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LEONILSON. SUTURAS
Reflexões acerca do entrelaçar de linguagens na obra
de José Leonilson Bezerra Dias.
LEONILSON. SUTURAS
Reflexões acerca do entrelaçar de linguagens na obra
de José Leonilson Bezerra Dias.
This work analyzes the conformations of aesthetic production artist Leonilson José Bezerra
Dias (1967-1993) in order to understand how is organized the structural arrangement of
language in his art work. This research, witch includes the possibilities of seeing and reading,
creating images and producing texts that relates to the condition of the contemporary art
language, focuses on the interface between word and image. From the overall work of the
artist, were elected for analysis the production between 1991 and 1993, and selected works
that highlighted the tenuous boundaries between word and image, and witch were made with
embroidery, sewing and fabrics. Given the nature and specificities of the research object, to
examine the selected corpus we proposed a study from the research literature, content analysis
and image analysis, methodological procedures and treatments that highlighted the analytical
and descriptive-explanatory. The study noticed a autobiographical notations - a condition
which operates as “password” and shows the organization of language in the production of the
artist - and unveiled that the elements of artistic composition of Leonilson denounce an
existence in subjectivity and as such require the specificity of a life to which it refers.
Keywords: contemporary art; autobiography; image and word; José Leonilson; language.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................101
11
INTRODUÇÃO
(Leonilson)
A experiência que motivou este estudo foi uma visita que fiz a uma exposição de
desenhos do artista plástico Leonilson, no Centro Universitário Maria Antônia/USP, em 2008.
As obras expostas, uma série de contundentes e intrigantes desenhos, diminutos, envoltos por
grandes espaços vazios, e justapostos a palavras despertaram (ainda mais) minha curiosidade
e interesse pela produção do artista.
Nascido em Fortaleza, Leonilson Bezerra Dias (1957-1993) mudou-se para São Paulo
ainda criança, e desde cedo demonstrou interesse pela arte (ITAÚ CULTURAL, 2011)1.
Adolescente, em 1972, frequentou um curso de arte na Escola Pan Americana de Arte. Data
dessa época a obra Mirro, assemblage que faz uso do tecido e do bordado como elemento e
técnica de composição, e que aponta alguns dos processos que vão permear a produção por vir
nos anos 1980 e 1990. Em 1977, Leonilson ingressou no curso de Licenciatura em Educação
Artística da Fundação Armando Álvares Penteado/FAAP – onde foi aluno de Nelson Leirner
(1932-), Julio Plaza (1938-2003) e Regina Silveira (1939-)2 – sem, contudo, concluí-lo. E foi
justamente no ano em que abandonou o curso na FAAP, em 1980, que Leonilson decidiu que
seria um pintor, conforme suas palavras (MORAIS, 1985). Esse ano marca o início de uma
série de exposições que se seguiriam e, certamente, foram pontuais para o estabelecimento da
carreira do artista – entre as quais, destaca-se a mostra Panorama da Arte Brasileira/Desenho e
Gravura, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma das mais tradicionais e respeitadas do
país. Destaca-se que a carreira de Leonilson, apesar de curta, fez dele um dos grandes nomes
da arte brasileira contemporânea (PROJETO LEONILSON, s/d).
1
Informação confirmada durante conversa com Ana Lenice Dias, irmã de Leonilson e presidente do Projeto
Leonilson.
2
Reconhecidos nacional e internacionalmente, Nelson Leirner e Regina Silveira são artistas que, notadamente,
colocaram à prova os códigos preestabelecidos e cristalizados da arte e têm, ambos, a ironia como marca. Julio
Plaza, artista intermídia de origem espanhola, se instalou definitivamente no Brasil nos anos 1970 e destacou-se
pela promoção e divulgação de uma produção de vanguarda, especialmente a que privilegia a visualidade poética
da linguagem não verbal.
12
[...] Concentrada no curto período dos dez últimos anos de sua vida, a obra é quase
exclusivamente autobiográfica e reúne cerca de mil trabalhos, entre desenhos,
pinturas e objetos de pano classificados como “bordados”. Trata-se de um volume
com qualidades desiguais, embora dotada da propriedade de se manter coeso em
torno de imagens e temáticas recorrentes. (LAGNADO apud PORTAL SÃO
FRANCISCO, s/d)
3
Em 1991, o artista descobre-se portador do vírus HIV.
13
artística das últimas décadas. O intuito é apreender o contexto no qual se desenvolveu a arte
atual e o modo pelo qual se organizam as linguagens das artes do período – perspectiva
teórica que faz corpo à análise proposta. Enfim, o capítulo se propõe, essencialmente, a
compreender a relação entre o modo de fazer arte na contemporaneidade e a linguagem
proposta por Leonilson.
A segunda parte do trabalho se volta especialmente para a obra de Leonilson. A partir
de um recorte na produção do artista (com foco nos interesses da pesquisa) e, promovendo a
análise de obras de diferentes períodos da sua trajetória artística, o estudo delineia os traços
subjetivos/autobiográficos da sua produção e relata a simultaneidade entre obra e vida. A
discussão sobre a condição autobiográfica da obra é subsidiada pelas teorias da filosofia,
psicanálise, das artes, e pelas reflexões a respeito das diversas “presenças” no trabalho de
Leonilson, a saber, as influências de outros artistas, a referência à história familiar, as inter-
relações estéticas, a AIDS, a literatura, a religião, as temáticas desenvolvidas. As análises
realizadas privilegiaram o exame dos arranjos estruturais das obras, das propriedades e
possibilidades expressivas das linguagens, dos materiais e procedimentos em contraponto
com a vida do artista. A partir da tese do sujeito como questão central da obra, isto é, da
coincidência entre vida e obra, infere-se que as experiências pessoais de Leonilson fizeram
emergir os modos de expressão empregados pelo artista e o habilitaram a desenvolver uma
plasticidade ímpar. O propósito do capítulo foi debruçar sobre os aspectos formais, além de
identificar e explorar os elementos estruturadores da linguagem artística que configuram a
singularidade da obra e estabelecem vínculos entre as conformações estético-plásticas desta e
aspectos autobiográficos.
No terceiro capítulo, as reflexões sobre as imbricações entre arte e vida, abordadas no
capítulo anterior, prosseguem, porém as observações são mais pontuais. É objeto de análise,
obras do último estágio da trajetória artística de Leonilson – período que vai de 1991 a 1993 –
momento no qual se evidencia uma mudança substancial da sua produção estética, marcada
pela ameaça irredutível da morte, provocada pela AIDS. O ponto central de reflexão recai
sobre os liames entre vida e obra, que, amparado pelo aporte teórico da filosofia e da
psicanálise, busca compreender como e porque se amarram num mesmo tecido, vivência e
criação. As análises empreendidas foram motivadas pela inquietação frente aos elementos
constitutivos da obra e à codificação artística criada por Leonilson – este que desafiou o
percurso comum da arte e se propôs seguir rumo próprio, determinado por sua história pessoal
e pelos laços que o sujeito-artista estabeleceu com o mundo.
16
CAPÍTULO I
(Antonin Artaud)
De fato, a história da arte oferece-nos exemplos fartos que ilustram a relação entre
escrita e artes visuais, ainda que, conforme Foucault (1988), o princípio que separa elementos
plásticos dos signos linguísticos tenha sido reconhecido como legítimo do século XV ao XX.
Esse princípio estabelece “a separação entre representação plástica (que implica a
semelhança) e referência linguística (que a exclui). Faz-se ver pela semelhança, fala-se
através da diferença. De modo que os dois sistemas não podem se cruzar ou fundir”
(FOUCAULT, 1988, p. 39).
Essa separação, no entanto, se revela incoerente, se considerarmos o percurso histórico
das artes plásticas. Não se pode esquecer que sempre existiu a inscrição do verbal nas obras
plásticas, como na pintura: na proposição do título, geralmente formado por uma sequência de
palavras, que indica o tema ou conforma a representação imagética; na presença da assinatura,
que referencia o artista, sua trajetória, narrativa e singularidade, o estilo e tipo de trabalho que
será exposto; se há uma data, essa marca o período, os elementos de expressão e o contexto no
qual a obra se insere; na narração que, implícita ou explicitamente (podendo, inclusive, ser
dada pelos elementos citados anteriormente), apresenta o tema e serve como pano de fundo,
sendo uma espécie de subtexto para a obra. O fato é que, ao longo da história,
inevitavelmente, as linguagens verbal e não verbal se coadunam, potencializando suas cargas
subjetivas de representação-presentação, ou construindo os seus mundos possíveis. E o
cruzamento, num mesmo tecido, do sistema de representação imagética e da referência pelos
signos linguísticos, ao que parece, pode dar-se no e além do espaço (material) do quadro.
A aproximação entre arte e escrita no campo das artes, contudo, intensifica-se (e se
solidifica) no século XX, período que evidencia a ruptura de limites entre os modos de
expressão artística. As palavras invadem definitivamente o espaço do quadro, se integram ao
discurso plástico, passam a interferir na composição plástica e/ou funcionar (ou são
intencionalmente empregadas) também como imagem. A escrita passa a travar um diálogo
intenso com a visualidade. A arte pós-história da arte4 incita uma mudança de discurso e
propõe novos e múltiplos enquadramentos para a arte, e o jogo entre texto e imagem
prossegue, mas de outra maneira.
Dissolvido pela modernidade, o conceito de arte (isto é, do que até então era aceito
como) instaurou uma nova força estética, legitimada pela liberdade e regida por ressalvas
acerca das próprias proposições. Mudanças ocorridas nas artes plásticas desse período, a
4
A expressão referencia a afirmação de Danto (2006) sobre o momento contemporâneo da arte, pautado por
práticas “além dos limites da história” (Hegel). Período esse em que as narrativas mestras que definiram a arte
tradicional, chegaram ao fim, uma vez que se mostraram inconsistentes para representar a arte que se
desenvolveu após a arte modernista.
19
[...] mesma forma que o “moderno” veio a denotar um estilo e mesmo um período e
não apenas uma arte recente, “contemporâneo” passou a designar algo mais que a
arte do tempo presente. [...] designa menos um período do que o que acontece depois
que não há mais períodos em alguma narrativa mestra da arte, e menos um estilo de
fazer arte do que um estilo de usar estilos (DANTO, 2006, p. 12-13).
[...] contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe
concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta
e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho
de trevas que provém de seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 64).
O escuro, nesse caso, não significa ausência de luz, mas algo próximo a não-visão.
Perceber o escuro da contemporaneidade compreende não se deixar cegar pelas luzes da
própria época, ao contrário, institui desvelar suas trevas, o seu escuro especial, sua
negatividade enquanto latente potência de luzes. Atitude que encontra eco nos procedimentos
adotados pela arte contemporânea, hábil em ver o e no escuro da produção artística.
