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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS

RAQUEL DE SOUZA SILVA

LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL:


UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO

FORTALEZA – CEARÁ
2019
RAQUEL DE SOUZA SILVA

LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL:


UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado


Profissional em Letras do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Letras. Área de
concentração: Linguagens e Letramentos

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jaquelânia Aristides


Pereira.

FORTALEZA – CEARÁ
2019
Aos meus pais, meus maiores exemplos, pelo
amor, incentivo e confiança. À minha filha,
Maria Cecília, por ser meu maior presente. Ao
meu esposo, Luzardo, por estar sempre ao meu
lado. À minha família, por acreditar em mim.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por ter me dado o dom da vida, a saúde e a esperança que
me permitiram seguir em frente quando a batalha parecia difícil demais.
À minha filha, Maria Cecília, por fazer meus dias mais felizes e por suportar minhas
ausências.
Ao meu esposo, por ser meu maior incentivador, por estar presente em todos os momentos e
por ter sempre acreditado que daria certo.
À minha tia Joana, pelo amor de mãe que sempre oferta a mim e à minha filha.
À minha orientadora, professora Dra. Jaquelânia Aristides Pereira, por depositar em mim a
confiança necessária que me fez crescer como pesquisadora.
Às professoras da banca examinadora, pela leitura e discussão deste trabalho.
Aos colegas de turma do Mestrado Profissional em Letras, pelo apoio, pelas conversas e
companheirismo.
Às minhas amigas Amanda Tamires e Carla Alves, pelas vivências compartilhadas e pelo
incentivo durante o mestrado.
À minha querida amiga e companheira de trabalho Flávia, pelos ouvidos sempre disponíveis
para meus desabafos, pelas orientações e por compartilhar comigo suas experiências.
Ao núcleo gestor da escola em que trabalho, ao diretor Élcio e às coordenadoras e amigas,
Elisa Guimarães, Luciana Monteiro e Débora Márcia, por reconhecerem meu esforço, por me
ajudarem a conciliar os horários de estudo com os do trabalho e me incentivarem a ir em
frente.
Aos colegas de trabalho, em especial ao Daniel e à Isabella, pelo incentivo e apoio.
A todos os participantes da pesquisa, pela disponibilidade e contribuições. Sem eles, este
trabalho não seria possível.
À Capes, pela bolsa de estudo que ajudou a financiar esse período de estudos.
RESUMO

Esta pesquisa apresenta uma proposta interventiva de leitura literária para alunos de nono ano
do ensino fundamental. A pesquisa parte da necessidade de desenvolver o letramento literário
de jovens da educação básica com vistas à formação de leitores críticos. Para isso, foram
formuladas sequências didáticas de leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros, de
acordo com as metodologias da sequência básica do letramento literário e dos círculos de
leitura estruturados, propostos por Cosson (2016; 2017). Esperou-se com a leitura desses
contos formar leitores mais conscientes e críticos diante da realidade em que estão inseridos,
trabalhar o respeito frente à diversidade e contribuir para a desconstrução de estereótipos e
preconceitos ligados às diferenças étnico-raciais e de gênero. As discussões estão embasadas
em estudos dos seguintes autores: Koch & Elias (2006), Solé (1998), Lajolo (1991,2001),
Cosson (2016, 2017), Soares (2004), Cuti (2010), Munanga (2005), Duarte (2011) e Amâncio
(2008). Trata-se de uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa. A coleta de dados se deu
pelo desenvolvimento de oficinas de leitura de textos literários, pela análise das atividades
registradas nos portfólios dos alunos e dos áudios gravados durante as discussões de cada
oficina, bem como pela aplicação de questionários e anotações do diário de bordo da
pesquisadora. Os dados analisados demonstram que o trabalho de leitura com o texto literário
africano e afro-brasileiro contribuiu para o desenvolvimento literário, assim como para a
discussão e amadurecimento das questões pertinentes às relações étnico-raciais e de gênero. É
possível afirmar também que os alunos puderam rever alguns de seus posicionamentos acerca
do outro, da realidade social em que vivem e das temáticas trabalhadas como, por exemplo,
discriminação racial, preconceito e violência contra a mulher.

Palavras-chave: Sequência básica. Círculos de leitura. Literatura africana e afro-brasileira.


Letramento literário.
ABSTRACT

This research presents an interventional proposal of literary reading for ninth grade students.
The research starts from the need to develop the literary literacy of young people of basic
education with a view to the formation of critical readers. For this, didactic sequences of
literary reading with African and Afro-Brazilian tales were formulated, according to the
methodologies of the basic sequence of literary literacy and structured reading circles,
proposed by Cosson (2016, 2017). It was hoped by reading these stories to train readers who
are more aware and critical of the reality in which they are inserted, to work towards respect
for diversity and to contribute to the deconstruction of stereotypes and prejudices related to
ethnic-racial and gender differences. The discussions are based on studies by the following
authors: Koch & Elias (2006), Solé (1998), Lajolo (1991, 2001), Cosson (2016, 2017), Soares
(2004), Cuti (2011) and Amâncio (2008). This is an action research with a qualitative
approach. The data collection was carried out by the development of reading workshops for
literary texts, the analysis of the activities recorded in the students' portfolios and the audios
recorded during the discussions of each workshop, as well as the application of questionnaires
and annotations of the researcher's logbook. The analyzed data show that the reading work
with the African and Afro-Brazilian literary text contributed to the literary development, as
well as to the discussion and maturation of the questions pertinent to ethnic-racial relations
and gender. It is also possible to affirm that the students were able to review some of their
positions about the other, about the social reality in which they live, and about the topics they
worked on, such as racial discrimination, prejudice and violence against women.

Keywords: Basic sequence. Reading circles. African and Afro-Brazilian literature. Literary
literacy.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Imagem do vídeo da música “Eu sou de lá”........................ 53


Figura 2 – Slide com capas do livro A cidade e a infância.................... 59
Figura 3 – Atividade sobre preconceito racial 01.................................. 67
Figura 4 – Atividade sobre preconceito racial 02.................................. 68
Figura 5 – Produção textual (P35)........................................................... 69
Figura 6 – Produção textual (P36)........................................................... 70
Figura 7 – Produção textual (P31)........................................................... 71
Figura 8 – Produção textual (P33)........................................................... 72
Figura 9 – Notícia...................................................................................... 73
Figura 10 – Campanha contra racismo..................................................... 74
Figura 11 – Mural sobre Nelson Mandela................................................. 83
Figura 12 – Poema sobre diferenças raciais.............................................. 84
Figura 13 – Cartazes de combate ao racismo............................................ 84
Figura 14 – Frase motivadora.................................................................... 85
Figura 15 – Tirinha do Armandinho sobre machismo............................. 89
Figura 16 – Tirinha sobre machismo 01................................................... 90
Figura 17 – Tirinha sobre machismo 02................................................... 91
Figura 18 – Tirinha sobre machismo 03 .................................................. 91
Figura 19 – Tirinha sobre machismo 04................................................... 92
Figura 20 – Tirinha sobre machismo 05................................................... 92
Figura 21 – Tirinha sobre machismo 06................................................... 93
Figura 22 – Tirinha sobre machismo 07................................................... 93
Figura 23 – Tirinha sobre machismo 08................................................... 94
Figura 24 - Imagens da encenação da peça Maria.................................. 106
Figura 25 – Cartaz sobre violência contra a mulher 01........................... 106
Figura 26 – Cartaz sobre violência contra a mulher 02........................... 107
Figura 27 – Recorte do cartaz sobre violência contra a mulher.............. 107
Figura 28 – Cartaz sobre violência contra a mulher 03........................... 108
Figura 29 - Imagem das equipes reunidas nos círculos de leitura.......... 111
Figura 30 – Ilustração do conto “Lumbiá” 01........................................... 116
Figura 31 – Ilustração do conto “Lumbiá” 02........................................... 116
Figura 32 – Notícia produzida pela equipe 1 ........................................... 119
Figura 33 – Notícia produzida pela equipe 2 ......................................... 120
Figura 34 – Desenhos dos ilustradores do conto “Lumbiá”...................... 122
Figura 35 – Ilustração do conto “Olhos D’água” 01.................................. 127
Figura 36 – Ilustração do conto “Olhos D’água” 02.................................. 127
Figura 37 – Mural de memórias.................................................................. 131
Figura 38 – Ilustração do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”
01.............................................................................................. 139
Figura 39 – Ilustração do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”
02.............................................................................................. 140
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Gosto pela leitura. ......................................................................... 145


Gráfico 2 – Motivações para leitura.................................................................. 146
Gráfico 3 – Local onde costumam ler............................................................... 147
Gráfico 4 – Temas de leituras............................................................................ 147
Gráfico 5 – Gêneros da esfera literária que os alunos já leram...................... 148
Gráfico 6 – Alunos que conhecem a literatura africana e afro-
brasileira.......................................................................................... 149
Gráfico 7 – Leitura de textos produzidos por autores negros......................... 149
Gráfico 8 – Percepção sobre personagens negras na literatura
(moradia)........................................................................................... 150
Gráfico 9 – Percepção sobre personagens negras na literatura (classe social)
............................................................................................................. 151
Gráfico 10 – Primeiras coisas que os alunos pensam sobre África..................... 152
Gráfico 11 – Avaliação da participação nas oficinas............................................ 154
Gráfico 12 – Interesse sobre os assuntos abordados............................................. 156
Gráfico 13 – Contribuições da proposta para a visão crítica dos
alunos.................................................................................................. 157
Gráfico 14 – Mudanças na percepção sobre África.............................................. 159
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Caracterização dos personagens do conto “As mãos dos


pretos”............................................................................................. 76
Quadro 2 – Perfil dos personagens do conto “Lumbiá”.................................. 118
Quadro 3 – Perfil dos personagens do conto “Olhos d’água”........................ 128
Quadro 4 – Perfil dos personagens do conto “Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos”...................................................................................... 137
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................... 14
2 ENSINO DE LEITURA, LETRAMENTO LITERÁRIO E
FORMAÇÃO DE LEITORES NA ESCOLA.............................. 22
2.1 LEITURA NA ESCOLA.......................................................................... 22
2.2 LEITURA LITERÁRIA, LETRAMENTO LITERÁRIO E A
FORMAÇÃO DO LEITOR...................................................................... 25
2.2.1 Sequência básica de letramento............................................................. 29
2.2.2 Círculo de leitura literária..................................................................... 32
3 DIVERSIDADE E LITERATURA........................................................ 35
3.1 LEI Nº 10.639/03 E A PRÁTICA PEDAGÓGICA................................... 35
3.2 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA EM SALA DE
AULA........................................................................................................ 38
3.3 RELAÇÕES DE GÊNERO NOS CONTOS DE CONCEIÇÃO
EVARISTO................................................................................................ 41
4 METODOLOGIA.................................................................................... 45
4.1 TIPO DE PESQUISA................................................................................. 45
4.2 CONTEXTO DA PESQUISA.................................................................... 46
4.3 PARTICIPANTES...................................................................................... 46
4.4 DESCRIÇÃO DO CORPUS LITERÁRIO................................................. 47
4.5 PROCEDIMENTOS................................................................................... 49
4.6 INSTRUMENTOS..............................................................................,....... 51
4.6.1 Questionário inicial – Perfil do leitor...................................................... 51
4.6.2 Questionário final...................................................................................... 51
5 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS.............................................. 52
5.1 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO.......... 52
5.1.1 Primeira etapa: Oficina de apresentação................................................ 52
5.1.2 Segunda etapa: Sequências básicas com contos africanos...................... 58
5.1.2.1 Sequência básica I – Conto ―A fronteira de asfalto‖ ................................... 58
5.1.2.2 Sequência básica II – Conto ―As mãos dos pretos‖ ..................................... 72
5.1.2.3 Sequência básica III – Conto ―A saia almarrotada‖ .................................... 85
5.1.3 Terceira etapa: O contato com a literatura afro-brasileira.................... 94
5.1.3.1 Sequência básica IV – Conto ―Maria‖ ......................................................... 95
5.1.4 Quarta etapa: Círculo de leitura literária – Conto “O cego
Estrelinho”................................................................................................... 108
5.1.5 Quinta etapa: Círculos de leitura.............................................................. 111
5.1.5.1 Primeira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Lumbiá‖ ................. 112
5.1.5.2 Segunda apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Olhos D‘água‖
...................................................................................................................... 123
5.1.5.3 Terceira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Zaíta esqueceu de
guardar os brinquedos‖................................................................................. 132
5.1.6 Sexta etapa: Avaliação................................................................................ 143
5.2 ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS............................................................ 144
5.2.1 Questionário inicial – Perfil do leitor........................................................ 145
5.2.2 Questionário de avaliação final.................................................................. 154
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 161
REFERÊNCIAS......................................................................................... 163
APÊNDICES............................................................................................... 167
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO INICIAL – PERFIL DO LEITOR....... 168
APÊNDICE B - QUESTIONÁRIO FINAL................................................. 170
APÊNDICE C - MANUAL DIDÁTICO...................................................... 172
ANEXOS...................................................................................................... 234
ANEXO A – MÚSICA ―EU SOU DE LÁ‖.................................................. 235
ANEXO B – POEMA DE CONCEIÇÃO EVARISTO................................ 238
ANEXO C – TERMO DE ASSENTIMENTO PARA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES........................................................................................ 240
ANEXO D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO PARA MENORES DE IDADE...................................... 242
ANEXO E – PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP....................... 245
14

1 INTRODUÇÃO

Não é de hoje que se vem discutindo a necessidade e a importância da leitura na


vida das pessoas e, principalmente, dos alunos nas escolas. Isto porque a leitura está presente
nas mais diversas atividades do nosso cotidiano, desde as situações mais simples às mais
complexas. Para Souza; Cosson (2011, p. 101), ―ler é fundamental em nossa sociedade porque
tudo o que somos, fazemos e compartilhamos passa necessariamente pela escrita‖. Partindo
disso, o desenvolvimento da leitura deve ser uma das maiores preocupações da escola. No
entanto, os resultados de avaliações oficiais têm comprovado que grande parte dos alunos
apresenta muitos problemas em relação à leitura e à escrita. Conforme os resultados do PISA
(Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) do ano de 2015, o Brasil ocupa, em
relação a outros países da América Latina, uma das últimas posições no que se refere ao nível
de conhecimento esperado para um aluno que conclui seus estudos no ensino fundamental.
Além do PISA, outras avaliações da Educação Básica nos apontam resultados
negativos do desempenho dos alunos no tocante à leitura e à escrita há muito tempo. Os
resultados da Prova Brasil aplicada em 2017 pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica
(SAEB) revelam que uma parcela significativa dos estudantes ainda está nos níveis mais
baixos da Escala de Proficiência em Língua Portuguesa, principalmente no 9º ano do Ensino
Fundamental e 3º ano do Ensino Médio. Esses desempenhos insuficientes evidenciam o
insucesso da escola no desenvolvimento das competências leitoras e alertam para a
necessidade de mudanças profundas no ensino de língua materna no Brasil.
A partir disso, acreditamos que o objetivo do trabalho a ser desenvolvido na
escola deve ser a formação de leitores proficientes, ou seja, desenvolver um trabalho que vá
além de ensinar os alunos a decodificarem textos e fazer com que criem o hábito da leitura. É
preciso formar leitores capazes de enxergar o que está no texto, capazes de compreender e
atribuir sentidos ao texto, inserindo em suas leituras suas construções de conhecimento e
vivências de mundo.
Nesta perspectiva de leitura nos aproximamos do conceito de letramento como o
conjunto de práticas sociais nas quais os sujeitos se apropriam da leitura e da escrita para
promoverem mudanças em suas maneiras de ver o mundo e a eles mesmos. Assim sendo,
acreditamos que a leitura de textos literários surge como uma das melhores alternativas para
se propiciar um processo de letramento que permita aos alunos vivenciarem experiências
diversas, uma vez que a literatura pode conduzir o leitor a mundos imaginários, mas que
também permita que o leitor assuma uma atitude crítica em relação ao que foi lido e faça uso
15

do conhecimento adquirido em novas situações. Dessa forma, propomos com esta pesquisa
desenvolver o letramento literário de jovens de uma turma de nono ano do ensino
fundamental de uma escola da rede pública municipal de Fortaleza-Ce através de práticas de
leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros.
De acordo com Souza; Cosson (2011), o letramento literário é um tipo de
letramento singular porque é capaz de conduzir ao domínio da palavra a partir dela mesma e,
principalmente, porque cabe à literatura, uma vez que esta ocupa um lugar único em relação à
linguagem, ―[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em
palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas‖ (COSSON, 2016, p.17).
Dessa forma, o letramento literário não é somente adquirir habilidades para ler textos
literários, mas também desenvolver a competência de apropriar-se da palavra estética,
interpretando-a para que seja capaz de produzir significados e, assim, compreender e
ressignificar os textos. Nessa perspectiva, o leitor ultrapassa as linhas do texto, num ―processo
de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos‖ (PAULINO; COSSON,
2009, p. 67).
Cosson (2016) defende que a construção de uma comunidade de leitores é o
objetivo maior do letramento literário na escola. No entanto, para o autor, a literatura tem sido
tratada apenas como um apêndice da disciplina de Língua Portuguesa e a cada dia temos
vivenciado a ―falência do ensino da literatura‖ (COSSON, 2016, p.23). Isso porque, nas
escolas brasileiras, o trabalho não prioriza a leitura literária como fonte de descobertas e
construção de sujeitos críticos, pois as atividades desenvolvidas com o texto literário oscilam
entre ―a exigência de domínio de informações sobre a literatura e o imperativo de que o
importante é que o aluno leia, não importando bem o que, pois a leitura é uma viagem, ou
seja, mera fruição‖ (COSSON, 2016, p.22).
Muitas vezes, o trabalho com literatura na educação básica é guiado apenas pelo
livro didático, resumindo-se à leitura de textos fragmentados e atividades de interpretação
superficiais e mecanizadas que restringem a participação do aluno. Outras vezes,
principalmente no ensino médio, o ensino de literatura se restringe ao estudo da história das
escolas literárias com o levantamento de suas características e da biografia de seus escritores
mais conhecidos. Em relação ao ensino fundamental a situação piora, pois a literatura não
figura como componente curricular específico e fica a cargo do professor de língua
portuguesa delimitar como será sua abordagem de ensino dentro da carga horária da disciplina
Língua Portuguesa.
16

Se o espaço da literatura em ambiente escolar já é restrito, a situação fica ainda


mais grave quando se trata das literaturas afro-brasileira e africanas. Apesar da Lei nº
10.639/03 instituir o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação
básica, ainda é bastante restrito o trabalho com essas literaturas em sala de aula devido a
inúmeros fatores como, por exemplo, o desconhecimento da lei, o preconceito de professores,
pais e alunos, falta de material didático e a deficiência na formação docente. Após a
promulgação da referida lei, multiplicaram-se ações pontuais sobre educação para relações
raciais nas escolas brasileiras, mas os sistemas de ensino e as propostas curriculares ainda
apresentam uma baixa institucionalização da lei, gerando lacunas que favorecem a
manutenção de um ambiente escolar marcado pelas exclusões étnicas, pelo racismo e,
principalmente, pela dificuldade em se conviver com a diversidade.
A escola ensina que o povo brasileiro é resultado da mistura de três etnias: o
branco europeu, o negro africano e o indígena nativo. Porém, durante séculos, o sistema
educacional brasileiro colocou em segundo plano o estudo da importância dos negros e dos
índios para a formação social, cultural, política e econômica do país. No ambiente escolar, é
possível perceber claramente os efeitos nocivos ocasionados pelas práticas pedagógicas e pelo
currículo escolar que conservam práticas etnocêntricas que negam aos afro-brasileiros o
direito de se verem como protagonistas em sua própria história. A observação do cotidiano
escolar nos mostra que os estudantes ainda possuem muitos preconceitos e estereótipos em
relação aos negros revelados através de brincadeiras e comentários maldosos, mas, na maioria
das vezes, essas atitudes revelam falta de conhecimento da riqueza cultural dos africanos e
dos afro-brasileiros.
A partir da observação dessa realidade escolar, percebemos a necessidade de um
trabalho de formação capaz de atuar na ressignificação de imaginários, mudando esse cenário
de preconceitos e injustiças e formando cidadãos preparados para enfrentar a diversidade
social e cultural. Para isso, acreditamos que o trabalho de letramento com textos da literatura
africana e afro-brasileira pode contribuir de forma bastante eficaz, dada a função
humanizadora da literatura, pois, segundo Candido (2004, p. 180), ―a literatura desenvolve em
nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade, o semelhante‖.
A literatura africana apresenta uma abundante produção, representativa da grande
diversidade cultural e de valores característicos de um continente tão múltiplo como a África.
Porém, nesta pesquisa, tratamos apenas da literatura africana de países de língua portuguesa
que apresenta uma interessante relação entre história e ficção. Cada um dos países africanos
17

que tem o português como língua oficial, ou seja, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-
Bissau, Guiné Equatorial e São Tome e Príncipe tem sua própria história de colonização, suas
características sociais, culturais e étnicas que reverberam na produção de suas literaturas. Ao
levarmos essas literaturas para sala de aula os alunos têm a oportunidade de conhecerem as
diferentes manifestações do modo como o povo africano vê o mundo, valorizando as culturas
desses povos e contribuindo para a desconstrução de antigos estereótipos sobre o negro e os
africanos.
A literatura afro-brasileira também precisa ser trabalhada de forma mais efetiva
em sala de aula, pois o contato dos alunos com essas obras ainda é bastante limitado, uma vez
que, na maioria das vezes, essa literatura não aparece nos livros didáticos. A literatura afro-
brasileira deve ser lida, discutida e refletida, pois evidencia o protagonismo do negro que por
tanto tempo teve sua voz silenciada na literatura e na educação brasileira. Além disso, a
literatura afro-brasileira reflete acerca de questões relacionadas à situação do negro na
sociedade de hoje, fruto de um passado de sofrimento e que não lhe deu condições para se
manter de forma digna na sociedade, fomentando a existência de uma população excluída.
Porém, essa literatura também revela o espírito de resistência do negro e traz em seu bojo
protestos, denúncias, memórias e aspirações dos afrodescendentes brasileiros.
Além de um projeto de resistência e enfrentamento aos discursos preconceituosos
e excludentes, a literatura afro-brasileira é um meio pelo qual sujeitos negros expressam sua
própria subjetividade e experiências na sociedade brasileira. Trazer essa literatura para a sala
de aula possibilita aos alunos o conhecimento desses sujeitos intelectualmente ativos e o
reconhecimento de seus textos como representação artística de grupos sociais
desprivilegiados. Vozes que costumam não ser ouvidas em nossa sociedade e com as quais os
alunos podem desenvolver uma identificação positiva, contribuindo assim para sua autoestima
e para o sentimento de valorização.
Em nosso trabalho, essas vozes são representadas pela escritora Conceição
Evaristo, expoente da literatura afro-brasileira. Sua produção literária é marcada pela reflexão
em relação a questões relacionadas à etnia e gênero. Durante as práticas de leitura literária
desta pesquisa, trabalhamos quatro de seus contos, os quais denunciam as inúmeras
dificuldades pelas quais os afrodescendentes passam diariamente em uma sociedade
preconceituosa como a nossa. O protagonismo das figuras femininas, símbolos de resistência,
dos contos de Conceição Evaristo nos permitiu trabalhar as relações de gênero e levar os
alunos a refletirem sobre estruturas sociais cristalizadas e discursos que insistem em querer
atribuir à mulher uma posição de subordinação.
18

Além disso, ao oportunizar aos alunos mergulharem no universo das literaturas


africanas e afro-brasileira, no qual essas culturas são mostradas de forma positiva e livre de
estereótipos, a escola colabora de forma efetiva para reconstrução da história dos povos
africanos e afro-brasileiros, pois, comumente, a história do negro, sua luta e cultura são
abordadas apenas em datas específicas e, portanto, não fazem parte das discussões diárias da
escola. O texto literário que enfatize o homem negro ou a mulher negra como protagonistas de
sua história é um forte aliado para se trabalhar as relações étnico-raciais e de gênero em sala
de aula, compreender melhor nossas origens e promover reflexões acerca de problemas
humanos (sociais, políticos, ideológicos, individuais ou coletivos) que nos ajudem a entender
nossas próprias experiências.
Nesse sentido, no propósito de desenvolver a compreensão leitora dos alunos do
nono ano, na perspectiva de torná-los leitores críticos e conscientes de que a literatura pode
refletir o conjunto de valores, conceitos e discursos de cada sociedade, assim como suas
singularidades, propomos trabalhar com contos africanos e afro-brasileiros em ações
didaticamente organizadas baseadas na sequência básica de letramento literário e nos círculos
de leitura literária estruturados, de acordo com a proposta de Cosson (2016; 2017). Para o
trabalho com literatura africana, realizamos práticas de leitura com os seguintes contos: ―As
mãos dos pretos”, de Luis Bernardo Honwana (2010); ―Fronteira de asfalto” (2007) de José
Luandino Vieira; ―A saia almarrotada” (2009) e ―O cego Estrelinho” (2012) de Mia Couto.
Quanto à literatura brasileira, trabalhamos os seguintes contos da obra Olhos d‘água, da
escritora Conceição Evaristo (2016): ―Maria‖, ―Olhos d‘água‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos‖ e ―Lumbiá‖.
Nossa pesquisa apresenta, então, como objetivo maior desenvolver o letramento
literário de jovens da educação básica a partir de propostas de leitura com contos africanos e
afro-brasileiros. Nossos objetivos específicos foram: a)verificar a percepção dos estudantes
em relação à cultura afro-brasileira e africana; b)analisar a possibilidade de mudanças após as
práticas de leitura literária com os contos afro-brasileiros e africanos, a partir das respostas
aos questionários e da análise das atividades registradas nos portfólios; c)propiciar uma
educação para as relações étnico-raciais e de gênero através das literaturas africanas e afro-
brasileira; d)trabalhar o respeito frente à diversidade; e)contribuir para a desconstrução de
preconceitos e estereótipos ligados ao homem negro e sua cultura; f)trabalhar oficinas de
leitura literária a partir de contos africanos e afro-brasileiros com o nono ano do ensino
fundamental II.
19

Para isso, partimos da hipótese primária de que considerando a noção de


letramento como prática social, ações de letramento literário a partir de contos africanos e
afro-brasileiros podem contribuir positivamente para a formação de leitores críticos em
relação à diversidade de manifestações artísticas e literárias.
Tecemos como hipóteses secundárias as seguintes considerações sobre a pesquisa
desenvolvida: a) a observação prévia do ambiente escolar leva-nos a crer que os alunos, de
forma geral, ainda possuem uma visão estereotipada e exótica em relação às culturas afro-
brasileira e africana. Essa visão pode ser modificada por meio do letramento literário com
contos africanos e afro-brasileiros; b) as ações de letramento literário com contos africanos e
afro-brasileiros propõem a discussão sobre as relações étnico-raciais, preconceito, racismo e
diversidade cultural, de forma a refletir e problematizar tais questões, propondo aos alunos
repensarem suas ações em relação às temáticas, de modo a romperem paradigmas
preconceituosos na vida escolar e, consequentemente, na vida social.
Neste sentido, esta pesquisa é apresentada por seis seções que buscam discutir a
possibilidade de desenvolver o letramento literário de alunos do ensino fundamental a partir
de sequências didáticas de leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros.
Após este capítulo introdutório, o segundo capítulo inicia o referencial teórico da
pesquisa e tem como título ―Ensino de leitura, letramento literário e formação de leitores na
escola‖. Neste capítulo trazemos discussões teóricas sobre conceitos de leitura e o
desenvolvimento das competências leitoras na escola. Discutimos, ainda, a forma como o
ensino de literatura vem acontecendo nas escolas, o tratamento dado aos textos literários e a
sua importância para a formação de leitores críticos. Apresentamos ainda os conceitos de
letramento e letramento literário, além de explicarmos as propostas de ensino de leitura
literária utilizadas nesta pesquisa. Para isso, buscamos aporte teórico em: Cosson (2016;
2017), Koch; Elias (2006), Lajolo (1991, 2001), Soares (2004), Solé (1998), Souza; Cosson
(2011) e Paulino; Cosson (2009).
Em seguida, no capítulo ―Diversidade e Literatura‖, apresentamos a Lei nº 10.
639/03 que torna obrigatório o ensino dessas literaturas na educação básica brasileira e a
necessidade de se implantar ações pedagógicas que atendam às exigências dessa Lei.
Apresentamos também as literaturas africanas e afro-brasileiras, bem como a produção da
escritora afro-brasileira Conceição Evaristo e sua relevância para o desenvolvimento de uma
educação mais crítica e que respeite a diversidade. Estas discussões estão pautadas, entre
outros, nos seguintes teóricos: Munanga (2005), Amâncio (2008), Duarte (2011; 2013) e Cuti
(2010).
20

O quarto capítulo apresenta a metodologia adotada no nosso trabalho e os


percursos percorridos durante a realização da pesquisa. No quinto capítulo, ―Descrição e
análise dos dados‖, descrevemos a execução da proposta de intervenção em sala de aula,
seguida de análises pautadas nos teóricos que embasam a pesquisa.
Aos capítulos mencionados, seguem as considerações finais que enfatizam a
importância da leitura literária em sala de aula e a necessidade de se desenvolver o letramento
literário de jovens da educação básica. Além disso, mostram que os textos literários africanos
e afro-brasileiros oportunizam a aplicação da Lei nº 10.639/03 e favorecem o ensino de
literatura associados às questões étnico-raciais e de gênero.
Ao buscarmos pesquisas recentes que tratam do letramento literário a partir da
leitura das literaturas africanas e afro-brasileiras, encontramos algumas pesquisas que tratam
dessas literaturas separadamente, ou seja, abordam ou a literatura africana ou a literatura afro-
brasileira.
Denise Souto Pereira (2016), em sua dissertação O conto afro-brasileiro na sala
de aula: uma proposta sob a perspectiva do letramento literário desenvolveu práticas de
leitura literária com alunos do 9º ano com o objetivo de promover a formação de leitores
literários, mas abordou, especificamente, o conto afro-brasileiro. Trabalho semelhante foi
desenvolvido por Rafael Barros dos Santos (2015) em sua dissertação intitulada Contos afro-
brasileiros: uma proposta pedagógica com a literatura no ensino fundamental II. Nessa
pesquisa, o autor abordou contos retirados exclusivamente dos Cadernos Negros, publicado
pelo grupo paulista Quilombhoje. Já na dissertação Letramento literário: a literatura africana
e as novas tecnologias, Ellen Cristina Freire (2015) apresenta uma proposta de intervenção
com enfoque no letramento literário, mas trabalha apenas com contos africanos e propõe que
os alunos produzam narrativas a serem publicadas em redes sociais.
O artigo Narrativas afro-brasileiras e africanas e a cor da cultura: uma proposta
de intervenção para as aulas de leitura no Ensino Fundamental II, de Abreu (2016),
apresenta uma proposta de intervenção com literatura afro-brasileira e africana realizada com
o material dos livros animados de A cor da cultura e do livro Contos Africanos, de Nelson
Mandela. A pesquisa foi realizada em uma turma de sexto ano, através de oficinas com o
texto literário, mas não utilizou as metodologias do letramento literário de Rildo Cosson.
A relevância de nossa pesquisa, portanto, reside no fato de termos desenvolvido
uma proposta pautada nas práticas de leitura de histórias africanas e afro-brasileiras com
vistas à formação de leitores críticos, mas, principalmente, por ter propiciado o contato com
essas literaturas que oportunizam a discussão acerca das relações étnico-raciais e da
21

importância da promoção da diversidade. Além disso, a pesquisa pode se tornar fonte de


estudos para outros profissionais que tenham interesse pelo tema abordado.
22

2 ENSINO DE LEITURA, LETRAMENTO LITERÁRIO E FORMAÇÃO DE


LEITORES NA ESCOLA

Neste capítulo, discorreremos sobre a leitura desenvolvida na escola, a prática de


leitura literária e as contribuições do letramento literário para formação de leitores
proficientes a partir do trabalho com o texto literário, conforme explanaremos nas seções a
seguir.

2.1 LEITURA NA ESCOLA

A prática da leitura se faz presente em diversas atividades do cotidiano das


pessoas desde o momento em que passam a compreender o mundo. Segundo Freire (2005), ―a
leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa
prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente‖ (FREIRE, 2005, pag. 11). Dessa forma, antes mesmo do contato com os
livros, cada pessoa já possui uma leitura de mundo advinda de sua experiência de vida, uma
vez que todo indivíduo busca interpretar as coisas que estão ao seu redor.
Atualmente, desenvolver a leitura aparece como um dos objetivos prioritários da
escola, pois em uma sociedade letrada a leitura é imprescindível e ―ela provoca uma
desvantagem profunda nas pessoas que não conseguiram realizar essa aprendizagem‖ (SOLÉ,
1998, p. 32). Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), documento norteador da
educação básica, o ensino de língua portuguesa deve ter como objetivo o domínio da
linguagem e apresenta a leitura e a produção de textos como a base para a formação do aluno.
O ensino de Língua Portuguesa precisa estar atento à função social da leitura. Os
PCN (1998) propõem que a escola trabalhe a leitura e a escrita para que dessa maneira, forme
um aluno apto a se desenvolver enquanto leitor competente, capaz de ultrapassar o nível
explícito do texto e identificar os elementos implícitos, mas que também domine basicamente
a produção das diversas modalidades de textos. Os PCN definem leitura como:

o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação


do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o
autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informação,
decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que
implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais
não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o
que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de
23

compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições


feitas (BRASIL, 1998, p. 69).

Podemos perceber, a partir dessa definição, que o objetivo do ensino de leitura em


sala de aula deve apresentar práticas de leitura que promovam a reflexão e conduzam o aluno
à construção de sentidos. Nessa perspectiva, a escola é reconhecida como espaço responsável
pela sistematização da leitura, mas, para isso, é preciso que o conceito de leitura utilizado
ultrapasse a decodificação de signos linguísticos, levando o leitor a construir relações, fazer
inferências e confrontar as ideias apresentadas no texto aos seus conhecimentos prévios para
que ocorra uma efetiva compreensão. Os PCN nos trazem a ideia de que o leitor é um sujeito
ativo no processo de leitura e que o texto não possui um sentido único e pronto, mas, sim,
construído por meio do diálogo com o leitor. Segundo Koch & Elias (2006, p.13) esse trecho
reforça ―o papel do leitor enquanto construtor de sentido, utilizando-se, para tanto, de
estratégias, tais como seleção, antecipação, inferência e verificação‖.
Portanto, podemos perceber que essa concepção de leitura é baseada na interação,
bem como os conceitos de leitura compartilhados por diversos autores. Segundo Solé (1998,
p. 18), ―na leitura, o leitor é um sujeito ativo que processa o texto e lhe proporciona seus
conhecimentos, experiências e esquemas prévios‖. Para essa autora, a leitura é o processo
mediante o qual se compreende a linguagem escrita e que tanto o texto quanto o leitor
intervêm na compreensão.
De acordo com Solé (1998), a leitura pode ser considerada como um constante
processo de elaboração e verificação de previsões que levam à compreensão do texto, uma
vez que o leitor deve levantar diversas hipóteses durante a leitura e ter perspicácia para buscar
soluções quando não estiver compreendendo. A autora considera os conhecimentos prévios e
os objetivos de leitura do leitor essenciais para o estabelecimento de previsões e,
consequentemente, para a compreensão da leitura.

Assumir o controle da própria leitura, regulá-la, implica ter objetivo para ela, assim
como poder gerar hipóteses sobre o conteúdo que se lê. Mediante as previsões,
aventuramos o que pode suceder no texto; graças à sua verificação, através dos
diversos indicadores existentes no texto, podemos construir uma interpretação, o
compreendemos (SOLÉ, 1998, p.27).

Conforme Koch & Elias (2006), a leitura é uma atividade complexa de produção
de sentidos baseada na interação autor-texto-leitor e que, embora construída na interação, a
produção de sentidos durante a leitura deve ser feita levando-se em consideração a
materialidade linguística do texto e os conhecimentos prévios do leitor. Dessa forma, a leitura
24

não é uma atividade passiva, pois o leitor desempenha um papel ativo na construção de
significados do texto.
Portanto, a compreensão leitora é um processo de construção de sentidos que
requer um conjunto de procedimentos inter-relacionados que permitem ao leitor realizar uma
leitura proficiente. É necessário que a escola proporcione atividades que não sejam pautadas
apenas na extração de informações, mas que possibilitem ao aluno perceber seu papel ativo na
leitura, através do engajamento e uso de seus conhecimentos linguísticos, textual e,
principalmente, de mundo. Os alunos precisam ter contato com materiais que facilitem a
geração de sentidos e estimulem a formulação de estratégias que proporcionem a
compreensão do texto.
Nesse contexto, para se formar um leitor crítico, capaz de ter domínio sobre sua
leitura, é preciso conscientizar o aluno de que ele não é um simples receptor das ideias do
autor do texto. É preciso mostrar seu papel ativo na atribuição de sentido ao texto. Para isso, o
professor possui um papel primordial, de acordo com Orlandi (2012):

A contribuição do professor, em relação às leituras previstas para um texto, é


modificar as condições de produção de leituras do aluno, dando oportunidade a que
ele construa sua história de leituras e estabelecendo, quando necessário, as relações
intertextuais, resgatando a história dos sentidos do texto, sem obstruir o curso da
história (futura) desses sentidos (ORLANDI, 2012, p. 117).

No entanto, observamos outra realidade na prática de sala de aula. Na maioria das


vezes, a interpretação do texto é guiada pelo professor e é negado ao aluno o direito de chegar
às suas próprias conclusões. Presa a metodologias tradicionais de leitura, a escola ainda não
está desenvolvendo seu papel de formar leitores competentes e críticos de forma efetiva.
Atividades como as que envolvem simples leitura de um texto para responder a um
questionário proposto pelo professor ou atividades de leitura que não aprofundam a
compreensão do texto e não permitam troca de experiências não podem ser consideradas
como atividades que culminam no desenvolvimento da leitura. Muitas vezes, é privilegiado o
trabalho com uma grande quantidade de textos, mas não se prima pela qualidade do trabalho
nem pelo prazer da leitura.
Diante disso, faz-se necessário o desenvolvimento de práticas de leitura que
contribuam de fato para a formação de leitores mais críticos, reflexivos e conscientes de seu
papel ativo na construção de significados para o texto.
25

2.2 LEITURA LITERÁRIA, LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR

A leitura literária pode contribuir de forma significativa na formação do leitor na


escola, uma vez que através da literatura o leitor pode mergulhar na sua própria história a
partir da história do outro, pode ser conduzido a refletir sobre seu lugar na sociedade, além de
ter seu conhecimento cultural enriquecido. Conforme Colomer (2007), o contato com uma
grande diversidade de textos literários amplia os conhecimentos dos alunos a respeito da
diversidade social e cultural. Sobre a importância da leitura do texto literário, Zilberman
(2008) afirma:

Que a leitura é importante, todos sabemos: a leitura ajuda o indivíduo a se


posicionar no mundo, a compreender a si mesmo e à sua circunstância, a ter suas
próprias ideias. Mas a leitura da Literatura é ainda mais importante: ela colabora
para o fortalecimento do imaginário de uma pessoa, e é com a imaginação que
solucionamos o problema (ZILBERMAN, 2008, p.18).

As palavras da autora evidenciam a importância da leitura do texto literário para


um leitor em formação. Portanto, cabe à escola desenvolver um trabalho com textos literários
que conduza o educando a ler para somar conhecimentos de outros mundos, de outras
pessoas, de situações que ajudam a compreender-se e compreender o outro, pois como afirma
Lajolo (2001, p.44), ―a literatura é porta para variados mundos que nascem das várias leituras
que dela se fazem‖.
No entanto, alguns estudiosos fazem críticas quanto à escolarização da leitura
literária e a forma como o trabalho com o texto literário na escola tem sido realizado na
escola, pois consideram que esse trabalho não contempla a multiplicidade de sentidos e é
baseado, essencialmente, na extração de informações e aspectos gramaticais do texto.
Esse tratamento dado pela escola ao texto literário é alvo de crítica também dos
PCN:

O tratamento do texto oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento de


singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem.
É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola
em relação aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento
de questões outras (valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que
contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as
particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias
(BRASIL, 1998, p.27).

Apesar de enfocar na percepção das particularidades do texto literário, a crítica


realizada no excerto acima nos parece muito pertinente, uma vez que alerta para a importância
26

de um trabalho voltado para o processo de construção de sentidos pelo texto literário.


É importante salientar que as críticas são direcionadas a forma como o trabalho é
realizado e não em relação à presença da literatura na escola, pois além de ler textos
informativos, científicos e instrucionais, os alunos também precisam ler textos literários.
Sobre a leitura literária na escola, Soares (2005, p. 33) afirma:

É função e obrigação da escola dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura, e


isto inclui a leitura informativa, mas também a leitura literária, a leitura para fins
pragmáticos, mas também a leitura de fruição, a leitura que situações de vida real
exigem, mas também a leitura que nos permita escapar por alguns momentos da vida
real.

Se o trabalho com o texto literário for bem direcionado e mediado pelo professor,
os alunos podem estabelecer relações entre os textos literários e suas práticas sociais, uma vez
que o texto literário representa todos os aspectos característicos de uma sociedade e possibilita
que o leitor estabeleça relações entre sua experiência de vida individual e o social, refletindo
assim, na sua interpretação do texto literário. No entanto, observa-se que o estudo da literatura
na escola ainda segue banalizando os textos literários e limitando-se apenas ao estudo dos
aspectos históricos e estruturais da língua. Na maioria das vezes, o texto literário é reduzido a
leituras superficiais, observações simplistas e enumeração de características estilísticas.
Conforme Lajolo (1991), muitos professores fazem um mau uso do texto literário,
uma vez que usam apenas fragmentos dos textos ou ainda, usam o texto literário para
classificar e definir categorias. Ao tratar o texto literário desse modo, a escola distancia o
aluno da literatura, não permite que o aluno se aproprie de forma autônoma das obras
literárias e nem desperta o senso crítico e a sensibilidade dos alunos.
Cosson (2016) afirma que há uma discrepância entre o que se entende por
literatura no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Segundo o autor, o ensino de literatura
no ensino médio limita-se à cronologia da literatura brasileira e os textos literários lidos são
fragmentos que servem para comprovar as características dos períodos literários. No
Fundamental, ―a literatura tem um sentido tão extenso que engloba qualquer texto escrito que
apresente parentesco com ficção ou poesia‖ (COSSON, 2016, p. 21). Nesse nível de ensino,
leva-se muito em consideração a linguagem e o tema, dando prioridade a textos curtos e
contemporâneos que tenham humor como a crônica. Segundo Cosson (2016), os textos
literários ficam cada vez mais restritos às atividades de leitura extraclasse ou são substituídos
por outros gêneros que possuem entendimento mais simplificado, pois, na visão de muitos
27

professores, contribuem de forma mais eficaz para o ensino da língua padrão e a formação de
leitores.
O autor destaca como acontece o ensino da literatura no Ensino Fundamental:

[...] predominam as interpretações de texto trazidas pelo livro didático, usualmente


feitas a partir de textos incompletos, e as atividades extraclasses, constituídas de
resumos dos textos, fichas de leitura e debates em sala de aula, cujo objetivo maior é
recontar a história lida ou dizer o poema com suas próprias palavras. Isso quando a
atividade, que recebe de forma paradoxal o título de especial, não consiste
simplesmente na leitura do livro, sem nenhuma forma de resposta do aluno ao texto
lido, além da troca com o colega, depois de determinado período para a fruição. As
fichas de leitura, condenadas por cercear a criatividade ou podar o prazer da leitura,
são no geral voltadas para a identificação ou classificação de dados, servindo de
simples confirmação da leitura feita. (COSSON, 2016, p. 22)

Percebe-se que essas práticas são problemáticas e não se restringem ao trabalho


com texto literário, pois permeiam as diversas formas de contato dos alunos com todos os
tipos de textos. Outra dificuldade ao acesso à literatura na escola diz respeito ao livro didático
de português que, geralmente, apresenta fragmentos de textos literários, muitas vezes
utilizados como suporte para abordagem de conteúdos gramaticais. Além disso, o livro
didático, geralmente, apresenta atividades de compreensão textual, por meio de interpretações
esquematizadas e limitadas a exploração de dados explícitos, que restringem a participação do
aluno e não exploram a multiplicidade de sentidos que o texto literário proporciona ao leitor.
Cosson (2016) afirma que estamos vivenciando uma falência do ensino da
literatura. Ele afirma que é preciso mudar o rumo do ensino para que se possa cumprir o papel
humanizador da literatura. Para isso, o autor traz a proposta de ressignificar o trabalho de
leitura literária através do letramento literário, o qual propõe à escola uma experiência
diferenciada com a literatura. De acordo com Souza; Cosson (2011, p. 106), o objetivo maior
do letramento literário escolar ou do ensino da literatura na escola é formar ―um leitor capaz
de se inserir em uma comunidade, manipular seus instrumentos culturais e construir com eles
um sentido para si e para o mundo em que vive‖.
O termo letramento, assim como seu conceito, é algo recente no Brasil, pois só
passou a ser usado com o significado que conhecemos na atualidade a partir dos estudos de
Mary Kato na década de 80. De acordo com Magda Soares (2004), o termo surgiu pela
necessidade de nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que
ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico e que foram adquirindo visibilidade
à medida que a vida social e as atividades profissionais tornaram-se cada vez mais
dependentes da língua escrita. De acordo com a autora, ―letramento é o que as pessoas fazem
28

com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades


se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais‖ (SOARES, 2004, p. 72). De
acordo com Kleiman (1995), o termo letramento passou a ser utilizado para se referir a um
―conjunto de práticas de uso da escrita que vinham modificando profundamente a sociedade,
mais amplo do que as práticas escolares de uso da escrita, incluindo-as, porém‖ (KLEIMAN,
1995, p. 21).
Considera-se mais adequado usar o termo letramento no plural – ―letramentos‖ -
por se referir às possibilidades de participação dos sujeitos nas inúmeras práticas sociais da
escrita e por indicar ―as diferenças entre as práticas de leitura, derivadas de seus múltiplos
objetivos, formas e objetos, na diversidade também de contextos e suportes em que vivemos‖
(PAULINO, 2005, p. 56).
Conforme Souza; Cosson (2011) o letramento literário faz parte da expansão do
uso do termo letramento e integra o plural dos letramentos, sendo um dos usos sociais da
escrita. Contudo, é um tipo de letramento singular por possuir uma relação diferenciada com a
escrita. Ainda de acordo os autores, o letramento literário é singular porque conduz ao
domínio da palavra a partir dela mesma.
Em seu texto Letramento Literário: uma localização necessária (2015), Cosson
afirma:

[...] o letramento é menos uma prática social da escrita do que um processo de


construção de sentidos que se efetiva individual e socialmente; e o literário deixa de
ser aplicado apenas a um conjunto de textos, para ser reconhecido como um
repertório cultural constituído por uma grande variedade de textos e atividades que
proporcionam uma forma muito singular – literária – de construção de sentidos.
Disso resulta uma concepção do letramento literário como apropriação da literatura
enquanto linguagem que, por ser vazia em relação ao mundo nomeado, permite uma
experiência única de interação verbal e reconhecimento do outro e do mundo, até
porque é a grande responsável pela alimentação do corpo simbólico dos indivíduos e
das comunidades em que eles se inscrevem (COSSON, 2015, p. 182).

Nessa perspectiva, o letramento literário é bem mais do que ler textos literários e
desenvolver habilidades a partir dessas leituras. Trata-se de apropriar-se do texto literário e
tomá-lo para sua vivência, pois a literatura propicia o acesso a leituras significativas para o
crescimento pessoal do aluno, oportunizando transformações significativas em sua forma de
ver e viver o mundo.
Indo ao encontro da necessidade de melhorar o ensino de literatura nas escolas,
estudos apontam o letramento literário como uma alternativa para formar leitores. Por essa
razão, torna-se necessário que o docente conduza o estudante para a leitura desse tipo de
29

texto, sendo o mediador de um processo que vai além de adquirir habilidades para ler o texto
literário. O leitor vai além das linhas do texto, num ―processo de apropriação da literatura
enquanto construção literária de sentidos‖ (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). O docente
deve estar apto para mediar a construção literária dos sentidos e desafiar os alunos para
leituras mais complexas, como preconizam os autores a seguir:

O letramento literário enquanto construção literária dos sentidos se faz indagando ao


texto quem e quando diz, o que diz, como diz, para que diz e para quem diz.
Respostas que só podem ser obtidas quando se examinam os detalhes do texto,
configura-se um contexto e se insere a obra em um diálogo com outros tantos textos
(SOUZA; COSSON, 2011, p. 103).

Para Cosson (2016), a leitura é o objetivo principal desse tipo de letramento e


deve ser, portanto, discutida, analisada, questionada e compartilhada, pois ao compartilhar a
interpretação, o leitor amplia os sentidos que construiu individualmente e se percebe como
membro de uma coletividade. ―Ler implica troca de sentidos não só entre o escritor e o leitor,
mas também com a sociedade onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultado de
compartilhamentos de visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço‖ (COSSON,
2016, p. 27). O autor defende que o letramento literário busca formar uma comunidade de
leitores que, assim como toda comunidade, saiba reconhecer os laços que unem seus membros
e que irá transpor os limites da escola, pois fornece a cada estudante uma maneira própria de
ver o mundo.
Em sua obra Letramento literário: teoria e prática (2016), Cosson apresenta
estratégias que visam promover o letramento literário na escola, através do trabalho com as
sequências básica e expandida. Porém, destaca que as sequências não são uma fórmula
imutável e perfeita. Ao aplicá-las, cada professor poderá modificá-las e encontrar novos
caminhos para realizar um letramento literário adequado aos seus alunos e à sua escola. Já na
obra Círculos de leitura e letramento literário (2017), Cosson apresenta a metodologia de
círculo de leitura para efetivar o letramento literário na escola.

2.2.1 Sequência básica de letramento

A sequência básica e a sequência expandida de letramento são propostas de ensino


de leitura literária na escola básica, desenvolvidas por Cosson (2016). Esses métodos de
trabalho com o texto literário ultrapassam os limites do ensino tradicional e propõem a
exploração desse tipo de leitura de forma mais ampla e significativa.
30

Cosson (2016) descreve três etapas do processo de leitura: a antecipação, a


decifração e a interpretação. De acordo com o autor, a primeira etapa, a antecipação, consiste
nas variadas ações que o leitor realiza antes de penetrar no texto propriamente dito; a
decifração consiste em adentrar no texto por meio das letras e das palavras; e a interpretação,
etapa mais importante, consiste na construção do sentido do texto, envolvendo um diálogo
entre autor, leitor e texto.
A proposta de sequência básica de letramento literário é pautada por essas três
etapas como processo de leitura. Após essa definição, Cosson (2016) sistematiza a
metodologia utilizada para a aplicação das sequências, a qual ele divide em três perspectivas:
a perspectiva da oficina, do andaime e do portfólio.
De acordo com Cosson (2016), ao aplicar a sequência em forma de oficinas, o
estudante deve ser levado a construir o conhecimento através da prática, ou seja, aprender
fazendo. Na nossa pesquisa, seguimos a proposta de sequência básica de letramento literário
de Cosson (2016), pautando-se na perspectiva de oficinas.

