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leitores novas “costuras” entre os traba- lógica, que pode ser apreciada a partir
lhos que enriquecerão os debates sobre de três eixos.
os dispositivos urbanos vigentes nas cida- Em um primeiro eixo, o livro apresen-
des contemporâneas. Antes de finalizar, ta os modos pelos quais o colecionismo
gostaria de destacar a relevância ética do século XVII imbrica-se com as rotas
e política dos textos, que fazem circular comerciais e de dominação colonial. Os
visões minoritárias sobre as cidades e objetos colecionáveis confundem-se com
sobre as violências presentes nas formas os itens de comércio, e as pessoas que
de governar as populações pobres. os trocam, com os agentes coloniais. Os
casos analisados do percurso da bacia de
prata e dos chapéus de Castor, trocados
DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p217 entre Nassau e representantes do Congo,
FRANÇOZO, Mariana de Campos. 2014. De apresentam as dinâmicas coloniais que
Olinda a Holanda: o gabinete de curiosi- punham em contato áreas tão distantes
dades de Nassau. Campinas, SP: Editora da quanto Holanda, África, Peru e Pernam-
Unicamp. 287 pp. buco e que fortaleciam o comércio de
açúcar e de escravos. Ainda sobre a bacia
de prata, a investigação da sua origem re-
Rita de Cássia M. Santos monta ao Peru. Segundo a autora, a bacia
Doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ deve ter seguido para a África por meio
de comerciantes, lá utilizada para compra
A problematização da coleção de Maurí- de escravos e posteriormente presenteada
cio de Nassau, formada durante seus anos a Nassau. As coleções, como demonstra
de administração da possessão holandesa a autora, não são fixas e perenes, ao
no Nordeste do Brasil (1637-1644), é o contrário, o seu valor reside justamente
pano de fundo no qual Mariana Françozo no movimento. As trocas, as permutas, as
tece seu primoroso livro. Busca a autora inclusões eram frequentes e justificavam
reestabelecer as diferentes temporali- a sua importância.
dades da coleção em seus processos de Ainda nessa direção, Françozo analisa
formação, circulação e dispersão, apos- um conjunto de instigantes questões pos-
tando que o desenrolar dessa imbricada tas a partir da aplicação do conceito de
rede a guiará às conexões atlânticas que, dádiva às práticas colecionistas do século
no limite, identificam o colecionismo XVII. Elaborado por Marcel Mauss, o
do século XVII aos jogos políticos do conceito de dádiva buscava compreender
circuito colonial. Ao abordar o processo as implicações do sistema de trocas na
de formação e circulação da coleção de conformação das relações pessoais, dito
Nassau, Françozo permite entrever ainda de outro modo, como a troca de objetos
a dinâmica de produção de saberes sobre converte-se em laços pessoais. Aqui,
o Brasil nos Países Baixos da época Mo- Françozo o utiliza para compreender os
derna, observada e analisada a partir das sentidos e os significados das múltiplas
práticas sociais. doações que envolvem a formação da co-
Desdobramento de sua tese de douto- leção e sua posterior dispersão no contex-
ramento em antropologia pela Unicamp, to europeu e americano, entre europeus e
sob supervisão do ilustre professor John populações autóctones. Como resultado,
Monteiro, este trabalho combina uma percebemos os diferentes caminhos pelos
aguçada pesquisa histórica com uma quais Nassau, a partir de sua coleção,
criativa linha de investigação antropo- constrói um nome de prestígio, o bem
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simbólico maior na sociedade de corte. Por fim, ao enfocar uma coleção de


