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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE MINAS GERAIS

Mestrado em Estudos de Linguagens

Clícia Ferreira Machado

LEONILSON. SUTURAS
Reflexões acerca do entrelaçar de linguagens na obra
de José Leonilson Bezerra Dias.

Belo Horizonte (MG)


2013
Clícia Ferreira Machado

LEONILSON. SUTURAS
Reflexões acerca do entrelaçar de linguagens na obra
de José Leonilson Bezerra Dias.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


Stricto Sensu em Estudos de Linguagens (POSLING) do
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais –
CEFET-MG, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Estudos de Linguagens.

Linha de pesquisa: Discurso, Cultura e Tecnologia

Orientador: Prof. Dr. Rogério Barbosa da Silva

Belo Horizonte (MG)


2013
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Rogério Barbosa Silva. Obrigada pela confiança, compreensão e


generosidade; pela orientação paciente, pelos ensinamentos e estímulos ao meu processo de
aprendizagem.
Ao Prof. Dr. João Batista Santiago Sobrinho e ao Prof. Dr. Paulo César S. Ventura,
agradeço a confiança, o carinho e encorajamento.
À Sandra e funcionários do Posling, pelo auxílio, pela presteza e atendimento sempre
cortês.
Aos meus pais, Ataíde e Lúcia, que me ensinaram o significado de persistência e
determinação; pelo amor incondicional, conforto, apoio e incentivo permanentes.
À minhas filhas, Dandara e Victória, por compreenderem as minhas ausências (mesmo
quando precisavam tanto de mim!), os meus ataques “pra lá de nervosos”, as minhas
reclamações e as minhas fraquezas, e pelos sacrifícios suportados – ainda bem que nossa
relação tem estofo! Obrigada, meninas, pela ajuda diária e por tornarem meus dias mais
possíveis, pelos afetos sinceros e descompromissados. Vocês são meu maior estímulo!
Ao Zé, que acompanhou, pacientemente, minhas inquietações e que com sua
serenidade buscou me tranquilizar nos momentos de excessiva angústia e cansaço; pela espera
tolerante, por me fazer companhia nos dias e noites reservadas à escrita e que, a despeito das
minhas ausências, manteve o seu afeto vivo.
Às minhas irmãs, Kênia, Atatiana e Glasiela, pelo incentivo e presença constante (e
imprescindível) em minha vida.
À Kênia, pelo apoio e pelas leituras, sugestões e revisões cuidadosas.
À Atatiana e Fabiano, e à Ana Paula e Lucas, agradeço por me receberem e por me
permitirem fazer da “sua casa”, a “minha casa” no período em que precisei permanecer em
Belo Horizonte.
Ao Luiz Lopes e à Cláudia Leite. Obrigada, pela força, presteza na leitura dos meus
textos e por suas valiosas considerações.
À Bya, pela amizade, disponibilidade, prontidão e pelos deliciosos cafés regados a
discussões e observações sempre pontuais sobre as artes e Leonilson.
À Alexsandra e Cíntia, pela leitura atenta e considerações fundamentais à minha
escrita.
À Bu, pela generosidade, pelo estímulo frequente, por sua alegria e por me fazer
enxergar que é preciso rir da vida para dar conta dos momentos em que a acidez é a tônica.
À Renata, por sua amizade sincera, com a qual sempre posso contar. E à Thaís, pela
força e pelas doses de otimismo. Obrigada por me deixarem invadir o espaço de vocês para
fazer a escrita fluir. A vocês devo, além de um “encontro na cozinha” para um risoto e um
bom vinho, momentos de desabafo, alegria e conforto.
Às minhas velhas (num bom sentido!) amigas, pela companhia nas ocasiões em que
precisava me divertir e ganhar ânimo para concluir este trabalho. Obrigada, Gugu, Cybele,
Midori, Cassinha, Carla e Saninha, pelos encontros sempre festivos e sinceros! Em especial, à
Saninha, agradeço por contribuir com suas leituras “perspicazes” da obra de Leonilson.
Aos meus companheiros de mestrado pelas trocas, cumplicidades e saberes
compartilhados. Carinhosamente, agradeço à Patrícia, Danielle, Fabíola e Maria pelas sessões
de “terapia de grupo” – valeu demais, meninas! Obrigada Patrícia, por sua atitude generosa e
prontidão em sempre ajudar; Fabíola, pelas caronas oportunas e hospitalidade; Martha e
Camila, por sempre me presentearem com uma palavra de conforto; Gláucia, pela calorosa
hospedagem e por me oferecer seu carinho maternal e atitude cuidadora.
Aos meus colegas de trabalho, que suportaram, pacientemente, minhas ansiedades e
lamentações e por contribuírem, de modo pragmático, para a conclusão deste trabalho.
Agradeço, particularmente, à Mivla, Verônica e Neide.
“Eu quero que meus trabalhos me levem a mim”

(Leonilson, no documentário Com o oceano inteiro


para nadar, de Karen Harley)
RESUMO

Este trabalho concentrou esforços na análise das conformações estéticas da produção do


artista plástico José Leonilson Bezerra Dias (1967-1993), a fim de compreender de que modo
se organiza o arranjo estrutural das linguagens em sua obra. A pesquisa, que se debruça sobre
as possibilidades dos modos de ver e de ler, de criar imagens e produzir textos que se
relacionam com a condição da linguagem das artes na contemporaneidade, tem como foco a
interface entre a palavra e a imagem. Para atender aos interesses deste estudo, do conjunto da
obra do artista, foram eleitos para análise trabalhos produzidos entre os anos de 1991 e 1993,
considerando obras que evidenciam os tênues limites entre a palavra e a imagem, e que
privilegiam o uso, em sua composição, de bordados, costuras, tecidos. Dadas a natureza e as
especificidades do objeto de pesquisa, para examinar o corpus selecionado, propôs-se um
estudo a partir das pesquisas bibliográfica, de análise de conteúdo e análise de imagens, e
procedimentos metodológicos que destacam os tratamentos analítico e descritivo-explicativo.
O estudo permitiu constatar uma obra farta de notações autobiográficas – condição que opera
como “senha” e irrompe os modos de organização das linguagens na produção do artista – e
desvelou que os elementos da composição plástica de Leonilson denunciam uma existência
em subjetividade e como tal exigem a especificidade de uma vida a qual se reporta.

Palavras-chave: arte contemporânea; autobiografia; imagem e palavra; José Leonilson;


linguagem.
ABSTRACT

This work analyzes the conformations of aesthetic production artist Leonilson José Bezerra
Dias (1967-1993) in order to understand how is organized the structural arrangement of
language in his art work. This research, witch includes the possibilities of seeing and reading,
creating images and producing texts that relates to the condition of the contemporary art
language, focuses on the interface between word and image. From the overall work of the
artist, were elected for analysis the production between 1991 and 1993, and selected works
that highlighted the tenuous boundaries between word and image, and witch were made with
embroidery, sewing and fabrics. Given the nature and specificities of the research object, to
examine the selected corpus we proposed a study from the research literature, content analysis
and image analysis, methodological procedures and treatments that highlighted the analytical
and descriptive-explanatory. The study noticed a autobiographical notations - a condition
which operates as “password” and shows the organization of language in the production of the
artist - and unveiled that the elements of artistic composition of Leonilson denounce an
existence in subjectivity and as such require the specificity of a life to which it refers.

Keywords: contemporary art; autobiography; image and word; José Leonilson; language.
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Ann Hamilton, Tropos, 1993-1994 ................................................................... 23


FIGURA 2 Sthéphane Mallarmé, Un coup de dés n’abolira jamais le hasard, 1914 ......... 25
FIGURA 3 René Magritte, A traição das imagens, 1929 .................................................... 29
FIGURA 4 Joseph Cornell, 1940, O Egito de Mademoiselle Cléo de Merode: curso
elementar de história natural............................................................................ 32
FIGURA 5 Richard Hamilton, 1956, O que Exatamente Torna os Lares de Hoje Tão
Diferentes, Tão Atraentes? ............................................................................... 33
FIGURA 6 Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, 1965 ....................................................... 36
FIGURA 7 Mira Schendel, Rot, 1965.................................................................................. 39
FIGURA 8 Bruce Nauman, Janela ou anúncio de parede, 1967 ........................................ 42
FIGURA 9 Jean-Michel Basquiat, Liberty, 1984 ................................................................ 44
FIGURA 10 Jenny Holzer, “Truísmo” sobre camiseta modelada por Lady Pink, 1983 ...... 45
FIGURA 11 Nam June Paik, TV Garden, 1977 .................................................................... 46
FIGURA 12 Leonilson, O Pescador de Palavras, 1986 ....................................................... 53
FIGURA 13 Eva Hesse, Aught, 1968 .................................................................................... 59
FIGURA 14 Louise Bourgeois, Pink Days and Blue Days, 1997 ......................................... 60
FIGURA 15 Leonilson, O Penélope, 1993 ............................................................................ 61
FIGURA 16 Leonilson, O homem certo com o molde certo, 1990 ....................................... 64
FIGURA 17 Leonilson, Sem Título,, 1991 ............................................................................ 65
FIGURA 18 Leonilson, J.L.D.B., 1993 ................................................................................. 67
FIGURA 19 Leonilson, J.L. 35, 1993.................................................................................... 67
FIGURA 20 Leonilson, 34 com Cicatrizes, 1991 .................................................................. 69
FIGURA 21 Leonilson, Los Delicias, 1993 .......................................................................... 70
FIGURA 22 Manuscrito de Leonilson, Caderno, 1989 ......................................................... 71
FIGURA 23 Acervo pessoal de Leonilson ............................................................................ 72
FIGURA 24 Leonilson, Mirro, 1972 ..................................................................................... 75
FIGURA 25 Leonilson, El Puerto, 1992 ............................................................................... 76
FIGURA 26 Leonilson, Mauricinho é o troglodita arrumadinho, 1991 ............................... 77
FIGURA 27 Leonilson, Xuxa é um Lee Iacoca de botinha branca, 1991 ............................. 78
FIGURA 28 Leonilson, O perigoso, 1992 ............................................................................. 80
FIGURA 29 Leonilson, Ninguém, 1992 ................................................................................ 86
FIGURA 30 Leonilson, Voilà mon couer, de 1990 ............................................................... 93
FIGURA 31 Leonilson, O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto
para servi-lo, 1991 ............................................................................................ 95
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11

1 ASPECTOS DA RELAÇÃO PALAVRA-IMAGEM NAS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS


CONTEMPORÂNEAS ............................................................................................................ 17
1.1 A arte além do limite da arte .............................................................................................. 17
1.2 Escrever, inscrever, desenhar, gravar: experimentações icônico-expressivas nas artes ..... 24
1.3 As práticas artísticas contemporâneas ................................................................................ 32

2 ARTE COMO VONTADE DE EXPRESSÃO ..................................................................... 49

3 VIDA E OBRA COSTURADAS NUM ÚNICO TECIDO .................................................. 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 99

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................101
11

INTRODUÇÃO

(...) É a ambiguidade. Minha vida é um


diário. Toda minha atitude é esta. Eu
também não entendo direito isso. Se eu
entendesse, acho que eu iria fazer outra
coisa.

(Leonilson)

A experiência que motivou este estudo foi uma visita que fiz a uma exposição de
desenhos do artista plástico Leonilson, no Centro Universitário Maria Antônia/USP, em 2008.
As obras expostas, uma série de contundentes e intrigantes desenhos, diminutos, envoltos por
grandes espaços vazios, e justapostos a palavras despertaram (ainda mais) minha curiosidade
e interesse pela produção do artista.
Nascido em Fortaleza, Leonilson Bezerra Dias (1957-1993) mudou-se para São Paulo
ainda criança, e desde cedo demonstrou interesse pela arte (ITAÚ CULTURAL, 2011)1.
Adolescente, em 1972, frequentou um curso de arte na Escola Pan Americana de Arte. Data
dessa época a obra Mirro, assemblage que faz uso do tecido e do bordado como elemento e
técnica de composição, e que aponta alguns dos processos que vão permear a produção por vir
nos anos 1980 e 1990. Em 1977, Leonilson ingressou no curso de Licenciatura em Educação
Artística da Fundação Armando Álvares Penteado/FAAP – onde foi aluno de Nelson Leirner
(1932-), Julio Plaza (1938-2003) e Regina Silveira (1939-)2 – sem, contudo, concluí-lo. E foi
justamente no ano em que abandonou o curso na FAAP, em 1980, que Leonilson decidiu que
seria um pintor, conforme suas palavras (MORAIS, 1985). Esse ano marca o início de uma
série de exposições que se seguiriam e, certamente, foram pontuais para o estabelecimento da
carreira do artista – entre as quais, destaca-se a mostra Panorama da Arte Brasileira/Desenho e
Gravura, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma das mais tradicionais e respeitadas do
país. Destaca-se que a carreira de Leonilson, apesar de curta, fez dele um dos grandes nomes
da arte brasileira contemporânea (PROJETO LEONILSON, s/d).

1
Informação confirmada durante conversa com Ana Lenice Dias, irmã de Leonilson e presidente do Projeto
Leonilson.
2
Reconhecidos nacional e internacionalmente, Nelson Leirner e Regina Silveira são artistas que, notadamente,
colocaram à prova os códigos preestabelecidos e cristalizados da arte e têm, ambos, a ironia como marca. Julio
Plaza, artista intermídia de origem espanhola, se instalou definitivamente no Brasil nos anos 1970 e destacou-se
pela promoção e divulgação de uma produção de vanguarda, especialmente a que privilegia a visualidade poética
da linguagem não verbal.
12

Sobre a vida-obra do artista, diz a crítica e pesquisadora de arte Lisette Lagnado,


quando citada em um texto do Portal São Francisco:

[...] Concentrada no curto período dos dez últimos anos de sua vida, a obra é quase
exclusivamente autobiográfica e reúne cerca de mil trabalhos, entre desenhos,
pinturas e objetos de pano classificados como “bordados”. Trata-se de um volume
com qualidades desiguais, embora dotada da propriedade de se manter coeso em
torno de imagens e temáticas recorrentes. (LAGNADO apud PORTAL SÃO
FRANCISCO, s/d)

A trajetória artística de Leonilson, de acordo com classificação sugerida por Lagnado


(1995), é composta por três núcleos formativos: a primeira fase, de 1983 a 1988, que consiste
na busca de uma definição estética por meio do “prazer de pintar”, que se traduz numa
mensagem alegre, colorida e irônica; a segunda, de 1989 a 1991, marcada pelo tema do
“abandono” e pelo romantismo/amor romântico; e, por fim, a terceira fase, que compreende
os dois últimos anos da sua vida, na qual a alegoria da AIDS3 domina por completo a sua
linguagem artística.
Apesar de considerar essa disposição taxonômica relativamente rígida e, por vezes,
imprecisa, pois um exame panorâmico da produção do artista revela a existência de elementos
e procedimentos que a acompanham do início ao fim, didaticamente, tal classificação fornece
uma base útil para os estudos de sua produção e se mostra oportuna para a análise aqui
proposta. As obras selecionadas para apreciação neste estudo apresentam especificidades que
encontram eco nos novos modos de expressão e mudanças ocorridas na produção estética de
Leonilson a partir de 1991, um período marcado pela experiência da AIDS.
Heterogênea, a produção do artista abraça as artes visuais (aí considerados a pintura, o
desenho, a escultura, a gravura, a estética dos quadrinhos e do cartum, entre outros), o design
(gráfico e de moda) e a literatura. Composta por associações e justaposições de elementos
díspares, a obra de Leonilson envolve o cruzamento de diferentes linguagens e materiais.
Esses elementos se interpenetram e se acoplam a ponto de poder se afirmar que a mistura
constitui um estatuto mesmo da sua arte, revelando-se uma importante questão do seu
trabalho, que singulariza e confere inquietação à leitura de sua produção.
Instigada pela potência tanto da temática quanto da composição plástica das obras do
artista, reverberadas notadamente pelas associações entre a imagem e a palavra, num primeiro
momento, me propus, como problema, a examinar a interface entre essas duas linguagens,

3
Em 1991, o artista descobre-se portador do vírus HIV.
13

(inicialmente) entendidas como estratégias de estruturação e construção de sentido na


produção do artista.
Ao refletir de modo mais sistemático sobre as obras de Leonilson, no entanto, outros
contornos da pesquisa foram-se delineando. Constatei que o duplo imagem-escrita, associado
aos procedimentos da costura e do bordado, mais que um recurso estético-plástico, compunha
também referências que se conectavam à biografia do artista, o que evidenciava que vida e
obra se entrecruzavam. Tal fato pode ser observado pela presença, na obra, dos dados pessoais
do artista (como as iniciais de seu nome, idade, peso e altura), pelo emprego de objetos de uso
pessoal e do próprio sangue como elementos de sua composição plástica.
Sem deixar de ter como referência o cruzamento de linguagens em seu aspecto
plástico, a constatação de que elas funcionavam como constituintes da condição
autobiográfica da obra rearranjou os rumos da pesquisa, que incluiu a relação vida e obra
como questão (essencial) do estudo, elucidou a indissociabialidade entre esses dois campos e
ampliou as leituras a respeito dos elementos conformadores do trabalho. Para desenvolver a
pesquisa, tornou-se determinante considerar o liame vida e obra como um possível modo de
operação das linguagens na arte de Leonilson.
Este trabalho, portanto, concentrou seus esforços na análise das conformações
estéticas de obras do artista, a fim de compreender de que modo as imbricações entre arte e
vida deflagram o arranjo estrutural das linguagens na obra e promovem a experiência da arte
de Leonilson como tal.
Do conjunto da obra do artista, foram eleitas para análise obras produzidas, em sua
maior parte, entre os anos de 1991 e 1993 – período em que se percebe uma mudança na
composição de sua linguagem, no qual a poética sofre um adensamento de suas questões e a
costura e o bordado se intensificam e passam a ser a técnica por excelência em sua produção.
O corpus, selecionado de forma aleatória, considerou (obrigatoriamente) obras que dão a ver
os tênues limites entre a palavra e a imagem, privilegiando aquelas que fazem uso em sua
composição de elementos plásticos do campo das práticas da tradição doméstica, do fazer
manual – bordados, costuras, tecidos e outros.
Dadas a natureza e as especificidades do objeto de pesquisa – que solicita um foco
qualitativo, aberto e abrangente – para examinar o corpus analisado, propõe-se um estudo a
partir das pesquisas bibliográfica, da análise de conteúdo e da análise de imagens. Os
procedimentos metodológicos privilegiam, dessa forma, os tratamentos analítico e descritivo-
explicativo.
14

O estudo se debruça sobre as possibilidades dos modos de ver e de ler, de criar


imagens e produzir textos que se relacionam, mais amplamente, com compreensões sobre a
condição da linguagem das artes no pensamento contemporâneo.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende-se como uma contribuição para se ampliar
os conhecimentos sobre a linguagem, suas diferentes formas de manifestação e o percurso
gerador de sentido nas artes da atualidade. Acredita-se que estudos com abordagem
específica, no tocante à diversidade, multiplicidade e o mosaico de linguagens que se organiza
para compor um todo significante, possam contribuir para elucidar e/ou suscitar
questionamentos relevantes a respeito das artes, que dadas às características próprias das
atividades artísticas contemporâneas, em constante devir, revela a exigência de interrogação
frequente.
Modalidade do fazer artístico característico da contemporaneidade, o diálogo entre
diferentes linguagens, presente na obra de Leonilson, até bem pouco tempo se desvelou
dicotômico. Embora não seja um fenômeno recente, as fricções entre linguagens no campo
das artes somente se intensifica e se solidifica no século XX, momento em que se evidenciam
as rupturas de limites entre os modos de expressão artística, decorrentes do alargamento do
conceito de arte e consequentes desdobramentos das concepções e práticas artísticas da era
moderna. Nota-se, contudo, que a multiplicidade de atitudes e abordagens que irrompeu nas
artes dos anos 1960 (e se estendeu pelas décadas seguintes) potencializou o crescente fascínio
dos artistas contemporâneos pelo “apagamento” de limites entre as expressões artísticas, o que
impõe constantes desafios àqueles que se aventuram na tarefa de analisá-las.
A dissertação estrutura-se em três capítulos. O primeiro aborda a relação imagem e
texto num breve percurso, (inevitavelmente) histórico e conceitual, da arte moderna até os
dias atuais – para aclarar as questões discutidas, retomam-se alguns exemplos da relação entre
imagem e texto na história da arte. Compreender a conjuntura na qual se desenvolveu a arte
contemporânea, bem como as imbricações entre os sistemas de signos verbais e não verbais
nas artes do período, mostrou-se bastante conveniente para o entendimento das abordagens
propostas por Leonilson. Percebe-se que a arte intersticial do período, acentuadamente
heterogênea, estabeleceu a fricção entre linguagens como modalidade do fazer artístico e
potencializou a exploração do “fato histórico” da vida de Leonilson como leitmotiv para sua
arte, o que se revelou bastante fecundo para o desenvolvimento da arte híbrida, autobiográfica
e plural do artista. No capítulo, discutem-se, ainda, as características conformadoras das artes
na contemporaneidade, a partir da recapitulação dos principais estilos e movimentos artísticos
do início dos anos 1960 até os dias atuais, ressaltando a relação entre linguagens na produção
15

artística das últimas décadas. O intuito é apreender o contexto no qual se desenvolveu a arte
atual e o modo pelo qual se organizam as linguagens das artes do período – perspectiva
teórica que faz corpo à análise proposta. Enfim, o capítulo se propõe, essencialmente, a
compreender a relação entre o modo de fazer arte na contemporaneidade e a linguagem
proposta por Leonilson.
A segunda parte do trabalho se volta especialmente para a obra de Leonilson. A partir
de um recorte na produção do artista (com foco nos interesses da pesquisa) e, promovendo a
análise de obras de diferentes períodos da sua trajetória artística, o estudo delineia os traços
subjetivos/autobiográficos da sua produção e relata a simultaneidade entre obra e vida. A
discussão sobre a condição autobiográfica da obra é subsidiada pelas teorias da filosofia,
psicanálise, das artes, e pelas reflexões a respeito das diversas “presenças” no trabalho de
Leonilson, a saber, as influências de outros artistas, a referência à história familiar, as inter-
relações estéticas, a AIDS, a literatura, a religião, as temáticas desenvolvidas. As análises
realizadas privilegiaram o exame dos arranjos estruturais das obras, das propriedades e
possibilidades expressivas das linguagens, dos materiais e procedimentos em contraponto
com a vida do artista. A partir da tese do sujeito como questão central da obra, isto é, da
coincidência entre vida e obra, infere-se que as experiências pessoais de Leonilson fizeram
emergir os modos de expressão empregados pelo artista e o habilitaram a desenvolver uma
plasticidade ímpar. O propósito do capítulo foi debruçar sobre os aspectos formais, além de
identificar e explorar os elementos estruturadores da linguagem artística que configuram a
singularidade da obra e estabelecem vínculos entre as conformações estético-plásticas desta e
aspectos autobiográficos.
No terceiro capítulo, as reflexões sobre as imbricações entre arte e vida, abordadas no
capítulo anterior, prosseguem, porém as observações são mais pontuais. É objeto de análise,
obras do último estágio da trajetória artística de Leonilson – período que vai de 1991 a 1993 –
momento no qual se evidencia uma mudança substancial da sua produção estética, marcada
pela ameaça irredutível da morte, provocada pela AIDS. O ponto central de reflexão recai
sobre os liames entre vida e obra, que, amparado pelo aporte teórico da filosofia e da
psicanálise, busca compreender como e porque se amarram num mesmo tecido, vivência e
criação. As análises empreendidas foram motivadas pela inquietação frente aos elementos
constitutivos da obra e à codificação artística criada por Leonilson – este que desafiou o
percurso comum da arte e se propôs seguir rumo próprio, determinado por sua história pessoal
e pelos laços que o sujeito-artista estabeleceu com o mundo.
16

Assim, ao longo do estudo, é necessário enfatizar, as análises revelam que, em


Leonilson, a ação criadora é a que viabiliza reciprocamente vida e obra. Estas, indissociáveis
e, notadamente, marcadas pelos interstícios, pela latência de sentidos, pela sutileza entre o
ocorrido e o fantasiado, desvelam uma força que impele o sujeito à intenção de significar, é
processo que possibilita (mutuamente) a experiência do sujeito e da sua arte como tal.
17

CAPÍTULO I

ASPECTOS DA RELAÇÃO PALAVRA-IMAGEM NAS PRODUÇÕES


ARTÍSTICAS CONTEMPORÂNEAS

(...) fazer a linguagem servir para


exprimir o que ela não exprime
habitualmente: é servir-se dela de
maneira nova, excepcional e não
costumeira, é dar-lhe suas possibilidades
de abalo físico, é dividi-la e reparti-la
ativamente no espaço, é tomar as
entonações de maneira absolutamente
concreta e restituir-lhes o poder que
teriam de dilacerar e manifestar
realmente algo, é voltar-se contra a
linguagem e suas fontes vilmente
utilitárias, poder-se-ia dizer alimentares,
contra suas origens de fera acuada, é
enfim considerar a linguagem sob a
forma de Encantamento.

