período porque traz consigo a incapacidade de pensar o papel de
repressão imposto pelo Estado aos sindicatos e aos trabalhadores
durante a década de 1930 através da violência, ou durante a década
de 1940 de maneira ideológica. De maneira geral, é a incapacidade
de pensar a classe trabalhadora a partir dela própria, sobretudo nas
suas próprias contradições10.

2 O trabalhador na historiografia brasileira: o segundo


momento

10 É importante lembrar que o fato de as análises dos autores estarem inseridas na


década de 1960, dificultam qualquer tipo de abordagem de matriz thompsoniana,
por exemplo, tendo em vista que expansão no Brasil só acontece entre as décadas
de 1970 e 1980, influenciando historiadores de uma geração mais próxima às
abordagens contemporâneas. No entanto, não é o caso de jogá-los na lata do lixo
da história, muito pelo contrário, foram valiosas contribuições para a compreensão
do fenômeno no país e, como todo trabalho, são passíveis de crítica quanto aos
limites conclusivos das pesquisas.

28
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

É a partir da insatisfação perante as explicações já postas para


o período que surgem durante o final da década de 1970 e o início
dos anos ointenta, novas abordagens para o tema, questionamentos
que buscaram um “esforço mais sistemático no sentido de elencar as
questões teóricas e histórica que, nesta abordagem crítica, ele
obscurecia.” (GOMES, 2001, p.43).

Esse novo modelo disposto a pensar o populismo enquanto


fenômeno social no Brasil talvez tivera seu maior expoente na
coleção organizada pelo historiador Jorge Ferreira, intitulada O
populismo e sua história: debate e crítica; com edição lançada em 2001. A
coletênea reúne textos importantes que caracterizam um novo olhar
para o populismo no Brasil. Não é o caso de esmiuçarmos um a um
os textos que foram escritos na coletânea, mas vale a tentativa de
esboço do pensamento geral dos autores, em especial, Jorge Ferreira,
Daniel Arão Reis Filho e Ângela de Castro Gomes, que vêm
influenciando parte significativa dos trabalhos acerca dos
trabalhadores do Brasil nas últimas três décadas.

Ao introduzir a obra, Jorge Ferreira aponta que

O populismo, como categoria explicativa,


teve a função de responder a uma pergunta
inquietante: por que os trabalhadores
manifestaram apoio a Getúlio Vargas
durante o Estado Novo e quais as razões
que os levaram, entre 1945 e 1964, a apoiar

29
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

os líderes trabalhistas e votar no PTB?


(FERREIRA, 2001, p.8).
Nesse sentido, sem citar os trabalhos, o autor aponta que os
primeiros esforços de compreensão acerca do populismo partiram
da perspectiva de uma elite liberal que contrariada com a perda de
poder na Revolução de 30 e assustadas com o avanço do movimento
queremista

Passaram a explicar o apoio dos assalariados


a Vargas ressaltando a demagogia, a
manipulação, a propaganda política, a
repressão policial, entre outros fatores,
sugerindo uma relação destituída de
reciprocidade: o Estado, com Vargas, surgia
como todo-poderoso, capaz de influenciar
as mentes das pessoas; a sociedade – os
trabalhadores em particular –,
amendrontada com a polícia e confundida
pela propaganda política estatal do DIP 11,

11 O DIP foi criado por decreto presidencial em dezembro de 1939, com o


objetivo de difundir a ideologia do Estado Novo junto às camadas populares. Mas
sua origem remontava a um período anterior. Em 1931 foi criado o Departamento
Oficial de Publicidade, e em 1934 o Departamento de Propaganda e Difusão
Cultural (DPDC). Já no Estado Novo, no início de 1938, o DPDC transformou-
se no Departamento Nacional de Propaganda (DNP), que finalmente deu lugar
ao DIP. O DIP possuía os setores de divulgação, radiodifusão, teatro, cinema,
turismo e imprensa. Cabia-lhe coordenar, orientar e centralizar a propaganda
interna e externa, fazer censura ao teatro, cinema e funções esportivas e recreativas,
organizar manifestações cívicas, festas patrióticas, exposições, concertos,
conferências, e dirigir o programa de radiodifusão oficial do governo. Vários
estados possuíam órgãos filiados ao DIP, os chamados "Deips". Essa estrutura
altamente centralizada permitia ao governo exercer o controle da informação,
assegurando-lhe o domínio da vida cultural do país. Sobre isso ver:

30
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

era transformada em massa de manobra e,


portanto, vitimizada (FERREIRA, 2001,
p.9).
Para Jorge Ferreira, “a responsabilidade dessa versão do
populismo são conhecidos até hoje, tanto nas apostilas de nível
médio quanto na bibliografia especializada” (FERREIRA, 2001,
p.81). Essa narrativa de acesso aos direitos sociais pela classe
trabalhadora em detrimento dos direitos políticos eleva os
trabalhadores às condições de submissão. E, segundo o historiador,
Francisco Weffort tivera sido um dos responsáveis por esse tipo de
difusão do imaginário populista, pois, segundo ele, embora haja por
parte deste último autor uma crítica ao modelo de pensamento
liberal, “em outros momentos contrariando suas próprias críticas à
concepção liberal, o texto permite leituras bem diferentes.”
(FERREIRA, 2001.p.82).

Ao embasar tal afirmação, Jorge Ferreira bebe do próprio


texto de Francisco Weffort, O populismo na política Brasileira (1978), e
usa trechos em que o autor defende que em 1930 aparece “o
fantasma do povo na história política brasileira, que será manipulado
soberanamente por Getúlio Vargas durante 15 anos”12. Bem como

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos37-
45/EducacaoCulturaPropaganda/DIP
12 WEFFORT, Francisco Correia. O populismo na política brasileira. Rio de

Janeiro, Paz e Terra, 1980. p.51.

31
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

outro trecho em que os trabalhadores “não passam de ‘massa de


manobra’” 13 e, por fim, ao caracterizar o Estado brasileiro “nas
formas espontâneas do populismo, a massa vê na pessoa do líder o
projeto de Estado; abandona-se a ele, entrega-se à sua direção e, em
grande medida, ao seu arbítrio”.14

Ainda estabelecendo uma crítica ao que chamou de “segunda


geração do populismo”, Jorge Ferreira aponta que têm em comum

Uma maneira de abordar as relações entre


Estado e sociedade/classe trabalhadora.
Como em uma via de mão única, de cima
para baixo, à luz do enfoque opressor e
oprimido, o Estado, todo-poderoso, pela
violência física e ideológica, domina e
subjuga a sociedade, os trabalhadores em
particular, surgindo, desse modo, uma
relação destituida de interação e
interlocução entre as partes. (FERREIRA,
2001, p.94)

Chegada a vez de analisar por uma perspectiva diferente, os


anos de 1980 foram marcados pela inserção de diferentes autores no
seio do debate da classe trabalhadora, aos quais podemos citar Carlos
Ginzburg, Roger Chartier, Michael Foucault, entre outros. Para o
autor, de maneira resumida, “as análises negam que as classses

13 Idem, p.58.
14 Idem, p.41.

32
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

dominantes tenham o monopólio da produção de ideias”


(FERREIRA, 2001, p.97). Ainda segundo ele

O “mito” Vargas não foi criado


simplesmente na esteira da vasta
propaganda política, ideolológica, e
doutrinária veiculada pelo Estado. Não há
propaganda, por mais elaborada, sofisticada
e massificante, que sustente uma
personalidade pública por tantas décadas
sem realizações que beneficiem, em temos
materiais e simbólicos, o cotidiano da
sociedade. O “mito” Vargas expressava um
conjunto de experiências que, longe de ser
basear em promessas irrealizavéis,
fundamentadas tão somente em imagens e
discursos vazios, alterou a vida dos
trabalhadores (FERREIRA, 2001, p.88)

3 Tese, antítese e síntese: recentes olhares sobre a


historiografia em torno do trabalhador

Sobre a crítica realizada por Jorge Ferreira ao sociólogo


marxista Francisco Weffort, é importante ressaltar que fora alvo de
questionamentos por parte outros estudiosos como é o caso do
historiador Felipe Demier no artigo: Populismo e historiografia na
atualidade: lutas operárias, cidadania e nostalgia do varguismo15, bem como

15
DEMIER, Felipe Abranches. Populismo e historiografia na atualidade: lutas
operárias, cidadania e nostalgia do varguismo. In: Demian Bezerra de Melo. (Org.).

33
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

do também historiador Henrique de Bem Lignani com o seguinte


trabalho: Populismo, revisões e revisionismos: a compreensão das relações entre
Estado e Classe trabalhadora no Brasil 1930-196416.

Segundo Henrique de Bem Lignani, causa estranheza os


levantamentos apontandos por Jorge Ferreira na citação anterior
serem postos pelo autor como contrapontos ao pensamento de
Francisco Weffort, pois segundo ele “já estava presente na análise de
Weffort, produzida mais de três décadas antes.” (LIGNANI, 2018,
p.165). Outras críticas posta pelo autor é a ideia de que Jorge Ferreira
“chega ao ponto de atribuir a esses autores17 noções de ‘manipulação
de massas’ das quais não fizeram uso” (LIGNANI, 2018, p.166).

Felipe Demier vai além; no artigo citado acima, de maneira


irônica ele aponta os historiadores Jorge Ferreira, Daniel Arão Reis
Filho e Ângela de Castro Gomes como sendo expoentes de uma
corrente revisionista fluminense, onde segundo ele

Com o fito de combater a ideia da


“manipulação das massas” propugnada por
Weffort e Ianni, os revisionistas esgrimiram,

A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. 1ed.Rio de


Janeiro: Consequência, 2014, v. , p. 125-156.
16 LIGNANI, Henrique de Bem. Populismo, revisoes e revisionismos: a

compreensão das relações entre Estado e classe trabalhadora no Brasil de 1930-


1964. Revista Convergência Crítica. Dossiê: Histórias e Boemia, n.12, 2018.
17 Francisco Weffort e Octávio Ianni.

34
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

assim, o argumento de que se as massas


populares apoiaram, por várias vezes, as
lideranças políticas do regime varguista, foi
única e exclusivamente porque elas assim o
quiseram ou, continuando o silogismo
antidialético, foi porque os chefes
trabalhistas e afins eram, de fato,
representantes das vontades populares mais
intensamente sentidas. Apresentado como
uma simples opção racional dos
trabalhadores brasileiros, o engenhoso
trabalhismo construído por Vargas,
Marcondes Filho e cia., fundamental na
estrutura populista de dominação política
sobre os trabalhadores, foi simplesmente
positivado pela historiografia revisionista
(DEMIER, 2014, p.226).

O historiador marxista tece sua crítica aos historiadores


fluminenses como sendo idealizadores de um tipo de história que
refletem muito mais suas próprias convicções particulares, do que a
análise crítica do período trabalhado. Nas palavras do autor, é uma
tentativa de “promover uma positivação das formas populistas de
dominação de classe” (DEMIER, 2014, p.226).

Algumas questões inquietam-o quanto à maneira que são


abordadas às questões relacionadas aos trabalhadores durante o
período getulista. Segundo o autor, há omissão desses autores em
buscar respostas para perguntas que parecem pertinentes sobre o

35
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

tema, como: “por que a classe trabalhadora brasileira não foi capaz
de travar um sólido embate contra a dominação populista? Por que
sua plataforma política se encontrou em grande parte limitada ao
horizonte nacional reformista?” (DEMIER, 2014, p.217).

É importante ressaltar que embora Felipe Demier aponte


Ângela de Castro Gomes como uma revisionista do período
histórico, convém pensar que a sua tese de doutoramento intitulada
A Invenção do Trabalhismo e defendida no ano de 1988 no Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) representa
importante avanço nas análises acerca do Estado Novo e da sua
relação com a classe trabalhadora.

Desse modo, a narrativa constituída pela autora pretende


superar o conceito de populismo através de um novo olhar: o
trabalhismo. A autora explicita a questão central da obra:

O que se pretende nesse texto é estudar o


processo de constituição da classe
trabalhadora no Brasil como ator político.
Isto implica lidar com a questão da
construção do conceito de cidadania e, mais
particularmente, com a questão da extensão
de cidadania aos setores populares
(GOMES, 1988, p.23).

A pretensão do texto perpassa pela necessidade da negação

36
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

da cooptação da classe trabalhadora pelo Estado na sua forma


absoluta, pois “ser cooptado excluia assim uma relação de troca,
esvaziando o sujeito da cooptação de qualquer poder [...] e
transformando em objeto que é, por definição, incapaz de
negociação” (GOMES, 2001, p.47).

Logo, a preocupação do texto não era um aprofundamento


teórico sobre o tema – bastante realizado pelos estudiosos das
gerações anteriores – mas sim

Assumindo uma perspectiva interdisciplinar,


produzir uma interpretação histórica
alternartiva, fundada em pesquisa empírica
mais demorada e iluminada pelas novas
contribuições da produção internacional
sobre a formação da classe trabalhadora
(GOMES, 2001, p.45).

O advento do conceito de trabalhismo como conceito capaz


de explicar as relações da classe trabalhadora com o Estado se dá
pela dificuldade de “utilização do conceito de populismo, que, como
foi visto, remetia à ideia de maniputação política, ainda que se
reconheçam todas as suas ambiguidades” (GOMES, 2001, p.46).

O reconhecimento dessas ambiguidades pretende preencher


a lacuna deixada pelos estudiosos anteriores que na chave
interpretativa em relação ao Estado e a classe trabalhadora,

37
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

sobretudo, no periodo getulista, deixaram de enxergar o trabalhador


como sujeito que age e modifica sua realidade e, por isso, na sua
relação com o Estado “significava reconhecer um diálogo entre
atores com recursos de poder diferenciados mas igualmente capazes
não só de se apropriar das propostas políticos-ideológicas um do
outro, como de relê-las” (GOMES, 2001, p.46).

Por fim, há o conceito de pacto em substituição ao modelo de


“cooptação” proposto anteriormente; nesse tipo de interpretação
teórica lançado pela autora

Os beneficios materiais “oferecidos” e


implementados, como todas as análises
anteriores reconhecem com intensidades
variadas, bem como a própria forma com
que vêm revestidos, serão “recebidos” e
interpretados pela classe trabalhadora, que
os apreenderá e os manejará segundo os
termos das suas possibilidades e vivências.
O pacto trabalhista, pensado ao longo do
tempo, tem nele, de modo integrado mas
não de redutível, tanto a palavra e a ação do
Estado (que sem dúvida teve o privilégio de
desencádea-lo), quanto a palavra e a ação da
classe trabalhadora, ressaltando-se que
nenhum dos dois atores é uma totalidade
harmônica, mantendo-se num processo
permanente de re-construção (GOMES,
2001, p.48).

38
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Considerações finais

Na esteira da historiografia, podemos concluir que foram


diversas as visões aplicadas aos trabalhadores durante o século XX.
Inicialmente observados como instrumento de reprodução das
proposições do Estado, os diferentes olhares que foram surgindo
com o decorrer do tempo apontaram que a repressão vigente
durante a Era Vargas limitava a participação dos trabalhadores na
vida política e social, não podendo, portanto, serem observados
apenas como reprodutores, mas sim genitores de uma própria
relação que buscava, dentro dos seus lmites materiais, vantagens
materiais que pudessem representar sinais de uma melhora de vida
dentro de um sistema repressivo.

A expectativa é que este trabalho tenha sutilmente


colaborado com os olhares que possam ser aplicados aos
trabalhadores nos trabalhos acadêmicos, sobretudo estabelecendo a
incapacidade do conceito tradicional de populismo para pensar as
relações de trabalho no Brasil, além do avanço fornecido pelo
conceito de trabalhismo que, em que pese às críticas que poderão ser
realizadas ao conceito, estabeleceu novos parâmetros para o olhar
historiográfico aplicado aos trabalhadores no Brasil.

REFERÊNCIAS

39
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

DEMIER, Felipe Abranches. O longo bonapartismo brasileiro


(1930-1964): um ensaio de interpretação histórica. Editora Mauad.
2013. Rio de Janeiro.
DEMIER, Felipe Abranches. Populismo e historiografia na
atualidade: lutas operárias, cidadania e nostalgia do varguismo. In:
Demian Bezerra de Melo. (Org.). A miséria da historiografia: uma
crítica ao revisionismo contemporâneo. 1ed.Rio de Janeiro:
Consequência, 2014, v. , p. 125-156.
FERREIRA, Jorge Luiz. Trabalhadores do Brasil: o imaginário do
povo. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas, 1997. 132p.
FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história: debate e crítica; 2001,
Rio de Janeiro.
GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio
de Janeiro: FGV, 2005. 1ª edição de 1988].
GOMES, Angela de Castro. “O populismo e as ciências sociais no
Brasil: notas sobre a
trajetória de um conceito”. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O
populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 17-58.
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1971
LIGNANI, Henrique de Bem. Populismo, revisoes e revisionismos:
a compreensão das relações entre Estado e classe trabalhadora no
Brasil de 1930-1964. Revista Convergência Crítica. Dossiê: Histórias
e Boemia, n.12, 2018
MORAES, Vinicius de. O operário em construção. In: Poemas
brasileiros sobre trabalhadores. Belo Horizonte. FALE/UFMG.
2011
WEFFORT, Francisco Correia. O populismo na política brasileira.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.

40
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 2

O IMPACTO DA PRESENÇA NORTE-AMERICANA NO


IMAGINÁRIO E COTIDIANO DAS CRIANÇAS
PICUIENSES DA DÉCADA DE 40

Elielma da Silva Nóbrega1

Resumo: Após mais de sete décadas do final da Segunda Guerra, é


inviável encontrarmos um depoente da cidade de Picuí-PB que tenha
vivenciado o referido período histórico na sua fase adulta. Mediante
o exposto, pretende-se tratar as experiências de vida de picuienses,
que durante a fase da infância, adentraram ao trabalho infantil nos
garimpos da região, no contexto de beligerância Mundial e a imagem,
construída dos visitantes estadunidenses. Objetivando assim, por
meio da referida análise, compreender como a presença dos oficiais
estadunidenses, impactou o imaginário e o cotidiano das crianças,
bem como, a inserção destas crianças no mundo do trabalho, durante
a década de 40 em Picuí-PB. Podendo assim, observar o que a Guerra
também ocasionou de impactos significativos em pequenas cidades
interioranas. No qual, os relatos, analisados, são de um documentário
estreado a uma década atrás, no ano de 2011, em sua maioria com
pessoas da terceira idade que vivenciaram e experimentaram o
contexto da Guerra durante a fase da infância e adolescência.
Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial, Infância, Garimpo.

1
Mestranda em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
Campina Grande – PB. elielma.nobrega@gmail.com.

41
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende analisar as experiências de vida de
picuienses, que durante a fase da infância, adentraram ao mundo do
trabalho infantil nos garimpos da região, durante o contexto da
Segunda Guerra Mundial e a imagem que eles construíram dos
visitantes Estadunidenses.

A cidade de Picuí-PB, está localizada na microrregião do


Seridó paraibano, em termos geológicos, a cidade está situada na
província pegmatítica da Borborema, região marcada pela grande
ocorrência de minerais, com inúmeras finalidades comerciais. A
mineração desenvolveu no território picuiense, durante as primeiras
décadas do século XX, a população que dependia da agricultura para
ganhar a vida, passando a explorar de forma sutil os minerais da
região, o que representou uma nova oportunidade de renda para quem
sofria com as constantes secas.

As riquezas minerais do território despertaram a atenção de


pesquisadores do setor mineralógico, responsáveis por realizar
mapeamentos das riquezas minerais de todo o território. Durante o
início da década de 1940, os minerais do território picuiense e de toda
a região do Seridó paraibano e potiguar, foram atrelados a conjuntura
de beligerância mundial, no contexto em que eclodia a Segunda

42
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Guerra Mundial, acontecimento que envolveu todos os continentes


do mundo, incluindo a América Latina. Diante deste cenário, o Brasil
se beneficiou da sua neutralidade, mantendo relações comerciais com
Alemanha e Estados Unidos, até o ano de 1942, quando Getúlio
Vargas, o então presidente da república, declarou apoio aos Aliados,
diante dos torpedeamentos de navios brasileiros no litoral nordestino.
O possível ataque realizado por submarinos alemães, foi o fator
determinante para o posicionamento do Brasil, colocando um fim na
sua neutralidade.

Após a aliança estabelecida entre Brasil e Estados Unidos da


América, os minerais do território picuiense e de todo o Seridó
paraibano foram reconhecidos, sendo a região responsável pela
exportação de diversas toneladas de minérios para a indústria bélica
estadunidense. Nesse contexto, ocorreu um forte choque cultural,
com o desembarque de oficiais estadunidenses em solos brasileiros,
incluindo a cidade de Picuí, onde oficiais estadunidenses se instalaram
a fim de impulsionar a extração mineral desta localidade.

A pesquisa visa mostrar o choque cultural entre as duas


nacionalidades, por meio dos relatos de memórias e das experiências
de vidas de idosos que vivenciaram esse contexto durante a fase da
infância. O objetivo do artigo não é contar a história tal como
aconteceu, mas, registrar e conservar, os relatos desses picuienses,

43
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

através da escrita.

1 GARIMPANDO LEMBRANÇAS: RECORDAÇÕES DAS


CRIANÇAS PICUIENSES DA DÉCADA DE 40.

A importância dos documentos históricos, para o trabalho do


historiador, se dá pela sua relevância como fonte subsidiária e
complementar para o desenvolvimento da pesquisa em História,
sendo esse um fator determinante para o prosseguimento dos estudos
acerca de um eixo problematizador. Visando intensificar as pesquisas
históricas, apontar e viabilizar novas versões acerca do período
elencado.

O trabalho do historiador está profundamente ligado à análise


de documentos, vestígios ou registros, deixados por seres humanos
que viveram em outras épocas. Podendo esses registros ser escritos ou
não, tendo em vista que:

A história faz-se com documentos escritos,


sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos
escritos, quando não existem. Com tudo o
que a habilidade do historiador lhe permite
utilizar para fabricar o seu mel, na falta das
flores habituais. Logo, com palavras. Signos.
Paisagens e telhas. Com as formas do campo

44
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua


e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os
exames de pedras feitos pelos geólogos e
com as análises de metais feitas pelos
químicos. Numa palavra, com tudo o que,
pertencendo ao homem, depende do
homem, serve o homem, exprime o homem,
demonstra a presença, a atividade, os gostos
e as maneiras de ser do homem. (FEBVRE
apud LE GOFF, 1992, p. 540).

De acordo com Karnal e Tatsch (2009 p. 24) “Todo


documento que chega às mãos de um analista é um duplo milagre.”
Trabalhar com documentos e fontes deste período é acessar uma
memória gestada no esquecimento, seja por se tratar de documentos
sigilosos, de caráter internacional, seja por alguns terem se perdido no
tempo, deste modo apagando rastros da experiência do vivido. Ainda
de acordo com Karnal e Tatsch (2009 p. 24) A existência de um
documento é, em geral, uma combinação delicada da fortuna e da
consciência.

Entretanto, em história tudo começa com o gesto de separar,


de reunir, de transformar assim em ‘documentos’ certos objetos
distribuídos de outra forma. “Essa distribuição é o primeiro trabalho”
(RICOEUR, 2007, p.178). Para o historiador tudo pode se
transformar em um documento, conforme seja a interrogação feita a
ele. De acordo com Michel Foucault, os problemas da história podem

45
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ser resumidos a uma só palavra: “A crítica do documento” (1969, p.


13). Ainda de acordo com (FOUCAULT, 1969, p.13), “O documento
não é o feliz instrumento de uma história que seja em si própria e com
pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de uma
sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que
se não separa”. Neste sentido, “rastros, documentos, perguntas
formam o tripé de base do conhecimento histórico” (RICOUER,
idem, p.189).

Após mais de sete décadas do final da Grande Guerra é


inviável encontrarmos um depoente que tenha vivenciado este
período histórico na sua fase adulta. Portanto, os relatos analisados
são de um documentário estreado a uma década atrás, no ano de 2011,
em sua maioria com pessoas da terceira idade que vivenciaram e
experimentaram o contexto da segunda guerra durante a fase da
infância e adolescência.

De acordo com Marc Ferro, em uma análise fílmica devemos


observar o “visível e o não visível”. Considerando que até mesmo os
filmes classificados como documentários que carregam consigo o
status de objetividade e realidade, estão sujeitos a mecanismos de
indução, ocultação ou falsificação. O olhar do historiador que analisa
uma produção audiovisual deve ser aguçado e procurar desvendar o
que está por trás, consciente ou inconscientemente, do visível.

46
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Ao trabalharmos com relatos de pessoas que foram


testemunhas oculares das transformações ocasionadas na dinâmica
social e econômica Cidade de Picuí na década de 40, mas que só foram
registradas por meio audiovisual, após passadas algumas décadas,
consideramos que:

A lembrança é uma imagem construída pelos


materiais que estão agora a nossa disposição,
no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual. Por mais nítida que
nos pareça a lembrança de um fato antigo, já
não é a mesma imagem que experimentamos
na infância, por que não somos os mesmos
de então e por que nossa percepção alterou-
se e com ela nossas ideias, nossos juízos de
realidade e de valor. (BOSI, 1994, p.55).

No Documentário, observa-se um afastamento intencional


dos seus produtores, o que dá a impressão que os depoentes estão
dialogando com os telespectadores, ao longo da produção apenas as
vozes deles são ouvidas. Portanto, não temos ciência de quais
questionamentos e direcionamentos foram emitidos a eles,
direcionando seus relatos e depoimentos.

Ao analisarmos os relatos, observamos o impacto causado no


imaginário dessas pessoas durante a fase da infância. Essas crianças
não tinham interesses nas questões bélicas, armamentista, elas se
sentiam angustiadas por essa presença repentina, e inesperada. Pouco

47
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

se sabia da chegada dos norte-americanos ao território picuiense, o


que gerava desconfiança e especulações. Sobre a chegada dos
Estadunidenses, a pequena cidade do interior paraibano, o Senhor
Nozinho2, rememora: “Fardados, de capacete, andavam sempre de
cabeça baixa e muito rápido. Era um grande mistério aquela época, já
pensava-se que podia ser um campo de concentração que ia surgir
aqui.”3
Os homens mencionados pelo senhor Nozinho, tratava-se de
Estadunidenses, esses homens se encontravam na cidade de Natal,
Capital do Rio Grande do Norte. Após a instalação da base americana
no território potiguar, o que facilitava a sua deslocação para o interior
do Estado do Rio Grande do Norte e do Estado vizinho, a Paraíba.
Considerando, que a cidade de Picuí limita-se ao norte com o Estado
do Rio Grande do Norte. Este fator facilitava o translado dos
materiais extraídos na região, que tinha como destino o Estado
vizinho, de onde era enviado para os EUA através de navios. É
importante ressaltar que “na maior parte das vezes, lembrar não é
reviver, mas refazer, reconstruir com imagens e ideias de hoje as
experiências do passado” (BOSI, 1994, P.55). Ao longo do

2
Nozinho dos Santos foi garimpeiro, vereador e vice-prefeito de Picuí, faleceu em
30 de junho de 2014.
3
Trechos de relatos de memórias contidos no Curta-Documentário “URÂNIO
PICUÍ” Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.

48
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Documentário, teve-se um cuidado em selecionar os lugares da cidade


frequentados pelos Estadunidenses e constituíram os espaços de
vivências dos depoentes durante o período abordado. Grande parte
dos cenários são minas, uma das edificações apresentadas nas cenas é
um casarão da década de 1930, localizado nas esquinas das ruas
Vicente Ferreira de Macedo com a Cel. Manoel Lucas de Macedo, no
centro da cidade de Picuí. Este casarão pertenceu ao Sr. Vicente
Ferreira de Macedo4, é ficou conhecida como “Casa dos Americanos”
isto por que durante a estadia dos Estadunidenses em solos
picuienses, essa casa serviu de residência para oficiais norte-
americanos instalados na região para a extração de minério. O
depoente que visitou a casa durante a gravação foi o senhor Nozinho,
sobre a estadia ele rememora:
“Aqui era o dormitório deles, é onde eles
faziam os estudos que referia a missão que
eles vinheram cumprir. É nessa fachada,
desse prédio onde eles se encontravam, eles
jogavam moedas de mil reis, quinhentos reis,
nesse tempo, a moeda era reis, eles jogavam
aqui pra as crianças, faziam a festa.”5
A edificação em questão, não teve suas características

4
Vicente Ferreira de Macedo, foi um dos pioneiros da indústria extrativista de
minérios.
5
Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário “URÂNIO PICUÍ”
Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.

49
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

arquitetônicas preservadas, atualmente encontra-se descaracterizada,


tendo seu espaço utilizado por um comerciante local.
Acerca das alterações dos espaços e sociabilidades, Pesavento (1995)
enfatiza:

Naturalmente, a forma de uma cidade, seus


prédios e monumentos contam uma história
não verbal, do que a urbe vivenciou um dia,
mas, por mais que este patrimônio tenha sido
preservado, os espaços e sociabilidades se
alteraram inexoravelmente, seja enquanto
forma, função ou significado.6

Essa nova dinâmica econômica da cidade, também é


responsável pela inserção de crianças no mundo do trabalho das
minas. A renda das famílias picuienses desde os primórdios advinha
da produção rural, setor onde as crianças eram inseridas
precocemente no campo do trabalho, diante da justificativa de que
todos os membros da família precisavam contribuir com a renda
familiar, desse modo assegurando sua alimentação. Nesse contexto, as
famílias tradicionais tinham uma estrutura patriarcal, onde os homens
eram considerados os chefes das famílias. Portanto, responsável pela
sua administração financeira. Ao longo da história do país, as crianças
pobres sempre estiveram inseridas no mundo do trabalho, como

6
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por uma história cultural
do urbano. Revista Estudos Históricos, Vol. 8, N° 16, 1995, p.284.

50
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

afirma Irma Rizzini.

O Brasil tem uma longa história da mão de


obra infantil. As crianças pobres sempre
trabalharam. Para quem? Para seus donos, no
caso das crianças escravas da colônia e do
Império; para os “capitalistas” do início da
industrialização, como ocorreu com as
crianças órfãs, abandonadas ou desvalidas a
partir do final do século XIX; para os
grandes proprietários de terras como bóias-
frias; nas unidades domésticas de produção
artesanal ou agrícola; nas casas de família; e
finalmente nas ruas para manterem a si e as
suas famílias. 7
Ao adentrarem ao mundo do trabalho, durante a fase da
infância, essas crianças têm responsabilidades de pessoas adultas, além
de serem expostas a situações de risco. A vivência de infância
experimentada pelas crianças advindas de famílias pobres é bem
distinta da vivência de infância das crianças de famílias mais abastadas.

“É por isso que dizemos algumas vezes de


alguns homens que eles não tiveram infância,
porque a necessidade de ganhar o seu pão,
impondo-se a eles muito cedo, forçou-os a
entrar nos domínios da sociedade onde os
homens lutam pela vida, enquanto que a
maioria das crianças nem sabem que essas

7
RIZZINI, Irma. Pequenos Trabalhadores do Brasil. In: DEL PRIORI, Mary
(org.). História das Crianças no Brasil. 7. Ed. – São Paulo: Contexto, 2010.

51
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

regiões existem; ou porque em consequência


de uma morte conheceram uma espécie de
sofrimento de ordinário reservado aos
adultos, e tiveram que enfrentar no mesmo
plano que eles.”8

Ao abordarmos a inserção precoce no mundo do trabalho


vivenciada pelas crianças picuienses na década de 1940, por meio do
uso das memórias registradas no Documentário Urânio Picuí, visando
perceber as especificidades que esse contexto proporcionou aos
depoentes. Apesar dos depoentes demonstrarem dificuldades em
relembrar o contexto da infância com clareza, tendo em vista que as
experiências da fase da infância não se diferem da fase adulta, em
decorrência de toda uma vida regrada pelo trabalho.

A maioria dessas crianças se manteve no garimpo por toda


vida, seja trabalhando na extração mineral ou administrando a
abertura destas jazidas. Isto porque após esse período a mineração
tornou-se o principal setor empregatício da região. O depoente Miguel
Vitalino iniciou sua vida no garimpo aos nove anos, sobre a sua
trajetória no garimpo ele relatou, “As minas da região quem descobriu
quase tudo foi eu. Eu conheço todos os minerais, a mineração daqui,

8
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva, 2ᵃ Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais LTDA, 1990, p. 42.

52
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

são dezoito qualidades de pedras que temos na região.” Sobre o


contexto onde o senhor Miguel adentrou ao setor mineral, ele
rememora:

“Trabalhei, eu era criança, eu estava com


nove anos. Eu trabalhava de barraqueiro aí
no Alto do Urubu, com companhia
americana, porquê meus tios, meus pais
adotivos era amigo, muito amigo do rapaz
que era sócio com a companhia americana, aí
fizeram a proteção, é me botou lá dentro, aí
eu aprendi muita coisa naquela época.9
O Sr. Miguel é uma das poucas testemunhas deste período que
estão vivos. Lúcido, o Sr. Miguel é procurado por pesquisadores e
estudiosos, quando o assunto é a passagem dos americanos no Seridó
paraibano. Em virtude da Pandemia do Covid – 19, não foi possível
entrevistá-lo, em respeito às medidas sanitárias.

Em uma entrevista concedida a Dantas (2017) o Sr. Miguel


falou da sua atividade no garimpo e informações acerca de minas, na
escrita da sua pesquisa, Dantas destacou que:

Em entrevista com antigos garimpeiros,


como o Sr Miguel, que na época da 2ª Guerra
Mundial era adolescente e trabalhou
inicialmente cozinhando nos garimpos, mas
9
Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário “URÂNIO PICUÍ”
Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.

53
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

depois tornou-se garimpeiro também, este


afirmou ter cerca de 4 mil homens
trabalhando no garimpo, em cerca de 20
minas isto no município de Picuí, tais como
as minas: Tabua, Tanquinho, Caraúba,
Cruzeiro, Alto do Urubu, Acauã e Alto do
Damião, estas minas eram de posse de
garimpeiros que possuíam outras fontes de
renda, posses (fazendas, grandes e médias
propriedades – Pedro Tomáz e Abílio César)
(Entrevista realizada em 03/12/2016).
(DANTAS, 2017, p. 34)

Sobre o ingresso ao mundo do trabalho no garimpo, durante


a fase da infância o senhor Severino Pereira Gomes 10 , também
rememora:

“Com idade de sete a oito anos, fui trabalhar


no minério mais meu pai, é quando os
americanos chegou, aí abraçou todo mundo,
vinha gente do sertão, do brejo, de todo
canto, ninguém sabia trabalhar em minério.
Aí quando terminou os americanos em 45,
que eles terminaram, eles foram embora, mas
aí muitas firmas, instalou-se empresa de
mineração de exportação, então passei trinta

10
Severino Pereira Gomes trabalhou como agricultor, minerador e comerciante, foi
Prefeito das cidades de Picuí e Baraúnas. Faleceu no dia 15 de julho de 2010.

54
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

anos nessa luta.”11

A partir do relato do senhor Severino Gomes, é possível


compreender que essa nova dinâmica econômica, também gerou
deslocamento de trabalhadores de outras regiões do Estado, para a
região do Seridó. Também é notório que o não conhecimento das
técnicas de garimpagem, relatadas pelo depoente, se devem ao fato
dos trabalhadores serem advindos do setor agrícola. O depoente é
uma das tantas crianças trabalhadoras que permaneceram
desempenhando trabalho no garimpo.

O exercício de pensar o cotidiano destas crianças, nos leva a


outras linhas que coexistiam com o trabalho. Silvia Petersen (1995)
considera que o cotidiano é um território que compreende todo o ser
humano. De modo que a vida cotidiana é como se fosse uma
dimensão, aonde ocorre o desdobramento de ações, caracterizando as
reproduções individuais e sociais. Para Pertesen, a vida cotidiana não
é limitada pela rotina, que o caracteriza, tendo em vista que o
cotidiano é também o momento da vida:

“[…] se dão as interações, onde se produzem


sentidos, onde surgem os amores, onde se

11
Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário “URÂNIO PICUÍ”
Documentário, 2011
Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.

55
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

substituem os interlocutores, onde sobrevém


a catástrofe, onde a surpresa está presente,
onde um sorriso, uma palavra, um ato
provocam subversões imprevistas”
(PETERSEN, 1995.p.10).
Inseridas no setor de trabalho extrativista mineral, essas
crianças tiveram uma convivência com os estrangeiros
Estadunidenses. Essa convivência teve impactos significativos no
imaginário dessa população. Em virtude dos muitos rumores que
circundavam na pequena cidade, em decorrência da interação entre
acontecimentos de relevância mundial por um lado, e as estruturas da
vida cotidiana por outro. Conforme Pesavento, o imaginário:

É esse motor de ação do homem ao longo de


suas existência, é esse agente de atribuição de
significados à realidade, é o elemento
responsável pelas criações humanas,
resultem ela em obras exequíveis e concretas
ou se atenham à esfera do pensamento ou às
utopias que não realizaram, mas que um dia
foram concebidas (PESAVENTO, 2007,
p.11-12).

Ao longo da análise dos diálogos, o relato de Dona Rita nos


chamou atenção. A depoente relatou que no ano de 1942, havia sido
convidada para cuidar das lavagens de roupa dos americanos que se
estabeleceram na região. A depoente relembra: “Em 1942 fui

56
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

convidada para tomar conta da lavagem de roupa dos Americanos. Eu


era bem, mocinha tinha de 16 anos.” Dona Rita, em virtude do serviço
que lhes foi atribuído, ela teve um maior contato com os
estadunidenses, ao decorrer da fala de Dona Rita é possível observar
um sentimento de intimidade, por parte da depoente:

“Eu já falei pra vocês que americano não


confia em ninguém, é cada qual em seu lugar.
E aquele pessoal, eu suponho, que eram
gente do exército. É além do mais, tinha Dra.
das Neres, que no meu ver era a chefona de
tudo, era minha amiga gente, me convidou
pra eu ir morar com ela. Não vou deixar a
minha mãe pra ir pra América do Norte.”12
Nesse trecho também é possível observar a imagem que os
picuienses formaram acerca dos “estrangeiros americanos”, assim
denominados por eles, assim como o choque cultural ocorrido com a
sua presença na cidade. Quando chegaram à cidade, os oficiais
estadunidenses exerceram forte atração por serem muito educados,
instruídos e pelas suas características físicas.
Em um diálogo entre os depoentes, Rita de Medeiros e Zé de
Berto,13 Dona Rita recorda:

12
Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário “URÂNIO PICUÍ”
Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.
13
Francisco dos Santos (Zé de Berto) foi maestro da Filarmônica Cel. Antônio
Xavier, faleceu em 25 de julho de 2021.

57
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

“Mister kennedy é aquele bem alto, bem


popular, passava a mão na sua cabeça [...]
Mister Lins, era aquele senhor de boa
estatura, galego, dos olhos azuis, muito
educado, meio forte. Era Mister Lins. É Dr.
Pimentel, que era o que dele? Porta voz né?
Era secretario deles, era ali do Recife. Dra.
das Neres era muito simpática, era uma
senhora, assim, de 40 anos, a mais. É eu
gostava muito deles e graças a Deus fui
respeitada por todos.”14

O diálogo se passa no interior de um transporte, durante o


trajeto Picuí - PB a Parelhas - RN. A viagem foi proporcionada pela
equipe de direção do documentário, é tinha o intuito de visitar as
instalações dos Estadunidenses na cidade de Parelhas. Local em que
dona Rita visitou algumas vezes, durante o período em que ficou
responsável pela lavagem de roupa dos oficiais, assim como Zé de
Berto, que a acompanhava durante as viagens ao estado vizinho,
servindo de companhia.
Figura 1 - Os depoentes Rita Medeiro e Zé de Berto,
durante o trajeto para a cidade de Parelhas - RN.

Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário “URÂNIO PICUÍ”


14

Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio Carrilho.

58
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Fonte: Urânio Picuí (2011)

Nesse período também ocorreu o choque cultural, entre às


duas nacionalidades, de hábitos e costumes distintos, entre eles
destacamos o idioma. Para ser possível a comunicação entre os
Estadunidenses e Picuienses, era necessário que houvesse uma
intermediação de um tradutor, que era chamado “porta-voz” pelos
moradores, como foi observado na fala de Dona Rita. Um dos
depoentes do documentário foi o Sr. Pedro Tomás, a entrevista se
passa na sua residência, ambiente simples e marcado pela
religiosidade, no documentário é destacado a imagem de um oratório
de madeira e algumas fotografias da família, expostas na parede. Dono
de uma vasta extensão territorial rica em minério, Pedro Tomás foi um
dos grandes produtores de tântalo, como relata ao documentário:

59
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

“esse tempo que o americano teve aí, eles só exploravam mesmo a


scheelita e a tantalita, eu era produtor de tântalo”. Ao falar do contato
que teve com os Estadunidenses, em um pequeno trecho selecionado
para o documentário, Pedro Tomás, relata como ocorria a
comunicação, ele pronuncia como os Estadunidenses o chamavam
para ver o estoque de Berilo, um dos minerais produzidos em suas
jazidas.

O depoente ressalta que ele não compreendia a fala dos americanos e


que havia uma pessoa responsável pela intermediação do diálogo. Ao
longo da sua fala percebe se a dificuldade em realizar a rememoração
dos fatos, entretanto é perceptível aos telespectadores que a
recordação do período lê trouxe boas lembranças. Ao rememorar os
fatos, o depoente os relata com alegria, as falas vêm acompanhadas de
sorrisos e risadas, há uma diversão ao recordar como ocorria a
comunicação com os norte-americanos, com quem ele fazia a
comercialização dos materiais extraídos de sua propriedade. Percebe-
se que para ele, foram lembranças positivas. De idade avançada, esse
é um dos últimos registros do Sr. Pedro Tomás em vida, pela sua
longevidade e por vivenciar algumas mudanças ao longo dos seus mais
de 100 anos, foi por muito tempo um guardião da memória do
Município.

60
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Figura 2 - Imagem do depoente, Sr. Pedro Tomás Dantas.

Fonte: Urânio Picuí (2011)

Acerca do contato com os oficiais norte-americanos, o Sr.


Inácio Zacarias, também relatou como era a comunicação entre eles,
é o papel dos tradutores no processo de comunicação:

“Ai quem entendia a fala deles eram os


línguas, num sabe [...] A gente não entendia a
fala deles não. Era uma zuada danada.
Brabrabrabrabarba eles conversando parece
um bando de papagaio novo [...] ele fazia
aquela zuada danada, o caba não sabia o que
ele estava dizendo. Ele tá dizendo isso assim,
assim, assim, essa pedra é isso aquilo outro,
dá pra isso, dá pra aquilo outro, dá pra aquilo

61
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

outro, aí é que o caba entendia. ”15


Esse choque cultural com a cultura norte-americana, nesse
contexto da década de 40, não foi uma vivência exclusiva dos
habitantes picuienses, outros pontos do país tiveram essa experiência,
cada qual com a sua subjetividade. Em alguns lugares ocorreu apenas
o impacto, um estranhamento, em outras localidades ocorreram a
influência na nomeação de lugares públicos e na implementação de
novas palavras no vocabulário local. Durante a presença dos
Estadunidenses em Picuí, ocorreu uma troca cultural, que resultou na
repetição de costumes e comportamentos, também foi observada a
influência norte-americana no ato de nomear os filhos, algumas
famílias picuienses deram nomes americanos aos seus filhos.
Entretanto, em Picuí não se observou a perpetuação desse
comportamento. Diferente de outras cidades como Natal – RN, que
até mesmo por experimentar um choque cultural bem mais intenso,
do ponto de vista do contingente de Estadunidenses que estiveram
presente no território potiguar. Adquiriram novas palavras de origem
Americana, que até os dias atuais permanecem no vocabulário
potiguar, outro ponto é a nomeação de lugares públicos como ruas e

15
Trechos de relatos de memórias contidos no Documentário
"URÂNIO PICUÍ Documentário, 2011 Dir. Tiago Melo / Antônio
Carrilho.

62
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

comércios, comportamento que não se teve registro em Picuí.

“A presença dos galegos (designação usada


pelo homem do povo para identificar
qualquer estrangeiro) motivou a
aprendizagem da língua inglesa, ao ponto de
que, já ao término da guerra, muitos
natalenses falavam e escreviam corretamente
esse idioma. Tornara-se comum o livrinho
‘Safaonça’ (dicionário com as frases mais
comuns para se conversar e traduzir a língua
inglesa, com a grafia e a pronúncia figurada),
verdadeira tábua de salvação para aqueles que
tinham necessidade de conviver com os
americanos, principalmente mocinhas que
sonhavam casar com oficiais de Tio Sam, ou
espertos comerciantes de rua” (Aguiar, 1931,
p.32).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar dos escritos historiográficos acerca da Segunda Guerra


Mundial ter ganhado grandes contribuições nas últimas décadas, ainda
percebesse lacunas, principalmente quando se trata do impacto
ocasionado na nação brasileira, com ênfase nas cidades interioranas,
visitadas e exploradas por estadunidenses durante o período de
beligerância mundial.

Por meio da referida pesquisa, foi possível perceber como a

63
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

presença de oficiais estadunidenses durante a década de 1940, na


cidade de Picuí-PB, impactou o imaginário e o cotidiano de crianças
picuienses, com a inserção destas crianças no mundo do trabalho.
Quando citamos a Segunda Guerra Mundial associamos seus
impactos as grandes cidades mundiais, no Brasil, geralmente
associamos os seus impactos as cidades litorâneas, que vivenciaram os
ataques navais, os blecautes e as bases de oficiais norte-americanos. É
esquecemos o modo que este acontecimento impactou a vida daqueles
que viviam no interior, como se eles estivessem alheios ao que estava
acontecendo no mundo.

Essa pesquisa se faz importante para compreendermos que a


Guerra também ocasionou impactos significativos em pequenas
cidades interioranas. Assim como, também é possível notarmos a
subjetividade com que cada localidade sentiu esse impacto. Diante do
exposto compreendemos que de fato a segunda guerra chegou em
todas as localidades do mundo.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3 ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1994.
DANTAS, Jaqueline. A ATUAÇÃO DAS COOPERATIVAS NA
ATIVIDADE MINERAL NO SERIDÓ PARAIBANO: os casos da
coopicuí e coomipel. Campina Grande: UEPB, 2017. (Dissertação de
Mestrado em Desenvolvimento Regional).

64
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva, 2ᵃ Ed. São Paulo:


Revista dos Tribunais LTDA, 1990, p. 42.
KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. Documento e história –
A memória evanescente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania
Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2009, p. 9-28.
LEGOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Editora da
UNESP, 1992.
PESAVENTO, Sandra. Relação entre história e literatura e
representação das identidades urbanas no Brasil (século XIX e XX).
Anos 90, Porto Alegre, n. 4, dez. 1995.
PETERSEN, Silvia. “Dilemas e desafios da historiografia brasileira: a
temática da vida cotidiana”. In: MESQUITA, Z. e BRANDÃO, C.
(org.) Territórios do cotidiano. Porto Alegre: UFRGS; Santa Cruz do
Sul: EdUNISC, 1995.
RIZZINI, Irma. Pequenos Trabalhadores do Brasil. In: DEL
PRIORI, Mary (org.). História das Crianças no Brasil. 7. Ed. – São
Paulo: Contexto, 2010.
FONTES
Cinematográfica: Curta - Documentário Urânio Picuí, 2011|Direção
e Roteiro: Tiago Melo e Antônio Carrilho. Disponível:
https://vimeo.com/45176655?fbclid=IwAR0RwSQWgrQE_KMeD
j1YLBmLwv3YmZJ7LFR Z_TGkMcQj2is9FpLS_KT3orE
Acessado: 23 de março de 2021. Documentário Urânio Picuí, 2011
|Direção e Roteiro: Tiago Melo e Antônio Carrilho. Disponível em:
https://youtu.be/Q9SV0LfyNWk. Acessado: 20 de fevereiro de
2021.

65
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

66
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 3

PAU-BRASIL: CONTATOS, CONFLITOS E DISPUTAS


IMPERIAIS NO CONTEXTO DAS VIAGENS
ULTRAMARINAS (SÉCULOS XVI E XVII)

Éverton Alves Aragão1

Resumo: A Mata Atlântica brasileira após 1500 foi o palco de um


drama ambiental que ultrapassou a densa floresta e chegou até nós
por meio de uma documentação oficial. Nessa trama, homem e
natureza protagonizam diversas relações – de destruição, mas,
também de conservação e planejamento. A árvore símbolo da nação,
é também a árvore que representa a propalada destruição de nossas
matas. Sendo assim, o presente trabalho dialoga com as áreas de
pesquisa da História Ambiental, da Ciência e da Circulação de plantas.
A partir da abordagem connected histories – ou histórias conectadas –
pensada primariamente a partir do historiador indiano Sanjay
Subrahmanyam, mas também das reflexões de Serge Gruzinski,
analisamos as teias e as conexões históricas realizadas através do corte,
embarque e comércio do pau-brasil, com o objetivo de compreender
as diversas relações socioambientais entre diferentes grupos étnicos.
Palavras-chave: Pau-brasil; América Portuguesa; Circulação de

1 Historiador, registro profissional nº 0000059/PE. Graduado em História pela


Universidade Federal de Campina Grande (2019). Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História da UFCG (2022). Pesquisa a circulação e os usos do pau-
brasil na história global e atua nas áreas de História Ambiental, História da Ciência
e da Circulação de Plantas. Natural de Santa Cruz do Capibaribe – Pernambuco,
Brasil. Endereço eletrônico: everton01588@gmail.com.

67
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Plantas.

Introdução
Este é um artigo sobre o Pau-brasil, árvore típica da Mata
Atlântica brasileira2, árvore que primeiro testemunhou a devastação
que sofreu “a ferro e fogo” este bioma – como já disse o historiador
Warren Dean (2004). Foi essa árvore que desde as primeiras décadas
da colonização portuguesa nas américas foi sendo derrubada,
apanhada e apagada da história brasileira. Ainda assim são muitas
histórias, a mais famosa: há cerca 500 anos um extenso território
conquistado pelo Império Português foi nomeado pelo mesmo nome
dessa árvore. E hoje, somos o único país do mundo a ser denominado
de (Pau-)Brasil.
Somente a pouco mais de 40 anos Paubrasilia echinata foi
declarada árvore símbolo da nação brasileira, mas ainda são poucos
os esforços de sua conservação e preservação. Para alguns uma árvore
belíssima, nobre e preciosa, ela é a melhor metáfora da história do

2Entendemos a Mata Atlântica a partir de Warren Dean (2004), isto é, observemos


um bioma que é cicatrizado pela ocupação e pelo trabalho humano. E por isso abriga
diversos protagonistas: índios, missionários, exploradores, cientistas, e até mesmo
árvores – as quais não se isolam, nem se apartam do curso histórico. Porém, não
ignoramos as críticas feitas por Carvalho, Ely Bergo de. Os historiadores e as florestas:
dez anos depois de A Ferro e Fogo (2010), e outros, à obra de Dean (2004). Ou seja, não
reduzimos nossas análises a ideia de que as florestas, as árvores, foram tão somente
destruídas, procuramos, entretanto, ver quais inter-relações seres humanos
estabeleceram com ela.

68
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

nosso país, para outros uma simples árvore inidentificável no meio da


mata. A verdade é que ela, hoje, é uma árvore que ruma à extinção.
Só quando iniciei o ensino superior percebi que o estudo da
história não se resumia a decorar datas e rememorar os grandes feitos
dos grandes homens. Foi um choque. A história havia se inovado e
isso não havia chegado no ensino secundário, não havia chegado em
uma cidade chamada Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste
pernambucano. Nos primeiros meses do curso percebi que a história
também estudava o meio ambiente, se relacionava com a natureza.
Encontrei uma coisa a princípio estranha, que se chamava: “história
ambiental”3 – foi entusiasmante.
Ao longo de alguns anos me dediquei especialmente em
contribuir para o debate historiográfico sobre tema do pau-brasil
perante a história nacional. Nesta produção em específico tenho como
objetivo introduzir uma compreensão atual sobre as conexões

3A história ambiental é um termo de uso recorrente no meio historiográfico. No


ambiente acadêmico brasileiro a Evirommental History se popularizou a partir das
impulsões teóricas dentro da Geo-História. Ocorre que foram os geo-historiadores
que impulsionaram novos tipos de fontes, além da documentação mais tradicional,
tais como os próprios vestígios da Natureza. Somente a partir das últimas décadas
do século XX começaram a surgir outras modalidades historiográficas próximas à
Geo-História, como por exemplo a História Ambiental ou Ecológica, que é já uma
demanda das últimas décadas, assombradas pelos desastres naturais, pelas
devastações florestais, pela ameaça de extinção de inúmeras espécies animais, pelo
aumento da poluição e pelo crescimento desordenado nas cidades. A História
Ambiental ou Ecológica, então, podemos dizer que é de certo modo uma Geo-
História acrescida de uma preocupação ecológica.

69
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

históricas realizadas através do corte, embarque e comércio do Pau-


brasil, por meio das diversas relações socioambientais entre diferentes
grupos étnicos, a partir de fontes tais como as Cartas de D. João III
de Portugal, outorgando poderes a Martim Afonso de Souza, a carta
do rei da França, François I, Foral de Duarte Coelho (dado por D.
João III), O regimento do Pau-brasil de 1605, entre outras.
Documentos esses que trazem em si normas e códigos que vigoravam
D'aquém e D'além mar.

1. História e Botânica: pensar história através dos rastros verdes


Um dos primeiros atos dos marinheiros
portugueses que, a 22 de abril de 1500,
alcançaram a costa sobrecarregada de
floresta do continente sul-americano nos 17
graus de latitude sul, foi derrubar uma árvore.
(DEAN, 2004, p. 59).

Antes de tudo é preciso ver a flora, ver o pau-brasil, para


enxergar o Brasil. Neste tópico, e nos subsequentes, partirmos de uma
reflexão simples: a natureza é tomada como o ponto no qual se
cruzam a história do país com a identidade de um povo. Porém, é claro,
sem fazer dessa história uma exaltação, mas, sobretudo, uma reflexão
sobre uma árvore que atravessa o tempo emaranhada entre belezas e
contradições.
Os trabalhos desses homens da ciência botânica são,

70
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

portanto, referências de um largo processo de conhecimento, que vem


sendo compartilhado e transformado. E, como tenho dito, ao longo
da história diferentes abordagens cientificas marcaram a aproximação
entre o homem e a natureza que o cerca. O pensamento científico se
transformou, é certo, mas, temos que ter em mente que ele continua
se transformando. Por exemplo, o pau-brasil até pouco tempo atrás
era denominado por Caesalpinia echinata Lam. – classificação feita
por Jean-Baptiste de Lamarck, em 1785 –, se transformou em
Paubrasilia enchinata (Lam.) em 2016.
Outra relação entre história e botânica é que a natureza foi
um importante fio condutor da diplomacia, principalmente através de
viajantes e pesquisas de naturalistas luso-brasileiros que mudaram
qualitativamente o repertório científico do século XVI em diante.
Vários trabalhos de botânica foram publicados em Portugal,
sobretudo sob os auspícios da Academia das Ciências de Lisboa e da
Tipografia do Arco do Cego, dirigida justamente pelo brasileiro frei
Mariano da Conceição, o Frei Veloso. Mas, apesar da existência de
algumas descrições do Brasil no século XVI, feita pelos portugueses,
os primeiros estudos sistemáticos impressos sobre a flora brasileira
foram realizados no período da colonização holandesa, que durou de
1624 a 1654.
De fato, desde o início do século XVII a Holanda
estabeleceu jardins botânicos em suas colônias, tornando a história

71
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

natural uma aliada na administração de suas conquistas. Maurício de


Nassau, conde encarregado da administração da colônia holandesa no
Brasil de 1637 a 1644, estabeleceu um jardim no Recife no qual foram
cultivadas dezenas de espécies de plantas nativas e exóticas. De igual
forma, dois notáveis cientistas holandeses, ambos trazidos ao Brasil
por Nassau: os jovens Geroge Marcgrave e Willem Piso, realizaram
várias expedições botânicas na zona de ocupação holandesa –
Marcgrave possivelmente coletou amostras de pau-brasil, próximo a
Alagoas –, publicando seus estudos em 1648, em Historia Naturalis
Brasilae.
Ambos os casos resumem que as autoridades dos dois países
começaram desde cedo a incentivar a realização de pesquisas
“botânicas”. Tinham a intenção de conhecer a recém “descoberta”
natureza, e, sobretudo com os objetivos de controlar, conquistar e
explorar. Pois se engana quem acha que nessa época havia interesse
ao valor biológico do pau-brasil, ou a simples admiração dos homens
da ciência perante a natureza das florestas, as pesquisas científicas
tinham antes de tudo a clara indicação do desejo europeu de explorar
lucrativamente as abundâncias naturais da América, conforme aponta
o historiador José Augusto Pádua (2004).
O papel da ciência botânica deu cabo ao uso da flora
brasileira, que acompanhou os europeus, desse modo, nessa vasta
empresa colonizadora. Porém, o desconhecimento sobre as

72
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

complexidades botânicas do pau-brasil ainda é muito grande, nem


mesmo os mais de 500 anos das primeiras invasões portuguesas no
atual território brasileiro deram conta para explicar suas características.
Existem vastas lacunas sobre vários aspectos, contudo recentes
pesquisas vêm descobrindo novos usos para o lenho que antes era
utilizado para tingir panos. Enfim, se mais pudesse ser dito, acrescento
que, conhecer o Brasil sem conhecer sua originalidade botânica é
tempo perdido.

