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CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS
FORTALEZA – CEARÁ
2019
RAQUEL DE SOUZA SILVA
FORTALEZA – CEARÁ
2019
Aos meus pais, meus maiores exemplos, pelo
amor, incentivo e confiança. À minha filha,
Maria Cecília, por ser meu maior presente. Ao
meu esposo, Luzardo, por estar sempre ao meu
lado. À minha família, por acreditar em mim.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por ter me dado o dom da vida, a saúde e a esperança que
me permitiram seguir em frente quando a batalha parecia difícil demais.
À minha filha, Maria Cecília, por fazer meus dias mais felizes e por suportar minhas
ausências.
Ao meu esposo, por ser meu maior incentivador, por estar presente em todos os momentos e
por ter sempre acreditado que daria certo.
À minha tia Joana, pelo amor de mãe que sempre oferta a mim e à minha filha.
À minha orientadora, professora Dra. Jaquelânia Aristides Pereira, por depositar em mim a
confiança necessária que me fez crescer como pesquisadora.
Às professoras da banca examinadora, pela leitura e discussão deste trabalho.
Aos colegas de turma do Mestrado Profissional em Letras, pelo apoio, pelas conversas e
companheirismo.
Às minhas amigas Amanda Tamires e Carla Alves, pelas vivências compartilhadas e pelo
incentivo durante o mestrado.
À minha querida amiga e companheira de trabalho Flávia, pelos ouvidos sempre disponíveis
para meus desabafos, pelas orientações e por compartilhar comigo suas experiências.
Ao núcleo gestor da escola em que trabalho, ao diretor Élcio e às coordenadoras e amigas,
Elisa Guimarães, Luciana Monteiro e Débora Márcia, por reconhecerem meu esforço, por me
ajudarem a conciliar os horários de estudo com os do trabalho e me incentivarem a ir em
frente.
Aos colegas de trabalho, em especial ao Daniel e à Isabella, pelo incentivo e apoio.
A todos os participantes da pesquisa, pela disponibilidade e contribuições. Sem eles, este
trabalho não seria possível.
À Capes, pela bolsa de estudo que ajudou a financiar esse período de estudos.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta uma proposta interventiva de leitura literária para alunos de nono ano
do ensino fundamental. A pesquisa parte da necessidade de desenvolver o letramento literário
de jovens da educação básica com vistas à formação de leitores críticos. Para isso, foram
formuladas sequências didáticas de leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros, de
acordo com as metodologias da sequência básica do letramento literário e dos círculos de
leitura estruturados, propostos por Cosson (2016; 2017). Esperou-se com a leitura desses
contos formar leitores mais conscientes e críticos diante da realidade em que estão inseridos,
trabalhar o respeito frente à diversidade e contribuir para a desconstrução de estereótipos e
preconceitos ligados às diferenças étnico-raciais e de gênero. As discussões estão embasadas
em estudos dos seguintes autores: Koch & Elias (2006), Solé (1998), Lajolo (1991,2001),
Cosson (2016, 2017), Soares (2004), Cuti (2010), Munanga (2005), Duarte (2011) e Amâncio
(2008). Trata-se de uma pesquisa-ação de abordagem qualitativa. A coleta de dados se deu
pelo desenvolvimento de oficinas de leitura de textos literários, pela análise das atividades
registradas nos portfólios dos alunos e dos áudios gravados durante as discussões de cada
oficina, bem como pela aplicação de questionários e anotações do diário de bordo da
pesquisadora. Os dados analisados demonstram que o trabalho de leitura com o texto literário
africano e afro-brasileiro contribuiu para o desenvolvimento literário, assim como para a
discussão e amadurecimento das questões pertinentes às relações étnico-raciais e de gênero. É
possível afirmar também que os alunos puderam rever alguns de seus posicionamentos acerca
do outro, da realidade social em que vivem e das temáticas trabalhadas como, por exemplo,
discriminação racial, preconceito e violência contra a mulher.
This research presents an interventional proposal of literary reading for ninth grade students.
The research starts from the need to develop the literary literacy of young people of basic
education with a view to the formation of critical readers. For this, didactic sequences of
literary reading with African and Afro-Brazilian tales were formulated, according to the
methodologies of the basic sequence of literary literacy and structured reading circles,
proposed by Cosson (2016, 2017). It was hoped by reading these stories to train readers who
are more aware and critical of the reality in which they are inserted, to work towards respect
for diversity and to contribute to the deconstruction of stereotypes and prejudices related to
ethnic-racial and gender differences. The discussions are based on studies by the following
authors: Koch & Elias (2006), Solé (1998), Lajolo (1991, 2001), Cosson (2016, 2017), Soares
(2004), Cuti (2011) and Amâncio (2008). This is an action research with a qualitative
approach. The data collection was carried out by the development of reading workshops for
literary texts, the analysis of the activities recorded in the students' portfolios and the audios
recorded during the discussions of each workshop, as well as the application of questionnaires
and annotations of the researcher's logbook. The analyzed data show that the reading work
with the African and Afro-Brazilian literary text contributed to the literary development, as
well as to the discussion and maturation of the questions pertinent to ethnic-racial relations
and gender. It is also possible to affirm that the students were able to review some of their
positions about the other, about the social reality in which they live, and about the topics they
worked on, such as racial discrimination, prejudice and violence against women.
Keywords: Basic sequence. Reading circles. African and Afro-Brazilian literature. Literary
literacy.
LISTA DE FIGURAS
1 INTRODUÇÃO...................................................................................... 14
2 ENSINO DE LEITURA, LETRAMENTO LITERÁRIO E
FORMAÇÃO DE LEITORES NA ESCOLA.............................. 22
2.1 LEITURA NA ESCOLA.......................................................................... 22
2.2 LEITURA LITERÁRIA, LETRAMENTO LITERÁRIO E A
FORMAÇÃO DO LEITOR...................................................................... 25
2.2.1 Sequência básica de letramento............................................................. 29
2.2.2 Círculo de leitura literária..................................................................... 32
3 DIVERSIDADE E LITERATURA........................................................ 35
3.1 LEI Nº 10.639/03 E A PRÁTICA PEDAGÓGICA................................... 35
3.2 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA EM SALA DE
AULA........................................................................................................ 38
3.3 RELAÇÕES DE GÊNERO NOS CONTOS DE CONCEIÇÃO
EVARISTO................................................................................................ 41
4 METODOLOGIA.................................................................................... 45
4.1 TIPO DE PESQUISA................................................................................. 45
4.2 CONTEXTO DA PESQUISA.................................................................... 46
4.3 PARTICIPANTES...................................................................................... 46
4.4 DESCRIÇÃO DO CORPUS LITERÁRIO................................................. 47
4.5 PROCEDIMENTOS................................................................................... 49
4.6 INSTRUMENTOS..............................................................................,....... 51
4.6.1 Questionário inicial – Perfil do leitor...................................................... 51
4.6.2 Questionário final...................................................................................... 51
5 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS.............................................. 52
5.1 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO.......... 52
5.1.1 Primeira etapa: Oficina de apresentação................................................ 52
5.1.2 Segunda etapa: Sequências básicas com contos africanos...................... 58
5.1.2.1 Sequência básica I – Conto ―A fronteira de asfalto‖ ................................... 58
5.1.2.2 Sequência básica II – Conto ―As mãos dos pretos‖ ..................................... 72
5.1.2.3 Sequência básica III – Conto ―A saia almarrotada‖ .................................... 85
5.1.3 Terceira etapa: O contato com a literatura afro-brasileira.................... 94
5.1.3.1 Sequência básica IV – Conto ―Maria‖ ......................................................... 95
5.1.4 Quarta etapa: Círculo de leitura literária – Conto “O cego
Estrelinho”................................................................................................... 108
5.1.5 Quinta etapa: Círculos de leitura.............................................................. 111
5.1.5.1 Primeira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Lumbiá‖ ................. 112
5.1.5.2 Segunda apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Olhos D‘água‖
...................................................................................................................... 123
5.1.5.3 Terceira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Zaíta esqueceu de
guardar os brinquedos‖................................................................................. 132
5.1.6 Sexta etapa: Avaliação................................................................................ 143
5.2 ANÁLISE DOS QUESTIONÁRIOS............................................................ 144
5.2.1 Questionário inicial – Perfil do leitor........................................................ 145
5.2.2 Questionário de avaliação final.................................................................. 154
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 161
REFERÊNCIAS......................................................................................... 163
APÊNDICES............................................................................................... 167
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO INICIAL – PERFIL DO LEITOR....... 168
APÊNDICE B - QUESTIONÁRIO FINAL................................................. 170
APÊNDICE C - MANUAL DIDÁTICO...................................................... 172
ANEXOS...................................................................................................... 234
ANEXO A – MÚSICA ―EU SOU DE LÁ‖.................................................. 235
ANEXO B – POEMA DE CONCEIÇÃO EVARISTO................................ 238
ANEXO C – TERMO DE ASSENTIMENTO PARA CRIANÇAS E
ADOLESCENTES........................................................................................ 240
ANEXO D – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO PARA MENORES DE IDADE...................................... 242
ANEXO E – PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP....................... 245
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1 INTRODUÇÃO
do conhecimento adquirido em novas situações. Dessa forma, propomos com esta pesquisa
desenvolver o letramento literário de jovens de uma turma de nono ano do ensino
fundamental de uma escola da rede pública municipal de Fortaleza-Ce através de práticas de
leitura literária com contos africanos e afro-brasileiros.
De acordo com Souza; Cosson (2011), o letramento literário é um tipo de
letramento singular porque é capaz de conduzir ao domínio da palavra a partir dela mesma e,
principalmente, porque cabe à literatura, uma vez que esta ocupa um lugar único em relação à
linguagem, ―[...] tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em
palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas‖ (COSSON, 2016, p.17).
Dessa forma, o letramento literário não é somente adquirir habilidades para ler textos
literários, mas também desenvolver a competência de apropriar-se da palavra estética,
interpretando-a para que seja capaz de produzir significados e, assim, compreender e
ressignificar os textos. Nessa perspectiva, o leitor ultrapassa as linhas do texto, num ―processo
de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos‖ (PAULINO; COSSON,
2009, p. 67).
Cosson (2016) defende que a construção de uma comunidade de leitores é o
objetivo maior do letramento literário na escola. No entanto, para o autor, a literatura tem sido
tratada apenas como um apêndice da disciplina de Língua Portuguesa e a cada dia temos
vivenciado a ―falência do ensino da literatura‖ (COSSON, 2016, p.23). Isso porque, nas
escolas brasileiras, o trabalho não prioriza a leitura literária como fonte de descobertas e
construção de sujeitos críticos, pois as atividades desenvolvidas com o texto literário oscilam
entre ―a exigência de domínio de informações sobre a literatura e o imperativo de que o
importante é que o aluno leia, não importando bem o que, pois a leitura é uma viagem, ou
seja, mera fruição‖ (COSSON, 2016, p.22).
Muitas vezes, o trabalho com literatura na educação básica é guiado apenas pelo
livro didático, resumindo-se à leitura de textos fragmentados e atividades de interpretação
superficiais e mecanizadas que restringem a participação do aluno. Outras vezes,
principalmente no ensino médio, o ensino de literatura se restringe ao estudo da história das
escolas literárias com o levantamento de suas características e da biografia de seus escritores
mais conhecidos. Em relação ao ensino fundamental a situação piora, pois a literatura não
figura como componente curricular específico e fica a cargo do professor de língua
portuguesa delimitar como será sua abordagem de ensino dentro da carga horária da disciplina
Língua Portuguesa.
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que tem o português como língua oficial, ou seja, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-
Bissau, Guiné Equatorial e São Tome e Príncipe tem sua própria história de colonização, suas
características sociais, culturais e étnicas que reverberam na produção de suas literaturas. Ao
levarmos essas literaturas para sala de aula os alunos têm a oportunidade de conhecerem as
diferentes manifestações do modo como o povo africano vê o mundo, valorizando as culturas
desses povos e contribuindo para a desconstrução de antigos estereótipos sobre o negro e os
africanos.
A literatura afro-brasileira também precisa ser trabalhada de forma mais efetiva
em sala de aula, pois o contato dos alunos com essas obras ainda é bastante limitado, uma vez
que, na maioria das vezes, essa literatura não aparece nos livros didáticos. A literatura afro-
brasileira deve ser lida, discutida e refletida, pois evidencia o protagonismo do negro que por
tanto tempo teve sua voz silenciada na literatura e na educação brasileira. Além disso, a
literatura afro-brasileira reflete acerca de questões relacionadas à situação do negro na
sociedade de hoje, fruto de um passado de sofrimento e que não lhe deu condições para se
manter de forma digna na sociedade, fomentando a existência de uma população excluída.
Porém, essa literatura também revela o espírito de resistência do negro e traz em seu bojo
protestos, denúncias, memórias e aspirações dos afrodescendentes brasileiros.
Além de um projeto de resistência e enfrentamento aos discursos preconceituosos
e excludentes, a literatura afro-brasileira é um meio pelo qual sujeitos negros expressam sua
própria subjetividade e experiências na sociedade brasileira. Trazer essa literatura para a sala
de aula possibilita aos alunos o conhecimento desses sujeitos intelectualmente ativos e o
reconhecimento de seus textos como representação artística de grupos sociais
desprivilegiados. Vozes que costumam não ser ouvidas em nossa sociedade e com as quais os
alunos podem desenvolver uma identificação positiva, contribuindo assim para sua autoestima
e para o sentimento de valorização.
Em nosso trabalho, essas vozes são representadas pela escritora Conceição
Evaristo, expoente da literatura afro-brasileira. Sua produção literária é marcada pela reflexão
em relação a questões relacionadas à etnia e gênero. Durante as práticas de leitura literária
desta pesquisa, trabalhamos quatro de seus contos, os quais denunciam as inúmeras
dificuldades pelas quais os afrodescendentes passam diariamente em uma sociedade
preconceituosa como a nossa. O protagonismo das figuras femininas, símbolos de resistência,
dos contos de Conceição Evaristo nos permitiu trabalhar as relações de gênero e levar os
alunos a refletirem sobre estruturas sociais cristalizadas e discursos que insistem em querer
atribuir à mulher uma posição de subordinação.
18
Assumir o controle da própria leitura, regulá-la, implica ter objetivo para ela, assim
como poder gerar hipóteses sobre o conteúdo que se lê. Mediante as previsões,
aventuramos o que pode suceder no texto; graças à sua verificação, através dos
diversos indicadores existentes no texto, podemos construir uma interpretação, o
compreendemos (SOLÉ, 1998, p.27).
Conforme Koch & Elias (2006), a leitura é uma atividade complexa de produção
de sentidos baseada na interação autor-texto-leitor e que, embora construída na interação, a
produção de sentidos durante a leitura deve ser feita levando-se em consideração a
materialidade linguística do texto e os conhecimentos prévios do leitor. Dessa forma, a leitura
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não é uma atividade passiva, pois o leitor desempenha um papel ativo na construção de
significados do texto.
Portanto, a compreensão leitora é um processo de construção de sentidos que
requer um conjunto de procedimentos inter-relacionados que permitem ao leitor realizar uma
leitura proficiente. É necessário que a escola proporcione atividades que não sejam pautadas
apenas na extração de informações, mas que possibilitem ao aluno perceber seu papel ativo na
leitura, através do engajamento e uso de seus conhecimentos linguísticos, textual e,
principalmente, de mundo. Os alunos precisam ter contato com materiais que facilitem a
geração de sentidos e estimulem a formulação de estratégias que proporcionem a
compreensão do texto.
Nesse contexto, para se formar um leitor crítico, capaz de ter domínio sobre sua
leitura, é preciso conscientizar o aluno de que ele não é um simples receptor das ideias do
autor do texto. É preciso mostrar seu papel ativo na atribuição de sentido ao texto. Para isso, o
professor possui um papel primordial, de acordo com Orlandi (2012):
Se o trabalho com o texto literário for bem direcionado e mediado pelo professor,
os alunos podem estabelecer relações entre os textos literários e suas práticas sociais, uma vez
que o texto literário representa todos os aspectos característicos de uma sociedade e possibilita
que o leitor estabeleça relações entre sua experiência de vida individual e o social, refletindo
assim, na sua interpretação do texto literário. No entanto, observa-se que o estudo da literatura
na escola ainda segue banalizando os textos literários e limitando-se apenas ao estudo dos
aspectos históricos e estruturais da língua. Na maioria das vezes, o texto literário é reduzido a
leituras superficiais, observações simplistas e enumeração de características estilísticas.
Conforme Lajolo (1991), muitos professores fazem um mau uso do texto literário,
uma vez que usam apenas fragmentos dos textos ou ainda, usam o texto literário para
classificar e definir categorias. Ao tratar o texto literário desse modo, a escola distancia o
aluno da literatura, não permite que o aluno se aproprie de forma autônoma das obras
literárias e nem desperta o senso crítico e a sensibilidade dos alunos.
Cosson (2016) afirma que há uma discrepância entre o que se entende por
literatura no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Segundo o autor, o ensino de literatura
no ensino médio limita-se à cronologia da literatura brasileira e os textos literários lidos são
fragmentos que servem para comprovar as características dos períodos literários. No
Fundamental, ―a literatura tem um sentido tão extenso que engloba qualquer texto escrito que
apresente parentesco com ficção ou poesia‖ (COSSON, 2016, p. 21). Nesse nível de ensino,
leva-se muito em consideração a linguagem e o tema, dando prioridade a textos curtos e
contemporâneos que tenham humor como a crônica. Segundo Cosson (2016), os textos
literários ficam cada vez mais restritos às atividades de leitura extraclasse ou são substituídos
por outros gêneros que possuem entendimento mais simplificado, pois, na visão de muitos
27
professores, contribuem de forma mais eficaz para o ensino da língua padrão e a formação de
leitores.
O autor destaca como acontece o ensino da literatura no Ensino Fundamental:
Nessa perspectiva, o letramento literário é bem mais do que ler textos literários e
desenvolver habilidades a partir dessas leituras. Trata-se de apropriar-se do texto literário e
tomá-lo para sua vivência, pois a literatura propicia o acesso a leituras significativas para o
crescimento pessoal do aluno, oportunizando transformações significativas em sua forma de
ver e viver o mundo.
Indo ao encontro da necessidade de melhorar o ensino de literatura nas escolas,
estudos apontam o letramento literário como uma alternativa para formar leitores. Por essa
razão, torna-se necessário que o docente conduza o estudante para a leitura desse tipo de
29
texto, sendo o mediador de um processo que vai além de adquirir habilidades para ler o texto
literário. O leitor vai além das linhas do texto, num ―processo de apropriação da literatura
enquanto construção literária de sentidos‖ (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67). O docente
deve estar apto para mediar a construção literária dos sentidos e desafiar os alunos para
leituras mais complexas, como preconizam os autores a seguir:
diante do tema ou ainda pode-se recorrer a outras linguagens como vídeos, imagens e
músicas, por exemplo. Segundo Cosson (2016), as práticas de motivação mais bem-sucedidas
são aquelas que estabelecem laços com o texto que vai ser lido a seguir.
Após o momento inicial, inicia-se a introdução da obra que tem como objetivo
apresentar autor e obra, compartilhando os critérios de seleção utilizados para a escolha do
texto. Cosson (2016) enfatiza que independente da estratégia utilizada para introduzir a obra,
o professor não pode deixar de apresentá-la fisicamente aos alunos e sugere que o professor
faça a leitura da capa e das orelhas do livro, as quais, na maioria das vezes, trazem uma
apreciação crítica da obra. Porém, nesta etapa, o professor precisa ter o cuidado para só trazer
informações que ajudem a entender a obra.
O momento da leitura, terceira etapa da sequência, requer o acompanhamento do
professor, uma vez que, segundo Cosson (2016), a leitura escolar precisa de acompanhamento
e direcionamento, sem esquece os objetivos. O acompanhamento da leitura permite que o
professor auxilie os estudantes em suas dificuldades de leitura, além disso, serve para que os
alunos possam ser chamados a demonstrarem os resultados de suas leituras. Quando o texto
for longo, Cosson (2016) orienta que o ideal é que a leitura seja feita em um ambiente fora da
escola por um período determinado.