A arte contemporânea não está, em princípio, norteada por regras já estabelecidas e
não pode se sujeitar a uma apreciação pela aplicação de categorias (re)conhecidas. O artista
trabalha, essencialmente, liberto de regras processuais – essas, só poderão ser instituídas, caso
possível, ex post facto. É comum, todavia, buscar apreender as manifestações contemporâneas
22
significa que esse sistema não é mais o sistema que prevaleceu até recentemente; ele
é o produto de uma alteração de estrutura de tal ordem que não se podem mais julgar
nem as obras nem a produção delas de acordo com o antigo sistema. É justamente
neste ponto que se instala o mal-estar: avaliar a arte segundo critérios em atividade
há somente duas décadas é não compreender mais nada do que está acontecendo
(CAUQUELIN, 2005, p. 15).
certa estrutura de produção jamais antes vista em toda a história da arte” (DANTO, 2006, p.
12).
O cruzamento de procedimentos artísticos e materiais distintos parece ser uma espécie
de condição das artes na atualidade. A produção artística contemporânea, uma rede intricada
de conceitos que envolve a combinação de diferentes linguagens, tem testemunhado a
dissolução de limites precisos entre estas. As fronteiras entre as manifestações artísticas estão
cada vez mais tênues e o diálogo entre as linguagens, intenso e constante. Isto pode ser
apontado como uma das possíveis explicações para o “apagamento” de limites entre as
linguagens empregadas, perceptível na produção de diversos artistas. A obra Tropos (Fig. 1),
da artista plástica Ann Hamilton (1956-), que empreende a combinação de materiais,
procedimentos e linguagens díspares, exemplifica tal fato.
FIGURA 1 - Ann
Hamilton, Tropos,
1993-1994.
Fonte: Ann Hamilton
Studio
Em Tropos (do grego, transformar), Hamilton queima, linha por linha, os “escritos” de
um livro e, concomitantemente, vivifica o papel com a inscrição de novas linhas de tom
amarronzado, essas resultantes do gesto mesmo de queimar. O texto impresso – transformado
em fumaça – faz exalar um odor acre, que intenta ser absorvido pelo “cobertor” de crina de
cavalo que reveste o chão do espaço que abriga a obra. O silêncio quase reverente do espaço é
violado pela presença de alto-falantes, que irrompe o murmúrio de um homem afásico.
Verifica-se que a arte, nesse momento da pós-história da arte – a exemplo da obra de
Hamilton –, não impõe limites à “aparência” e ao conteúdo da obra, o que a torna um campo
24
disponível para os mais diversos arranjos, ordenações, trânsitos e movimentos. Esse parece
ser o traço que define, por excelência, a arte contemporânea. Marca das artes visuais desde o
fim do modernismo, a falta de unidade estilística (ou pelo menos do tipo de unidade utilizada
como critério de classificação e reconhecimento até então) é o que caracteriza a arte
contemporânea. Assim,
FIGURA 2 -
Sthéphane
Mallarmé,
Un coup de
dés
n’abolira
jamais le
hasard,
1914.Fonte:
Harpreet
Khara
Se ele procura exprimir a linguagem tal como lhe foi descoberto pelo “o ato só de
escrever”, Mallarmé reconhece “um duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui,
essencial acolá”.
........................................................................................................................................
A fala em estado bruto “relaciona-se com a realidade das coisas”. “Narrar, ensinar,
até descrever” dá-nos as coisas na própria presença delas, “representa-as”. A fala
essencial distancia-as, fá-las desparecer; ela é sempre sugestiva, evocativa
(BLANCHOT, 1987, p. 32).
o poeta faz da obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é retorno à sua
essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal como o pintor não reproduz com as
cores o que é mas busca o ponto onde as suas cores dão o ser (BLANCHOT, 1987,
p. 35).
pauta e em prática, a justaposição das figuras e a sintaxe dos signos, quando se agenciou o
cruzamento, numa mesma tessitura, do sistema da representação por semelhança e da
referência pelos signos, quando se promoveu a dissolução entre semelhança e afirmação. No
momento no qual, enfim, se compreende que um objeto pode ser substituído por seu nome,
uma imagem pode substituir uma palavra e que numa pintura, palavras e imagens são da
mesma substância.
Barthes (1990) afirma que há uma dupla função da mensagem linguística em relação à
mensagem icônica: “fixação e relais” (BARTHES, 1990, p. 32). Apoiado no caráter
polissêmico da imagem, o autor pressupõe, como compósito dessa, a presença de uma “cadeia
flutuante” de significados, subjacente a seus significantes. Com o propósito de suprimir a
pluralidade dos signos “abertos” e conduzir o leitor por entre os significados da imagem, a
mensagem linguística opera sobre a imagem, de modo a fixar a “cadeia flutuante” de
significados. Ao nível da mensagem literal, a palavra ajuda a identificar os elementos que
compõem a imagem e promove a tentativa de fixação de todos os sentidos possíveis
(denotados) de um determinado objeto. Ao nível da mensagem “simbólica”, a mensagem
linguística orienta a interpretação, esforçando-se para inibir a proliferação dos sentidos
conotados.
Em A traição das imagens (1929) (Fig. 3), Magritte justapõe no espaço emoldurado da
tela (a imagem de) um cachimbo e o texto que o acompanha e provoca uma tensão. A imagem
assegura: isto é um cachimbo; a frase afirma: isto não é um cachimbo. “[...] obra acabada,
exposta, e trazendo, para um eventual espectador, o enunciado que a comenta ou explica”
(FOUCAULT, 1988, p. 12). Magritte propõe um jogo de linguagem que desestabiliza, desfaz
um hábito, “liquefaz”, desconcerta e potencializa um impasse. Parafraseando Foucault (1988),
é inevitável relacionar o texto com a imagem – propõe-no o pronome demonstrativo isto, a
expressão de existência, indicação de igualdade e equivalência, a noção de propriedade do
verbo ser, o sentido da palavra cachimbo, a semelhança da imagem com o objeto.
Nitidamente, no entanto, Magritte não tem intenção de ocultar a diferença entre aquilo que
pode ser visto e aquilo que pode ser lido. Embora juntos numa única superfície, imagem e
texto mantêm suas funções semânticas próprias.
FIGURA 3 -
René Magritte,
A traição das
imagens,1929.
Fonte: Cercle Nation
et République
convence de que a imagem seja um cachimbo, tampouco aponta para um cachimbo qualquer;
o texto nega o que a imagem obviamente apresenta; e, paradoxalmente, diz uma banalidade –
que um desenho é só um desenho e que o desenho de um cachimbo não pode ser ele mesmo
um cachimbo; as palavras estão sendo usadas em seu sentido literal ou figurado? Indefinição:
um espaço misterioso há entre a palavra e as imagens. A obra de Magritte propõe as mais
variadas leituras, todas escorregadias e inconclusivas. “Magritte [...] mina em segredo um
espaço que parece manter na disposição tradicional” (FOUCAULT, 1988, p. 48).
Os jogos de linguagem foram igualmente anunciados (e antecipados) por Marcel
Duchamp, que “pensou” a arte também com/por palavras. Essas não apenas intitulavam os
readymades – o mictório é fonte, um cabide de parede preso ao chão é armadilha –, mas
também, numa espécie de “aporte”, serviam ao exercício planejado de conceder-lhes um
coeficiente de arte. O deslocamento do objeto – do plano funcional para o simbólico – é
patrocinado pelo deslocamento da linguagem – de descrição denotativa para amplificação dos
sentidos conotados – e esses, solidários, resignificam aquele, conferindo-lhe o estatuto de
objeto artístico. O par objeto-linguagem impele artimanhas à significação e opera um jogo de
construção e desconstrução de significados, impondo-lhes sentidos outros. Posto que “expor
um objeto é intitulá-lo” (CAUQUELIN, 2005, p. 101), a operação de designação/classificação
dada pelo continente é amparada/elabora-se na e pela operação de (re)arranjar expressão e
conteúdo.
Duchamp nomeia os objetos – uma aparente operação de etiquetagem,
fixação/controle – o que, inequivocamente, é dispensável, pois as formas são por demais
conhecidas, e eis que no momento em que deveria fazê-lo, o faz negando a denotação. Nesse
aspecto, o exercício artístico de Duchamp parece respaldar as teorias de Barthes (1990), na
medida em que busca conduzir o leitor a considerar um dado significado, eleito
antecipadamente (e desconsiderar outros), e ao propor novos sentidos aos objetos-imagens.
No caso dos readymades, tal operação significa inscrever o objeto em sua nova situação, visto
que o nome, na concepção linguística, é que inscreve a coisa, tornando-a um signo, em uma
determinada cultura. Sendo a língua, ela própria, um readymade, pronta para o uso, foi
manipulada, subvertida, e/ou desarranjada pelo artista. Jogo que se intensifica quando
Duchamp “cola” sobre um objeto do tipo isto não é arte, a etiqueta isto é arte.
As notas e textos que compunham as caixas e valises - La Boîte de 1914 (caixa de
1914), La Boîte Verte (caixa verde), de 1934, e Boîte-en-Valise (caixas em valise), de 1941 -
constituem outro exemplo de exercício de linguagem, colocado em prática por Duchamp.
Essas consistiam em uma espécie de museu portátil e traziam nas caixas, textos, desenhos,
31
Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia
a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos.
Seria alguma coisa a ser achada na própria obra de arte ou nas atividades do artista
ao redor do objeto? Tais perguntas reverberaram por toda a arte dos anos 60 e além
deles (ARCHER, 2001, p. 3).
5
Informações disponíveis na Enciclopédia Itaú Cultural, com última atualização em fevereiro de 2012, em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3
25. Acesso em: 12 maio, 2012.
6
Grupo formado por jovens artistas que, incomodados com o hermetismo da arte, apresentaram as bases de um
novo modo de manifestação artística que buscava aproximar a arte do grande público, através da valorização e
produção de uma cultura pop. Os artistas do Indenpent Group, empenhados na expressão de um realismo social,
incorporaram à arte signos estéticos massificados como imagens publicitárias, fotos de artistas de cinema e
outros ídolos, personagens de histórias em quadrinhos, sinais de trânsito, entre outros.
33
aço inoxidável, dispostos em linha reta; obra Sem título, de 1985, de Judd, ou o arranjo de
tijolos idênticos, intitulado Equivalente VII, assinado por Andre, de 1978, entre tantas outras.
Percebe-se na atitude minimalista um elogio a uma estética da tautologia – o que se vê
é o que se vê e o que se verá é o que se viu, ou seja, sempre a mesma coisa –, que pressupõe
uma vontade de privilegiar e deter-se ao que é visto, de permanecer alheio a (possíveis)
perturbações dadas pelo o que se vê.
Didi-Huberman (2010) aborda esse tema ao tratar da experiência de quem se acha
frente a um túmulo, em que a questão do volume e do vazio se coloca inelutavelmente ao
olhar. O filósofo discorre sobre uma dupla experiência: a primeira, centrada na “evidência de
um volume”, que significa “permanecer aquém da cisão aberta pelo que nos olha no que
vemos” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38), impõe ao sujeito ater-se ao “volume visível” e
acreditar o resto como inexistente; e a segunda, que consiste em querer superar tanto o que se
vê quanto o que nos olha, ou seja, consiste num “exercício da crença” de que aí não há
apenas um volume nem um puro processo de esvaziamento, mas algo da esfera do imaginário,
que dá sentido a tudo isso. Atitudes que implicam, ambas, uma dupla recusa, isto é, uma
espécie de denegação do cheio e do vazio.