2. Na trama das redes: os universos escondidos atrás das árvores

Para a maioria dos historiadores, e historiadoras, que


pesquisam sobre o Brasil colonial é convincente e assertivo afirmar que
a colonização portuguesa partiu de um processo sistêmico e de uma
organização social, política e econômica. Não é algo novo dizer isso.
Mas, é sem dúvida importante dizer que parte desse processo pode
ser entendido através do estudo das relações socioambientais que
brotavam, naquela época, do trato do pau-brasil.
Porém, para nos aprofundarmos nessas dinâmicas, temos
que entender um pouco sobre as redes de contato entre portugueses,
mas também deles com os indígenas, e com outros impérios: o francês,
o holandês e o inglês etc. Para tanto, as redes são aqui entendidas
como networks de relacionamentos, constituídos a partir das ações e

73
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

das relações vivenciadas entre diversos indivíduos com acesso a


informações e recursos diferenciados entre si. Essas diferenças
potencializavam a possibilidade de sua imbricação, tirando-se assim
partido das fraturas que cotidianamente eram identificadas nos
diversos cenários sociais e ambientais que compunham o império
português – e seus diálogos com outros impérios.
Diante disso, afirmo que as discussões provocadas a partir
desse conceito resultam de uma influência direta das discussões
promovidas nos livros Nas rotas do império: eixos mercantis, tráficos e
relações sociais no mundo português (2006), e Na trama das redes: política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII (2010), que, no geral, se
qualificam como um esforço de pesquisas de diferentes historiadores
e historiadoras das Universidades Federal do Rio de Janeiro, Federal
de Juiz de Fora e Federal do Rio Grande do Sul, principalmente de
algumas produções organizadas pelo historiador João Luis Ribeiro
Fragoso. Entre outros, ele é um dos que divulga discussões dos temas
e os conceitos mais fundamentais que tanto têm mobilizado o debate
acadêmico na área de estudos da História do Brasil na Época Moderna,
o Brasil colonial, tal como: conexões imperiais e redes de contato.

74
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

2. 1. Os caminhos do poder e das riquezas: a sanha e cólera


portuguesa

Nos séculos XV e XVI, era no Índico que um português


buscava fama e fortuna. Até a descoberta do ouro no Brasil, o mar da
fortuna, para os portugueses, ficava a leste do cabo da Boa Esperança.
Nem de longe uma árvore, até então desconhecida, desviaria os
olhares de um reino abastecido pelos frutíferos comércios marítimos
entre a Ásia e a Europa, os quais comerciavam bens de luxo, e,
sobretudo, de arroz, trigo, sorgo, carnes secas e salgadas, frutas frescas,
legumes e outros alimentos, algodão em rama, madeiras – entre elas o
Caesalpinia sappan: o “pau-brasil-da-índia” –, etc. (FRAGOSO, 2006, p.
16).
É, de fato, os olhares portugueses não eram em sua
totalidade voltados para Terra do Brasil. Talvez por isso que ao
debruçar no estudo do primeiro quartel do século XVI (1500-1525)
vamos perceber que se trata de um período todo inçado de dúvidas,
apesar de diversos esforços de pesquisadores deste e do outro lado do
Atlântico. Fosse pelo quase abandono em que deixou por anos o rei
de Portugal a terra do pau-brasil, fascinado como estava pelas rotas
de comércio das especiarias da Índia, fosse pelo segredo que era de
costume adotar-se nas expedições náuticas da época, dada a rivalidade
das duas coroas da península ibérica no início das grandes navegações

75
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

oceânicas (SOUSA, 1978). Mas, não há como negar, que a madeira do


pau-brasil foi a primeira riqueza permutável, e também as razões das
primeiras lutas ao longo da costa, o motivo das primeiras
preocupações políticas em torno da posse da nova possessão
territorial.
Tendo em vista a vastidão de temas e casos que podem ser
explorados ao relacionar os portugueses com a exploração de pau-
brasil, nos primeiros anos do século XVI, optei por pensar a partir do
rastro do seguinte problema: teria sido fácil para algum dos tripulantes
ou passageiros da frota de Cabral encontrar pau-brasil naquela
memorável semana de abril de 1500, nas paradisíacas paisagens do sul
da Bahia?
É certo que nos primeiros 30 anos da presença portuguesa
na nova terra, a chamada Costa do pau-brasil era, como Castro (2002)
costuma dizer: uma imensa fazenda florestal, frequentada apenas por
traficantes de pau-brasil e pelas expedições guarda-costas. Poderia ser
considerada, em termos atuais, a “Floresta Nacional do Ibirapitanga”
(CASTRO, 2002). Tão logo os portugueses chegaram ao litoral
brasileiro, o rei de Portugal firmou um contrato de concessão com
particulares, dando início à exploração comercial da floresta brasileira,
o que marcou profundamente a economia colonial.
Mas voltemos a falar: para obter uma única tora que fosse,
de pau-brasil, era preciso antes cruzar um Oceano. E mais ainda: se

76
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

eram uma grande fazenda floresta, essa fazenda estavam sobre o


domínio indígena – domínio topográfico e militar –, logo, teriam antes
de se aliar a esses povos para posteriormente conhecer e dominar
tanto o ambiente, como a paisagem local, e, por ventura a memória
dos indígenas.
Formava-se assim um império que só é de
fato perceptível ao olhar daqueles que se
colocavam sensíveis a perceber o equilíbrio
instável, a fantástica capacidade humana de
erigir estratégias e práticas sociais
suficientemente forte e fracas para dar
sustentação e movimento aos modos de vida
dos súditos do rei de Portugal e seus
domínios na Época Moderna. (FRAGOSO,
p. 24, 2010).

Se assim não fosse feito os primeiros exploradores


portugueses, não saberiam lidar com todo aquele ambiente
desconhecido. Nem tão pouco saberiam localizar uma árvore de pau-
brasil. Pois, os comerciantes e usuários conheciam os produtos
Orientais, mas não as matrizes de onde procediam. Se Cristóvão
Colombo ou Caminha por ventura conhecesse o sappan – o chamado
pau-brasil asiático, que era um produto que já frequentava as
alfandegas e mercados europeus desde pelo menos 1270 –, estaria,
quando muito, familiarizado com suas lascas (a forma como aquela
madeira tintorial chegava à Itália, vinda do oriente). E, é muito

77
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

improvável, também, que o pau-brasil nativo da América fosse


absolutamente idêntico ao sappan. Digo essas coisas para afirmar que:
Caminha, nem ninguém da tripulação de Cabral, teria condições de
reconhecer a árvore de pau-brasil na forma como ela se encontrava
na natureza.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito
grande, porque a estender d’olhos não
podíamos ver senão terra com arvoredos,
que nos parecia muito longa. (CAMINHA,
2014, p. 112) (Grifo meu).

Logo, a partir da descrição de Caminha das terras recém


exploradas, a penetração em profundidade na desconhecida mata
fechada forçosamente teria de envolver grande dispêndio de tempo,
pessoas e recursos na busca dos exemplares para o abate. Isso era algo
que nem a frota e menos ainda uma pequena naveta de mantimentos
poderia ter à disposição. Se não construindo, a partir dessa e de outras
intromissões no território, relações e redes de contato.
Redes essas que desde o princípio não foram sendo
construídas e articuladas apenas entre portugueses e indígenas, mas,
também entre indígenas e franceses – e porque não portugueses e
franceses. E, se assim foi:
O contrabando dos franceses foi muito mais
grave, e tal foi a insistência de sua prática que
certo foi ela uma das causas que levaram D.
João III, que sucedera a D. Manuel em 1521,

78
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

a olhar mais detidamente para o Brasil.


Também já começara a esse tempo o
desencanto da Índia – sorvedouro de vidas e
de capitais. (SOUSA, 1978, p. 67).

Os contatos iniciais, podemos dizer, eram reais “a


conversação deles conosco era já tanta que quase nos estorvavam no
nosso trabalho” (CAMINHA, 2014, p. 105). As conexões eram diretas.
E foram as bases dessas teias de contato que, desde muito tempo, vem
sendo construída como um símbolo da propalada herança predatória
europeia. Uma sanha que cruzou Oceanos, dizimou povos, e
construiu cidades e impérios. Só assim: por meio de um entendimento
de uma monarquia pluricontinental – que foi a portuguesa –, através
da noção de análise de redes mercantis, sociopolíticas, governativas e
ambientais, um esforço coletivo e conjunto para alimentar uma nova
realidade de análise histórica sobre a história dos espaços ultramarinos
no interior do império português, entre os séculos XVI e XVIII
(FRAGOSO; GOUVÊA, 2010, p. 24).

2. 2. Os caminhos no Além’mar: o contrabando francês e a


manufatura holandesa

Muito embora Portugal fosse o principal império a conduzir


o trato do pau-brasil, não se restringiam somente a eles o corte e

79
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

comércio dessa madeira. Há alguns que digam até que o tráfico francês
clandestino de madeiras corantes era tão bem estruturado quanto o
dos portugueses ou até melhor. Poucos anos após o descobrimento,
começaram a visitar os portos do Brasil navios de mercadores
franceses que, sem tardar, entraram em relações com os indígenas,
atraindo a simpatia desses povos de tal jeito, que Capistrano de Abreu
resume o perigo para Lisboa, na seguinte frase em seus Capítulos de
história colonial: “durante anos ficou indeciso se o Brasil ficaria
pertencendo aos peró (portugueses) ou aos mair (franceses).”. (ABREU,
1998, p. 42).
As expedições francesas ao Brasil tornaram-se cada vez mais
numerosas. E como não surtissem efeito as reclamações de Portugal
junto ao rei da França, resolveu D. João III agir em som de guerra.
Entre 1526 e 1527, o rei resolveu despachar em perseguição aos
contrabandistas de pau-brasil a flotilha de Cristóvão Jaques, capitão
“guarda-costas”, que antes estivera no Brasil, em 1516, momento o
qual ajudou a instalar uma feitoria em Itamaracá. Nesse segundo
momento, Cristóvão Jacques cumpriu exatamente a sua missão:
aprisionou naus inimigas que carregavam pau-brasil; combateu os
contrabandistas, principalmente três naus bretoas, mas, somente no
começo do século XVII que Portugal passa a tomar decisões mais
severas:
Primeiramente Hei por bem, e Mado, que

80
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

nenhuma pessoa possa cortar, nem


mandar cortar o dito páo brasil, por si, ou
seus escravos ou Feitores seus, sem
expressa licença, ou escrito do Provedor
mór de Minha Fazenda, de cada uma das
Capitanias, em cujo destricto estiver a mata,
em que se houver de cortar; e o que o
contrário fizer encorrerá em pena de
morte e confiscação de toda sua fazenda.
(REGIMENTO sobre o pau-brasil. Livro 1
de regimentos 1548 – 1653. Vol. LXXVIII, p.
272) (Grifo meu).

Para alguns, é historicamente improvável pensar que os


rigores de tal regimento fossem determinados antes da data de sua
publicação, há, inclusive, informações que demonstra a frouxidão dos
aparatos das leis que vigorassem no Além’mar, pois ousadia de alguns
contrabandistas demonstram que não se intimidavam com a
possibilidade de sofrer severas penas caso capturado:
De Cabo Frio a Paraíba, e até o Rio Grande
do Norte onde, em 1598, Manuel
Mascarenhas Homem surpreendeu uma nau
francesa surta no porto dos Búzios, dando-
lhe combate, pontilhava-se a costa de
esconderijos de contrabando, que se fez até o
fim do século XVI. (SALVADOR, 1918, p.
104-105).

Alguns contrabandos, é claro, acabavam de forma trágica,


como esse ocorrido na baía da Traição, na Paraíba, porém,

81
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

inumeráveis foram os bem-sucedidos; e, se assim o faziam, com tanta


facilidade, é porque tinham antes do desembarque uma séria rede de
contatos, redes de relações. Que ajudavam a contornar as investidas
portuguesas, que auxiliavam no corte, no armazenamento e no
embarque das toras de pau-brasil, entre outros estabelecimentos para
fazer o comércio e a extração do corante – os próprios Potiguaras, diz
Fr. Vicente de Salvador, tinham alianças com os franceses. Pois é,
quantos prejuízos esse e outros sujeitos não causou a Portugal. E
quantos lucros para os franceses. Há alguns que digam até que:
Muito dinheiro em pau-brasil ganhou o
célebre armador Ango, segundo deste nome,
que foi banqueiro da coroa de França e que
ao que se diz – pensou até em declarar
pessoalmente guerra a Portugal, para vingar-
se da repressão que este movia contra suas
esquadras. (ARINOS, 1938 apud SOUSA,
1978, p. 71).
Se os franceses souberam estabelecer redes e tomar
proveitos do ambiente e administrar a paisagem do Brasil. Os
espanhóis também não ficaram de fora desse processo. Damião de
Góis, na Crônica do rei D. Manuel, fala de dois navios espanhóis que em
1517 voltaram carregados de pau-brasil e informa que os interessados,
à vista das reclamações de D. Manuel ao Imperador Carlos V, foram
rigorosamente castigados, como quebrantadores da paz entre os
reinos. E como estes, é possível que outros navios de armadores de

82
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Castela contrabandeassem o precioso lenho nas costas do Brasil.


Outro local que estabelecia conexões diretas entre esses
impérios era a Holanda. Se no Brasil, a extração dos troncos era feita
pelo trabalho indígena em troca de bugigangas e, posteriormente pelo
trabalho escravo, em Amsterdã, parte do processamento dos troncos
para a produção do corante era feita pelo trabalho forçado de
prisioneiros holandeses, que eram obrigados a ralar troncos de pau-
brasil na prisão de Rasphuis – inaugurada em 1596, a prisão de
Rasphuis foi um dos primeiros presídios da Europa criados com o
intuito não só de castigar, como de corrigir os criminosos por meio
do trabalho forçado e da disciplina rígida (MARANHÃO, 2016, p. 58).
O trabalho, obrigatório, impunha aos prisioneiros raspar os troncos
de pau-brasil com grandes frosas até convertê-los em pó, que era
vendido para a indústria de tintas. Rasphuis processava grandes
quantidades de pau-brasil, e, durante a maior parte da sua existência,
monopolizou o processamento da madeira vermelha em boa parte
dos Países Baixos (MARANHÃO, 2016, p. 58).
Aos poucos vamos percebendo que essa grande operação era
realizada por centenas de traficantes espanhóis, ingleses e sobretudo
franceses. Que, inclusive, havia a participação de prisioneiros e
comerciantes da Holanda. Logo, a simples exploração por parte dos
portugueses e sua estratégia de escambo com os indígenas não dão
conta do todo que as tramas políticas e econômicas que o pau-brasil

83
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

oferece para esta parte da história do Brasil. Eles, os franceses,


espanhóis e outros, também fizeram parte dos primeiros “brasileiros”
– adjetivo que era utilizado para indicar aqueles que trabalhavam com
exploração de pau-brasil.
Formavam então redes posto que essas conexões não se
restringiam a meros relacionamentos. Ambicionavam alcançar
determinados fins que dependiam de recursos disponíveis quase
sempre fora de seu alcance. Agindo assim, procuravam tirar o melhor
partido possível das diferenças e das distâncias que os vinculavam
através do espaço e do tempo.
2. 3. Os caminhos das matas: a significação e o valor indígena
A amplitude geográfica e ecológica na qual os europeus do
século XVI se deparavam era em si gigantesca, se nas descrições dos
velhos cronistas portugueses e viajantes da atual Alemanha, a vasta
mata atlântica brasileira era uma natureza estranha, indomável, uma
terra sempre vasta e verde:
A América é uma terra extensa. Existem lá
muitas tribos de homens selvagens com
diversas línguas e numerosos animais
estranhos. Tem um aspecto aprazível. As
árvores estão sempre verdes. (STADEN,
2010, p. 133) (Grifo meu).

Mas, por outro lado, essa terra onde “as árvores estão sempre
verde”, e muito embora se mostre estranha e indomável para os

84
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

europeus, era, por outro lado, um “jardim domado”, conhecido e


explorado pelos povos indígenas. Se não fossem os indígenas muito
dificilmente os europeus sequer teriam desembarcado de suas naus.
Nesse sentido, é preciso afirmar que, os grupos e povos indígenas são
sujeitos centrais, pois antes dos europeus se relacionarem com o Pau-
brasil, este já era sujeito nas vivências simbólicas e cotidianas dos
povos indígenas.
Conforme Juciene Ricarte Apolinário (2013), o
conhecimento sobre os vegetais constituía a principal fonte de acesso
ao mundo natural americano para os europeus. Assim sendo, desde os
primeiros contatos interétnicos, os colonizadores portugueses ficaram
impressionados com a diversidade de plantas e infinidade de usos
estabelecidos para esses vegetais pelos povos indígenas contatados na
América Portuguesa (p. 182, 2013).
De fato, é inegável que nesse contexto os povos indígenas,
ao compartilharem as suas práticas culturais nas terras brasílicas,
construíram e criaram diversas outras práticas para o manuseio vegetal.
Mas, a questão é que muitas dessas novas experiências serviram diante
das necessidades imediatas para além de seus grupos, principalmente
de muitos outros não indígenas (APOLINÁRIO, 2013). O que se fica
posto é que, certamente, os portugueses não tinham a menor ideia de
onde as árvores se encontravam ou de como identificá-las, sendo
assim, a extração teve origem no conhecimento que os nativos tinham

85
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

da floresta (DEAN, 2004, p. 63).


Fora isso, as análises históricas e antropológicas têm tratado
a incorporação de mercadorias por grupos indígenas como uma
espécie de contaminação do seu sistema material e como fonte de
degeneração de suas relações sociais.
Os nativos, diz-se, por se deixarem seduzir
pelas “quinquilharias” inúteis dos
colonizadores, são vítimas de sua própria
ingenuidade; no afã de satisfazer o seu desejo,
vão caindo sem perceber na armadilha de
relações econômicas espoliativas que acabam
por destruir a sua cultura. (HOWARD, 2002,
p. 26).

Embora essa visão resulte da consciência que efeitos


devastadores da expansão colonial têm sobre as culturas indígenas,
ironicamente, ela ratifica exatamente a perspectiva dominante. Com
isso em vista, o mais sensato, talvez, seja se ater as palavras de
Catherine V. Howard: “tais noções são mais reveladoras da nossa
própria mitologia anti-histórica projetada nas imagens que
construímos do Outro exótico, do que esclarecedoras da história
cultural das sociedades encurraladas pelo ocidente”. (HOWARD,
2002, p. 27).
Isso não quer dizer que não havia trocas materiais entre os
indígenas e não indígenas. Mas antes de ter, fosse qual fosse a intenção
dos povos indígenas, não faziam tais atividades por bondade aos

86
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

“benevolentes” e “superiores” conquistadores, não faziam pela


“grandiosidade” e “superioridade” de tais objetos, por outro lado,
metamorfoseava e domesticava devidamente os bens de troca. Isto é,
os povos indígenas redirecionavam-nos e captavam suas propriedades
para satisfez a seus próprios fins, numa tentativa de apropriação e
pacificação dos poderes do branco. Pois,
Os objetos podem ser desvinculados de que
os produziu, circular independentemente
destes, inserir-se em novos contextos e ser
submetidos a complexas transformações de
significados e valor (MUNN, 1992, p. 277-
308).

Portanto, é indispensável pensar que os indígenas buscavam,


sobretudo, meios de tomar proveito dos contextos. Da mesma forma,
não há dúvida de que o pau-brasil fazia parte da vida cotidiana dos
Tupi e de outros povos indígenas da floresta brasileira, já que vestígios
arqueológicos comprovam que era uma das lenhas de uso mais
frequente nas fogueiras acesas para cozinhar ou aquecer (CUNHA,
1992).

3. A exploração do Pau-brasil: um feito espontâneo e localizado?

Depois da chegada dos portugueses à costa brasileira, em


1500, a colonização não foi um processo planejado ou pensado: ela

87
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

“se fez apesar de seus autores” (HOLLANDA, 1995), ou pelo menos


assim diria Sérgio Buarque de Hollanda, e, diria mais: que
“aventureiros” – e não “trabalhadores” – foram os envolvidos em tal
processo. É, suas palavras em Raízes do Brasil ecoaram, e, atualmente,
até quem diga que os portugueses estavam em praias brasileiras, no
século XV, “tirando férias”, se aventurando pelas matas e pelos corpos
das índias.
Em “o semeador e o ladrilhador”, capítulo 4 de Raízes do
Brasil, Buarque de Holanda tenta distinguir mais claramente o domínio
colonial português do espanhol, de modo a destacar aquilo que
frequentemente se denomina padrão colonial ibérico. De acordo com
esse padrão, os espanhóis teriam se esforçado para “vencer e retificar
a fantasia caprichosa da paisagem agreste” em suas colônias. Para
Portugal, contudo, “a colônia [seria] simples lugar de passagem, para
o governo como para os súditos”. São vários os motivos, e amplas as
fontes documentais de Holanda, para atestar isso, e, apesar de que a
intenção do autor não era declarar a colonização como fracassada,
mas sim reconstruir a história colonial analiticamente, a partir de uma
perspectiva de longa duração, com o intuito de atestar sua
interpretação da sociedade brasileira. Enfim, diferente do que
pensamos, ou melhor: do que Sérgio Buarque de Holanda supunha e
outra parte da população brasileira replica, no passado colonial os
eventos não se deram ao acaso, como o desabrochar espontâneo de

88
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

uma flor, isto é, as explorações do pau-brasil não ocorreram de forma


espontânea e localizada, sem constituir uma política deliberada.
A questão que levanto nas linhas a seguir é que, apesar dos
primeiros anos de presença portuguesa, e, de forma geral, europeia,
no atual território brasileiro ser assunto debatido exaustivamente, é
também aceito de forma factual – observando os pontos
anteriormente citados. Contudo, o (pau-)brasil – uma árvore não tão
simples, que faz parte da história de um país antagônico e com suas
próprias especificidades – é um veio histórico para pensarmos que: 1)
A colonização e a exploração do território brasileiro fez parte de um
processo conjunto, sistêmico e organizado; 2) Sobretudo houve
esforços para planejar e gerir o corte e o envio de pau-brasil; 3) Os
tons do vermelho de tingir panos ligou povos, uniu culturas, regiões e
diversificou costumes.
O engenheiro florestal Carlos Ferreira de Abreu, em sua tese
de doutorado – citada em “Pau-brasil: os recentes debates da história
ambiental” –, discute que a política florestal portuguesa na colônia
brasileira se caracterizou por uma exploração bem mais orgânica dos
recursos naturais do que usualmente se pensa, e não por um processo
de extração dos recursos desenfreado e realizado ao acaso. Segundo
suas conclusões, a floresta não foi destruída aleatoriamente, havendo,
na verdade, um trabalho de planejamento e gestão, expresso em uma
legislação extensa e abrangente (CASTRO, 2002). Principalmente a

89
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

partir do Regimento do Pau-Brasil, assinado por Felipe II, em 12 de


dezembro de 1605, instrumento leal contendo medidas visando
racionalizar o extrativismo e conservar para futuras explorações as
matas de pau-brasil.

Considerações finais: os saberes


Sensivelmente, podemos dizer, com base nas fontes as quais
tivemos acesso, que a exploração foi antes de tudo um plano com
monopólio e feitorias, e que, antes de qualquer coisa: muitos – ou a
maioria – dos questionamentos entorno do “trato” do pau-brasil são
respondidos através do estudo histórico dos povos indígenas. Se por
um lado o europeu se deparava com uma natureza diferente do
habitual, e, se encontrava com povos antes não vistos; foi neste
processo que a sabedoria dos ameríndios, dos povos de língua Tupi,
foram em todo fundamentais para o reconhecimento do território, o
qual eram eles os conhecedores seculares dos biomas e das florestas,
as quais conviviam simbolicamente – determinando até as árvores que
deveriam ser retiradas e o momento ideal para a derrubada.
Agora, basta acrescentar que, talvez ao longo do século XVI
a exploração do pau-brasil não estava em todo sistematicamente
organizada e amplamente localizada, mas com certeza todo o
processo ocorrido nesse século, e principalmente os descaminhos e o
contrabando da árvore pelos franceses e ingleses, serviram de bases

90
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

para que no início do século XVII, em 1605, o processo de trato


provocasse o surgimento de um regimento até então único.
De toda forma, o principal questionamento seja entender
quais informações poderiam dispor os navegadores europeus em geral,
e os portugueses em particular, sobre a existência do pau-brasil
naquelas paragens até então (supostamente) pouco conhecidas, a
ponto de propiciarem com tanta rapidez um fluxo de madeira nas
dimensões reveladas, o século XVI nos legou várias perguntas, a
dificuldade em ter acesso as fontes é um problema que ergue como
um elevado tronco na frente do historiador.
Muito embora, 20 anos após o regimento ser outorgado
temos alguns documentos, datados da década de vinte do século XVII,
que atestam as disputas de controle, da administração do corte,
transporte e armazenamento do pau-brasil, na capitania de
Pernambuco4 5. Mostrando para nós, que não se trata de algo feito de
forma espontânea, muito menos restrito a alguns espaços e alguns
grupos.

4 Carta de Sebastião de Sebastião Pestrelo sobre a conveniência de se empregarem


os jesuítas na administração do corte, transporte e armazenamento do pau-brasil,
antes de ser embarcado para o Reino. (1625) AHU_ACL_CU_015, Cx. 2, D. 112.
5Carta do [ex-governador geral do Estado do Brasil] Gaspar de Sousa, ao rei [D.

Filipe III], sobre ser improprio ceder aos jesuítas a administração do corte,
transporte e guarda do pau-brasil, sugerindo que esta responsabilidade seja
transferida aos governadores e capitães das capitanias. (1625) AHU_ACL_CU_015,
Cx. 2, D. 111.

91
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

O teor desses documentos consiste, como dito, em cartas


indicando que os jesuítas tomassem o controle da administração do
corte, transporte e armazenamento do pau-brasil, na capitania, pois
era comum os desvios ocasionados pelos particulares que tiravam o
sustento dessa fonte de renda. Acreditava-se que os votos de pobreza
dos jesuítas, iriam impedir que eles contrabandeassem o pau-brasil,
incidindo num maior lucro para as partes envolvidas (1625,
AHU_ACL_CU_015, Cx. 2, D. 112). Porém, para Silva (2014), os
jesuítas eram uma Ordem de contrastes, já que enquanto pregavam o
voto da pobreza viviam em completa abastança a partir das regalias
que o Rei passou a dar para que eles ajudassem na colonização do
Brasil. Mesmo que esses mesmos Reis tivessem a intenção de barrar o
crescimento exacerbado do patrimônio jesuítico, cediam perante à
necessidade de seus favores, notadamente no que dizia respeito aos
índios. Toda a educação dos indígenas estava sob responsabilidade dos
inacianos.
As disputas entre jesuítas e governadores e capitães de
capitania, os primeiros arrendamentos, o regimento de 1605, e, muitas
outras matérias de documentos nos fazem ver aquilo que os
historiadores parecem não ter percebido. Que a constatação da
existência da madeira tintorial no Brasil somente poderia ocorrer de
duas formas: por um golpe de sorte ou por meio de uma trabalhosa e
demorada familiarização com a natureza e os habitantes locais. O

92
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

golpe de sorte é estatisticamente improvável, pois a Mata Atlântica


abriga mais de dez mil espécies vegetais, das quais o pau-brasil é
apenas uma e, assim mesmo, espalhada aleatoriamente na selva
fechada e fora da linha ciliar da costa.

REFERÊNCIAS
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800
/ J. Capistrano de Abreu. - Brasília: Conselho Editorial do Senado
Federal, 1998.
APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Plantas nativas, indígenas
coloniais: usos e apropriações da flora da América portuguesa.
In: KURY, Lorelai. Usos e circulação de plantas no Brasil, séculos XVI
a XIX – 1. ed. – Rio de Janeiro, 2013.
BUENO, Eduardo... [et al.]. Pau-brasil. – São Paulo: Axis Mundi,
2002.
CASTRO, Carlos Ferreira de Abreu. Gestão Florestal no Brasil
Colônia. Universidade de Brasília – Centro de Desenvolvimento
Sustentável. Tese de Doutorado, 2002, p. 58.
CASTRO, Sílvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. – Porto Alegre:
L&PM, 2014.
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de
Cultura, FAPESP, 1992.

93
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata


Atlântica brasileira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FRAGOSO…[et. al.], organizadores. Nas rotas do Império: eixos
mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. –
Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.
FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima. Na Trama das
Redes: política e negócios no império português, século XVI-
XVIII. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização
Brasileira HGCB. Tomo I, vol. 1. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1985.
HOWARD, Catherine V. A domesticação das mercadorias:
estratégias Waiwai. In: ALBERT Bruce; RAMOS, Alcida Rita.
(Org.). Pacificando o branco: cosmologias do contato norte-
americano. – São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do Estado,
2002.
MARANHÃO, Ricardo. Pau-brasil a cor e o som / Ricardo
Maranhão, Simone Mateos; ilustrado por Vallandro Keating. – São
Paulo: Terceiro Nome, 2016.
MUNN, N. D. Gawan Kula: spatiotemporal control and the
symbolism of influence. In: LEACH, J. (Org.) The Kula: New
Perspectives on the Massim. Cambridge: Cambridge Press, 1983.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento

94
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. – 2.ed.


– Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
SALVADOR, Vicente do (Frei). História do Brasil. - São Paulo; Rio
de Janeiro: Weiszflog Irmãos. 1918.
SILVA, Priscilla de Souza Mariano e. A justiça no período Josefino:
atividade judiciária e irregularidades dos ouvidores na comarca
de Pernambuco entre 1750 e 1777. Dissertação (mestrado) –
Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-
Graduação em História, 2014.
SOUSA, Bernardino José de. O pau-brasil na história nacional. –
2. ed. – São Paulo: Ed. Nacional; (Brasília): INL, 1978.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros
sobre o Brasil. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

95
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

96
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

PRÁTICAS EDUCATIVAS E
DISCIPLINARIZAÇÃO

97
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

98
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 4

CALL CENTER E A TECNOLOGIA EM FUNÇÃO


CONTROLE

Pedro Henrique Dos Anjos Cabral1

Resumo: Este capítulo é parte do meu Trabalho de Conclusão de


Curso, que tem como título “Call Center: Tecnologia, Diversidade e
Exploração no Cenário Brasileiro”. Trabalhando como
materialmente ocorre a exploração e como os a tecnologia é agenciada
para isto, bem como as consequências como o adoecimento físico e
psicológico.

Palavras-chave: Exploração, Tecnologia, Adoecimento.

Introdução
Este capítulo é parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso,
que tem como título “Call Center: Tecnologia, Diversidade e
Exploração no Cenário Brasileiro”. Será enfatizada as formas com que
a tecnologia está inserida num ambiente de controle, voltado para o
aproveitamento exacerbado do tempo em função do trabalho, levando

1Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da


Paraíba.

99
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

os atendentes a um ritmo acelerado causador de estresse e


adoecimento. A metodologia é de pesquisa bibliográfica, tendo como
referenciais teóricos: David Harvey (2008), Ricardo Antunes (2020),
Michel Foucault (2014), Selma Venco (2003) e Luiza Almeida Porcaro
(2018), Gustavo Carneiro (2021), Mônica Duarte Cavaignac (2011),
Marieta de Moraes Ferreira (2000) e José Borges da Silva Neto (2005).

1 A estrutura tecnológica da exploração:


Para compreensão estrutural do call center é necessário
entende-lo como uma empresa que faz o trabalho de ponte,
facilitando o contato de uma outra empresa com os seus clientes reais
e em potencial. Estas empresas atuam geralmente de forma híbrida:
nos seus espaços físicos, que são chamados de sites e com
trabalhadores em casa, modalidade conhecida por home office.
O espaço padrão de um site é formado por fileiras, chamadas
de ilhas, as ilhas são formadas por pequenas cabines com divisórias,
cada uma contendo um ou dois computadores, cada cabine é
numerada e recebe a nomenclatura de PA, na ponta de cada ilha,
sentam-se os supervisores. Sobre a organização do espaço, a Doutora
em Sociologia Selma Borghi Venco (2003) traz a seguinte reflexão2:

2A autora se refere as PA’s como baias, termo que também é utilizado pelos
operadores em algumas partes do Brasil.

100
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

A segmentação em Baias carrega em si um


caráter controlador e, ainda em concordância
com Foucault, “adestrador”, na medida em
que limita o estímulo visual e o auditivo,
levando os trabalhadores a uma
concentração contínua, contribuindo
fortemente para o condicionamento dos
procedimentos na organização do trabalho
(VENCO, 2003, p. 53).

A autora parte de uma perspectiva foucaultiana, apontando


para como a organização do espaço físico é pensada previamente
numa perspectiva disciplinadora, para que o trabalhador fique
centrado no seu trabalho, com o mínimo de contato com os outros.
A presença do próprio supervisor nas pontas das ilhas, é um outro
ponto que coíbe por si só esta interação de forma mais livre, visto que
no pouco tempo entre uma interação do cliente e outra, é necessário
que o operador verifique sempre as palavras na interação com o colega
do lado, com o risco de ser mal interpretado.
Os cargos iniciam-se no operador, que é dividido de forma
tripartite: receptivo, os que recebem o contato; ativo, o que contata os
clientes e o bilíngue, que faz atendimentos em outra língua, podendo
ser contatado ou entrar em contato. As formas de atuação nesta
função não estão apenas ligadas as chamadas telefônicas como era em
seu início, devido as novas exigências que pediam serviço, e a
necessidade de controle dos trabalhadores, foram utilizadas

101
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

plataformas capazes de suprir as novas demandas como: Genesys


Cloud CX, JustCall, CloudTalk, Intercom, Salesforce Platform; elas
através de softwares permitem desde contabilização de tempo e
quantidade de chamadas, o tempo que os operadores ficam sem
receber ligações, os contatos, o registro e mapeamento dos casos
através do chat e e-mail, entre várias outras funcionalidades.
O operador está na base da pirâmide hierárquica3 de um call
center, porém é o cargo vital para o funcionamento da estrutura, visto
que é ele quem gera valor, pois o produto oferecido por este segmento
é o atendimento, e por ser uma mercadoria de caráter imaterial só se
realiza no momento de seu consumo. Sendo mais específico para a
compreensão de onde reside a taxa de exploração, é necessário o
entendimento de como são estabelecidos os contratos entre o call
center e a empresa contratante. Pelo caráter da mercadoria negociada
a única coisa quantitativamente mensurável nela é o tempo, aluga-se
então uma quantidade de PA’s, que na contratação é entendida como
a soma do trabalho morto, os equipamentos, mais o trabalho vivo,
traduzido como as 6h204 de tempo online do trabalhador, por um
determinado tempo, geralmente um ou dois anos.
Como não é possível ter previamente o número de clientes

3 Aqui não estamos levando em consideração as funções que não são próprias do
segmento, como limpeza e segurança do espaço.
4 Jornada de trabalho mais comum no meio.

102
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

que irão interagir 5 a empresa ganha a partir do tempo online do


trabalhador. Para exemplificar a situação, vou supor que a empresa
contratante Branco Online Iguatu6 alugue por um ano 50 PA’s da
empresa Call Center Brasileiro 7 , o preço de cada uma será de
R$ 10.000,00 por quatro semanas, imaginando que nesta situação o
trabalho vivo contido na PA equivale a 6h de tempo online diárias, a
compra é de 144h, deste valor o operador recebe R$ 1000,00 8 ,
deixando de lado o trabalho morto, em pouco menos de 3 dias
trabalhados o salário do trabalhador estaria pago, sendo o restante a
taxa de exploração, sendo esta a pedra basilar de toda a sobrevivência
e lucro do call center.

2 Sentado nas baias

Quando esta relação fica posta se torna mais fácil a


compreensão das pressões sofridas pelo operador. Uma característica
do modelo toyotista neste segmento é da multifuncionalidade, a

5 Mesmo que sejam estabelecidas médias, mas ainda assim pode acontecer de a
contratante sair em uma notícia jornalística e os clientes contatarem em massa para
confirmar, ou erros sistêmicos que acabem acarretando num fluxo maior de
ligações ou conversas no chat.
6 Nome fictício, apenas a título de exemplo.
7 Nome fictício, apenas a título de exemplo.
8 Valor fictício, apenas a título de exemplo, não correspondente ao salário mínimo

atual.

103
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

intenção da empresa contratante é aproveitar ao máximo o tempo


contratado, levando o operador a atender setores diferentes, como por
exemplo na prestação de serviço para um banco, o trabalhador atuar
no setor de seguros, de crédito consignado e de cartões, para que seu
tempo fique sempre preenchido, levando a um ritmo de trabalho
intenso. Até mesmo o tempo que leva cada atendimento tem que
seguir uma média estabelecida pela empresa o TMA ou TMO, na qual
o atendente é cobrado para atingi-la, sendo um indicador de sua
qualidade. Neste sentido, Doutora em Sociologia Mônica Duarte
Cavaignac (2011) chega a seguinte conclusão:

O tempo médio de atendimento (TMA),


principal meta que os operadores são
pressionados a cumprir, não é pautado no
tempo que eles precisam para transmitir
todas as informações devidas ao cliente, nem
tampouco no tempo que o cliente precisa
para resolver o seu problema. Trata-se, de
fato, de um tempo determinado pelas
necessidades do capital, o qual intensifica
cada vez mais o trabalho e reduz ao mínimo
possível o tempo livre dos trabalhadores
(CAVAIGNAC, 2011, p.7).

Devido ao controle do tempo, outras formas de pressão são


desenvolvidas, como a de limitar ao máximo a ida dos funcionários ao
banheiro. As pausas são curtas e com horários planejados previamente

104
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

pela empresa, se dividindo geralmente em duas de 10 minutos para


descanso e uma de 20 minutos para refeição, com atrasos sendo
reprimidos com advertências escritas e verbais.
Ainda assim, existem as pausas particulares ou pausas
banheiro, que o operador pode aciona-las sem um tempo planejado,
porém por trás disso existem formas de cobrança extra oficiais, com
a justificativa de prejudicar “o tempo da equipe”, os supervisores são
responsáveis pelos indicadores de sua equipe, que vão desde
avaliações positivas dos clientes, atendimentos em menos tempo a de
que os trabalhadores tenham o máximo de tempo online possível,
com o mínimo de faltas e pausas fora do planejado, para aqueles que
tem necessidades maiores de irem ao banheiro quando não são
questionados de forma direta, vão sendo mudados de equipe, até
acontecer o descarte pela empresa. Em sua pesquisa na área de saúde
do trabalho com trabalhadores do setor de teleatendimento, refletindo
o tema abordado as autoras (os) Ada Ávila Assunção, Airton
Marinho-Silva, Lailah Vasconcelos de Oliveira Vilela e Maria Helena
Guthier (2006) trazem o seguinte relato de um (a) operador (a) com a
identidade resguardada:

A fonoaudióloga disse que era pra eu tomar


água sempre, porque minhas cordas vocais
estão endurecendo, mas não posso ficar
tomando, pois não dá tempo. E se eu tomar,

105
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

vou precisar ir ao banheiro, e a gente não


pode deslocar. (ASSUNÇÃO; MARINHO-
SILVA; VILELA e GUTHIER, 2006, p. 8)

Outro relato na mesma perspectiva, está presente na pesquisa


de Mônica Duarte Cavaignac (2011), também é resguardada a
identidade da trabalhadora, apenas citando que atuava como
instrutora, e que já tinha sido operadora:

O supervisor às vezes não deixa o cara ir ao


banheiro. Se ele quer ir ao banheiro, ele tem
que levantar a mão, chamar o supervisor; o
supervisor vem, ele diz que precisa ir ao
banheiro, explica, muitas vezes, o que é que
vai fazer no banheiro, se vai demorar muito
tempo ou se não. O supervisor tem que ficar
na posição dele (operador) atendendo, para
que aquele cara não comprometa o resultado
da supervisão. (...). Um dia comecei a sentir
muita dor no braço, avisei ao supervisor e ele
disse para eu continuar atendendo. A lágrima
escorria do meu olho.... Então decidi desligar
os aparelhos e ir falar com o coordenador. (...)
Saí da empresa travada, direto para o hospital.
(INSTRUTORA apud CAVAIGNAC, 2011,
p.7)

Esta cobrança recai em diversos outros pontos, como evitar


colocar atestados para não afetar o tempo da equipe e

106
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

consequentemente sofrer retaliações futuras. Um outro relato que


aborda estes pontos presente na mesma pesquisa, identificando o
operador apenas como PH, é o seguinte:

Nós somos muito cobrados diariamente. (...)


É uma ligação atrás da outra, causando
algumas doenças no nosso dia-a-dia: doença
na garganta, problemas na coluna, tendinite é
uma coisa constante. (...) Mas o operador não
pode, de maneira nenhuma, colocar um
atestado médico, porque é passado para ele
pelo supervisor que, se ele colocar atestado,
vai gerar uma coisa chamada absenteísmo, e
com isso uma futura demissão. Eu já me
sujeitei a trabalhar mesmo doente, até que a
supervisora viu que eu estava passando mal e
eu fui liberado, mas isso gerou
constrangimento. (...) A gente trabalha seis
horas e quinze minutos e, por lei, não é dado
vale-refeição. No caso, eles oferecem um
lanche. A gente recebe um cartão com direito
a 14 pontos; digita a senha numa máquina
que só dá direito a um refrigerante e um
salgado congelado, que a gente precisa
esquentar, e às vezes ocasiona um mal-estar.
(...) (PH apud CAVAIGNAC, 2011, p.7).

Porém, é certo que mesmo o valor sendo gerado pelo


operador, existem outros cargos, evidentemente em número bem
menor, que atuam antes e durante o atendimento, os primeiros são os

107
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

instrutores, que treinam os operadores ensinando a parte o manuseio


do sistema e dando as informações da empresa contratante, visto que
como ela terceiriza o serviço e o operador tem que atuar como se
fosse funcionário da mesma, então é importante que conheça alguns
dados sobre a empresa.
Posteriormente temos os monitores, que podem existir no
próprio call center, ou o serviço pode ser delegado a uma outra
instituição especializada, a exemplo da Proxis. A responsabilidade
desta função é julgar se o atendimento seguiu o padrão e scripts da
empresa contratante, ou é desviante, não sendo levado em conta
questões como destrato ao operador, preconceitos ou agressões
sofridas pelo mesmo e formas de resguarda-lo, o monitoramento é
um instrumento unicamente unilateral com função de vigilância.
Michel Foucault (2014) aborda o modelo Panóptico de Jeremy
Bentham para pensar formas de controle social a partir da vigilância,
o modelo consiste em uma torre que tem diversas janelas e estas são
viradas para selas de uma penitenciária de forma que todos os presos
podem ser vistos e que, portanto, mesmo não tendo vigias em todas
o medo é um instrumento de coerção.
O Panóptico funciona como uma espécie de
laboratório de poder. Graças a seus
mecanismos de observação, ganha em
eficácia e capacidade de penetração no
comportamento dos homens: um aumento

108
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

do poder vem se implantar em todas as


frentes do poder, descobrindo objetos que
devem ser conhecidos em todas as
superfícies onde este se exerça (FOUCAULT,
2014, p. 198).

A atividade da monitoria implica para o trabalhador uma


sensação panóptica, pois a ideia de estar sendo vigiado e o medo de ser
punido permeia todos os contatos, mesmo que nem todos sejam
monitorados, esta é uma das razões para o desgaste mental do
operador. Esta característica de controle de qualidade é reforçada por
outros softwares que medem o tempo das pausas, o tempo do
operador em cada atendimento, o quanto ele deve reduzir para
conseguir atender mais, até mesmo as notas que os clientes dão para
o seu atendimento. Este de medir ao máximo a qualidade da produção
é trazida e adaptada desde o modelo fordista, por isso que não
podemos caracterizar o call center como um modelo típico e
unicamente toyotista
Na hierarquia deste segmento empresarial temos os
supervisores, já citados, coordenadores, responsáveis por equipes de
supervisores, os gerentes e diretores, que desempenham
intermediação entre as contratantes, bem como recebem os relatórios
dos coordenadores, até chegar ao CEO, administrador geral da
empresa. Levando em consideração que esta estrutura hierárquica é

109
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

mais complexa, com diretorias específicas, que variam de acordo com


a forma com que cada empresa se organiza.

3 Consequências e adoecimento

Fruto do sistema de pressão exacerbada por produtividade, o


operador se torna vulnerável a doenças físicas e psicológicas, para o
aprofundamento nesta parte mais específica é necessário o
conhecimento de dois termos médicos que são LER (Lesão por
Esforço Repetitivo) e DORT (Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho), que como seus nomes já indicam, o
primeiro é relacionada ao adoecimento da estrutura osteomuscular
por esforços repetitivos e a segunda tem o mesmo sentido só que
tendo como motivo o trabalhado, segundo o Ministério da Saúde
(2012). Sendo muito comum na literatura produzida sobre saúde do
trabalho os termos virem em conjunto, LER/DORT. Os sintomas
mais comuns são:

As LER/DORT podem provocar


desconforto, dificuldade ao uso do membro
afetado, fadiga, dolorimento, dor,
formigamento, sensação de peso no membro
afetado. Também podem ocorrer inchaços,
alteração na coloração da pele e/ou na
temperatura do membro afetado, limitação
dos movimentos, que devem ser atentamente

110
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

observados (ROCHA, 2021, p.3)

A pesquisadora Adna Oirideia Rabelo dos Santos (2006), em


sua tese de mestrado “O trabalho do atendente de call center –adoecimento por
LER/DORT e descartabilidade” traz a seguinte afirmativa:
Os call centers têm apresentado um
crescimento expressivo, consolidando-se
como um importante setor da economia
capaz de gerar muitos postos de trabalho, em
especial, para os jovens em sua busca do
primeiro emprego. Ocorre que esse
espetacular desenvolvimento não tem sido
acompanhado por uma legislação igualmente
capaz de regulamentar e assegurar, aos
atendentes, condições de trabalho favoráveis
à sua saúde física e mental. Tampouco o
sindicato tem conseguido acompanhar, de
modo contumaz, as transformações sofridas
no mercado de trabalho para, daí fazer frente
a elas no sentido de barganhar melhores
condições de trabalho, salários e benefícios.
Todas essas questões contribuem para o
agravamento da saúde do trabalhador cuja
expressão mais recente é a LER/DORT
(SANTOS, 2006, p.76)

A autora, por sua vez, apresenta uma correlação entre a


presença de LER/DORT e o desenvolvimento de problemas de
ordem mental como insônia e depressão, tal qual a pesquisadora Katia
Giselle da Silva (2011), que para o adoecimento físico como tendinites

111
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

e dores na coluna, mas também psicológico como depressão e rejeição


nos núcleos afetivos de amigos e familiares, decorre do trabalho
intenso que o trabalhador desta área é posto.
O assédio também é um dos motivos de estresse do operador,
visto que existe uma prática comum nas empresas do segmento em
desenvolver a competitividade dos trabalhadores através da exposição
de rankings com o nome dos operadores baseados em indicadores
como: menor tempo por atendimento, melhor avaliação dos clientes
e mais tempo online (sem pausas para fins particulares e faltas, mesmo
que justificadas). Um retrato desta situação é uma pergunta feita no
espaço “Fala Operador”, presente no site oficial do Sintratel 9
(Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing): “A gestão da
empresa em que trabalho criou um ranking que usa para comparar os
resultados alcançados pelos operadores, expondo aqueles que ficam
abaixo dos demais, que são tratados mal, ridicularizados e
desqualificados, sempre com tom de voz elevado. Mas a empresa não
dá treinamento adequado para qualificar o atendimento dos
operadores, e ainda aplica punições como advertências e suspensões
quando há algum erro. Essa situação me parece absurda. Qual a
orientação do Sindicato? ”, pergunta que o sindicato em sua resposta
esclarece que é uma característica de assédio moral, solicitando que

9Endereço eletrônico: http://www.sintratel.org.br/index.php/mais/fala-


operador/1578-nao-ao-assedio-moral-denuncie-ao-sintratel.

112
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

formalize a denúncia.
No relato de uma ex-atendente e no momento monitora,
entrevistada na pesquisa realizada por Porcaro (2018), que apenas foi
identificada como Clara, para resguardar sua identidade, é perceptível
como esta relação de exploração pode chegar ao extremo:
Eu tive um impasse no INSS. Porque é o
INSS, mesmo que você tenha atestados,
laudos e exames que comprovem que você
está doente, eles que vão dizer se você vai ser
afastado ou não, mesmo que você... No meu
caso, eu tive atestado psiquiátrico, atestado
ortopédico, psicológico e exames, tudo
dizendo que eu não poderia continuar
trabalhando e foi negado. Então, a pessoa é
obrigada a voltar ao trabalho, mesmo sem
querer. (...) Ai eu tive que voltar pra empresa,
que é isso de voltar obrigatoriamente, e eu
voltei pra empresa mesmo doente, fiquei um
mês trabalhando doente, limitada a fazer só
algumas coisas, porque não podia fazer tudo
estando doente, né? Ai eu fiquei um mês
nisso, depois disso eu entrei em depressão. E
é porque eu já estava sentindo a partir
daquele.... Eu me sentia inútil. Aí eu tive que
entrar com um processo na justiça sobre isso,
porque eu não estava mais aguentando ficar
ali. Eu fui falar com ele [Advogado do
sindicato à que a trabalhadora é filiada] sobre
isso e disse que não estava mais aguentando
trabalhar lá, que não aguentava mais aquela
situação, o assédio constante e que eu queria

113
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

minha rescisão de uma forma que eu tivesse


todos os meus direitos (CLARA apud
PORCARO, 2018, p. 73).

Neste relato fica clara a luta entre a necessidade de


sobrevivência e os limites físicos e mentais, uma constante nas
literaturas que abordam a situação histórica do operador de
telemarketing, sendo uma das justificativas mais pujantes para
rotatividade constante no setor, sendo inseparáveis os sintomas físicos
e psicológicos.

Considerações Finais:

Pensar o desenvolvimento histórico dos mecanismos de


exploração presentes no desenvolvimento do call center no Brasil,
exige um diálogo interdisciplinar intenso, necessitando uma busca de
literatura histórica, sociológica, médica e psicológica, uma amostra da
complexidade do tema.
Este segmento empresarial tem seu estado embrionário nas
primeiras vendas por telefone, porém na medida que a tecnologia se
desenvolvia eram necessárias formas mais complexas de comunicação
com o cliente, abrindo espaço para expansão do telemarketing. Com
o processo de reestruturação produtiva em 1970 começou-se no Brasil
políticas governamentais e legislativas no sentido da precarização do

114
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

trabalho, flexibilizando leis trabalhistas e beneficiando as


terceirizações, momento em que o setor de serviços vai crescendo a
passos largos e o call center vai entrando em cena de forma incisiva
no início do século XXI. Se mostrando uma alternativa para as
grandes empresas que gostariam de terceirizar e reduzir ao máximo os
custos com maior rapidez no contato com sua base de clientes, o call
center demostrava cada vez mais capacidade de intermediar esta
relação de forma rápida e inovadora, através da tecnologia e de seus
mecanismos internos.
Através da geração de valor que reside na exploração da força
de trabalho dos operadores, ocorre a busca por um tempo cada vez
mais produtivo, ou seja, chegando ao máximo de interações possíveis
em um curto espaço de tempo, este é o ponto chave para
interpretações das relações estabelecidas no espaço. Este se utiliza de
um forte mecanismo de controle através de uma tecnologia de ponta,
bem como, técnicas de intimidação para que a produção seja
extremamente controlada.
Utilizando-se da contratação de majoritariamente um público
feminino e jovem, estas empresas também se articulam no sentido de
contratar pessoas que fazem parte de outras minorias sociais como a
população LGBTQIA+ e negra, acenando para o mercado como um
espaço diverso e inclusivo. Entretanto, ficando fora da narrativa
oficial as formas de exploração e o adoecimento que seus

115
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

trabalhadores são expostos, bem como a dificuldade na transparência


de dados sobre atestados médicos e adoecimentos de seus
funcionários. O resultado de todo este processo supracitado são
quadros de LER/DORT, juntamente de processos depressivos e de
sofrimento psicológico, acarretando numa alta rotatividade de postos.
Em todos os outros modos de produção os conteúdos das
relações estavam postos de forma direta, o servo percebia o quanto
de sua produção iria para o senhor e para a Igreja, bem como o escravo,
porém no capitalismo onde tudo é produzido para ser vendido no
mercado a máscara da liberdade é impregnada nas relações, na qual o
trabalhador vende sua força de trabalho de forma livre e recebe o
preço justo por ela, sem ao menos saber de forma clara o quanto
ganha em detrimento do quanto produz. Pensando sobre este ponto
de vista a intenção deste trabalho não foi encerrar a discussão sobre o
tema, porém contribuir com caminhos a serem cada vez mais
desbravados na compreensão das formas de exploração capitalista, em
uma discussão que vem sendo feita por diversas áreas do
conhecimento. Entendendo que compreender os grilhões de opressão
presentes na nossa sociedade é uma ação intelectual e política das
ciências que tem como seu maior objeto de estudo o humano, através
das mais diversas perspectivas.

REFERÊNCIAS:

116
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado


na era digital. São Paulo: Boitempo, 2020.

ASSUNÇÃO, Ada Ávila; MARINHO-SILVA, Airton; VILELA,


Lailah Vasconcelos de Oliveira; GUTHIER, Maria Helena. Abordar o
trabalho para compreender e transformar as condições de
adoecimento na categoria dos teleatendentes no Brasil. Revista
Brasileira de Saúde Ocupacional, [S.L.], v. 31, n. 114, p. 47-62, dez.
2006. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0303-
76572006000200005.

BARTKI, Paula Izabela Nogueira. OPERADOR DE


TELEMARKETING. Curitiba: Editora Ifpr, 2012.

BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da História: ou o


ofício do historiador. Rio de Janeiro: Nahar, 2001.

CARNEIRO, Gustavo. DO OUTRO LADO DA LINHA:


PRECARIZAÇÃO E IDENTIDADE NO
TELEATENDIMENTO. 2021. 111 f. Dissertação (Mestrado) -
Curso de Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2021.

CAVAIGNAC, Mônica Duarte. PRECARIZAÇÃO DO


TRABALHO E OPERADORES DE
TELEMARKETING. Perspectivas, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 47-74,
jun. 2011.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente:
desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v.94, nº 3, p.111-124, maio/jun.,
2000.
FIORUCCI, Rodolfo. Considerações acerca da História do Tempo
Presente. Espaço Acadêmico, Maringá, v. 1, n. 125, p. 110-121, out.
2011.

117
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.


Petrópolis: Vozes, 2014.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as


origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
LUCCA, Sérgio Roberto de; ZANATTA, Aline Bedin;
RODRIGUES, Marcelo Scarpari; COIMBRA, Igor Benedick;
QUEIROZ, Felipe Seixas; CORREA, Beatriz. Fatores de estresse
relacionado ao trabalho: as vozes dos atendentes de
telemarketing. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo,
v. 17, n. 2, p. 290-304, maio 2014. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/112349/110313.
Acesso em: 10 out. 2022.
PIKETTY, Thomas. O Capital: no século xxi. Rio de Janeiro:
Intrínseca, 2014.
PORCARO, Luiza Almeida. O PRESENTEÍSMO ENTRE
TRABALHADORES DE CENTRAIS DE
TELECOMUNICAÇÃO. 2018. 175 f. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde, Universidade
Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2018.
ROCHA, Marcus Vinícius Queiroz. Lesões por Esforços Repetitivos
(LER) / Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho
(DORT). Vitória: Instituto Federal do Espírito Santo, 2021.
SANTOS, Adna Oirideia Rabelo dos. O TRABALHO DO
ATENDENTE DE CALL CENTER: adoecimento por ler/dort e
descartabilidade. 2006. 107 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
Mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2006.
SILVA, Katia Giselle da. UMA ANÁLISE DO ADOECIMENTO
NO TRABALHO DE TELEATENDIMENTO. 2011. 24 f.
Monografia (Doutorado) - Curso de Especialização em Saúde
Coletiva, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2011.
SILVA NETO, José Borges da. CALL CENTERS NO BRASIL: um

118
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

estudo sobre emprego, estratégias e exportações. 2005. 224 f.


Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Economia,
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2005.
VENCO, Selma Borghi. Telemarketing Nos Bancos. Campinas:
Editora Unicamp, 2003.

119
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

120
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 5

CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO INFANTIL PARA O


DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA EM PERÍODO
ESCOLAR

Luana Furtado da Silva1


Zildene Francisca Pereira2

Resumo: O presente artigo faz parte da monografia intitulada


“Educação Infantil e o desenvolvimento da criança sob o olhar
docente”. Este trabalho trata sobre a Educação Infantil na perspectiva
do desenvolvimento integral da criança, na compreensão de
professoras, a partir do seguinte questionamento: Qual a necessidade
da Educação Infantil para o desenvolvimento integral da criança na
perspectiva de professoras? Neste recorte veremos que o objetivo
geral está organizado da seguinte maneira: Refletir a contribuição da
Educação Infantil para o desenvolvimento integral da criança. E nos
Objetivos específicos: identificar, na fala de professoras, o que
significa essa fase escolar, enquanto favorecedora dos aspectos afetivo,
cognitivo, motor e social; discutir a relevância da atuação docente na
Educação Infantil. Na fundamentação teórica abordamos as fases de
desenvolvimento da criança e as contribuições da Educação Infantil.
Na metodologia trabalhamos com uma pesquisa qualitativa e

1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Campina Grande. Bonito


de Santa Fé – PB, Brasil. luanafurtado.bsf@outlook.com
2
Professora Dr. da Universidade Federal de Campina Grande – UAE – CFP. Crato
– CE, Brasil. denafran@yahoo.com.br

121
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

utilizamos como instrumento de coleta de dados a entrevista


semiestruturada com três professoras que atuam em duas creches
municipais da cidade de Bonito de Santa Fé/PB. Concluímos que a
Educação Infantil é necessária e importante para o pleno
desenvolvimento e aprendizagem da criança.

