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Sérgio Buarque de Holanda entre a história e a sociologia

LAURA DE MELLO E SOUZA

Resenha para a Folha de S. Paulo, 3 de abril de 1995.

Monções
Sérgio Buarque de Holanda
Brasiliense, 326 págs. R$ .
Caminhos e Fronteiras
Sérgio Buarque de Holanda
Companhia das Letras, 301 págs. R$ .

Sobre Sérgio Buarque de Holanda, existem hoje algumas certezas bem firmadas. Dentro
e fora dos círculos acadêmicos, é visto como o maior dos historiadores brasileiros. Todo
leitor culto reconhece em Raízes do Brasil uma obra-prima ; todo estudioso de História
considera Visão do Paraíso a expressão máxima da erudição nacional. Existem
entretanto dois livros seus que ainda não receberam a atenção merecida: Monções, de
que a imprensa praticamente ignorou a edição ampliada vinda à luz em 1990; Caminhos
e Fronteiras, reeditado pela terceira vez em 1994 e tratado com igual indiferença.
A afinidade entre os dois trabalhos é evidente, e, aliás, explicitada pelo autor na
Introdução ao segundo. Monções foi publicado pela primeira vez em 1945, e Caminhos
e Fronteiras reuniu, doze anos depois, ensaios escritos nesse meio tempo. Mais de um
especialista aludiu ao papel de divisor de águas representado pelos dois livros, que
documentam o nascimento de um Sérgio eminentemente historiador, às voltas com os
arquivos e a pesquisa sistemática de fontes primárias, e o abandono do ensaísmo mais
sociológico de Raízes do Brasil (1). Da fase anterior, permaneceu entretanto a presença
da cultura alemã (ou por esta influenciada), sobretudo na forma da antropologia. É
interessante ressaltar esta interdisciplinariedade, central em todas as profissões de fé
produzidas durante a primeira fase da "revolução historiográfica francesa", capitaneada
por Lucien Febvre e Marc Bolch, e à qual Sérgio chegou por vias diferentes das dos
historiadores dos Annales (2). Em decorrência do intercâmbio fecundo com a psicologia
social, a sociologia, a antropologia e a linguística, os franceses postularam uma "história
total", abrindo posteriormente espaço para que vicejasse uma história das mentalidades
e, mais recentemente, uma história cultural. Após o estudo minucioso das técnicas e
práticas da vida cotidiana - cuja inspiração veio da etnologia de Koch Grünberg,
Nordenskiõld, Friederici, mas produziu resultados metodológicos originais - , encetado
justamente nos dois livros que aqui se comenta, Sérgio concebeu Visão do Paraíso, obra
próxima da história da cultura dos alemães mas igualmente aparentada à história das
mentalidades francesa, que então - 1959 - dava seus primeiros passos.
A antropologia parece ter sido, assim, uma via necessária para refletir sobre processos
históricos, notadamente no viés da análise cultural. No plano o mais genérico possível, o
objeto de Monções e Caminhos e Fronteiras é a história dos paulistas antigos:
populações mamelucas que viviam a cavaleiro de duas culturas, equilibrando-se na
tensão entre mobilidade - o caminho, a penetração fluvial (monção) - e sedentarização -
a fronteira, onde tradições de natureza diversa se combinavam, produzindo técnicas,
costumes, atitudes, artefatos. Do ponto de vista metodológico, o autor busca
compreender, em toda a sua complexidade, o mecanismo das trocas, sínteses e soluções
culturais. Não se trata de constatar difusão de traços, mas de perceber que a forma
assumida por tais traços foi definida pela situação histórica: esta é, afinal, a prova dos
nove de todo o processo. Por fim, no plano mais circunscrito, a análise incide sobre a
vida material - viés de que parte a compreensão mais funda, restabelecendo-se, assim, o
percurso de volta do particular ao geral.
Em Monções, o autor destaca o fabrico das canoas - que o acidentado das viagens
acabou por tornar cobertas -, a utilização dos rios como caminhos - introduzida pelos
paulistas e imitada posteriormente no extremo Norte -, a adoção de roupas simples e
rústicas, a configuração de uma dieta alimentar definida a partir das contingências da
itinerância - o milho, cujas sementes eram de transporte fácil e germinação rápida; o
toucinho, que se conservava bem.
Tributário, em muitos pontos, do livro anterior, Caminhos e Fronteiras apresenta,
porém, complexidade bem maior. Os artigos originais datam de momentos diversos,
mas o autor os dispôs de forma a dar ao todo uma grande unidade - reescrevendo,
obviamente, pequenas passagens para assegurar a harmonia final. Os capítulos se
ordenam em três núcleos: Índios e mamalucos, Técnicas rurais e O Fio e a teia. Nas
palavras do autor, o primeiro núcleo aborda "as situações surgidas do contato entre uma
população adventícia e os antigos naturais da terra com a subsequente adoção, por
aquela, de certos padrões de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos
últimos" (p.12). O segundo e o terceiro núcleos, por sua vez, abordam o processo de
diluição desse legado, ocorrido nos primeiros tempos, e a lenta recuperação
subsequente; a herança indígena se faz mais presente no segundo núcleo, pois no
terceiro abordam-se "atividades que tendem a acomodar-se aos meios urbanos e se
tornam, neste caso, cada vez mais dóceis aos influxos externos" (id.).
Apesar do pioneirismo no estudo do cultivo dos trigais, da pilação dos grãos, do trato do
solo, da tecelagem de cunho doméstico - quando o autor mostra que a boa análise das
técnicas deve se valer da antropologia e da consideração dos universos mentais
envolvidos -, Índios e mamalucos se destaca das demais partes e conta entre as páginais
mais brilhantes já produzidas pelas Ciências Humanas no Brasil.
Os nove artigos que compõem este núcleo se sucedem para o leitor como uma série de