É possível reconhecer certa coincidência entre o pensamento de Didi-Huberman
(2010) e Blanchot (1987) quanto à ênfase na dimensão do vazio que emerge do trabalho
artístico. Os teóricos atestam a potência da linguagem na sua própria ausência – linguagem
cuja força reside em seu limite, no qual o vazio é o lugar que marca sua aptidão evocativa e
sugestiva, sua capacidade de se entregar à ficção pela via do processo de desaparecimento, do
silêncio.
Segundo Cauquelin (2005), no minimalismo, a letra, a importância da linguagem se
apaga e se mantém discretamente por trás do processo. Numa passagem, no entanto, a autora
cita anotações que Sol LeWit fez para acompanhar seus trabalhos – “Dez mil retas secantes de
20 cm de comprimento. Dez mil retas não secantes de 20 cm de comprimento”
(CAUQUELIN, 2005, p. 140). Embora seja correto afirmar que o uso da variação e repetição
– da forma e da palavra – tenha como propósito reforçar a presença, a simplicidade visual e a
estabilidade, bem como eliminar “jogos de significações” (DIDI-HUBERMAN, 2010) e
assegurar a certeza tanto visual quanto conceitual dos objetos, tal operação se mostra
antitética aos princípios do minimalismo. A intensificação da redundância dada pela inscrição
“linguageira” junto/sobreposta ao volume, afasta a obra da problemática minimalista. A ideia
(à primeira vista, basilar) de extinguir a relevância da linguagem é desfeita e, paradoxalmente,
parece ser capital para as propostas da minimal art. As fronteiras entre a arte e o que se
36
‘Na arte conceitual’, escreveu LeWitt, ‘a idéia (sic) ou conceito é o aspecto mais
importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isto
significa que todo o planejamento e as decisões são feitas de antemão, e a execução
é uma questão de procedimento rotineiro. A idéia (sic) se torna uma máquina que
faz a arte (ARCHER, 2001, p. 70).
7
Tais movimentos/procedimentos no compasso de uma linearidade histórica – embora, é mister ressaltar, não
possam ser encerrados no espaço-tempo – compõem o quadro da arte contemporânea; contudo, a abordagem que
se segue é parcial e relativa e se justifica, uma vez que alguns desses movimentos/procedimentos não se
relacionam de modo direto e íntimo com o objeto de estudo desta pesquisa.
41
ultrapassar os limites físicos e/ou representativos da obra – e, por isso, são, potencialmente,
possuidores de vida autônoma.
Diferentemente da land art – e das manifestações artísticas do minimalismo e
conceitualismo –, em que se apreende o apagamento do autor e a ausência de efeitos
expressivos, o que se percebe nas práticas da figuração livre, na body art, na instalação, na
performance e do graffiti é uma proclamação à emoção e à espontaneidade, o emprego do
gesto e do corpo e, por consequência, um processo de individualização – o que retoma a ideia
tradicional do artista como autor –, e a reação ao ambiente direto (que pode ser a parede, a
cidade, o próprio corpo). Em seus variados (porém, emaranhados) estilos de expressão, a arte
invoca uma postura de reivindicação.
A natureza multidisciplinar e híbrida da performance, que é a combinação e
articulação de diferentes modalidades de arte, entre as quais dança, música, pintura, teatro,
escultura e literatura, estabelece o emprego de uma simultaneidade de linguagens na
composição artística – plástica, cinematográfica, poética, teatral, política, musical, social,
tecnológica e outras – e desvela a potencialidade da palavra/texto como um dos seus
elementos constitutivos. Dada a sua abrangência em virtude da fusão de gêneros e a
consequente dificuldade de se delimitar seus contornos específicos, a performance se liga
intimamente e, amiúde, se confunde com o happening, a instalação e a body art, ações que
igualmente se caracterizam pela integração do espaço, materiais, tempo e pessoas. Na
performance, a obra não é algo para se contemplar, mas um espaço a ser experimentado de
um modo físico e pleno. A arte, definitivamente, se desloca do produto final para o processo
de feitura. A performance acontece “como resultado de trabalhar por meio de uma ideia”
(ARCHER, 2001, p. 112).
Um dos expoentes da arte performática dos anos 1960 e 1970 é o norte-americano
Bruce Nauman (1941-), cujo trabalho assumiu muitas e variadas formas – todas, no entanto,
enraizadas à presença corporal do artista, que é, simultaneamente, sujeito e meio da expressão
estética. O corpo, bem como outros aspectos da sua identidade – sua assinatura, por exemplo
–, é tema recorrente na produção do artista.
Nauman [...] empreendeu ações em seu estúdio, gravando-as em vídeo. Elas eram
muito simples – caminhar de uma maneira particular, percorrer um quadrado
marcado no chão enquanto tocava violino, quicar duas bolas até perder o controle,
aplicar e remover maquiagem, manipular um tubo de néon para examinar o corpo na
luz e na sombra – e eram filmadas em tempo real. Não eram nem roteirizadas nem
editadas, mas duravam o tempo exato para que a tarefa em questão fosse realizada
(ARCHER, 2001, p. 107).
42
Em Janela ou anúncio de
parede (1967) (Fig. 8), Nauman
utiliza sua identidade/assinatura de
artista como fonte de satisfação
estética e o faz através de uma obra
em néon que privilegia a palavra.
Num aparente, porém,
ilusório, descompasso com as
práticas artísticas predominantes nos
anos antecessores, no início da
década de 1980, um grupo de artistas
se voltou para os materiais e as
técnicas tradicionais da arte e para a
expressão das emoções, restabeleceu
a habilidade manual, o prazer da
execução e restituiu a tradição da pintura. Movimento que mostrou bastante vitalidade, além
de retomar certos traços do expressionismo e provocar o ressurgimento da pintura como
proeminência na arte mundial, o neoexpressionismo (ou transvanguarda, como foi nomeado),
caracterizou-se pelo largo e livre uso de repertórios, materiais, técnicas e estilos, por
consequência da independência da arte em relação à linearidade histórica, tal como nos
mostra Archer (2001):
Vários artistas do graffiti emergiram do espaço das ruas e tiveram seus trabalhos
deslocados para galerias e museus, inserindo essa manifestação artística marginal no mercado
da arte culta. Jean-Michel Basquiat (1960-1988) é um deles – “sua trajetória inverte o ponto
de vista: faz-nos ver o graffiti de rua a partir do museu” (VENEROSO, 2012, p. 214). Nas
ruas, Basquiat escrevia poemas visuais, que deram origem às suas telas com palavras. As
pinturas de Basquiat (Fig. 09) “eram cheias de palavras e frases que haviam sido riscadas,
alteradas e substituídas por melhores versões. [...] esse difuso procedimento representava um
esforço de esclarecimento e comunicação” (ARCHER, 2001, p. 173). As palavras de Derrida
e Bergstein (1998) sobre o poeta e diretor francês Antonin Artaud parecem se ajustar ao
exercício plástico promovido por Basquiat, que “deixa a letra escrita pela letra. O que separa
44
as duas é uma diferença de substância ou de suporte, o que faz a partilha entre a arte literária e
o desenho literal” (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p. 94).
FIGURA 9-
Jean-Michel
Basquiat,
Liberty, 1984.
Fonte:
Reproduction
Gallery.com
Em meados dos anos 1980, ocorreu uma vigorosa retomada do interesse pela arte
conceitual. O que se assistiu nesse período foi a proliferação de uma pluralidade de práticas
artísticas que refletiam a crença na arte e faziam ressonância às práticas do conceitualismo; no
entanto, percebe-se uma redefinição da arte conceitual que, sob uma perspectiva
“antropológica”, compreende o caráter contextual da arte e a conecta às questões históricas,
culturais, sociais. Os artistas desse período dialogaram intensamente com as questões políticas
e sociais, e os problemas gerais da estética e do objeto artístico. E muitos o fizeram a partir de
uma abordagem mais comunicacional, que se mostrou atenta a questões situacionais: o
espaço, o público, a comunicação.
As obras de Jenny Holzer (1950-) representam bem o tipo de trabalhos neoconceituais.
A partir de 1977, Holzer começa a expor seus Truísmos (Fig. 10), um arranjo de breves
declarações/frases de impacto, de significado ambíguo que, inicialmente, foram distribuídos
em pôsteres e, posteriormente, foram fixadas em postes, colados em cabines telefônicas,
impressas em camisetas e exibidas em painéis eletrônicos: “Proteja-me do que eu quero”,
45
FIGURA
11 - Nam
June Paik,
TV Garden,
1977
Fonte:
Artnet.com
CAPÍTULO II
(Clara de Góes)
espectador. Movida por indagações, a produção do artista é ação simbólica que tenciona
encerrar/proporcionar respostas às questões do tempo em que vivemos.
A articulação entre obra e vida é um exercício poético que perpassa toda a produção
do artista. Este é, ao mesmo tempo, narrador e sujeito de sua produção. Leonilson “figurou”,
de modo plástico, a sua própria vida. Sua vocação colecionadora – a de inventariar
lembranças, memórias e experiências de vida (a sua, a de seus amigos e familiares) – é
interpretada e materializada através do arranjo palavra-imagem. A palavra, a propósito,
institui um dos eixos centrais de sua obra, é corpo essencial na construção visual de sua arte.
Suas obras, carregadas de palavras, evidenciam o interesse, ou inclinação, do artista pela
literatura e pela poesia.
Plasticamente composta por combinações e justaposições de elementos díspares, a
produção de Leonilson envolve não só o cruzamento de diferentes linguagens, mas também
procedimentos e materiais que se interpenetram e se acoplam a ponto de poder se afirmar que
a mistura se constitui um estatuto mesmo da sua obra. Isso reforça o que parece ser uma
espécie de código de produção da arte contemporânea, da qual o artista é um expoente.
Leonilson esbanja as propriedades e possibilidades da linguagem e da matéria, provocando
associações que revelam, simultaneamente, a vitalidade do artista e a necessidade premente
do sujeito em se expressar.
Seu repertório tem raízes no cotidiano e dele emana: o mundo, o amor, a identidade, o
corpo, a solidão, o desejo, o afeto, os perigos, a diferença, os prazeres, o outro – essas são
algumas das referências que compõem o seu campo semântico. Tais questões, assim como
alguns materiais e suportes, são recorrentes em sua produção e estão presentes em sua
trajetória artística do início ao fim. A operação artística sobre e a partir do cotidiano parece
ser, para Leonilson, uma experiência libertadora, que permite ao sujeito marcar seu
pertencimento, lidar com os sintomas do viver e com as impossibilidades inerentes à
experiência humana.
Contextualizada num período de renovado interesse pela pintura e do ressurgimento da
técnica como predominância na arte mundial dos anos 1980, a pintura registra o ingresso de
Leonilson no cenário artístico (RESENDE, 2012). A “volta da pintura” como acontecimento
mundial assumiu diferentes nominações: figuração livre na França, transvanguarda na Itália,
neo-expressionismo na Alemanha, bad painting nos Estados Unidos. No Brasil, se notabilizou
na expressão “Geração 80” e teve como marco a exposição Como Vai Você, Geração 80?,
realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, em 1984. A
histórica exposição, que reuniu 123 artistas do eixo Rio-São Paulo (RESENDE, 2012),
51
destaca e marca a inserção de novos artistas no circuito da arte, dando visibilidade ao espírito
artístico da época. Leonilson, que explora a figuração (embora sua produção resista a uma
demarcação categórica) desde os seus primeiros desenhos e pinturas, foi um dos nomes de
destaque da mostra – juntamente com Daniel Senise (1955-), Leda Catunda (1961-), Nuno
Ramos (1960-), Beatriz Milhazes (1960-), Jorge Guinle (1947-1987) e outros.