PALAVRAS - CHAVES: Educação Infantil. Desenvolvimento


Integral. Fases de desenvolvimento.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho faz parte da monografia intitulada:


“Educação Infantil e o desenvolvimento da criança sob o olhar
docente”, defendida em outubro de 2021, no Curso de Pedagogia do
Centro de Formação de Professores da Universidade Federal de
Campina Grande – UFCG. Essa pesquisa torna-se relevante por
entender que a infância é a fase mais importante na vida da criança
pois, é nesse período que ela está construindo suas concepções de
mundo, desenvolvendo suas habilidades e construindo
conhecimentos. Assim, a Educação Infantil é de suma importância
nesta fase.
Esta pesquisa tem como objetivo analisar por meio das falas
das docentes a importância dessa fase escolar para o desenvolvimento
da criança e como a Educação Infantil pode contribuir para o seu
desenvolvimento, sendo fundamentadas pelos autores: Bujes (2001)
que trata que a infância é um momento único que não se repetirá e

122
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

deve ser bem aproveitada pelo docente. Carvalho (2011) aborda as


contribuições das instituições de ensino infantil na construção da
identidade das crianças na socialização e desenvolvimento da criança
e como uma proposta pedagógica bem fundamentada contribui com
o desenvolvimento das mesmas. Tosta (2012) que versa estudos sobre
Vygotsky e Galvão (1995) que discorre sobre os estudos de Wallon e
as fases de desenvolvimento da criança, segundo a sua teoria da
psicogênese.
Na metodologia o desenvolvimento do estudo foi uma
pesquisa de campo com abordagem qualitativa com coleta de dados
realizada por meio de entrevista semiestruturada e análise de conteúdo
na modalidade temática.
Concluímos que a Educação Infantil é de suma importância
para o desenvolvimento e aprendizagem da criança, exigindo
profissionais qualificados e comprometidos com sua profissão,
compreendendo que estes são mediadores desse conhecimento e
tendo ciência da importância da Educação Infantil no
desenvolvimento integral da criança.

1 METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada em duas creches municipais da cidade


de Bonito de Santa Fé/PB, pois somente duas professoras de uma
instituição concordaram em fazer as entrevistas, tendo assim, que

123
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

recorrer a outra professora de outra instituição do Munícipio. Uma


oferece na instituição: a Educação Infantil, maternal I e maternal II -
A e Maternal II – B. a segunda creche oferece: a Educação Infantil,
Maternal e duas turmas de Pré II, a primeira funciona das 07h às 15h
e a segunda das 07h às 11:30h. A pesquisa foi realizada com uma
professora titular do Maternal II –A e com a do Martenal II – B e com
a professora da segunda creche que leciona em um dos Pré II. Foram
feitas com três professoras que lecionam para crianças de 4 a 5 anos,
todas concursadas e lotadas nas suas respectivas instituições de ensino,
os nomes aqui relatados são fictícios.

A pesquisa foi realizada mediante a utilização de entrevista


semiestruturada. A entrevista contou com um roteiro de perguntas,
organizadas previamente, para facilitar a interação da pesquisadora
com os participantes da pesquisa, ocorreram de forma presencial nas
próprias instituições de ensino, com data e hora marcada de acordo
com a disponibilidade de cada professora, foram realizadas seis
perguntas, no qual, foram bem explicadas, instigadas e dialogadas,
com durações de até quatorze minutos cada entrevista.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Compreender a importância da Educação Infantil na vida da


criança e no seu desenvolvimento é essencial para entender a

124
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

necessidade da realização de um bom trabalho, pois é na Educação


Infantil que a criança desenvolve a coordenação motora, a
socialização, o respeito, a efetividade, a cognição, a motricidade, a
concepção de mundo, a inteligência e dá subsídios, tanto para o seu
desenvolvimento humano, quanto para as séries seguintes, assim
como nos assegura Bujes (2001, p. 19) quando diz que “[...] é de
extrema importância nos darmos conta de que as mudanças que
ocorrem com as crianças, ao longo da infância, são muito importantes
e que algumas delas jamais se repetirão”. Pensando dessa forma, é que
vemos a etapa da Educação Infantil como importante para o
favorecimento de diferentes aprendizagens, fora do ambiente familiar.
Assim, diante da compreensão da Educação Infantil,
enquanto favorecedora da aprendizagem apresentaremos a
compreensão das professoras, participantes da pesquisa, quando
proporcionaram de forma sucinta suas percepções. Quando
indagamos acerca da sua compreensão da Educação Infantil, estas
responderam:

Eu compreendo a Educação Infantil como


um processo de contínua aprendizagem, pois
ela ajuda a criança a se desenvolver em todos
os âmbitos, através de sua participação em
jogos, brincadeiras, a parte escrita, a parte
lúdica, tudo isso contribui para que a criança
se desenvolva. (Professora Maria, 2021)

125
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Todas as modalidades de ensino são


importantes para o ensino aprendizagem
para a formação cidadã da pessoa, porém a
Educação Infantil ela se destaca, na minha
concepção ela é uma das modalidades mais
importante porque é justamente a Educação
Infantil que se inicia todo o processo de
desenvolvimento sócio emocional e afetivo
da criança, e eu compreendo a Educação
Infantil como necessária e importante.
(Professora Carla, 2021)

Como se fosse uma porta de entrada pra o


mundo de aprendizagens de sensações que
faz parte que é importante para a vida da
criança. (Professora Josefa, 2021)

A partir das falas das professoras vimos que elas entendem


que a Educação Infantil é importante e necessária, mas não sentimos
tanta clareza no decorrer de suas respostas, nas quais, pausavam,
pensavam e reformulavam suas percepções, percebemos isso quando
questionamos: você acha que a Educação Infantil contribui com o
desenvolvimento infantil? Por quê? De que forma?
[...] contribui no desenvolvimento da criança
do seu meio cognitivo, a parte de
relacionamento com outras crianças, é...
afetividade, é coordenação motora, é todo
desenvolvimento físico, intelectual da
criança, através da escola com outras
crianças, o contato com professores a criança

126
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

se desenvolve bem mais ao estar inserida na


escola, no Ensino Infantil. (Professora Maria,
2021)

Ela contribui porque a criança ela aprende a


socializar melhor é, a interagir melhor
diferentemente daquelas crianças que não
tem acesso à Educação Infantil. (Professora
Carla, 2021)

[...] ela abre oportunidades para N


aprendizagens, N vivências, N experiências,
não que a criança não tenha bagagens porque
ele vem, mas propicia outros olhares, outras
sensações, outras aprendizagens, outras
experiências. [...] no dia a dia com
experiências totalmente planejadas dentro do
currículo escolar pensado por profissionais
por tanto tempo, tem que contribuir de
alguma forma pro crescimento,
desenvolvimento, aprendizagem significativa
tudo junto. (Professora Josefa, 2021)

A professora Maria fala sobre as contribuições da Educação


Infantil para o desenvolvimento da criança, mas não fala por quais
meios isso pode ser alcançado. Para Carla, a Educação Infantil
contribui apenas para a socialização e a interação da criança, não
relatando de que forma isso pode acontecer, já Josefa fala sobre as
experiências e aprendizagens que a Educação Infantil proporciona,
através de planejamentos dentro do currículo da instituição e que isso

127
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

a longo prazo deve contribuir de alguma forma, a Educação Infantil


não, apenas, deve como a mesma falou, mas ela contribui. De acordo
com a teoria walloniana é na infância que a criança constrói sua
personalidade e é através de cada estágio que o seu pensamento vai se
desenvolvendo.
A partir dessas falas devemos destacar que a Educação Infantil
contribui com o desenvolvimento da criança, por meio dessa etapa
educacional a criança alarga as habilidades necessárias para um bom
desenvolvimento, podemos afirmar mediante a fala de Carvalho
(2011, p. 90) quando diz que:

[...] Essas instituições contribuem para a


construção da identidade das crianças e
cumprem papel socializador ao possibilitar o
desenvolvimento infantil entre pares e
diferentes adultos, ao partilhar cuidados com
as famílias, ao ampliar conhecimentos,
colocados à disposição das crianças.

Podemos dizer que a criança aprende junto ao outro e que é


necessário priorizar essas relações, possibilitar que a criança se
desenvolva de forma integral, que possam reagir e responder de
maneira única e é nesse momento que vão se constituindo e se
desenvolvendo enquanto pessoa. É por meio de atividades e
brincadeiras planejadas que é oportunizado desenvolver determinadas

128
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

habilidades, pois a brincadeira e a atividade devem ter uma intenção,


como nos assegura Carvalho (2011, p. 90) quando nos diz que:

Por meio de uma proposta pedagógica bem


fundamentada, a instituição de educação
infantil deve propiciar situações de cuidados,
brincadeiras e aprendizagens orientadas de
forma integrada que contribuam para o
desenvolvimento das capacidades infantis,
das relações interpessoais, favorecendo uma
atitude de aceitação, respeito e confiança no
outro. Além disso, precisa garantir o acesso
de todas as crianças a diferentes
conhecimentos e a possibilidade de
expressão em linguagens as mais diversas.

Deste modo, é por meio do planejamento e da realidade da


turma que o professor busca desenvolver atividades que englobe
promover o desenvolvimento integral da criança, quando
perguntamos: como você planeja suas aulas para trabalhar com
crianças da Educação Infantil, em seguida as professoras
responderam:

Os planejamentos acontecem todos os dias,


claro! E semanalmente, e temos o anual, né?!
O plano anual, acontece observando quais as
necessidades [...] que a criança está mais
precisando, vendo o que ela mais precisa no
momento, quais as dificuldades dela e o

129
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

plano é voltado dessa forma, com


brincadeiras, com tarefas lúdicas, com muitas
cores pra trabalhar essa parte na criança, aí
tem a parte de trabalhar a movimentação do
corpo com as aulas, é, de corpo, gesto e
movimento, e assim, a gente planeja de
acordo com a necessidade da criança e, é
feito as anotações, observando, né?
(Professora Maria, 2021).

[...] tem o planejamento que é orientado por


nossa coordenadora que acontece
quinzenalmente, onde ela dá o esboço pra eu
poder fazer o meu planejamento diário [...]
através da rotina, todos os dias eu traço uma
rotina para eu poder pôr em prática é... o meu
trabalho com as crianças. (Professora Carla,
2021).

Primeiro com base na BNCC depois com


base no currículo base de cada instituição
porque cada instituição ela é única, as vezes
Bonito de Santa Fé pode ter um é... pode se
basear na BNCC da Educação Infantil com
certeza todas, todos os campos de
experiências que a gente tem que atingir, só
que cada escola tem seu currículo base [...]
vamos dizer assim, de uma avaliação
diagnóstica de cada criança, é, com suas
vivências com suas experiências, então a
partir disso, base na BNCC no currículo na
experiência e vivências com ele que a partir
dele que eu vou planejar minha aula.
(Professora Josefa, 2021).

130
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Tanto Maria quanto Carla relatam que os planejamentos que


ocorrem de forma diária a partir dos planejamentos realizados com a
coordenadora quinzenalmente, e a professora Maria aponta aspectos
da BNCC que precisam ser levados em consideração para o
planejamento. Já a professora Josefa relatou que usava como base as
competências destacadas pela BNCC, e que usava a avaliação
diagnóstica como base para desenvolver suas aulas, em nenhum
momento relataram promover exercícios que instigasse a criança a
aprender o que vai além dos seus conhecimentos, nem atividades
voltadas para sua autonomia, valores, higiene, cuidado com o corpo,
as noções de lateralidade, noções de espaço tempo de quantidade e
medidas, o conhecimento a diversidade, o respeito, pensamento
crítico e consciente e a criatividade. De acordo com Oliveira et al
(2012, p. 44):

[...] ter clareza sobre os direitos das crianças


e uma concepção de infância, bem como de
Educação Infantil, é ponto de partida para a
construção de um trabalho pedagógico
consistente que se inicia no planejamento
inicial do professor, tarefa que traz grandes
desafios.

O planejamento do professor deve garantir o

131
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

desenvolvimento da criança, além de conhecer o ambiente as quais


estão inseridas, os seus conhecimentos e experiências, é essencial que
o professor leve em consideração alguns documentos oficiais como
podemos citar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, existindo também uma relação entre o cuidar, o educar e o
brincar. A Educação Infantil se torna um desafio, pois nada deve ser
realizado de forma isolada e sim, planejada e pensada para qual
habilidade quer desenvolver.
Devemos entender a teoria para sabermos orientar nossas
práticas ao entendermos como se dá o desenvolvimento das crianças,
pois só assim saberemos direcionar nossas atividades. Entendendo
que em uma atividade ou brincadeira não se deve estimular só o que a
criança sabe, seguindo aquela linha de raciocínio, mas sim, instigar
para novos saberes que para Vygotski, é a Zona de Desenvolvimento
Proximal, ou seja, a zona de desenvolvimento proximal refere-se a
distância entre o nível de desenvolvimento real, no qual a criança tem
a capacidade de resolver problemas de forma individual, a zona de
desenvolvimento potencial, capacidade de depender do auxílio do
mediador para solucionar problemas e a zona de desenvolvimento
proximal, onde ocorrerá a aprendizagem (TOSTA, 2012). Para
Vygotsky não há aprender sem se desenvolver é no decorrer do
aprendizado que nos desenvolvemos, não nascemos com questões de
humanização, aprendemos, desenvolvemos.

132
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

A Zona de Desenvolvimento Potencial é o que a criança sabe,


mas está adormecida, ela tem capacidade pra algo, mas precisa ser
trabalhada, questionada e para que isso ocorra, há a necessidade de
um mediador, é através do auxílio do mediador é que se pode chegar
onde almeja, alcançando a Zona de Desenvolvimento Proximal que é
onde ocorre o aprendizado. Deste modo, não tem sentindo o
professor ensinar o que a criança já sabe.
Segundo Galvão “Wallon propõe o estudo integrado do
desenvolvimento, ou seja, que este abarque os vários campos
funcionais nos quais se distribui a atividade infantil (afetividade,
motricidade, inteligência)” (GALVÂO, 1995, p. 22). Podemos dizer
que o desenvolvimento infantil é caracterizado por conflitos, sendo
eles externos ou interno, ou seja, os conflitos externos causado no
ambiente, nas relações, interações com os adultos ou com outras
crianças, e as interações internas, marcado pelo conflito orgânico,
definido no processo de maturação, no desenvolvimento da
inteligência e da idade, e são por essas crises que ocorre o
desenvolvimento infantil (Galvão, 1995), é por meio desses conflitos
e contradições que se desenvolve o pensamento e a inteligência, e
esses fatores de crises e conflitos são necessário e normal para o
desenvolvimento psíquico da criança. Desta forma, ao nos
remetermos as falas das professoras anteriormente citadas, podemos
observar que estas entendem a importância da Educação Infantil, que

133
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

nesse período elas se desenvolvem, mas não tem conhecimento


efetivo das fases de desenvolvimento necessárias para o
desenvolvimento de atividades voltadas para cada fase.
Entender os estágios de desenvolvimento a partir da teoria
walloniana é compreender que a criança tem fases de
desenvolvimentos nas quais ela não precisa necessariamente se
desenvolver nas respectivas idades, pois cada criança tem seu tempo
de desenvolvimento e o que a teoria nos traz é que cientes dessas fases
e o que ocorre em cada uma delas, entenderemos as contribuições da
Educação Infantil no desenvolvimento e aprendizagem da criança.
De acordo com Galvão (1995), para Wallon o
desenvolvimento ocorre por fases com o predomínio do afetivo e do
cognitivo, cada fase tem sua especificidade, e no desenvolvimento de
cada uma tem-se que levar em consideração o ambiente e o que a
criança dispõe nessa interação, nisto ele traz cinco estágio do
desenvolvimento a primeira é o estágio impulsivo-emocional, que é o
primeiro ano de vida do bebê, ou seja, nos primeiros meses o bebê
passa a ser guiado pela emoção, ele se comunica com o meio e com as
pessoas a sua volta, através de gestos, choro, risos, sendo pela
afetividade seus primeiros vínculos.
O segundo estágio é o sensório-motor e projetivo, que ocorre
de 1 a 3 anos, nessa fase a criança passa a explorar o seu meio, o espaço
físico e seu ambiente, por meio dos sentidos e habilidades motoras,

134
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

essa exploração do ambiente permite o desenvolvimento cognitivo da


criança. É também nesse período que a criança aprende a falar,
adquirindo assim a inteligência simbólica, que é a imitação, no qual,
imita chamando papai (papá), mamãe (mama).
Seguinte, é o estágio do Personalismo, que vai dos 3 aos 6
anos, como o próprio nome já diz, é o período em que ocorre o
desenvolvimento da personalidade, é marcado por conflitos entre sua
autonomia e o fortalecimento do vínculo familiar, seu pensamento
tende quase que exclusivamente para si, no qual ela precisa obter
consciência de si mesmo em suas relações com o meio.
O Estágio categorial, ocorre com 6 anos de idade, em que a
criança usa cada vez mais a inteligência para explorar e conhecer
objetos, os meios físicos e sociais (GALVÃO, 1995). Nesse período
a inteligência e o desejo pelo mundo externo são características
predominantes diferente da afetividade. Por último o estágio da
adolescência, sendo está uma fase turbulenta, no qual, a criança
começa a adentrar no mundo adulto, com as ações hormonais,
mudanças no corpo, estes buscam sua própria identidade, ou seja, é
onde ocorre a construção da sua personalidade, havendo um
predomínio da afetividade, buscando compreender sobre
relacionamentos com outras pessoas, entendendo e criando seu
mundo afetivo.
Como o foco da nossa pesquisa foi com professoras que

135
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

trabalham com crianças de quatro e cinco anos, nos deteremos ao


terceiro estágio e traremos as falas das professoras ao indagarmos o
que priorizam em seus planejamentos. Segundo Mahoney e Almeida
(2005, p. 15): “[...] a identificação das características de cada estágio
pelo professor permitirá planejar atividades que promovam um
entrosamento mais produtivo entre essas características, conforme se
apresentem em seus alunos concretos, e as atividades de ensino”.
Então, ao questionar o que priorizam em seus planejamentos as
professoras nos oportunizaram as seguintes respostas:

Aprendizagem da criança. A prioridade é a


aprendizagem, o desenvolvimento físico,
intelectual [...] todo planejamento que a gente
faz é voltado pra o desenvolvimento dela pra
aprendizagem dela. (Professora Maria, 2021).

Eu priorizo momentos de socialização, é...


através de rodas de conversas de contação de
história de brincadeiras (Professora Carla,
2021).

O direito de aprender, [...] não estou falando


só de escrita de grafia de som de números
não, estou falando de toda amplitude que
abrange, todas as sensações, som, cores,
formas, é, direito de ler, de aprender de tudo
no direito dele de aprender e de viver e de
brincar e de ser [...] (Professora Josefa, 2021).

136
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

A criança em cada fase de desenvolvimento precisa de


atividades que favoreçam o seu desenvolvimento, agregando novos
conhecimentos e valores, de acordo com a teoria walloniana da
psicogênese da pessoa completa, ele nos traz que ao analisarmos o
desenvolvimento infantil, não devemos levar em consideração apenas
um fator, mas que devemos estudar a criança de forma
contextualizada, isto é, não tem como olhar a criança só pela
afetividade sem levar em conta a inteligência, ambas características
caminham juntas, e devem ser estudadas em conjunto (GALVÃO,
1995).
É possível afirmarmos, mediante as leituras que as prioridades
destacadas pelas professoras são apenas de socialização para Carla,
intelectual e físico para Maria e para Josefa o direito de aprender.
Notamos que em nenhum momento foi destacado algo voltado para
o desenvolvimento da personalidade que é o estágio característico
para a idade que elas trabalham, nem da inteligência e nem atividades
e conhecimentos voltados para isso. Para Mahoney e Almeida (2005,
p. 22-23):

O processo ensino-aprendizagem precisa


oferecer atividades diferentes e a
possibilidade de escolha pela criança das
atividades que mais a atraiam. O adulto será

137
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

o recipiente de muitas respostas: não; não


quero; não gosto; não vou; é meu. O
importante do ponto de vista afetivo é
reconhecer e respeitar as diferenças que
despontam. Chamar pelo nome, mostrar que
a criança está sendo vista, que ela tem
visibilidade no grupo pelas suas diferenças,
propor atividades que mostrem essas
diferenças, dar oportunidades para que a
criança as expresse.

Podemos pensar sobre quais atividades devem serem


planejadas para possibilitar a criança um bom desenvolvimento.
Wallon, de acordo com Galvão (1995), afirma que a personalidade
passa a ser construída na diferenciação do eu e do outro e isso só
acontece por meio da interação social. Esse é um período onde a
criança está em afirmação, aprendendo a diferenciar-se do outro, e
este é um momento onde ela precisa se afirmar, isto é, esse conflito é
importante para o seu desenvolvimento. Assim, um professor da pré
- escola pode notar esse combate a qualquer ordem, quando por
exemplo, ao levar para sala de aula algo em que um pequeno grupo
tem que dividir, vai haver conflito, pois cada um vai querer tudo pra
si, deste modo, ele tira o outro e só pensa no que é ele.
A próxima fase é a da graça, onde a criança sente a necessidade
de admiração de chamar a atenção fazendo algo que o outro admire,
após isso vem a fase da imitação, no qual ela busca uma reaproximação

138
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

do outro, negado por meio da imitação, essa fase também vai


acontecer na adolescência, só que por meio da diferença de opiniões.
Essas fases acontecem na formação da personalidade da criança, por
isso é importante que os profissionais de Educação Infantil entendam
essas fases como necessárias para o desenvolvimento da criança e, a
partir desse conhecimento, busquem desenvolver atividades que
possibilitem o desenvolvimento de cada fase.
Quando perguntamos algo a uma criança, ela responde de
maneira autêntica e única, levando em consideração todo
conhecimento que ela traz consigo. Na tentativa de explicar, a criança
mistura os motivos afetivos e objetivos de suas experiências,
resultando em relações que tem sentido só pela própria criança, então
até que a inteligência se diferencie da afetividade isso vai acontecer.
Assim, como nos assegura Galvão (1995, p. 59):
O processo de simbolização é decisivo para
que o pensamento atinja uma representação
mais objetiva da realidade, pois substitui as
referências pessoais por signos
convencionais, referências mais objetivas. A
distinção entre o sujeito e objeto é uma tarefa
fundamental à evolução do pensamento e
inclui-se numa série de diferenciações que a
inteligência deverá realizar ao longo de seu
desenvolvimento.

Deste modo, o jogo simbólico contribui para a diferenciação

139
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

do eu-outro, quando a criança brinca no jogo de faz de conta ao


interpretar a personagem Cinderela, poderemos observar traços de
sua mãe, da professora ou de alguém que lhe sirva de referência, assim
ela está construindo o seu próprio eu.
Com isto, a teoria Walloniana nos ajuda a compreender sobre
o desenvolvimento infantil e sobre o processo de ensino-
aprendizagem, pois a partir da teoria o professor terá conhecimentos
para possibilitar novas aprendizagens, na qual, na medida em que ele
ensina, ele aprende, assim a escola é o principal meio de
desenvolvimento, pois é em contato com o outro que nos
desenvolvemos e nos constituímos enquanto pessoa. Mahoney e
Almeida (2005, p. 15) apontam que:

Na medida em que a teoria de


desenvolvimento descreve características de
cada estágio, está também oferecendo
elementos para uma reflexão para tornar o
processo ensino-aprendizagem mais
produtivo, propiciando ao professor pontos
de referência para orientar e testar atividades
adequadas aos alunos concretos, e as
atividades de ensino.

Quando indagamos a Maria qual a contribuição da Educação


Infantil em relação à aprendizagem e desenvolvimento da criança ela
respondeu:

140
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

A Educação Infantil é de suma importância


para o desenvolvimento é, tendo em vista
que as crianças precisam se desenvolver em
várias habilidades e a Educação Infantil
auxilia justamente nisso, nós trabalhamos
com eixos, trabalhamos com as habilidades
da criança, trabalhamos com o
desenvolvimento cognitivo, motor, através
de atividades lúdicas com brinquedos é,
leituras, contação de história, a parte de
movimento do corpo, trabalha a parte de
interação social é, trabalha todos os eixos que
a criança precisa, todas as habilidades que ela
precisa pra ser desenvolver futuramente nas
suas séries posteriores [...] (Professora Maria,
2021)

Vimos que em sua fala, ela fala que “[...] a gente vai
trabalhando com experimentos”, mas nas suas falas anteriores
pudemos observar que ela entende que há uma contribuição tanto no
desenvolvimento quanto na aprendizagem, mas não falou como e não
apresentou ser ciente das fases necessária de desenvolvimento para
que ela pudesse testar tais atividades, na Educação Infantil, pois não
podemos pensar atividades no ‘achismo’, sem princípios. Quando
indagamos a mesma pergunta as professoras Carla e Josefa estas
responderam:
Como eu falei a Educação Infantil é o ponto
de partida, né? É o início de tudo, então, é...

141
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ela prepara a criança, ela prepara o sócio


emocional e também ao despertar do
cognitivo da criança, né?! Para que ela possa
assim receber as futuras aprendizagens
(Professora Carla, 2021).

Eu acho que a contribuição da Educação


Infantil é a base, é a mais importante [...] todo
mundo acha que professor de universidade
tem que ter doutorado que... e, é... pelo meu
dia a dia de experiência eu vejo que a
Educação Infantil que é a base, é a mais
importante das educações, não... é
menosprezando as outras cada um tem sua
parcela de contribuição, mas a base ela tem
um papel importante como eu falei não só na
questão de ler de aprender, mas de tudo de
socialização [...] (Professora Josefa, 2021).

Como discutimos a criança não deve ser vista apenas por um


fator e sim, em todos os âmbitos, pois a Educação Infantil não deve
ser vista, apenas, como um lugar de cuidados assistencialistas, mas um
ambiente que além de cuidar, eduque e possibilite a criança a se
desenvolver de forma integral, levando em consideração a
importância da brincadeira.
Podemos dizer que a Educação Infantil, é necessária e
importante, mas a nossa responsabilidade em educar e cuidar dessas
crianças é muito maior, pois nos constituímos e nos desenvolvemos
em relação com o outro, somos responsáveis pelo desenvolvimento

142
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

dessas crianças e sabendo dessa responsabilidade, o profissional de


educação deve estar em constante formação, sabendo da teoria para
fundamentar sua prática.
Uma Educação Infantil bem feita a criança saberá se
expressar, se socializar, e terá valores que são forte tanto para sua
família, quanto para a escola, vai adquirir uma melhor coordenação
motora, não confundirá o lado esquerdo e o direito como alguns
adultos tem dificuldade. Podemos dizer que devemos aproveitar essa
fase para desenvolver bons cidadãos, crianças que futuramente terão
boas bases para dar prosseguimento nas séries seguinte, sendo
construtoras da sua própria história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Educação Infantil é a primeira etapa da educação básica e o


primeiro espaço especializado para receber crianças, as quais tem a
oportunidade de vivenciar situações e de se socializar com outras
pessoas que não são do seu círculo familiar. Podemos afirmar,
mediante as leituras realizadas, que é através do outro que nos
constituímos enquanto pessoas. Assim, vimos durante a pesquisa, que
a Educação Infantil é importante, pois é responsável por desenvolver,
na criança, competências necessárias para esta fase, a partir do
acompanhamento de profissionais qualificados, responsáveis e

143
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

comprometidos com o seu trabalho, buscando garantir os direitos da


criança e uma aprendizagem significativa.
Por meio das entrevistas foi possível observarmos que as
professoras tem conhecimento de que a Educação Infantil é
importante para o desenvolvimento dos aspectos afetivo, cognitivo,
motor, social e aprendizagem das crianças assim, como também
compreendem que existem habilidades que devem ser desenvolvidas
nessa fase, mas podemos destacar que precisamos da teoria para
subsidiar nossas práticas pedagógicas e as participantes da pesquisa
mostraram não ter tanto conhecimento sobre as fases de
desenvolvimento da criança, relataram, apenas, como desenvolviam
suas atividades.
Deste modo, concluímos que a Educação Infantil é
importante e necessária, pois ela é a base tanto para vida adulta como
para os anos escolares subsequentes, pois uma pessoa que frequenta
uma boa Educação Infantil terá ótimos desempenhos, uma base bem
fundamentada, assim é o que esperamos. Podemos citar como
exemplo que se uma criança se desenvolve bem na pré-escola ela já
chega ao primeiro ano quase alfabetizada, conhecendo as letras, com
um vocabulário extenso, tendo desenvoltura, curiosidade, interesse
por leituras e novas aprendizagens.

REFERÊNCIAS

144
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Escola Infantil: pra que te quero?


In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis E. (org.). Educação
Infantil pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001. p. 13 - 22.

CARVALHO, Silvia Pereira. Os primeiros anos são para sempre. In:


BENTO, Maria Aparecida Silva (org.). Educação infantil,
igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos,
conceituais. São Paulo: CEERT, 2011. P. 81-97.

TOSTA, Cíntia Gomide. Vigotski e o desenvolvimento das


funções psicológicas superiores. Perspectivas em Psicologia. V. 16,
n. 1, p. 57-67, jan./jun. 2012.

GALVÃO. Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do


desenvolvimento infantil. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

MAHONEY, Abigail Alvarenga; Almeida, Laurinda Ramalho.


Afetividade e processo ensino-aprendizagem: contribuições de
Henri Wallon. Psi. da. Ed., São Paulo, 20, 1º sem. de 2005, p.11-30.

MAHONEY, Abigail ALvarenga; Almeida, Laurinda Ramalho. A


constituição da pessoa na proposta de Henri Wallon. In: MAHONEY,
Abigail ALvarenga. A constituição da pessoa: desenvolvimento e
aprendizagem. São Paulo: Edições Loyola, 2004. P. 13-24.

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos. Educação Infantil


fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2010.

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos. Planejar práticas pedagógicas:


princípios e critérios. In: OLIVEIRA, Zilma Ramos et al (org.). O
trabalho do professor na educação infantil. São Paulo: Biruta,
2012.

145
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

146
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 6

ARTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: PRÁTICA DOCENTE


E INTERDISCIPLINARIDADE NO CONTEXTO
ESCOLAR

Ânglidimogean Barboza Bidô1


Maria Paloma Sampaio de Souza2

Resumo: A arte faz parte do cotidiano do ser humano de forma


oculta e não oculta. Pois, em todo lugar as manifestações artísticas
estão presentes de diferentes formas. Seja na música, dança, teatro e
pinturas. O ambiente educacional apresenta inúmeras expressões
artísticas de forma interdisciplinar, principalmente na sala de aula
entre o professor e o aluno. Este trabalho tem por objetivo abordar a
importância do ensino de artes na educação infantil; apresentar a
finalidade da interdisciplinaridade na sala de aula e refletir acerca das
ações pedagógicas do educador na educação infantil. A metodologia
utilizada foi uma pesquisa de campo em uma instituição da Educação

1
Gestora Escolar da Creche Municipal Esmerina Teotônio dos Santos; Professora
da Educação Básica do Colégio Maria Leni de Oliveira, Santana dos Garrotes – PB,
Brasil. E-mail: anglibbido@gmail.com
2 Professora da Educação Básica da Escola Antônio Tabosa Rodrigues, Cajazeiras –

PB, Brasil. E-mail: palomasampaio2711@gmail.com

147
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Infantil da rede pública de ensino, realizada uma observação da sala


de aula, e uma entrevista com a educadora contendo algumas questões
voltadas aos conhecimentos do ensino de arte na sala de aula. O fazer
artístico vai muito além do simples ato de oferecer à criança um lápis
e um papel, é necessário que o educador estimule a criatividade e a
imaginação da criança utilizando a interdisciplinaridade como
ferramenta significativa no processo de aprendizagem.

Palavras-Chave: Arte. Ludicidade. Prática docente.


Interdisciplinaridade.

INTRODUÇÃO

A Educação Infantil é a base para os demais níveis de ensino


da Educação Básica em nosso país. Trabalhar com crianças pequenas
não é nada fácil na sociedade atual. Pois, a responsabilidade no
ambiente escolar é redobrada para oportunizar aos alunos uma
educação de qualidade, juntamente a garantia do direito de ser criança
e passar por diversas experiências durante a Educação Infantil através
de brincadeiras e ludicidade no ambiente educacional.
Este trabalho tem por finalidade observar, comparar e
analisar como se organiza a ação pedagógica na Educação Infantil,
voltada para o ensino das Artes. Observamos uma creche municipal
no interior da Paraíba, na turma do maternal II-A, das 13:00 às 17:00

148
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

horas nos dias 02 e 06 de fevereiro de 2020.


Na observação foram analisados, a atuação do professor ao
abordar o ensino das Artes, seu conceito de arte, as formas artísticas
e materiais apresentados para os alunos durante as atividades. Tendo
como base a Base Nacional Comum Curricular e os Referenciais
Curriculares para Educação Infantil. Foi realizada uma pesquisa de
campo, na qual foi feito uma observação na sala de Educação Infantil
e uma entrevista questões estruturadas para o educador, o sujeito da
pesquisa.
Primeiro, abordaremos alguns autores e documentos oficiais
que discorrem sobre o ensino de Artes e a interdisciplinaridade no
contexto escolar, em seguida a entrevista com a análise, confrontando
com a atuação do professor na sala de aula. O questionário possui
perguntas referentes ao ensino de artes, metodologias, didática e ação
pedagógica do educador infantil.
O presente artigo possui a seguinte problemática: como
acontece o ensino de Arte na educação infantil, e qual a importância
da interdisciplinaridade no ambiente escolar? Dessa forma,
delimitamos os objetivos de estudo: abordar a importância do ensino
de artes na educação infantil; apresentar a finalidade da
interdisciplinaridade na sala de aula e refletir acerca das ações
pedagógicas do professor na educação infantil.
A utilização da Arte na escola/ sala de aula fortalece e

149
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

desenvolve o aspecto cognitivo, motor, sensorial, emocional, social e


cultural do indivíduo, e através dela a criança está propícia a diversas
emoções, reflexões e experiências, ampliando seu conhecimento de
mundo. Sendo assim, o uso da interdisciplinaridade no ambiente
educacional é apresentada como uma ferramenta significativa no
processo de aprendizagem do aluno ampliando sua visão crítica de si
e do mundo ao seu redor.

1 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR PARA


EDUCAÇÃO INFANTIL (BNCC)

Em 22 de dezembro de 2017, foi implantado o documento da


BNCC para ser seguido em todo território nacional como referência
da Educação Básica. Apontando os conteúdos de cada disciplina
respeitando a faixa etária da criança e a turma em que está inserida.
Na categoria da Educação Infantil, (creche e pré-escola) está
dividido da seguinte forma: Campos de Experiência - os Campos de
e Experiência são divididos em: O eu, o outro e o nós; corpo, gestos
e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento
e imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações e
transformações.
Junto com os Campos de Experiência segue os Objetivos de
Aprendizagem e Desenvolvimento para a Educação Infantil que

150
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

definem as competências e habilidades para cada faixa etária escolar.


Exemplo de código da Educação Infantil: EI01TS01: EI - Educação
Infantil -> 01 - Bebês (zero a 1 ano e 6 meses) -> TS - Campo de
Experiência (Traços, Sons e movimentos) -> 01 - posição da
habilidade, numeração sequencial. (BRASIL, 2017, p.28)
Com relação aos direitos de aprendizagem e desenvolvimento
na educação infantil são apresentados seis concepções: conviver,
brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. Dentre as
concepções, uma delas chama atenção ao abordar a prática de
manifestações artísticas, o conceito de Explorar:

Explorar movimentos, gestos, sons, formas,


texturas, cores, palavras, emoções,
transformações, relacionamentos, histórias,
objetos, elementos da natureza, na escola e
fora dela, ampliando seus saberes sobre a
cultura, em suas diversas modalidades: as
artes, a escrita, a ciência e a tecnologia.
(BRASIL, 2017, p.38)

É notório perceber que a ação de explorar a educação infantil


nas primeiras infâncias é essencial para o desenvolvimento da criança.
As manifestações artísticas e culturais existentes na sociedade
potencializam as competências e habilidades adquiridas durante a vida
do ser humano, tendo em vista o uso de metodologias ativas nesse
processo educacional do fazer pedagógico.

151
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Os Campos de Experiências que mais apresentam objetivos


para a prática de Artes são: corpo, gestos e movimentos e traços, sons,
cores e formas, por apresentar objetivos de aprendizagem focados no
desenvolvimento artístico, como por exemplo: “[...] expressão de
sentimentos, sensações e emoções, tanto nas situações do cotidiano
quanto em brincadeiras, dança, teatro, música; [...] atividades artísticas,
entre outras possibilidades; [...] atividades artísticas como dança,
teatro e música. (BRASIL, 2017, p. 49).

2 REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A


EDUCAÇÃO INFANTIL (RCNEI)

Não podemos falar em Educação Infantil sem mencionar o


Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, publicado
em 1998, antes mesmo da existência da BNCC. O exemplar possui
três volumes e nomeados como: I volume - Introdução, II volume -
formação pessoal e social e III volume - conhecimento de mundo.
Este documento foi bastante utilizado pelos educadores como base
norteadora na prática docente para a educação infantil.

Um volume relativo ao âmbito de


experiência Conhecimento de Mundo que
contém seis documentos referentes aos
eixos de trabalho orientados para a
construção das diferentes linguagens pelas

152
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

crianças e para as relações que estabelecem


com os objetos de conhecimento:
Movimento, Música, Artes Visuais,
Linguagem Oral e Escrita, Natureza e
Sociedade e Matemática. (BRASIL, 1998,
p.09)

Nos três volumes do RCNEI aborda a movimentação, música


e artes visuais como um dos objetivos de conhecimentos. Pois,
existem inúmeros assuntos voltados ao ensino das artes, na maioria
das vezes trabalhados de forma interdisciplinar na sala de aula.
A arte na infância abordada no RCNEI (1998, p.89) tem como
norte a compreensão da “arte como uma linguagem que tem estrutura
e características próprias” em seus diversos tipos de manifestações
artísticas existentes no mundo. A aprendizagem envolvendo o fazer
artístico, a apreciação e a reflexão faz o aluno se sentir um artista
diante das adversidades envolvendo o uso da arte no ambiente escolar.
A interdisciplinaridade se faz presente no ambiente escolar de
diversas formas e em vários momentos da dinâmica escolar entre
professor-aluno e aluno-professor, tal metodologia escolhida pelo
educador de forma intencional ou não intencional no processo de
aprendizagem gera um resultado significativo no desenvolvimento
integral do aluno.
A disciplina de Arte faz elo com as demais disciplinas. Como

153
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

por exemplo: ao utilizar uma música para uma dinâmica, o uso de


figuras, fotos e imagens como ilustração de algum conteúdo
específico, a dança, normalmente usada nas aulas da educação infantil
como uma forma de brincadeira dos movimentos corporais.

3 A ARTE E A INTERDISCIPLINARIDADE NA AÇÃO


PEDAGÓGICA

A arte é uma forma do indivíduo se expressar de inúmeras


maneiras, como a dança, a música, a pintura, o teatro, entre outros. A
forma de expressar faz parte do ser humano para demonstrar suas
emoções, sua cultura, sua história, e seu estilo de vida. A arte
possibilita uma imaginação, paciência e criatividade de enxergar o
mundo da sua maneira.
De acordo com Mödinger (2013, p.42):

Criatividade e artes são processos


inteligentes: tanto o produzir quanto o
apreciar são comportamentos que
requerem operações complexas de análise,
comparação e reconhecimentos de cores,
texturas, sons, movimentos, tonalidades de
vozes e percepções muito sutis e variadas,
que exigem noções de espacialidade,
sonoridade e domínio corporal, entre
outras. As artes não são pautadas apenas no
sensível e no intuitivo.

154
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

As metodologias na sala de aula é vista como um facilitador,


ajudando o professor no processo de ensino-aprendizagem, e
contribuindo no desenvolvimento físico, motor e sensorial da criança,
na qual devem ser motivadas as habilidades, deixando a criatividade e
a imaginação dessas crianças fluírem através da criatividade.
A interdisciplinaridade ainda é vista somente como a junção
de duas ou mais disciplinas, propiciando o aluno a desenvolver uma
imagem mais aberta acerca dos conteúdos e temáticas na sala de aula
como uma junção de conhecimentos e saberes.
Segundo Caldas, Holzer e Popi (2017, p.169):

A interdisciplinaridade apresenta uma nova


possibilidade de aprofundamento do
conhecimento da arte, relacionando saberes
de outras disciplinas que ajudarão a
compreender e expressar-se na linguagem
artística para a construção do aprendizado na
escola.

As características de uma escola que baseia sua prática na


interdisciplinaridade e na ludicidade, é que a brincadeira, o prazer, a
diversão, a criatividade, a alegria, a atividade e a organização estão
sempre presentes. O professor não é o ponto central, e a criança é um
indivíduo ativo, que age. A brincadeira é vista como forma de

155
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

aprendizagem, contribuindo para a socialização, a imaginação, o


raciocínio, e a capacidade de criar da criança.
É no brincar que a ação pedagógica na Educação Infantil, a
criança constrói novas habilidades, e manifesta sua criatividade,
inteligência e imaginação. É nesse momento que a criança interage
com o meio, ajudando na socialização com as outras crianças na hora
da brincadeira. Assim, a criança aprende a dividir seu brinquedo, a
respeitar o outro e conhecer outras brincadeiras através das outras
crianças. A criança começa a ter novas experiências, e isso é muito
importante para o seu desenvolvimento a ajudá-la a fortalecer sua
autoconfiança e sua autonomia diante de várias situações que
acontecem no seu dia a dia.

4 ANÁLISE E REFLEXÃO DO ENSINO DE ARTES NA


EDUCAÇÃO INFANTIL NA VISÃO DE UM EDUCADOR

Apresentaremos a seguir um diálogo com uma professora da


Educação Infantil de uma creche municipal localizada no sertão
paraibano. O roteiro do questionário contém indagações acerca do
ensino de artes na sala de aula, juntamente com a visão do
entrevistador Acerca da teoria e prática durante os dias de observação
Esperamos que através desta análise, os educadores e/os
profissionais docentes reflitam sobre suas posturas, suas práticas
político pedagógico e seus avanços de conhecimentos na sociedade e

156
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

em sala de aula.
Sendo assim, iniciamos com a seguinte pergunta: qual o seu
conceito de Artes?

Educadora: A arte está relacionada às inúmeras atividades


artísticas, que sugerem um processo de conscientização por parte de
quem a aprecia. O artista, através de muita sensibilidade, expõe ideias,
sentimentos e posturas frente à realidade circundante, música,
escultura, pintura, no cinema e na dança.
À vista do exposto, percebemos que a docente demonstra
possuir conhecimentos com relação ao seu conceito de artes, ao
abordar diversas características próprias. Contendo uma reflexão, a
respeito do apreciador, do artista e sua arte. Mas, há uma controvérsia
na sua prática docente. Nos dias observados, percebemos poucas
representações artísticas apresentadas na sala de aula.
No Art. 26, no inciso 2º da Lei nº 9.394 de 20 de dezembro
de 1996, estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional para
o ensino de artes:

Art. 26. 2º O ensino da arte constituirá


componente curricular obrigatório, nos
diversos níveis da educação básica, de forma
a promover o desenvolvimento cultural dos
alunos. § 2o O ensino da arte, especialmente
em suas expressões regionais, constituirá
componente curricular obrigatório nos

157
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

diversos níveis da educação básica, de forma


a promover o desenvolvimento cultural dos
alunos. (Redação dada pela Lei nº 12.287, de
2010). § 6o As artes visuais, a dança, a música
e o teatro são as linguagens que constituirão
o componente curricular de que trata o § 2o
deste artigo. (Redação dada pela Lei nº
13.278, de 2016) (BRASIL, 2005, p.16)

A LDB garante há mais de 25 anos a prática das manifestações


artísticas nas Instituições de Ensino, seja em escolas públicas ou
privadas. É relevante assegurar a garantia de uma educação voltada
para as vivências do cotidiano e das diversas manifestações, desde a
Educação Infantil aos anos Finais.
Em sequência foi perguntado por que a arte é importante na
vida das pessoas e na escola.

Educadora: Por que ela propõe a evolução de um


pensamento, a vivência de sentimentos, o desenvolvimento da
sensibilidade e senso crítico do sujeito.
Assim, novamente a docente expressa uma reflexão sobre a
importância da arte. Mostra capacidade, sobre o tema abordado, ao
descrever valores, e habilidades que o ensino de diversas
manifestações artísticas podem contribuir para o desenvolvimento do
ser humano, voltados para vários aspectos.
Segundo Duart, Jr. (1998, p.47),

158
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

[...] a primeira função cognitiva, ou


pedagógica, da arte é: apresentar-nos eventos
pertinentes, à esfera dos sentimentos, que
não são acessíveis ao pensamento discursivo.
Através da arte somos levados a conhecer
nossas experiências vividas, que escapam à
linearidade da linguagem.

Podemos perceber que o autor aborda as emoções


relacionadas às vivências com a utilização da arte nas escolas. A
educação emocional nos dias atuais faz parte de uma lacuna a ser
discutida entre os profissionais da educação. Pois, ao trabalhar a
educação emocional e socioemocial é sinônimo que o ambiente
escolar se preocupa com os sentimentos dos alunos, e também, com
o bem estar do estabelecimento educacional, priorizando a
sensibilidade como algo forte e vulnerável ao mesmo tempo.
Posteriormente, foi perguntada qual sua concepção sobre a
verdadeira função do ensino de arte nas escolas.

Educadora: Nas escolas as atividades artísticas se tiverem


uma ação pedagógica bem planejada e direcionada, haverá o
desenvolvimento de habilidade e competências dos alunos da
capacidade criadora, e reflexiva perante o que está sendo criado: seja
um texto, uma música, um desenho, a dança, a peça teatral.

Compreendemos, que o educador ao pronunciar as palavras

159
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

“ação” e “reflexão”, imediatamente lembraremos a “práxis”, ação-


reflexão-ação. Mostrando a relevância que possui a prática pedagógica
reflexiva nas abordagens e mediações das atividades com os alunos na
sala de aula, no processo de ensino-aprendizagem. Desvela também,
aperfeiçoar o desenvolvimento da criatividade, da linguagem oral e
escrita, da coordenação motora grossa e fina, e sensorial.
Durante a observação a professora utilizou artes visuais,
dança, e principalmente a música. As cantigas de rodas e as músicas
infantis, é o que acontece com mais frequência nos cincos dias de
observação.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil,
afirma que:

Encantados com o que ouvem, os bebês


tentam imitar e responder, criando
momentos significativos no
desenvolvimento afetivo e cognitivo,
responsáveis pela criação de vínculos tanto
com os adultos quanto com a música. Nas
interações que se estabelecem, eles
constroem um repertório que lhes permite
iniciar uma forma de comunicação por meio
dos sons. (BRASIL, 1998, p.51)

As interações na sala de aula, é vista como um facilitador,


ajudando o professor no processo de ensino-aprendizagem, e

160
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

contribuindo no desenvolvimento físico, motor e sensorial da criança,


na qual devem ser motivadas as habilidades, deixando a criatividade e
a imaginação dessas crianças fluírem através das brincadeiras.
Foi indagado para a docente, quais expressões artísticas que já
apresentou e trabalhou com seus alunos.
Educadora: Escultura através da massinha de modelar,
desenho, texto, dança, música e a peça teatral.

Em sua fala, a docente cita a massa de modelar que utiliza com


as crianças para formar esculturas e da peça teatral. Sabemos que é
importante trabalhar diversas manifestações artísticas, para estimular
na criança a imaginação, criatividade, e o interesse pela liberação dos
sentimentos através dela. Como afirma Duarte Jr.:

Quanto maior é o contato com a arte, maior


a bagagem simbólica para “representar” e,
consequentemente, compreender as
minúcias do sentimento. Ao saber como
expressar, ou saber onde (em quais obras)
encontrar expressar os meus sentimentos,
possuo um guia seguro para desvelá-los e
entendê-los. (1998, p. 50)

Com relação a Educação Simbólica, envolve um processo de


interação e comunicação do sujeito com o meio social no qual está
inserido. Esta construção cognitiva é desenvolvida através de
atividades simbólicas no cotidiano escolar durante as brincadeiras

161
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

lúdicas realizadas entre professor-aluno, tornando-se desta forma um


processo significativo na formação integral da criança.
Seguidamente foi questionado a professora quais materiais
pedagógicos ela utilizava em suas abordagens no ensino da arte,
obtivemos tal resposta:

Educadora: Massinha de modelar, músicas, historinhas


infantis, folha, tintas, gravador, som e figurinos.

Apesar de a professora ter respondido de forma breve, é


possível perceber que reconhece a importância de usar diferentes
tipos de materiais na prática pedagógica, apesar de não se utilizar
destes durante o período de observação.
O fazer artístico vai muito além do simples ato de oferecer à
criança um lápis e um papel, é necessário que o educador estimule a
criatividade e a imaginação, oferecendo meios que venha a estimulá-
los, desta maneira a professora ao disponibilizar estes materiais
provoca nos alunos uma atitude criadora, oportunizando através do
seu manuseio a possibilidade de inventar e produzir diversos objetos,
assim aumentando a autonomia e o potencial criador dos alunos.
Segundo o Referencial Curricular Nacional para Educação
Infantil (1998, p.112): “Os materiais são a base da produção artística.
É importante garantir às crianças acesso a uma grande diversidade de
instrumentos, meios e suportes.”

162
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Para que as crianças possam criar suas


produções, é preciso que o professor ofereça
oportunidades diversas para que elas se
familiarizem com alguns procedimentos
ligados aos materiais utilizados, aos diversos
tipos de suporte e para que possam refletir
sobre os resultados obtidos. É aconselhável,
portanto, que o trabalho seja organizado de
forma a oferecer às crianças a possibilidade
de contato, uso e exploração de materiais.
(BRASIL, 1998, p 100)
A escola que baseia sua prática na ludicidade é uma escola que
a brincadeira, o prazer, a diversão, a criatividade, a alegria, a atividade
e a organização estão sempre presente. O professor não é o ponto
central, e a criança é um indivíduo ativo, que age. A brincadeira é vista
como forma de aprendizagem, contribuindo para a socialização, a
imaginação, o raciocínio, e a capacidade de criar da criança.
Dando continuidade, foi perguntado à professora como era a
sua abordagem pedagógica. Ela expôs a sua resposta do seguinte
modo:

Educadora: Antes de ensinar arte, ou trabalhar com as


atividades artísticas, o aluno deve ser levado a refletir sobre ela, sobre
o que está sendo construído.

Analisando a respectiva resposta, podemos verificar que a


docente possui um amplo conhecimento a respeito do ensino
artístico, uma vez que, ao se expressar desta maneira nos faz entender

163
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

que arte antes de qualquer coisa é um ato de reflexão e apreciação, ao


proporcionar que os alunos reflitam antes de iniciarem um processo
de produção e argumentar sobre a relevância e o significado de um
procedimento artístico. A professora está fortalecendo o pensamento
crítico/criativo, assim contribuindo para a ampliação do
conhecimento cultural e artístico do aluno.

É no modo de pensamento do fazer da


linguagem artística que a intuição, a
percepção, o sentimento/pensamento e o
conhecimento se condensam. Nessa
construção, o artista percebe, relê e repropõe
o mundo, a vida e a própria arte, produzindo
imagens únicas e insubstituíveis, imagens
poéticas. Pelo poder de síntese da linguagem
da arte, nossa sensibilidade capta uma forma
de sentimento que nos nutre
simbolicamente, ampliando nosso repertório
de significações. Adquirimos um
conhecimento daquilo que ainda não
sabíamos e, por isso mesmo, transformamos
nossa relação sensível com o mundo e as
coisas do mundo. (MARTINS; PICOSQUE;
GUERRA, 1998, p. 46).

Para uma tornar um ambiente agradável e propício ao


educando no que diz respeito na elaboração e construção das
manifestações artísticas é indicado que o educador possua uma visão
geral, como a organização do ambiente onde serão realizadas as

164
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

atividades, intervindo da melhor forma possível as ações educativas.


As crianças terão a liberdade de criar e recriar suas próprias artes e
brincar da forma que acharem melhor. Tornando-se assim, uma
atividade prazerosa e espontânea contribuindo na aprendizagem e
autonomia.
Finalizando a entrevista, foi questionado quais os aspectos
explorados/ trabalhados na sala de aula. Afirmou-nos os seguintes
aspectos:

Educadora: Através da disciplina de Arte trabalhamos


aspectos criativos e simbólicos presentes em músicas, pinturas, teatro
e dança, por meio destas atividades artísticas podemos estimular a
criatividade e a espontaneidade dos alunos.

Considerando a fala da entrevistada, verificamos algumas


contradições em seu discurso, uma vez que os aspectos relatados não
constam em sua prática. É importante quando o educador presta
atenção no processo de desenvolvimento de cada criança, para assim
oferecer atividades que despertem a criatividade que cada um possui,
e que desta forma adquirem gosto pelo ato da criação.
Segundo Paulo Freire (2022, p.15) “[...] não haveria
criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe
pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos,
acrescentando a ele algo que fazemos.” O papel do educador também
é estimular no aluno a criatividade, valorizando cada produção sem

165
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

fazer comparações. Pois, cada aluno possui características e


habilidades distintas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a observação na escola, foram realizadas algumas


manifestações artísticas na sala de aula. Por isso é importante ter um
planejamento, do que será trabalhado em uma sala de Educação
Infantil. Para que desde cedo, a criança tenha um contato com
diversos tipos de artes, ajudando a aperfeiçoar vários aspectos do seu
desenvolvimento, seja cognitivo, físico ou motor.
O adulto, no caso, o docente, deve propiciar para as crianças
uma mediação com os diversos tipos de artes: dança, música, pintura,
escultura, vídeos, entre outros. Possibilitando a afetividade, e a
construção criativa da criança, na qual este trabalho destaca o valor de
uma educação de qualidade, em que o docente tem o compromisso
de dar existência a um ambiente que possa contribuir para a
construção e descoberta dos alunos, incentivando-os a ampliar a sua
capacidade de criação.
O professor deverá possuir o espírito lúdico, de brincadeira,
de alegria e diversão, para tornar a brincadeira bastante produtiva
durante as realizações das atividades. Pois, o fortalecimento entre
professor-aluno e aluno-aluno gerando afetividade mútua e

166
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

desenvolvendo as relações interpessoais do indivíduo.


Desta forma, o educador rege o ensino, de uma forma que
possa oportunizar para os alunos, mais liberdade e prazer sobre o
conhecimento artístico, gerando na criança a imaginação, criatividade
e autonomia de criar, sem esquecermos que algumas crianças já
nascem com esse potencial inato, e outras precisam de estímulos para
ser um criador, mas precisamos utilizar atividades adequadas, para
ajudarmos na construção do seu desenvolvimento.
REFERÊNCIAS:

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.


Disponível em: http:// basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em:
17/02/2020.
________. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de
Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil / Ministério da Educação e do Desporto,
Secretaria de Educação Fundamental. — Brasília: MEC/SEF, 1998.
________. Senado Federal. Senador RAMEZ TEBET. Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília – 2005. Lei no
9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível
em:<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70320
/65.pdf ?sequence=3>. Acesso em: 23/03/2022.
CALDAS, F. R.; D.C.; POPI, J. A. A Interdisciplinaridade em Arte:
Algumas Considerações. Nupeart, v. 17, p. 160-171, 2017.

DUARTE JR., João Francisco. Como a Arte Educa. Fundamentos


Estéticos da Educação. Campinas, SP: Papirus, 1998.
MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, Maria
Terezinha Telles. Didática do Ensino de Arte: A Língua do Mundo.

167
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

São Paulo: FDT, 1998.

MÖDINGER, Carlos Roberto (et al.). Artes visuais, dança, música


e teatro: práticas pedagógicas e colaborações docentes. Erechim:
Edelbra, 2012.
FREIRE, Paulo. Ensinar exige criatividade. In: Pedagogia da
autonomia: saberes necessários à prática Educativa. 25ª ed. São
Paulo. Paz e Terra, 2002.

168
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

GÊNERO, SEXUALIDADE E POLÍTICAS


DO CORPO

169
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

170
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 7

O QUEER TEM A VER?: NOTAS SOBRE A


ORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO HOMOSSEXUAL NA
PARAÍBA

Luiz Gervázio Lopes Junior 1

Resumo: As políticas do corpo engendraram formas de ser, de se


portar, de se vestir e de congruência entre gênero, sexo, desejo
(BUTLER, 2019) e prática das sexualidades. Este artigo privilegia o
corpo enquanto superfície de exercício dessas (e de outras) formas de
poder a partir da organização de sujeitos dissidentes em prol de
combate ao extermínio da própria existência e da resistência nos
diferentes âmbitos das organizações sociais. Para tanto esta revisão
bibliográfica se insere nas recentes discussões da Historiografia
LGBT paraibana a fim de se tornar mola propulsora, sem fim em si
mesmo.
Palavras-chave: Movimento LGBT. Historiografia LGBT. Teoria
Queer.

Alguns conceitos prévios...


A aparente aceitação de corpos dissidentes nas cidades
grandes vai abaixo com o elevado número de ataques de ódio.

1
Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Graduando
em Pedagogia pelo Cruzeiro do Sul. Mestrando pelo programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Email:
luizgljr@gmail.com.