O princípio da oficina se faz presente na alternância entre as atividades de leitura e


escrita, isto é, para cada atividade de leitura é preciso fazer corresponder uma
atividade de escrita ou registro. Também a base de onde se projetam as atividades
lúdicas ou associadas à criatividade verbal que unem as sequências (COSSON,
2016, p. 48).

A segunda perspectiva, a técnica do andaime, preconiza que deve haver a troca de


conhecimentos entre docente e alunos, além de transferir para os estudantes as condições
necessárias para que construam conhecimentos também. ―Ao professor, cabe atuar como um
andaime, sustentando as atividades a serem desenvolvidas de maneira autônoma pelos alunos‖
(COSSON, 2016, p. 48). Já o portfólio, a terceira perspectiva, consiste em fazer o registro das
diversas atividades realizadas para que o docente possa visualizar o crescimento dos
estudantes através da comparação dos resultados iniciais e finais.
Apresentados o processo de leitura adotado e as estratégias metodológicas de
aplicação, Cosson (2016) apresenta as quatro etapas de sua sequência básica de letramento
literário: motivação, introdução, leitura e interpretação.
A motivação, primeiro momento da sequência básica, consiste, basicamente, em
preparar o aluno para entrar no texto e deve ser planejada em consonância com o texto que vai
ser lido, correlacionando aspectos que tenham relação direta ou indireta algum aspecto do
texto. Este passo pode se realizar por meio de questionamentos que antecedam a leitura, por
meio de uma dinâmica, de construção de uma situação em que os alunos devam se posicionar
31

diante do tema ou ainda pode-se recorrer a outras linguagens como vídeos, imagens e
músicas, por exemplo. Segundo Cosson (2016), as práticas de motivação mais bem-sucedidas
são aquelas que estabelecem laços com o texto que vai ser lido a seguir.
Após o momento inicial, inicia-se a introdução da obra que tem como objetivo
apresentar autor e obra, compartilhando os critérios de seleção utilizados para a escolha do
texto. Cosson (2016) enfatiza que independente da estratégia utilizada para introduzir a obra,
o professor não pode deixar de apresentá-la fisicamente aos alunos e sugere que o professor
faça a leitura da capa e das orelhas do livro, as quais, na maioria das vezes, trazem uma
apreciação crítica da obra. Porém, nesta etapa, o professor precisa ter o cuidado para só trazer
informações que ajudem a entender a obra.
O momento da leitura, terceira etapa da sequência, requer o acompanhamento do
professor, uma vez que, segundo Cosson (2016), a leitura escolar precisa de acompanhamento
e direcionamento, sem esquece os objetivos. O acompanhamento da leitura permite que o
professor auxilie os estudantes em suas dificuldades de leitura, além disso, serve para que os
alunos possam ser chamados a demonstrarem os resultados de suas leituras. Quando o texto
for longo, Cosson (2016) orienta que o ideal é que a leitura seja feita em um ambiente fora da
escola por um período determinado.
A quarta etapa é a interpretação, na qual o leitor constrói os sentidos do texto a
partir das inferências e previsões que havia feito antes e durante a leitura e da mesma forma
com seus conhecimentos prévios. Cosson (2016) propõe pensar a interpretação em dois
momentos: o interior e o exterior. O primeiro é aquele em que ocorre a decifração por partes
para que haja a compreensão geral da obra. No segundo momento, ocorre a materialização da
interpretação e a socialização da construção de sentidos da obra, em uma comunidade de
leitores. A socialização das leituras é o fato que diferencia e potencializa o trabalho de
letramento literário realizado na escola.
Após as socializações e discussões sobre a leitura, devem ser feitas propostas de
interpretação, as quais correspondem ao registro do processo interpretativo. O tipo de
atividade a ser proposta pelo professor deve adequar-se ao texto lido e a outros fatores,
podendo ser uma tarefa simples como desenhar uma cena da narrativa ou uma tarefa
complexa como, por exemplo, realizar uma feira cultural.
A partir de todas essas etapas, o leitor estabelece uma relação intensa com o texto
e consegue construir significados sobre o que lê. Para Cosson (2016), o centro de sua proposta
é a formação de um leitor cuja competência ultrapasse a mera decodificação dos textos, de um
leitor que se apropria de forma autônoma das obras e também do próprio processo da leitura,
32

enfim, a formação de um leitor literário. Portanto, escolhemos e adotamos a sequência básica


para o ensino de leitura literária em nossa pesquisa com o objetivo de ampliar o olhar crítico
de nossos alunos sobre os textos, na perspectiva de formarmos leitores críticos. No entanto,
além da sequência básica, utilizamos também a metodologia do círculo de leitura como forma
de ampliar e diversificar o trabalho com texto literário em nossa pesquisa. Explicaremos essa
metodologia na seção a seguir.

2.2.2 Círculo de leitura literária

Para se efetivar o letramento literário na escola, de acordo com Paulino e Cosson


(2009, p.74), é importante o ―estabelecimento de uma comunidade de leitores na qual se
respeitem a circulação dos textos e as possíveis dificuldades de respostas à leitura deles‖. O
círculo de leitura é uma prática de leitura e compartilhamento coletivo de textos que estimula
a formação de uma comunidade de leitores. Cosson (2017) define comunidade de leitores com
a ajuda da teoria do polissistema de Even-Zohar.

[...] uma comunidade de leitores é definida pelos leitores enquanto indivíduos que,
reunidos em um conjunto, interagem entre si e se identificam em seus interesses e
objetivos em torno da leitura, assim como por um repertório que permite a esses
indivíduos compartilharem objetos, tradições culturais, regras e modos de ler
(COSSON, 2017, p.138).

A atividade principal de um círculo de leitura é a leitura compartilhada de uma


obra. Para Cosson (2017), o círculo de leitura é uma prática privilegiada de grupos de leitores
que se reconhecem como parte de uma comunidade de leitores específica devido a três
motivos: o primeiro porque ao lerem juntos os participantes demonstram o caráter social da
interpretação dos textos, apropriando-se e manipulando o repertório com maior grau de
consciência; segundo porque a leitura em grupo estreita os laços sociais, reforça identidades e
aumenta a solidariedade entre as pessoas; e o terceiro motivo trata-se do fato dos círculos de
leitura possuírem um caráter formativo, pois proporcionam uma aprendizagem coletiva e
colaborativa.
Considerando o modo de funcionamento, Cosson (2017) divide os círculos de
leitura em três tipos: estruturado, semiestruturado e aberto ou não estruturado. Nos círculos
estruturados há uma estrutura previamente estabelecida e os participantes seguem um roteiro
com atividades bem definidas para leitura, discussão e registro das conclusões; o segundo
tipo, os círculos semiestruturados são guiados por um condutor que fica responsável por
33

organizar as atividades, enquanto que nos círculos abertos ou não estruturados as atividades se
desenvolvem como uma conversa entre amigos, sendo conduzida sem regras e de forma
coletiva. Cosson (2017) enfatiza que na escola os círculos de leitura devem iniciar
estruturados, pois os alunos que nunca passaram por esse tipo de atividade precisam ser mais
fortemente guiados na leitura e nas discussões.
As atividades de leitura do círculo de leitura, conforme Cosson (2017) possuem
três fases: o ato de ler, o compartilhamento e o registro. O primeiro refere-se ―ao encontro
inalienável do leitor com a obra‖ (COSSON, 2017, p. 168), ou seja, a leitura física do texto
que pode ocorrer de forma individual ou coletiva de acordo com a organização do círculo de
leitura. A segunda fase compreende duas etapas: a preparação para a discussão, através da
anotação de impressões sobre o texto, e a discussão propriamente dita, ou seja, o debate sobre
a obra lida. A terceira fase refere-se ao registro que deve ocorrer ao final da leitura e é ―o
momento em que os participantes refletem sobre o modo como estão lendo e o funcionamento
do grupo, assim como sobre a obra e a leitura compartilhada‖ (COSSON, 2017, p. 171). De
acordo com o autor, esses registros podem ser feitos de forma variada e permitem que o
professor verifique e conduza o processo formativo do leitor.
Baseando-se nos círculos de literatura propostos por Harvey Daniels (2002),
Cosson (2017) propõe que para a realização de um círculo de leitura, inicialmente, seja feita a
seleção dos livros pelo professor que, posteriormente, deverá apresentá-los a turma para que
os grupos de alunos sejam definidos. Em seguida, é estabelecido um cronograma de leituras e
discussões da leitura nos grupos. Segundo o autor, só depois desse momento inicial é que os
grupos partem iniciam a leitura da obra e passam a fazer os registros. Esses registros podem
ser realizados através de simples anotações ao longo do texto ou até em diários de leituras,
nos quais os alunos registram suas impressões.
Nessa fase, Cosson (2017) apresenta, baseando-se em Daniels (2002), as fichas de
função como forma de registro. As fichas de função são uma espécie de ficha de leitura que o
professor elabora e o aluno deve preencher de acordo com a função que ele assumir no grupo.
As várias funções são:

a) Conector – liga a obra ou trecho lido com a vida, com o momento;


b)Questionador – prepara perguntas sobre a obra para os colegas, normalmente de
cunho analítico, tal como por que os personagens agem desse jeito? Qual o sentido
deste ou daquele acontecimento?
c)Iluminador de passagens – escolhe uma passagem para explicitar ao grupo, seja
porque é bonita, porque é difícil de ser entendida ou porque é essencial para a
compreensão do texto;
d)Ilustrador – traz imagens para ilustrar o texto;
34

e)Dicionarista – escolhe palavras consideradas difíceis ou relevantes para a leitura


do texto;
f)Sintetizador – sumariza o texto;
g)Pesquisador – busca informações contextuais que são relevantes para o texto;
h)Cenógrafo – descreve as cenas principais;
i)Perfilador – traça um perfil das personagens mais interessantes (DANIELS, 2002
apud COSSON, 2017, p. 142-143).

Cosson (2017) enfatiza que nem todas as funções precisam ser preenchidas e que
o professor pode criar novas funções de acordo com o texto lido. No entanto, Daniels (2002),
de acordo com Cosson (2017), considera que as funções de conector, questionador,
iluminador e ilustrador são as mais importantes, pois estão ligadas aos hábitos de leitura de
um leitor maduro. Portanto, a distribuição de fichas de função entre os alunos não é uma
obrigação, uma vez que outras formas de registro podem ser utilizadas. Além disso, os
registros podem ser utilizados como forma de avaliação para os círculos de leitura
institucionais. O importante é que o círculo de leitura promova ―o encontro do leitor com a
obra‖ (COSSON, 2017, p. 174).
No próximo capítulo, dissertaremos sobre literatura afro-brasileira e africana, uma
vez que nossa proposta é promover o letramento literário através do trabalho com contos afro-
brasileiros e africanos.
35

3 DIVERSIDADE E LITERATURA

A diversidade que permeia a sociedade brasileira exige reflexões sobre como agir
na formação desenvolvida pela escola. A cada dia, a sociedade do século XXI passa por
inúmeras transformações sociais, as quais incidem diretamente sobre a escola que assume o
importante papel de formar alunos conscientes e compromissados com essas transformações.
A escola deve formar sujeitos que, para além de críticos, sejam também respeitosos com o que
é diferente, que saibam respeitar a diversidade e a pluralidade de ideias.
Diante desse contexto escolar, a literatura deve ser trabalhada em sala de aula
partindo do pressuposto de que ela pode propiciar uma educação humanizadora, pois o texto
literário pode ser compreendido como a representação de experiências humanas ao mesmo
tempo que nos diz ―o que somos e nos incentiva a desejar e a expressão o mundo por nós
mesmos‖ (COSSON, 2016, p.17). A literatura é um instrumento privilegiado para se levar a
reflexão sobre as formas de significar o mundo e as relações que nele se estabelecem.
O trabalho com literatura africana e afro-brasileira possibilita a discussão e
reflexão sobre a diversidade histórica e cultural do povo brasileiro, bem como a construção de
laços de troca de tradições, costumes e cultura através do espaço crítico da sala de aula. As
literaturas africanas e afro-brasileira em sala de aula contemplam, significativamente, as
tradições negras que marcaram e continuam a marcar a diversidade sociocultural que os
alunos estão inseridos e por isso precisam ser valorizadas. Além da temática étnico-racial,
essas literaturas e, em especial, o texto literário afro-brasileiro de autoria feminina, como a
produção de Conceição Evaristo abordada nesta pesquisa, possibilitam reflexões a respeito da
diversidade de gênero, uma vez que é um texto comprometido com o universo da mulher
negra.
Assim, neste capítulo abordaremos o trabalho com as literaturas africanas e afro-
brasileiras em sala de aula, explicitando a Lei nº 10. 639/03, e suas contribuições para a
realização de práticas pedagógicas que abordem questões pertinentes às relações étnico-
raciais e de gênero.

3.1 LEI Nº 10.639/03 E A PRÁTICA PEDAGÓGICA

À época da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei


9.394/96), doravante LDB, nenhum de seus artigos mencionava a obrigatoriedade do ensino
36

da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currículos da educação básica. A luta dos
Movimentos Sociais, em específico dos Movimentos Negros, colaborou para a solidificação
de ações afirmativas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais historicamente
estabelecidas no país. Entre essas ações, destaca-se a promulgação da Lei Federal nº 10.639,
de janeiro de 2003, a qual alterou a Lei nº 9.394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, na Educação Básica.

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo
da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados
no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e
de Literatura e História Brasileiras.
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‗Dia Nacional
da Consciência Negra‘ (BRASIL, 2003, p. 01).

Os artigos incorporados à LDB acarretaram grandes avanços nas discussões


acerca do reconhecimento dos direitos da população afro-brasileira e na discussão de como o
currículo pode atuar como forma de combate ao racismo. Após cinco anos, essa lei sofreu
uma mudança, foi alterada pela Lei nº 11.645/08, que acrescentou no currículo os estudos da
História e Cultura Indígena1. Essas leis visavam reparar a memória e a cultura desses dois
povos que, apesar de serem pilares fundamentais da base étnica brasileira, sofreram séculos de
exclusão e injustiças sociais.
A Lei nº 10.639/03 é uma ferramenta importante para a desconstrução da
ideologia de igualdade racial no Brasil, bem como para o combate ao racismo e ao
preconceito que são direcionados à população negra. Essa lei pode atuar de modo que
contribua para superar a negação e o silenciamento da cultura africana e afro-brasileira nos
currículos das escolas brasileiras. Para isso, a escola deve propiciar o debate sobre posturas
preconceituosas e discriminatórias da sociedade, mas que também fazem parte do cotidiano da
escola, visando construir relações mais igualitárias, já que isso não favorece apenas aos
negros ou aqueles que são vítimas de preconceitos, mas a todos os cidadãos. Assim:

O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa


apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras
ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação
envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas

1
Neste trabalho será tomada como base a Lei 10.639/03 por atender a temática proposta.
37

afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a
todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto
de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se
desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza
econômica e social da identidade nacional (MUNANGA, 2005, p. 16).

A dificuldade de aceitação da diversidade étnica e cultural cria entraves para o


ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Não se trata, apenas, de cumprir uma
Lei, mas de transformar as estruturas pessoais e sociais historicamente construídas de forma
preconceituosa. É preciso abandonar velhos estereótipos arraigados na nossa sociedade desde
o período em que os negros foram escravizados e buscar compreender que suas contribuições
para a formação da identidade e cultura brasileira foram negadas por muitos séculos, mas
precisam ser valorizadas, reconhecidas. Mas para isso é preciso que a escola desenvolva uma
educação para a diversidade, tendo como foco as diferenças e a construção de projetos que
atendam tais necessidades.

Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes


preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos
sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a
educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de
questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos
humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados
(MUNANGA, 2005, p. 17).

A escola precisa contemplar em seu currículo todas as diferenças culturais e


étnicas. Não é difícil observar a pouca representatividade do negro e de sua cultura nos
conteúdos escolares e na maioria dos livros didáticos. Além disso, ainda predomina nos livros
didáticos uma visão que enfatiza o papel de vítima do negro. De acordo com Munanga (2005),
os livros e outros materiais didáticos pautam-se na perspectiva eurocêntrica da história e da
formação brasileira e, por essa razão, carregam os conteúdos viciados, depreciativos e
preconceituosos em relação aos povos e culturas que não são oriundos do mundo ocidental.
Dessa forma, os livros didáticos apresentam uma versão que não mostra o negro como sujeito
ativo de sua história, fazendo com que o aluno tome como verdadeira essa visão. Isso
contribui para a formação e manutenção de preconceitos que permeiam a sociedade e faz com
que o aluno negro não se veja na realidade mostrada pelos livros.
Outro entrave para a aplicação da Lei está no fato da temática ainda ocupar lugar
secundário nos currículos dos cursos de licenciatura e pedagogia, o que contribui para que
muitos professores não se sintam capacitados a trabalhar a temática. A discussão sobre
diversidade étnico-racial nas escolas e práticas pedagógicas de superação do racismo ainda
38

são escassas na formação de professores no Brasil. Essa deficiência na formação de


professores compromete a efetividade plena da lei. Segundo Amâncio (2008), quando
deixamos de trabalhar questões referentes à origem do povo brasileiro, que também é
africana, contribuímos para a manutenção de uma realidade escolar repleta de práticas
pedagógicas discriminatórias e excludentes.
No entanto, a literatura, por ser um modo específico que a humanidade encontrou
para compreender a realidade e assim fazer o registro dos modos coletivos de pensar, talvez
seja a forma mais ampla e eficaz de se trabalhar a história e a cultura africana e afro-brasileira
em sala de aula. A inserção das literaturas africanas e afro-brasileira no currículo pode
apresentar novos textos e contextos, fomentando o respeito às manifestações artísticas de dois
espaços diferentes, mas que possuem uma relação histórica. Além disso, pode ajudar a
desenvolver a capacidade de compreender a diversidade e de combater a discriminação racial,
valorizando a pluralidade, as diferenças culturais e a não aceitação das desigualdades.

3.2 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA EM SALA DE AULA

Os textos em geral favorecem a descoberta de sentidos, mas são os textos


literários que, ao partir de fatos reais e propiciar um diálogo entre o campo histórico e o
ficcional, o fazem de modo mais abrangente. Assim, ao inserir as literaturas africanas de
países que falam a língua portuguesa no currículo da educação básica, os educandos passarão
a conhecer as diferentes manifestações oriundas do modo de ver o mundo do povo africano,
suas práticas de oralidade e seu rico universo linguístico e cultural.
As literaturas africanas dos países que possuem a língua portuguesa como idioma
oficial, isto é, a de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique,
guardam suas particularidades, apesar de o contexto de suas produções terem sido gerados de
forma semelhante. Todos esses países africanos vivenciaram a luta pela libertação colonial,
assim como o Brasil, e a literatura passou a ser um instrumento de reivindicação de uma
geração que não desejava apenas liberdade, mas que também buscava construir novamente
uma identidade cultural a partir da conscientização coletiva.
Na produção literária do período das lutas pela independência é possível perceber
singularidades desses países, o que contribui para que se perca a noção equivocada de que a
África é uma só, é tudo igual. Além disso, cada país tem grandes escritores como, por
exemplo, Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Pepetela, João de Melo, Mia Couto,
39

Noêmia de Souza, Paulina Chiziane, Luís Bernardo Honwana, Ana Paula Tavares, Germano
Almeida e tantos outros que contribuem para a formação de cânones da literatura africana.
Apesar da produção literária africana ser bastante vasta, não é muito comum
encontrarmos livros de literatura africana nos acervos das bibliotecas escolares, pois o
mercado editorial brasileiro pouco investe nessa literatura, uma vez que sua aquisição
geralmente é cara. Conforme Amâncio (2008, p.83):

[...] embora fiquem constatadas a riqueza e a importância da leitura de tais textos,


emerge uma questão de ordem prática: como processar essa viagem, se o acesso ao
livro africano continua raro, caro e o grande mercado editorial brasileiro não investe
significativamente no potencial dessas literaturas estrangeiras provenientes dos
países africanos de Língua Portuguesa, principalmente quando produzida por mãos
de pretos?

Para a autora, as literaturas africanas ainda não conquistaram um espaço


significativo no mercado brasileiro porque, em sua maioria, as obras não são publicadas no
Brasil e isso as encarece. Mas também, devido ao preconceito arraigado em nossa sociedade
que não valoriza essa literatura por ser oriunda de países africanos e, principalmente, por ser
produzida por pessoas negras.
Para Amâncio (2008), o trabalho com as literaturas africanas de países de língua
portuguesa abrirá espaço para o estudo da história dos negros africanos e dos negros afro-
brasileiros, desconstruindo a ideologia de que o negro é intelectualmente incapaz e fazendo
com que a nova Lei contribua para o resgate da autoestima e da identidade negra em nosso
país. Assim, justifica-se a importância de estudar essas literaturas, mas é importante que se
estude também a literatura afro-brasileira para que se conheça o diálogo que se estabeleceu
entre os autores brasileiros e africanos.
Assim como as literaturas africanas de países de língua portuguesa estão em
processo de formação, a literatura afro-brasileira se encontra em pleno processo de produção e
construção. Segundo Duarte (2011), enquanto muitos ainda se perguntam se a literatura afro-
brasileira realmente existe, a cada dia as pesquisas apontam para o rigor dessa literatura que
tanto é contemporânea, quanto se estende ao século XVIII. Hoje, o que se percebe é que um
grupo de autores afro-brasileiros, com suas vozes e suas escritas, fez da literatura um lugar de
luta contra o silenciamento, revelando a não aceitação de estereótipos negativos e a exclusão
étnico-racial, pois ao longo da história da literatura brasileira a presença do negro foi sempre
rara e marcada por estereótipos. De acordo com Duarte (2013), ao examinar os manuais
40

canônicos da literatura brasileira, o autor verificou que o negro encontra-se presente muito
mais como tema do que como voz autoral.
Dalcastagnè (2008), ao escrever um artigo baseado em uma pesquisa sobre as
relações raciais na literatura, revela que:

São poucos os autores negros e poucas, também, as personagens – uma ampla


pesquisa com romances das principais editoras do País publicados nos últimos 15
anos identificou quase 80% de personagens brancas, proporção que aumenta quando
se isolam protagonistas ou narradores. Isto sugere uma outra ausência, desta vez
temática, em nossa Literatura: o racismo. Se é possível encontrar, aqui e ali, a
reprodução paródica do discurso racista, com intenção crítica, ficam de fora a
opressão cotidiana das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe
às suas trajetórias de vida (DALCASTAGNÈ, 2008, p.87).

As palavras de Dalcastagnè (2008) mostram que os personagens negros não


ocupam na literatura brasileira o mesmo lugar das personagens brancas, confirmando a
constatação de Duarte (2013). A partir disso, percebe-se que a produção dos autores afro-
brasileiros almeja o reconhecimento de uma escrita literária, mas também a emancipação do
sujeito silenciado e que reflete seu papel na sociedade.
Os autores afro-brasileiros lutam contra as injustiças sociais, políticas e culturais
que permearam e continuam a marcar a vida dos afro-brasileiros. Gradativamente, a literatura
afro-brasileira traz a valorização do negro e busca, dentre outras coisas, o combate ao
racismo, o qual é uma das causas de tantos conflitos e sofrimentos. Essa literatura apresenta
textos que possibilitam o debate sobre diversos temas como gênero, desigualdade, raça,
cultura e, principalmente, formação da identidade.
A literatura afro-brasileira não é homogênea. Há uma discussão, até mesmo, sobre
o conceito de literatura negra e literatura afro-brasileira. Para alguns autores, embora ainda
esteja em busca de consolidação no cenário literário brasileiro, a literatura negro-brasileira
diverge das aspirações da literatura afro.

A literatura negro-brasileira nasce na e da produção negra que se formou fora da


África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo,
brasileira, pois a palavra ―negro‖ aponta para um processo de luta participativa nos
destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa
brancura que a englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e
indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a
essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de
manifestação reivindicatória apoia-se na palavra ―negro‖ (CUTI, 2010, p. 44-45).

Para Cuti (2010) o termo afro não é apropriado, pois remete a uma África que não
possui mais um comprometimento com as problemáticas brasileiras, mesmo estando na
41

origem do povo brasileiro, principalmente, no que concerne ao racismo que permeia nossa
sociedade. Segundo Duarte (2011), a série Cadernos Negros 2 contribuiu muito para a
configuração discursiva de um conceito de literatura negra por ter uma produção marcada
predominantemente pelo protesto contra o racismo, bem como por se sobressair o tema do
negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e memória cultural. Por outro
lado, há autores que acreditam que o conceito de literatura afro-brasileira será mais pertinente,
pois, conforme Duarte (2011), esse conceito teria uma formulação mais elástica e produtiva.
Duarte (2011) enumera alguns elementos que distinguiriam a literatura afro-
brasileira:

Para além das discussões conceituais, alguns identificadores podem ser destacados:
uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-
brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom,
ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não,
com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de
enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e
começo (DUARTE, 2011, p. 296).

Assim, para Duarte (2011) a partir da interação dinâmica desses cinco fatores –
temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público - é possível se constatar a existência
plena de uma literatura afro-brasileira. Para Souza (2005, p. 61) a origem étnica e a cor da
pele não são elementos definidores da produção afro-brasileira, ―mas sim o compromisso de
criar um discurso que manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-
descendentes no país‖. Diante disso, a literatura afro-brasileira se aproxima da realidade e se
revela como um espaço para se discutir e refletir sobre os problemas vivenciados em nossa
sociedade. Essa verossimilhança na literatura é gerada pelos ―sentimentos mais profundos
vividos pelos negros‖ (CUTI, 2010, p. 87).
Portanto, ao levar a literatura afro-brasileira para a sala de aula, o professor
proporcionará ao aluno um reconhecimento pessoal, histórico e cultural, levando esse aluno à
reflexão principalmente sobre sua relação com o outro.

3.3 RELAÇÕES DE GÊNERO NOS CONTOS DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Conceição Evaristo é uma das principais expoentes da literatura afro-brasileira


atualmente. A escritora nasceu em uma favela de Belo Horizonte e teve que conciliar os

2
A série começou a ser publicada em São Paulo, no ano de 1978, com a participação de escritores afro-
brasileiros de todos os lugares do Brasil. Tem como objetivo denunciar os estereótipos negativos criados
historicamente sobre o negro e fazer protestos contra o racismo.
42

estudos com o trabalho de empregada doméstica. Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-
Rio e doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, tornou-se
também uma escritora de projeção internacional, com obras traduzidas em outros idiomas.
Segundo Campos; Duarte (2011), desde suas primeiras publicações, Conceição Evaristo
representa a crueldade do cotidiano dos excluídos, revelando seu compromisso e identificação
com os irmãos afrodescendentes colocados à margem do desenvolvimento.

Com sua ―escrevivência‖ – termo com que costuma demarcar sua produção textual -,
Conceição Evaristo articula seus projetos literário e existencial: a uma longa e
persistente militância social, étnica e de gênero agrega-se a atuação acadêmica e a
criação poética e narrativa. Põe em cena, sob uma perspectiva feminina a afro-
identificada, problemas do cotidiano de mulheres negras, conectando sua literatura
às raízes étnicas. Centrados na temática afro-brasileira, seus escritos consubstanciam
sua resistência ao sexismo, ao racismo e aos demais preconceitos e formas correlatas
de exclusão (CAMPOS; DUARTE, 2011, p. 213).

Conceição Evaristo consegue, com uma linguagem poética, retratar a realidade da


periferia brasileira e denunciar a violência e a pobreza humana que acometem grande parcela
da população afro-brasileira do país. Além disso, a escritora apresenta fatos sobre a vida de
personagens, na sua maioria, femininas, que aproximam os leitores de acontecimentos
marcantes recentes de nossa sociedade e fazem com que esses leitores reflitam sobre o quanto
nossa sociedade ainda é machista, violenta e racista.
Sua escrita é comprometida com o universo da mulher negra conferindo o papel
de sujeito de sua própria história, quebrando o silenciamento que historicamente foi imposto
às mulheres. Segundo Perrot (2005), faltam informações concretas referentes a muitos
momentos do passado e da história das mulheres devido ao silenciamento que lhes foi
imposto através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de
comportamento.

Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em locais que


lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação do século 19 que
muda o horizonte sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se
refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços da
memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, ―esqueceu‖ as
mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável,
elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento (PERROT, 2005,
p.9).

Desde a Grécia Antiga, a mulher era considerada inferior ao homem. Com os


romanos, que atribuíram ao homem o poder sobre a mulher, os filhos e servos legitimou-se
juridicamente a discriminação contra a mulher. Com isso, criou-se um modelo social e
43

cultural do ser feminino e do masculino em que a mulher é colocada em posição de


subordinação ao homem e que, infelizmente, persiste até os dias de hoje. Porém, as mulheres
não aceitaram as imposições pacificamente e ―fizeram de seu silêncio uma arma‖ (PERROT,
2005, p. 10). As conquistas femininas de acesso a direitos civis, sociais e políticos, que
durante tanto tempo lhes foram negados, são consequências direta de movimentos e
fenômenos sociais que causaram profundo impacto na sociedade.
Na literatura, as mulheres tiveram sua história contada por homens que, até pouco
tempo, detinham a prerrogativa da escrita pública, produzindo discursos que delegaram às
mulheres posicionamentos sociais inferiores. No entanto, ainda no século XIX, temos notícia
de duas escritoras que enfrentaram esse regime de dominação masculina no campo literário.
São elas: Maria Firmina dos Reis e Francisca Júlia da Silva.
Conceição Evaristo, assim como outras escritoras afro-brasileiras e africanas, dá
voz às mulheres que, durante muitos séculos, foram invisíveis na história, escrita e pensada
pelo homem. Suas obras reivindicam as situações social e histórica da mulher negra enquanto
sujeito de discurso sobre sua própria história, buscando reconhecimento e rompimento de
estereótipos. Conceição Evaristo afirma que ―as escritoras negras buscam inscrever no corpus
literário brasileiro imagens de uma auto-representação‖ (EVARISTO, 2005, p. 205), pelo fato
de que a escrita está vinculada às subjetividades de quem a realiza. A descrição feminina em
seus textos obedece ao contexto real de violência contra a mulher, exclusão social e racial, ao
qual mulheres negras estão submetidas em nossa sociedade. Este tipo de texto literário vem
ganhando espaço na literatura brasileira por se opor às opressões e às condições de vida do
povo negro brasileiro.
Constância Lima Duarte, em seu artigo Gênero e violência na Literatura Afro-
brasileira (2010), afirma:

Os contos de Conceição Evaristo parecem trazer a expressão de um novo paradigma.


Escrita de dentro (e fora) do espaço marginalizado, a obra é contaminada da angústia
coletiva, testemunha a banalização do mal, da morte, a opressão de classe, gênero e
etnia, e é porta-voz da esperança de novos tempos (DUARTE, 2010, p.233).

A violência está presente de maneira brutal nos contos de Conceição Evaristo e


perpassa os caminhos familiares para denunciar instâncias diferenciadas de poder. As
personagens são carregadas de denúncias das violências, das exclusões sociais, das
desigualdades e condições sociais, mas também trazem reivindicações por uma condição de
vida melhor para o povo negro brasileiro.
44

As temáticas abordadas nos contos de Conceição Evaristo despertam os leitores


para a realidade que os cerca e permitem que, em sala de aula, sejam promovidas discussões
sobre questões relevantes como, por exemplo, relações étnico-raciais e de gênero,
preconceito, desigualdades e violência tão comuns em nossa sociedade. Assim, o trabalho
com essa literatura é um caminho para a promoção de uma educação que desperte o senso
crítico e favoreça o respeito à diversidade.
45

4 METODOLOGIA

Neste capítulo, apresentaremos os passos metodológicos adotados para atingirmos


os objetivos propostos nesta pesquisa.

4.1 TIPO DE PESQUISA

A metodologia adotada na pesquisa teve a perspectiva da pesquisa-ação. A


pesquisa-ação objetiva uma atividade coletiva e colaborativa que contribua para a
transformação de uma realidade. Segundo Thiollent (1985 apud GIL, 2008, p. 31):

é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em


estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no
qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema
estão envolvidos do modo cooperativo ou participativo.

Sendo assim, ao desenvolver uma pesquisa-ação o pesquisador pretende


desempenhar um papel ativo na realidade observada. Após identificar um problema em
determinado contexto, em uma pesquisa-ação, são desenvolvidas ações interventivas que
busquem resolver as pendências dessa realidade. Esta é a razão de termos escolhido essa
metodologia, pois a intervenção foi planejada a partir de uma realidade que demonstrava a
falta de interesse pela leitura e uma considerável deficiência de compreensão e atribuição de
sentido aos textos, aliada a ausência de um trabalho de leitura com as literaturas afro-
brasileira e africana em sala de aula.
A proposta de intervenção promoveu a leitura e análise de contos de autores afro-
brasileiros e africanos. Apesar de haver a Lei 10.639/03 que instituiu o estudo da História e
Cultura Afro-brasileira e Africana nas escolas de ensino público ou privado em todo o país, as
literaturas africanas e afro-brasileira não têm ganhado espaço nas unidades escolares de forma
significativa. Esta pesquisa teve como base o texto literário e, a partir dele, buscou fazer com
que os alunos percebessem que há diversos laços culturais que herdamos da cultura africana e,
principalmente, propor um espaço de discussão acerca dos dilemas humanos e das questões
étnico-raciais e de gênero.
O gênero textual escolhido foi o conto que, por ser uma narrativa curta, permitiu a
leitura completa do texto durante cada oficina em sala de aula. Porém, apesar de serem
condensados, os contos apresentam narrativas profundas que permitem ao leitor conhecer
46

variadas formas de viver, agir e de compreender as pessoas e o mundo. A leitura dos contos
contribuiu para o estímulo à criticidade dos sujeitos, uma vez que as literaturas afro-brasileira
e africanas resistem às indiferenças e revelam inúmeras injustiças sociais.
A pesquisa possui uma abordagem qualitativa, na qual a análise foi realizada por
meio da observação e da análise das atividades desenvolvidas pelos alunos, de forma
individual e em grupos, e registradas em portfólios. Além disso, analisamos os áudios
gravados durante as oficinas e as anotações do diário de bordo da pesquisadora. Ao final da
pesquisa, produzimos um manual didático (Apêndice C) que apresenta todas as práticas de
leitura desenvolvidas durante a proposta de intervenção.

4.2 CONTEXTO DA PESQUISA

A pesquisa foi desenvolvida em uma turma de 9º ano de uma escola de Ensino


Fundamental da rede pública de Fortaleza (Ceará), situada no bairro Jardim das Oliveiras,
com o propósito de desenvolver as competências leitoras dos alunos, a fim de torná-los
leitores críticos, e contribuir para a ampliação dos conhecimentos dos alunos sobre a história e
cultura africana e afro-brasileira através de práticas de leitura literária com contos afro-
brasileiros e africanos.
A escola conta com uma boa estrutura física composta por 15 salas de aula, sendo
algumas climatizadas; sala dos professores, da coordenação e da direção; biblioteca;
secretaria; cozinha; quadra de esportes; depósito; despensa; pátio; praça de alimentação e
estacionamento. A sala de informática foi desativada há alguns anos e a escola não dispõe de
computadores nem internet para acesso dos alunos.

4.3 PARTICIPANTES

A pesquisa foi desenvolvida com alunos do 9º ano do turno da manhã, que


estavam regularmente matriculados no ano de 2018, na Escola Municipal Ismael Pordeus. A
escola, localizada no bairro Jardim das Oliveiras, faz parte da rede pública de ensino de
Fortaleza (Ceará).
Nessa escola, no ano de 2018, só havia duas turmas de 9º ano, sendo uma no turno
matutino e a outra no turno vespertino. As turmas de 9º ano continham entre 35 e 38 alunos
matriculados, com faixa etária entre 13 e 16 anos. A turma em que desenvolvemos a pesquisa
tinha 37 alunos matriculados, os quais, em sua maioria, moravam no bairro ou em bairros
47

circunvizinhos. No entanto, apenas trinta e seis deles participaram da maior parte das oficinas
e responderam aos questionários iniciais e finais. Portanto, nesta pesquisa consideramos trinta
e seis alunos como o número de sujeitos participantes.
É importante ressaltarmos que os participantes desta pesquisa não podem ser
identificados, de acordo com os protocolos do comitê de ética da Universidade. Por essa
razão, os rostos dos alunos foram ocultados nas fotografias e identificamos cada sujeito
através da letra P, de participante, e o número de sua chamada escolar.

4.4 DESCRIÇÃO DO CORPUS LITERÁRIO

Para composição de nossas oficinas, selecionamos contos de autores


contemporâneos e que trazem temáticas próximas à realidade de nossos alunos, além de serem
temáticas que suscitam discussões, promovem perguntas. São histórias que tratam de
costumes, relações humanas, preconceito racial, infância, desigualdade social, violência
contra a mulher, desigualdade de gênero e outras temáticas tão presentes em nossos
cotidianos.
Para o trabalho com literatura africana, selecionamos os seguintes contos que
foram lidos em sala de aula: ―As mãos dos pretos‖, de Luis Bernardo Honwana (2010);
―Fronteira de asfalto‖ (2007), de José Luandino Vieira; ―A saia almarrotada‖ (2009) e ―O
cego Estrelinho‖ (2012), de Mia Couto.
No conto ―As mãos dos pretos‖, do moçambicano Luís Bernardo Honwana, o
narrador, uma criança, questiona a todos, pois quer descobrir por qual motivo as palmas das
mãos dos negros são brancas. Escondida em uma pretensa inocência infantil, a questão vai,
aos poucos, ganhando contornos mais sérios e evidenciando o racismo da sociedade
moçambicana.
O conto ―Fronteira de asfalto‖ faz parte do livro intitulado A cidade e a infância
(2007) do angolano José Luandino Vieira. O livro remete o leitor para a década de quarenta e
traz narrativas que descrevem os bairros pobres de Luanda e a realidade de seus moradores.
Neste livro, o autor inicia seu percurso de luta contra a injustiça e denuncia o racismo presente
na sociedade angolana. O conto ―Fronteira de asfalto‖ revela as dores causadas pelo
preconceito racial, pois apresenta a história de dois jovens, uma moça branca e um rapaz
negro, que são proibidos de serem amigos devido ao racismo da família da moça.
Os contos do moçambicano Mia Couto, um dos escritores mais conhecidos da
literatura africana, nos levam a refletir sobre o ser humano e a realidade cruel em que muitos
48

vivem. O conto ―A saia almarrotada‖ é narrado por uma voz feminina que narra a sua vida
dura, cheia de exploração, renúncias e submissão ao pai. Já no conto ―O cego Estrelinho‖,
Mia Couto aborda de forma indireta a guerra, através de uma interessante relação de amor
entre o cego, seu amigo-guia e, posteriormente, a irmã deste.
Quanto à literatura afro-brasileira, optamos por trabalhar com contos da obra
Olhos d’água, de Conceição Evaristo (2016). O livro, vencedor do Prêmio Jabuti em 2015, é
composto por quinze contos que retratam as dificuldades diárias pelas quais os afro-
brasileiros passam em uma sociedade excludente e preconceituosa como a nossa. Questões
étnico-raciais e de gênero são marcantes nos contos, os quais são, predominantemente,
centrados em figuras femininas afrodescendentes que sofrem diferentes formas de violência
em um cotidiano marcado por humilhações, preconceito e opressão.
Do livro Olhos d’água (2016) selecionamos os seguintes contos para trabalharmos
nesta pesquisa: ―Olhos d‘água‖, ―Maria‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e
―Lumbiá‖.
O conto ―Olhos d‘água‖ conta a história de uma personagem feminina e negra que
tenta se lembrar da cor dos olhos de sua mãe, mas só se recorda de sua infância e do
sofrimento de sua mãe diante das dificuldades e da miséria. A narradora se obriga a fazer o
caminho de volta para o lar para descobrir a cor dos olhos de sua mãe, resgatando assim, sua
identidade. No conto ―Maria‖, a empregada doméstica, que empresta seu nome ao título da
história, reencontra seu ex-companheiro e, inesperadamente, o homem assalta o ônibus em
que eles se encontravam. Após a fuga do homem, Maria é confundida como comparsa dos
assaltantes e é covardemente linchada e morta.
Outro conto selecionado para a intervenção foi ―Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos‖ que conta a história da menina Zaíta e sua irmã gêmea Naíta, com quem reparte e
disputa os brinquedos. As meninas enfrentam cotidianamente a violência da favela e a raiva e
queixas da mãe, que esgotada pelo trabalho e pela miséria, facilmente se irrita com as
travessuras das meninas. Um dia, desesperada pelo desaparecimento de sua figurinha favorita,
Zaíta sai pelas ruas para procurá-la e acaba sendo vítima de uma bala perdida. Já no conto
―Lumbiá‖ temos um protagonista masculino. O menino que dá nome a história vende doces
nas ruas, juntamente com sua irmã, para ajudar no sustento da família. A época do Natal trazia
alegria para o protagonista que adorava ver os presépios, principalmente, a imagem do Deus-
menino que parecia partilhar da mesma pobreza do garoto. Um dia, depois de inúmeras
tentativas, Lumbiá consegue se aproximar de um presépio montado em uma loja luxuosa.
49

Encantado com o bebê do presépio, o menino rouba o boneco e é perseguido pelos guardas da
loja. Na tentativa de fugir, o garoto pula na rua e é atropelado por um carro.

4.5 PROCEDIMENTOS

As atividades desenvolvidas nesta pesquisa tiveram como objetivo estimular o


aluno para leitura, motivando-o a interagir com o texto literário na busca da construção de
sentidos, pautando-se na categoria do letramento literário. Para isso, desenvolvemos práticas
de leitura literária que ocorreram em encontros semanais que se estenderam do mês de
setembro a dezembro de 2018, totalizando uma carga horária de trinta horas/aulas.
As práticas de leitura literária foram desenvolvidas na perspectiva de oficinas
realizadas a partir de um conto afro-brasileiro ou africano. As práticas pedagógicas foram
didaticamente organizadas de acordo com a sequência didática de Cosson (2016), mas
também utilizamos a metodologia do círculo de leitura estruturado como forma de ampliar e
diversificar o trabalho com texto literário em nossa pesquisa.
A proposta de intervenção foi organizada em seis etapas. A primeira etapa
consistiu na oficina de apresentação da proposta. Nesta oficina, após a apresentação da
proposta de intervenção e antes de iniciarmos a sequência didática, consideramos importante
verificar que tipo de relação os alunos estabeleciam com a leitura. Para isso, aplicamos um
questionário (Apêndice A) que nos forneceu dados sobre o perfil leitor desses alunos, seu
contato com o texto literário e seus conhecimentos sobre a África, bem como a visão inicial
que os alunos tinham em relação aos africanos e aos afro-brasileiros e sua cultura.
A primeira oficina se destinou a apresentação de uma visão geral sobre os países
africanos de língua portuguesa e sondagem dos conhecimentos prévios dos alunos sobre estes.
Discutimos sobre a realidade brasileira, sua diversidade étnico-racial e suas relações com os
países africanos. Este momento foi desenvolvido através da exibição de slides que mostravam
diferentes realidades tanto da África quanto do Brasil. Buscamos mostrar, de ambos, suas
paisagens, suas belezas, seus povos, seus problemas para que os alunos, a partir da análise e
da discussão sobre o material exibido, ampliassem seus conhecimentos e houvesse uma
sensibilização em relação ao tema.
A segunda etapa foi composta por três oficinas com contos africanos, realizadas
de acordo com a metodologia da sequência básica de letramento literário de Cosson (2016).
Na terceira etapa apresentamos o texto literário afro-brasileiro através da proposta de leitura
do conto ―Maria‖ da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, conforme a metodologia da
50

sequência básica de Cosson (2016). Na quarta etapa apresentamos a metodologia dos círculos
de leitura estruturados, de acordo com a proposta de Cosson (2017). Além disso, realizamos
um círculo de leitura com o conto africano ―O cego Estrelinho‖, bem como dividimos os
grupos e os contos a serem lidos para a realização dos círculos de leitura. A quinta etapa foi
destinada às apresentações dos círculos de leitura. E na última, fizemos a avaliação da
proposta de intervenção. Os alunos responderam o questionário final por escrito e depois,
ouvimos as opiniões dos alunos sobre as práticas de leitura desenvolvidas durante o projeto.
As atividades de leitura foram desenvolvidas com os contos afro-brasileiros e
africanos, mas em alguns momentos fizemos uso de vídeos, imagens, textos variados e outros
recursos que dialogavam com os contos lidos. Foi parte das oficinas a construção de um
portfólio, no qual foram registradas as atividades produzidas pelos alunos, individualmente ou
em grupos. Além disso, cada participante da pesquisa registrou suas impressões sobre os
textos, mas também podiam registrar tudo que achassem importante durante o percurso de
estudo, inclusive, as insatisfações. Este instrumental foi muito importante para
acompanharmos o desenvolvimento dos alunos, bem como suas dificuldades. Sobre essa
perspectiva metodológica, Cosson (2016, p. 48 - 49) afirma:

Tomado de empréstimo das áreas de publicidade e finanças, passando pelas artes


visuais, o uso do portfolio oferece ao aluno e ao professor a possibilidade de
registrar as diversas atividades realizadas em um curso, ao mesmo tempo em que
permite a visualização do crescimento alcançado pela comparação dos resultados
iniciais e os últimos, quer seja do aluno, quer seja da turma. É essa dualidade de
registro do portfolio que nos interessa acentuar no encadeamento das atividades que
sustentam as duas sequências, pois ela auxiliará o fortalecimento do leitor à medida
que ele participa de sua comunidade.

O corpus para análise foi composto, portanto, por atividades de leitura registradas
através de perguntas e respostas, como também pelas produções registradas nos portfólios. A
interação permeou todas as etapas de abordagem das atividades didáticas. O ponto de partida
de cada oficina foi sempre o diálogo com os participantes e todas as nossas observações e
impressões durante as atividades foram registradas em um diário de bordo. Além disso,
analisamos os registros de áudios gravados durante as oficinas, os quais nos permitiram
avaliar os diálogos produzidos durante as atividades. Optamos por registrar apenas os áudios
das práticas de leitura para que os alunos não se envergonhassem ou perdessem a naturalidade
durante as interações. Nossas observações foram focadas nas conexões que os alunos
conseguiram realizar dos textos lidos com a vida, com outras leituras e com elementos
culturais, pessoais e coletivos que permeiam a sociedade.
51

4.6 INSTRUMENTOS

Descreveremos nesta seção os dois instrumentos que foram utilizados na nossa


pesquisa, direcionados aos alunos participantes da pesquisa. A escolha da coleta de dados por
meio de questionário se deu devido ao fato de ser um instrumento eficaz de coleta de dados e
que garante o sigilo dos participantes.

4.6.1 Questionário inicial – Perfil do leitor

Com o objetivo de identificar os hábitos de leitura dos participantes da pesquisa,


seus conhecimentos sobre o texto literário afro-brasileiro e africano e, ainda, identificar as
perspectivas dos alunos em relação à África, aplicamos esse questionário inicial em nossa
primeira oficina. Foram feitas perguntas sobre as motivações e os temas das leituras
realizadas pelos alunos, o conhecimento de autores africanos e afro-brasileiros e ainda a visão
dos alunos sobre a África e os africanos que nos permitiram construir um diagnóstico da
realidade da turma.
O instrumento contou com quatorze questões abertas e fechadas. Em alguns casos,
os participantes precisavam explicar sua escolha e havia ainda questões objetivas em que os
participantes podiam marcar mais de uma opção e/ou colocar uma resposta diferente daquelas
que tinham sido dadas como opção, preenchendo o campo ―outros”.

4.6.2 Questionário final

Elaboramos o questionário final (Apêndice B) com o objetivo de aplicarmos um


instrumento que nos permitisse avaliar, de maneira sucinta, os aprendizados que os alunos
tiveram por meio da proposta de intervenção realizada, se houve mudanças na visão dos
alunos a respeito da África, dos africanos e seus descendentes, bem como avaliar as
contribuições para a formação de leitores críticos. Pretendíamos também analisar a
possibilidade de mudanças de paradigmas dos alunos a respeito das relações étnico-raciais e
de gênero. O questionário é composto por sete questões abertas e fechadas. O instrumento foi
respondido por trinta e sete alunos, o número total de matriculados na turma.
52

5 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, faremos a análise, de forma mais detalhada, das práticas de leitura
realizadas e dos dados coletados nesta pesquisa. Para isso, utilizaremos dados coletados dos
portfólios e atividades produzidas pelos alunos, dos áudios gravados durante as oficinas, de
nosso diário de bordo e dos questionários respondidos pelos participantes.
Este capítulo está dividido em duas partes: (1) Descrição e análise da proposta de
intervenção; (2) Análise dos dois questionários aplicados: questionário inicial e final.

5.1 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO

Neste tópico, apresentaremos a descrição e análise das oficinas realizadas durante


a proposta de intervenção.

5.1.1 Primeira etapa: Oficina de apresentação

Iniciamos o primeiro encontro explicando aos alunos, com o auxílio de slides, do


que tratava nossa pesquisa de mestrado, quais seus objetivos e de que forma seria realizada a
proposta de intervenção. Enfatizamos que os participantes não seriam identificados e que a
colaboração dos alunos seria essencial para o desenvolvimento da pesquisa.
Após a conversa de apresentação, entregamos o questionário inicial para que os
alunos presentes respondessem. Explicamos a função do questionário, enfatizando a
importância de responderem as perguntas com seriedade. Estipulamos o período de vinte
minutos para preenchimento do instrumental. A análise das respostas dadas a este
questionário nos forneceu dados sobre o perfil leitor dos participantes da pesquisa, seu contato
com o texto literário africano e afro-brasileiro, bem como sua visão inicial em relação aos
africanos e aos afro-brasileiros e suas culturas.
Concluído o questionário, para iniciarmos o segundo momento da oficina,
pedimos que os alunos sentassem em um semicírculo de forma que facilitasse o diálogo entre
todos. Esta etapa tinha como objetivos apresentar uma visão geral sobre os países africanos de
língua portuguesa, debater sobre as relações entre Brasil e África e discutir sobre a realidade
brasileira. A proposta de atividade motivadora desta oficina consistiu em apresentar aos
53

alunos o vídeo3 da música ―Eu sou de lá‖ da dupla de hip hop ‗Dois Africanos‘. Perguntamos
se a turma conhecia a dupla, mas nenhum aluno afirmou conhecê-la. Exibimos o clipe da
música que evidencia em sua letra (Anexo A) a preocupação em desconstruir a imagem
generalizada de pobreza e miséria propagada sobre o continente africano, ao mesmo tempo
em que retrata a vida de jovens africanos que buscam sonhos em outras partes do mundo.