Sobre o fenômeno de retomada da tradição da pintura, escreveu à época, o crítico
italiano Achille Bonito Oliva, citado por Archer (2001):
Tudo já havia sido feito; o que nos restava era juntar fragmentos, combiná-los e
recombiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de
citações, vendo o mundo como um simulacro. A citação podia aparecer sob
inúmeras formas – cópia, pastiche, referência irônica, imitação, duplicação, e assim
por diante –, mas por mais que seu efeito fosse surpreendente, ela não poderia
reivindicar a originalidade (ARCHER, 2001, p. 156).
Tal liberdade se refletirá nas eleições estético-plásticas feitas por Leonilson à época e,
sobretudo, mais tarde, quando o artista passa a se dedicar ao bordado de modo visceral.
Uma das marcas de sua expressão, a pintura de Leonilson é compreendida como
exemplar da “Geração 80”. Cabe destacar, no entanto, que Leonilson explorou menos a
noção de figuração enquanto expressão realista (e/ou crítica social) e mais como gesto de
apropriação e representação simbólica, esquemática (e subjetiva) da realidade cotidiana (sua e
do outro). A inserção/classificação da produção de Leonilson como exemplar do fenômeno,
portanto, merece ressalvas, como bem o faz Lagnado (1995):
8
A autora se refere ao artista italiano Francesco Clemente (1952-), que, segundo Archer (2001), possuía uma
obra fortemente autobiográfica, cujas imagens combinadas de modo rítmico e livre implicam uma atmosfera
carregada de erotismo – características que, certamente, levaram a associação com a obra de Leonilson.
53
mim), este que incita uma busca perpétua de sentidos que, paradoxalmente, a própria
linguagem nega alcançar. Em sua complexa trama, a linguagem do inconsciente fica
encoberta, resiste a tornar-se discurso, mas, involuntária e frequentemente, irrompe de modo
radicalmente singular e com semântica própria e faz o íntimo estar fora – isto é, o interior
excluído revela-se como o mais íntimo de nosso ser – o que Lacan denomina como êxtimo
(LACAN apud RIVERA, 2013).
As concepções acerca do inconsciente e muitos outros pressupostos da psicanálise são
valorosos ao exame da obra de Leonilson – produção cuja tônica é a subjetividade (e a
realidade). A aparente desordem que a obra deixa ver, isto é, os inabituais arranjos e
combinações, as incoerências, os equívocos da língua, subversões, fusão/eliminação de
palavras, sílabas ou letras (que constituem um idioma próprio), são resultado de uma lógica
muito particular, ao que parece, provocada por um apelo consciente/inconsciente àquilo que
precisa ser dito para aliviar a tensão do sujeito – processo que a psicanálise busca explicar por
meio da noção de sintoma/sinthoma9. O fato é que as escolhas do artista para a sua
composição estão atreladas a uma significação peculiar (e possuem claras nuances
individuais), que nasce da sua própria história; o “eu” emerge da relação simbólica do sujeito
com aquilo que o circunda (com a realidade), sustentado pela linguagem.
Desmantelada pelas vanguardas artísticas modernistas, na arte contemporânea, a
relação entre o sujeito e a realidade representada se faz valer fora do espaço inequívoco da
representação mimética. O sujeito, assim como o real, é tomado (e retorna) como questão
central. Esse sujeito, porém, é outro. Descentrado, uma vez que não coincide mais com o
centro organizador da representação, problematizou seus limites em relação ao outro e se
deslocou em direção a uma nova concepção (fragmentada, distanciada do ilusionismo
mimético) do espaço. E o real, esse, há muito, não versa mais sobre a realidade dada por e
para um olho fixo.
Trata-se do real do léxico de Lacan, aquele que é uma espécie de fundo último das
coisas, destacado da imagem, e que se trata sempre de tentar representar, sem que tal
operação jamais se cumpra de forma definitiva. Real traumático, terrível, com o qual
o sujeito se depara repetida e violentamente (RIVERA, 2013, p. 21).
9
O sintoma para Freud é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado
persistente; é uma consequência do processo de recalcamento. Lacan prioriza a noção de sinthoma estruturado
como linguagem e o concebe como significante de um significado recalcado da consciência do sujeito, e que, por
essa natureza, não é acessado; ele consiste numa modalidade do gozo do inconsciente, uma solução inventada,
para estabilizar aquilo que não muda no sentido pulsional. É uma maneira particular que cada um inventa para
lidar com o Real. Trata-se do incurável de cada um (MAIA; MEDEIROS; FONTES, 2012).
56
O real, nesse sentido, seria aquilo que escapa, é o resto, o que resiste à simbolização.
O real, juntamente com o imaginário e o simbólico, segundo Lacan, compõe o sujeito. O
imaginário diz respeito às experiências do sujeito em seu contato com o mundo e a partir das
quais se dá a produção de sentido. E o simbólico é da ordem do significante, define o campo
do possível ao permitir nomear – sendo esse um processo (incessante) de reenvio de um
significante a outro significante. Lacan sugere que o jogo da linguagem consiste no deslizar
entre essas três categorias, premissa que faz eco às práticas da arte contemporânea, sobretudo
caso se entenda que a arte, enquanto linguagem, não é passível de tudo dizer, pois padece do
interdito que marca o possível de ser dito ou apresentado.
Tais pressupostos são relevantes para se pensar a arte de Leonilson, que, destituída de
limpidez, inversamente (e, quiçá, involuntariamente), oculta sentidos secretos, contudo, revela
indícios que estão na superfície. O real, o simbólico e o imaginário funcionam como
operadores de leitura de O Pescador e muitas outras obras de Leonilson, comentadas mais
adiante. Dados os desdobramentos da arte do período e a poética voltada para suas
singularidades e história pessoal, Leonilson desenvolveu caminho e linguagem próprios,
espelhados e determinados pelas relações, pelos laços entre o sujeito e o mundo.
O artista compõe um diário de bordo que constitui uma espécie de viagem interior, no
qual inscreve o conceito que iria marcar a sua produção daí em diante. Em 1989, Leonilson
desenvolve e expõe um conjunto de trabalhos compostos por botões, pedras semipreciosas e
bordados, o qual chamou de “anotações de viagens” (LAGNADO, 1995). Tais peças
introduzem um procedimento fundamental no percurso artístico de Leonilson: a costura
(inclusos, os bordados). “[...] momento em que Leonilson descobre um corpo para a superfície
pictórica” (LAGNADO, 1995, p. 32).
O bordado inaugura um novo capítulo da trajetória de Leonilson e se torna definitivo
em sua obra. O traço do artista encontra agora outra materialidade. A costura e o bordado são
elementos que levam, num primeiro momento, às correspondências entre a obra de Leonilson,
Arthur Bispo do Rosário (1909/1911-1989), Hélio Oiticica (1937-1980), Eva Hesse (1936-
1970) e o trabalho dos shakers10. O próprio artista, em entrevista à Lagnado (1995),
reconheceu algumas dessas influências artísticas em sua produção, mas as atenua. Ao ser
questionado por ela se “o surgimento dos panos bordados é contemporâneo da exposição do
Bispo. Ela foi determinante para você?” (LAGNADO, 1995, p. 85); Leonilson responde: “A
10
Seita religiosa norte-americana, fundada sobre o otimismo, cujos membros, em busca de uma sociedade
melhor, produziam seus próprios tecidos (lã, seda e linho) e objetos utilitários. Entre as características que
aproximam o trabalho de Leonilson aos dos shakers estão: a aptidão pelo trabalho manual, a iconografia, a
prática da marcação e datação de objetos.
57
exposição do Bispo? Foi. Mas minha mãe bordando em casa diariamente também”.
(LEONILSON, 1995, p. 85).
As alusões aos trabalhos dos shakers, de Arthur Bispo do Rosário, Hélio Oiticica e o
interesse pela alta-costura11 compõem mais um paradigma, são elementos constitutivos do
repertório artístico de Leonilson. Há que se destacar que o que o contato com a obra desses
artistas e dos shakers faz é contribuir para conformar a linguagem do artista, isto é, conferir
peso às suas vivências familiares. É que o uso da costura e do bordado por Leonilson deve ser
compreendido como paradigma primeiro, ressonâncias de uma questão autobiográfica – a
prática está ligada à memória do ambiente familiar, da infância e do lar: o pai, comerciante de
tecidos, e o quarto de costura que a família possuía em casa são heranças determinantes – e
também de identidade (enquanto possibilidade de afirmação de uma identidade feminina). O
bordado e a costura, portanto, concretizam a sua poética do diário pessoal.
O bordado atesta as (breves) transformações ocorridas na produção do artista. Percebe-
se entre as obras iniciais e finais, uma espécie de depuração da forma. Num primeiro
momento, a figuração tosca e o traço indefinido que engendravam ardilosas analogias,
aplicadas sobre a superfície grosseira da lona recoberta de tinta. Em seguida, a acuidade
precisa e delicada (porém, vigorosa) do bordado sobre o tecido. Ambos os gestos, entretanto,
mantêm a ambiguidade das várias imagens simbólicas (do vocabulário visual de Leonilson),
que se plasmam sobre o sujeito feito artista/objeto. Nessa segunda fase, período que vai do
final dos anos 1980 até o início da década de 1990, marcada pelo espírito romântico,
Leonilson recorre a imagens e palavras que remetem (confessadamente) ao amor, à queda e ao
isolamento.
“Cada delícia tem um preço”, anuncia uma pintura de 1988; A figura de cabeça para
baixo delata a queda, sentença da perda de controle do indivíduo sobre si mesmo; “Leo Can’t
Change the World” revela o estado de impotência e desassossego; Fogo que arde nas mãos ou
no peito e flores que se alojam nos olhos ou no coração: imagens simbólicas,
inequivocamente, vinculadas ao amor romântico; Intrincados, emoções e sentimentos
engendram mapas formados por emaranhados de árvores, rios, corredeiras, pontes e afluentes;
Veias, artérias, nervos do qual saem raízes, caminhos e embocaduras sugerem uma cartografia
do corpo e do afeto; A silepse em O Ilha (1990) e O Penélope (1992) ressalta a crise de
identidade de gênero; Jogos perigosos, de 1989, é amor declarado: “Esses jogos perigosos /
Não são guerra / Nem estão no ar / Mas por detrás de óculos / E um par de jeans”
11 Lagnado (1995) cita que o interesse se origina da amizade de Leonilson com Marie Rucki, diretora da
renomada escola de moda Studio Berçot, de Paris.