A quarta etapa é a interpretação, na qual o leitor constrói os sentidos do texto a
partir das inferências e previsões que havia feito antes e durante a leitura e da mesma forma
com seus conhecimentos prévios. Cosson (2016) propõe pensar a interpretação em dois
momentos: o interior e o exterior. O primeiro é aquele em que ocorre a decifração por partes
para que haja a compreensão geral da obra. No segundo momento, ocorre a materialização da
interpretação e a socialização da construção de sentidos da obra, em uma comunidade de
leitores. A socialização das leituras é o fato que diferencia e potencializa o trabalho de
letramento literário realizado na escola.
Após as socializações e discussões sobre a leitura, devem ser feitas propostas de
interpretação, as quais correspondem ao registro do processo interpretativo. O tipo de
atividade a ser proposta pelo professor deve adequar-se ao texto lido e a outros fatores,
podendo ser uma tarefa simples como desenhar uma cena da narrativa ou uma tarefa
complexa como, por exemplo, realizar uma feira cultural.
A partir de todas essas etapas, o leitor estabelece uma relação intensa com o texto
e consegue construir significados sobre o que lê. Para Cosson (2016), o centro de sua proposta
é a formação de um leitor cuja competência ultrapasse a mera decodificação dos textos, de um
leitor que se apropria de forma autônoma das obras e também do próprio processo da leitura,
32
[...] uma comunidade de leitores é definida pelos leitores enquanto indivíduos que,
reunidos em um conjunto, interagem entre si e se identificam em seus interesses e
objetivos em torno da leitura, assim como por um repertório que permite a esses
indivíduos compartilharem objetos, tradições culturais, regras e modos de ler
(COSSON, 2017, p.138).
organizar as atividades, enquanto que nos círculos abertos ou não estruturados as atividades se
desenvolvem como uma conversa entre amigos, sendo conduzida sem regras e de forma
coletiva. Cosson (2017) enfatiza que na escola os círculos de leitura devem iniciar
estruturados, pois os alunos que nunca passaram por esse tipo de atividade precisam ser mais
fortemente guiados na leitura e nas discussões.
As atividades de leitura do círculo de leitura, conforme Cosson (2017) possuem
três fases: o ato de ler, o compartilhamento e o registro. O primeiro refere-se ―ao encontro
inalienável do leitor com a obra‖ (COSSON, 2017, p. 168), ou seja, a leitura física do texto
que pode ocorrer de forma individual ou coletiva de acordo com a organização do círculo de
leitura. A segunda fase compreende duas etapas: a preparação para a discussão, através da
anotação de impressões sobre o texto, e a discussão propriamente dita, ou seja, o debate sobre
a obra lida. A terceira fase refere-se ao registro que deve ocorrer ao final da leitura e é ―o
momento em que os participantes refletem sobre o modo como estão lendo e o funcionamento
do grupo, assim como sobre a obra e a leitura compartilhada‖ (COSSON, 2017, p. 171). De
acordo com o autor, esses registros podem ser feitos de forma variada e permitem que o
professor verifique e conduza o processo formativo do leitor.
Baseando-se nos círculos de literatura propostos por Harvey Daniels (2002),
Cosson (2017) propõe que para a realização de um círculo de leitura, inicialmente, seja feita a
seleção dos livros pelo professor que, posteriormente, deverá apresentá-los a turma para que
os grupos de alunos sejam definidos. Em seguida, é estabelecido um cronograma de leituras e
discussões da leitura nos grupos. Segundo o autor, só depois desse momento inicial é que os
grupos partem iniciam a leitura da obra e passam a fazer os registros. Esses registros podem
ser realizados através de simples anotações ao longo do texto ou até em diários de leituras,
nos quais os alunos registram suas impressões.
Nessa fase, Cosson (2017) apresenta, baseando-se em Daniels (2002), as fichas de
função como forma de registro. As fichas de função são uma espécie de ficha de leitura que o
professor elabora e o aluno deve preencher de acordo com a função que ele assumir no grupo.
As várias funções são:
Cosson (2017) enfatiza que nem todas as funções precisam ser preenchidas e que
o professor pode criar novas funções de acordo com o texto lido. No entanto, Daniels (2002),
de acordo com Cosson (2017), considera que as funções de conector, questionador,
iluminador e ilustrador são as mais importantes, pois estão ligadas aos hábitos de leitura de
um leitor maduro. Portanto, a distribuição de fichas de função entre os alunos não é uma
obrigação, uma vez que outras formas de registro podem ser utilizadas. Além disso, os
registros podem ser utilizados como forma de avaliação para os círculos de leitura
institucionais. O importante é que o círculo de leitura promova ―o encontro do leitor com a
obra‖ (COSSON, 2017, p. 174).
No próximo capítulo, dissertaremos sobre literatura afro-brasileira e africana, uma
vez que nossa proposta é promover o letramento literário através do trabalho com contos afro-
brasileiros e africanos.
35
3 DIVERSIDADE E LITERATURA
A diversidade que permeia a sociedade brasileira exige reflexões sobre como agir
na formação desenvolvida pela escola. A cada dia, a sociedade do século XXI passa por
inúmeras transformações sociais, as quais incidem diretamente sobre a escola que assume o
importante papel de formar alunos conscientes e compromissados com essas transformações.
A escola deve formar sujeitos que, para além de críticos, sejam também respeitosos com o que
é diferente, que saibam respeitar a diversidade e a pluralidade de ideias.
Diante desse contexto escolar, a literatura deve ser trabalhada em sala de aula
partindo do pressuposto de que ela pode propiciar uma educação humanizadora, pois o texto
literário pode ser compreendido como a representação de experiências humanas ao mesmo
tempo que nos diz ―o que somos e nos incentiva a desejar e a expressão o mundo por nós
mesmos‖ (COSSON, 2016, p.17). A literatura é um instrumento privilegiado para se levar a
reflexão sobre as formas de significar o mundo e as relações que nele se estabelecem.
O trabalho com literatura africana e afro-brasileira possibilita a discussão e
reflexão sobre a diversidade histórica e cultural do povo brasileiro, bem como a construção de
laços de troca de tradições, costumes e cultura através do espaço crítico da sala de aula. As
literaturas africanas e afro-brasileira em sala de aula contemplam, significativamente, as
tradições negras que marcaram e continuam a marcar a diversidade sociocultural que os
alunos estão inseridos e por isso precisam ser valorizadas. Além da temática étnico-racial,
essas literaturas e, em especial, o texto literário afro-brasileiro de autoria feminina, como a
produção de Conceição Evaristo abordada nesta pesquisa, possibilitam reflexões a respeito da
diversidade de gênero, uma vez que é um texto comprometido com o universo da mulher
negra.
Assim, neste capítulo abordaremos o trabalho com as literaturas africanas e afro-
brasileiras em sala de aula, explicitando a Lei nº 10. 639/03, e suas contribuições para a
realização de práticas pedagógicas que abordem questões pertinentes às relações étnico-
raciais e de gênero.
da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currículos da educação básica. A luta dos
Movimentos Sociais, em específico dos Movimentos Negros, colaborou para a solidificação
de ações afirmativas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais historicamente
estabelecidas no país. Entre essas ações, destaca-se a promulgação da Lei Federal nº 10.639,
de janeiro de 2003, a qual alterou a Lei nº 9.394/96, estabelecendo a obrigatoriedade do
Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, na Educação Básica.
1
Neste trabalho será tomada como base a Lei 10.639/03 por atender a temática proposta.
37
afetadas. Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a
todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos quotidianamente é fruto
de todos os segmentos étnicos que, apesar das condições desiguais nas quais se
desenvolvem, contribuíram cada um de seu modo na formação da riqueza
econômica e social da identidade nacional (MUNANGA, 2005, p. 16).
Noêmia de Souza, Paulina Chiziane, Luís Bernardo Honwana, Ana Paula Tavares, Germano
Almeida e tantos outros que contribuem para a formação de cânones da literatura africana.
Apesar da produção literária africana ser bastante vasta, não é muito comum
encontrarmos livros de literatura africana nos acervos das bibliotecas escolares, pois o
mercado editorial brasileiro pouco investe nessa literatura, uma vez que sua aquisição
geralmente é cara. Conforme Amâncio (2008, p.83):
canônicos da literatura brasileira, o autor verificou que o negro encontra-se presente muito
mais como tema do que como voz autoral.
Dalcastagnè (2008), ao escrever um artigo baseado em uma pesquisa sobre as
relações raciais na literatura, revela que:
Para Cuti (2010) o termo afro não é apropriado, pois remete a uma África que não
possui mais um comprometimento com as problemáticas brasileiras, mesmo estando na
41
origem do povo brasileiro, principalmente, no que concerne ao racismo que permeia nossa
sociedade. Segundo Duarte (2011), a série Cadernos Negros 2 contribuiu muito para a
configuração discursiva de um conceito de literatura negra por ter uma produção marcada
predominantemente pelo protesto contra o racismo, bem como por se sobressair o tema do
negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e memória cultural. Por outro
lado, há autores que acreditam que o conceito de literatura afro-brasileira será mais pertinente,
pois, conforme Duarte (2011), esse conceito teria uma formulação mais elástica e produtiva.
Duarte (2011) enumera alguns elementos que distinguiriam a literatura afro-
brasileira:
Para além das discussões conceituais, alguns identificadores podem ser destacados:
uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não no discurso; temas afro-
brasileiros; construções linguísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom,
ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explícito ou não,
com vistas ao universo recepcional; mas, sobretudo, um ponto de vista ou lugar de
enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como fim e
começo (DUARTE, 2011, p. 296).
Assim, para Duarte (2011) a partir da interação dinâmica desses cinco fatores –
temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público - é possível se constatar a existência
plena de uma literatura afro-brasileira. Para Souza (2005, p. 61) a origem étnica e a cor da
pele não são elementos definidores da produção afro-brasileira, ―mas sim o compromisso de
criar um discurso que manifeste as marcas das experiências históricas e cotidianas dos afro-
descendentes no país‖. Diante disso, a literatura afro-brasileira se aproxima da realidade e se
revela como um espaço para se discutir e refletir sobre os problemas vivenciados em nossa
sociedade. Essa verossimilhança na literatura é gerada pelos ―sentimentos mais profundos
vividos pelos negros‖ (CUTI, 2010, p. 87).
Portanto, ao levar a literatura afro-brasileira para a sala de aula, o professor
proporcionará ao aluno um reconhecimento pessoal, histórico e cultural, levando esse aluno à
reflexão principalmente sobre sua relação com o outro.
2
A série começou a ser publicada em São Paulo, no ano de 1978, com a participação de escritores afro-
brasileiros de todos os lugares do Brasil. Tem como objetivo denunciar os estereótipos negativos criados
historicamente sobre o negro e fazer protestos contra o racismo.
42
estudos com o trabalho de empregada doméstica. Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-
Rio e doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, tornou-se
também uma escritora de projeção internacional, com obras traduzidas em outros idiomas.
Segundo Campos; Duarte (2011), desde suas primeiras publicações, Conceição Evaristo
representa a crueldade do cotidiano dos excluídos, revelando seu compromisso e identificação
com os irmãos afrodescendentes colocados à margem do desenvolvimento.
Com sua ―escrevivência‖ – termo com que costuma demarcar sua produção textual -,
Conceição Evaristo articula seus projetos literário e existencial: a uma longa e
persistente militância social, étnica e de gênero agrega-se a atuação acadêmica e a
criação poética e narrativa. Põe em cena, sob uma perspectiva feminina a afro-
identificada, problemas do cotidiano de mulheres negras, conectando sua literatura
às raízes étnicas. Centrados na temática afro-brasileira, seus escritos consubstanciam
sua resistência ao sexismo, ao racismo e aos demais preconceitos e formas correlatas
de exclusão (CAMPOS; DUARTE, 2011, p. 213).
4 METODOLOGIA
variadas formas de viver, agir e de compreender as pessoas e o mundo. A leitura dos contos
contribuiu para o estímulo à criticidade dos sujeitos, uma vez que as literaturas afro-brasileira
e africanas resistem às indiferenças e revelam inúmeras injustiças sociais.
A pesquisa possui uma abordagem qualitativa, na qual a análise foi realizada por
meio da observação e da análise das atividades desenvolvidas pelos alunos, de forma
individual e em grupos, e registradas em portfólios. Além disso, analisamos os áudios
gravados durante as oficinas e as anotações do diário de bordo da pesquisadora. Ao final da
pesquisa, produzimos um manual didático (Apêndice C) que apresenta todas as práticas de
leitura desenvolvidas durante a proposta de intervenção.
4.3 PARTICIPANTES
circunvizinhos. No entanto, apenas trinta e seis deles participaram da maior parte das oficinas
e responderam aos questionários iniciais e finais. Portanto, nesta pesquisa consideramos trinta
e seis alunos como o número de sujeitos participantes.
É importante ressaltarmos que os participantes desta pesquisa não podem ser
identificados, de acordo com os protocolos do comitê de ética da Universidade. Por essa
razão, os rostos dos alunos foram ocultados nas fotografias e identificamos cada sujeito
através da letra P, de participante, e o número de sua chamada escolar.
vivem. O conto ―A saia almarrotada‖ é narrado por uma voz feminina que narra a sua vida
dura, cheia de exploração, renúncias e submissão ao pai. Já no conto ―O cego Estrelinho‖,
Mia Couto aborda de forma indireta a guerra, através de uma interessante relação de amor
entre o cego, seu amigo-guia e, posteriormente, a irmã deste.
Quanto à literatura afro-brasileira, optamos por trabalhar com contos da obra
Olhos d’água, de Conceição Evaristo (2016). O livro, vencedor do Prêmio Jabuti em 2015, é
composto por quinze contos que retratam as dificuldades diárias pelas quais os afro-
brasileiros passam em uma sociedade excludente e preconceituosa como a nossa. Questões
étnico-raciais e de gênero são marcantes nos contos, os quais são, predominantemente,
centrados em figuras femininas afrodescendentes que sofrem diferentes formas de violência
em um cotidiano marcado por humilhações, preconceito e opressão.
Do livro Olhos d’água (2016) selecionamos os seguintes contos para trabalharmos
nesta pesquisa: ―Olhos d‘água‖, ―Maria‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e
―Lumbiá‖.
O conto ―Olhos d‘água‖ conta a história de uma personagem feminina e negra que
tenta se lembrar da cor dos olhos de sua mãe, mas só se recorda de sua infância e do
sofrimento de sua mãe diante das dificuldades e da miséria. A narradora se obriga a fazer o
caminho de volta para o lar para descobrir a cor dos olhos de sua mãe, resgatando assim, sua
identidade. No conto ―Maria‖, a empregada doméstica, que empresta seu nome ao título da
história, reencontra seu ex-companheiro e, inesperadamente, o homem assalta o ônibus em
que eles se encontravam. Após a fuga do homem, Maria é confundida como comparsa dos
assaltantes e é covardemente linchada e morta.
Outro conto selecionado para a intervenção foi ―Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos‖ que conta a história da menina Zaíta e sua irmã gêmea Naíta, com quem reparte e
disputa os brinquedos. As meninas enfrentam cotidianamente a violência da favela e a raiva e
queixas da mãe, que esgotada pelo trabalho e pela miséria, facilmente se irrita com as
travessuras das meninas. Um dia, desesperada pelo desaparecimento de sua figurinha favorita,
Zaíta sai pelas ruas para procurá-la e acaba sendo vítima de uma bala perdida. Já no conto
―Lumbiá‖ temos um protagonista masculino. O menino que dá nome a história vende doces
nas ruas, juntamente com sua irmã, para ajudar no sustento da família. A época do Natal trazia
alegria para o protagonista que adorava ver os presépios, principalmente, a imagem do Deus-
menino que parecia partilhar da mesma pobreza do garoto. Um dia, depois de inúmeras
tentativas, Lumbiá consegue se aproximar de um presépio montado em uma loja luxuosa.
49
Encantado com o bebê do presépio, o menino rouba o boneco e é perseguido pelos guardas da
loja. Na tentativa de fugir, o garoto pula na rua e é atropelado por um carro.
4.5 PROCEDIMENTOS
sequência básica de Cosson (2016). Na quarta etapa apresentamos a metodologia dos círculos
de leitura estruturados, de acordo com a proposta de Cosson (2017). Além disso, realizamos
um círculo de leitura com o conto africano ―O cego Estrelinho‖, bem como dividimos os
grupos e os contos a serem lidos para a realização dos círculos de leitura. A quinta etapa foi
destinada às apresentações dos círculos de leitura. E na última, fizemos a avaliação da
proposta de intervenção. Os alunos responderam o questionário final por escrito e depois,
ouvimos as opiniões dos alunos sobre as práticas de leitura desenvolvidas durante o projeto.
As atividades de leitura foram desenvolvidas com os contos afro-brasileiros e
africanos, mas em alguns momentos fizemos uso de vídeos, imagens, textos variados e outros
recursos que dialogavam com os contos lidos. Foi parte das oficinas a construção de um
portfólio, no qual foram registradas as atividades produzidas pelos alunos, individualmente ou
em grupos. Além disso, cada participante da pesquisa registrou suas impressões sobre os
textos, mas também podiam registrar tudo que achassem importante durante o percurso de
estudo, inclusive, as insatisfações. Este instrumental foi muito importante para
acompanharmos o desenvolvimento dos alunos, bem como suas dificuldades. Sobre essa
perspectiva metodológica, Cosson (2016, p. 48 - 49) afirma:
O corpus para análise foi composto, portanto, por atividades de leitura registradas
através de perguntas e respostas, como também pelas produções registradas nos portfólios. A
interação permeou todas as etapas de abordagem das atividades didáticas. O ponto de partida
de cada oficina foi sempre o diálogo com os participantes e todas as nossas observações e
impressões durante as atividades foram registradas em um diário de bordo. Além disso,
analisamos os registros de áudios gravados durante as oficinas, os quais nos permitiram
avaliar os diálogos produzidos durante as atividades. Optamos por registrar apenas os áudios
das práticas de leitura para que os alunos não se envergonhassem ou perdessem a naturalidade
durante as interações. Nossas observações foram focadas nas conexões que os alunos
conseguiram realizar dos textos lidos com a vida, com outras leituras e com elementos
culturais, pessoais e coletivos que permeiam a sociedade.
51
4.6 INSTRUMENTOS
Neste capítulo, faremos a análise, de forma mais detalhada, das práticas de leitura
realizadas e dos dados coletados nesta pesquisa. Para isso, utilizaremos dados coletados dos
portfólios e atividades produzidas pelos alunos, dos áudios gravados durante as oficinas, de
nosso diário de bordo e dos questionários respondidos pelos participantes.
Este capítulo está dividido em duas partes: (1) Descrição e análise da proposta de
intervenção; (2) Análise dos dois questionários aplicados: questionário inicial e final.
alunos o vídeo3 da música ―Eu sou de lá‖ da dupla de hip hop ‗Dois Africanos‘. Perguntamos
se a turma conhecia a dupla, mas nenhum aluno afirmou conhecê-la. Exibimos o clipe da
música que evidencia em sua letra (Anexo A) a preocupação em desconstruir a imagem
generalizada de pobreza e miséria propagada sobre o continente africano, ao mesmo tempo
em que retrata a vida de jovens africanos que buscam sonhos em outras partes do mundo.
3
Disponível em:˂https://www.youtube.com/watch?v=dsiVer_HbnA˃. Acesso em: 05 ago. 2018.
54
segundo uma participante, ―também tem muitos filmes que eu já assisti que na África só tem
floresta e animais‖. No entanto, nenhum aluno soube explicar os motivos pelos quais essas
imagens negativas são propagadas em nossa sociedade. Não fizemos nenhuma interferência
em relação a essas motivações nesse momento, pois acreditamos que discussões futuras
permitirão que os alunos construam suas respostas.
No que tange ao terceiro questionamento, os alunos afirmaram que outros países
sofrem com a pobreza e a fome. O exemplo mais citado foi o Brasil, porém um aluno disse
que a Índia também tem bastante pobres, fato que nós confirmamos e causou surpresa em
alguns alunos.