(Antonin Artaud)

1.1 A arte além do limite da arte

Fenômeno característico da arte contemporânea, as imbricações entre os sistemas de


signos verbais e não verbais nas artes são constitutivas de relações muito específicas que a
linguagem estabelece com o mundo e com a cultura, em um contexto no qual as diferentes
linguagens interagem dentro da propensão excessivamente visual que o século XX nos legou.
Fato que assinala, portanto, aberturas, capacidades de desdobramentos de funcionamentos e
processos na produção artística; marca a possibilidade de jogar com a linguagem e criar
muitas e várias possibilidades de significação, impedindo a fixação de sentidos estanques e
arbitrários promovidos por regras e leis que tendem a pragmatizar a linguagem, ou priorizar
sua função comunicativa, como a concebemos, num primeiro momento. As aproximações
entre os domínios da expressão visual e verbal na produção artística das últimas décadas
fundaram, enfim, certo modo discursivo/artístico ao reconhecer, validar, atualizar e explorar
vínculos entre letra e imagem, algo que também não é novo na história da cultura ocidental.
18

De fato, a história da arte oferece-nos exemplos fartos que ilustram a relação entre
escrita e artes visuais, ainda que, conforme Foucault (1988), o princípio que separa elementos
plásticos dos signos linguísticos tenha sido reconhecido como legítimo do século XV ao XX.
Esse princípio estabelece “a separação entre representação plástica (que implica a
semelhança) e referência linguística (que a exclui). Faz-se ver pela semelhança, fala-se
através da diferença. De modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou fundir”
(FOUCAULT, 1988, p. 39).
Essa separação, no entanto, se revela incoerente, se considerarmos o percurso histórico
das artes plásticas. Não se pode esquecer que sempre existiu a inscrição do verbal nas obras
plásticas, como na pintura: na proposição do título, geralmente formado por uma sequência de
palavras, que indica o tema ou conforma a representação imagética; na presença da assinatura,
que referencia o artista, sua trajetória, narrativa e singularidade, o estilo e tipo de trabalho que
será exposto; se há uma data, essa marca o período, os elementos de expressão e o contexto no
qual a obra se insere; na narração que, implícita ou explicitamente (podendo, inclusive, ser
dada pelos elementos citados anteriormente), apresenta o tema e serve como pano de fundo,
sendo uma espécie de subtexto para a obra. O fato é que, ao longo da história,
inevitavelmente, as linguagens verbal e não verbal se coadunam, potencializando suas cargas
subjetivas de representação-presentação, ou construindo os seus mundos possíveis. E o
cruzamento, num mesmo tecido, do sistema de representação imagética e da referência pelos
signos linguísticos, ao que parece, pode dar-se no e além do espaço (material) do quadro.
A aproximação entre arte e escrita no campo das artes, contudo, intensifica-se (e se
solidifica) no século XX, período que evidencia a ruptura de limites entre os modos de
expressão artística. As palavras invadem definitivamente o espaço do quadro, se integram ao
discurso plástico, passam a interferir na composição plástica e/ou funcionar (ou são
intencionalmente empregadas) também como imagem. A escrita passa a travar um diálogo
intenso com a visualidade. A arte pós-história da arte4 incita uma mudança de discurso e
propõe novos e múltiplos enquadramentos para a arte, e o jogo entre texto e imagem
prossegue, mas de outra maneira.
Dissolvido pela modernidade, o conceito de arte (isto é, do que até então era aceito
como) instaurou uma nova força estética, legitimada pela liberdade e regida por ressalvas
acerca das próprias proposições. Mudanças ocorridas nas artes plásticas desse período, a

4
A expressão referencia a afirmação de Danto (2006) sobre o momento contemporâneo da arte, pautado por
práticas “além dos limites da história” (Hegel). Período esse em que as narrativas mestras que definiram a arte
tradicional, chegaram ao fim, uma vez que se mostraram inconsistentes para representar a arte que se
desenvolveu após a arte modernista.
19

exemplo do distanciamento da representação, tendência à desmaterialização da arte, interesse


pelas relações estruturais que ocorrem na obra, integração entre arte e vida, geraram uma
revolução nos procedimentos com a linguagem.
A arte moderna se materializa num contexto de transformação que ocorre, sobretudo,
com a Revolução Industrial, no século XIX. Esse período é marcado pela urbanização das
cidades e pela industrialização e, consequentemente, pelo desenvolvimento da sociedade de
consumo. Tais modificações, deflagradas por condições sociais e históricas, imputam à arte o
papel de “desenhar” a nova sociedade. Sociedade essa que, de modo recíproco e espelhar,
conforma-se às questões deflagradas pela arte. É que a arte, compreendida como um sistema
de signos – cuja realidade é desvelada por meio da própria linguagem –, constitui seu conceito
nas relações que produz com a realidade e em consonância com os momentos que se
transformam historicamente.
Caracteriza a arte moderna o gosto pela novidade, a recusa da arte do passado,
qualificada de acadêmica, e a busca de uma linguagem autônoma para as suas obras. Uma
atitude ligada às noções de ruptura e do novo se manifesta de forma diversa e particular,
engendra experimentações e amplia enormemente as possibilidades artísticas. Nesse sentido,
permite-se declarar que a arte moderna, por vezes, se amálgama com e/ou lança as bases para
o estabelecimento da arte contemporânea – ao menos, daquilo que se captura como
compreensão primeira da arte contemporânea –, que apresenta em seu domínio uma
composição de elementos diversos, forjada por ininterruptos processos de experienciação.
Algumas características basais do modernismo parecem replicar-se em diferentes momentos
das práticas dos últimos anos, como é o caso da diluição de fronteiras entre disciplinas
artísticas; os artistas contemporâneos exploram alguns dos gestos da vanguarda modernista,
reinterpretando-os e desenvolvendo-os. Nota-se que os valores da arte moderna e os da arte
contemporânea se avizinham, trocam suas fórmulas e instituem dispositivos complexos,
maleáveis, instáveis, em constante transformação (CAUQUELIN, 2005). Ao dialogar com a
arte moderna, a arte contemporânea produziu uma tensão: uma continuação simultânea, bem
como uma reação aos pressupostos daquela.
Danto (2006) assegura que “a distinção entre o moderno e o contemporâneo não se fez
clara até meados das décadas de 1970 e 1980” (DANTO, 2006, p. 14). É que a passagem da
arte moderna para a contemporânea, ainda que tenha se pautado (e se evidenciado) em uma
mudança de procedimentos, configurou-se de modo insidioso dadas as possibilidades
semânticas dos termos “moderno” e “contemporâneo” – sobretudo como conceitos temporais.
20

Cabe, entretanto, compreender a arte contemporânea menos como um continuum ao


longo de uma cadeia temporal, uma vez que refuta participar de uma história em progresso e
escapa, portanto, à pretensa cronologia proposta pela história da arte. A arte contemporânea,
inevitavelmente circunscrita no tempo, paradoxalmente, introduz uma simbólica
descontinuidade, que divide as práticas em estar ou não estar mais inserida na narrativa
composta pelo sistema tradicional das artes. “A arte contemporânea manifesta uma
consciência de uma história da arte, mas não a leva adiante” (BELTING apud DANTO, 2006,
p. 6). Além disso, ressalta ainda o autor, da

[...] mesma forma que o “moderno” veio a denotar um estilo e mesmo um período e
não apenas uma arte recente, “contemporâneo” passou a designar algo mais que a
arte do tempo presente. [...] designa menos um período do que o que acontece depois
que não há mais períodos em alguma narrativa mestra da arte, e menos um estilo de
fazer arte do que um estilo de usar estilos (DANTO, 2006, p. 12-13).

Como desdobramento das concepções e práticas modernistas (decorrentes do


alargamento do conceito de arte), imbricamentos, superposições e cruzamentos entre
linguagens eclodem nos anos 1960 como um campo peculiar, como um novo modo do fazer
artístico. O estreitamento entre artes plásticas e escritura passa a se processar conceitual e
formalmente.
No início dos anos 1960, ainda era comum classificar as obras de arte como
pertencentes a duas amplas categorias: a pintura e a escultura. No decorrer de tal década,
porém, abalaram-se as certezas quanto às classificações apriorísticas. Nesse período, muitos
artistas pautaram sua produção em experimentações que buscavam alargar os limites da arte –
inclusive, propondo uma relação com a não-arte, isto é, com aquilo que nega o conceito de
arte, que se determina pela relação com o que não é arte. Por conta desse experimentalismo,
as artes passaram a ocorrer numa extensão muito mais ampla de atividades – o que, inclusive,
instaurou uma sensação de hermetismo entre os artistas e o público.
Uma multiplicidade de atitudes e abordagens marcou as artes dos anos 1960 e 1970 –
notadamente a pluralidade estética, a heterogeneidade das configurações, o compósito das
obras e a abertura dos artistas às possibilidades expressivas das práticas artísticas – e se
estendeu pelas décadas seguintes, desafiando as classificações usuais e colocando em questão
a própria definição de arte.
Por conseguinte, abordar arte contemporânea significa, ainda hoje, transitar por
terrenos instáveis, escorregadios. O percurso acidentado começa pela arte e seu caráter
hermético e fugidio, habitualmente, conformada ao etéreo (da esfera do sagrado), e chega ao
21

contemporâneo, um “já” e um “ainda não” (AGAMBEN, 2009) – termos que suscitam as


mais diversas (in)definições.
Na acepção proposta por Agamben (2009) – menos como cronologia e mais como
relacionamento entre o homem e a realidade, entre o homem e o seu tempo –, a
contemporaneidade insta seus “contemporâneos” a não-coincidência exata com o tempo
presente. Também lhes solicita um deslocamento, um distanciamento e um anacronismo
temporal que, simultânea e paradoxalmente, autorizam e favorecem a percepção e apreensão
desse mesmo tempo. “A contemporaneidade [...] é uma singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Assim, a contemporaneidade é uma condição extemporânea, pois se dá numa relação
de dissociação com o tempo presente – somente aqueles que estão afastados (de modo não
nostálgico) de seu tempo podem captar sua especificidade. Nesse sentido, a arte
contemporânea, apresenta caracteres intempestivos, uma vez que se coloca em descompasso
com o tempo, vaza através dos “tempos” (sobretudo em sua linearidade histórica) –
intempestividade que se dá entre o artista e seu tempo bem como entre a obra e seu tempo.
Agamben (2009) indica ainda que ser contemporâneo ao seu próprio tempo – esse,
obscuro por natureza a quem deles experimenta contemporaneidade – implica a habilidade de
neutralizar as luzes do presente para apreender seu escuro, para entrever sua íntima
obscuridade – “[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62). E complementa:

[...] contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta
e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho
de trevas que provém de seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 64).

O escuro, nesse caso, não significa ausência de luz, mas algo próximo a não-visão.
Perceber o escuro da contemporaneidade compreende não se deixar cegar pelas luzes da
própria época, ao contrário, institui desvelar suas trevas, o seu escuro especial, sua
negatividade enquanto latente potência de luzes. Atitude que encontra eco nos procedimentos
adotados pela arte contemporânea, hábil em ver o e no escuro da produção artística.
A arte contemporânea não está, em princípio, norteada por regras já estabelecidas e
não pode se sujeitar a uma apreciação pela aplicação de categorias (re)conhecidas. O artista
trabalha, essencialmente, liberto de regras processuais – essas, só poderão ser instituídas, caso
possível, ex post facto. É comum, todavia, buscar apreender as manifestações contemporâneas
22

– que surgem na continuidade da arte moderna, se se compreender como moderno o século


XX de maneira geral – a partir de critérios artísticos estabelecidos no passado. Desprovida de
fundamentos para uma compreensão de base (no mínimo), parte da produção artística que se
desenvolveu a partir da segunda metade do século XX, ainda hoje, mantém, essencialmente,
sua opacidade. Segundo Cauquelin (2005), “(...) percebe-se que a arte em sua forma
contemporânea coloca um doloroso problema para todos, para o público, mas também e talvez
mais ainda para os que têm a missão de analisá-la” (CAUQUELIN, 2005, p. 17). A autora
ainda ressalta que o “estado contemporâneo” da obra de arte

significa que esse sistema não é mais o sistema que prevaleceu até recentemente; ele
é o produto de uma alteração de estrutura de tal ordem que não se podem mais julgar
nem as obras nem a produção delas de acordo com o antigo sistema. É justamente
neste ponto que se instala o mal-estar: avaliar a arte segundo critérios em atividade
há somente duas décadas é não compreender mais nada do que está acontecendo
(CAUQUELIN, 2005, p. 15).

Conceitual, objetiva e cronologicamente, a arte contemporânea tem a forma de um


limiar inapreensível, pois resiste a uma fixação. Situada num espaço intervalar, intersticial, a
atividade artística contemporânea coloca em relação questões do passado, do presente e do
futuro. Devido à sua riqueza – extensão, pluralismo, heterogeneidade, dinamismo,
recentidade, simultaneidade e complexidade das produções artísticas –, o fenômeno possui
caráter difuso. Ademais, inclui-se o fato de que os paradigmas sobre o que se compreende
como arte altera significativamente e de que a arte contemporânea não dispõe de um tempo de
constituição.
Esse quadro pode ser comparado ao mal-estar, sobre o qual discorre Foucault (1999),
que acomete aqueles cuja linguagem está arruinada, isto é, daqueles que numa espécie de
crise atópica, afásica, parecem ter perdido o “comum” do lugar e do nome – nesse caso, o
lugar também das coisas. É possível, no entanto, reconhecer alguns traços determinantes,
marcas inerentes a aspectos processuais da arte contemporânea: quebra da hegemonia da
imagem em função da preocupação com questões genericamente conceituais; dissolução da
tradição das relações entre arte e manufatura; possibilidade de colocar em relação/evocar
noções do passado, presente e futuro; constante redefinição do conceito de arte, decorrente da
integração a processos exógenos e da tendência de alargamento do artístico. Tais
características apontam para uma heterogeneidade da arte, constituída por uma mistura de
elementos, que despreza um conteúdo formal determinado. “[...] uma arte produzida dentro de
23

certa estrutura de produção jamais antes vista em toda a história da arte” (DANTO, 2006, p.
12).
O cruzamento de procedimentos artísticos e materiais distintos parece ser uma espécie
de condição das artes na atualidade. A produção artística contemporânea, uma rede intricada
de conceitos que envolve a combinação de diferentes linguagens, tem testemunhado a
dissolução de limites precisos entre estas. As fronteiras entre as manifestações artísticas estão
cada vez mais tênues e o diálogo entre as linguagens, intenso e constante. Isto pode ser
apontado como uma das possíveis explicações para o “apagamento” de limites entre as
linguagens empregadas, perceptível na produção de diversos artistas. A obra Tropos (Fig. 1),
da artista plástica Ann Hamilton (1956-), que empreende a combinação de materiais,
procedimentos e linguagens díspares, exemplifica tal fato.

FIGURA 1 - Ann
Hamilton, Tropos,
1993-1994.
Fonte: Ann Hamilton
Studio

Em Tropos (do grego, transformar), Hamilton queima, linha por linha, os “escritos” de
um livro e, concomitantemente, vivifica o papel com a inscrição de novas linhas de tom
amarronzado, essas resultantes do gesto mesmo de queimar. O texto impresso – transformado
em fumaça – faz exalar um odor acre, que intenta ser absorvido pelo “cobertor” de crina de
cavalo que reveste o chão do espaço que abriga a obra. O silêncio quase reverente do espaço é
violado pela presença de alto-falantes, que irrompe o murmúrio de um homem afásico.
Verifica-se que a arte, nesse momento da pós-história da arte – a exemplo da obra de
Hamilton –, não impõe limites à “aparência” e ao conteúdo da obra, o que a torna um campo
24

disponível para os mais diversos arranjos, ordenações, trânsitos e movimentos. Esse parece
ser o traço que define, por excelência, a arte contemporânea. Marca das artes visuais desde o
fim do modernismo, a falta de unidade estilística (ou pelo menos do tipo de unidade utilizada
como critério de classificação e reconhecimento até então) é o que caracteriza a arte
contemporânea. Assim,

[...] o contemporâneo é, de determinada perspectiva, um período de desordem


informativa, uma condição de perfeita entropia estética. Mas é também um período
de impecável liberdade estética. Hoje não há mais qualquer limite histórico. Tudo é
permitido (DANTO, 2006, p. 15).

A multiplicidade contemporânea – elemento característico das artes deste tempo –


provoca um aspecto particular: a inserção (e a recorrência?) da palavra como elemento
plástico de produções artísticas. A palavra não mais opera simplesmente ou tão somente como
nominativa ou legendária de uma obra e sim como objeto da composição plástica – esta se
inscreve na e como parte da obra, é um dos eixos sobre o qual a obra se constrói.

1.2 Escrever, inscrever, desenhar, gravar: experimentações icônico-


expressivas nas artes

A história da arte confirma que as possibilidades icônico-expressivas da palavra têm


sido exploradas tanto por poetas quanto por pintores atraídos pelos avizinhamentos entre as
manifestações expressivas – embora as práticas se tenham modificado através dos tempos.
Entre esses artistas, especificamente no campo da literatura, destacam-se Sthéphane Mallarmé
(1824-1898), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) e
experimentalismos de vanguarda que perpassam os futuristas russos e chegam aos poetas
concretistas.
Com Un coup de dés n’abolira jamais le hasard (Fig. 2), Mallarmé resgatou a
visualidade da letra, restituindo antigos vínculos entre palavra e imagem. Reconheceu o
espaço da página como constitutivo do poema, notadamente, ao se aventurar num jogo com a
sintaxe.
25

FIGURA 2 -
Sthéphane
Mallarmé,
Un coup de
dés
n’abolira
jamais le
hasard,
1914.Fonte:
Harpreet
Khara

Quebra da linearidade, transgressão sintática, multiplicidade da significação da


palavra, experimentações com a tipografia, com a disposição das palavras na página,
exploração do vazio, dos espaçamentos: das relações verbo-espaciais entre as palavras
propostas pelo poeta em Un Coup de dés emergem sentidos. Inquieto com o “ato só de
escrever”, Mallarmé “desconstrói a escritura” e agencia uma crítica à linguagem ao utilizar as
palavras de maneira a desconstruir a frase. Sobre a produção de Mallarmé, discorre Blanchot
(1987):

Se ele procura exprimir a linguagem tal como lhe foi descoberto pelo “o ato só de
escrever”, Mallarmé reconhece “um duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui,
essencial acolá”.
........................................................................................................................................
A fala em estado bruto “relaciona-se com a realidade das coisas”. “Narrar, ensinar,
até descrever” dá-nos as coisas na própria presença delas, “representa-as”. A fala
essencial distancia-as, fá-las desparecer; ela é sempre sugestiva, evocativa
(BLANCHOT, 1987, p. 32).

Assim, a escrita poética de Mallarmé “abriu um espaço” no corpo da linguagem,


provocando um encontro com seu vazio e transformando o ato de escrever em uma
experiência limite. Isso porque,

[...] Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um potente universo de


palavras cujas relações, a composição, os poderes, afirmam-se pelo som, pela figura,
pela mobilidade rítmica, num espaço unificado e soberanamente autônomo. Assim,
26

o poeta faz da obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é retorno à sua
essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal como o pintor não reproduz com as
cores o que é mas busca o ponto onde as suas cores dão o ser (BLANCHOT, 1987,
p. 35).

Nesse sentido, a aproximação entre o trabalho do artista plástico e do poeta se


evidencia no exercício com a textura gráfica das palavras – em que desenhar, gravar,
inscrever e escrever são atividades vizinhas.
Outra maneira de tensionar a arte da escrita é a perspectiva caligramática de
Apollinaire. O poeta promoveu a exploração da visualidade do discurso poético ao
acondicionar os enunciados no espaço da figura e fazer “dizer ao texto aquilo que o desenho
representa” (FOUCAULT, 1988, p. 22). Ao articular os signos no espaço gráfico – a saber, os
elementos tipográficos e as orientações de leitura que o configuram –, o artista produz
figurativamente a imagem do objeto evocado. No caligrama, a harmônica interação entre o
verbal e o visual almeja desfazer ludicamente as (antigas) oposições entre mostrar e nomear,
figurar e dizer, imitar e significar, ver e ler. Arranjo de palavras que compõem imagens, letras
que se organizam para produzir um efeito plástico, arquiteturas tipográficas que evocam o
objeto que se descreve: no caligrama o poema é forma.
Já o futurista italiano Marinetti propôs a destruição da sintaxe tradicional em defesa da
liberdade no uso das palavras e a integração entre as diferentes linguagens – o que, segundo
defendem alguns estudiosos, efetivamente não aconteceu, uma vez que se observou um
distanciamento entre as reflexões e produções dos futuristas. O futurismo russo, embora
compartilhasse com o futurismo italiano de Marinetti o desejo de retirada da linguagem de
seus automatismos, se distinguiu deste notadamente por sua heterogeneidade e autonomia.
Preservadas as circunstâncias particulares da sociedade e cultura russa da época, que se
encontrava num estágio de desenvolvimento diferente dos países ocidentais vizinhos, os
russos engendraram uma concepção de futuro diferente da de Marinetti e seus companheiros.
A valorização da palavra como elemento primordial frente ao conteúdo, o compromisso da
arte em termos de engajamento social e o vínculo estreito entre artistas e escritores foram
algumas das propostas dos futuristas russos, cuja

[...] poesia caracterizava-se por neologismos, ilogismos, o palavreado infantil e os


erros intencionais, inclusive tipográficos. Impressos em papel de embrulho e de
parede, encadernados com estopa e usando material não convencional como o papel
alumínio, esses livros enigmáticos tinham a qualidade de objetos esculturais nos
quais palavras e imagens, caligrafia e ilustração eram intercambiáveis
(HUMPHREYS, 2001, p. 60).
27

Resguardadas as divergências, os pressupostos do futurismo italiano e russo foram


muito importantes para promover entendimentos e mudanças práticas quanto às capacidades e
possibilidades expressivas do texto.
A poesia concreta igualmente buscou explorar o caráter plástico do texto, investindo
em conteúdos além daqueles arbitrários próprios da linguagem verbal, em que interessa
especialmente, as relações, os processos e as probabilidades que compreendem a obra. Com o
propósito de revogar a soberania do verso (em sua tradicionalidade), os poetas concretistas
promoveram a exploração do significante em suas características plásticas e sonoras apoiada
por experimentações quanto à sua disposição no espaço da página, além de agenciarem o uso
(“substantivo”) do espaço em branco como elemento de composição (e produção de sentidos).
Processos que asseguraram a criação de um texto “verbivocovisual” – conforme termo criado
por James Joyce para definir essa “nova poesia” – em que as palavras dúcteis, moldáveis,
amalgamáveis se colocam à disposição do poema (CAMPOS, A.; PIGNATARI; CAMPOS,
H., 2006).
Mallarmé, Apollinaire, os futuristas e os concretistas, ao promoverem a renovação da
linguagem poética e artística, deixaram uma importante contribuição para a criação de uma
nova visualidade nas artes, operada pela restituição dos valores e qualidades visuais da letra e
pelo resgate de vínculos entre imagem e texto.
O (dúplice) processo de apropriação, de elementos textuais pela produção plástica e de
elementos plásticos pela produção textual, se deu de modos e em graus distintos. As
proposições sobre as relações retóricas entre imagem e texto realizadas sistematicamente por
Foucault (1988) e por Barthes (1990), ajudam a explicitar tais relações de apropriação, o que
contribui significativamente para compreender e empreender análises relativas à
expressividade nos vínculos entre os textos verbal e visual. Repetição, fixação, controle,
complementaridade e contradição podem ser citados como as categorias gerais dessa relação.
De acordo com Foucault (1988), dois princípios predominaram e regeram a pintura
ocidental até o século XX. O primeiro diz respeito a uma ordem hierárquica entre o signo
verbal e a representação visual. Separados que estavam a representação plástica (que
pressupõe a semelhança) e a referência linguística (que a recusa), esses dois sistemas não
podem se cruzar e se arranjam segundo uma ordem de subordinação – ou o texto é regrado
pela imagem ou a imagem é regrada pelo texto. O segundo princípio trata da equivalência
entre o fato da semelhança e a afirmação de um laço representativo. O enunciado se insere no
jogo da pintura como reforço, evidência, repetição da representação – não se pode dissociar
semelhança e afirmação. Tais princípios, no entanto, foram abolidos quando se colocou em
28

pauta e em prática, a justaposição das figuras e a sintaxe dos signos, quando se agenciou o
cruzamento, numa mesma tessitura, do sistema da representação por semelhança e da
referência pelos signos, quando se promoveu a dissolução entre semelhança e afirmação. No
momento no qual, enfim, se compreende que um objeto pode ser substituído por seu nome,
uma imagem pode substituir uma palavra e que numa pintura, palavras e imagens são da
mesma substância.
Barthes (1990) afirma que há uma dupla função da mensagem linguística em relação à
mensagem icônica: “fixação e relais” (BARTHES, 1990, p. 32). Apoiado no caráter
polissêmico da imagem, o autor pressupõe, como compósito dessa, a presença de uma “cadeia
flutuante” de significados, subjacente a seus significantes. Com o propósito de suprimir a
pluralidade dos signos “abertos” e conduzir o leitor por entre os significados da imagem, a
mensagem linguística opera sobre a imagem, de modo a fixar a “cadeia flutuante” de
significados. Ao nível da mensagem literal, a palavra ajuda a identificar os elementos que
compõem a imagem e promove a tentativa de fixação de todos os sentidos possíveis
(denotados) de um determinado objeto. Ao nível da mensagem “simbólica”, a mensagem
linguística orienta a interpretação, esforçando-se para inibir a proliferação dos sentidos
conotados.

Em todos esses casos de fixação, a linguagem tem, evidentemente, uma função


elucidativa, mas esta elucidação é seletiva; trata-se de uma metalinguagem aplicada
não à totalidade da mensagem icônica, mas unicamente a alguns de seus signos; o
texto é realmente a possibilidade do criador (e, logo, a sociedade) de exercer um
controle sobre a imagem: a fixação é um controle, detém uma responsabilidade
sobre o uso da mensagem, frente ao poder de projeção das ilustrações; o texto tem
um valor repressivo em relação à liberdade dos significados da imagem
(BARTHES, 1990, p. 33).

Na função de relais, palavra e imagem têm uma relação de complementaridade. A


palavra-relais tem como papel propor sentidos que a imagem não contém.“[...] as palavras
são, então, fragmentos de um sintagma mais geral, assim como as imagens, e a unidade da
mensagem é feita em um nível superior: o da história, o da anedota, o da diegese [...]”
(BARTHES, 1990, p. 34).
As relações imagem-texto no plano da expressão artística, em suas variadas formas, se
fazem reconhecer em obras de diversos artistas a exemplos de René Magritte (1898-1967) e
Marcel Duchamp (1887-1968), cujas produções – fecundas, importa ressaltar – conformam os
pressupostos de Foucault (1988) e Barthes (1990).
29

Em A traição das imagens (1929) (Fig. 3), Magritte justapõe no espaço emoldurado da
tela (a imagem de) um cachimbo e o texto que o acompanha e provoca uma tensão. A imagem
assegura: isto é um cachimbo; a frase afirma: isto não é um cachimbo. “[...] obra acabada,
exposta, e trazendo, para um eventual espectador, o enunciado que a comenta ou explica”
(FOUCAULT, 1988, p. 12). Magritte propõe um jogo de linguagem que desestabiliza, desfaz
um hábito, “liquefaz”, desconcerta e potencializa um impasse. Parafraseando Foucault (1988),
é inevitável relacionar o texto com a imagem – propõe-no o pronome demonstrativo isto, a
expressão de existência, indicação de igualdade e equivalência, a noção de propriedade do
verbo ser, o sentido da palavra cachimbo, a semelhança da imagem com o objeto.
Nitidamente, no entanto, Magritte não tem intenção de ocultar a diferença entre aquilo que
pode ser visto e aquilo que pode ser lido. Embora juntos numa única superfície, imagem e
texto mantêm suas funções semânticas próprias.