58
A obra de Louise Bourgeois, outra artista que coloca em primeiro plano sua própria
biografia como motivação para sua criação artística, assemelha-se à de Leonilson também
pelo uso dos tecidos (Fig. 14) e dos elementos sexuais, mas e, sobretudo, pelo encontro entre
textos/registros pessoais e desenhos, que dão origem aos seus trabalhos. “A primeira [Eva
Hesse], sempre que podia, declarava serem inseparáveis sua vida e arte. Já Bourgeios
60
[...] em nossos dias, as regiões onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros
se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: como se o discurso,
longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma
e a política se pacifica, fosse um dos lugares onde elas exercem, de modo
privilegiado, alguns de seus mais temíveis poderes (FOUCAULT, 2004, p. 9-10).
61
12
De acordo com Sontag (2007), a doença somente foi identificada no início da década de 1980. Archer (2001)
afirma que o impacto da AIDS no mundo artístico foi profundo e evidente no tipo de obra, concentrada em um
objetivo social, que a arte dos anos 1970 passou a investir.
62
ampliou tal debate acerca das questões da identidade sexual e diferença de gênero (recorrentes
em sua obra) e, de certo modo, escancarou, de forma extremamente delicada e singela, porém
contundente, impactante e cruel – em entrevista à Lagnado (1995), segredou: [...] “acho que
as coisas calminhas cutucam tanto quanto um tiro na testa” (LAGNADO, 1995, p. 88) –, sua
réplica à resposta da sociedade (e, possivelmente, da sua própria subjetividade) ao
homossexualismo e à AIDS, o que pode ser observado na obra O Penélope, de 1993 (Fig. 15).
Ambígua, O Penélope não entrega uma verdade. Ao contrário, a discursividade
estética de Leonilson denuncia uma estratégia da ambiguidade, que intensifica as incertezas
quanto a (e provoca ao tratar de) questões morais, sexuais, religiosas, de identidade e gênero.
Obscuridade de sentido que é lançada pelas técnicas e materiais escolhidos, pelos jogos de
palavras e significados sugeridos. Profano em suas escolhas, Leonilson assume o bordado e a
costura como técnicas por excelência. Atividades por convenção, tipicamente femininas e
tradicionais, mas e também, frequentemente, associadas ao mundo da moda, de caráter
efêmero, fugidio, circunstancial.
O título da obra de Leonilson remete à história de Penélope, personagem da Odisseia
e, por extensão, propõe associações alegóricas com a história pessoal do artista. O bordado (e
sua tessitura/desarranjo) é o artifício arquitetado por Penélope para adiar o reconhecimento da
morte de seu marido Ulisses, consumado logo que ela aceitasse um dos seus pretendentes.
Leonilson, assim como Penélope, parece tecer uma espera. No caso do artista, essa espera
deflagra sentidos múltiplos. A silepse de gênero proposta no título da obra é incisiva: o
penélope reúne os gêneros masculino e feminino num único objeto. A dualidade revela,
simultaneamente, a inversão e o reforço dos papeis sociais: em O Penélope, a espera pelo ser
amado, símbolo do romantismo, da fragilidade e submissão feminina, é reservada a um
homem. Naturalmente travestida em angústia, seria a espera pela pessoa amada a condenação
pelo comportamento “divergente”, assim compreendida a conduta homossexual
(supostamente lasciva)? Coser/construir e desconstruir esse mesmo tecido pode significar,
ainda, a tentativa de ludibriar/suspender a ameaça irredutível da morte – para Leonilson, a
espera da cura para a AIDS ou, quem sabe, a descoberta de um novo tratamento.
O Penélope e outras obras do artista denotam sua tentativa de rebater a resposta da
sociedade à AIDS. Resposta que faz eco às metáforas as quais a doença potencializa e aos
significados que lhes são atribuídos por essa mesma sociedade. “A metáfora”, escreveu
Aristóteles, em Poética (1457), “consiste em dar a uma coisa o nome de outra” (SONTAG,
2007, p. 81). Imbuída de sentidos diversos, a doença se “transmuta” e se transforma em outra
63
coisa: serve de tradução para o medo, preconceito, sofrimento, pavor, castigo, a vergonha,
estranheza, justificativa, culpa.
Metáfora da mortalidade, fragilidade e vulnerabilidade do indivíduo, a AIDS produziu
interpretações nefastas, fantasias sinistras e estigmas sobre “vítimas”, convicções que se
proliferaram no decorrer das décadas de 1980 e 1990. Uma doença “deles”, e não “nossa”–
nítida referência tanto ao estrangeiro quanto à população homossexual, o chamado “grupo de
risco”; Projeções catastróficas e apocalípticas quanto à propagação da doença pelo mundo,
associadas a previsões pessimistas relativas ao controle da epidemia; a doença como
consequência da licenciosidade e da divergência sexual; condenação pela frouxidão moral;
punição à perversão sexual (SONTAG, 2007). Os significados, múltiplos, se desdobram...
Conforme Sontag (2007),
13
Etimologicamente, a palavra “paciente” significa “sofredor” (SONTAG, 2007, p. 107).
64
A AIDS mudou o rumo de sua vida e marcou sua produção artística, conferindo-lhe
uma terminologia final e irredutível. A simplicidade e o despojamento
característicos da sua obra, particularmente do seu desenho, são tensionados pelos
conteúdos que eles vão explicitando: uma morte anunciada [...] e uma intensa busca
de sentido para a travessia da vida. Constrangido nas possibilidades de realização
sexual, a AIDS trouxe-o não para a margem, mas para o centro da questão. A
energia do desejo encontra sua realização amorosa, agora conscientemente, na
sublimação, que forja os interstícios da linguagem (MESQUITA, 1997, p. 13).
Ao se expor, de modo tão aberto ao espectador, ele incita uma resposta do “outro”. A
intimidade socializada por meio de sua narratividade plástica conduz à “banalização” da
doença, coloca o tema em pauta e ao alcance de todos. A partir de suas experiências pessoais
e através de sua poética, Leonilson eleva questões particulares e as desdobra em temas
universais, o que aproxima artista e espectador, tornando-o cúmplice do universo do artista.
As questões íntimas deixam de ser, somente, de ordem pessoal, uma vez que são
compartilhadas por meio da obra, exposta à apreciação coletiva. Experiência íntima, porém,
de alcance universal – ademais, porque a AIDS já não era mais uma chaga tão alheia.
Nesta etapa final da carreira [...] seu interesse concentra-se na questão do corpo, do
seu próprio corpo feito metáfora, buscando, através da arte, alguma possibilidade de
transcendência. Leonilson se transforma no observador de seu próprio processo,
revelando-se publicamente, o corpo é assumido em sua condição de máquina
desejante, que contém mente e espírito e está em permanente embate com o mundo
(MESQUITA, 1997, p. 16).
intensifica, o bordado e a costura se tornam as técnicas por excelência14, o artista adota uma
economia de materiais e elementos, há uma reconfiguração da dimensão dos trabalhos, que se
tornam menores, o vazio passa a se constituir como um importante recurso de composição da
obra. Paradoxalmente, os elementos agora em menor número e tamanho, parecem realçar e
revelar seu vigor. Há um silêncio e um vazio na obra que geram tensão, desvelam potência e
provocam inquietude.
– Seu gesto sobre a folha de papel está diminuindo enquanto o espaço branco vai se
dilatando. O espaço vazio transcende um problema estético ou gráfico de
composição. Esse branco em volta traz o impronunciável. É como se ele contivesse
uma imagem que ainda não foi revelada.
– É. Esse silêncio é muito poderoso nos bordados. Agora estou gostando de fazer
trabalhos que consistem em apenas dois panos costurados, só o tecido leve, sem
nada. São panos estampados ou listados com uma seda no verso. Mas eles são
vazios. É o que estou procurando (LEONILSON, 1995, p. 117).
........................................................................................................................................
Em sua obra [...] Leonilson [...] acolheu palavras e frases em pinturas, desenhos e
gravuras; lançou mão de procedimentos como a seriação e a repetição de imagens e
arranjos compositivos e indagou o vazio como potência para a possibilidade de
criação de significados (FREITAS, C., 2010, p. 23).
Didi-Huberman (2010) pontua sobre esse esvaziamento quando discorre sobre o “jogo
com o fim”, compreendendo-o como um jogo da forma, jogo de construção, um jogo irônico
erigido sobre o fim; o pensar e o fazer artístico como ação no “limiar do seu próprio fim”.
[...] seria a imagem aquilo que resta visualmente quando a imagem assume o risco
de seu fim, entra no processo de se alterar, de se destruir ou ainda de se afastar até
desaparecer enquanto objeto visível? E para tanto não será suficiente elaborar a falta,
dar forma ao resto, fazer do ‘resto assassinado’ um autêntico resto construído?
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 254).
como uma religião que fornece os símbolos” (LAGNADO, 1995, p. 119). O último trabalho
de Leonilson, a instalação Los Delicias (Fig. 21) ilustra a questão.
por Cristo alguns dias após a sua morte – reafirmam a fragilidade do corpo doente, denotam
esperança e clamam o “apelo para uma desesperada infinitude” (LAGNADO, 1995, p. 64).
No último trabalho criado por Leonilson, “[...] o valor simbólico da obra é construído
por palavras e matéria” (FREITAS, D., 2011). Em Los Delicias, palavra e matéria
concretizam as ideias de finitude, romantismo, religiosidade, “prazeres terrenos”, evidenciam
a desmaterialização do corpo e, simultaneamente, evocam através da ausência, sua passagem,
registram a presença daquele que vela uma travessia e busca perpetuar uma vida que se esvai.
A obra é testemunho da existência, fragilidade e transitoriedade do corpo, uma relação
metonímica com o corpo, uma poética que joga com a vida e a morte. O indicativo de
utilidade das camisas complementa o processo de significação da obra: Leonilson usa/(re)cria
objetos que, por convenção, são destinados ao corpo, tornam “manifesta” a presença de um
corpo, embora este esteja ausente. Parece-nos, assim, que Los Delicias exibe a intrincada
sincronização entre vida e arte na produção do artista.
FIGURA 22 - Manuscrito de
Leonilson, Caderno, 1989.
Técnica variável, 15 x
10,7 x 1 cm.
Fonte: Projeto Leonilson
fetichizados pelo uso pessoal do artista – des/revelam dados sobre seu perfil e sua história, e
também permitem entrever dados constitutivos de sua narrativa artístico-temporal.
[...] se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse,
pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns
gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e mobilidade
poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos átomos
epicurianos, a algum corpo futuro, prometido a mesma dispersão; uma vida
esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou então um
filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga de imagens [...] é
entrecortada, à moda de soluços salutares pelo negro apenas escrito do intertítulo,
pela irrupção desenvolta de outro significante: o regalo branco de Sade, os vasos de
flores de Fourier e os olhos espanhóis de Inácio (BARTHES, 2005, p. XVII).