Para alcançar essa conclusão, a autora transição dos registros do século XVI,
investigou as sucessões de bailes, mas- que têm as “maravilhas” e as excepcio-
caradas, teatros, apresentações, emprés- nalidades como mote, para os registros
timos e uma série de outros mecanismos mais exploratórios e científicos do século
utilizados por Nassau na apresentação, XVIII, Mariana Françozo nos permite
divulgação e doação de sua coleção. conhecer melhor como funcionavam
Os objetos e coisas em circulação tornam- na prática social os mecanismos de
-se a materialidade das próprias redes de reconhecimento e dominação colonial
relações. Vemos assim como o mecanis- postos em curso nesse momento e suas
mo de troca material e simbólica se faz ligações com o campo científico da épo-
central não apenas na compreensão da ca, bem como as relações estabelecidas
coleção, mas no cenário político mais pelos holandeses com o Novo Mundo.
amplo das relações estabelecidas pelos A curiosidade holandesa pela fauna, a
europeus nos domínios coloniais. flora, as populações autóctones aparece
Em um segundo eixo, podemos desta- de modo vívido e dinâmico. Embora não
car a análise que Françozo empreende so- seja objetivo primeiro do seu trabalho, o
bre o campo científico da época. Segundo livro de Françozo permite que acessemos
a autora, a ocupação holandesa das terras um interessante quadro da época moder-
americanas foi precedida pela informa- na, em que podemos conhecer desde a
ção do Novo Mundo. Os Países Baixos formação humanística dos jovens nobres
concentravam um dos maiores mercados dos Países Baixos, até as relações esta-
editoriais do mundo desde o século XVI. belecidas com as populações autóctones
Sua população letrada, a maior da Euro- e as conexões existentes entre ciência e
pa, rapidamente absorveu a invenção de Novo Mundo. O livro descortina assim o
Gutemberg. Entre os séculos XVI e XVII, “processo mais amplo de circulação de
cerca de 3 milhões de livros haviam sido saberes sobre o Novo Mundo” e torna-
produzidos por seu mercado editorial. -se leitura obrigatória para antropólogos,
Desse conjunto, destacam-se as coleções historiadores e todos aqueles interessados
de relatos de viagem, usuais desde o início tanto no estudo dos domínios do campo
das grandes navegações. Desse modo, científico quanto no do colecionismo,
o comércio, as viagens e a produção de além de oferecer outra via de análise do
conhecimento científico encontravam nos período nassoviano no Brasil.
Países Baixos um terreno fértil. Ao analisar O livro foi organizado em quatro ca-
o conjunto de obras científicas integrantes pítulos. No primeiro, Mariana Françozo
da coleção nassoviana, Françozo demons- apresenta ao leitor o conjunto de cone-
tra que sua produção não correspondia a xões holandesas no Atlântico (incluindo
uma obra individual, mas sim coletiva, pessoas, coisas, conhecimento) no século
na qual intervinham diferentes atores XVI, o traçado das conquistas holandesas
e temporalidades. Não apenas eruditos e um breve perfil sociopolítico de Nas-
europeus têm espaço; a participação das sau; no segundo capítulo, apresenta a
populações autóctones aparece com uma composição da comissão nassoviana, as
vivacidade difícil de ser encontrada em modificações urbanísticas empreendidas
outras obras. Conhecer sua participação pelos holandeses em Pernambuco, um
na vida política e científica é um dos esboço dos itens até então colecionáveis
elementos primorosos que nos oferece o e os primeiros processos de formação da
trabalho de Françozo. coleção; no terceiro capítulo, conhecemos
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as representações produzidas, o estado socialização. Ao fazê-lo entra em rota de


da História Natural e a singularidade da colisão com os sociólogos clássicos, como
contribuição holandesa nesse domínio, e Durkheim, a partir do seu entendimento
a circulação da coleção e de pessoas entre do que seja a “socialização”, largamente
a Europa e o Brasil; por fim, no quarto focado na geração que socializa a gera-
capítulo, os processos de circulação e dis- ção mais nova; e com a psicologia com
persão da coleção. Compõe ainda o livro viés universalizante e evolucionista, a
um epílogo no qual a autora apresenta exemplo de Piaget e seu conceito de
suas conclusões gerais e um caderno de “desenvolvimento infantil”.
imagens com alguns elementos singu- Mas nada disso é novo. O que o livro
lares, como o recorte de pergaminho do traz de novo é uma revisão ampla e ma-
século XVII no qual aparecem cenas co- dura do processo de socialização infantil
tidianas do palácio Vrijburg (erguido por (afinal, a socialização não cessa ao fim
Nassau em Recife); as imagens de Caspar da infância), em que pesa, em primeiro
Schmalkaden, soldado de Nassau, que lugar, a ação das crianças mesmas, mas
oferecem o registro dos objetos colecio- também entram em cena instâncias que
nados pelo comandante; e as imagens dos poderíamos chamar societais e culturais
usos do manto tupinambá por mulheres que, através dos sistemas econômicos,
da nobreza holandesa. legais, políticos e sociais, têm papel im-
Por tudo isso, De Olinda a Holanda: portante na vida das crianças. A extensão
o gabinete de curiosidades de Nassau é da influência da sociedade na vida das
sem dúvida uma contribuição singular crianças é o que James vem chamando,
ao campo do estudo do colecionismo, da nesta e em outras publicações, de “políti-
história da ciência e do período nasso- cas culturais da infância”. É nesse sentido
viano no Brasil. que lemos a ambiguidade proposital no
título: as crianças também “são” socia-
lizadas.
DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p219 Pensar como as crianças são socializa-
JAMES, Allison. 2013. Socialising children. das pode parecer um retrocesso e quiçá
Basingstoke: Palgrave Macmillan. 204pp. um movimento contrário à trajetória de
pesquisa da autora. Mas não se trata
disso. Trata-se de reconhecer a neces-
Flávia Ferreira Pires sidade de aprofundar o debate teórico a
Professora Adjunta do Departamento de Ciências partir de um ponto de vista de uma área
Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) de pesquisa já consolidada, sem receio de
reconhecer a complexidade da vida coti-
Um ano antes de aposentar-se, Allison diana das crianças. Em momento algum
James, respeitada professora e pesqui- a autora exclui as crianças dos processos
sadora, pioneira da área dos Estudos da sociais. Em todo o livro é do ponto de
Infância (inicialmente chamada de Novos vista das crianças que se parte. Este é o
Estudos da Infância), lança o livro Socia- desafio, fazer ciência social que inclua as
lising children. A ideia central é a confir- crianças como sujeitos de pesquisa que,
mação de que as crianças socializam-se como os adultos, reproduzem, recriam e
a si mesmas.Trata-se de um longo debate inventam formas de estar em sociedade.
na área dos Estudos da Infância que, O livro pontua a necessidade de es-
como paradigma dos anos 80, enfatiza tudos com crianças como crucial para o
a agência das crianças na sua própria entendimento da vida social, mas sem

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