FIGURA 3 -
René Magritte,
A traição das
imagens,1929.
Fonte: Cercle Nation
et République

Da disposição entre imagem e texto, em A Traição das Imagens, depreende-se


incoerência, contradição, ambiguidade, transbordamento, complementaridade, desconstrução
do funcionalismo e de fronteiras. Obviedade: o desenho é apenas um desenho; o desenho de
um cachimbo não é, efetivamente, um cachimbo. Incoerência: um cachimbo não é um
cachimbo; não há relação entre o que pode ser visto e o que pode ser lido. Contradição: o
desenho tem a aparência e identifica um cachimbo. Ambiguidade: as imagens traem ou foram
traídas? A quem traem? Ou, por quem são traídas? Complementaridade: na tela, palavras
pintadas fazem parte do quadro; imagem e texto conferem unidade e sentido à mensagem.
Desfuncionalismo: o cachimbo não serve à sua função primeira, que é fumar; a pintura não
30

convence de que a imagem seja um cachimbo, tampouco aponta para um cachimbo qualquer;
o texto nega o que a imagem obviamente apresenta; e, paradoxalmente, diz uma banalidade –
que um desenho é só um desenho e que o desenho de um cachimbo não pode ser ele mesmo
um cachimbo; as palavras estão sendo usadas em seu sentido literal ou figurado? Indefinição:
um espaço misterioso há entre a palavra e as imagens. A obra de Magritte propõe as mais
variadas leituras, todas escorregadias e inconclusivas. “Magritte [...] mina em segredo um
espaço que parece manter na disposição tradicional” (FOUCAULT, 1988, p. 48).
Os jogos de linguagem foram igualmente anunciados (e antecipados) por Marcel
Duchamp, que “pensou” a arte também com/por palavras. Essas não apenas intitulavam os
readymades – o mictório é fonte, um cabide de parede preso ao chão é armadilha –, mas
também, numa espécie de “aporte”, serviam ao exercício planejado de conceder-lhes um
coeficiente de arte. O deslocamento do objeto – do plano funcional para o simbólico – é
patrocinado pelo deslocamento da linguagem – de descrição denotativa para amplificação dos
sentidos conotados – e esses, solidários, resignificam aquele, conferindo-lhe o estatuto de
objeto artístico. O par objeto-linguagem impele artimanhas à significação e opera um jogo de
construção e desconstrução de significados, impondo-lhes sentidos outros. Posto que “expor
um objeto é intitulá-lo” (CAUQUELIN, 2005, p. 101), a operação de designação/classificação
dada pelo continente é amparada/elabora-se na e pela operação de (re)arranjar expressão e
conteúdo.
Duchamp nomeia os objetos – uma aparente operação de etiquetagem,
fixação/controle – o que, inequivocamente, é dispensável, pois as formas são por demais
conhecidas, e eis que no momento em que deveria fazê-lo, o faz negando a denotação. Nesse
aspecto, o exercício artístico de Duchamp parece respaldar as teorias de Barthes (1990), na
medida em que busca conduzir o leitor a considerar um dado significado, eleito
antecipadamente (e desconsiderar outros), e ao propor novos sentidos aos objetos-imagens.
No caso dos readymades, tal operação significa inscrever o objeto em sua nova situação, visto
que o nome, na concepção linguística, é que inscreve a coisa, tornando-a um signo, em uma
determinada cultura. Sendo a língua, ela própria, um readymade, pronta para o uso, foi
manipulada, subvertida, e/ou desarranjada pelo artista. Jogo que se intensifica quando
Duchamp “cola” sobre um objeto do tipo isto não é arte, a etiqueta isto é arte.
As notas e textos que compunham as caixas e valises - La Boîte de 1914 (caixa de
1914), La Boîte Verte (caixa verde), de 1934, e Boîte-en-Valise (caixas em valise), de 1941 -
constituem outro exemplo de exercício de linguagem, colocado em prática por Duchamp.
Essas consistiam em uma espécie de museu portátil e traziam nas caixas, textos, desenhos,
31

diagramas, reproduções de obras em miniaturas, fotografias de notas, enfim, “[...] obras da


mesma natureza que os objetos prontos. São também formulações ‘já prontas’[...]. Ready-
made em palavras” (CAUQUELIN, 2005, p. 101).
Além disso, Duchamp refletiu sobre sua obra em textos que logo não podiam mais ser
diferenciados da obra. Um exemplo contundente desse exercício foram os textos que
serviriam mais tarde como comentário ao Grande Vidro (1915-1923) – cujo título original é
La mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva desnuda por seus celibatários,
mesmo). Obra em que palavra e imagem preservam a mesma substância.
A produção de Duchamp ecoa seu apreço pelo registro, pela apropriação, pelo
deslocamento, pela subversão e recontextualização. Revela, por isso, uma prática que une,
concomitantemente, escritura e atividade plástica, e expõe/propõe ou produz sentidos
(aberturas) pela justaposição dos textos visual e escritural.
De forma genérica – e não somente pelo valor que concedeu à linguagem – o
posicionamento e atitude adotados por Duchamp em relação à arte foram bastante
significativos para o desenvolvimento da arte contemporânea. Renúncia da noção de
unicidade do objeto de arte, entendimento da arte como produtora de “signos”, indistinção de
papeis dos agentes do sistema das artes, integração da arte aos sistemas social, político e
econômico e, em especial, o reconhecimento de que o significado de uma obra de arte não
estava necessariamente contido nela, mas poderia emergir do contexto no qual estava inserida,
entre outras, são algumas das proposições do artista que, segundo Cauquelin (2005),
caracterizam também os processos artísticos contemporâneos. A afirmação de Archer (2001)
corrobora tal questão:

Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia
a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos.
Seria alguma coisa a ser achada na própria obra de arte ou nas atividades do artista
ao redor do objeto? Tais perguntas reverberaram por toda a arte dos anos 60 e além
deles (ARCHER, 2001, p. 3).

Segundo Cauquelin (2005), Duchamp “parece expressar o modelo de comportamento


singular que corresponde às expectativas contemporâneas” (CAUQUELIN, 2005, p. 89).
32

1.3 As práticas artísticas contemporâneas

As ideias e experimentações realizadas por Duchamp abriram espaço para os vários


procedimentos da arte contemporânea, a começar pela arte do assemblage, que teve início em
meados da década de 1950:

O princípio que orienta a feitura de assemblages é a “estética da acumulação”: todo


e qualquer tipo de material pode ser incorporado à obra de arte. O trabalho artístico
visa romper definitivamente as fronteiras entre arte e vida cotidiana; ruptura já
ensaiada pelo dadaísmo, sobretudo pelo ready-made de Marcel Duchamp (1887-
1968) e pelas obras Merz (1919), de Kurt Schwitters (1887-1968). (ITAÚ
CULTURAL, 2012)5.

O assemblage, exemplificada nas


pequenas caixas íntimas de Joseph Cornell
(1903-1972) (Fig. 4), um dos precursores
dessa arte, de acordo com Dempsey (2003),
ampliou o leque de elementos utilizados
pela arte e abriu caminho para o uso de uma
vasta gama de materiais e técnicas até então
não associados ao fazer artístico. A
produção dos anos de 1950 conduziu a arte
a duas direções: ao pop e ao minimalismo.
Embora o nome pop tenha sido
utilizado, primeiramente, para referenciar o
trabalho do grupo de artistas britânicos do
Independent Group6 – entre os quais, se
destacam Richard Hamilton (1924-2011),
Eduardo Luigi Paolozzi (1924-2005), Nigel Henderson (1917-1985) e Peter Blake (1932-)
(ARCHER, 2001) –, a Pop Art foi reconhecida e legitimada como movimento nos Estados
Unidos no início da década de 1960. Identificada com os signos do capitalismo, o

5
Informações disponíveis na Enciclopédia Itaú Cultural, com última atualização em fevereiro de 2012, em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3
25. Acesso em: 12 maio, 2012.
6
Grupo formado por jovens artistas que, incomodados com o hermetismo da arte, apresentaram as bases de um
novo modo de manifestação artística que buscava aproximar a arte do grande público, através da valorização e
produção de uma cultura pop. Os artistas do Indenpent Group, empenhados na expressão de um realismo social,
incorporaram à arte signos estéticos massificados como imagens publicitárias, fotos de artistas de cinema e
outros ídolos, personagens de histórias em quadrinhos, sinais de trânsito, entre outros.
33

consumismo e a comunicação de massa, sua característica mais evidente foi a inspiração e o


emprego de temas extraídos do cotidiano urbano americano. O movimento, um fenômeno
norte-americano, tanto no que se refere aos artistas envolvidos, quanto pela temática,
concentrou-se em observar os Estados Unidos – na medida em que tratava de uma espécie de
realidade social norte-americana (ARCHER, 2001). Andy Warhol (1928-1987), Claes
Oldenburg (1929-), Roy Lichtenstein (1923-1997), James Rosenquist (1933) e Tom
Wesselman (1931-2004) estão entre os principais nomes da arte pop norte-americana.
Contrária ao hermetismo e rigidez da arte moderna – embora não tenha se oposto
totalmente e até encerre um diálogo com essa –, a pop art negou a separação entre arte e vida,
e se apropriou da ampla gama de possibilidades agenciada pela visualidade das imagens do
mundo moderno/contemporâneo. Verdades manifestas pela atenção concedida aos objetos
comuns e à vida cotidiana e por meio da incorporação às composições artísticas de histórias
em quadrinhos, da publicidade, de imagens televisivas, jornalísticas e do cinema.
Usuária consciente da arte de seus antecedentes históricos, observa-se, no repertório
plástico da pop art, referências à “antiarte” do dadaísmo e surrealismo (percepção e
valorização da vida cotidiana), ao realismo (concentração nos lugares-comuns e banalidades
da existência (ARCHER, 2001))
e ao expressionismo abstrato
(alusão à expressividade e
tratamento irônico das emoções).
A pop art trabalhou a favor de
uma arte que era visual e verbal,
figurativa e abstrata, criada e
apropriada, artesanal e produzida
em massa, irônica e verdadeira.
O cruzamento de fronteiras
realizado pela pop art desvela o
interesse e desejo de ligar a arte
com a gama mais completa de
possibilidades para expressão
visual, como mostra a Fig. 5.
A pop art dividiu com o
minimalismo as atenções do
34

mundo artístico dos anos 1960. O minimalismo dá continuidade e evidencia o processo de


“desmaterialização” da arte. “Desmaterializar”, no seu sentido metafórico, entendido como o
empreendimento de libertar a arte de seus vínculos com o sistema da arte, enquanto operação
política e cultural, decorrentes da exploração das obras e do sistema de vendas (personificado
por museus e galerias), bem como do princípio de separação dos gêneros – e não como prática
artística que dispensaria o uso de materiais. Os artistas renunciam ao objeto de arte único,
classificado por gênero autônomo, e se interessam por sua minimização, em fazer desaparecer
as marcas da “grande arte”, da arte monumental e dos objetos enquanto arte em si
(CAUQUELIN, 2005).
Arte dotada de um “mínimo de conteúdo de arte” (WOLLHEIM apud DIDI-
HUBERMAN, 2010, p.49). Com o minimalismo, “o artista plástico retorna a seu trabalho
com as formas” (CAUQUELIN, 2005, p. 139). A ênfase da produção artística recai sobre as
formas elementares, de corte geométrico. Puros e simples volumes. A obra não oculta
conteúdos intrínsecos ou sentidos outros; sua substância está na realidade física – os trabalhos
são simplesmente objetos materiais e não veículos portadores de jogos de significação. A
proposta se fundamenta na eliminação do exercício composicional ou relacional, cujo
resultado é a geração de objetos excessivamente simples, geralmente simétricos, “reduzidos à
simples formalidade de suas formas, à simples visibilidade de sua configuração visível,
oferecida sem mistério, entre linha e plano, superfície e volume” (DIDI-HUBERMAN, 2010,
p. 54). Diante de uma obra, não há outra coisa a ver senão a própria obra – volume, superfície.
Sobre a minimal art, afirma Frank Stella (1936-), um dos principais representantes do
movimento, “tudo o que é dado a ver é o que você vê (what you see is what you see)”
(STELLA apud DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 55).
A obviedade manifesta das obras, formas específicas, imediatamente perceptíveis e
reduzidas à visibilidade da configuração visível, que se apresentam e se representam apenas
por sua volumetria, revela também o propósito de apagar a temporalidade desses objetos.
Específicos, são precisos, estáveis e indiferentes às marcas do tempo. Estabilidade que parece
ser reivindicada, ainda, pela repetição ou seriação dos objetos (e em alguns casos, nas
notas/títulos que os acompanham). Muitos dos artistas qualificados como minimalistas,
propuseram-se a lidar com o processo repetitivo e serial – o que é perceptível nas obras de
Donald Judd (1928-1994), Robert Morris (1931-), Carl Andre (1935-), Dan Flavin (1933-
1996), nomes de expressão do minimalismo. Algumas produções consistiam da repetição
insistente de volumes idênticos – como, por exemplo, a fileira de quatro grandes cubos em
35

aço inoxidável, dispostos em linha reta; obra Sem título, de 1985, de Judd, ou o arranjo de
tijolos idênticos, intitulado Equivalente VII, assinado por Andre, de 1978, entre tantas outras.
Percebe-se na atitude minimalista um elogio a uma estética da tautologia – o que se vê
é o que se vê e o que se verá é o que se viu, ou seja, sempre a mesma coisa –, que pressupõe
uma vontade de privilegiar e deter-se ao que é visto, de permanecer alheio a (possíveis)
perturbações dadas pelo o que se vê.
Didi-Huberman (2010) aborda esse tema ao tratar da experiência de quem se acha
frente a um túmulo, em que a questão do volume e do vazio se coloca inelutavelmente ao
olhar. O filósofo discorre sobre uma dupla experiência: a primeira, centrada na “evidência de
um volume”, que significa “permanecer aquém da cisão aberta pelo que nos olha no que
vemos” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38), impõe ao sujeito ater-se ao “volume visível” e
acreditar o resto como inexistente; e a segunda, que consiste em querer superar tanto o que se
vê quanto o que nos olha, ou seja, consiste num “exercício da crença” de que aí não há
apenas um volume nem um puro processo de esvaziamento, mas algo da esfera do imaginário,
que dá sentido a tudo isso. Atitudes que implicam, ambas, uma dupla recusa, isto é, uma
espécie de denegação do cheio e do vazio.
É possível reconhecer certa coincidência entre o pensamento de Didi-Huberman
(2010) e Blanchot (1987) quanto à ênfase na dimensão do vazio que emerge do trabalho
artístico. Os teóricos atestam a potência da linguagem na sua própria ausência – linguagem
cuja força reside em seu limite, no qual o vazio é o lugar que marca sua aptidão evocativa e
sugestiva, sua capacidade de se entregar à ficção pela via do processo de desaparecimento, do
silêncio.
Segundo Cauquelin (2005), no minimalismo, a letra, a importância da linguagem se
apaga e se mantém discretamente por trás do processo. Numa passagem, no entanto, a autora
cita anotações que Sol LeWit fez para acompanhar seus trabalhos – “Dez mil retas secantes de
20 cm de comprimento. Dez mil retas não secantes de 20 cm de comprimento”
(CAUQUELIN, 2005, p. 140). Embora seja correto afirmar que o uso da variação e repetição
– da forma e da palavra – tenha como propósito reforçar a presença, a simplicidade visual e a
estabilidade, bem como eliminar “jogos de significações” (DIDI-HUBERMAN, 2010) e
assegurar a certeza tanto visual quanto conceitual dos objetos, tal operação se mostra
antitética aos princípios do minimalismo. A intensificação da redundância dada pela inscrição
“linguageira” junto/sobreposta ao volume, afasta a obra da problemática minimalista. A ideia
(à primeira vista, basilar) de extinguir a relevância da linguagem é desfeita e, paradoxalmente,
parece ser capital para as propostas da minimal art. As fronteiras entre a arte e o que se
36

escrevia sobre o tema, paulatinamente, se dissipam e os artistas começam a usar a linguagem


como material. Exercício que foi alargado pela arte conceitual de Joseph Kosuth (1945-), tal
como ressalta Didi-Huberman (2010):

[...] Joseph Kosuth acreditou dever redobrar na linguagem o circuito autorreferencial


do volume ‘minimal’: cinco caixas cúbicas, vazias, transparentes, feitas de vidro,
redobram sua mesmidade de objetos com uma ‘descrição’ ou ‘definição’ inscrita
diretamente nos objetos: Box – Cube – Empty – Clear – Glass. Assim, a obra não se
contenta mais em mostrar que o que você vê é apenas o que você vê, [...] ela o diz
em acréscimo, numa espécie de redobramento tautológico da linguagem sobre o
objeto reconhecido (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 57).

Kosuth dialogou com o minimalismo, mas, de certa forma, o sub/inverteu. À maneira


minimalista, explorou o processo repetitivo e serial e (re)afirmou/reforçou a concepção
tautológica da arte. O artista investiu na produção do objeto artístico que se expõe como série
repetitiva autorreferente, contudo, como meio para avançar em sua proposta de desenvolver
os imbricamentos entre arte, linguagem e conceito e as possibilidades de deslocar o conceito
para o centro da discussão e apreciação artística. Uma obra que se notabiliza por representar
as propostas do artista foi Uma e três cadeiras (1965-66) (Fig. 6).

FIGURA 6 - Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, 1965.


Fonte: The Museum of Modern Art
37

Um objeto: uma cadeira de madeira. Uma imagem: a fotografia de uma cadeira –


aparentemente, a reprodução do item real, exposto ao espectador. Um texto: a fotocópia da
definição dicionarizada da palavra cadeira – supostamente, nominação e/ou categorização do
objeto e sua imagem. Reflexão sobre o jogo de reciprocidade entre realidade, ideia e
representação. Habitualmente, a fotografia e o texto seriam vistos como
representação/descrição do objeto cadeira. No entanto, a obra leva à reflexão sobre a
autonomia de cada uma das linguagens, que instituíam em si mesmas a obra – a fotografia e o
texto existem, cada qual, como cadeira, não necessariamente dependente daquela, tangível.
Na obra de Kosuth a linguagem é um modo de investigação da arte e essa investigação
é a própria arte. A linguagem ocupa um papel determinante na produção do artista, que a
torna o material privilegiado de seu trabalho nas obras em que ele lidou com definições de
dicionário e citações. Em seu texto Investigações, publicado em 1969, Kosuth afirma,
segundo informações da Enciclopédia Itaú Cultural, de 2012, que “a análise linguística
marcaria o fim da filosofia tradicional, e a obra de arte conceitual, dispensando a feitura dos
objetos, seria uma proposição analítica, próxima de uma tautologia” (ITAÚ CULTURAL,
2012). A atitude do artista autentica a concepção conceitualista de que os conceitos são, por
excelência, a matéria da arte, o que a vincularia à linguagem.
A chamada “arte das ideias”, dentro do campo “complexo e expandido” aberto pelas
artes dos anos 1960, e, sobretudo, pelo minimalismo, se mostrou bastante exequível e se
desenvolveu entre meados de 1960 e de 1970. O rompimento dos vínculos entre estética e
atividade artística e o questionamento do que era a arte – quais as características e condições
necessárias para que algo fosse considerado arte –, preconizados por Duchamp, tornara-se
definitivo. E, nesse sentido, “[...] uma arte composta de idéias (sic)” (ARCHER, 2001, p. 56),
é proposta fecunda.

‘Na arte conceitual’, escreveu LeWitt, ‘a idéia (sic) ou conceito é o aspecto mais
importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isto
significa que todo o planejamento e as decisões são feitas de antemão, e a execução
é uma questão de procedimento rotineiro. A idéia (sic) se torna uma máquina que
faz a arte (ARCHER, 2001, p. 70).

Ao repudiar o caráter primordialmente visual, a arte passa a ser reconhecida como


ideia e pensamento – a obra enquanto objeto material perde a primazia para a concepção
desta. O objeto estético que na história da arte se identificava com alguma corporificação
material, na arte conceitual desmaterializa-se. Sem um corpo físico, o objeto estético da arte
conceitual gera um vácuo, que passa a ser ocupado por outras instâncias de criação, abrindo
38

espaço para diferentes configurações do fazer artístico. Destarte, o conceitualismo convocou


as funções de crítica e análise para a esfera do fazer artístico.
Retomando as propostas duchampianas, a arte conceitual alargou a noção de que arte é
aquilo que se designa dessa maneira, isto é, “a atividade de designação faz a obra de arte
existir enquanto tal” (CAUQUELIN, 2005, p. 134). Uma vez que a atividade de designação
concede à obra coeficiente de arte, o conceitualismo se desenvolve como um trabalho sobre a
própria designação, isto é, indagações sobre a nominação – ou seja, sobre a linguagem – e a
exposição – sobre o continente, o contexto onde o discurso é apresentado.
Sustentando a ideia de que o conceito é matéria da arte, e, uma vez que os conceitos
são diretamente vinculados à linguagem, pode-se declarar que a arte conceitual é um tipo no
qual o principal material é a linguagem. Observa-se uma espécie de ampliação do trabalho
com a linguagem, porém num aspecto diferenciado – não mais apenas um jogo articulando
um objeto e seu título. “(...) as proposições-títulos são em si mesmas seu próprio objeto”
(CAUQUELIN, 2005, p. 135). Os artistas decidem usar a própria linguagem como material. O
discurso é constitutivo da obra.
Com a arte conceitual, as experimentações e possibilidades de cruzamentos entre as
linguagens se configuraram como um campo mais específico e se tornaram mesmo uma nova
modalidade do fazer artístico, como declara Archer (2001): “Onde antes havia pinturas e
esculturas, agora havia itens de documentação, mapas, fotografias, lista de instruções e
informações nas obras” (ARCHER, 2001, p. 78).
As obras de arte conceituais reverberam o sentido de que uma proposição, um
discurso, elementos textuais são compreendidos como uma imagem de mundo e constituem
em si mesmos a obra de arte. Lawrence Weiner (1942-) e Joseph Kosuth (1945-), por
exemplo, expõem tal questão em suas produções. Os artistas demonstraram cada um a seu
modo, que

[...] mesmo as palavras têm uma particularidade essencial que é perfeitamente


apropriada à investigação do artista visual. Weiner [...] considerou que o tema de
seus trabalhos eram os materiais, embora o que houvesse para ser visto na galeria
não fosse mais que um texto que especificava substâncias e/ou objetos e o que
poderia ser feito com eles: Um marcador normal de corante atirado no mar (1968),
ou Uma remoção de 36 x 36 polegadas de uma parede até o ripado ou o tapume de
sustentação de gesso ou a folha de revestimento (1968) (ARCHER, 2001, p. 78).
........................................................................................................................................
Efetivamente, a obra, de acordo com Weiner, ‘pode ser apresentada apenas em
linguagem’ (ARCHER, 2001, p. 78).
39

Inversa e legitimamente, as imagens podem ser “lidas” e, portanto, reconhecidas como


equivalentes a textos. “A arte conceitual propunha que as imagens podem ser reconhecidas
como análogas à linguagem: uma obra de arte pode ser lida. O inverso é igualmente
verdadeiro: as palavras podem funcionar de um modo análogo ao da imagem” (ARCHER,
2001, p. 87). A expressão da obra de arte se encontra na ideia; as linguagens são artifícios
para apresentar uma ideia.
A obra Rot (1965) (Fig. 7), de Mira Schendel (1919-
1988), ilustra tal proposição. Uma folha de papel de arroz.
Dispostos em sua superfície, uma série de signos semicirculares e
outros que remetem às letras N (invertida) e M, registrados na cor
preta. No centro da folha, em vermelho, a palavra rot. Em Rot, a
palavra escrita, dotada de significado, se une ao gesto de
inscrever. Lemos rot – vermelho, em alemão –, vemos o
vermelho, numa equivalência tautológica. À semelhança de um
caligrama, o enunciado compõe a figura e faz “dizer” ao texto
aquilo que a imagem representa. Schendel recorre
simultaneamente à imagem e ao registro linguístico. A palavra
encarna seu significado através da materialidade da cor e de
outros significados prováveis, expandidos por analogias. Rot
compreende materialmente a cor vermelha, também pode se
referir a hot – quente – e remete à ideia de diversos vermelhos
possíveis. Lugar onde se realiza a articulação signo/significado, representação/apresentação.
Letras e símbolos podem tanto ser reconhecidos/ostentados como imagem como quanto texto.
O uso da palavra tangencia os domínios da linguística e da plástica; a palavra efetua,
plasticamente, as significações. Palavra e imagem são compatíveis em sua presença e força.
Legível-visível compreende uma única entidade.
Intimamente conectadas, palavra e imagem constroem discursos, os quais, por sua vez,
constituem “práticas que sistematicamente formam os objetos sobre os quais falam”
(FOUCAULT apud ARCHER, 2001, p. 86). Nesse sentido, elementos textuais e imagéticos
compreendem a obra de arte.
Nos anos 1970, subsequentemente ao conceitualismo, o que se assistiu foi a
proliferação de diversas expressões artísticas: earth e/ou land art, performance, instalação,
figuração livre, body art, arte povera, fotorrealismo/hiper-realismo, neoexpressionismo,
40

neoabstracionismo, neoconceitualismo, vídeo-arte, arte do graffiti, entre outros7. Tais


movimentos/procedimentos, pautados e orientados por um conjunto de condições sociais, do
qual era impossível ao artista escapar, corroboram que algo havia de fato mudado na arte. No
contexto de uma produção artística pós-moderna, instituiu-se o assentamento de uma arte que
se realiza por meio de uma multiplicidade de atitudes e abordagens, um fecundo arsenal de
materiais, formas, técnicas, linguagens, configurações e temas. Essas diferentes propostas
artísticas são representativas das circunstâncias a que estava submetida a sociedade do
período e constitui o discurso de um mundo em mudanças, que ultrapassa e não se pode mais
reproduzir pelo cenário/discurso academicista da “história da arte”. “A diversidade da arte [...]
agora se transformara em norma acadêmica e institucional” (ARCHER, 2001, p. 154). O
complexo de práticas artísticas tinha dado lugar a outro complexo, mesmo que esse tenha se
apresentado (e ainda se assente) de modo impreciso.
As práticas artísticas que se desenvolveram a partir de então se ajustaram às mudanças
ocorridas no mundo – já não era mais suficiente expressar-se, exclusivamente, por meio de
formas da tradição artística. O uso de novos (ou, pelo menos, mais novos) materiais e técnicas
pareciam bastante convenientes às abordagens que se propunha. Vinculada ao contexto –
político, visual, espacial e estético –, a arte estabeleceu uma íntima conexão com a vida. A
arte da época tinha como foco as questões ideológicas, as marcações e diferenças identitárias
(sexualidade, classe social, origem racial e cultural). Assim, a oposição entre arte e vida
perdeu intensidade, as artes plásticas desvencilharam-se da moldura que as isolavam do
ambiente e seguiram adiante através de outros meios e sistemas simbólicos.
As artes desse período, bem como algumas das questões em foco, atestam o emprego
(definitivo) e a relevância da palavra na composição da obra de arte.
Na land art, por exemplo, na qual os artistas realizam intervenções sobre o espaço
físico a fim de manipular e alterar a paisagem (ancorados no espaço e no tempo), a relação
visual entre obra e espectador é esmaecida, pois esse, não mais um observador-autor
(CAUQUELIN, 2005), ao contrário, testemunha à distância obras de grandes dimensões por
meio de fotografias, diários de viagem, notas, textos e filmes. Nos casos em que o artista se
vale do uso e combinação entre imagem e texto, o sentido da palavra/texto, mesmo múltiplo,
pode ser entendido/tomado como dependente do que é apresentado à visão. Ainda assim,
palavra/texto configuram um testemunho, uma extensão do objeto e estão propensos a

7
Tais movimentos/procedimentos no compasso de uma linearidade histórica – embora, é mister ressaltar, não
possam ser encerrados no espaço-tempo – compõem o quadro da arte contemporânea; contudo, a abordagem que
se segue é parcial e relativa e se justifica, uma vez que alguns desses movimentos/procedimentos não se
relacionam de modo direto e íntimo com o objeto de estudo desta pesquisa.
41

ultrapassar os limites físicos e/ou representativos da obra – e, por isso, são, potencialmente,
possuidores de vida autônoma.
Diferentemente da land art – e das manifestações artísticas do minimalismo e
conceitualismo –, em que se apreende o apagamento do autor e a ausência de efeitos
expressivos, o que se percebe nas práticas da figuração livre, na body art, na instalação, na
performance e do graffiti é uma proclamação à emoção e à espontaneidade, o emprego do
gesto e do corpo e, por consequência, um processo de individualização – o que retoma a ideia
tradicional do artista como autor –, e a reação ao ambiente direto (que pode ser a parede, a
cidade, o próprio corpo). Em seus variados (porém, emaranhados) estilos de expressão, a arte
invoca uma postura de reivindicação.
A natureza multidisciplinar e híbrida da performance, que é a combinação e
articulação de diferentes modalidades de arte, entre as quais dança, música, pintura, teatro,
escultura e literatura, estabelece o emprego de uma simultaneidade de linguagens na
composição artística – plástica, cinematográfica, poética, teatral, política, musical, social,
tecnológica e outras – e desvela a potencialidade da palavra/texto como um dos seus
elementos constitutivos. Dada a sua abrangência em virtude da fusão de gêneros e a
consequente dificuldade de se delimitar seus contornos específicos, a performance se liga
intimamente e, amiúde, se confunde com o happening, a instalação e a body art, ações que
igualmente se caracterizam pela integração do espaço, materiais, tempo e pessoas. Na
performance, a obra não é algo para se contemplar, mas um espaço a ser experimentado de
um modo físico e pleno. A arte, definitivamente, se desloca do produto final para o processo
de feitura. A performance acontece “como resultado de trabalhar por meio de uma ideia”
(ARCHER, 2001, p. 112).
Um dos expoentes da arte performática dos anos 1960 e 1970 é o norte-americano
Bruce Nauman (1941-), cujo trabalho assumiu muitas e variadas formas – todas, no entanto,
enraizadas à presença corporal do artista, que é, simultaneamente, sujeito e meio da expressão
estética. O corpo, bem como outros aspectos da sua identidade – sua assinatura, por exemplo
–, é tema recorrente na produção do artista.