171
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), primeiro grupo organizado


a sistematizar e produzir relatórios anuais sobre os ataques LGBTs no
país, 329 LGBTs tiveram mortes violentas no Brasil, sendo 297
homicídios e 32 suicídios apenas no ano de 2019. O golpe machista e
misógino impetrado pelas elites e a mídia contra a presidenta eleita
Dilma Rousseff em 2016 é um marco no aprofundamento e na
legitimação do pensamento ultraneoliberal e conservador. A ascensão
das bancadas da bala, do boi e da bíblia (chamada Bancada BBB)
possibilitou que, nas eleições de 2018, fosse eleito o Congresso mais
conservador dos últimos 40 anos, indo de refluxo a crescente onda
por Direitos Humanos nos governos do Partido dos Trabalhadores
(PT) desde o início da virada do século.
Mesmo tendo dado bons passos com a despatologização da
homossexualidade, a união estável entre casais do mesmo sexo,
retificação do nome sem o extenso processo do protocolo
transexualizador e mais recente ainda a criminalização da LGBTfobia
como crime de racismo2 e a exclusão do grupo de risco que impedia

2 Durante a escrita deste artigo a Advocacia Geral da União (AGU), que deveria
resguardar o direito do povo, no coletivo, questionou ao Supremo Tribunal Federal
(STF) quanto a liberdade religiosa em que a criminalização da LGBTfobia
possivelmente feriria. Ver mais em Jornal Nacional. AGU questiona decisão do
Supremo de criminalizar homofobia e gera forte reação. 16 de out. de 2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/10/16/agu-
questiona-decisao-do-supremo-de-criminalizar-homofobia-e-gera-forte-
reacao.ghtml

172
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

que nós LGBTs doássemos sangue, enfim, novos sujeitos políticos


organizados, novas pautas, novas demandas, novas identidades. Se nas
décadas de 80/90 falava-se em “cidadania”, nos anos FHC e Lula
viram setores “vulneráveis ou excluídas”. (GOHN 2012). Ainda
nesses 42 anos de história, do que hoje chamamos de Movimento
LGBT, é ainda de extrema pertinência a luta por afirmação, por
direitos e por visibilidade haja vista que o Brasil ainda é o país que
mais mata pessoas LGBTs no mundo, segundo relatório do GGB em
2019 a cada 26 horas um LGBT foi assassinado/assassinada ou
cometeu suicídio.
Michel Foucault proporciona uma lente teórica para esta
análise, pois projetou luz sobre campos até então ignorados e
marginalizados pela historiografia além de expor a sofisticação nas
formas de dominação e do exercício da violência (RAGO, 1995). A
análise genealógica acerca da sexualidade feita por Foucault permite
analisar as tecnologias discursivas aparelhadas pelo Estado brasileiro
durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985) e, além disso,
permite tornar a sexualidade uma categoria, criada em determinado
momento histórico a partir da patologização, da anormalidade e do
desvio em meados do século XIX (FOUCAULT, 1988).
As experiências e subjetividades historicamente
negligenciadas e exploradas pelos binários homem/mulher,
homossexual/heterossexual, branco/preto, ativo/passivo dentre

173
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

tantas, auxiliam no intuito de delinear tais (e outros) marcadores


sociais da diferença na produção de subalternidades e expor, à
estrutura cisheteropatriarcal e a heteronormatividade como molde
padrão de performance, inscrita antes mesmo do nascimento,
determinando gostos, desejos, formas de se portar e de se relacionar,
etc., inclusive na historiografia, e na análise de nossos objetos de
pesquisa o que demanda atenção e sensibilidade nas produções
acadêmicas afim de mobilizar categorias que contribuam para leituras
menos enrijecidas pelas estruturas capitalismo, racismo e patriarcado.
Este trabalho será dividido em dois momentos que se
completam e dialogam entre si. Um primeiro estará comprometido a
compreender a bibliografia e historiografia sobre a emergência do
movimento a nível nacional a partir de elementos apontados por
acadêmicos e militantes que transitam entre as experiências de
organização e produções acadêmicas. Nesse sentido lanço mão do
capítulo Mais Amor e Mais Tesão: … fruto da tese de Doutorado em
História do brasilianista James Green e do artigo Somos o quê mesmo?
do romancista, contista, ensaísta e roteirista João Silvério Trevisan.
Estes dois últimos organizados no livro História do Movimento
LGBT no Brasil, lançado em 2018 em comemoração aos quarenta
anos de existência do movimento.
Um segundo momento tem por finalidade articular as ações
do movimento LGBT a partir da descentralização do eixo Rio-São

174
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Paulo para o eixo Rio-Nordeste, sobretudo com a emergência de


grupos organizados no Estado da Paraíba. Dois trabalhos serão
norteadores para a discussão um primeiro é o Levantar bandeira e dar
pinta: inflexões etnográficas sobre o movimento LGBT em João Pessoa (1980-
2002) e suas ressonâncias do antropólogo Tiago de Lima Oliveira
publicado na revista Bagoas em 2012 e do livro Nós Também: A História
da militância através da memória gráfica fruto da dissertação de mestrado
em Design de Bruno Santana.
Os movimentos feministas pavimentaram caminhos
epistêmicos possíveis para a compreensão do (conceito do) “gênero”
como a historiadora Joan Scott ao desenvolver o “gênero” como uma
categoria de análise histórica, ou seja, determinada em seu tempo
histórico e não essencializadas biologizantes (SCOTT, 1989). A
filósofa Judith Butler em Problemas de Gênero também corrobora
para o embate ao essencialismo no “ser mulher” a partir da distinção
sexo/gênero/desejo. Para a filósofa “se o caráter imutável do sexo é
contestável, talvez o próprio construto chamado ‘sexo’ seja tão
culturalmente construído quanto o gênero” (BUTLER, 2019 p. 27),
ou seja, não apenas o gênero é construto cultural/social, mas a própria
designação do feminino/masculino a partir do sexo é também
consequência dessa construção, além disso, a filósofa ressalva o perigo
de cairmos em determinismo biológicos e também culturais na
construção desses sujeitos.

175
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

O atual mito fundador do movimento LGBT no mundo


aponta para o 28 de junho de 1968 em Nova York, no Stonewall Inn,
como afirma o historiador brasilianista James Green no artigo Nem
todos os caminhos levam a Nova York, exatamente para sacudirmos e
estranharmos dadas rememorações e esquecimentos. Em 13
dezembro 1968 o Brasil passa por um processo ainda mais duro da
ditadura cívico-militar. Em doze artigos o Ato Institucional número 5
(AI-5) suprimiu direitos políticos, decretou recesso ao congresso,
perseguiu e torturou adversários, aumentou a censura, fim do habeas
corpus, dentre outros. O que não quer dizer que antes do AI-5 não
houvesse perseguição, haja vista que desde o AI-1 em 09 de abril de
1964 há documentos e relatos de supressão de direitos e perseguições.
Contudo, o fechamento e endurecimento da ditadura no país, segundo
Green, “silenciou um movimento que provavelmente teria eclodido
na cena pública se as medidas repressivas não estivessem em vigor”
(GREEN, 2019). O historiador ainda aponta que a abertura gradual
do final dos anos de 1970 possibilitou novas formas de organizações
como

(i)o Movimento Negro Unificado, que


questionava a representação tradicional do
Brasil como democracia racial; (ii) um
movimento feminista, que confrontou o
sexismo tanto da esquerda ortodoxa quanto
da sociedade brasileira em geral; e (iii) um

176
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

movimento pelos direitos de lésbicas e gays.


(GREEN, 2019).

1 Organizando-se

O medo e pessimismo assolaram o Brasil da década de 1960.


Artistas símbolos da resistência aos padrões da ditadura hetero-militar
como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, que
performavam entre as fronteiras do gênero, partiram para o exílio. A
vitória do Brasil na Copa do Mundo do México em 1970 aprofundou
a onda de nacionalismo. Época do slogan “Brasil ame-o ou deixe-o” de
inspiração norte americana. O país estava vivendo o milagre econômico
(1968-1973), nesse período as taxas de crescimento anuais chegaram
a 11%. Comércio com o Japão, fábricas, créditos com os Estados
Unidos. Porém o padrão de vida da classe trabalhadora caiu no
período, tornando o terreno da mobilidade social ainda mais
pantanoso. O controle aos sindicatos e associações de classe também
impediam ações organizadas desses trabalhadores. Esse cenário
parecia dar base de sustentação à ditadura militar pois possibilitou a
ascensão e maior poder de consumo as classes médias e altas do país,
as principais apoiadoras do golpe, ao passo que precarizava ainda mais
a vida dos trabalhadores das classes mais abastadas.
Por outro lado, o aumento do preço dos combustíveis em
1973 “em razão do embargo da Organização dos Países Exportadores

177
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

de Petróleo, a OPEP” (GREEN, 2019, p.403). Seguido do aumento


da dívida externa, momento em que a inflação chegou a níveis
exorbitantes. Os setores das classes médias agora se juntam às classes
pobres votando no Movimento Democrático Brasileiro (MDB) único
partido de oposição legal a ditadura no bipartidarismo das eleições de
1974. Esse contexto pós guerrilhas armadas, atos estudantis e greves
de trabalhadores extremamente repressivos e fim do apoio das classes
médias ao governo ditatorial montam o cenário necessário para que o
então presidente Ernesto Geisel (1974-1975) seja pressionado a
montar o planejamento de uma abertura “lenta, gradual e
segura”.
Apesar da repressão movimentos sociais vem à tona
reivindicando democracia, melhores direitos aos trabalhadores rurais
e urbanos, a ala progressista da igreja católica volta para a legalidade.
Parte do controle de grandes sindicatos voltam para as mãos dos
trabalhadores. O Ano Internacional da Mulher, em 1975, após a
conferencia do México das Nações Unidas, também alimentou
internacionalmente nas mulheres a busca espaços de oportunidade
que “se uniram em organizações comunitárias de base para exigir
melhoria dos serviços urbanos e condições para cuidar dos filhos”
(GREEN, 2019, p. 404). Em 1976 é fundado o primeiro jornal

178
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

autoproclamado feminista do país o Nós Mulheres3. A partir 1978 o


desafio frente à rigidez dos papéis de gênero, ao patriarcado e políticas
a partir de questões de gênero desencadeou em questões também
levantadas pelo incipiente movimento gay.
O Historiador brasilianista James Green aponta que apesar de
parecer uma contradição à abertura de bares, saunas e demais espaços
de homossociabilidade na subcultura homossexual,
alguns historiadores argumentam que o
regime, na verdade, tinha um objetivo
político claro ao manter a esfera pública
relativamente livre e aberta, contanto que
estivesse destituída de atividades críticas à
ditadura [...] contanto que permanecessem
em espaços fechados, deixando seu ambiente
semiclandestino apenas uma vez por ano,
durante as festividades do carnaval
(GREEN, 2019, p. 408 - 409)

Argumenta também que utilizavam o entretenimento popular,


como o futebol e o carnaval, como válvula de escape dessas tensões
sobre o povo brasileiro.
O “milagre econômico” também possibilitou outras tensões,
causas e ações dentro da subcultura homossexual, sobretudo nos
grandes centros urbanos. Green aponta que após 1972 houve

3 Formado por ex-militantes do movimento estudantil de São Paulo. Estando em


circulação de 1976 a 1978.

179
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

aumento no número de espaços de homossociabilidade, casas de


show, boates voltadas para o público de classe média e alta das grandes
cidades, visto o maior poder de consumo como consequência do
plano econômico da ditadura e o maior investimento de empresários
que tirara vantagem dessas condições. Esses espaços eram ponto de
convergência da subcultura homossexual internacional, “contribuíam
para um nível de coesão entre homossexuais de diferentes origens”
(GREEN, 2019, p. 410).
Esses elementos apontados por Green, são determinantes
para compreender os elementos da conjuntura histórica que
possibilitaram a emergência de organizações homossexuais no Brasil.
Em 1976 João Silvério Trevisan volta ao Brasil e após ter
experienciado organizações de liberação gay na Baía de São Francisco,
nos Estados Unidos, se propõe a organizar homossexuais em São
Paulo. Porém segundo Trevisan as reuniões eram esparsas, sem
frequência, com no máximo doze participantes e com vários entraves
ideológicos (GREEN, 2019), dentre eles o sentimento de culpa de
parcela mais ligada à esquerda que invalidava a sexualidade como
“desvio pequeno burguês” conta a luta maior contra a ditadura cívico-
militar. A heterossexualidade compulsória e dentro das esquerdas em
determinado sentido era reflexo dos processos de transformação
sociocultural (GREEN, 2018)
No mesmo ano, no dia 1º de julho, no Rio de Janeiro, um

180
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

militante espalhou panfletos convidando para o Dia do Homossexual


no dia 4 de julho, no Museu de Arte Moderna, Green aponta que é
possível que essa comemoração fosse em alusão a Rebelião de Stonewall
ocorrido em 28 de julho de 1968. Porém, no dia marcado, “oito
camburões e setenta homens do Departamento Geral de Investigação
Especial cercaram o museu” (GREEN, 2019, p.439). O encontro não
aconteceu e não se sabe quantas pessoas foram mobilizadas e
participariam do encontro, visto que ao ver a movimentação policial
se dispersaram.
Outra importante ferramenta de discussão e difusão de
informações na subcultura homossexual no Brasil foi o jornal Lampião
da Esquina. Em sua primeira edição o editorial “Saindo do Gueto”
respondeu à pergunta “para quê jornal homossexual? ”, indicavam
uma proposta revolucionária “Nós pretendemos, também ir mais
longe, dando voz a todos os grupos injustamente discriminados - dos
negros, índios, mulheres…”. Na prática essa promessa nunca se
efetivou, na linha editorial, por exemplo, havia apenas uma mulher,
Leila Míccolis e relativamente pouco espaço para mulheres lésbicas
(FERNANDES, 2018). No fim de 1977 a vinda do editor da famosa
Gay Sunshine Press, Winston Leyland, “catalisou o grupo de intelectuais
que se encontrou com ele” (GREEN, 2019, p.440), criaram uma
cooperativa editorial e mais tarde chamaram o jornal de Lampião da
Esquina sugestivamente em referência à vida homossexual nas ruas e

181
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ao rei do cangaço. Dentre o conselho editorial estavam Peter Fry,


antropólogo; Jean-Claude Bernardet, cineasta; Darcy Penteado, pintor
e escritor; João Silvério Trevisan e João Antonio Mascarenhas, ambos
intelectuais e ativistas.
Após o lançamento do Lampião e seguindo os bons ventos
possíveis a partir da perda de forças da ditadura hetero-militar frente à
abertura política4, se articulou em São Paulo um grupo homófilo que
se autodenominou Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais
(NADH), a participação dos integrantes variava e de início tinha um
caráter parecido à tentativa sem êxito de João Silvério Trevisan de
1976.
Ao fim do ano de 1978, como aponta Green, discussões
acaloradas tomaram o grupo em razão do próprio nome. Para alguns
o nome do grupo afastava outros homossexuais que desejavam se
organizar, mas não queriam se expor tanto. Dentre as propostas estava
a de que “expressasse claramente a proposta da organização, e
sugeriram Grupo de Afirmação Homossexual” (GREEN, 2019,
p.442). As propostas com o termo “gay” eram na hora rejeitadas, pois,
segundo os integrantes, imitava o modelo norte-americano. Outra
proposta foi em homenagem à Frente de Libertação Homossexual

4 Vale ressaltar que a abertura não significou na prática o fim da ditadura.


Manifestações e militantes ainda eram perseguidos, jornais como o Lampião da
Esquina também eram alvo dos censores, ou seja, o período de abertura como
processo e não como fim.

182
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Argentina, exemplo de articulação na Argentina. No consenso final


das discussões escolheram Somos: Grupo de Afirmação Homossexual.
Um ponto de inflexão fundamental na leitura do movimento
homossexual no Brasil e que aparece como pontapé das profundas
mudanças na estrutura teórica, metodológica e orgânica não do Somos,
mas do incipiente Movimento Homossexual Brasileiro, são as
discussões ocorridas em 6 de fevereiro de 1979 no evento “Minorias”
brasileiras - mulheres, negros, índios e homossexuais promovido pelo Centro
Acadêmico (CA) do curso de Ciências Sociais da Universidade de São
Paulo (USP). Ali evidenciou ainda mais as contradições existentes
entre movimento homossexual e as esquerdas. “Os estudantes gays se
queixavam de que a esquerda brasileira era homofóbica” (GREEN,
2019, p. 443). As mesmas questões que aparecera na tentativa de
organização em 1976 continuava a pairar sobre as organizações e
grupos ativistas que emergiram, nas diferentes territorialidades do
país.
Nos anos que se seguem a ditadura hetero-militar executou
um profundo processo de higienização e precarização dos trabalhos
de travestis e michês que se prostituíam no centro de da cidade de São
Paulo (GREEN, 2019). O delegado Richetti empreendeu um processo
de fichamento e limpeza desses corpos das ruas, chegando a prender
mais de 500 travestis e michês por dia, mantendo detidas por vários
dias, a fim de prejudicar nas rendas mensais e causar expulsões de

183
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

apartamentos, casas e alojamentos não pagos. As consequências do


“milagre econômico” marginalizaram ainda mais esses corpos
dissidentes

Organizando-se na Paraíba
A dissertação de mestrado em Design de Bruno Santana
intitulada Nós Também: A História da militância através da memória gráfica
defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
e depois publicada como livro este ano, 2020, é sensível, bonita e
necessária. Nela Bruno faz o trabalho inédito de pesquisar e escrever
sobre o Nós Também, primeiro grupo LGBT da Paraíba, de rememorar
e trazer à tona experiências organizativas de sujeitos e sujeitas
esquecidas da memória paraibana. Este trabalho foi fundamental para
novos olhares e percepções acerca da emergência do movimento
LGBT no estado da Paraíba e dos intercâmbios de saberes, práticas e
sensibilidades possíveis a partir dos diversos grupos articulados no
país e na Paraíba
Em julho de 1981 ocorreu, em Salvador capital da Bahia, o 33º
encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
os encontros eram conhecidos por fomentarem discussões
necessárias ao período. Uma caravana de estudantes e professores da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) se mobilizaram para
participar. Uma das mesas do evento tratou de discutir sobre o

184
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Movimento Homossexual, grupos já conhecidos nacionalmente como o


Grupo Gay da Bahia estavam presentes. Segundo Bruno Santana o
Grupo Somos de São Paulo também estava representado por João
Silvério Trevisan, porém, como já abordado acima, Trevisan teria
saído do grupo após o racha provocado pelas manifestações do dia do
trabalhador em 1º de maio de 1980. Não se sabe se Trevisan estava lá
representando o Outra Coisa, grupo que formara junto a militantes que
seguiram consigo a tendência autonomista, se não haviam
formalizado a saída do Somos ou se não queriam mostrar para o
restante das organizações a fragilidade interna que assolava o maior
grupo homossexual da época.
O escasso número de pesquisas sobre o Movimento LGBT na
Paraíba se reflete em algumas confusões enquanto a datas, períodos
históricos, situações e consequentemente nas análises que levam esses
elementos em conta. No livro Bruno afirma que o encontro da SBPC
aconteceu em 1980, ou seja, alguns meses após a crise que dividiu o
Grupo Somos de São Paulo, porém o encontro aconteceu em 19815,
um ano após, o que inviabiliza inclusive a participação do Trevisan
enquanto representante do Somos, visto que há mais de um ano ele
teria saído e formado o Outra Coisa.
De todo modo, “ao final do debate, foi passada uma lista para

5 Disponível em: http://portal.sbpcnet.org.br/eventos/33ra/. Acesso em


01/11/2020

185
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

que grupos interessados em articulações nacionais pusessem seus


contatos” (SANTANA, 2020, p. 69), inspirados no Somos, os
estudantes da UFPB criaram o Nós Também, dispuseram na lista
telefone e endereço da república que moravam. A ação mostra a
influência e referência que o Somos tinha em relação aos
homossexuais no Brasil.
Na volta a João Pessoa, capital da Paraíba, sem referências de
experiências organizativas homossexuais no Estado, mas com desejo
de fazer acontecer decidem por reunir estudantes e professores “que
tivessem uma postura assumidamente gay para decidir o que fazer
dentro do grupo, e qual seria a proposta da militância. Eram
acadêmicos de áreas como Artes, Psicologia e Comunicação
(SANTANA, 2020, p. 69).
A proposta central era de criar um grupo que unisse militância
e prazer, inédito no estado da Paraíba. Os encontros serviram como
grupo de estudo, apoio mútuo e terapêutico e encontro da subcultura
LGBT na UFPB. O perfil das pessoas organizadas foi fundamental
para a atuação grupo, “como a maior parte do grupo já trabalhava
como artistas, ou amadores na Comunicação, resolveram que usariam
das artes gráficas para propagar o discurso. E esse seria o grande
diferencial para suas ações posteriores.” (SANTANA, 2020, p. 69)
Apesar de ser um grupo formado por estudantes da UFPB,
não havia apoio institucional, o material produzido como livros,

186
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

postais, boletins, fanzines e outros eram impressos pelos próprios


militantes que utilizavam de seus conhecimentos em comunicação
para facilitar e baratear o processo de produção. A ocupação dos
espaços se dava de várias formas como estêncil, cópias e graffiti na
universidade e pela cidade de João Pessoa como outdoors, pichações
e painéis todos pintados em muros.
O fim do grupo foi gradativo, sobretudo após a saída
progressiva dos que compunham o núcleo central. Seja por privilegiar
a vida acadêmica ou pessoal, a indisponibilidade foi acabando o
movimento. Sua última atividade foi o média-metragem Baltazar da
Lomba (1982) que conta a história do primeiro índio gay do Brasil.
Thiago Oliveira em sua etnografia sobre o movimento LGBT
na Paraíba monta um cenário anterior a emergência do Nós Também,
ambientado na UFPB e produzido por jovens universitários, o fanzine
“Jornal Gaia”, nos primeiros anos de 1980, “cumpria a função de abrir
espaço para a expressão de outras experiências sexuais através de uma
mistura entre formas artísticas, crítica social e jornalismo acadêmico.
” (OLIVEIRA, 2017, p. 330).
O jornal fomentou discussões que seriam aprofundadas pelo
Nós Também em 1981 a partir do encontro da SBPC. Outra incerteza
em relação à cronologia dos fatos diz respeito ao fim do Nós Também.
Bruno aponta que o grupo teve fim com o filme Baltazar da Lomba
de 1982, enquanto que Thiago Oliveira aponta o ano de 1983. Apenas

187
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

uma pesquisa detalhada às fontes poderá suprir essas lacunas.

Concluindo
Outros grupos sucederam o Nós Também enquanto
movimento que tinha finalidade de organizar as dissidências sexuais e
de gênero na Paraíba, na luta por afirmação, direito de existir, de se
organizar nas fileiras das lutas por um mundo melhor. A esquerda
paraibana também passou a absorver melhor as demandas de corpos
dissidentes.
Pesquisar e escrever sobre o movimento LGBT inicialmente
nos causou um “não lugar”, várias inquietações e um misto de
sensações único. Apenas o processo de estudo aprofundado nos
ajudou a compreender o que sentíamos, pois era o reflexo dessa
exclusão histórica de LGBTs na esquerda brasileira e paraibana. Saber
que os atos reiterados de silenciamento, exclusão, marginalização das
sexualidades dissidentes em nome da “luta maior” nas esquerdas
tinham história nos deram ainda mais força e impulso para a realização
deste artigo.
A tempo, trazer para ordem do dia a história do movimento
homossexual, atualmente movimento LGBT na Paraíba é permitir
que não seja reflexo apenas da conjuntura, como espasmos soltos no
tempo, mas que possui história, capacidade de agenciamento próprio,
táticas e estratégias de lutas e resistência ao sistema que nos mata

188
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

diariamente.

REFERÊNCIAS

BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a


diferença. Rev. Estud. Fem., Florianópolis , v. 19, n. 2, p. 549-559,
Ago. 2011 .
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber.
Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon
Albuquerque. – 10ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina
no Brasil do Século XX; traduzido por Cristina Fino, Cássio Arantes
Leite. – 2. ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2019.
_______________. Forjando alianças e reconhecendo
complexidades: as idéias e experiências pioneiras do Grupo Somos de
São Paulo. In GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO,
Marcio; FERNANDES, Marisa (org.). História do movimento LGBT
no Brasil. – 1. ed. – São Paulo: Alameda, 2018.
_______________. Nem todos os caminhos levam a Nova York.
cult, 2019. Disponível em:

189
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

https://revistacult.uol.com.br/home/stonewall-america-latina/.
Acesso em: 28/10/2020.
_______________; QUINALHA, Renan (org.). Contribuição sobre
o tema ditadura e homossexualidades para o relatório final da
comissão nacional da verdade e parceiras. In GREEN, James N.;
QUINALHA, Renan (org). Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca por verdade. – São Paulo: EDUFSCar, 2018.
_______________. “QUEM É O MACHO QUE QUER ME
MATAR? ”: homossexualidade masculina, masculinidade
revolucionária e luta armada brasileira dos anos 1960 E 1970. 2012
_______________. Revolucionário e Gay: a extraordinária vida de
Herbert Daniel - Pioneiro na luta pela democracia, diversidade e
inclusão; tradução Marília Sette Câmara. - 1ª ed.- Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.
LOURO, Guacira L. Teoria queer – uma política pós-identitária para
a educação. Revista estudos feministas. Ano 9. 2001.
OLIVEIRA, José M. D. Mortes violentas de LGBT+ no Brasil – 2019:
Relatório do Grupo Gay da Bahia/ José Marcelo Domingos de
Oliveira; Luiz Mott. – 1. ed. – Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia,
2020.
OLIVEIRA, Thiago de Lima. Variações entre masculino e feminino:
acervo e narrativas do movimento LGBT na Paraíba. Relatório Final
de Pesquisa. João Pessoa: 2012.

190
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Paraíba. Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória


do Estado da Paraíba. Relatório final / Paraíba. Comissão Estadual da
Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba; Paulo
Giovani Antonino Nunes, [et al.] – João Pessoa: A União, 2017.
QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a
política sexual do regima autoritário brasileiro. In GREEN, James N.;
QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa
(org.). História do movimento LGBT no Brasil. – 1. ed. – São Paulo:
Alameda, 2018.
TREVISAN, João S. Devassos no paraíso: a homossexualidade no
Brasil, da colônia à atualidade. – 4ª ed. Ver., atual. E amp. – Rio de
Janeiro: Objetiva, 2018
________________. Somos o que mesmo? In GREEN, James N.;
QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa
(org.). História do movimento LGBT no Brasil. – 1. ed. – São Paulo:
Alameda, 2018.
SANTANA, Bruno Leonardo de Andrade Cultura material e
ativismo: o Design Gráfico como ferramenta de militância do grupo
Nós Também . 1. ed. – João Pessoa: Marca de Fantasia, 2020.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.
Traduzido por Guacira Lopes Louro, versão em francês. Rev. Tadeu
da Silva versão inglês. Educação & Realidade, v. 15, n.2, 1990.

191
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

192
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 8

MULHERES REZADEIRAS E A SIMBOLOGIA EM SEUS


ATOS DE FÉ

Juliana da Silva Guedes1


Patrícia Cristina de Aragão2

Resumo: Este artigo visa a compreensão das representações das


mulheres brasileiras rezadeiras a partir de seus atos com fé que se
espelham na cultura. Para a realização, partimos de uma metodologia
bibliográfica e documental através de uma pesquisa qualitativa
utilizando do Manual de Benzeduras de Thereza Tullio como nossa
fonte de pesquisa, ressaltando a simbologia de suas orações. A partir
de suas práticas de cura percebemos a importância na construção
cultural de comunidades para as mentes e os corpos adoecidos. O
papel das mulheres faz parte da formação da individualidade dos
sujeitos envolvidos.

PALAVRAS-CHAVE: Representações; Mulheres; Rezadeiras;


Cultura.

1 Graduanda em licenciatura plena em História pela Universidade Estadual da


Paraíba e bolsista do Pibic ‘’História que tecem os saberes das rezadeiras como
guardiãs da memória nas práticas de cura em comunidades rurais’’ da cota de 2023.
Campina Grande, Brasil. julianadasilvaguedes2@gmail.com
2 Professora titular da Universidade Estadual da Paraíba, atuando no curso de

História, Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e no Mestrado


de Serviço Social. Campina Grande, Brasil. patriciaa@yahoo.com.

193
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

INTRODUÇÃO
’O conhecimento é o ato de entender a vida’’
(Aristóteles)

Desde os tempos mais remotos os seres humanos buscam dar


significado à vida através de narrativas, como o criacionismo e
evolucionismo, narrativas que buscaram explicar a origem do universo
e assim dá significado à vida. O mito também foi uma forma de
narrativa, em diversas culturas ele foi um modo de narrativa que
explicavam a realidade através de alguma significação para a existência,
interpretando a realidade por meio da simbologia, isso não significa
dizer que a realidade era vista como uma mentira, por uma verdade
simbólica.
Os seres humanos possuem formas diferentes de perceber e
representar o mundo, principalmente quando pertencem a culturas
diferentes, na qual cada uma possui um olhar, uma representação para
a vida, nesse sentido, cada cultura se torna um universo próprio e cada
ser humano uma galáxia singular.
Partindo destes pressupostos, o objetivo deste artigo é
compreender a representação da figura das rezadeiras brasileiras como
forma de significação para a vida através de suas práticas culturais,
entendendo o mundo através de seu olhar, de seus atos de fé.

194
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Pelo fato que a sociedade brasileira é formada por um


sincretismo, um hibridismo religioso e cultural, suas influências
partiram das religiões de matrizes africanas, nas crenças dos povos
indígenas e no catolicismo europeu. Sendo necessário compreender
como ocorreu esse entrelaçamento de conhecimentos e sua influência
no cotidiano da cultura popular, a partir da atuação e prática das
rezadeiras.
É diante desse cenário que surge o ofício da rezadeira que
remete ao período colonial da história do Brasil e atravessou o tempo
através de suas memórias. É demasiado importante compreender o
papel das mulheres nessa construção e o que proporcionou o seu
surgimento, já que suas falas foram por muito tempo excluídas da
história.
Este trabalho parte de um diálogo entre os estudos de gênero
e as perspectivas da história cultural, que tem em vista enfatizar o
papel dessas mulheres como atores sociais através de suas práticas
ritualísticas que fazem parte da cultura imaterial brasileira. Para tanto,
nossa metodologia faz parte de uma análise bibliográfica e uma
pesquisa qualitativa mediante o projeto de pesquisa de iniciação
científica ‘’História que tecem os saberes das rezadeiras como guardiãs
da memória nas práticas de cura em comunidades rurais’’ da cota de
2023. Para discorrer sobre o assunto em questão utilizamos como
referência para nossas discussões os estudos desenvolvidos por José

195
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

D’Assunção de Barros(2003), Pesavento(2006), Pianovski(2015),


Figueiredo(2021), Assis(2022), Tullio(2014) eLarrosa(2015).
Com o intuito de uma melhor compreensão do assunto,
organizamos o artigo em três partes, na primeira parte refletimos
como através da história cultural é possível compreender as
representações construídas da realidade social brasileira, para a partir
da leitura desta realidade compreendermos o lugar das rezadeiras e
seu campo de atuação.
Na segunda parte discutimos sobre a figura das mulheres
rezadeiras como uma representação importante para o meio em que
vivem e desenvolvem seus ofícios de cura, debatendo o percurso
histórico das práticas curativas das rezadeiras a partir de seu cotidiano.
Na terceira parte trazemos algumas benzeções a partir do
Livro das rezas, Manual da Benzedeira de Theresa Tullio(2014). Com
isso, visamos compreender a partir do prisma teórico a representação
dessas mulheres silenciadas através do sentido que davam a existência
tanto para si mesmas quanto para os indivíduos que viviam em seu
núcleo de proximidade, cujo ofício que praticavam e praticam é
fundamentalmente importante e significativo entre os rezados.

1 A HISTÓRIA CULTURAL COMO UMA FORMA DE


COMPREENSÃO DA REALIDADE

196
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Discorrer sobre o que é cultura e como se constroem algo


como cultura em uma sociedade empreende uma certa complexidade,
na qual não abordaremos neste artigo. Nosso foco é como a cultura
de um povo é repleta de representações, de simbologias que dão
sentido a existência de indivíduos que vivem em determinados
contextos e como isso é importante. Pois, proporciona significado a
vida, a realidade.
Segundo Pesavento (2006, p.46) a cultura é como um grupo
de sentidos compartilhados. Uma construção social e histórica que se
mostram por meio do tempo, ‘’ em valores, modos de ser, objetos,
práticas.’’ A cultura ainda seria um modo de ler e traduzir a realidade
que se expressa de modo simbólico. Nesse caso, os significados que
se dão às coisas, as palavras, as atitudes e aos atores aparecem
cifradamente.
Isso significa dizer que a realidade da cultura não é dada por
si só, mas construída pela própria humanidade. Então, a maioria das
coisas compõe uma simbologia, como os sinais de trânsito, as placas
postas nos banheiros, o dialeto de cada região brasileira que possuem
características próprias de cada cultura. Tudo isso foi construído pela
humanidade e expressa na realidade para ler e traduzir o mundo. Não
há como falar sobre cultura sem discorrer sobre representações, já que
a cultura está repleta delas. Nos utilizando ainda da mesma autora, de
acordo com Pesavento(2006):

197
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Representações são presentificações de uma


ausência, onde representante e representado
guardam entre si relações de aproximação e
distanciamento. […] os homens elaboram
ideias sobre o real, que se traduzem em
imagens, discursos e práticas sociais que não
só qualificam o mundo como orientam o
olhar e a percepção sobre esta
realidade.(PESAVENTO, 2006, p. 49)

O que nos mostra que as representações são fatos no presente,


mas que representam a ausência de algo, a falta de algo. É como
estudar algo do passado que não se encontra mais presente, mas a
partir da investigação tornarmos aquela memória antiga presente, o
que nos distancia e nos aproxima simultaneamente.
Ou quando os indivíduos sentem que a vida precisa ter algum
sentido, procuram algo que possam preenchê-los, como a religião,
nesse sentido seria uma representação devido à ausência de si. Por
isso, a humanidade constrói ideias sobre a realidade, porque, a vida
por si só não basta, é preciso ver nas entrelinhas.
Por isso, de acordo com Pianovski(2015, p. 371) cabe a história
cultural retomar as representações, criando ‘’uma representação sobre
o que já foi representado.’’ Conforme o autor, a história cultural possui
como objeto central de pesquisa a cultura, “nos estudos das
representações sociais, das práticas culturais e do processo de
apropriação.’’.

198
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Ou seja, é papel da história cultural compreender a cultura a


partir de suas representações sobre a realidade, e, enquanto busca a
compreensão da representação, constroem algo sobre o que já foi
representado. Assunção Barros(2003, p. 146) nos traz uma reflexão
interessante sobre a cultura, conforme o autor, ‘’ao existir qualquer
indivíduo já está automaticamente produzindo uma cultura[…] a
própria linguagem e as práticas discursivas que constituem a
substância da vida social, embasam esta noção mais ampla de
cultura.’’. Ou seja, ao vivermos já estamos produzindo uma cultura,
pois, estamos convivendo com o outro a partir da nossa
individualização, construindo práticas sociais. Influenciamos o outro
e o outro nos influencia.

2 AS REZADEIRAS

‘’O conhecimento é o ato de entender a vida’’, disse


Aristóteles. Portanto, entendemos a vida e respondemos o que nela
ocorre a partir do conhecimento que construímos. Nossas ações são
tidas a partir das ideias que possuímos e da forma como percebemos
e compreendemos a realidade. Galvão(2018), em uma palestra no
TED TALKS, disse: ‘’Vejam como as pessoas respondem à vida e aí

199
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

você vai ver o conhecimento que elas realmente têm”.3 É a partir das
ações de um indivíduo diante dos impasses que se apresentam na vida
e de suas resoluções que, é que conseguimos perceber o
conhecimento que ele tem.
O conhecimento das mulheres rezadeiras e seus atos de fé,
diante dos problemas que se defrontaram, a partir da problemática
vivenciada pelas pessoas que as buscam, procuram responder aquilo
que acontecia através de seus saberes. Como em frente de um corpo
e alma adoecidos, estas mulheres procuraram alento em seus
conhecimento e oficio para si mesmas, mas também para o rezado, a
partir da cura oriundas das práticas de benzeção. Essas mulheres
foram e são, guardiãs da cura para aqueles que possuíam seu corpo e
sua alma atormentados.
A relação constituída entre fé e a cura é o alicerce para a
construção do ofício das rezadeiras em suas comunidades.
(FIGUEIREDO, 2021, p. 12) Ou seja, o trabalho é determinado a
partir da sua fé e de sua prática de cura, duas coisas atreladas e que
não podem ser separadas.
A figura da rezadeira remonta ao período colonial, conforme

3 Lúcia Helena Galvão é filósofa, poetisa, escritora, roteirista, palestrante e


professora há mais de 31 anos na Escola Internacional de Filosofia Nova Acrópole.
Ela viaja por vários estados do Brasil e em outros países discutindo diversos temas,
como simbologia, ética e a arte de viver. A palestra em questão se encontra
Disponivel em: https://youtu.be/Z-mrb_9yJ7sn

200
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Figueiredo(2012, p. 22), as mulheres pobres que viviam na colônia se


utilizaram do catolicismo popular, possuindo os santos como guias
espirituais, o que fez parte de suas práticas cotidianas, ornando suas
paredes, medalhas e imagens. Os saberes que foram sendo formados
com as ervas e as rezas aos santos comuns do catolicismo popular
proporcionaram que a mulher da colônia se tornasse uma médica
informal.
Essas mulheres construíram seus saberes a partir de sua fé e
de seu conhecimento das ervas, e eram mulheres pobres, que viviam
à margem da sociedade brasileira. O que a tornaram uma médica
informal da comunidade em que residiam, trazendo cura à população.
No Brasil há uma complexidade em relação à construção dos
conhecimentos em relação à cura popular, remontando a um
hibridismo cultural no período colonial, em que as práticas de cura
exercidas foram apropriadas pelos jesuítas, pelos colonos e pelos
agentes médicos oficiais. Logo depois, com a chegada dos africanos
ao Brasil, suas práticas de cura incorporaram ‘’diversos elementos que
vão desde o curandeirismo às rezas, tornou o 'receituário da Colônia'
ainda mais rico e complexo, na qual 'médicos, cirurgiões, barbeiros,
curandeiros e benzedores' passam a empregar tais saberes, e que
possuem profunda ressonância até os dias de hoje.” (MIRANDA
apud ASSIS, 2022, p.6)
As práticas de cura do Brasil foram construídas a partir de

201
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

um hibridismo cultural nas culturas vigentes na qual seus saberes


influenciaram mutualmente, contribuindo para suas medicinas
populares. A rezadeira em questão recebeu a influência dessas três
culturas: A das populações indígena, africana e do homem branco
europeu.

3 AS BENZEÇÕES

A cura pode ser experimentada para além dos saberes


médicos, através da fé e no credo das rezas, o que por anos foi uma
das únicas maneiras de curar em regiões distantes onde a medicina
não chegava. Foram as rezadeiras e os seus conhecimentos de cura
que concederam saúde aqueles que necessitavam. As rezas foram
sendo internalizadas e vivenciadas na banalidade do cotidiano de
homens e mulheres. (ASSIS, 2022, p. 3)
Nesse sentido, o tratamento curativo dá-se por meio da crença
nas rezas, é necessário acreditar naquelas palavras que estão sendo
pronunciadas, a terapia curativa depende não só da rezadeira, mas
também daquele que está sendo rezado. Ela faz parte de um
relacionamento entre ambos e de que há algo acima deles. Segundo
Assis(2022):
a arte da benzedura está envolta de dois
signos: o da experiência e do sentido. Da

202
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

experiência porque diz respeito a um


aprendizado adquirido que perpassa ao longo
da sua vida e o seu ofício que também foi
moldado por suas experiências adquiridas.
Acredito que por esse motivo, a velhice é um
dos elementos que conferem credibilidade às
rezadeiras. Essas mulheres se permitem ser o
sujeito em que as coisas acontecem em sua
vida abrindo um espaço para essas
experiências. E do sentido, porque para quem
as pronuncia e quem as escuta, acreditam que
de algum modo ela trará os resultados
desejados, talvez para uma pessoa cética as
crenças populares, caso fosse rezado, não
teria resultado algum.(ASSIS, 2022, p. 15)

Ou seja, o ato da benzeção se dá em volta dos saberes que


essas mulheres foram construindo ao longo do tempo e do sentido
atribuído por cada um, como essas rezas influem na individualidade
de cada sujeito atravessando sua alma. É justamente sobre aquilo que
Jorge Larrosa(2002, p. 21) fala “o que nos passa, o que nos acontece
e o que nos toca.” É sobre as coisas que passam na nossa vida e tocam
o cerne da nossa alma, marcando para toda eternidade nossa
existência.
Theresa Tullio(2014, p. 18) nos traz que você deve colocar fé
nas palavras e direcionar para o alto, assim você estará produzindo um
benzimento. Precisa-se crer no que está fazendo, acreditar na
providência. E não se deve esperar se os benzimentos foram bem-

203
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

sucedidos. Pois, segundo a autora, “Deus sabe quem deve ser ou não
curado e devemos confiar em Sua Sapiência. Assim como o rezador
usa o ramo, Deus usa o rezador para transmitir ao mundo a Sua
Piedade Infinita.”
A reza depende também do divino, se ele considera que o
indivíduo em questão deve ser curado, ela é envolta da relação entre
pessoas, o benzedor, o que está sendo benzido e Deus, o todo-
poderoso. É a partir da conexão entre esses três seres que ocorre o
benzimento.
Para exemplificar as benzeções efetuadas pelas rezadeiras,
trouxemos algumas rezas utilizadas nas benzeções: Santo Antão ajuda
na cura(Para Herpes), uma para impingem, uma para verrugas, uma
contra erisipela e uma para Eczemas. Elas serão apresentadas nessa
respectiva ordem.
Iniciemos por Santo Antão, ajuda na cura, reza realizada para
herpes4: “Santo Antão disse a Cristo que um doente chorava de fazer
dó. Cristo perguntou se era herpes de um lado só. Então, Antão o
Santo, disse que era e curou um lado e tudo ficou curado. Em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!” (TULLIO, 2014, p. 23)
Tullio(2014, p. 23) traz algumas recomendações antes de
iniciar a rezar, é preciso que se utilize um raminho de qualquer mato

4 Ferida contagiosa que pode ocorrer em volta dos lábios ou dos órgãos genitais.

204
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

e água pura. Logo em seguida, é necessário molhar o raminho na água


e com muita fé ir benzendo a doença em questão com o sinal da cruz.
Observe que a reza envolve uma simbologia com a natureza, com água
e com a fé. Há elementos do catolicismo, como a referência a um
santo, o nome de Cristo e no final a referência a santa trindade.
5
A segunda reza que trouxemos é para Impingem :
“Impingem, rabingem, eu vou te rabingar, em nome de Deus e da
Virgem Maria, eu vou te matar.” (TULLIO, 2014, p. 24) Assim como
a benzenção anteriormente, Theresa (2014, p. 24) traz algumas
instruções, deve ser feita com cinza quente ou braseiro, deve-se
colocar em um saquinho e passar no sujeito que está sendo benzido.
Ao final jogar o saquinho no sol. Pode-se passar também a cinza
quente na região da impingem e deixar por algumas horas. Repare
que o ato da benzeção envolve elementos do seu cotidiano para
realizá-lo e novamente características do catolicismo, a evocação de
Deus e da Virgem Maria.
A terceira reza selecionada é em relação às verrugas6: “Assim
como o feijão cai, essa verruga se vai.”(TULLIO, 2014, p. 25) A
benzeção deve ser realizada na lua minguante na qual precisa passar o
feijão na verruga enquanto é recitada a reza. Ao final da reza é jogado
fora o feijão, a semente não pode brotar, caso isso ocorra a verruga

5 Infecção de fungos que deixa a pele avermelhada


6 Caroço pequeno na pele

205
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

retorna.
Observa-se que são novamente utilizados elementos
cotidianos, daquilo que faz do seu dia, já que a medicina formal não
está disponível com ligação com a natureza, a lua é um fator que não
está ligado com o catolicismo, mas já com outras religiões, como a
cultura africana.
A quarta reza contra Erisipela7:
Pedro Paulo foi a Roma E com Jesus Cristo
se encontrou. Jesus perguntou a Pedro: O
que há por lá Pedro Paulo? Pedro respondeu:
Há muita zipra e erisipela, Muita gente morre
dela. Pedro perguntou a Jesus Cristo: Senhor,
com que se cura? Jesus disse: Pedro volta lá
E benze com a água da fonte Que corre dos
montes, Com o azeite da lâmpada, E lã de
carneiro, Com o nome de Deus e da Virgem
Maria. (TULLIO, 2014, p. 27)

A benzeção em questão deve ser feita com flores de


sabugueiro, amassando oito pedras de sal em um pilão, com nove
flores de sabugueiro secas, com nove gotas de azeite Virgem e nove
gotas da água da fonte. Quando tudo estiver amassado coloca-se em
um pedaço de murim branco8 , elaborando uma trouxinha.
Passe-se na região com Erisipela, dizendo o benzimento. A

7 Infecção que pode atingir o tecido da pele, deixando o local vermelho ou roxo,
impedindo a circulação sanguínea.
8 Tecido de algodão com trama larga.

206
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

benzedeira ainda traz mais duas recomendações, deve-se rezar de cima


para baixo para interromper a erisipela e não atingir a virilha. E
sabugueiro deve-se usar a flor e não folha, pois é perigoso (TULLIO,
2014, p. 26–27).
Repare serem elementos da natureza e estão presentes no seu
dia a dia. Há a forte presença do catolicismo em suas palavras, por ser
uma doença mais perigosa e pode trazer ao indivíduo.
A quinta reza é para o tratamento de Eczemas9:

Tudo no Universo é energia, movimento,


força e vibração. Mas só Deus é poder. E pela
harmonia de Suas inteligentes e sábias leis,
que tudo prevê e provê, benzo-me (ou benzo
a este irmão) com este vegetal tóxico, a fim
de que, através dos seus impactos magnéticos
e vigorosos, se desintegrem os fluidos
virulentos que alimentam os germes
infecciosos da moléstia para a qual é dirigido.
Pela Fé que possuo em Deus; pela confiança
que deposito nos mentores espirituais; pela
crença que alimento nos guias e protetores,
tenho certeza de que hei de conseguir a cura,
tão logo seque este galho com o qual
chicoteio os vírus etéricos causadores da
doença, jogando-lhes fluidos dispersivos
para que a parte imaterial se dissolva e assim
fique livre deste mal inconveniente e
doloroso. (TULLIO, 2014, p. 28)

9 Inflamação na pele

207
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

As instruções são a utilização de um galho verde de pimenteira


Brava e deve ser agitada no ar sobre a doença, benzendo
constantemente o doente. Ao final do procedimento deve-se enterrar
o galho da pimenteira Brava, conforme for secando, a doença irá se
esvaindo. (TULLIO, 2014, p. 28)
Mais uma vez os elementos que compõem a reza estão em
volta da simbologia da natureza e a presença forte da fé em um Deus,
todo-poderoso. As crenças no catolicismo estão associadas com as
rezas. E há recomendações que devem ser seguidas para que a
benzeção seja realizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mulheres rezadeiras constroem uma representação para a


cultura em que vivem através de suas representações, elas dão sentido
a realidade através de suas práticas curativas. Não há como não falar
em cura no Brasil sem mencioná-las. Elas são partes integrantes da
história do nosso país. Suas benzeções trazem acalento para o corpo
e alma adoecidos.
Elas são um exemplo de como as representações constroem a
cultura de uma sociedade. A partir de sua fé e seus saberes, elas
influenciam os sujeitos a sua volta. Salientando também como sua

208
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

representação foi construída pela necessidade que se encontrava nas


regiões. Elas foram absorvidas e envolvidas por seu contexto com as
diversas culturas vigentes na época.
Sendo assim, uma cultura é composta por diversos sujeitos
que trazem, cada um, parte de si para o desenvolvimento de uma
sociedade. É partindo da individualidade que o coletivo se forma.
Formando assim uma realidade em comum que possui significados
para o conjunto, proporcionando algum sentido para vida.

REFERÊNCIAS:
ASSIS, Roberto Ramoz Queiroz de. "Com dois te botaram com
três de retiro": As práticas educativas da reza é da cura no sertão
paraibano( Final do século XX início do século XXI). Dissertação
de mestrado. Pós graduação em História, Universidade Federal de
Campina Grande, Campina Grande, 2022.

BARROS, José D’Assunção. História Cultural: um panorama teórico


e historiográfico. Textos de história, vol. 11, nel/2,200

FIGUEIREDO, Rosana Souto Santana. Identidade e


representação nas práticas de mulheres rezadeiras-Memórias
das artes de curar. Trabalho de conclusão de curso. Graduação em
História, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2021.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28. ISSN
1413-2478.

PESAVENTO, Sandra Jathany. Cultura e representações, uma

209
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

trajetória. Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23/24, p.45-58, jan./dez.


2006

TEDX TALKS, Sobre ética e chocolates-Lúcia Helena Galvão-


TedxPasso fundo. Youtube, 26 de janeiro de 2018. Disponível em:
https://youtu.be/Z-mrb_9yJ7sn Acesso em: 15/01/2023.

TULLIO, Theresa. O livro das rezas: Manual da Benzedeira. E-


book, 2014. Disponível em seu blog: www.integralita.com

VIEIRA, Alboni Marisa Dudeque Pianovski. A história cultural é as


fontes da pesquisa. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 61,
p. 367-378, mar2015 – ISSN: 1676-2584.

210
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 9

“EMPODERE-SE”: DIÁLOGOS ESCOLARES SOBRE


EMPODERAMENTO FEMININO E A CONSTRUÇÃO DE
UMA CULTURA DE EQUIDADE

Cristiane Raposo Sousa Araújo1

Resumo: O Relato de experiência descrito nesse texto discorre sobre


o desenvolvimento do projeto “Empodere-se: Diálogos escolares
sobre empoderamento feminino e a construção de uma cultura de
equidade”, a partir do qual foram promovidas atividades pedagógicas
voltadas para o empoderamento feminino, apoiando-se
principalmente no pensamento de Joice Berth (2019), bem como no
intuito de educar para a construção de uma cultura de respeito e
igualdade, em consonância com o quinto Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS), que diz respeito à Igualdade de
Gênero, e compõe a Agenda 2030 da ONU. Realizado com as turmas
do ensino médio técnico: 2º ano Design de Interiores e 2º ano
Marketing, durante as aulas de História, entre os meses de junho a
setembro de 2022, na ECIT Nenzinha Cunha Lima, o qual
proporcionou a conquista do Prêmio Mestres da Educação, bem
como a participação em outros programas de apoio a práticas
educativas inovadoras. Nesse sentido, foram desenvolvidas ações

1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História –PPGH da Universidade


Federal de Campina Grande. Professora de História no Ensino Médio da rede
pública estadual paraibana. Campina Grande – PB, Brasil. Email:
cristianeraposo.sa@gmail.com

211
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

como: apresentações culturais, palestras, acolhidas temáticas,


produção de redação, debates, entre outras atividades que contaram
com a participação ativa dos alunos. Por meio de parcerias com a
Comissão da Mulheres Advogada, e o Grupo de Extensão
“Esperançar” (UEPB), foram abordados assuntos como:
protagonismo feminino, relacionamentos abusivos e tipos de violência,
questões sobre o corpo, cultura de estupro, desafios no mercado de
trabalho, mulheres na política, interseccionalidade e sororidade.

Palavras-chave: Relato de experiência. Projeto. Empoderamento


feminino. Equidade. Práticas educativas.

INTRODUÇÃO
O presente texto relata uma experiência vivenciada durante o
ano letivo 2022, enquanto professora de História na Educação Básica
(Ensino Médio) da rede pública estadual paraibana, da qual faço parte
há treze anos, o qual visa socializar o desenvolvimento de um projeto
interdisciplinar cujo objetivo foi o de incentivar de forma lúdica e
consciente o empoderamento feminino e a construção de uma
sociedade que vivencie as relações de gênero a partir do princípio da
equidade. Foi realizado durante as aulas de História, nas duas turmas
dos segundos anos do Ensino Médio da Escola Cidadã Integral
Técnica Nenzinha Cunha Lima, localizada na zona leste de Campina
Grande, Paraíba.
Todos os dias, um número significativo de mulheres, jovens e
meninas são submetidas a alguma forma de violência no Brasil.

212
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica,


agressões por parceiros ou familiares, perseguição, feminicídio. Sob
diversas formas e intensidades, a violência de gênero é recorrente e se
perpetua nos espaços públicos e privados, encontrando nos
assassinatos a sua expressão mais grave.
Partindo dessa percepção, foi planejado e empreendido o
projeto “Empodere-se: Diálogos escolares sobre empoderamento
feminino e a construção de uma cultura de equidade”, a partir do qual
foram desenvolvidas atividades pedagógicas voltadas para o
empoderamento feminino, no sentido de educar para uma cultura de
igualdade e de respeito em consonância com um dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODMs) estabelecidos após a Cúpula
do Milênio das Nações Unidas em 2000, qual seja o de promover a
igualdade de gênero e empoderar as mulheres, sendo este reafirmado
em 2015 com o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) para a Agenda 2030.
Apesar dos avanços alcançados pelas mulheres ao longo do
tempo, as notícias diárias, seja em jornais ou perfis nas redes sociais,
ou mesmo em situações cotidianas vivenciadas, refletem que ainda há
muito a se conquistar em prol da igualdade de oportunidades e de
tratamento. Portanto, essa deve ser uma das prioridades na Educação.
A análise sobre a violência contra as mulheres no país é uma
ferramenta essencial para a elaboração de ações pedagógicas que

213
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

reivindiquem pleno acesso à justiça e aos direitos das mulheres e para


a sensibilização da sociedade, contribuindo também para uma
mudança cultural em relação a visões e práticas.

1 Realidade que choca: Analisando dados oficiais

Uma menina ou mulher é estuprada a cada 10 minutos no país.


A violência sexual segue vitimando meninas e mulheres no Brasil.
Segundo dados coletados no relatório “Violência contra mulheres em
2021”, elaborado para o “Anuário Brasileiro de Segurança Pública de
2022”, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 56.098
estupros contra mulheres (incluindo vulneráveis do gênero feminino)
foram registrados no sistema de segurança. O crescimento dos
registros de violência sexual foi de 3,7% em relação ao ano anterior.
Entre 2020 e 2021, os feminicídios caíram 1,7% na taxa
nacional. Mesmo com a variação, os números ainda assustam: nos
últimos dois anos, 2.695 mulheres foram mortas pela condição de
serem mulheres – 1.354 em 2020 e 1.341 em 2021.
Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua) 2019, realizada pelo IBGE, a
população brasileira é composta por 48,2% de homens e 51,8% de
mulheres. Apesar das mulheres representarem a maioria da população,
essa proporção não equivale à média calculada no que diz respeito ao

214
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

número de empregados, assim como, referente à participação política,


ambas, consideravelmente inferiores
Os indicadores sociais das mulheres no Brasil disponibilizados
pelo IBGE, com relação ao monitoramento do mercado de trabalho,
revelam que, em 2019, a taxa de participação das mulheres com 15
anos ou mais de idade foi de 54,5% contra 73,7% dos homens.
Ainda levando em consideração os dados fornecidos pelo
IBGE, o Brasil encontrava-se, em 2020, na 142ª posição dos 190
países contidos no ranking de mulheres que exercem mandato
parlamentar na câmara de deputados.
O SEBRAE, por sua vez, realizou um estudo demonstrando
o percentual de empreendedoras mulheres no Brasil, referente ao
terceiro trimestre de 2020, o qual apresenta 33,6% em contraposição
a 66,4% de homens. Os dados da Paraíba correspondem a apenas 2%
desse total (139.399 mulheres empreendedoras).
Partindo da análise desses dados, reforçamos a emergência de
ações pedagógicas que abordem tais problemáticas, levando em
consideração o pensamento do pedagogo Leonardo Marçal (2019),
quando defende que:
A desigualdade de gênero é uma das
violações mais persistentes dos direitos
humanos em nosso tempo. Propor diálogo e
desenvolver projetos que promovam a
igualdade entre os gêneros na escola é

215
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

remover barreiras sociais e culturais, barreiras


estas que por muitas vezes impedem a
sociedade de elevar-se cultural e
potencialmente. É essencial que nós, como
educadores, possamos ajudar essa nova
geração a modelar uma nova sociedade, livre
do ódio, do ópio das desigualdades, justa e
igualitária (MARÇAL, 2019).

Por meio dessa perspectiva, foi incentivado o empoderamento


feminino entre as estudantes participantes do projeto, termo que vem
sendo utilizado de forma recorrente na atualidade, e está ligado a uma
consciência coletiva por parte das mulheres, sendo constituído de
ações tomadas por mulheres que não se deixam ser inferiorizadas pelo
seu gênero. Joice Berth (2019) enfatiza que esse movimento deve ser
pensado coletivamente, pois se ficar resumido a concepções
individuais não surtirão efeitos sociais e as mulheres continuarão em
constante fragilidade social, expostas às violências que atingem sua
coletividade.

2 Empoderamento feminino em foco: ações pedagógicas


empreendidas

As ações pedagógicas foram planejadas em conjunto com as


alunas e alunos das turmas envolvidas. Na busca por ampliar o

216
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

conhecimento sobre o tema, foram estabelecidas parcerias com


representantes de órgãos públicos e estudantes universitárias. Em
alguns momentos, as discussões desenvolvidas repercutiram em
eventos para a comunidade escolar não ficando restritas à sala de aula.
As atividades realizadas serão descritas de forma resumida a seguir:

3 História do movimento feminista


A proposta de intervenção foi apresentada aos estudantes das
turmas escolhidas para execução do projeto por meio de um Slide.
Nesse primeiro momento, eles foram instigados a interagir com
sugestões de temáticas a serem abordadas no decorrer do projeto.
Além disso, foi apresentado e discutido o Vídeo “História do
Movimento Feminista”2, disponível no canal “Sociologia Animada”
do Youtube, para iniciar uma conversa sobre a trajetória de luta das
mulheres por direitos ao longo do tempo, e as características das três
primeiras ondas do movimento feminista.

4 Conhecendo mulheres protagonistas que marcaram/marcam


a história

2SOCIOLOGIA ANIMADA. História do Movimento Feminista. Youtube, 04 de


abril de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-fq8W_HT6vk
Acesso em: 20 de maio de 2022

217
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Divididos em grupos, os estudantes realizaram pesquisas


sobre biografias de mulheres protagonistas, que se destacam ou que
tenham se destacado ao longo da História, em áreas como a ciência,
política, na luta contra injustiças sociais, por exemplo. Depois das
escolhas e da realização das pesquisas, os grupos foram orientados a
produzirem artes digitais no aplicativo Canva, utilizando um padrão de
modelo para cartazes, que posteriormente foram impressos,
socializados nas turmas e em seguida colados em áreas comuns da
escola, para tornar as trajetórias dessas mulheres conhecidas também
pela comunidade escolar. Malala Yousafzai, Dorothy Stang, Margarida
Alves, Dandara, Marie Curie, Nísia Floresta, estão entre as biografias
socializadas, dentre outras.