Figura 1 – Imagem do vídeo da música “Eu sou de lá”

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=dsiVer_HbnA. Acesso em: 05 ago. 2018

Após a visualização do vídeo, alguns participantes lembraram que a dupla


participou de um reality musical na televisão. Falamos um pouco sobre a dupla formada por
dois jovens africanos, Opay BigBig, de Benin, e Izy Mistura, do Tongo, que se conheceram
aqui no Brasil. Após essa breve apresentação, pedimos que os alunos falassem sobre o que
entenderam do vídeo. Os participantes expressaram oralmente suas impressões sobre a
música, perceberam que a letra quer mudar a imagem negativa que temos da África e
disseram que os cantores mostram ter orgulho de serem africanos. A partir das falas dos
participantes, incitamos o debate a respeito dessa imagem negativa que foi propagada da
África. A maioria demonstrou acreditar que a ―África é um lugar que todo mundo é pobre e
passa fome‖ como afirmou uma participante.
Instigamos a discussão através de alguns questionamentos: mas será que
realmente todo mundo é pobre na África? Quem veicula essa imagem da África e por quê? O
único lugar em que grande parte da população sofre devido à pobreza e/ou fome é a África?
Escutamos a posição de alguns alunos que disseram que também há ricos na África, porém
devem ser muito poucos. Em relação à veiculação dessa imagem negativa, eles afirmaram ser
produzida pela televisão, como é dito na música ―Eu sou de lá‖, e também pelo cinema, pois,

3
Disponível em:˂https://www.youtube.com/watch?v=dsiVer_HbnA˃. Acesso em: 05 ago. 2018.
54

segundo uma participante, ―também tem muitos filmes que eu já assisti que na África só tem
floresta e animais‖. No entanto, nenhum aluno soube explicar os motivos pelos quais essas
imagens negativas são propagadas em nossa sociedade. Não fizemos nenhuma interferência
em relação a essas motivações nesse momento, pois acreditamos que discussões futuras
permitirão que os alunos construam suas respostas.
No que tange ao terceiro questionamento, os alunos afirmaram que outros países
sofrem com a pobreza e a fome. O exemplo mais citado foi o Brasil, porém um aluno disse
que a Índia também tem bastante pobres, fato que nós confirmamos e causou surpresa em
alguns alunos.
Para mostrar que África não se resume à pobreza e à miséria, levamos, em slides,
imagens de diferentes partes do continente africano, suas belezas, suas riquezas, seus povos e
seu mapa. Procuramos desmistificar algumas ideias errôneas: que África é um único país; que
não existem brancos na África; que todo o continente é um deserto repleto de animais
selvagens e que há um único ―idioma africano‖. À medida que mostrávamos o material, os
alunos participaram, fizeram comentários, perguntas e comparações com a realidade
brasileira.
Com o auxílio de mapas, mostramos como os europeus dividiram e exploraram o
continente africano, deixando marcas profundas como a escravização, o preconceito, o
apartheid, a fragmentação das comunidades e das culturas nativas, bem como a exploração
das riquezas naturais. Além disso, identificamos os países africanos que possuem a língua
portuguesa como idioma oficial, o que gerou muita surpresa e admiração entre os alunos que
desconheciam o fato de que na África há países que também falam português. Questionamos
alguns aspectos relacionados à escravidão na África e no Brasil, levando-os a refletir como
esse processo contribuiu para a imagem de inferioridade dos negros que, infelizmente,
persiste até os dias de hoje.
Em seguida, os alunos foram convidados a conhecerem um poema produzido por
um poeta de Cabo Verde, um dos países africanos de língua portuguesa. Entregamos cópias
do poema ―Você, Brasil‖, do autor Jorge Barbosa e fizemos a leitura em voz alta para a turma.

Você, Brasil
Jorge Barbosa

Eu gosto de você, Brasil,


porque você é parecido com a minha terra.
55

Eu bem sei que você é um mundão


e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa.
Eu já ouvi falar de suas cidades:
A maravilha do Rio de Janeiro,
São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos.
Ao passo que as daqui
Não passam de três pequenas cidades.
Eu sei tudo isso perfeitamente bem,
mas Você é parecido com a minha terra.

E o seu povo que se parece com o meu,


que todos eles vieram de escravos
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.
E o seu falar português que se parece com o nosso falar,
ambos cheiros de um sotaque vagaroso,
de sílabas pisadas na ponta da língua,
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.
É a alma da nossa gente humilde que reflete
A alma das sua gente simples,

Ambas cristãs e supersticiosas,


sortindo ainda saudades antigas
dos sertões africanos,
compreendendo uma poesia natural,
que ninguém lhes disse,
e sabendo uma filosofia sem erudição,
que ninguém lhes ensinou.

E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.


dos seus cateretês, das suas toadas de negros,
caiu também no gosto da gente de cá,
56

que os canta dança e sente,


com o mesmo entusiasmo
e com o mesmo desalinho também...
As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,
fazem lembrar as suas músicas,
com igual simplicidade e igual emoção.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra,


as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...

Nós também temos a nossa cachaça,


O grog de cana que é bebida rija.
Temos também os nossos tocadores de violão
E sem eles não havia bailes de jeito.
Conhecem na perfeição todos os tons
e causam sucesso nas serenatas,
feitas de propósito para despertar as moças
que ficam na cama a dormir nas noites de lua cheia.
Temos também o nosso café da ilha do Fogo
que é pena ser pouco,
mas — você não fica zangado —
é melhor do que o seu.

Eu gosto, de Você, Brasil.


Você é parecido com a minha terra.
O que é - é que lá tudo é à grande
E tudo aqui é em ponto mais pequeno...
Eu desejava ir-lhe fazer uma visita
57

mas isso é coisa impossível.


Eu gostava de ver de perto as coisas
espantosas que todos me contam
de Você,
de assistir aos sambas nos morros,
de esta cidadezinha do interior
que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita ternura,
de me deixar arrastar na Praça Onze
na terça-feira de Carnaval.
Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,
de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —
e rolar com ela um maxixe requebrado.
Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto
e você veria como é que eu sou bom camarada.

Havia então de botar uma fala


ao poeta Manuel Bandeira
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a poesia receitava
este meu fígado tropical bastante cansado.
Havia de falar como Você
Com um i no si
— ―si faz favor —
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
— ―mi dá um cigarro!‖.

Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?


Impossíveis‖.
Disponível em: ˂http://descobrindoaafrica.blogspot.com.br/˃. Acesso em: 05 ago. 2018.

Depois da leitura, exploramos o texto oralmente a partir das seguintes


perguntas: O poeta está comparando o Brasil com qual país? Quais são as semelhanças e
diferenças entre os dois países, segundo o poema? O debate foi curto, pois a aula já estava
terminando, mas foi bastante proveitoso, pois os alunos perceberam que o poeta expressa uma
58

admiração pelo Brasil, traça um paralelo entre Cabo Verde e nosso país e mostra que há
semelhanças entre Brasil e África. Os alunos destacaram as semelhanças dos aspectos naturais
e de aspectos culturais. Um aluno afirmou que os africanos são alegres e gostam de festejar,
assim como os brasileiros, e que isso é notável no poema quando ele diz que queria dançar um
―maxixe requebrado‖.

5.1.2 Segunda etapa: Sequências básicas com contos africanos

Após a oficina de apresentação, seguimos o segundo passo, dando sequência ao


processo de letramento propriamente dito, com a realização de três sequências básicas de
leitura literária com contos africanos. A cada semana, trabalhamos um conto em oficinas
divididas em dois encontros semanais. No primeiro encontro de cada semana, com duração de
duas horas/aula de cinquenta minutos cada, realizávamos as quatro etapas da sequência básica
de Cosson (2016). O segundo encontro semanal, com duração de uma hora/aula de cinquenta
minutos, era reservado para a realização da atividade externa ou de extrapolação.

5.1.2.1 Sequência básica I – Conto ―A fronteira de asfalto‖

Para iniciar a aula, como motivação, exibimos o vídeo ―Menina bonita do laço
4
de fita‖ , animação adaptada da obra homônima de Ana Maria Machado. Esse vídeo mostra
um coelhinho branco que acha linda a cor negra de sua vizinha, a menina do laço de fita, e
tenta de diversas formas ficar igual a ela. Depois de várias tentativas frustradas, ele percebe
que não é possível mudar por uma questão genética. Então, ele casa com uma coelha preta e
fica extremamente feliz ao ter filhos pretos, brancos e malhados, para quem ensina que a
beleza está nas diferenças.
Após a exibição do vídeo, a turma estava agitada, demonstrando ter gostado do
curta e fazendo comentários sobre a história. Fizemos alguns questionamentos orais sobre o
vídeo, tais como: Qual o tema abordado no vídeo? O que mais chamou atenção? Como é a
convivência entre os personagens? No nosso cotidiano, a convivência entre as pessoas é
harmoniosa e sem preconceitos como no filme? Por quê? Quase todos os alunos participaram
da conversa sobre o vídeo e demonstraram ter entendido a mensagem de respeito às

4
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UhR8SXhQv6s&t=13s˃.
59

diferenças raciais como é possível perceber na fala de um aluno ao expressar sua


compreensão sobre o vídeo:

P37 – O vídeo mostra como todo mundo é diferente, pois os filhotes do coelho são
todos diferentes, além do coelhinho que é branco e a menina bonita do laço de fita
que é negra. Então, eu acho que o tema desse vídeo é a diferença de raças e mostra
que é possível viver bem, sem preconceitos e sem racismo, principalmente.

Para iniciarmos o momento da introdução, apresentamos, com o auxílio de slides,


a foto e o nome do escritor do conto a ser lido. Questionados, os alunos disseram que não
conheciam Luandino Vieira. Nesse momento, mostramos o livro de onde retiramos o conto e
deixamos que ele fosse manuseado pelos alunos que demonstraram interesse. Cosson (2016)
enfatiza que independente da estratégia utilizada para introduzir a obra, o professor não pode
deixar de apresentá-la fisicamente aos alunos.
Em slide, apresentamos a capa do volume de onde retiramos o conto e de outras
edições do livro A cidade e a infância e pedimos que os alunos levantassem hipóteses a
respeito da temática dos contos do livro a partir das capas a seguir:

Figura 2 – Slide com capas do livro A cidade e a infância

Fonte: Acervo da autora

Analisando as capas, os alunos disseram que, provavelmente, falariam sobre


crianças e brincadeiras de crianças na rua, pois as capas mostram garotos brincando ao ar
livre. As narrativas de A cidade e a infância, inspiradas na própria infância do autor, vivida
nos bairros pobres de Luanda, descrevem a cidade de Luanda como estava em 1950, mas
também rememora seus traços do passado ao descrevê-la durante os anos de 1930.
Prosseguimos, então, com a apresentação do autor que, na verdade, se chama
José Vieira Mateus da Graça. Ele nasceu em Portugal, mas se mudou para Angola com os pais
60

aos três anos de idade. Passou toda a infância e juventude em Luanda. Participou ativamente
do movimento pela libertação nacional, pois Angola foi por muito tempo colônia de Portugal.
É considerado africano e representa a literatura africana. Antes de explicarmos o pseudônimo
do escritor, um aluno perguntou se ele se nomeava Luandino por causa de Luanda e
explicamos que sim, que era uma homenagem do autor a capital de Angola. Aproveitamos
este momento para apresentar, brevemente, com o auxílio de slides, fatos importantes da
história de Angola, de sua colonização e da luta pela conquista da independência.
Após uma breve apresentação sobre o autor, prosseguimos para a etapa seguinte.
Entregamos a cópia do conto aos alunos e solicitamos que levantassem hipóteses sobre o texto
a partir do título ―A fronteira de asfalto‖. Inicialmente, os alunos não souberam dizer, mas
pedimos que analisassem as palavras do título. Perguntamos o significado da palavra fronteira
e eles afirmaram ser uma ―barreira‖ ou uma ―divisão‖. A partir dessas respostas, baseados em
seus conhecimentos prévios, os alunos fizeram inferências a respeito do texto que seriam
confirmadas ou refutadas através da leitura. Alguns alunos afirmaram que a história falaria a
respeito de uma cidade grande, pois tem a presença de asfaltos; outro disse que o conto falaria
sobre a divisão entre cidades ou países através das ruas asfaltadas, enquanto que uma aluna
inferiu que a narrativa trataria de pessoas que por algum motivo precisam sair do local onde
vivem e assim, transpor a fronteira. É possível perceber que as hipóteses levantadas pelos
alunos possuem coerência, mas foram todas refutadas a partir da leitura. Foi proposto que os
alunos fizessem primeiramente uma leitura silenciosa para que, em seguida, fizéssemos uma
leitura expressiva do conto em voz alta.
O conto narra a história de um rapaz negro e uma garota branca, Ricardo e
Marina, que são amigos desde a infância. Eles cresceram juntos, pois o menino, filho da
lavadeira da mãe da menina, fazia companhia à Marina durante as brincadeiras da infância.
No entanto, ao atingirem a adolescência, sofrem grande pressão por parte da sociedade branca
para que se afastem. O jovem acaba morrendo devido a um mal entendido ao transpor a
fronteira simbolizada pelo asfalto, o qual separa o bairro branco e o musseque, bairro ocupado
pela população pobre de Luanda.
À medida que os alunos foram finalizando a leitura silenciosa surgiram
comentários de indignação e tristeza com o final da história. No entanto, alguns alunos
questionaram se ele havia realmente morrido. Propomos, então, analisarmos o trecho final da
história e eles perceberam que o uso do termo ―corpo‖ representa a morte de Ricardo no
trecho: ―De pé, o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído‖ (VIEIRA,
2007, p.44).
61

Sanadas as dúvidas, seguimos para a leitura em voz alta, uma vez que, segundo
Lajolo (2005), ao ler para seus alunos, o professor incentiva à realização de outras leituras e
favorece a aprendizagem de uma leitura com desenvoltura. Refletindo sobre o papel do
professor enquanto mediador e incentivador da leitura, a autora afirma:

[...] é quando vemos e ouvimos pessoas lendo, quando participamos de ambientes


em que livros e leituras se fazem presentes, que nos tornamos leitores. Assim como,
falando conosco em uma determinada língua quando éramos pequenos, adultos e
crianças mais velhas nos ensinaram a falar essa língua, é em situações coletivas de
leitura que nos tornamos leitores. Por isso é preciso ler muito (e bem) com e para os
alunos. (LAJOLO, 2005, p.28, grifo do autor)

Durante a leitura, procuramos envolver a turma em situações específicas presentes


no conto por meio de questionamentos que incitassem o diálogo sobre o texto. Logo no início
da narrativa, o autor mostra que a amizade entre Marina e Ricardo está abalada devido às
diferenças entre os dois e assim inicia-se o conflito do conto (VIEIRA, 2007, p. 40):

[...]— Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela.


Olhou-a nos olhos. A menina baixou o olhar para a biqueira dos sapatos pretos e
disse:
— Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas à volta do bairro?
Sim, lembro-me...
A pergunta que o perseguia há meses saiu finalmente. — E tu achas que está tudo
como então? Como quando brincávamos à barra do lenço ou às escondidas? Quando
eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no dizer de tua
mãe? Achas... [...]

Essa passagem possibilitou discussões sobre as relações estabelecidas entre os


personagens da história. Segundo os alunos, Marina e Ricardo conviviam harmoniosamente
porque não tinham preconceitos. Nesse momento, uma aluna chegou a comparar a relação dos
jovens com a relação do coelho branco e a menina bonita do laço de fita, mostrada no vídeo
de motivação. No entanto, o mesmo não podia ser dito em relação à mãe de Marina, pois ela
não via com bons olhos a amizade dos dois.

— Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade
por esse (…) teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança.
Duas crianças. Mas agora (…) um preto é um preto (…) As minhas amigas todas
falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei (…) Bem sabes que não
é por mim (VIEIRA, 2007, p. 42).

Ao lermos o trecho acima, os alunos compreenderam que o conto denunciava uma


situação de racismo e que não era praticado apenas pela mãe de Marina, mas também por
outras pessoas representadas ―pelas amigas‖ dela. Refletindo sobre as causas dessa proibição,
uma aluna afirmou que, além do racismo, outro motivo para a proibição da amizade dos dois
62

era ―porque uma família é pobre e a outra é rica‖. A partir disso, o debate se desenvolveu em
torno da discriminação e das desigualdades sociais marcadas no texto pelas diferenças do
local onde Marina e Ricardo viviam.

[...] Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia
passeio. Nem as árvores de flores violetas. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de
pau-a-pique à sombra das mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma tênue
nuvem de poeira que o vento levava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se
do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e
arcos de barril. [...](VIEIRA, 2007, p. 40)

Os alunos perceberam que o bairro de Marina tinha casas grandes e confortáveis,


enquanto que o bairro pobre de Ricardo ―é igual a uma comunidade‖, nas palavras de um
aluno. Além disso, a turma concluiu que o asfalto é a fronteira porque separa o bairro rico do
bairro pobre. No entanto, o trecho que gerou discussões mais acaloradas foi o que narra a
morte de Ricardo. Ao tentar falar com Marina, na janela da garota, o rapaz é surpreendido
pela polícia. Ricardo é agredido verbalmente pelos policiais e foge como mostra o trecho a
seguir (VIEIRA, 2007, p. 44):

- Alto aí seu negro. Pára. Pára negro!


Ricardo levantou-se e correu para o muro. O polícia correu também. Ricardo saltou:
- Pára, pára seu negro!
Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com violência abafada pelos
sapatos de borracha. Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a
rua. Caiu e a cabeça bateu pesadamente de encontro à aresta do passeio.

A conduta dos policiais, a perseguição devido à cor do rapaz e o paralelo com a


realidade brasileira fizeram os alunos refletirem como o racismo está presente em nosso
cotidiano.
Após esse momento, desfizemos o semicírculo para que os alunos respondessem,
em duplas, a atividade de interpretação. Propomos que lessem, debatessem as questões para
construírem as respostas a serem registradas nos portfólios individuais e, posteriormente,
socializadas com a turma.
Abaixo, estão elencadas as questões da atividade escrita sobre o conto ―A
fronteira de asfalto‖, de Luandino Vieira:
63

1- Observe uma imagem de Luanda a seguir e responda:


Imagem 1 - Luanda

Fonte: https://acervo.publico.pt/mundo/noticia/houve-independencia-mas-não-
descolonizacao-das-mentes-1712736. Acesso em: 11 ago. 2018.

a)Levando em consideração a divisão territorial marcante na imagem e os


acontecimentos narrados no conto lido, há semelhanças entre a realidade do conto
e a realidade brasileira? Quais?
2- Releia o título do texto. Em sua opinião, quais as diferenças entre a vida das
pessoas que habitam os dois lados dessa fronteira?
3- Ao tomar consciência da discriminação da mãe de Marina, como Ricardo
reage?
4- O conto ―A fronteira de asfalto‖ denuncia sérios problemas de Luanda de
décadas atrás, tais como desigualdades sociais, segregação, preconceito e racismo.
Estes problemas estão presentes também na sociedade brasileira atual. De acordo
com a mensagem do conto, qual deve ser nosso posicionamento diante desses
problemas? Justifique sua resposta.
5- Você considera que o brasileiro é racista? Por quê?
6- No conto, Ricardo foi vítima de preconceito racial. E você, já foi vítima de
pessoas racistas ou conhece alguém que foi? O que aconteceu?

Enquanto os alunos estavam respondendo as questões, fomos passando em cada


dupla e retirando as dúvidas. Os discentes não sentiram muitas dificuldades, pois muito já
havia sido debatido anteriormente, favorecendo a realização da atividade.
A primeira questão trata da divisão territorial tão marcante no conto e mostrada
através de uma imagem de Luanda. Solicitamos que os alunos analisassem a imagem e a
comparassem com a realidade brasileira, uma vez que a desigualdade territorial característica
64

de Luanda também se faz visível no Brasil. Todos os alunos disseram haver semelhanças
entre Brasil e Luanda, mas algumas respostas foram vagas como, por exemplo, ―tudo,
racismo, desigualdade social etc‖ (P05). Esta resposta se refere corretamente a semelhanças
existentes entre os dois países, mas não leva em consideração, especificamente, a divisão
territorial como foi pedido na questão.
Porém, a maioria dos discentes apresentou respostas significativas e coerentes
com o debate que já havia ocorrido em sala:

P03 – Sim, a diferença social, o racismo, o preconceito, o jeito em que o povo acha
que só porque algumas pessoas moram em comunidades não podem ser como as que
moram no asfalto.
P26 – Sim, porquê (sic) a desigualdade é comum aqui no Brasil, prédios ricos e
próximos casas pobres (comunidades). Racismo e preconceito também são comuns.
P21 – Sim, porque nossa sociedade também é dividida desse mesmo modo. É
dividida com o bairro nobre ao lado do bairro de baixa renda.

Na segunda questão, pedimos que os alunos identificassem como era a vida nos
dois lados da fronteira de asfalto. Os trechos a seguir são exemplos retirados dos portfólios
dos discentes:

P12 – No bairro de rico a vida e (sic) boa, as casas são grandes, tem fartura e no
bairro dos pobres tem muita pobreza, miséria, as casas são humildes.
P22 – No lado do asfalto tem o bairro de ricos que tem tudo, boa infra-estrutura, não
falta nada. No bairro dos pobres as pessoas tem (sic) que trabalhar muito, tem
violência, não tem calçamento, etc.
P37 – No bairro dos brancos há mais modernidade, as casas são confortáveis e
bonitas, as pessoas possuem mais bens e oportunidades. No bairro mais pobre as
pessoas convivem com mais problemas, não tem moradias apropriadas, falta
saneamento.

As respostas mostram que os alunos tiveram um bom entendimento a respeito dos


dois territórios, o bairro branco e os musseques, presentes no conto. Durante a socialização
das respostas, discutimos sobre a visão pejorativa e preconceituosa que a sociedade,
geralmente, tem sobre os bairros mais pobres como, por exemplo, a ideia equivocada de que
nas favelas só moram bandidos. Na questão seguinte indagamos a respeito da reação de
Ricardo diante da discriminação da mãe de Marina e obtivemos como respostas:

P05 – Ricardo ficou triste e com raiva porque a mãe de Marina não queria que eles
fossem amigos.
P10- Ricardo foi cruel com Marina. Ele disse muitas coisas com ela, mostrou que
estava revoltado porque ele só servia pra (sic) ser amigo dela do lado de fora da casa
e quando era criança.
P32 – Ele não se segurou e foi pedir explicações. Ele estava com ódio porque a mãe
dela não deixava eles ser (sic) amigos.
65

A reação de Ricardo, pedida na terceira questão, fornecia elementos para que os


alunos resolvessem a pergunta seguinte que solicitava a mensagem transmitida pelo conto em
relação ao posicionamento que devemos assumir diante do preconceito e racismo.
Esperávamos que os alunos percebessem que no conto, Ricardo sofre com a discriminação de
que é vítima, mas ele questiona, mostra que não devemos aceitar nem ficar calados. Alguns
alunos apresentaram dificuldade de compreensão e deram respostas vagas como, por exemplo,
―tem gente que não percebe que existe racismo ou finge que não vê‖ (P29). No entanto, a
maioria apresentou respostas satisfatórias, em consonância com o texto lido.

P12 – O conto mostra que a pessoa vítima de racismo não deve se cala (sic) porque
Ricardo foi lá e falou o que pensava.
P32 – Eu entendi que é preciso lutar, brigar contra o preconceito e o racismo que
fazem muito mal as pessoas.

Perguntados se consideram o brasileiro um povo racista, todos os alunos disseram


―sim‖, mas a grande maioria fez a ressalva de que não podemos generalizar, pois não
podemos dizer que todas as pessoas são racistas no Brasil.

P15- Sim! O brasileiro ainda tem muito preconceito, mas as (sic) vezes não percebe.
P05 – Algumas pessoas sim, (sic) porque tem gente que não gosta da cor do outro
etc.
P11 – Uma grande parte sim porque a pessoa racista se acha melhor que a outra.
P32 – Sim. Eles olham diferente pra (sic) pessoa que é negro.

No entanto, percebemos alguns equívocos como, por exemplo, confundir racismo


com outras formas de preconceito muito comuns em nosso cotidiano como, por exemplo, o
preconceito social. O preconceito associado à classe social e ao poder aquisitivo foi muito
citado pelos alunos.

P28 – Muito racista por muitos fatores, religioso, situação financeira, a cor entre
outros.
P35 – Sim. Porque existem pessoas que têm o olhar diferente quando se fala na cor
da pele ou na situação financeira.
P36 – Sim, porém não são todos, mas o branco diz que o preto é bandido,
simplesmente pela sua condição, o que eu sei que é muito errado e não gosto, e do
mesmo jeito que o preto é racista com o branco.

Durante a socialização das respostas, pedimos que os alunos explicassem suas


afirmações. Os alunos afirmaram que é muito comum as pessoas acreditarem que são
superiores quando possuem um poder aquisitivo mais elevado e por esse motivo julgam as
outras pessoas pela aparência, pelas roupas, pelo carro, pelo local onde moram, resumindo,
66

pelas condições financeiras. Ao explicar sua resposta, o participante 35 disse que a situação
piora se a pessoa for negra, pois ―pra muita gente todo negro é pobre e bandido‖, nas palavras
do aluno. Aproveitamos essa e outras respostas para aprofundarmos a discussão sobre como,
historicamente, construiu-se essa imagem negativa do negro.
Em relação aos equívocos, para tentar solucioná-los, apresentamos os conceitos de
preconceito e racismo e explicamos que há vários tipos de preconceitos, entre eles, o
preconceito racial. Em relação ao comentário de que ―o preto é racista com o branco‖,
também trouxemos a questão para o debate e procuramos mostrar com base em elementos
históricos e nas relações de poder estabelecidas em nossa sociedade que, na verdade, não há
racismo reverso. Não queremos dizer que esses alunos tiveram seus paradigmas
transformados e mudaram completamente de opinião, mas sentimos que pelo menos aquilo
que falamos fez sentido para eles.
Na sexta questão, perguntamos se os alunos já foram vítimas de racismo ou se
conhecem alguém que já foi. Dezenove alunos disseram que nunca foram vítimas nem
conhecem nenhuma vítima de racismo. Seis alunos afirmaram que não foram vítimas, mas
conhecem alguém que já foi como, por exemplo, um discente que disse: ―não, mas conheço
uma cara que foi obrigado a sair de uma loja porque o dono achou que ele ia roubar e ainda
chamou ele de ‗nego safado‘ (sic)‖ (P09). Quatro alunos disseram ter sido vítimas, mas não
relataram como aconteceu, enquanto que três alunos só disseram que conheceram outras
vítimas, mas não falaram se já tinham sido vítimas ou não.
O silenciamento dos alunos frente a esse assunto e o fato de muitos deles se
distanciarem do problema, enxergando-o apenas quando acontece com os outros, nos
permitem deduzir que os discentes não se sentem seguros para debaterem o assunto. Além
disso, acreditamos que, algumas vezes, os alunos não são capazes de identificarem atitudes
racistas, muitas vezes presentes também no meio escolar, pois não possuem informações
suficientes sobre o assunto. Por isso, é imprescindível que o tema seja discutido no espaço
escolar, objetivando transformar posturas preconceituosas e discriminatórias tão arraigadas
em nossa sociedade. No entanto, percebemos que discussões sobre a questão racial e a
diversidade são, muitas vezes, negligenciadas na escola. Nesse sentido, concordamos com as
palavras de Amâncio (2008, p. 35) ao afirmar que:

[...] não basta constar na Lei que rege a educação nacional a importância dos povos
que contribuíram para a formação da sociedade brasileira. Ao contrário, diante dos
processos seculares de exclusão sociorracial no Brasil – principalmente a da pessoa
negra -, urge que a escola assuma o papel de revisora – não mais de mantenedora –
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da série histórica que explica o fato de o segundo maior país negro do mundo ainda
preservar práticas racistas no cotidiano de suas relações sociais.

Concluída a quarta etapa, combinamos com os alunos que a atividade de


encerramento da oficina ficaria para o dia seguinte por falta de tempo naquela aula. Na aula
seguinte, como atividade de extrapolação, sugerimos para a turma duas opções de atividades.
Os alunos podiam escolher uma das opções de atividade para que fosse realizada e
apresentada a turma posteriormente. A primeira opção seria se colocar no lugar de Marina,
que, após a morte de Ricardo, ficou muito triste, e produzir uma campanha publicitária de
combate ao preconceito racial a ser divulgada nas redes sociais. A segunda opção seria uma
produção escrita em que os alunos poderiam fazer uma continuação para a história ou criar
um novo desfecho para o conto a partir de qualquer momento anterior a morte de Ricardo no
conto.
A maioria dos alunos escolheu a produção escrita, o que nos surpreendeu bastante,
pois, geralmente, os discentes demonstram uma grande resistência à produção textual. No
entanto, acreditamos que o descontentamento com a morte de Ricardo, personagem do conto,
motivou os alunos a produzirem um novo desfecho para a narrativa.
A primeira opção foi escolhida por apenas seis alunos, os quais se dividiram em
duas equipes. A primeira equipe produziu uma campanha em formato de uma publicação no
Facebook.

Figura 3 – Atividade sobre preconceito racial 01

Fonte: Produção dos alunos


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Demonstrando muita criatividade, os alunos reproduziram no papel,


reaproveitando uma imagem de celular retirada de um anúncio publicitário, o que seria a
página de Marina na rede social e a postagem feita pela jovem, como é possível ver na
imagem acima.
A segunda equipe produziu uma campanha que mostra que o preconceito racial
também é uma forma de violência que gera muito sofrimento.

Figura 4 - Atividade sobre preconceito racial 02

Fonte: Produção dos alunos

O restante da turma presente na sala, vinte e sete alunos, escolheu a produção de


um novo desfecho para o conto. Em todos os textos, a morte de Ricardo foi eliminada, porém
a relação dele com Marina ganhou novos contornos. Na narrativa de três alunos o preconceito
racial falou mais alto e Ricardo se afasta de Marina, a pedido dela. Em onze das histórias
produzidas pelos alunos, Ricardo e Marina tornaram-se namorados e/ou casaram,
demonstrando uma visão mais romantizada. Os demais, treze alunos, mantiveram a amizade
entre Marina e Ricardo.
No entanto, nenhum dos alunos deixou de lado em suas produções a questão do
preconceito racial. Em algumas das histórias a mãe de Marina mudou sua postura e deixou de
discriminar Ricardo, já em outras os dois jovens continuaram enfrentando o preconceito como
podemos perceber nos exemplos de produções a seguir, retirados dos portfólios dos alunos:
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Figura 5 - Produção textual (P35)

Fonte: Portfólio dos alunos


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Figura 6 - Produção textual (P36)

Fonte: Portfólio dos alunos


71

Figura 7 - Produção textual (P31)

Fonte: Portfólio dos alunos


72

Figura 8 - Produção textual (P33)

Fonte: Portfólio dos alunos

5.1.2.2 Sequência básica II – Conto ―As mãos dos pretos‖

A segunda sequência básica de nossa proposta de intervenção também tem como


tema o preconceito racial, mas nosso objetivo com essa aula é mostrar que o racismo é
reproduzido e naturalizado por várias instituições como, por exemplo, família, igreja e escola.
Para iniciar a etapa de motivação, apresentamos o seguinte questionamento: As pessoas
nascem racistas ou elas se tornam racistas? A partir dessa pergunta, a turma iniciou um breve
debate, pois as opiniões estavam divididas entre aqueles que acreditavam que já nascemos
73

racistas e aqueles que defendiam que nos tornamos por causa da sociedade em que vivemos.
Após ouvir as colocações dos discentes, apresentamos a notícia a seguir, retirada do site do
jornal O Estado de S. Paulo:

Figura 9 - Notícia

Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,menina-de-2-anos-rebate-comentario-


racista-de-atendente,70001726497. Acesso: 07 ago. 2018.

Segundo a notícia, a menina Sophia escolheu a boneca da imagem, pois sonha em


ser médica, mas a atendente do caixa perguntou se a boneca era um presente. Sem entender, a
mãe explicou que era um presente por Sophia ter conseguido usar o peniquinho. Então, a
mulher teria dito para a criança: ―Mas ela não parece com você. Nós temos várias outras
bonecas que parecem mais com você‖. De acordo com o relato da mãe, a garota discordou e
respondeu: ―Claro que parece. Ela é uma médica, eu sou uma médica. Ela é bonita, eu sou
bonita. Você vê o lindo cabelo dela? E o estetoscópio?‖. Ainda de acordo com a notícia, Bradi
ficou muito feliz com a atitude da filha e escreveu em seu Instagram: ―Essa experiência só
confirmou minha crença de que nós não nascemos com a ideia de que a cor importa. A pele
tem cores diferentes assim como o cabelo e os olhos e todas elas são lindas‖.
74

Após a leitura da notícia, apresentamos a peça publicitária a seguir da campanha


―Onde você guarda o seu racismo?‖, lançada em dezembro de 2004. O material consiste em
uma série de depoimentos de pessoas que foram vítimas de discriminação racial no Brasil. O
depoimento apresentado a seguir revela uma afirmação discriminatória feita por uma criança
de apenas três anos.

Figura 10 – Campanha contra racismo

Fonte: http://unecombateaoracismo.blogspot.com/2009/04/onde-voce-guarda-o-seu-
racismo.html. Acesso em: 08 ago. 2018.

Pedimos que os alunos comparassem as histórias e explicassem por quais motivos


essas crianças tiveram reações diferentes. A turma identificou como razão para as duas
crianças reagirem de forma diferente os discursos das mães, pois elas reproduzem aquilo que
aprenderam com as mães. Segundo os alunos, a primeira mãe deixou bem claro em seu texto
no instagram que a cor não importa, enquanto que a segunda mãe deixa claro para o filho que
não gosta de negros. A partir dessas falas dos educandos fizemos uma breve explanação sobre
como nossa linguagem e nossas ações são influenciadas pelos diversos discursos a que
estamos submetidos.
75

Questionamos ainda se os discentes conheciam alguma história parecida ou de


atitudes infantis parecidas com esses dois exemplos. Uma aluna relatou que sua irmã de três
anos ofendeu uma coleguinha de escola chamando-a de ―neguinha‖. Segundo a participante,
sua mãe teria explicado a criança que o que ela fez é errado e a fez pedir desculpas. No
entanto, segundo a participante, a criança não teria ouvido esse tipo de comentário
discriminatório em casa. Outros relatos parecidos se sucederam demonstrando uma
aproximação da temática com a realidade da turma. O envolvimento dos alunos nos permite
dizer que nossa escolha de motivação foi acertada.
Para concluir a motivação, apresentamos a célebre frase de Nelson Mandela:
―Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua
religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas podem aprender a odiar, elas
podem ser ensinadas a amar‖. Os alunos compreenderam a frase, mas afirmaram não conhecer
Mandela. Sugerimos, então, que eles pesquisassem sobre Mandela e trouxessem frases dele no
dia seguinte para realizarmos uma atividade. Esta atividade não estava planejada em nossa
proposta de intervenção, mas consideramos importante que os alunos tivessem um contato
maior com a história desse grande líder político da África do Sul.
Seguimos para a introdução mostrando o livro de onde retiramos o conto ―As
mãos dos pretos‖, de Luís Bernardo Honwana. A obra, que faz parte do acervo da biblioteca
da escola, é uma coletânea de contos de diferentes autores africanos. Com o auxílio de slides,
apresentamos dados biográficos do autor, sua militância e engajamento nas questões relativas
aos direitos do povo negro. Luís Bernardo Honwana nasceu em 1942, em Lourenço Marques,
hoje Maputo, em Moçambique. Aos vinte e dois anos, publicou o livro de contos Nós
matamos o Cão Tinhoso que o consagrou como um dos mais importantes escritores de seu
país.
Para iniciar a etapa de leitura, apresentamos o título do conto, ―As mãos dos
pretos‖ e pedimos que os alunos fizessem predições sobre o assunto do texto. Poucos alunos
participaram. Apenas um aluno disse que o texto falaria sobre o tema trabalho e outro aluno
afirmou que seria sobre trabalho escravo. Alguns discentes concordaram com esta afirmação e
os demais não quiseram participar. Estas respostas nos permitem conjecturar que se devam ao
estereótipo, tão arraigado em nossa sociedade, que atribui a imagem do negro sempre à
escravidão. Ouvimos as colocações e lançamos o seguinte questionamento com o objetivo de
gerar uma reflexão: Mas será que as mãos dos pretos também não podem fazer artes,
construir, ajudar ao próximo? A maioria respondeu afirmativamente e perceberam que haviam
representado o negro de forma negativa.
76

Antes de iniciarmos a leitura do conto, pedimos aos alunos que respondessem, por
escrito, a seguinte pergunta: O que você diria para uma criança se ela perguntasse por que as
mãos das pessoas negras são brancas? O questionamento gerou certa agitação, mas todos
responderam cientes de que não havia uma resposta certa ou errada, pois não iríamos julgar
suas respostas. Muitos alunos afirmaram que as mãos dos negros são brancas porque não
levam sol, outros afirmaram que é devido à quantidade de melanina e a maioria disse que são
assim porque Deus criou todas as pessoas com as mãos mais claras, pois somos iguais.
Após esse momento, os alunos fizeram uma primeira leitura silenciosa do conto,
seguida de uma leitura coletiva. No conto, o narrador é um menino que procura respostas para
uma dúvida que o angustia: por que os pretos têm as palmas das mãos brancas? Muitas
explicações são apresentadas por diversos interlocutores, os quais caracterizam os negros
sempre como seres inferiores, até que a mãe do menino apresenta a sua explicação, a qual
constrói um discurso de igualdade entre os homens e desmascara a ideia de inferioridade dos
negros que foi elaborada pelos colonizadores para justificar seus atos cruéis de violência e
exploração.
Concluída a leitura, perguntamos se as respostas dadas pelos discentes, na
atividade anterior, se aproximavam da resposta de algum dos personagens do conto. Alguns
afirmaram que, assim como a mãe do menino, acreditavam que era para mostrar que todos são
iguais, enquanto que outros acharam semelhanças ao se referir à vontade divina. Ouvimos as
primeiras impressões da turma sobre o texto e discutimos sobre dúvidas deixadas pelo
vocabulário. Apresentamos o quadro a seguir e coletivamente, a partir das respostas dadas
pelos alunos, fizemos o preenchimento das lacunas na lousa.

Quadro 1 – Caracterização dos personagens do conto “As mãos dos pretos”


(continua)

PERSONAGENS INSTITUIÇÃO RESPOSTA OU EXPLICAÇÃO VISÃO


OU POSIÇÃO POSITIVA OU
SOCIAL NEGATIVA
DOS NEGROS
Senhor Professor Escola/ Ciência/ ―porque ainda há poucos séculos os avós Negativa
Saber deles (os negros) andavam com elas
apoiadas ao chão, como os bichos do mato,
sem as exporem ao sol, que lhes ia
escurecendo o resto do corpo.‖
Senhor Padre Religião ―porque eles andavam com elas às Negativa
escondidas, andavam sempre de mãos
postas, a rezar.‖
A Dona Dores Patroa/ Classe ―Deus fez-lhes as mãos assim mais claras Negativa
média para não sujarem a comida que fazem para
os seus patrões ou qualquer outra coisa que
77

(conclusão)

lhes mandem fazer e que não deve ficar


senão limpa.‖
O Senhor Antunes Comerciante ―Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Negativa
da Maria, São Pedro, muitos outros santos,
Coca-cola todos os anjos que nessa altura estavam no
céu e algumas pessoas que tinham morrido
e ido para o céu fizeram uma reunião e
resolveram fazer pretos. Sabes como?
Pegaram em barro, enfiaram em moldes
usados de cozer o barro das criaturas,
levaram-nas para os fornos celestes; como
tinham pressa e não houvesse lugar
nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas
nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os
tens escurinhos como carvões. E tu agora
queres saber porque é que as mãos deles
ficaram brancas? Pois então se eles
tiveram de se agarrar enquanto o barro
deles cozia?!‖

O Senhor Frias Trabalhador ―Deus acabava de fazer os homens e Negativa


mandava-os tomar banho num lago do céu.
Depois do banho as pessoas estavam
branquinhas. Os pretos, como foram feitos
de madrugada e a essa hora a água do lago
estivesse muito fria, só tinham molhado as
palmas das mãos e dos pés, antes de se
vestirem e virem para o mundo.‖

Dona Estefânia Trabalhadora ―Para ela é só por as mãos deles Negativa


desbotarem à força de tão lavadas.‖

Um livro Conhecimento ―os pretos têm as mãos assim mais claras Negativa
por viverem encurvados, sempre a apanhar
o algodão branco da Virgínia.‖
A mãe Povo africano ―Deus fez os pretos porque tinha de os Positiva
haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele
pensou que realmente tinha de os haver….
Depois arrependeu-se de os ter feito
porque os outros homens se riam deles e
levavam-nos para casa deles para os pôr a
servir de escravos ou pouco mais. Mas
como Ele já não os pudesse fazer ficar
todos brancos, porque os que já se tinham
habituados a vê-los pretos reclamariam,
fez com que as palmas das mãos deles
ficassem exactamente como as palmas das
mãos dos outros homens. E sabes porque
é que foi? [...] Pois olha: foi para mostrar
que o que os homens fazem é apenas obra
dos homens…Que o que os homens fazem
é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas
que se tivessem juízo sabem que antes de
serem qualquer outra coisa são homens.
Deve ter sido a pensar assim que Ele fez
com que as mãos dos pretos fossem iguais
às mãos dos homens que dão graças a
Deus por não serem pretos.‖
Fonte: Elaborado pela autora
78

A partir do preenchimento do quadro, os discentes perceberam que os


personagens representam camadas e/ou instituições da sociedade e que as tentativas de
explicações trazem sempre uma imagem negativa dos negros, com exceção da mãe, pois esta
seria negra ou representante do povo africano. Questionamos, então, os motivos pelos quais
na concepção dos alunos a mãe seria negra ou africana e a turma justificou que a explicação
dada por ela era desprovida de preconceitos e pregava a igualdade entre os homens. Ainda
analisando a postura da mãe, indagamos por qual motivo a mãe ria ao ouvir as histórias
contadas ao menino e chorou ao beijar as mãos do filho.
Sobre o riso, os alunos disseram que a mãe estava achando as explicações
absurdas, sem sentido ou exageradas. Em relação ao choro, alguns alunos disseram que ela
estava triste por existir racismo, outros afirmaram que era devido aos sofrimentos que o
preconceito já causou ao povo negro e a ela. No entanto, uma resposta nos chamou mais
atenção:

P36 – Eu acho que ela tava (sic) chorando por causa do filho dela, porque ela sabe
que a sociedade é racista e ela já sofreu com isso. Então as lágrimas dela são de
tristeza por ver o filho tão inocente e que, provavelmente, também será vítima de
racismo.

A partir desta resposta indagamos a respeito da cor da pele do menino.


Rapidamente, a maioria dos discentes afirmou que ele é negro, mas alguns discordaram.
Pedimos então que os alunos voltassem ao texto e fizessem novamente a leitura do segundo
parágrafo:

Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós não
prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a
falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles
andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar
(HONWANA, 2010, p.24).

Analisando a substituição do termo ―vocês‖, usado pelo padre, por ―nós‖ os


alunos perceberam que o menino não era negro, mas também não era branco como o padre.
Portanto, chegamos à conclusão de que, provavelmente, o narrador do conto é mulato e que
mesmo sendo alvo de discriminação, como fica claro na fala do padre, parece não perceber,
assim como não se identifica com os negros.
Para instigar o debate sobre o texto fizemos alguns questionamentos, tais como:
por que o Senhor Padre, que deveria pregar o princípio da igualdade propagado pela igreja
católica, não o faz? Por que o Senhor Professor, que representa o conhecimento, compara os
79

negros a bichos? Quais são as possíveis motivações para esses discursos imbuídos de
preconceitos?
A partir desses e de outros questionamentos, refletimos com os alunos sobre a
forma como as histórias narradas por cada personagem têm como objetivo legitimar a
exploração dos negros pelos brancos colonizadores, construindo de forma preconceituosa a
imagem desse povo como seres inferiores. Algumas explicações dadas pelos personagens do
conto remetem a dados históricos referentes ao surgimento e manutenção do racismo até os
dias atuais, pois como afirma Sant‘Ana em seu texto História e conceitos básicos sobre o
racismo e seus derivados, o racismo ―é fruto de um longo processo de amadurecimento,
objetivando usar a mão-de-obra barata através da exploração dos povos colonizados‖
(SANT‘ANA, 2005, p.42). Segundo o autor, a discriminação racial tem como ponto de
partida o século XV, quando os colonizadores europeus buscaram fundamentos doutrinários,
científicos e religiosos para provarem a superioridade dos brancos sobre negros e indígenas.

Tem-se a impressão de que o negro e o índio foram vítimas de uma conspiração bem
planejada durante todos esses séculos, onde foram elaboradas doutrinas com falsa
base bíblica e filosófica, bem como tentativas de comprovação de teorias com uma
falsa base científica, que não resistiram ao tempo. Mas as marcas do racismo e suas
maléficas consequências permaneceram, já que estes preconceitos sobrevivem às
gerações. A discriminação e o preconceito foram se fortalecendo no dia-a-dia,
criando fortíssimas raízes no imaginário popular, chegando ao ponto no qual nos
encontramos hoje (SANT‘ANA, 2005, p.49).

Baseando-se nisso, fornecemos a turma alguns dados históricos como, por


exemplo, o discurso religioso cristão da época que era conivente com a escravidão, definindo-
a como uma forma de aproximar os negros do cristianismo, para que os alunos
compreendessem que a escolha de cada personagem e seus discursos foi motivada. A partir da
análise dos elementos do contexto histórico, procuramos refletir sobre como o conto revela o
contexto da colonização em Moçambique através de uma crítica pungente, mas também como
o conto é similar a nossa realidade brasileira.
Concluímos a quarta etapa da sequência com a realização da atividade de
interpretação. Entregamos a todos os discentes o questionário abaixo:

1- O conto nos faz refletir sobre a forma como as ideologias da cultura portuguesa
eram impostas aos povos colonizados. Explique como o conto procura combater
essa ideologia da dominação.

2-O autor denuncia discursos presentes na sociedade moçambicana.


80

a) As visões apresentadas sobre os negros se aproximam ou se distanciam das


visões apresentadas em nossa sociedade? Por quê?

b) Você já presenciou esse tipo de visão discriminatória na escola? Como


aconteceu e com quem?

Leia o poema abaixo, escrito pelo poeta afro-brasileiro Solano Trindade, e responda as
questões a seguir:

Sou Negro
Por Solano Trindade

Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós


vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou como um danado


nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
81

Mesmo vovó não foi de brincadeira


Na guerra dos Malês
ela se destacou

Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...
(Disponível em ˂http://latitudeslatinas.com/poemas-de-solano-trindade/˃. Acesso: 05 jul. 2018)

3- De quem é a voz desse poema? Quem essa voz representa?

4- A partir da leitura do conto ―As mãos dos pretos‖ analisamos os discursos de


desvalorização construídos sobre os negros. No poema, o discurso é de
valorização ou desvalorização da pessoa negra? Justifique

5- O poema nega algumas visões preconceituosas a respeito dos negros.


Identifique essas visões e explique como o poema desmistifica cada uma delas.

Após a conclusão do questionário, partimos para a socialização das respostas


com o objetivo de aprofundarmos a discussão sobre o conto. A primeira questão gerou
dúvidas entre os alunos, mas a maioria afirmou que o escritor combate a ideologia da
dominação ―ao mostrar a discriminação escondida por trás de cada uma das explicações dos
personagens‖ (P18) ou quando ―cria contos como esse que faz a gente vê que no nosso
cotidiano ainda existe esse tipo de discriminação‖ (P22), segundo as palavras dos próprios
alunos. De forma geral, as respostas demonstram que os alunos compreenderam o tom de
denúncia do conto.
Na segunda questão, todos os alunos afirmaram que as visões discriminatórias se
aproximam de nossa realidade, pois segundo eles há muito racismo no Brasil e, muitas vezes,
reproduzimos as mesmas falas. Já em relação à presença dessa visão discriminatória na
escola, a maioria dos alunos concorda que há discriminação racial no ambiente escolar, mas
poucos disseram já ter presenciado ou relataram algum acontecimento. Uma aluna afirmou
que já recebeu críticas porque usa seu cabelo cacheado solto e que quando era criança diziam
82

que ela tinha cabelo de Bombril (P22); outros alunos disseram que insultos como ―macaco‖,
―carvão‖ e ―nego safado‖ são comuns no ambiente da escola. No entanto, muitos enxergavam
essas atitudes apenas como brincadeiras de mau gosto. Ainda não tinham se dado conta que,
na verdade, é preconceito racial.
A partir da terceira questão, a atividade foi elaborada com base no poema de
Solano Trindade, no qual a voz ouvida é a do próprio negro que conta a sua história e a
verdadeira história de seus antepassados, sem as mentiras propagadas pelos colonizadores. O
tom realista do poema, atrelado à linguagem simples e coloquial, propiciou uma boa
compreensão de sua mensagem por parte dos alunos que identificaram que o poeta afro-
brasileiro é a voz do poema que representa todo o povo negro do Brasil. Na questão seguinte,
a quarta da atividade, os alunos identificaram que o poema revela um discurso de valorização,
exaltação do negro.

P(09) – O poema traz uma valorização da pessoa negra, pois fala de suas qualidades,
mostra que os negros são valentes.
P(36) – Logo no começo ele se afirma negro e mostra que tem orgulho disso, não
tem vergonha de dizer que seus avós vieram da África, que eram escravos, pois eles
lutaram muito pra (sic) ter sua liberdade de volta.

Enfatizamos com os alunos a importância de que textos que valorizam o negro,


que mostram suas histórias de luta e resistência sejam cada vez mais divulgados e lidos nas
escolas, e em outros espaços de nossa sociedade, para que se rompa com a representação
inferiorizada dos negros, favorecendo, assim, a formação uma autoimagem positiva para toda
a população negra e elevando a autoestima do leitor negro. Acreditamos que este tipo de
literatura, uma literatura desprovida da visão pejorativa e preconceituosa sobre o negro, pode
influenciar de forma significativa no processo de construção da identidade de nossos alunos,
pois concordamos com Silva (2010, pág. 35) ao afirmar:

[...] uma literatura com proposta de representação do negro, que rompa com esses
lugares de saber, que possa trazer imagens enriquecedoras, pois a beleza das
imagens e o negro como protagonista são exemplos favoráveis à construção de uma
identidade e uma autoestima. Isto pode desenvolver um orgulho, nos negros, de
serem quem são, de sua história, de sua cultura. [...] Investir na construção de uma
identidade significa abrir caminho para a revolução no jeito de pensar da sociedade
contemporânea, pois os educando de hoje serão a sociedade de amanhã. A literatura,
nesse ínterim, pode ser um espaço de problematização do movimento ocorrido em
nossa sociedade.