Nauman [...] empreendeu ações em seu estúdio, gravando-as em vídeo. Elas eram
muito simples – caminhar de uma maneira particular, percorrer um quadrado
marcado no chão enquanto tocava violino, quicar duas bolas até perder o controle,
aplicar e remover maquiagem, manipular um tubo de néon para examinar o corpo na
luz e na sombra – e eram filmadas em tempo real. Não eram nem roteirizadas nem
editadas, mas duravam o tempo exato para que a tarefa em questão fosse realizada
(ARCHER, 2001, p. 107).
42

Em Janela ou anúncio de
parede (1967) (Fig. 8), Nauman
utiliza sua identidade/assinatura de
artista como fonte de satisfação
estética e o faz através de uma obra
em néon que privilegia a palavra.
Num aparente, porém,
ilusório, descompasso com as
práticas artísticas predominantes nos
anos antecessores, no início da
década de 1980, um grupo de artistas
se voltou para os materiais e as
técnicas tradicionais da arte e para a
expressão das emoções, restabeleceu
a habilidade manual, o prazer da
execução e restituiu a tradição da pintura. Movimento que mostrou bastante vitalidade, além
de retomar certos traços do expressionismo e provocar o ressurgimento da pintura como
proeminência na arte mundial, o neoexpressionismo (ou transvanguarda, como foi nomeado),
caracterizou-se pelo largo e livre uso de repertórios, materiais, técnicas e estilos, por
consequência da independência da arte em relação à linearidade histórica, tal como nos
mostra Archer (2001):

[...] a arte da transvanguarda não precisava restringir-se às belas-artes ou às artes


‘elevadas’, mas também podia empregar o artesanato ou outras técnicas, materiais e
temas culturais ‘inferiores’ onde lhe parecesse adequado.
........................................................................................................................................
Tudo já havia sido feito; o que nos restava era juntar fragmentos, combiná-los e
recombiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de
citações, vendo o mundo como um simulacro. A citação podia aparecer sob
inúmeras formas – cópia, pastiche, referência irônica, imitação, duplicação, e assim
por diante [...] (ARCHER, 2001, p. 156).

O neoexpressionismo foi alvo de opiniões paradoxais. Muitos consideraram um


movimento retroativo, obsoleto, uma regressão – na medida em que propôs uma ruptura com
as práticas dos anos 1960 e 1970 e a promoção do retorno da pintura, especialmente a de
grande formato, machista –, julgando que significava mesmo uma prática de marketing –
“uma rejeição conservadora da indagação crítica do conceitualismo e uma capitulação às
insistentes exigências do mercado” (ARCHER, 2001, p. 156). Outros, no entanto, defendiam
43

o “novo espírito da pintura” como o reconhecimento de uma prática insuprimível – essa,


concebida como uma instituição dotada de “essência”. Não obstante as contradições, o
alcance do neo-expressionismo compreendeu diferentes gerações de artistas e práticas
artísticas e, diferentemente de épocas anteriores, privadas de quaisquer ambivalências e
devotas a um “único” estilo artístico, o que se presenciou foi o fim de uma perspectiva
redutora – muitos artistas conceituais eram simpáticos às práticas pictóricas e pintores
supostamente neo-expressionistas se valiam de abordagens conceituais e críticas à instituição.
A pintura e a arte conceitual estavam ambas e, definitivamente, sob o paradigma da
apropriação, um aspecto marcante do chamado pós-modernismo.
O retorno à pintura imagística, promovido pelo neoexpressionismo, criou um ambiente
receptivo para outras feições da pintura, entre as quais a arte do graffiti. Inscrições em muros,
paredes e metrôs – os grafites urbanos –, que se desenvolveram nos Estados Unidos nos anos
1970 e rapidamente se tornaram presença constante tanto naquele país quanto na Europa,
sustentados por mudanças ocorridas no mercado de arte nos anos 1980, alcançaram grande
popularidade. Assim, palavras e/ou desenhos, emoldurados em quadros coloridos e em grande
escala, se consagraram como arte e chegaram às galerias e museus. Expressão da resistência
de indivíduos segregados e excluídos, pertencentes às minorias, o graffiti constituiu-se como
uma espécie de “voz” desses grupos, que agiram sobre o ambiente urbano, subvertendo-o.

Essa ‘palavra visual’ do graffiti, subversiva e transgressora é uma forma de


expressão dessas minorias oprimidas que, não tendo onde se expressar, se expressam
nas ruas, que é o lugar público por excelência. É uma escrita na maior parte das
vezes ilegível, para quem está de fora, pois é uma linguagem codificada, de um
grupo ou grupos (VENEROSO, 2012, p. 211).

Vários artistas do graffiti emergiram do espaço das ruas e tiveram seus trabalhos
deslocados para galerias e museus, inserindo essa manifestação artística marginal no mercado
da arte culta. Jean-Michel Basquiat (1960-1988) é um deles – “sua trajetória inverte o ponto
de vista: faz-nos ver o graffiti de rua a partir do museu” (VENEROSO, 2012, p. 214). Nas
ruas, Basquiat escrevia poemas visuais, que deram origem às suas telas com palavras. As
pinturas de Basquiat (Fig. 09) “eram cheias de palavras e frases que haviam sido riscadas,
alteradas e substituídas por melhores versões. [...] esse difuso procedimento representava um
esforço de esclarecimento e comunicação” (ARCHER, 2001, p. 173). As palavras de Derrida
e Bergstein (1998) sobre o poeta e diretor francês Antonin Artaud parecem se ajustar ao
exercício plástico promovido por Basquiat, que “deixa a letra escrita pela letra. O que separa
44

as duas é uma diferença de substância ou de suporte, o que faz a partilha entre a arte literária e
o desenho literal” (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p. 94).

FIGURA 9-
Jean-Michel
Basquiat,
Liberty, 1984.
Fonte:
Reproduction
Gallery.com

Em meados dos anos 1980, ocorreu uma vigorosa retomada do interesse pela arte
conceitual. O que se assistiu nesse período foi a proliferação de uma pluralidade de práticas
artísticas que refletiam a crença na arte e faziam ressonância às práticas do conceitualismo; no
entanto, percebe-se uma redefinição da arte conceitual que, sob uma perspectiva
“antropológica”, compreende o caráter contextual da arte e a conecta às questões históricas,
culturais, sociais. Os artistas desse período dialogaram intensamente com as questões políticas
e sociais, e os problemas gerais da estética e do objeto artístico. E muitos o fizeram a partir de
uma abordagem mais comunicacional, que se mostrou atenta a questões situacionais: o
espaço, o público, a comunicação.
As obras de Jenny Holzer (1950-) representam bem o tipo de trabalhos neoconceituais.
A partir de 1977, Holzer começa a expor seus Truísmos (Fig. 10), um arranjo de breves
declarações/frases de impacto, de significado ambíguo que, inicialmente, foram distribuídos
em pôsteres e, posteriormente, foram fixadas em postes, colados em cabines telefônicas,
impressas em camisetas e exibidas em painéis eletrônicos: “Proteja-me do que eu quero”,
45

“Falta de carisma pode ser fatal”, “O


assassinato tem seu lado sexual”, “A
propriedade privada criou o crime”.
Valendo-se da palavra, Holzer
subverte a ordem e a lógica, questiona,
desloca e desconstrói o discurso
hegemônico e os mecanismos de
representação social. Expõe as fragilidades
de uma pretensa homogeneidade ao
desvelar mecanismos e desafiar o poder da
linguagem. “O lugar de intervenção de
Holzer é a língua” (FOSTER apud
VENEROSO, 2012, p. 266). Pode-se
afirmar que as ideias da arte conceitual
continuam subjacentes a boa parte da arte
contemporânea.
Paralelamente (e, amiúde,
amalgamada) a essas duas atividades artísticas – uma que privilegiou a pesquisa conceitual e
outra que adotou como suporte a tradição pictórica –, instaura-se a arte tecnológica, prática
artística que faz uso das técnicas de comunicação e propõe a utilização dessas, como matéria-
prima. Aqui, é possível distinguir duas práticas: uma que utiliza os meios de comunicação
como suportes da atividade artística, tomando como princípio a figuração, e/ou como
compósito de técnicas mistas; e outra que utiliza as possibilidades do computador como
suporte de imagens, mas e, sobretudo, como instrumento de composição da obra.
A arte tecnológica se desenvolve no encalço da explosão popular da televisão e do
vídeo, no início dos anos 1960. O vídeo e a televisão assumem a partir de então, grande força
no trabalho artístico e são, frequentemente, associados a outras mídias e/ou linguagens. Na
esteira das contribuições minimalistas e da pop art, a vídeo-arte se estabelece, efetivamente,
nos anos 1980. As imagens-produto dessa criação artística – que se “nutrem” de imagens da
publicidade, de histórias em quadrinhos, de imagens televisivas e do cinema – ampliam as
possibilidades de se pensar a representação e as relações da obra de arte com o espaço físico.
O espaço físico, nesse caso, compreendido como campo perceptivo, grifa o ponto de vista do
observador como essencial à apreensão e produção da obra. Em processo permanente, a obra
inclui o espectador e o convoca à participação, tomando-o como protagonista desse processo
46

de recepção-criação. Com a vídeo-arte, o campo de visão do espectador é alargado, pois este


transita entre as imagens em movimento do vídeo e o espaço da galeria.
Um dos primeiros artistas a utilizar a tecnologia em seu trabalho foi Nam June Paik
(1932-2006). Ele desenvolveu muitos trabalhos que passavam pela escultura, performance,
música, vídeo e televisão, entre os quais TV Garden (1977) – no qual monitores “floresciam”
em meio a uma vegetação verde e exuberante (Fig. 11). As inúmeras produções artísticas
características da vídeo-arte assumiram variadas formas e definições: videoinstalação,
videoescultura, videopoema, videoperformance, entre outras.

FIGURA
11 - Nam
June Paik,
TV Garden,
1977
Fonte:
Artnet.com

As últimas décadas do século XX e as do início do XXI testemunharam um


incremento expressivo da associação das tecnologias às práticas artísticas devido, sobretudo, à
popularização do uso de computadores pessoais, ao grande desenvolvimento das mídias
digitais e, mais recentemente, à convergência das tecnologias da informação. O que se
percebeu, entretanto, foi uma redefinição da chamada arte tecnológica. Uma vez que a cultura
digital se confunde com a cultura contemporânea, as possibilidades artísticas, de certa forma,
se naturalizaram, se ampliaram e se tornaram prática recorrente no território experimental,
aberto e plural das artes contemporâneas.
Ademais, e, sem dúvida, uma mudança significativa diz respeito à execução artística,
que foge e abala a crença em um dado conceito de arte que se fundamenta no desinteresse, na
47

inutilidade, na ausência de julgamento e de regras, no poder universal de comunicação, na


unicidade da obra e do autor. A todos esses princípios, a arte tecnológica e multimídia se opõe
sem reservas. Reconhece-se aqui, o antigo embate entre arte e técnica. A obra de arte se
metamorfoseia esteticamente em virtude da técnica, seu valor “aurático” se desintegra (para
usar os termos de Walter Benjamin). Mas, a despeito de questionamentos e refutações, a arte
tecnológica segue seu caminho... E funda uma nova era da trajetória artística.
A arte contemporânea prossegue propondo modelos experimentais, perceptivos e
críticos. A inter-relação, interconexão, interatividade e o atravessamento entre linguagens
seguem como algo recursivo e dinâmico, que não cessa de mudar – e, ao que parece e indicam
os rumos das investigações/manifestações estéticas dos últimos anos, é um processo
inexaurível. Pluralista em intenção e realização, a produção contemporânea desestabiliza, não
se define nitidamente, escapa à conceitualização, resiste a uma acepção precisa. De fato, se se
intenta dicionarizar a condição contemporânea da arte, a palavra de ordem é hibridez. Termo
bastante apropriado e conveniente ao “desenho” do estado de coisas contemporâneo.
O breve passeio pela história da arte moderna e contemporânea, realizado ao longo
deste capítulo, permite compreender que a prática artística constitui não uma essência
imutável, mas um jogo cujas formas, modalidades e funções se alteram de acordo com as
épocas e os contextos sociais, que a arte se estabelece a partir das relações que produz com o
mundo e em conformidade com os momentos que se transformam historicamente.
A arte contemporânea, de modo especial, se corporificou a partir da negociação entre
vida e arte. Vinculada ao contexto e em consonância com as vertiginosas mudanças sociais,
políticas e culturais ocorridas, as práticas artísticas que se desenvolveram nos e a partir dos
anos 1960 refletem as concepções e hábitos da sociedade que, incontestavelmente, estavam
ligados às noções de novo e ruptura. A “arte é o exercício experimental da liberdade”
(PEDROSA apud CANTON, 2009, p. 11), afirmou o crítico Adriano Pedrosa nos anos 1960,
ao referenciar aquele período histórico das artes. Pautada pela diversidade de abordagens e
procedimentos, pela pluralidade estética e abertura ao uso de materiais e técnicas (algumas até
distanciadas do terreno artístico), as artes dos anos 1960 e 1970 se furtaram aos limites da
expressão, da “aparência” e do conteúdo característicos da tradição artística.
Campo disponível para os mais diversos arranjos e movimentos, a conjuntura na qual
se desenvolveu a arte contemporânea é bastante conveniente às abordagens propostas por
Leonilson. A arte intersticial do período, além de marcada pela heterogeneidade, instituiu a
intersecção entre linguagens como modalidade do fazer artístico e promoveu a exploração do
“fato histórico” da vida do artista como mote para a arte, o que se mostra bastante fecundo
48

para o desenvolvimento da arte híbrida, autobiográfica e plural do artista. As circunstâncias


do cotidiano, a adoção de certas práticas e a tentativa da arte de abrir algumas passagens, que
efetuaram as possibilidades expressivas atuais, colocaram Leonilson em contato com seu
modo particular de fazer arte – objeto sobre o qual se debruça esta pesquisa.
Apresentado o panorama da arte contemporânea como tecido no qual se compôs a
produção do artista – perspectiva fundamental para promover a análise pretendida –, o
próximo capítulo desdobra os conteúdos abordados ao se deter sobre as aproximações entre o
modo de fazer arte na contemporaneidade e a linguagem proposta por Leonilson, debruçando-
se sobre os aspectos formais e os elementos estruturadores da linguagem artística que
denotam vínculos entre as conformações estético-plásticas da obra e aspectos autobiográficos,
e configuram/autenticam a singularidade da obra.
49

CAPÍTULO II

ARTE COMO VONTADE DE EXPRESSÃO

Da pele ao pano e ao papel, sutura de pedaços e


letras, palavras, frases-versos, feitos plano e cor
de afetos que trazem a cena inicial de um quarto
a um outro lugar: o lugar da obra.

(Clara de Góes)

Formada por desenhos, pinturas, esculturas, escritos, objetos e bordados, e


heterogênea em sua forma e composição, a obra de Leonilson reúne um conjunto homogêneo
em sua temática: a fragilidade do sujeito – e, especialmente, do sujeito feito artista. O
exercício de configuração da matéria, colocado em ação pelo artista, revela uma obra
conformada por questões subjetivas, impregnada com a presença de sua vida, com a carga de
suas emoções. Ao dar forma à matéria, Leonilson parece (intentar) dar forma a seu próprio
existir, captando-o e (re)configurando-o. Estruturar a matéria traduz-se em estruturar as
perturbações que atravessaram a existência do sujeito-artista e, nesse sentido, a produção de
Leonilson compreende, sobretudo, uma reflexão a respeito do homem contemporâneo. Para
além de questões pessoais, o trabalho se organiza, contextual e historicamente, sobre temas
que assaltaram a sociedade entre as décadas de 1980 e 1990.
Embora se trate de uma obra predominantemente autobiográfica – o artista “fala” em
primeira pessoa – (e talvez, por isso mesmo), sua produção é constituída por uma narrativa
cuja realidade não pode ser dada como verdade irrefutável (ao contrário, se apresenta como
campo potencial para a ficção e a subjetividade). As questões tomadas por Leonilson e as
propostas de materialidade com as quais lida o artista, isto é, as proposições de sua
linguagem, conformam tanto as potencialidades da matéria quanto as potencialidades do
indivíduo; deixam entrever pulsões e configuram o relacionamento do sujeito consigo mesmo
e com o meio. A seleção e o arranjo de elementos significantes dados pelo artista ao compor
sua obra estão amarrados a uma significação singular, que emerge da sua própria história,
mas, simultaneamente, conectam-se às marcas de outro, do qual Leonilson é também
50

espectador. Movida por indagações, a produção do artista é ação simbólica que tenciona
encerrar/proporcionar respostas às questões do tempo em que vivemos.
A articulação entre obra e vida é um exercício poético que perpassa toda a produção
do artista. Este é, ao mesmo tempo, narrador e sujeito de sua produção. Leonilson “figurou”,
de modo plástico, a sua própria vida. Sua vocação colecionadora – a de inventariar
lembranças, memórias e experiências de vida (a sua, a de seus amigos e familiares) – é
interpretada e materializada através do arranjo palavra-imagem. A palavra, a propósito,
institui um dos eixos centrais de sua obra, é corpo essencial na construção visual de sua arte.
Suas obras, carregadas de palavras, evidenciam o interesse, ou inclinação, do artista pela
literatura e pela poesia.
Plasticamente composta por combinações e justaposições de elementos díspares, a
produção de Leonilson envolve não só o cruzamento de diferentes linguagens, mas também
procedimentos e materiais que se interpenetram e se acoplam a ponto de poder se afirmar que
a mistura se constitui um estatuto mesmo da sua obra. Isso reforça o que parece ser uma
espécie de código de produção da arte contemporânea, da qual o artista é um expoente.
Leonilson esbanja as propriedades e possibilidades da linguagem e da matéria, provocando
associações que revelam, simultaneamente, a vitalidade do artista e a necessidade premente
do sujeito em se expressar.
Seu repertório tem raízes no cotidiano e dele emana: o mundo, o amor, a identidade, o
corpo, a solidão, o desejo, o afeto, os perigos, a diferença, os prazeres, o outro – essas são
algumas das referências que compõem o seu campo semântico. Tais questões, assim como
alguns materiais e suportes, são recorrentes em sua produção e estão presentes em sua
trajetória artística do início ao fim. A operação artística sobre e a partir do cotidiano parece
ser, para Leonilson, uma experiência libertadora, que permite ao sujeito marcar seu
pertencimento, lidar com os sintomas do viver e com as impossibilidades inerentes à
experiência humana.
Contextualizada num período de renovado interesse pela pintura e do ressurgimento da
técnica como predominância na arte mundial dos anos 1980, a pintura registra o ingresso de
Leonilson no cenário artístico (RESENDE, 2012). A “volta da pintura” como acontecimento
mundial assumiu diferentes nominações: figuração livre na França, transvanguarda na Itália,
neo-expressionismo na Alemanha, bad painting nos Estados Unidos. No Brasil, se notabilizou
na expressão “Geração 80” e teve como marco a exposição Como Vai Você, Geração 80?,
realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, em 1984. A
histórica exposição, que reuniu 123 artistas do eixo Rio-São Paulo (RESENDE, 2012),
51

destaca e marca a inserção de novos artistas no circuito da arte, dando visibilidade ao espírito
artístico da época. Leonilson, que explora a figuração (embora sua produção resista a uma
demarcação categórica) desde os seus primeiros desenhos e pinturas, foi um dos nomes de
destaque da mostra – juntamente com Daniel Senise (1955-), Leda Catunda (1961-), Nuno
Ramos (1960-), Beatriz Milhazes (1960-), Jorge Guinle (1947-1987) e outros.
Sobre o fenômeno de retomada da tradição da pintura, escreveu à época, o crítico
italiano Achille Bonito Oliva, citado por Archer (2001):

A desmaterialização da obra e a impessoalidade da execução que caracterizou a arte


dos anos 70, segundo linhas estritamente duchampianas, estão sendo suplantadas
pelo restabelecimento da habilidade manual, por meio do prazer da execução que
traz de volta à arte a tradição da pintura (OLIVA apud ARCHER, 2001, p. 155).

A produção dos artistas brasileiros, seguindo a tendência mundial (e também local),


era uma espécie de reação ao hermetismo (e impessoalidade) da arte conceitual da década de
1970. O que se viu surgir foi um trabalho descompromissado com a noção consagrada de
pintura, ao não se aprisionar a temas, técnicas, estilos e tendências convencionais.
Especificamente, no Brasil, o fenômeno indicou também, e simbolicamente, o fim da ditadura
militar brasileira.
Este período – convencional e controversamente denominado de pós e/ou
hipermoderno – foi marcado pela retomada de formas artísticas antes já experimentadas,
porém caracterizado pela recusa de uma história da arte em progresso; o momento designa a
heterogeneidade da arte, em que se conjugam o tradicionalismo e a novidade, as formas
contemporâneas de encenação e o “olhar” na direção do passado. A pintura, enquanto prática,
foi reivindicada e acentuada, contudo, assumiu nova feição conceitual. O retorno à figuração
se deu de modo mais livre – os artistas proclamaram a emoção, o gesto e o corpo, a
espontaneidade, o expressionismo e o individualismo.
A liberdade reivindicada como fundamento de expressão outorgou aos artistas o
direito ao pluralismo e à multiplicidade de atitudes e abordagens – o que lhes concedeu o uso
de uma diversidade de temas, materiais, técnicas e referências. A arte do neo-expressionismo
podia, e até deveria, se valer dessa liberdade, que cobria um amplo espectro de
procedimentos, entre os quais, o emprego de processos e elementos não restritos ao campo
das “belas artes”, o não-privilégio de um estilo e da novidade, a combinação de distintas
referências, como o afirma Archer (2001):
52

Tudo já havia sido feito; o que nos restava era juntar fragmentos, combiná-los e
recombiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de
citações, vendo o mundo como um simulacro. A citação podia aparecer sob
inúmeras formas – cópia, pastiche, referência irônica, imitação, duplicação, e assim
por diante –, mas por mais que seu efeito fosse surpreendente, ela não poderia
reivindicar a originalidade (ARCHER, 2001, p. 156).

Tal liberdade se refletirá nas eleições estético-plásticas feitas por Leonilson à época e,
sobretudo, mais tarde, quando o artista passa a se dedicar ao bordado de modo visceral.
Uma das marcas de sua expressão, a pintura de Leonilson é compreendida como
exemplar da “Geração 80”. Cabe destacar, no entanto, que Leonilson explorou menos a
noção de figuração enquanto expressão realista (e/ou crítica social) e mais como gesto de
apropriação e representação simbólica, esquemática (e subjetiva) da realidade cotidiana (sua e
do outro). A inserção/classificação da produção de Leonilson como exemplar do fenômeno,
portanto, merece ressalvas, como bem o faz Lagnado (1995):

Um comentário preliminar se impõe: até hoje, o reconhecimento dessa obra esteve


comumente vinculado ao modismo da transvanguarda italiana. Mas esta explicação,
além de reducionista, contradiz a própria essência da atitude de Leonilson: como
aceitar que sua obra tenha sucumbido às influências internacionais se ela está de
forma eminente fundada sobre uma experiência individual? Leonilson distingue-se
dos outros artistas emergentes dos anos 80 pela travessia sob o estigma do registro
íntimo de sua subjetividade romântica, em busca do que seria uma “voz interior”.
................................................................................................................................... .....
[...] Antes de lançar mão da palavra, dos panos costurados e dos espaços vazios,
poder-se-ia dizer que o sucesso de Leonilson resultava de uma necessidade do
mercado de incorporar uma pintura “jovem”. Ora, na disputa para a cristalização de
um gênero pictórico, ele seria apenas mais um, apressadamente associado à
transvanguarda italiana (principalmente ao traço de Clemente 8) – fonte insuficiente
para dar conta do movimento total da obra de Leonilson (LAGNADO, 1995, p. 28-
29).

Ancorados pelo processo de redefinição do conceito de arte e libertos da


obrigatoriedade em relação à arte acadêmica e à originalidade (no sentido de novidade), os
artistas puderam, então, empregar uma diversidade de técnicas, materiais e abordagens. A
“morte” do traço linear da história da arte respaldou as experimentações e teve como
consequência o comportamento libertário do artista quanto a procedimentos e também quanto
aos temas em uso por este em suas criações. Ao que parece, é esse estatuto que rege a
produção de Leonilson – se não em toda a sua extensão, inconteste o trabalho realizado pelo
artista a partir de meados dos anos 1980.