O biografema – embora o termo esteja imbuído de uma carga de imprecisão – pode ser
compreendido como uma escritura que deixa ver e, ao mesmo tempo, oculta, encobre e
descortina, cujo corpo se constrói nas intermitências, numa espécie de jogo de aparecimento-
desaparecimento. A escritura ganha potência nos fragmentos, nas fissuras, nos interstícios,
73
[,,,] ele nos deixa uma espécie de diário de mundo em que viveu e também da sua
própria história pessoal. [,,,] Um diário que não se coloca propriamente sobre o
amparo das datas, mas se abre aos fluxos da contingência e aos desvios do acaso,
configurando-se como uma tela sem moldura. A narrativa autobiográfica que ele
esboça, pela via do precário e do efêmero, dá-se assim menos como figuração do
que como fulguração do vivido (MACIEL, 2011).
15
(COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997) . Leonilson fala em primeira
pessoa. É a partir de sua vida pessoal que o artista empreende seu exercício de formalização
plástica, cujo leitmotiv é sua dor, inquietude e melancolia. O desejo de aprofundar certas
questões da esfera privada, todavia, tropeça na inefabilidade da própria linguagem. Vencer as
sinuosidades do indizível sem sucumbir às armadilhas da pieguice e da retórica não é tarefa
fácil. Feito que Leonilson alcançou ao tratar de amor, desejo e morte.
A palavra, elemento plástico por excelência, introduzido já nos primeiros trabalhos do
artista revela a tentativa de superar tal dificuldade e desenvolver visualidade ímpar. Assim
sendo, a produção de Leonilson é marcada pela presença constante (diria, quase compulsória)
da palavra/texto em diálogo com as imagens; melhor dizer que aqueles se integram às
imagens.
[...] A palavra se localiza em sua obra, livre, sem amarras desobedecendo a regras de
sintaxe ou gênero, porém como meio de diálogo entre as imagens, ao incorporar-se a
elas numa fusão visual. O recurso gráfico por ele utilizado evidencia um caráter
intermidiático, pois em suas construções “poético-visuais” há um diálogo entre artes
plásticas e literatura, que se revela principalmente através dos títulos que condensam
uma grande força narrativa (“voilà mon coeur – ouro de artista é amar bastante”, “O
pescador de palavras”, “O inconformado”, “São tantas as verdades”, “Rios de
palavras”, “Todos os rios levam a sua boca”, “Leo não consegue mudar o mundo”,
“Para meu vizinho de sonhos”, “Longo caminho de um rapaz apaixonado”, “O que
você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto pra servi-lo”, “Bom rapaz em
embalagem ruim” e etc) (CASSUNDÉ, 2009).
15
Não existe norma específica para citações diretas de trechos de documentos áudio-visuais. Portanto, nesta
dissertação, optamos por utilizar, em destaque, o título do filme ou reportagem, seguido do nome do autor da fala
e do ano.
75
Eu estava muito apaixonado. Ficava sozinho, sem saber direito o que fazer. Então pensei em
escrever nos desenhos em vez de ficar escrevendo em cadernos” (LAGNADO, 1995, p. 110).
Seus desenhos – na realidade, desenhos-escrita –, que ilustraram a coluna da jornalista
Barbara Gancia, Talk of the town – o ti-ti-ti da cidade, do jornal Folha de S. Paulo, de 1991 a
1993, por exemplo, retratam a visão do artista sobre acontecimentos marcantes da época, mas
não somente. Sua produção é uma narrativa sobre o tempo contemporâneo, contudo,
simultaneamente, remete ao imaginário social do artista – o que constitui por extensão a
temática de seus outros trabalhos, marcados pelo seu imaginário pessoal (MESQUITA, 1997).
Para ilustrar tal fato, é possível citar o
desenho (Fig 26) que acompanha a crônica
Mauricinho é o troglodita arrumadinho,
publicada em 30 de outubro de 1991, na qual
Leonilson aborda, concomitantemente (e de
modo ácido), a questão da (in)evolução do
sujeito e seus dúbios invólucros, levados a
termo pela posse de objetos de moda, e a sua
própria condição, um “patinho feio” e sua
aparente fragilidade frente a objetos de
desejo/consumo. As imagens-palavras
“constituem uma espécie de diário aberto,
tornado público semanalmente, no qual
Leonilson testemunha, de uma forma
imediata, a sua participação no seu tempo”
(MESQUITA, 1997, p. 10).
Os desenhos, além de se conectarem
às crônicas – ora ilustram, complementam,
reverberam e ora se justapõem –, expressam o ponto de vista do artista sobre a condição do
cidadão e as questões nas/com as quais este se vê inserido e/ou em confronto no dia a dia.
Em Os jovens adoram ter pés de roquefort, de 25 de setembro de 1991, texto que se
refere à moda entre a juventude dourada e consumista de usar caros tênis importados, o
desenho apresenta figuras elevadas, mais altas do que a média da população, porém, elas estão
aterrorizadas por pivetes que lhes roubam estes objetos de desejo para também estarem na
moda. Em outro trabalho, o retrato da apresentadora Xuxa Meneghel (Fig. 27), em 02 de
outubro de 1991, representa a “rainha dos baixinhos” com suas botas brancas, saia curta e
78
discurso. Assim sendo, a noção e as proposições de discurso propostas por Foucault (2004)
parecem oportunas para clarificar tal afirmação.
Com isso, Archer (2001) enfatiza que o filósofo declarou ser preciso compreender o
discurso não como um conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos
ou representações), mas sim como “práticas que sistematicamente formam os objetos sobre os
quais falam” (FOUCAULT apud ARCHER, 2001, p. 86). De fato, em A Ordem do Discurso,
Foucault (2004) desmistifica a ideia do discurso como reunião de signos, como significantes
que se referem a determinados conteúdos, carregado de significados, quase sempre oculto,
intencionalmente distorcido, marcado por intenções, conteúdos e representações, escondidos
nos e pelos textos, não imediatamente visíveis, sub-reptícios. E, inversamente, destaca o nível
de existência das palavras, das coisas ditas, isto é, o próprio discurso, considerando a
(inconteste) complexidade que lhe é característica – embora o teórico não deixe de considerar
que em todo discurso explícito há também um discurso oculto, que cada enunciado se
ampliaria com tudo aquilo que ele próprio não seria capaz de dizer.
Ao afirmar o discurso como prática, Foucault (2004) compreende que esse põe em
funcionamento enunciados e relações, ou seja, relações históricas e práticas sociais concretas
se “vivificam” e se materializam nos discursos – a linguagem é constitutiva de práticas, as
palavras são construções de uma produção histórico-política. Nesse sentido, o discurso
ultrapassa a simples referência a coisas, existe para além da mera utilização de letras, palavras
e frases e não pode/deve ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo.
Enquanto prática, o discurso possibilita que as ideologias se materializem e está, portanto,
imerso em relações de poder – o que explica as coerções a que está sujeito, como esclarece
Foucault (2004).
jogo dos signos posto em ação e da inscrição na ordem do significante (FOUCAULT, 2004),
Leonilson propõe suplantar o discurso do poder pelo discurso do desejo. Seu discurso “não
disciplinado” se preconiza ao “desejo de dizer” e faz entrever os arranjos de constituição de
seus enunciados. O objeto de seu discurso existe (e emerge) sob condições históricas
específicas, na dinâmica de um feixe de relações singulares, assinalado por fatos de uma vida
“real”, transformada em obra de arte, como mostra, entre outras obras, a série de desenhos O
Perigoso (Fig. 28), de 1992.
FIGURA 28 -
Leonilson, O
perigoso, 1992.
Tinta preta e
sangue sobre
papel.
30,5 x 23,0 cm
Fonte: Projeto
Leonilson
Uma das mais evidentes demonstrações da fragilidade do artista, estes desenhos fazem
referência à AIDS que, na última fase de sua trajetória, é “alçada a uma dimensão alegórica”
(LAGNADO, 1995, p. 54). A obra reflete a noção em Foucault (2004), de que o discurso
opera num contexto histórico-social, marcado por relações de poder. O tema escolhido por
Leonilson, além de se constituir como um veículo de expressão subjetiva, trata de questões
políticas e, por isso, está, naturalmente, envolto em interdições das mais diversas ordens e
campos. Numa atitude subversiva, no entanto, Leonilson eleva o discurso do desejo e postula
sua denúncia.
81
O primeiro desenho desta série tem a identidade de um corpo de delito: uma simples
gota do próprio sangue contaminado. O que poderia agora configurar uma armadilha
da literalidade (do uso de um sangue perigoso à singela representação de um rosário)
relata a dor do traço que, mesmo débil, não sucumbe à autopiedade (LAGNADO,
1995, p. 54).
suas próprias questões, da escuta da voz que chega do seu ser, do seu corpo, Leonilson faz
arte e faz da sua arte, denúncia. A impotência se transforma em potência.
De difícil apreensão, por vezes, a obra de Leonilson parece demasiadamente
complexa. Pode-se inferir, enfim, que tal fato diz respeito à própria natureza ambígua e opaca
do objeto – traço característico da arte contemporânea e também da produção do artista,
conforme suas próprias palavras: “Os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma
verdade diretamente, mas mostram uma visão aberta” (PEDROSA, 1995, p. 20) –, a obra
resiste à objetividade e precisão. Pois é a partir desse caráter múltiplo do objeto, que se
inscrevem as análises realizadas: da inquietação frente aos elementos constitutivos da obra –
em especial, a produção da fase final da vida do artista – e à codificação artística criada por
Leonilson, que desafiou o percurso usual da arte e empreendeu seguir rumo próprio. Caminho
esse determinado por sua história pessoal e pelos laços que o sujeito-artista estabeleceu com o
mundo, em que vida e obra, intimamente conectadas, possibilitaram (mutuamente) a
existência do sujeito e a experiência da arte – questões sobre as quais o próximo capítulo irá
abordar.
83
CAPÍTULO III
Eu me ponho a cismar.
Sensações e desejos
foi o que eu trouxe à Arte;
apenas entrevistos, alguns rostos e linhas; de amores
incompletos,
só a incerta lembrança. A Ela entrego-me, que sabe
afeiçoar a Forma da Beleza,
e quase imperceptivelmente, completar a vida
unindo as impressões, unindo os dias.
(Konstantinos Kaváfis)
seguinte afirmação: [...] a vida e a arte fazem parte do salto no abismo que eu resolvi dar. Para
viver eu preciso pintar.” (SPRAY JET, Leonilson, 1985).
Conforme mostrado ao longo do trabalho, obra e vida são indissociáveis na produção
de Leonilson. O próprio artista reconheceu a característica autobiográfica de seu processo de
criação. Os trabalhos funcionavam, nas suas palavras, como caderno de anotações, isto é,
como diários íntimos – “Eu acho que eu fico o tempo todo falando de mim, parece que só
existe eu” (COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997). Obra, vida e corpo estão
emaranhados, ainda que, por vezes, estes sejam parte de um jogo cuja regra hesita entre se
exibir e se esconder. A presença do artista na primeira pessoa é descortinada pelos temas
abordados e procedimentos artísticos empregados em sua produção. O amor, os amantes, as
suas desilusões, as viagens, as relações afetivas, suas angústias, a homossexualidade, a
religiosidade, a morte são alguns dos motes através dos quais Leonilson se oferece ao olhar do
espectador. O tecido, o bordado e a costura, procedimentos eleitos, por excelência, pelo artista
– e que permeiam a sua produção do início ao fim – são referências explícitas (e declaradas) à
sua história familiar: o pai comerciante de tecidos, o quarto de costura que a família tinha em
casa e as influências de sua origem nordestina. A inscrição de textos e palavras, portadores de
significado essencial ao sujeito e à obra, é pura confissão – conforme Leonilson, em entrevista
concedida a Lagnado (1995), “a realidade da palavra (em sua obra) é totalmente
autobiográfica” (LEONILSON, 1995, p. 110).