Na quinta questão, pedimos que os alunos identificassem as visões


preconceituosas a respeito dos negros que foram desmistificadas no poema. A maioria dos
alunos percebeu que o poema mostra que tanto os escravos homens quanto as mulheres eram
83

valentes, que lutaram e que muitos se juntaram a outros escravos como, por exemplo, Zumbi
em busca da liberdade, ao contrário da ideia de que eles eram conformados com a escravidão.
Finalizamos a socialização das respostas e aproveitamos os minutos finais para solicitar que
os alunos, em casa, buscassem mais informações sobre preconceito racial para que
ampliassem suas visões sobre o tema.
Na aula do dia seguinte, iniciamos assistindo a um vídeo sobre a biografia de
Nelson Mandela 5 e sua luta contra o apartheid. Os alunos se mostraram surpresos com a
história desse líder e, principalmente, com sua prisão. Após uma breve conversa a respeito do
vídeo, dividimos a turma em grupos para a realização da atividade de extrapolação. Propomos
que um grupo de alunos reunisse as frases de Mandela pesquisadas pela turma para construir
um mural. Os outros grupos poderiam escolher entre produzir um poema ou uma campanha
comunitária de combate ao racismo na escola. As atividades realizadas pelas equipes foram
muito satisfatórias, demonstrando comprometimento e dedicação dos alunos.
A equipe I montou o mural sobre Nelson Mandela utilizando o material
pesquisado pelos alunos.

Figura 11 – Mural sobre Nelson Mandela

Fonte: Produção dos alunos

Como é possível perceber na imagem acima, a equipe não se limitou apenas a


escrever as frases de Nelson Mandela. Os alunos pesquisaram fatos importantes de sua vida,
produziram imagens e enfatizaram as mensagens positivas deixadas pelo legado de Mandela.
A equipe II elaborou um bonito poema que incita a reflexão sobre o respeito às
diferenças raciais.

5
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qwshVKvgPn0. Acesso em: 27 ago. 2018.
84

Figura 12 – Poema sobre diferenças raciais

Fonte: Produção dos alunos

As equipes III, IV e V produziram os textos de campanha comunitária. As equipes


utilizaram imagens recortadas de revistas e/ou desenhos para ilustrar seus trabalhos que
trouxeram mensagens de combate ao racismo na escola e também de valorização da pessoa
negra, colaborando também, para a autoestima dos alunos negros da escola.

Figura 13 – Cartazes de combate ao racismo

Fonte: Produção dos alunos

Após a socialização, os trabalhos foram expostos nos corredores da escola para


que toda a comunidade escolar tivesse contato com as produções dos alunos e a oportunidade
de refletir sobre o tema.
85

5.1.2.3 Sequência básica III – Conto ―A saia almarrotada‖

Iniciamos a primeira etapa de nossa terceira sequência básica apresentando a


imagem a seguir para análise da frase escrita. Alguns alunos sentiram dificuldade de
interpretar a frase por desconhecerem o significado da palavra opressão, mas
disponibilizamos dicionários e as dúvidas foram sanadas. Então, os alunos falaram livremente
sobre a importância da liberdade na vida de todas as pessoas e, principalmente, para aquelas
que são oprimidas de alguma forma.

Figura 14 – Frase motivadora

Fonte: https://www.pensador.com/frase/NDQwNTE2/

Após um breve debate sobre diferentes formas de opressão presentes em nossa


sociedade, iniciamos a etapa de introdução da obra a ser lida e de apresentação do autor.
Perguntamos se os alunos já conheciam o escritor Mia Couto, mas nenhum aluno afirmou
conhecê-lo. Então, apresentamos o vídeo Mia Couto – Literatura (Biografia), disponível no
youtube6, que apresenta dados sobre a biografia e produção do escritor moçambicano, além de
uma breve entrevista com o autor.
Os alunos assistiram ao vídeo de maneira atenta e ficaram surpresos quando
apresentamos o livro O gato e o escuro, de autoria de Mia Couto e que faz parte do acervo da
biblioteca da escola. Levamos também o livro de onde o conto foi retirado. Depois de
manusearem os livros, entregamos a cópia do conto aos alunos e solicitamos que levantassem
hipóteses sobre o texto a partir do título ―A saia almarrotada‖. O conto faz parte do livro O
Fio das Missangas, lançado em 2009, e apresenta a história de uma mulher anônima,
subjugada e silenciada pelos preceitos de uma sociedade patriarcal. Filha única de uma
família de homens, ela é criada pelo pai e pelo tio para servir aos homens da família. Cresce
em um mundo cheio de tristeza, exploração e renúncias.

6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mVQLXL1wvjk
86

Iniciei a leitura oral enfaticamente e aos poucos os alunos sentiram-se parte da


narrativa. Muitos deles se comoveram com a vida e os sofrimentos da protagonista, enquanto
que outros se revoltaram com as atitudes do pai. A partir desses posicionamentos, instigamos
um debate sobre como o conto denuncia a sociedade patriarcal que oprime e destina às
mulheres um lugar marginal. Explicamos que para o patriarcado é evidente e justifica as
diferenças hierárquicas entre homem e mulher. De acordo com Araújo (2009), a repressão da
mulher era justificada através de um fundamento: o homem era superior e cabia a ele,
portanto, exercer a autoridade, enquanto que para a mulher só restava ―aceitar, conformar-se,
obedecer, submeter-se e calar-se‖ (PERROT, 2005, p. 10).
Ressaltamos que a família representada no conto se assemelha a história da
família no Brasil que por muitos séculos teve o patriarcado como base e por isso, ainda traz
arraigado o conceito de dominação masculina sobre as mulheres. A partir disso, analisamos a
responsabilidade da mulher pelos serviços domésticos, a forma como é tratada pelos homens
de sua casa, os quais, segundo um aluno, ―queriam que ela ficasse sempre feia para nunca
casar e sempre cuidar deles‖ (P08). Refletimos, ainda, sobre os motivos da personagem não
ser nomeada, pois este fato não é desmotivado como os alunos pensaram diante da primeira
leitura.
O discurso patriarcal representado por seu pai é visto pela personagem como algo
sagrado, que não deve ser contestado, apenas obedecido como podemos perceber no trecho a
seguir:

Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz
que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira.
Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência,
enxotando tentações que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo
quando ele ordenou: - Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente me havia oferecido. Não
cumpri. Guiaram-me os mandos do diabo e, numa cova, ocultei esse enfeitiçado
enfeite.
Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre
labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos
escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam
esmorecido (COUTO, 2009, p.31).

Essa passagem possibilitou discussões sobre como o pai controla a vida da filha e
sobre as inúmeras formas de controle e vigilância que a sociedade machista impõe às
mulheres. Essas formas de controle e o silêncio foram imposto às mulheres ao longo dos
séculos, segundo Perrot (2005), através das religiões, dos sistemas políticos e dos manuais de
comportamento.
87

Em relação à atitude da protagonista de enterrar o vestido, os alunos concluíram


que não se trata de uma desobediência ao pai, mas um ato de esperança de que um dia poderia
usá-lo, ter uma nova vida. Já em relação ao fato da protagonista ter sido salva pelos irmãos ao
atear fogo ao próprio corpo, questionamos aos alunos se ela enxergou a atitude dos irmãos
como uma salvação. A maioria dos alunos acredita que a atitude da mulher constituiu uma
tentativa desesperada de libertação e que foi frustrada pelos irmãos, pois, segundo um aluno,
―ela tentou se matar pra (sic) se livrar das tristezas da vida e os irmãos tiraram isso dela
também. Os irmãos fizeram o certo, mas ela não enxergou a atitude deles como salvação‖
(P17).
Um aspecto que gerou muita reflexão foi a presença da saia e seu significado na
construção da narrativa. Ao analisarmos o trecho abaixo, os alunos compreenderam que a saia
não é apenas uma peça do vestuário da personagem. Para alguns alunos, ela é símbolo da
opressão, representa a vaidade e o prazer que também são negados a essa mulher. No entanto,
outros alunos enxergaram a saia como a representação da própria vida da personagem, ―cheia
de marcas‖, ―amassada‖.

Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E


parece que me sento sobre a minha própria vida.
O calor faz parar o mundo. E me faz encalhar no eterno sofá da sala enquanto a
minha mão vai alisando o vestido em vagarosa despedida. Em gesto arrastado como
se o meu braço atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido.
Atravesso o quintal em direcção à fogueira. Algum homem me visse, a lágrima
tombando com o vestido sobre as chamas: meu coração, depois de tudo, ainda
teimava (COUTO, 2009, p.31).

Destacamos para os alunos a parte final desse trecho para discutirmos as


esperanças depositadas pela mulher no casamento, propósito natural para as mulheres daquela
cultura. Para finalizar o debate, explicamos a diferença entre a linguagem denotativa e
conotativa, e pedimos que os alunos identificassem algumas passagens do conto contendo a
linguagem conotativa e explicassem o que essas passagens revelavam.
Em casa, os alunos responderam os questionamentos a seguir em seus portfólios.

1- A protagonista resgata memórias de sua vida, marcada por ser uma única
mulher em meio a uma família de homens machistas.

a) Você conhece alguma história ou alguém que já sofreu devido ao machismo?


Conte, resumidamente, como tudo aconteceu.
88

b) É muito comum ouvirmos dizer que as tarefas de casa são atribuições


femininas e que lugar de mulher é na cozinha, como o conto retrata. Você
concorda? Por quê?

2-Após a leitura do conto, como você interpreta a epígrafe: ―O estar morto é uma
mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo. Quando eu morrer, quero ficar
morta. (Confissão da mulher incendiada)‖?

Como a resolução da atividade ficou para ser feita em casa, muitos alunos não
responderam as questões. Apenas dezessete alunos fizeram a atividade. No entanto,
acreditamos que isto não trará grandes prejuízos para o processo de letramento literário destes
alunos, pois nosso objetivo com estas questões era fazer uma conexão entre a discussão feita
em sala de aula e a realidade do aluno, bem como motivá-los a escrever a partir de suas
reflexões. Além disso, procuramos instigar sua participação durante a socialização e discussão
das respostas.
Na primeira questão, inicialmente, perguntamos se os alunos conheciam histórias
de vítimas de machismo. Todos os alunos disseram conhecer, mas três alunos não contaram
os episódios. Entre aqueles que o fizeram, geralmente, relataram episódios de ciúmes de
maridos, casos em que os maridos ou namorados agridem as mulheres, as proíbem de sair, de
trabalhar fora ou até mesmo de ter amizade com pessoas que eles não julgam confiáveis.
Entre as meninas, alguns depoimentos sobre suas próprias vidas chegam a se assemelhar com
o conto lido como é possível ver nas respostas a seguir:

P02 – Sim. Tive um namorado que não podia me ver com short curto, nem blusinha
decotada que já fazia uma briga, no começo eu até deixei de vestir, mais (sic) depois
eu decidi terminar porque eu não queria isso pra (sic) minha vida não.
P37 – Eu sofro com o machismo em minha própria casa, porque meu irmão, que é
mais novo, pode tudo e eu não. Ele vai a vários lugares, sai com amigos, chega na
hora que quer e eu não posso nada porque sou mulher.
P14 – Sim, aqui na escola mesmo a gente vê as meninas sendo chamada (sic) de
quenga (sic) porque ficam com um ou outro menino, já os meninos ganham a fama
de garanhão.

No segundo item da primeira questão, ao serem perguntados se concordam com a


ideia de que lugar de mulher é na cozinha, todos os alunos disseram discordar. Os alunos
justificaram que as mulheres têm os mesmos direitos que os homens e que elas podem ser o
que quiserem. No entanto, em relação aos afazeres domésticos, alguns alunos disseram que
não é papel do homem cuidar da casa, demonstrando assim, uma visão machista que ainda
89

perdura nos dias atuais. Além disso, essa postura machista revela uma contradição nas
respostas dos alunos sobre o lugar das mulheres e a responsabilidade pelos afazeres
domésticos.
Instigamos o debate e levamos a turma a refletir sobre como a sociedade evoluiu e
como alguns conceitos e costumes também precisam evoluir como, por exemplo, a forma de
criação de meninos e meninas e a divisão de tarefas domésticas. A respeito da formação de
homens e mulheres, Saffioti (2004, p.35) afirma:

As mulheres são ―amputadas‖, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no


exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis,
cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrário, são estimulados a desenvolver
condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem.

Em relação à segunda questão, apesar de termos enfatizado que não há apenas


uma forma de interpretação, os alunos apresentaram dificuldades de compreensão da epígrafe
do conto e as respostas foram bem sucintas.

P05- A mulher está falando da vontade dela de se matar para se libertar, mas que não
conseguiu.
P12 – Acho que ela está falando da vida dela que mais parecia com uma morte, pois
ela não podia viver, já parecia ter morrido a (sic) muito tempo.

A socialização das respostas dos portfólios foi feita na aula do dia seguinte ao da
sequência didática. Para esta aula estava prevista também a realização de nossa atividade de
extrapolação que teve por objetivo produzir tirinhas que retratassem situações de machismo
cotidianas, demonstrando uma crítica. Para isso, inicialmente, apresentamos a tirinha do
Armandinho a seguir:

Figura 15 – Tirinha do Armandinho sobre machismo

Disponível em: ˂https://tirasarmandinho.tumblr.com/˃. Acesso em: 12 set. 2018.


90

Após a leitura da tirinha produzida por Alexandre Beck, instigamos os alunos a


falarem sobre o que entenderam do texto e houve um breve debate sobre a forma machista
como Armandinho tratou a colega, não deixando Fê falar. Além disso, os alunos citaram
outras atitudes machistas presentes em nosso cotidiano e identificaram que a tirinha faz uma
crítica ao machismo. Logo após, explicamos a proposta de atividade a ser realizada em
equipes.
O trabalho em equipes foi muito produtivo, pois os alunos estavam motivados e
conversaram calorosamente sobre a atividade. As atividades apresentaram diferentes
situações, muitas delas baseadas em experiências das próprias alunas como elas afirmaram
durante a socialização das tirinhas, a qual ocorreu na semana seguinte para que todos os
grupos pudessem concluir a atividade e apresentá-la para a turma. Passemos a análise das
atividades:
A primeira equipe apresentou uma tirinha em que a mulher é ofendida por não
demonstrar interesse em se relacionar com o homem.

Figura 16 – Tirinha sobre machismo 01

Fonte: Produção dos alunos

A equipe justificou durante a socialização que quis mostrar que, na maioria das
vezes, os homens ―não querem nada sério‖ e ainda xingam as mulheres que não se interessam
por eles como forma de desvalorizá-las.
Na tirinha a seguir, o pai proíbe a filha de sair com as amigas e de ter amigos
homens pelo simples fato dela ser mulher. Durante a socialização, as alunas afirmaram que se
sentem injustiçadas, pois seus irmãos homens têm liberdade de sair e elas não. Isto demonstra
que ainda nos dias de hoje há a presença de um discurso machista e patriarcal em parte das
91

famílias de nossa sociedade, cujos ditames conferem à mulher uma posição de submissão e
inferioridade.

Figura 17 – Tirinha sobre machismo 02

Fonte: Produção dos alunos

A equipe 3 mostra um homem duvidando da capacidade de uma mulher de


consertar um computador. Os alunos afirmaram que algumas profissões como a informática e
a engenharia, por exemplo, ainda são vistas como profissões masculinas e muitas pessoas não
acreditam que as mulheres tenham capacidade para atuar nessas áreas.

Figura 18– Tirinha sobre machismo 03

Fonte: Produção dos alunos


92

Na tirinha a seguir, é demonstrada uma situação bastante semelhante, pois o


garotinho afirma que futebol é coisa de menino e não deixa a menina jogar. Durante a
apresentação da atividade, as alunas da equipe afirmaram que essa é uma situação muito
comum na escola, pois os meninos dominam a quadra e alegam que as meninas não sabem
jogar, não são capazes. Elas afirmaram, ainda, que se uma menina insiste em jogar futebol, ela
é taxada de ―sapatão‖, inclusive, pelas demais meninas.

Figura 19 – Tirinha sobre machismo 04

Fonte: Produção dos alunos

A atividade a seguir, apesar de não ser uma tirinha, também retrata uma situação
machista. Um casal está em um restaurante e o homem pergunta à mulher se ela pagaria a
conta. Ela responde negativamente, pois seria obrigação dele por ser o homem. Durante a
socialização, a equipe afirmou que o objetivo era mostrar que, algumas vezes, as mulheres
também reproduzem discursos machistas.

Figura 20 – Tirinha sobre machismo 05

Fonte: Produção dos alunos


93

A sexta equipe também apresentou uma única imagem, mas há vários balões de
falas que conferem uma progressão a narrativa. Na atividade, o pai deixa a cargo da mãe a
responsabilidade de explicar à filha o que é machismo pelo simples fato de achar que, por ser
homem, podia se eximir da responsabilidade de falar sobre machismo e de participar mais
efetivamente da educação das crianças, função, muitas vezes, vista como exclusiva da mulher.

Figura 21 – Tirinha sobre machismo 06

Fonte: Produção dos alunos

A sétima equipe, apesar de não ter apresentado tanto esmero na elaboração da


tirinha, mostrou um menino afirmando que lugar de mulher é em casa, arrumando e
cozinhando. Na socialização da atividade, a equipe afirmou que a intenção era mostrar como
o discurso que afirma ser papel da mulher realizar os afazeres domésticos ainda é comum em
nossa sociedade.

Figura 22 – Tirinha sobre machismo 07

Fonte: Produção dos alunos


94

Já o oitavo trabalho, apesar de não apresentar a estrutura do gênero tirinha como


solicitado, faz uma criativa campanha de combate ao machismo a partir da montagem de
recortes de revistas.

Figura 23 – Tirinha sobre machismo 08

Fonte: Produção dos alunos

A realização desta aula superou nossas expectativas, pois os alunos


compreenderam que a cultura machista é propagada de diversas formas, inclusive, por
atitudes do cotidiano que oprimem e que muitas vezes a longo prazo contribuem para as
desigualdades entre os gêneros. Segundo Saffioti (2004, p.71), ―a desigualdade, longe de ser
natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na
trama de relações sociais‖. As atividades demonstram reflexões da turma sobre essas
desigualdades e sobre como, apesar do espaço conquistado pelas mulheres na sociedade atual,
diversas vezes elas ainda são estigmatizadas como seres frágeis e são vítimas de diversas
formas de discriminação dentro de uma sociedade machista.

5.1.3 Terceira etapa: O contato com a literatura afro-brasileira

Esta etapa teve como objetivo motivar os alunos a conhecerem a literatura afro-
brasileira a partir da produção da escritora Conceição Evaristo, enfatizando o
comprometimento dessa literatura com as questões sociais relacionadas aos negros da nossa
realidade periférica brasileira. Nessa etapa, desenvolvemos uma proposta didática em torno do
95

conto ―Maria‖, de acordo com a metodologia da sequência básica do letramento literário de


Cosson (2016).

5.1.3.1 Sequência básica IV – Conto ―Maria‖

A motivação de nossa proposta teve como objetivo construir novos olhares a


respeito da mulher negra e sua condição em nossa sociedade, uma vez que o conto traz uma
denúncia das inúmeras formas de violência contra as mulheres negras através da figura de
Maria, personagem principal do conto. Para isso, solicitamos que os alunos formassem duplas
e entregamos a cada dupla um envelope contendo quatro imagens de mulheres negras,
destaque em diferentes profissões e países, bem como tarjetas contendo os nomes e dados
biográficos dessas mulheres separadamente. As duplas deveriam fazer a associação da foto
com o nome e a descrição correta.
Inicialmente, as duplas sentiram algumas dificuldades, pois havia muitas mulheres
desconhecidas pelos alunos como, por exemplo, Nhá Chica, Ellen Johnson Sirleaf, Toni
Morrison, Aretha Franklin, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. No entanto,
tivemos o cuidado de mesclar essas mulheres com rostos que acreditávamos ser mais
conhecidos como, por exemplo, Marielle Franco, Zezé Motta, Maria Júlia Coutinho, Glória
Maria entre outras. Além disso, enfatizamos que os alunos lessem as características
atenciosamente e a maioria das duplas conseguiram associar corretamente os nomes com as
imagens. Era notável a satisfação das duplas ao concluírem a atividade.
Após esse momento inicial, questionamos aos alunos o que todas essas mulheres
tinham em comum. Nesse momento, os alunos afirmaram que todas elas eram mulheres
negras que se destacaram e que algumas eram famosas. Uma aluna lembrou que Maria Júlia
Coutinho é uma repórter famosa que foi vítima de racismo há pouco tempo e outros falaram
sobre o assassinato, ainda sem solução, de Marielle Franco. Com o auxílio de slides,
identificamos cada uma das mulheres enfatizando a luta das mulheres negras para vencer
preconceitos, estereótipos e conquistar seu espaço na sociedade. Entre as imagens, colocamos
a foto de Conceição Evaristo que foi a última a ser apresentada e assim, iniciamos o segundo
passo da sequência básica: a introdução.
Uma das escritoras afro-brasileiras de maior destaque na atualidade, Conceição
Evaristo nasceu em uma favela de Belo Horizonte e precisou conciliar seus estudos com o
trabalho como empregada doméstica, até concluir, aos 25 anos, o curso Normal. Depois,
mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a lecionar e estudar Letras na UFRJ. Mestre e
96

Doutora em Literatura Comparada, estreou, na década de 90, na literatura com publicações na


Série Cadernos Negros, organizada pelo Grupo Quilombhoje. Engajada nos movimentos de
valorização da cultura negra, a ―escrevivência‖ de Conceição Evaristo, ou seja, a escrita
nascida das experiências de vida da própria autora e de seu povo revela a condição dos
afrodescendentes no Brasil.
Após apresentar brevemente a biografia de Conceição Evaristo, exibimos um
vídeo, disponível no youtube7, em que a própria escritora fala sobre sua vida, sua trajetória
como professora e como iniciou na escrita. Levamos o livro “Olhos d’água”, mostramos a
capa, orelhas, prefácio e deixamos que os alunos o manuseassem por algum tempo.
Enfatizamos que a obra é composta por quinze contos que dão voz a personagens negros,
principalmente a mulher negra, mostrando as desigualdades sociais, as inúmeras formas de
violência e a marginalização a que foram submetidos pelo grupo detentor do poder em nossa
sociedade.
Para iniciar a leitura da obra, terceiro momento da sequência básica, entregamos
cópias do conto ―Maria‖ aos alunos e solicitamos que levantassem hipóteses a respeito do
assunto do texto a partir do título. Entre as hipóteses construídas, os alunos afirmaram que o
conto seria sobre uma mulher com uma vida difícil; sobre amores dessa mulher; alguns alunos
pensaram que se referia a Maria, mãe de Jesus. Depois desse momento, fizemos a leitura
compartilhada do conto.
O primeiro momento após a leitura foi marcado pela perplexidade da turma diante
da morte de Maria. Os alunos não aceitavam o fato de Maria, uma mãe trabalhadora e honesta
ter sido brutalmente assassinada. Deixamos que os alunos dessem suas opiniões sobre o conto
e incentivamos o diálogo sobre o texto, direcionando a discussão a fim de garantir a
argumentação e o respeito às respostas dos colegas. Aproveitamos que os alunos se
mostravam inconformados com o linchamento e morte de Maria e questionamos se os
passageiros que agrediram verbalmente e fisicamente a protagonista teriam a mesma postura
diante de uma mulher branca. A turma se mostrou um pouco dividida, mas a maioria dos
alunos afirmou que não, pois na opinião deles se a mulher fosse branca, provavelmente, seria
confundida com uma das vítimas. Além disso, um aluno enfatizou que a forma como Maria
foi agredida, sendo chamada de ―negra safada‖, já revela o preconceito com sua cor.
Concordamos com os alunos e explicamos como a criminalização e a dúvida da
decência foram historicamente impostas aos negros. A partir disso, os alunos citaram

7
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dHAaZQPIF8I&t=22s. Acesso: 06 set. 2018.
97

comportamentos cotidianos que demonstram essa criminalização e pré-julgamentos como, por


exemplo, quando as pessoas mudam de calçada para não passar ao lado de um adolescente ou
homem negro porque acham que serão assaltadas, como as mulheres seguram a bolsa com
mais força ao avistarem jovens negros, como a polícia sempre aborda os negros de forma
violenta e casos que ganharam notoriedade na mídia. Nesse momento, discutimos como essas
ações estão presentes em nossa realidade, como agimos diante dessas situações, pois, muitas
vezes, não fazemos uma leitura crítica dessas atitudes. Uma aluna afirmou que, até então,
achava essas atitudes normais.
As violências cometidas contra Maria ocorrem devido aos estereótipos impostos
aos negros, mas também por ser mulher. Questionados, os alunos tiveram dificuldades para
perceber as opressões de gênero e de classe denunciadas no conto. No entanto, lançamos
perguntas e direcionarmos as discussões a respeito das opressões que marcam a vida da
personagem.
Pedimos que os alunos descrevessem a personagem principal, uma vez que Maria,
assim como tantas outras Marias que ela representa, é uma mulher negra, mãe, que trabalha
como doméstica para sustentar sozinha aos filhos. Evaristo (2009) afirma que o discurso
literário brasileiro é marcado pela ausência da representação da mulher negra como figura
materna.
A ficção ainda se ancora nas imagens de um passado escravo, em que a mulher
negra era considerada só como um corpo que cumpria as funções de força de
trabalho, de um corpo-procriação de novos corpos para serem escravizados e/ou de
um corpo-objeto de prazer do macho senhor. Percebe-se que a personagem feminina
negra não aparece como musa, heroína romântica ou mãe. Mata-se no discurso
literário a prole da mulher negra, não lhe conferindo nenhum papel no qual ela se
afirme como centro de uma descendência. À personagem negra feminina é negada a
imagem de mulher-mãe, perfil que aparece tantas vezes desenhado para as mulheres
brancas em geral. E quando se tem uma representação em que ela aparece como
figura materna, está presa ao imaginário da mãe-preta, aquela que cuida dos filhos
dos brancos em detrimento dos seus (EVARISTO, 2009, p. 23 – 24).

Conceição Evaristo, assim como outras escritoras negras, problematiza esses


estereótipos da mulher negra criados pelo cânone literário, investe em um discurso de
resistência e apresenta em sua produção as mais diversas possibilidades do ser mulher negra,
inclusive, a figura materna. Ao conceber o atributo da maternidade à personagem-título do
conto, a autora humaniza a mulher negra e consolida a figura da mãe como elemento essencial
para a subsistência das famílias brasileiras.
Empregada doméstica, Maria é uma trabalhadora explorada e desvalorizada pela
patroa que recompensa seu trabalho exaustivo durante uma festa oferecida pelos patrões, em
98

pleno domingo, com restos de alimentos e uma gorjeta como é possível perceber no trecho a
seguir:

No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa
os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as
frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A
gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados.
Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para
comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As
crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão
(EVARISTO, 2016, p.39).

Instigamos os alunos a analisarem a situação econômica e social da personagem e


assim refletirem sobre como o conto revela a desvalorização do trabalho doméstico muitas
vezes visto, preconceituosamente, como inferior aos outros e denuncia desigualdades sociais
que são marcantes em nossa sociedade. O conto representa a dura realidade brasileira em que
as mulheres negras ocupam as piores condições de trabalho e recebem as menores
remunerações. Além disso, o conto revela as preocupações de Maria em relação ao futuro dos
filhos: ―Maria estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida.
Tinha três filhos. (...) Meu Deus, como seria a vida dos seus filhos? Era a primeira vez que ela
via um assalto no ônibus‖ (EVARISTO, 2016, p. 41). Essa preocupação, característica da
figura materna, é ainda maior para as mulheres negras porque além de conviverem com todos
os riscos que põem em jogo a segurança e o bem-estar de seus filhos, ainda têm que enfrentar
o racismo que pode prejudicar a vida deles de forma aguda.
Nesse momento, alguns alunos fizeram relatos sobre o trabalho de suas mães
como empregadas domésticas, as relações entre patroa e trabalhadora e o depoimento de uma
aluna, em especial, nos chamou atenção ao revelar que quando criança gostava de
acompanhar a mãe em seu trabalho. Atualmente, ela fica em casa sozinha e sente muito a falta
da mãe que passa o dia fora, cuidando da casa e dos filhos de outra pessoa, mas que
compreende que é necessário e que a mãe só pensa no bem dela, assim como a personagem do
conto. Ela disse ainda que a mãe não quer que ela seja empregada doméstica no futuro.
Outro aspecto do conto em que notamos uma aproximação com a realidade dos
alunos e muitos se sentiram motivados a falar foi o fato de Maria ter sido abandonada pelo
companheiro, pai de seu primeiro filho. Assim como tantas outras mulheres, Maria foi
abandonada pelo companheiro, porém ainda o ama.

Ao entrar [no ônibus], um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um


sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele e de Maria. Ela
99

reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a
vida sem ele (EVARISTO, 2016, p. 40).

Muitos alunos relataram que a história da protagonista parecia com a de suas mães
que foram abandonadas ou estavam separadas de seus companheiros. Alguns relataram, com
certa mágoa e tristeza, que nunca conheceram o pai, assim como o filho de Maria. Além
disso, chamamos a atenção dos alunos para as atitudes do homem, o qual se aproxima da
mulher para perguntá-la sobre o filho e sobre sua vida e logo depois anuncia um assalto ao
ônibus junto com o comparsa.
Depois de assaltarem aos passageiros do ônibus, o ex-companheiro de Maria e seu
comparsa descem sem levar nada da mulher que passa a ser acusada de cúmplice dos
bandidos.

Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se.
Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o
homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra
safada, vai ver que estava de coleio com os dois (EVARISTO, 2016, p. 41).

Pedimos que os alunos observassem a forma como os demais passageiros se


referiam à Maria e assim levantamos a discussão a respeito de como uma parte da sociedade
se vê no direito de insultá-la, chamando-a de ―puta‖, pelo simples fato dela ser mulher. A
partir disso, debatemos como nossa sociedade machista designa às mulheres um lugar de
submissão, menor poder em relação aos homens e como, muitas vezes, não permite nem que a
mulher se defenda como acontece com Maria no conto lido. Alguns alunos chamaram atenção
para o fato de que um rapaz negro e magro, parecido com o filho de Maria, também insulta e
agride a mulher, o que, segundo eles, mostraria que nem sempre o preconceito e a
discriminação vêm de pessoas de raças diferentes. Duarte (2010, p.232) afirma que no conto
―Maria‖, ―a violência explode na sequência de gestos, atos e palavras, e se paralisa na imagem
da mulher linchada sem direito à defesa‖.
Para finalizar a discussão, fizemos o seguinte questionamento: se Maria de fato
fosse cúmplice dos assaltantes, o que aconteceu com ela seria aceitável? Mais uma vez a
turma se mostrou dividida. A maioria dos alunos afirmou que não, pois o certo seria chamar a
polícia para prendê-la. No entanto, alguns alunos afirmaram que sim, pois ela estaria
cometendo um crime e isso causaria revolta, justificando, assim, seu linchamento. Deixamos
que os alunos que tinham opiniões contrárias debatessem. Foi um momento tumultuado, mas
os alunos procuraram argumentar e convencer aos demais que ao agredir um criminoso a
pessoa também comete um crime, havendo, ainda, chances de se cometer injustiças.
100

Fizemos algumas intervenções durante a discussão que, em suma, foi bastante


profícua e permitiu uma reflexão mais crítica a respeito da visão de linchamento como uma
forma de justiça. Além disso, instigamos os alunos a refletirem sobre como é um desrespeito
aos direitos humanos a concepção de que qualquer forma de violência é justificada contra
alguém que comete um ato que viola as leis.
Concluído o debate, passamos a uma análise mais minuciosa da linguagem do
conto que, marcada pela proximidade com a linguagem oral, traz também uma forte carga
poética que confere leveza e abre espaço para os sentimentos, mesmo nas cenas mais
violentas. Outro recurso muito utilizado por Conceição Evaristo em sua escrita é a
hifenização, a qual está presente em palavras como ―buraco-saudade‖ (EVARISTO, 2016, p.
41). Procuramos mostrar aos alunos como o trabalho com a linguagem no conto faz parte do
projeto de escrita da autora que, ancorado na memória individual e coletiva, denuncia as
violências e as condições de subalternidade em que se encontra a comunidade afro-brasileira.
Conversamos com os alunos sobre como o texto de Conceição Evaristo é uma forma de
apropriação de um lugar social onde a escritora, assim como outras escritoras
afrodescendentes, apresenta suas reivindicações, inclusive, quanto ao direito de não ter sua
voz silenciada por ser mulher.
Após esse momento, desfizemos o semicírculo para que os alunos respondessem,
em duplas, a atividade de interpretação. Nossa intenção não é criar fichas de leitura, mas sim,
ampliar a discussão. Propomos que os alunos debatessem as questões para construírem as
respostas e seus registros nos portfólios individuais. O registro foi feito em casa devido ao
pouco tempo restante de aula e a socialização das ideias realizada na aula seguinte.
Abaixo, estão elencadas as questões da atividade escrita sobre o conto ―Maria‖, de
Conceição Evaristo:

1-Maria tinha um corte na mão feito com uma faca a laser enquanto cortava o
pernil da patroa. O penúltimo parágrafo apresenta o trecho a seguir: ―Estavam
todos armados com facas a laser que cortam até a vida.‖ De fato, os passageiros
possuíam facas a laser? O que essa imagem representa?

2-Releia o terceiro parágrafo.


a) Ao ser perguntada se tinha outros filhos, Maria ―baixou os olhos como que
pedindo perdão‖. Por que Maria agiu assim? Ela havia realmente feito algo de
errado? Explique.
101

b) Ao se referir ao sexo dos filhos de Maria, o texto diz que ―eles haveriam de ter
outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente.‖ Por quais razões e de que
forma a vida deles se diferenciariam da vida de Maria?

3- Melão é uma fruta relativamente comum no Brasil, mas os filhos de Maria


nunca haviam experimentado. Que aspecto da realidade brasileira este fato
denuncia? Por quê?

4- Leia as formas de violência contra a mulher, previstas no artigo 7º da Lei nº11.


340/2006 e identifique quais foram cometidas contra Maria. Justifique com
passagens do texto.

Segundo o artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 são formas de violência doméstica e


familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a


presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante
intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
102

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure


retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,


difamação ou injúria.

Apesar de alguns alunos não ter realizado a atividade em casa, a grande maioria
apresentou respostas coerentes para os questionamentos. A primeira questão explorava os
sentidos construídos pela autora ao afirmar que os agressores de Maria estavam armados com
facas a laser. Nossa expectativa de resposta era que os alunos fossem capazes de perceber que,
naquele momento, os agressores sentiam-se em uma posição de poder superior à mulher,
desrespeitando seus direitos e causando sofrimentos profundos. Todos os alunos afirmaram
que os passageiros não estavam, de fato, armados com facas, mas identificaram que essa
imagem representa a gravidade das agressões sofridas por Maria.

P25 – Eles não estava (sic) armados, mais (sic) como tratavam Maria fazia com que
a dor seja mais forte que a própria faca a laser.
P21 – Que eles estavam armados com palavras que eram ofensivas.
P03 – Não, as palavras machucam tanto quanto a faca laser.
P02 – Não, mas representa a maneira que ela foi tratada e como doeu, ao (sic) ponto
de bater até tirar sua vida.
P36 – Não, isso representa que eles estavam causando muita dor naquele momento.

As respostas acima demonstram que os alunos compreenderam que o sofrimento


sofrido pela protagonista não se limitou apenas a dor física durante o linchamento, mas que as
palavras ofensivas e a discriminação sofrida pela mulher também são formas de violência e
causaram dores tão profundas quanto as que podem ser causadas por uma faca a laser. A
segunda questão trata de dois trechos do terceiro parágrafo. No primeiro item, solicitamos que
os alunos explicassem por quais motivos Maria ―baixou os olhos como que pedindo perdão‖
ao ser perguntada pelo ex-companheiro se tinha tido outros filhos. Todos os alunos
consideraram que Maria se sentiu envergonhada e por essa razão baixou os olhos. No entanto,
questionados se a protagonista teria feito algo errado para reagir assim, apenas dois alunos
consideraram que sim, mas não explicaram. Os demais afirmaram que Maria não fez nada de
errado, mas que se sentiu envergonhada devido aos julgamentos machistas da sociedade e/ou
103

pelas críticas que seu ex-companheiro poderia fazer a ela como é possível perceber nas
respostas a seguir:

P37 – Agiu assim porque tinha tido outros homens e perante a sociedade, isto é
proibido. Porém, não tinha motivo.
P22 – Porque ela sentiu vergonha. Não fez nada de errado porque ela tem o livre
arbítrio de fazer o que quiser da vida dela.
P33 – Porque havia se relacionado com outros homens e diante da sociedade isto é
errado.
P19 – Porque ela achava que seria criticada pelo ex-companheiro dela.

As respostas acima nos comprovam que os alunos percebem que vivemos em uma
sociedade que possui valores patriarcais e que ainda impõe às mulheres um modelo de
comportamento que cerceia o livre exercício de sua sexualidade. No segundo item,
questionamos por quais motivos Maria acreditava que a vida de seus filhos ―haveria de ser
diferente‖ pelo simples fato de serem homens e a maioria dos alunos julgou ser o machismo a
principal razão para essa crença, uma vez que, segundo os alunos, em uma sociedade machista
os homens são menos julgados, possuem mais oportunidades e liberdades.

P05 – Porque eles são homens e tem (sic) muito mais oportunidades.
P21 – Homens não sofrem com o machismo, não são julgados.
P02 – Eles não irão sofrer os mesmos preconceitos porque eles são homens e nossa
sociedade é machista.
P20 – Por eles serem homens e terem outros modos de trabalharem de maneiras
diferentes, que as mulheres não podem.

Nas respostas acima, percebemos que o aluno P20 acaba reproduzindo um


discurso machista de que há profissões que são próprias dos homens e que, portanto, não
poderiam ser exercidas por mulheres. Durante a socialização das respostas debatemos sobre
esse discurso e mostramos que não há profissões específicas para homens ou mulheres. Outras
razões para a vida dos filhos de Maria ser melhor também foram apontadas pelos alunos
como, por exemplo, os esforços da mãe para que eles tenham um futuro melhor.

P29 – Ela não queria que seus filhos se envolvessem com coisas erradas então ela
faria o possível para evitar isso.
P17 – Porque ela trabalhava muito pra (sic) eles estudarem e terem um futuro
melhor.

Estas respostas mostram o reconhecimento da grande responsabilidade e da


importância da figura materna para a criação dos filhos. Na terceira questão, nossa expectativa
era que os alunos percebessem a denúncia das desigualdades sociais brasileiras a partir do fato
104

de que os filhos de Maria nunca haviam experimentado melão. Alguns alunos apresentaram
um pouco de dificuldade de compreensão, mas em todas as respostas os alunos perceberam
que este fato se deve aos poucos recursos financeiros da família.

P18 – A pobreza que os filhos de Maria passa é a realidade de muitos. Eles não
comeram melão porque não tinham dinheiro.
P03 – Por serem pobres e não terem condições de comprarem frutas ou comidas de
boa qualidade.
P02 - Desigualdade social pelo fato da fruta ser tão comum, mas eles não terem
condições para experimentá-la.
P37 – É a questão da desigualdade social porque poucos tem (sic) muito e muitos
não tem (sic) nada, geralmente os negros.

Na quarta questão apresentamos as formas de violência contra a mulher


previstas na Lei nº 11.340/2006 e solicitamos que os alunos identificassem aquelas que foram
cometidas contra Maria no conto. Os alunos identificaram que Maria sofreu quatro dos cinco
tipos de violência previstas na lei como é possível perceber na resposta a seguir retirada do
portfólio do participante P21:

I – Violência física: Maria levou tapas, foi linchada e morta. Ex: ―Olha só, a negra
ainda é atrevida, disse o homem lascando um tapa no rosto da mulher.‖
II – Violência psicológica: Maria sofreu constrangimentos, foi xingada e
amedrontada pelos passageiros. Ex: ―Alguém gritou que aquela puta safada conhecia
os assaltantes. Maria assustou-se.‖
IV – Violência patrimonial: Os poucos bens de Maria foram destruídos. Ex: ― A
sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão.‖
V – Violência moral: Ela foi caluniada, chamada de puta sem nem conhecerem a
vida dela. Ex: ―Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões!‖

A participação dos alunos durante a discussão sobre esta questão foi muito boa.
Eles identificaram vários exemplos de violência na narrativa e fizeram alguns paralelos com
histórias reais, demonstrando compreensão e apropriação da temática trabalhada.
Para a culminância desta sequência básica de leitura, pedimos aos alunos que
pesquisassem, em casa, sobre a Lei Maria da Penha. Na aula do dia seguinte, após a
socialização da atividade escrita, como atividade de extrapolação, apresentamos três opções
de atividade de produção a ser realizada em grupos e apresentada para a turma
posteriormente. A primeira opção apresentada foi a produção de cartazes para serem colados
na escola, com o objetivo de alertar e esclarecer a comunidade escolar sobre o tema violência
contra a mulher. A segunda opção, a dramatização do conto e como terceira opção, o reconto
da narrativa a partir de outras perspectivas.
Nenhum aluno optou por fazer o reconto da narrativa por escrito e apenas uma
equipe fez a dramatização do conto. Porém, a equipe fez modificações no texto, inserindo
105

novos personagens e falas em defesa de Maria, mas os alunos mantiveram o desfecho igual ao
original, no qual Maria é linchada e morta. Apresentamos a seguir o trecho do conto
modificado pelos alunos.

[...] Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o


primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que
aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia
assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que
tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver
que estava de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus
acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles, teria descido também.
Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava mesmo com
os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê.
Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com
feições de menino e que relembrava vagamente o seu filho. Maria falou que estava
sozinha e que o homem sentou ao lado dela, mas não sabia que ele era assaltante,
não falava com ele há muitos anos.
A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta,
aquela negra safada estava com os ladrões! O dono da voz levantou e se encaminhou
em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conhecia
assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida,
disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Então, outra passageira pediu
calma, mas logo levou um grito do homem que mandou que ela ficasse calada. O
motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que
loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste
horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os
filhos... O trocador ligou para a polícia que já estava a caminho. O homem
perguntou: Onde aqueles vagabundos moram? Mas Maria não sabia o que dizer. A
mulher só pensava nos filhos e no medo que estava sentindo. Gritou que era
inocente. Alguém gritou: Lincha! Lincha! Lincha!... Um rapaz ficou na frente de
Maria. Ele tentou defendê-la, mas foi empurrado para longe. Uns passageiros
desceram e outros voaram em direção a Maria. Lincha! Lincha! Lincha! Maria
punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as
frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?
Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que
estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um
carinho no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam
todos armados com facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou,
quando chegou a polícia, o corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo
pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um
carinho.
Fonte: Produção dos alunos do 9° ano

De acordo com a equipe, eles acreditavam que Maria merecia a chance de tentar
se defender, mas que a morte dela no final é importante, pois deixa o leitor chocado e gera
uma reflexão sobre o que foi lido. A apresentação foi feita, posteriormente, em sala de aula
para a turma. A encenação demonstrou envolvimento e criatividade do grupo que aproveitou
as próprias cadeiras da sala de aula para construir o cenário do ônibus. Nas imagens da
encenação apresentadas a seguir, é possível ver o momento em que os dois homens estão
106

assaltando aos passageiros do ônibus e a cena final em que Maria está morta ao lado de sua
sacola.

Figura 24 - Imagens da encenação da peça Maria

Fonte: Acervo da autora

As equipes que optaram por fazer cartazes abordaram a violência contra a mulher.
A equipe I optou por mostrar a importância da educação para o combate à violência contra a
mulher e o feminicídio como é possível ver na imagem a seguir:

Figura 25 – Cartaz sobre violência contra a mulher 01

Fonte: Produção dos alunos

O trabalho da equipe II trouxe questionamentos como, por exemplo, ―Você já


parou para pensar quantas mulheres ‗caem da escada‘ todos os dias?‖ com o objetivo de
107

mostrar que, muitas vezes, as mulheres escondem a violência sofrida por medo ou por
vergonha. Além disso, o cartaz fala ainda sobre a Lei Maria da Penha e incentiva que a
comunidade denuncie esse tipo de violência ligando para o número 180.

Figura 26 – Cartaz sobre violência contra a mulher 02

Fonte: Produção dos alunos

A criatividade dos alunos nos chamou atenção neste trabalho, pois na falta de
imagens de mulheres que sofreram violência, os alunos pegaram duas imagens de mulheres e
pintaram manchas em seus olhos representando marcas de violência como é possível ver no
recorte mostrado abaixo:

Figura 27 – Recorte do cartaz sobre violência contra a mulher

Fonte: Produção dos alunos

As equipes III e IV também construíram mensagens com o objetivo de sensibilizar


a comunidade escolar sobre a importância do combate à violência contra a mulher.
108

Figura 28 – Cartazes sobre violência contra a mulher 03

Fonte: Produção dos alunos

Todos os cartazes foram expostos nos corredores da escola para que a comunidade
escolar tivesse a oportunidade de refletir sobre esse assunto que é tão importante para toda a
sociedade.

5.1.4 Quarta etapa: Círculo de leitura literária – Conto “O cego Estrelinho”

A quarta etapa de nossa intervenção teve como objetivo apresentar a metodologia


dos círculos de leitura literária aos alunos. Para isso, inicialmente, explicamos detalhadamente
o funcionamento dos círculos de leitura propostos por Cosson (2017), enfatizando que a turma
seria dividida em grupos para efetuar a leitura de contos selecionados e que deveriam fazer
registros do que foi lido de acordo com a função que cada um assumiria no grupo (conector,
questionador, iluminador, ilustrador, dicionarista, sintetizador, pesquisador, cenógrafo e
perfilador). Explicamos detalhadamente cada uma das funções utilizando como suportes
textuais slides e material impresso previamente preparados. Esclarecemos, ainda, que a
discussão do texto seria feita a partir dos registros de leitura de cada aluno.
Em seguida, realizamos em sala um círculo de leitura com o conto ―O cego
Estrelinho‖ de Mia Couto. Apresentamos o título do conto para que os alunos elaborassem
hipóteses a respeito da história e, em seguida, fizemos a leitura em voz alta do conto. Após a
leitura, desempenhamos a função de pesquisador, na qual trouxemos informações contextuais
109

do conto, informações sobre as guerras em países africanos no período antes e após os


processos de independência e como esse tema é recorrente nas literaturas desses países. Ao
desempenhar essa função, servimos de modelo aos alunos, ajudando-os a atuarem
adequadamente nos grupos durante o círculo, pois, segundo Cosson (2017) antes de começar
um círculo de leitura é essencial que o próprio professor mostre como fazer para que os
alunos sejam levados a reproduzirem a partir de seu exemplo.
Após esse momento, dividimos a turma em equipes de quatro a cinco integrantes e
entregamos as fichas de função propostas por Cosson (2017), baseando-se em Daniels (2002),
para cada aluno preencher a partir da discussão com seu grupo. Assim, cada grupo distribuiu
as funções entre seus componentes que, no geral, ficaram responsáveis por desempenhar duas
funções cada. Como os alunos estavam conhecendo tal procedimento de leitura literária,
acompanhamos de perto as discussões nos grupos, auxiliando o preenchimento das fichas de
funções e sanando dúvidas, quando necessário.
Depois das discussões nos grupos, formamos um círculo único para que os alunos
compartilhassem suas leituras. Assim, ouvimos os registros feitos de acordo com cada função
e fomentamos o debate mais aprofundado sobre os aspectos registrados nas fichas de função.
Iniciamos ouvindo os sintetizadores, alunos responsáveis por resumirem o texto, que
apresentaram as informações principais do conto. Logo após, os conectores apresentaram as
ligações que conseguiram estabelecer entre o texto e a vida. Nessa função, diferentes aspectos
foram citados pelos alunos: a existência da guerra foi comparada à violência de nossos dias
atuais; o fato do personagem principal ser cego originou o debate sobre as dificuldades e
necessidades das pessoas com deficiências; as diferentes formas de amor e também a
existência de pessoas que tendem a ver o mundo de forma positiva, enquanto outras possuem
uma visão mais negativa. Instigamos a reflexão mostrando como nesse conto a fantasia faz
uma crítica ao mundo real.
Os alunos que desempenharam as demais funções não apresentaram muitas
dificuldades. Porém, notamos também que alguns alunos se detiveram apenas em suas
funções e não procuraram expandir sua visão a respeito de outros aspectos importantes do
conto. Além disso, devido ao grau de maturidade de nossos alunos, algumas discussões não
conseguiram adentrar nas entrelinhas do texto. No entanto, vemos o empenho na atividade e a
interação durante as discussões como pontos positivos alcançados nesse primeiro círculo.
Cosson (2017), afirma que toda contribuição é bem-vinda durante os círculos de leitura, pois
não há interesse em formar especialistas, mas contribuir, entre vários outros objetivos, para
110

que os alunos aprendam a fazer uso da linguagem, adotar diferentes pontos de vistas e
entender as histórias.
Concluída a discussão, cada aluno registrou em seu portfólio suas reflexões a
respeito do conto lido. Abaixo, apresentamos alguns registros produzidos pelos alunos:

P03 – A história é um pouco triste porque o Estrelinho perde o amigo dele e a moça
perde o irmão, mas eu gostei porque fez a gente pensar como ninguém vive pra
sempre e por isso temos que aproveitar enquanto temos pessoas especiais do nosso
lado.
P21 – Minha reflexão é sobre a guerra que é igual a violência de hoje em dia. No
mundo de hoje tudo está muito violento e as vezes a gente sofre e pessoas que a
gente ama morrem por causa disso como o amigo do cego Estrelinho morreu.
P35 – O conto me fez pensar sobre como é importante a gente ajudar as pessoas que
precisam, as pessoas com necessidades especiais e como, às vezes, palavras e
pensamentos positivos podem ajudar sem a gente nem perceber.