Para mostrar que África não se resume à pobreza e à miséria, levamos, em slides,
imagens de diferentes partes do continente africano, suas belezas, suas riquezas, seus povos e
seu mapa. Procuramos desmistificar algumas ideias errôneas: que África é um único país; que
não existem brancos na África; que todo o continente é um deserto repleto de animais
selvagens e que há um único ―idioma africano‖. À medida que mostrávamos o material, os
alunos participaram, fizeram comentários, perguntas e comparações com a realidade
brasileira.
Com o auxílio de mapas, mostramos como os europeus dividiram e exploraram o
continente africano, deixando marcas profundas como a escravização, o preconceito, o
apartheid, a fragmentação das comunidades e das culturas nativas, bem como a exploração
das riquezas naturais. Além disso, identificamos os países africanos que possuem a língua
portuguesa como idioma oficial, o que gerou muita surpresa e admiração entre os alunos que
desconheciam o fato de que na África há países que também falam português. Questionamos
alguns aspectos relacionados à escravidão na África e no Brasil, levando-os a refletir como
esse processo contribuiu para a imagem de inferioridade dos negros que, infelizmente,
persiste até os dias de hoje.
Em seguida, os alunos foram convidados a conhecerem um poema produzido por
um poeta de Cabo Verde, um dos países africanos de língua portuguesa. Entregamos cópias
do poema ―Você, Brasil‖, do autor Jorge Barbosa e fizemos a leitura em voz alta para a turma.
Você, Brasil
Jorge Barbosa
admiração pelo Brasil, traça um paralelo entre Cabo Verde e nosso país e mostra que há
semelhanças entre Brasil e África. Os alunos destacaram as semelhanças dos aspectos naturais
e de aspectos culturais. Um aluno afirmou que os africanos são alegres e gostam de festejar,
assim como os brasileiros, e que isso é notável no poema quando ele diz que queria dançar um
―maxixe requebrado‖.
Para iniciar a aula, como motivação, exibimos o vídeo ―Menina bonita do laço
4
de fita‖ , animação adaptada da obra homônima de Ana Maria Machado. Esse vídeo mostra
um coelhinho branco que acha linda a cor negra de sua vizinha, a menina do laço de fita, e
tenta de diversas formas ficar igual a ela. Depois de várias tentativas frustradas, ele percebe
que não é possível mudar por uma questão genética. Então, ele casa com uma coelha preta e
fica extremamente feliz ao ter filhos pretos, brancos e malhados, para quem ensina que a
beleza está nas diferenças.
Após a exibição do vídeo, a turma estava agitada, demonstrando ter gostado do
curta e fazendo comentários sobre a história. Fizemos alguns questionamentos orais sobre o
vídeo, tais como: Qual o tema abordado no vídeo? O que mais chamou atenção? Como é a
convivência entre os personagens? No nosso cotidiano, a convivência entre as pessoas é
harmoniosa e sem preconceitos como no filme? Por quê? Quase todos os alunos participaram
da conversa sobre o vídeo e demonstraram ter entendido a mensagem de respeito às
4
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UhR8SXhQv6s&t=13s˃.
59
P37 – O vídeo mostra como todo mundo é diferente, pois os filhotes do coelho são
todos diferentes, além do coelhinho que é branco e a menina bonita do laço de fita
que é negra. Então, eu acho que o tema desse vídeo é a diferença de raças e mostra
que é possível viver bem, sem preconceitos e sem racismo, principalmente.
aos três anos de idade. Passou toda a infância e juventude em Luanda. Participou ativamente
do movimento pela libertação nacional, pois Angola foi por muito tempo colônia de Portugal.
É considerado africano e representa a literatura africana. Antes de explicarmos o pseudônimo
do escritor, um aluno perguntou se ele se nomeava Luandino por causa de Luanda e
explicamos que sim, que era uma homenagem do autor a capital de Angola. Aproveitamos
este momento para apresentar, brevemente, com o auxílio de slides, fatos importantes da
história de Angola, de sua colonização e da luta pela conquista da independência.
Após uma breve apresentação sobre o autor, prosseguimos para a etapa seguinte.
Entregamos a cópia do conto aos alunos e solicitamos que levantassem hipóteses sobre o texto
a partir do título ―A fronteira de asfalto‖. Inicialmente, os alunos não souberam dizer, mas
pedimos que analisassem as palavras do título. Perguntamos o significado da palavra fronteira
e eles afirmaram ser uma ―barreira‖ ou uma ―divisão‖. A partir dessas respostas, baseados em
seus conhecimentos prévios, os alunos fizeram inferências a respeito do texto que seriam
confirmadas ou refutadas através da leitura. Alguns alunos afirmaram que a história falaria a
respeito de uma cidade grande, pois tem a presença de asfaltos; outro disse que o conto falaria
sobre a divisão entre cidades ou países através das ruas asfaltadas, enquanto que uma aluna
inferiu que a narrativa trataria de pessoas que por algum motivo precisam sair do local onde
vivem e assim, transpor a fronteira. É possível perceber que as hipóteses levantadas pelos
alunos possuem coerência, mas foram todas refutadas a partir da leitura. Foi proposto que os
alunos fizessem primeiramente uma leitura silenciosa para que, em seguida, fizéssemos uma
leitura expressiva do conto em voz alta.
O conto narra a história de um rapaz negro e uma garota branca, Ricardo e
Marina, que são amigos desde a infância. Eles cresceram juntos, pois o menino, filho da
lavadeira da mãe da menina, fazia companhia à Marina durante as brincadeiras da infância.
No entanto, ao atingirem a adolescência, sofrem grande pressão por parte da sociedade branca
para que se afastem. O jovem acaba morrendo devido a um mal entendido ao transpor a
fronteira simbolizada pelo asfalto, o qual separa o bairro branco e o musseque, bairro ocupado
pela população pobre de Luanda.
À medida que os alunos foram finalizando a leitura silenciosa surgiram
comentários de indignação e tristeza com o final da história. No entanto, alguns alunos
questionaram se ele havia realmente morrido. Propomos, então, analisarmos o trecho final da
história e eles perceberam que o uso do termo ―corpo‖ representa a morte de Ricardo no
trecho: ―De pé, o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído‖ (VIEIRA,
2007, p.44).
61
Sanadas as dúvidas, seguimos para a leitura em voz alta, uma vez que, segundo
Lajolo (2005), ao ler para seus alunos, o professor incentiva à realização de outras leituras e
favorece a aprendizagem de uma leitura com desenvoltura. Refletindo sobre o papel do
professor enquanto mediador e incentivador da leitura, a autora afirma:
— Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade
por esse (…) teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança.
Duas crianças. Mas agora (…) um preto é um preto (…) As minhas amigas todas
falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei (…) Bem sabes que não
é por mim (VIEIRA, 2007, p. 42).
era ―porque uma família é pobre e a outra é rica‖. A partir disso, o debate se desenvolveu em
torno da discriminação e das desigualdades sociais marcadas no texto pelas diferenças do
local onde Marina e Ricardo viviam.
[...] Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia
passeio. Nem as árvores de flores violetas. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de
pau-a-pique à sombra das mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma tênue
nuvem de poeira que o vento levava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se
do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e
arcos de barril. [...](VIEIRA, 2007, p. 40)
Fonte: https://acervo.publico.pt/mundo/noticia/houve-independencia-mas-não-
descolonizacao-das-mentes-1712736. Acesso em: 11 ago. 2018.
de Luanda também se faz visível no Brasil. Todos os alunos disseram haver semelhanças
entre Brasil e Luanda, mas algumas respostas foram vagas como, por exemplo, ―tudo,
racismo, desigualdade social etc‖ (P05). Esta resposta se refere corretamente a semelhanças
existentes entre os dois países, mas não leva em consideração, especificamente, a divisão
territorial como foi pedido na questão.
Porém, a maioria dos discentes apresentou respostas significativas e coerentes
com o debate que já havia ocorrido em sala:
P03 – Sim, a diferença social, o racismo, o preconceito, o jeito em que o povo acha
que só porque algumas pessoas moram em comunidades não podem ser como as que
moram no asfalto.
P26 – Sim, porquê (sic) a desigualdade é comum aqui no Brasil, prédios ricos e
próximos casas pobres (comunidades). Racismo e preconceito também são comuns.
P21 – Sim, porque nossa sociedade também é dividida desse mesmo modo. É
dividida com o bairro nobre ao lado do bairro de baixa renda.
Na segunda questão, pedimos que os alunos identificassem como era a vida nos
dois lados da fronteira de asfalto. Os trechos a seguir são exemplos retirados dos portfólios
dos discentes:
P12 – No bairro de rico a vida e (sic) boa, as casas são grandes, tem fartura e no
bairro dos pobres tem muita pobreza, miséria, as casas são humildes.
P22 – No lado do asfalto tem o bairro de ricos que tem tudo, boa infra-estrutura, não
falta nada. No bairro dos pobres as pessoas tem (sic) que trabalhar muito, tem
violência, não tem calçamento, etc.
P37 – No bairro dos brancos há mais modernidade, as casas são confortáveis e
bonitas, as pessoas possuem mais bens e oportunidades. No bairro mais pobre as
pessoas convivem com mais problemas, não tem moradias apropriadas, falta
saneamento.
P05 – Ricardo ficou triste e com raiva porque a mãe de Marina não queria que eles
fossem amigos.
P10- Ricardo foi cruel com Marina. Ele disse muitas coisas com ela, mostrou que
estava revoltado porque ele só servia pra (sic) ser amigo dela do lado de fora da casa
e quando era criança.
P32 – Ele não se segurou e foi pedir explicações. Ele estava com ódio porque a mãe
dela não deixava eles ser (sic) amigos.
65
P12 – O conto mostra que a pessoa vítima de racismo não deve se cala (sic) porque
Ricardo foi lá e falou o que pensava.
P32 – Eu entendi que é preciso lutar, brigar contra o preconceito e o racismo que
fazem muito mal as pessoas.
P15- Sim! O brasileiro ainda tem muito preconceito, mas as (sic) vezes não percebe.
P05 – Algumas pessoas sim, (sic) porque tem gente que não gosta da cor do outro
etc.
P11 – Uma grande parte sim porque a pessoa racista se acha melhor que a outra.
P32 – Sim. Eles olham diferente pra (sic) pessoa que é negro.
P28 – Muito racista por muitos fatores, religioso, situação financeira, a cor entre
outros.
P35 – Sim. Porque existem pessoas que têm o olhar diferente quando se fala na cor
da pele ou na situação financeira.
P36 – Sim, porém não são todos, mas o branco diz que o preto é bandido,
simplesmente pela sua condição, o que eu sei que é muito errado e não gosto, e do
mesmo jeito que o preto é racista com o branco.
pelas condições financeiras. Ao explicar sua resposta, o participante 35 disse que a situação
piora se a pessoa for negra, pois ―pra muita gente todo negro é pobre e bandido‖, nas palavras
do aluno. Aproveitamos essa e outras respostas para aprofundarmos a discussão sobre como,
historicamente, construiu-se essa imagem negativa do negro.
Em relação aos equívocos, para tentar solucioná-los, apresentamos os conceitos de
preconceito e racismo e explicamos que há vários tipos de preconceitos, entre eles, o
preconceito racial. Em relação ao comentário de que ―o preto é racista com o branco‖,
também trouxemos a questão para o debate e procuramos mostrar com base em elementos
históricos e nas relações de poder estabelecidas em nossa sociedade que, na verdade, não há
racismo reverso. Não queremos dizer que esses alunos tiveram seus paradigmas
transformados e mudaram completamente de opinião, mas sentimos que pelo menos aquilo
que falamos fez sentido para eles.
Na sexta questão, perguntamos se os alunos já foram vítimas de racismo ou se
conhecem alguém que já foi. Dezenove alunos disseram que nunca foram vítimas nem
conhecem nenhuma vítima de racismo. Seis alunos afirmaram que não foram vítimas, mas
conhecem alguém que já foi como, por exemplo, um discente que disse: ―não, mas conheço
uma cara que foi obrigado a sair de uma loja porque o dono achou que ele ia roubar e ainda
chamou ele de ‗nego safado‘ (sic)‖ (P09). Quatro alunos disseram ter sido vítimas, mas não
relataram como aconteceu, enquanto que três alunos só disseram que conheceram outras
vítimas, mas não falaram se já tinham sido vítimas ou não.
O silenciamento dos alunos frente a esse assunto e o fato de muitos deles se
distanciarem do problema, enxergando-o apenas quando acontece com os outros, nos
permitem deduzir que os discentes não se sentem seguros para debaterem o assunto. Além
disso, acreditamos que, algumas vezes, os alunos não são capazes de identificarem atitudes
racistas, muitas vezes presentes também no meio escolar, pois não possuem informações
suficientes sobre o assunto. Por isso, é imprescindível que o tema seja discutido no espaço
escolar, objetivando transformar posturas preconceituosas e discriminatórias tão arraigadas
em nossa sociedade. No entanto, percebemos que discussões sobre a questão racial e a
diversidade são, muitas vezes, negligenciadas na escola. Nesse sentido, concordamos com as
palavras de Amâncio (2008, p. 35) ao afirmar que:
[...] não basta constar na Lei que rege a educação nacional a importância dos povos
que contribuíram para a formação da sociedade brasileira. Ao contrário, diante dos
processos seculares de exclusão sociorracial no Brasil – principalmente a da pessoa
negra -, urge que a escola assuma o papel de revisora – não mais de mantenedora –
67
da série histórica que explica o fato de o segundo maior país negro do mundo ainda
preservar práticas racistas no cotidiano de suas relações sociais.
racistas e aqueles que defendiam que nos tornamos por causa da sociedade em que vivemos.
Após ouvir as colocações dos discentes, apresentamos a notícia a seguir, retirada do site do
jornal O Estado de S. Paulo:
Figura 9 - Notícia
Fonte: http://unecombateaoracismo.blogspot.com/2009/04/onde-voce-guarda-o-seu-
racismo.html. Acesso em: 08 ago. 2018.
Antes de iniciarmos a leitura do conto, pedimos aos alunos que respondessem, por
escrito, a seguinte pergunta: O que você diria para uma criança se ela perguntasse por que as
mãos das pessoas negras são brancas? O questionamento gerou certa agitação, mas todos
responderam cientes de que não havia uma resposta certa ou errada, pois não iríamos julgar
suas respostas. Muitos alunos afirmaram que as mãos dos negros são brancas porque não
levam sol, outros afirmaram que é devido à quantidade de melanina e a maioria disse que são
assim porque Deus criou todas as pessoas com as mãos mais claras, pois somos iguais.
Após esse momento, os alunos fizeram uma primeira leitura silenciosa do conto,
seguida de uma leitura coletiva. No conto, o narrador é um menino que procura respostas para
uma dúvida que o angustia: por que os pretos têm as palmas das mãos brancas? Muitas
explicações são apresentadas por diversos interlocutores, os quais caracterizam os negros
sempre como seres inferiores, até que a mãe do menino apresenta a sua explicação, a qual
constrói um discurso de igualdade entre os homens e desmascara a ideia de inferioridade dos
negros que foi elaborada pelos colonizadores para justificar seus atos cruéis de violência e
exploração.
Concluída a leitura, perguntamos se as respostas dadas pelos discentes, na
atividade anterior, se aproximavam da resposta de algum dos personagens do conto. Alguns
afirmaram que, assim como a mãe do menino, acreditavam que era para mostrar que todos são
iguais, enquanto que outros acharam semelhanças ao se referir à vontade divina. Ouvimos as
primeiras impressões da turma sobre o texto e discutimos sobre dúvidas deixadas pelo
vocabulário. Apresentamos o quadro a seguir e coletivamente, a partir das respostas dadas
pelos alunos, fizemos o preenchimento das lacunas na lousa.
(conclusão)
Um livro Conhecimento ―os pretos têm as mãos assim mais claras Negativa
por viverem encurvados, sempre a apanhar
o algodão branco da Virgínia.‖
A mãe Povo africano ―Deus fez os pretos porque tinha de os Positiva
haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele
pensou que realmente tinha de os haver….
Depois arrependeu-se de os ter feito
porque os outros homens se riam deles e
levavam-nos para casa deles para os pôr a
servir de escravos ou pouco mais. Mas
como Ele já não os pudesse fazer ficar
todos brancos, porque os que já se tinham
habituados a vê-los pretos reclamariam,
fez com que as palmas das mãos deles
ficassem exactamente como as palmas das
mãos dos outros homens. E sabes porque
é que foi? [...] Pois olha: foi para mostrar
que o que os homens fazem é apenas obra
dos homens…Que o que os homens fazem
é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas
que se tivessem juízo sabem que antes de
serem qualquer outra coisa são homens.
Deve ter sido a pensar assim que Ele fez
com que as mãos dos pretos fossem iguais
às mãos dos homens que dão graças a
Deus por não serem pretos.‖
Fonte: Elaborado pela autora
78
P36 – Eu acho que ela tava (sic) chorando por causa do filho dela, porque ela sabe
que a sociedade é racista e ela já sofreu com isso. Então as lágrimas dela são de
tristeza por ver o filho tão inocente e que, provavelmente, também será vítima de
racismo.
Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós não
prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a
falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles
andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar
(HONWANA, 2010, p.24).
negros a bichos? Quais são as possíveis motivações para esses discursos imbuídos de
preconceitos?
A partir desses e de outros questionamentos, refletimos com os alunos sobre a
forma como as histórias narradas por cada personagem têm como objetivo legitimar a
exploração dos negros pelos brancos colonizadores, construindo de forma preconceituosa a
imagem desse povo como seres inferiores. Algumas explicações dadas pelos personagens do
conto remetem a dados históricos referentes ao surgimento e manutenção do racismo até os
dias atuais, pois como afirma Sant‘Ana em seu texto História e conceitos básicos sobre o
racismo e seus derivados, o racismo ―é fruto de um longo processo de amadurecimento,
objetivando usar a mão-de-obra barata através da exploração dos povos colonizados‖
(SANT‘ANA, 2005, p.42). Segundo o autor, a discriminação racial tem como ponto de
partida o século XV, quando os colonizadores europeus buscaram fundamentos doutrinários,
científicos e religiosos para provarem a superioridade dos brancos sobre negros e indígenas.
Tem-se a impressão de que o negro e o índio foram vítimas de uma conspiração bem
planejada durante todos esses séculos, onde foram elaboradas doutrinas com falsa
base bíblica e filosófica, bem como tentativas de comprovação de teorias com uma
falsa base científica, que não resistiram ao tempo. Mas as marcas do racismo e suas
maléficas consequências permaneceram, já que estes preconceitos sobrevivem às
gerações. A discriminação e o preconceito foram se fortalecendo no dia-a-dia,
criando fortíssimas raízes no imaginário popular, chegando ao ponto no qual nos
encontramos hoje (SANT‘ANA, 2005, p.49).
1- O conto nos faz refletir sobre a forma como as ideologias da cultura portuguesa
eram impostas aos povos colonizados. Explique como o conto procura combater
essa ideologia da dominação.
Leia o poema abaixo, escrito pelo poeta afro-brasileiro Solano Trindade, e responda as
questões a seguir:
Sou Negro
Por Solano Trindade
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Na minh'alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...
(Disponível em ˂http://latitudeslatinas.com/poemas-de-solano-trindade/˃. Acesso: 05 jul. 2018)
que ela tinha cabelo de Bombril (P22); outros alunos disseram que insultos como ―macaco‖,
―carvão‖ e ―nego safado‖ são comuns no ambiente da escola. No entanto, muitos enxergavam
essas atitudes apenas como brincadeiras de mau gosto. Ainda não tinham se dado conta que,
na verdade, é preconceito racial.
A partir da terceira questão, a atividade foi elaborada com base no poema de
Solano Trindade, no qual a voz ouvida é a do próprio negro que conta a sua história e a
verdadeira história de seus antepassados, sem as mentiras propagadas pelos colonizadores. O
tom realista do poema, atrelado à linguagem simples e coloquial, propiciou uma boa
compreensão de sua mensagem por parte dos alunos que identificaram que o poeta afro-
brasileiro é a voz do poema que representa todo o povo negro do Brasil. Na questão seguinte,
a quarta da atividade, os alunos identificaram que o poema revela um discurso de valorização,
exaltação do negro.