Em sua produção, o artista extravasa seus sentimentos e emoções, dá forma à obra a
partir das perturbações que acometem o sujeito Leonilson, mas e, simultaneamente, trata dos
dilemas do homem contemporâneo, como afirma Lagnado: “É um trabalho que traz as
ressonâncias de uma série de inquietações em relação ao comportamento das pessoas naquele
determinado momento” (COM O OCEANO inteiro para nadar, Leonilson, 1997). Leonilson
observa o mundo a partir de si e em relação ao outro como se investigasse a sua própria
prática artística através de experiências vividas (e também de não vividas) e sua
observação/percepção se materializa em obra.
A obra de Leonilson revela linguagem própria, espelhada e determinada pelas
relações, pelos laços entre o sujeito-artista e o mundo. Os signos que se manifestam ao olhar
do espectador – esses, agentes da obra enquanto totalidade tangível –, revelam um inventário
de experiências, um modo estrutural ímpar com que Leonilson sustenta a cerzidura de seu ser-
estar no mundo.
O acontecimento de uma obra, enquanto obra, está precisamente nesse processo que se
dá entre um “eu” e um “outro”. Na produção de Leonilson, esse “encontro” é promovido,
85
especialmente, pela via da expressão da vida íntima do artista posta à mostra ao olhar
apreciativo dos espectadores; mas, e também, pela abordagem de temas universais, objetos de
reflexão do sujeito na contemporaneidade. Caminho de interlocução possível para que se
firme uma espécie de contrato entre artista, obra e espectador – e a obra aconteça enquanto
tal.
Leonilson elevou o gênero do autorretrato e conseguiu, por meio da subjetividade,
alcançar questões existenciais cruciais para o sujeito contemporâneo. A sua solidão, a busca
inconteste de um amor, o conflito entre religião e a vivência dos prazeres, a sexualidade
“divergente”, tudo acabou se transpondo para a materialidade da tela. Um discurso sensível,
irônico, sutilmente político e politizado – frequentemente, e de forma equívoca, suscetível a
idealizações românticas e classificações sentimentais. Talvez aí resida a força do seu discurso
que, por conta da sutileza, carrega uma potência de permanência e durabilidade. Mensagem
que é revitalizada e se fortalece nos vários momentos em que o sujeito é acuado por tais
questões.
Leonilson superou de modo sublime o desafio (e o ímpeto subjetivo) de expor sua
intimidade e tratar de objetos impregnados de delicadeza, como o amor, desejo, a solidão, a
sexualidade – esses tão sujeitos à pieguice e aos artifícios da banalidade. O artista, que
desenvolveu uma linha de expressão, conseguiu, com propriedade, articular a subjetividade.
Suas composições fundaram uma estética capaz de alojar tais temas sem se configurar como
sentimentalismo extremo. Ao contrário e de modo paradoxal, sua obra, disfarçada em
delicados trajes, sustenta uma mensagem violenta, potente, ácida, corrosiva, visceral.
Palavra, texto e elementos estéticos e plásticos da arte e do campo das práticas da
tradição doméstica, do fazer manual – traços marcantes do arranjo artístico proposto pelo
artista – foram organizados de modo acurado para compor um todo significante. As obras
produzidas na fase final de sua vida, sobretudo, alcançaram primorosa organização formal – a
tríade conteúdo, forma e material se justapõem em perfeita conexão – e revelam maturidade
artística.
Os trabalhos de Leonilson são deliberadamente indefinidos quanto aos limites do
desenho, da pintura ou do bordado. Ainda que, de modo quase consensual, críticos dividam
sua trajetória em três momentos: os primeiros anos marcados pela busca de uma definição
estética por meio da pintura – esta, de grandes dimensões e distanciada dos ardis realistas; em
seguida, a obra se consolida com um conjunto de trabalhos feitos com botões, pedras
semipreciosas e bordados, tendo como tema central o “abandono” (e os valores românticos);
86
e, por fim, nos dois últimos anos de sua vida, a alegoria da AIDS domina por completo a sua
linguagem.
Um olhar panorâmico sobre a produção do artista, no entanto, permite verificar que há
uma coerência entre os elementos que conformam sua obra, pois Leonilson elege elementos
que serão retomados e desenvolvidos ao longo de toda a sua carreira. Uma mudança na forma,
porém, se faz evidente. Leonilson, gradualmente, restringe seu universo gráfico, passando a
repetir sistematicamente os mesmos signos – atitude típica de artistas que buscam desenvolver
uma linguagem pessoal. O acúmulo de materiais e elementos, característicos dos primeiros
trabalhos, aos poucos dá lugar a um despojamento na forma. A leveza e sensualidade dos
tecidos, a trama dos fios e agulhas e as palavras, são os procedimentos eleitos (por primazia)
por ele. “Serão abandonados todos os artifícios até que o desenho finalmente possa ostentar o
silêncio de um simples voile esticado em chassi” (LAGNADO, 1995, p. 45).
A linguagem do artista passa a ser recortada pelo silêncio, que nos liames com a
ausência, o vazio, as pausas, os brancos, põe a trabalhar e instaura o sentido de perda na obra.
Leonilson reorganiza a superfície dos trabalhos e estes se revelam cada vez mais econômicos,
o que pode ser comprovado pela presença de extensas áreas vazias, na ostentação de grandes
espaços deixados em branco. Isso se dá, sobretudo, na fase final de sua vida, período em que a
AIDS parece interpor sobre o sujeito-artista qualquer coisa de evanescente. Num exercício de
inversão estrutural, os significados, as presenças se instituem, notadamente, a partir da
negatividade. “A privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada
87
(como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e a
implica” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 99). Ademais, em alguns momentos, as extensas
áreas vazias parecem se tratar de um elogio à imagem, que a reforça por oposição. Há uma
série de trabalhos de Leonilson que retratam essa questão/gesto, a exemplo de Ninguém (Fig.
29), apresentada a seguir. Obra que traz em si, a marca da presença do artista – sem, no
entanto, figurá-lo – e o acento de uma declaração que manifesta sem reserva a condição
humana.
Um travesseiro de tamanho reduzido, envolto por uma fronha de algodão na cor rosa.
Bordados, em sua extensão, delicados poás e na parte inferior, pequenos laços e flores –
“motivos” que lembram os bordados de antigas peças de enxoval. No canto superior esquerdo,
também diminuto, bordado em negro está a palavra ninguém.
Assim como outras, a obra caracteriza o período da economia de materiais, gestos e
procedimentos, que marcou a produção de Leonilson a partir do início dos anos 1990. Essa
fase, segundo C. Freitas (2010), é caracterizada pela emergência de “uma poética da escassez”
(FREITAS, C., 2010, p. 54), que se manifestou nas questões de escala, no modo como o
artista passou a demarcar as suas superfícies, como estabeleceu um contraponto entre o papel,
quase todo deixado em branco, e a diminuta imagem de seus desenhos, que se evidencia
também nos bordados, nos quais pequenas imagens, palavras e signos gráficos habitam os
cantos de grandes pedaços de feltro, voile e outros tecidos. Uma proposta de se dedicar a uma
reapresentação do vazio, de assinalar a potência do vazio – assim como a “página em branco”
de Mallarmé – e um “jogo com o fim”, um jogo irônico envolvendo o próprio final, princípio
explicado por Didi-Huberman (2010) e discutido no segundo capítulo desta dissertação.
Do ponto de vista indicial, a obra reporta-se a um travesseiro, peça de uso cotidiano;
há, portanto, um indicativo de que a sua significação se complementa pela sugestão de caráter
utilitário da mesma – o objeto sugere/solicita uma presença, além de ser ele próprio presença,
volume, massa, corpo, evidência. Diante da inscrição ninguém, no entanto, a imagem (e a
propriedade) do objeto é coagida ao que a palavra quer dizer, isto é, ao que a palavra encerra,
o que instaura um paradoxo.
Em Ninguém, a palavra inscrita é ali empregada como desenho de uma imagem não
projetada (ou projetável). Ninguém reconecta os laços arbitrários entre o significante e o
significado, potencializando ambos os planos na expressividade da cor e nas proporções de
escala. A palavra, bordada, entra neste trabalho não apenas no seu sentido denotativo, mas
como construtora da forma, sugestionada pela cor e pelo tamanho/posição no “quadro”, na
88
superfície. O fio que borda costura o espaço de significação da obra. A palavra associada à
superfície indica novos sentidos para os elementos que compõem a obra.
A antinomia, contudo, é capciosa: a experiência da ausência, do vazio, só se possibilita
pela existência de seu contraponto, por sua alusão ao “cheio”, ou seja, pelo vestígio de uma
possível presença. A ideia (e representação) de vazio é potência que faz emergir aquilo que se
apresenta em seu fundo: uma presença. Presença que denuncia, para além da existência
individual, solidão, angústia, fragilidade, efemeridade.
Conceitos evocados pelas dimensões do objeto, por sua referência a um travesseiro de
bebê, pelo uso de tecidos na composição da obra e pelos vazios deixados na superfície do
“quadro”. Convencionalmente, um bebê remete à ideia de vida – vida pulsante, porém frágil e
que exige muitos cuidados, assim como a vida do paciente Leonilson. A pequenez do objeto
bem como a inscrição da palavra ninguém, contraditoriamente, reportam-se à perda de força,
tendência ao desaparecimento, ao esvaziamento da vida. Os tecidos, esses que se esgarçam,
convocam, fatalmente, a ideia do fim, do fio que se desfaz (a vida por um fio). Tais elementos
parecem tratar de uma inevitabilidade: a fragilidade e solitude inerente ao sujeito, a sua
condição temporal, o destino de um corpo doente, esvaziado de sua vida. Dadas as
características autobiográficas da obra, infere-se tratar esse sujeito do próprio artista.
Em Ninguém, tal sujeito se faz valer fora do espaço de representação mimética.
Inversamente, este se expõe pela presença do corpo real. Real que, conforme a concepção
proposta por Lacan, compreende aquilo que escapa às ideias, às palavras, à simbolização e
que, segundo Rivera (2013), é:
[...] que é uma espécie de fundo último das coisas, destacado da imagem, e que se
trata sempre de tentar representar, sem que tal operação jamais se cumpra de forma
definitiva. Real traumático, terrível, com o qual o sujeito se depara repetida e
violentamente (RIVERA, 2013, p. 21).
a obra desvela resíduos sígnicos; expõe um retrato, porém inacabado, elucida imprecisões do
rosto, mas ganha contorno ao suscitar a potência de vida entranhada em sua presentação.