Em seguida, fizemos coletivamente uma avaliação da atividade, na qual ouvimos


as opiniões dos alunos e discutimos sobre o que funcionou bem, as dificuldades e o que
precisava ser melhorado para os círculos de leitura literária que seriam iniciados nas aulas
posteriores.
Como o período de discussões em grupos se prolongou mais do que o previsto,
não foi possível concluir a quarta etapa nesta aula. Assim, na aula do dia seguinte, fizemos a
divisão dos grupos para escolha dos contos a serem trabalhados nos círculos de leitura
literária. Baseando-se em Cosson (2017), que afirma que o círculo de leitura literária começa
com a seleção de livros pelo professor, escolhemos três contos do livro Olhos d’água (2016)
da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo. Selecionamos os contos ―Lumbiá‖, ―Zaíta
esqueceu de guardar os brinquedos‖ e ―Olhos d‘água‖. Inicialmente, apresentamos uma
pequena síntese de cada um dos contos e pedimos que os alunos escolhessem aquele que
gostariam de ler. A partir das preferências dos alunos, os grupos de leitura foram montados.
Neste momento alguns alunos mostraram-se insatisfeitos, pois preferiam montar os grupos
por afinidade, mas uma breve conversa fez com que compreendessem o objetivo da atividade.
Com os textos em mãos, os grupos se reuniram para discutir os papeis de cada
integrante da equipe e distribuir as funções. E para finalizar, estabelecemos as datas de
apresentação das leituras de cada equipe.
Reservamos as duas aulas da semana seguinte para que os grupos discutissem as
leituras prévias e os registros feitos em casa. Estes encontros de preparação do círculo em sala
de aula foram essenciais para verificarmos se todos os alunos tinham lido seus textos,
ajudarmos a dirimir as dúvidas e auxiliarmos nos registros das leituras realizados nas fichas
111

de função, as quais, em nossa proposta, foram transcritas em cartazes para facilitar a


visualização de todos os alunos no momento da discussão com a turma.

Figura 29 - Imagem das equipes reunidas nos círculos de leitura

Fonte: Acervo da autora

5.1.5 Quinta etapa: Círculos de leitura

Ao adotar o modelo dos círculos de leitura, objetivamos proporcionar aos alunos o


máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-brasileiros selecionados. Assim,
após as discussões em grupos e feitos os registros escritos da leitura dos contos, cada grupo
apresentou o conto lido para toda a turma. Como escolhemos apenas três contos, cada um
deles foi lido por duas equipes diferentes e foram apresentados no mesmo dia, uma vez que
reservamos duas aulas semanais geminadas para as apresentações.
Antes das equipes iniciarem suas apresentações, entregamos uma cópia do conto a
ser trabalhado naquela aula, para que o restante da turma fizesse uma primeira leitura
silenciosa. A partir desta leitura, a turma passaria a conhecer o conto, até então lido apenas
por duas equipes, e poderia participar ativamente das apresentações fazendo com que
surgissem novas discussões. Ao término das apresentações, solicitamos que cada integrante
das equipes fizesse um registro do que foi discutido e também uma autoavaliação, ou seja,
registrasse como foi sua participação durante todo o percurso do círculo de leitura.
Ressaltamos que, para esta análise e discussão, utilizamos os dados coletados nas
atividades desenvolvidas, nos registros escritos nos portfólios e fichas de função, nas
observações e registros da professora/pesquisadora e nos áudios gravados durante as oficinas.
112

5.1.5.1 Primeira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Lumbiá‖

No primeiro dia de apresentações dos círculos de leitura, foi necessária uma


conversa inicial sobre a forma de organização das apresentações e discussão em grupo.
Esclarecemos que a participação da turma era muito importante e enfatizamos a necessidade
de perguntar, ouvir e argumentar com cortesia.
O primeiro conto da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo a ser trabalhado
foi ―Lumbiá‖, o qual foi lido por duas equipes compostas por seis integrantes e entre os quais
dividimos as fichas de funções propostas por Cosson (2017). As funções de conector,
questionador, iluminador e ilustrador se repetem em todos os grupos, pois, segundo Cosson
(2017), são as mais importantes, uma vez que estão relacionadas aos hábitos de leitura de um
leitor maduro. As demais funções, em relação a cada conto, foram desempenhadas por apenas
um aluno.
Solicitamos que as equipes iniciassem as apresentações com os conectores, ou
seja, com aqueles que ligam a obra ou o trecho lido com a vida, conforme Cosson (2017). A
primeira equipe levou para o círculo a notícia8 da morte de um garoto de 12 anos que foi
soterrado enquanto trabalhava em uma obra no interior do Ceará. Os alunos explicaram que
escolheram essa notícia por falar sobre trabalho infantil, pois este tema é abordado no conto,
uma vez que Lumbiá, protagonista do conto, trabalha vendendo doces e flores nas ruas.
Motivados por essa notícia, os alunos questionaram a opinião da turma a respeito do trabalho
infantil. A maioria dos alunos afirmou ser contra, pois traz danos à saúde da criança, prejudica
o rendimento escolar e, algumas vezes, leva à morte como no caso noticiado. No entanto,
alguns alunos disseram ser a favor do trabalho para adolescentes no contraturno da escola,
pois seria uma forma dos jovens receberem uma remuneração que ajudaria em suas despesas e
ainda os manteria longe dos riscos das ruas.
Para ampliar a discussão, solicitamos que o conector da segunda equipe
apresentasse seus registros. A aluna também abordou o trabalho infantil, mas apresentou uma
pesquisa feita por ela na internet a respeito das causas e consequências do trabalho infantil. A
aluna justificou sua escolha dizendo que ao ler o conto sentiu muita pena de Lumbiá e ficou
pensando por quais motivos a mãe dele o obrigava a trabalhar nas ruas e chegou à conclusão
que seria ―por necessidade‖, ou seja, a mãe não teria condições financeiras de sustentar os

8
Disponível em https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/mais-uma-vitima-do- trabalho-
infantil-menino-de-12-anos-morre-soterrado-em-obra-no-ceara-2/. Acesso em: 30 out. 2018.
113

filhos, já que a irmã de Lumbiá também vende flores nas ruas. Entre as principais causas do
trabalho infantil foram apontados, pela aluna, a pobreza, a baixa escolaridade dos pais, a
grande quantidade de filhos e a busca por mão-de-obra barata. Analisando essas causas os
alunos atribuíram a ―culpa‖ do trabalho infantil apenas aos pais, mas intervimos e
questionamos se as desigualdades marcantes de nosso país não teriam influência nessa
realidade. Alguns alunos afirmaram que sim, mas não souberam explicar.
Partindo disso, instigamos uma reflexão a respeito dos problemas sociais e das
responsabilidades da família, da sociedade e do Estado na garantia dos direitos das crianças, a
partir da leitura do artigo 227 da Constituição Federal:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão. (BRASIL, 1988)

Após a participação dos conectores, pedimos aos alunos que tinham a função de
questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles, pois, de acordo com
Cosson (2017, pág. 142), o questionador prepara perguntas, normalmente de cunho analítico,
sobre a obra para os colegas. O primeiro participante elaborou dois questionamentos. Na
primeira pergunta, o aluno questionou os motivos pelos quais a mãe de Lumbiá não o
acompanhava até a loja para ver o presépio. Diferentes motivos foram cogitados pelos alunos.
A maioria dos alunos afirmou que a mãe não teria tempo para acompanhá-lo, pois também
estaria trabalhando. Alguns alunos acreditavam que Lumbiá não teria informado a mãe de seu
desejo de entrar na hora para ver ao presépio, pois ele já era tão independente que acreditava
não precisar de sua companhia.
No entanto, muitos discentes afirmaram que ela não tinha interesse em
acompanhá-lo e não iria mesmo que o menino muito pedisse, pois, nas palavras de uma aluna,
―ela não ta (sic) nem aí para o Lumbiá porque se ela se preocupasse com o menino, não
obrigaria ele (sic) a trabalhar como um adulto, correndo riscos nas ruas‖ P(18). Muitos alunos
concordaram, demonstrando uma leitura crítica das relações familiares presentes no conto,
uma vez que Lumbiá e sua irmã são, de certa forma, negligenciados por sua mãe.
Concordamos com Silva e Rosa (2015), que afirmam que o fato do menino não conseguir
entrar na loja por estar desacompanhado ―é índice sugestivo do abandono do menino, o qual
não pode contar com a companhia da mãe nem mesmo para ter satisfeita uma de suas maiores
114

alegrias‖ (p. 230). No momento da discussão acolhemos todas as interpretações feitas pelos
alunos.
Em sua segunda pergunta, o aluno questionou se a loja estaria agindo de forma
correta ao impedir a entrada de menores desacompanhados. Todos os alunos afirmaram que
não, pois, segundo eles, isto é uma forma de discriminação. Uma aluna questionou: ―Mas será
que a loja realmente proibia a entrada de todos os ‗de menor‘ (sic) sozinhos ou só aqueles que
pareciam pobres?‖ (P32). A pergunta da aluna instigou o debate a respeito da conduta de
estabelecimentos e de seus seguranças em relação aos jovens que, de acordo com nossos
alunos, se sentem vigiados e, muitas vezes, perseguidos, por exemplo, nos shoppings.
Solicitamos que o aluno questionador da segunda equipe também apresentasse
seus questionamentos. Inicialmente, ele quis saber como eram os casais clientes de Lumbiá e
a intenção da autora ao apresentar diferentes casais. Os alunos afirmaram que os casais eram
formados por homens e mulheres, mas também havia os casais formados por semelhantes, de
acordo com as palavras da autora. Em relação à intenção, a maioria dos discentes afirmou que
a autora queria apenas mostrar que há casais héteros e homossexuais, mas um aluno afirmou
que a autora quis mostrar que os casais homossexuais têm menos liberdade em público e
destacou o trecho a seguir para justificar sua resposta: ―Havia os casais, em que a dupla era
formada por semelhantes. Homem com homem. Mulher com mulher. Esses casais não se
beijavam em público. Às vezes, faziam um carinho nas mãos do outro‖ (EVARISTO, 2016,
p.82).
Esta pergunta oportunizou um diálogo sobre a homoafetividade, o preconceito
social e a luta das pessoas homossexuais por igualdade e respeito. A maioria dos alunos se
posicionou diante de suas experiências e de outrem, relatando situações e demonstrando suas
opiniões sobre a temática.
A segunda pergunta elaborada pelo aluno foi: Por que Lumbiá gostava tanto do
menino Jesus? Quais as semelhanças entre eles? A turma se deteve mais ao conto e afirmou
que o protagonista se achava parecido com o menino Jesus, pois eram duas crianças pobres.
Um aluno chamou atenção ainda para o trecho do conto que mostra que Lumbiá gostava da
família representada no presépio, pois esta se assemelhava a sua família devido à pobreza de
todos.
De forma geral, as perguntas elaboradas pelos questionadores cumpriram o
objetivo de propor uma análise do texto aos colegas. As discussões foram proveitosas e
contribuíram para o desenvolvimento do senso crítico dos alunos.
115

A terceira função a se apresentar foram os iluminadores de passagens que são


aqueles que ―escolhem uma passagem para explicitar ao grupo, seja porque é bonita, porque é
difícil de ser entendida ou porque é essencial para a compreensão do texto‖ (COSSON, 2017,
p.143). O primeiro participante escolheu o parágrafo final do conto: ―O sinal! O carro!
Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados, massacrados, quebrados! Deus-
menino, Lumbiá morreu!‖ (EVARISTO, 2016, p.86). O aluno escolheu o desfecho do conto
porque, segundo ele, a morte do protagonista é muito marcante, principalmente, pela forma
como foi escrita. Ele disse que as frases curtas e com pontos de exclamação trazem uma forte
carga emotiva e ―parece que estamos vendo a cena da morte do Lumbiá acontecendo na nossa
frente‖ (P10). A turma concordou com o aluno e uma colega ainda acrescentou que a última
frase traz um lamento pela morte do pobre garoto.
O iluminador de passagens da segunda equipe escolheu o trecho a seguir:

E, enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os compradores, contava ora


sobre a surra que havia levado da mãe, ora sobre a mercadoria que estava ficando
encalhada (e ele precisava retornar para casa com um bom resultado de venda), ou,
ainda, sobre o dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino
maior... E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia
se descobrindo realmente triste, tão triste, profundamente magoado, atormentado em
seu peito-coração menino (EVARISTO, 2016, p.83).

De acordo com o participante, este trecho mostra o quanto a vida de pobreza e


sacrifícios de Lumbiá deixava o garoto infeliz. Além disso, segundo o aluno, mostra também
riscos que o menino sofria trabalhando nas ruas. Questionamos aos alunos se eles percebiam
alguma forma de crítica nesse trecho, mas nenhum aluno soube explicar a crítica feita pela
autora. Então, instigamos a reflexão a respeito da situação de vulnerabilidade social de
Lumbiá e como esse personagem representa um grande número de crianças e adolescentes de
nosso país, levando os alunos a perceberem o tom de denúncia presente no conto.
A última função exercida por dois alunos diferentes foi a de ilustrador, ou seja,
aquele que ―traz imagens para ilustrar o texto‖ (COSSON, 2017, p.143). O primeiro aluno
desenhou Lumbiá vendendo flores para os casais. O aluno explicou que procurou demonstrar
pela fisionomia do protagonista o quanto o garoto sentia-se triste por ter que enfrentar tantas
dificuldades.
116

Figura 30 – Ilustração do conto “Lumbiá” 01

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

A segunda ilustração mostra Lumbiá feliz fugindo com o menino Jesus em seus
braços. A aluna que produziu a ilustração explicou que sua intenção foi representar o único
momento de verdadeira felicidade do garoto no conto.

Figura 31 – Ilustração do conto “Lumbiá” 02

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

A quinta função é a de dicionarista, ou seja, é aquele que ―escolhe palavras


consideradas difíceis ou relevantes para a leitura do texto‖ (COSSON, 2017, p.143). O aluno
escolheu as palavras e procurou seus significados no dicionário e também na internet. As
palavras escolhidas foram: Lumbiá, Gunga, Erê, soslaio, Deus-menino. O aluno disse que os
nomes dos personagens despertaram sua curiosidade, mas ele só conseguiu descobrir o
significado de Gunga que pode designar um grande antílope africano de pelagem castanha ou
um berimbau. As palavras ―soslaio‖ e ―Deus-menino‖ foram facilmente explicadas e
117

contextualizadas nas passagens do texto. No entanto, o significado de Erê despertou a


curiosidade da turma, pois esta palavra de origem iorubá (yorùbá) que significa ―brincadeira,
divertimento‖ designa uma entidade da Umbanda.
O aluno explicou ainda que iorubá (yorùbá) é uma língua viva e falada em várias
regiões da Nigéria, Benin e outros países africanos. Além disso, apresentou algumas palavras
de origem iorubá como, por exemplo, axé, Iemanjá e acarajé, bem como diversas outras
palavras de origem africana que utilizamos em nosso cotidiano, tais como berimbau, samba,
farofa, cochilar e moleque.
Por falta de conhecimento sobre as religiões de origem africana, alguns alunos
expressaram comentários preconceituosos, baseados no senso comum. Diante disso, sentimos
a necessidade de falar brevemente sobre a origem da Umbanda e do Candomblé e a
intolerância existente contra seus praticantes. Concordamos com Ana Célia Silva (2005), que
em artigo sobre a desconstrução da discriminação no livro didático, afirma a necessidade de
se inserir no currículo escolar as contribuições culturais das diversas matrizes presentes na
sociedade brasileira para, assim, contribuir para a desconstrução de estereótipos e
preconceitos. Em relação às religiões afro-brasileiras a autora afirma:

A predominância de uma única matriz religiosa em educação nas escolas, ensinada


sob forma de catequese e não de apreciação histórica e cultural das diversas
religiões, tem contribuído para uma fragmentação da fé que a criança traz do seu
grupo familiar e cultural, tomando-a confusa, muitas vezes internalizando a imagem
idealizada negativa que a escola expande da sua religião de origem. [...] A imposição
de uma só matriz religiosa constitui-se em violência simbólica contra os grupos
subordinados, que não têm poder para colocar seus conteúdos e significados
culturais nos currículos de ensino de nossas escolas (SILVA, 2005, p. 29).

Um currículo escolar que não valoriza a riqueza das diferenças culturais e que
torna invisível e/ou marginaliza a diversidade religiosa contribui para a manutenção dos
preconceitos. A escola deve contribuir para a construção de uma imagem que gere uma
identificação positiva do negro e suas culturas, contribuindo assim para o processo de
reconstrução da identidade étnico/racial e para o desenvolvimento da identidade e autoestima
dos alunos negros.
O aluno que desempenhou a função de cenógrafo, responsável por descrever as
cenas principais, de acordo com Cosson (2017), escolheu duas cenas: a cena em que Lumbiá
vende rosas aos casais e a cena da morte do menino. Ao descrever como o menino fazia para
vender seus produtos, o aluno enfatizou as atitudes e técnicas desenvolvidas pelo protagonista
para convencer os clientes, entre as quais o uso do choro e de histórias tristes. Ao descrever a
118

cena da morte do protagonista, na qual o pobre garoto pula na rua para fugir do vigilante e é
atropelado por um carro, o aluno enfatizou que Lumbiá, assim como milhares de crianças,
precisava ser mais protegido, mais cuidado. Reafirmamos essa ideia mostrando à turma que o
personagem principal do conto não é apenas mais uma vítima da violência do trânsito, mas
sim, de inúmeras formas de violência como afirmam Silva e Rosa (2015, p. 230):

Antes que à violência do trânsito, sua morte deve-se à violência estrutural, social,
familiar e individual – à sociedade organizada, à desigualdade econômica e social, à
mãe, que não mais o acompanhava nas andanças pela cidade e que não pode nem
mesmo acompanhá-lo na loja, que proibia a visita ao presépio por menor
desacompanhado – cada um e todos têm parcela em sua morte.

Questionamos os alunos se haveria mais alguma cena que eles destacariam e uma
aluna afirmou que escolheria a cena em que Lumbiá passa horas do lado de fora da loja
tentando entrar para ver o menino Jesus no presépio. Segundo a aluna, esta cena mostra a
força de vontade do menino e o quanto seu desejo era grande, pois o garoto passou horas na
chuva, tremendo de frio e de febre, mas não desistiu (P22). Esta aluna não fazia parte das duas
equipes que desenvolveram o círculo de leitura sobre o conto e sua participação, assim como
a participação de outros alunos durante a discussão, demonstra que a metodologia propicia a
interação e a participação dos alunos.
O perfilador, aluno responsável por traçar um perfil das personagens, escolheu
falar sobre Lumbiá e sua mãe. Alguns alunos sugeriram acrescentar Gunga e Beba como
personagens que também representam crianças exploradas, apesar do conto não apresentar
nenhuma outra informação sobre eles, mas é possível compreender que eles vivem situações
semelhantes à de Lumbiá. A sugestão foi acatada pelo grupo, o que demonstra uma abertura
ao diálogo.
As características elencadas pelo aluno após as discussões no grupo são
apresentadas no quadro a seguir:

Quadro 2 – Perfil dos personagens do conto Lumbiá


Lumbiá Personagem que simboliza crianças que são exploradas, vítimas do
trabalho infantil. Garoto negro, pobre, esperto, mas também muito
triste. Adora olhar os presépios e, em especial, o menino Jesus.
Mãe de Mulher pobre, mãe de vários filhos. Representa as mães que não têm
Lumbiá condições de sustentar os filhos, os quais são obrigados a trabalhar.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
119

A última função desempenhada nesse círculo de leitura foi a de sintetizador que


tem como objetivo sumarizar o texto, conforme Cosson (2017). Deixamos essa função para o
final para que o aluno tivesse a oportunidade de elencar as informações essenciais do texto e
articulá-las com suas impressões pessoais. No entanto, percebemos que a síntese do aluno se
deteve na trama e nos personagens do conto, como já era de se esperar em se tratando de
leitores pouco experientes.
Ao final da apresentação dos grupos, cada integrante das duas equipes preencheu
em seu portfólio os principais pontos da discussão e fez também sua autoavaliação.
Analisando as respostas, percebemos que os alunos compreenderam as questões sociais
abordadas no conto. No geral, os alunos gostaram de participar do círculo de leitura e,
principalmente, gostaram de como o conto lido retrata a sociedade brasileira, aproximando-se
de nossa realidade. No entanto, a maioria teve muita dificuldade com o preenchimento da
ficha de função, mas afirmaram que os encontros em sala ajudaram a dirimir as dúvidas.
Para a aula do dia seguinte aos círculos de leitura, como exercício de
extrapolação, planejamos atividades que serviram de registro do que foi lido, mas também
propiciaram a ampliação dos sentidos da leitura. Apresentamos aos alunos três opções de
atividades a serem realizadas em equipes ou individualmente. A primeira opção era elaborar
uma notícia em que fosse relatada a história de Lumbiá. Duas equipes escolheram essa
atividade e produziram textos que informam as condições da morte do menino sob diferentes
perspectivas.
A primeira notícia produzida pelos alunos enfatiza a perseguição do segurança da
loja que resulta na morte de Lumbiá.

Figura 32 – Notícia produzida pela equipe 1

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada


120

A notícia produzida pela segunda equipe é mais detalhada. Apresenta mais


informações sobre o menino e os momentos que antecederam seu atropelamento.

Figura 33 – Notícia produzida pela equipe 2

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

A segunda atividade proposta foi a produção de um poema. Três equipes optaram


por produzir poemas e apresentaram resultados satisfatórios ao produzirem textos que buscam
sensibilizar os leitores sobre a história de Lumbiá e sobre a temática do trabalho infantil. Os
poemas produzidos pelas equipes serão apresentados a seguir:

POEMA I
Lumbiá

Um pequeno menino
negro e pobre
que pelas ruas vive a trabalhar
vendendo doces e flores
para a família ajudar.

Fim de ano
e o natal chega cheio de cor.
Enfeites, árvores e presentes por todo lado,
Mas Lumbiá só fica encantado
com o presépio montado.
121

A pobre família
e o bebê da manjedoura
representam Lumbiá.
Tentando se aproximar
Lumbiá é massacrado
ainda com o Deus-menino ao seu lado.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

POEMA II

Pequeno Lumbiá

Lumbiá é igual a muitos meninos


que trabalham nas ruas
para uns trocados ganhar
e com a família colaborar.

Por ser negro


sofre com as discriminações
de uma sociedade racista
que só olha para a cor da pele
e esquece os corações.

Encantado pelo presépio de natal,


Lumbiá olha o Deus-menino
que tão pobre e indefeso
representa sua imagem.

Mas sem permissão


Lumbiá foge com o Deus-menino.
Sendo pelo segurança perseguido,
o pobre vendedor é atropelado
e perde sua vida no asfalto.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
122

POEMA III

Criança não trabalha

Quem disse que criança pode trabalhar?


Criança não pode
Ter responsabilidade de gente grande
Porque ela só vai crescer
Um pouco mais adiante.

Criança tem direito de estudar,


Ter uma boa alimentação
E também um lar.

Exploração do trabalho infantil


É crime, é uma judiação
Que envergonha
Toda a nação.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

A terceira opção de atividade tratava-se da produção de um desenho ou uma


campanha de combate ao trabalho infantil. Foram produzidos dois desenhos que trazem uma
visão crítica sobre a exploração do trabalho infantil como é possível ver a seguir:

Figura 34 – Desenhos dos ilustradores do conto “Lumbiá”

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada


123

Durante a realização dessa aula, as equipes demonstraram envolvimento e afinco


na realização das atividades que apresentaram resultados muito satisfatórios e uma
compreensão aprofundada da temática trabalhada no círculo de leitura.

5.1.5.2 Segunda apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Olhos d‘água‖

No segundo dia de apresentações dos círculos de leitura, as equipes conduziram as


discussões a respeito do conto ―Olhos d‘água‖ de Conceição Evaristo. A dinâmica das
apresentações seguiu a mesma ordem daquela estabelecida no primeiro dia, iniciando-se com
a leitura silenciosa do conto pela turma. Mais uma vez as funções de conector, questionador,
iluminador e ilustrador foram desempenhadas por dois alunos, um de cada grupo, enquanto
que as demais funções foram desempenhadas por apenas um aluno.
As apresentações foram iniciadas pelos conectores. O aluno que desempenhou
esta função na primeira equipe apresentou uma pesquisa feita na internet a respeito da pobreza
no Brasil, pois o conto mostra, a partir da narração da infância da protagonista, a realidade de
dificuldades e privações de uma família brasileira. O aluno produziu um cartaz com os dados
pesquisados e com resultados de pesquisas que mostram o crescimento da pobreza e das
desigualdades em nosso país nos últimos anos. Alguns alunos demonstraram
descontentamento através de comentários semelhantes ao da aluna que afirmou: ―a pobreza no
Brasil existe há muitos séculos e nunca vai acabar porque o governo só rouba, os políticos são
todos corruptos e não estão nem aí (sic) para os pobres que só servem pra (sic) votar neles‖
(P02). Muitos alunos concordaram com o comentário da colega.
Outros aspectos foram sendo acrescidos pelos alunos na discussão como, por
exemplo, a crise econômica e o grande crescimento do número de pessoas que ficaram
desempregadas em 2018. Estas conexões feitas pelos alunos demonstram que o
desenvolvimento da estratégia de acionar seus conhecimentos prévios para melhor
compreenderem o texto que está sendo lido funciona bem no círculo. De acordo com Girotto e
Souza (2011, p. 14), ―relembrar fatos importantes de sua vida, de outros textos lidos e de
situações que ocorrem no mundo, em seu país ou sua cidade, ajuda a compreender melhor o
texto em questão‖.
O aluno responsável pela função de conector da segunda equipe escolheu falar
sobre a figura da mãe enquanto provedora da família. O aluno comparou a mãe da
protagonista, mulher dedicada e amorosa, com a personagem-título do conto Maria, lido em
uma oficina anterior. Segundo o aluno, as duas mães representam a mãe dele e todas as
124

mulheres negras que batalham muito para criarem seus filhos sozinhas. Esta fala do aluno, ao
comparar sua própria mãe com a personagem do conto, demonstra que ele se sentiu
representado pela literatura afro-brasileira. Além disso, o aluno trouxe para sala de aula uma
notícia9, na qual o candidato a vice-presidência da República, Mourão, afirma que famílias
comandadas apenas por mães ou avós ―são fábrica de elementos desajustados‖. Após a leitura
da notícia que mostra a afirmação de Mourão e as reações nas redes sociais e de outros
candidatos, o aluno pediu a opinião da turma que, no geral, discordou da fala do candidato por
diferentes razões.
Concluída a discussão direcionada pelos conectores, pedimos aos alunos que
tinham a função de questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles. O
primeiro participante elaborou apenas um questionamento: Por que a narradora não lembrava
a cor dos olhos de sua mãe e como ela se sentia por isso? Alguns alunos afirmaram que a
narradora não lembrava a cor dos olhos de sua mãe porque fazia muito tempo que ela havia
saído de casa. No entanto, a maioria dos alunos conseguiu fazer uma análise mais
aprofundada do conto e percebeu que os olhos da mãe da narradora estavam sempre cheios de
lágrimas devido à sua história de dores e sofrimentos. Em relação ao modo como a
personagem se sentia por não lembrar a cor dos olhos de sua mãe, os alunos apresentaram
diferentes pontos de vista: ―ela se sentia triste‖ (P01), ―ela ficou atormentada‖ (P18), ―ela se
sentia culpada e decepcionada com ela mesma por não lembrar‖ (P27).
Sentimos que havia mais a ser dito sobre esse olhar e a viagem da protagonista,
mas resolvemos não interferir e esperar a continuação das discussões. O aluno que
desempenhou a função de questionador da segunda equipe elaborou duas perguntas. Na
primeira, ele questionou quais eram os motivos de preocupação da mãe da protagonista. Uma
aluna afirmou: ―ela tem as mesmas preocupações que quase todas as mães negras e pobres
têm. Ela se preocupa com a falta de comida, se as filhas vão ser felizes e se a casa vai cair em
uma noite de chuva forte‖ (P20). A maioria dos alunos concordou e enfatizou a forma
carinhosa com que ela cuidava das filhas, apesar de todas as dificuldades financeiras. A partir
disso, desenvolveu-se uma discussão a respeito da importância do afeto para a criação dos
filhos e como este nem sempre está presente nas relações familiares, independente da classe
social. Aos poucos, muitos alunos se sentiram a vontade para falar de suas próprias famílias e
alguns se mostraram bastante carentes de atenção por parte dos pais.

9
https://exame.abril.com.br/brasil/mourao-diz-que-familia-sem-pai-ou-avo-e-fabrica-de-elementos-
desajustados/. Acesso em: 15 jan. 2019.
125

A segunda pergunta elaborada pelo aluno foi: por que a narradora diz que sua
história se confunde com a de sua mãe? Inicialmente, os alunos pareciam não saber o que
dizer. Alguns alunos disseram que a filha já não lembrava bem porque a mãe contava muitas
histórias e já fazia muito tempo, outros afirmaram que, na verdade, a escritora quis dizer que
as histórias dessas mulheres eram tão parecidas que acabavam se confundindo. A partir deste
aspecto do conto levantado pelos alunos, levamos a turma a refletir como a questão da
memória e da ancestralidade são características marcantes da escrita de Conceição Evaristo.
Para nossa surpresa, o aluno responsável pela função de pesquisador, ou seja,
aquele que ―busca informações contextuais que são relevantes para o texto‖ (COSSON, 2017,
p.143), pediu a palavra. Ele pediu espontaneamente para apresentar o que havia pesquisado
sobre o contexto do conto, pois achou que complementaria aquilo que estávamos falando.
Antes de descrevermos como foi a conversa no círculo, convém explicarmos a postura que
adotamos ao orientar esta função. Cosson (2017) apresenta o conceito de ―contexto‖
baseando-se em uma definição proposta na área do letramento, podendo ser, portanto,
segundo o autor, aplicado praticamente sem adaptações ao campo literário:

Dessa forma, podemos dizer que o contexto com-o-texto corresponde aos elementos
intratextuais e textuais de uma obra, como a relação entre narrador e protagonista em
um romance e as contrições dos gêneros. O contexto ao-redor-do-texto refere-se às
condições imediatas que envolvem o processamento da obra, logo às várias e
diferentes leituras do leitor enquanto indivíduo. Finalmente, o contexto além-do-
texto compreende as condições culturais e sociais de produção e recepção das obras,
incorporando a noção tradicional de contexto usada nos manuais de história da
literatura ao lado da recepção crítica das obras ao longo do tempo (COSSON, 2017,
p. 58).

Para esse círculo de leitura, orientamos o aluno a pesquisar o contexto além-do-


texto, o qual ―compreende as dimensões mais amplas da sociedade, da cultura e da história
que influenciam indiretamente o evento de letramento‖ (COSSON, 2017, p. 58). O aluno
trouxe para o debate no círculo informações sobre a escritora afro-brasileira Conceição
Evaristo e também seu poema intitulado Vozes-Mulheres (Anexo B), retirado do livro Poemas
da recordação e outros movimentos (EVARISTO, 2008), o qual foi lido e comparado ao
conto para mostrar que a escritora usa seus textos para falar da trajetória das mulheres negras
em nosso país, contando assim, uma história que também é dela.
Muitos alunos tiveram dificuldade em compreender o poema, mas, no geral,
conseguiram perceber algumas semelhanças entre o conto e o poema: a voz feminina negra, a
denúncia dos sofrimentos que ocorrem desde o período da escravidão e a valorização dos seus
antepassados ao falar da importância das mães, avós, tias. Apesar da análise não ter sido
126

aprofundada, acreditamos que essa comparação entre os textos contribuiu para uma melhor
compreensão do projeto de escrita de Conceição Evaristo e como este representa uma
coletividade que por muito tempo foi silenciada.
Dois alunos desempenharam a função de iluminador de passagens e escolheram
passagens do texto para apresentarem à turma. O primeiro trecho escolhido foi:

Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro
algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento.
As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam
debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as
línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco
ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas (EVARISTO, 2016, p.16).

A aluna compartilhou com a turma o quanto essa imagem a tocou, pois ao mesmo
tempo em que revela a imensa pobreza dessa família, que praticamente não tinha o que comer,
mostra também o imenso amor dessa mãe que brincava com as filhas para que elas
esquecessem a fome. Segundo a aluna, essa parte do texto ―é triste, mas ao mesmo tempo é
bonita‖ (P11). Os alunos concordaram e seguiram comentando sobre as formas de brincar da
mãe com as filhas. Aproveitamos o comentário da aluna para enfatizar o tom poético do texto
de Conceição Evaristo, analisando suas escolhas linguísticas e os sentidos construídos a partir
destas.
O segundo aluno responsável pela função de iluminador de passagens escolheu o
trecho final do conto:

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos
olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o
espelho para os olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de
minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente
no meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no
meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela
mesma, ou como se estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou
de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: - Mãe,
qual é a cor tão úmida de seus olhos? (EVARISTO, 2016, p.19).

Segundo o aluno, esse trecho mostra a continuidade da história dessas mulheres


negras e revela como a protagonista está passando para a sua filha tudo o que já aprendera
com sua mãe. Outras interpretações foram construídas pelos alunos. Para alguns, a
protagonista do conto continua a ter uma vida de sofrimentos e por isso seus olhos estão
repletos de lágrimas, para outros, a mãe chora, pois sabe que sua filha, sendo mulher e negra,
ainda enfrentará muitas dores e preconceitos. E um único aluno, o mesmo que desempenhara
a função de pesquisador, afirmou que esta mulher é a própria Conceição Evaristo olhando os
127

olhos de sua filha, Ainá. Diante de tais colocações, percebemos que os alunos conseguiram
adentrar no universo de significados do texto.
Após esse momento, os dois alunos responsáveis pela função de ilustrador
apresentaram seus desenhos. A primeira ilustradora representou as memórias que a
protagonista do conto tem sobre os momentos que sua mãe brincava com ela e suas irmãs.
Seu desenho mostra a mãe brincando de rainha, sendo coroada com flores pelas filhas e
também as figuras que elas imaginavam ao contemplar as nuvens no céu. Durante a
apresentação do desenho, o aluno afirmou que escolheu representar esses momentos porque
eles foram marcantes para a protagonista do conto, uma vez que eram momentos felizes ao
lado de sua mãe.

Figura 35 – Ilustração do conto “Olhos d’água” 01

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

O segundo ilustrador explicou durante a apresentação que seu desenho representa


o título do conto, mas também faz uma homenagem às mulheres negras e à força com que elas
enfrentam as dificuldades.

Figura 36 – Ilustração do conto “Olhos d’água” 02

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada


128

A aluna responsável por identificar palavras difíceis ou relevantes para o texto,


função dicionarista, escolheu três palavras: Yabás, caudalosos e Oxum. Ela procurou os
significados das palavras no dicionário, e algumas informações complementares na internet, e
confeccionou um cartaz para apresentar à turma. Mais uma vez figuraram entre as palavras
selecionadas vocábulos ligados às religiões de matrizes africanas e que eram desconhecidos
para a turma. A aluna explicou que ―yabás‖, na Umbanda, são orixás femininos, enquanto que
Oxum é orixá rainha das águas doces e também representa a deusa da beleza, orixá do amor,
da fertilidade e da maternidade. No conto, ―yabás‖ e ―Oxum‖ são usados, respectivamente,
para se referir a todas as ancestrais da protagonista e a sua mãe, marcando assim a
religiosidade tão presente nos contos de Conceição Evaristo.
Diferentemente do círculo de leitura anterior, neste encontro não houve nenhum
comentário preconceituoso em relação às religiões de matriz africanas, o que demonstra que
as discussões desenvolvidas contribuíram para alcançarmos um dos objetivos desta proposta
de intervenção: contribuir para a desconstrução de preconceitos e estereótipos ligados ao
negro e sua cultura.
A aluna que desempenhou a função de cenógrafo selecionou a cena em que a
protagonista reencontra sua mãe, após voltar para tentar descobrir a cor de seus olhos.
Durante as discussões, o grupo definiu essa cena como a mais importante do conto, pois além
de ser marcada por uma profunda emoção, o reencontro de mãe e filha proporciona
descobertas importantes para a protagonista. Ela percebe nas lágrimas dos olhos de sua mãe as
dores e sofrimentos de sua vida, mas também toda a força e sabedoria dessa mãe negra. A
partir dessa cena, foi possível dialogar com os alunos a respeito de como essa busca pela cor
dos olhos da mãe simboliza a busca pela identidade dessa mulher que, em muitos momentos,
se confunde com a própria escritora.
O quadro a seguir, apresenta os perfis das duas personagens construídos pela
aluna que desempenhou a função de perfilador:

Quadro 3 – Perfil dos personagens do conto “Olhos d’água”


Protagonista Mulher jovem e negra.
Representa as mulheres afrodescendentes.
Persistente, saiu de sua terra natal a procura de melhorias de vida.
Mãe Mulher negra, pobre, forte, trabalhadora e sofrida.
Mãe amável, carinhosa e dedicada.
129

Criou sozinha sete filhas trabalhando de lavadeira e passadeira.


Representa as mulheres afrodescendentes.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

Durante a conversa a respeito das personagens, os alunos enfatizaram que mais uma
vez o pai não é uma figura presente e chegaram à conclusão de que essa personagem também
representa milhares de mães que batalham para criarem seus filhos sozinhas. A última função
desempenhada nesse círculo de leitura foi a de sintetizador. A aluna apresentou um resumo do
texto escrito em forma de cartaz. Em seu resumo, ela destacou a grande dúvida da
personagem e como isso fez com que ela resgatasse memórias de sua infância, retornando a
casa da mãe para descobrir a cor dos olhos de sua progenitora. Porém, ela descobriu bem mais
do que a cor dos olhos. Segundo a aluna, ela descobriu a ―essência‖ de sua mãe, ou seja, de
acordo com as palavras da participante: ―ela descobriu a força de sua mãe, a força da mulher
negra que sofreu muito pra criar suas filhas e não desistiu diante das dificuldades‖ (P15). Esta
análise da aluna nos revela que a aluna refletiu sobre a leitura e está desenvolvendo sua
capacidade de posicionar-se diante do texto.
Concluídas as apresentações dos grupos, cada integrante das duas equipes
preencheu em seu portfólio os principais pontos da discussão e fez também sua autoavaliação.
A análise das respostas dos portfólios e das autoavaliações mostrou que os alunos gostaram da
temática do conto, de sua linguagem e da metodologia de leitura, pois muitos afirmaram que a
discussão em grupos favorece uma melhor compreensão do texto. Alguns revelaram
insegurança e vergonha de falarem para a turma toda, mas não houve nenhuma recusa de
participação durante as apresentações.
Para concluirmos esse círculo, realizamos na aula do dia seguinte a atividade de
extrapolação. Mais uma vez apresentamos diferentes formas de atividades para que os alunos
escolhessem aquela que gostariam de realizar, de forma individual ou em grupos. A primeira
opção apresentada foi o reconto da narrativa a partir da perspectiva de outra personagem.
Apenas uma equipe realizou esta atividade.
No texto elaborado pela equipe a narradora-personagem é a mãe que apresenta,
sob seu ponto de vista, o retorno da filha à sua casa. O texto, apesar de não possuir o mesmo
tom poético que o conto original, expressa também muita emoção. Apresentamos o texto
produzido pelos alunos a seguir:
130

Os meus olhos d‘água

Depois de tantos anos, eu a vi chegar e meu coração não acreditava no que meus
olhos estavam enxergando. Minha filha, a mais velha de minhas sete filhas estava voltando
para casa depois de tanto tempo longe. Ela partiu à procura de melhorias de vida. Inteligente,
esforçada, foi estudar, pois queria ter uma profissão digna e me ajudar. Ainda lembro de
quando ela me dizia:
- Não se preocupe, mamãe. Teremos uma vida melhor.
Quantas dificuldades nós passamos. Muitos dias, sem ter comida para cozinhar,
brinquei com ela e suas irmãs para que elas não lembrassem da fome. Mas vencemos.
Consegui criar as minhas sete meninas sozinha.
Mas será que ela estava bem? Será que estava doente? Será que me trazia más
notícias? Meu coração estremeceu. Comecei a chorar. Sorria feliz, mas não conseguia conter
as lágrimas.
Ela se aproximou e me deu um forte abraço. Naquele momento senti minha
pequena menina de novo sob minha proteção. Nossas lágrimas se misturaram num pranto de
felicidade. Ela me olhou nos olhos como que queria descobrir algo. Não entendi, mas também
não desviei o olhar. Queria dizer pra ela, sem usar uma só palavra, que eu estaria ali sempre
que ela precisasse.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

Como segunda opção de atividade, sugerimos a produção de um mural de


memórias. Para isso, os alunos deveriam resgatar em suas memórias fatos ou momentos
marcantes e que fossem ligados a mulheres importantes de suas vidas. Resgatadas as
memórias, os alunos deveriam representá-las no papel, da forma que achassem melhor, e
colariam suas produções em um mural. Esta atividade foi escolhida por um grande número de
alunos, apesar de ser uma atividade que deveria ser realizada individualmente. A maioria dos
alunos preferiu não se identificar nas produções e respeitamos essa escolha.
A maior parte das lembranças se liga a figura materna, mas em algumas
atividades percebemos a presença das avós e madrastas. Apesar da maioria das lembranças
remeterem a momentos felizes ou que merecem agradecimentos, há algumas lembranças
tristes e nostálgicas.
A imagem a seguir mostra o mural de memórias construído em sala.
131

Figura 37 – Mural de memórias

Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

A terceira atividade proposta foi a produção de um poema que trouxesse como


figura central a mulher negra, sua história de lutas e sua representatividade, como já havíamos
discutido ao longo das oficinas. Os alunos abraçaram a proposta e produziram um belo poema
que exaltam a imagem da mulher negra.

Mulher negra

Toda mulher é forte.


Já se sabe que isso é um fato.
Mas a mulher negra
parece ser ainda mais.

Se toda mulher luta contra o machismo,


luta pra mostrar que é capaz,
luta pra ter seu lugar na sociedade,
a mulher negra tem que lutar mais.

Sua pele, seus cabelos


representam uma história
de luta e resistência.

A mulher negra não pode mais ser calada,


silenciada ou apagada.
132

Ela tem voz


e grita aos quatro cantos:
Estou aqui e exijo respeito.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

5.1.5.3 Terceira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos‖.

Para o terceiro círculo de leitura com contos afro-brasileiros, selecionamos o


conto ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖, da escritora Conceição Evaristo. As
apresentações das discussões realizadas pelos grupos seguiram a mesma ordem daquela
estabelecida no primeiro dia. Distribuímos cópias do conto para a turma, a qual fez uma
leitura silenciosa antes de iniciarmos as apresentações das duas equipes compostas por seis
alunos. As funções foram distribuídas pelos participantes, sendo que as funções de conector,
questionador, iluminador e ilustrador foram desempenhadas por dois alunos, um de cada
grupo, enquanto que as demais funções foram desempenhadas por apenas um aluno.
Iniciamos as apresentações com os alunos que ficaram responsáveis por fazer a
ligação do conto com a vida, os conectores. O primeiro aluno a desempenhar essa função
trouxe a temática de crianças que são atingidas por bala perdida para ser debatida, pois a
personagem principal do conto, Zaíta, morre em meio a um tiroteio na comunidade em que
vive. Ele apresentou uma notícia10, divulgada no mês de outubro de 2018, que mostra três
casos de crianças baleadas na mesma semana no Ceará. Na notícia, são relatados três casos:
no primeiro, uma criança de 11 anos foi baleada por estar próxima a um local em que ocorreu
um tiroteio em bairro da periferia de Fortaleza; no segundo, uma criança de 4 anos foi
atingida enquanto brincava em uma praça por um homem que foi ao local matar um desafeto;
e no terceiro caso, um bebê de 2 anos e sua mãe foram atingidos após homens chegarem
atirando no pai da criança. O aluno conector apresentou os casos e pediu que os alunos
identificassem aquele que fosse mais semelhante ao conto lido e apontassem as semelhanças.
Muitos alunos quiseram participar deste momento e apontaram semelhanças entre
o conto lido e os dois primeiros casos mostrados na notícia. A partir disso, os alunos
discutiram sobre como a história reflete a realidade social brasileira, mostrando mais uma vez
uma criança em situação de vulnerabilidade social e vítima de diferentes formas de violência.

10
Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2018/10/11/criancas-sao-vitimas-de-balas-perdidas-e-
casos-de-violencia-em-tres-dias-seguidos-no-ceara.ghtml. Acesso: 10 jan. 2019.
133

Além disso, o aluno conector perguntou a opinião da turma sobre a violência tão marcante em
nossa sociedade e o que deveria ser feito para combatê-la. Todos os alunos disseram que
qualquer forma de violência é prejudicial, mas, na opinião da maioria deles, quando a
violência ocorre contra uma criança é inaceitável e revoltante. Os alunos apresentaram
diferentes medidas que devem ser tomadas para se combater a violência como, por exemplo,
mais segurança e/ou policiamento, leis mais firmes, campanhas educativas, educação e
combate às facções e ao tráfico de drogas.
Após essa conversa inicial, pedimos à aluna que desempenhou a função de
conector da segunda equipe para iniciar sua apresentação. A aluna optou por falar a respeito
da vida nas comunidades carentes do Brasil, a partir dos fatos apresentados no conto.
Inicialmente, ela perguntou a turma como é a vida nessas comunidades e a maioria dos alunos
deram respostas semelhantes a estas: ―é uma vida difícil, cheia de privações‖ (P32), ―falta
tudo‖ (P04), ―tem muita violência‖ (P06), ―é preciso trabalhar muito, mas, geralmente, se
ganha pouco‖ (P28). A partir das respostas dos colegas, a aluna mostrou como a realidade da
comunidade do conto representa a realidade da periferia do país. Aproveitamos o momento
para levar os alunos a refletirem sobre como as pessoas que vivem nessas comunidades são
historicamente desfavorecidas e enfrentam situações diversas de exclusão e violência.
Concluída a participação dos conectores, pedimos aos alunos que tinham a função
de questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles. O questionador da
primeira equipe elaborou duas perguntas. Na primeira, perguntou a opinião da turma a
respeito da justificativa dada pelo irmão de Zaíta para entrar no mundo do crime, pois o rapaz
escolheu essa vida porque não queria ser igual aos trabalhadores da comunidade que
trabalhavam muito, mas ganhavam pouco. Essa pergunta gerou um breve tumulto, pois havia
muitas opiniões diferentes. Alguns poucos alunos disseram concordar com o personagem do
conto, pois seria injusto o fato de tantas pessoas trabalharem tanto e não receberem
remunerações satisfatórias; outros afirmaram que o rapaz estava certo porque ―no Brasil,
faltam oportunidades para os mais pobres‖ P(25), enquanto que outros defenderam que
algumas pessoas das classes mais desfavorecidas roubam porque veem pessoas com bens que
elas não têm acesso e esta seria a única forma de possuir esses bens.
Entre aqueles que disseram não concordar com o rapaz, era unânime a visão de
que, na verdade, o rapaz teria escolhido o caminho do crime, pois não estava disposto a se
esforçar para ter uma vida digna. Sobre a vida do crime os alunos afirmaram que: ―não é
digna‖ (P10), ―não compensa‖ (P36), ―só traz muito sofrimento e dores‖ (P12). Além disso,
alguns alunos disseram acreditar que seria uma questão de má índole, pois o rapaz,
134

diferentemente do irmão que se esforçou para entrar no Exército, desde pequeno já se


envolvia com o crime como é possível perceber no trecho:

Desde pequeno, ele vinha acumulando experiências. Novo, criança ainda, a mãe nem
desconfiava e ele já traçava o seu caminho. Corria ágil pelos becos, colhia recados,
entregava encomendas, e displicentemente assobiava uma música infantil, som
indicativo de que os homens estavam chegando (EVARISTO, 2016, p. 74).

A discussão ultrapassou os limites do conto e alguns alunos passaram a contar


exemplos de pessoas conhecidas que superaram as condições socioeconômicas desfavoráveis
através dos estudos e dos trabalhos. Enfatizamos que esses bons exemplos devem ser seguidos
e servem para nos mostrar que é possível.
A segunda pergunta elaborada pelo aluno foi: Será que Zaíta poderia ter tido um
destino diferente? A maioria dos alunos afirmou que a vida da menina poderia ser diferente
como podemos perceber nas falas transcritas a seguir:

P23 – Sim, ela poderia ter estudado bastante pra entrar numa faculdade e conseguir
um bom emprego para ajudar a família dela.
P35 – Acho que ela ia crescer na favela e virar uma mulher trabalhadora como a mãe
dela, casar e ter filhos.
P12 – Ela podia também crescer e engravidar cedo, ter filhos e continuar a vida
como muita gente por aí.

Percebemos por essas respostas que a turma imagina diferentes destinos para a
personagem. Em alguns, sua vida seria semelhante à de sua mãe, já em outros, ela buscaria
melhorias de vida através dos estudos. No entanto, nos chamou atenção durante a discussão o
fato de poucos alunos acreditarem que ela seria capaz de avançar nos estudos e construir um
futuro diferente. Questionados em relação a essa visão, os alunos alegaram que é difícil
prosseguir nos estudos porque, muitas vezes, os jovens pobres precisam começar a trabalhar
cedo para ajudar as famílias ou ainda, que faltam incentivos e oportunidades de acesso a
cursos. Uma aluna explicou: ―às vezes, o jovem até tem vontade de estudar, mas é difícil
continuar quando não se tem dinheiro pra passagem ou pra comprar material de estudo‖
(P20).
O aluno questionador da segunda equipe elaborou duas perguntas que se
complementam: Por que Benícia (mãe) estava sempre tão irritada? Como esse comportamento
da mãe marca seu relacionamento com as filhas? Em relação à primeira pergunta, os alunos
identificaram diferentes motivos:

P03 – a mãe ficava com raiva por causa do cansaço do trabalho.


135

P08 – acho que a mãe se estressava porque tinha muito trabalho, mas ganhava muito
pouco.
P22 – a mãe se irritava porque as crianças faziam muita bagunça e não ajudavam em
casa.
P28 – acho que a mãe era revoltada com a vida de pobreza e miséria que eles
levavam, apesar de trabalharem tanto.
P33 – ela também devia estar com raiva porque seu filho se meteu no crime e ela
não podia fazer nada para ajudar. Era mais uma preocupação pra (sic) cabeça dela.

Essas respostas revelam que os alunos perceberam que o conto traz a realidade
que muitas mulheres enfrentam, trabalhando arduamente para conseguir criar seus filhos e
enfrentando as precariedades da vida nos bairros mais pobres. Para Silva e Rosa (2015, p.
227):

Aos trinta e quatro anos, e a mãe de quatro filhos que variam da infância à idade
adulta, a mãe de Zaíta vive cansada, faminta, contudo, necessita trabalhar, pois ―se
parasse, a fome viria mais rápida e mais voraz ainda‖ (EVARISTO, 1991, p.40).
Irrita-se com as travessuras das gêmeas Zaíta e Naíta, uma impaciência que tem sua
origem última na frustração ante a luta inglória pela sobrevivência, e ante o medo
acerca do destino que caberá a si e a sua prole, já que vive em comunidade violenta,
e sabe que um dos filhos estava envolvido em atividades ilícitas.