P(09) – O poema traz uma valorização da pessoa negra, pois fala de suas qualidades,
mostra que os negros são valentes.
P(36) – Logo no começo ele se afirma negro e mostra que tem orgulho disso, não
tem vergonha de dizer que seus avós vieram da África, que eram escravos, pois eles
lutaram muito pra (sic) ter sua liberdade de volta.
[...] uma literatura com proposta de representação do negro, que rompa com esses
lugares de saber, que possa trazer imagens enriquecedoras, pois a beleza das
imagens e o negro como protagonista são exemplos favoráveis à construção de uma
identidade e uma autoestima. Isto pode desenvolver um orgulho, nos negros, de
serem quem são, de sua história, de sua cultura. [...] Investir na construção de uma
identidade significa abrir caminho para a revolução no jeito de pensar da sociedade
contemporânea, pois os educando de hoje serão a sociedade de amanhã. A literatura,
nesse ínterim, pode ser um espaço de problematização do movimento ocorrido em
nossa sociedade.
valentes, que lutaram e que muitos se juntaram a outros escravos como, por exemplo, Zumbi
em busca da liberdade, ao contrário da ideia de que eles eram conformados com a escravidão.
Finalizamos a socialização das respostas e aproveitamos os minutos finais para solicitar que
os alunos, em casa, buscassem mais informações sobre preconceito racial para que
ampliassem suas visões sobre o tema.
Na aula do dia seguinte, iniciamos assistindo a um vídeo sobre a biografia de
Nelson Mandela 5 e sua luta contra o apartheid. Os alunos se mostraram surpresos com a
história desse líder e, principalmente, com sua prisão. Após uma breve conversa a respeito do
vídeo, dividimos a turma em grupos para a realização da atividade de extrapolação. Propomos
que um grupo de alunos reunisse as frases de Mandela pesquisadas pela turma para construir
um mural. Os outros grupos poderiam escolher entre produzir um poema ou uma campanha
comunitária de combate ao racismo na escola. As atividades realizadas pelas equipes foram
muito satisfatórias, demonstrando comprometimento e dedicação dos alunos.
A equipe I montou o mural sobre Nelson Mandela utilizando o material
pesquisado pelos alunos.
5
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=qwshVKvgPn0. Acesso em: 27 ago. 2018.
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Fonte: https://www.pensador.com/frase/NDQwNTE2/
6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mVQLXL1wvjk
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Chega-me ainda a voz de meu velho pai como se ele estivesse vivo. Era essa voz
que fazia Deus existir. Que me ordenava que ficasse feia, desviçosa a vida inteira.
Eu acreditava que nada era mais antigo que meu pai. Sempre ceguei em obediência,
enxotando tentações que piripirilampejavam a minha meninice. Obedeci mesmo
quando ele ordenou: - Vá lá fora e pegue fogo nesse vestido!
Eu fui ao pátio com a prenda que meu tio secretamente me havia oferecido. Não
cumpri. Guiaram-me os mandos do diabo e, numa cova, ocultei esse enfeitiçado
enfeite.
Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre
labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos
escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam
esmorecido (COUTO, 2009, p.31).
Essa passagem possibilitou discussões sobre como o pai controla a vida da filha e
sobre as inúmeras formas de controle e vigilância que a sociedade machista impõe às
mulheres. Essas formas de controle e o silêncio foram imposto às mulheres ao longo dos
séculos, segundo Perrot (2005), através das religiões, dos sistemas políticos e dos manuais de
comportamento.
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1- A protagonista resgata memórias de sua vida, marcada por ser uma única
mulher em meio a uma família de homens machistas.
2-Após a leitura do conto, como você interpreta a epígrafe: ―O estar morto é uma
mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo. Quando eu morrer, quero ficar
morta. (Confissão da mulher incendiada)‖?
Como a resolução da atividade ficou para ser feita em casa, muitos alunos não
responderam as questões. Apenas dezessete alunos fizeram a atividade. No entanto,
acreditamos que isto não trará grandes prejuízos para o processo de letramento literário destes
alunos, pois nosso objetivo com estas questões era fazer uma conexão entre a discussão feita
em sala de aula e a realidade do aluno, bem como motivá-los a escrever a partir de suas
reflexões. Além disso, procuramos instigar sua participação durante a socialização e discussão
das respostas.
Na primeira questão, inicialmente, perguntamos se os alunos conheciam histórias
de vítimas de machismo. Todos os alunos disseram conhecer, mas três alunos não contaram
os episódios. Entre aqueles que o fizeram, geralmente, relataram episódios de ciúmes de
maridos, casos em que os maridos ou namorados agridem as mulheres, as proíbem de sair, de
trabalhar fora ou até mesmo de ter amizade com pessoas que eles não julgam confiáveis.
Entre as meninas, alguns depoimentos sobre suas próprias vidas chegam a se assemelhar com
o conto lido como é possível ver nas respostas a seguir:
P02 – Sim. Tive um namorado que não podia me ver com short curto, nem blusinha
decotada que já fazia uma briga, no começo eu até deixei de vestir, mais (sic) depois
eu decidi terminar porque eu não queria isso pra (sic) minha vida não.
P37 – Eu sofro com o machismo em minha própria casa, porque meu irmão, que é
mais novo, pode tudo e eu não. Ele vai a vários lugares, sai com amigos, chega na
hora que quer e eu não posso nada porque sou mulher.
P14 – Sim, aqui na escola mesmo a gente vê as meninas sendo chamada (sic) de
quenga (sic) porque ficam com um ou outro menino, já os meninos ganham a fama
de garanhão.
perdura nos dias atuais. Além disso, essa postura machista revela uma contradição nas
respostas dos alunos sobre o lugar das mulheres e a responsabilidade pelos afazeres
domésticos.
Instigamos o debate e levamos a turma a refletir sobre como a sociedade evoluiu e
como alguns conceitos e costumes também precisam evoluir como, por exemplo, a forma de
criação de meninos e meninas e a divisão de tarefas domésticas. A respeito da formação de
homens e mulheres, Saffioti (2004, p.35) afirma:
P05- A mulher está falando da vontade dela de se matar para se libertar, mas que não
conseguiu.
P12 – Acho que ela está falando da vida dela que mais parecia com uma morte, pois
ela não podia viver, já parecia ter morrido a (sic) muito tempo.
A socialização das respostas dos portfólios foi feita na aula do dia seguinte ao da
sequência didática. Para esta aula estava prevista também a realização de nossa atividade de
extrapolação que teve por objetivo produzir tirinhas que retratassem situações de machismo
cotidianas, demonstrando uma crítica. Para isso, inicialmente, apresentamos a tirinha do
Armandinho a seguir:
A equipe justificou durante a socialização que quis mostrar que, na maioria das
vezes, os homens ―não querem nada sério‖ e ainda xingam as mulheres que não se interessam
por eles como forma de desvalorizá-las.
Na tirinha a seguir, o pai proíbe a filha de sair com as amigas e de ter amigos
homens pelo simples fato dela ser mulher. Durante a socialização, as alunas afirmaram que se
sentem injustiçadas, pois seus irmãos homens têm liberdade de sair e elas não. Isto demonstra
que ainda nos dias de hoje há a presença de um discurso machista e patriarcal em parte das
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famílias de nossa sociedade, cujos ditames conferem à mulher uma posição de submissão e
inferioridade.
A atividade a seguir, apesar de não ser uma tirinha, também retrata uma situação
machista. Um casal está em um restaurante e o homem pergunta à mulher se ela pagaria a
conta. Ela responde negativamente, pois seria obrigação dele por ser o homem. Durante a
socialização, a equipe afirmou que o objetivo era mostrar que, algumas vezes, as mulheres
também reproduzem discursos machistas.
A sexta equipe também apresentou uma única imagem, mas há vários balões de
falas que conferem uma progressão a narrativa. Na atividade, o pai deixa a cargo da mãe a
responsabilidade de explicar à filha o que é machismo pelo simples fato de achar que, por ser
homem, podia se eximir da responsabilidade de falar sobre machismo e de participar mais
efetivamente da educação das crianças, função, muitas vezes, vista como exclusiva da mulher.
Esta etapa teve como objetivo motivar os alunos a conhecerem a literatura afro-
brasileira a partir da produção da escritora Conceição Evaristo, enfatizando o
comprometimento dessa literatura com as questões sociais relacionadas aos negros da nossa
realidade periférica brasileira. Nessa etapa, desenvolvemos uma proposta didática em torno do
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Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=dHAaZQPIF8I&t=22s. Acesso: 06 set. 2018.
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pleno domingo, com restos de alimentos e uma gorjeta como é possível perceber no trecho a
seguir:
No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa
os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as
frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A
gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados.
Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir o nariz. Daria para
comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As
crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam de melão
(EVARISTO, 2016, p.39).
reconheceu o homem. Quanto tempo, que saudades! Como era difícil continuar a
vida sem ele (EVARISTO, 2016, p. 40).
Muitos alunos relataram que a história da protagonista parecia com a de suas mães
que foram abandonadas ou estavam separadas de seus companheiros. Alguns relataram, com
certa mágoa e tristeza, que nunca conheceram o pai, assim como o filho de Maria. Além
disso, chamamos a atenção dos alunos para as atitudes do homem, o qual se aproxima da
mulher para perguntá-la sobre o filho e sobre sua vida e logo depois anuncia um assalto ao
ônibus junto com o comparsa.
Depois de assaltarem aos passageiros do ônibus, o ex-companheiro de Maria e seu
comparsa descem sem levar nada da mulher que passa a ser acusada de cúmplice dos
bandidos.
Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se.
Ela não conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o
homem que tinha sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra
safada, vai ver que estava de coleio com os dois (EVARISTO, 2016, p. 41).
1-Maria tinha um corte na mão feito com uma faca a laser enquanto cortava o
pernil da patroa. O penúltimo parágrafo apresenta o trecho a seguir: ―Estavam
todos armados com facas a laser que cortam até a vida.‖ De fato, os passageiros
possuíam facas a laser? O que essa imagem representa?
b) Ao se referir ao sexo dos filhos de Maria, o texto diz que ―eles haveriam de ter
outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente.‖ Por quais razões e de que
forma a vida deles se diferenciariam da vida de Maria?
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade
ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação,
isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
Apesar de alguns alunos não ter realizado a atividade em casa, a grande maioria
apresentou respostas coerentes para os questionamentos. A primeira questão explorava os
sentidos construídos pela autora ao afirmar que os agressores de Maria estavam armados com
facas a laser. Nossa expectativa de resposta era que os alunos fossem capazes de perceber que,
naquele momento, os agressores sentiam-se em uma posição de poder superior à mulher,
desrespeitando seus direitos e causando sofrimentos profundos. Todos os alunos afirmaram
que os passageiros não estavam, de fato, armados com facas, mas identificaram que essa
imagem representa a gravidade das agressões sofridas por Maria.
P25 – Eles não estava (sic) armados, mais (sic) como tratavam Maria fazia com que
a dor seja mais forte que a própria faca a laser.
P21 – Que eles estavam armados com palavras que eram ofensivas.
P03 – Não, as palavras machucam tanto quanto a faca laser.
P02 – Não, mas representa a maneira que ela foi tratada e como doeu, ao (sic) ponto
de bater até tirar sua vida.
P36 – Não, isso representa que eles estavam causando muita dor naquele momento.
pelas críticas que seu ex-companheiro poderia fazer a ela como é possível perceber nas
respostas a seguir:
P37 – Agiu assim porque tinha tido outros homens e perante a sociedade, isto é
proibido. Porém, não tinha motivo.
P22 – Porque ela sentiu vergonha. Não fez nada de errado porque ela tem o livre
arbítrio de fazer o que quiser da vida dela.
P33 – Porque havia se relacionado com outros homens e diante da sociedade isto é
errado.
P19 – Porque ela achava que seria criticada pelo ex-companheiro dela.
As respostas acima nos comprovam que os alunos percebem que vivemos em uma
sociedade que possui valores patriarcais e que ainda impõe às mulheres um modelo de
comportamento que cerceia o livre exercício de sua sexualidade. No segundo item,
questionamos por quais motivos Maria acreditava que a vida de seus filhos ―haveria de ser
diferente‖ pelo simples fato de serem homens e a maioria dos alunos julgou ser o machismo a
principal razão para essa crença, uma vez que, segundo os alunos, em uma sociedade machista
os homens são menos julgados, possuem mais oportunidades e liberdades.
P05 – Porque eles são homens e tem (sic) muito mais oportunidades.
P21 – Homens não sofrem com o machismo, não são julgados.
P02 – Eles não irão sofrer os mesmos preconceitos porque eles são homens e nossa
sociedade é machista.
P20 – Por eles serem homens e terem outros modos de trabalharem de maneiras
diferentes, que as mulheres não podem.
P29 – Ela não queria que seus filhos se envolvessem com coisas erradas então ela
faria o possível para evitar isso.
P17 – Porque ela trabalhava muito pra (sic) eles estudarem e terem um futuro
melhor.
de que os filhos de Maria nunca haviam experimentado melão. Alguns alunos apresentaram
um pouco de dificuldade de compreensão, mas em todas as respostas os alunos perceberam
que este fato se deve aos poucos recursos financeiros da família.
P18 – A pobreza que os filhos de Maria passa é a realidade de muitos. Eles não
comeram melão porque não tinham dinheiro.
P03 – Por serem pobres e não terem condições de comprarem frutas ou comidas de
boa qualidade.
P02 - Desigualdade social pelo fato da fruta ser tão comum, mas eles não terem
condições para experimentá-la.
P37 – É a questão da desigualdade social porque poucos tem (sic) muito e muitos
não tem (sic) nada, geralmente os negros.
I – Violência física: Maria levou tapas, foi linchada e morta. Ex: ―Olha só, a negra
ainda é atrevida, disse o homem lascando um tapa no rosto da mulher.‖
II – Violência psicológica: Maria sofreu constrangimentos, foi xingada e
amedrontada pelos passageiros. Ex: ―Alguém gritou que aquela puta safada conhecia
os assaltantes. Maria assustou-se.‖
IV – Violência patrimonial: Os poucos bens de Maria foram destruídos. Ex: ― A
sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão.‖
V – Violência moral: Ela foi caluniada, chamada de puta sem nem conhecerem a
vida dela. Ex: ―Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões!‖
A participação dos alunos durante a discussão sobre esta questão foi muito boa.
Eles identificaram vários exemplos de violência na narrativa e fizeram alguns paralelos com
histórias reais, demonstrando compreensão e apropriação da temática trabalhada.
Para a culminância desta sequência básica de leitura, pedimos aos alunos que
pesquisassem, em casa, sobre a Lei Maria da Penha. Na aula do dia seguinte, após a
socialização da atividade escrita, como atividade de extrapolação, apresentamos três opções
de atividade de produção a ser realizada em grupos e apresentada para a turma
posteriormente. A primeira opção apresentada foi a produção de cartazes para serem colados
na escola, com o objetivo de alertar e esclarecer a comunidade escolar sobre o tema violência
contra a mulher. A segunda opção, a dramatização do conto e como terceira opção, o reconto
da narrativa a partir de outras perspectivas.
Nenhum aluno optou por fazer o reconto da narrativa por escrito e apenas uma
equipe fez a dramatização do conto. Porém, a equipe fez modificações no texto, inserindo
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novos personagens e falas em defesa de Maria, mas os alunos mantiveram o desfecho igual ao
original, no qual Maria é linchada e morta. Apresentamos a seguir o trecho do conto
modificado pelos alunos.
De acordo com a equipe, eles acreditavam que Maria merecia a chance de tentar
se defender, mas que a morte dela no final é importante, pois deixa o leitor chocado e gera
uma reflexão sobre o que foi lido. A apresentação foi feita, posteriormente, em sala de aula
para a turma. A encenação demonstrou envolvimento e criatividade do grupo que aproveitou
as próprias cadeiras da sala de aula para construir o cenário do ônibus. Nas imagens da
encenação apresentadas a seguir, é possível ver o momento em que os dois homens estão
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assaltando aos passageiros do ônibus e a cena final em que Maria está morta ao lado de sua
sacola.
As equipes que optaram por fazer cartazes abordaram a violência contra a mulher.
A equipe I optou por mostrar a importância da educação para o combate à violência contra a
mulher e o feminicídio como é possível ver na imagem a seguir:
mostrar que, muitas vezes, as mulheres escondem a violência sofrida por medo ou por
vergonha. Além disso, o cartaz fala ainda sobre a Lei Maria da Penha e incentiva que a
comunidade denuncie esse tipo de violência ligando para o número 180.
A criatividade dos alunos nos chamou atenção neste trabalho, pois na falta de
imagens de mulheres que sofreram violência, os alunos pegaram duas imagens de mulheres e
pintaram manchas em seus olhos representando marcas de violência como é possível ver no
recorte mostrado abaixo:
Todos os cartazes foram expostos nos corredores da escola para que a comunidade
escolar tivesse a oportunidade de refletir sobre esse assunto que é tão importante para toda a
sociedade.
que os alunos aprendam a fazer uso da linguagem, adotar diferentes pontos de vistas e
entender as histórias.
Concluída a discussão, cada aluno registrou em seu portfólio suas reflexões a
respeito do conto lido. Abaixo, apresentamos alguns registros produzidos pelos alunos:
P03 – A história é um pouco triste porque o Estrelinho perde o amigo dele e a moça
perde o irmão, mas eu gostei porque fez a gente pensar como ninguém vive pra
sempre e por isso temos que aproveitar enquanto temos pessoas especiais do nosso
lado.
P21 – Minha reflexão é sobre a guerra que é igual a violência de hoje em dia. No
mundo de hoje tudo está muito violento e as vezes a gente sofre e pessoas que a
gente ama morrem por causa disso como o amigo do cego Estrelinho morreu.
P35 – O conto me fez pensar sobre como é importante a gente ajudar as pessoas que
precisam, as pessoas com necessidades especiais e como, às vezes, palavras e
pensamentos positivos podem ajudar sem a gente nem perceber.
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Disponível em https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/mais-uma-vitima-do- trabalho-
infantil-menino-de-12-anos-morre-soterrado-em-obra-no-ceara-2/. Acesso em: 30 out. 2018.
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filhos, já que a irmã de Lumbiá também vende flores nas ruas. Entre as principais causas do
trabalho infantil foram apontados, pela aluna, a pobreza, a baixa escolaridade dos pais, a
grande quantidade de filhos e a busca por mão-de-obra barata. Analisando essas causas os
alunos atribuíram a ―culpa‖ do trabalho infantil apenas aos pais, mas intervimos e
questionamos se as desigualdades marcantes de nosso país não teriam influência nessa
realidade. Alguns alunos afirmaram que sim, mas não souberam explicar.
Partindo disso, instigamos uma reflexão a respeito dos problemas sociais e das
responsabilidades da família, da sociedade e do Estado na garantia dos direitos das crianças, a
partir da leitura do artigo 227 da Constituição Federal:
Após a participação dos conectores, pedimos aos alunos que tinham a função de
questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles, pois, de acordo com
Cosson (2017, pág. 142), o questionador prepara perguntas, normalmente de cunho analítico,
sobre a obra para os colegas. O primeiro participante elaborou dois questionamentos. Na
primeira pergunta, o aluno questionou os motivos pelos quais a mãe de Lumbiá não o
acompanhava até a loja para ver o presépio. Diferentes motivos foram cogitados pelos alunos.
A maioria dos alunos afirmou que a mãe não teria tempo para acompanhá-lo, pois também
estaria trabalhando. Alguns alunos acreditavam que Lumbiá não teria informado a mãe de seu
desejo de entrar na hora para ver ao presépio, pois ele já era tão independente que acreditava
não precisar de sua companhia.
No entanto, muitos discentes afirmaram que ela não tinha interesse em
acompanhá-lo e não iria mesmo que o menino muito pedisse, pois, nas palavras de uma aluna,
―ela não ta (sic) nem aí para o Lumbiá porque se ela se preocupasse com o menino, não
obrigaria ele (sic) a trabalhar como um adulto, correndo riscos nas ruas‖ P(18). Muitos alunos
concordaram, demonstrando uma leitura crítica das relações familiares presentes no conto,
uma vez que Lumbiá e sua irmã são, de certa forma, negligenciados por sua mãe.