Imagem 1: Aluna e aluno fixando cartazes produzidos nas paredes da escola

Fonte: Própria

218
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

4.1. “Agosto Lilás”: Mês de conscientização e enfrentamento


à violência contra a mulher
Durante o mês de agosto, marcado pela Campanha “Agosto
Lilás”, que conscientiza a respeito do enfrentamento à violência
contra as mulheres, foram promovidas acolhidas temáticas, estudos
atuais sobre dados estatísticos oficiais, apresentações culturais e
palestras.
Foi organizado um Evento no auditório da escola englobando
todas as turmas do Ensino Médio, no qual foi explicado o significado
da Campanha, relacionado ao aniversário da Lei Maria da Penha, o
porquê da escolha da cor lilás, e contou com o protagonismo dos
estudantes, que abordaram com desenvoltura sobre os tipos de
violência, apresentaram o “Violentômetro”3 e recitaram “A Lei Maria
da Penha em Cordel”4, de Tião Simpatia. A Música “Para todas as
mulheres”5, de Mariana Nolasco, foi interpretada por duas alunas e
uma palestra foi ministrada de maneira interativa pelas advogadas Dra.
Sheylla Campos e Dra. Angélica Herculano, representando a
Comissão da Mulher Advogada – OAB Campina Grande. Todos os

3 Disponível em: https://www.tjpb.jus.br/coordenadoria-mulher/violentometro


4 Disponível em:
https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/lei_maria_da_penha_em_cordel.
pdf
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sURA8RSUELg

219
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

presentes foram orientados sobre relacionamentos abusivos,


legislação, no que concerne à violência doméstica, além de como
buscar ajuda e medidas protetivas. Os estudantes mantiveram-se
atentos e interagiram de forma muito positiva. A ação repercutiu
presencialmente e nas redes sociais de forma significativa, sendo
compartilhada por alunos de várias turmas e pelas advogadas
presentes no evento.

Imagens 2 e 3: Acolhida temática e palestra com representantes da Comissão da


Mulher Advogada

220
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Fonte: Própria

Posteriormente foi realizada outra palestra sobre Violência


Doméstica tendo como público-alvo estudantes do Ensino
Fundamental, público que não havia participado do momento anterior.
Desse modo, a conscientização a respeito do combate à violência
contra as mulheres foi socializada para toda a comunidade escolar, e
contou, neste caso, com a participação do Grupo de Extensão
“Esperançar”, composto por estudantes de Jornalismo e Direito da
Universidade Estadual da Paraíba e com uma palestra ministrada pela
Psicóloga Clarissa Guedes 6 . A convidada mediou o momento de
maneira didática e dinâmica, incentivando a participação e interagindo
entre os estudantes.
Imagem 4: Palestra com representantes do Grupo “Esperançar” e do

6Analista Judiciária, Conselheira Efetiva do Conselho Regional de Psicologia da


Paraíba e Tutora da ESMA/PB

221
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Conselho Regional de Psicologia da Paraíba

Fonte: Própria

Ainda sobre a temática da violência às mulheres, foram


transmitidos em sala de aula dois documentários: “Quem matou
Eloá” 7 , gerando debates complementares sobre as diferenças de
tratamento das autoridades e da imprensa mediante crimes dessa
natureza, levando em consideração a classe social dos envolvidos; e

7DOCTELAMIDIACOM. Quem matou Eloá? (Who killed Eloá?). Youtube, 04 de


agosto de 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4IqIaDR_GoQ Acesso em 08 de agosto de
2022.

222
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

“Filhos da Violência: Amanda é órfã do feminicídio” 8 , que


proporciona a reflexão das possíveis consequências para os familiares
das vítimas, especialmente para os filhos e filhas mediante à
convivência com a violência doméstica, chegando infelizmente ao
feminicídio de suas genitoras e à dificuldade de seguir em frente após
a perda e os danos psicológicos deixados.
Com base nos conhecimentos e debates produzidos durante
o mês de agosto, os estudantes envolvidos no projeto foram
desafiados a escreverem redações no modelo solicitado pelo ENEM,
com o tema “Caminhos para a redução da violência contra as
mulheres no Brasil”. Foi entregue uma folha com as orientações, três
textos motivadores e folha para rascunho. A maioria dos textos
obedeceu ao modelo e apresentou propostas de intervenção
contundentes.
Imagem 5: Alunas produzindo suas redações

8UNIVERSA. Filhos da violência: Amanda é órfã do feminicídio. Youtube, 22 de


março de 2018. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=e7GIYaZ0bGs Acesso em: 08 de agosto de
2022.

223
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Fonte: Própria

4.2. Debatendo em grupo: Estereótipos e o Corpo Feminino,


Cultura de Estupro no Brasil, Relações de Trabalho, Mulheres na
Política e Interseccionalidade
De forma voluntária, os estudantes foram organizados em
duplas ou trios, para instigarem debates com o restante das turmas
sobre temas relevantes como: Estereótipos e o Corpo Feminino,
Cultura de Estupro no Brasil, Relações de Trabalho, Mulheres na
Política e Interseccionalidade. A partir de pesquisas e da análise de
dados oficiais sobre os temas, também foram socializadas situações
cotidianas vivenciadas pelas estudantes e realizadas discussões sobre
possíveis soluções para esses problemas.

224
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

4.3. “Setembro Amarelo”: Precisamos falar sobre suicídio


entre as mulheres
A Campanha “Setembro Amarelo” é conhecida
nacionalmente enquanto uma bandeira de combate ao suicídio.
Mediante o referido contexto, foi realizada uma análise comparativa
entre os dados referentes ao número de suicídios por homens e por
mulheres9, que demonstraram um número maior de casos de suicídio
entre o grupo masculino, porém, revelam um alerta sobre o número
de tentativas que é consideravelmente superior entre as mulheres,
requerendo, portanto, uma maior atenção no que diz respeito à Saúde
Mental desse público.

4.4. Empoderamento Feminino e Sororidade: A semente


plantada
Encerrando as discussões do Projeto, foram reforçados os
significados dos conceitos: Empoderamento Feminino e Sororidade,
baseando-se no pensamento de Joice Berth (2019), que compreende
“empoderamento” como instrumento de emancipação e erradicação
das estruturas que oprimem. Para tanto, a Sororidade se faz necessária,

9Análise baseada no Boletim Epidemiológico disponibilizado pelo Ministério da


Saúde em setembro de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-
br/centrais-de-
conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2021/boletim_epidemi
ologico_svs_33_final.pdf

225
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

representando a união e aliança entre mulheres, baseadas na empatia


e no companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum.
Romper com a cultura que inscreve as mulheres enquanto rivais,
aniquilar os julgamentos e respeitar as escolhas individuais de cada
uma, podem ser considerados os primeiros passos para o
empoderamento de forma coletiva e substancial.
Foi realizado um momento de Confraternização entre os
participantes do projeto para marcar positivamente o término das
atividades, que contou com uma premiação simbólica das estudantes
que produziram as melhores redações, além de sorteios, entre os
demais alunos e alunas, de dois livros “Eu sou Malala: A história da
garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã”,
de autoria da própria Malala e Christina Lamb, sobre a vida da
paquistanesa conhecida no mundo inteiro pela luta que empreende em
prol do direito à educação para as mulheres em seu país. Foi ofertado
um lanche diferenciado para as duas turmas em conjunto. Encerrando
a proposta pedagógica de uma forma muito prazerosa, em clima de
descontração e de dever cumprido.
Imagem 6: Registro da professora acompanha de alguns estudantes envolvidos
no projeto

226
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Fonte: Própria

5 Base Nacional Comum Curricular: Habilidades promovidas

É importante ressaltar que durante a execução do projeto foi


incentivado o desenvolvimento de Habilidades previstas na BNCC
para o Ensino Médio, entre as quais destacam-se: EM13CHS502
(Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas
etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade,
preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que
promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às
diferenças e às liberdades individuais), EM13CHS503 (Identificar

227
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas


principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus
significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando
mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos) e
EM13CHS401 (Identificar e analisar as relações entre sujeitos, grupos,
classes sociais e sociedades com culturas distintas diante das
transformações técnicas, tecnológicas e informacionais e das novas
formas de trabalho ao longo do tempo, em diferentes espaços e
contextos) que estão relacionadas às Ciências Humanas.
No que diz respeito às Habilidades de Linguagens,
destacaram-se: EM13LGG204 (Dialogar e produzir entendimento
mútuo, nas diversas linguagens, com vistas ao interesse comum
pautado em princípios e valores de equidade assentados na
democracia e nos Direitos Humanos) e EM13LGG302 (Posicionar-
se criticamente diante de diversas visões de mundo presentes nos
discursos em diferentes linguagens, levando em conta seus contextos
de produção e de circulação).
E com relação à Matemática: EM13MAT104 (Interpretar
taxas e índices de natureza socioeconômica, investigando os processos
de cálculo desses números, para analisar criticamente a realidade e
produzir argumentos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

228
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Mediante um contexto pós-pandêmico marcado por inúmeros


desafios para a Educação Nacional, consideramos que a atuação
pedagógica ao empreender o presente Projeto foi bem-sucedida.
Foram várias ações interdisciplinares que se voltaram para o alcance
de Habilidades requeridas nos exames avaliativos de cunho estadual e
nacional, assim como, combatendo os índices de evasão e reprovação,
e estiveram interligados a um tema muito relevante que diz respeito à
igualdade de gênero, tratando de forma mais específica os desafios
para as mulheres. Um debate que é, de fato, muito necessário na
contemporaneidade.
O projeto “Empodere-se: Diálogos escolares sobre
empoderamento feminino e a construção de uma cultura de equidade”
foi contemplado pelo “Prêmio Mestres da Educação” promovido pela
Secretaria de Educação e de Ciência e Tecnologia do Estado da
Paraíba, finalista do “Prêmio Educadores do Ano 2022” realizado pela
UNIFACISA e inspirou um segundo projeto: “Protagonismo
Feminino na ECIT Nenzinha Cunha Lima: Combatendo a
desigualdade de gênero e conscientizando para a preservação do meio
ambiente” participante da etapa estadual do Prêmio Celso Furtado,
fomentado pela FAPESQ.
Desse modo, consideramos que os resultados impactaram de
forma positiva aos participantes, se estendendo a toda a comunidade

229
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

escolar por meio de atividades socializadas também a outras turmas,


favorecendo o diálogo entre os estudantes, a aprendizagem por meio
de um ambiente de diálogo, proporcionando laços de identidade e
afetividade para com a escola e demais colegas, incentivando o
protagonismo juvenil e sobretudo, orientando para a construção de
uma cultura pautada na justiça e na equidade, que respeite as mulheres
enquanto protagonistas de suas próprias histórias.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ana Carla F.; ALVES, Ana Karina da S. As Trajetórias e lutas


do movimento feminista no Brasil e o protagonismo social das
mulheres. IV Seminário CETROS. Neodesenvolvimento, Trabalho
e Questão Social. Fortaleza: UECE, 2013. Disponível em:
http://www.uece.br/eventos/seminariocetros/anais/trabalhos_com
pletos/69-17225-08072013-161937.pdf Acesso em: 25 mar. 2022

BERTH, Joice. Empoderamento. (Feminismos Plurais/


Coordenação Djamila Ribeiro). São Paulo: Pólen, 2019.

BOROCHOVICIUS, Eli; TORTELLA, Jussara Cristina Barboza.


Aprendizagem Baseada em Problemas: um método de ensino-
aprendizagem e suas práticas educativas. Ensaio: aval. pol. públ.
Educ., Rio de Janeiro, v.22, n. 83, p. 263-294, abr./jun. 2014.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ensaio/a/QQXPb5SbP54VJtpmvThLBTc/
?lang=pt&format=pdf Acesso em: 10 jun. 2022

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular.

230
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Brasília: MEC, 2018. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 26 fev. 2022

COELHO, Clarissa Nascimento. Relacionamento abusivo: os tipos de


violência e a proteção oferecida às vítimas no ordenamento jurídico
brasileiro. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF, 2021. Disponível em:
https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/57781/relaciona
mento-abusivo-os-tipos-de-violncia-e-a-proteo-oferecida-s-vtimas-
no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 05 abr. 2022.

DIOTTO, Nariel; SOUTO, Raquel Buzatti. Aspectos históricos e


legais sobre a cultura do estupro no Brasil. XIII Seminário
Internacional. Demandas sociais e políticas públicas na
sociedade contemporânea. UNISC, 2016. Disponível em:
https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/article/do
wnload/15867/3764 Acesso em: 03 abr. 2022.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência


contra mulheres em 2021. Projeto Gráfico: Oficina 22, 2022.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf
Acesso em: 22 mar. 2022

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E


ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua. 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101707_inform
ativo.pdf Acesso em: 03 jun. 2022.

_____________ Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das


mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas: Informação Demográfica
e Socioeconômica. n.38. 2 ed., 2021. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_inform

231
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ativo.pdf Acesso em: 03 jun. 2022.

LEMOS, Ribeiro Lemos; SOUZA, Caroline R. do Carmo de.


Interseccionalidade e feminismo negro: a violência contra a mulher
não é apenas uma questão de gênero. ANAIS – 21ª SEMOC, Salvador,
22 a 26 de outubro de 2018. Disponível em:
http://ri.ucsal.br:8080/jspui/bitstream/prefix/1047/1/INTERSEC
CIONALIDADE%20E%20FEMINISMO%20NEGRO.pdf Acesso
em: 10 abr. 2022

MARÇAL, Leonardo. Igualdade de gênero no ambiente escolar.


Revista Educação Pública, v. 19, nº 21, 17 de setembro de 2019.
Disponível em:
https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/19/21/igualdade-de-
genero-no-ambiente-escolar Acesso em: 24 mar. 2022.

NOLASCO, Loreci Gottschalk. Mulheres na política: entraves e


conquistas. Revista Jurídica. Unigran, 2010. Disponível em:
https://www.unigran.br/dourados/revista_juridica/ed_anteriores/2
3/artigos/artigo05.pdf Acesso em: 06 abr. 2022.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).


Transformando Nosso Mundo: a agenda 2030 para o
desenvolvimento sustentável. 2016. Disponível em:
https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/Brasil_Amigo_P
esso_Idosa/Agenda2030.pdf Acesso em: 24 mar. 2022.

SEBRAE – SERVIÇO DE APOIO AS MICRO E PEQUENAS


EMPRESAS. Empreendedorismo Feminino no Brasil. 2021.
Disponível em: https://www.sebraepr.com.br/wp-
content/uploads/Empreendedorismo-Feminino-ate-III-
trim_2020.pdf Acesso em: 03 jun. 2022.

232
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

SILVA, André Luiz dos S. Imperativos da beleza: corpo feminino,


cultura fitness e a nova eugenia. Cad. Cedes, Campinas, vol. 32, n.
87, p. 211-222, maio-ago. 2012. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ccedes/a/9C8grqxPHkMjt6mBZLXZn5s/
?format=pdf&lang=pt Acesso em: 23 mar. 2022.

233
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

234
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 10

USO DO BANHEIRO POR TRANSEXUAIS: A


RESPONSABILIDADE CIVIL PELO DESRESPEITO À
IDENTIDADE DE GÊNERO / BATHROOM USE BY
TRANSEXUALS: CIVIL RESPONSIBILITY FOR
DISRESPECTING GENDER IDENTITY

Sérgio José Barbosa Júnior1

Resumo: O presente trabalho analisa a possibilidade de


responsabilização civil de agentes lesivos que violam o direito de uso
do banheiro por transexuais conforme a sua identidade de gênero. De
início, investiga-se a repercussão internacional do direito à identidade
de gênero, compreendendo como esse direito está materializado em
normatizações internacionais e em posicionamentos doutrinários,
além de verificar quais são os principais instrumentos normativos
protetores desse direito. Em seguida, analisam-se as bases da
responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro, de modo a
identificar os elementos indispensáveis para a caracterização da
responsabilidade de um determinado agente lesivo. No terceiro
tópico, averigua-se a proteção da temática pelo judiciário nacional, de
forma a compreender como os julgadores se posicionam em relação
às violações ligadas ao direito à identidade de gênero e quais são os
fundamentos que baseiam as decisões por eles tomadas. A
metodologia deste trabalho norteou-se pela pesquisa qualitativa

1Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes, em Aracaju/SE,


Brasil. Especialista em Direito Civil e Processo Civil.
http://lattes.cnpq.br/7725961263025913. https://orcid.org/0000-0001-8566-
5295. sergiojbjr@gmail.com

235
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

exploratória, utilizando a revisão bibliográfica, legislativa e


jurisprudencial como base dos estudos. Dentre as referências
utilizadas, destacam-se as pesquisas desenvolvidas por Alvorado
(2020), Cavalieri Filho (2010) e Diniz (2010); além da utilização de
legislação nacional e internacional, como Brasil (1988; 2002), ONU
(1948, 2011) e OEA (2013); e de decisões jurisprudenciais, como
Brasil (2014). Verificou-se, por fim, que o direito à identidade de
gênero é um direito humano reconhecido nacional e
internacionalmente. No entanto, verificou-se também que esse direito
está sendo rotineiramente violado, de modo que a proteção do
judiciário se torna cada dia mais importante tanto para a preservação
do direito dos transexuais de utilizar o banheiro de acordo com a sua
identidade de gênero, quanto para a devida responsabilização de quem
viole esse direito humano.

Palavras-chave: Direitos humanos; Transexualidade; Identidade de


gênero; Uso do banheiro; Responsabilidade civil.

Abstract: The present work analyzes the possibility of civil liability


of harmful agents who violate the right to use the bathroom by
transsexuals according to their gender identity. Initially, the
international repercussion of the right to gender identity is
investigated, understanding how this right is materialized in
international norms and doctrinal positions, in addition to verifying
which are the main normative instruments that protect this right.
Then, the bases of civil liability in the Brazilian legal system are
analyzed, in order to identify the indispensable elements for the
characterization of the responsibility of a certain harmful agent. In
the third topic, the protection of the theme by the national judiciary
is investigated, in order to understand how the judges position
themselves in relation to violations related to the right to gender
identity and what are the foundations that base the decisions made by
them. The methodology of this work was guided by exploratory
qualitative research, using the bibliographic, legislative and

236
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

jurisprudential review as a basis for the studies. Among the references


used, the research developed by Alvorado (2020), Cavalieri Filho
(2010) and Diniz (2010); in addition to the use of national and
international legislation, such as Brasil (1988; 2002), ONU (1948,
2011) and OEA (2013); and jurisprudential decisions, such as Brasil
(2014). Finally, it was found that the right to gender identity is a
nationally and internationally recognized human right. However, it
was also found that this right is being routinely violated, so that the
protection of the judiciary becomes increasingly important both for
the preservation of the right of transsexuals to use the bathroom
according to their gender identity, as well as for the due accountability
of those who violate this human right.
Keywords: Human rights; transsexuality; Gender identity; Use of the
bathroom; Civil responsibility.

INTRODUÇÃO
O estudo dos direitos ligados à sexualidade constitui elemento
essencial para a preservação de um estado democrático de direito.
Dentro os direitos existentes, deve-se destacar o direito à identidade
de gênero, que recentemente tem ganhado evidência nos noticiários
do país. Uma questão que merece enfoque diz respeito ao uso do
banheiro por transexuais conforme a sua identidade de gênero, fato
que ainda gera bastante polêmica na sociedade brasileira,
principalmente entre os grupos mais conversadores. O presente
trabalho pretende analisar a possibilidade de responsabilização
daqueles que impedem os transexuais de utilizarem o banheiro

237
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

conforme a sua identidade de gênero. Para que isso seja possível, será
necessária a passagem por alguns pressupostos essenciais à
caracterização dessa responsabilização.
O primeiro tópico da pesquisa será dedicado ao estudo do
direito à identidade de gênero como direito humano. Por meio da
análise de instrumentos normativos internacionais, a pesquisa buscará
compreender se esse direito tem respaldo em normas editadas por
organismos internacionais de proteção aos direitos humanos, como a
Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados
Americanos. Sendo verificado que o direito à identidade de gênero
tem respaldo em dispositivos internacionais, restará comprovado a
vertente humana do direito objeto desta pesquisa.
O segundo tópico se dedicará ao estudo dos elementos
basilares da responsabilidade civil brasileira. Norteando-se pelos
doutrinadores clássicos, o presente estudo investigará as etapas
exigidas pela doutrina e pela legislação brasileira para a caracterização
de uma responsabilização judicial na esfera cível. Serão averiguadas
ainda as possíveis formas de lesões causadas por um ato lesivo, de
modo a identificar qual será a lesão causada por uma possível violação
ao direito à identidade de gênero.
Por fim, o terceiro tópico se destinará à análise de
posicionamentos jurisprudenciais acerca da responsabilização civil
por violação do direito à identidade de gênero. Averiguando decisões

238
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

tomadas por diferentes tribunais brasileiros, o estudo buscará


compreender como o judiciário reage às demandas relativas ao tema
em estudo, de forma a identificar os fundamentos utilizados para
justificar a decisão proferida no caso. Munida de todos os dados
levantados durante os três tópicos do estudo, a pesquisa será capaz de
afirmar se é possível enquadrar o direito à identidade de gênero como
um direito humano e se a sua violação pode gerar a responsabilização
civil do agente lesivo.

1. O DIREITO HUMANO À IDENTIDADE DE GÊNERO

Os direitos humanos compreendem um grupo de bens


jurídicos basilares à existência minimamente digna que garanta o
exercício das liberdades e direitos inerentes à própria condição de
existência humana. Esse rol de direitos foi organizado inicialmente
pela Organização das Nações Unidas - ONU em 1948, momento em
que foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(ONU, 1948). O artigo primeiro da referida legislação determina que
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com
os outros em espírito de fraternidade” (ONU, 1948). Com base nessa
determinação inicial, a Organização das Nações Unidas inicia um
movimento de regulação dos diversos direitos humanos reconhecidos

239
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pela jurisdição internacional.


No que se refere aos direito ligados ao sexo do indivíduo, o
seu reconhecimento como direito humano legalmente previsto e
regulado ocorreu com a aprovação da própria Declaração, haja vista o
seu artigo 2º (ONU, 1948) determinar que todos os seres humanos
podem invocar os direitos previstos na Declaração independente do
seu sexo. A partir desse momento, os direitos vinculados às questões
sexuais passaram ao status de direitos humanos legalmente
reconhecidos pelos estados membros signatários.
Por mais que esse precedente legal já norteasse as decisões da
ONU contra as discriminações por identidade de gênero, a ausência
de previsão expressa em normas internacionais dificultava a proteção
desse direito humano. Com a finalidade de regulamentar a proteção
do direito à identidade de gênero, algumas normas foram sendo
publicadas ao longo dos anos, de modo a criar uma estrutura jurídica
protetora do direito à identidade de gênero.
No entanto, antes de prosseguir com a análise normativa,
deve-se esclarecer alguns pontos referente à sexualidade humana. Os
membros da comunidade LGBT são vítimas históricas do preconceito
social. Isso se deve ao fato de essas pessoas não atenderem às
exigências de papéis sociais pré-definidos do que seja um homem e
uma mulher. Além disso, deve-se esclarecer que os termos sexo
biológico, identidade de gênero e orientação sexual são circunstâncias

240
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

distintas que merecem um breve esclarecimento. Sexo biológico está


ligado à percepção das outras em relação às genitálias de uma
determinada pessoa. Já a identidade de gênero se refere à congruência
ou divergência entre o sexo biológico e a percepção da própria pessoa
sobre o seu pertenciamento ao papel social daquele sexo biológico,
sendo transexual aquele que se identifica com o do sexo oposto ao seu
biológico. Por fim, a orientação sexual tem ligação com a atração
sexual da pessoa com alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto
(ALVARADO, 2020).
Esclarecida essa diferença conceitual, torna-se possível a
análise dos instrumentos normativos dedicados ao tema em estudo.
Em 2006, pesquisadores dedicados ao estudo dos direitos humanos,
reunidos na cidade de Yogyakarta - Indonésia, publicaram uma lista
de princípios que fundamentam a proteção dos direitos ligados à
sexualidade (ALAMINO; DEL VECCHIO, 2018). O documento que
compilava essa lista foi como Princípios de Yogyakarta . Esses
princípios reforçam os direitos da população LGBTQIAP+,
principalmente os ligados à sexualidade, à liberdade, à proteção e à
vida (PRINCÍPIOS, 2006). Pode-se afirmar que foi um marco para a
fundamentação da proteção à identidade de gênero.
Outro momento protetivo dos direitos humanos ligados à
sexualidade foi quando o Conselho de Direitos Humanos da ONU
aprovou a Resolução 17/19 (ONU, 2011) sobre direitos humanos,

241
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

orientação sexual e identidade de gênero, a qual traz em seu texto uma


séria preocupação com as violações à identidade de gênero
rotineiramente vivenciadas ao redor do planeta. Como alternativa para
a solução, solicitava a elaboração de estudo sobre as violações
verificadas nos país observados e após, com base nos resultados
obtidos, a realização de reuniões oficiais para encontrar uma forma de
reverter esse cenário de violências.
Ainda em 2011, o Parlamento Europeu aprovou Resolução
sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero nas
Nações Unidas (UNIÃO EUROPEIA, 2011), que reafirma a
proteção e garantia dos direitos humanos ligados à sexualidade. Em
seu item 13, a Resolução repreende veementemente a patologização
da temática em alguns países, afirmando que:
13. Condena muito firmemente o fato de que
a homossexualidade, a bissexualidade ou a
transexualidade sejam vistas ainda por certos
países, inclusive na UE, como uma doença
mental, e solicita aos diferentes Estados que
lutem contra este fenômeno; solicita, em
especial, a despsiquiatrização do percurso
transexual e transgênero, a livre escolha da
equipe de tratamento, a simplificação da
mudança de identidade e a cobertura pela
Segurança Social. (UNIÃO EUROPEIA,
2011)

Por fim, merece destaque a Convenção Interamericana contra

242
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, aprovada pela


Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos - OEA
em 2013. No item 1 da Convenção (OEA, 2013), a norma deixa claro
que o termo discriminação se refere a qualquer atitude contrária ao
reconhecimento, gozo ou exercício dos direitos humanos e garantias
fundamentais reconhecidos em normas de caráter internacional. A
proteção aos direitos humanos ligados à sexualidade está expressa
nesse mesmo item quando ele informa que:
A discriminação pode basear-se em
nacionalidade, idade, sexo, orientação sexual,
identidade e expressão de gênero, idioma, religião,
identidade cultural, opinião política ou de
outra natureza, origem social, posição
socioeconômica, nível educacional, condição
de migrante, refugiado, repatriado, apátrida
ou deslocado interno, deficiência,
característica genética, estado de saúde física
ou mental, inclusive infectocontagioso, e
condição psíquica incapacitante, ou qualquer
outra condição (OEA, 2013, grifo nosso).

Dessa maneira, fica comprovado que o direito à identidade de


gênero é um direito humano reconhecido e regulamentado, de forma
que a sua proteção deve ser garantida pelos estados signatários das
referidas normas internacionais. Antes de analisar a possibilidade de
responsabilização de um agente, faz-se mister compreender quais são
os pressupostos da responsabilidade civil no direito brasileira,

243
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

atividade que será realizada no tópico a seguir.

2. AS BASES DA RESPONSABILIDADE CIVIL BRASILEIRA

O ordenamento pátrio é constituído por diversos ramos que


protegem as variadas relações jurídicas realizadas no território
brasileiro. Dentre as inúmeras regras impostas socialmente, destacam-
se as normas ligadas à Responsabilidade Civil, as quais determinam
que será responsabilizado aquele que, por sua ação ou omissão, causar
danos a outrem.
De acordo com Dias (2006), a responsabilidade compreende
a circunstância de alguém se ver obrigado a suportar as consequências
nefastas de suas atitudes, as quais lesaram a esfera jurídica de outra
pessoa e demandam a devida reparação. Esse conceito explicita a
obrigação jurídica de restaurar a esfera jurídica daquele que teve sua
vida lesada por outrem. Stoco (2007) destaca que a responsabilização
de um indivíduo é a decorrência natural de sua atitude antijurídica.
Conforme o autor explica, esse fato só ocorre devido ao desrespeito
à norma, a qual exige que todos atuem de forma colaborativa e não
lesiva. Ao violar a esfera jurídica de alguém, o agente lesivo se
converterá em agente responsável pela reparação dos danos.
Sobre a importância do restabelecimento da harmonia social
por meio da responsabilização, importante se torna a ênfase aos

244
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ensinamentos de Cavalieri Filho (2010, p. 13), o qual explica que:


O dano causado pelo ato ilícito rompe o
equilíbrio jurídico-econômico anteriormente
existente entre o agente e a vítima. Há uma
necessidade fundamental de se restabelecer
esse equilíbrio, o que se procura fazer
recolocando o prejudicado no status quo ante.
Impera neste campo o princípio da restitutio
in integrum, isto é, tanto quanto possível,
repõe-se a vítima à situação anterior à lesão.

No que tange à legislação pátria, a base da Responsabilidade


Civil se encontra na Constituição Federal (BRASIL, 1988), a qual, em
seu artigo 5º, incisos V e X, assegura o direito à indenização por dano
material, moral e à imagem. Em relação à legislação
infraconstitucional, o Código Civil disciplina a questão em seu artigo
186 nos seguintes termos: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”
(BRASIL, 2002). Da leitura do texto supracitado, observa-se que a
legislação vai ao encontro da Carta Magna quando prevê a
responsabilização daquele que causar dano a outrem. No entanto, para
que o agente possa ser responsabilizado por uma determinada atitude,
faz-se mister a verificação dos elementos que consubstanciam a
responsabilidade civil no Brasil.
Para iniciar a caracterização da responsabilização civil, deve-se

245
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

verificar a presença do elemento basilar, qual seja, a ação ou conduta


do agente. Diniz (2010, p. 40) aborda didaticamente o assunto quando
explica que:
A ação, elemento constitutivo da
responsabilidade, vem a ser o ato humano,
comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito,
voluntário e objetivamente imputável, do
próprio agente ou de terceiro, ou fato de
animal ou coisa inanimada, que cause dano a
outrem, gerando o dever de satisfazer os
direitos do lesado.

Consoante a doutrina mencionada, observa-se que o início da


caracterização da responsabilidade civil passa necessariamente pela
verificação da ação do agente lesivo. Essa ação pode ser com ou sem
intenção, legal ou ilegal, voluntária ou punível de forma objetiva,
realizada pelo agente ou de algo sob sua responsabilidade, que pode
ser um animal, uma coisa ou até outra pessoa. Abordando o mesmo
elemento, Stoco (2007) menciona que a conduta voluntária não é
necessariamente aquela na qual há uma intenção de obter uma
consequência específica e determinada. A voluntariedade exigida pode
decorrer de uma conduta eivada de imperícia, imprudência ou
negligência, que, respectivamente, seria aquela exercida sem o
conhecimento técnico adequado, aquela derivada de uma ação
perigosa ou aquela executada sem as precauções ordinariamente
exigíveis.

246
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Constatada a presença da ação ou conduta, torna-se possível


a análise do elemento seguinte: a culpa ou o risco. A culpa aqui
mencionada se refere à culpa lato sensu, que engloba o dolo e a culpa
stricto sensu. Verifica-se o dolo quando o agente, consciente de sua
obrigação e das restrições dela derivadas, atua provocando a violação
do direito de outrem. A culpa stricto sensu, por sua vez, ocorre quando
o agente lesiona outrem sem os devidos cuidados exigidos pela lei
(DIAS, 2006).
O risco diz respeito ao dano em potencial que uma
determinada atividade pode causar na sociedade. O responsável pela
atividade potencialmente arriscada será responsabilizado à restauração
do status quo caso o dano venha a ser verificado no caso concreto.
Deve-se enfatizar que a referida responsabilização independe da
comprovação da culpa, bastando a demonstração da ação e do nexo
entre esta e o dano verificado. Ressalte-se, ainda, que há diversas
modalidades dentro desse elemento: o risco-proveito, o risco
profissional, o risco excepcional, o risco criado e, por fim, o risco
integral (CAVALIERI FILHO, 2010).
Deve-se destacar, ainda, que o Código de Defesa do
Consumidor, ao disciplinar a responsabilidade civil dos fornecedores
de serviço, prevê a responsabilização independente da culpa,
circunstância derivada da teoria do risco-proveito. Conforme previsto
no artigo 14 do código consumerista:

247
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Art. 14. O fornecedor de serviços responde,


independentemente da existência de culpa,
pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à
prestação dos serviços, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua fruição e riscos (BRASIL, 1990).

Superado o segundo elemento, passa-se à averiguação da


ocorrência do terceiro elemento da responsabilidade civil: o nexo de
causalidade. Schreiber (2009) esclarece que o nexo exigido na
legislação pátria se refere ao liame entre a ação do agente lesivo e o
dano sofrido pela vítima, sendo um lado consequência direta do outro.
Várias foram as teorias que tentaram explicar a formação do presente
elemento, destacando-se as seguintes: Teoria da Equivalência dos
Antecedentes Causais, Teoria da Causa Próxima, Teoria da
Causalidade Adequada, Teoria do Escopo da Norma Jurídica Violada,
Teoria da Ação Humana e a Teoria do Dano Direto e Imediato
(CRUZ, 2005).
Para solidificar a compreensão desse elemento, mostra-se
importante destacar os ensinamentos de Diniz (2010, p. 111), a qual
enxerga o nexo como:
O vínculo entre o prejuízo e a ação [...], de
modo que o fato lesivo deverá ser oriundo da
ação, diretamente ou como sua consequência
previsível. Tal nexo representa, portanto,
uma relação necessária entre o evento danoso

248
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

e a ação que o produziu, de tal sorte que esta


é considerada como sua causa. Todavia, não
será necessário que o dano resulte apenas
imediatamente do fato que o produziu.
Bastará que se verifique que o dano não
ocorreria se o fato não tivesse acontecido.
Este poderá não ser a causa imediata, mas, se
for condição para a produção do dano, o
agente responderá pela consequência.

Concluídas as verificações anteriores, chega-se ao último


elemento da responsabilidade civil, ou seja, o dano. Abordando a
temática, Dias (2006) lembra que dano e responsabilidade civil são
circunstâncias interdependentes, pois não haverá o que reparar se não
houver dano a ser verificado no caso concreto. Aponte-se, ainda, que
o dano deve se referir à lesão de um bem da vida juridicamente
protegido pelo ordenamento. Nesse mesmo sentido está Schreiber
(2009), quando explica que o dano reparável é aquele decorrente da
violação a um bem jurídico tutelado pelo estado. Verificada a
antijuridicidade da conduta que lesou um direito, demonstrada estará
a possibilidade de se aplicar uma sanção contra o agente lesivo, de
forma a restar apenas a comprovação do prejuízo auferido para
concretizar a responsabilidade civil do autor da conduta.
O dano pode se manifestar essencialmente em duas
modalidades, quais sejam, o dano material e o moral. O dano material
está diretamente relacionado às perdas efetivamente verificadas no

249
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

patrimônio daquele que sofreu as consequências da conduta lesiva.


Esse dano:
Atinge os bens integrantes do patrimônio da
vítima, entendendo-se como tal o conjunto
de relações jurídicas de uma pessoa
apreciáveis economicamente. Esta definição
[...] tem o mérito de abranger todos os bens
e direitos na expressão conjunto das relações
jurídicas, vale dizer, abrange não só as coisas
corpóreas, como a casa, o automóvel, o livro,
enfim, o direito de propriedade, mas também
as coisas incorpóreas, como os direitos de
crédito (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 73).

O dano moral, por sua vez, diz respeito às lesões nos direitos
personalíssimos da vítima. Esses direitos relacionam-se
essencialmente à honra objetiva e subjetiva daquele sobre o qual
recaíram as consequências da ação antijurídica. Abordando esse
assunto, Pereira (2002, p. 54) aponta o seguinte:
O fundamento da reparabilidade pelo dano
moral está em que, a par do patrimônio em
sentido técnico, o indivíduo é titular de
direitos integrantes de sua personalidade, não
podendo conformar-se a ordem jurídica em
que sejam impunemente atingidos.
Colocando a questão em termos de maior
amplitude, Savatier oferece uma definição de
dano moral como “qualquer sofrimento
humano que não é causado por uma perda
pecuniária”, e abrange todo atentado à

250
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

reputação da vítima, à sua autoridade


legítima, ao seu pudor, à sua segurança e
tranqüilidade, ao seu amor-próprio estético, à
integridade de sua inteligência, a suas
afeições etc.

Dessa forma, restou demonstrada a possibilidade de reparação


do dano derivado da conduta antijurídica do agente
independentemente se as consequências são verificadas na esfera
moral ou patrimonial da vítima. Concluída a análise dos quatro
elementos da responsabilidade civil, mostra-se possível a verificação
da responsabilização civil de agentes que impedem um transexual de
usar o banheiro de acordo com a sua identidade de gênero.

3. A RESPONSABILIZAÇÃO PELO DESRESPEITO À


IDENTIDADE DE GÊNERO NO USO DO BANHEIRO

Nos tópicos anteriores, o estudo verificou tanto a esfera


humanitária do direito à identidade de gênero, quanto as bases legais
para a responsabilização civil no ordenamento pátrio. Partindo desses
pressupostos teóricos, torna-se possível verificar como a proibição do
uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero dos
transexuais pode gerar o direito à indenização pelos danos sofridos
por essas pessoas.
Em uma simples consulta na internet utilizando os termos

251
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

“transexual é impedido de usar banheiro”, verifica-se a existência de


inúmeras páginas virtuais relatando casos de pessoa transexual
impedida de usar o banheiro de acordo com a sua identidade de
gênero. Um caso recente no estado de Pernambuco é relatado pela
reportagem do jornal eletrônico IstoÉ (2021), segundo o qual uma
adolescente trans teria sido impedida de utilizar o banheiro do colégio
em que estava matriculada. Segundo relatado pela jovem, além de ser
impedida aos gritos de adentrar ao banheiro feminino, ela ainda foi
suspensa das atividades escolares que estavam sendo realizadas no
local.
Outro caso verificado na pesquisa diz respeito ao retratado
pelo jornal eletrônico G1 (2022). De acordo com a reportagem, uma
ativista transexual foi impedida de usar o banheiro do aeroporto de
acordo com a sua identidade de gênero, sendo obrigada a utilizar o
banheiro das pessoas com deficiência. Conforme relata na matéria, o
impedimento gerou um constrangimento, de modo que ela ficou
alguns minutos no banheiro recompondo a sua estabilidade
emocional. Relata também que, ao sair do banheiro das pessoas com
deficiência, o seu voo já estava na última chamada e por pouco não
perde o embarque.
As situações narradas são apenas alguns exemplos dos
inúmeros casos encontrados nessa simples pesquisa na internet. Por
mais que as violações aos direitos humanos sejam rotineiras no país,

252
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

o Estado não pode aceitar a sua reiteração sem a devida reprimenda


judicial. Nesse sentido, alguns tribunais já foram instados a se
manifestar sobre violações semelhantes às narradas acima, sendo
essencial para o presente estudo a análise das decisões proferidas nos
casos levados a juízo. De antemão, deve-se esclarecer que o número
do processo judicial dos casos não será mencionado no presente
trabalho para preservar a intimidade das partes envolvidas.
O primeiro caso a ser analisado diz respeito a uma transexual
que foi impedida de usar o banheiro feminino por não apresentar
documento de identificação comprovando a alteração do nome e
gênero em seu registro civil. Ao negar o acesso ao referido
documento, a mulher transexual foi impedida de ingressar no
banheiro ao qual se direcionava. Destacou que toda a abordagem dos
seguranças foi grosseira e desrespeitosa. Ao julgar a demanda, o
desembargador reconheceu que houve “violação ao direito ao respeito
à identidade de gênero e, como via reflexa, à dignidade da pessoa
humana” (IBDFAM, 2022), condenando a parte demandada ao
pagamento de indenização de danos morais à vítima.
Outro caso que merece destaque é o de uma transexual que
foi impedida de utilizar o banheiro localizado em uma estação de trem.
De acordo com as informações relatadas nos autos, a mulher
transexual foi impedida de utilizar o banheiro de acordo com a sua
identidade de gênero. Ressaltou que a situação permaneceu mesmo

253
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

depois de ter mostrado a sua identidade civil, na qual constava o nome


e o gênero feminino. Ao apreciar o caso, o juiz federal entendeu que
houve violação dos direitos da parte demandante, afirmando que,
"sendo a autora transgênero, não poderia ser abordada para que se
retirasse do banheiro feminino, tendo ocorrido uma abordagem
indevida e discriminatória, uma vez que a autora possuía o direito de
usar o banheiro feminino" (IBDFAM, 2020). Por fim, o juiz condenou
a parte demandada ao pagamento de danos morais. Observa-se neste
caso que a violação de gênero ocorre mesmo quando a vítima já tem
posse de documentação de identificação com gênero atualizado.
Julgados semelhantes também são encontrados na justiça do
trabalho. Segundo foi relatado no processo judicial, uma mulher
transexual, empregada de uma empresa terceirizada, foi impedida de
utilizar o banheiro feminino do seu novo local de trabalho. Ela relatou
nos autos que estava habituada a sempre utilizar o banheiro feminino
nos locais em que trabalhava em nome da empresa terceirizada. No
entanto, ao ser transferida para o novo local, o seu supervisor vetou a
utilização do banheiro feminino, exigindo que ela usasse apenas o
masculino (TRT1, 2018). Ao examinar a demanda, o juiz reconheceu
a violação ao direito à identidade de gênero, informando que:
Com efeito, a dignidade humana é vetor
axiológico do ordenamento pátrio, tendo
sido alçada a verdadeiro valor supremo da
Constituição (art. 1º, III), a qual permanece

254
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

plena inclusive durante o vínculo


empregatício (...). Nesse sentido, não se pode
olvidar que o valor social do trabalho
também foi erigido a fundamento da
República (...), decorrendo necessariamente
disso que o tratamento dispensado aos
empregados pelos seus gestores diretos e
colegas deve ser digno e respeitoso, inclusive
em relação à questão de gênero. Esse
tratamento nunca pode ser preconceituoso,
discriminatório, ofensivo, grosseiro,
extremado ou indiferente, valendo lembrar
que o empregado permanece detentor de
seus direitos fundamentais ao ser contratado
para trabalhar (TRT1, 2018).
Por fim, merece destaque o caso que chegou à análise do
Supremo Tribunal Federal - STF. De acordo com o informado nos
autos, uma mulher transexual foi impedida de usar o banheiro
feminino pelos seguranças do shopping. Segundo a autora da
demanda, ela estaria necessitando utilizar o banheiro com urgência,
mas, devido às contínuas negativas dos seguranças, não conseguiu
acessar o banheiro público feminino do estabelecimento. Alega
também que tentou encontrar um banheiro em algumas das lojas do
local, sem, no entanto, lograr êxito nesse intento. Afirmou, por fim,
que o obstáculo provocado pelos seguranças gerou um
constrangimento ainda maior: ela se urinou no meio do shopping por
não mais conseguir segurar a urina (BRASIL, 2014).
A temática foi avaliada pelo STF em 2014. Na época, aos

255
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ministros caberia a função de analisar a presença de repercussão geral


que justificasse a conhecimento do mérito da demanda. O relator
proferiu parecer favorável ao reconhecimento da repercussão geral,
de modo a permitir a análise do mérito pela Corte Constitucional. De
acordo com as palavras do Relator (BRASIL, 2014):
O caso em questão, no entanto, é
qualitativamente distinto dos referidos
precedentes, porque envolve a projeção
social da identidade sexual do indivíduo,
aspecto diretamente ligado à dignidade da
pessoa humana e a diversos direitos da
personalidade (CRFB/1988, arts. 1º, III, e 5º,
V e X). [...] Além disso, o debate apresenta
repercussão geral, especialmente do ponto de
vista social e jurídico. Em primeiro lugar, [...]
A essencialidade do tema e seu impacto no
tratamento social dos grupos afetados, por si
sós, já justificariam a necessidade do
pronunciamento do Supremo Tribunal
Federal. Em segundo lugar, o caso em
questão não é isolado: [...] Assim, a decisão a
ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal
poderá definir o padrão de conduta
adequado em casos da espécie, orientando
não só as partes diretamente envolvidas,
como as demais instâncias do Judiciário.

A repercussão geral do caso foi reconhecida pela maioria dos


ministros, de modo a tornar apto o conhecimento do mérito pelo
plenário do Supremo Tribunal Federal. Por mais que essa decisão

256
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

tenha criado um precedente excepcional para a proteção dos direitos


ligados à sexualidade no Brasil, a análise do mérito ainda não ocorreu,
restando aos pesquisadores da temática, enquanto aguardam o
posicionamento final da Corte, a luta pela garantia do direito humano
à identidade de gênero baseada na jurisprudência indicada neste
tópico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento da identidade de gênero como direito


humano é uma etapa essencial para a garantia desse direito nos
ordenamentos jurídicos ao redor do planeta. Conforme verificado no
primeiro tópico da pesquisa, os direitos ligados à sexualidade estão
reconhecidos, regulamentados e protegidos pelos instrumentos
normativos editados por organismos internacionais de proteção aos
direitos humanos, como a Organização das Nações Unidas e a
Organização dos Estados Americanos. Por mais que não haja uma lei
especificamente editada para essa temática, os tratados, convenções,
resoluções e declarações desses órgãos já se mostram suficientes para
a garantia e proteção do direito à identidade de gênero nos países
membros.
Considerando as rotineiras lesões suportadas pelos direitos
ligados à sexualidade, foram verificados com profundidade os

257
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

elementos basilares da responsabilização civil no ordenamento


brasileiro. Norteando pelos posicionamentos doutrinários elencados
no segundo tópico desta pesquisa, tornou-se possível afirmar que o
Brasil tem legislação suficiente para exigir a reparação dos danos
sofridos pelas vítimas de atitudes contrárias ao reconhecimento do seu
direito à identidade de gênero.
Por fim, norteando-se pelos entendimentos jurisprudenciais
elencados no tópico anterior, restou comprovado que as atitudes
lesivas são devidamente repreendidas pelo judiciário. Os casos
analisados demonstram que o judiciário brasileiro caminhou no
sentido de proteger o direito humano à identidade de gênero com base
na legislação atualmente disponível e nos princípios norteadores da
justiça. Ressalte-se, ainda, que o presente trabalho não pretendeu
exaurir a temática estudada; ao contrário, deve ser utilizado como
ponto de partida para outros pesquisadores interessados em se
aprofundar em temas específicos ligados aos direito humano à
identidade de gênero.

REFERÊNCIAS

ALAMINO, Felipe Nicolau Pimentel; DEL VECCHIO, Victor


Antonio. Os Princípios de Yogyakarta e a proteção de direitos
fundamentais das minorias de orientação sexual e de identidade de
gênero. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São

258
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Paulo, [S. l.], v. 113, p. 645-668, 2018. Disponível em:


https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/156674. Acesso
em: 20 jul. 2022.

ALVARADO, Jota Vargas. Las personas trans y el mecanismo de


alternancia electoral a la luz de la OC-24/17. Revista Derecho
Electoral, San José/Costa Rica, n. 30, p. 189-208, 2020. Disponível
em: https://www.tse.go.cr/revista/art/30/vargas_alvarado.pdf.
Acesso em: 20 jul. 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05


de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
. Acesso em: 18 jul. 2022.

BRASIL. Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a


proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm.
Acesso em: 18 jul. 2022.

BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código


Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.ht
m. Acesso em: 18 jul. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no


Recurso Extraordinário n.º 845.779 de Santa Catarina. Relator: Min.
Luís Roberto Barroso. 13 nov. 2014. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do
cID=7971144. Acesso em: 20 jul. 2022.

TRT1 - Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região. Empresa


é Condenada a Indenizar Transexual Proibida de Usar Banheiro
Feminino. 16 jul. 2018. Disponível em:

259
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

https://www.trt1.jus.br/ultimas-noticias/-
/asset_publisher/IpQvDk7pXBme/content/-empresa-e-
condenada-a-indenizar-transexual-proibida-de-usar-banheiro-
feminino/21078. Acesso em: 20 jul. 2022.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil.


9. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

CRUZ, Gisela Sampaio da. O problema do nexo causal na


responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de


Janeiro: Renovar, 2006.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 24. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.

G1. Ativista trans pernambucana denuncia transfobia no


Aeroporto de São Paulo. 14 mar. 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2022/03/14/pesqui
sadora-e-ativista-trans-pernambucana-denuncia-transfobia-no-
aeroporto-de-sp-me-senti-constrangida-envergonhada-disse.ghtml.
Acesso em: 20 jul. 2022.

IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Mulher trans


impedida de usar banheiro feminino deve ser indenizada,
decide TJSP. 19 maio 2022. Disponível em:
https://ibdfam.org.br/noticias/9680/Mulher+trans+impedida+de+
usar+banheiro+feminino+deve+ser+indenizada%2C+decide+TJSP
#:~:text=A%20decis%C3%A3o%20un%C3%A2nime%20%C3%A
9%20da,de%20nome%20e%20de%20sexo. Acesso em: 20 jul. 2022.

IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família. Mulher trans


receberá indenização após ser impedida de utilizar banheiro

260
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

feminino em estação de trem. 28 out. 2020. Disponível em:


https://ibdfam.org.br/index.php/noticias/7888/Mulher+trans+rec
eber%C3%A1+indeniza%C3%A7%C3%A3o+ap%C3%B3s+ser+i
mpedida+de+utilizar+banheiro+feminino+em+esta%C3%A7%C3
%A3o+de+trem. Acesso em: 20 jul 2022.

ISTOE. Estudante trans é impedida de utilizar o banheiro


feminino em escola. 29 out. 2021. Disponível em:
https://istoe.com.br/pe-estudante-trans-e-impedida-de-utilizar-o-
banheiro-feminino-em-escola/. Acesso em: 20 jul. 2022.

OEA - Organização dos Estados Americanos. Convenção


Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância, de junho de 2013. Disponível em:
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/ConvencaoInteramerican
acontratodaformadediscriminacaoeintolerancia.pdf. Acesso em: 20
jul. 2022.

ONU - Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos


Direitos Humanos da ONU. Paris, 1948. Disponível em:
https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/por.pdf. Acesso
em: 18 jul. 2022.

ONU - Organização das Nações Unidas. Resolução 17/19 sobre


Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero,
2011. Disponível em:
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Resolucao1719ONU.pdf.
Acesso em: 20 jul. 2022.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed. Rio


de Janeiro: Forense, 2002.

PRINCÍPIOS de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação da


legislação internacional de direitos humanos em relação à

261
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, 2006.


Disponível em:
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/principiosdeyogyakarta.p
df. Acesso em: 20 jul. 2022.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade


civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2009.

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e


jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu sobre


direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero nas
Nações Unidas, de 28 de Setembro de 2011. Disponível em:
http://www.sesp.mt.gov.br/documents/4713378/11927970/Resolu
o-ONU.pdf. Acesso em: 20 jul. 2022.

262
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 11

GÊNERO: ENTRE DOBRAS E DESDOBRAMENTOS

Liliann Rose Pereira de Freitas1

Resumo: Na realização de um percurso teórico sobre determinado


tema, dialogamos com diferentes bases conceituais e com uma
multiplicidade de concepções que implicam essas discussões. Sendo
assim, é fundamental, primeiro, historicizar os caminhos pelos quais
se construiu o conceito de gênero, especialmente o processo que se
inicia com a relação entre corpo e sexo, como um dos interesses
fundamentais das ciências médicas do século XIX. Para tanto,
ancoramos nossas problematizações em Nicholson (2000); Laqueur
(2001); Butler (2003) e Foucault (1988). Entendemos que essa
discussão precisa ser problematizada, mesmo com o tanto que já se
discutiu e produziu no âmbito acadêmico. Porém, a rota adotada no
campo teórico/metodológico intenta alargar o campo de leituras e de
debates, uma vez que os notórios avanços nos estudos de gênero não
alcançaram todos os espaços e sujeitos da mesma forma.

Introdução

1
Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Especialista em História do Brasil pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Professora da Educação básica da Rede Estadual de Ensino da Paraíba e do
Município de Pocinhos/PB. Atualmente desenvolve pesquisa na área de História
Cultural com ênfase nos estudos de Gênero e Educação. liliannrosepf@gmail.com.

263
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

De forma desafiadora, os estudos de gênero abriram caminho


para novas problematizações, desnaturalizando modelos
universalizantes e, em consequência, apresentando teorizações mais
sofisticadas no tocante as diferenças sexuais. Consequentemente, o
pensamento tradicional foi sendo desestabilizado e dando lugar a
outras configurações teóricas.
Ressalte-se, todavia, que esse processo não ocorreu de forma
simplista, tampouco unilateral. Por isso é importante entender que
todas as lutas, discussões e mudanças nos foram bastante caras, pois,
muitas vezes, desconhecemos tais caminhos e, até mesmo, sua
abrangência. Talvez resida aí a necessária contextualização histórica
sobre o termo, com vistas a entendê-lo, e sua intersecção com outros
elementos que também se constituem como marcadores de diferença.
Interessa-nos, portanto, contextualizar de que forma os
caminhos, as curvas e os desvios foram atravessando as discussões
sobre gênero, até se tornarem um conceito relevante em várias áreas
do conhecimento, como objeto de investigação e inquietação. Assim,
considerando o exposto, optamos pelos começos, ou seja, pelos
conceitos. Para isso, começamos pelos anos de 1960 e 1970, que
marcaram a pulverização das discussões sobre gênero dentro dos
estudos feministas. Antes, porém,

foi entre os séculos VII e o XIX que se

264
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

desenvolveu, particularmente entre os


‘homens de ciência’, a tendência a pensar as
pessoas como matéria em movimento- seres
físicos que podem se distinguir uns aos
outros, acima de tudo, pela referência às
coordenadas espaciais e temporais que eles
ocupam (NICHOLSON, 2000, p. 15).

Tal como o gênero, o sexo também tem sua história, por ser
“produto de momentos específicos, históricos e culturais”
(LAQUEUR, 2001, p. 21). Assim, situamos como nosso ponto de
partida os avanços dos estudos científicos, em grande parte, com o
intuito de desvendar a fisiologia feminina e a masculina e de apresentar
à sociedade diferentes teorias que legitimassem os marcadores de
diferenças comportamentais e sociais.
Como consequência, saberes médicos caminhavam a passos
largos para decodificar elementos que demonstrassem o nível
formativo das diferenças sexuais masculinas e femininas. Não tardou
para que aspectos físicos passassem a serem entendidos em sua
materialidade, justificados pela forma como a natureza os concebeu,
com seus significantes e tudo o que esse corpo carregava.
Isso também significava dizer que as teorias, cujo pano de
fundo era o determinismo biológico, tornavam inequívoca qualquer
fronteira que esse corpo ousasse atravessar. Manteve-se, então, uma
acentuada concepção de que o que era posto como natural (biológico)

265
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

se naturalizaria, também, nos comportamentos sexuais assumidos por


homens e mulheres. Embora a lógica cristã já assumisse esse papel há
muitos séculos, o conhecimento sobre o corpo, sob a ótica da
diferenciação sexista, foi fortemente assimilado, e o corpo, como
discurso, seria cada vez mais controlado pelas instituições, como a
família e/ou o Estado.