Ao analisar como essa irritação interfere no relacionamento de Benícia com as


filhas, a maioria dos alunos considerou que a mulher parecia ser distante das filhas e as
meninas estavam sempre com medo das broncas dela. Segundo Silva e Rosa (2015, p. 230),
―a necessidade da mãe de trabalhar fora e o desgaste causado pelo trabalho e a fome acaba por
distanciar a mãe das filhas‖. Além disso, os alunos passaram a comparar Benícia com a mãe
do conto ―Olhos d‘água‖, pois apesar de todas as dificuldades, esta era carinhosa e brincava
com as filhas, enquanto que aquela se irritava e quebrava todos os brinquedos das crianças.
Mais uma vez o debate trouxe à tona a temática das relações familiares e como estas
interferem no desenvolvimento das crianças.
A terceira função a se apresentada foi o iluminador de passagem. Esta função foi
desempenhada por dois alunos, os quais deveriam escolher passagens do texto para
apresentarem à turma. O primeiro trecho escolhido foi o que narra o momento em que Zaíta é
atingida enquanto andava em meio a um tiroteio.

Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Uma


criança, antes de fechar violentamente a janela, fez um sinal para que ela entrasse
rápido em um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença da
menina, imitou o gesto feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela
procurava, entretanto, somente a sua figurinha-flor... Em meio ao tiroteio a menina
ia. Balas, balas e balas desabrochavam como flores malditas, ervas daninhas
suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da menina. Daí a um minuto,
136

tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos.
Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão (EVARISTO, 2016, p.76).

O aluno disse ter escolhido esse trecho porque ao mesmo tempo em que mostra os
perigos que a menina estava exposta ao andar pelas ruas e como os moradores se sentiam
assustados, é possível ver a solidariedade através do gesto do menino que pede que Zaíta se
proteja. Além disso, o aluno enfatizou também a linguagem poética da escritora que narra um
momento tenso e perigoso com palavras ―bonitas‖, de acordo com o aluno, ao comparar as
balas às ervas daninhas que tiram a vida da menina. Uma aluna destacou ainda sobre esse
trecho a forma como a escritora mostra que os homens armados se isentam de suas
responsabilidades e somem (silenciosos, cegos e mudos), fingindo que não viram as pessoas
que foram atingidas. A partir desse comentário, refletimos sobre as responsabilidades dos
agentes de segurança e do Estado frente a casos semelhantes ao que está sendo mostrado no
conto.
A aluna que desempenhou a função de iluminador de passagens da segunda
equipe escolheu o trecho a seguir:

Benícia, ao dar por falta das meninas, interrompeu os pensamentos. Não ouvia as
vozes das duas havia algum tempo. Deviam estar metidas em alguma arte. Sentiu
certo temor. Veio andando aflita da cozinha e tropeçou nos brinquedos
esparramados pelo chão. A preocupação anterior se transformou em raiva. Que
merda! Todos os dias tinha que falar a mesma coisa! Onde as duas haviam se
metido? Por que tinham deixado tudo espalhado? Apanhou a boneca negra, a mais
bonitinha, a que só faltava um braço, e arrancou o outro, depois a cabeça e as pernas.
Em poucos minutos, a boneca estava destruída; cabelos arrancados e olhos vazados.
A outra menina, Naíta, que estava no barraco ao lado, escutando os berros da mãe,
voltou aflita. Foi recebida com tapas e safanões. Saiu chorando para procurar Zaíta
(EVARISTO, 2016, p.75).

Ao justificar a escolha, a aluna explicou que esse trecho revela diferentes nuances
sobre a vida dessas três mulheres, mãe e filhas. Para ela, por conta dos afazeres diários,
Benícia demora a sentir a falta das meninas, mas a mulher fica temerosa ao perceber a
ausência devido aos inúmeros perigos que o lugar onde moram oferece. No entanto, para a
aluna, o fato de a mãe destruir os poucos brinquedos das filhas por estar com raiva mostra que
as crianças são vítimas de violências até mesmo dentro de casa. Para alguns alunos, o fato da
bonequinha ser destruída pela mãe mostra que essas meninas não têm direito a ter infância.
Nesse sentido, uma aluna afirmou: ―Pra mim, como a mãe não podia descontar sua raiva toda
nas meninas, ela destruía seus brinquedos, mas isso é muito ruim porque toda criança precisa
brincar e ela (a mãe) está tirando esse direito delas‖ (P32).
137

Baseando-se nesses comentários, buscamos refletir com os alunos como a


violência estrutural pode acabar resultando em ambientes familiares conflituosos. Nesse
sentido, Silva e Rosa (2015, p. 231) afirmam:

Zaíta e sua família são, pois, vítimas de violência estrutural que, como no caso de
Lumbiá, acaba resultando em ambiente familiar adverso, favorável ao cultivo de
formas de violência física (agressões, gritos, palmadas, atos cometidos pela mãe,
extenuada e irritada pela fadiga e pobreza), psicológica (insulto, isolamento,
rechaço, ameaças, omissão de carinho e supervisão) e até econômica, já que a mãe,
quando estressada, destruía os parcos bens com que a menina contava – a boneca de
um braço só, e outros brinquedos que deixava espalhados pela casa.

Aproveitamos que os alunos já estavam falando sobre as personagens e pedimos


que o aluno responsável pela função de perfilador apresentasse o perfil das personagens. As
características elencadas pelos alunos são apresentadas no quadro a seguir:

Quadro 4 – Perfil dos personagens do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”


Benícia Mulher de trinta e quatro anos, mãe de quatro filhos. Cria os filhos
sem a ajuda dos pais.
Mãe sofrida, dura, ríspida e estressada.
Preocupada com os filhos e também com a família (ajuda a irmã).
Trabalha muito, mas ganha pouco.
Zaíta Tem uma irmã gêmea (Naíta).
Menina atenciosa, fala baixo e lento.
Mora em uma comunidade da periferia.
Tinha nos modos um pouco de doçura, de mistérios e de sofrimento.
Apaixonada por uma figurinha que retratava uma garotinha
carregando uma braçada de flores.
Tem medo da mãe.
Vítima da violência do bairro pobre.
Naíta Irmã gêmea de Zaíta.
Igualzinha a Zaíta, mas fala alto e rápido.
Mora em uma comunidade da periferia.
Quer muito a figurinha da irmã e pega sem pedir.
Primeiro filho Filho mais velho de Benício, meio-irmão de Zaíta e Naíta.
Rapaz responsável e trabalhador que quer seguir carreira no
Exército.
Segundo filho Segundo filho de Benícia, meio-irmão de Zaíta e Naíta.
Ganancioso, bandido, líder de um dos grupos armados da favela.
Desde criança já era ―aviãozinho‖ do tráfico. Quer ficar rico sem ter
que trabalhar muito.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
138

O aluno explicou que algumas características são citadas no texto, mas que a
maioria delas foi construída pelas impressões do grupo durante a leitura e discussões sobre o
conto. Além disso, o aluno explicou que os filhos homens não são nomeados no conto, pois
eles são tratados apenas como ―o primeiro ou o segundo irmão de Zaíta‖ ou ―o segundo
filho‖. Inicialmente, a equipe não tinha dado importância para o fato dos homens do conto não
serem nomeados, mas instigamos a reflexão e durante as discussões o grupo chegou à
conclusão de que isso ocorre porque a escritora quis dar ênfase à história das três mulheres:
Benícia, Zaíta e Naíta.
Levando em consideração que já estávamos conversando sobre os nomes dos
personagens, pedimos à aluna que desempenhou a função de dicionarista para apresentar as
palavras que havia escolhido. Ela explicou que assim como toda a turma, também ficou
curiosa sobre o significado dos nomes das personagens, mas achou somente o significado do
nome Benícia, o qual remeteria a ―bondade‖. Esse significado do nome estabelece uma
relação adequada com as características da personagem que, apesar de perder a paciência
facilmente com as filhas, é uma boa mulher, que trabalha muito para criar os filhos e ainda
ajuda nas despesas da irmã. A aluna destacou ainda as palavras construídas a partir do recurso
da hifenização, a saber: ―figurinha-flor‖, ―menina-flor‖. Ambas se referem no conto à
figurinha preferida de Zaíta e, provavelmente, fazem referência à menina.
Um aluno da turma perguntou o significado da palavra ―jaziam‖ na frase: ―Cinco
ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão‖ (EVARISTO, 2016, p. 76). A aluna
dicionarista explicou com suas palavras que significava que essas pessoas estavam mortas. No
entanto, para sanar a dúvida, fornecemos dicionários para que os alunos pudessem pesquisar o
significado e assim compartilhar com a turma. Esse momento foi oportuno para enfatizarmos
a importância do manuseio de dicionários e da busca do significado de palavras importantes
para a compreensão de um texto.
Após esse momento, o aluno responsável pela função de cenógrafo fez a descrição
de duas cenas que considerou as principais: a cena em que Zaíta sai à procura de sua figurinha
e deixa os brinquedos espalhados no chão, o que gera um ataque de raiva na mãe, e a cena
final em que Naíta encontra a irmã morta no meio da rua. O aluno afirmou ter escolhido essas
duas cenas porque nelas podemos perceber a inocência das crianças frente a tudo que as
rodeia. Segundo o aluno, na primeira cena o amor infantil por seu brinquedo é mais forte do
que o medo que Zaíta sente da mãe e por isso, ela sai e deixa os brinquedos espalhados,
mesmo sabendo que seria castigada pela mãe. No entanto, ―ela não vai apanhar da mãe porque
sua vida foi interrompida muito cedo‖ (P37). Além disso, o aluno interpretou como inocência
139

infantil a frase dita por Naíta ao avistar sua irmã caída, a frase final do conto: ―E, assim que se
aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, o espanto e o medo: - Zaíta, você
esqueceu de guardar os brinquedos‖ (EVARISTO, 2016, p.76). Para o aluno cenógrafo, a
cena era forte demais para a criança que inocentemente não sabia o que dizer naquele
momento e falou aquilo que diria se tivesse encontrado a irmã com vida.
Os alunos concordaram com a leitura do colega, mas alguns citaram outras
interpretações para o final do conto como, por exemplo, o fato de que os brinquedos
espalhados não seriam mais recolhidos pela menina. Outros momentos do conto foram
considerados também como cenas principais por alguns alunos como, por exemplo, a cena da
noite em que Zaíta percebe que a mãe está aflita, pois seu segundo filho estaria cometendo
crimes e também a cena em que Benícia volta do supermercado com as compras e o conto traz
uma reflexão a respeito das dificuldades financeiras da classe trabalhadora. Essas diferentes
opiniões foram compartilhadas, mantendo o respeito à opinião do outro.
Após esse momento, pedimos aos dois alunos que desempenharam a função de
ilustradores para apresentarem suas ilustrações. O primeiro desenhou Zaíta com sua figurinha
preferida, pois, segundo o aluno, essa figurinha significava muito para a menina. Além disso,
o desaparecimento da figurinha é o que desencadeia a saída desesperada da garotinha que fica
exposta a violência local.

Figura 38 – Ilustração do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” 01

Fonte: Produção dos alunos

A aluna que desempenhou a função de ilustrador da segunda equipe desenhou a


família do conto. De acordo com a aluna, ela escolheu desenhar a mãe e seus quatro filhos
porque eles representam a realidade de inúmeras famílias brasileiras.
140

Figura 39 – Ilustração do conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” 02

Fonte: Produção dos alunos

Finalizamos as apresentações desse terceiro círculo de leitura com a função de


sintetizador. A aluna responsável fez o resumo do texto e enfatizou como a história mostra a
luta das mães brasileiras pobres para criarem seus filhos em meio a tantas situações de
violência e exclusões.
Para concluirmos o terceiro dia de apresentações dos círculos de leitura, pedimos
que os integrantes das equipes registrassem os pontos principais da discussão em seu portfólio
e fizessem sua autoavaliação. A análise das respostas mostrou que os alunos compreenderam
a denúncia do conto sobre as condições de vida dos moradores das periferias brasileiras, bem
como sobre as inúmeras vulnerabilidades a que as crianças estão expostas nesse ambiente. A
maioria dos alunos gostou do texto, mas muitos reclamaram devido ao final trágico. Em
relação à autoavaliação, os alunos demonstraram estarem satisfeitos com a metodologia, mas
alguns tiveram dificuldades com o preenchimento da ficha de função.
No dia seguinte, realizamos a atividade de extrapolação e, assim como nas demais
oficinas, sugerimos diferentes atividades para que os alunos escolhessem aquela que
gostariam de realizar. Como primeira opção de atividade, sugerimos a produção de uma
paródia ou de um rap com as temáticas do conto (desigualdades sociais, violência,
vulnerabilidade social, crianças vítimas de violências). Apenas uma equipe realizou esta
atividade que gerou muitas discussões e dúvidas entre os membros da equipe, pois havia
discordâncias em relação a música a ser parodiada e os aspectos do conto a serem abordados.
Depois de algumas tentativas, os alunos entraram em um consenso e decidiram falar da
questão da violência a partir da figura dos dois irmãos de Zaíta, sem se referir a protagonista
do conto.
141

Os alunos fizeram uma paródia da música ―50 reais‖ da cantora Naiara Azevedo
que trata de uma situação de infidelidade conjugal. Na versão dos alunos, o filho mais velho
de Benícia encontra o irmão mais novo cometendo crimes e mostra sua indignação diante da
situação. De forma bem humorada, a paródia faz uma crítica ao mundo do crime.

PARÓDIA

Vá trabalhar, rapaz.

Bonito!
Que bonito hein!
Que cena mais triste
Será que o rapazinho se acha o chefe daqui?

Bandido!
―Cê‖ tá de brincadeira
Então você acha que o crime é vida maneira.

Não faça isso meu irmão


Nossa mãe não quer te ver na prisão
Você vai arrumar uma confusão
E piorar nossa situação.

E não precisa mentir


Todo mundo sabe o que você faz aqui
Que decepção
Ver meu irmão se tornar um ladrão.

Não sei se chamo a polícia ou bato em você


Se continuar nessa vida pode até morrer
Entenda que pra juntar a grana que está atrás
Vá trabalhar, rapaz.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
142

Sugerimos como segunda opção de atividade a produção de um acróstico com


palavras que se ligassem ao conto e sua temática. As produções, feitas em grupos,
demonstram muita criatividade como é possível verificar a seguir:

ACRÓSTICO I

Zigue-zague fazem as balas e


Atingem a pequena menina
Indefesa.
Tomba mais uma vida.
Aumenta a dor de uma mãe já tão sofrida.

ACRÓSTICO II

Vivenciamos todos os dias a violência.


Imóveis e aterrorizados, ficamos diante do crescimento do
Ódio. Este sentimento ruim,
Leviano e traiçoeiro não pode vencer o amor.
Educação, respeito eoportunidades
Não podem deixar de ser oferecidos aos
Cidadãos.
Idosos, crianças, mulheres, homens
Almejam apenas viverem em paz.

ACRÓSTICO III

Zela por sua figurinha preferida mesmo sem ter


Álbum para colocar.
Inesperadamente, a figurinha sumiu.
Triste e confusa, a menina saiu a procurar. Porém, não voltou.
Atingida por uma bala perdida foi.

ACRÓSTICO IV
143

Pessoas vivem em situações difíceis.


Olham para o lado e tudo falta.
Barracos são suas moradias. Viadutos e
Ruas também.
Esperam por uma ajuda que não vem.
Zomba de suas carências o governo.
Abandonados estão os pobres.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada

Assim concluímos nossas oficinas de leitura literária e nos encaminhamos para a


última oficina, na qual fizemos a avaliação da proposta de intervenção.

5.1.6 Sexta etapa: Avaliação

O último encontro de nossa proposta de intervenção foi planejado para que,


individual e coletivamente, os alunos tivessem oportunidade de avaliar as práticas de leitura
literária desenvolvidas com os contos africanos e afro-brasileiros. Para isso, inicialmente,
aplicamos um questionário final para verificar os resultados obtidos com os alunos ao término
das atividades e compará-los com os dados obtidos no questionário inicial. Após a realização
do questionário, realizamos uma roda de conversa em que ouvimos a opinião dos alunos sobre
as oficinas de leitura realizadas ao longo da proposta. Por fim, encerramos nossa proposta de
intervenção com uma pequena confraternização e entrega de uma lembrança simbólica para
os alunos.
Os alunos já haviam respondido o questionário final, mas propomos uma roda de
conversa sobre as oficinas de leitura do texto literário realizadas. Iniciamos agradecendo a
participação de todos e demonstrando o quanto os momentos vivenciados durante as oficinas
tinham sido importantes para nosso crescimento enquanto professora/pesquisadora.
Pedimos que os alunos falassem livremente sobre as ações de letramento
realizadas e, principalmente, sobre as metodologias utilizadas. Os comentários demonstraram
que os alunos gostaram de ler os textos literários apresentados e, principalmente, perceberam
que a leitura literária pode ser uma fonte de descobertas. Entre os depoimentos dos alunos,
destacamos:
144

P07 – As atividades foram muito interessantes porque os textos traziam assuntos da


nossa realidade e nos botavam para pensar. E também sempre tinha uma atividade
diferenciada pra gente escolher e produzir.
P15 – Alguns textos eram bem tristes, os protagonistas morriam, mas sempre tinha
algo legal para aprender e as atividades eram muito legais.
P21 – Eu gostei muito porque as aulas foram diferentes. Eu gostei mais das
sequências porque a professora tem uma forma diferente de apresentar, trazia vídeo,
imagens e fazia a discussão acontecer, sempre mostrava alguma coisa que a gente
não tinha parado pra pensar.
P25 – Eu gostei dos textos, principalmente, os afro-brasileiros porque a Conceição
Evaristo usava palavras bonitas que mexiam com minha emoção. Parecia até que eu
estava vendo a cena. E depois, quando a gente ia discutir, sempre tinha fatos da
nossa realidade cruel que eram denunciados por ela.
P31 – As sequências básicas foram muito interessantes, mas prefiro os círculos de
leitura porque, apesar de ser mais demorado e difícil no começo, foi bom trabalhar
em grupo e discutir as opiniões. Mas, às vezes, dava muita vergonha de falar.

As avaliações dos alunos mostram que acertamos ao usar duas metodologias


diferentes, sequência básica e círculo de leitura, pois diversificou a abordagem do texto
literário e permitiu engajamento e participação dos alunos. Além disso, os alunos gostaram
das atividades, pois estas utilizaram diferentes linguagens, exploraram a criatividade e a
ludicidade, fugindo ao padrão das fichas de leitura que os alunos já estão tão habituados a
responderem. Um aspecto destacado pelos alunos foi a interação proporcionada pelas
atividades, não só a interação com o texto, mas também a interação com o outro. Diante disso,
percebemos que o trabalho com o texto literário pode assumir um lugar significativo na
formação e na vida dos alunos, desde que ultrapasse a leitura obrigatória e provoque o
interesse dos mesmos através de práticas de leitura literária que incentivem a interação e
proporcionem o desenvolvimento de outras práticas sociais, promovendo mudanças em suas
formas de ver o mundo e a eles mesmos.
Encerramos nossa proposta de intervenção com uma pequena confraternização em
que proporcionamos um lanche e a entrega de uma lembrancinha para a turma, simbolizando
nossa gratidão pela cooperação e participação de cada um dos alunos em nossas práticas de
leitura literária.

5.2 ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS

Inicialmente analisamos o questionário inicial intitulado Perfil do leitor que


propiciou a construção de um diagnóstico prévio dos hábitos de leitura dos participantes da
pesquisa, de seus conhecimentos sobre o texto literário afro-brasileiro e africano e de suas
visões a respeito da África, dos africanos e de seus descendentes.
145

Em seguida, apresentamos os dados demonstrados no questionário final que teve


como objetivo avaliar as contribuições da proposta de intervenção aplicada para a
aprendizagem dos alunos.

5.2.1 Questionário inicial – Perfil do leitor

No primeiro encontro da intervenção, aplicamos o questionário inicial intitulado


Perfil do leitor (Apêndice A). O instrumento conta com questões abertas e fechadas. Em
alguns casos, os participantes precisavam explicar sua escolha e havia ainda questões
objetivas em que os participantes podiam marcar mais de uma opção e/ou colocar uma
resposta diferente daquelas que tinham sido dadas como opção, preenchendo o campo
―outros”.
A aplicação do questionário foi realizada após a apresentação dos objetivos da
pesquisa. Explicamos a função do questionário, a importância de responderem as perguntas
com seriedade, pois suas respostas iriam servir de base para uma pesquisa, e estipulamos o
período de vinte minutos para preenchimento do instrumental. No total, o questionário inicial
foi respondido por trinta e seis alunos da turma, pois um aluno faltou à aula neste dia.
As questões iniciais versam sobre a prática de leitura dos alunos. Na questão 1 –
―Você gosta de ler?‖, os alunos deveriam marcar Sim ou Não e justificar suas respostas. O
resultado apresentado foi o seguinte:

Gráfico 1 – Gosto pela leitura


25 22
20
14
15
10
5
0
SIM NÃO

Fonte: Elaborado pela autora

Entre os 36 participantes da pesquisa, vinte e dois, o que corresponde a 61,1% dos


participantes, afirmaram gostar de ler, enquanto que quatorze alunos, ou seja, 38,8%,
percentual bastante elevado, disseram não gostar de ler. Entre as justificativas para não
gostarem de ler, os participantes alegaram não ter desenvolvido o hábito da leitura, que não
146

têm paciência, alguns dizem que não gostam de textos longos e a maioria afirma ser uma
atividade chata. A partir das respostas ao questionário, compreendemos que grande parte dos
alunos entende a leitura apenas sob a ótica da leitura de livros ou de ―grandes‖ textos,
problemática bastante evidente no ambiente escolar.
Entre os participantes que afirmaram gostar de ler, alguns usaram como
justificativa a metáfora da leitura como viagem e/ou justificaram a importância da leitura para
aquisição de conhecimentos como podemos ver nas respostas retiradas dos questionários dos
alunos a seguir:

P15 – porque descobrimos coisas novas e viajamos sem sair do lugar.


P14 – porque um livro ele é como uma porta que quando você abre, você consegue
conhecer e viver outro mundo, outras experiências, aventuras, enfim, no livro você
pode ser o que você quiser.
P27 – quando a história é legal eu acabo entrando na história e isso é legal.

Muitos alunos disseram que a leitura é uma boa atividade quando não se tem outra
atividade para fazer, o que revela que a leitura não é uma atividade regular em seu cotidiano,
assim como não é uma das suas primeiras opções para ocupar o tempo livre. Fato confirmado
também nas respostas da pergunta seguinte, na qual questionamos com que frequência eles
costumam ler e a minoria disse que lê sempre, apenas dois alunos (5,5%). Vinte e cinco
participantes (69,5%) disseram ler às vezes e nove participantes (25%) afirmaram ler quase
nunca.
Ao perguntar sobre os motivos pelos quais os alunos leem, o resultado obtido foi
o seguinte:

Gráfico 2 – Motivações para leitura


25
21
20

15

10 8 7
5

0
Prazer Obrigação Outros

Fonte: Elaborado pela autora

A maioria, 21 participantes, afirmou ler por prazer, enquanto que sete afirmaram
ler por obrigação. Entre os que marcaram a opção Outros, no total de sete participantes,
147

quatro afirmaram que leem por necessidade e os demais disseram que leem a Bíblia. Todos os
alunos que leem por prazer disseram gostar de ler na primeira questão.
A pergunta seguinte permitia que os sujeitos da pesquisa marcassem mais de uma
opção. O resultado apresentado foi o seguinte:

Gráfico 3 – Local onde costumam ler


30 27
25 20
20
15
10
5 3
0
ESCOLA CASA OUTROS

Fonte: Elaborado pela autora

Os números mostram que os participantes da pesquisa leem mais em casa (54%),


mas também leem bastante na escola (40%) e apenas 6% dos participantes afirmaram ler na
igreja. Estes números comprovam que a escola oportuniza ao aluno o aprendizado da leitura
que o acompanha dentro e fora da escola. No entanto, analisando os dados da pergunta
seguinte, percebe-se que a leitura feita na escola se restringe, em grande parte, a sala de aula,
uma vez que trinta e três participantes (91,6%) disseram não visitar a biblioteca da escola.
Em relação aos temas que os alunos mais apreciam em suas leituras, foi possível
construir o gráfico a seguir:

Gráfico 4 – Temas de leituras

Outros 6
Preconceito 14
Educação 10
Namoro 19
Esporte 18
Racismo 10
Religião 11
Drogas 6
Bullying 10
Família 18
Violência 12
Amor 24
0 5 10 15 20 25 30

Fonte: Elaborado pela autora


148

O tema ―amor‖ destacou-se como o preferido pelos sujeitos da pesquisa,


seguido de namoro, esporte e família. Temas como ―racismo‖ e ―violência‖ não figuraram
entre os preferidos da turma, mas são temas de destaque em nossa intervenção, uma vez que
os contos africanos e afro-brasileiros denunciam o racismo e a violência contra a população
negra.
A partir da sétima pergunta o questionário tratava da leitura do texto literário. A
questão 7 refere-se aos gêneros da esfera literária que os alunos já leram. Eles podiam marcar
mais de uma opção e os resultados foram os seguintes:

Gráfico 5 – Gêneros da esfera literária que os alunos já leram

Outro 5
Cordel 19
Fábula 25
Peça teatral 3
Crônica 16
Novela 3
Conto 28
Poema 25
Romance 19
0 5 10 15 20 25 30

Fonte: Elaborado pela autora

Da lista de oito gêneros citados, os alunos mostraram conhecer todos, sendo o


mais conhecido o gênero conto, citado por 25 participantes, seguido dos gêneros poema e
fábula, citados por 19 participantes cada. Esses dados mostram que os alunos já possuem
familiaridade com o gênero conto, escolhido para o desenvolvimento da presente pesquisa.
Além disso, esse resultado revela que os alunos conhecem e já leram gêneros variados, mas é
preciso questionar como essa leitura está sendo mediada na escola.
As perguntas 8 e 9 objetivavam saber se os alunos conheciam as literaturas
africanas e afro-brasileira.
149

Gráfico 6 – Alunos que conhecem a literatura africana e afro-brasileira

25
20
20 18
14 15
15 Sim

10 Não
4 Já ouvi falar
5
1
0
Afro-brasileira Africana

Fonte: Elaborado pela autora

Comparando as respostas das duas questões mostradas no gráfico acima, é


possível perceber que os alunos tiveram pouco contato com a literatura africana, uma vez que
vinte participantes (55,5%) disseram não conhecer a literatura africana, enquanto que quinze
alunos (41,6%) afirmaram já ter ouvido falar e apenas um afirmou conhecer. Em relação à
literatura afro-brasileira, a situação é um pouco diferente, uma vez que o número de
participantes que conhece essa literatura ou já ouviram falar é um pouco maior. Somados os
números, temos um percentual de 61,1% dos alunos que afirmam já ter algum contato com a
literatura afro-brasileira. No entanto, o número de participantes que afirmam não conhecê-la,
quatorze participantes, também é bastante elevado, pois é relativo a 38,9% da turma.
Este resultado nos mostra que não há um trabalho efetivo com literatura africana e
afro-brasileira na escola. Além disso, confirma a ideia, apresentada desde o início deste
trabalho, de que a Lei 10.639/03, que institui o ensino da História e Cultura Africana e Afro-
brasileira na educação básica do país, ainda não está sendo, de fato, implementada na escola
em que desenvolvemos a pesquisa, assim como na maioria das escolas brasileiras.
A questão – ―Você já leu textos de autores negros?‖, trouxe o resultado a seguir:

Gráfico 7 – Leitura de textos produzidos por autores negros

25 21
20
15 10
10 5
5
0
Sim Não Não lembro dos
autores que leio

Fonte: Elaborado pela autora


150

A maior parte dos participantes, 58,3%, não se lembra dos autores das obras que
leem, cinco participantes disseram nunca ter lido autores negros e apenas dez participantes
(27,7%) afirmaram ter lido obras de autores negros. Este resultado mostra a necessidade de
levarmos obras de autores negros para o contexto escolar, sobretudo, os textos comprometidos
em problematizar a situação do povo negro na sociedade.
Na questão seguinte, perguntamos se os alunos já haviam lido histórias com
personagens negros. A maioria, vinte e quatro participantes (66,6%), afirmou já ter lido textos
que apresentavam personagens negros. Apenas dois participantes afirmaram não ter lido
textos com personagens negros, enquanto que dez participantes (27,7%) disseram não
lembrar. Levando-se em consideração que os alunos já teriam lido obras com personagens
negros, a pergunta seguinte questionava a percepção dos alunos em relação à moradia e à
classe social desses personagens nos textos lidos. O resultado é apresentado a seguir:

Gráfico 8 – Percepção sobre personagens negras na literatura (moradia)

6,10% 6,10%

Centro da cidade
Periferia
36,70%
Moradores de rua

51% Outro

Fonte: Elaborado pela autora

A figura acima mostra que a maioria dos participantes percebe as personagens


negras como moradoras da periferia, seguido por 36,7% dos participantes que as percebem
como moradores de rua. Apenas 6,1% dos participantes consideram que as personagens
negras vivem no centro da cidade, mesmo percentual daqueles que marcaram o item ―outro‖.
No item seguinte da questão (12b), os alunos revelaram sua percepção em relação
à classe social das personagens negras como mostra o gráfico a seguir:
151

Gráfico 9 – Percepção sobre personagens negras na literatura (classe social)

0
12%

30%
Classe alta

Classe média

Pobres

Mendigos, moradores
de rua
58%

Fonte: Elaborado pela autora

No gráfico acima, percebe-se que os números não foram discrepantes com


aqueles apresentados no item anterior, uma vez que a maioria dos participantes afirmou que as
personagens negras são pobres, 30% dos participantes afirmaram que esses personagens são
mendigos ou moradores de rua, enquanto que 12% afirmaram que são de classe média.
Nenhum participante afirmou que as personagens negras pertencem à classe alta. Podemos
assim inferir que os textos literários lidos pelos alunos apresentam uma imagem negativa e
reducionista do negro implantada pela sociedade e fomentada pela literatura canônica, uma
vez que, segundo Duarte (2013), o negro ocupa um lugar menor na literatura canônica
brasileira.
A visão dos alunos acerca dessas personagens é importante para esta pesquisa,
uma vez que comprova a necessidade de se realizar na escola um trabalho sistematizado com
a literatura que aborda a temática do negro sem preconceitos e estereótipos e, principalmente,
que dê voz aos negros para demonstrar aos alunos uma nova perspectiva sobre o negro e sua
cultura.
A segunda parte do questionário inicial era composta por duas questões abertas
que tinham como objetivo identificar a visão inicial dos alunos em relação à África. A
primeira pergunta era: ―Quais são as primeiras coisas que você lembra quando ouve falar na
África?”. Elencamos as principais respostas no gráfico a seguir:
152

Gráfico 10 – Primeiras coisas que os alunos pensam sobre África

Negros
1 2
4
Fome
3 19
4 Animais

Pobreza
4
Pessoas sofrendo

Várias culturas
9
Copa da África do Sul
15 Danças

Madagascar
7
Safari

10 Conflitos
12
Paisagens maravilhosas

Fonte: Elaborado pela autora

A maior parte dos participantes, dezenove, afirmaram que pessoas negras são a
primeira imagem que lembram ao pensar na África. Em segundo lugar, os participantes
citaram a ―fome‖ e em terceiro, ―animais‖. Um número considerável de participantes citou
―pobreza‖ e sete disseram lembrar ―pessoas sofrendo‖, o que nos permite inferir que seja
pelos mesmos motivos já citados anteriormente por outros participantes como a fome e a
pobreza. Outros aspectos como a ―Copa da África do Sul‖, a existência de ―paisagens
maravilhosas‖, as ―danças‖ e a presença de ―várias culturas‖ foram citados por um número
menor de alunos.
Estes dados revelam que a visão dos alunos a respeito do continente africano está
repleta de estereótipos historicamente veiculados pela mídia, e até mesmo pelos livros
didáticos, e que já foram cristalizados no imaginário popular. A imagem da África como um
lugar homogêneo, com uma cultura exótica, mas que impera a fome e a miséria. Esta
representação contribui para que os povos africanos e seus descendentes no Brasil sejam
vistos de forma inferiorizada e preconceituosa.
Na questão seguinte, perguntamos se há relações entre Brasil e África e, em caso
afirmativo, pedimos que os alunos citassem as relações que identificavam. Todos os
participantes afirmaram haver relações entre o Brasil e o continente africano, mas dois não
153

souberam citar nenhuma relação. Dez participantes afirmaram que a principal relação é a
nossa descendência, pois somos descendentes de africanos. A cultura, as danças e a comida
também foram citadas como relações entre Brasil e África. Apresentamos alguns comentários
dos alunos a seguir:

P37 – Na nossa cultura, na forma de agir, na nossa descendência, na nossa culinária.


A África tem uma forte relação com o Brasil.
P12 – Sim, por exemplo na Bahia eles usam muitas culturas como danças e comidas
e também instrumentos musicais e a descendência de africanos.
P25 – Sim, além de ambos terem sido colonizados por Portugal, tem relação também
nas danças, culturas e comidas, que por sinal são maravilhosas.

Os comentários acima, apesar de apresentarem alguns equívocos, demonstram


que os participantes reconhecem a influência da cultura africana em nosso cotidiano. No
entanto, alguns participantes fizeram colocações condizentes com a visão reducionista,
simplificada e, muitas vezes, equivocada com que se convencionou a tratar a África e o povo
negro em nossa sociedade:

P01- Quando trouxeram os africanos para o Brasil para serem escravos.


P35- Entre os negros porque no Brasil e na África os negros são pobres.
P18- O Brasil é misto porque tem pessoas negras, brancas e amarelas e na África só
tem negros.

As respostas dos participantes confirmam a necessidade de que a escola


desenvolva práticas pedagógicas que suscitem reflexões histórico-sociais sobre a história da
África e dos africanos no Brasil, analisando a trajetória de exclusão dos negros, para que se
leve à reflexão crítica a respeito da atual situação de desigualdade em que se encontram. Para
Amâncio (2008), a literatura é uma importante ferramenta pedagógica para o
desenvolvimento de novas abordagens no estudo da história dos negros africanos e dos negros
afro-brasileiros.

Um dos roteiros que se pode percorrer na relação entre o Brasil e o Continente


Africano tem sido o dos diálogos literários, paralelamente às interações históricas,
culturais e socioeconômicas. Com o advento da Lei 10.639/03, esse roteiro sai da
condição de possibilidade para tornar-se uma obrigatoriedade (AMÂNCIO, 2008,
p.47).

Embasando-se na lei em questão e acreditando que é papel da escola valorizar


a diversidade étnico-racial, desenvolvemos essa proposta de intervenção, na qual
oportunizamos aos sujeitos-leitores em formação possibilidades de discussões em torno do
154

universo africano e afro-brasileiro a partir da leitura de contos africanos de língua portuguesa


e afro-brasileiros.

5.2.2 Questionário de avaliação final

Ao final de todas as práticas de leitura literária aplicamos o questionário final que


buscou verificar as contribuições da proposta de intervenção para a aprendizagem dos alunos,
para a formação de leitores críticos e para a modificação das visões preconceituosas
apresentadas pelos alunos no questionário inicial a respeito da África, dos africanos e seus
descendentes. Tínhamos também o intuito de analisar a possibilidade de mudanças de
paradigmas dos alunos a respeito das relações étnico-raciais e de gênero.
O questionário contou com sete questões e foi respondido por trinta e sete alunos,
o número total de matriculados na turma. No entanto, não analisamos as respostas do aluno
que faltou a primeira oficina e, consequentemente, não respondeu ao questionário inicial, pois
é nossa intenção confrontar os dados obtidos nos dois momentos. Dessa forma, nosso corpus é
composto por trinta e seis questionários respondidos pelos alunos.
Explicamos aos alunos a função desse instrumental e estipulamos o período de
vinte minutos para seu preenchimento. As questões iniciais versam sobre a participação dos
alunos no projeto. A primeira pergunta, ―Você considera que participar das oficinas de leitura
foi uma experiência proveitosa?‖, tinha como opção de resposta três alternativas: sim, não,
não sei. Todos os participantes responderam sim, demonstrando que os alunos consideraram
as oficinas uma experiência relevante.
Ao perguntar: ―Como você avalia sua participação no projeto?‖, o resultado
obtido foi o seguinte:

Gráfico 11 – Avaliação da participação nas oficinas


30 26
25
20
15
10 8

5 2
0
0
Ótima Boa Regular Ruim

Fonte: Elaborado pela autora


155

De acordo com o quantitativo acima é possível concluir que praticamente a turma


toda se envolveu com as práticas de leitura. A maioria, vinte e seis participantes, afirmou ter
tido uma boa participação, enquanto que oito afirmaram que a participação foi ótima. Apenas
dois alunos consideraram sua participação regular e ninguém considerou ter tido uma
participação ruim. Estes dados nos mostram que as metodologias utilizadas favoreceram a
participação e o envolvimento da turma.
A terceira questão trouxe o seguinte questionamento: ―Você gostou de ler os
contos africanos e afro-brasileiros? Justifique‖. Os trinta e seis participantes responderam que
sim. Vejamos as transcrições de algumas justificativas apresentadas pelos alunos.
Mantivemos a escrita fidedigna dos textos, inclusive com desvios gramaticais. Vamos aos
exemplos:

P01 – Porque a gente pode aprender e conhecer mais sobre essas pessoas tão incrivel
que são os africanos e os afro-brasileiros.
P03 – Sim, porque deu pra ver um pouco da realidade de hoje.
P10 – Sim porque serviu pra nós vermos como está o preconceito e o racismo. E
serviu para conhecermos mais sobre as culturas africanas.
P15 – Sim, era triste mas sempre tinha algo legal para aprender e as atividades era
muito interessante.
P16 – Eu acho que foi uma forma de conhecer mais sobre a cultura afro-brasileira e
tirar várias dúvidas. Também falar sobre racismo
P20 – Sim, porque eu nunca tinha lido esse tipo de conto e é sempre bom novidades.
P29 – Sim, porque aprendi sobre as culturas, jeitos, as personalidades e também
discutimos como o racismo e o machismo não é uma coisa boa.
P34 – Sim, foi bom conhecer contos diferentes, uma literatura que realmente faz
você pensar como está o mundo atual ou dispertar em você um ponto de vista e uma
crítica.
P35- Sim, porque abordavam temas que, muitas vezes, passavam dispercebidos pela
sociedade como o racismo, a violência contra a mulher e outros.

As justificativas transcritas acima demonstram que as práticas de leitura literária


foram prazerosas para os alunos e proporcionaram aprendizagens significativas em relação às
literaturas e culturas africanas e afro-brasileiras, as quais, muitas vezes, são negligenciadas
pela escola. Alguns alunos confirmam o que já havíamos constatado no questionário inicial,
que a maior parte da turma não conhecia textos oriundos dessas literaturas. Uma justificativa
muito interessante é a do participante 34 que revela que as práticas de leitura apresentaram
uma literatura que o aluno não conhecia, bem como desenvolveram sua capacidade de refletir
sobre o texto lido. Além disso, é possível perceber que os alunos gostaram das literaturas
africanas e afro-brasileira por oportunizarem a discussão sobre questões socioculturais da
realidade de nosso país.
156

É possível perceber em algumas justificativas uma visão mais positiva sobre os


africanos e afro-brasileiros como, por exemplo, a afirmação da participante 01: ―Porque a
gente pode aprender e conhecer mais sobre essas pessoas tão incrivel que são os africanos e os
afro-brasileiros‖. Além disso, muitos alunos citaram a discussão sobre preconceito, racismo,
machismo e violência contra a mulher, o que sinaliza que as discussões de questões étnico-
raciais e de gênero foram marcantes para esses estudantes.
Em relação aos temas abordados nos contos que mais despertaram o interesse dos
alunos, foi possível construir o gráfico a seguir:

Gráfico 12 – Interesse sobre os assuntos abordados


35 33

30 29

25
21 20
20 17 16
15 12
10 7
5

0
Violência Família Moradia Violência Amor Machismo Racismo Preconceito
contra a urbana
mulher

Fonte: Elaborado pela autora

O tema ―racismo‖ foi apontado pela maioria dos alunos como aquele que mais
despertou interesse, seguido dos temas ―violência contra a mulher‖, ―machismo‖ e
―preconceito‖. Este resultado demonstra uma mudança de percepção dos estudantes em
relação a essas temáticas, uma vez que no questionário inicial temas como ―racismo‖ e
―violência‖ não figuraram entre os preferidos da turma. Além disso, esses dados comprovam
que o trabalho de leitura com o texto literário africano e afro-brasileiro contribui para a
discussão e amadurecimento das questões pertinentes às relações étnico-raciais e de gênero,
confirmando assim, nossas hipóteses iniciais.
A questão 5 - ―Você acha que a partir das experiências com as leituras dos contos
africanos e afro-brasileiros você se tornou uma pessoa mais crítica, atenta para questões
sociais e de sua própria personalidade e identidade?‖, era composta por alternativas SIM,
157

NÃO, UM POUCO e ainda um espaço para o aluno justificar sua resposta. Vejamos o
resultado quantitativo das respostas:

Gráfico 13 – Contribuições da proposta para a visão crítica dos alunos


30 27
25

20

15
9
10

5
0
0
SIM NÃO UM POUCO

Fonte: Elaborado pela autora

Conforme o gráfico acima, todos os alunos consideram que as práticas de leitura


colaboraram para sua criticidade de alguma forma. Vejamos as transcrições de algumas
justificativas apresentadas pelos alunos:

P03 – Porque paramos pra pensar como está a realidade de hoje e percebi que muitas
coisas são assim há muito tempo, são questões históricas e que tem consequências
até hoje como o racismo contra os negros que é inaceitável.
P17 – Acho que agora estou mais atento a realidade que vivo e a forma como eu
trato as pessoas. Todos somos iguais e temos direitos e deveres.
P19 – Como mulher vi que as pessoas podem ser violentas e cruéis comigo, mas que
tenho que lutar, não posso aceitar o machismo e também não posso ser machista
com as outras mulheres.
P25 - Acho que fiquei um pouco mais crítico porque a gente viu que tem muitas
desigualdades aqui no Brasil e que nós, cidadãos, precisamos cobrar dos
governantes que façam sua parte, mas também temos que fazer a nossa.
P28 – Fiquei um pouco mais crítica em relação a brincadeiras que não são
brincadeiras, são formas de racismo.

As justificativas dos alunos mostram que o trabalho desenvolvido com o texto


literário colaborou para a formação de cidadãos mais críticos à medida que promoveu a
reflexão sobre as formas que conduzem às desigualdades em nossa sociedade e como isso
afeta os direitos e deveres de todos, como é possível perceber no texto do participante 25:
―Acho que fiquei um pouco mais crítico porque a gente viu que tem muitas desigualdades
aqui no Brasil e que nós, cidadãos, precisamos cobrar dos governantes que façam sua parte,
mas também temos que fazer a nossa‖.
158

Além disso, percebemos, pelas respostas dos alunos, que as discussões acerca das
relações raciais e de gênero contribuíram para que os alunos percebessem e refletissem sobre
fatos e cenas de discriminação que ocorrem em nosso cotidiano e que, muitas vezes, passam
despercebidas. Provavelmente, a participante 28 se refere a formas de discriminação que
ocorrem na própria escola ao afirmar: ―Fiquei um pouco mais crítica em relação a
brincadeiras que não são brincadeiras, são formas de racismo‖. Trazer a discussão do racismo
e das mais diferentes formas de discriminação para o âmbito escolar é uma forma de
desmascarar os diferentes preconceitos que fazem parte da rotina de uma escola e da
sociedade como um todo.
Na questão seguinte, perguntamos aos alunos o que eles aprenderam com a leitura
dos contos africanos e afro-brasileiros. Apesar de serem bem sucintas, as respostas
evidenciam contribuições significativas como podemos verificar nas transcrições a seguir:

P01 – Aprendi muitas coisas, pois pude ver outras histórias, muitas pessoas que
passam por dificuldades, sofrem preconceito, e pude ver que a gente não passa nem
pela metade do que eles passa.
P11 – Aprendi um novo ponto de vista sobre a realidade dos dias de hoje e percebi
que nós que somos afrodescendentes ou negros enfrentamos muitos preconceitos,
mas não podemos desistir.
P13 – Aprendi sobre a religião, seus costumes e hábitos. Sobre como a realidade das
pessoas afro-brasileiras é difícil.
P17 – Aprendi a não ser racista ou machista.
P20 – Aprendi a valorizar mais os africanos e afro-brasileiros, embora não seja o
tipo de texto que mais gosto eu achei interessante os contos deles.
P24 – Muitas coisas eu aprendi tipo a saber mais sobre o racismo, sobre a violência,
as leis que falam da violência contra a mulher entre muitos outros.
P27 – Que não é como todos pensam, depois de conhecer a real história dos
africanos e dos negros você entende melhor e percebe as injustiças.
P29 – Que não se pode em hipótese nenhuma praticar o racismo.
P34 – Aprendi sobre o machismo, o preconceito racial e sobre a violência contra a
mulher.
P37 – Passei a prestar mais atenção na forma como a sociedade trata as pessoas mais
pobres, as mulheres e os deficientes.

Constatamos a partir dessas respostas que os alunos estão em pleno processo de


mudança de paradigmas a partir das reflexões e discussões feitas sobre os problemas sociais e
as diferentes proporções que estes atingem os diversos grupos de nossa sociedade. Os alunos
iniciaram um processo de conscientização e leitura crítica diante do que discutimos sobre
respeito às diferenças e sobre racismo, como podemos verificar nas respostas dos
participantes 34 e 37, respectivamente: ―Aprendi sobre o machismo, o preconceito racial e
sobre a violência contra a mulher‖ (P34); ―Passei a prestar mais atenção na forma como a
sociedade trata as pessoas mais pobres, as mulheres e os deficientes‖ (P37).
159

Além disso, é notório o discurso de valorização dos africanos e afro-brasileiros.


No entanto, percebemos que os alunos, apesar da maioria ser negros ou pardos, continuam a
se referir aos negros e afrodescendentes com certo distanciamento, utilizando termos como:
eles, deles, as pessoas afro-brasileiras e assim por diante. Apenas um participante, nesta
questão, se referiu aos negros sem distanciamento: ―Aprendi um novo ponto de vista sobre a
realidade dos dias de hoje e percebi que nós que somos afrodescendentes ou negros
enfrentamos muitos preconceitos, mas não podemos desistir‖. Esta resposta demonstra uma
autoafirmação da identidade negra por parte deste aluno.
A última questão, ―Sua visão sobre a África e os africanos foi modificada a partir
da leitura dos contos africanos?‖, era composta pelas alternativas SIM e NÃO e ainda um
espaço para o aluno justificar sua resposta. O resultado é apresentado a seguir:

Gráfico 14 – Mudanças na percepção sobre África


35
30
30
25
20
15
10
6
5
0
SIM NÃO

Fonte: Elaborado pela autora

A maioria, trinta participantes (83,3%), afirmou que sua visão sobre a África e os
africanos foi modificada a partir da leitura dos contos africanos, enquanto que seis
participantes (16,7%) afirmaram que não houve mudanças em sua forma de ver o continente e
seus habitantes. Entre esses seis alunos, três afirmaram que já possuíam a mesma visão da
África antes das práticas de leitura e por isso disseram não ter percebido nenhuma mudança,
já os demais não apresentaram justificativa.
A maior parte dos que perceberam mudanças em sua forma de enxergar a África,
citaram mudanças na visão pejorativa e repleta de estereótipos que haviam apresentado no
início dessa pesquisa.
160

P10 – Agora sei que nem todos os africanos são negros, mas tem uma realidade bem
parecida com a nossa.
P13 – Porque eu conheci um pouco mais de sua história, um pouco de seus gostos e
costumes.
P15 – Porque agora eu sei que a África não é só crianças passando fome, um povo
escravo e um continente pobre.
P18 – Eu pensava que a África só tinha florestas e animais.
P20 – A África é um continente com diferentes culturas, religiões e dialetos e
valoriza muito nos contos suas questões sociais foi isso que adquiri sobre meu modo
de ver a África.
P37- Deixei de lembrar da África apenas como um continente pobre, com pessoas
escravizadas e agora sei que é um lugar lindo e cheio de cultura.

A análise das respostas mostra que a maioria dos alunos deixou de pensar na
África como um lugar caracterizado apenas pela fome, miséria e sofrimento e passou a
perceber e valorizar a riqueza de sua diversidade. Portanto, o trabalho desenvolvido com o
texto literário africano e afro-brasileiro atuou na reconstrução do imaginário desses alunos,
modificando estereótipos socialmente construídos e ajudando na formação identitária desses
jovens leitores em formação.
161

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura literária possui um papel essencial no processo de ensino e,


consequentemente, na formação do leitor. Partindo disso, procuramos elaborar uma proposta
interventiva de leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros com vistas a
desenvolver o letramento literário de alunos de uma turma de nono ano do ensino
fundamental e assim, contribuir para a formação de leitores críticos. Propomos o ensino das
literaturas africanas e afro-brasileira associado às questões étnico-raciais e de gênero, pois a
observação da realidade escolar por parte da professora/pesquisadora mostrou que o ambiente
escolar é marcado por exclusões étnicas, racismo e pela dificuldade em se conviver
respeitosamente com a diversidade.
Além disso, percebemos que passados quinze anos da aprovação da Lei nº
10.639/03, o trabalho com as literaturas africanas de língua portuguesa e afro-brasileira é
muito restrito ou, muitas vezes, inexistente em sala de aula. Temas relacionados à história e à
cultura dos afro-brasileiros e africanos ficam, muitas vezes, aquém das salas de aula por
diferentes razões e assim, em um espaço caracterizado pela diversidade, prevalece um
discurso homogeneizado.
Ao propor o ensino de literatura associado às questões étnico-raciais, tínhamos
consciência de que este não seria um caminho fácil, mas vencemos. Foi necessário abrir
espaços tanto para a educação literária, uma vez que a disciplina de literatura não faz parte da
grade curricular da rede municipal em que trabalhamos, quanto para a temática do negro,
muitas vezes silenciada na escola. No entanto, percebemos que os textos também abriam
espaço para trabalhar questões de gênero, principalmente, em relação à violência contra a
mulher em nossa sociedade, e aceitamos o desafio.
Assim, realizamos nove oficinas em que foram trabalhados quatro contos de
países africanos de língua portuguesa e quatro contos afro-brasileiros, de acordo com as
metodologias da sequência básica do letramento literário e do círculo de leitura propostos por
Cosson (2016; 2017). Durante as oficinas, os alunos tiveram a oportunidade de refletir sobre
sua própria história e condição sociocultural por meio das atividades de leitura do texto
literário, da participação ativa nas discussões, bem como nas atividades de produção escrita e
desenhos.
Acreditamos que os contos das literaturas africanas e afro-brasileira trabalhados
em ações de letramento literário colaboraram para a construção de uma nova consciência dos
alunos quanto ao ensino de literatura, às temáticas étnico-raciais e de gênero e,
162

principalmente, em relação a si mesmos. A apreciação da literatura africana de língua


portuguesa permitiu que os alunos refletissem sobre questões sociais e raciais que envolvem
não só a África, mas que também estão arraigadas na sociedade brasileira. Por sua vez, a
leitura da literatura afro-brasileira favoreceu a discussão a respeito dos problemas sociais em
torno do afro-brasileiro e os diálogos sobre as mais várias situações vividas na nossa
sociedade, do sentimento de exclusão ao sentimento de pertencimento.
Os dados apresentados no questionário aplicado após o término das oficinas
demonstraram que os alunos puderam rever alguns de seus posicionamentos acerca do outro,
da realidade social em que vivemos e das temáticas trabalhadas como, por exemplo,
discriminação racial, preconceito e violência contra a mulher. Além disso, nossos alunos se
sentiram representados, de alguma forma, nos textos que leram e isso favoreceu para que eles
atribuíssem sentido às leituras realizadas.
Estamos cientes de que há muito a ser feito para que a Lei nº 10.639/03 seja
implementada de forma integral nas escolas, mas acreditamos que o trabalho com as
literaturas africanas e afro-brasileira favorece a realização de práticas pedagógicas que
consolidem o estudo da História e Cultura Afro-brasileira e Africana no âmbito escolar. É
importante ressaltarmos que nossa proposta de intervenção não efetivou de fato a Lei nº
10.639/03 na escola em que foi desenvolvida, mas foi lançada uma semente e, de nossa parte,
nos comprometemos a multiplicar essas e outras ações nas demais turmas em que
trabalhamos.
Entendemos que as discussões e ações desenvolvidas em nossa pesquisa são
apenas um pequeno passo diante do muito que ainda falta para se desenvolver uma educação
que promova o respeito frente à diversidade, capaz de minimizar os problemas étnico-raciais e
de gênero. Em contrapartida, a experiência desta pesquisa nos permite dizer que, ao criarmos
estratégias para desenvolver o letramento literário de nossos alunos a partir de propostas de
leitura com contos africanos e afro-brasileiros, contribuímos, de forma eficaz, para a formação
de leitores multiplicadores mais críticos e conscientes diante da realidade em que estão
inseridos.
Esperamos que nossa pesquisa seja um ponto de partida para novos diálogos e que
outros professores possam fazer uso desta proposta e possam também ampliá-la, levando em
consideração a realidade e as necessidades de cada escola. Assim, novas ações e reflexões
serão geradas, contribuindo para a inserção das literaturas africanas e afro-brasileira no espaço
escolar e, principalmente, contribuindo para a formação de alunos leitores.
163

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167

APÊNDICES
168

APÊNDICE A – Questionário inicial – perfil do leitor

Idade _____ Sexo ( ) Feminino ( )Masculino


1-Você gosta de ler? ( )Sim ( )Não

2-Com que frequência costuma ler? Marque um x na opção


a. ( ) Sempre
b. ( )Às vezes
c. ( )Quase nunca
d. ( )Nunca

3-Por que motivos você lê?


a. ( )Por prazer.
b. ( )Por obrigação (na escola).
c. ( )Outros:_________________________________________________

4-Onde você costuma ler?