Concordamos com Silva e Rosa (2015), que afirmam que o fato do menino não conseguir
entrar na loja por estar desacompanhado ―é índice sugestivo do abandono do menino, o qual
não pode contar com a companhia da mãe nem mesmo para ter satisfeita uma de suas maiores
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alegrias‖ (p. 230). No momento da discussão acolhemos todas as interpretações feitas pelos
alunos.
Em sua segunda pergunta, o aluno questionou se a loja estaria agindo de forma
correta ao impedir a entrada de menores desacompanhados. Todos os alunos afirmaram que
não, pois, segundo eles, isto é uma forma de discriminação. Uma aluna questionou: ―Mas será
que a loja realmente proibia a entrada de todos os ‗de menor‘ (sic) sozinhos ou só aqueles que
pareciam pobres?‖ (P32). A pergunta da aluna instigou o debate a respeito da conduta de
estabelecimentos e de seus seguranças em relação aos jovens que, de acordo com nossos
alunos, se sentem vigiados e, muitas vezes, perseguidos, por exemplo, nos shoppings.
Solicitamos que o aluno questionador da segunda equipe também apresentasse
seus questionamentos. Inicialmente, ele quis saber como eram os casais clientes de Lumbiá e
a intenção da autora ao apresentar diferentes casais. Os alunos afirmaram que os casais eram
formados por homens e mulheres, mas também havia os casais formados por semelhantes, de
acordo com as palavras da autora. Em relação à intenção, a maioria dos discentes afirmou que
a autora queria apenas mostrar que há casais héteros e homossexuais, mas um aluno afirmou
que a autora quis mostrar que os casais homossexuais têm menos liberdade em público e
destacou o trecho a seguir para justificar sua resposta: ―Havia os casais, em que a dupla era
formada por semelhantes. Homem com homem. Mulher com mulher. Esses casais não se
beijavam em público. Às vezes, faziam um carinho nas mãos do outro‖ (EVARISTO, 2016,
p.82).
Esta pergunta oportunizou um diálogo sobre a homoafetividade, o preconceito
social e a luta das pessoas homossexuais por igualdade e respeito. A maioria dos alunos se
posicionou diante de suas experiências e de outrem, relatando situações e demonstrando suas
opiniões sobre a temática.
A segunda pergunta elaborada pelo aluno foi: Por que Lumbiá gostava tanto do
menino Jesus? Quais as semelhanças entre eles? A turma se deteve mais ao conto e afirmou
que o protagonista se achava parecido com o menino Jesus, pois eram duas crianças pobres.
Um aluno chamou atenção ainda para o trecho do conto que mostra que Lumbiá gostava da
família representada no presépio, pois esta se assemelhava a sua família devido à pobreza de
todos.
De forma geral, as perguntas elaboradas pelos questionadores cumpriram o
objetivo de propor uma análise do texto aos colegas. As discussões foram proveitosas e
contribuíram para o desenvolvimento do senso crítico dos alunos.
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A segunda ilustração mostra Lumbiá feliz fugindo com o menino Jesus em seus
braços. A aluna que produziu a ilustração explicou que sua intenção foi representar o único
momento de verdadeira felicidade do garoto no conto.
Um currículo escolar que não valoriza a riqueza das diferenças culturais e que
torna invisível e/ou marginaliza a diversidade religiosa contribui para a manutenção dos
preconceitos. A escola deve contribuir para a construção de uma imagem que gere uma
identificação positiva do negro e suas culturas, contribuindo assim para o processo de
reconstrução da identidade étnico/racial e para o desenvolvimento da identidade e autoestima
dos alunos negros.
O aluno que desempenhou a função de cenógrafo, responsável por descrever as
cenas principais, de acordo com Cosson (2017), escolheu duas cenas: a cena em que Lumbiá
vende rosas aos casais e a cena da morte do menino. Ao descrever como o menino fazia para
vender seus produtos, o aluno enfatizou as atitudes e técnicas desenvolvidas pelo protagonista
para convencer os clientes, entre as quais o uso do choro e de histórias tristes. Ao descrever a
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cena da morte do protagonista, na qual o pobre garoto pula na rua para fugir do vigilante e é
atropelado por um carro, o aluno enfatizou que Lumbiá, assim como milhares de crianças,
precisava ser mais protegido, mais cuidado. Reafirmamos essa ideia mostrando à turma que o
personagem principal do conto não é apenas mais uma vítima da violência do trânsito, mas
sim, de inúmeras formas de violência como afirmam Silva e Rosa (2015, p. 230):
Antes que à violência do trânsito, sua morte deve-se à violência estrutural, social,
familiar e individual – à sociedade organizada, à desigualdade econômica e social, à
mãe, que não mais o acompanhava nas andanças pela cidade e que não pode nem
mesmo acompanhá-lo na loja, que proibia a visita ao presépio por menor
desacompanhado – cada um e todos têm parcela em sua morte.
Questionamos os alunos se haveria mais alguma cena que eles destacariam e uma
aluna afirmou que escolheria a cena em que Lumbiá passa horas do lado de fora da loja
tentando entrar para ver o menino Jesus no presépio. Segundo a aluna, esta cena mostra a
força de vontade do menino e o quanto seu desejo era grande, pois o garoto passou horas na
chuva, tremendo de frio e de febre, mas não desistiu (P22). Esta aluna não fazia parte das duas
equipes que desenvolveram o círculo de leitura sobre o conto e sua participação, assim como
a participação de outros alunos durante a discussão, demonstra que a metodologia propicia a
interação e a participação dos alunos.
O perfilador, aluno responsável por traçar um perfil das personagens, escolheu
falar sobre Lumbiá e sua mãe. Alguns alunos sugeriram acrescentar Gunga e Beba como
personagens que também representam crianças exploradas, apesar do conto não apresentar
nenhuma outra informação sobre eles, mas é possível compreender que eles vivem situações
semelhantes à de Lumbiá. A sugestão foi acatada pelo grupo, o que demonstra uma abertura
ao diálogo.
As características elencadas pelo aluno após as discussões no grupo são
apresentadas no quadro a seguir:
POEMA I
Lumbiá
Um pequeno menino
negro e pobre
que pelas ruas vive a trabalhar
vendendo doces e flores
para a família ajudar.
Fim de ano
e o natal chega cheio de cor.
Enfeites, árvores e presentes por todo lado,
Mas Lumbiá só fica encantado
com o presépio montado.
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A pobre família
e o bebê da manjedoura
representam Lumbiá.
Tentando se aproximar
Lumbiá é massacrado
ainda com o Deus-menino ao seu lado.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
POEMA II
Pequeno Lumbiá
POEMA III
mulheres negras que batalham muito para criarem seus filhos sozinhas. Esta fala do aluno, ao
comparar sua própria mãe com a personagem do conto, demonstra que ele se sentiu
representado pela literatura afro-brasileira. Além disso, o aluno trouxe para sala de aula uma
notícia9, na qual o candidato a vice-presidência da República, Mourão, afirma que famílias
comandadas apenas por mães ou avós ―são fábrica de elementos desajustados‖. Após a leitura
da notícia que mostra a afirmação de Mourão e as reações nas redes sociais e de outros
candidatos, o aluno pediu a opinião da turma que, no geral, discordou da fala do candidato por
diferentes razões.
Concluída a discussão direcionada pelos conectores, pedimos aos alunos que
tinham a função de questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles. O
primeiro participante elaborou apenas um questionamento: Por que a narradora não lembrava
a cor dos olhos de sua mãe e como ela se sentia por isso? Alguns alunos afirmaram que a
narradora não lembrava a cor dos olhos de sua mãe porque fazia muito tempo que ela havia
saído de casa. No entanto, a maioria dos alunos conseguiu fazer uma análise mais
aprofundada do conto e percebeu que os olhos da mãe da narradora estavam sempre cheios de
lágrimas devido à sua história de dores e sofrimentos. Em relação ao modo como a
personagem se sentia por não lembrar a cor dos olhos de sua mãe, os alunos apresentaram
diferentes pontos de vista: ―ela se sentia triste‖ (P01), ―ela ficou atormentada‖ (P18), ―ela se
sentia culpada e decepcionada com ela mesma por não lembrar‖ (P27).
Sentimos que havia mais a ser dito sobre esse olhar e a viagem da protagonista,
mas resolvemos não interferir e esperar a continuação das discussões. O aluno que
desempenhou a função de questionador da segunda equipe elaborou duas perguntas. Na
primeira, ele questionou quais eram os motivos de preocupação da mãe da protagonista. Uma
aluna afirmou: ―ela tem as mesmas preocupações que quase todas as mães negras e pobres
têm. Ela se preocupa com a falta de comida, se as filhas vão ser felizes e se a casa vai cair em
uma noite de chuva forte‖ (P20). A maioria dos alunos concordou e enfatizou a forma
carinhosa com que ela cuidava das filhas, apesar de todas as dificuldades financeiras. A partir
disso, desenvolveu-se uma discussão a respeito da importância do afeto para a criação dos
filhos e como este nem sempre está presente nas relações familiares, independente da classe
social. Aos poucos, muitos alunos se sentiram a vontade para falar de suas próprias famílias e
alguns se mostraram bastante carentes de atenção por parte dos pais.
9
https://exame.abril.com.br/brasil/mourao-diz-que-familia-sem-pai-ou-avo-e-fabrica-de-elementos-
desajustados/. Acesso em: 15 jan. 2019.
125
A segunda pergunta elaborada pelo aluno foi: por que a narradora diz que sua
história se confunde com a de sua mãe? Inicialmente, os alunos pareciam não saber o que
dizer. Alguns alunos disseram que a filha já não lembrava bem porque a mãe contava muitas
histórias e já fazia muito tempo, outros afirmaram que, na verdade, a escritora quis dizer que
as histórias dessas mulheres eram tão parecidas que acabavam se confundindo. A partir deste
aspecto do conto levantado pelos alunos, levamos a turma a refletir como a questão da
memória e da ancestralidade são características marcantes da escrita de Conceição Evaristo.
Para nossa surpresa, o aluno responsável pela função de pesquisador, ou seja,
aquele que ―busca informações contextuais que são relevantes para o texto‖ (COSSON, 2017,
p.143), pediu a palavra. Ele pediu espontaneamente para apresentar o que havia pesquisado
sobre o contexto do conto, pois achou que complementaria aquilo que estávamos falando.
Antes de descrevermos como foi a conversa no círculo, convém explicarmos a postura que
adotamos ao orientar esta função. Cosson (2017) apresenta o conceito de ―contexto‖
baseando-se em uma definição proposta na área do letramento, podendo ser, portanto,
segundo o autor, aplicado praticamente sem adaptações ao campo literário:
Dessa forma, podemos dizer que o contexto com-o-texto corresponde aos elementos
intratextuais e textuais de uma obra, como a relação entre narrador e protagonista em
um romance e as contrições dos gêneros. O contexto ao-redor-do-texto refere-se às
condições imediatas que envolvem o processamento da obra, logo às várias e
diferentes leituras do leitor enquanto indivíduo. Finalmente, o contexto além-do-
texto compreende as condições culturais e sociais de produção e recepção das obras,
incorporando a noção tradicional de contexto usada nos manuais de história da
literatura ao lado da recepção crítica das obras ao longo do tempo (COSSON, 2017,
p. 58).
aprofundada, acreditamos que essa comparação entre os textos contribuiu para uma melhor
compreensão do projeto de escrita de Conceição Evaristo e como este representa uma
coletividade que por muito tempo foi silenciada.
Dois alunos desempenharam a função de iluminador de passagens e escolheram
passagens do texto para apresentarem à turma. O primeiro trecho escolhido foi:
Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro
algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento.
As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam
debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as
línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco
ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas (EVARISTO, 2016, p.16).
A aluna compartilhou com a turma o quanto essa imagem a tocou, pois ao mesmo
tempo em que revela a imensa pobreza dessa família, que praticamente não tinha o que comer,
mostra também o imenso amor dessa mãe que brincava com as filhas para que elas
esquecessem a fome. Segundo a aluna, essa parte do texto ―é triste, mas ao mesmo tempo é
bonita‖ (P11). Os alunos concordaram e seguiram comentando sobre as formas de brincar da
mãe com as filhas. Aproveitamos o comentário da aluna para enfatizar o tom poético do texto
de Conceição Evaristo, analisando suas escolhas linguísticas e os sentidos construídos a partir
destas.
O segundo aluno responsável pela função de iluminador de passagens escolheu o
trecho final do conto:
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos
olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o
espelho para os olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de
minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente
no meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no
meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se fosse uma pergunta para ela
mesma, ou como se estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou
de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou: - Mãe,
qual é a cor tão úmida de seus olhos? (EVARISTO, 2016, p.19).
olhos de sua filha, Ainá. Diante de tais colocações, percebemos que os alunos conseguiram
adentrar no universo de significados do texto.
Após esse momento, os dois alunos responsáveis pela função de ilustrador
apresentaram seus desenhos. A primeira ilustradora representou as memórias que a
protagonista do conto tem sobre os momentos que sua mãe brincava com ela e suas irmãs.
Seu desenho mostra a mãe brincando de rainha, sendo coroada com flores pelas filhas e
também as figuras que elas imaginavam ao contemplar as nuvens no céu. Durante a
apresentação do desenho, o aluno afirmou que escolheu representar esses momentos porque
eles foram marcantes para a protagonista do conto, uma vez que eram momentos felizes ao
lado de sua mãe.
Durante a conversa a respeito das personagens, os alunos enfatizaram que mais uma
vez o pai não é uma figura presente e chegaram à conclusão de que essa personagem também
representa milhares de mães que batalham para criarem seus filhos sozinhas. A última função
desempenhada nesse círculo de leitura foi a de sintetizador. A aluna apresentou um resumo do
texto escrito em forma de cartaz. Em seu resumo, ela destacou a grande dúvida da
personagem e como isso fez com que ela resgatasse memórias de sua infância, retornando a
casa da mãe para descobrir a cor dos olhos de sua progenitora. Porém, ela descobriu bem mais
do que a cor dos olhos. Segundo a aluna, ela descobriu a ―essência‖ de sua mãe, ou seja, de
acordo com as palavras da participante: ―ela descobriu a força de sua mãe, a força da mulher
negra que sofreu muito pra criar suas filhas e não desistiu diante das dificuldades‖ (P15). Esta
análise da aluna nos revela que a aluna refletiu sobre a leitura e está desenvolvendo sua
capacidade de posicionar-se diante do texto.
Concluídas as apresentações dos grupos, cada integrante das duas equipes
preencheu em seu portfólio os principais pontos da discussão e fez também sua autoavaliação.
A análise das respostas dos portfólios e das autoavaliações mostrou que os alunos gostaram da
temática do conto, de sua linguagem e da metodologia de leitura, pois muitos afirmaram que a
discussão em grupos favorece uma melhor compreensão do texto. Alguns revelaram
insegurança e vergonha de falarem para a turma toda, mas não houve nenhuma recusa de
participação durante as apresentações.
Para concluirmos esse círculo, realizamos na aula do dia seguinte a atividade de
extrapolação. Mais uma vez apresentamos diferentes formas de atividades para que os alunos
escolhessem aquela que gostariam de realizar, de forma individual ou em grupos. A primeira
opção apresentada foi o reconto da narrativa a partir da perspectiva de outra personagem.
Apenas uma equipe realizou esta atividade.
No texto elaborado pela equipe a narradora-personagem é a mãe que apresenta,
sob seu ponto de vista, o retorno da filha à sua casa. O texto, apesar de não possuir o mesmo
tom poético que o conto original, expressa também muita emoção. Apresentamos o texto
produzido pelos alunos a seguir:
130
Depois de tantos anos, eu a vi chegar e meu coração não acreditava no que meus
olhos estavam enxergando. Minha filha, a mais velha de minhas sete filhas estava voltando
para casa depois de tanto tempo longe. Ela partiu à procura de melhorias de vida. Inteligente,
esforçada, foi estudar, pois queria ter uma profissão digna e me ajudar. Ainda lembro de
quando ela me dizia:
- Não se preocupe, mamãe. Teremos uma vida melhor.
Quantas dificuldades nós passamos. Muitos dias, sem ter comida para cozinhar,
brinquei com ela e suas irmãs para que elas não lembrassem da fome. Mas vencemos.
Consegui criar as minhas sete meninas sozinha.
Mas será que ela estava bem? Será que estava doente? Será que me trazia más
notícias? Meu coração estremeceu. Comecei a chorar. Sorria feliz, mas não conseguia conter
as lágrimas.
Ela se aproximou e me deu um forte abraço. Naquele momento senti minha
pequena menina de novo sob minha proteção. Nossas lágrimas se misturaram num pranto de
felicidade. Ela me olhou nos olhos como que queria descobrir algo. Não entendi, mas também
não desviei o olhar. Queria dizer pra ela, sem usar uma só palavra, que eu estaria ali sempre
que ela precisasse.
Fonte: Dados coletados por meio de proposta aplicada
Mulher negra
5.1.5.3 Terceira apresentação dos círculos de leitura: Conto ―Zaíta esqueceu de guardar os
brinquedos‖.
10
Disponível em: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2018/10/11/criancas-sao-vitimas-de-balas-perdidas-e-
casos-de-violencia-em-tres-dias-seguidos-no-ceara.ghtml. Acesso: 10 jan. 2019.
133
Além disso, o aluno conector perguntou a opinião da turma sobre a violência tão marcante em
nossa sociedade e o que deveria ser feito para combatê-la. Todos os alunos disseram que
qualquer forma de violência é prejudicial, mas, na opinião da maioria deles, quando a
violência ocorre contra uma criança é inaceitável e revoltante. Os alunos apresentaram
diferentes medidas que devem ser tomadas para se combater a violência como, por exemplo,
mais segurança e/ou policiamento, leis mais firmes, campanhas educativas, educação e
combate às facções e ao tráfico de drogas.
Após essa conversa inicial, pedimos à aluna que desempenhou a função de
conector da segunda equipe para iniciar sua apresentação. A aluna optou por falar a respeito
da vida nas comunidades carentes do Brasil, a partir dos fatos apresentados no conto.
Inicialmente, ela perguntou a turma como é a vida nessas comunidades e a maioria dos alunos
deram respostas semelhantes a estas: ―é uma vida difícil, cheia de privações‖ (P32), ―falta
tudo‖ (P04), ―tem muita violência‖ (P06), ―é preciso trabalhar muito, mas, geralmente, se
ganha pouco‖ (P28). A partir das respostas dos colegas, a aluna mostrou como a realidade da
comunidade do conto representa a realidade da periferia do país. Aproveitamos o momento
para levar os alunos a refletirem sobre como as pessoas que vivem nessas comunidades são
historicamente desfavorecidas e enfrentam situações diversas de exclusão e violência.
Concluída a participação dos conectores, pedimos aos alunos que tinham a função
de questionadores que apresentassem as perguntas elaboradas por eles. O questionador da
primeira equipe elaborou duas perguntas. Na primeira, perguntou a opinião da turma a
respeito da justificativa dada pelo irmão de Zaíta para entrar no mundo do crime, pois o rapaz
escolheu essa vida porque não queria ser igual aos trabalhadores da comunidade que
trabalhavam muito, mas ganhavam pouco. Essa pergunta gerou um breve tumulto, pois havia
muitas opiniões diferentes. Alguns poucos alunos disseram concordar com o personagem do
conto, pois seria injusto o fato de tantas pessoas trabalharem tanto e não receberem
remunerações satisfatórias; outros afirmaram que o rapaz estava certo porque ―no Brasil,
faltam oportunidades para os mais pobres‖ P(25), enquanto que outros defenderam que
algumas pessoas das classes mais desfavorecidas roubam porque veem pessoas com bens que
elas não têm acesso e esta seria a única forma de possuir esses bens.