8
A autora se refere ao artista italiano Francesco Clemente (1952-), que, segundo Archer (2001), possuía uma
obra fortemente autobiográfica, cujas imagens combinadas de modo rítmico e livre implicam uma atmosfera
carregada de erotismo – características que, certamente, levaram a associação com a obra de Leonilson.
53

Segundo Lagnado (1995), as influências imediatas de Leonilson na produção desse


período são o pintor Antônio Dias, com seu repertório iconográfico e procedimentos formais,
os traços do norte-americano Keith Haring (1958-1990) – além do fato de Haring, assim como
Leonilson, fazer de suas experiências fonte de inspiração – e os dados “metafísicos” do artista
alemão Albert Hien (1956-).
Nem figurativa nem abstrata: a pintura de Leonilson escapa a uma categorização
exata. As primeiras pinturas possuem, nitidamente, a marca da ilustração – apresentam formas
passíveis de reconhecimento àqueles que as olham –, porém, denotam a busca de um desenho
livre dos artifícios da expressão realista e reservam um lugar privilegiado para a manifestação
de um mundo interior. O artista, num gesto singular, levou a cabo um modo de proceder que
tendia à esgarçadura das representações figurativas até o ponto em que elas pareciam
demasiadamente simples, toscas, mal acabadas, “infantis”. Traços que marcam a apregoada
liberdade criativa, aliada ao prazer de pintar característicos do período – os pintores da
“Geração 80”, entre os quais Leonilson, abdicaram da adesão à escola tradicional da pintura,
privilegiaram a fragmentação e a combinação eclética de distintas referências, tendências,
estilos e períodos da história da arte e agenciaram a diluição das hierarquias entre linguagens.
Impossível entrever uma direção
única na prática pictórica do artista. Sua
linguagem é diversa: conforma,
simultaneamente, uma atitude pujante
(cores violentas e contrastantes, gestos
enérgicos, mensagens irônicas) e uma
profunda simplificação formal – marcas
contundentes da pretensão do artista de
atribuir expressividade à sua obra. Papel,
tecido ou tela, podem, igualmente, evocar
as dimensões e a gestualidade excessivas
do expressionismo, acumular signos
irregulares e “primitivos”, sucumbir à
ausência de unicidade de estilo do
surrealismo, remeter à informalidade do
abstracionismo e suportar a inscrição plástica e poética da palavra-imagem, como bem
exemplifica a obra O Pescador de Palavras, de 1986 (Fig. 12).
54

Em O Pescador de Palavras, assim como em outras produções, Leonilson estabelece


uma espécie de movimento que oscila entre contenção e desejo de expressão. Do ponto de
vista da configuração plástica, percebe-se uma simplicidade formal – as cores contrastantes,
embora em número reduzido, os traços simples e a deformação das figuras – que instaura uma
contenção. Já sob a perspectiva de conteúdo, parece haver um desejo de expressividade,
manifesta, especialmente, no uso das palavras (curiosamente, em língua alemã, o que leva a
inferir uma referência ao expressionismo alemão) e nas associações entre estas e as imagens.
Nesse sentido, é possível marcar sua correspondência com os pressupostos
surrealistas, na medida em que estes sugerem uma produção artística que não se
sujeita/encerra uma realidade dada; ao contrário, é engendrada também e a partir de matéria-
prima fornecida pelo inconsciente, liberta dos cerceamentos impostos pela lógica e pela razão.
Imagens conhecidas, porém, enigmáticas – como o pescador representado: seria um homem
ou uma mulher? Possui pés ou seria o rabo de uma sereia? Se não tem olhos ou nariz, deveria
possuir braços e pernas? –, formas sugestionadas – como as palavras/imagens haus, brucke –
ambiguidades, mensagens obscuras – como a palavra/imagem não dicionarizada, indecifrável
“rababa” – desobrigação da figuratividade com o referente real, fricções entre palavra e
imagem perceptíveis na produção de Leonilson, desvelam similitude com o compromisso
expressivo surrealista com a invenção, o inesperado e a permissão dada ao inconsciente.
A obra, numa concepção surrealista, parece “revelar o inconsciente na representação e
desfazer as concepções reinantes de ordem e realidade” (DEMPSEY, 2003, p. 172). Leonilson
usa a realidade como elemento de seu processo criativo. No entanto, ele a utiliza, sobretudo,
como instrumento para exceder o limite do figurativo, na medida em que agrega à obra
elementos outros, despidos de sua significância convencional e que escapam aos fins lógicos.
Particularizam a obra (essa e tantas outras), a coexistência de paradigmas artísticos
incongruentes, a justaposição de objetos aparentemente desconexos e as associações, à
primeira vista, ilógicas. Atitudes que se mostram análogas aos procedimentos típicos do
surrealismo, em virtude de traços – entre os quais, a diversidade e a singularidade – que
caracterizam, especialmente, um campo representacional instituído pela presença efetiva do
sujeito, que se move entre eu e outro, dentro e fora, consciente e inconsciente.
A emersão do inconsciente e sua estruturação como linguagem artística é questão
basilar do surrealismo e também princípio que orienta a conformação da arte contemporânea.
O surrealismo se nutriu das teorias da psicanálise, notadamente, a obra de Sigmund Freud
(1865-1939) sobre o inconsciente para erigir seus pressupostos. Para a psicanálise, o
inconsciente constitui um sujeito Outro (é um discurso anunciado acerca do outro que há em
55

mim), este que incita uma busca perpétua de sentidos que, paradoxalmente, a própria
linguagem nega alcançar. Em sua complexa trama, a linguagem do inconsciente fica
encoberta, resiste a tornar-se discurso, mas, involuntária e frequentemente, irrompe de modo
radicalmente singular e com semântica própria e faz o íntimo estar fora – isto é, o interior
excluído revela-se como o mais íntimo de nosso ser – o que Lacan denomina como êxtimo
(LACAN apud RIVERA, 2013).
As concepções acerca do inconsciente e muitos outros pressupostos da psicanálise são
valorosos ao exame da obra de Leonilson – produção cuja tônica é a subjetividade (e a
realidade). A aparente desordem que a obra deixa ver, isto é, os inabituais arranjos e
combinações, as incoerências, os equívocos da língua, subversões, fusão/eliminação de
palavras, sílabas ou letras (que constituem um idioma próprio), são resultado de uma lógica
muito particular, ao que parece, provocada por um apelo consciente/inconsciente àquilo que
precisa ser dito para aliviar a tensão do sujeito – processo que a psicanálise busca explicar por
meio da noção de sintoma/sinthoma9. O fato é que as escolhas do artista para a sua
composição estão atreladas a uma significação peculiar (e possuem claras nuances
individuais), que nasce da sua própria história; o “eu” emerge da relação simbólica do sujeito
com aquilo que o circunda (com a realidade), sustentado pela linguagem.
Desmantelada pelas vanguardas artísticas modernistas, na arte contemporânea, a
relação entre o sujeito e a realidade representada se faz valer fora do espaço inequívoco da
representação mimética. O sujeito, assim como o real, é tomado (e retorna) como questão
central. Esse sujeito, porém, é outro. Descentrado, uma vez que não coincide mais com o
centro organizador da representação, problematizou seus limites em relação ao outro e se
deslocou em direção a uma nova concepção (fragmentada, distanciada do ilusionismo
mimético) do espaço. E o real, esse, há muito, não versa mais sobre a realidade dada por e
para um olho fixo.

Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das
coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal
operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual
o sujeito se depara repetida e violentamente (RIVERA, 2013, p. 21).

9
O sintoma para Freud é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado
persistente; é uma consequência do processo de recalcamento. Lacan prioriza a noção de sinthoma estruturado
como linguagem e o concebe como significante de um significado recalcado da consciência do sujeito, e que, por
essa natureza, não é acessado; ele consiste numa modalidade do gozo do inconsciente, uma solução inventada,
para estabilizar aquilo que não muda no sentido pulsional. É uma maneira particular que cada um inventa para
lidar com o Real. Trata-se do incurável de cada um (MAIA; MEDEIROS; FONTES, 2012).
56

O real, nesse sentido, seria aquilo que escapa, é o resto, o que resiste à simbolização.
O real, juntamente com o imaginário e o simbólico, segundo Lacan, compõe o sujeito. O
imaginário diz respeito às experiências do sujeito em seu contato com o mundo e a partir das
quais se dá a produção de sentido. E o simbólico é da ordem do significante, define o campo
do possível ao permitir nomear – sendo esse um processo (incessante) de reenvio de um
significante a outro significante. Lacan sugere que o jogo da linguagem consiste no deslizar
entre essas três categorias, premissa que faz eco às práticas da arte contemporânea, sobretudo
caso se entenda que a arte, enquanto linguagem, não é passível de tudo dizer, pois padece do
interdito que marca o possível de ser dito ou apresentado.
Tais pressupostos são relevantes para se pensar a arte de Leonilson, que, destituída de
limpidez, inversamente (e, quiçá, involuntariamente), oculta sentidos secretos, contudo, revela
indícios que estão na superfície. O real, o simbólico e o imaginário funcionam como
operadores de leitura de O Pescador e muitas outras obras de Leonilson, comentadas mais
adiante. Dados os desdobramentos da arte do período e a poética voltada para suas
singularidades e história pessoal, Leonilson desenvolveu caminho e linguagem próprios,
espelhados e determinados pelas relações, pelos laços entre o sujeito e o mundo.
O artista compõe um diário de bordo que constitui uma espécie de viagem interior, no
qual inscreve o conceito que iria marcar a sua produção daí em diante. Em 1989, Leonilson
desenvolve e expõe um conjunto de trabalhos compostos por botões, pedras semipreciosas e
bordados, o qual chamou de “anotações de viagens” (LAGNADO, 1995). Tais peças
introduzem um procedimento fundamental no percurso artístico de Leonilson: a costura
(inclusos, os bordados). “[...] momento em que Leonilson descobre um corpo para a superfície
pictórica” (LAGNADO, 1995, p. 32).
O bordado inaugura um novo capítulo da trajetória de Leonilson e se torna definitivo
em sua obra. O traço do artista encontra agora outra materialidade. A costura e o bordado são
elementos que levam, num primeiro momento, às correspondências entre a obra de Leonilson,
Arthur Bispo do Rosário (1909/1911-1989), Hélio Oiticica (1937-1980), Eva Hesse (1936-
1970) e o trabalho dos shakers10. O próprio artista, em entrevista à Lagnado (1995),
reconheceu algumas dessas influências artísticas em sua produção, mas as atenua. Ao ser
questionado por ela se “o surgimento dos panos bordados é contemporâneo da exposição do
Bispo. Ela foi determinante para você?” (LAGNADO, 1995, p. 85); Leonilson responde: “A

10
Seita religiosa norte-americana, fundada sobre o otimismo, cujos membros, em busca de uma sociedade
melhor, produziam seus próprios tecidos (lã, seda e linho) e objetos utilitários. Entre as características que
aproximam o trabalho de Leonilson aos dos shakers estão: a aptidão pelo trabalho manual, a iconografia, a
prática da marcação e datação de objetos.
57

exposição do Bispo? Foi. Mas minha mãe bordando em casa diariamente também”.
(LEONILSON, 1995, p. 85).
As alusões aos trabalhos dos shakers, de Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e o
interesse pela alta-costura11 compõem mais um paradigma, são elementos constitutivos do
repertório artístico de Leonilson. Há que se destacar que o que o contato com a obra desses
artistas e dos shakers faz é contribuir para conformar a linguagem do artista, isto é, conferir
peso às suas vivências familiares. É que o uso da costura e do bordado por Leonilson deve ser
compreendido como paradigma primeiro, ressonâncias de uma questão autobiográfica – a
prática está ligada à memória do ambiente familiar, da infância e do lar: o pai, comerciante de
tecidos, e o quarto de costura que a família possuía em casa são heranças determinantes – e
também de identidade (enquanto possibilidade de afirmação de uma identidade feminina). O
bordado e a costura, portanto, concretizam a sua poética do diário pessoal.
O bordado atesta as (breves) transformações ocorridas na produção do artista. Percebe-
se entre as obras iniciais e finais, uma espécie de depuração da forma. Num primeiro
momento, a figuração tosca e o traço indefinido que engendravam ardilosas analogias,
aplicadas sobre a superfície grosseira da lona recoberta de tinta. Em seguida, a acuidade
precisa e delicada (porém, vigorosa) do bordado sobre o tecido. Ambos os gestos, entretanto,
mantêm a ambiguidade das várias imagens simbólicas (do vocabulário visual de Leonilson),
que se plasmam sobre o sujeito feito artista/objeto. Nessa segunda fase, período que vai do
final dos anos 1980 até o início da década de 1990, marcada pelo espírito romântico,
Leonilson recorre a imagens e palavras que remetem (confessadamente) ao amor, à queda e ao
isolamento.
“Cada delícia tem um preço”, anuncia uma pintura de 1988; A figura de cabeça para
baixo delata a queda, sentença da perda de controle do indivíduo sobre si mesmo; “Leo Can’t
Change the World” revela o estado de impotência e desassossego; Fogo que arde nas mãos ou
no peito e flores que se alojam nos olhos ou no coração: imagens simbólicas,
inequivocamente, vinculadas ao amor romântico; Intrincados, emoções e sentimentos
engendram mapas formados por emaranhados de árvores, rios, corredeiras, pontes e afluentes;
Veias, artérias, nervos do qual saem raízes, caminhos e embocaduras sugerem uma cartografia
do corpo e do afeto; A silepse em O Ilha (1990) e O Penélope (1992) ressalta a crise de
identidade de gênero; Jogos perigosos, de 1989, é amor declarado: “Esses jogos perigosos /
Não são guerra / Nem estão no ar / Mas por detrás de óculos / E um par de jeans”

11 Lagnado (1995) cita que o interesse se origina da amizade de Leonilson com Marie Rucki, diretora da
renomada escola de moda Studio Berçot, de Paris.
58

(LEONILSON, 1989). Ao inconformado, resta então a melancolia; diminutos desenhos


envoltos por grandes espaços vazios produzem um elogio ao silêncio e a “pequenez” do
sujeito. Os emblemas das experiências vivenciadas pelo artista compõem os elementos da
clave romântica que conformam a sua produção – especialmente, a produção que vai até o ano
de 1991.
Embora a poética de Leonilson sofra um adensamento de suas questões com o
“aparecimento” dos bordados – objetos de pano, como o artista os denominava –, a linguagem
proposta por ele ao longo de toda a sua obra não muda de conteúdo, apenas de forma. O que
se nota é que ao longo de seu movimento, Leonilson modifica a “tonalidade” da sua
composição, isto é, conforma a sua imagem ao ideal de se expor publicamente – o que,
invariavelmente, requer retoques e cuidados com a apresentação, para assegurar uma aparição
sublime. E como um reverso, a obra se conforma à vida de Leonilson – o que se evidencia na
produção da fase final da sua vida, quando o artista agencia a escassez de materiais e
elementos, a redução da escala e ampliação de pausas, vazios e silêncios no espaço da tela. O
romantismo de Leonilson toma outra direção a partir da manifestação dos sintomas da doença.
“Serão abandonados todos os artifícios até que o desenho finalmente possa ostentar o silêncio
de um simples voile esticado em chassi” (LAGNADO, 1995, p. 45).
Assim, conhecer a história de vida de Leonilson é um pressuposto fundamental para a
compreensão de sentidos que os materiais usados pelo artista irrompem em eu trabalho.
Através de sua obra, Leonilson constrói um percurso existencial assinalado por
experiências/referências pessoais. Sobre o biográfico na produção do artista, Lagnado (1995)
afirma “foi movido pela compulsão de registrar sua interioridade a fim de dedicá-la aos
objetos do desejo” (LAGNADO, 1995, p. 27), o que é corroborado por Ivo Mesquita (1995)
ao destacar que “na obra deixada por Leonilson, sua biografia pessoal cruza, a todo instante, a
leitura e a compreensão de seu trabalho” (MESQUITA, 1995, p. 194).
A arte como um processo, que coincidia temporalmente com a vida do artista e
espacialmente com o mundo no qual ela é vivida – substituta da arte como um conjunto de
produtos –, foi questão recursiva a partir do final dos anos 1960 (ARCHER, 2001). Diversos
artistas desse período (e dos subsequentes) exploraram a ideia de fazer arte a partir do “fato
histórico” da sua vida. Exercício assumido por Leonilson desde o início de sua trajetória
artística e que foi, possivelmente, alargado pelas referências a que foi submetido – as obras de
Eva Hesse e Louise Bourgeois (1911-2010), por exemplo.
A ligação da produção de Leonilson com a obra “feminista” e biográfica das duas
artistas mencionadas é inevitável. São aspectos comuns às suas produções: a relação
59

(inseparável) arte/vida, a ideia de voltar-se para o corpo do artista, a presença do subjetivismo


lírico na expressão artística, o desenvolvimento de uma linguagem intimista, o fazer artístico
evidenciado na visualidade da obra e como registro da vivência intensa desse fazer artístico.
Curiosamente, as vidas dos três artistas são balizadas pelo estigma da brutalidade: Eva Hesse,
uma judia, fugitiva dos campos de concentração nazista; Louise Bourgeios, uma mulher
marcada por relações familiares deterioradas e a perturbadora infidelidade paterna consentida
pela mãe; José Leonilson, um homossexual infectado pelo vírus HIV.
As aproximações do trabalho de Leonilson com o de Eva Hesse, apontado pelo próprio
artista como uma referência – “Eva Hesse junto com Blinky Palermo, foram sempre meus
ídolos das artes plásticas, pela sua atitude” (LAGNADO, 1995, p. 87) –, vão da
associação/percepção da obra de Hesse como reflexo da sua vida, do uso de tecidos e fios
têxteis na composição de obras – isto é, o fazer aparente (a costura, por exemplo) como
registro da vivência do processo artístico (Fig. 13) – à carga sexual de suas produções.

FIGURA 13 - Eva Hesse, Aught, 1968.


Fonte: WikiPaintings Visual Art Enciclopedia

A obra de Louise Bourgeois, outra artista que coloca em primeiro plano sua própria
biografia como motivação para sua criação artística, assemelha-se à de Leonilson também
pelo uso dos tecidos (Fig. 14) e dos elementos sexuais, mas e, sobretudo, pelo encontro entre
textos/registros pessoais e desenhos, que dão origem aos seus trabalhos. “A primeira [Eva
Hesse], sempre que podia, declarava serem inseparáveis sua vida e arte. Já Bourgeios
60

acreditava em um certo destino


trágico reservado a todo artista,
incapaz de se libertar do próprio
inconsciente” (KATO, 2003, p. 74).
A obra dessas e de outros
artistas, assim como a produção de
Leonilson, que aliam política e
subjetividade (sem ser panfletária, é
preciso destacar), colocaram em
foco a questão da identidade bem
como se voltaram para a discussão
do corpo do artista. As
similaridades, além de temáticas e
conceituais, são formais e se
revelam no emprego de alguns
procedimentos e materiais. O mote
comum entre eles é que todos
trabalharam com grandes e
delicados temas, tais como amor,
sexo, tempo e morte. Objetos carregados de melindre, cujos discursos (ainda hoje) sofrem, via
de regra, cerceamentos. Enunciados cujas produções são controladas pela sociedade, como
bem aponta Foucault (2004) ao atestar a existência de restrições relativas ao objeto, às
circunstâncias e aos direitos do sujeito do discurso. Especificamente sobre sexualidade e
política, Foucault (2004) ressalta a interdição, um dos processos de exclusão patentes do
discurso.

[...] em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros
se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso,
longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma
e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo
privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes (FOUCAULT, 2004, p. 9-10).
61

Com forte carga político-


ideológica (mas não militante), o
discurso sobre a identidade, empreendido
por Hesse, Bourgeois e Leonilson,
compreende também considerações
sobre sexualidade, classe social, origem
racial e cultura. O que parece é que essas
questões, identificadas e compreendidas,
promoveram/estimularam a
(in)consciência (e se tornaram exercício)
de que as identidades afetam a forma e
intenção das obras.
O debate sobre o feminismo e a
política (e outros temas da esfera
sociopolítica), ocorrido nos anos 1970
(inclusive tratados por Hesse, Bourgeois
e outros), promoveu a maturação dessas
discussões e o prolongamento para
outras áreas da marginalização social –
principalmente àquelas tocantes à
identidade sexual e gênero – e foi
retomado nos anos 1980. Tais discussões
trazidas à pauta, em parte, pelo
desencadear da crise da AIDS12 – quando
a doença matou milhares de pessoas ao
redor do mundo – constituíam um corpo
de aspectos pessoais e psicológicos
emaranhado a questões declaradamente
políticas da identidade.
Leonilson, profundamente
marcado pela experiência da AIDS,

12
De acordo com Sontag (2007), a doença somente foi identificada no início da década de 1980. Archer (2001)
afirma que o impacto da AIDS no mundo artístico foi profundo e evidente no tipo de obra, concentrada em um
objetivo social, que a arte dos anos 1970 passou a investir.
62

ampliou tal debate acerca das questões da identidade sexual e diferença de gênero (recorrentes
em sua obra) e, de certo modo, escancarou, de forma extremamente delicada e singela, porém
contundente, impactante e cruel – em entrevista à Lagnado (1995), segredou: [...] “acho que
as coisas calminhas cutucam tanto quanto um tiro na testa” (LAGNADO, 1995, p. 88) –, sua
réplica à resposta da sociedade (e, possivelmente, da sua própria subjetividade) ao
homossexualismo e à AIDS, o que pode ser observado na obra O Penélope, de 1993 (Fig. 15).
Ambígua, O Penélope não entrega uma verdade. Ao contrário, a discursividade
estética de Leonilson denuncia uma estratégia da ambiguidade, que intensifica as incertezas
quanto a (e provoca ao tratar de) questões morais, sexuais, religiosas, de identidade e gênero.
Obscuridade de sentido que é lançada pelas técnicas e materiais escolhidos, pelos jogos de
palavras e significados sugeridos. Profano em suas escolhas, Leonilson assume o bordado e a
costura como técnicas por excelência. Atividades por convenção, tipicamente femininas e
tradicionais, mas e também, frequentemente, associadas ao mundo da moda, de caráter
efêmero, fugidio, circunstancial.
O título da obra de Leonilson remete à história de Penélope, personagem da Odisseia
e, por extensão, propõe associações alegóricas com a história pessoal do artista. O bordado (e
sua tessitura/desarranjo) é o artifício arquitetado por Penélope para adiar o reconhecimento da
morte de seu marido Ulisses, consumado logo que ela aceitasse um dos seus pretendentes.
Leonilson, assim como Penélope, parece tecer uma espera. No caso do artista, essa espera
deflagra sentidos múltiplos. A silepse de gênero proposta no título da obra é incisiva: o
penélope reúne os gêneros masculino e feminino num único objeto. A dualidade revela,
simultaneamente, a inversão e o reforço dos papeis sociais: em O Penélope, a espera pelo ser
amado, símbolo do romantismo, da fragilidade e submissão feminina, é reservada a um
homem. Naturalmente travestida em angústia, seria a espera pela pessoa amada a condenação
pelo comportamento “divergente”, assim compreendida a conduta homossexual
(supostamente lasciva)? Coser/construir e desconstruir esse mesmo tecido pode significar,
ainda, a tentativa de ludibriar/suspender a ameaça irredutível da morte – para Leonilson, a
espera da cura para a AIDS ou, quem sabe, a descoberta de um novo tratamento.
O Penélope e outras obras do artista denotam sua tentativa de rebater a resposta da
sociedade à AIDS. Resposta que faz eco às metáforas as quais a doença potencializa e aos
significados que lhes são atribuídos por essa mesma sociedade. “A metáfora”, escreveu
Aristóteles, em Poética (1457), “consiste em dar a uma coisa o nome de outra” (SONTAG,
2007, p. 81). Imbuída de sentidos diversos, a doença se “transmuta” e se transforma em outra
63

coisa: serve de tradução para o medo, preconceito, sofrimento, pavor, castigo, a vergonha,
estranheza, justificativa, culpa.
Metáfora da mortalidade, fragilidade e vulnerabilidade do indivíduo, a AIDS produziu
interpretações nefastas, fantasias sinistras e estigmas sobre “vítimas”, convicções que se
proliferaram no decorrer das décadas de 1980 e 1990. Uma doença “deles”, e não “nossa”–
nítida referência tanto ao estrangeiro quanto à população homossexual, o chamado “grupo de
risco”; Projeções catastróficas e apocalípticas quanto à propagação da doença pelo mundo,
associadas a previsões pessimistas relativas ao controle da epidemia; a doença como
consequência da licenciosidade e da divergência sexual; condenação pela frouxidão moral;
punição à perversão sexual (SONTAG, 2007). Os significados, múltiplos, se desdobram...
Conforme Sontag (2007),

a ‘peste’é a principal metáfora através da qual a epidemia da AIDS é compreendida.


[...] Normalmente, as epidemias é que são consideradas pestes. E essas ocorrências
de doença coletiva são encaradas como castigos impostos. A ideia da doença como
um castigo é a mais antiga explicação da causa das doenças [...] (SONTAG, 2007, p.
112).

A metáfora da “peste gay” (SONTAG, 2007) como castigo se apoia, sobretudo, na


ideia de que a doença, “provocada pelo indivíduo enquanto tal e enquanto membro de algum
‘grupo de risco’” (SONTAG, 2007, p. 114), representa uma espécie de condenação por seu
comportamento “antinatural”, transgressor, incorreto, divergente – assim compreendida a
conduta homossexual e/ou libertina. Nesse sentido, ser portador do vírus HIV – ao menos, nos
idos anos 1980 e 1990 – implica expor e/ou confirmar uma identidade. A experiência de uma
doença, que, frequentemente, é vivenciada pelo paciente13 como algo vergonhoso, no caso
específico da AIDS, é também considerada algo que denota culpa, pois o indivíduo é o agente
da sua própria condição – salvo aqueles que não podem ser considerados responsáveis por sua
doença, como os hemofílicos, pacientes que receberam transfusão de sangue, mulheres
vítimas da “traição” de seus companheiros. “O comportamento perigoso que produz a AIDS é
encarado como algo mais que fraqueza. É irresponsabilidade, delinquência – o doente é
viciado em substâncias ilegais, ou sua sexualidade é considerada divergente” (SONTAG,
2007, p. 98).
Percebe-se, no entanto, que na atualidade houve uma mudança da discursividade a
respeito da AIDS, que passou por um processo de desmistificação e desdramatização, uma
vez que as previsões apocalípticas e os temores profundos, engendrados pelo desconhecido (o

13
Etimologicamente, a palavra “paciente” significa “sofredor” (SONTAG, 2007, p. 107).
64

que se presta como campo fértil à


metaforização), que envolveram a
doença em seus anos iniciais, foram,
de certo modo, se desmantelando e
enfraquecendo – mas, cabe destacar,
não de todo abolidas. Nota-se que o
discurso da AIDS em Leonilson
assume feições diversas em diferentes
momentos de sua produção.
Em trabalhos realizados antes
de o artista se descobrir contaminado
pelo vírus HIV, a doença é abordada
de modo metafórico – esta era apenas
um assombro. Em O homem certo
com o molde certo (Fig. 16), aquarela
de 1990, por exemplo, Leonilson
conjuga a imagem recortada de dois
corpos em intersecção a uma série de
palavras, entre as quais se inserem
desejo, gosto, assombração, solidão,
sintomas, overdose, uma sugestiva
alusão à doença e ao deleite.
O discurso se desvincula desses disfarces metafóricos a partir de 1991, como mostra o
desenho Sem Título, (1991) (Fig. 17), em que o artista dá a ver seu posicionamento (ou
inconformidade?) frente às minorias, entre os quais os homossexuais e aidéticos. Ele parece
encontrar um modo de expressividade que faça eco às suas inquietações (e também às
fragilidades do corpo doente), e, a partir de então, este se apresenta de modo delicadamente
violento. A mensagem de conteúdo ácido é atenuada pela suavidade plástica dos bordados em
voile e dos desenhos de traços simples. Ressalta-se que a experiência subjetiva de Leonilson
efetiva-se como aparelho expressivo capaz de alcançar o outro e manter sua atualidade, pois
longe de se confinar a uma narrativa circunstancial, aponta para questões ainda caras ao
sujeito contemporâneo, como a ética do desejo e dos prazeres, a crise da identidade de
gêneros, o amor homoerótico, a esgarçadura da condição humana.
65

FIGURA 17 - Leonilson, Sem


Título,, 1991Fonte: LAGNADO,
1995, p. 189.