1 Fortemente desiguais?

A perspectiva sexista, fundamentada nos saberes médicos


constituiu num dos alicerces que não só incidiu nos comportamentos
sociais, como também forjou identidades firmadas nos aspectos
físicos que caracterizariam atitudes comportamentais tipicamente
femininas e masculinas. Considerando o contexto, “dentro dessa nova
visão de mundo, diferenças biológicas entre homens e mulheres eram
percebidas como marcas da distinção masculino/feminino do que
como sua base ou sua ‘causa’” (NICHOLSON, 2000. p. 21). O corpo
passou a ser o construto que tornaria esse organismo binário
evidenciado na “identidade sexual”, incorporada à estrutura psíquica
dos indivíduos.
Logo, o “determinismo biológico” muniu-se de base teórica
enfatizando o sexo como sustentáculo do corpo, e a lógica binária
alojou-se em estudos médicos e biológicos. Pensemos, por exemplo,

266
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

que, no final do século XVIII, a mulher não era mais vista como uma
versão inferior do homem, porquanto sua fisiologia passou a revelar,
com o estudo de seus órgãos reprodutivos, arquétipos nem mais nem
menos superiores ao corpo masculino, apenas, uma versão diminuída
dele. Foi empregada toda uma linguagem para nomear seus órgãos
genitais, para que se pudesse legitimar a oposição binária entre os
sexos (LAQUEUR, 2001).
Nesse período, a compreensão sobre sexo era monolítica, ou
seja, uma linguagem única que integrava ambos os corpos de forma
hierarquizada. “[...] os órgãos, processos e fluidos que tomamos como
diferenciadores entre corpos masculinos e femininos, eram
considerados conversíveis dentro de uma ‘economia corporal genética
de fluidos dos órgãos” (NICHOLSON, 2000, p. 19). Gradualmente,
foi se estabelecendo uma compreensão acerca dessa hierarquização,
com a mulher considerada inferior em relação aos homens, posição
justificada pela anatomia de seus órgãos. Já o pensamento médico a
concebia como uma variante imperfeita do homem, por considerar
que seu sistema reprodutivo era voltado para dentro e lhe faltavam
vigor e força (LAQUEUR, 2001).
A forma como o orgasmo era compreendido foi outro
elemento de hierarquização do desejo sexual. Laqueur (2001) afirma
que, no final do século VIII, essa sensação já era colocada à margem
das preocupações, sob o ponto de vista do conhecimento médico, já

267
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

que “foi relegado ao reino da mera sensação periferia da fisiologia


humana - acidental, dispensável, um bônus contingente do ato de
reproduzir” (LAQUEUR, 2001, p. 15). Logo, não se negava o fato de
que o orgasmo era uma consequência do prazer sexual, porém sua
importância seria diferente para homens e mulheres. Na verdade, para
a mulher, o desejo e o prazer femininos eram dispensáveis e não eram
impedimento para a concretização do ato em si. Isso nos demonstra
como a percepção sobre o sexo, para homens e mulheres, foi se
ordenando.
Nessa perspectiva, o lugar da mulher foi assimilado sob a égide
da passividade, um mero mecanismo que funcionava a depender da
vontade masculina. Os prazeres com o copo foram sendo inscritos no
universo masculino. Some-se a esse contexto o fato de a moral cristã
ocidental elastecer seu discurso colocando essa mulher como mola-
motriz no papel que, nesse caso, deveria ser de manter a família. Nos
fins do século XVIII, concebia-se que "a maioria das mulheres não se
preocupava com ‘sentimentos sexuais’, e a presença ou ausência do
orgasmo tornou-se um marco biológico na diferença sexual”
(LAQUEUR, 2001, p. 15).
Só no século XIX foi que se começou a elaborar um conceito
de sexualidade que visava compreender o significado de falar de um
corpo sexuado. Foi a partir dos estudos desenvolvidos por Freud que
a sexualidade passou a ser analisada diferentemente do sexo. Para ele,

268
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

era nas relações tracejadas, no dia a dia, que os sujeitos, ainda em sua
primeira infância, tinham suas primeiras experiências no que tange ao
desejo sexual. Freud acreditava que os problemas de ordem sexual,
acarretados durante a vida adulta, tinham raízes na infância. Porém,
essa percepção se ampliou ainda mais quando Freud somou às suas
análises o instinto sexual como algo inerente aos seres humanos e o
separou do propósito social e cristão de que todo ato sexual teria
como única finalidade a procriação. Ao contrário disso, defendia que
o sexo era natural para todos os indivíduos e perpassava as fases oral,
anal e fálica.
Claramente, essa visão da analítica freudiana colocava em
instabilidade o determinismo biológico que, dentre outras coisas,
postulava a existência dual dos corpos - masculino ou feminino -
como natureza dada e incontestável. Ao alocar o desejo sexual na
ordem do aceitável, e não, do impróprio, assentia um olhar
diferenciado sobre o que prejulgava a sociedade, e isso implicava os
comportamentos moralizantes. Essa ótica desconstrucionista de
conceber a sexualidade e o desejo sexual como fenômenos e as
implicações nos comportamentos das pessoas e suas psicopatias
destinou a Freud severas críticas, sobretudo da comunidade médica,
que não via base científica em suas teorias.
Sobre esse contexto, Foucault situa que foi na passagem do
século XVIII para o XIX que houve um desdobramento dos aspectos

269
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

que influenciavam o que ele mesmo denominou de “dispositivo da


sexualidade”, um mecanismo que se estende aos indivíduos em forma
de controle e de dominação. A reformulação do discurso sobre a
sexualidade, em termos médicos, por exemplo, significa, dentre outras
coisas, como o poder e o saber conseguem conectar indivíduo com o
grupo, com o sentido e com o controle (FOUCAULT, 1988).
Logo, esses dispositivos de saber e poder sobre o sexo são
desenvolvidos de forma a fazer com que o Estado, como poder
político e substrato da sociedade, produza mecanismos para vigiar e
controlar os copos. Podemos citar como exemplos desses
mecanismos: “a esterilização do corpo da mulher”; a “pedagogização
do sexo da criança”, a “socialização das condutas de procriação” e a
“psiquiatrização do prazer perverso” (VEIGA NETO, 2011).
Os discursos médicos sobre a sexualidade destinaram-se,
nesse período, a classificar e definir os indivíduos a partir de seus
comportamentos sexuais, intuindo estabelecer formas de controle
dessa sexualidade cada vez mais dinamizados na vigilância de seus
corpos. Ao mesmo tempo em que se definia como “perversões” as
sexualidades, concebia-se o inverso, ou seja, o que deveria ser um
comportamento sexual moralmente aceito. Esse discurso médico agia
de forma poderosa não só por classificar, mas também por explicar
os motores que moviam as engrenagens do sexo.
Essa expansão do biopoder assevera como os saberes

270
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

conferidos ao discurso médico (poder-saber) são enviesados por redes


de controle sobre a vida dos indivíduos, dos grupos e das populações
presentes na Pedagogia, na Medicina e na Demografia (FOUCAULT,
1988). Basta-nos lembrar o discurso médico higienista, que marcou
profundamente a política educacional no Brasil, especialmente
voltado para a “educação sexual” até meados dos anos 1960, o que,
mais adiante, abordaremos com mais acuidade.
Com efeito, a sexualidade foi se tornando um campo
discursivo na construção das identidades dos indivíduos, seja nos
princípios fundamentados na reprodução ou nos valores institucionais,
familiares e cristãos, mas seguindo os princípios que norteiam a
heteronormatividade, com lugares distintos entre homens e mulheres.
Então, em que momento temos a oposição a sexo/gênero a partir da
desconstrução do binarismo? Ou em que medida se afastou da
perspectiva fincada no determinismo biológico para uma lógica mais
abrangente do próprio conceito de gênero?

2 Quando novos olhares surgem

Ao refletir sobre as origens do conceito de gênero em


oposição a sexo, Linda Nicholson (2000) assevera que os binarismos
não foram propriamente desconsiderados. A crítica da autora repousa
no fato de que a dicotomia natureza-cultura, como base da construção

271
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

social do gênero e do sexo e como uma representação do gênero,


esteve presente no pensamento feminista ocidental. Nesse sentido,
ratifica:
.
[...] o gênero foi desenvolvido e é sempre
usado em oposição a ‘sexo’ ao que é, para
descrever o que é socialmente construído, em
oposição ao que é biologicamente dado. Do
outro lado, ‘gênero’ tem sido cada vez mais
usado como referência a qualquer construção
social que tenha a ver com a distinção
masculino/feminino, incluído as construções
que separam corpos ‘femininos’ de corpos
‘masculinos’ (NICHOLSON, 2000, p. 09).

É certo que, nos anos de 1960, devido à segunda onda do


feminismo, começou-se a buscar hipóteses explicativas que
transcendessem a lógica da dominação ancorada unicamente na
diferenciação física. A emergência de argumentos mais refinados
envolveu elementos complexos que não estariam, necessariamente, na
relação sexista ‘homem X mulher’, mas nas dimensões simbólicas
dessas relações sociais. No entanto, “deve-se lembrar que, bem antes
dessa perspectiva mais relacional e “cultural”, a “categoria usada na
época era ‘mulher’, em contraposição à palavra ‘homem, considerada
universal” (PEDRO, 2005, p. 80).
Pedro (2005) acrescenta que o termo gênero foi empregado,

272
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

pela primeira vez, em 1968, pelo médico estadunidense Robert Stoller2,


autor da obra ‘Sex and Gerder’. Depois de fazer várias intervenções
cirúrgicas, ele concluiu que o que é determinante na identidade sexual
não é a genitália, fosse ela feminina ou masculina, mas na forma como
os indivíduos sentem seus corpos. Para Stoller, as características
anatômicas eram plásticas, “nesse caso, o ‘gênero’ não coincidia com
o sexo, pois pessoas com anatomia sexual feminina sentiam-se
homens e vice-versa” (PEDRO, 2005, p. 79).
As instabilidades teóricas sobre os estudos de gênero ficaram
ainda mais evidentes quando Gayle Rubin lançou, em 1975, ‘O tráfico
de mulheres: notas sobre a 'economia política' do sexo’, tomando
como referências conceituais, para tecer suas críticas, os trabalhos de
outros pensadores como Claude Lévi-Strauss, Sigmund Freud e
Jacques Lacan. Houve, de certa forma, um reposicionamento no
pensamento sobre as causas que legitimavam a opressão feminina,
colocando em pauta a instituição econômica como uma questão
interveniente nos papéis sociais que mulheres e homens assumiam.
“Rubin propôs um trânsito entre natureza e cultura, especialmente no
espaço da sexualidade e da procriação” (PISCITELLI, 2002, p. 15).
É curioso observar que as contribuições de Rubin para os

2Stoller foi professor de Psiquiatria, na Faculdade de Medicina, e pesquisador da


Clínica de Identidade de Gênero da UCLA. Faleceu em 06\09\1991 em Los
Angeles, Estados Unidos.

273
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

estudos sobre gênero desalojam o entendimento de que toda forma


de opressão é unicamente masculina. Portanto, para ela, são as
formas de parentesco e de construção cultural, estabelecidas em cada
sociedade, que determinam a subordinação feminina aos homens,
especialmente na divisão social do trabalho. Ou, melhor dizendo, o
poder se estabelecia na relação sexo/gênero.
A historiadora estadunidense Joan Scott (1990), em sua
seminal obra, ‘Gênero: uma categoria útil de análise histórica’,
delineou um relevante trajeto, com o intuito de demonstrar que o
gênero pode ser pensado a partir de um processo socialmente
construído que demarca as diferenciações binárias. Ela apresenta o
conceito de gênero de forma não biologizante, propondo uma noção
baseada na construção social e histórica do gênero e de seus
significados, que se modificam no tempo e no espaço.
Segundo Scott (1990), gênero é uma categoria analítica,
historicizada, um caminho necessário para se compreender, por meio
das hierarquias sociais, como se processam as relações de poder entre
mulheres e homens e a subjetivação do corpo. “[...] o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos e um modo primordial de dar significado às
relações de poder [...]” (SCOTT, 1990, p. 14). Logo, os estudos de
gênero poderiam se desvencilhar dos de sexualidade e de como essa
questão se engendra nas políticas do corpo e nas práticas cotidianas.

274
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

[...] O que motivava essa autora, ao teorizar


sobre “gênero”, era a mesma coisa que
motivava o movimento feminista e as
historiadoras feministas a escreverem a
história das mulheres. [...] Scott apoia-se nos
pós- estruturalistas, que se preocupam com o
significado, pois enfatizam a variedade e a
natureza política desses (PEDRO, 2005. p.
87).

Convém enfatizar que a forma como as sociedades ocidentais


associam o gênero em oposição ao sexo, como uma construção
cultural, é vista com certa crítica por Laqueu (2000, p. 23), ao afirmar
que,
além daqueles que eliminariam o gênero
argumentando que as chamadas diferenças
culturais são verdadeiramente naturais,
houve uma poderosa tendência entre as
feministas de esvaziar o sexo do seu
conteúdo argumentando, ao contrário, que as
diferenças naturais são verdadeiramente
culturais.

Em outros termos, suprimir a relação do sujeito com o corpo


em detrimento da relação cultura/natureza seria desconsiderar as
relações de poder que nele se inscrevem. Não podemos negar que a
cultura é um elemento constituidor desse corpo, mas o autor alerta
que não só. Para Laqueu (2000), é preciso perfilhar outros elementos
que o constituem, como a linguagem e o poder, pois corpo e sexo são

275
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

instituídos pelo gênero. Nesse sentido, pontua o quão importante foi


a contribuição de Foucault (1988) ao traçar um quadro
desconstrucionista sobre os processos que perpassam a construção
das identidades sob e nos sujeitos, visto que,
[...] segundo círculos cada vez mais estreitos,
o projeto de uma ciência do sujeito começou
a gravitar em torno da questão do sexo. A
causalidade no sujeito, o inconsciente do
sujeito, a verdade do sujeito no outro que
sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio
ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se
no discurso do sexo. Contudo, não devido a
alguma propriedade natural, inerente ao
próprio sexo, mas em função das táticas de
poder imanentes a tal discurso (FOUCAULT,
1980, p. 68-69).

Na esteira do debate, Nicholson (2000) apresenta, também,


posições contrárias à perspectiva apresentada por Scott (1990). E
embora considere as contribuições da historiadora estadunidense,
refere que “o sexo permanece na teoria feminista como aquilo que
fica de fora da cultura e da história, sempre a enquadrar a diferença
masculino/feminino” (NICHOLSON, 2000, p. 10). Fora que o
feminismo hegemônico falava de “mulheres”, mas mulheres brancas.
Essa foi uma forma equivocada como o próprio movimento feminista
tratou essas marcas que geram diferença e que foram tão combatidas
que muitas feministas secundarizam as experiências específicas e os

276
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

lugares em que elas ocorreram, especialmente em seus corpos.


Sem dúvida, nesse entremeio de lutas e negociações, é preciso
anuir que muitas mulheres negras ativistas, em menor número em
relação às acadêmicas anglo-saxãs, uniram esforços numa tentativa de
desfazer essa perspectiva universalizante e propuseram uma reanálise
dessa visão que secundarizava, dentre outras coisas, a raça e a classe
como marcadores importantes da diferença nos estudos feministas
(HOOKS, 2017). Ratificando a crítica, Nicholson (2000) percebe que
a própria palavra “mulher” traz seu peso político. Muitas mulheres
podem atribuir significados diferentes às suas experiências como
“mulheres”, mas isso “não significa que ela não tem sentido”
(NICHOLSON, 2000, p.35).
De modo singular, observa-se, nas discussões de gênero, um
desdobramento epistemológico, que, de um lado, coloca a perspectiva
apresentada por Scott (1990), que possibilitou entendermos gênero
como uma construção cultural e, de outro, Judith Butler (2003, 2009),
que enxerga a perspectiva de Scott (1990) com certa limitação, pois
não incorpora indivíduos que não se adequam às normas
sociossexuais, como gays, lésbicas, transexuais, entre outros, que
contradizem, em sua existência, a visão de diferença sexual. E por
considerar que a “vivência das mulheres trans, das travestis e das
pessoas não binárias e toda uma multiplicidade de fatores que se
conjugam na conformação das identidades” emergiam como questões

277
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

a serem interpretadas e analisadas (HOLANDA, 2019, p. 19).


Para a autora, “se o gênero são os significados culturais
assumidos pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra de
um sexo dessa ou daquela maneira” (BUTLER, 2003, p. 26). Afirma,
ainda, que gênero inclui a constituição subjetiva da e na cultura,
considerando que o corpo em si configura uma construção. Sendo
assim, a identidade de gênero é fluida, passível de mudanças, temporal
e, por isso, flexível, e os sujeitos podem assumir diferentes identidades
porque
o gênero não está para a cultura como o sexo
para a natureza; o gênero é também o
significado discursivo/cultural pelo qual a
‘natureza sexuada’ ou o ‘sexo natural’ é
produzido e estabelecido como uma forma
‘pré-discursiva’ anterior à cultura, uma
superfície politicamente neutra sobre a qual a
cultura age (BUTLER, 2003, p. 7).

Para Butler (2003), é essencial se fazer uma releitura crítica


sobre gênero, tanto como performático e fabricado por sinais, quanto
pelos discursos que influenciam a identidade de gênero. A autora
compreende a heteronormatividade como uma imposição social que
opera como discurso normativo, por vezes naturalizado,
desconsiderando as múltiplas identidades (performances). “Assim
como a categoria gênero procurou descontruir a categoria identidade,

278
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

a categoria queer caminha na direção da desconstrução do sexo


biológico” (HOLANDA, 2019, p. 19). Ocorre que, apesar dos
avanços e da multiplicidade de interpretações que desvinculavam o
gênero como consequência do sexo, outras questões teóricas que,
outrora, também foram colocadas em segundo plano, tomaram força
após os estudos de Butler (2003), ao reconhecer que
gênero se intersecta com diversas
modalidades de identidades construídas
discursivamente – raciais, de classe, étnicas,
sexuais, motivo que torna impossível separar
gênero das intersecções políticas e culturais
nas quais é produzido e sustentado.
(PISCITELLI, 2002, p. 28).

Nessa arena de reações e de críticas, com a terceira onda


feminista (1990-2000), Tereza de Lauretis, em ‘A Tecnologia do
Gênero’, e Donna Haraway, em ‘Manifesto Ciborgue: ciência,
tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX’, ambos
lançados nos anos de 1980, evidenciam como os estudos pós-
identitários tomam potência nos debates sobre os estudos de gênero.
De fato, as fronteiras que o conceito de gênero ultrapassou
nos oferecem um panorama enriquecedor, no tocante às pesquisas
acadêmicas, do ativismo e da percepção pós-estruturalista sobre as
dissidências sexuais e descortinam um quadro diversificado de
categorizações que diferencia e distancia as concepções de gênero

279
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

engendradas pelo sexo. Dentre essas interpretações e críticas,


percebemos caminhos que apontam para outras direções e destoam,
cada vez mais, de uma visão monolítica. Novos fluxos circulam pelas
questões de gênero e nos levam a outras materialidades. É preciso
apreender que diferentes culturas têm diferentes formas de
experienciar o corpo e a sexualidade.
Dessa forma, as representações e as construções sociais dão
sentido às relações do indivíduo com seu próprio corpo, e a
sexualidade é o eixo principal da identidade. Embora com conceitos
distintos e justapostos sobre a questão da identidade de gênero, eles
estão imbricados e se relacionam nos processos de (auto)constituição
e (auto)reconhecimento dos sujeitos sociais e das relações de poder.
Em concordância, para Beatriz Preciado, os corpos falam e
podem dizer, de diversas maneiras, o que não querem ser ou como
não querem ser enquadrados em suas identidades. Por isso mesmo,
propõe, em seu estudo, a “desconstrução sistemática da naturalização
das práticas sexuais e do sistema de gênero” (PRECIADO, 2014. p.
22). A autora é fortemente influenciada pelos estudos foucaultianos e
vê com criticidade os caminhos tomados em oposição ao sistema
sexo/gênero, ao se desconsiderar a dinamicidade que envolve o
próprio sexo. Assim, Preciado (2014) propõe a contrassexualidade
como uma perspectiva analítica sobre a naturalidade como as
identidades sexuais foram sendo forjadas.

280
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

A contrassexualidade é também uma teoria


do corpo, que se situa fora da oposição
homem/mulher, masculino/feminino,
homem/mulher,
heterossexualidade/homossexualidade. Ela
define a sexualidade como tecnologia e
considera que os diferentes elementos do
sistema sexo/gênero denominados ‘homem’,
‘mulher’, heterossexual’, ‘homossexual’,
transexual, bem como suas práticas e
identidades sexuais, não passam de máquinas,
produtos, aparelhos, truques, próteses, redes,
aplicações, programas, conexões, fluxos de
energia de interrupções e interruptores,
chaves, equipamentos, formatos, acidentes,
detritos, mecanismos, usos, desvios[...]
(PRECIADO, 2014, p. 22-23).

O sexo se apresenta como um dispositivo plástico e fluido e


cuja composição não está na naturalização dos copos, na aderência
fisiológica que eles podem ter, mas nas tecnologias que os atravessam.
Nesse sentido, é na resistência que pode haver formas mais eficazes
de se subverter ao determinismo biológico e aos papéis ou às
identidades pensados sob a lógica cis-heteropatriarcal, pois, para a
autora, é preciso desestabilizar e ressignificar as diferentes formas de
prazer (PRECIADO, 2014).
De certa maneira, é possível asseverar a complexidade com
que as vivências de gênero foram se subvertendo à naturalização da

281
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

lógica binária e os eixos mecânicos que reproduziram identidades


sexuais. Além disso, novas perspectivas epistemológicas têm
possibilitado releituras e problematizações importantes para o próprio
conceito de gênero e os processos que lhe atribuem sentido.
Heilborn e Sorj (1999, p. 13) complementam essa assertiva ao
elucidar que “há determinadas posições teóricas que questionam a
pertinência de um uso generalizado do conceito, sobretudo quando
ele é estendido às sociedades e aos processos de construção de
pessoas não ocidentais”. Nessa senda, é tangível destacar que o debate
sobre gênero, no contexto histórico latino-americano, também vem
redefinindo outros trajetos. Isso não significa dizer que tais
inquietações desqualificam todo o campo de conhecimento
construído ao longo do tempo, mas demonstram que as questões de
gênero ainda são passíveis de novos questionamentos e análises,
principalmente quando miramos a perspectiva decolonial, a partir da
Teoria Queer, na América Latina.
O movimento feminista lésbico, por exemplo, vem fazendo
um contraponto substancial ao rejeitar veementemente a
heterossexualidade como padrão normativo. A lesbianidade tem suas
dobras, desloca-se para outra direção, inverte o sentido e, como
consequência, nega e desmantela engrenagens normativas. Esses
posicionamentos destoantes nos possibilitam embarcar em questões
sobre a sexualidade e sobre as abordagens transdisciplinares do

282
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ativismo LGBTQIAP+. Holanda (2020, p. 15) analisa que

a reação mais contundente a respeito da


experiência queer, na América Latina, como
era de se esperar, se dá pelos grupos lésbicos
autônomos que sempre se dedicaram a
desestabilização dos sistemas binários de
gênero e sua articulação com fatores raciais e
de classe, densidade que não reconhecem nas
políticas performáticas do Norte.
Provavelmente por isso, algumas pensadoras
feministas latino-americanas rejeitam esse
rótulo, preferindo se autonomearem
feministas lésbicas antirracistas.

Por outro lado, para Norma Mogrovejo (2020, p. 39), “a


produção epistêmica dos departamentos de gênero nas universidades
está marcada pela colonialidade discursiva”. Em ‘O queer: as mulheres
e as lésbicas na Academia e no ativismo em Abya Yalao’, a autora cita
a pesquisa realizada por Gioconda Herrera em cinco países andinos
sobre estudos de gênero e acrescenta:

Lamentavelmente, esses estudos, seguindo os


eixos de preocupação, estratégias e
conceitualizações legitimados nos países
centrais, se voltam primordialmente para o
estudo das sexualidades dissidentes e da
identidade de gênero, sem conseguir dar cinta
do irremediável entrecruzamento dessas

283
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

ordens (da produção, do desejo e do gênero)


com da raça e da classe; nem mesmo da
maneira como o estatuto do sujeito da
identidade sexual e de gênero dos Estados-
nação-latino-americanos, em contextos de
herança colonial e colonização discursiva
(MOGROVEJO, 2020, p. 39).

A autora ressente-se de estudos de gênero que não deram


conta da diversidade, ao desembarcar na América Latina nem das
singularidades e das práticas culturais de diversos povos, traduzidas
em sua geografia e história. Esses povos foram colonizados,
escravizados e subalternizados.
E não é só isso, pois, dentro desse universo, há uma
diversidade de identidades sexuais que abrigam corpos drags, trans,
gays, travestis, ou seja, corpos em movimento e que também são
políticos, que transgridem, divergem e, nos lugares fabricados,
abrigam o não lugar, pois são vistos como corpos dissidentes. Sobre
esses corpos germinam discriminações e exclusões, e na tentativa de
fazê-los “deixar de ser” o que prediz a norma, ainda sim, transitam,
resistem e se diferenciam no mundo dos “iguais”, “o lugar social no
qual alguns sujeitos vivem é exatamente o de fronteira” (LOURO,
2020, p. 188).

Considerações Finais

284
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

As discussões apresentadas trazem suas provocações,


coaduna-se com questões profundas e se juntam a outras. Diante do
exposto, não podemos mais superficializar os debates que envolvem
as questões de gênero, tampouco vê-las separadas ou de forma
hierarquizada por outros marcadores de diferença, como raça e classe.
E, não menos importante, não podemos visibilizar as identidades
sexuais sem que reconheçamos os mecanismos de poder que operam
e se movimentam estrategicamente de forma a domesticar
comportamentos vistos como “anormais” que, consequentemente,
provocam silenciamentos.
Esses mecanismos e seus aparatos inscrevem em nossos
corpos o que devemos e o que não devemos ser. Nesse sentido, o
gênero assume um caráter transversal. Nesse recorte, as relações
operam de forma caleidoscópica e captam aspectos relevantes que
funcionam como construtos morais, éticos e religiosos na sociedade.
Como valores, esses construtos são apreendidos e, consequentemente,
os papéis são legitimados para que a norma não seja desarticulada.
É singular, como historiadores(as), refletirmos acerca dos
trajetos multifacetados que foram percorridos para construir o
conceito e os estudos de gênero assim como, suas diferentes
perspectivas na relação dos sujeitos com seus corpos e como eles
configuram suas experiências sociais e políticas. Porém essa questão é

285
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

muito mais ampla e adentra outros setores e campos de saberes,


porque, de maneira geral, a sociedade traça suas alianças e entrecruza
esses caminhos com outras instituições.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. “Desfazendo gênero”. São Paulo: Editora Unesp,


2022.
____________. “Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade”. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FOUCALT, Michel. “História da Sexualidade I: a vontade de saber”.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
HEILBORN, Maria Luiza e SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil
(1975-1995)”. In: MICELI, Sérgio (org.) O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995). ANPOCS/CAPES. São Paulo: Editora Sumaré,
1999, p. 183-221. Disponível:
http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/102
_653_EstudosdeGeneronoBrasil1.pdf. Acesso em: 19 de mar. 2022.
LOURO, Guacira Lopes. “Teoria Queer: uma política pós-identitária
para a educação”. In.: Pensamento Feminista Hoje: sexualidades no Sul global.
HOLANDA, Heloísa Buarque de. (Org). Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2020.
MOGROVEJO, Norma. “O queer, as mulheres e as lésbicas na
Academia no ativismo em Abya Yala”. In.: Pensamento Feminista Hoje:
sexualidades no Sul global. HOLANDA, Heloísa Buarque de. (Org). Rio
de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
NICHOLSON, Linda. “Interpretando o gênero”. Estudos Feministas,
v. 8, n. 2, 9–41, 2000.
PEDRO, Joana Maria. “Traduzindo o debate: o uso da categoria
gênero na pesquisa histórica. História” (São Paulo) [online]. 2005, v.
24, n. pp. 77-98. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-

286
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

90742005000100004>. Epub 23 Set 2010. ISSN 1980-4369.


https://doi.org/10.1590/S0101-90742005000100004.
PISCITELLI, Adriana. “Recriando a (categoria) mulher?” In:
ALGRANTI, L. (org.). A prática feminista e o conceito de gênero. Textos
Didáticos, nº 48. Campinas, IFCH-Unicamp, 2002, p. 7-42.
Disponível em:
http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.pagu.unicamp.br/files/Adr
iana01.pdf. Acesso: 23 de nov. 2021.
PRECIADO, Beatriz. “Manifesto Contrassexual”: práticas
subversivas de identidade sexual. Tradução: Maria Paula Gurgel
Ribeiro. São Paulo: N-1 edições, 2014.
SCOTT, Joan W. “Gênero”: uma categoria útil de análise histórica.
Educação e Realidade, vol. 16, nº 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990.
VEIGA-NETO, Alfredo. Dominação, violência, poder e educação
escolar em tempos de Império. In: “Figuras de Foucault”. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.

287
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

288
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 12

ANÁLISE SOBRE A RELAÇÃO DE GÊNERO NA ESCOLA


DENTRO DO CONTEXTO EDUCACIONAL EM TEMPOS
DE PANDEMIA

Ewerton Rafael Raimundo Gomes1


Ana Carolina de Souza Ferreira2
Patrícia Cristina de Aragão3

INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é focar como o meio escolar é de


grande importância na vida de qualquer indivíduo contribuindo de
forma direta em sua formação enquanto cidadão. Desse modo, é
válido analisar de qual forma a escola influencia na exclusão ou
inclusão de alguns debates bem como gênero e sexualidade nas
práticas pedagógicas.
É notório que ao longo da história os comportamentos e

1 Ewerton Rafael Raimundo Gomes - Graduado em História - UEPB, Mestrando


em Formação de Professores pela Universidade Estadual da Paraíba -
ewertonrafael08@gmail.com
2 Ana Carolina de Souza Ferreira - Graduanda em História pela Universidade

Estadual da Paraíba - carol_ferreira1995@hotmail.com


3 Patrícia Cristina de Aragão - Doutora em Educação pela UFPB, Professora do

departamento de História da Universidade Estadual da Paraíba -


patriciacaa@yahoo.com

289
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

crenças acerca da sexualidade passaram por mudanças significativas.


Certos relacionamentos e atitudes eram tidas como anomalias, sendo
a homossexualidade vista como doença. Hoje, apesar desse
pensamento ainda estar enraizado no seio da sociedade, podemos
notar o grande discurso de gênero e sexualidade na atualidade, o que
é de grande importância principalmente no meio escolar,
promovendo programas de educação sexual.

De acordo com as sínteses das


discussões realizadas na escola com
seus pares, os educadores/as relatam
que ao longo da história ocorreram
mudanças de comportamentos e
crenças relacionadas à sexualidade. Em
diferentes culturas essa foi se tornando
questionável em todos os campos de
conhecimentos, que inicialmente eram
encarados como natural e
posteriormente certos
relacionamentos eram tidos como
anomalias e inclusive com tratamentos
clínicos, como a homossexualidade
que era considerada doença.
(NOGUEIRA, 2010. P, 14)

Nesse modo, cada povo de acordo com a época e sua cultura


tem um conceito acerca da sexualidade, podemos citar como exemplo
a Grécia antiga onde a bissexualidade era socialmente aceita. Já para
os Hindus a mulher era vista como chefe da família pois poderia gerar

290
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

a vida. Assim, podemos perceber que todas essas práticas são de


extrema importância para serem levadas para um debate
principalmente em sala de aula, pois através desses eventos históricos
os alunos podem obter um maior conhecimento, analisando o tema
de forma mais “profunda” e não superficial, deixando de lado certos
preconceitos imposto pela sociedade.
Levando em consideração o que foi abordado, é válido
ressaltar quais seriam os meios e métodos de abordar a temática de
gênero e sexualidade no meio escolar levando em consideração o
momento o qual estamos vivenciando. No contexto pandêmico com
as aulas online e ensino EAD se torna desafiador para os docentes
encontrar um meio de debater o assunto de forma inclusiva.
Sendo assim, será abordado essa temática destacando a
contribuição de alguns autores como Guacira Lopes louro, Ciro
linhares de Azevedo, Francisca Helena Gonçalves Vetorazo, Patrícia Abel
Balestrin entre outros.

1 UMA PEQUENA TEORIZAÇÃO SOBRE GÊNERO E


SEXUALIDADE NA CHAMADA INSTITUIÇÃO
PEDAGÓGICA

Ao falarmos sobre os debates e discursos sobre as


sexualidades e gênero, trazendo como lócus, a escola, o ser escola ou
os modelos educacionais em si, debatendo sobre contextos escolares

291
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

e pedagógicos, estamos entrando em uma problemática das questões


das diferenças igualdades, pois a escola, trazendo consigo as práticas
pedagógicas, com realidades muito distintas, entrando nos âmbitos
das atividades educacionais como também das realidades
socioculturais dos estudantes.
Sendo assim a escola, a educação e todos os alicerces teóricos
e fundamentadores dentre eles o currículos, ocupa um lugar de
inclusão ou exclusão dos debates que envolvem a sexualidade e gênero
nas escolas, muitas vezes as escolas se estruturam com práticas que
vem a negar as diferenças, trazendo um ensino e vivências escolares
que se caracterizam de formas uniformes e monoculturais de onde
vem a ampliar desigualdades e injustiças, então colocamos aqui a
escola e o processo educacional e pedagógico em si como um local da
sociedade, uma instituição normatizadora, que ocupa um local de
controle normatização e disciplina, advindo como uma instituição
disciplinar que tem como função controlar, repreender e ensinar
como os corpos e mentalidades como ser e agir, em sociedade mas
também no âmbito do privado como diz o (FOUCAULT, 1987).
Como acima tratado, a escola e as práticas pedagógicas
assumiram e vem assumindo este papel de normatizador e
controlador muitas vezes a mesma está ligada às classes dominantes,
e nas vivências escolares, como são caracterizadas como um dos
primeiros locais sociais, onde vivemos o florescimento e crescimento

292
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

que envolvem as sexualidades e gênero, mas trazendo o gênero não


como algo único e binário, como as escolas e os modelos
institucionais trazem, mas saindo desse conceito de masculino e
feminino, que a sociedade normatizadora incube a escola este papel,
de ensinar comportamentos e modelos a seguir, que existem apenas
meninos e meninas, e como ambos devem se comportar, vestir, agir,
gesticular, entre outras normas.
As escolas são locais justamente que trazem a norma, que
nada mais é do que a arte de julgar, onde as desigualdades, sejam elas
de gênero, classe social etnia ou raça estão sempre presentes, então,
assim falando, as escolas ainda ocupam locais de exemplificação e de
normatização das diferenças, das desigualdades sociais, e que por
muitas vezes os debates e discussões acerca da sexualidade vem a ser
repreendido e disciplinado a um modelo social, modelo este que é o
tradicional, sobre este modelo de repressão e controle, como o de
inclusão ou reclusão as diferenças que assume as escolas, a Louro
(1997, p. 57) diz:

Diferença, distinções, desigualdades... A


escola entende disso. Na verdade, a escola
produz isso. Desde seus inícios, a instituição
escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se
incumbiu de separar os sujeitos – tornando
aqueles que nela entravam distintos dos
outros, os que a ela não tinham acesso. Ela
dividiu também, internamente, os que lá

293
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

estavam, através de múltiplos mecanismos de


classificação, ordenamento e hierarquização.
A escola que nos foi legada pela sociedade
ocidental moderna começou por separar
adultos de crianças, católicos e protestantes.
Ela também se fez diferente para os ricos e
para os pobres e ela imediatamente separou
os meninos das meninas.

A partir dos debates já inseridos até aqui, ao problematizar


sobre um modelo pedagógico, e uma escola normatizadora dos
discursos que se colocam como tradicionais, que tem como
característica, a disciplina, o controle, a repressão, o julgamento e a
uniformidade, como o ensino dos de corpos e como se controlar,
como a própria Guacira Lopes Louro chama todas estas
características de movimentos, estratégias e produções do ser no
contexto escolar de “corpo escolarizado”, pois neste ambiente, os
estudantes aprendem a como se comportar em sociedade, a como
olhar para si e para o outro, como falar e calar, como a reagir a si e as
reações dos outros, a como perceberem as subversões, que são
justamente os “escapes” a estes modelos dos discursos médicos,
jurídicas e da qual estamos problematizando, a instituição pedagógica,
como trás o FOUCAULT em História da Sexualidade I A Vontade de
Saber (1976).
E para nós norteamos onde a escola ocupa esse papel de
controlador e as relações de poder estão ativas na vida sociocultural,

294
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

não só do estudante, mas do corpo escolar em si, Azevêdo (2015, p.


40) dialoga que:

Foi na Modernidade que a escola assumiu o


papel de instituição de sequestro, na qual
exercia sua função com eficiência no
processo de produção de saberes sobre o
sujeito, produzindo subjetividades como
dócil e submissa aos dispositivos
disciplinares. As noções gêneros são também
inscrições sobre os corpos que constituem a
formação desse sujeito moderno,
disciplinado, sobre o qual o poder se
encontra investido sob a forma de um saber-
poder normalizador.

E por fim, muitas as escolas se veem obrigadas a debater sobre


os assuntos de sexualidade e gênero nas escolas, mesmo assim, os
assuntos não são abordados da forma como deveriam, muitas vezes
tratados como tal, ou até debatidos de forma unilateral e por uma
mesma vertente, e os currículos apresentados e escolhidos para
dirigirem o ano letivo e a vida escolar, é concebido de forma onde
muitas vezes a temática de gênero é silenciada e a parte da sexualidade
mostrada é apenas pelo binário, os conceitos de masculino e feminino,
e em âmbitos os discursos médicos, pelo lado da biologia e da saúde,
como por exemplo, como evitar gravidez na adolescência ou sobre as
doenças sexualmente transmissíveis, grande exemplo desse modelo
são os PCNS, os Parâmetros Curriculares Nacionais criados no ano

295
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

de 1996 são diretrizes que norteiam e orientam a educação brasileira,


e em que estes mesmos PCNS estão imbuídos de relações de poder
de um modelo de cultura e sociedade, assuntos são privilegiados, e
com a temática de gênero e sexualidade não seria diferente.
Os PCNS vem a trabalhar no seu texto, o conceito de
orientação sexual, um conceito que dá a entender que existe apenas
uma orientação sexual, ou seja, o masculino eo feminino, em suma, o
binário, onde os discursos de gênero não chegam nem a entrar nos
PCNS de orientação sexual, percebemos aí uma invisibilidade por
meio das políticas públicas educacionais, dos (as) trans e travestis, não
binários e ademais performances de gênero, como define a BUTLER
em seu livro Problemas de Gênero: feminismo e subversão da
identidade de 1990, sendo a performance a determinar o gênero, a
performatividade destaca a constituição do gênero como atos, gestos,
representações ordinariamente constituídas (BUTLER, 2006, p. 185).
Portanto, os PCNS vêm a procurar o diálogo e a conceituação
da orientação sexual como algo ligado a saúde e vida, em alguns casos
também abordando a sexualidade como algo cultural, mas pouco
debatido, dando o enfoque em três assuntos : matriz da sexualidade.
Relações de gênero. Prevenção às Doenças Sexualmente
Transmissíveis/AIDS.

296
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

2 UM DISCURSO PRÁTICO ACERCA DE GÊNERO E


EDUCAÇÃO NO COTIDIANO ESCOLAR

Muito se tem discutido e questionado sobre as relações de


gênero e as sexualidades na atualidade. Especialmente, a partir dos
movimentos e teorizações feministas, essas questões tornaram-se
centrais para nós que estamos interessadas/os em repensar os modos
como temos nos relacionado, os modos como temos lidado com
nossos corpos, desejos e paixões. Esses debates adentraram os muros
da escola de diferentes formas: pelas situações cotidianas em que
gênero e sexualidade irrompem na cena escolar e pelas situações
pedagógicas promovidas por meio de programas de educação sexual,
saúde na escola, direito à diversidade, escola sem homofobia, dentre
outros. (BALESTRIN, 2017, p.13)
Deste modo MOLINA aponta que, as questões da
sexualidade, na cultura ocidental, por muito tempo, foram motivos de
vergonha, tabus e até de medo, devido suas posturas repressoras por
parte da sociedade, diante de comportamentos e conceitos em torno
da sexualidade. Assim, esta era manipulada de várias formas, ora como
pecado, ora como fator de controle político da sociedade e em
algumas vezes, até como instrumento de prazer e felicidade.

Todos nós somos educados sexualmente ao

297
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

longo de toda nossa vida, como já citado,


escolhi trabalhar com adolescentes entre 14 e
15 anos, matriculados no primeiro colegial do
colégio Aplicação no município de Londrina
no Paraná, pois creio que a fase da
“adolescência”, está marcada pelas
transformações nas várias dimensões
psicossociais e culturais, onde o jovem busca
e confronta sua identidade pessoal, sexual e
social. (MOLINA, 2011, p. 3,4)

O grande desafio educacional é reconhecer os diferentes


contextos de nossos estudantes. Para que isso ocorra, é necessário que
promovamos perspectivas diversas sobre o contexto sociocultural dos
mesmos, descentrando as visões e perspectivas unívocas, enfrentando
situações de discriminação e preconceitos que frequentemente estão
presentes no cotidiano escolar.
O reconhecimento de que a escola tem um importante papel
nos processos identitários de seus estudantes implica na construção
de novas relações com as questões vinculadas às identidades e às
diferenças na sala de aula e na compreensão de que as diferenças são
construídas social e culturalmente com base nas relações de poder, ou
seja, o processo de produção de hierarquização das diferenças pode
ser desafiado e desestabilizado. (AKKARI, 2015, p. 31)
Com tudo os PCNs trazem em sua elaboração escrita uma
alternativa na educação como forma de se trabalhar a temática, por
entender que a abordagem oferecida acontece a partir de uma visão

298
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

pluralista de sexualidade e o papel da escola é abrir espaço para que


essa pluralidade de concepções, valores e crenças possa se expressar,
não compete à escola, em nenhuma situação, julgar como certa ou
errada a educação que cada família oferece. Antes, caberá à escola
trabalhar o respeito às diferenças, a partir da sua própria atitude de
respeitar as diferenças expressas pelas famílias. A única exceção refere-
se às situações em que haja violação dos direitos das crianças e dos
jovens.
Para as docentes, questões de gênero e sexualidades são
complexas e não fizeram parte de suas trajetórias de formação.
Reconhecem que são despreparados para tratar desses temas com os
alunos e, por isso, advogam que eles sejam direcionados aos
professores da área da biologia e, sobretudo, às famílias dos jovens.
Essas percepções são gerais e independem das diferenças que marcam
os professores em relação a gênero, sexualidades, faixa etária, área de
formação acadêmica e às escolas onde atuam. [...] Os membros das
equipes gestoras de ambas as escolas têm falas muito semelhantes às
dos professores. Destacam, em geral, a preocupação em cumprir as
exigências legais, mas também reconhecem a falta de preparo dos
professores para trabalhar o tema gênero e sexualidades de forma
transversal conforme a orientação dos PCN. (VETORAZO, 2020, p.
235,236)
VETORAZO vem mostrando diante a pesquisa a qual

299
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

elaborou com os alunos de instituições público/privada que as


expectativas dos estudantes em torno do reconhecimento do direito
do outro à diferença e/ou da punição aos que consideram seus
agressores, costumam ser frustradas. Em regra, direção e coordenação
das escolas procuram minimizar as situações de agressão verbal, abuso
e bullying envolvendo os/as estudantes; procuram ainda amenizar
conflitos quando isso se mostra conveniente da perspectiva da lógica
institucional, como no caso da festa de formatura na escola privada.
Os professores, por sua vez, preferem se omitir diante dos
questionamentos dos estudantes. Nas duas escolas as situações de
enfrentamento são interpretadas por eles como atos de indisciplina
que atribuem a uma lista de faltas, como ausência de limites para o
comportamento dos jovens no seio de suas famílias, fraqueza da
autoridade escolar e enfraquecimento de valores como respeito à
figura do professor. Com frequência as falas dos professores revelam
nostalgia, evocando um tempo idealizado em que o professor ainda
gozava de respeito pela sociedade e tinha autoridade na sala de aula.

3 DEBATES ACERCA DA EDUCAÇÃO E GÊNERO NO


CONTEXTO PANDÊMICO DA COVID-19

Desde do início do ano de 2020, a humanidade vem passando


por uma grave crise social e sanitária, causados pela pandemia da
Covid-19, todos os países sem exceção, mas mormente os países

300
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

subdesenvolvidos, vem enfrentando inúmeros problemas na


manutenção do bem-estar social. Vivemos um período ímpar na
história, sem precedentes. O vírus nos isola e incapacita as relações e
atividades que outrora eram presenciais, forçando-nos a buscar outras
opções, que não substituem integralmente a aprendizagem presencial,
mas que ao menos ajude na “reposição” e na “manutenção” da
educação pública enquanto vivermos o contexto de uma crise
humanitária. De tal maneira, esse momento nos impele a refletir sobre
os moldes da educação, as suas desigualdades e como, muitas vezes, o
ensino se torna arbitrário, procurando homogeneizar os estudantes,
marginalizando a diferença e o contexto social de cada indivíduo.
A situação atual do Brasil nos convida a refletir sobre os
pilares e os pressupostos da educação nacional. Por isso, propomos
aqui uma investigação da gênese do sistema educacional do Brasil,
analisando sua estrutura e seus objetivos, com a finalidade de
identificar pensamentos obsoletos e encontrar caminhos e propostas
para uma melhor educação, uma que se adeque a realidade dos
estudantes, que promova a igualdade, enxergando na diferença não
um estigma, mas um atributo na diversificação da educação.
No atual contexto de distanciamento social, as ferramentas
digitais se revelam como um poderoso aliado da educação,
promovendo o maior alcance da informação e conhecimento. Porém,
este é um paradoxo, pois evidencia uma questão; a crescente migração

301
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

para as aulas e encontros virtuais, nas formas da EaD, podem


aumentar a desigualdade? A privatização cada vez mais latente da
educação vem criando abismos entre alunos de diferentes realidades
socioculturais. Sendo assim, qual deve ser o papel da escola em tempos
de isolamento e distanciamento social? É evidente que com a maior
permanência em casa, os casos de machismo, homofobia, transfobia
e quaisquer outras violências de natureza de gênero como também diz
respeito às sexualidades, têm cada vez mais ganhando destaque nas
discussões na academia. Mas raramente o debate alcança as escolas de
ensino fundamental e médio.
A problemática das orientações sexuais e questões de gênero,
são muitas vezes pouco aproveitadas em quantidade, restringindo-se
a conversas esporádicas, ainda carregadas de preconceito e
desinformação. O machismo nas escolas é, pode se dizer, fruto de um
pensamento homogeneizante, uma tendência que visa extinguir a
diferença, na esperança de alcançar uma padronização dos estudantes,
em um processo que conduz um determinado grupo ou indivíduo,
que possuem características e orientações sexuais diferente da
predominante, a se conformar rigorosamente a valores e práticas
impostas pelo grupo dominante. Sendo assim, se trata de uma política
de assimilação, isto é, o outro poderá ser aceito sem discriminação,
com a condição que abandone sua personalidade própria e se adeque
integralmente as práticas e valores estabelecidos na sociedade.

302
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Hoje chamados de 'monocultura', podemos definir o ato de


priorizar uma cultura em detrimento da outra, um ensino único que
ao fazê-lo, exclui quaisquer outras possibilidades, renegando a
diferença a margem do ensino. Sobre isso escreve Arroyo:

A abordagem monocultural, historicamente


oferecida pela escola, amplia as desigualdades
e injustiças das origens sociais, favorecendo
discriminações e preconceitos contra
determinados estudantes que fogem aos
padrões predeterminados pelos valores
dominantes e legitimados pela escola.
(ARROYO, 2011, p.172)

Na educação tradicional, não é raro vermos casos de


homofobia, transfobia ou qualquer outro tipo de preconceito que
busque denegrir e estigmatizar a orientação sexual e
consequentemente a diferença. Podemos elencar como principal
desafio à docência no atual momento, a necessidade de educar os
jovens para que estes não venham a praticar violência sexual e de
gênero, sejam esses crimes de cunho digital ou presencial.
Estudos recentes demonstram o aumento de crimes
relacionados ao preconceito, segundo a Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (ANTRA); o assassinato de mulheres trans
aumentaram 49% durante o isolamento. De igual maneira, os números
de feminicídios também apresentam números alarmantes. O

303
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

isolamento causado pela pandemia de Covid-19, somado ao


preconceito amplia e acarreta uma série de risco à saúde mental de
pessoas em situações de risco, sendo portanto, um assunto de saúde
pública, que deve ser tratado e discutido nos ambientes educacionais.
Sendo assim, é de suma importância que pensemos em uma
proposta educacional que considere a diversidade como fator
essencial na construção de um conhecimento e consequentemente, de
valores. Estes que devem ser perpetuados através de práticas como
diálogos e projetos de inclusão. Isto é, alterar o modo como
enxergamos os “outros”, “estranhos”, perceber que o assunto das
orientações sexuais e de gênero, são temas que podem e devem ser
discutidos em sala de aula, seja por meios digitais, seja no espaço
escolar.
O programa da Residência Pedagógica tem auxiliado aos
estudantes na melhor compreensão de temas sensíveis que envolvem
o ambiente escolar, oferecendo-lhes uma gama de experiências
teórico-metodológicos, discussões e debates que cercam todos os
ambientes do espaço educacional, ao tornar o ensino plural e fruto de
reflexões coletivas, ajuda-nos a pensar e elaborar estratégias

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, justifica-se assim a importância do tratamento de


questões relacionadas às relações de gênero e diversidade sexual

304
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

durante o processo de ensino aprendizagem, apesar da abordagem ser


polêmica devido ao preconceito existente na sociedade vigente, bem
como a falta de respeito. Existem pais que não aceitam a abordagem
da sexualidade na escola devido às suas culturas, religiões, costumes,
entre outros e não visualizam que a família mudou, não é mais a
mesma, ocasionando grande preocupação entre os docentes ao
trabalhar o assunto, devido à diversidade de sujeitos em uma sala de
aula, sendo a escola composta por crianças e jovens de várias classes
sociais, religiões, etnias, orientação sexual.
Também é válido ressaltar que nem todos os profissionais
estão preparados para trabalhar o tema pois para isso precisam estar
livres de preconceitos, pois um trabalho feito de forma
preconceituosa pode resultar no efeito contrário. De acordo com Silva
e Soares (2007, p. 89), “as representações da sexualidade na juventude
e os mitos que perpetuam determinados padrões sexuais resultam na
impossibilidade de a escola conviver com diferentes contextos
culturais”.
Já na atualidade, com o ensino EAD se torna um desafio ainda
maior para os docentes trabalhar essa temática, porém, o momento
exige a abordagem de temas transversais levando em consideração que
durante a pandemia e por conseguinte o isolamento social o número
de casos relacionados a crimes ocasionados pelo preconceito como
assassinato à mulheres trans e também o feminicídio pode ser

305
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

destacado. Sendo assim, se torna imprescindível esclarecer que os


docentes devem educar os jovens para que os mesmos não venham a
cometer violência sexual e de gênero, buscando meios em sua aula
mesmo no ensino EAD para que a violência e o preconceito venham
a diminuir em passos largos.

REFERÊNCIAS

AKKARI, Abdeljalil; SANTIAGO, Mylene Cristina. Diferenças na


educação: do preconceito ao reconhecimento. Revista Teias, v.
16, n. 40, 2015. p. 28-41

AKKARI, Abdeljalil; SANTIAGO, Mylene Cristina. Diferenças na


educação: do preconceito ao reconhecimento. Revista Teias, v. 16, n.
40, 2015, p. 31.

ARROYO, MIGUEL. Currículo: território em disputa. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2011.

Assassinato de mulheres trans aumentam 49% durante isolamento.


Catraca Livre, 7 de maio de 2020. Disponível em:
<https://catracalivre.com.br/cidadania/assassinatos-de-mulheres-
trans-aumentam-49-durante-isolamento/>. Acesso em: 08, jan de
2021.

AZEVÊDO, Ciro Linhares. “O amor ainda está aqui”: processos


de subjetivação, microterritórios e corpos em narrativas de
sexualidade em Campina Grande – PB. Dissertação (Mestrado em
História). Universidade Federal de Campina Grande, 2015.

BALESTRIN, Patrícia Abel Educação em gênero e diversidade


[recurso eletrônico] / organizadoras Catharina Silveira ... [et al.];

306
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

coordenado pela SEAD/UFRGS. – 2. ed. – dados eletrônicos. – Porto


Alegre: Editora da UFRGS, 2018. 178 p. p,13.

BRODBECK, Marta de Souza Lima. Vivenciando a história:

BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da


identidade. 2 ed. Rio de Janeiro, 2003.

HYPOLITO, Álvaro. BNCC, Agenda Global e Formação Docente.


Revista Retratos da Escola, Brasília, v.13, n. 25, p. 187-201,
jan./maio, 2019.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias


contemporâneas. Proposições, v. 19, n. 2, 2008. p. 17-23

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma


perspectiva Pós Estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

metodologia de ensino da história. Base Editorial. Curitiba, 2012

MOLINA, L. P. P. GÊNERO, SEXUALIDADE E ENSINO DE


HISTÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE UM DIÁLOGO. Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho
de 2011, P. 13.

MOLINA, Luana Pagano Peres. Gênero, Sexualidade e Ensino de


História: A construção de um diálogo. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho. 2011. p. 1-12

NOGUEIRA, Daniela Macias. Gênero e sexualidade na educação.


Anais do I simpósio sobre estudos de gênero e políticas públicas,
ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina. 24/25 de junho
de 2010.

VETORAZO, Francisca Helena Gonçalves; SAMPAIO, Helena.

307
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Gênero e sexualidades no ensino médio: enfrentamentos e


negociações. Revista Contemporânea de Educação, v. 15, n. 32,
2020. p. 223-240

VETORAZO, Francisca Helena Gonçalves; SAMPAIO, Helena.


Gênero e sexualidades no ensino médio: enfrentamentos e
negociações. Revista Contemporânea de Educação, v. 15, n. 32,
2020. p.235-236.

308
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 13

A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTO-JUVENIL


NO EMPODERAMENTO NEGRO-BRASILEIRO

Patrícia da Silva Souza 1


Patrícia Cristina de Aragão2

INTRODUÇÃO
Este artigo parte de uma pesquisa de Mestrado, ainda em
andamento, tendo como objetivo discutir sobre a importância da
literatura infanto-juvenil afro-brasileira ou negro-brasileira com
importante material metodológico para uma possível prática positiva
na construção identitária e empoderamento da menina negra e não-
negra dentro do âmbito escolar, bem como, no aporte de uma
formação antirracista e decolonial. Para tanto, discutiremos em
primeiro o conceito da literatura infanto-juvenil afro-brasileira e
negro-brasileira nos contextos: social, político, histórico, didático-

1Mestranda do Programa de Pós Graduação em Formação de Professores.


Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E- mail: Pipatricia278@gmail.com

2Professora Doutora titular da Universidade Estadual da Paraíba, atua no curso de


História, no Mestrado Profissional em Formação de Professores e no Mestrado de
Serviço Social. E-mail: patriciaaragao@servidor.uepb.edu.br

309
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pedagógico na sociedade brasileira.

Nesse sentido, faz-se necessária a discussão da Lei


10.639/2003, que, neste ano, completou 20 anos de sua promulgação
e tem contribuído como fator preponderante para discussão da
obrigatoriedade de estudo da História e Cultura Africana e Afro-
brasileira dentro dos âmbitos escolares da Educação Básica ao Ensino
Superior, tanto no Ensino Público como no Privado de todo o país.
Bem como, o contexto Educacional Brasileiro nas discussões de
educação, nas interrelações conceituais de educação antirracista de
colonial no enfrentamento do
Colonialismo/colonialidade/modernismo facetas do racismo
estrutural que permeiam a sociedade brasileira.

Posteriormente, analisaremos a literatura infanto-juvenil


negro-brasileira: Betina, de Nilma Lino Gomes. Na qual observamos
em sua narrativa, as nuances da temática problematizadora
entrelaçando com contextualização discursiva sobre a colaboração
positiva da narrativa literária infanto-juvenil negra-brasileira no
enfrentamento de práticas de racismo, preconceito e discriminação do
povo negro e suas possíveis contribuições para formação e educação
antirracista na perspectiva de colonial.

Para tanto, ancoramo-nos numa abordagem metodológica


pautada numa pesquisa bibliográfica e análise do conteúdo de um

310
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

texto literário, como fonte para discussão em torno do tema proposto.


Para isso, teremos como aporte teórico: DUARTE (2011), GOMES
(2002, 2009, 2019), CUTI (2010), dentre outros.

1 A LEI 10.639/2003 E O CONTEXTO EDUCACIONAL


BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Nas duas últimas décadas, as produções de literaturas infanto-


juvenis na temática Afro-Brasileira ou Negro-Brasileira têm
expressado um aumento significativo em consonância da
promulgação da Lei Federal 10.639/2003 que altera a Lei 9.394/1996,
Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, para inclusão no
Currículo Oficial a obrigatoriedade de estudo da Cultura e História
Africana e Afro-Brasileira na Educação Básica em instituições de
ensino públicas e privadas de todo Brasil.

Desse modo, após aprovação da Lei 10.639/2003, foram


implementadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana3, na qual apresenta um caráter normativo
na qual implica políticas de reparações, (re)conhecimento e

3BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. 2004.

311
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

valorizações com ações afirmativas promovidas pelas instituições de


Educação Básica, sejam elas Municipais, Estaduais ou Federais. Pois,
durante toda historicidade de formação étnica brasileira o povo negro
e indígena foi deixado à margem da sociedade.

Nesse sentido é importante ressaltarmos que embora o Brasil


seja considerado um país pluricultural e multiétnico, historicamente,
as relações étnico-raciais foram marcadas por desigualdades
socioeconômicas, uma educação hegemônica com currículos
eurocêntricos e que se propagou e desdobrou-se no ambiente escolar,
nas literaturas, nas mídias sociais e nas diferentes relações sociais com
ambiente pacífico intitulado de “Mito de Democracia Racial”. Como
Munanga corrobora a seguir:

O mito de democracia racial, baseado na dupla


mestiçagem biológica e cultural entre as três
raças originárias, tem uma penetração muito
profunda na sociedade brasileira: exalta a ideia
de convivência harmoniosa entre os
indivíduos de todas as camadas sociais e
grupos étnicos, permitindo às elites
dominantes dissimular as desigualdades e
impedindo os membros das comunidades não-
brancas de terem consciência dos sutis
mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade. Ou seja, encobre os conflitos raciais,
possibilitando a todos se reconhecerem como

312
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

brasileiros e afastando das comunidades


subalternas a tomada de consciência de suas
características culturais que teriam contribuído
para a construção e expressão de uma
identidade própria. (MUNANGA, 2006, p.89).

Em outras palavras, a Democracia Racial, enfatizou a


existências de três raças: branca, negra e indígena, vivendo em total
harmonia e tendo o povo branco com superior, haja visto, que
pertencia ao grupo colonizador e majoritário economicamente. Em
detrimento ao povo negro brasileiro ou afro-brasileiro, as políticas de
branqueamento e processo de miscigenação defendido e difundido
pela elite brasileira e por alguns estudiosos, dentre eles, destacamos o
sociólogo Gilberto Freyre que em seu livro: Casa Grande & Senzala4,
propagou a hegemonia da “raça” branca como superior. O sistema de
ensino colonial e patriarcal difundidos, também na obra de Gilberto
Freyre, prevaleceu durante quase 400 anos no processo de escravidão
no Brasil. E, ainda, é apresentado na atualidade com nova termologia
da modernidade na qual demonstra maior poder enfatizado na
interrelação tridimensional da colonialidade/

4Freyre, Gilberto, 1900-1987. Casa-grande & senzala: formação da família


brasileira sob o regime da economia patriarcal. Apresentação de Fernando
Henrique Cardoso. — 481 ed. rev. — São Paulo: Global, 2003.