Entre aqueles que disseram não concordar com o rapaz, era unânime a visão de
que, na verdade, o rapaz teria escolhido o caminho do crime, pois não estava disposto a se
esforçar para ter uma vida digna. Sobre a vida do crime os alunos afirmaram que: ―não é
digna‖ (P10), ―não compensa‖ (P36), ―só traz muito sofrimento e dores‖ (P12). Além disso,
alguns alunos disseram acreditar que seria uma questão de má índole, pois o rapaz,
134
Desde pequeno, ele vinha acumulando experiências. Novo, criança ainda, a mãe nem
desconfiava e ele já traçava o seu caminho. Corria ágil pelos becos, colhia recados,
entregava encomendas, e displicentemente assobiava uma música infantil, som
indicativo de que os homens estavam chegando (EVARISTO, 2016, p. 74).
P23 – Sim, ela poderia ter estudado bastante pra entrar numa faculdade e conseguir
um bom emprego para ajudar a família dela.
P35 – Acho que ela ia crescer na favela e virar uma mulher trabalhadora como a mãe
dela, casar e ter filhos.
P12 – Ela podia também crescer e engravidar cedo, ter filhos e continuar a vida
como muita gente por aí.
Percebemos por essas respostas que a turma imagina diferentes destinos para a
personagem. Em alguns, sua vida seria semelhante à de sua mãe, já em outros, ela buscaria
melhorias de vida através dos estudos. No entanto, nos chamou atenção durante a discussão o
fato de poucos alunos acreditarem que ela seria capaz de avançar nos estudos e construir um
futuro diferente. Questionados em relação a essa visão, os alunos alegaram que é difícil
prosseguir nos estudos porque, muitas vezes, os jovens pobres precisam começar a trabalhar
cedo para ajudar as famílias ou ainda, que faltam incentivos e oportunidades de acesso a
cursos. Uma aluna explicou: ―às vezes, o jovem até tem vontade de estudar, mas é difícil
continuar quando não se tem dinheiro pra passagem ou pra comprar material de estudo‖
(P20).
O aluno questionador da segunda equipe elaborou duas perguntas que se
complementam: Por que Benícia (mãe) estava sempre tão irritada? Como esse comportamento
da mãe marca seu relacionamento com as filhas? Em relação à primeira pergunta, os alunos
identificaram diferentes motivos:
P08 – acho que a mãe se estressava porque tinha muito trabalho, mas ganhava muito
pouco.
P22 – a mãe se irritava porque as crianças faziam muita bagunça e não ajudavam em
casa.
P28 – acho que a mãe era revoltada com a vida de pobreza e miséria que eles
levavam, apesar de trabalharem tanto.
P33 – ela também devia estar com raiva porque seu filho se meteu no crime e ela
não podia fazer nada para ajudar. Era mais uma preocupação pra (sic) cabeça dela.
Essas respostas revelam que os alunos perceberam que o conto traz a realidade
que muitas mulheres enfrentam, trabalhando arduamente para conseguir criar seus filhos e
enfrentando as precariedades da vida nos bairros mais pobres. Para Silva e Rosa (2015, p.
227):
Aos trinta e quatro anos, e a mãe de quatro filhos que variam da infância à idade
adulta, a mãe de Zaíta vive cansada, faminta, contudo, necessita trabalhar, pois ―se
parasse, a fome viria mais rápida e mais voraz ainda‖ (EVARISTO, 1991, p.40).
Irrita-se com as travessuras das gêmeas Zaíta e Naíta, uma impaciência que tem sua
origem última na frustração ante a luta inglória pela sobrevivência, e ante o medo
acerca do destino que caberá a si e a sua prole, já que vive em comunidade violenta,
e sabe que um dos filhos estava envolvido em atividades ilícitas.
tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos.
Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão (EVARISTO, 2016, p.76).
O aluno disse ter escolhido esse trecho porque ao mesmo tempo em que mostra os
perigos que a menina estava exposta ao andar pelas ruas e como os moradores se sentiam
assustados, é possível ver a solidariedade através do gesto do menino que pede que Zaíta se
proteja. Além disso, o aluno enfatizou também a linguagem poética da escritora que narra um
momento tenso e perigoso com palavras ―bonitas‖, de acordo com o aluno, ao comparar as
balas às ervas daninhas que tiram a vida da menina. Uma aluna destacou ainda sobre esse
trecho a forma como a escritora mostra que os homens armados se isentam de suas
responsabilidades e somem (silenciosos, cegos e mudos), fingindo que não viram as pessoas
que foram atingidas. A partir desse comentário, refletimos sobre as responsabilidades dos
agentes de segurança e do Estado frente a casos semelhantes ao que está sendo mostrado no
conto.
A aluna que desempenhou a função de iluminador de passagens da segunda
equipe escolheu o trecho a seguir:
Benícia, ao dar por falta das meninas, interrompeu os pensamentos. Não ouvia as
vozes das duas havia algum tempo. Deviam estar metidas em alguma arte. Sentiu
certo temor. Veio andando aflita da cozinha e tropeçou nos brinquedos
esparramados pelo chão. A preocupação anterior se transformou em raiva. Que
merda! Todos os dias tinha que falar a mesma coisa! Onde as duas haviam se
metido? Por que tinham deixado tudo espalhado? Apanhou a boneca negra, a mais
bonitinha, a que só faltava um braço, e arrancou o outro, depois a cabeça e as pernas.
Em poucos minutos, a boneca estava destruída; cabelos arrancados e olhos vazados.
A outra menina, Naíta, que estava no barraco ao lado, escutando os berros da mãe,
voltou aflita. Foi recebida com tapas e safanões. Saiu chorando para procurar Zaíta
(EVARISTO, 2016, p.75).
Ao justificar a escolha, a aluna explicou que esse trecho revela diferentes nuances
sobre a vida dessas três mulheres, mãe e filhas. Para ela, por conta dos afazeres diários,
Benícia demora a sentir a falta das meninas, mas a mulher fica temerosa ao perceber a
ausência devido aos inúmeros perigos que o lugar onde moram oferece. No entanto, para a
aluna, o fato de a mãe destruir os poucos brinquedos das filhas por estar com raiva mostra que
as crianças são vítimas de violências até mesmo dentro de casa. Para alguns alunos, o fato da
bonequinha ser destruída pela mãe mostra que essas meninas não têm direito a ter infância.
Nesse sentido, uma aluna afirmou: ―Pra mim, como a mãe não podia descontar sua raiva toda
nas meninas, ela destruía seus brinquedos, mas isso é muito ruim porque toda criança precisa
brincar e ela (a mãe) está tirando esse direito delas‖ (P32).
137
Zaíta e sua família são, pois, vítimas de violência estrutural que, como no caso de
Lumbiá, acaba resultando em ambiente familiar adverso, favorável ao cultivo de
formas de violência física (agressões, gritos, palmadas, atos cometidos pela mãe,
extenuada e irritada pela fadiga e pobreza), psicológica (insulto, isolamento,
rechaço, ameaças, omissão de carinho e supervisão) e até econômica, já que a mãe,
quando estressada, destruía os parcos bens com que a menina contava – a boneca de
um braço só, e outros brinquedos que deixava espalhados pela casa.
O aluno explicou que algumas características são citadas no texto, mas que a
maioria delas foi construída pelas impressões do grupo durante a leitura e discussões sobre o
conto. Além disso, o aluno explicou que os filhos homens não são nomeados no conto, pois
eles são tratados apenas como ―o primeiro ou o segundo irmão de Zaíta‖ ou ―o segundo
filho‖. Inicialmente, a equipe não tinha dado importância para o fato dos homens do conto não
serem nomeados, mas instigamos a reflexão e durante as discussões o grupo chegou à
conclusão de que isso ocorre porque a escritora quis dar ênfase à história das três mulheres:
Benícia, Zaíta e Naíta.
Levando em consideração que já estávamos conversando sobre os nomes dos
personagens, pedimos à aluna que desempenhou a função de dicionarista para apresentar as
palavras que havia escolhido. Ela explicou que assim como toda a turma, também ficou
curiosa sobre o significado dos nomes das personagens, mas achou somente o significado do
nome Benícia, o qual remeteria a ―bondade‖. Esse significado do nome estabelece uma
relação adequada com as características da personagem que, apesar de perder a paciência
facilmente com as filhas, é uma boa mulher, que trabalha muito para criar os filhos e ainda
ajuda nas despesas da irmã. A aluna destacou ainda as palavras construídas a partir do recurso
da hifenização, a saber: ―figurinha-flor‖, ―menina-flor‖. Ambas se referem no conto à
figurinha preferida de Zaíta e, provavelmente, fazem referência à menina.
Um aluno da turma perguntou o significado da palavra ―jaziam‖ na frase: ―Cinco
ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão‖ (EVARISTO, 2016, p. 76). A aluna
dicionarista explicou com suas palavras que significava que essas pessoas estavam mortas. No
entanto, para sanar a dúvida, fornecemos dicionários para que os alunos pudessem pesquisar o
significado e assim compartilhar com a turma. Esse momento foi oportuno para enfatizarmos
a importância do manuseio de dicionários e da busca do significado de palavras importantes
para a compreensão de um texto.
Após esse momento, o aluno responsável pela função de cenógrafo fez a descrição
de duas cenas que considerou as principais: a cena em que Zaíta sai à procura de sua figurinha
e deixa os brinquedos espalhados no chão, o que gera um ataque de raiva na mãe, e a cena
final em que Naíta encontra a irmã morta no meio da rua. O aluno afirmou ter escolhido essas
duas cenas porque nelas podemos perceber a inocência das crianças frente a tudo que as
rodeia. Segundo o aluno, na primeira cena o amor infantil por seu brinquedo é mais forte do
que o medo que Zaíta sente da mãe e por isso, ela sai e deixa os brinquedos espalhados,
mesmo sabendo que seria castigada pela mãe. No entanto, ―ela não vai apanhar da mãe porque
sua vida foi interrompida muito cedo‖ (P37). Além disso, o aluno interpretou como inocência
139
infantil a frase dita por Naíta ao avistar sua irmã caída, a frase final do conto: ―E, assim que se
aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, o espanto e o medo: - Zaíta, você
esqueceu de guardar os brinquedos‖ (EVARISTO, 2016, p.76). Para o aluno cenógrafo, a
cena era forte demais para a criança que inocentemente não sabia o que dizer naquele
momento e falou aquilo que diria se tivesse encontrado a irmã com vida.
Os alunos concordaram com a leitura do colega, mas alguns citaram outras
interpretações para o final do conto como, por exemplo, o fato de que os brinquedos
espalhados não seriam mais recolhidos pela menina. Outros momentos do conto foram
considerados também como cenas principais por alguns alunos como, por exemplo, a cena da
noite em que Zaíta percebe que a mãe está aflita, pois seu segundo filho estaria cometendo
crimes e também a cena em que Benícia volta do supermercado com as compras e o conto traz
uma reflexão a respeito das dificuldades financeiras da classe trabalhadora. Essas diferentes
opiniões foram compartilhadas, mantendo o respeito à opinião do outro.
Após esse momento, pedimos aos dois alunos que desempenharam a função de
ilustradores para apresentarem suas ilustrações. O primeiro desenhou Zaíta com sua figurinha
preferida, pois, segundo o aluno, essa figurinha significava muito para a menina. Além disso,
o desaparecimento da figurinha é o que desencadeia a saída desesperada da garotinha que fica
exposta a violência local.
Os alunos fizeram uma paródia da música ―50 reais‖ da cantora Naiara Azevedo
que trata de uma situação de infidelidade conjugal. Na versão dos alunos, o filho mais velho
de Benícia encontra o irmão mais novo cometendo crimes e mostra sua indignação diante da
situação. De forma bem humorada, a paródia faz uma crítica ao mundo do crime.
PARÓDIA
Vá trabalhar, rapaz.
Bonito!
Que bonito hein!
Que cena mais triste
Será que o rapazinho se acha o chefe daqui?
Bandido!
―Cê‖ tá de brincadeira
Então você acha que o crime é vida maneira.
ACRÓSTICO I
ACRÓSTICO II
ACRÓSTICO III
ACRÓSTICO IV
143
têm paciência, alguns dizem que não gostam de textos longos e a maioria afirma ser uma
atividade chata. A partir das respostas ao questionário, compreendemos que grande parte dos
alunos entende a leitura apenas sob a ótica da leitura de livros ou de ―grandes‖ textos,
problemática bastante evidente no ambiente escolar.
Entre os participantes que afirmaram gostar de ler, alguns usaram como
justificativa a metáfora da leitura como viagem e/ou justificaram a importância da leitura para
aquisição de conhecimentos como podemos ver nas respostas retiradas dos questionários dos
alunos a seguir:
Muitos alunos disseram que a leitura é uma boa atividade quando não se tem outra
atividade para fazer, o que revela que a leitura não é uma atividade regular em seu cotidiano,
assim como não é uma das suas primeiras opções para ocupar o tempo livre. Fato confirmado
também nas respostas da pergunta seguinte, na qual questionamos com que frequência eles
costumam ler e a minoria disse que lê sempre, apenas dois alunos (5,5%). Vinte e cinco
participantes (69,5%) disseram ler às vezes e nove participantes (25%) afirmaram ler quase
nunca.
Ao perguntar sobre os motivos pelos quais os alunos leem, o resultado obtido foi
o seguinte:
15
10 8 7
5
0
Prazer Obrigação Outros
A maioria, 21 participantes, afirmou ler por prazer, enquanto que sete afirmaram
ler por obrigação. Entre os que marcaram a opção Outros, no total de sete participantes,
147
quatro afirmaram que leem por necessidade e os demais disseram que leem a Bíblia. Todos os
alunos que leem por prazer disseram gostar de ler na primeira questão.
A pergunta seguinte permitia que os sujeitos da pesquisa marcassem mais de uma
opção. O resultado apresentado foi o seguinte:
Outros 6
Preconceito 14
Educação 10
Namoro 19
Esporte 18
Racismo 10
Religião 11
Drogas 6
Bullying 10
Família 18
Violência 12
Amor 24
0 5 10 15 20 25 30
Outro 5
Cordel 19
Fábula 25
Peça teatral 3
Crônica 16
Novela 3
Conto 28
Poema 25
Romance 19
0 5 10 15 20 25 30
25
20
20 18
14 15
15 Sim
10 Não
4 Já ouvi falar
5
1
0
Afro-brasileira Africana
25 21
20
15 10
10 5
5
0
Sim Não Não lembro dos
autores que leio
A maior parte dos participantes, 58,3%, não se lembra dos autores das obras que
leem, cinco participantes disseram nunca ter lido autores negros e apenas dez participantes
(27,7%) afirmaram ter lido obras de autores negros. Este resultado mostra a necessidade de
levarmos obras de autores negros para o contexto escolar, sobretudo, os textos comprometidos
em problematizar a situação do povo negro na sociedade.
Na questão seguinte, perguntamos se os alunos já haviam lido histórias com
personagens negros. A maioria, vinte e quatro participantes (66,6%), afirmou já ter lido textos
que apresentavam personagens negros. Apenas dois participantes afirmaram não ter lido
textos com personagens negros, enquanto que dez participantes (27,7%) disseram não
lembrar. Levando-se em consideração que os alunos já teriam lido obras com personagens
negros, a pergunta seguinte questionava a percepção dos alunos em relação à moradia e à
classe social desses personagens nos textos lidos. O resultado é apresentado a seguir:
6,10% 6,10%
Centro da cidade
Periferia
36,70%
Moradores de rua
51% Outro
0
12%
30%
Classe alta
Classe média
Pobres
Mendigos, moradores
de rua
58%
Negros
1 2
4
Fome
3 19
4 Animais
Pobreza
4
Pessoas sofrendo
Várias culturas
9
Copa da África do Sul
15 Danças
Madagascar
7
Safari
10 Conflitos
12
Paisagens maravilhosas
A maior parte dos participantes, dezenove, afirmaram que pessoas negras são a
primeira imagem que lembram ao pensar na África. Em segundo lugar, os participantes
citaram a ―fome‖ e em terceiro, ―animais‖. Um número considerável de participantes citou
―pobreza‖ e sete disseram lembrar ―pessoas sofrendo‖, o que nos permite inferir que seja
pelos mesmos motivos já citados anteriormente por outros participantes como a fome e a
pobreza. Outros aspectos como a ―Copa da África do Sul‖, a existência de ―paisagens
maravilhosas‖, as ―danças‖ e a presença de ―várias culturas‖ foram citados por um número
menor de alunos.
Estes dados revelam que a visão dos alunos a respeito do continente africano está
repleta de estereótipos historicamente veiculados pela mídia, e até mesmo pelos livros
didáticos, e que já foram cristalizados no imaginário popular. A imagem da África como um
lugar homogêneo, com uma cultura exótica, mas que impera a fome e a miséria. Esta
representação contribui para que os povos africanos e seus descendentes no Brasil sejam
vistos de forma inferiorizada e preconceituosa.
Na questão seguinte, perguntamos se há relações entre Brasil e África e, em caso
afirmativo, pedimos que os alunos citassem as relações que identificavam. Todos os
participantes afirmaram haver relações entre o Brasil e o continente africano, mas dois não
153
souberam citar nenhuma relação. Dez participantes afirmaram que a principal relação é a
nossa descendência, pois somos descendentes de africanos. A cultura, as danças e a comida
também foram citadas como relações entre Brasil e África. Apresentamos alguns comentários
dos alunos a seguir:
5 2
0
0
Ótima Boa Regular Ruim
P01 – Porque a gente pode aprender e conhecer mais sobre essas pessoas tão incrivel
que são os africanos e os afro-brasileiros.
P03 – Sim, porque deu pra ver um pouco da realidade de hoje.
P10 – Sim porque serviu pra nós vermos como está o preconceito e o racismo. E
serviu para conhecermos mais sobre as culturas africanas.
P15 – Sim, era triste mas sempre tinha algo legal para aprender e as atividades era
muito interessante.
P16 – Eu acho que foi uma forma de conhecer mais sobre a cultura afro-brasileira e
tirar várias dúvidas. Também falar sobre racismo
P20 – Sim, porque eu nunca tinha lido esse tipo de conto e é sempre bom novidades.
P29 – Sim, porque aprendi sobre as culturas, jeitos, as personalidades e também
discutimos como o racismo e o machismo não é uma coisa boa.
P34 – Sim, foi bom conhecer contos diferentes, uma literatura que realmente faz
você pensar como está o mundo atual ou dispertar em você um ponto de vista e uma
crítica.
P35- Sim, porque abordavam temas que, muitas vezes, passavam dispercebidos pela
sociedade como o racismo, a violência contra a mulher e outros.
30 29
25
21 20
20 17 16
15 12
10 7
5
0
Violência Família Moradia Violência Amor Machismo Racismo Preconceito
contra a urbana
mulher
O tema ―racismo‖ foi apontado pela maioria dos alunos como aquele que mais
despertou interesse, seguido dos temas ―violência contra a mulher‖, ―machismo‖ e
―preconceito‖. Este resultado demonstra uma mudança de percepção dos estudantes em
relação a essas temáticas, uma vez que no questionário inicial temas como ―racismo‖ e
―violência‖ não figuraram entre os preferidos da turma. Além disso, esses dados comprovam
que o trabalho de leitura com o texto literário africano e afro-brasileiro contribui para a
discussão e amadurecimento das questões pertinentes às relações étnico-raciais e de gênero,
confirmando assim, nossas hipóteses iniciais.
A questão 5 - ―Você acha que a partir das experiências com as leituras dos contos
africanos e afro-brasileiros você se tornou uma pessoa mais crítica, atenta para questões
sociais e de sua própria personalidade e identidade?‖, era composta por alternativas SIM,
157
NÃO, UM POUCO e ainda um espaço para o aluno justificar sua resposta. Vejamos o
resultado quantitativo das respostas:
20
15
9
10
5
0
0
SIM NÃO UM POUCO
P03 – Porque paramos pra pensar como está a realidade de hoje e percebi que muitas
coisas são assim há muito tempo, são questões históricas e que tem consequências
até hoje como o racismo contra os negros que é inaceitável.
P17 – Acho que agora estou mais atento a realidade que vivo e a forma como eu
trato as pessoas. Todos somos iguais e temos direitos e deveres.
P19 – Como mulher vi que as pessoas podem ser violentas e cruéis comigo, mas que
tenho que lutar, não posso aceitar o machismo e também não posso ser machista
com as outras mulheres.