OBS: Você pode marcar mais de uma opção.
a. ( )Escola
b. ( )Casa
c. ( )Outros: ____________________________________

5- Você visita a biblioteca da escola? ( )Sim ( )Não

6-Quais os gêneros da esfera literária você já leu?


( ) Romance ( ) Novela ( ) Fábula
() Poema ( ) Crônica ( ) Cordel
() Conto ( ) Peça teatral ( ) Outro ________

7-Nas suas leituras, quais os temas que você mais gosta?(Pode marcar mais de uma opção)
( )amor ( )bullying ( )racismo ( )educação
( )violência ( )drogas ( )esporte ( )preconceito
( )família ( )religião ( )namoro ( )_____________
169

8-Você conhece a literatura Afro-brasileira?( )Sim ( )Não ( )Já ouvi falar

9-Você conhece a literatura Africana?( )Sim ( )Não ( )Já ouvi falar

10-Você já leu textos de autores negros?


() Sim ( ) Não ( ) Não lembro dos autores das obras que leio.

11- Você já leu histórias com personagens negros?


( ) Sim ( ) Não ( ) Não lembro

12- Baseando-se nos textos literários que você já leu, como você percebe os personagens
negros nas histórias?

a)Moradia
( )Centro da cidade ( )Periferia ( )Moradores de rua
( )Outro___________

b)Classe social
( )Classe alta ( )Classe média
( )Pobres ( )Mendigos, moradores de rua
170

APÊNDICE B – Questionário final

ALUNO________________________________________________________ Nº___

Avaliação

1-Você considera que participar das oficinas foi uma experiência proveitosa?
( )Sim ( )Não ( )Não sei
Justifique
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

2- Como você avalia sua participação no projeto?


( ) Ruim ( ) Regular ( ) Boa ( ) Ótima

3- Você gostou de ler os contos africanos e afro-brasileiros? Justifique


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

4-Quais assuntos abordados pelos contos despertaram em você mais interesse?


( )Violência contra a mulher ( ) Amor
( )Família ( ) Machismo
( ) Moradia ( ) Racismo
( ) Violência urbana ( )Preconceito
( ) Outro(s): ___________________________________________________________

5-Você acha que a partir das experiências com as leituras dos contos africanos e afro-
brasileiros você se tornou uma pessoa mais crítica, atenta para questões sociais e de sua
própria personalidade e identidade?
( ) Sim ( ) Não ( ) Um pouco
Justifique
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
171

6- O que você aprendeu com a leitura dos contos africanos e afro-brasileiros?


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________

7- Sua visão sobre a África e os africanos foi modificada a partir da leitura dos contos
africanos?
( ) Sim ( ) Não
Justifique___________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
172

APÊNDICE C – Manual didático

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS

LITERATURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL:


UMA PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO

RAQUEL DE SOUZA SILVA

FORTALEZA - CEARÁ
2019
173

CONVITE

Prezado(a) colega professor(a),

Este caderno apresenta um conjunto de ações que tem o objetivo de desenvolver o


letramento literário de jovens da educação básica a partir de propostas de leitura com contos
africanos e afro-brasileiros. Estas ações foram realizadas no projeto de intervenção
desenvolvido no âmbito do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS – e aplicado
em uma escola pública municipal de Fortaleza-CE, em uma turma de 9º ano do ensino
fundamental. Ele é fruto de uma pesquisa realizada com a orientação da Profa. Dra.
Jaquelânia Aristides Pereira, da Universidade Estadual do Ceará.
Este material didático apresenta dez oficinas de leitura literária que
desenvolvemos em nossa proposta, de acordo com as metodologias sugeridas por Rildo
Cosson para o desenvolvimento do letramento literário, e que podem ser adequadas ao nível
de aprendizagem de sua turma. Esperamos que as atividades aqui apresentadas possam
auxiliar em sua prática pedagógica, favorecendo o trabalho com o texto literário em sala de
aula e contribuindo para a formação de leitores mais críticos.

Abraços,
Raquel de Souza
174

INTRODUÇÃO

Enquanto educadores, uma de nossas principais dúvidas é o que fazer para


desenvolver a leitura de nossos alunos. Frequentemente, dados de pesquisas e resultados de
avaliações externas nos mostram que o Brasil sempre aparece numa colocação
comprometedora ao avaliar o desempenho dos alunos no quesito leitura. Diante deste quadro
alarmante, surgem questionamentos: Como fazer com que os alunos criem o hábito da leitura?
Como torná-los leitores efetivos e críticos? Inúmeros estudos e pesquisas têm sido
desenvolvidos para buscar alternativas que tragam resultados positivos e uma dessas
alternativas é o desenvolvimento do letramento literário.
O letramento literário pode ser concebido como uma das práticas sociais da leitura
e da escrita. De acordo com Souza e Cosson (2011), o letramento literário vai além do
desenvolvimento da habilidade de ler textos literários, proporcionando um modo privilegiado
de inserção dos alunos no mundo da escrita por conduzir ao domínio da palavra a partir dela
mesma. Sobre a importância do letramento literário para o indivíduo, Cosson (2016, p.17)
afirma que:

A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por
nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É
mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim
sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser
outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do
espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos.

Nessa perspectiva, o texto literário não é um pretexto para se estudar literatura,


mas o meio pelo qual são desenvolvidas práticas de leitura que favoreçam a humanização dos
alunos, sua compreensão do mundo e sua capacidade de crítica, de reflexão e de respeito a si
próprio e ao outro. Com base nisso, nossa proposta aqui é desenvolver o letramento literário
de alunos da educação básica através de propostas de leitura com contos africanos e afro-
brasileiros com vistas à formação de leitores críticos.
A proposta foi desenvolver atividades que motivassem a leitura literária, a
oralidade e a reflexão a partir dos contos lidos, dando aos alunos a oportunidade de serem
ouvidos, levando-os à reflexão sobre aspectos socioculturais e históricos, bem como sobre
suas ações diante de situações cotidianas. Para que isso fosse possível, escolhemos trabalhar
com contos da literatura africana de língua portuguesa e da literatura afro-brasileira por serem
175

textos que mostram essas culturas de forma positiva, livre de estereótipos negativos criados ao
longo do tempo sobre as pessoas negras. Além disso, são textos que favorecem o
desenvolvimento de um trabalho voltado para a valorização e para o respeito das diferenças
étnico-raciais e de gênero.
Elaboramos, então, dez oficinas que foram desenvolvidas em uma turma de nono
ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública municipal de Fortaleza-Ce.
Utilizamos duas metodologias distintas como forma de ampliar e diversificar o trabalho com o
texto literário em nossa proposta: a metodologia de sequência básica de letramento literário,
de acordo com Cosson (2016) e a metodologia de círculos de leitura estruturados, conforme
Cosson (2017).
Para composição de nossa proposta de intervenção, selecionamos oito contos de
autores contemporâneos, sendo quatro contos africanos e quatro afro-brasileiros, que trazem
temáticas que se aproximam de alguma forma à realidade de nossos alunos e suscitam
discussões por serem histórias que tratam de relações humanas, desigualdades sociais,
preconceito racial, machismo, violência contra a mulher e outros temas tão presentes em
nosso cotidiano.
Para o trabalho com literatura africana, realizamos práticas de leitura com os
seguintes contos: ―As mãos dos pretos‖, de Luis Bernardo Honwana (2010); ―Fronteira de
asfalto‖ (2007), de José Luandino Vieira; ―A saia almarrotada‖ (2009) e ―O cego Estrelinho‖
(2012), de Mia Couto. Quanto à literatura brasileira, trabalhamos os seguintes contos da obra
Olhos d’água, da escritora Conceição Evaristo (2014): ―Maria‖, ―Olhos d‘água‖, ―Zaíta
esqueceu de guardar os brinquedos‖ e ―Lumbiá‖.
É importante salientar que as atividades aqui apresentadas estão divididas por
oficinas e que em cada uma delas as atividades são desenvolvidas a partir de um conto
africano ou afro-brasileiro. Assim, o professor pode optar por realizar o conjunto de todas as
ações ou somente algumas oficinas de acordo com seus objetivos, bem como adaptar as
atividades conforme o nível de aprendizagem de sua turma.
Inicialmente, apresentaremos as metodologias utilizadas para organizar
didaticamente as práticas pedagógicas. Depois, passaremos para a apresentação das práticas
de leitura literária, ressaltando os objetivos de cada oficina e as orientações para a realização
de cada momento.

Sugerimos a leitura do livro Letramento literário: teoria e prática, de Rildo


Cosson (2016) para um maior aprofundamento sobre letramento literário.
176

CAMINHOS METODOLÓGICOS PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO

Caro (a) Professor (a), diante do relevante papel da literatura na formação dos
educandos é imprescindível que a escola ofereça mecanismos para que o letramento literário
dos alunos seja desenvolvido de forma completa. Para isso, é fundamental a realização de
práticas pedagógicas que priorizem a leitura efetiva do
Sugerimos a leitura de
texto literário para que os alunos tenham a oportunidade de
Koch & Elias (2006) para
vivenciar a leitura como um processo de interação entre um maior aprofundamento
a respeito do papel do leitor
autor–texto–leitor que resultará na produção de sentidos
enquanto sujeito ativo,
de acordo com os conhecimentos prévios do leitor construtor de sentidos.
mediante o contexto da obra.
No entanto, essa leitura não pode se limitar a fragmentos de textos ou a ser
exercida apenas para a fruição. É preciso que ela seja organizada de acordo com os objetivos
de formação dos alunos e que seja relacionada à realidade deles. Em sua obra Letramento
literário: teoria e prática (2016), o autor Rildo Cosson apresenta estratégias que visam
promover o letramento literário na escola, através do trabalho com as sequências básica e
expandida. Porém, o autor destaca que as sequências não são uma fórmula imutável e que ao
aplicá-las, cada professor poderá modificá-las para que consiga encontrar novos caminhos
para realizar um letramento literário adequado aos seus alunos e à sua escola. Já na obra
Círculos de leitura e letramento literário (2017), Cosson apresenta a metodologia de círculo
de leitura para efetivar o letramento literário na escola.
As sugestões de ações apresentadas neste manual seguem as metodologias da
sequência básica e dos círculos de leitura estruturados. Dessa forma, queremos apresentar a
você, caso ainda não conheça, esses dois métodos de trabalho com o texto literário em sala de
aula.

A SEQUÊNCIA BÁSICA DE LETRAMENTO

A sequência básica de letramento literário proposta por Cosson (2016) sugere


dinamicidade e interação entre os sujeitos durantes as práticas de leitura literária, além de
priorizar a presença do texto literário em sala de aula. O autor divide sua sequência básica em
quatro etapas: motivação, introdução, leitura e interpretação.
A motivação, primeiro momento da sequência básica, consiste, basicamente, em
preparar o aluno para entrar no texto, ou seja, devemos propor uma ação que antecipe ou faça
177

correlação com os aspectos a serem apresentados no texto. Para isso, podemos apresentar aos
alunos questionamentos que antecedam a leitura, uma dinâmica ou ainda recorrer a outras
linguagens como vídeos e músicas para que os alunos consigam estabelecer relações com o
texto a ser lido.
A introdução, segundo momento da sequência básica, tem como objetivo
apresentar autor e obra. Nesta etapa, é muito importante que você, professor, apresente a obra
física aos alunos e, se possível, permita que eles a manuseiem. Porém, nesta etapa precisamos
ter o cuidado de não apresentar informações em excesso. Procure falar somente sobre
aspectos da vida do autor e da obra que ajudem a entender o texto lido.
O momento da leitura, terceira etapa da sequência, requer o acompanhamento do
professor. Em caso de textos curtos, é possível solicitar que os alunos façam uma leitura
silenciosa do texto e, posteriormente, fazemos uma leitura oral. Quando o texto for longo
como, por exemplo, um romance, Cosson (2016) orienta que a leitura seja feita em um
ambiente fora da escola por um período determinado.
A quarta etapa é a interpretação, na qual o leitor constrói os sentidos do texto a
partir das inferências e previsões que havia feito antes e durante a leitura e da mesma forma
com seus conhecimentos prévios, seu conhecimento de mundo. É nesta etapa que
desenvolvemos as discussões a respeito do texto lido para que ocorra a socialização da
construção de sentidos por parte dos alunos.
Professor, após as discussões sobre a leitura, você pode apresentar propostas de
interpretação, as quais corresponderão ao registro do processo interpretativo. O tipo de
atividade a ser proposta por você deve ser adequada ao texto lido, à idade dos estudantes e a
outros fatores, mas você pode propor uma tarefa simples como desenhar algo que represente
os sentimentos despertados pela leitura, o desenho de uma cena da narrativa ou uma tarefa
complexa como, por exemplo, realizar uma feira cultural ou uma encenação.
É importante salientar que a realização de todas as etapas da sequência básica é
primordial para que os alunos estabeleçam uma relação mais intensa com o texto e consigam
construir significados sobre o que estão lendo.

OS CÍRCULOS DE LEITURA LITERÁRIA

O círculo de leitura é uma prática de leitura compartilhada de textos que estimula


a formação de uma comunidade de leitores. Cosson (2017), considerando o modo de
178

funcionamento, divide os círculos de leitura em três tipos: estruturado, semiestruturado e


aberto ou não estruturado. Em nossa proposta, utilizamos os círculos de leitura estruturados,
os quais possuem uma estrutura previamente estabelecida e os participantes seguem um
roteiro com atividades definidas para leitura, discussão e registro de conclusões.
Nos círculos de leitura, os alunos se organizam em equipes para lerem uma obra
escolhida por eles a partir de uma lista de sugestões apresentadas por você, professor. Para
isso, será necessário que você selecione previamente alguns títulos e os apresente aos alunos
para que possam escolher. O grupo deve ser formado por alunos que escolheram uma mesma
obra para realizar a leitura e, de preferência, deve ser composto por quatro a seis integrantes.
Formados os grupos, é preciso estabelecer um calendário de leitura e de discussão nos grupos.
Durante as leituras, os alunos irão registrar aspectos que acharem interessantes
para apresentarem no momento da discussão em grupo. Esses registros podem ser realizados
através de simples anotações ao longo do texto em pequenos papéis ou em diários de leituras,
nos quais os alunos registram suas impressões. Nessa fase, Cosson (2017) apresenta,
baseando-se em Daniels (2002), as fichas de função como forma de registro. As fichas de
função são uma espécie de ficha de leitura, elaborada pelo professor, e que o aluno deve
preencher de acordo com a função que ele assumir no grupo. As várias funções são:

Tabela 1 - Quadro das fichas de funções baseado em Daniels (2002 apud COSSON, 2017,
p. 142-143)

Conector Liga a obra ou trecho lido com a vida, com o momento.

Questionador Prepara perguntas sobre a obra para os colegas, normalmente de cunho analítico.

Iluminador de Escolhe uma passagem para explicitar ao grupo, seja porque é bonita, porque é
passagens difícil de ser entendida ou porque é essencial para a compreensão do texto.

Ilustrador Traz imagens para ilustrar o texto.

Dicionarista Escolhe palavras consideradas difíceis ou relevantes para a leitura do texto.

Sintetizador Sumariza o texto.

Pesquisador Busca informações contextuais que são relevantes para o texto.

Cenógrafo Descreve as cenas principais.

Perfilador Traça um perfil das personagens mais interessantes.

Fonte: Elaborado pela autora


179

Nem todas as funções precisam ser preenchidas e o professor pode criar novas
funções de acordo com o texto lido. No entanto, Daniels (2002), de acordo com Cosson
(2017), considera que as funções de conector, questionador, iluminador e ilustrador são as
mais importantes, pois estão ligadas aos hábitos de leitura de um leitor maduro. Portanto, a
distribuição de fichas de função entre os alunos não é uma obrigação, pois outras formas de
registro podem ser utilizadas. Além disso, os registros podem ser utilizados como forma de
avaliação para os círculos de leitura institucionais. O importante é que o círculo de leitura
promova ―o encontro do leitor com a obra‖ (COSSON, 2017, p. 174).

OFICINA I

Apresentação geral do projeto de letramento literário com contos africanos e afro-brasileiros.

Objetivos
 Identificar a visão dos alunos sobre o continente africano.
 Apresentar a África como um continente múltiplo.
 Conhecer os países africanos de língua portuguesa.
 Debater sobre as relações entre Brasil e África.
 Desconstruir o imaginário marcado por imagens que depreciam o continente africano e
o reduzem a uma série de estereótipos equivocados.

Recursos
 Projetor multimídia
 Computador
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
 Caixa de som

Duração prevista:
 2 aulas

Professor (a),
Geralmente, nossos alunos possuem poucos conhecimentos sobre o continente
africano e, muitas vezes, possuem uma visão reducionista e pejorativa do mesmo. Esta
primeira oficina tem por objetivo identificar o que os alunos já conhecem sobre África,
180

apresentar uma visão geral dos países africanos de língua portuguesa e debater sobre as
relações entre Brasil e África.

COMO PROCEDER:
Inicialmente, apresente a proposta de trabalho com contos africanos e afro-
brasileiros através de uma conversa informal com os alunos. É importante deixar claro que a
participação de cada aluno é relevante para o processo de aprendizagem.
Após esse momento inicial, instigue os alunos a falarem sobre a África. Para isso,
você pode utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
- O que você pensa ao ver ou ouvir a palavra África?
- Para você, como é a África?
- Quais idiomas são falados na África?

Na sequência, pergunte se a turma conhece uma dupla de hip hop chamada ―Dois
Africanos‖ e exiba o vídeo de sua música intitulada ―Eu sou de lá‖ 11, a qual evidencia a
preocupação em desconstruir a imagem generalizada de pobreza e miséria propagada sobre o
continente africano, ao mesmo tempo em que retrata a vida de jovens africanos que buscam
sonhos em outras partes do mundo.
Estimule os alunos a falarem sobre o que entenderam da mensagem da canção e
direcione a discussão de forma que ocorra uma reflexão sobre as imagens negativas e
preconceituosas que, no geral, a maioria das pessoas tem a respeito da África.

Se tiver interesse em ler um pouco mais sobre as imagens


construídas a respeito da África e dos africanos, vale a pena
conferir a entrevista a seguir:

 Kabengele Munanga – “África e Imagens de África”.


(Disponível em: https://www.geledes.org.br/entrevista-kabengele-
munanga-africa-e-imagens-de-africa/)

No segundo momento, para mostrar que a África não se resume à pobreza e à


miséria, leve, em slides, imagens de diferentes partes do continente africano, suas belezas,
suas riquezas, seus povos e seu mapa. Como mediador do processo ensino-aprendizagem,

11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dsiVer_HbnA.
181

procure construir um discurso de valorização do continente africano, promover a construção


de imagens positivas dos negros e incentivar a participação dos alunos.
Com o auxílio de mapas, apresente uma visão geral sobre os países africanos de
língua portuguesa, suas histórias e literatura.
No momento de nossa aplicação dessa
atividade, os alunos se mostraram muito surpresos por
descobrirem que há países na África que também tem o
português como idioma oficial.

(Disponível em: https://slideplayer.com.br/slide/1269870/)

Vamos apresentar um poema africano aos alunos? O poema a seguir, intitulado


―Você, Brasil‖, foi escrito por Jorge Barbosa, poeta de Cabo Verde.
Professor, sugerimos que você faça a leitura em voz alta para a turma.
Você, Brasil
Jorge Barbosa

Eu gosto de você, Brasil, Nós também temos a nossa cachaça,


porque você é parecido com a minha terra. O grog de cana que é bebida rija.
Eu bem sei que você é um mundão Temos também os nossos tocadores de violão
e que a minha terra são E sem eles não havia bailes de jeito.
dez ilhas perdidas no Atlântico, Conhecem na perfeição todos os tons
sem nenhuma importância no mapa. e causam sucesso nas serenatas,
Eu já ouvi falar de suas cidades: feitas de propósito para despertar as moças
A maravilha do Rio de Janeiro, que ficam na cama a dormir nas noites de lua cheia.
São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Temos também o nosso café da ilha do Fogo
Todos-os-Santos. que é pena ser pouco,
Ao passo que as daqui mas — você não fica zangado —
Não passam de três pequenas cidades. é melhor do que o seu.
Eu sei tudo isso perfeitamente bem,
mas Você é parecido com a minha terra. Eu gosto, de Você, Brasil.
Você é parecido com a minha terra.
E o seu povo que se parece com o meu, O que é - é que lá tudo é à grande
que todos eles vieram de escravos E tudo aqui é em ponto mais pequeno...
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros. Eu desejava ir-lhe fazer uma visita
E o seu falar português que se parece com o nosso mas isso é coisa impossível.
182

falar, Eu gostava de ver de perto as coisas


ambos cheiros de um sotaque vagaroso, espantosas que todos me contam
de sílabas pisadas na ponta da língua, de Você,
de alongamentos timbrados nos lábios de assistir aos sambas nos morros,
e de expressões terníssimas e desconcertantes. de esta cidadezinha do interior
É a alma da nossa gente humilde que reflete que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita
A alma das sua gente simples, ternura,
de me deixar arrastar na Praça Onze
Ambas cristãs e supersticiosas, na terça-feira de Carnaval.
sortindo ainda saudades antigas Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,
dos sertões africanos, de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —
compreendendo uma poesia natural, e rolar com ela um maxixe requebrado.
que ninguém lhes disse, Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto
e sabendo uma filosofia sem erudição, e você veria como é que eu sou bom camarada.
que ninguém lhes ensinou.
Havia então de botar uma fala
ao poeta Manuel Bandeira
E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
dos seus cateretês, das suas toadas de negros,
para ver como é que a poesia receitava
caiu também no gosto da gente de cá,
este meu fígado tropical bastante cansado.
que os canta dança e sente,
Havia de falar como Você
com o mesmo entusiasmo
Com um i no si
e com o mesmo desalinho também...
— ―si faz favor —
As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
cantares,
— ―mi dá um cigarro!‖.
fazem lembrar as suas músicas,
com igual simplicidade e igual emoção.
Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?
Impossíveis‖.
Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
(Disponível em:
é que os seus retirantes
˂http://descobrindoaafrica.blogspot.com.br/˃.
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
Acesso em: 02 ago. 2018.)
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...

Após a leitura, instigue os alunos a falarem sobre o poema. Para isso, você pode
utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
- O poeta está comparando o Brasil com qual país?
183

- Quais são as semelhanças e diferenças entre os dois países, segundo o


poema?
- Você identifica elementos das culturas africanas na cultura brasileira?
Quais?

OFICINA II

Sequência básica I – Conto “A fronteira de asfalto”, de José Luandino Vieira.

Objetivos
 Propor a leitura do conto ―A fronteira de asfalto‖, do angolano José Luandino Vieira a
partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
 Apresentar o livro A cidade e a infância e o escritor José Luandino Vieira.
 Tratar a questão das diferenças, valorizando a diversidade a partir da raça negra.
 Promover o debate a respeito do preconceito racial.

Recursos
 Cópias do conto ―A fronteira de asfalto‖
 Projetor multimídia
 Computador
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
 Caixa de som

Duração prevista:
 3 aulas

Professor (a),

Esta oficina está organizada de acordo com a metodologia da sequência básica


proposta por Cosson (2016). Portanto, dividimos em quatro etapas: motivação, introdução,
leitura e interpretação. De preferência, realize essas quatro primeiras etapas em duas aulas
geminadas, enquanto que a terceira aula, destinada ao registro interpretativo (atividade de
extrapolação) pode ser realizada em uma aula separada das demais.
184

MOTIVAÇÃO

Exibir o vídeo ―Menina bonita do laço de fita‖ 12 , animação adaptada da obra


homônima de Ana Maria Machado.

O vídeo conta a história de um coelhinho branco que acha linda a cor negra de sua
vizinha, a menina do laço de fita, e tenta de diversas formas ficar igual a ela. Depois
de várias tentativas frustradas, ele percebe que não é possível mudar por uma
questão genética. Então, ele casa com uma coelha preta e fica extremamente feliz ao
ter filhos pretos, brancos e malhados, para quem ensina que a beleza está nas
diferenças.

Após a exibição do vídeo, instigue os alunos a falarem sobre suas impressões


sobre a história. Para incitar o debate, você pode utilizar perguntas norteadoras como as que
sugerimos a seguir:
- Qual o tema abordado no vídeo?
- O que mais chamou atenção?
- Como é a convivência entre os personagens?
- No nosso cotidiano, a convivência entre as pessoas é harmoniosa e sem
preconceitos como no filme? Por quê?

INTRODUÇÃO

Com o auxílio de slides, mostre a foto 13 e o nome do escritor José Luandino


Vieira e questione aos alunos se alguém o conhece.

José Luandino Vieira, na verdade, se chama José Vieira Mateus


da Graça. Ele nasceu em Portugal, mas se mudou para Angola com os pais
aos três anos. Passou toda a infância e juventude em Luanda. Participou
ativamente do movimento pela libertação nacional, pois Angola foi por
muito tempo colônia de Portugal. É considerado africano e representa a
literatura angolana. Seu pseudônimo é uma homenagem a Luanda, capital
de Angola.

12
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UhR8SXhQv6s˃.
13
Disponível em: ˂https://www.wook.pt/autor/jose-luandino-vieira/15732˃
185

Apresente também imagens de capas de diferentes edições do livro A cidade e a


infância e peça que os alunos levantem hipóteses a
respeito da temática dos contos do livro.
 Os contos de A cidade e a
infância, inspirados na
própria infância do autor
vivida nos bairros pobres
de Luanda, descrevem a
cidade de Luanda como
estava em 1950, mas
também rememora seus
traços do passado ao
descrevê-la durante os
anos de 1930.

Fonte: Acervo da autora

 Professor (a), se possível, leve um exemplar do livro para que


os alunos possam ter contato com a obra física. Cosson
(2016) enfatiza a importância desse contato.

 Seria interessante aproveitar o momento da introdução para


falar brevemente sobre a história de Angola, sua colonização
e a luta pela conquista da independência.

LEITURA

Antes da leitura, é importante apresentar apenas o título do conto para que os


alunos façam inferências a respeito da história. Peça que os alunos socializem oralmente suas
inferências e então solicite a leitura silenciosa do conto.
Em seguida, leia o conto em voz alta para a turma.

A fronteira de asfalto
José Luandino Vieira

A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão.
… – Combinado?
186

– Combinado – Disse ele.


Riram os dois e continuaram a andar, pisando as flores violeta que caiam das árvores.
– Neve cor de violeta – disse ele.
– Mas tu nunca viste neve…
– Pois não, mas creio que cai assim…
– É branca, muito branca…
– Como tu!
e um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele.
– Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta escura.
– Lembra-te da nossa combinação. Não mais…
– Sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou primeiro fostes tu.
Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo caminho.
A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.
– Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela.
Olhou-a nos olhos. A menina baixou olhar para a biqueira dos sapatos pretos e disse:
– Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas a volta do bairro?
– Sim lembro-me…
A pergunta que o perseguia há meses saiu, finalmente.
– E tu achas que está tudo como então? Como quando brincávamos à barra do lenço ou às
escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no
dizer da tua mãe? Achas…
E com as próprias palavras ia-se excitando. Os olhos brilhavam e o cérebro ficava vazio,
porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras.
-… que eu posso continuar a ser teu amigo…
– Ricardo!
– Que a minha presença na tua casa…no quintal da tua casa, poucas vezes dentro dela!, não
estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações…Estava a ser cruel. Os olhos
azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel.O som da própria voz fê-lo ver
isso. Calou-se subitamente.
– Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem
árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique a sombra de
mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma tênue nuvem de poeira que o vento levantava
cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas,
187

três janelas. Um cercado de aduelas e arcos de barril.


– Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu dissestes isso para quê? Alguma vez te disse
que não era tua amiga? Alguma vez que te abandonei ? Nem os comentários das minhas
colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem a família que se tem voltado contra
mim…
– Está bem. Desculpa. Mas sabes, isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura.
E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda
não havia a fronteira de asfalto.
– Bons tempos – encontrou-se a dizer.
– A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço à menina
Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te chamavam? – gritou ele.
Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente fechadas e as
flores violeta caindo-lhe na carapinha negra.
Depois, com passos decididos, atravessou a rua, pisando com raiva a areia vermelha e sumiu
no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão.
Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira que distraía a
menina Nina. Depois a escola. Ambos na mesma escola, na mesma classe. A grande amizade
a nascer.
Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em volta o aspecto luminoso, sorridente, o ar feliz, o
calor suave das paredes cor-de-rosa. E lá estava sobre a mesa de estudo «… Marina e Ricardo
– amigos para sempre». Os pedaços da fotografia voaram e estenderam-se pelo chão. Atirou-
se para cima da cama e ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro.
Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se
cobriu de névoa. Ricardo brincava com ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os
caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente ficou a pensar no
mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a pique onde viviam famílias
numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro irmãos de Ricardo…Porquê? Porque
é que ela não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Porque é que agora era
diferente?
– Marina, preciso falar-te.
A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha.
– Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse…
teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas
agora … um preto é um preto…
188

As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei…Bem
sabes que não é por mim!
– Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada
a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.
– Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele…
– Está bem mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das
mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos
brilhantes, os lábios arrogantemente apertados.
– Está bem, está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois mergulhando a cara na colcha, chorou.
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra do lenço. Os
carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela.
Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha
uma cor crua em tudo. Luz na janela. Saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo
dos seus pés. O ―Toni‖ rosnou na casota. Avançou devagar até a varanda, subiu o rodapé e
bateu com cuidado.
– Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.
– Ricardo!
– Ricardo? Que queres?
– Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa.
– Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. Amanhã na paragem do maximbombo. Vou
mais cedo…
– Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro.
Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente o facho
da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.
– Alto aí! O que é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal. As folhas
secas cederam e ele escorregou. O ―Toni‖ ladrou.
–Alto aí seu negro. Pára. Pára negro!
Ricardo levantou-se e correu para o muro. O polícia correu também. Ricardo saltou.
189

– Pára, pára! – gritou o polícia.


Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com a violência abafada pelos sapatos de
borracha.
Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu
violentamente de encontro a aresta do passeio.
Luzes acenderam-se em todas as janelas. O ―Toni‖ ladrava. Na noite ficou o grito loiro da
menina de tranças.
Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé o polícia caqui desnudava
com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo, estendido do lado de cá da fronteira, sobre as
flores violeta das árvores do passeio.
Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra retorcida na sua
direcção.‖
(VIEIRA, 2007, p. 40-44)

Após a leitura do texto, é o momento de confirmar ou não as hipóteses levantadas


a respeito da história.
Incentive a discussão sobre o conto, enfatizando as relações raciais e as formas de
discriminação mostradas no texto. Para incitar o debate, você pode utilizar perguntas
norteadoras como as que sugerimos a seguir:

- Quais são as principais características de Ricardo e Marina?


- Como era o relacionamento dos dois na infância e na fase da adolescência?
- Como a mãe de Marina via a relação da filha com Ricardo?
- O conto se passa em Luanda, capital de Angola. Há diferenças entre o
bairro que Marina mora e o bairro de Ricardo? Quais?
- É possível perceber racismo no conto? Em quais momentos?
- Por que o asfalto pode ser considerado uma fronteira no conto?
- Pensando nessa divisão entre o bairro de branco e o musseque, como
podemos explicar o título do conto?
- Passada a inocência da infância, os personagens percebem como o
preconceito interfere na convivência entre eles?
- Há semelhanças entre a realidade do conto e a realidade brasileira? Quais?
- O desfecho do conto poderia ser diferente se o menino fosse branco?
190

Professor (a), durante a interpretação procure suscitar relações do


conto com as histórias de vida dos alunos. Além disso, pode ser
estabelecida uma comparação do conto com o vídeo “Menina bonita
do laço de fita”, que foi exibido durante a motivação, uma vez que
ambos mostram a amizade e convivência entre raças diferentes. No
entanto, enquanto no curta a convivência é harmoniosa e sem
preconceitos, no conto o racismo predomina e atrapalha a amizade e a
convivência entre os personagens.

AULA 3 – ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades para a
turma. As atividades podem ser desenvolvidas de forma individual ou em equipes.

Primeira opção: Produção de um texto de campanha publicitária

Imaginando-se no lugar de Marina que, após a morte de Ricardo ficou muito


triste, os alunos deverão produzir uma campanha publicitária de combate ao
preconceito racial a ser divulgada nas redes sociais.

Segunda opção: Produção textual

Os alunos irão escrever uma continuação para a história ou criar um novo


desfecho para o conto a partir de qualquer momento anterior a morte de Ricardo no
conto.

Após a realização das atividades, os alunos deverão apresentar suas produções


para a turma.

COM A GENTE FOI ASSIM!

 Como nossa escola não possui laboratório de informática, nem acesso a internet, os
alunos reproduziram suas campanhas em cartazes.
 Disponibilizamos os materiais necessários para a realização das atividades: folha de
redação com a proposta de produção textual, cartolina, revistas para recorte, lápis de cor, etc.
 Após a socialização, os cartazes com as campanhas foram colados nos corredores da
escola para que a comunidade escolar tivesse acesso às produções dos alunos e a oportunidade
de refletir sobre o assunto.
191

OFICINA III

Sequência básica II – Conto “As mãos dos pretos”, de Luís Bernardo Honwana.

Objetivos
 Propor a leitura do conto ―As mãos dos pretos‖, do moçambicano Luís Bernardo
Honwana a partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
 Mostrar que o racismo é uma construção social e ideológica. Ele é reproduzido e
naturalizado por várias instituições como, por exemplo, família, igreja e escola.
 Problematizar as relações étnico-raciais.

Recursos
 Cópias do conto ―As mãos dos pretos‖
 Projetor multimídia
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados

Duração prevista:
 3 aulas

MOTIVAÇÃO

Fomentar uma discussão inicial a partir do seguinte questionamento:

- As pessoas nascem racistas ou elas se tornam racistas?

Após ouvir as colocações dos alunos, apresente a notícia a seguir, retirada do site
do jornal O Estado de S. Paulo, e conte resumidamente a história:
192

(Disponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,menina-de-2-anos-rebate-


comentario-racista-de-atendente,70001726497. Acesso: 07 ago. 2018)

Segundo a notícia, a menina Sophia escolheu a boneca da imagem, pois sonha em


ser médica, mas a atendente do caixa perguntou se a boneca era um presente. Sem entender, a
mãe explicou que era um presente por Sophia ter conseguido usar o peniquinho. Então, a
mulher teria dito para a criança: ―Mas ela não parece com você. Nós temos várias outras
bonecas que parecem mais com você‖. De acordo com o relato da mãe, a garota discordou e
respondeu: ―Claro que parece. Ela é uma médica, eu sou uma médica. Ela é bonita, eu sou
bonita. Você vê o lindo cabelo dela? E o estetoscópio?‖. Ainda de acordo com a notícia, Bradi
ficou muito feliz com a atitude da filha e escreveu em seu Instagram: ―Essa experiência só
confirmou minha crença de que nós não nascemos com a ideia de que a cor importa. A pele
tem cores diferentes assim como o cabelo e os olhos e todas elas são lindas‖.

Após a leitura da notícia, apresente a peça publicitária a seguir da campanha


―Onde você guarda o seu racismo?‖, lançada em dezembro de 2004. O material consiste em
uma série de depoimentos de pessoas que foram vítimas de discriminação racial no Brasil. O
depoimento apresentado a seguir revela uma afirmação discriminatória feita por uma criança
de apenas três anos:
193

 Peça que os alunos


comparem as histórias
e expliquem por quais
motivos essas crianças
tiveram reações
diferentes.

 Questione de que
forma o discurso que
essas crianças ouvem
influencia suas
atitudes.

 Questione ainda se os
seus alunos conhecem
alguma história
parecida ou de atitudes
infantis parecidas com
esses dois exemplos.

Fonte: http://unecombateaoracismo.blogspot.com/2009/04/onde-voce-
guarda-o-seu-racismo.html. Acesso em: 08 ago. 2018

Sugerimos que faça uma breve explanação sobre como nossa linguagem e nossas
ações são influenciadas pelos diversos discursos a que estamos submetidos.

INTRODUÇÃO

Com o auxílio de slides, mostre a foto 14 e o nome do escritor Luís Bernardo


Honwana e questione aos alunos se alguém o conhece.

Luís Bernardo Honwana nasceu em 1942, em


Lourenço Marques, hoje Maputo, em Moçambique. Aos vinte e
dois anos, em 1964, publicou o livro de contos Nós matamos o Cão
Tinhoso que o consagrou como um dos mais importantes escritores
de seu país. No mesmo ano, Honwana, militante da FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique), foi preso por suas
atividades anticolonialismo e permaneceu encarcerado por três anos.

14
Disponível em: https://tertuliabibliofila.blogspot.com/2012/03/luis-bernardo-honwana-um-escritor.html
194

Apresente alguns dados biográficos do autor, sua militância e engajamento nas


questões relativas aos direitos do povo negro.

LEITURA

Para começar a etapa de leitura, apresente o título do conto, ―As mãos dos pretos‖
e peça que os alunos façam predições sobre o assunto do texto.
Ouvidas as hipóteses construídas pelos alunos,
15
apresente a imagem ao lado e solicite que os alunos
respondam, por escrito, a seguinte pergunta:

O que você diria para uma criança se ela


perguntasse por que as mãos das pessoas
negras são brancas?

Professor (a), as respostas ao questionamento podem ser colocadas em


pequenos pedaços de papeis que serão recolhidos por você. Não precisa ler para a
turma. A ideia é fazê-los pensar sobre o questionamento e elaborar uma resposta.

Entregue as cópias do conto aos alunos e solicite a leitura silenciosa do texto. Em


seguida, leia o conto em voz alta para a turma.

As mãos dos pretos


Luís Bernardo Honwana

Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor Professor disse um dia
que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há
poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato,
sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós
não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a falar

15
Disponível em: https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-menino-africano-pequeno-que-mostra-palma-como-o-
sinal-da-parada-ao-racismo-%C3%A0-guerra-e-%C3%A0-luta-image85762399
195

nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas
às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que
agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as
mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos
assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer
outra coisa que lhes mandem fazer e que não deve ficar senão limpa.
O Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as
Coca-Colas das cantinas já tenham sido vendidas, disse que o que me tinham contado era
aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de lhe
dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos.
Assim:
- Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria,
São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas
pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos.
Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados de cozer o barro das criaturas,
levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé
do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como
carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se
eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha
volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter
ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma
grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia:
que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banhai num lago do céu. Depois
do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a
essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos
pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim
mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de
mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para
ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
196

Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que
calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos
serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela,
estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que
achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis
saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir
sobre a coisa, e esmo até chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O
que ela disse foi mais sou menos isto:
- Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele
pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os
outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou
pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se
tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles
ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que
foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para
mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem
é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem
qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos
dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma
pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
HONWANA, Luís Bernardo. As mãos dos pretos. In: BRAGANÇA, Albertino. [et al.]; Contos
africanos dos países de língua portuguesa. 1. ed. São Paulo: Ática, 2010.

Após a leitura, ouça as primeiras impressões dos alunos sobre o texto. Questione
se as previsões realizadas antes da leitura foram confirmadas, se não corresponderam às
expectativas ou mudaram na medida em que se lia o texto.
Após a leitura em voz alta, o momento é de discussão e os alunos terão a palavra.
As suas impressões devem ser levadas em consideração e mediadas sempre por você,
professor (a). Para incitar o debate, você pode utilizar perguntas norteadoras como as que
sugerimos a seguir:
-O que cada personagem representa?
197

-Com qual personagem você mais se identifica?


-Como a posição social que cada personagem ocupa na sociedade influencia
seus discursos?
-Por que a maioria dos personagens baseia suas respostas em conceitos
religiosos?
- Por que a mãe se difere dos demais personagens? O que ela representa?
- Por que a mãe ria das respostas dos outros? Por que ela chorou ao beijar as
mãos do filho?
-O autor denuncia discursos presentes na sociedade moçambicana. As visões
apresentadas sobre os negros se aproximam ou se distanciam das visões apresentadas
em nossa sociedade? Por quê?
-Historicamente, é possível datar ou indicar onde surgiu a discriminação
racial?

Entregue uma cópia aos alunos do poema a seguir, escrito pelo poeta afro-
brasileiro Solano Trindade, e realize, em voz alta, sua leitura.

Sou Negro
Por Solano Trindade

Sou Negro o pau comeu


meus avós foram queimados Não foi um pai João
pelo sol da África humilde e manso
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs Mesmo vovó não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
Contaram-me que meus avós ela se destacou
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço Na minh'alma ficou
plantaram cana pro senhor do engenho novo o samba
e fundaram o primeiro Maracatu. o batuque
o bamboleio
Depois meu avô brigou como um danado e o desejo de libertação...
nas terras de Zumbi
Era valente como quê (Disponível em http://latitudeslatinas.com/poemas-de-
Na capoeira ou na faca solano-trindade/. Acesso: 10 jul. 2018)
escreveu não leu
198

Após a leitura, fomente a discussão sobre o poema, comparando-o ao conto.


Alguns questionamentos podem ser feitos:
- O discurso do poema é de valorização ou desvalorização da pessoa negra?
- De quem é a voz desse poema? Quem essa voz representa?
- O poema nega algumas visões preconceituosas a respeito dos negros. Que
visões são essas? Como o poema desmistifica essas visões?
- Na sua opinião, por que o poeta sentiu necessidade de produzir esse poema
valorizando o negro?

AULA 3 – ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades a serem
realizadas em equipes.

Primeira opção:

Baseando-se nas discussões realizadas, produza um poema que fale sobre o


racismo. Seu texto será divulgado para toda a comunidade escolar.

Segunda opção:

Produza uma campanha comunitária de combate ao racismo na escola. Sua


produção deverá alertar a comunidade para os malefícios dessa prática.

Após a realização das atividades, os alunos deverão apresentar suas produções


para o restante da turma. Se forem produzidos cartazes, é aconselhável que sejam expostos
nos corredores da escola.
199

OFICINA IV

Sequência básica III – Conto “A saia almarrotada”, de Mia Couto.

Objetivos
 Propor a leitura do conto ―A saia almarrotada‖, do moçambicano Mia Couto a partir
das etapas da sequência básica de letramento literário.
 Debater sobre as diferentes formas de opressão em nossa sociedade.
 Questionar a presença do machismo e do discurso de dominação masculina a partir da
realidade africana retratada no conto.

Recursos
 Cópias do conto ―A saia almarrotada‖
 Projetor multimídia
 Computador
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
 Dicionários

Duração prevista:
 3 aulas

MOTIVAÇÃO

Inicie a motivação apresentando a imagem a


DICA!
seguir e solicitando que os alunos expliquem o que entendem
Professor (a),
sobre ela. pode acontecer de alguns
alunos terem dificuldades
de compreender algumas
palavras. Então, seria
importante disponibilizar
dicionários para os alunos
consultarem em caso de
dúvidas.

(Disponível em: https://www.pensador.com/frase/NDQwNTE2/)


200

Professor (a), instigue os alunos a citarem diferentes formas de opressão presentes


em nossa sociedade e promova um breve debate sobre a temática.

INTRODUÇÃO

Com o auxílio de slides, mostre a foto 16 e o nome do escritor Mia Couto e


questione aos alunos se alguém o conhece.

Faça a exibição do vídeo Mia Couto – Literatura (Biografia), disponível no


youtube17, que apresenta dados sobre a biografia e produção do escritor moçambicano, além
de uma breve entrevista com o autor.

Mia Couto nasceu na cidade da Beira, em Moçambique. É


escritor, poeta e jornalista.
Ganhador do Prêmio Camões de 2013, é o autor
moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior.

Explique que o conto faz parte do livro O Fio das Missangas e apresente algumas
informações principais sobre a obra.

LEITURA

Para começar a etapa de leitura, apresente o título do conto, ―A saia almarrotada‖


e peça que os alunos construam hipóteses sobre o assunto do texto.
Após a socialização das inferências, sugerimos que você, professor (a), leia o
conto em voz alta para a turma.

A saia almarrotada
Mia Couto

O estar morto é uma mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo.

16
Disponível em: https://www.wook.pt/autor/mia-couto/2621
17
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mVQLXL1wvjk
201

Quando eu morrer,
quero ficar morta.
(Confissão da mulher incendiada)

Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos
para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar,
eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci
para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei
sentindo prazer em ter vergonha.
Belezas eram para as mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para
maravilhações. Eu tinha joelhos era para descansar as mãos. Por isso, perante a oferta do
vestido, fiquei dentro, no meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que
me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse. No
dia seguinte, as outras chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso
matreiro. E nem inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro,
tragada pelo silêncio.
Única menina entre a filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me
quiseram casta e guardada. Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades. E assim se
fez: desde nascença, o pudor adiou o amor. Quando me deram uma vaidade, eu fui ao fundo.
Como o barco do Tio Jonjoão que ele construiu de madeira verde. Todos teimaram que era
desapropriado o material. Um arco nos ombros, foi sua resposta. Jonjoão convocou toda a vila
para assistir à largada do barco. Dessa vez, até eu desci aos caminhos. Mal se barrigou nas
águas do rio, a barcaça foi engolida nas funduras.
- Maldição - propalou meu pai, gritando com as nuvens.
Mas eu sabia que não. O barco estava ainda muito cru, a madeira tinha ainda
vontade de raiz. Nosso tio não tinha feito um barco para flutuar. Isso fazem todos, disse, é
tudo barcos, uns iguais e os outros também. E acrescentou:
- Quando secar o rio, o meu barco ainda estará aqui.
Agora, a saia de roda era o barco na fundura das águas. Uma tristeza de nascença
me separava do tempo. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi
a própria fome.
- Filha, venha sentar.
Não diziam ―comer‖ que era palavra dispendiosa. Diziam ―sentar‖. E apontavam
202

uma estreiteza entre cotovelos em redor da mesa. Os braços se atropelavam, disputando as


magras migalhas. Em casa de pobre ser o último é ser nenhum. Assim eu não me servia. Meu
coração já me tinha expulso de mim. Estava desalojada das vontades. E esperava ser a última,
arriscando nada mais sobrar. Mas havia essa voz que sobrepunha minha existência:
- Deixem um pouco para a miúda.
Afinal, sempre eu tinha um socorro. Um pouco para a miúda: assim, sem
necessidade de nome. Que o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em que minha mãe
se afundara. E os olhos da família, numerosos e suspensos, a contemplarem a minha mão,
atravessando vagarosamente a fome. Não tendo nome, faltava só não ter corpo.
A meu tio, certa vez, ousei inquirir: quando secar o rio estarei onde? E ele me
respondeu: o rio vive dentro de si, o barco é que secará.
Na minha vila, as mulheres cantavam. Eu pranteava. Apenas quando chorava me
sobrevinham belezas. Só a lágrima me desnudava, só ela me enfeitava. Na lágrima flutuava a
carícia desse homem que viria. Esse aprincesado me iria surpreender. E me iria amar em plena
tristeza. Esse homem me daria, por fim, um nome. Para o meu apetite de nascer, tudo seria
pouco, nesse momento.
As outras moças esperavam pelo domingo para florescer. Eu me guardava
bordando, dobrando as costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim,
querendo que o meu peito mirrasse na sombra. As outras moças queriam viver muito
diariamente. Eu envelhecendo, a ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam idades e
destinavam as ancas para as danças. O meu rabo nunca foi louvado por olhar de macho.
Minhas nádegas enviuvavam de assento em assento, em acento circunflexo.
Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz
que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira. Eu
acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência, enxotando
tentações que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo quando ele ordenou:
- Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente me havia oferecido. Não
cumpri. Guiaram-me os mandos do diabo e, numa cova, ocultei esse enfeitiçado enfeite.
Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre
labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos
escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido.
É essa voz que ainda paira, ordenando a minha vez de existir. Ou de comer. E
escuto a sua ordem para que a vida me ceda a vez. E pergunto: posso agora, meu pai, agora
203

que eu já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de
vaidades? Fico à espera de sua autorização, enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do
baile que não houve. E visto-me com ele, me resplandeço ante o espelho, rodopio para
enfunar a roupa. Uma diáfana música me embala pelos corredores da casa.
Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E
parece que me sento sobre a minha própria vida.
O calor faz parar o mundo. E me faz encalhar no eterno sofá da sala enquanto a
minha mão vai alisando o vestido em vagarosa despedida. Em gesto arrastado como se o meu
braço atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido. Atravesso o quintal em
direcção à fogueira. Algum homem me visse, a lágrima tombando com o vestido sobre as
chamas: meu coração, depois de tudo, ainda teimava?
COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Após a leitura os alunos poderão falar suas impressões sobre o conto. É o


momento de confirmar ou não as hipóteses levantadas a respeito da história.