Na última fase da trajetória artística de Leonilson, seguindo a divisão proposta por


Lagnado (1995), a AIDS passa a ser o centro da questão de sua obra. Fato que também é
apontado pelo crítico de arte e amigo de Leonilson, Mesquita (1997):

A AIDS mudou o rumo de sua vida e marcou sua produção artística, conferindo-lhe
uma terminologia final e irredutível. A simplicidade e o despojamento
característicos da sua obra, particularmente do seu desenho, são tensionados pelos
conteúdos que eles vão explicitando: uma morte anunciada [...] e uma intensa busca
de sentido para a travessia da vida. Constrangido nas possibilidades de realização
sexual, a AIDS trouxe-o não para a margem, mas para o centro da questão. A
energia do desejo encontra sua realização amorosa, agora conscientemente, na
sublimação, que forja os interstícios da linguagem (MESQUITA, 1997, p. 13).

Colocado frente à concretude do desvanecimento e da finitude, legados da AIDS,


Leonilson na fase final de sua produção promove um elogio à linguagem do corpo.
66

A transição para a linguagem do corpo irá operar um refinamento tanto do gesto do


artista quanto da escala do seu campo de ação. Os horrores da doença deixam de ser
uma tradicional circunscrição temática para se tornar o aparelho expressivo capaz de
continuar indagando sobre o processo de esgarçadura da condição humana. A junção
das palavras às imagens trai uma certa idealização do mundo (LAGNADO, 1995, p.
55).

O corpo-fortaleza [de Leonilson] sitiado pelo inimigo invasor (SONTAG, 2007),


porém, não é retratado de forma literal (ou em sua totalidade). Tampouco a experiência
vivenciada pelo corpo é objeto de uma transcrição fidedigna. O autorretrato e o gesto
confessional – manifestações da inter/exterioridade postas à superfície – do artista compõem
uma performance corporal e discursiva, que opta por não revelar a figura desfalecida do corpo
doente (garantia de uma apresentação sublime e sublimada?), que esbarra na
dificuldade/impossibilidade expressiva e representativa dos grandes males que assolam o
corpo, que empreende passagens ficcionalizadas e figura hiatos diante do olhar do espectador.
O corpo do artista resiste a uma revelação totalizante e, nesse sentido, a “verdade”
autobiográfica é um descortinar à meia luz. O corpo é entre-visto e a obra recorre a um entre-
lugar, ocupa a função/espaço da inter/subjetividade. As obras El Puerto (1992), descrita mais
adiante (Fig. 24), J.L.B.D. (Fig. 18) e J.L. 35 (Fig. 19), ambas de 1993, por exemplo,
corroboram tal questão.

Um bolsinho com as iniciais do nome próprio bordadas (“J.L.B.D”) ou um saquinho


com a idade (“J.L. 35”) são os relicários que guardam a imagem remanescente após
a morte. [...] Subvertem a noção tradicional do retrato e se tornam objetos
genealógicos, voltados para a identidade do artista, pois trazem a atmosfera dos
restos funerários.
........................................................................................................................................
[...] um trabalho de modesta aparência e modestas dimensões (23 X 18 cm): um
espelho absolutamente prosaico, com moldura laranja, coberto por um fragmento de
pano listrado verde e branco. Nesse pano, recortado de sua camisa usada, o artista
bordou alguns sinais de seu tempo: “Leo, 35, 60, 179, El Puerto”. [...] para ilustrar
essas informações, não há uma pintura, uma fotografia, sequer um grafismo. O nível
de representação foi proibido. No lugar, um desconcertante espelho devolve uma
imagem que recusa a captura (LAGNADO, 1995, p. 57-58).

El Puerto, J,L.B.D e J.L. 35 revelam que Leonilson se expõe às ferramentas de sua


expressão e aos recortes de seu olhar de voyeur (observador de si mesmo e da alteridade de
um corpo doente). Justapõe elementos muito íntimos – isto é, experiências do seu drama
diário, de sua tragédia pessoal – a questões que observa a certa “distância” – os efeitos
pessoais e sociais da doença/epidemia – alegoria da falência de paradigmas médicos e
políticos (LAGNADO, 1995). Seu discurso, embora pareça excessivamente subjetivo,
67

convoca o outro. O espectador é convidado a participar da vida privada do artista, a qual


Leonilson faz questão de expor como produtora de sentidos.

Ao se expor, de modo tão aberto ao espectador, ele incita uma resposta do “outro”. A
intimidade socializada por meio de sua narratividade plástica conduz à “banalização” da
doença, coloca o tema em pauta e ao alcance de todos. A partir de suas experiências pessoais
e através de sua poética, Leonilson eleva questões particulares e as desdobra em temas
universais, o que aproxima artista e espectador, tornando-o cúmplice do universo do artista.
As questões íntimas deixam de ser, somente, de ordem pessoal, uma vez que são
compartilhadas por meio da obra, exposta à apreciação coletiva. Experiência íntima, porém,
de alcance universal – ademais, porque a AIDS já não era mais uma chaga tão alheia.

Nesta etapa final da carreira [...] seu interesse concentra-se na questão do corpo, do
seu próprio corpo feito metáfora, buscando, através da arte, alguma possibilidade de
transcendência. Leonilson se transforma no observador de seu próprio processo,
revelando-se publicamente, o corpo é assumido em sua condição de máquina
desejante, que contém mente e espírito e está em permanente embate com o mundo
(MESQUITA, 1997, p. 16).

A experiência da doença definiu a emergência de novos modos de expressão e


provocou uma mudança substancial na produção estética de Leonilson. O uso de tecidos se
68

intensifica, o bordado e a costura se tornam as técnicas por excelência14, o artista adota uma
economia de materiais e elementos, há uma reconfiguração da dimensão dos trabalhos, que se
tornam menores, o vazio passa a se constituir como um importante recurso de composição da
obra. Paradoxalmente, os elementos agora em menor número e tamanho, parecem realçar e
revelar seu vigor. Há um silêncio e um vazio na obra que geram tensão, desvelam potência e
provocam inquietude.

– Seu gesto sobre a folha de papel está diminuindo enquanto o espaço branco vai se
dilatando. O espaço vazio transcende um problema estético ou gráfico de
composição. Esse branco em volta traz o impronunciável. É como se ele contivesse
uma imagem que ainda não foi revelada.
– É. Esse silêncio é muito poderoso nos bordados. Agora estou gostando de fazer
trabalhos que consistem em apenas dois panos costurados, só o tecido leve, sem
nada. São panos estampados ou listados com uma seda no verso. Mas eles são
vazios. É o que estou procurando (LEONILSON, 1995, p. 117).
........................................................................................................................................
Em sua obra [...] Leonilson [...] acolheu palavras e frases em pinturas, desenhos e
gravuras; lançou mão de procedimentos como a seriação e a repetição de imagens e
arranjos compositivos e indagou o vazio como potência para a possibilidade de
criação de significados (FREITAS, C., 2010, p. 23).

Didi-Huberman (2010) pontua sobre esse esvaziamento quando discorre sobre o “jogo
com o fim”, compreendendo-o como um jogo da forma, jogo de construção, um jogo irônico
erigido sobre o fim; o pensar e o fazer artístico como ação no “limiar do seu próprio fim”.

[...] seria a imagem aquilo que resta visualmente quando a imagem assume o risco
de seu fim, entra no processo de se alterar, de se destruir ou ainda de se afastar até
desaparecer enquanto objeto visível? E para tanto não será suficiente elaborar a falta,
dar forma ao resto, fazer do ‘resto assassinado’ um autêntico resto construído?
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 254).

É o que parece ocorrer na produção de Leonilson, quando marcada pelo “espírito” da


AIDS. A doença molda, impele fendas à linguagem. A construção de sentido na obra se
desenvolve a partir de jogos que sugerem um confronto entre vida e morte, presença e
ausência. Tais noções são evocadas nos gestos, nas formas, pelas peças de roupas e de uso
cotidiano, pela diminuição do tamanho dos trabalhos; nos materiais e procedimentos
utilizados – pedaços de tecidos, economia de elementos e a proposta de representação do
vazio; títulos e inscrições feitas nas obras – dados pessoais do artista (nome, idade, altura,
peso), cicatrizes, referências à doença. A perda/urgência da vida parece se impor.
14
O bordado é testemunha e cúmplice de Leonilson frente à sua debilidade física; significa a possibilidade de
continuidade expressiva do artista interpelado pela doença.
69

A obra 34 com Cicatrizes (Fig.


20) elucida tais assertivas: o tecido
transparente em voile, o vazio e os
elementos visuais exploram a
identificação entre imagem e doente.
As simbologias que são dadas,
especialmente, pelo número 34 –
idade de Leonilson na ocasião – e
pelas cicatrizes – marcas de lesões,
que podem ser ao mesmo tempo,
reminiscências de dores e angústias
sofridas pelo sujeito ao longo de sua
vida e/ou sinais de procedimentos
médicos a que foi submetido o
paciente.
O desdobramento da doença
em imagens-palavras na obra de
Leonilson acontece de modo
delicadamente arrebatador. Na
escolha dos títulos e/ou as palavras inscritas: “O Perigoso”, “mentiroso”, “empty man”,
“Perversos inocentes”, “The Game is Over”, “Mesma Saliva, Mesmo Veneno”, “Lázaro”,
“Leo, 35, 60, 179”, “El Puerto”, “da falsa moral”, “ninguém”. E na construção das
imagens/objetos: uma gota do próprio sangue contaminado, caveiras, coração, pulmão,
espelho, esqueleto, cicatrizes, roupas, crucifixos, rosários, flores e espelho.
A resposta de Leonilson à AIDS parece se configurar como uma espécie de discurso
de (desejo e) redenção, ato de contrição estabelecido por meio da obra de arte. A religiosidade
é um dos veios da sua expressão. Alguns de seus trabalhos (e procedimentos) não podem ser
totalmente esvaziados de sua força religiosa – claros sinais de sua formação católica. Tal fato,
contudo, se evidencia no período final de seu percurso artístico. A condição de Leonilson (a
doença e a iminência do fim da vida) é terreno propício para o florescimento/emergência de
um discurso religioso, imerso na espiritualidade. Doente, o artista chegou a comparar a sua
produção a uma oração, uma espécie de gesto de cura – “O trabalho me ajuda. Nele, coloco
minha força. Ele não me deixa esmaecer. Fico fazendo esses trabalhos como orações [...]. É
70

como uma religião que fornece os símbolos” (LAGNADO, 1995, p. 119). O último trabalho
de Leonilson, a instalação Los Delicias (Fig. 21) ilustra a questão.

FIGURA 21 - Leonilson, Los Delicias, 1993. Instalação na Capela do Morumbi.


Fonte: LAGNADO, 1996, p. 65-68; SALGADO, 1999, p. 83.

Apresentada na Capela do Morumbi em 1993 e reconstituída na exposição Sob o peso


dos meus amores (2011), Los Delicias é composta por objetos, tecidos e peças de vestuário.
Grande parte da força desse trabalho reside no ambiente escolhido por Leonilson para abrigar
a instalação. A capela – espaço amplo e silencioso, primorosamente organizado e asséptico –,
ao mesmo tempo em que patenteia a sacralização da obra, compõe o cenário ideal para a
proeminência de um discurso transgressoramente profano – e quiçá, de redenção. Duas
camisas desgastadas pelo uso (com mangas mais longas que o normal, que se arrastam pelo
chão, o que as deixa com uma aparência triste), com as inscrições bordadas “da falsa moral” e
“do bom coração” vestem um par de cadeiras (seria um casal?) que ocupam o altar, expõem a
provocação e a ironia frente à moral e à subjetividade produzida pelo cristianismo. Uma
cadeira forrada com tecidos, cuja forma se assemelha a uma saia, exibe bordada a expressão
“los delicias”, uma menção aos prazeres terrenos, à profanação da vida e ao deleite; uma arara
de metal que sustenta pedaços de voile branco e laranja, delicadamente costurados – tecidos
diáfanos, cujos sentidos revezam entre a singeleza e a pureza do branco e a vitalidade e a
sugestão sensual proporcionada por cores quentes, como o laranja; e duas camisas unidas pela
barra que possuem a inscrição “Lázaro” – uma referência ao personagem bíblico ressuscitado
71

por Cristo alguns dias após a sua morte – reafirmam a fragilidade do corpo doente, denotam
esperança e clamam o “apelo para uma desesperada infinitude” (LAGNADO, 1995, p. 64).
No último trabalho criado por Leonilson, “[...] o valor simbólico da obra é construído
por palavras e matéria” (FREITAS, D., 2011). Em Los Delicias, palavra e matéria
concretizam as ideias de finitude, romantismo, religiosidade, “prazeres terrenos”, evidenciam
a desmaterialização do corpo e, simultaneamente, evocam através da ausência, sua passagem,
registram a presença daquele que vela uma travessia e busca perpetuar uma vida que se esvai.
A obra é testemunho da existência, fragilidade e transitoriedade do corpo, uma relação
metonímica com o corpo, uma poética que joga com a vida e a morte. O indicativo de
utilidade das camisas complementa o processo de significação da obra: Leonilson usa/(re)cria
objetos que, por convenção, são destinados ao corpo, tornam “manifesta” a presença de um
corpo, embora este esteja ausente. Parece-nos, assim, que Los Delicias exibe a intrincada
sincronização entre vida e arte na produção do artista.

FIGURA 22 - Manuscrito de
Leonilson, Caderno, 1989.
Técnica variável, 15 x
10,7 x 1 cm.
Fonte: Projeto Leonilson

A produção de Leonilson, extensa (apesar da breve carreira) e heterogênea em sua


constituição, abriga, além das obras propriamente ditas, cartas, notas de viagem, agendas,
manuscritos, esboços, estudos, desenhos. Elementos que preservam/desvendam traços do
projeto estético do artista, como mostra o texto-imagem (Fig. 22). Fotos, móveis, miniaturas,
brinquedos (Fig. 23) e livros mantidos na sede do Projeto Leonilson – isto é, objetos
72

fetichizados pelo uso pessoal do artista – des/revelam dados sobre seu perfil e sua história, e
também permitem entrever dados constitutivos de sua narrativa artístico-temporal.

FIGURA 23 - Acervo pessoal de Leonilson.


Fonte: Projeto Leonilson

A “narrativa” de vida de Leonilson está impressa em conteúdos documental e


simbólico. Manifesta em sua obra, tal narrativa (nada linear, trajetória sem começo, meio e
fim precisamente demarcados) denota uma vida intervalar e se estrutura nos fragmentos com
tessituras marcadas por detalhes que acabam por se revelar como significantes. Uma
“escritura” biografemática, de acordo com a concepção de Barthes (2005).

[...] se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse,
pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns
gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade
poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos
epicurianos, a algum corpo futuro, prometido a mesma dispersão; uma vida
esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um
filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens [...] é
entrecortada, à moda de soluços salutares pelo negro apenas escrito do intertítulo,
pela irrupção desenvolta de outro significante: o regalo branco de Sade, os vasos de
flores de Fourier e os olhos espanhóis de Inácio (BARTHES, 2005, p. XVII).

O biografema – embora o termo esteja imbuído de uma carga de imprecisão – pode ser
compreendido como uma escritura que deixa ver e, ao mesmo tempo, oculta, encobre e
descortina, cujo corpo se constrói nas intermitências, numa espécie de jogo de aparecimento-
desaparecimento. A escritura ganha potência nos fragmentos, nas fissuras, nos interstícios,
73

que desafiam a composição de um todo determinante. No caso de Leonilson, o biografema é a


vida – em toda a sua latência de sentidos, potencialidade de desvios, não linearidade,
tenuidade entre o ocorrido e o imaginado – transformada em escritura-plástica. Leonilson
desdobra sua vida (e a vida do outro) em arte, conforme destaca a pesquisadora Maria Esther
Maciel (2011), em sua participação no Seminário A Obra Como Arquivo, na exposição
Leonilson: Sob o peso dos meus amores:

[,,,] ele nos deixa uma espécie de diário de mundo em que viveu e também da sua
própria história pessoal. [,,,] Um diário que não se coloca propriamente sobre o
amparo das datas, mas se abre aos fluxos da contingência e aos desvios do acaso,
configurando-se como uma tela sem moldura. A narrativa autobiográfica que ele
esboça, pela via do precário e do efêmero, dá-se assim menos como figuração do
que como fulguração do vivido (MACIEL, 2011).

A potencialidade narrativa das palavras-imagens-objetos de Leonilson confere ao seu


“arquivo” memorial muitas incertezas e possibilidades interpretativas. Sua história (como a de
qualquer indivíduo) é múltipla, arranjada por fragmentos, descontinuidades, documentos,
registros, imaginação criadora, casualidades. A articulação entre vivência e expressão artística
é, portanto, uma prática nebulosa, ambígua, enigmática. Sua vida-obra é um exercício que se
ergue nas fronteiras do individual, social, real, da ficção, do aparecimento, apagamento,
consciente e inconsciente. Mas a evidência quanto ao cunho biográfico de sua produção, se
apoia no rastreamento, além do arquivo pessoal do artista, de arquivos afins, pistas fornecidas
por outros registros de memórias, como a bibliografia existente sobre sua vida-obra, a
documentação de exposições individuais e coletivas, o acervo jornalístico, os registros
memoriais de familiares, amigos, artistas, críticos de arte, entre outros.
Ademais, sem desconsiderar variáveis que podem contribuir para a constituição de
textos que emitam uma visão distorcida (ou até idealizada) do artista, a inserção deste e de sua
obra nas artes e no pensamento cultural da época, a configuração dada à divulgação e estudo
de sua obra, as práticas de ampliação das linguagens e a interface entre imagem e texto
explorada pelo artista, se revelam como pontuais para fundamentar a
categorização/caracterização biográfica da obra de Leonilson.
O artista, ele próprio, reflete sobre a simultaneidade entre arte e vida, em declaração
ao documentário Com o Oceano Inteiro Para Nadar (1997): “O meu trabalho é o meu ponto
no mundo, é para onde eu corro. O meu trabalho é a minha observação sobre mim mesmo”.
74

15
(COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997) . Leonilson fala em primeira
pessoa. É a partir de sua vida pessoal que o artista empreende seu exercício de formalização
plástica, cujo leitmotiv é sua dor, inquietude e melancolia. O desejo de aprofundar certas
questões da esfera privada, todavia, tropeça na inefabilidade da própria linguagem. Vencer as
sinuosidades do indizível sem sucumbir às armadilhas da pieguice e da retórica não é tarefa
fácil. Feito que Leonilson alcançou ao tratar de amor, desejo e morte.
A palavra, elemento plástico por excelência, introduzido já nos primeiros trabalhos do
artista revela a tentativa de superar tal dificuldade e desenvolver visualidade ímpar. Assim
sendo, a produção de Leonilson é marcada pela presença constante (diria, quase compulsória)
da palavra/texto em diálogo com as imagens; melhor dizer que aqueles se integram às
imagens.

[...] A palavra se localiza em sua obra, livre, sem amarras desobedecendo a regras de
sintaxe ou gênero, porém como meio de diálogo entre as imagens, ao incorporar-se a
elas numa fusão visual. O recurso gráfico por ele utilizado evidencia um caráter
intermidiático, pois em suas construções “poético-visuais” há um diálogo entre artes
plásticas e literatura, que se revela principalmente através dos títulos que condensam
uma grande força narrativa (“voilà mon coeur – ouro de artista é amar bastante”, “O
pescador de palavras”, “O inconformado”, “São tantas as verdades”, “Rios de
palavras”, “Todos os rios levam a sua boca”, “Leo não consegue mudar o mundo”,
“Para meu vizinho de sonhos”, “Longo caminho de um rapaz apaixonado”, “O que
você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto pra servi-lo”, “Bom rapaz em
embalagem ruim” e etc) (CASSUNDÉ, 2009).

É possível dizer que a palavra em Leonilson tem um caráter “marginal”. O artista


desloca, subverte o seu uso. A escritura de Leonilson, tal qual afirma Barthes (2008),
evidencia rupturas (e/ou colisões): “códigos antipáticos entram em contato; neologismos
pomposos e derrisórios são criados; mensagens pornográficas vêm moldar-se em frases tão
puras que poderiam ser tomadas por exemplo de gramática” (BARTHES, 2008, p. 11).
Leonilson explora e potencializa as fendas entre a margem subversiva e a canônica da
linguagem, desenhando de modo contundente os contornos da sua própria linguagem.
Um olhar panorâmico pela produção do artista revela que a palavra sempre esteve
presente em sua obra: da primeira assemblage, de 1972, passando pela figuração inicial e do
fim da década de 1970 até a produção da fase final de vida do artista, no início dos anos 1990.
(CASSUNDÉ, 2011).

15
Não existe norma específica para citações diretas de trechos de documentos áudio-visuais. Portanto, nesta
dissertação, optamos por utilizar, em destaque, o título do filme ou reportagem, seguido do nome do autor da fala
e do ano.
75

De acordo com a Linha do


Tempo, da exposição Leonilson - Sob
o peso dos meus amores, sua primeira
obra, Mirro, de 1972 (Fig. 24), “é
composta de uma caixa de madeira
que acondiciona uma assemblage
formada por tecido (parte de uma
roupa sobre a qual surge, bordada em
outro suporte, a palavra “mirro”),
papelão, feltro e latão” (LEONILSON
– SOB O PESO dos meus amores,
2011). O autorretrato Mirro (o
primeiro bordado) deixa ver: a
inscrição "mirro", uma referência à
palavra francesa “mirroir”, sinônimo
de "espelho"; a palavra bordada no espaço delimitado da tela, compondo a imagem (o
desvelar da dimensão plástica da escrita); o léxico próprio do artista indicado pela palavra
(ins)escrita – um jogo com a língua?; a provocação do título, potencializado pela natureza da
obra, um autorretrato.
Mirro é imagem, em sua qualidade de representar uma aparência – dada, sobretudo,
pela indicialidade da palavra. Palavra bordada que se apresenta no trabalho não apenas como
denotação, mas, e em especial, como elemento edificador da forma. É metáfora, enquanto
reporta à presença do indivíduo. As inter-relações estéticas entre palavra e imagem são
manifestas.
Ademais, a obra suscita uma discussão (curiosamente, ainda vigente) sobre a condição
e identidade da arte contemporânea, uma vez que remete às teorias de Platão e Shakespeare
que, nas vozes de Sócrates e Hamlet, enunciaram a tese de que “a arte é um espelho da
realidade” (DANTO, 2010, p. 42). Para Danto (2010), ao sugerir a arte como mimese,
possivelmente, Sócrates estivesse ironizando e expressando sua perplexidade diante da
definição (um tanto inócua) de arte como simulacro de uma realidade preexistente. Hamlet
também usou a metáfora, mas atentou-se à propriedade cognitiva do espelho de permitir ao
sujeito visualizar a si mesmo. Focando a assimetria dos reflexos no espelho, Hamlet afirmou
que “os espelhos e, por extensão, as obras de arte, em vez de nos devolverem o que podemos
conhecer sem eles, são instrumentos de autoconhecimento” (DANTO, 2010, p. 44). Ambas as
76

metáforas são bastante apropriadas à análise do exercício plástico de Leonilson em Mirro,


sobretudo, porque permitem elucidar a questão da presença do “eu” como um objeto que se
expõe desde o início de sua trajetória artística. A metáfora do espelho e do “eu” – embora se
acredite que as reflexões possam aí ser ampliadas –, mas, dessa vez, aportada pelo uso do
próprio objeto espelho como matéria constitutiva da obra, será novamente explorada pelo
artista em El Puerto, obra de 1992 (Fig. 25).
Em El Puerto, sobre um espelho
pintado de laranja nas bordas, o artista
sobrepôs um pano listrado, onde bordou seu
nome – Leo; sua idade – 35 anos; seu peso –
65 Kg e sua altura – 1,79 m. Em entrevista à
Lagnado (1995), Leonilson comenta que
nunca gostou muito de se olhar no espelho
porque não via necessidade. Assim, ao que
parece, não era a imagem narcísica que o
artista buscava explorar na obra e sim o que a
imagem poderia revelar sobre a passagem do
tempo e a experiência do corpo em mutação
– nesse caso, especificamente, em
decorrência das manifestações físicas da
doença e da iminência da morte. El Puerto é
um autorretrato que, no entanto, se configura
como uma negatividade: o tecido à frente do
espelho sugere a ideia de encerramento, alegoria da morte dada pelo véu que, frequentemente,
cobre a urna; a imagem do artista, obstruída pelo tecido, uma espécie de sudário, revela a
existência de um corpo, esse substituído pelos dados biográficos referentes ao indivíduo. O
que sobra da imagem é a evidência de uma ausência. Intimista – sem, contudo, cristalizar a
imagem de Leonilson –, El Puerto torna visível o “eu” em trânsito.