Sem cair no equívoco de pretender alcançar um contorno preciso sobre a arte de
Leonilson, mesmo porque a obra resiste a tal postura – conforme as palavras do próprio
artista, “os trabalhos são todos ambíguos. Eles não entregam uma verdade diretamente, mas
mostram uma visão aberta” (LEONILSON, 1995, p. 128) –, ousamos afirmar que o que o
artista dá a ver é um exercício de investigação por meio da linguagem da arte, é a operação
reflexiva do seu próprio corpo, comunicação que o sujeito estabelece com o mundo por meio
do olhar e da sensibilidade – ação empreendida com o corpo e suas inter-relações, consigo
mesmo, com o outro, com o mundo, não só pelo vivido, mas também o não vivido; ação que,
portanto, constitui-se como uma experiência perceptiva do sujeito feito artista – “[...] o meu
trabalho é a minha observação sobre o mundo. Meu trabalho é minha observação sobre mim
mesmo...” (METRÓPOLIS, TV Cultura, Leonilson, 1993), afirma Leonilson, em entrevista ao
telejornal exibido pela TV Cultura.
A declaração de Leonilson remete à ideia de Merleau-Ponty (2013) de arte como
operação de expressão, caso se compreenda o trabalho do artista como a busca de realização
da expressão daquilo que se percebe. Para o filósofo, a arte expressa nosso modo carnal de
pertencer ao mundo. A “carne do mundo”, tecido vivo a que pertencemos por nosso corpo e
que não se limita a fronteiras objetivas, é o que inspira o artista. “Carne: habitadas por
significações ou significações encarnadas, as coisas do mundo possuem interior, são
fulgurações de sentido” (CHAUÍ, 2002, p. 155).
Ainda segundo Merleau-Ponty (2013), aquilo que se vê não se encerra apenas na
experiência subjetiva e nem pode subsistir em si mesmo; só pode haver vidente e visível com
a instituição do quiasma. Chauí (2002) explica essa questão da seguinte forma, “a Carne do
Mundo é o quiasma ou o entrecruzamento do visível e do invisível, do dizível e do indizível,
do pensável e do impensável, cuja diferenciação, comunicação e reversibilidade se fazem por
si mesmas como estofo do mundo” (CHAUÍ, 2002, p. 156). Inacabada, a percepção
(compreendida como “acesso à verdade”) oferece aberturas, falhas, fissuras, aquilo que
aparece ao mesmo tempo escapa. Igualmente, o fato de “dizer” contém indícios do “querer
dizer” que permite tentar reconstituí-lo, mas jamais apreendê-lo por completo, pois a
impossibilidade de uma relação unívoca entre as duas atividades revela sempre um
distanciamento, a existência de perdas, derivas, silêncios e vazios que se manifestam. A arte,
portanto, se institui num espaço intervalar, entre o corpo que percebe e as coisas percebidas,
entre o que se expressa e o que se deseja expressar. E é, nesse sentido, um duplo alusivo do
90
posse, a roupa foi a base eleita por Leonilson para cumprir sua tarefa simbólica e registrar
(como obra) sua substância e fisionomia.
As roupas, afetiva e pragmaticamente, recebem e guardam o contato do corpo: seu
cheiro, suas secreções, o toque de sua pele, até mesmo sua forma – é uma segunda pele; estas
recebem ainda suas vivências, emoções, sentimentos. É fragmento de vida que teima em
resistir à fugacidade, assegurar a lembrança, tornar o sujeito memorável, prolongar a vida.
Ainda que esse corpo se esvaia, as roupas conservam os contornos e sustentam os gestos da
“carne” que o habitou.
O pensamento de Didi-Huberman (2010) sobre carne/encarnado é pontual para se
pensar “o casaco” de Leonilson. Para o filósofo, a carne resulta do derrame pulsional que
subjaz em cada pintura/obra de arte – “O incarnat procede do vermelho, isto é, do sangue,
matéria por excelência – mas também do olhar, [...] meio do desejo” (DIDI-HUBERMAN,
2010, p. 13). Ao remeter à carne, o autor designa o interior do corpo em oposição à superfície,
sendo, num primeiro momento, o seu outro, a pele – como aquilo que mais se aproxima do
interior. Carne e pele produzem uma trança de superfície e profundidade corporais, onde se dá
a aparição e a desaparição – tal qual sugere reiteradamente não somente essa obra, mas grande
parte da produção do artista.
Na concepção de Sem título, Leonilson elege o tecido e a costura como procedimentos
e recorre à sua história pessoal como bagagem para compor metáforas do corpo. Ao empregar
a vestimenta para conformar seu discurso autobiográfico, Leonilson rasga a pele e revela seu
corpo. Este pode ser desnudado, pois o casaco pode ser retirado, aberto, virado pelo seu
avesso, o tecido pode ser esgarçado, o ponto da costura desfeito, o que permite explorar,
desvendar marcas e cicatrizes, enxergar a profundidade, a entranha escondida que sobe à
superfície. A carne da obra de Leonilson consiste na interioridade de seu corpo, que se
organiza a partir da percepção, do procedimento e acúmulo conservados pelo artista e que
exprime seu modo singular de atuar sobre o visível e ser por ele orientado.
A percepção que o artista tem do mundo é que configura a singularidade de sua obra e
conforma seu estilo. A obra é produção de sentido, expressão do corpo ampliada pela
percepção. “A percepção já estiliza” (MERLEAU-PONTY apud HAAR, 2000, p. 102), pois
perceber significa selecionar, dentre as aparências do “objeto” percebido, aquelas mais
emblemáticas. Perceber, portanto, enquanto modo distinto de apreender as coisas do mundo,
configura a maneira com que o artista sustenta sua arte, experiência que faz a obra ser distinta
de todas as outras. A arte como resultante dos processos de percepção e estilo é tecido que
une horizontes exteriores e interiores, objetividade e subjetividade.
92
FIGURA 30 - Leonilson,
Voilàmon couer, 1990.
Fonte: LAGNADO, 1995, p.
18/p. 23.
falar através da arte. Esta, que é fruto da transmutação, permeabilidade e permutação dos
desejos impossíveis de serem realizados, como propõe a psicanálise. Como sintoma16, isto é,
como expressão de um conflito psíquico e escape do real, sua produção remete àquilo que
precisa ser feito para aliviar uma tensão; e como sinthoma17, enquanto tentativa do sujeito
para dar conta do real, como solução singular que encontrou para lidar com o seu ser-estar no
mundo, é criação que visa atender a demanda por alívio e, como tal, sua obra faz suplência.
Enquanto sinthoma, portanto, pode ser entendida como aquilo que faz o sujeito padecer deste
gesto significante que está no cerne do ato de criar: um vazio constitutivo no qual vem alojar-
se a angústia, que é um furo em torno do qual se organiza sua arte.
Nesse sentido, a declaração de Merleau-Ponty (2013) a respeito do pintor francês Paul
Cézanne, bem que poderia ser aplicada a Leonilson – “[...] A pintura foi seu mundo e sua
maneira de existir” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 125); “[...] essa obra por fazer exigia essa
vida” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 141). Nos contornos da produção de Leonilson estão
delineados o gesto incisivo e a tessitura ardilosa do que foi esgarçado pelos traumas do seu
viver. As determinações de sua arte são a assinatura e os emblemas de uma vida que interpreta
a si mesma, e torna-se obra. A experiência criadora do artista parece insurgir de um desejo de
expressão e de um vazio que teima em ser preenchido, que suscitam no sujeito ação e
emergem como potência significadora. É latência/urgência que impele o sujeito à ação e
possibilita (mutuamente) a sua existência e a experiência da arte. Ao que parece a arte é, para
Leonilson, meio de libertação, forma encontrada pelo sujeito para lidar com aquilo que o
constitui. Em certa ocasião, o artista comparou seu trabalho a “orações, a uma religião que lhe
fornece símbolos” e declarou ser o seu trabalho “o seu ponto no mundo”.
Leonilson transformou a faticidade (e literalidade) de sua vida, conferindo-lhe um
sentido figurado e novo. Sua obra, no entanto, não é o efeito dessa faticidade, mas resposta a
ela – o que se trata, ao contrário, de submeter os acontecimentos e experiências vivenciados à
significação, e dela fazer arte. Tal qual ocorreu com a simbolização da AIDS, a extenuação do
corpo e a iminência da morte em sua obra.
Leonilson apreendeu a exata cadência do seu tempo. Contemporâneo ao seu próprio
tempo, o artista não se deixou cegar pelas luzes do presente, conforme a proposição de
Agamben (2009). Extemporâneo, captou as especificidades de seu tempo, o que o habilitou a
“falar” de si e, ao “falar” de si, “falar” igualmente do sujeito contemporâneo. Leonilson
“documentou” a si mesmo e às inquietudes de sua geração, discutiu as complexidades do
16
Refiro-me ao conceito já citado, proposto por Freud.
17
Conceito citado anteriormente, investigado por Lacan.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve como objetivo compreender de que modo as imbricações entre
arte e vida, visivelmente manifestas na produção de Leonilson, deflagram o arranjo estrutural
de linguagens na obra do artista e promovem a experiência da arte como tal. Produção
marcada pela dissolução de limites precisos entre as linguagens artísticas, a composição
estética de Leonilson privilegiou o diálogo entre palavra e imagem, questão que ocupou lugar
central de investigação na pesquisa.
Partindo-se do entendimento de que os liames entre vida e obra se constituíam como
um modo possível de operação das linguagens na arte de Leonilson, buscou-se demonstrar, a
partir da análise de obras do artista, que a condição autobiográfica da obra funciona como
“senha” que irrompe os modos de organização das linguagens na sua produção.
A obra de Leonilson, sem dúvida, flerta com a sua vida. Sua produção acomoda uma
narrativa “escrita” pelo próprio artista que, admitindo registros documental e ficcional, é
interpelada pelo encontro do artista consigo e com o mundo. A obra se deixou perceber farta
de notações autobiográficas, pois boa parte dos trabalhos abriga, quando não, dados,
fragmentos de vida do sujeito feito artista: seu próprio nome, as iniciais do seu nome, sua
altura, seu peso, registro de experiências particulares, peças de vestuário, objetos de uso
pessoal, o próprio sangue. Os elementos da composição plástica de Leonilson são, antes,
elementos que denunciam uma existência em subjetividade e como tal exigem a
especificidade de uma vida a qual se reporta.
A produção autobiográfica de Leonilson patenteia o estatuto da arte contemporânea de
estabelecer uma íntima relação com a vida, promover o enlace da estética a diversos campos
do conhecimento humano e suscitar novos domínios formais para a arte. A noção de que a
criação de uma obra de arte se faz em conexão com os sinais do seu tempo – no seu sentido de
acomodar, aderir e distinguir determinados acontecimentos – e seus significados se confirma
na produção de Leonilson. Inevitavelmente situados no tempo, sujeito-artista-obra se ligam à
conjuntura e parecem esmiuçar os funcionamentos dos processos de vida (do próprio artista e
do sujeito de uma forma geral), ampliando as possibilidades de se apreender e organizar o
mundo. Vinculada ao contexto, a produção de Leonilson, além de tocar nos limites de uma
narrativa pessoal, enreda uma contundente reflexão a respeito do homem contemporâneo –
mas o faz, cabe ressaltar, amparada pela particularidade da vida do sujeito-artista.
100
18
Leonilson se referia ao trabalho El Puerto, de 1992, apresentada no capítulo II.
101
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