Professor (a), você mediará a discussão sobre o conto e poderá suscitar


questionamentos que levem os alunos a perceberem como o conto denuncia a sociedade
patriarcal que destina às mulheres um lugar marginal, oprimidas pelo machismo. Para incitar
o debate, você pode utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
-Por que a personagem não é nomeada?
-A protagonista revela a forma como foi criada e como viveu ao longo de sua
vida. Como foi essa criação?
-Por que a mulher obedecia ao que lhe era ordenado, mesmo que causasse
dores horríveis?
-Nota-se que o direito de expressão dessa mulher foi negado a vida toda. Que
outros direitos também lhe foram retirados? Por quem e por quê?
-A jovem depositava esperanças no casamento. Por quê?
-Ao atear fogo em seu corpo, a jovem é salva por seus irmãos. A atitude deles
é vista como uma salvação pela personagem? Por quê?
-O que a saia representa? Ela traz apenas memórias para essa mulher?
Justifique com passagens do texto.
-No título, Mia Couto constrói um neologismo. A partir da leitura o texto, o
que significa “almarrotada”?
204

-A protagonista resgata memórias de sua vida, marcada por ser uma única
mulher em meio a uma família machista. Sua angústia é tocante. Você conhece alguma
história ou alguém que já sofreu devido ao machismo? Conte, resumidamente, como
tudo aconteceu.
-É muito comum ouvirmos dizer que as tarefas de casa são atribuições
femininas e que lugar de mulher é na cozinha, como o conto retrata. Você concorda?
Por quê?

AULA 3 – ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Nesta aula os alunos serão convidados a produzirem tirinhas que retratem


situações de machismo cotidianas, demonstrando uma crítica. Para isso, inicialmente,
apresente a tirinha do Armandinho a seguir:

Fonte: https://tirasarmandinho.tumblr.com/

Após a leitura da tirinha produzida por Alexandre Beck, instigue os alunos a


falarem sobre o que entenderam do texto e inicie um breve debate sobre a forma machista
como Armandinho tratou a colega, não deixando Fê falar.
A partir da discussão gerada, explique aos alunos que, em equipes, eles deverão
produzir uma tirinha que retrate situações de machismo que ocorrem cotidianamente em nossa
sociedade, fazendo uma crítica. Após a realização da atividade, reserve um momento para a
socialização das produções.

COM A GENTE FOI ASSIM!

Esta foi uma das atividades que a turma mais gostou de fazer e as discussões foram muito
interessantes, pois o machismo, infelizmente, marca o cotidiano de todos nós. Disponibilizamos
os materiais necessários para a realização da atividade.
Os resultados foram ótimos, pois a turma produziu diversas tirinhas que retrataram de forma
crítica e criativa diversas situações machistas do nosso cotidiano. Espero que com sua turma
aconteça o mesmo.
205

OFICINA V

Sequência básica IV – Conto “Maria”, de Conceição Evaristo.

Objetivos
 Propor a leitura do conto ―Maria‖, da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo a
partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
 Apresentar a literatura afro-brasileira.
 Refletir sobre as diferentes manifestações de violência contra a mulher e, em especial,
contra a mulher negra em sua vida pessoal e em comunidade.
 Analisar a representação da mulher negra na literatura afro-brasileira.

Recursos
 Cópias do conto ―Maria‖
 Computador e projetor multimídia
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados

Duração prevista:
 3 aulas

MOTIVAÇÃO

Como motivação apresente, com o auxílio de slides, imagens de diferentes


mulheres negras exercendo diferentes profissões e em diferentes posições sociais. Incentive os
alunos a falarem a respeito das imagens. Enfatize a luta das mulheres negras para vencer
preconceitos, estereótipos e conquistar seu espaço na sociedade.

INTRODUÇÃO

Com o auxílio de slides, apresente a foto da escritora Conceição Evaristo e alguns


dados de sua biografia, pois sua história é um exemplo de superação a ser seguido.
206

Uma das escritoras afro-brasileiras de maior destaque na atualidade,


Conceição Evaristo nasceu em uma favela de Belo Horizonte
e precisou conciliar seus estudos com o trabalho como
empregada doméstica, até concluir, aos 25 anos, o curso
Normal. Depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde
começou a lecionar e estudar Letras na UFRJ. Mestre e
Doutora em Literatura Comparada, estreou, na década de
90, na literatura com publicações na Série Cadernos Negros,
organizada pelo Grupo Quilombhoje. Engajada nos Fonte:https://escolaeducaca
o.com.br/conceicao-
movimentos de valorização da cultura negra, a evaristo/
“escrevivência” de Conceição Evaristo, ou seja, a escrita
nascida das experiências de vida da própria autora e de seu povo revela a condição dos
afrodescendentes no Brasil.

Após apresentar brevemente a biografia de Conceição Evaristo, você pode exibir


um vídeo, disponível no youtube 18 , em que a própria escritora fala sobre sua vida, sua
trajetória como professora e como iniciou na escrita.

Professor (a),
Chegou a hora de apresentar o livro Olhos d’água. Se possível, leve um
exemplar para a sala e deixe que os alunos o manuseiem por algum tempo.

Enfatize que a obra é composta por quinze contos que dão voz aos negros,
principalmente a mulher negra, mostrando as desigualdades sociais, as inúmeras
formas de violência e a marginalização a que foram submetidos pelo grupo detentor
do poder em nossa sociedade.

LEITURA

Antes de iniciar a leitura do conto, apresente o título ―Maria‖ e instigue os alunos


a construírem inferências sobre a história.

18
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dHAaZQPIF8I&t=22s. Acesso: set. 2018.
207

Distribua o conto e realize uma leitura compartilhada do texto.


Maria
Conceição Evaristo

Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de
esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com
a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada.
No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos.
O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O
osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa.
Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele
remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas
estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos
gostavam de melão?
A palma de umas de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio,
enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca-laser corta até a vida!
Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola
que estava no chão entra as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia
descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás,
do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem
dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil
continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se
lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros
enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era
um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu
filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e
em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não
podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que
sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não
arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os
olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém
também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser
diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito...
208

O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com
Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele
estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do
buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda
sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo
após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava
com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais
velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na
mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de
todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem
tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida
dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das
pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os
assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil
cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas
mãos tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que parecia cortar até a vida.
Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o
primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta
safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum.
Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda
amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra
voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles,
teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava
mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê.
Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições
de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem
de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono
da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que
merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra
ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou:
Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O
motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é
esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o
ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha!
209

Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia
arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?
Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que
estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho
no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com
facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o
corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

Após a leitura permita que os alunos falem suas impressões sobre o conto. É o
momento de confirmar ou não as hipóteses levantadas a respeito da história.
Incentive a discussão sobre o texto e procure enfatizar o tom de denúncia das
opressões de classe e de gênero que a protagonista sofre, bem como a violência que vitima a
personagem e milhares de mulheres que ela representa. Para incitar o debate, você pode
utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
-Quais as características de Maria? Quem ela representa?
-Observe a descrição do ex-companheiro de Maria. Como ele agiu enquanto
falava com ela? Por que ele agiu dessa forma?
-Por quais razões Maria foi agredida?
- Será que os passageiros, que passaram a agredir a protagonista, teriam a
mesma postura diante de uma mulher branca?
-Ao observar a forma como os demais passageiros se referiram à Maria, você
percebe alguma forma de preconceito? Qual (is)?
- Todos no ônibus acreditam que Maria seja culpada? Por quê?
-Se Maria de fato fosse cúmplice dos assaltantes, o que aconteceu com ela
seria aceitável?
-Você já presenciou ou conhece alguma história de mulheres vítimas de
violência? Quem, geralmente, são os agressores?

Professor (a), durante a discussão pode ser necessário


explicar para os alunos um pouco sobre a Lei nº11. 340/2006,
Lei Maria da Penha. Caso se interesse em aprofundar seus
conhecimentos a respeito da referida lei acesse:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496319/
000925795.pdf
210

AULA 3 – ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades para que os
alunos escolham uma e realizem em equipes:

Primeira opção:

Pesquisar sobre a Lei Maria da Penha e produzir cartazes sobre a temática. Os


cartazes serão colados na escola com o objetivo de alertar e esclarecer a comunidade
escolar sobre o tema violência contra a mulher.

Segunda opção:

Dramatização do conto ―Maria‖. Os alunos podem escolher entre fazer a


encenação da história original ou modificar a história, contando-a a partir de outras
perspectivas.

Após a realização das atividades, os alunos deverão apresentar suas produções


para o restante da turma.
Para as dramatizações, é necessário que seja dado mais tempo para os ensaios e a
apresentação deverá ocorrer em um dia posterior.

OFICINA VI

Círculo de leitura literária – Conto “O cego Estrelinho”, de Mia Couto.

Objetivos
 Apresentar a metodologia dos círculos de leitura estruturados.
 Realizar um círculo de leitura com o conto africano ―O cego Estrelinho‖.
 Refletir sobre relações humanas e sociais, além de temas como amizade,
solidariedade, companheirismo e resiliência.
211

Recursos
 Cópias do conto ―O cego Estrelinho‖
 Projetor multimídia
 Computador
 Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados

Duração prevista:
 2 aulas

Professor(a),

Esta oficina tem como objetivo apresentar a metodologia dos círculos de leitura
estruturados aos alunos, bem como as funções que serão desempenhadas pelos participantes.
Inicialmente, explique detalhadamente o funcionamento dos círculos de leitura
propostos por Cosson (2017), enfatizando que a turma será dividida em grupos para efetuar a
leitura de contos selecionados e que deverão fazer registros do que foi lido de acordo com a
função que cada um assumirá no grupo (conector, questionador, iluminador, ilustrador,
dicionarista, sintetizador, pesquisador, cenógrafo e perfilador).
Com o auxílio de slides, explique cada uma das nove funções.
Enfatize para os alunos que a discussão do texto será feita a partir dos registros de
leitura de cada aluno.

A seguir, proponha a realização de um círculo de leitura com o conto ―O


cego Estrelinho‖ de Mia Couto.

Apresente o título do conto para que os alunos elaborem hipóteses a respeito da


história e, em seguida, faça a leitura em voz alta do conto.

O cego Estrelinho
Mia Couto

O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e
descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por
tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.
212

E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram
os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre
lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:
– Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele
minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que
papaeira. O cego enchia a boca de águas:
– Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como
nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava
o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava
ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:
– Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!
Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo,
o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria
dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade.
Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.
– Na noite aflige não haver luz?
– Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.
Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez o céu para
justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios, subterfugindo:
– E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?
Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho
perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro
nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia.
Só assim adormecia. A razão da concha é a timidez da amêijoa? Na manhã seguinte, o cego
lhe confessava: se você morrer, tenho que morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o
caminho para o céu?
Foi no mês de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pôr
na guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou: que o moço inatingia a idade: E
que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe
tranquilizou:
– Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu lugar.
213

O cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já não estava
lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água ida nem vinda, Estrelinho escutou o
amigo se afastar, engolido, espongínquo, inevisível. Pela primeira vez, Estrelinho se sentiu
invalidado.
– Agora, só agora, sou cego que não vê.
No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presença de
seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa é pensar que os silêncios
são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este
nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende
mano Gigito?
Mas a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse sim,
repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus olhos no centro
de manchas e ínvias lácteas. Aquela era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando,
o cego captava o escuro em vagas, despedaços. O mundo lhe magoava a desemparelhada mão.
A solidão lhe doía como torcicolo em pescoço de girafa. E lembrou palavras do seu guia:
– Sozinha e triste é a remela em olho de cego.
Com medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais interpretavam ser
olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo caminho. Tropeçando, empecilhando,
acabou caído numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram à procura da mão de
Gigitinho.
Então ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera Gigitinho: a
ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o corpo não ocupasse lugar
nenhum.
De aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar desgraças.
Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde tombara. Como diria Gigito: era ali
que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem força ele colectou para se afastar.
Ficou naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que tombam nas
despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe despertou os ombros.
– Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.
Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e
silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não
tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e
realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia
os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele
214

careceu que ela o amparasse já não apenas de mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela
puxava o cego de encontro a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já não
procurava só outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.
Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante,
regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava eternidades.
Sua cabeça andorinhava e ele guiava o coração como voo de morcego: por eco da paixão.
Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E adormeceu enroscado nela, seu
corpo imitando dedos solvidos em outra mão.
A meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobressaltada. Tinha visto a garça
branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu peito. Mas,
fingiu sossego e serenou a moça. Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.
De manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve um
militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como devem as feridas da guerra.
Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele já sabendo daquela perca. A
moça, essa, deixou de falar, órfã de seu irmão. A partir dessa morte ela só tristonhava,
definhada. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe
conduziu para a varanda da casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários
firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho
miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que
ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços
antes da minha actual vida.
E quando já havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:
– Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
– Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!
COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Após a leitura, desempenhe uma das funções para servir de modelo aos alunos,
ajudando-os a atuarem adequadamente nos grupos durante o círculo, pois, segundo Cosson
(2017) antes de começar um círculo de leitura é essencial que o próprio professor mostre
como fazer para que os alunos sejam levados a reproduzirem a partir de seu exemplo.
215

Sugerimos que você, professor, desempenhe a função de pesquisador, na


qual você pode levar informações contextuais do conto, informações sobre as
guerras em países africanos no período antes e após os processos de independência
e como esse tema é recorrente nas literaturas desses países.

Após esse momento, divida a turma em equipes de quatro a cinco integrantes e


entregue as fichas de função propostas por Cosson (2017), baseando-se em Daniels (2002),
para cada aluno preencher a partir da discussão com seu grupo. Apresentamos um modelo de
ficha de função a seguir:

FICHA DE FUNÇÃO

CONTO: _____________________________________________________

FUNÇÃO ESCOLHIDA: ________________________________

REGISTROS DE LEITURA

Registre aqui as informações que você considerar importantes para discussão em grupo de
acordo com a função que você está exercendo no círculo de leitura e também suas impressões
acerca do conto que está lendo.

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Fonte: Elaborado pela autora


216

Professor (a),

Permita que cada grupo distribua as funções entre seus componentes que, no
geral, ficarão responsáveis por desempenhar duas funções cada.
Estabeleça um período de tempo para que os alunos discutam o conto nos
pequenos grupos e preencham as fichas de função.
Depois das discussões nos grupos, forme um círculo único para que os alunos
compartilhem suas leituras. Assim, escute os registros feitos de acordo com cada função e
fomente o debate mais aprofundado sobre os aspectos registrados nas fichas de função.
Para concluir, faça uma breve avaliação do círculo de leitura e, juntamente com os
alunos elenque os pontos positivos e os que precisam ser melhorados nos próximos círculos
de leitura.

OFICINA VII

Exposição dos contos e organização dos círculos de leitura.

Objetivos
 Apresentar os resumos dos contos afro-brasileiros pré-selecionados para os círculos de
leitura.
 Organizar os grupos que realizarão os círculos de acordo com a escolha dos contos.
 Propiciar uma leitura e discussão inicial dos contos.

Recursos
 Cópias dos contos ―Lumbiá‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e ―Olhos
d‘água‖.
 Computador
 Projetor multimídia
 Pendrive com slides que serão utilizados

Duração prevista:
 2 aulas
217

COMO PROCEDER:

Professor (a),

Esta oficina foi pensada para que ocorra a divisão dos grupos de acordo com a
escolha dos contos a serem trabalhados nos círculos de leitura literária e também para
propiciar um primeiro contato dos alunos com o texto literário.
Cosson (2017) afirma que o círculo de leitura literária começa com a seleção de
livros pelo professor. Nesta proposta, escolhemos três contos do livro Olhos d’água (2016),
da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo.
Selecionamos os contos ―Lumbiá‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e
―Olhos d‘água‖.

Professor (a), fique à vontade para modificar e/ou ampliar esta lista de contos
selecionados de acordo com seus objetivos e nível da turma.

Apresente uma pequena síntese de cada um dos contos e peça que os alunos
escolham aquele que gostariam de ler. A partir das preferências dos alunos, os grupos de
leitura serão montados. Provavelmente alguns alunos se mostrarão insatisfeitos, pois preferem
formar equipes por afinidades pessoais. Se isso acontecer, procure conversar com os alunos e
conscientizá-los sobre a importância de ler o texto que eles possuem interesse.
Com os textos em mãos, os grupos se reunirão para fazer uma primeira leitura do
conto, discutir os papeis de cada integrante da equipe e distribuir as funções. Entregue as
fichas de funções para que eles possam preencher durante as leituras.
Para finalizar, estabeleça as datas de apresentações das leituras de cada equipe.

COM A GENTE FOI ASSIM!

Ao aplicarmos esta proposta, cada conto foi lido por duas equipes que, no geral, eram
compostas por seis integrantes. Estabelecemos as datas de apresentação de acordo com os
contos. Assim, as duas equipes que leram o mesmo conto se apresentavam no mesmo dia
para que a discussão fosse ampliada com a participação de mais alunos. Além disso,
reservamos mais duas aulas antes das apresentações para que as equipes se reunissem em
sala e fizessem as discussões sobre os textos e a preparação das apresentações.
218

OFICINA VIII

Apresentação do círculo de leitura sobre o conto “Lumbiá”, de Conceição Evaristo.

Objetivos
 Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
 Propiciar a leitura e discussão do conto ―Lumbiá‖, de Conceição Evaristo a partir da
metodologia dos círculos de leitura.
 Refletir sobre crianças em situação de vulnerabilidade social e trabalho infantil.

Recursos
 Cópias do conto ―Lumbiá‖
 Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)

Duração prevista:
 2 aulas

Professor (a),

Antes das equipes iniciarem suas apresentações, você pode entregar uma cópia do
conto a ser trabalhado na aula para que o restante da turma faça uma primeira leitura
silenciosa. Acreditamos que a partir desta leitura a turma passa a conhecer o conto, até então
lido apenas por duas equipes, e participa mais ativamente das apresentações, colaborando
assim, para o surgimento de novas discussões.
Organize a sala em círculo para que as equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois, muitas vezes, nossos
alunos precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.
219

Lumbiá
Conceição Evaristo

Lumbiá trocou rapidamente a lata de amendoim pela caixa de chicletes com a


irmã Beba. Fazia um bom tempo que estava andando para lá e para cá, e não havia conseguido
vender nada. Quem sabe teria mais sorte se oferecesse chicletes? E se não desse certo
também, procuraria o colega Gunga. Juntos poderiam vender flores. A mãe não gostava
daquela espécie de mercadoria. Dizia que flor encalhada era prejuízo certo. Sempre
amanheciam murchas. Amendoim e chicletes não. Lumbiá gostava da florida mercadoria em
seus braços. Tinha até um estilo próprio de venda. Ficava observando os casais. O momento
propício para empurrar o produto era quando o casal partia para o beijo na boca. Ele assistia
as bocas descolarem para oferecer a flor. Às vezes o casal se desgarrava, mas na mesma hora,
sem respirar, o par se fundia de novo. Lumbiá ficava por perto olhando de soslaio para a
mulher. E quando notava que ela estava toda mole e o homem derretido, o menino se punha
quase entre os dois, com a flor em riste, impondo a mercadoria. O caliente namorado enfiava
a mão no bolso, tirava o dinheiro e pegava a rosa, recomeçando o carinho. Às vezes, tão
distraído no beija-beija estava o casal que a rosa não era colhida das mãos do menino. E o
troco honestamente oferecido ao freguês cansava de esperar na mão do vendedor. Lumbiá
calculando o lucro da venda sorria feliz. Ás vezes, o menino usava outro ardil para
impulsionar a venda. Chegava elogiando a mulher, dizia que ela era linda e que os dois iam
ser muito felizes. Havia casais que respondiam:
— Será? Estamos terminando agora!
O menino não se dava por vencido. Muito sério respondia:
— Não há grande amor sem problemas! Uma flor, uma rosa na despedida de
vocês...
Vencia sempre. Feliz, Lumbiá e o amigo Gunga depois riam do beijo babado do
homem e da mulher. Ele sabia também que não era só homem e mulher que se beijavam.
Havia os casais, em que a dupla era formada por semelhantes. Homem com homem. Mulher
com mulher. Esses casais não se beijavam em público. Às vezes faziam um carinho rápido nas
mãos do outro. Raramente compravam rosas. As mulheres se aventuravam mais. Compravam
e ofertavam para a amiga presente. Lumbiá gostava muito de aproximar dos casais
semelhantes. Gostava da troca carinhosa que ele às vezes assistia entre esses pares. O beijo
era depositado nas mãos, que escorregavam levemente na direção da palma da outra pessoa,
ou substituído pela leveza de uma flor-sorriso que se abria na intenção de um lábio a outro.
220

Lumbiá tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria. Escolhia uma
mesa qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começava
chorando por safadeza, mas em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo, magoado
se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro para comover as pessoas,
tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se
confundia com a invenção do menino. E enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os
compradores, contava ora sobre a surra que havia levado da mãe, ora pela mercadoria que
estava ficando encalhada (e ele precisava retornar para casa com um bom resultado de venda),
ou ainda, pelo dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior...
E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo
realmente triste, tão triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração
menino.
Havia, porém, uma ocasião em que nada ameaçava os dias gozosos do menino: o
advento do Natal. A cidade se enfeitava com luzes que brotavam de todos os cantos.
Lâmpadas como fogueiras incendiárias ateavam um falso fogo iluminário sobre as fachadas
dos prédios, sobre as árvores, das ruas, dos jardins públicos e privados. Entretanto, não era
esse pirotécnico espetáculo que seduzia Lumbiá. Nem o personagem Papai Noel gordo e feliz,
com o seu sorriso envidraçado dentro das vitrines. Das árvores de natal, não gostava dos
pinheiros iluminados e coloridos. Dos presentes expostos nas vitrines, principalmente os
embrulhados, tinha vontade de apanhá-los e amassá-los. Ficava irritado, sabia que tudo eram
caixas vazias. Só havia uma coisa que o menino gostava no Natal. Um único signo: o presépio
com a imagem de Deus-menino. Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade
com a mãe e mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena natalina.
Gostava da família, da pobreza de todos, parecia a sua. Da imagem-mulher que era a mãe, da
imagem-homem que era o pai. A casinha simples e a caminha de palha do Deusmenino,
pobre, só faltava ser negro como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando o presépio, buscando e
encontrando o Deus-menino.
Houve um ano em que uma notícia correu: a loja Casarão Iluminado, uma
tradicional casa especializada em vendas de iluminárias, abajures, etc., ia armar um presépio
no interior da loja. Seria o maior e o mais bonito da cidade. E foi. Lâmpadas piscas-piscas,
estrelas pendentes por fios finos e quase invisíveis iluminavam magicamente a paisagem,
como se fosse um céu aberto sobre a manjedoura em que estava o Deus-menino. Animais
pastavam mansamente sobre a relva, rios amenos cortavam os vales, que circundavam a
cabana natalina. Os Reis Magos, os dois brancos, caminhavam um pouco abaixo da estrela-
221

guia. O Rei Negro, aquele que parecia com o tio de Lumbiá, caminhava sozinho um pouco
atrás, mas com passos de quem tinha a certeza de que iria chegar. A mãe e o pai de Jesus
piedosos resguardando o Deus-menino. Toda a cidade comentava a beleza e a semelhança do
presépio com a cena bíblica que narra o nascimento de Jesus. Lumbiá atento ouvia todos os
comentários e aguardava a oportunidade de visitar a Belém instalada no interior da loja
Casarão Iluminado. Havia, entretanto um problema. Estava proibida a entrada de crianças
sozinhas e para ele era quase impossível esperar pelo dia em que a mãe pudesse levá-lo,
acompanhá-lo até lá. Na semana anterior Gunga, Beba, Beta, e outros já haviam feito algumas
tentativas vãs.
Enquanto isso, o tempo corria. Lumbiá já tinha visto todos os presépios das
redondezas. Em cada um seu coração batia descompassadamente quando fitava o Deus
menino. Tinha feito várias tentativas de entrar no Casarão, o vigilante vinha e o enxotava. O
menino não desistia, ficava rondando de longe, adivinhando a beleza de tudo, do outro lado da
calçada. Era um entra-e-sai intenso. A televisão e um jornal tinham falado sobre o presépio,
que tinha sido feito por um grande artista.
O dia caminhava para seis da tarde, vinte e três de dezembro. O menino aguardava
ali desde as nove da manhã. Em sua viagem costumeira do subúrbio para o centro da cidade,
se distanciou de Gunga e da irmã. Tinha flores nas mãos, rosas amarelas. Havia combinado
com o amigo que venderiam flores, mas aquelas ele daria para o Menino Jesus e também
poria algumas nas mãos do Rei Baltasar. Fazia frio, muito frio, era um dia chuvoso. Tinha a
roupa colada sobre o frágil corpo a tremer de febre. A loja já estava para fechar. As vendas
tinham cessado desde o dia anterior. O Casarão Iluminado abrira naquele dia só para visitação
pública ao presépio. Precisava chegar até lá. Como? Já tinha feito várias tentativas, sendo
sempre expulso pelo segurança. Ia arriscar novamente. Em dado momento aproximou-se
devagar. Ninguém na porta. Mordeu os lábios, pisou leve e, apressado, entrou.
Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como
ele. Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza e solidão.
Lumbiá olhava. De braços abertos, o Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali. Estava
nu, sentia frio. Lumbiá tocou na imagem, à sua semelhança. Deus-menino, Deus-menino!
Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-
menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na
rua.
O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados,
massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!
222

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

É importante que ao final de cada círculo os alunos integrantes das equipes


façam uma autoavaliação a respeito da participação durante o processo de leitura e
discussão do texto.

ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluídas as apresentações sobre o conto, você pode sugerir três opções de


atividades, as quais servirão de registro interpretativo e ajudarão a ampliar as leituras dos
alunos. As atividades podem ser realizadas em equipes formadas de acordo com as afinidades.

Primeira opção:

Elaborar uma notícia em que seja relatada a história de Lumbiá e/ou morte do
menino.

Segunda opção:

Baseando-se na história de Lumbiá, produza um poema que trate das


temáticas abordadas no conto (vulnerabilidade social e/ou trabalho infantil).

Terceira opção:

Produza um desenho ou uma campanha de combate ao trabalho infantil.


223

OFICINA IX

Apresentação do círculo de leitura sobre o conto “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo.

Objetivos
 Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
 Propiciar a leitura e discussão do conto ―Olhos d‘água‖, de Conceição Evaristo a partir
da metodologia dos círculos de leitura
 Refletir sobre a história de lutas das mulheres negras.
 Refletir a respeito do papel de mãe, relações familiares, memória e ancestralidade
suscitadas pelo conto.

Recursos
 Cópias do conto ―Olhos D‘água‖
 Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)

Duração prevista:
 2 aulas

Professor (a),

Assim como na oficina anterior, antes das equipes iniciarem suas apresentações,
você pode entregar uma cópia do conto a ser trabalhado na aula para que o restante da turma
faça uma primeira leitura silenciosa. Acreditamos que a partir desta leitura a turma passa a
conhecer o conto, até então lido apenas por duas equipes, e participa mais ativamente das
apresentações, colaborando assim, para o surgimento de novas discussões.
Organize a sala em círculo para que as equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois muitas vezes nossos alunos
precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.
224

Olhos d’água
Conceição Evaristo

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de


minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto
da nova casa em eu que estava morando e não conseguia me lembrar de como havia chegado
até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os olhos de minha
mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro,
eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha
sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa
pergunta carregada de um tom acusativo. Então eu não sabia de que cor eram os olhos de
minha mãe?
Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias
dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha
mãe, aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também
sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento,
entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu
achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela.
Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... da verruga que se perdia no meio uma
cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava
quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias e se
tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no
couro cabeludo dela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs,
aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós
rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas escorrerem. Mas de que
cor eram os olhos dela?
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela
havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até
bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes
dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha
própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia
cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As
labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do
vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a
225

salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela
mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe
era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira.
Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso
barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E
diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça
para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só
ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha
mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a
nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se
sentava na soleira da porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu.
Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu,
colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós.
Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se
esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da
cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de prantos
balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E
eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me
causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de
minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia!
Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu
estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida
para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca
esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de
minhas tias e de todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava
cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida
com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas
Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os
olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade
226

em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para
nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um
ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe. E
quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os
olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas,
que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d‘água. Águas
de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida
apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas
se misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos
olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os
olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós
duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho,
como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a
revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha
filha falou:
— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluídas as apresentações sobre o conto, você pode sugerir três opções de


atividades, as quais servirão de registro interpretativo e ajudarão a ampliar as leituras dos
alunos. As atividades podem ser realizadas em equipes formadas de acordo com as afinidades.
227

Primeira opção:

Reconte a narrativa a partir da perspectiva de outra personagem. Para isso,


você poderá fazer todas as modificações que achar necessárias no texto original.

Segunda opção:

Resgate em suas memórias fatos ou momentos marcantes e que são ligados a


mulheres importantes de suas vidas. Faça um registro dessas memórias através de
textos e/ou imagens para a construção de um mural.

Terceira opção:

Produza um poema que traga como figura central a mulher negra, sua história
de lutas e sua representatividade.

OFICINA X

Apresentação do círculo de leitura sobre o conto “Zaíta esqueceu de guardar os


brinquedos”, de Conceição Evaristo.

Objetivos
 Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
 Propiciar a leitura e discussão do conto ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ de
Conceição Evaristo a partir da metodologia dos círculos de leitura
 Refletir sobre as condições de vida dos afrodescendentes em nosso país.
 Discutir a respeito das desigualdades sociais e as diversas formas de violência
presentes em nossa sociedade.
228

Recursos
 Cópias do conto ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖
 Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)

Duração prevista:
 2 aulas

Professor (a),

Assim como nas oficinas anteriores, antes das equipes iniciarem suas
apresentações, você pode entregar uma cópia do conto a ser trabalhado na aula para que o
restante da turma faça uma primeira leitura silenciosa. Organize a sala em círculo para que as
equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois, muitas vezes, nossos
alunos precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.

Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos


Conceição Evaristo

Zaíta espalhou as figurinhas no chão. Olhou demoradamente para cada uma delas.
Faltava uma, a mais bonita, a que retratava uma garotinha carregando uma braçada de flores.
Um doce perfume parecia exalar da figurinha ajudando a compor o minúsculo quadro. A irmã
de Zaíta há muito tempo desejava o desenho e vivia propondo uma troca. Zaíta não aceitava.
A outra, com certeza, pensou Zaíta, havia apanhado a figurinha-flor. E agora, como fazer?
Não poderia falar com a mãe. Sabia no que daria a reclamação. A mãe ficaria com raiva e
bateria nas duas. Depois rasgaria todas as outras figurinhas, acabando de vez com a coleção.
A menina recolheu tudo meio sem graça. Levantou-se e foi lá no outro cômodo da casa
voltando com uma caixa de papelão. Passou pela mãe, que chegava com algumas sacolas do
supermercado
A mãe de Zaíta estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais
velhos já estavam homens. O primeiro estava no Exército. Queria seguir carreira. O segundo
também. As meninas vieram muito tempo depois, quando Benícia pensava que nem
engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A
229

diferença estava na maneira de falar. Zaíta falava baixo e lento. Naíta, alto e rápido. Zaíta
tinha nos modos um quê de doçura, de mistérios e de sofrimento.
Zaíta virou a caixa, e os brinquedos se esparramaram, fazendo barulho. Bonecas
incompletas, chapinhas de garrafas, latinhas vazias, caixas e palitos de fósforos usados.
Mexeu em tudo, sem se deter em brinquedo algum. Buscava insistentemente a figurinha,
embora soubesse que não a encontraria ali. No dia anterior, havia recusado fazer a troca mais
uma vez. A irmã oferecia pela figurinha aquela boneca negra, a que só faltava um braço e que
era tão bonita. Dava ainda os dois pedaços de lápis cera, um vermelho e um amarelo, que a
professora lhe dera. Ela não quis. Brigaram. Zaíta chorou. À noite dormiu com a figurinha-
flor embaixo do travesseiro. De manhã foram para escola. Como o quadrinho da menina-flor
tinha sumido?
Zaíta olhou os brinquedos largados no chão e se lembrou da recomendação da
mãe. Ela ficava brava quando isto acontecia. Batia nas meninas, reclamava do barraco
pequeno, da vida pobre, dos filhos, principalmente do segundo.
Um dia Zaíta viu que o irmão, o segundo, tinha os olhos aflitos. Notou ainda
quando ele pegou uma arma debaixo da poltrona em que dormia e saiu apressado de casa.
Assim que a mãe chegou, Zaíta perguntou-lhe porque o irmão estava tão aflito e se a arma era
de verdade. A mãe chamou a outra menina e perguntou-lhe se ela tinha visto alguma coisa.
Não, Naíta não tinha visto nada. Benícia recomendou então o silêncio. Que não perguntassem
nada ao irmão. Zaíta percebeu que a voz da mãe tremia um pouco. De noite julgou ouvir
alguns estampidos de bala ali por perto. Logo depois escutou os passos apressados do irmão
que entrava. Ela se achegou mais para junto da mãe. A irmã dormia. A mãe se mexeu na cama
várias vezes; em um dado momento sentou assustada, depois se deitou novamente cobrindo-se
toda. O calor dos corpos da mãe e da irmã lhe davam certo conforto. Entretanto, não
conseguiu dormir mais, tinha medo, muito medo, e a mãe lhe pareceu ter passado a noite toda
acordada.
Zaíta levantou e saiu, deixando os brinquedos espalhados, ignorando as
recomendações da mãe. Alguns ficaram descuidadosamente expostos pelo caminho. A linda
boneca negra, com seu único braço aberto, parecia sorrir desamparadamente feliz. A menina
estava pouco se importando com os tapas que pudesse receber. Queria apenas encontrar a
figurinha-flor que tinha sumido. Procurou pela irmã nos fundos da casa e, desapontada, só
encontrou o vazio.
A mãe ainda arrumava os poucos mantimentos no velho armário de madeira. Zaíta
teve medo de olhar para ela. Saiu sem a mãe perceber e bateu no barraco de Dona Fiinha, ao
230

lado. A irmã não estava ali também. Onde estava Naíta? Onde ela havia se metido? Zaíta saiu
de casa em casa por todo o beco, perguntando pela irmã. Ninguém sabia responder. A cada
ausência de informação sua mágoa crescia. Foi andando junto com a desesperança. Tinha o
pressentimento de que a figurinha-flor não existia mais.
O irmão de Zaíta, o que não estava no Exército, mas queria seguir carreira,
buscava outra forma e local de poder. Tinha um querer bem forte dentro do peito. Queria uma
vida que valesse a pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Via os
seus trabalharem e acumularem miséria no dia a dia. O pai dele e do irmão mais velho gastava
seu pouco tempo de vida comendo poeira de tijolos, areia, cimento e cal nas construções civis.
O pai das gêmeas, que durante anos morou com sua mãe, trabalhava muito e nunca trazia o
bolso cheio. O moço via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio adormecidos,
saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas. Queria,
pois, arrumar a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam de outro modo e ficavam
ricos. Era só insistir, só ter coragem. Só dominar o medo e ir adiante. Desde pequeno ele
vinha acumulando experiências. Novo, criança ainda, a mãe nem desconfiava e ele já traçava
o seu caminho. Corria ágil pelos becos, colhia recados, entregava encomendas, e
displicentemente assobiava uma música infantil, som indicativo de que os homens estavam
chegando
Zaíta andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. Algumas pessoas
conhecidas perguntavam o porquê de ela estar tão longe de casa. A menina se lembrou da mãe
e da raiva que ela devia estar. Ia apanhar muito quando voltasse. Não se importou com aquela
lembrança. Naquele momento, ela buscava na memória como o desenho da menina-flor tinha
nascido em sua coleção. A figurinha podia ter vindo em um daqueles envelopes que o irmão,
o segundo, às vezes comprava para ela. Quem sabe viera no meio das duplicatas que a mãe
ganhava da filha da patroa, ou ainda fruto de alguma troca que ela fizera na escola? Mas podia
ser também parte de um segredo que ela não havia contado nem para sua igual, a Naíta. A
figurinha podia ser uma daquelas dez, que ela havia comprado um dia com uma moeda que
tirara da mãe, sem que ela percebesse. Zaíta por mais que se esforçasse retomando as
lembranças, não conseguia atinar como a figurinha-flor tinha se tornado sua.
A mãe de Zaíta guardou rapidamente os poucos mantimentos. Teve a sensação de
ter perdido algum dinheiro no supermercado. Impossível, levara a metade do salário e não
conseguiria comprar quase nada. Estava cansada, mas tinha de aumentar o ganho. Ia arranjar
trabalho para os finais de semana. O primeiro filho nunca pedia dinheiro, mas ela sabia que
ele precisava. E sem que o segundo soubesse, Benícia colocava uns trocadinhos debaixo do
231

travesseiro para ele, quando ele vinha do quartel. Havia também o aluguel, a taxa de água e de
luz. Havia ainda a irmã com os filhos pequenos e com o homem que ganhava tão pouco.
A mãe de Zaíta, às vezes, chegava a pensar que o segundo filho tinha razão. Vinha
a vontade de aceitar o dinheiro que ele oferecia sempre, mas não queria compactuar com a
escolha dele. Orgulhosamente, não aceitava que ele contribuísse com nada em casa. Estava,
porém, chegando à conclusão de que trabalho como o dela não resolvia nada. Mas o que
fazer? Se parasse, a fome viria mais rápida e voraz ainda. Benícia, ao dar por falta das
meninas, interrompeu os pensamentos. Não ouvia as vozes das duas há algum tempo. Deviam
estar metidas em alguma arte. Sentiu certo temor. Veio andando aflita da cozinha e tropeçou
nos brinquedos esparramados pelo chão. A preocupação anterior se transformou em raiva.
Que merda! Todos os dias tinha que falar a mesma coisa! Onde as duas haviam se metido?
Por que tinham deixado tudo espalhado? Apanhou a boneca negra, a mais bonitinha, a que só
faltava um braço, e arrancou o outro, depois a cabeça e as pernas. Em poucos minutos a
boneca estava destruída; cabelos arrancados e olhos vazados. A outra menina, Naíta, que
estava no barraco ao lado, escutando os berros da mãe, voltou aflita. Foi recebida com tapas e
safanões. Saiu chorando para procurar Zaíta. Tinha duas tristezas para contar a sua irmã igual.
Havia perdido uma coisa que Zaíta gostava muito. De manhã tinha apanhado a figurinha
debaixo do travesseiro. Queria sentir o perfume de perto. E agora não sabia mais onde estava
a flor... A outra coisa era que a mamãe estava brava porque os brinquedos estavam largados
no chão e de raiva ela havia arrebentado aquela bonequinha negra, a mais linda...
Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e a
qualquer hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seus espaços e
freguesias. Havia ainda o confronto constante com os policiais que invadiam a área. O irmão
de Zaíta liderava o grupo mais novo, entretanto, o mais armado. A área perto de sua casa ele
queria só para si. O barulho seco de balas se misturava à algazarra infantil. As crianças
obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas às vezes se distraíam. E,
então, não experimentavam somente as balas adocicadas, suaves, que derretiam na boca, mas
ainda aquelas que lhes dissolviam a vida.
Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Uma
criança, antes de fechar violentamente a janela, fez um sinal para que ela entrasse rápido em
um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença da menina, imitou o gesto
feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela procurava, entretanto, somente a sua
figurinha-flor... Em meio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como
flores malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da
232

menina. Daí um minuto tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becos silenciosos,
cegos e mudos. Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão.
A outra menina seguia aflita à procura da irmã para lhe falar da figurinha-flor
desaparecida. Como falar também da bonequinha negra destruída?
Os moradores do beco onde havia acontecido o tiroteio ignoravam os outros
corpos e recolhiam só o da menina. Naíta demorou um pouco para entender o que havia
acontecido. E assim que se aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, o espanto e o
medo:
— Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos!
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.

ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO

Concluídas as apresentações sobre o conto, você pode sugerir duas opções de


atividades, as quais servirão de registro interpretativo e ajudarão a ampliar as leituras dos
alunos.
As atividades podem ser realizadas em equipes formadas de acordo com as
afinidades.
Primeira opção:

Produza uma paródia ou um rap com as temáticas do conto (desigualdades


sociais, violência, vulnerabilidade social, crianças vítimas de violências).

Segunda opção:

Produza um acróstico com palavras que se liguem ao conto e sua temática.

PALAVRA FINAL

Quando formulamos a proposta didática apresentada neste caderno, procuramos


priorizar a leitura literária e valorizar o protagonismo em sala de aula, tanto do docente como
233

dos estudantes. Em todas as etapas desta proposta de leitura literária o professor precisa atuar
como mediador e incentivador no processo de leitura do texto literário; enquanto que aos
alunos cabe a tarefa de assumir um papel ativo na construção de sentidos do texto e,
consequentemente, na construção de seu próprio conhecimento.
Embora esta proposta tenha sido aplicada em uma turma de nono ano e destine-se
em primeiro plano a esta série, podemos desenvolvê-la em turmas de 6º, 7º ou 8º ano do
Ensino Fundamental, uma vez que o aprendizado de estratégias e habilidades de leitura do
texto literário deve ser desenvolvido em todas as séries. Para tanto, é fundamental que o
professor, ao adotar nossas sugestões de atividade, faça os devidos ajustes ao seu contexto de
ensino.
Por fim, esperamos que nossa proposta de letramento literário com contos
africanos e afro-brasileiros possa render muitas discussões e reflexões sobre questões
importantes de nosso cotidiano e assim, contribua para a formação de leitores críticos e
conscientes.

SUGESTÕES DE LEITURA

AMANCIO, I. M. C.; JORGE, M. L. S.; GOMES, N. L. Literaturas africanas e afro-


brasileiras na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

KOCH, I.V.; ELIAS, V.M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo, Contexto,
2006.

COSSON, R. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2017.

______. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
234

ANEXOS
235

ANEXO A – Música ―Eu sou de lá‖

Eu sou de lá

Dois africanos

Eles falam o que eles querem


Eles escrevem o que eles querem sobre África
Você tem que saber a verdade, cara,
Dois Africanos,
Benin, Togo, let's go, Brasil,
Salute

A TV fala duma vida que não conhece


Ela é mais difícil que ela te parece.
Na tv, atrás das câmeras, é fácil contar
Coisas ruins sobre a terra mãe África.
A tv gosta de ser olhada sem olhar ninguém
Sem identidade, você é só alguém.
O mundo adora mostrar a sua pobreza
Mas pra mim só seu nome é já uma riqueza.
África, terra onde antes da tecnologia
Pessoas se comunicavam e se falavam.
No passado, as guerras de tribos
Mataram menos que aquelas de hoje
Que os poderosos estão criando pra poder roubar no silêncio.
Se quer entender tem que procurar desde o início
O mundo inteiro vê cada vez
Que minha África, ela só percebe

Refrão:
Eu sou de lá, sou da África
Sou filho de lá, filho da África
Cada sonho tem um preço
236

O meu me fez deixar minha terra, o meu lindo reino.

O mundo nunca vê quando a África também dá


Pra eles é só uma terra sem boa vida.
A força de vencer na cabeça, tenho certeza
De mudar tudo isso um dia, só querer e sonhar.
Antes de sonhar tenho que dormir
Mas a luta não me deixa o tempo, cara, de dormir.
Mesmo o mar algumas vezes tá com sede.
Quem gosta da vida então odeia a fome.
Eu sou de lá, sou da África
Sou filho de lá, filho da África.
Liberdade, coragem e vontade no pensamento
Sou a única chave do caminho do meu sucesso.
Eu sou de lá, sou da África
Sou filho de lá, filho da África.
Você não sabe nada sobre minha história
Só deixa te contar o que foi minha vida.

Refrão

Calor de um continente
Trago lembranças pesadas na mente.
Se diz, que liberdade é aceitar
As realidades, mas será?
O que sobe tem que descer
Mas quando é que vamos subir?
Temos que aprender.
A juventude sabe agora
Tiveram o tempo de entender
Novo plano, nova era
Fala pra eles: ninguém vai nos ajudar
Temos que conseguir sozinhos na luta.
Nada é fácil nessa vida tem que saber
237

Quantos sacrifícios foram feitos


Para que hoje tenha orgulho no peito.
Mas a África não fixa os preços dos produtos brutos

Refrão

Isso pra Benin, Togo, Cameroun, Congo, Mike Amisi, KabweKasindi, Chris
Tsitsimbi, Becacoto, Bubacar Embalo, Katedraticous, Guinée Bissau, Cabo verde,
Angola,
África!
Disponível em: https://letrasweb.com.br/dois-africanos/eu-sou-de-la.html. Acesso em: 21 agos. 2018.
238

ANEXO B – Poema de Conceição Evaristo

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó


ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.

A voz de minha filha


recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
239

se fará ouvir a ressonância


O eco da vida-liberdade.
EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. p. 10-11.
240

ANEXO C – Termo de assentimento para crianças e adolescentes

TERMO DE ASSENTIMENTO A ESTUDANTES

Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa “LITERATURA


AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA
PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO”. O objetivo desse estudo é formar
leitores competentes através de atividades de leitura com contos africanos e afro-brasileiros.
Caso você autorize, você irá participar de doze oficinas de leitura literária em que
serão realizadas leituras e atividades de interpretação sobre contos africanos e afro-brasileiros.
As atividades serão realizadas no período de outubro a dezembro de 2018.
A sua participação não é obrigatória e, a qualquer momento, poderá desistir da
participação. Tal recusa não trará prejuízos em sua relação com a pesquisadora ou com a
Escola Municipal Ismael Pordeus. Tudo foi planejado para minimizar os riscos de sua
participação, porém se você sentir desconforto com as atividades, dificuldade ou desinteresse
poderá interromper a participação e, se houver interesse, conversar com a pesquisadora sobre
o assunto.
Você não receberá remuneração pela participação. Em estudos parecidos com
esse, os participantes gostaram de participar e a sua participação poderá contribuir para
melhorar seu desempenho na leitura e interpretação de textos. As suas produções não serão
divulgadas de forma a possibilitar a sua identificação. Além disso, você está recebendo uma
cópia deste termo, onde consta o telefone da pesquisadora principal, podendo tirar dúvidas
agora ou a qualquer momento.

Pesquisadora Responsável: Raquel de Souza Silva


Telefones para contato: (85) 986031418
E-mail: rsskelzinha@yahoo.com.br
Instituição: Universidade Estadual do Ceará

Eu, ________________________________________________________ declaro que entendi


os objetivos, riscos e benefícios da minha participação, sendo que:
( ) aceito participar
( ) não aceito participar
241

Fortaleza, _____ de ______________de 20____

_________________________________________
Assinatura

A pesquisadora me informou que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em


Pesquisa em Seres Humanos da UECE que funciona na Av. Silas Munguba, 1700, Campus do
Itaperi, Fortaleza-CE, telefone (85)3101-9890, email cep@uece.br. Se necessário, você
poderá entrar em contato com esse Comitê o qual tem como objetivo assegurar a ética na
realização das pesquisas com seres humanos.
242

ANEXO D – Termo de consentimento livre e esclarecido para menores de idade

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA MENORES DE


IDADE

Caro responsável / Representante legal,


Seu filho (a) ______________________________________________________
está sendo convidado(a) a participar como voluntário na pesquisa intitulada “LITERATURA
AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA
PROPOSTA DE LETRAMENTO LITERÁRIO”, que se refere a uma pesquisa de
Mestrado.
O objetivo desse estudo é formar leitores competentes através de atividades de
leitura com contos africanos e afro-brasileiros. Os resultados contribuirão para mostrar se as
práticas de leitura literária com os contos africanos e afro-brasileiros contribuem
positivamente para o desenvolvimento da competência leitora dos alunos e para a formação de
leitores mais críticos em relação à diversidade de manifestações artísticas e literárias. As
atividades serão realizadas no período de outubro a dezembro de 2018.
A participação dele (a) consiste em:
 Participar de doze oficinas de leitura literária;
 Realizar a leitura dos contos apresentados e participar das discussões sobre os
textos;
 Registrar por escrito suas impressões a respeito dos textos lidos e as atividades
de interpretação sistematizadas pela professora/pesquisadora.
Garante-se que a pesquisa não trará prejuízos na qualidade e condição de vida,
estudo e/ou trabalho dos participantes. Tudo foi planejado para minimizar os riscos da
participação dele (a), porém se ele(a) sentir desconforto com as atividades, dificuldade ou
desinteresse poderá interromper a participação e, se houver interesse, conversar com o
pesquisador sobre o assunto. O nome do seu (ua) filho (a), assim como todos os dados que
lhe identifiquem serão mantidos sob sigilo em todas as fases da pesquisa, o que garante seu
anonimato e a divulgação será feita de forma a não identificar os voluntários. Não será
cobrado nada e não haverá gastos.
243

Como benefício dessa pesquisa é esperado que o participante desenvolva sua


competência leitora, tornando-se apto a interpretar diferentes textos, bem como o mundo ao
seu redor.
A participação dele (a) não é obrigatória e, a qualquer momento, poderá desistir.
Tal recusa não trará prejuízos em sua relação com o pesquisador ou com a instituição em que
ele estuda.
Desde já, agradecemos sua atenção e participação e colocamo-nos à disposição
para maiores informações.
Você ficará com uma cópia deste Termo e, em caso de dúvidas ou
esclarecimentos sobre esta pesquisa, você poderá entrar em contato com o pesquisador
principal:

Pesquisador Responsável: Raquel de Souza Silva


Telefones para contato: (85) 986031418
E-mail: rsskelzinha@yahoo.com.br
Instituição: Universidade Estadual do Ceará

Eu,_______________________________________________________, portador do RG nº
_____________________ declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da
participação do meu filho(a) ___________________________________________________,
portanto
( ) aceito que ele(a) participe ( ) não aceito que ele(a) participe

Fortaleza, _____ de ______________de 20____

________________________________________________________
(Assinatura do responsável ou representante legal)

O pesquisador me informou que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em
Seres Humanos da UECE que funciona na Av. Silas Munguba, 1700, Campus do Itaperi,
Fortaleza-CE, telefone (85)3101-9890, email cep@uece.br. Se necessário, você poderá entrar
em contato com esse Comitê o qual tem como objetivo assegurar a ética na realização das
pesquisas com seres humanos.
244

Eu, _______________________________________________________________, obtive de


forma apropriada e voluntária o Consentimento livre esclarecido do sujeito da pesquisa ou
representante legal para a participação da pesquisa.

___________________________________________________
Assinatura da pesquisadora
245

ANEXO E – Parecer consubstanciado do CEP


246
247

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