313
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

colonialismo/modernismo. Como define Oliveira e Candau (2010)

O colonialismo denota uma relação política e


econômica, na qual a soberania de um povo
está no poder de outro povo ou nação, o que
constitui a referida nação em um império.
Diferente desta ideia, a colonialidade se refere
a um padrão de poder que emergiu como
resultado do colonialismo moderno, mas em
vez de estar limitado a uma relação formal de
poder entre dois povos ou nações, se relaciona
à forma como o trabalho, o conhecimento, a
autoridade e as relações intersubjetivas se
articulam entre si através do mercado
capitalista mundial e daideia de raça. Assim,
apesar do colonialismo preceder a
colonialidade, a colonialidade sobrevive ao
colonialismo. Ela se mantém viva em textos
didáticos, nos critérios para o bom trabalho
acadêmico, na cultura, no sentido comum, na
auto-imagem dos povos, nas aspirações dos
sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Neste sentido,
respiramos a colonialidade na modernidade
cotidianamente. (TORRES, 2007, p. 131 apud
OLIVEIRA: CANDAU2010. p.18)
Esse sistema flui naturalmente nos âmbitos sociais em
subdivisões de poder, no qual sua estrutura denota-se na dominação
do colonizado e colonizador de forma naturalizada nas mídias sociais,
colocando o negro em lugares de subalternidade. Nos diversos
campos do conhecimento sejam no poder, no ser e no saber,

314
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

representados principalmente na política midiática com situações de


novelas e comerciais difundido uma representatividade negativa do
negro na sociedade.

Desse modo, para que seja combatido o racismo estrutural na


sociedade brasileira, faz-se necessária uma maior compreensão das
definições de preconceito, discriminação e racismo e com tais práticas
ocorrem dentro dos âmbitos sociais, principalmente, no contexto da
escolar. Silvio de Almeida em seu livro Racismo Estrutural define que:

Podemos dizer que o racismo é uma forma


sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas
conscientes ou inconscientes que culminam em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender
do grupo racial ao qual pertençam. Embora haja
relação entre os conceitos, o racismo difere do
preconceito racial e da discriminação racial. O
preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos
acerca de indivíduos que pertençam a um determinado
grupo racializado, e que pode ou não resultar em
práticas discriminatória. (...). A discriminação racial,
por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado
a membros de grupos racialmente identificados.
Portanto, a discriminação tem como requisito
fundamental o poder, ou seja, a possibilidade
efetiva do uso da força, sem o qual não é
possível atribuir vantagens ou desvantagens
por conta da raça. Assim, a discriminação pode
ser direta ou indireta. (ALMEIDA, 2019, p. 22-
23, grifos do autor).

315
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Apesar de possuírem conceitos distintos, o preconceito e


discriminação são ramificações do racismo, pois interagem nas
manifestações conscientes e inconscientes nos contextos sociais
permeados de “certos privilégios” partindo das concepções de
fenótipos alicerçados nos poderes de vantagens e desvantagens, que
são atribuídos nas interrelações do racismo individual, institucional e
estrutural que permeiam a sociedade contemporânea atual.

Ou seja, pensar o racismo como parte da


estrutura não retira a responsabilidade
individual sobre a prática de condutas racistas
e não é um álibi para racistas. Pelo contrário:
entender que o racismo é estrutural, e não um
ato isolado de um indivíduo ou de um grupo,
nos torna ainda mais responsáveis pelo
combate ao racismo e aos racistas Consciente
de que o racismo é parte da estrutura social e,
por isso, não necessita de intenção para se
manifestar, por mais que calar-se diante do
racismo não faça do indivíduo moral e/ou
juridicamente culpado ou responsável,
certamente o silêncio o torna ética e
politicamente responsável pela manutenção do
racismo. A mudança da sociedade não se faz
apenas com denúncias ou com o repúdio
moral do racismo: depende, antes de tudo, da
tomada de posturas e da adoção de práticas
antirracistas. (ALMEIDA, 2019, p.34).

A Instituição Escolar pode exercer o racismo nas três

316
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

concepções de racismo consciente ou inconsciente pela sua


representação como entidade social, quando age com silenciamento
nas discussões e estudo sobre as temáticas étnico-raciais ou faz “vista
grossa” em situações corriqueiras que possam ocorrer dentro do
ambiente escolar com apelidos estereotipados.

Contudo, a Instituição Escolar apresenta um papel


preponderante para prática de Educação antirracista na perspectiva
decolonial que consiste no educar no respeito para a diversidade étnica
e cultural. Desde a Educação infantil até Ensino Superior, direcionada
para criança negra ou não negra com olhares humanizadores e com
utilização de diferentes materiais didático-pedagógicos. Nesse sentido,
destacamos a literatura infanto-juvenil como grande aliada no
combate ao racismo, a partir de um estudo das narrativas literárias
focadas na (re)construção da identidade negro-brasileira.

2 A LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRO-


BRASILEIRA OU NEGRO-BRASILEIRA: POSSÍVEIS
CONCEITOS

A Literatura Infanto-Juvenil corresponde em elucidar o saber


imaginário da criança, provocando sensações de pertença com caráter
alusivo entre o fictício e o real, pois pode exercer um caráter formativo
com valores simbólicos, estéticos e educacionais, sendo forte
influência na formação intelectual da criança desde a mais tenra idade.

317
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Historicamente, a literatura infanto-juvenil adentrou no


espaço brasileiro para fins de escolarização sofrendo fortes influências
sociais, políticas e econômicas nos trajetos percorridos. Segundo
JOVINO (2006, p. 187).

A literatura dirigida ao público infantil começa


a ser publicada no Brasil nos fins do século
XIX e início do século XX. No início tinha fins
didáticos, ou seja, eram publicados destinadas
à educação formal, à moralização, ou à
evangelização de crianças e jovens. Mas os
personagens negros só aparecem a partir do
final da década de 30, no século XX. É preciso
lembrar que o contexto histórico em que as
primeiras histórias com personagens negros
foram publicadas, era uma sociedade recém
saída de um longo período de escravidão. As
histórias dessa época buscavam evidenciar a
condição subalterna do negro. Não existiam,
nesse período, nas quais os povos negros, seus
conhecimentos, sua cultura, enfim, sua história,
fossem retratados de modo positivo.

Diante de tal realidade, a utilização de obras literárias dentro


do contexto escolar ao longo da história brasileira foram veiculadas
com enaltecimento do povo branco, no protagonismo e enredo
relacionando-os com ideia de príncipes, princesas, heróis e heroínas e

318
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

desfavorecendo a construção do personagem negro/a com


características de subalternidade e práticas de discriminação,
preconceito e racismo – literaturas vistas por muito tempo como
“história única” ligadas à concepção do poder hegemônico europeu.
Mas, a comunidade negro-brasileira não admitia a negação de si,
dentro do contexto histórico literário, social, político e econômico.
Em 1978, foi fundado o movimento Negro Unificado “(...)
precisamente no ano de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal de
São Paulo(...)” (CUTI, 2010, p.28). Nesse mesmo período os
“cadernos negros” formam escritos objetivando escritas de contextos
positivos do povo negro com pensamentos críticos nas diferentes
realidades. Sendo considerada uma forma de resistência de espaços de
saber e da defesa existencial de sua identidade negra para o
enfrentamento às adversidades que o racismo era aplicado na
sociedade.

Desde a década de 1980, a produção de


escritores que assumem seu pertencimento
enquanto sujeitos vinculados a uma entidade
afrodescendente cresce m volume e começa a
ocupar espaço na cena cultural, ao mesmo
tempo em que as demandas do movimento
negro se ampliam e adquirem visibilidade
institucional. (DUARTE,2011, p.11)

Dessa forma, faz-se importante uma definição de literatura

319
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

afro-brasileira ou negro- brasileira para a contextualização das


diferenças no universo da literatura infanto-juvenil diante da interação
com temática étnico-racial. Desse modo, partiremos dos estudos do
professor/pesquisador Eduardo de Assis Duarte, que tece cinco
critérios importantes para tal nomenclatura: a temática, a autoria, o
ponto de vista, a linguagem e o público. E de Luiz Silva (Cuti), para
importantes considerações a respeito da nomenclatura de Literatura
Negro-Brasileira.

Ao nos debruçarmos no texto: “Por um conceito de Literatura


Afro-Brasileira”, de Eduardo de Assis Duarte (2011), no qual ele
apresenta critérios para que a literatura acompanhe tal nomenclatura.
No que tange ao critério da temática, faz-se necessário uma discussão
da história e cultura africana e afro-brasileira, a ancestralidade, as
narrativas orais, a crítica ao preconceito e ao branqueamento, a
marginalidade e a prisão, e a subalternidade social. O autor revela que
o que a torna importante é a interrelação entre temática, autoria e
ponto de vista, enfatizando credibilidade na escrita.

A autoria defendida por Duarte (2011), implica em


considerações aos fatores biográficos ou fenótipos. Isso, com o
objetivo de subjetividade identitária de afrodescendente ou negro-
brasileira, no sentido de compreensão, não somente na materialidade
da cor, mas numa integridade de experiência da realidade vivida a

320
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

partir e suas escritas.

Nesse sentido, indicamos uma tradição da comunidade negro-


brasileira de relembrar e fazer memória e referência a historicidade
afrodescendente e que os mestres da militância em suas obras literárias
afro-brasileiras, cujo exercício se dá na maestria por parte dos
precursores, dentre eles destacamos: Luiz Gama, Cruz e Sousa, Lima
Barreto, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo,
dentre outros; na Literatura Infanto-Juvenil contemporânea: Geni de
Guimarães, Neusa Baptista, Kiusam de Oliveira, Nilma Lino Gomes,
dentre tantos que estão assumindo sua identidade afro-brasileira ou
Negro-brasileira.

No que se refere ao ponto de vista ou “lugar de fala”, partimos


do pressuposto de assumir sua identidade e espaço social que se faz
parte como forma de denunciar e combater o racismo, discriminação
e preconceito. Através de seus escritos, sejam eles em prosa, conto,
romance, versos ou obras literárias infanto-juvenis, sempre havendo
um enaltecimento da cultura e história afro-brasileira em suas
diferentes temáticas, objetivando uma ressignificação positiva da
mesma.

O “lugar de fala”, segundo a filósofa, ativista social e escritora


Djamila Ribeiro em seu livro intitulado: O que é lugar de fala? (2019).
É uma representação política- social que parte da relação hierárquica

321
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

de poder entre grupos da pirâmide social e na interseccionalidade de


raça, gênero, classe e sexualidade, numa luta constante contra o
colonialismo patriarcal. A autora afirma que:

Nesse sentido, seria urgente o deslocamento


do pensamento hegemônico e a ressignificação
das identidades, sejam de raça, gênero, classe
para que se pudesse construir novos lugares de
fala com o objetivo de possibilitar voz e
visibilidade a sujeitos que foram considerados
implícitos dentro dessa normatização
hegemônica. (RIBEIRO, 2019, p.25).

Nesse sentido, o lugar de fala do negro/a brasileira concerne


a uma prática decolonial antirracista confrontando alguns aspectos
que ainda são vinculados na sociedade. Denota-se na veiculação de
valores éticos, culturais, políticos e ideológicos na historicidade afro-
brasileira. A começar do vocabulário de origem Africana, fenótipos,
musicalidade, dança, instrumentos culturais, vestimenta, até
alimentação sempre com uma linguagem apurada de significados para
um (re)conhecimento e melhor empoderamento de sua identidade.

Como público-alvo está ligado diretamente à comunidade


negro-brasileira, bem como, a toda população no sentido de
conhecimento para uma educação antirracista que ultrapasse os muros
das instituições escolares, que estejam nas mais diversas fontes de

322
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

bibliográficas do livro impresso ao digital de uma maneira que possa


atender todas realidades do país.

Luiz Silva, pseudônimo (Cuti), defende em seu livro:


Literatura Negro-Brasileira (2010) defende a intitulação de “Negro-
Brasileira” em virtude das vivências do racismo, preconceito e
discriminação são sofridos dentro do território brasileiro e não no
continente Africano. Os países africanos sofrem suas mazelas que são
combatidas pelo povo africano. As escritas de obras literárias são
tecidas dentro do território geográfico brasileiro por negros-
brasileiros. Como é justifica:

A literatura negro-brasileira nasce na e da


população negra que se formou fora da
África, e de sua experiência no Brasil. A
singularidade é negra e, ao mesmo tempo,
brasileira, pois a palavra “negro” aponta para
um processo de luta participativa nos
destinos da nação e não se presta ao
reducionismo contribucionista a uma
pretensa brancura que a englobaria como um
todo a receber, daqui e dali elementos negros
e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de
participação na vida nacional, o realce a essa
vertente literária deve estar referenciado à sua
gênese social ativa. O que há de manifestação
reivindicatória apoia-se na palavra “negro”.
(CUTI, 2010, p.42).

323
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Compreendemos que os conceitos de literatura infanto-juvenil


negro-brasileira ou afro-brasileira se completam e vêm educando e
enfrentando as facetas do racismo, preconceito e discriminação no
silenciamento imposto durante séculos da historicidade do povo
brasileiro, derrubando os paradigmas existentes dentro da sociedade.
pois elas apresentam, em sua composição, a emoção e encantamento
do imaginário da criança pequena e juvenil no combate direto às
práticas estereotipadas que permeiam os espaços escolares de todo
país.

3 ANÁLISE DA TEMÁTICA AFRO-BRASILEIRA OU


NEGRO- BRASILEIRA NA OBRA LITERÁRIA BETINA

Betina (2009) é uma literatura infanto-juvenil negro-brasileira


ou afro-brasileira, voltado para o público infanto-juvenil para práticas
de ensino antirracista, pois uma Educação antirracista é aquela que
permite o (re)conhecimento de sua história e identidade, sendo
acolhidas dentro dos espaços que circundam. Desse modo, a obra
literária “Betina” apresenta o intuito de enveredar de maneira amorosa
na história e cultura do povo negro com a problemática do cabelo
crespo, mostrando as relações familiares, ancestralidade, relações
dentro do ambiente escolar com discriminação, e o desfecho positivo
de orgulho de ser negra, de representação da cultura negra-brasileira.

324
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Para análise da obra literária, partirmos da composição do


gênero narrativo nos elementos: enredo, espaço, tempo, narrador e
personagens. Entrelaçando-os na historicidade sociocultural negro-
brasileira na observância dos cinco critérios definidos pelo professor
Eduardo de Assis Duarte a temática, a autoria, ponto de vista, a
linguagem e o público no enfrentamento para possível
empoderamento étnico-racial.

O enredo apresentado na obra literária infanto-juvenil “Betina”


é protagonizado por uma criança (menina-negra), bem cuidada pela
família, e que vive situações socais saudáveis de brincadeiras
cotidianas com presença familiar constante em toda narrativa, com
presença do narrador onisciente.

Figura 1: Capa obra literária Betina

Fonte: Gomes (2009).

Desse modo, incorpora em seu enredo a temática étnico-racial,

325
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pois, ao mesmo tempo que esclarece o contexto social evidenciado na


voz feminina da menina/mulher que por muito tempo foi silenciada
na sociedade brasileira patriarcal no sistema colonial, também trabalha
na tessitura de ressignificação dos corpos e cabelos, na
representatividade da beleza negra-brasileira com interações sociais
dentro do contexto familiar e escolar.

Para o/a adolescente negro/a, a insatisfação


com a imagem, com padrão estético, com a
textura do cabelo é mais do que uma
experiência comum dos que vivem esse ciclo
da vida. essas experiências são acrescidas do
aspecto racial, o qual tem na cor da pele e no
cabelo os seus principais representantes.
(GOMES, 2002, p. 47).

Os aspectos positivos representados pela protagonista Betina


prestigia de maneira efetiva a construção da identidade da menina
negra ou não-negra, ao mesmo tempo que colabora para uma
educação antirracista de colonial nas relações interpessoais nos
âmbitos de que faz parte.

O espaço e tempo enfatizado na narrativa faz referência ao


ambiente familiar com relações saudáveis entre vovó, Betina e sua
mamãe. Bem como, no espaço escolar nas relações interpessoais e

326
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

intrapessoais são evidenciadas com alegria pela protagonista.

Quando a avó terminava o penteado, Betina


dava um pulo e corria para o espelho. Ela
gostava do que via. Do outro lado espelho,
sorria para ela uma menina negra, com olhos
grandes e pretos como jabuticabas, rosto
redondo, bochechas salientes, cheia de
trancinhas e bolinhas coloridas nas pontas.
(GOMES, 2009. p. 08).

A importância da autoestima da menina Betina é apresentado


como um fio condutor positivo para de discussão e desconstrução de
práticas discriminatórias e preconceituosas vivenciadas possivelmente
dentro do ambiente escolar.

Figura 2: Vovó e Betina

327
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Fonte: Gomes (2009)


A questão da identidade cultural, vivenciada dentro do
ambiente familiar, gera na criança a autonomia, o cuidado e a
valorização de si e da família. Em um momento no qual a maioria das
crianças negras apresentam vergonha dos cabelos crespos, a autora
trabalha com veemência a questão do zelo ao corpo da criança negra
de maneira positiva, visto que, o padrão de beleza imposto pela
sociedade é a questão do cabelo liso, mostra para a criança e para toda
sociedade que o cabelo crespo é lindo e que a criança negra ou não-
negra deve ter orgulho e aceitação positiva dos traços identitários.

Mas havia também quem não gostasse das


tranças de Betina. Menino e menina torciam
o nariz e puxavam as trancinhas da garota
quando ela estava distraída. Betina respondia,
de forma enérgica, não deixava passar nada:
- Para com isso! Tá com inveja, é?! Se quiser,
peço a minha avó para fazer uma trancinha
no seu cabelo também. (GOMES, 2009.p.12).

Essa prática discriminatória vivenciada pela protagonista


Betina representa o reflexo de realidades vivenciadas por muitas
crianças negras dentro do universo escolar e que as diferentes atitudes
reverberarão de maneira positiva ou não na vida delas. A instituição
familiar e escolar exerce um papel preponderante para o

328
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

enfrentamento do racismo vivenciado dentro do âmbito escolar. Pois


a realidade vivida pela protagonista Betina no contexto familiar e
escolar a ajudou no combate contra a discriminação dentro da escola.
Através de sua autoestima empoderada aniquila todas as mazelas do
racismo.

A riqueza que a obra literária é constituída no papel familiar,


escolar e do empoderamento da protagonista. A junção dos papéis
ajudou-a no enfrentamento do preconceito oriundo do racismo que
ainda se faz presente dentro da sociedade brasileira, haja visto que as
problemáticas sociais são refletidas dentro do seio escolar.

Figura 3: Betina Mulher

Fonte: Gomes (2009)

O trançado feito no cabelo de Betina por sua vovó aguçou no

329
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pensamento da mesma curiosidade no significado de cada modelo


trançado nas ramificações da historicidade cultural hereditária
resultando na ressignificação da importância dos seus cabelos que,
posteriormente, proporcionou a escolha de sua profissão.

Nesse sentido, esta temática desempenha um papel


preponderante dentro da sociedade e no ambiente escolar. Pois, por
muito tempo foi visto como motivo de negação identitária, muitas
vezes estereotipado como cabelo “ruim”, gerando na criança uma
baixa autoestima e negação de si mesmo. No entanto, deve ser visto
como símbolo de luta, resistência, história e cultura, bem como
enfatiza a própria autora em seu livro: Sem perder a raiz - corpo e
cabelo como símbolos da identidade negra.

O cabelo do negro, visto como “ruim”, é


expressão do racismo e da desigualdade racial
que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do
negro como “ruim” e do branco como “bom”
expressa um conflito. Por isso, mudar o
cabelo pode significar a tentativa do negro de
sair do lugar da inferioridade ou a introjeção
deste. Pode ainda representar um sentimento
de autonomia, expresso nas formas ousadas
e criativas de usar o cabelo. Estamos,
portanto, em uma zona de tensão. É dela que
emerge um padrão de beleza corporal real e
um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é
branco, mas o real é negro e mestiço. O
tratamento dado ao cabelo pode ser

330
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

considerado uma das maneiras de expressar


essa tensão. A consciência ou o
encobrimento desse conflito, vivido na
estética do corpo negro, marca a vida e a
trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro,
a intervenção no cabelo e no corpo é mais do
que uma questão de vaidade ou de
tratamento estético. É identitária. (GOMES,
2019. p.25).

O trabalho dentro do ambiente escolar, seja na Educação


Infantil ou no Ensino Fundamental, deve ser vivenciado como o dessa
literatura e de outras que mostrem a importância de ter cabelo crespos
e cuidados de maneiras diversas sem que precise alisá-los. Os
penteados da cultura negro-brasileira ou afro-brasileira é herança da
ancestralidade que permeia a sociedade brasileira em atributos de
beleza e cuidado de si. Em que, criança, mulher ou homem negro
articula de forma positiva dentro de salões especializados em
penteados de tranças ou de Black Power, favorecendo o lado emotivo
da criança, jovem ou adulto.

A autora, mulher negra, professora, pedagoga e mestre em


Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além
de doutora em Antropologia Social da pela USP, cumpriu estágio pós
doutoral na Universidade de Coimbra. A militância de Nilma Lino

331
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Gomes 5 junto à luta do Movimento Negro e com práticas ativas


educacionais dentro da esfera nacional e global, vem combater,
principalmente, a raiz do racismo cravado dentro das entranhas da
sociedade: Racismo estrutural. Como militante à frente de diversos
grupos de pesquisa executa com magnífico zelo, o cuidado com o
povo negro e não-negro do país. A ação de educar desde a Educação
Infantil até o Ensino Superior, com seus estudos e publicações para
plantar no solo fértil que é o coração da criança pequena e jovem,
entra com sua literatura para gerar o amor e apagar o ódio que outrora
fora plantado nas estruturas da sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância da Literatura infanto-juvenil negro-brasileira


ou Afro-Brasileira constitui material metodológico importante para a
desconstrução de práticas racistas estruturais, enraizadas na sociedade
brasileira. Além disso, faz-se necessário para alicerçar uma Educação
antirracista e de colonial, respeitando às diferenças e sabendo que o
país é multiétnico e pluricultural, trazendo significados e significância

5Biografia de Nilma Lino Gomes. literafro - O portal da literatura Afro-Brasileira


Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/368-nilma-lino-gomes Acesso em 20
de janeiro de 2023.

332
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

para as vivências das crianças e em seus âmbitos escolares e sociais.

Portanto, é vital o reconhecimento da valorização da


Literatura infanto-juvenil afro-brasileira-brasileira ou negro-brasileira
na exclusividade das narrativas do protagonismo de meninas negras
pratica o empoderamento e orgulho de pertença a cultura e história
do povo negro brasileiro. Da mesma forma, o ambiente escolar é o
espaço privilegiado nesta construção de autonomia identitária,
trazendo significados e significância para o convívio nas interações
sociais, sabendo conviver, ser, e se fazer cidadãos críticos dentro de
uma sociedade pluriétnica e multicultural.

Essa obra Literária se configura no contexto de Educação


antirracista e de colonial, porque educa e forma para na perspectiva
multicultural e pluriétnica com práticas de respeito à diversidade.
Precisamos abundantemente de profissionais e lideranças
comprometidos/as, com olhares sensíveis nesta perspectiva, pois a
legislação já corresponde uma abertura para uma prática atuante que
se deve acontecer de forma “cotidiária”.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. -- São Paulo: Sueli


Carneiro; Pólen, 2019. 264 p. (Feminismos Plurais / coordenação de
Djamila Ribeiro.

333
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

CUTI (Luiz Silva) Literatura negro-brasileira / Cuti – São Paulo:


Selo Negro, 2010. – (coleção consciência em debate/coordenada por
Vera Lúcia Benedito)
DUARTE, E. (2011). Literatura afro-brasileira: um conceito em
construção. Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea, (31),
11–23. Recuperado de
https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9430
Acesso em: 25/12/2022.
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo
crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?
Revista Brasileira de Educação [online]. 2002, n.21, pp.40-51. ISSN
1413-2478. Disponível em:
http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S14132
4782002000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em 15 de
fevereiro de 2023.
__________, Nilma Lino. Betina. / Nilma Lino Gomes; ilustrado
por Denise Nascimento- Belo Horizonte. Mazza Edições, 2009.
___________, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo
como símbolos da identidade negra -- 3. ed. rev. amp. -- Belo
Horizonte : Autêntica Editora, 2019. -- (Coleção Cultura Negra e
Identidades).
JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil com personagens
no Brasil. in. SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (org)
Literatura Afro-Brasileira. Centro de Estudos Afro-Orientais,
Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, pp. 184-217.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no brasil:
identidade nacional versus identidade negra. 2ed.,1 reimp.- Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão.
Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural

334
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

no Brasil. Educação em Revista. Belo Horizonte. V.26.n.01.p. 15-


40.abr.2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-
46982010000100002 Acesso: 10 de janeiro de 2023.
RIBEIRO. Djamila. O que é: lugar de fala? -- Belo Horizonte (MG):
Letramento: Justificando, 2017. 112 p. (Feminismos Plurais).

335
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

336
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 14

O ESTUDO DAS QUESTÕES DE GÊNERO NOS CURSOS


DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Ana Carla Pinheiro Alves1


Gonçalo Ferreira Parnaíba2

RESUMO: Discutir os processos formativos da formação docente


implica abranger e considerar os diversos assuntos que demarcam a
sociedade contemporânea, bem como seus processos progressivos
e/ou regressivos. Diante disso, as relações de gênero estão atualmente
presentes nos mais variados âmbitos da sociedade. E este, não melhor
que outras temáticas, precisam estar conectadas com o
desenvolvimento gradual do meio, de modo a favorecer tais
discussões e quebrar paradigmas a seu respeito. Dessa forma, o artigo
tem por objetivo refletir acerca do estudo das questões de gênero na
universidade e suas implicações na formação docente. A partir deste
foram designados alguns objetivos específicos: Refletir acerca do
processo de formação docente e a construção sócio-cultural sobre
questões de gênero; Verificar as perspectivas das discentes
entrevistadas quanto ao processo de ensino e aprendizagem em
relações as questões de gênero; Compreender os principais desafios e

1Graduada em Pedagogia pela UFCG – Especialista em Gestão e Coordenação


Escolar - Diretora Administrativa e Pedagógica da Escola Raimundo José da
Fonseca, Lavras da Mangabeira – CE, Brasil – E-mail: anacarlaveld@gmail.com;
2Graduado em Pedagogia pela UFCG - Especialista em Gestão Escolar –
Coogestor da E.M.E.I.E.F. Agripino Pereira de Sousa, Santa Helena – PB, Brasil –
E-mail: amarantedabonita@gmail.com

337
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

possibilidades de um trabalho com as questões de gênero no âmbito


educativo. A pesquisa é de caráter exploratório, qualitativa e
bibliográfica, pretendendo responder a problemática - Como se dá os
estudos das questões de gênero no centro de formação de
professores- CFP? - através de um questionário avaliativo destinado a
4 discente do Centro de Formação de Professores -CFP-UFCG.
Nesse sentido, consideramos pertinente a abordagem e estudo das
duas perspectivas, no intuito de proporcionar uma leitura
sistematizada sobre esse processo que se estabelece emergente nas
conferências sociais, bem como no dia a dia dos indivíduos. E assim,
favorecer uma melhor compreensão mediante a literatura revisada e
as contribuições tidas perante o decorrer do texto, mediante tal análise.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Universidade. Formação Docente.

INTRODUÇÃO
Dentre os processos construtivos de formação pessoal do ser
humano, a questão de gênero está (ou precisa estar) diretamente
inclusa nas frequentes discussões que permeiam na sociedade, uma
vez que influenciam noutros aspectos desse desenvolvimento. E
apesar de nos dias atuais algumas temáticas já conseguirem ser
abordadas com mais naturalidade, discorrer acerca do eixo em foco
implica submeter-se a vivenciar desafios constantes, tendo em vista os
estereótipos, preconceitos e julgamentos intricados em alguns
discursos.
A partir de uma retrospectiva histórica, podemos nos situar e
identificar o início dessa (des)construção num dos princípios que

338
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

formam a sociedade, a cultura. Entretanto, ao limitarmos essa “culpa”


apenas no cumprimento de costumes e crenças, não estaríamos sendo
justos. Pois, além disso, existem outros fatores que ainda hoje estão
intrinsecamente ligados a essa supressão de conhecimento. Com isso,
reconhecer essa complexidade evidencia, também, os desafios
vivenciados pelos professores cotidianamente nas escolas, uma vez
que sempre ocorre um jogo de responsabilidades sobre a construção
cognitiva, social, afetiva, e cultural, o que acaba por dicotomizarem
fases importantes do desenvolvimento da criança.
Nessa perspectiva, e tendo em vista as evoluções e
transformações que nossa sociedade passa diariamente, acreditamos
ser imprescindível discorrer acerca desse estudo no âmbito
educacional. Por ser um assunto polêmico e complexo de se tratar,
vemos a necessidade de explanar sistematicamente tais abordagens
emergentes, que, com certeza contribuirão no processo formativo do
público alvo do estudo.
Para tanto, ao analisar a abrangência e contribuição dessa
pesquisa para a formação docente, é pertinente destacar o quão é
importante que os educadores na contemporaneidade preocupem-se
em elucidar essa questão, haja vista ao vivenciarem situações
conflitantes, e assim consigam agir satisfatoriamente (ao invés de agir
por princípios pessoais) aos desafios na sala de aula.
Dessa forma, surge o interesse em pesquisar sobre gênero,

339
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pela curiosidade e vontade de aprimorar os conhecimentos acerca da


temática, tendo em vista a influência do estudo para formação e
atuação docente. Além disso, algumas disciplinas que o curso oferta
para a construção acadêmica e profissional, sendo elas: educação,
cultura e diversidade; ética e educação; foram abordaras de maneira a
despertar tal interesse e, de certa forma, uma preocupação na ação
docente que posteriormente eu iria encarar.
A pesquisa pretende responder a problemática tida como
pertinente, que está organizada: Como se dá os estudos das questões
de gênero no centro de formação de professores- CFP? Numa
perspectiva de esclarecer tanto os processos formativos designados
aos futuros docentes em relação a essa temática, bem como esses
abordaram tal questão no âmbito educacional. Entretanto, não se
delineia focando único e exclusivamente as metodologias elaboradas
para sala de aula, mas principalmente na construção do pensamento
crítico do docente em relação a questões de gênero, tidas como
emergentes na sociedade contemporânea.
Assim, o objetivo da pesquisa designa refletir acerca do estudo das
questões de gênero na universidade e suas implicações na formação
docente. Para isso, foi conferido estudo de alguns autores em que
consideramos pertinente para o desenvolvimento desta pesquisa
como: Imbernón (2006), Libâneo (2012), Oriani (2015), entre outros.

340
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

1. GÊNERO E UNIVERSIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE

1.1 Formação do Pedagogo: Historicidade e Legalização

Discutir acerca da identidade do processo de formação do


pedagogo nos desperta uma curiosidade e interesse tanto no que diz
respeito pela historicidade de seu desenvolvimento construtivo, como
pelas lutas remetentes de reformulação dos cursos de formação de
professores, principalmente o de pedagogia.
Com os atos sociais e as demandas que cada vez mais
apareciam foi pensado uma maneira de organizar todo esse caos
mediante a situação presente na educação. A trajetória do processo de
formação docente envolve muito mais do que um marco de
manifestos e debates mediante as buscas e conquistas. Mas uma forma
de evidenciar o contexto do âmbito educacional com seus impasses e
declínios. Diante disso, verificou-se como necessário a elaboração de
uma lei que regesse a formação superior do pedagogo, visto que
garantisse a sua formação docente integral, tendo em vista os
contextos previstos na educação infantil e anos iniciais, além de tentar
suprir as carências de professores nesses espaços.
A Lei de nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, instituída como
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, assegura o direito à

341
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

educação básica para todos, visando oportunizar quanto a


todos os processos formativos da criança e do adolescente. O
documento estabelece por meio de artigos, leis que garantem a
educação, sendo subdividido por modalidades características do
âmbito educacional. Dessa forma, no que diz respeito aos princípios
da educação, e mediante a discussão proposta, o Art.2º explana de
modo geral e pertinente:
Art. 2o A educação, dever da família e do
Estado, inspirada nos princípios de liberdade
e nos ideais de solidariedade humana, tem
por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
(BRASIL, 2017, p.08)

Em meio a essa busca incessante de igualdade social entre


todos, é relevante considerar que, apesar da unidade escolar favorecer
o desenvolvimento integral de alguns processos de construção pessoal,
social e educacional da criança, a família e a sociedade ainda são as
instâncias influenciadoras e fundamentais nesse processo, uma vez
que considere as vivências, relações e crescimento, tendo em vista
todas as fases da infância e adolescência.
Contudo, ainda hoje o pedagogo sofre impactos desse
processo que, apesar de ter se passado mais de vinte anos, reflete na
realidade cotidiana pelas rápidas escolhas e necessárias improvisações

342
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

da época. (GATTI; BARRETO, 2009)


Todavia, verificamos como pertinente a discussão do
desenvolvimento profissional do professor pedagogo, a fim de
esclarecer e evidenciar seu processo construtivo tanto da historicidade
que o caracteriza, quanto pela busca de uma identidade docente em
meio aos movimentos de luta e reivindicações de direito e
reconhecimento. Nessa perspectiva:

O sistema Educacional sempre situou a


formação do profissional da educação, ou
seja, a profissionalização docente, no
contexto de um discurso ambivalente,
paradoxal ou simplesmente contraditório: de
um lado, a retórica histórica da importância
dessa formação; de outro, a realidade da
miséria social e acadêmica que lhe concedeu.
(IMBERNÓN, 2006, p. 57)

Em contra partida, esse pensamento nos atenta a pensar


acerca do conhecimento profissional do professor, que, embora seja
considerável suficiente e acabado, não favorece as realidades impostas
para tal. Visto que não se limita ao que se foi conferido durante a
formação profissional, pelo contrário, deve abranger-se nos desafios
contínuos da ação pedagógica. Dessa forma, prevê-se uma dissociação
do que se foi apropriado ao que se tem na realidade, ou seja, a práxis
docente não consegue se efetivar nesse contexto. Assim sendo, o

343
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

conhecimento pedagógico não se torna suficiente para atender as


demandas encontradas diariamente se não houver intencionalidade na
ação e transmissão de conhecimento. Nesse sentido:
Os futuros professores e professoras
também devem estar preparados para
entender as transformações que vão
surgindo nos diferentes campos e para ser
receptivos e abertos a concepções pluralistas,
capazes de adequar suas atuações às
necessidades dos alunos e alunas em cada
época (IMBERNON, 2006, p. 61).

Para tanto, a formação inicial precisa garantir bases de


construção progressiva que favoreça no processo de desenvolvimento
do professor, uma vez que possa servir de suporte para possíveis
questões surgidas no decorrer de sua prática docente. Por outro lado,
vale ressaltar as propostas metodológicas que permeiam na formação
docente, tidas como “maneiras”, “jeitos”, “receitas” prontos e de
caráter tradicional (fazer por fazer) para se efetivar a ação, e que muitas
vezes influenciam nos resultados dessa ação. Assim, no que diz
respeito ao processo formativo do professor, é preciso proceder de
forma reflexiva, consolidando e buscando desenvolver uma ação
dialética do ensino e aprendizagem.
Entretanto, é preciso verificar todas as vertentes que
estabelecem essa ação, como por exemplo, o currículo formativo, que

344
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

orienta e norteia o professor na sua prática pedagógica. E este, apesar


de auxiliar nesse processo, não deve ser elaborado e fechado, e sim
flexível, tendo em vista possíveis alterações em sua estrutura. O
currículo é essencial para a efetividade da prática docente, porém, é
necessário reconhecer que sua construção ocorre de forma contínua
a cada experiência vivenciada pelo professor. Na perspectiva de
Imbernon (p. 62) o currículo formativo: “[...] deveria promover
experiências interdisciplinares que permitam que o futuro professor
ou professora possa integrar os conhecimentos e procedimentos das
diversas disciplinas (ou disciplina).”
As concepções divergentes sobre a capacitação profissional
dos docentes explanam uma “confusão” e, ao mesmo tempo, variados
conceitos diante diferentes contextos. Com isso, faz-se necessário um
estudo mais aprofundado sobre o olhar para com esses profissionais.
Tendo em vista uma preocupação quanto ao desenvolvimento do
praticismo, além de um possível modismo decorrente de uma
hegemonia mediante uma perspectiva de reflexão. Ou seja, a
generalização conceitual de reflexão caracteriza o professor a um
sujeito “simples”, em que suas especificidades são desvalorizadas,
tornando-o um mero termo.
Pensar no processo reflexivo é pensar numa melhor qualidade
de ensino e aquisição de conhecimento. O professor, ao implantar esse
componente à sua formação docente, proporciona a todo conjunto

345
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

educacional um novo caminho, possibilitando a formação de


indivíduos autônomos. Efetivando-se, pois, através do processo
reflexivo-crítico. Dessa forma, “É importante repensar a formação
inicial e contínua, pois o trabalho do professor enquanto mediador do
conhecimento e do desenvolvimento da cidadania dos alunos está
num processo gradativo para a superação do fracasso e das
desigualdades sociais.” (PIMENTA; GHEDIN, 2006, p. 217)
Nesse sentido, é indiscutível o papel do professor diante a
construção formal, moral e social do aluno, tendo em vista vários
fatores que o caracteriza e o torna esse mestre fundamental nesse
processo. Vale salientar quanto à visão do professor sobre a
profissionalização, em que se ressalta a continuação da formação; a
capacitação de sua prática para melhor desempenho e competência
em sala de aula. A reflexão, em razão da prática, é relevante para que
o docente não se limite a simples formação moderada e técnica. Esse
desenvolvimento metódico se baseia na atualização e ampliação de
conhecimentos que consequentemente refletem sobre a prática
docente e organização do currículo, fazendo-o um componente
intencional e seletivo.
Nesse sentido, discutir essa perspectiva nos leva a pensa em
como podemos entrelaçar questões que estão presentes no nosso dia
a dia, e que conseguimos perceber a fragilidade do professor
pedagogo diante das mudanças e transformações cotidianamente

346
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

vivenciadas tanto em sala de aula, quanto na sociedade em geral:

Além disso, há a demanda dos movimentos


sociais, dos novos sujeitos sociais
reivindicando o direito à diversidade, que
deve estar presente nos currículos tanto para
a reflexão acerca de novas práticas
pedagógicas quanto para a formação do (a)
professor (a) pesquisador (a). Há que se
repensar, com os limites impostos pela
política atual de formação dos (as)
profissionais da educação e diante das novas
realidades econômicas e sociais, sobre a
qualidade da educação e sobre a formação de
educadores e educadoras. (LIBÂNEO, 2012)

Contudo, diante desse contexto, o modelo hegemônico na


educação não atende as exigências na atualidade, uma vez que o
professor não passa de um mero transmissor de conhecimentos,
limitando sua profissão e minimizando seu processo formativo. A
competência que deve estar presente na dinâmica do desenvolvimento
profissional, acaba por se resumir brevemente na “moral do professor
sobre os alunos”; os conteúdos e assuntos trabalhados fracionando-
os para que haja mais quantidade, ao invés de qualidade, esquecendo
assim de contextualizá-los, fazendo da formação delicada para
diversos desafios que possivelmente possa aparecer; a separação
evidente que o professor expressa entre teoria e prática, delimitando

347
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

sua profissão em instantes carecidos de rendimentos educativos na


prática docente.
A profissionalização se determina de forma integralizada
ampliando os saberes e metodologias prezadas pelo professor,
fazendo com que o mesmo possa ser confrontado com problemáticas
do dia a dia mesmo que não tenha um resultado prévio, mas que logo
corresponde aos devidos resultados por sua capacitação para
construção de soluções, partindo dos variados recursos cognitivos.
Entretanto, a busca de uma reflexão crítica requer muito mais do que
uma simples escolha, é preciso uma análise generalizada da ação que
se pretende estabelecer e a quem interessa servir, sobre essa
construção social.
A escola, bem como os âmbitos que abarca as práticas
pedagógicas, precisa caminhar de acordo com as evoluções e
transformações que a sociedade passa cotidianamente. Para isso, deve
garantir a inserção de assuntos que necessitam de uma certa atenção
tanto em relação as discussões sociais, quanto aos tipos de abordagens
tidas nesses grupos. Dessa forma, e tendo em vista o tipo de sociedade
em que vivemos – hegemonicamente masculina, heterossexual, de
pessoas brancas, onde só é considerada uma religião: a cristã – é
evidente a necessidade de se introduzir discussões e debates acerca de
questões de gênero, principalmente pela generalização dessa
conceituação de cultura que perpassa de geração e geração, e que

348
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

desconsidera qualquer tipo de grupo ou pessoa que não compartilha


dessas propriedades instituídas por tal.
Nesse sentido, apesar da instituição escolar mostrar um
modelo de educação que desconsidere qualquer tipo de desigualdade,
não consegue velar o que costumamos ver até mesmo dentro da sala
de aula. As vezes acreditamos ser a escola como um todo, bem como
suas metodologias, suas regras, as políticas que regem tal espaço, e
acabamos por esquecer de focar no principal agente que nos conduz,
intervém e educa: o professor. Além de ser o protagonista, é também
aquele que abona todos os processos de formação da criança,
juntamente com o meio social em que está inserida. E, este, precisa
garantir um planejamento que sane tanto as lacunas dos alunos,
quanto auxilie no processo de construção de identidade pessoal e
social.
É importante ressaltarmos a existência de uma significativa
controvérsia de interpretações e opiniões equivocadas quando se trata
das questões de gênero, ao ponto que tal discussão se mostra cada vez
mais alarmante, principalmente para crianças, na medida em que
como se ouve bastante é uma forma de despertar o interesse nas
crianças e estimulá-las a agir de modo contrário ao que a sociedade
impõe - que diria ser o modelo de cultura machista citado acima. Para
tanto, e apesar dos embates, vemos como imprescindível a discussão
de relações de gênero, haja vista a historicidade e seu desenvolvimento

349
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

durante anos.

2. CONCEITUANDO GÊNERO

Ainda hoje, discorrer acerca de gênero perante as mudanças


que ocorrem cotidianamente na sociedade acarretam uma série de
conceitos e preconceitos um tanto equivocados, em virtude de impor
um caráter ambíguo no que se refere a argumentos controladores e
expressões contraditórias. De fato, a precipitação de opiniões e
posturas demonstram tal equívoco, além de ignorar as características
especificas de cada um por generalizar o conceito. À vista disso,
atravessa os preceitos e as diversas explicações que permeiam o campo
teórico e sustentam o que a cultura perpassa durante o
desenvolvimento social: a distinção entre homem e mulher.

A influência dos processos de socialização


sobre a cognição, o comportamento e as
habilidades motoras de ambos os sexos vem
sendo reconhecida por pesquisadores de
várias áreas. E a denúncia do pretenso caráter
fixo e binário de categorias como feminino e
masculino, contido nas explicações
biológicas para as diferenças cognitivas entre
homens e mulheres, tem no conceito de
gênero parte do reconhecimento do caráter
social e historicamente construído das
desigualdades fundamentadas sobre as
diferenças físicas e biológicas. (VIANNA;

350
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

FINCO, 2009, p. 269)

Nessa perspectiva, percebe-se a dissociação do que


acreditávamos existir por igualdade de direitos e saberes, uma vez que
tal conceito intitule características especificas e desconsidere todo o
processo tido até então. Mediante essa separação, tem-se o que se
chama de categorização de corpos e diria de classes instituídas por
especificidades construídas pela concepção da sociedade, que
estabelece as ações, capacidades e o que se deve ou não ser feito por
cada um. Influenciando, assim, no decorrer do desenvolvimento e
construção de identidades dos indivíduos.
Além disso, vale destacar um momento histórico que marcou
todo esse processo de conceituação de gênero na sociedade. Os
estudos de pesquisadoras feministas embasam todo início de
discussões e críticas acerca do tema, visto que, insatisfeitas com o
decorrer dos embates, buscam um meio de intervim direto e
indiretamente, por meio de debates e lutas sociais. Em meio a essas
discussões, estudiosas feministas buscam evidenciar e esclarecer
assertivas decorrentes de tais distinções. Tendo isto em vista, Louro
(1999, p. 85-86) acentua que:

Vêm procurando demonstrar que não são


propriamente as características sexuais, mas
sim tudo o que se diz ou pensa sobre elas,

351
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

tudo o que se representa, valoriza ou


desvaloriza em relação aos sexos que,
efetivamente, constitui o masculino e
feminino numa dada sociedade e num dado
momento histórico.

No entanto, essa perspectiva não se limitou nesse ponto, pelo


contrário, foi o ponto de partida para outras tantas discussões que
surgiram posteriormente, ou na verdade vieram à tona pela abertura
inicialmente polêmica. Mas por questões como a cor da pele, por
mulheres que se reconheciam lésbicas, bem como a classe social em
que se inseriam. O que de certa forma gerou outras concepções e
ocasionou nos debates que cada vez mais se ampliava.

As preferências não são meras características


oriundas do corpo biológico, são
construções sociais e históricas. Portanto,
não é mais possível compreender as
diferenças entre meninas e meninos com
explicações fundadas na teoria do
determinismo biológico e seu uso
consequente da anatomia e da fisiologia
como justificativas para as relações e as
identidades de gênero na sociedade moderna.
(VIANNA; FINCO 2009, p. 269)
De acordo com este pressuposto, percebe-se que as
interpretações sobre gênero enfocam perspectivas socioculturais.

352
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Embora os sistemas visem igualar tal conceituação (de forma abstrata,


de fato), acabam por desconstruir, desvalorizar e limitar as expressões
que deveriam atrelar-se como proposta de desestruturar os
estereótipos a respeito. Nessa ótica, a categorização delimitada entre
homem e mulher, influencia no processo ético, moral e cognitivo, haja
vista as crenças populares que perpassam gerações, de que “homem é
mais forte e mulher é mais frágil”, a exemplo.
Para tanto, é importante lembrar a influência dessas discussões
no âmbito educacional, tendo em vista os diversos contextos
encontrados na sala de aula, bem como o processo de construção do
conhecimento crítico e reflexivo - além da associação dos saberes
tidos na escola e no meio em que está inserido socialmente.
Para tanto, Vianna e Finco (2009, p. 271) discorrem que:

A educação infantil não só cuida do corpo da


criança, como o educa: ele é o primeiro lugar
marcado pelo adulto, em que se impõem à
conduta dos pequenos os limites sociais e
psicológicos. É o emblema no qual a cultura
inscreve seus signos.

Segundo a abordagem exposta pelas autoras, vê-se que é


imprescindível que o professor norteie os alunos de maneira a facilitar
seu processo de assimilação de conhecimentos sobre configurações

353
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

corporais, buscando um meio de naturalizar as características físicas e


comportamentais.
Entretanto, vale destacar que, apesar da escola expor uma
visão democrática, em que busca educar igualitariamente, perpassa
invisivelmente ações remetentes a concepções um tanto contraditórias
que auxiliam nessa dicotomização por categoria. E, tendo em vista
essa diversidade encontrada em sala de aula, faz-se como necessária se
trabalhar o conceito de gênero, no intuito de favorecer as relações
entre os alunos. Assim, como lembra Giachini e Leão apud Pelúcio
(2014, p. 1410) “[...] o que acontece na escola reflete o que se passa
em muitas outras esferas da sociedade, por isso é relevante aprofundar
as reflexões sobre gênero.” Além disso, é pertinente destacar:

As abordagens referentes a esse assunto, na


maioria das vezes, estão centralizadas em
discursos vigilantes e moralizantes, e, além
disso, reforçam modelos de como deve ser o
comportamento considerado adequado para
os meninos e meninas, o que ilustra o quanto
é preciso que tais discursos sejam
desconstruídos. (GIACHINI; LEÃO, 2016,
p. 1411)

Nessa abordagem, é relevante destacar as representações


culturais que acarretam tais comportamentos, relações e
desenvolvimento social, em que presidem de concepções

354
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

manipuladores, costumes, e/ou ações veladas. Dessa forma,


procedem alienadamente de maneira a influenciar futuramente no
desenvolvimento de outras formações, como nos processos
cognitivos, uma vez que condicionam a um padrão de opiniões e
conceitos; social, em que atribuem determinadas perspectivas a serem
seguidas; educacional, no qual muitas vezes limitam expor tais
questões por fatores que, na maioria das vezes, não tem sentido, como
questões de religião e/ou por dizerem ser desrespeitoso; e cultural,
principalmente relacionado à família e comunidade, o que acaba por
transcender sobre os demais âmbitos.
Apesar dos estereótipos e outros fatores presentes nessa
desconstrução educacional, é pertinente o discorrer não só de
abordagem no processo de ensino e aprendizagem, mas do
desenvolver de práticas que naturalizem o que para muitos ainda é
dividido por categoria, o que ainda é dissociável por sexo.
Contudo, a realidade tida é mais complexa do que se vê, pois,
ao delimitar ações e exposição de discursos que impulsionem as
crianças a agirem e pensarem de modo a procederem
inconscientemente, os agentes formadores não percebem o que
realmente está sendo construindo, no caso, conceitos divergentes dos
contextos encontrados, ocasionando na desigualdade de gênero.
Sendo assim, “[...] a convivência da criança na Educação Infantil
sugere que ela compreenda as escolhas que pode fazer para que

355
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

construa suas identidades. Para que esse autoconhecimento ocorra, ela


necessita ter a liberdade de escolher que papéis sexuais e identidades
de gênero ela quer para si.” (ORIANI, 2015, p. 19)
Numa perspectiva contemporânea de construção sócio-
cultural, a autora destaca a relevância de nortear a criança desde sua
inserção na creche, no intuito de favorecer uma compreensão
satisfatória, tendo em vista seu reflexo perante sua ação no meio social.
Posto isto, mesmo que os educadores não atribuam qualquer
tipo de sentido as ações pedagógicas desempenhadas, pode-se dizer
que o conceito de pedagógico se perde ao identificar-se que práticas
sexistas permeiam-se na ação. Desse modo, algumas práticas
educativas favorecem na construção e reprodução de
comportamentos previstos para meninos e meninas, uma vez que
contribua na composição de cada gênero. (ORIANI, 2015, p.15)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da perspectiva de que a formação docente precisa e
deve ser integral, verificamos a necessidade de englobar a construção
educacional e social de todas as questões presentes e emergentes tidas
na sociedade. Além de garantir a introdução e discussão acerca destes,
deve permitir a exploração e autonomia dos discentes sobre quaisquer
assuntos, mesmo que não estejam no currículo vigente, a fim de
proporcionar o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo.

356
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Isto posto, é pertinente se pensar em como se pode introduzir


questões de gênero a partir das metodologias e textos discursivos
durante a formação docente, bem como refletir e abordar, tendo em
vista os variados tipos de contextos. Entretanto, vale ressaltar a
relevância de intencionalizar essa intervenção docente, visto que
objetive não apenas transmitir o conhecimento, mas facilite na
compreensão do aluno sobre o que se pretende.
Dessa forma, a pesquisa busca alcançar quanto aos objetivos
pré estabelecidos, uma vez que estes contribuam no processo de
construção docente à quem a pesquisa estiver destinada. Além disso,
possa admitir a posição de desenvolvimento de valores que, a
princípio, deveria ser do âmbito familiar, tanto em relação a aceitação
de uma sociedade diversificada, como permitir a exploração de
questões relevantes que são veladas para evitar polêmicas.

REFERÊNCIAS
BRABO, Tânia Suely Antonelli Marcelino; CORDEIRO, Ana Paula.
MILANEZ, Simone Ghedini Costa (org.). Formação da pedagoga
e do pedagogo: pressupostos e perspectivas. Marília: Oficina
Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. 246 p. Disponível
em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Publicacoes/formacao-
do-pedagogo_e-book.pdf>. Acesso em: 27 novembro 2020.

BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília:


Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2017. 58 p.
Disponível em:

357
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529732/lei
_de_diretrizes_e_bases_1ed.pdf>. Acesso em: 15 dezembro 2020.

COSTA, Marisa Vorraber (org.). O currículo nos limiares do


contemporâneo. 2ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 176 p.

GATTI, Bernardete Angelina (Coord.); Barreto, Elba Siqueira de Sá.


Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO,
2009. 294 p. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001846/184682por.pdf
>. Acesso em: 15 dezembro 2017.

GIACHINI, Alessandra Cristina Bolfe; LEÃO, Andreza Marques de


Castro. Relação de gênero na Educação Infantil: apontamentos da
literatura científica. RIAEE – Revista Ibero-Americana de Estudos
em Educação, v. 11, n.3, p.1049-1422, 2016. Disponível em:
<http://seer.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9038>.
Acesso em: 11 dezembro 2017.

IMBERNÓN, Francisco. Formação Docente e


profissional:formar-se para mudança e a incerteza/ Francisco
Imbernón. -6 ed. São Paulo, Cortez, 2006- (coleção Questão da Nossa
Época;v.77).

LIBÂNEO, José Carlos; PIMENTA, Selma Garrido. Formação de


profissionais da educação: Visão crítica e perspectiva de mudança.
Educação & Sociedade, ano XX, nº 68, Dezembro/99. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
73301999000300013&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 24
novembro 2017.

ORIANI, Valéria Pall. Relações de gênero e sexualidade na


educação infantil: interfaces que envolvem as práticas
pedagógicas. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de

358
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2015. Disponível


em:
<https://www.marilia.unesp.br/Home/PosGraduacao/Educacao/
Dissertacoes/Valeria_Pall_Oriani_tese_2015.pdf>. Acesso em: 20
novembro 2017.

PIMENTA, S. G., GHEDIN. E. Professor Reflexivo no Brasil:


gênese e crítica de um conceito. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2006.

PIMENTA, Selma G. O pedagogo na escola pública. São Paulo:


Loyola, 1988.

VIANNA, Claudia; FINCO, Daniela. Meninas e meninos na


Educação Infantil: uma questão de gênero e poder. Cadernos pagu
(33), julho-dezembro de 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332009000200010>. Acesso em: 29 novembro 2017.

359
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

360
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

RELAÇÕES INTERSECCIONAIS:
ETNICO/RACIAIS E DE TERRITÓRIO

361
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

362
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 15

NEGROS NO ENSINO SUPERIOR: PERSPECTIVAS


DECOLONIAIS E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

José Renan da Silva Souza1

Resumo: Com a criação das ações afirmativas de cotas raciais para


negros, ouve um aumento no ingresso de negros nas Instituições de
Ensino Superior (IES) brasileiro, as ações afirmativas, vem gerando
debates e críticas opositoras. A margem da sociedade, e mesmo com
as cotas não é nada fácil, há dificuldades no ingresso de negros no
Ensino Superior. Para um jovem negro chegar a ingressar em uma
Universidade e se formar, ele tem que ultrapassar mais “barreiras” do
que um jovem branco, e essas “barreiras” vem desde do sistema de
Educação básica brasileira. Já que muitos negros vêm de uma margem
de desigualdades e pobreza. “Diferenças importantes entre
indicadores educacionais de negros e brancos são observadas desde a
primeira etapa do sistema educacional brasileiro, devendo ser
estudadas na interação com outros marcadores sociais” (ARTES e
RICOLDI, 2015, P. 860). O que assim, isso impede o/um avanço e
desenvolvimento da população negra em que diz respeito
principalmente em ocupações de espaços de poderes dentro da
sociedade, e construção de formação acadêmica de intelectuais negros

1 Historiador e pesquisador das Relações Étnico-raciais e da Cultura afro-brasileira


e africana. Com graduação em História pela Universidade da Paraíba (UEPB). E-
mail: joserenan201515@gmail.com

363
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

brasileiros. E os estudantes negros que atravessam as “barreiras” e


conseguem ingressar nas Instituições de Ensino Superior?
Conseguem se manter nas Universidades? E olhando para as IES
brasileiras, tem em suas grades curriculares componentes de ensino
sobre a História e cultura afro-brasileira? Há escritas e pensamentos
decoloniais? Tentando buscar respostas para as questões a cima, esse
artigo discute sobre negros no Ensino Superior e as relações étnico-
raciais, dialogando na perspectiva decolonial com outros
pesquisadores e autores que tratam e trabalham com a temática a
exemplo de: ASANTE, Molefi kete (2016) NASCIMENTO, Abdias
(2015), MALDONADO TORRES (2020), BERNADINO COSTA,
Joaze e GROSFOGUEL, Ramón (2016), KILOMBA Grada (2019),
COLLINS, Patrícia Hill & BILGE, Sirma (2021) entre outros. Com
as discussões feitas notamos que mesmo com a criação das cotas
sociais/raciais, a gente negra ainda apresenta taxa inferior de acesso e
ingresso no ensino superior, quando conseguem muitos ainda
enfrentam pela frente mais barreiras como a permanência, essa
permanência apresenta três dimensões: A permanência enquanto
duração (Tempo), a simultaneidade na permanência e a sucessão ou
pós permanência. Olhando para o sistema Superior Educacional
brasileiro, as nossas IES, infelizmente ainda nos deixa a desejar, no
que diz respeito em relação a Educação das Relações Étnico-Raciais,
especificamente em componentes que abordam a História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, mesmo com uma lei que obrigue o Ensino.
Palavras-Chaves: Ensino Superior; Decolonialidade; Relações
Étnico-Raciais.