O que se percebe na produção de Leonilson é que a inserção obstinada e definitiva da


palavra em seu trabalho, para além da incursão plástica, tem uma estreita relação com a sua
realidade. Embora se note a presença da palavra e o texto desde os trabalhos iniciais do
artista, Leonilson afirma que “nos desenhos de 1989 a palavra entrou realmente nos trabalhos.
77

Eu estava muito apaixonado. Ficava sozinho, sem saber direito o que fazer. Então pensei em
escrever nos desenhos em vez de ficar escrevendo em cadernos” (LAGNADO, 1995, p. 110).
Seus desenhos – na realidade, desenhos-escrita –, que ilustraram a coluna da jornalista
Barbara Gancia, Talk of the town – o ti-ti-ti da cidade, do jornal Folha de S. Paulo, de 1991 a
1993, por exemplo, retratam a visão do artista sobre acontecimentos marcantes da época, mas
não somente. Sua produção é uma narrativa sobre o tempo contemporâneo, contudo,
simultaneamente, remete ao imaginário social do artista – o que constitui por extensão a
temática de seus outros trabalhos, marcados pelo seu imaginário pessoal (MESQUITA, 1997).
Para ilustrar tal fato, é possível citar o
desenho (Fig 26) que acompanha a crônica
Mauricinho é o troglodita arrumadinho,
publicada em 30 de outubro de 1991, na qual
Leonilson aborda, concomitantemente (e de
modo ácido), a questão da (in)evolução do
sujeito e seus dúbios invólucros, levados a
termo pela posse de objetos de moda, e a sua
própria condição, um “patinho feio” e sua
aparente fragilidade frente a objetos de
desejo/consumo. As imagens-palavras
“constituem uma espécie de diário aberto,
tornado público semanalmente, no qual
Leonilson testemunha, de uma forma
imediata, a sua participação no seu tempo”
(MESQUITA, 1997, p. 10).
Os desenhos, além de se conectarem
às crônicas – ora ilustram, complementam,
reverberam e ora se justapõem –, expressam o ponto de vista do artista sobre a condição do
cidadão e as questões nas/com as quais este se vê inserido e/ou em confronto no dia a dia.
Em Os jovens adoram ter pés de roquefort, de 25 de setembro de 1991, texto que se
refere à moda entre a juventude dourada e consumista de usar caros tênis importados, o
desenho apresenta figuras elevadas, mais altas do que a média da população, porém, elas estão
aterrorizadas por pivetes que lhes roubam estes objetos de desejo para também estarem na
moda. Em outro trabalho, o retrato da apresentadora Xuxa Meneghel (Fig. 27), em 02 de
outubro de 1991, representa a “rainha dos baixinhos” com suas botas brancas, saia curta e
78

lágrimas nos olhos, acompanhada da


expressão “já era querida”, indicando o fim do
modelo de diversão educativa e responsável
que ela criou (MESQUITA, 1997).
Entre as características marcantes do
trabalho de Leonilson estão o caráter visual da
linguagem verbal e o aspecto verbal da
imagem – suas obras são um emaranhado de
signos visuais e verbais. A palavra/texto induz
imediatamente à formação de imagens visuais,
bem como a imagem revela traços de
escritura.

As palavras-textos, nos espaços dos construtos


artísticos, eles se tornam indissociáveis das imagens a
que se vinculam, configurando-se como textos
predominantemente visuais; mesmo os títulos são parte
estrutural das obras que designam, mantendo com estas
um diálogo estreito em que a palavra potencializa a
imagem de forma recíproca (MACIEL, 2011).

Leonilson trabalha com inter-relações estéticas. Em sua obra, palavras e expressões


escritas em desenhos, pinturas, gravuras e “bordados” testemunham a presença da poesia para
tratar de um universo interior (FREITAS, C., 2010). Sua obra é marcada pela presença
constante da palavra/texto em interação com as imagens; mais acertadamente, a imagem se
coloca justaposta ao texto, e vice-versa. Além disso, Leonilson possui uma extensa
(eventualmente divulgada e não compilada) produção escrita – escrita poética, cabe ressaltar.
Tal prática sanciona e reverbera o processo de insubstancialidade da arte (iniciado nos
anos 1970), quando a palavra foi, definitivamente, legitimada como material de composição
das obras de arte – como vimos no primeiro capítulo desta dissertação, Archer (2001) destaca
que pinturas e esculturas deram lugar a documentos, fotografias, mapas, lista de informações
na obra, entre outros. Reincidente na obra de arte, a palavra passou a constituir ela mesma a
obra.
O exercício verbo-plástico da escrita e as fricções entre imagem e palavra foram
(antes) para Leonilson mais do que uma relação entre forma e material, prática e
interpretação, imagem e comentário. Tal exercício está diretamente relacionado a um
79

discurso. Assim sendo, a noção e as proposições de discurso propostas por Foucault (2004)
parecem oportunas para clarificar tal afirmação.
Com isso, Archer (2001) enfatiza que o filósofo declarou ser preciso compreender o
discurso não como um conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos
ou representações), mas sim como “práticas que sistematicamente formam os objetos sobre os
quais falam” (FOUCAULT apud ARCHER, 2001, p. 86). De fato, em A Ordem do Discurso,
Foucault (2004) desmistifica a ideia do discurso como reunião de signos, como significantes
que se referem a determinados conteúdos, carregado de significados, quase sempre oculto,
intencionalmente distorcido, marcado por intenções, conteúdos e representações, escondidos
nos e pelos textos, não imediatamente visíveis, sub-reptícios. E, inversamente, destaca o nível
de existência das palavras, das coisas ditas, isto é, o próprio discurso, considerando a
(inconteste) complexidade que lhe é característica – embora o teórico não deixe de considerar
que em todo discurso explícito há também um discurso oculto, que cada enunciado se
ampliaria com tudo aquilo que ele próprio não seria capaz de dizer.
Ao afirmar o discurso como prática, Foucault (2004) compreende que esse põe em
funcionamento enunciados e relações, ou seja, relações históricas e práticas sociais concretas
se “vivificam” e se materializam nos discursos – a linguagem é constitutiva de práticas, as
palavras são construções de uma produção histórico-política. Nesse sentido, o discurso
ultrapassa a simples referência a coisas, existe para além da mera utilização de letras, palavras
e frases e não pode/deve ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo.
Enquanto prática, o discurso possibilita que as ideologias se materializem e está, portanto,
imerso em relações de poder – o que explica as coerções a que está sujeito, como esclarece
Foucault (2004).

Tudo se passa como se interdições, supressões, fronteiras e limites tivessem sido


dispostos de modo a dominar, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso.
[...] tudo se passa como se tivessem querido apagar até as marcas de sua irrupção
nos jogos de pensamento e da língua. Há, sem dúvida, em nossa sociedade e,
imagino, em todas as outras mas segundo um perfil e facetas diferentes, uma
profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa
de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de
violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse
grande zumbido incessante e desordenado do discurso (FOUCAULT, 2004, p. 50).

A ideia de linguagem como poder é igualmente defendida por Blanchot (1987) e


Barthes (2005). Blanchot (1987), no entanto, afirma não ser a arte uma linguagem a serviço
do poder; ao contrário, ela seria uma “linguagem sem poder”, contrapondo-se à “linguagem
do poder”, contida em outros modos de manifestação. Para além da elisão da realidade, do
80

jogo dos signos posto em ação e da inscrição na ordem do significante (FOUCAULT, 2004),
Leonilson propõe suplantar o discurso do poder pelo discurso do desejo. Seu discurso “não
disciplinado” se preconiza ao “desejo de dizer” e faz entrever os arranjos de constituição de
seus enunciados. O objeto de seu discurso existe (e emerge) sob condições históricas
específicas, na dinâmica de um feixe de relações singulares, assinalado por fatos de uma vida
“real”, transformada em obra de arte, como mostra, entre outras obras, a série de desenhos O
Perigoso (Fig. 28), de 1992.

FIGURA 28 -
Leonilson, O
perigoso, 1992.
Tinta preta e
sangue sobre
papel.
30,5 x 23,0 cm
Fonte: Projeto
Leonilson

Legenda: Imagem em detalhe da obra O perigoso

Uma das mais evidentes demonstrações da fragilidade do artista, estes desenhos fazem
referência à AIDS que, na última fase de sua trajetória, é “alçada a uma dimensão alegórica”
(LAGNADO, 1995, p. 54). A obra reflete a noção em Foucault (2004), de que o discurso
opera num contexto histórico-social, marcado por relações de poder. O tema escolhido por
Leonilson, além de se constituir como um veículo de expressão subjetiva, trata de questões
políticas e, por isso, está, naturalmente, envolto em interdições das mais diversas ordens e
campos. Numa atitude subversiva, no entanto, Leonilson eleva o discurso do desejo e postula
sua denúncia.
81

No conjunto da obra, o artista associa a doença a uma variedade de flores – margarida,


prímula, lisiantros (sic), copo de leite – numa composição com o buquê de lírios, símbolo
cristão da inocência e da morte, que aparece em obras anteriores. A obra caracteriza o período
da economia de materiais, gestos e procedimentos, que marcou a produção de Leonilson a
partir do final dos anos 1980. O primeiro desenho da série é, indubitavelmente, o mais
contundente: uma folha branca de papel, no centro, em tamanho reduzido, uma gota de sangue
(do sangue contaminado de Leonilson), tendo como invólucro a expressão “o perigoso”,
escrita em nanquim.

O primeiro desenho desta série tem a identidade de um corpo de delito: uma simples
gota do próprio sangue contaminado. O que poderia agora configurar uma armadilha
da literalidade (do uso de um sangue perigoso à singela representação de um rosário)
relata a dor do traço que, mesmo débil, não sucumbe à autopiedade (LAGNADO,
1995, p. 54).

O sangue, contaminado, aqui se presentifica como uma aparição paradoxal: símbolo


de vida e morte, de permanência e finitude, real e imaginário. Invisível, tácito, realidade
insensível, porém, potente e pontual na constituição da obra, é o corte físico a que se
submeteu o artista para construir o trabalho. Realidade transposta para o universo da
representação artística.
Mais do que um tema de sua produção, para Leonilson, a doença se apresenta como
um instrumento expressivo, vigorosamente capaz de tratar do processo de esgarçadura da
condição humana – nesse caso, a sua própria condição. Uma questão sobre o “real” se coloca:
ainda que se apresente como literalmente real (um sujeito desfalecente, de existência fugaz,
uma gota de sangue contaminado pelo vírus da AIDS), seria “o perigoso” um personagem de
ficção – alguém que representa a si mesmo? A referência tão visceral à doença e sua condição
física poderiam ser apontadas como uma tentativa de sentir a “realidade” como uma
“virtualidade”? A doença acontece no espaço branco da tela, é (também) uma ficção. Corpo e
obra se juntam num jogo de complementariedade – o real, o imaginário e o simbólico,
conforme explicita a psicanálise.
Em sua busca perene de expressão, Leonilson privilegia (e utiliza como matéria-
prima) a coabitação das linguagens no espaço da tela (da folha de papel, da lona, do tecido...),
essas que se amalgamam. Palavra = imagem = palavra. Imagem escrita, por meio da qual
Leonilson busca suplantar sua impotência frente ao mundo. Leo não consegue mudar o
mundo, mas consegue reservar um lugar para suas perturbações e estas encerram uma
plataforma de discussão. Sua captura do mundo emerge como obra de arte. Do encontro com
82

suas próprias questões, da escuta da voz que chega do seu ser, do seu corpo, Leonilson faz
arte e faz da sua arte, denúncia. A impotência se transforma em potência.
De difícil apreensão, por vezes, a obra de Leonilson parece demasiadamente
complexa. Pode-se inferir, enfim, que tal fato diz respeito à própria natureza ambígua e opaca
do objeto – traço característico da arte contemporânea e também da produção do artista,
conforme suas próprias palavras: “Os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma
verdade diretamente, mas mostram uma visão aberta” (PEDROSA, 1995, p. 20) –, a obra
resiste à objetividade e precisão. Pois é a partir desse caráter múltiplo do objeto, que se
inscrevem as análises realizadas: da inquietação frente aos elementos constitutivos da obra –
em especial, a produção da fase final da vida do artista – e à codificação artística criada por
Leonilson, que desafiou o percurso usual da arte e empreendeu seguir rumo próprio. Caminho
esse determinado por sua história pessoal e pelos laços que o sujeito-artista estabeleceu com o
mundo, em que vida e obra, intimamente conectadas, possibilitaram (mutuamente) a
existência do sujeito e a experiência da arte – questões sobre as quais o próximo capítulo irá
abordar.
83

CAPÍTULO III

VIDA E OBRA COSTURADAS NUM ÚNICO TECIDO

Eu me ponho a cismar.
Sensações e desejos
foi o que eu trouxe à Arte;
apenas entrevistos, alguns rostos e linhas; de amores
incompletos,
só a incerta lembrança. A Ela entrego-me, que sabe
afeiçoar a Forma da Beleza,
e quase imperceptivelmente, completar a vida
unindo as impressões, unindo os dias.

(Konstantinos Kaváfis)

A arte de Leonilson é linguagem que costura num mesmo tecido, experiência e


criação, o artista faz tocar, no extremo, os limites entre vida e obra. Autobiográfica e visceral,
sua produção acomoda questões caras ao sujeito-artista, imputa e é interpelada pelo encontro
deste consigo mesmo, com o outro, com o mundo. Sua percepção de mundo conforma uma
obra singular que, ao que parece, emerge de uma compulsão e vontade de expressão e de uma
ausência ou lacuna que solicita ser preenchida, sentida pelo sujeito como intenção de
significar, que faz da tarefa, para realizar a intenção significativa, o próprio percurso para
preencher tal vazio. Nesse sentido, a arte de Leonilson se amalgama à sua vida e cria um
estilo de vida, constitui a possibilidade do sujeito de inventar (se) uma resposta às imposições
do existir. É condição para o sujeito resistir às suas diferenças com o mundo, à dor de existir
encarnado num universo, no mínimo, impiedoso.
Fruto de uma necessidade, que empurra violentamente à ação e viabiliza
reciprocamente a existência do sujeito e a experiência da arte, a obra de Leonilson é
interioridade externalizada. Carregada de um sentido que toma de empréstimo a vida do
artista, a condição de existência da obra é a experiência de uma vida que se interpreta a si
mesma (e faz-se/torna-se obra). Em sua experiência criadora, Leonilson discorre sobre a vida,
e (notadamente) sobre a sua própria existência. Protagonista em sua obra, sua história é a
potência fundadora de sua poética. Em uma de suas declarações sobre a arte, Leonilson fez a
84

seguinte afirmação: [...] a vida e a arte fazem parte do salto no abismo que eu resolvi dar. Para
viver eu preciso pintar.” (SPRAY JET, Leonilson, 1985).
Conforme mostrado ao longo do trabalho, obra e vida são indissociáveis na produção
de Leonilson. O próprio artista reconheceu a característica autobiográfica de seu processo de
criação. Os trabalhos funcionavam, nas suas palavras, como caderno de anotações, isto é,
como diários íntimos – “Eu acho que eu fico o tempo todo falando de mim, parece que só
existe eu” (COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997). Obra, vida e corpo estão
emaranhados, ainda que, por vezes, estes sejam parte de um jogo cuja regra hesita entre se
exibir e se esconder. A presença do artista na primeira pessoa é descortinada pelos temas
abordados e procedimentos artísticos empregados em sua produção. O amor, os amantes, as
suas desilusões, as viagens, as relações afetivas, suas angústias, a homossexualidade, a
religiosidade, a morte são alguns dos motes através dos quais Leonilson se oferece ao olhar do
espectador. O tecido, o bordado e a costura, procedimentos eleitos, por excelência, pelo artista
– e que permeiam a sua produção do início ao fim – são referências explícitas (e declaradas) à
sua história familiar: o pai comerciante de tecidos, o quarto de costura que a família tinha em
casa e as influências de sua origem nordestina. A inscrição de textos e palavras, portadores de
significado essencial ao sujeito e à obra, é pura confissão – conforme Leonilson, em entrevista
concedida a Lagnado (1995), “a realidade da palavra (em sua obra) é totalmente
autobiográfica” (LEONILSON, 1995, p. 110).
Em sua produção, o artista extravasa seus sentimentos e emoções, dá forma à obra a
partir das perturbações que acometem o sujeito Leonilson, mas e, simultaneamente, trata dos
dilemas do homem contemporâneo, como afirma Lagnado: “É um trabalho que traz as
ressonâncias de uma série de inquietações em relação ao comportamento das pessoas naquele
determinado momento” (COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997). Leonilson
observa o mundo a partir de si e em relação ao outro como se investigasse a sua própria
prática artística através de experiências vividas (e também de não vividas) e sua
observação/percepção se materializa em obra.
A obra de Leonilson revela linguagem própria, espelhada e determinada pelas
relações, pelos laços entre o sujeito-artista e o mundo. Os signos que se manifestam ao olhar
do espectador – esses, agentes da obra enquanto totalidade tangível –, revelam um inventário
de experiências, um modo estrutural ímpar com que Leonilson sustenta a cerzidura de seu ser-
estar no mundo.
O acontecimento de uma obra, enquanto obra, está precisamente nesse processo que se
dá entre um “eu” e um “outro”. Na produção de Leonilson, esse “encontro” é promovido,
85

especialmente, pela via da expressão da vida íntima do artista posta à mostra ao olhar
apreciativo dos espectadores; mas, e também, pela abordagem de temas universais, objetos de
reflexão do sujeito na contemporaneidade. Caminho de interlocução possível para que se
firme uma espécie de contrato entre artista, obra e espectador – e a obra aconteça enquanto
tal.
Leonilson elevou o gênero do autorretrato e conseguiu, por meio da subjetividade,
alcançar questões existenciais cruciais para o sujeito contemporâneo. A sua solidão, a busca
inconteste de um amor, o conflito entre religião e a vivência dos prazeres, a sexualidade
“divergente”, tudo acabou se transpondo para a materialidade da tela. Um discurso sensível,
irônico, sutilmente político e politizado – frequentemente, e de forma equívoca, suscetível a
idealizações românticas e classificações sentimentais. Talvez aí resida a força do seu discurso
que, por conta da sutileza, carrega uma potência de permanência e durabilidade. Mensagem
que é revitalizada e se fortalece nos vários momentos em que o sujeito é acuado por tais
questões.
Leonilson superou de modo sublime o desafio (e o ímpeto subjetivo) de expor sua
intimidade e tratar de objetos impregnados de delicadeza, como o amor, desejo, a solidão, a
sexualidade – esses tão sujeitos à pieguice e aos artifícios da banalidade. O artista, que
desenvolveu uma linha de expressão, conseguiu, com propriedade, articular a subjetividade.
Suas composições fundaram uma estética capaz de alojar tais temas sem se configurar como
sentimentalismo extremo. Ao contrário e de modo paradoxal, sua obra, disfarçada em
delicados trajes, sustenta uma mensagem violenta, potente, ácida, corrosiva, visceral.
Palavra, texto e elementos estéticos e plásticos da arte e do campo das práticas da
tradição doméstica, do fazer manual – traços marcantes do arranjo artístico proposto pelo
artista – foram organizados de modo acurado para compor um todo significante. As obras
produzidas na fase final de sua vida, sobretudo, alcançaram primorosa organização formal – a
tríade conteúdo, forma e material se justapõem em perfeita conexão – e revelam maturidade
artística.
Os trabalhos de Leonilson são deliberadamente indefinidos quanto aos limites do
desenho, da pintura ou do bordado. Ainda que, de modo quase consensual, críticos dividam
sua trajetória em três momentos: os primeiros anos marcados pela busca de uma definição
estética por meio da pintura – esta, de grandes dimensões e distanciada dos ardis realistas; em
seguida, a obra se consolida com um conjunto de trabalhos feitos com botões, pedras
semipreciosas e bordados, tendo como tema central o “abandono” (e os valores românticos);
86

e, por fim, nos dois últimos anos de sua vida, a alegoria da AIDS domina por completo a sua
linguagem.
Um olhar panorâmico sobre a produção do artista, no entanto, permite verificar que há
uma coerência entre os elementos que conformam sua obra, pois Leonilson elege elementos
que serão retomados e desenvolvidos ao longo de toda a sua carreira. Uma mudança na forma,
porém, se faz evidente. Leonilson, gradualmente, restringe seu universo gráfico, passando a
repetir sistematicamente os mesmos signos – atitude típica de artistas que buscam desenvolver
uma linguagem pessoal. O acúmulo de materiais e elementos, característicos dos primeiros
trabalhos, aos poucos dá lugar a um despojamento na forma. A leveza e sensualidade dos
tecidos, a trama dos fios e agulhas e as palavras, são os procedimentos eleitos (por primazia)
por ele. “Serão abandonados todos os artifícios até que o desenho finalmente possa ostentar o
silêncio de um simples voile esticado em chassi” (LAGNADO, 1995, p. 45).

FIGURA 29 - Leonilson, Ninguém, 1992. Bordado s/ travesseiro, 24,0 x 47,5 cm.


Fonte: CASSUNDÉ; RESENDE; MACIEL, 2012, p. 36.

A linguagem do artista passa a ser recortada pelo silêncio, que nos liames com a
ausência, o vazio, as pausas, os brancos, põe a trabalhar e instaura o sentido de perda na obra.
Leonilson reorganiza a superfície dos trabalhos e estes se revelam cada vez mais econômicos,
o que pode ser comprovado pela presença de extensas áreas vazias, na ostentação de grandes
espaços deixados em branco. Isso se dá, sobretudo, na fase final de sua vida, período em que a
AIDS parece interpor sobre o sujeito-artista qualquer coisa de evanescente. Num exercício de
inversão estrutural, os significados, as presenças se instituem, notadamente, a partir da
negatividade. “A privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada
87

(como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e a
implica” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 99). Ademais, em alguns momentos, as extensas
áreas vazias parecem se tratar de um elogio à imagem, que a reforça por oposição. Há uma
série de trabalhos de Leonilson que retratam essa questão/gesto, a exemplo de Ninguém (Fig.
29), apresentada a seguir. Obra que traz em si, a marca da presença do artista – sem, no
entanto, figurá-lo – e o acento de uma declaração que manifesta sem reserva a condição
humana.
Um travesseiro de tamanho reduzido, envolto por uma fronha de algodão na cor rosa.
Bordados, em sua extensão, delicados poás e na parte inferior, pequenos laços e flores –
“motivos” que lembram os bordados de antigas peças de enxoval. No canto superior esquerdo,
também diminuto, bordado em negro está a palavra ninguém.
Assim como outras, a obra caracteriza o período da economia de materiais, gestos e
procedimentos, que marcou a produção de Leonilson a partir do início dos anos 1990. Essa
fase, segundo C. Freitas (2010), é caracterizada pela emergência de “uma poética da escassez”
(FREITAS, C., 2010, p. 54), que se manifestou nas questões de escala, no modo como o
artista passou a demarcar as suas superfícies, como estabeleceu um contraponto entre o papel,
quase todo deixado em branco, e a diminuta imagem de seus desenhos, que se evidencia
também nos bordados, nos quais pequenas imagens, palavras e signos gráficos habitam os
cantos de grandes pedaços de feltro, voile e outros tecidos. Uma proposta de se dedicar a uma
reapresentação do vazio, de assinalar a potência do vazio – assim como a “página em branco”
de Mallarmé – e um “jogo com o fim”, um jogo irônico envolvendo o próprio final, princípio
explicado por Didi-Huberman (2010) e discutido no segundo capítulo desta dissertação.
Do ponto de vista indicial, a obra reporta-se a um travesseiro, peça de uso cotidiano;
há, portanto, um indicativo de que a sua significação se complementa pela sugestão de caráter
utilitário da mesma – o objeto sugere/solicita uma presença, além de ser ele próprio presença,
volume, massa, corpo, evidência. Diante da inscrição ninguém, no entanto, a imagem (e a
propriedade) do objeto é coagida ao que a palavra quer dizer, isto é, ao que a palavra encerra,
o que instaura um paradoxo.
Em Ninguém, a palavra inscrita é ali empregada como desenho de uma imagem não
projetada (ou projetável). Ninguém reconecta os laços arbitrários entre o significante e o
significado, potencializando ambos os planos na expressividade da cor e nas proporções de
escala. A palavra, bordada, entra neste trabalho não apenas no seu sentido denotativo, mas
como construtora da forma, sugestionada pela cor e pelo tamanho/posição no “quadro”, na
88

superfície. O fio que borda costura o espaço de significação da obra. A palavra associada à
superfície indica novos sentidos para os elementos que compõem a obra.
A antinomia, contudo, é capciosa: a experiência da ausência, do vazio, só se possibilita
pela existência de seu contraponto, por sua alusão ao “cheio”, ou seja, pelo vestígio de uma
possível presença. A ideia (e representação) de vazio é potência que faz emergir aquilo que se
apresenta em seu fundo: uma presença. Presença que denuncia, para além da existência
individual, solidão, angústia, fragilidade, efemeridade.
Conceitos evocados pelas dimensões do objeto, por sua referência a um travesseiro de
bebê, pelo uso de tecidos na composição da obra e pelos vazios deixados na superfície do
“quadro”. Convencionalmente, um bebê remete à ideia de vida – vida pulsante, porém frágil e
que exige muitos cuidados, assim como a vida do paciente Leonilson. A pequenez do objeto
bem como a inscrição da palavra ninguém, contraditoriamente, reportam-se à perda de força,
tendência ao desaparecimento, ao esvaziamento da vida. Os tecidos, esses que se esgarçam,
convocam, fatalmente, a ideia do fim, do fio que se desfaz (a vida por um fio). Tais elementos
parecem tratar de uma inevitabilidade: a fragilidade e solitude inerente ao sujeito, a sua
condição temporal, o destino de um corpo doente, esvaziado de sua vida. Dadas as
características autobiográficas da obra, infere-se tratar esse sujeito do próprio artista.
Em Ninguém, tal sujeito se faz valer fora do espaço de representação mimética.
Inversamente, este se expõe pela presença do corpo real. Real que, conforme a concepção
proposta por Lacan, compreende aquilo que escapa às ideias, às palavras, à simbolização e
que, segundo Rivera (2013), é:

[...] que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se
trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma
definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e
violentamente (RIVERA, 2013, p. 21).