obras-primas impressionantes, capazes de surpreender e maravilhar a cada parágrafo.
Muito antes das considerações de Carlo Ginzburg sobre o conhecimento indiciário,
Sérgio Buarque de Holanda aborda este problema em "Veredas de pé posto" e
"Samaritanas do sertão", detendo-se sobre a dimensão cultural dos sentidos e da
percepção. No primeiro, discorre sobre a arte de se orientar no mato por meio da leitura
de pegadas e ramos quebrados, mostrando ainda como há um "jeito de corpo" próprio
para a marcha longa - os pés devem ficar ligeiramente voltados para dentro - , desde
cedo incorporado pelos mameucos de São Paulo. No segundo, trata da questão do
abastecimento de água durante as longas jornadas sertão adentro, e da forma própria aos
caminhantes de decifrarem sinais referentes à existência de mananciais ou reservatórios.
"Iguarias de Bugre", "Caça e Pesca" e "Botica da Natureza" são um marco na trajetória
do autor, contendo já algumas das questões posteriormente exploradas em Visão do
Paraíso, onde o "gosto do maravilhoso" iria adquirir importância central. Exploram a
incorporação, por parte do europeu, de hábitos alimentares, venatórios e curativos
inusitados e exóticos, mostrando que, mesmo se subordinada à fome - "companheira da
aventura" - , à itinerância ou à premência da doença, ela se fazia quase sempre através
de critérios ora seletivos, ora analógicos. Estes últimos se encontram presentes, por
exemplo, na crença na virtude de certas pedras existentes nas entranhas dos animais,
identificadas pelos colonos à lendária pedra bezoar; manifestam-se ainda na adoção de
certas práticas indígenas de pesca, como o hábito de intoxicar os peixes, velhas
conhecidas dos portugueses. Na nova terra, diante de peculiaridades do meio natural,
"onde não se reproduzem exatamente as visões habituais, a imaginação adquire direitos
novos", apesar de haver sempre quem insistisse nas analogias, procurando "o honesto
pão de trigo" na mandioca, a castanha européia na araucária, a uva na jabuticaba, a
carne de vaca na de tamanduá - como registraram tantos dos primeiros cronistas.
Tais procedimentos, portanto, mostraram-se muito mais complexos do que as aparências
levam a supor: "nada tão difícil (...) como uma análise histórica tendente a discriminar
(...) entre os elementos importados e os que procederam diretamente do gentio. Traços
comuns prepararam, sem dúvida, e anteciparam, a síntese desses diversos elementos"
(p.78). "(...) ...são dignos de interesse, por outro lado, os processos de racionalização e
assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos, dando-lhes novos
significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com seus sentimentos e
seus padrões de conduta tradicional" (pp.79-80).
Cabe destacar ainda "Frechas, feras, febres", o mais longo dos ensaios, e um dos mais
belos - combinação exemplar de pesquisa histórica e observação etnográfica -, e "Frotas
de Comércio", que retoma, às vezes de forma literal, passagens de Monções,
acrescentando contudo uma analogia brilhante entre o fascínio lusitano pelo ultramar e o
fascínio dos mamelucos paulistas pelo interior, as monções assumindo, neste
imáginário, a forma de uma "migração ultramarina" (pp.149-150). Para Sérgio, trata-se,
assim, do mesmo objeto repensado já à luz de outras cogitações: as que embalavam a
feitura de Visão do Paraíso.
Escrevendo num momento em que muitos acreditavam na sobredeterminação do
econômico, e quando se começava a cogitar, entre os historiadores franceses, na
autonomia das mentalidades - fenômenos de longuíssima duração - Sérgio Buarque de
Holanda fica numa espécie de meio-caminho extremamente sugestivo: Caminhos e
Fronteiras mostra que foi nos aspectos da vida material que o colono e seus primeiros
descendentes se mostraram mais sensíveis "a manifestações divergentes da tradição
européia", mantendo, sempre que possível, o legado ancestral no tocante à vida familiar
e em sociedade (p.12). Mas foram determinados traços de mentalidade, peculiares aos
colonizadores portugueses, que permitiram operar a seleção das técnicas adotadas, a
retirar, da botica da natureza, certas substâncias e não outras, imprimindo sentido nos
arranjos culturais e influindo sobre a história dos homens. Mentalidade que não se
apresentava quase imóvel, como nos trabalhos de Philippe Ariès, mas passível de ir se
alterando aos poucos, sob o impacto da "agitação de superfície" representada pela
adoção de novas técnicas e de novos costumes (p.136).
Mas se é um marco inovador, Caminhos e Fronteiras não perde de vista a melhor
tradição historiográfica brasileira. Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado,
econtra-se presente em muitos pontos - Sérgio mostra, em "Redes e redeiras", que uma
rede valia tanto, ou pouco mais do que uma casa de um lanço (um pavimento) na São
Paulo seiscentista (p.249). A habilidade em desvendar os significados ocultos nos
hábitos alimentares, nas vestimentas, na relação com a topografia e as plantas invocam
Capistrano de Abreu e os Capítulos de História Colonial, citados em várias passagens.
Como diz o título, Caminhos e Fronteiras demarca territórios, indicando um tempo novo
nos estudos de história, mas é também confluência de muitas picadas e atalhos mais
antigos.

1. Cabe destacar as considerações de Maria Odila Silva Dias, "Sérgio Buarque de


Holanda, historiador" - Introdução a Sérgio Buarque de Holanda, Coleção Grandes
Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1985, pp. 25 e segs.
2. Uso a expressão de Peter Burke, A escola dos Annales - 1929-1989 - A Revolução
Francesa da Historiografia, trad., São Paulo, Editora Unesp, 1991.

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