Introdução
Brasil, um país multicultural. Sua construção e pilares regentes

364
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

foi construído pelo o povo negro, povo africano que no início do


século XVI, foram capturados e escravizados da sua terra natal, a
África, e trazidos para o Brasil. Vivendo e trabalhando forçados nas
mais piores e diversas situações, sem receber nem um valor aquisitivo
e direito por seus trabalhos. Não sabiam, mas foram os responsáveis
pela a economia colonial no Brasil colônia. O que assim também
foram os principais responsáveis na sustentação e criação da base
deste país. Não somente na economia, hoje no século XXI a cultura e
costumes do povo africano está é se faz presente em quase tudo.
Como também em nosso DNA, fruto do processo de miscigenação.
O Brasil é constituído em sua maioria por gente negra, segundo
dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
mostram que 54% da população brasileira é negra2. Ou seja, a gente
negra é maioria. Nosso país é multicultural, miscigenado. Com a
formação da sua gente, através dos povos originários, os indígenas, os
invasores portugueses, e os africanos. A população negra é maioria,
mas essa maioria foi transformada em minoria pelo o preconceito e
racismo que está estruturado nesse país. Somos minoria em tudo,
como também uma população que é mais carente e sofre com o índice
de pobreza. Como apresenta uma matéria do site UOL notícias de
Título: Negros são 75% entre os mais pobres; brancos 70% entre os mais ricos

2 Dados apresentados no portal virtual do jornal da USP pela a professora Eunice


Prudente 31/07/2020. Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-
ibge-mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/. Acessado em 29/03/2022.

365
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

3
(2019). A matéria é escrita por Carlos Medeiro, que apresenta os
dados da pesquisa feita pelo o IBGE (2019) sobre desigualdades
Sociais por cor ou Raça no Brasil, com os seguintes pontos:

Entre 10% com maior rendimento per capita, brancos são 70,6%,
enquanto os negros eram 27,7%
Já entre os 10% mais pobres, isso se inverte: 75,6% são negros, e 23,7%,
brancos
Cargos gerenciais são mais ocupados por brancos, com 68,6%
Com esses dados e porcentagens, observamos como a
população negra fica na margem da desigualdade. Mas por que esse
baixo índice? Esse baixo índice vem e se remete ao passado sofrido,
explorado e escravocrata dos nossos antepassados africanos, o que
assim ainda nos afeta. E como fica o Ensino e Educação a nossa
população negra? Na mesma matéria do site da UOL, Carlos Medeiro
também apresenta dados relacionados ao acesso à Educação a
população negra. O acesso ao ensino superior entre negro avança, mas
taxa é baixa. Carlos Medeiro (2019) diz que:

Entre os universitários, mesmo com as cotas


sociais, os negros ainda têm taxa bem

3Matéria do site Uol, apresentando desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2019/11/13/percentual-de-negros-entre-10-mais-pobre-e-triplo-do-que-
entre-mais-ricos.htm . Acessado em 29/03/22.

366
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

inferiores de acesso. Entre 2016 e 2018, a


proporção de estudantes de 18 a 24 anos de
idade cursando ensino superior passou de
50,5% para 55,6%. "Esse patamar, contudo,
ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes
na população branca de mesma faixa etária
nesse nível", aponta (MEDEIRO, Carlos,
2019, s/p)
Apresentando os dados do estudo do IBGE, vemos que
mesmo com políticas de ações afirmativas a exemplo das bolsas de
cotas sociais, ainda há uma inferioridade de negros nas Instituições de
Ensino Superior (IES). Sim há dificuldades no ingresso de negros no
Ensino Superior. Para um jovem negro chegar a ingressar em uma
Universidade e se formar, ele tem que ultrapassar mais “barreiras” do
que um jovem branco, e essas “barreiras” vem desde do Ensino básico.
Já que muitos negros vêm de uma margem de desigualdades e pobreza,
como vimos nos índices e dados apresentados na matéria acima.
“Diferenças importantes entre indicadores educacionais de negros e
brancos são observadas desde a primeira etapa do sistema educacional
brasileiro, devendo ser estudadas na interação com outros marcadores
sociais” (ARTES e RICOLDI, 2015, P. 860). O que assim, isso impede
o/um avanço e desenvolvimento da população negra em que diz
respeito principalmente em ocupações de espaços de poderes dentro
da sociedade, e construção de formação acadêmica de intelectuais
negros brasileiros.

367
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

E os estudantes negros que atravessam as “barreiras” e


conseguem ingressar nas Instituições de Ensino Superior?
Conseguem se manter nas Universidades? E olhando para as IES
brasileiras, as IES, tem em suas grades curriculares componentes de
ensino sobre a História e cultura afro-brasileira? Tem produções sobre
temática das relações étnico-raciais? Há escritas e pensamentos
decoloniais? Tentando buscar respostas para as questões a cima, esse
artigo discute sobre negros no Ensino Superior e as relações étnico-
raciais, dialogando na perspectiva decolonial com outros
pesquisadores/as e autores/as que tratam e trabalham com a temática
a exemplo de: ASANTE, Molefi kete (2016) NASCIMENTO, Abdias
(2015), MALDONADO TORRES (2020), BERNADINO COSTA,
Joaze e GROSFOGUEL, Ramón (2016), KILOMBA Grada (2019),
COLLINS, Patrícia Hill & BILGE, Sirma (2021) entre outros.

Tocando no ponto da intelectualidade negra, nós remetemos a


BERNADINO COSTA, Joaze (2018). Com seu artigo de título:
Decolonialidade, Atlântico Negro e intelectuais negros brasileiros: em busca de um
diálogo horizontal. Onde no texto, Joaze discute justamente os motivos
da ausência de intelectuais negros brasileiros. “As universidades
brasileiras terem um número baixíssimo de alunos negros, o que
redunda na ausência de professores e pesquisadores negros que
eventualmente pudessem fazer com que suas ideias viajassem pelo

368
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

Atlântico Negro” (BERNADINO COSTA, Joaze, 2018, P. 131). Com


um baixo índice de formação acadêmica, não teremos grandes
números de intelectuais negros, que se reconheçam como tal, que crie
e faça uma escrita negra decolonial e que atuem com uma pedagogia
e educação antirracista, e não de continuidade com o eurocentrismo
branco.

Lembramos aqui de Molefi Kete Asante (2016) no seu texto de


título: Afrocentricidade como crítica do Paradigma Hegemônico Ocidental:
introdução a uma ideia. ASANTE (2016), discute sobre a
Afrocentricidade, enfatizando que os africanos, logo também seus
descendentes, sejam agentes de ação, mudança, transformação, ideais
e cultura. Rejeitando a marginalidade e a alteridade impostas pelo
eurocentrismo, a fim de demonstrar a centralidade da África na
história mundial. À dominação cultural e econômica europeia, a
correção no reposicionamento do africano como sujeito de sua
própria história.

Como uma ideia intelectual, a


Afrocentricidade também se anuncia
como uma forma de ideologia
antirracista, antiburguesa e antissexista
que é nova, inovadora, desafiadora e
capaz de criar formas excitantes de
adquirir conhecimento baseado no
restabelecimento da localização de um
texto, uma fala ou um fenômeno.

369
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Assim, pode-se argumentar pela


utilidade de uma interpretação
afrocêntrica dos quilombos como
Abdias do Nascimento fez ao criar
uma nova perspectiva na história.
(ASANTE, Molefi Kete, 2016. P.11)
Assim a Afrocentricidade, é uma proposta filosófica,
epistemológica. Como também é uma ideologia antirracista.
Formamos intelectuais negros brasileiros que se reconheçam como
negros, que saibam a sua localização em seu espaço social, que tenham
consciência racial e façam análises de problemas dentro de sua
comunidade/sociedade, que questione e busque soluções de
problemas, para tirar a gente negra da margem da experiência
ocidental, que trabalhem com a ideia e interpretações afrocêntrica, e
sejam sujeitos e agentes da escrita histórica. É de extrema e grande
importância para derrubarmos e cortamos mais rápido as “raízes da
arvore do racismo”.

1 Questões Raciais

Quando falamos em questões raciais, logo falamos de raça. “Na


América, a idéia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às
relações de dominação impostas pela conquista” (Quijano, 2005,
p.118). O sociólogo pensador Humanista peruano Aníbal Quijano, em
seu texto de título: Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina
(2005), discute bem sobre a ideia da criação do termo raça. O

370
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

terno/palavra foi criado pelos os conquistadores para dividir e


inferiorizar os conquistados. Assim, dizendo que os conquistados
eram diferentes, não só nas estruturas biológicas, mas também na
capacidade intelectual da racionalidade, afirmando que eram seres
irracional. “O preto não tem alma é irracional, logo é animal”
diminuindo-os e fazendo-os se sentirem “menores” para terem
dominação e poder sobre os conquistados. Temos sim diferenças
biológicas e físicas, nos nossos traços, na nossa etnia, mas no que diz
em respeito a racionalidade humana, temos a mesma capacidade
intelectual (tirando os deficientes intelectuais, que apresentam
limitações nas habilidades mentais), logo que o povo preto “é
irracional” não é verídico! Para mostramos que somos iguais e temos
as mesmas capacidades e direitos, criam-se então as relações étnico-
raciais.

O que são as relações étnico-raciais? São discussões de grupos


étnicos, voltadas para apresentar os problemas sociais, reivindicando
relação de direitos e igualdade entre os grupos raciais (pretos,
indígenas, brancos, pardos e amarelos) dentro da sociedade. As
questões étnico-raciais e suas discussões aqui no Brasil não surgiram
de agora. A discussão vem historicamente de um passado remoto, e
surgiu através das manifestações políticas e sociais desencadeada pelas
populações negras em defesa da garantia de direitos até então negados

371
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

e por sua inclusão nas estruturas da sociedade. A gente negra vem


lutando e buscando seus direitos que historicamente lhe foram
negados. Além do direito de simplesmente serem respeitos e terem
igualdade, a população negra luta bravamente pelo a acesso à
Educação. As ações afirmativas de cotas raciais para negros
começaram a ser criadas apartir dos anos 2000. Atualmente as ações
afirmativas vem gerando discussões, críticas e debates opositores. As
ações afirmativas foram criadas para e em prol das minorias, como diz
OLIVEN (2007):

O termo Ação Afirmativa refere-se a


um conjunto de políticas públicas para
proteger minorias e grupos que, em
uma determinada sociedade, tenham
sido discriminados no passado. A ação
afirmativa visa remover barreiras,
formais e informais, que impeçam o
acesso de certos grupos ao mercado de
trabalho, universidades e posições de
liderança. Em termos práticos, as ações
afirmativas incentivam as organizações
a agir positivamente a fim de favorecer
pessoas de segmentos sociais
discriminados a terem oportunidade de
ascender a postos de comando.
(OLIVEN, Arabela Campos, 2007,
P.30)
Assim as ações afirmativas foram criadas para proteger
minorias, nesse ponto tocamos na questão das interseccionalidades e

372
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

dialogamos com COLLINS, Patrícia Hill & BILGE, Sirma (2021). É


até irônico viver em um país constituído em sua grande maioria por
gente negra, onde essa maioria foi transformada e é minoria. “As
Histórias que a maiorias das pessoas aprende na escola, geralmente,
concordam quanto à origem” (COLLINS, Patrícia Hill & BILGE,
Sirma, 2021, P. 89). Ao iniciamos a nossa vida educacional na escola,
quando se apresenta, fala e se trabalha com o continente africano, nos
livros didáticos é mostrado o processo de escravidão do povo africano,
vemos o lado pobre e negativo da África. Imagens de escravizados
acorrentados, chicoteados, trabalhando com força braçal em
plantações de cana-de-açúcar e café, mulheres negras na cozinha e
bajulando seus “senhores” brancos, e amamentando seus filhos. (são
imagens necessárias a serem apresentadas, para ficarmos atentos,
termos consciência e sabermos o quanto foi triste e doloroso, o que
os nossos antepassados passaram, para que assim evitarmos e que não
tenha em um próximo futuro uma nova escravidão ou qualquer outro
tipo se repita). Temos o nosso primeiro contanto sobre o continente
africano com essas imagens negativas em livros didáticos. Como diz
ASANTE (2016):

No Brasil e nos Estados Unidos, milhões de


pessoas de herança africana crescem
acreditando que a África é uma realidade
marginal na civilização humana quando, de
fato, África é o continente onde os seres

373
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

humanos ergueram-se pela primeira vez e


onde os seres humanos primeiro nomearam
Deus. (ASANTE, Molefi Kete, 2016. P.11)
Sendo crianças inocentes, associamos a gente negra como
escravos submissos passivos dos brancos, assim crianças negras não
se reconhecem como tal, já que o primeiro contato com o povo/gente
africana é apresentada em situações deploráveis, e as crianças brancas
nos veem como submissos e escravos. Essa é a História escrita
eurocêntrica apresentada pelos os “vencedores” (bancos). Vendo e
tendo acesso a uma única História, passamos a concordar quanto à
origem, sem a questionar. “A História africana, incluindo as tradições
orais foi registrada como resultado do ataque europeu” (OYEWÙMÍ,
Oyèrónké, 2021, P.133) Assim temos que ter cuidado com o perigo de
uma única História. “É assim que se cria uma história única: mostre
um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse
povo se torna.” (Adichie, Chimamanda Ngozi, 2019, s/p). O
Continente africano, não apresenta essa única História.

Por isso a gente negra vem lutando desde de então para


apresentar outra História. E de que forma a nossa gente negra
brasileira vem lutando? Assim como a conquista das contas raciais,
fruto de um longo processo de batalhas, no dia 09 de janeiro de 2003,
a lei 10.639 foi aprovada, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB). Obrigando o Ensino de História e Cultura

374
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

afro-brasileira e africana nas escolas, tantas públicas como privadas,


logo as Instituições de Ensino Superior (IES) Também passaram a
inserir nos seus currículos componentes que abordassem a temática.

Negros no Ensino Superior e falhas na aplicabilidade da lei


10.639/03
“Após a implementação do sistema de reserva de vagas nas
Universidades Públicas brasileiras, pôde-se observar um elevado
número de estudantes negros, pobres e de origem escolar pública, que
ultrapassaram as barreiras e ingressaram na Universidade” (SANTOS,
Dyane Brito Reis, 2009 P.78). Com as contas raciais voltadas para a
gente negra ouve um aumento das mesmas nas IES brasileiras.
Enfrentando barreiras desde a primeira etapa do sistema educacional
brasileiro, o negro também enfrentara outras barreiras no sistema de
Ensino Superior, a permanência na instituição. E essa permanência se
varia e se distingue em diferentes dimensões. Que dimensões de
permanências são essas? Dayane Brito (2009) em sua tese de
doutorado em titulada de: Para além das cotas: a permanência de estudantes
negros no ensino superior como política de ação afirmativa4. Apresenta essas
dimensões, segue-as a baixo:

4Tese de Doutorado de Dayane Brito (2009), Apresenta dimensões e tipos de


permeâncias de estudantes negros no Ensino Superior. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/11778. Acessada em 15/04/2022.

375
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

A) “Permanência enquanto duração (tempo) – Esta dimensão está


associada à duração do estudante no tempo do curso. Observaremos
isso mais cuidadosamente no item da permanência material, mas se
faz-se importante pontuar que durante o curso o estudante poderá
contar com algum tipo de benefício (bolsa de programa de
permanência, bolsas de pesquisa, ou extensão) e neste caso, ter a
oportunidade de se manter-se somente estudando e vivendo a
Universidade em sua plenitude ou, numa outra situação este estudante
poderá permanecer o tempo do curso, mas com pouca participação
na vida acadêmica por conta da necessidade de trabalhar para garantir
o seu sustento e a própria permanência na Universidade. Ainda nesta
dimensão pode haver uma transformação do estudante causadas pelos
conhecimentos adquiridos ao longo da vida acadêmica, das
ambiências, dos círculos de amizades, etc. Vale salientar que no caso
do estudante que vive inteiramente a Universidade, ou que pelo menos
trabalha em sua área de formação é muito mais impactante”.
B) “Simultaneidade na permanência – Esta dimensão torna-se
muito interessante, à medida em que observamos o papel que não só
a política de cotas tem para a entrada destes estudantes na
Universidade, mas também o papel que estes estudantes passam a
desempenhar enquanto referência para outros jovens. Ao ingressar na
Universidade a trajetória deste jovem passa a ser “reconhecida” na sua
comunidade familiar ou de moradia como um “caminho possível” e
isto influencia positivamente outros jovens a almejarem o ingresso na
Universidade. Há aqui uma simultaneidade da permanência, uma vez
que “eu existo no outro” que também ingressou em curso superior.
Nesta dimensão há uma transformação do indivíduo e também no
meio social em que circula”.
C) “Sucessão ou pós permanência – Esta última dimensão, diz a
respeito às possibilidades de permanência em outros graus
acadêmicos. Assim, se a dimensão temporal do indivíduo tiver
qualidade, ou seja, se ele conseguir concluir o curso podendo viver
inteiramente a Universidade, existem de uma pós permanência através

376
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

dos cursos de pós-graduação lato sensu, ou de forma mais ampla nos


cursos de mestrado e doutorado. Temos plena consciência dos
caminhos tortuosos por que passam as seleções de pós-graduação nos
Programas das Universidades brasileiras, sabemos ainda das
limitações das linhas de pesquisa, mas entendemos também que uma
permanência qualificada do estudante negro na graduação é um passo
importante para sua inserção nos estudos de pós-graduação stricto
sensu”.
Uma permanência qualificada na
Universidade deve levar em conta estas três
dimensões, mas, cumpre-nos questionar o
que se faz necessário para garantir esta
permanência? Obviamente são necessárias
condições materiais que permitam a
subsistência. É necessário dinheiro para
comprar livros, almoçar, lanchar, pagar
transporte, etc. Mas também apoio
pedagógico, a valorização da auto-estima, os
referencias docentes, etc. Sendo assim,
entendemos que a permanência na
Universidade é de dois tipos. Uma
permanência associada às condições
materiais de existência na Universidade,
denominada por nós de permanência
material e outra ligada às condições
simbólicas de existência na Universidade a
permanência simbólica. Antes vale dizer que
entendemos por condições simbólicas a
possibilidade que os indivíduos têm de
identificar-se como o grupo, reconhecido e
de pertencer a ele. (SANTOS, Dyane Brito
Reis, 2009, P.71)
Não é nada fácil negros se manterem e seguirem diante com a

377
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

vida acadêmica, há diferentes dimensões de permanências que os


impedem a seguirem. E olhando as Universidades brasileiras, apoiam
os negros? Há professores negros/as? Atendem a lei 10.639/2003?
Há uma formação étnico-racial do corpo docente como também
discente? Há produções sobre relações étnico-raciais e escritas
decoloniais? Muitos jovens negros ingressão em Universidades sem
saberem que são negros, vêm de um sistema educacional que “os
branqueiam” fazendo com que não se reconheçam como tal. Logo é
de extrema importância termos escolas e principalmente
universidades que atendam a lei 10.639/2003, não só para que os
negros se reconheçam como tal, mas para que todo o corpo discente
(Negros, brancos, indígenas, amarelos, etc.), como também docente,
tenham consciência racial, já que fazem parte da sociedade e atuaram
nela.

Sabemos que a lei 10.639, obriga o Ensino de História e cultura


afro-brasileira e africana, mas as Universidades atentem a lei? Com a
obrigação, as Universidades inseriram sim, componentes em seus
currículos que abordem e trabalham com a temática. Mas muitas
apresentam falhas ou mesmo não atendem a lei. E como sabemos e
quem apresentam essas falhas? Diferentes estudiosos e pesquisadores
brasileiros sobre a temática das relações étnico-raciais, com suas
pesquisas de punhos quantitativo e qualitativos, apresentam essas

378
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

falhas e dados de suas pesquisas em artigos científicos. A lei foi criada


em 2003, então apresento e trago duas pesquisas feitas depois da
sanção da lei, que apresentam algumas dessas falhas.

Iniciamos com a pesquisa de Joana Célia dos Passos (2014), de


Título: as relações étnico-raciais nas licenciaturas: o que dizem os currículos
anunciados5. Dos Passos, apresenta um estudo feito no ano de 2011,
que examina projetos pedagógicos e ementários de 10 cursos de
pedagogia e 10 cursos de História de distintas Universidades
comunitárias e públicas de Santa Catarina. “A análise dos ementários
e dos projetos pedagógicos foi construída a partir da questão: de que
forma as licenciaturas estão incorporando os conhecimentos sobre a
educação das relações étnico-raciais e a história e cultura afro-
brasileira e africana?” (Dos passos, 2014, p.179). Com a pesquisa feita,
PASSOS (2014) conclui que, a educação das relações étnico-raciais e
a história e cultura afro-brasileira e africana ainda ocupam lugares
periféricos no currículo dos cursos oferecidos em Santa Cantarina.

No exercício realizado foi possível perceber


que nos cursos de Pedagogia as questões

5 Pesquisa de Joana Cecília Passos (2014), apresenta dados sobre as Relações Étnico-
Raciais nos projetos pedagógicos e emendas dos cursos de História e Pedagogia de
Universidades Comunitárias e Publicas de Santa Catarina. Disponível em:
https://pdfs.semanticscholar.org/71cf/4192b8204e68fa740c872a824bc615cb6cab
.pdf. Acessada em: 17/04/2022.

379
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

étnico-raciais ainda estão na periferia das


disciplinas, quer seja pela generalidade de sua
abordagem, quer seja pela carga horária
insignificante para tais discussões. No caso
de apenas uma universidade foi possível
identificar disciplinas variadas com
conteúdos relacionados aos conhecimentos
focalizados aqui. Nos cursos de História
ficou mais evidente a presença dos
conhecimentos, nas disciplinas história da
África ou nas disciplinas História do Brasil,
ainda que com o predomínio da história
antiga e do período escravocrata. (DOS
passos, 2014, P.185)

Mesmo tendo presente componentes curriculares que aborda


a temática, nesses 20 cursos de licenciatura (Pedagogia/História) de
diferentes e distintas Universidades de Santa Catarina examinados,
não apresentam resultados satisfatórios na inserção dos
conhecimentos requeridos pela atual legislação em seus projetos de
cursos.

Na pesquisa de DIALLO e DE LIMA (2019) de título: Alguém


sabe? Alguém viu? Qual o lugar da História e Cultura africana e afro-brasileira
e Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de licenciatura na região do
Centro-Oeste? 6A presenta o resultado dá incorporação dos conteúdos

6Pesquisa de DIALLO E DE LIMA (2019), A presenta o resultado dá incorporação


dos conteúdos referentes à História e Cultura afro-brasileira africana e à Educação
para Relações Étnico-raciais nos currículos dos cursos de Licenciatura da área de

380
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

referentes à História e Cultura afro-brasileira africana e à Educação


para Relações Étnico-raciais nos currículos dos cursos de Licenciatura
da área de Ciências Humanas das Instituições Federais Públicas de
Ensino Superior da região do Centro-Oeste, no período de 2003 a
2017.

Foi necessário localizar as páginas eletrônicas


dos cursos e buscar documentos oficiais,
como projetos pedagógicos e/ou resoluções
sobre a oferta de disciplinas como ementas,
objetivos, bibliografias e conteúdo
programático, nos quais pudéssemos
identificar disciplinas e conteúdos
relacionados com a História e Cultura afro-
brasileira e africana. Ao final da busca,
chegamos ao quantitativo de 05
Universidades, que juntas ofertam 104
disciplinas com temáticas relacionas à
pesquisa. (DIALLO e DE LIMA, 2019, P.
47-48)

São analisadas 5 universidades Federais Públicas da região


Centro-oeste: 01- Universidade de Brasília (UnB) –Distrito Federal,
02- Universidade de Goiás (UFG) –Goiás, 03- Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT) –Mato Grosso, 04- Universidade Federal de

Ciências Humanas das Instituições Federais Públicas de Ensino Superior da região


do Centro-Oeste. Disponível em:
http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/view/311. Acessada em:
17/04/2022

381
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

Mato Grosso do Sul (UFMS) –Mato Grosso do Sul e 05- Universidade


Federal da Grande Dourados (UFGD) -Mato Grosso do Sul. Juntas
essas Universidades ofertam 104 disciplinas.

possível considerar que dos 104 cursos,


pouco menos da metade, 50 cursos
contemplam em suas matrizes curriculares
conteúdos referentes à História e Cultura
afro-brasileira e africana e à Educação das
Relações Étnico-raciais, com destaque para
os cursos de História, pois todos eles
oferecem pelo menos uma disciplina sobre o
assunto. O gritante silenciamento de 48
cursos com relação à temática objeto da
pesquisa explica em parte o recorrente
discurso dos professores da Educação Básica
sobre a fragilidade em sua formação inicial
para discutir a temática. (DIALLO e DE
LIMA, 2019, P.53-54)

De 104 cursos na área de Humanidades, 48 não adentem a lei


10.639/03, concluindo e constatando que “não incorporam a história
e a cultura afro-brasileira e africana e a Educação das Relações
Étnico-raciais em seus itinerários formativos. Consideramos ainda,
preliminarmente, que as temáticas nas IES pesquisadas estão em
condições semiperiféricas/negligenciadas” (DIALLO e DE LIMA,
2019, P.54).

Trago e apresento só essas duas pesquisas para não se prologar

382
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

nessa discussão, mas basta fazer uma busca, que encontramos várias
outras pesquisas de diferentes pesquisadores/as, que analisam
diferentes Instituições de Ensino Superior de diferentes locais e
estados brasileiros, no que diz em respeito nos seus currículos,
implementação, produção e formação de futuros profissionais na área
de Educação (professores) no sistema Educacional brasileiro, sobre a
formação na perspectiva das relações étnico-raciais. As pesquisas são
diferentes, cada uma analisa âmbitos diferentes sobre a temática, mas
elas não se disferem quando em suas conclusões nós apresentam
falhas da lei 10.639/03. As duas pesquisas que apresento nesse artigo
analisaram os projetos pedagógicos e emendas em vários cursos de
humanas de IES brasileiras, e vemos que as duas não apresentaram
resultados satisfatórios, alguns cursos de fundamental e extrema
importância não apresentam componentes curriculares que abordam
a temática, ou quando mesmo apresentam, são superficiais e genéricos.

Considerações Finais

Com as discussões feitas notamos que mesmo com a criação


das cotas sociais/raciais, a gente negra ainda apresenta taxa inferior de
acesso e ingresso no ensino superior, quando conseguem muitos ainda
enfrentam pela frente mais barreiras como a permanência, essa
permanência apresenta três dimensões: A permanência enquanto
duração (Tempo), a simultaneidade na permanência e a sucessão ou

383
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

pós permanência. Olhando para o sistema Superior Educacional


brasileiro, as nossas IES, infelizmente ainda nos deixam a desejar no
que diz respeito em relação a Educação das Relações Étnico-Raciais,
especificamente em componentes que abordam a História e Cultura
Afro-brasileira e Africana, mesmo com uma criação de uma lei que
obrigue o Ensino, IES brasileiras a presentam falhas.

Vemos que muitas IES brasileiras em importantíssimos cursos,


não apresentam em sua grade curricular componentes que abordam a
temática, ou quando abordam, são superficiais e genéricos. Com isso
logo nos questionamos sobre a formação e produções científicas, se
há escritas e pensamentos de coloniais? Como diz Nelson:

Esse é um risco que visualizamos quando


diversos acadêmicos brasileiros começam a
utilizar o título decolonialidade nos seus
trabalhos acadêmicos e, no entanto, não
citam qualquer autor negro ou indígena, ou
sequer têm qualquer relação com os
movimentos sociais, limitando-se a dialogar
com os membros da rede da investigação
modernidade/colonialidade e com outros
teóricos latino-americanos que falam a partir
de uma perpesquitiva da população branca
(MALDONADO TORRES, Nelson, 2020,
P.10).

Mas o que é Decolonialidade? Decolonialidade ou pensamento

384
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

decolonial é o questionamento sobre o modelo eurocêntrico, fazendo


a desconstrução, descolonização e independência do saber europeu.
O movimento surgi no final da década de 1980 e 1990, com estudos
de Aníbal Quijano, Mignolo e Wallertein. Quando não há uma boa
formação em que diz respeito sobre as Relações étnicas-Raciais, não
haverá produções ditas decoloniais, logo com apresentações
superficiais e genéricas sobre a História do continente Africano e do
seu povo, contada e escrita na perspectiva branca, não teremos
pensamentos decoloniais. Enquanto a formação devemos nos
preocupar, pois é de extrema importância formar professores de rede
de Educação Básica, que não mostre somente a História negativa do
continente africano ou escritas brancas, que saibam lidar e ter
consciência racial, que mostrem e trabalhem também como lado
positivo do continente, e mostre que o nosso povo foram, fortes e
resistentes.

Outra questão é que a decolonialidade não é só um projeto


acadêmico, “a decolonialidade consiste também numa prática de
oposição e intervenção, que surgiu no momento em que o primeiro
sujeito colonial do sistema mundo moderno/colonial reagiu contra os
desígnios imperiais que se iniciou em 1492” (MALDONADO
TORRES, Nelson, 2020, P.17). Não adianta trabalhar, ter produções
e escritas decoloniais, “pregar” uma decolonialidade acadêmica e agir

385
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

totalmente a contrário a ela, ou seja, temos que reagir e agir, praticar.


E como faz isso? Praticamos no nosso dia-a-dia a decolonialidade,
quando simplesmente lutamos contra o sistema branco e opressor, a
pesar das dificuldades não desistimos, seguimos em frente, lutando
firmes e fortes. Apoiando os nossos irmãos negros, não reproduzindo
o racismo, não deixando ser produzido e praticado. Ocupando, lugares,
espaços e cenas, ditas que não são “lugares de negro”.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história.


Companhia das Letras, Tradução de Julia Romeu, 2019. disponível em:
https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-
humanos/enfrentamento-ao-
racismo/obras_digitalizadas/chimamanda_ngozi_adichie_-_2019_-
_o_perigo_de_uma_historia_unica.pdf, Acessado em: 06/04/2022.
ARTES, Amélia; RICOLDI, Arlene Martinez. Acesso de negros no
ensino superior: o que mudou entre 2000 e 2010. Cadernos de
Pesquisa, v. 45, n. 158, p. 858-881, 2015.
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade como crítica do Paradigma
Hegemônico Ocidental: introdução a uma ideia. Ensaios Filosóficos,
volume XIV, dezembro,
BERNARDINO COSTA, Joaze & GROSFOGUEL, Ramón.
Decolonialidade e Perspectiva Negra. Revista Sociedade e Estado,
vol. 31, n. 1, jan-abr. 2016. p. 15-24
DIALLO, Cíntia Santos; DE LIMA, Claudia Araújo. Alguém sabe?
Alguém viu? qual o lugar da História e Cultura Africana e Afro-

386
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

brasileira e Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de


Licenciatura na Região do Centro-Oeste?. REPECULT-Revista
Ensaios e Pesquisas em Educação e Cultura, v. 4, n. 7, p. 40–60-
40–60, 2019.
DOS PASSOS, Joana Célia. As relações étnico-raciais nas licenciaturas:
o que dizem os currículos anunciados. Poiésis, v. 8, n. 13, 2014. 2016.
p. 01-10.
Jornal da USP. Dados do IBGE mostram que 54% da população
brasileira é negra, Colonista: Professora Eunice Prudente, 2020.
Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/dados-do-ibge-
mostram-que-54-da-populacao-brasileira-e-negra/. Acessado em:
29/03/2022.
MALDONADO TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da
decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-
COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson &
GROSFOGUEL, Ramón (orgs). Decolonialidade e Pensamento
Afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 27-54
OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas, relações raciais e
política de cotas nas universidades: Uma comparação entre os Estados
Unidos e o Brasil. Educação, v. 30, n. 61, p. 29-51, 2007.
OYEWÙMÍ, Oyèrónké. (Re)construindo a cosmologia e as
instituições socioculturais Oyó-Iorubas. In: A invenção das
mulheres: construindo um sentido africano para os discursos
ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. p. 94-
132.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e
América Latina. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales. Buenos Aires. 2005.

387
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

SANTOS, Dyane Brito Reis. Para além das cotas: a permanência de


estudantes negros no ensino superior como política de ação afirmativa.
2009.
Site UOL, Negros são 75% entre os mais pobres; brancos, 70% entre
os mais ricos. Carlos Medeiros. 2019. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2019/11/13/percentual-de-negros-entre-10-mais-pobre-e-
triplo-do-que-entre-mais-ricos.htm. Acessado em: 29/03/2022.

388
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

CAPÍTULO 16

A FAVELA COMO PROBLEMA: MITO DA RURALIDADE


E DA MARGINALIZAÇÃO. UM DIÁLOGO SUSCITADO
NA DISCIPLINA “AS CIDADES DO SÉCULO XX: UM
OLHAR PARA AS FAVELAS E OUTRAS HABITAÇÕES DE
BAIXA RENDA- COC/FIOCRUZ

Leiana Isis Soares de Oliveira1

Resumo: Esta pesquisa visa principalmente destacar as favelas do Rio


de janeiro em uma escrita acadêmica, sendo oriunda de estudos e
discussões elencadas na disciplina “As cidades do século XX: um olhar
para as favelas e outras habitações de baixa renda”, cursada no período
letivo de 2022.1. Durante o decorrer do tempo, essas habitações
subsidiaram na condição de objeto de pesquisa, estudos nos mais
variados campos teóricos, dentre eles, a Antropologia, a História, a
Sociologia e demais ciências sociais e aplicadas; tendo como alvo a sua
dinâmica social, suas construções, remoções, escassez de
planejamentos e políticas públicas; e os seus problemas urbanos e
sociais. Buscaremos evidenciar aqui como objetivo central, debates

1Graduada em Administração, pela Faculdade São Francisco da Paraíba; Licenciada


em História pela Universidade Federal de Campina Grande e Pós graduanda pelo
Programa de Pós Graduação em História, do Centro de Humanidades da
Universidade Federal de Campina Grande, UFCG/PPGH/CH; Campina Grande,
Brasil. E-mail: Isysolliveira@gmail.com

389
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

que as colocam como “problema”, como “câncer urbano”,


imergindo-as em discursos de ruralidade e marginalização que,
ganharam impulso até a década de 80 e refletem ainda resquícios nas
vivências da atualidade, mesmo que alguns estudiosos da área
considerem esse assunto já superado. Todavia, eles antecedem os
discursos acerca da violência urbana e criminalidade, tópico esse que
não abordaremos aqui; desencadeando assim, reflexões pontuais e
inerentes a essas questões anteriores e o direito à cidade. Para isso, nos
apoiaremos em teóricos como Leed’s (2018), Lima (1989), Machado
(1983), Viana (2019) e outros. Buscaremos também discorrer sobre
estigmas sociais, a dinâmica urbana e econômica desses espaços que
sob algumas óticas são vistos como desvalorizados e indesejáveis,
contraditoriamente alheios a cidade.

INTRODUÇAO

A disciplina “As cidades do século XX: um olhar para as


favelas e outras habitações de baixa renda”, da COC/Fiocruz, foi
ministrada de maneira híbrida (presencial e online, através de
aplicativos de conferências), ofertada no primeiro semestre de 2022.
Ela trouxe como temática “as cidades do século XX: um olhar para as
favelas e outras habitações de baixa renda”, estando intrínseca ao
programa de História das Ciências e da Saúde da Casa de Osvaldo
Cruz.

Ao decorrer do semestre onde houve o enfoque e debate de


temáticas relacionadas aos estudos urbanos e as relações das
habitações de baixa renda no século XX, enfatizando desde o início

390
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

da formação das favelas do Rio de janeiro, sua estruturação, sua


heterogeneidade, seu dinamismo, sua economia e aspectos sociais,
evidenciando mitos, como o da ruralidade, da pobreza e da
marginalidade, analisando e debatendo tais aspectos por perspectivas
teóricas distintas, como a literatura de Rio (1911), mas
preferencialmente no contexto das ciências sociais, indo de encontro
com fatos da realidade cotidiana dos moradores, tais como manchetes
de jornais e midiáticas em geral. E isso consequentemente suscitou a
empreitada desta pesquisa.

Nesse tocante, metodologicamente, nos debruçamos sobre


uma ampla literatura acerca dos estudos urbanos, debatendo sobre
pesquisas de autores renomados como Machado (1983), Silberstein
(1969), Bresciani (2013), rio (1911), Valladares (2005), Viana (2019) e
Leeds (2018), partilhando reflexões e levantando questões sobreo
início da favelas, remoções, os estigmas sociais que se formaram em
torno dessas habitações, fazendo ganchos com experiências mais
atuais, músicas, manchetes de jornais ou/e redes sociais e peças
teatrais, com intuito de entender melhor os diversos aspectos que
circundam o cotidiano das favelas cariocas, oferecendo uma gama de
discussões, reflexões e questionamentos acerca das habitações de
baixa renda no século XX que, já nos anos 60 mesclam o
desenvolvimento e os estudos antropológicos. É a partir das reflexões

391
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

advindas dessa experiência que esse trabalho ganha forma.

O objetivo principal é discorrer sobre essas habitações de


baixa renda, compreendendo porque elas se tornaram um espaço que
é facilmente atrelado a um problema, a uma ruralidade e
principalmente a uma marginalização. Salientamos que, os estudos e
pesquisas antropológicas de Anthony Leeds forneceram e suscitaram
pioneiramente uma compreensão e o alargamento de olhares acerca
das ciências sociais, com foco nos estudos urbanos e habitações de
baixa renda, as favelas, instigando pesquisas interdisciplinares que são
essenciais para pensar tais habitações se aproximando do seu micro,
detalhando seu espaço e suas relações sociais.

1 DISCUSSÃO TEÓRICA

Os estudos sobre as favelas do Rio de Janeiro suscitaram e


apresentaram um aparato teórico sobre a organização social do Brasil,
indo além da concepção de localidades periféricas da massa pobre e
urbana, inerte nas condições econômicas e situacionais as quais se
enquadravam, enquanto classe trabalhadora, causando um certo
enredo errôneo de que essa população é homogênea, e não dispostas
em estruturas dinâmicas, onde mais que a pobreza institucionalizada,
havia a rotatividade de capital, a circulação de pessoas, a expectativa
de vida e melhoramento do tecido urbano, acompanhado das
estratégias de negociação e comércio, contradições sociais e

392
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ordenação de discursos sobre a cidade, inclusive do discurso político,


antropológico e técnico.

Para se chegar a essa reflexão foi primordial os estudos de Leeds


(2018), nas décadas de 60 e 70, evidenciando esses espaços como
locais de formação de arranjos sociais, políticos e circulação de
pessoas que conviviam com as contradições da sociedade as quais elas
eram pertencentes, contribuía economicamente, mas, nos mais
variados discursos e na realidade eram postas à margem.

Para Santos (1988), os espaços são criados de forma a ordenar


as relações sociais. A segregação residencial de determinados grupos
étnicos e inferiorizados, refletem aspectos da sociedade, inclusive
aspectos econômicos e sociais. Segundo Gonçalves (2013), repercutia-
se a estratificação social e situação ecológica, ligada a condições
étnicas. Uma vez que, os bairros abastados eram circuncidados pelas
classes operárias, compostas por trabalhadores que na sua maioria era
a população de cor, advindos das favelas que, laboralmente abasteciam
as regiões mais abastadas do Rio de Janeiro, como Copacabana, Lagoa
e Tijuca, dispersando a favela, formando a base de uma economia que
para o trabalhador era precária, segregadora e normatizadora do
espaço e das classes.

No entanto, essa dispersão, citada, causou um disfarce da


segregação, pois ela vinha de encontro aos ritmos cotidianos, laborais

393
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

e com a oferta e demanda do mercado econômico produtivo. Logo, o


trabalhador favelado estava diariamente em contato com os bairros
mais abastados, uma vez que, ele compunha a base da sua força
produtiva.

Segundo Gonçalves (2013), o favelado possuía relações diretas


com as atividades econômicas que se definiam na zona limite em que
residia, caracterizados pelos baixos salários. Já as suas moradias em
primeiro momento e em grande percentual, caracterizavam-se pela
falta de saneamento básico e infraestrutura precária, comumente as
favelas eram marcadas pela migração advindas de outras regiões,
como por exemplo, da região Norte e Nordeste e de outras localidades
mais periféricas do Rio de Janeiro, associados às altas taxas de
analfabetismo, formando uma mão de obra essencial, barata e
acessível. Essa condição geográfica, junto com a compreensão
errônea de homogeneidade dessa população serviu como uma das
bases para acirrar o mito da pobreza, interligando posteriormente
com o da marginalidade.

Variados grupos se encontravam em nichos, que se instalavam,


causando uma segregação urbana e social com índices altamente
expressivos, indo de contraponto a homogeneidade daquela
população, pois atestava a heterogeneidade do favelado, termo que,
principalmente nos dias atuais ainda acompanha uma carga pejorativa,

394
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

de marginalização e desigualdade social, sendo evitado ou substituído


por muitos pesquisadores e rejeitado por diversos habitantes das
favelas. Pois, é, segundo Viana (2019), popularmente comparado a um
coeficiente negativo, definidor de índole, classe e comportamento.

Havia, portanto, uma determinação da classe dominante em


detrimento da formação de uma classe operária determinada por
padrões morais, culturais e higiênicos. Segundo Lima (1989),
historicamente tornou-se evidente uma atenção voltada para as favelas,
ampliada pela reforma de Pereira Passos, com a demolição de cortiços,
deslocando a força de trabalho disponível, os trabalhadores, para as
favelas/ localidades periféricas. O remodelamento significou
objetivamente a segregação social do espaço.

As favelas cariocas, se desenvolveram em detrimento das


reformas urbanas, e, como fator principal, a sua multiplicação agiu
como atenuante das desigualdades, do direito por moradia e acesso as
oportunidades de trabalho e desenvolvimentos urbano acelerado nas
regiões abastadas do Rio de Janeiro. Neste tocante, ela aparece como
problema, chamando atenção pública, técnica e a atenção da imprensa,
percebendo uma aproximação dos habitantes de baixa renda com as
habitações da classe dominante, comprometendo também o
embelezamento da cidade, (VIANA, 2019).

A partir desse contexto, surgem propostas e projetos de

395
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

construções de habitações populares, o que segundo Lima (1989), em


teoria, se tinha o intuito de resolver problemas locais, de higiene,
salubridade, moradia e qualidade de vida dos populares que ali eram
residentes. Todavia, o Estado se empenhava em controlar a esfera
privada, o comportamento, os valores, disciplinando a classe pobre.
Essa disciplinarização gerou a incorporação de estigmas, estereótipos,
acarretou na demarcação do espaço físico e social, de forma desigual,
sendo componentes do racismo e da segregação dos pobres.

Essa segregação incorporou e incorpora ainda na atualidade,


estigmas nas vivências e subjetividades das pessoas, retirando o seu
direito de acesso e permanência a determinados espaços,
inferiorizando-as e as tornando alheias na circulação de determinadas
vias e lugares públicos. Como se ocupassem ou estivessem transitando
em um lugar indevido, proibido ou negado por direito, quando na
verdade é o contrário. Causando a elas desconforto, insegurança e
maior vigilância, em detrimento das injúrias e repressão civil.

Levamos em consideração as normatizações políticas


marcadas pela ausência do direcionamento das políticas públicas. De
acordo com Lima (1989), passou-se a versar sobre a solução para esse
problema social, que se encontraria assertivamente na eliminação das
favelas e na sua substituição pelas chamadas/ conhecidas moradias
proletárias. Segundo Costa Pinto (1952), as favelas do Rio de janeiro

396
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

tiveram um maior crescimento em detrimento das oportunidades de


trabalho, suscitadas nos bairros centrais, agregando esses
trabalhadores em áreas limites com esses bairros abastados, já
mencionado anteriormente, sendo as favelas um retrato do
desajustamento social e econômico do espaço dessa cidade.

A fisionomia citadina se tornou marcada por bairros abastados,


circuncidados por grandes concentrações de trabalhadores,
compondo uma zona portuária. Essa dispersão geográfica das favelas
no Rio de janeiro é um fator desassociador ou que disfarça grande
parte da segregação racial e classista. Uma vez que, o favelado muitas
vezes não exerce suas atividades laborais na zona em que reside, como
já foi mencionado, sendo essa zona o lado esquecido, problemático e
esteticamente feio da cidade, onde se depara com insalubridade,
instabilidade, falta de saneamento básico, falta de água, luz, ruas sem
pavimentações e baixos salários, além da falta de oportunidades.

Grande parte da população pobre da favela é composta por


negros e migrantes, legitimando o vigiar dos corpos e dos espaços
ocupados. Seguindo um padrão ecológico, se tem pessoas de camadas
pobres ocupando zonas de moradia, compostas principalmente por
pessoas de cor, escancarando a segregação e o racismo. Todavia, como
citamos brevemente aqui a sua população é heterogênea, tais como
seus interesses, arranjos e lutas sociais.

397
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

A incapacidade econômica age de maneira a restringir o acesso


e moradia em determinados lugares, mesmo que isso não esteja escrito
em lei, porém, coexistindo na prática do dia a dia. O resultado é a
segregação residencial e étnica, por vezes, essas habitações
possibilitam a essa população de baixa renda o acesso a cidade e aos
seus serviços, mesmo que de forma precária. Costa Pinto (1952) nos
fala que, quanto maior a urbanização, maior o percentual de pessoas
brancas no centro da cidade, de modo que, quanto maior a população
de cor, a área proletária é crescente, exemplo da Gávea, núcleo
industrial. A estratificação social como padrão ecológico fica evidente
quando comumente e majoritariamente, os homens pretos ocupam
cargos de empregados, rendeiros e agricultores locais; quando as
mulheres de cor atuam como domésticas nas zonas centrais do Rio de
Janeiro. Quando pretos e pardos são alocados no mercado industrial
urbano.

Em síntese, os trabalhadores se posicionam nos arredores dos


bairros de classe alta, como Copacabana e Tijuca por exemplo. Um
ponto a ser salientado é o alto índice de analfabetismo nas favelas que
já falamos aqui e foi associado as raízes dos moradores desses espaços,
mas o fato foi principalmente causado pela falta de assertividade das
políticas públicas para gerir a demanda pelos serviços essenciais a vida
dos cidadãos. Deve se levar em consideração a heterogeneidade de

398
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

grupos étnicos que se separam em nichos, em decorrência de suas


diferenças sociais e que a compõem.

Mesmo assim, a favela foi vista pela classe dominante e pelo


Estado como lugar de promiscuidade, dando margem para uma
política de normatização da moradia, através da criação de lares
operários, parques proletários, espaço disciplinador, havendo o que
Leeds (2018), chamou de controle sobre a vida dos moradores dos
parques proletários, ditando normas e impondo padrões de
comportamentos, como a exigência da boa conduta moral, social e
física, salientando o baixo custo da força de trabalho.

Quando a favela é posta em debate público, surge a alternativa


e a discussão do que fazer com os pobres. A favela tornou-se então
um assunto prioritário na agenda política e a sua população passou a
ser vista como alvo de ampliação eleitoral desde a década de 50, na
gestão de Carlos Lacerda. Seria ela um território físico da pobreza
populacional do Rio de janeiro? Segundo Machado (2012), a
interseção da favela e da pobreza gerava uma categoria de debate
predominante nos anos 60, a marginalidade.

Nessa temporalidade, ela era tida, como espaço designado ao


pobre e marginal, lugar de desordem, de atraso, um problema de
criminalidade, porém, ainda não associada ao cotidiano do tráfico de
drogas, como na atualidade. Mas sim ao lugar da malandragem e da

399
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

escória social. Esse debate sobre a criminalidade associada ao tráfico


de drogas, só vem a emergir nos anos 80, trazendo a cocaína como
integrante no mercado brasileiro, comercializada nas ruas das favelas,
“as bocas”, tornando-se local de violência, repressão, criminalidade,
violência urbana, brutal e descontrolada, e, não mais e tão somente o
local da pobreza. A criminalidade descrita na favela, antes da década
de 80, era associada a desvios de conduta e delinquência.

Nos discursos políticos a pauta relacionada a criminalidade nas


favelas tornou-se um assunto de emergência, que ameaçava
diretamente a integridade física e moral do Rio de Janeiro. Segundo
Machado (2012), a violência criminal passou de um problema coletivo
para uma ameaça imediata, acompanhando a transformação dos
conflitos que circuncidavam modalidades de integração social,
passando de um território caracterizado somente como pobre para
um espaço de pobres, fonte da violência. Nesse tocante, aumentava a
repressão e o retorno das práticas de remoção.

Leeds (2018), por sua vez, aponta a favela de outra perspectiva,


como lugar de investimento material e subjetivo, onde que existem
capitais circulantes cotidianamente em seu meio, tendo um sistema
econômico, heterogêneo e subdesenvolvido, fugindo dessa
perspectiva cravada de cultura da pobreza, um predeterminante do
local e dos habitantes ali residentes. De acordo com o autor

400
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

supracitado, o percentual de desenvolvimento desses espaços era


escalonado pelas melhorias no seu tecido urbano, pois à medida que
havia mais organização social, havia maior percentual de capital que
circulava nesses espaços, gerando oportunidades econômicas para os
moradores, direcionando-os para as negociações de mercado e por
consequência disso aumentando a sua participação política,
econômica. Como exemplo disso, temos os arranjos políticos, as
organizações de clubes, sindicatos, empreendimentos e associações.

Para muitos dos habitantes, morar na favela lhes dava a


autonomia e fortalecia a sua luta pela independência, além de fugir dos
aluguéis altos e inacessíveis das partes centrais do Rio de Janeiro,
sendo a solução para as moradias de baixa renda. Segundo Viana
(2019), haviam aqueles que alugava sua residência em um bairro mais
central e mudava-se para favela, aproveitando assim do lucro através
do mercado imobiliário. Identificar o favelado como sujeito
marginalizado é reduzi-lo a uma questão de classe. Uma vez que, cada
tipologia habitacional reflete um modo de vivência do habitante no
tecido urbano, LEEDS (2018). Todavia, como coloca o autor
supracitado, não falta capital na favela, falta gerenciamento,
investimentos e políticas públicas assertivas, além das promessas e
arranjos em anos eleitorais. O trabalhador é refém do descaso salarial,
é refém do sistema opressor. Sendo as favelas uma solução de moradia,

401
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

solução para arranjos estratégicos e alocação de recursos dos


moradores em outras esferas, tanto da sua vida privada, quanto
pública e coletiva, que não a moradia, como por exemplo, a educação
da família.

Leeds (2018), enquanto pesquisador marxista, com pesquisas


aplicadas a área econômica, estudando a circulação de capital na favela,
buscava evidenciar o erro causado pelas remoções, visto que, a
urbanização delas era um investimento melhor que a transferência da
sua população para outros lugares, como por exemplo, para a vila
Kennedy. Pois as remoções trariam maiores custos, sendo condenadas
ao fracasso, principalmente devido ao seu acesso difícil, tendo em
vista que a circulação de capital nas favelas gerava uma renda
considerável. A construção da vila Kennedy, por exemplo, foi
financiada pela USAID- United States Agency for International (Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), o acordo
do trigo, que deveria ser utilizado na urbanização das favelas, ao
contrário disso, foi aplicado na política de remoção. O que, segundo
Leeds (2018), foi um grande desperdício de financiamento.

Por fim, na perspectiva de Leeds (2018), a favela seria uma


solução e não um problema, pois se tomada como base as habitações,
a sua economia concreta e suas forças imateriais de solidariedade. Para
ele, o problema seria o sistema econômico nacional. Machado (2012),

402
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

ressaltou aspectos humanos das favelas cariocas, entendendo que ela


iria além da dicotomia de cidade formal e informal, atribuindo a ela
uma categoria de luta.

Esse autor coloca que, pensar a favela como marginal, expressa em


sua dificuldade de acesso a serviços urbanos e bens de consumo, mas
não dá o direito de reduzi-la a isso, fazendo juízo de valor, não se
devendo esquecer a sua relação com o sistema global que mantém
relações econômicas. Essa noção que ela é uma comunidade marginal
dá acesso para as atitudes paternalistas e assistencialistas sendo uma
realidade distorcida, mas uma oportunidade de entrantes políticos e
arranjos indevidos em prol da boa aplicação dos serviços públicos
urbanos que deveriam por direito ser bem gestados. Corroborando
com Santos (1988), a favela é, um local de contra hegemonia, de
resistência.

CONCLUSÃO

Vimos que, as favelas de um modo geral são pensadas como


detentoras de padrões, de homogeneidade e com essa concepção os
estigmas sociais que se entrelaçam ao seu urbano. Em primeiro
momento, pensar as favelas é comumente pensar no Rio de Janeiro,
como se somente esse Estado fosse detentor desse tipo de habitação.
Mas pensar o Rio de Janeiro nem sempre é em primeiro momento é
sinônimo de favelas, dado os seus estigmas e as inúmeras tentativas de

403
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

sua invisibilidade. Ao senso comum, se tem uma ideia subjetiva de que


elas são anexas a essa cidade, quando na verdade estão intrínsecas a
ela, compondo sua paisagem física, histórica, apagada dos cartões
postais da cidade maravilhosa, mas que socialmente, reflete a sua
realidade.

É preciso entender que as favelas são compostas de habitações,


ruas, pessoas, classes totalmente distintas, não sendo homogêneas.
Esse próprio espaço desenvolve suas dinâmicas, seus arranjos
políticos em benefício do seu desenvolvimento e interesses coletivos
e obviamente, interesses particulares. No mito da ruralidade se
apropria da ideia que a favela é local de atraso em contraposição ao
restante da cidade, visto a origem dos seus moradores, em detrimento
da rápida urbanização. Mas se esquece que há gerações e gerações
experimentando cotidianamente o urbano e se apropriando desse
espaço.

A partir dessa ruralidade, ela é tida como problema, local de


desordem, da ausência de embelezamento urbano e escanteamento
das pessoas que ali residem e transitam cotidianamente. No cerne da
questão, o Estado antes da década de 80, nas quais essas questões são
elencadas temporalmente, agiu como normatizador dos espaços, as
questões sanitárias justificaram as remoções, o discurso
democratizador e solucionador de problemas físicos/territoriais,

404
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

agindo, por vezes em dados momentos como uma espécie de


apagador de culturas e de segregação direta ou indireta, reforçando
assim o estigma do povo pobre, marginalizado e atrasado.

Todavia, repensemos que, tais sujeitos não são passivos e


simplesmente marginalizados, pois eles compõem uma massa
heterogênea, de classes diferentes, e que agem político e
economicamente, se integrando a um sistema global, orientado para o
mercado de trabalho. Grande parte da organização social da favela
baseia- se na circulação dos seus recursos internos e nas suas
articulações políticas, gerando um capital circulante.

Por fim, existem uma gama de estudos sobre as


especificidades e faces das habitações de baixa renda, com ênfase as
favelas, permitindo uma maior reflexão ao cientista social e o
investimento em novas problematizações. Mas, nessa perspectiva, as
questões mais profundas da favela não são apenas urbanísticas e
interseccionadas com a sua estrutura física, ou a marginalização dos
seus moradores, como um todo. Uma vez que, a sua população é
diversa. Ela se interliga a consequência da orientação do mercado de
trabalho, da desigualdade social, da falta de oportunidades, da má
gestão e da corrupção de quem deveria gestar o erário público.

De maneira geral, ela possui habitações contrastantes em seus


tamanhos, investimentos e recursos utilizados. Ela integra o comércio

405
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

e a política da cidade como um todo, não sendo um elemento isolado


ao Rio de Janeiro, como erroneamente se pensa em primeiro
momento, através dos inúmeros discursos e notícias sobre ela. Mas
uma das bases que alicerça a economia do Estado e que mesmo assim
foi vista e posta em discurso como um problema, mas que detinha de
suas contribuições de capital e sem o devido retorno de investimento
em sua melhoria urbana e social. Em síntese, elas refletem e
representam espaços de reivindicações dos próprios moradores, suas
pautas, melhorias urbanas, sociais que ao longo do tempo lhes foram
negados enquanto cidadãos.

REFERÊNCIAS

BRESCIANI, Maria Stella Martins. “O homem pobre e o vagabundo;


Classes pobres, classes perigosas” In: BRESCIANI, Maria Stella
Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo,
Brasiliense, 2013.
COSTA PINTO, Luís de Aguiar. “Cap 4 – Ecologia – O problema
das favelas do ponto de vista das relações de raças”. In: COSTA
PINTO, Luís de Aguiar. O negro no Rio de Janeiro. Relações de raças numa
sociedade em mudança. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1952.
GONÇALVES, Rafael Soares. “A reforma urbana do Rio de Janeiro.
Para onde vão os pobres?” In: GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas
do Rio de Janeiro. História e direito. Rio de Janeiro, Pallas, editora PUC-RJ,
2013.
LEEDS, Anthony. “Quanto vale uma favela.” Sociologia e Antropologia.
Rio de Janeiro, v 08.03: 831-848, set-dez, 2018.

406
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

LIMA, Nísia Verônica Trindade. “A favela como problema na década


de 1930”. In: LIMA, Nísia Verônica Trindade. O movimento de favelados
do Rio de Janeiro – políticas de estado e lutas sociais. 233f. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 1989.
MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. “Vida e morte da teoria da
marginalidade” In: Konder, Leandro., Cerqueira, Gilásio., Figueiredo,
Eurico de Lima. Por que Marx? Rio de Janeiro, Graal, 1983.
RIO, João do. “Os livres acampamentos da miséria.” In: RIO, João do.
Vida Vertiginosa. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1911.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. “Um jogo de cartas; Comos e
porquês introdutórios; O espaço e os jogos (do poder); As cidades
como foram sendo em todo mundo; As cidades como puderam ser
no Brasil.” IN: SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como
um jogo de cartas. Niterói, Eduff; São Paulo, Projeto Editores, 1988.
SILBERSTEIN, Paul. “Favela Living: personal solution to larger
problems.” América Latina. Rio de Janeiro, v12, n3, p 183- 200, jul-set
1969.
VALLADARES, Licia do. “A gênese da favela carioca.” In:
VALLADARES, L. do P. A invenção da favela: do mito de origem à favela.com.
Rio de Janeiro, Editora FGV, 2005.
VIANA, Rachel de Almeida. “Introdução.” In: VIANA, Rachel de
Almeida. Encontros etnográficos e antropologia em rede: a favela do Jacarezinho
e a pesquisa de Anthony e Elizabeth Leeds na década de 1960. Tese
(doutorado). Rio de Janeiro, PPGHCS/COC/Fiocruz, 2019.
Orientadora: Nísia Lima.

407
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

408
Interdisciplinaridade e Construção do Saber Científico

409
Entre História e os Campos do Pensamento Humano - Vol. 2

410

Você também pode gostar