Desvinculada da representação mimética, a obra resiste espelhar/figurar o sujeito, mas


o convoca sob uma nova forma de apresentação. Ao invés de estabelecer um pacto referencial
com a “realidade” representada, Ninguém flerta com aquilo que esquiva, toma o sujeito pelas
margens. A obra-objeto faz uma inequívoca remissão ao sujeito ao registrar algo que subtrai e
que, simultânea e paradoxalmente, manifesta o seu oposto, isto é, marca a presença de um
sujeito-corpo que se oferece ao olhar. O silêncio/vazio suscita o impronunciável; como se
contivesse uma imagem ainda não revelada. À semelhança do biografema de Barthes (2005),
89

a obra desvela resíduos sígnicos; expõe um retrato, porém inacabado, elucida imprecisões do
rosto, mas ganha contorno ao suscitar a potência de vida entranhada em sua presentação.
Sem cair no equívoco de pretender alcançar um contorno preciso sobre a arte de
Leonilson, mesmo porque a obra resiste a tal postura – conforme as palavras do próprio
artista, “os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma verdade diretamente, mas
mostram uma visão aberta” (LEONILSON, 1995, p. 128) –, ousamos afirmar que o que o
artista dá a ver é um exercício de investigação por meio da linguagem da arte, é a operação
reflexiva do seu próprio corpo, comunicação que o sujeito estabelece com o mundo por meio
do olhar e da sensibilidade – ação empreendida com o corpo e suas inter-relações, consigo
mesmo, com o outro, com o mundo, não só pelo vivido, mas também o não vivido; ação que,
portanto, constitui-se como uma experiência perceptiva do sujeito feito artista – “[...] o meu
trabalho é a minha observação sobre o mundo. Meu trabalho é minha observação sobre mim
mesmo...” (METRÓPOLIS, TV Cultura, Leonilson, 1993), afirma Leonilson, em entrevista ao
telejornal exibido pela TV Cultura.
A declaração de Leonilson remete à ideia de Merleau-Ponty (2013) de arte como
operação de expressão, caso se compreenda o trabalho do artista como a busca de realização
da expressão daquilo que se percebe. Para o filósofo, a arte expressa nosso modo carnal de
pertencer ao mundo. A “carne do mundo”, tecido vivo a que pertencemos por nosso corpo e
que não se limita a fronteiras objetivas, é o que inspira o artista. “Carne: habitadas por
significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são
fulgurações de sentido” (CHAUÍ, 2002, p. 155).
Ainda segundo Merleau-Ponty (2013), aquilo que se vê não se encerra apenas na
experiência subjetiva e nem pode subsistir em si mesmo; só pode haver vidente e visível com
a instituição do quiasma. Chauí (2002) explica essa questão da seguinte forma, “a Carne do
Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível,
do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por
si mesmas como estofo do mundo” (CHAUÍ, 2002, p. 156). Inacabada, a percepção
(compreendida como “acesso à verdade”) oferece aberturas, falhas, fissuras, aquilo que
aparece ao mesmo tempo escapa. Igualmente, o fato de “dizer” contém indícios do “querer
dizer” que permite tentar reconstituí-lo, mas jamais apreendê-lo por completo, pois a
impossibilidade de uma relação unívoca entre as duas atividades revela sempre um
distanciamento, a existência de perdas, derivas, silêncios e vazios que se manifestam. A arte,
portanto, se institui num espaço intervalar, entre o corpo que percebe e as coisas percebidas,
entre o que se expressa e o que se deseja expressar. E é, nesse sentido, um duplo alusivo do
90

mundo percebido: porque faz referência a coisas entreabertas, parcialmente desveladas,


constituindo um jogo de presença e ausência, de visível e invisível e também porque carrega
as referências do corpo que percebe. É em si mesmo, visível e invisível, enquanto coisa que é
vista e vidente.
O duplo presença e ausência, visível e invisível é questão recorrente na produção de
Leonilson, o que parece se constituir – além de uma peculiaridade da atividade de linguagem
– tanto como propriedade da incompletude perceptiva (sobre a qual discorre Merleau-Ponty
(2013)) quanto como gesto da intenção expressiva do artista. O artista de traços
expressionista-abstratos, isto é, provocado pelo desejo de marcar a expressão subjetiva e que
tematizou a sinceridade/verdade, em alguns momentos parece resistir a ter seu íntimo exposto
(de modo aberto) ao público.
A obra de Leonilson é recortada em toda a extensão pela sutil dialética que alicia e
nega revelação e descobrimento. Forma e conteúdo em momento algum perdem sua função
dentro do sistema de significações do artista e não são (de todo) irreconhecíveis. Pelo
contrário, é possível reconhecer os elementos em sua função/potência subjetiva. Por outro
lado, há momentos em que esta subjetividade falha e a obra sugere reivindicar
impessoalidade. Talvez e inclusive, há que se considerar, porque embora revestido de caráter
confesso, o ato artístico de se expor comporta uma narrativa sublimada, suporta algo de
liberdade e operação imaginativa, pode mesmo ser erigida por inverdades e/ou omissões. As
obras Mirro (1972) (Fig. 24), El Puerto (1992) (Fig. 25), ao lado de Sem título (Fig. 17),
J.L.B.D. (Fig. 18), J.L. 35 (Fig. 19), as três de 1993, examinadas no segundo capítulo desta
dissertação, e Voilà mon couer (1992) (Fig. 30), analisadas a seguir, são exemplares desse
jogo aparecer/desaparecer. As obras escondem “o corpo e a pele que o recobre”, mas,
concomitantemente, revelam-nos, porque revelam sua “carne”.
Sem título, é um casaco de veludo, na cor laranja. Embora ausente, o corpo é o suporte
da obra. O casaco, peça de natureza utilitária que reivindica um corpo, nessa obra é marcado
pela ausência, mas não perde o nexo com a presença do corpo – reversamente e como dobra
paradoxal, o corpo é presença. Dialeticamente, o objeto que dissimula o aparecimento do eu,
significa esse aparecimento mesmo. A aparição, contudo, conserva o traço do
desaparecimento, revelando indícios dele. Apresentado de modo metafórico, o corpo se
oferece aos olhos do espectador, através do casaco que guarda, “é habitado por uma
presença”. O casaco, que encerra a memória do corpo, é “um vínculo íntimo entre a existência
do sujeito e sua projeção nos objetos” (LAGNADO, 1995, p. 35). Símbolo de memória e
91

posse, a roupa foi a base eleita por Leonilson para cumprir sua tarefa simbólica e registrar
(como obra) sua substância e fisionomia.
As roupas, afetiva e pragmaticamente, recebem e guardam o contato do corpo: seu
cheiro, suas secreções, o toque de sua pele, até mesmo sua forma – é uma segunda pele; estas
recebem ainda suas vivências, emoções, sentimentos. É fragmento de vida que teima em
resistir à fugacidade, assegurar a lembrança, tornar o sujeito memorável, prolongar a vida.
Ainda que esse corpo se esvaia, as roupas conservam os contornos e sustentam os gestos da
“carne” que o habitou.
O pensamento de Didi-Huberman (2010) sobre carne/encarnado é pontual para se
pensar “o casaco” de Leonilson. Para o filósofo, a carne resulta do derrame pulsional que
subjaz em cada pintura/obra de arte – “O incarnat procede do vermelho, isto é, do sangue,
matéria por excelência – mas também do olhar, [...] meio do desejo” (DIDI-HUBERMAN,
2010, p. 13). Ao remeter à carne, o autor designa o interior do corpo em oposição à superfície,
sendo, num primeiro momento, o seu outro, a pele – como aquilo que mais se aproxima do
interior. Carne e pele produzem uma trança de superfície e profundidade corporais, onde se dá
a aparição e a desaparição – tal qual sugere reiteradamente não somente essa obra, mas grande
parte da produção do artista.
Na concepção de Sem título, Leonilson elege o tecido e a costura como procedimentos
e recorre à sua história pessoal como bagagem para compor metáforas do corpo. Ao empregar
a vestimenta para conformar seu discurso autobiográfico, Leonilson rasga a pele e revela seu
corpo. Este pode ser desnudado, pois o casaco pode ser retirado, aberto, virado pelo seu
avesso, o tecido pode ser esgarçado, o ponto da costura desfeito, o que permite explorar,
desvendar marcas e cicatrizes, enxergar a profundidade, a entranha escondida que sobe à
superfície. A carne da obra de Leonilson consiste na interioridade de seu corpo, que se
organiza a partir da percepção, do procedimento e acúmulo conservados pelo artista e que
exprime seu modo singular de atuar sobre o visível e ser por ele orientado.
A percepção que o artista tem do mundo é que configura a singularidade de sua obra e
conforma seu estilo. A obra é produção de sentido, expressão do corpo ampliada pela
percepção. “A percepção já estiliza” (MERLEAU-PONTY apud HAAR, 2000, p. 102), pois
perceber significa selecionar, dentre as aparências do “objeto” percebido, aquelas mais
emblemáticas. Perceber, portanto, enquanto modo distinto de apreender as coisas do mundo,
configura a maneira com que o artista sustenta sua arte, experiência que faz a obra ser distinta
de todas as outras. A arte como resultante dos processos de percepção e estilo é tecido que
une horizontes exteriores e interiores, objetividade e subjetividade.
92

Nem representação puramente subjetiva, isto é, uma escolha intelectual prévia,


tampouco percepção bruta, que reproduziria objetivamente as coisas. Com isso, o estilo, como
entende Merleau-Ponty (2013), “é a própria vida, na medida em que ela sai de sua inerência,
deixa de fruir a si mesma, e torna-se meio universal de compreender e fazer compreender, de
ver e dar a ver – portanto não encerrado nas profundezas do indivíduo mudo, mas difuso em
tudo quanto ele vê”. (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 79).
Estilo é a própria obra, porque nasce do exercício de criar uma linguagem inédita para
se produzir um sentido novo. Modo pelo qual o artista traduz sua relação com o mundo e
envolve a produção e organização das formas, o estilo constitui um arranjo da obra tal qual
uma sintaxe. Este é erigido a partir de modulações ou variações prescritas sobre formas
similares que não cessam de voltar e acabam se tornando típicas.
Como investigação dos mecanismos conformadores de estilo, a produção de Leonilson
dispara formas possíveis de articular percepção-estilo-sentido. Suas obras que revelam
(implícita ou explicitamente) traços autobiográficos podem ser pensadas enquanto
expressividade das experiências perceptivas do artista, que se conecta ao mundo (subjetiva e
objetivamente) em assédio corporal, visceral, o que imputa gestos, formas e linguagem
singular, que produzem sentidos outros, novas instituições.
Exemplificam tais questões o bordado Voilà mon couer, de 1990 (Fig. 30). Em Voilà
mon couer, Leonilson, que insiste no lugar do sujeito dentro do trabalho, se oferece ao outro,
oferece seu coração como alimento para a alma de quem o recebe – o espectador. A obra
expõe um modo particular de acomodar o tema do amor, desvelado mais por uma modulação
da existência do artista do que por preocupações estéticas. O trabalho conforma as
experiências pessoais de Leonilson com o bordado, a religião, o amor, a arte; é amplificação
das vivências/percepções do sujeito-artista a respeito do mundo, que se manifestam em
operações da linguagem e da narrativa capazes de instituir um (novo) sentido, dar forma e
conferir vigor à obra. Leonilson transforma, num sentido novo, o sentido literal e ordinário de
um fato – sentido que só existe a partir e pela obra.
93

FIGURA 30 - Leonilson,
Voilàmon couer, 1990.
Fonte: LAGNADO, 1995, p.
18/p. 23.

Diminuto, o trabalho mede 22 x 30 cm e consiste num pedaço de lona pintada de tinta


acrílica dourada, com uma fina tira horizontal de feltro acinzentado em sua borda superior.
Bordados, com linha na cor azul clara, pingentes de cristal lapidado. No verso, também
bordado, encontra-se a frase “Voilà mon couer, il vous apartien (sic), ouro de artista é amar
bastante.” (PEDROSA, 1995, p. 21).
Voilà mon coeur é obra que abriga tessitura, delicadeza, preciosidade, fragilidade. O
gesto de costurar/bordar consiste no ato de furar, atravessar a superfície, em que a agulha
esgarça o tecido e rompe estruturas para fazer passar a linha e o cristal. O gesto de pintar
fundamenta-se, de modo reverso, em preencher os vazios (quase imperceptíveis) deixados
entre os fios da urdidura. Agulha e pincel transportam, ambos, elementos "outros", estranhos
ao tecido, que permitem deixar ver/ocultar fendas na estrutura primeira. Operações através
dos quais o artista manipula, intencionalmente, a matéria para criar “o novo”, outorgar
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pessoalidade à linguagem. Metáfora para se pensar o sentido, a partir do estilo, como a


possibilidade dada pelo gesto (único) da arte de “fazer aquele quadro que ainda não existia”
(MERLEAU-PONTY, 2013, p. 69). Sem chassi, a obra possui três furos na borda de feltro
que permitem pendurá-lo na parede.
A temática, as escolhas e procedimentos formais, bem como os materiais empregados
por Leonilson na construção de Voilà mon couer, divulgam, de modo único, o ato de expor
sua intimidade e interioridade – autor-coração-trabalho é oferecido – ao público; mas e
concomitantemente, desvendam o mundo percebido em si mesmo. “Eis meu coração”,
anuncia o título. “Ele lhe pertence”, diz a informação no verso – patenteando o conflito entre
mostrar e ocultar. Pequeno objeto de cristal e ouro, frágil e precioso, ele pode se estilhaçar –
quiçá em virtude do perigo de se expor. Em entrevista a Lagnado (1995), Leonilson revela
que o expor o coração pode ser uma alusão a Jesus Cristo que “tirou o coração, deu para São
João Batista e falou: ‘Aqui está meu coração, faça dele o que você quiser’” (LEONILSON,
1995, p. 20-21). Mas para além dessa questão, Voilà mon couer parece tratar ainda da
mercantilização da arte – e, quiçá, do amor.
Em sua produção, Leonilson evoca objetos do cotidiano, mas e, sobretudo, produz
sobre a tela uma representação que se basta a si mesma. Sua obra é atravessada pelas coisas
do mundo, deixa-se impregnar por elas; os gestos do corpo e da criação do artista invocam um
gênero de expressão que é um mundo por si mesmo. Forma e conteúdo, amalgamados, não
poderiam existir separadamente, não é possível apartar aquilo que é apresentado da maneira
como se apresenta ao olhar. A experiência estética inédita possibilitada pela obra reside no
modo (particular) pelo qual o artista emprega seu corpo – entrançado de visão e movimento
(MERLEAU-PONTY, 2013) – para ressignificar as coisas. Ao se compreender o corpo como
“ponto de vista sobre o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 18), como fonte de
significação que não separa a expressão do expresso, corrobora-se o fundamento inédito e
singular da arte – dado o modo como os temas são organizados pelo artista na superfície dos
objetos que produziu (pinturas, desenhos, bordados) –, pela escolha dos procedimentos e
elementos, pelo arranjo estrutural destes, pelas associações empreendidas, pelo modo como se
decidiu apresentá-los. A obra, assim, pode ser compreendida como o “fazer” do corpo, do
olhar e do mundo.
Intimista, infalível, comovente, poética, simples e “sincera” na sua autoexposição, O
que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto para servi-lo, obra de 1991 (Fig.
31), é um ato contundente de evocar o corpo e a “carne” e de se oferecer ao mundo. O amor
romântico, tema recorrente na arte, se traduz na obra pela relação de Leonilson com o
95

universo exterior, pela maneira como


este produz sentido a partir do valor
atribuído aos elementos do mundo, cuja
particularidade, antes e, sobretudo, se
encontra no arranjo corporal do
indivíduo.
Um vestido longo – seria um
vestido de noiva ou uma camisola? –
em tecido de voile, na cor branca. O
tecido é transparente, leve, fluido. Na
barra, bordado com linha na cor preta, a
frase “o que você desejar, o que você
quiser, eu estou aqui, pronto para servi-
lo”, seguida da inscrição de um peixe –
seria uma remissão ao símbolo do
infinito?
Em O que você desejar, o que
você quiser, eu estou aqui, pronto para
servi-lo a camisola/vestido de noiva é
exposto de maneira simples –
acompanha a peça um cabide de ferro
de aparência artesanal – e possui forma,
material e composição também simples.
Esta simplicidade remete a um
sentimento romântico de pureza.
Algumas inquietações e contraposições
se colocam: o bordado na cor preta em
oposição ao branco do tecido; a palavra
(em composição de valor gráfico e
poético) inserida num vestido de
noiva/camisola; uma peça de vestuário
visivelmente feminina, com uma
inscrição que remete ao masculino: “eu
estou aqui pronto para servi-lo”.
96

O deslocamento da palavra (bordada) para “dentro” da obra, ao invés de apenas


nomeá-la, testemunha uma condição artística contemporânea: a palavra é materialidade. Para
além de sua função discursiva, a palavra assume o lugar de elemento de composição,
constitui-se também como procedimento visual da arte.
O vestido/camisola, bem como a inscrição “o que você desejar, o que você quiser, eu
estou aqui, pronto para servi-lo” podem ser lidos como objetos simbólicos da sufocante
solidão em que o artista vivia à época – evidência, talvez, da doença. Em 1991, Leonilson
descobre ser portador do vírus da AIDS e este fato, como já dito, se reflete claramente em sua
obra, se torna questão central do processo de criação do artista. A doença aparece efetiva e
confessadamente como conteúdo e forma – estes, amalgamados, não podem existir
separadamente. A maior parte de seu trabalho, a partir de então, sugere uma ligação intensa
com o espiritual e alude à fragilidade da vida.
A hipótese de a obra fazer referência a um momento sublime e romântico na vida do
artista não pode ser desconsiderada. Nesse caso, a frase bordada “o que você desejar, o que
você quiser, eu estou aqui, pronto para servi-lo” soaria como signo de servidão voluntária,
comportamento comum àqueles que vivenciam um amor romântico. Também é possível que o
vestido/camisola de noiva, como uma vestimenta ritualística, assuma uma função
transcendental: vesti-lo, como que magicamente, invalida experiências anteriores, de modo
que seja possível pensar numa vida a dois emocional e simbolicamente, idealizada.
O branco da obra mencionada remete à noção de pureza, pois é, por convenção, a cor
ideal para os vestidos de noivas (e também para a camisola da noite de núpcias), já que o que
se espera é que a noiva seja também uma moça pura. Contrapondo-se à pureza do branco, o
voile, leve e transparente, revela certa ousadia que se opõe tanto à ideia de pureza quanto à
sobriedade exigida em ambientes religiosos. Assim como o branco, o preto também tem um
significado singular em algumas culturas. Normalmente, associa-se a cor preta à morte, à
tristeza, à doença. Nesse sentido, merece destaque a oposição entre o branco do
vestido/camisola e o preto da inscrição bordada. Configura-se, assim, uma contradição:
tristeza e morte versus alegria, pureza e nascimento.
A produção do artista revela que o desejo sôfrego do sujeito na busca por imprimir
significado à vida (traço característico dos animais simbólicos) parece constituir uma espécie
de sina. Sujeito em busca de sentido – que a linguagem nega de todo alcançar –, Leonilson
sucumbiu ao ímpeto de fazer arte e o fez por necessidade. Sua vida, como força e fonte de sua
criatividade, transposta para a arte, fornece-lhe energia para superar os entraves que a própria
vida lhe impõe. Leonilson revela um desejo de expressão que arrastaria o sujeito e que se faz
97

falar através da arte. Esta, que é fruto da transmutação, permeabilidade e permutação dos
desejos impossíveis de serem realizados, como propõe a psicanálise. Como sintoma16, isto é,
como expressão de um conflito psíquico e escape do real, sua produção remete àquilo que
precisa ser feito para aliviar uma tensão; e como sinthoma17, enquanto tentativa do sujeito
para dar conta do real, como solução singular que encontrou para lidar com o seu ser-estar no
mundo, é criação que visa atender a demanda por alívio e, como tal, sua obra faz suplência.
Enquanto sinthoma, portanto, pode ser entendida como aquilo que faz o sujeito padecer deste
gesto significante que está no cerne do ato de criar: um vazio constitutivo no qual vem alojar-
se a angústia, que é um furo em torno do qual se organiza sua arte.
Nesse sentido, a declaração de Merleau-Ponty (2013) a respeito do pintor francês Paul
Cézanne, bem que poderia ser aplicada a Leonilson – “[...] A pintura foi seu mundo e sua
maneira de existir” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 125); “[...] essa obra por fazer exigia essa
vida” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 141). Nos contornos da produção de Leonilson estão
delineados o gesto incisivo e a tessitura ardilosa do que foi esgarçado pelos traumas do seu
viver. As determinações de sua arte são a assinatura e os emblemas de uma vida que interpreta
a si mesma, e torna-se obra. A experiência criadora do artista parece insurgir de um desejo de
expressão e de um vazio que teima em ser preenchido, que suscitam no sujeito ação e
emergem como potência significadora. É latência/urgência que impele o sujeito à ação e
possibilita (mutuamente) a sua existência e a experiência da arte. Ao que parece a arte é, para
Leonilson, meio de libertação, forma encontrada pelo sujeito para lidar com aquilo que o
constitui. Em certa ocasião, o artista comparou seu trabalho a “orações, a uma religião que lhe
fornece símbolos” e declarou ser o seu trabalho “o seu ponto no mundo”.
Leonilson transformou a faticidade (e literalidade) de sua vida, conferindo-lhe um
sentido figurado e novo. Sua obra, no entanto, não é o efeito dessa faticidade, mas resposta a
ela – o que se trata, ao contrário, de submeter os acontecimentos e experiências vivenciados à
significação, e dela fazer arte. Tal qual ocorreu com a simbolização da AIDS, a extenuação do
corpo e a iminência da morte em sua obra.
Leonilson apreendeu a exata cadência do seu tempo. Contemporâneo ao seu próprio
tempo, o artista não se deixou cegar pelas luzes do presente, conforme a proposição de
Agamben (2009). Extemporâneo, captou as especificidades de seu tempo, o que o habilitou a
“falar” de si e, ao “falar” de si, “falar” igualmente do sujeito contemporâneo. Leonilson
“documentou” a si mesmo e às inquietudes de sua geração, discutiu as complexidades do

16
Refiro-me ao conceito já citado, proposto por Freud.
17
Conceito citado anteriormente, investigado por Lacan.
98

sujeito contemporâneo a partir de suas questões existenciais. Na condição de “outsider” –


justificativa dada por ele pela escolha da carreira artística (LAGNADO, 1995, p. 69) –,
Leonilson desfez o silêncio tecido pela sociedade em torno de questões caras ao sujeito
contemporâneo. Sua linguagem pessoal foi capaz de acomodar temas melindrosos e
universais, acolhidos por diferentes modos da expressão contemporânea – expressão que
manteve um diálogo íntimo com as aberturas postas em funcionamento pelo modernismo,
captando, sobretudo, seu espírito de experimentação. A instauração de uma nova força
estética para as artes, legitimada pela liberdade – que revisou e redefiniu o fazer nas artes
plásticas a partir dos anos 1960, permitiu a incorporação de uma infinidade de novas técnicas
e materiais e cristalizou a abertura a novas possibilidades para a criação plástica –, constitui o
assentamento sobre o qual Leonilson desenvolveu sua arte, heterogênea e plural.
A diversidade plástica é traço marcante da sua produção. Mas a singularidade de sua
obra está na lógica que guiou as criações: os processos de criação se mostram indissociáveis
da sua temática – amalgamados, estes não poderiam existir separadamente. A abordagem
autobiográfica deflagra procedimentos e vocabulário que conformam uma estética única,
particular. Bordados, palavras e imagens plasmam uma obra que é vestígio da subjetividade
do artista, confluência de influências múltiplas, resultantes da sua interpretação do mundo;
sutura feita de resíduos, fragmentos, índices que deixam entrever a fricção entre arte e vida.
Lócus, por excelência, do encontro entre sua subjetividade e o mundo, a arte de Leonilson foi
sua forma de existir no mundo e se fazer mostrar a partir dele.
99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo teve como objetivo compreender de que modo as imbricações entre
arte e vida, visivelmente manifestas na produção de Leonilson, deflagram o arranjo estrutural
de linguagens na obra do artista e promovem a experiência da arte como tal. Produção
marcada pela dissolução de limites precisos entre as linguagens artísticas, a composição
estética de Leonilson privilegiou o diálogo entre palavra e imagem, questão que ocupou lugar
central de investigação na pesquisa.
Partindo-se do entendimento de que os liames entre vida e obra se constituíam como
um modo possível de operação das linguagens na arte de Leonilson, buscou-se demonstrar, a
partir da análise de obras do artista, que a condição autobiográfica da obra funciona como
“senha” que irrompe os modos de organização das linguagens na sua produção.
A obra de Leonilson, sem dúvida, flerta com a sua vida. Sua produção acomoda uma
narrativa “escrita” pelo próprio artista que, admitindo registros documental e ficcional, é
interpelada pelo encontro do artista consigo e com o mundo. A obra se deixou perceber farta
de notações autobiográficas, pois boa parte dos trabalhos abriga, quando não, dados,
fragmentos de vida do sujeito feito artista: seu próprio nome, as iniciais do seu nome, sua
altura, seu peso, registro de experiências particulares, peças de vestuário, objetos de uso
pessoal, o próprio sangue. Os elementos da composição plástica de Leonilson são, antes,
elementos que denunciam uma existência em subjetividade e como tal exigem a
especificidade de uma vida a qual se reporta.
A produção autobiográfica de Leonilson patenteia o estatuto da arte contemporânea de
estabelecer uma íntima relação com a vida, promover o enlace da estética a diversos campos
do conhecimento humano e suscitar novos domínios formais para a arte. A noção de que a
criação de uma obra de arte se faz em conexão com os sinais do seu tempo – no seu sentido de
acomodar, aderir e distinguir determinados acontecimentos – e seus significados se confirma
na produção de Leonilson. Inevitavelmente situados no tempo, sujeito-artista-obra se ligam à
conjuntura e parecem esmiuçar os funcionamentos dos processos de vida (do próprio artista e
do sujeito de uma forma geral), ampliando as possibilidades de se apreender e organizar o
mundo. Vinculada ao contexto, a produção de Leonilson, além de tocar nos limites de uma
narrativa pessoal, enreda uma contundente reflexão a respeito do homem contemporâneo –
mas o faz, cabe ressaltar, amparada pela particularidade da vida do sujeito-artista.
100

Apesar de revestida de um tom confessional – que indica a vida de Leonilson como


protagonista –, a obra, definitivamente, não inibe a existência de ardis, fantasias, brechas,
inverdades, alargamentos e contradições. Ambiguidade denunciada pelo próprio artista, ao
discorrer sobre sua produção. Sobre a questão autobiográfica, em entrevista a Lagnado
(1995), Leonilson afirmou: “Acho que existem pessoas que insistiram no lugar do sujeito
dentro do trabalho e eu sou um deles” (LEONILSON, 1995, p. 112). A abertura da obra
(como recurso de expressão), de certo modo, avessa à ideia anterior, também é pontuada pelo
artista: “A única coisa que afirma que sou eu neste trabalho18 são meus dados aqui bordados.
De resto, qualquer um que levantar a cortina pode achar que está se vendo neste trabalho, e
que ele é seu...” (LEONILSON, 1995, p. 101).
A subjetividade da produção reside, especialmente, no modo particular com que o
artista percebe e ressignifica as coisas do mundo. Tal fato desvela que forma e conteúdo aí
não podem se dissociar: as temáticas eleitas encerram uma história pessoal, única; o uso de
palavras/textos revela um modo particular de inscrição que se origina e se finaliza na própria
obra; os recursos estéticos do bordado e da costura só podem existir enquanto tal,
conformados pela vida do artista. A condição de existência da obra é a experiência de uma
vida que se interpreta a si mesma, e faz-se/torna-se obra – fato que faz eco à afirmação de
Merleau-Ponty sobre Cézanne, que poderia, certamente, ser associada à Leonilson: “essa obra
por fazer exigia essa vida” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 141).
Carregada de um sentido que toma de empréstimo a vida do artista, a arte de Leonilson
se presta a configurar a condição de uma vida que urge em se expressar. A produção do
artista, ao mesclar vida pessoal e exercício estético, poderia ser compreendida como a busca
de uma lógica para o absurdo do próprio existir. Prova disso é a declaração dada por
Leonilson, ao refletir sobre a importância (quiçá, inevitabilidade) da pintura e da arte em sua
vida: “[...] [pintar] É a minha forma de passar os dias” (SPRAY JET, Leonilson, 1985). Nos
contornos da produção do artista, então, estão delineados o gesto incisivo e a tessitura ardilosa
do que foi plasmado pelo seu viver. E, nesse sentido, é possível afirmar, portanto, que a arte
de Leonilson – amalgamada à sua vida – foi a solução inventada pelo artista para lidar com a
condição da sua existência.

18
Leonilson se referia ao trabalho El Puerto, de 1992, apresentada no capítulo II.
101

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