P25 - Acho que fiquei um pouco mais crítico porque a gente viu que tem muitas
desigualdades aqui no Brasil e que nós, cidadãos, precisamos cobrar dos
governantes que façam sua parte, mas também temos que fazer a nossa.
P28 – Fiquei um pouco mais crítica em relação a brincadeiras que não são
brincadeiras, são formas de racismo.
Além disso, percebemos, pelas respostas dos alunos, que as discussões acerca das
relações raciais e de gênero contribuíram para que os alunos percebessem e refletissem sobre
fatos e cenas de discriminação que ocorrem em nosso cotidiano e que, muitas vezes, passam
despercebidas. Provavelmente, a participante 28 se refere a formas de discriminação que
ocorrem na própria escola ao afirmar: ―Fiquei um pouco mais crítica em relação a
brincadeiras que não são brincadeiras, são formas de racismo‖. Trazer a discussão do racismo
e das mais diferentes formas de discriminação para o âmbito escolar é uma forma de
desmascarar os diferentes preconceitos que fazem parte da rotina de uma escola e da
sociedade como um todo.
Na questão seguinte, perguntamos aos alunos o que eles aprenderam com a leitura
dos contos africanos e afro-brasileiros. Apesar de serem bem sucintas, as respostas
evidenciam contribuições significativas como podemos verificar nas transcrições a seguir:
P01 – Aprendi muitas coisas, pois pude ver outras histórias, muitas pessoas que
passam por dificuldades, sofrem preconceito, e pude ver que a gente não passa nem
pela metade do que eles passa.
P11 – Aprendi um novo ponto de vista sobre a realidade dos dias de hoje e percebi
que nós que somos afrodescendentes ou negros enfrentamos muitos preconceitos,
mas não podemos desistir.
P13 – Aprendi sobre a religião, seus costumes e hábitos. Sobre como a realidade das
pessoas afro-brasileiras é difícil.
P17 – Aprendi a não ser racista ou machista.
P20 – Aprendi a valorizar mais os africanos e afro-brasileiros, embora não seja o
tipo de texto que mais gosto eu achei interessante os contos deles.
P24 – Muitas coisas eu aprendi tipo a saber mais sobre o racismo, sobre a violência,
as leis que falam da violência contra a mulher entre muitos outros.
P27 – Que não é como todos pensam, depois de conhecer a real história dos
africanos e dos negros você entende melhor e percebe as injustiças.
P29 – Que não se pode em hipótese nenhuma praticar o racismo.
P34 – Aprendi sobre o machismo, o preconceito racial e sobre a violência contra a
mulher.
P37 – Passei a prestar mais atenção na forma como a sociedade trata as pessoas mais
pobres, as mulheres e os deficientes.
A maioria, trinta participantes (83,3%), afirmou que sua visão sobre a África e os
africanos foi modificada a partir da leitura dos contos africanos, enquanto que seis
participantes (16,7%) afirmaram que não houve mudanças em sua forma de ver o continente e
seus habitantes. Entre esses seis alunos, três afirmaram que já possuíam a mesma visão da
África antes das práticas de leitura e por isso disseram não ter percebido nenhuma mudança,
já os demais não apresentaram justificativa.
A maior parte dos que perceberam mudanças em sua forma de enxergar a África,
citaram mudanças na visão pejorativa e repleta de estereótipos que haviam apresentado no
início dessa pesquisa.
160
P10 – Agora sei que nem todos os africanos são negros, mas tem uma realidade bem
parecida com a nossa.
P13 – Porque eu conheci um pouco mais de sua história, um pouco de seus gostos e
costumes.
P15 – Porque agora eu sei que a África não é só crianças passando fome, um povo
escravo e um continente pobre.
P18 – Eu pensava que a África só tinha florestas e animais.
P20 – A África é um continente com diferentes culturas, religiões e dialetos e
valoriza muito nos contos suas questões sociais foi isso que adquiri sobre meu modo
de ver a África.
P37- Deixei de lembrar da África apenas como um continente pobre, com pessoas
escravizadas e agora sei que é um lugar lindo e cheio de cultura.
A análise das respostas mostra que a maioria dos alunos deixou de pensar na
África como um lugar caracterizado apenas pela fome, miséria e sofrimento e passou a
perceber e valorizar a riqueza de sua diversidade. Portanto, o trabalho desenvolvido com o
texto literário africano e afro-brasileiro atuou na reconstrução do imaginário desses alunos,
modificando estereótipos socialmente construídos e ajudando na formação identitária desses
jovens leitores em formação.
161
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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165
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jan. 2018.
APÊNDICES
168
7-Nas suas leituras, quais os temas que você mais gosta?(Pode marcar mais de uma opção)
( )amor ( )bullying ( )racismo ( )educação
( )violência ( )drogas ( )esporte ( )preconceito
( )família ( )religião ( )namoro ( )_____________
169
12- Baseando-se nos textos literários que você já leu, como você percebe os personagens
negros nas histórias?
a)Moradia
( )Centro da cidade ( )Periferia ( )Moradores de rua
( )Outro___________
b)Classe social
( )Classe alta ( )Classe média
( )Pobres ( )Mendigos, moradores de rua
170
ALUNO________________________________________________________ Nº___
Avaliação
1-Você considera que participar das oficinas foi uma experiência proveitosa?
( )Sim ( )Não ( )Não sei
Justifique
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
5-Você acha que a partir das experiências com as leituras dos contos africanos e afro-
brasileiros você se tornou uma pessoa mais crítica, atenta para questões sociais e de sua
própria personalidade e identidade?
( ) Sim ( ) Não ( ) Um pouco
Justifique
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
171
7- Sua visão sobre a África e os africanos foi modificada a partir da leitura dos contos
africanos?
( ) Sim ( ) Não
Justifique___________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
172
FORTALEZA - CEARÁ
2019
173
CONVITE
Abraços,
Raquel de Souza
174
INTRODUÇÃO
A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por
nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É
mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim
sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser
outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do
espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos.
textos que mostram essas culturas de forma positiva, livre de estereótipos negativos criados ao
longo do tempo sobre as pessoas negras. Além disso, são textos que favorecem o
desenvolvimento de um trabalho voltado para a valorização e para o respeito das diferenças
étnico-raciais e de gênero.
Elaboramos, então, dez oficinas que foram desenvolvidas em uma turma de nono
ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública municipal de Fortaleza-Ce.
Utilizamos duas metodologias distintas como forma de ampliar e diversificar o trabalho com o
texto literário em nossa proposta: a metodologia de sequência básica de letramento literário,
de acordo com Cosson (2016) e a metodologia de círculos de leitura estruturados, conforme
Cosson (2017).
Para composição de nossa proposta de intervenção, selecionamos oito contos de
autores contemporâneos, sendo quatro contos africanos e quatro afro-brasileiros, que trazem
temáticas que se aproximam de alguma forma à realidade de nossos alunos e suscitam
discussões por serem histórias que tratam de relações humanas, desigualdades sociais,
preconceito racial, machismo, violência contra a mulher e outros temas tão presentes em
nosso cotidiano.
Para o trabalho com literatura africana, realizamos práticas de leitura com os
seguintes contos: ―As mãos dos pretos‖, de Luis Bernardo Honwana (2010); ―Fronteira de
asfalto‖ (2007), de José Luandino Vieira; ―A saia almarrotada‖ (2009) e ―O cego Estrelinho‖
(2012), de Mia Couto. Quanto à literatura brasileira, trabalhamos os seguintes contos da obra
Olhos d’água, da escritora Conceição Evaristo (2014): ―Maria‖, ―Olhos d‘água‖, ―Zaíta
esqueceu de guardar os brinquedos‖ e ―Lumbiá‖.
É importante salientar que as atividades aqui apresentadas estão divididas por
oficinas e que em cada uma delas as atividades são desenvolvidas a partir de um conto
africano ou afro-brasileiro. Assim, o professor pode optar por realizar o conjunto de todas as
ações ou somente algumas oficinas de acordo com seus objetivos, bem como adaptar as
atividades conforme o nível de aprendizagem de sua turma.
Inicialmente, apresentaremos as metodologias utilizadas para organizar
didaticamente as práticas pedagógicas. Depois, passaremos para a apresentação das práticas
de leitura literária, ressaltando os objetivos de cada oficina e as orientações para a realização
de cada momento.
Caro (a) Professor (a), diante do relevante papel da literatura na formação dos
educandos é imprescindível que a escola ofereça mecanismos para que o letramento literário
dos alunos seja desenvolvido de forma completa. Para isso, é fundamental a realização de
práticas pedagógicas que priorizem a leitura efetiva do
Sugerimos a leitura de
texto literário para que os alunos tenham a oportunidade de
Koch & Elias (2006) para
vivenciar a leitura como um processo de interação entre um maior aprofundamento
a respeito do papel do leitor
autor–texto–leitor que resultará na produção de sentidos
enquanto sujeito ativo,
de acordo com os conhecimentos prévios do leitor construtor de sentidos.
mediante o contexto da obra.
No entanto, essa leitura não pode se limitar a fragmentos de textos ou a ser
exercida apenas para a fruição. É preciso que ela seja organizada de acordo com os objetivos
de formação dos alunos e que seja relacionada à realidade deles. Em sua obra Letramento
literário: teoria e prática (2016), o autor Rildo Cosson apresenta estratégias que visam
promover o letramento literário na escola, através do trabalho com as sequências básica e
expandida. Porém, o autor destaca que as sequências não são uma fórmula imutável e que ao
aplicá-las, cada professor poderá modificá-las para que consiga encontrar novos caminhos
para realizar um letramento literário adequado aos seus alunos e à sua escola. Já na obra
Círculos de leitura e letramento literário (2017), Cosson apresenta a metodologia de círculo
de leitura para efetivar o letramento literário na escola.
As sugestões de ações apresentadas neste manual seguem as metodologias da
sequência básica e dos círculos de leitura estruturados. Dessa forma, queremos apresentar a
você, caso ainda não conheça, esses dois métodos de trabalho com o texto literário em sala de
aula.
correlação com os aspectos a serem apresentados no texto. Para isso, podemos apresentar aos
alunos questionamentos que antecedam a leitura, uma dinâmica ou ainda recorrer a outras
linguagens como vídeos e músicas para que os alunos consigam estabelecer relações com o
texto a ser lido.
A introdução, segundo momento da sequência básica, tem como objetivo
apresentar autor e obra. Nesta etapa, é muito importante que você, professor, apresente a obra
física aos alunos e, se possível, permita que eles a manuseiem. Porém, nesta etapa precisamos
ter o cuidado de não apresentar informações em excesso. Procure falar somente sobre
aspectos da vida do autor e da obra que ajudem a entender o texto lido.
O momento da leitura, terceira etapa da sequência, requer o acompanhamento do
professor. Em caso de textos curtos, é possível solicitar que os alunos façam uma leitura
silenciosa do texto e, posteriormente, fazemos uma leitura oral. Quando o texto for longo
como, por exemplo, um romance, Cosson (2016) orienta que a leitura seja feita em um
ambiente fora da escola por um período determinado.
A quarta etapa é a interpretação, na qual o leitor constrói os sentidos do texto a
partir das inferências e previsões que havia feito antes e durante a leitura e da mesma forma
com seus conhecimentos prévios, seu conhecimento de mundo. É nesta etapa que
desenvolvemos as discussões a respeito do texto lido para que ocorra a socialização da
construção de sentidos por parte dos alunos.
Professor, após as discussões sobre a leitura, você pode apresentar propostas de
interpretação, as quais corresponderão ao registro do processo interpretativo. O tipo de
atividade a ser proposta por você deve ser adequada ao texto lido, à idade dos estudantes e a
outros fatores, mas você pode propor uma tarefa simples como desenhar algo que represente
os sentimentos despertados pela leitura, o desenho de uma cena da narrativa ou uma tarefa
complexa como, por exemplo, realizar uma feira cultural ou uma encenação.
É importante salientar que a realização de todas as etapas da sequência básica é
primordial para que os alunos estabeleçam uma relação mais intensa com o texto e consigam
construir significados sobre o que estão lendo.
Tabela 1 - Quadro das fichas de funções baseado em Daniels (2002 apud COSSON, 2017,
p. 142-143)
Questionador Prepara perguntas sobre a obra para os colegas, normalmente de cunho analítico.
Iluminador de Escolhe uma passagem para explicitar ao grupo, seja porque é bonita, porque é
passagens difícil de ser entendida ou porque é essencial para a compreensão do texto.
Nem todas as funções precisam ser preenchidas e o professor pode criar novas
funções de acordo com o texto lido. No entanto, Daniels (2002), de acordo com Cosson
(2017), considera que as funções de conector, questionador, iluminador e ilustrador são as
mais importantes, pois estão ligadas aos hábitos de leitura de um leitor maduro. Portanto, a
distribuição de fichas de função entre os alunos não é uma obrigação, pois outras formas de
registro podem ser utilizadas. Além disso, os registros podem ser utilizados como forma de
avaliação para os círculos de leitura institucionais. O importante é que o círculo de leitura
promova ―o encontro do leitor com a obra‖ (COSSON, 2017, p. 174).
OFICINA I
Objetivos
Identificar a visão dos alunos sobre o continente africano.
Apresentar a África como um continente múltiplo.
Conhecer os países africanos de língua portuguesa.
Debater sobre as relações entre Brasil e África.
Desconstruir o imaginário marcado por imagens que depreciam o continente africano e
o reduzem a uma série de estereótipos equivocados.
Recursos
Projetor multimídia
Computador
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Caixa de som
Duração prevista:
2 aulas
Professor (a),
Geralmente, nossos alunos possuem poucos conhecimentos sobre o continente
africano e, muitas vezes, possuem uma visão reducionista e pejorativa do mesmo. Esta
primeira oficina tem por objetivo identificar o que os alunos já conhecem sobre África,
180
apresentar uma visão geral dos países africanos de língua portuguesa e debater sobre as
relações entre Brasil e África.
COMO PROCEDER:
Inicialmente, apresente a proposta de trabalho com contos africanos e afro-
brasileiros através de uma conversa informal com os alunos. É importante deixar claro que a
participação de cada aluno é relevante para o processo de aprendizagem.
Após esse momento inicial, instigue os alunos a falarem sobre a África. Para isso,
você pode utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
- O que você pensa ao ver ou ouvir a palavra África?
- Para você, como é a África?
- Quais idiomas são falados na África?
Na sequência, pergunte se a turma conhece uma dupla de hip hop chamada ―Dois
Africanos‖ e exiba o vídeo de sua música intitulada ―Eu sou de lá‖ 11, a qual evidencia a
preocupação em desconstruir a imagem generalizada de pobreza e miséria propagada sobre o
continente africano, ao mesmo tempo em que retrata a vida de jovens africanos que buscam
sonhos em outras partes do mundo.
Estimule os alunos a falarem sobre o que entenderam da mensagem da canção e
direcione a discussão de forma que ocorra uma reflexão sobre as imagens negativas e
preconceituosas que, no geral, a maioria das pessoas tem a respeito da África.
11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dsiVer_HbnA.
181
Após a leitura, instigue os alunos a falarem sobre o poema. Para isso, você pode
utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
- O poeta está comparando o Brasil com qual país?
183
OFICINA II
Objetivos
Propor a leitura do conto ―A fronteira de asfalto‖, do angolano José Luandino Vieira a
partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
Apresentar o livro A cidade e a infância e o escritor José Luandino Vieira.
Tratar a questão das diferenças, valorizando a diversidade a partir da raça negra.
Promover o debate a respeito do preconceito racial.
Recursos
Cópias do conto ―A fronteira de asfalto‖
Projetor multimídia
Computador
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Caixa de som
Duração prevista:
3 aulas
Professor (a),
MOTIVAÇÃO
O vídeo conta a história de um coelhinho branco que acha linda a cor negra de sua
vizinha, a menina do laço de fita, e tenta de diversas formas ficar igual a ela. Depois
de várias tentativas frustradas, ele percebe que não é possível mudar por uma
questão genética. Então, ele casa com uma coelha preta e fica extremamente feliz ao
ter filhos pretos, brancos e malhados, para quem ensina que a beleza está nas
diferenças.
INTRODUÇÃO
12
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UhR8SXhQv6s˃.
13
Disponível em: ˂https://www.wook.pt/autor/jose-luandino-vieira/15732˃
185
LEITURA
A fronteira de asfalto
José Luandino Vieira
A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão.
… – Combinado?
186
As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei…Bem
sabes que não é por mim!
– Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada
a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.
– Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele…
– Está bem mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das
mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos
brilhantes, os lábios arrogantemente apertados.
– Está bem, está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois mergulhando a cara na colcha, chorou.
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra do lenço. Os
carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela.
Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha
uma cor crua em tudo. Luz na janela. Saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo
dos seus pés. O ―Toni‖ rosnou na casota. Avançou devagar até a varanda, subiu o rodapé e
bateu com cuidado.
– Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.
– Ricardo!
– Ricardo? Que queres?
– Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa.
– Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. Amanhã na paragem do maximbombo. Vou
mais cedo…
– Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro.
Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente o facho
da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.
– Alto aí! O que é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal. As folhas
secas cederam e ele escorregou. O ―Toni‖ ladrou.
–Alto aí seu negro. Pára. Pára negro!
Ricardo levantou-se e correu para o muro. O polícia correu também. Ricardo saltou.
189
Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades para a
turma. As atividades podem ser desenvolvidas de forma individual ou em equipes.
Como nossa escola não possui laboratório de informática, nem acesso a internet, os
alunos reproduziram suas campanhas em cartazes.
Disponibilizamos os materiais necessários para a realização das atividades: folha de
redação com a proposta de produção textual, cartolina, revistas para recorte, lápis de cor, etc.
Após a socialização, os cartazes com as campanhas foram colados nos corredores da
escola para que a comunidade escolar tivesse acesso às produções dos alunos e a oportunidade
de refletir sobre o assunto.
191
OFICINA III
Sequência básica II – Conto “As mãos dos pretos”, de Luís Bernardo Honwana.
Objetivos
Propor a leitura do conto ―As mãos dos pretos‖, do moçambicano Luís Bernardo
Honwana a partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
Mostrar que o racismo é uma construção social e ideológica. Ele é reproduzido e
naturalizado por várias instituições como, por exemplo, família, igreja e escola.
Problematizar as relações étnico-raciais.
Recursos
Cópias do conto ―As mãos dos pretos‖
Projetor multimídia
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Duração prevista:
3 aulas
MOTIVAÇÃO
Após ouvir as colocações dos alunos, apresente a notícia a seguir, retirada do site
do jornal O Estado de S. Paulo, e conte resumidamente a história:
192
Questione de que
forma o discurso que
essas crianças ouvem
influencia suas
atitudes.
Questione ainda se os
seus alunos conhecem
alguma história
parecida ou de atitudes
infantis parecidas com
esses dois exemplos.
Fonte: http://unecombateaoracismo.blogspot.com/2009/04/onde-voce-
guarda-o-seu-racismo.html. Acesso em: 08 ago. 2018
Sugerimos que faça uma breve explanação sobre como nossa linguagem e nossas
ações são influenciadas pelos diversos discursos a que estamos submetidos.
INTRODUÇÃO
14
Disponível em: https://tertuliabibliofila.blogspot.com/2012/03/luis-bernardo-honwana-um-escritor.html
194
LEITURA
Para começar a etapa de leitura, apresente o título do conto, ―As mãos dos pretos‖
e peça que os alunos façam predições sobre o assunto do texto.
Ouvidas as hipóteses construídas pelos alunos,
15
apresente a imagem ao lado e solicite que os alunos
respondam, por escrito, a seguinte pergunta:
Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor Professor disse um dia
que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há
poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato,
sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo.
Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós
não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a falar
15
Disponível em: https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-menino-africano-pequeno-que-mostra-palma-como-o-
sinal-da-parada-ao-racismo-%C3%A0-guerra-e-%C3%A0-luta-image85762399
195
nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas
às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que
agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as
mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos
assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer
outra coisa que lhes mandem fazer e que não deve ficar senão limpa.
O Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as
Coca-Colas das cantinas já tenham sido vendidas, disse que o que me tinham contado era
aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de lhe
dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos.
Assim:
- Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria,
São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas
pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos.
Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados de cozer o barro das criaturas,
levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé
do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como
carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se
eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha
volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter
ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma
grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia:
que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banhai num lago do céu. Depois
do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a
essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos
pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim
mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de
mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para
ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
196
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que
calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos
serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela,
estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que
achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis
saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir
sobre a coisa, e esmo até chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O
que ela disse foi mais sou menos isto:
- Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele
pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os
outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou
pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se
tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles
ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que
foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para
mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem
é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem
qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos
dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma
pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.
HONWANA, Luís Bernardo. As mãos dos pretos. In: BRAGANÇA, Albertino. [et al.]; Contos
africanos dos países de língua portuguesa. 1. ed. São Paulo: Ática, 2010.
Após a leitura, ouça as primeiras impressões dos alunos sobre o texto. Questione
se as previsões realizadas antes da leitura foram confirmadas, se não corresponderam às
expectativas ou mudaram na medida em que se lia o texto.
Após a leitura em voz alta, o momento é de discussão e os alunos terão a palavra.
As suas impressões devem ser levadas em consideração e mediadas sempre por você,
professor (a). Para incitar o debate, você pode utilizar perguntas norteadoras como as que
sugerimos a seguir:
-O que cada personagem representa?
197
Entregue uma cópia aos alunos do poema a seguir, escrito pelo poeta afro-
brasileiro Solano Trindade, e realize, em voz alta, sua leitura.
Sou Negro
Por Solano Trindade
Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades a serem
realizadas em equipes.
Primeira opção:
Segunda opção:
OFICINA IV
Objetivos
Propor a leitura do conto ―A saia almarrotada‖, do moçambicano Mia Couto a partir
das etapas da sequência básica de letramento literário.
Debater sobre as diferentes formas de opressão em nossa sociedade.
Questionar a presença do machismo e do discurso de dominação masculina a partir da
realidade africana retratada no conto.
Recursos
Cópias do conto ―A saia almarrotada‖
Projetor multimídia
Computador
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Dicionários
Duração prevista:
3 aulas
MOTIVAÇÃO
INTRODUÇÃO
Explique que o conto faz parte do livro O Fio das Missangas e apresente algumas
informações principais sobre a obra.
LEITURA
A saia almarrotada
Mia Couto
O estar morto é uma mentira. O morto apenas não sabe parecer vivo.
16
Disponível em: https://www.wook.pt/autor/mia-couto/2621
17
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mVQLXL1wvjk
201
Quando eu morrer,
quero ficar morta.
(Confissão da mulher incendiada)
Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos
para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar,
eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci
para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei
sentindo prazer em ter vergonha.
Belezas eram para as mulheres de fora. Elas desencobriam as pernas para
maravilhações. Eu tinha joelhos era para descansar as mãos. Por isso, perante a oferta do
vestido, fiquei dentro, no meu ninho ensombrado. Estava tão habituada a não ter motivo, que
me enrolei no velho sofá. Olhei a janela e esperei que, como uma doença, a noite passasse. No
dia seguinte, as outras chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso
matreiro. E nem inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.
Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no meu primeiro choro,
tragada pelo silêncio.
Única menina entre a filharada, fui cuidada por meu pai e meu tio. Eles me
quiseram casta e guardada. Para tratar deles, segundo a inclinação das suas idades. E assim se
fez: desde nascença, o pudor adiou o amor. Quando me deram uma vaidade, eu fui ao fundo.
Como o barco do Tio Jonjoão que ele construiu de madeira verde. Todos teimaram que era
desapropriado o material. Um arco nos ombros, foi sua resposta. Jonjoão convocou toda a vila
para assistir à largada do barco. Dessa vez, até eu desci aos caminhos. Mal se barrigou nas
águas do rio, a barcaça foi engolida nas funduras.
- Maldição - propalou meu pai, gritando com as nuvens.
Mas eu sabia que não. O barco estava ainda muito cru, a madeira tinha ainda
vontade de raiz. Nosso tio não tinha feito um barco para flutuar. Isso fazem todos, disse, é
tudo barcos, uns iguais e os outros também. E acrescentou:
- Quando secar o rio, o meu barco ainda estará aqui.
Agora, a saia de roda era o barco na fundura das águas. Uma tristeza de nascença
me separava do tempo. As outras moças, das vizinhanças, comiam para não ter fome. Eu comi
a própria fome.
- Filha, venha sentar.
Não diziam ―comer‖ que era palavra dispendiosa. Diziam ―sentar‖. E apontavam
202
que eu já tenho mais ruga que pregas tem esse vestido, posso agora me embelezar de
vaidades? Fico à espera de sua autorização, enquanto vou ao pátio desenterrar o vestido do
baile que não houve. E visto-me com ele, me resplandeço ante o espelho, rodopio para
enfunar a roupa. Uma diáfana música me embala pelos corredores da casa.
Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E
parece que me sento sobre a minha própria vida.
O calor faz parar o mundo. E me faz encalhar no eterno sofá da sala enquanto a
minha mão vai alisando o vestido em vagarosa despedida. Em gesto arrastado como se o meu
braço atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido. Atravesso o quintal em
direcção à fogueira. Algum homem me visse, a lágrima tombando com o vestido sobre as
chamas: meu coração, depois de tudo, ainda teimava?
COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
-A protagonista resgata memórias de sua vida, marcada por ser uma única
mulher em meio a uma família machista. Sua angústia é tocante. Você conhece alguma
história ou alguém que já sofreu devido ao machismo? Conte, resumidamente, como
tudo aconteceu.
-É muito comum ouvirmos dizer que as tarefas de casa são atribuições
femininas e que lugar de mulher é na cozinha, como o conto retrata. Você concorda?
Por quê?
Fonte: https://tirasarmandinho.tumblr.com/
Esta foi uma das atividades que a turma mais gostou de fazer e as discussões foram muito
interessantes, pois o machismo, infelizmente, marca o cotidiano de todos nós. Disponibilizamos
os materiais necessários para a realização da atividade.
Os resultados foram ótimos, pois a turma produziu diversas tirinhas que retrataram de forma
crítica e criativa diversas situações machistas do nosso cotidiano. Espero que com sua turma
aconteça o mesmo.
205
OFICINA V
Objetivos
Propor a leitura do conto ―Maria‖, da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo a
partir das etapas da sequência básica de letramento literário.
Apresentar a literatura afro-brasileira.
Refletir sobre as diferentes manifestações de violência contra a mulher e, em especial,
contra a mulher negra em sua vida pessoal e em comunidade.
Analisar a representação da mulher negra na literatura afro-brasileira.
Recursos
Cópias do conto ―Maria‖
Computador e projetor multimídia
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Duração prevista:
3 aulas
MOTIVAÇÃO
INTRODUÇÃO
Professor (a),
Chegou a hora de apresentar o livro Olhos d’água. Se possível, leve um
exemplar para a sala e deixe que os alunos o manuseiem por algum tempo.
Enfatize que a obra é composta por quinze contos que dão voz aos negros,
principalmente a mulher negra, mostrando as desigualdades sociais, as inúmeras
formas de violência e a marginalização a que foram submetidos pelo grupo detentor
do poder em nossa sociedade.
LEITURA
18
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dHAaZQPIF8I&t=22s. Acesso: set. 2018.
207
Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de
esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com
a caminhada. Os ônibus estavam aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada.
No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos.
O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O
osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa.
Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele
remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas
estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos
gostavam de melão?
A palma de umas de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio,
enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca-laser corta até a vida!
Quando o ônibus apontou lá na esquina, Maria abaixou o corpo, pegando a sacola
que estava no chão entra as suas pernas. O ônibus não estava cheio, havia lugares. Ela poderia
descansar um pouco, cochilar até a hora da descida. Ao entrar, um homem levantou lá de trás,
do último banco, fazendo um sinal para o trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem
dele e de Maria. Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil
continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela se
lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos primeiros
enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que bom! Nasceu! Era
um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem olhar, que era o pai do seu
filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar assustado não se fixando em nada e
em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por que não podia ser de outra forma? Por que não
podiam ser felizes? E o menino, Maria? Como vai o menino? cochichou o homem. Sabe que
sinto falta de vocês? Tenho um buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não
arrumei, não quis mais ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os
olhos como que pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém
também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser
diferente. Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito...
208
O homem falava, mas continuava estático, preso, fixo no banco. Cochichava com
Maria as palavras, sem entretanto virar para o lado dela. Ela sabia o que o homem dizia. Ele
estava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filho, de vida, de morte, de despedida. Do
buraco-saudade no peito dele... Desta vez ele cochichou um pouquinho mais alto. Ela, ainda
sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho. E logo
após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria estava
com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O mais
velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma na
mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio de
todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem
tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida
dos seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das
pessoas. O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os
assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil
cruzeiros. Não tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. Aliás, nas
mãos tinha sim! Tinha um profundo corte feito com faca-laser que parecia cortar até a vida.
Os assaltantes desceram rápido. Maria olhou saudosa e desesperada para o
primeiro. Foi quando uma voz acordou a coragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta
safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não conhecia assaltante algum.
Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha sido dela e que ela ainda
amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois. Outra
voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se ela estivesse junto com eles,
teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha descido só para disfarçar. Estava
mesmo com os ladrões. Foi a única a não ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê.
Maria olhou na direção de onde vinha a voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições
de menino e que relembrava vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem
de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! O dono
da voz levantou e se encaminhou em direção a Maria. A mulher teve medo e raiva. Que
merda! Não conhecia assaltante algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra
ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou:
Lincha! Lincha! Lincha!... Uns passageiros desceram e outros voaram em direção a Maria. O
motorista tinha parado o ônibus para defender a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é
esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os dias, mais ou menos neste horário, ela toma o
ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta para sustentar os filhos... Lincha! Lincha!
209
Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia
arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que os meninos gostam de melão?
Tudo foi tão rápido, tão breve. Maria tinha saudades do seu ex-homem. Por que
estavam fazendo isto com ela? O homem havia segredado um abraço, um beijo, um carinho
no filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam todos armados com
facas-laser que cortam até a vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o
corpo da mulher já estava todo dilacerado, todo pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, um beijo, um carinho.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
Após a leitura permita que os alunos falem suas impressões sobre o conto. É o
momento de confirmar ou não as hipóteses levantadas a respeito da história.
Incentive a discussão sobre o texto e procure enfatizar o tom de denúncia das
opressões de classe e de gênero que a protagonista sofre, bem como a violência que vitima a
personagem e milhares de mulheres que ela representa. Para incitar o debate, você pode
utilizar perguntas norteadoras como as que sugerimos a seguir:
-Quais as características de Maria? Quem ela representa?
-Observe a descrição do ex-companheiro de Maria. Como ele agiu enquanto
falava com ela? Por que ele agiu dessa forma?
-Por quais razões Maria foi agredida?
- Será que os passageiros, que passaram a agredir a protagonista, teriam a
mesma postura diante de uma mulher branca?
-Ao observar a forma como os demais passageiros se referiram à Maria, você
percebe alguma forma de preconceito? Qual (is)?
- Todos no ônibus acreditam que Maria seja culpada? Por quê?
-Se Maria de fato fosse cúmplice dos assaltantes, o que aconteceu com ela
seria aceitável?
-Você já presenciou ou conhece alguma história de mulheres vítimas de
violência? Quem, geralmente, são os agressores?
Concluída a quarta etapa, você pode sugerir duas opções de atividades para que os
alunos escolham uma e realizem em equipes:
Primeira opção:
Segunda opção:
OFICINA VI
Objetivos
Apresentar a metodologia dos círculos de leitura estruturados.
Realizar um círculo de leitura com o conto africano ―O cego Estrelinho‖.
Refletir sobre relações humanas e sociais, além de temas como amizade,
solidariedade, companheirismo e resiliência.
211
Recursos
Cópias do conto ―O cego Estrelinho‖
Projetor multimídia
Computador
Pendrive com vídeos e slides que serão utilizados
Duração prevista:
2 aulas
Professor(a),
Esta oficina tem como objetivo apresentar a metodologia dos círculos de leitura
estruturados aos alunos, bem como as funções que serão desempenhadas pelos participantes.
Inicialmente, explique detalhadamente o funcionamento dos círculos de leitura
propostos por Cosson (2017), enfatizando que a turma será dividida em grupos para efetuar a
leitura de contos selecionados e que deverão fazer registros do que foi lido de acordo com a
função que cada um assumirá no grupo (conector, questionador, iluminador, ilustrador,
dicionarista, sintetizador, pesquisador, cenógrafo e perfilador).
Com o auxílio de slides, explique cada uma das nove funções.
Enfatize para os alunos que a discussão do texto será feita a partir dos registros de
leitura de cada aluno.
O cego Estrelinho
Mia Couto
O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e
descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por
tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.
212
E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram
os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre
lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:
– Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele
minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que
papaeira. O cego enchia a boca de águas:
– Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como
nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava
o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava
ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:
– Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!
Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo,
o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria
dar o pontapé. Só à noite, ele desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade.
Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.
– Na noite aflige não haver luz?
– Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.
Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez o céu para
justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios, subterfugindo:
– E agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?
Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho
perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro
nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia.
Só assim adormecia. A razão da concha é a timidez da amêijoa? Na manhã seguinte, o cego
lhe confessava: se você morrer, tenho que morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o
caminho para o céu?
Foi no mês de Dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para pôr
na guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou: que o moço inatingia a idade: E
que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe
tranquilizou:
– Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu lugar.
213
O cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já não estava
lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água ida nem vinda, Estrelinho escutou o
amigo se afastar, engolido, espongínquo, inevisível. Pela primeira vez, Estrelinho se sentiu
invalidado.
– Agora, só agora, sou cego que não vê.
No tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a presença de
seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio. O erro da pessoa é pensar que os silêncios
são todos iguais. Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o escuro, este
nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um, desbotado à sua maneira. Entende
mano Gigito?
Mas a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse sim,
repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando inimagens, seus olhos no centro
de manchas e ínvias lácteas. Aquela era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando,
o cego captava o escuro em vagas, despedaços. O mundo lhe magoava a desemparelhada mão.
A solidão lhe doía como torcicolo em pescoço de girafa. E lembrou palavras do seu guia:
– Sozinha e triste é a remela em olho de cego.
Com medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais interpretavam ser
olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo caminho. Tropeçando, empecilhando,
acabou caído numa berma. Ali adormeceu, seus sonhos ziguezagueram à procura da mão de
Gigitinho.
Então ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera Gigitinho: a
ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas, como se o corpo não ocupasse lugar
nenhum.
De aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar desgraças.
Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde tombara. Como diria Gigito: era ali
que as cobras vinham recarregar os venenos. Mas nem força ele colectou para se afastar.
Ficou naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que tombam nas
despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe despertou os ombros.
– Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.
Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e
silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não
tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e
realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia
os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar. Fraco, ele
214
careceu que ela o amparasse já não apenas de mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela
puxava o cego de encontro a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já não
procurava só outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o convite do desejo.
Nessa noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante,
regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante transbordava eternidades.
Sua cabeça andorinhava e ele guiava o coração como voo de morcego: por eco da paixão.
Pela primeira vez, o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E adormeceu enroscado nela, seu
corpo imitando dedos solvidos em outra mão.
A meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobressaltada. Tinha visto a garça
branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem asas embatido no seu peito. Mas,
fingiu sossego e serenou a moça. Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.
De manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como deve um
militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como devem as feridas da guerra.
Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu sem choque, parecia ele já sabendo daquela perca. A
moça, essa, deixou de falar, órfã de seu irmão. A partir dessa morte ela só tristonhava,
definhada. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe
conduziu para a varanda da casa. Então iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários
firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se sarava da alma. Estrelinho
miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que
ela dormira antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em meus braços
antes da minha actual vida.
E quando já havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:
– Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
– Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!
COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Após a leitura, desempenhe uma das funções para servir de modelo aos alunos,
ajudando-os a atuarem adequadamente nos grupos durante o círculo, pois, segundo Cosson
(2017) antes de começar um círculo de leitura é essencial que o próprio professor mostre
como fazer para que os alunos sejam levados a reproduzirem a partir de seu exemplo.
215
FICHA DE FUNÇÃO
CONTO: _____________________________________________________
REGISTROS DE LEITURA
Registre aqui as informações que você considerar importantes para discussão em grupo de
acordo com a função que você está exercendo no círculo de leitura e também suas impressões
acerca do conto que está lendo.
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Professor (a),
Permita que cada grupo distribua as funções entre seus componentes que, no
geral, ficarão responsáveis por desempenhar duas funções cada.
Estabeleça um período de tempo para que os alunos discutam o conto nos
pequenos grupos e preencham as fichas de função.
Depois das discussões nos grupos, forme um círculo único para que os alunos
compartilhem suas leituras. Assim, escute os registros feitos de acordo com cada função e
fomente o debate mais aprofundado sobre os aspectos registrados nas fichas de função.
Para concluir, faça uma breve avaliação do círculo de leitura e, juntamente com os
alunos elenque os pontos positivos e os que precisam ser melhorados nos próximos círculos
de leitura.
OFICINA VII
Objetivos
Apresentar os resumos dos contos afro-brasileiros pré-selecionados para os círculos de
leitura.
Organizar os grupos que realizarão os círculos de acordo com a escolha dos contos.
Propiciar uma leitura e discussão inicial dos contos.
Recursos
Cópias dos contos ―Lumbiá‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e ―Olhos
d‘água‖.
Computador
Projetor multimídia
Pendrive com slides que serão utilizados
Duração prevista:
2 aulas
217
COMO PROCEDER:
Professor (a),
Esta oficina foi pensada para que ocorra a divisão dos grupos de acordo com a
escolha dos contos a serem trabalhados nos círculos de leitura literária e também para
propiciar um primeiro contato dos alunos com o texto literário.
Cosson (2017) afirma que o círculo de leitura literária começa com a seleção de
livros pelo professor. Nesta proposta, escolhemos três contos do livro Olhos d’água (2016),
da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo.
Selecionamos os contos ―Lumbiá‖, ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ e
―Olhos d‘água‖.
Professor (a), fique à vontade para modificar e/ou ampliar esta lista de contos
selecionados de acordo com seus objetivos e nível da turma.
Apresente uma pequena síntese de cada um dos contos e peça que os alunos
escolham aquele que gostariam de ler. A partir das preferências dos alunos, os grupos de
leitura serão montados. Provavelmente alguns alunos se mostrarão insatisfeitos, pois preferem
formar equipes por afinidades pessoais. Se isso acontecer, procure conversar com os alunos e
conscientizá-los sobre a importância de ler o texto que eles possuem interesse.
Com os textos em mãos, os grupos se reunirão para fazer uma primeira leitura do
conto, discutir os papeis de cada integrante da equipe e distribuir as funções. Entregue as
fichas de funções para que eles possam preencher durante as leituras.
Para finalizar, estabeleça as datas de apresentações das leituras de cada equipe.
Ao aplicarmos esta proposta, cada conto foi lido por duas equipes que, no geral, eram
compostas por seis integrantes. Estabelecemos as datas de apresentação de acordo com os
contos. Assim, as duas equipes que leram o mesmo conto se apresentavam no mesmo dia
para que a discussão fosse ampliada com a participação de mais alunos. Além disso,
reservamos mais duas aulas antes das apresentações para que as equipes se reunissem em
sala e fizessem as discussões sobre os textos e a preparação das apresentações.
218
OFICINA VIII
Objetivos
Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
Propiciar a leitura e discussão do conto ―Lumbiá‖, de Conceição Evaristo a partir da
metodologia dos círculos de leitura.
Refletir sobre crianças em situação de vulnerabilidade social e trabalho infantil.
Recursos
Cópias do conto ―Lumbiá‖
Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)
Duração prevista:
2 aulas
Professor (a),
Antes das equipes iniciarem suas apresentações, você pode entregar uma cópia do
conto a ser trabalhado na aula para que o restante da turma faça uma primeira leitura
silenciosa. Acreditamos que a partir desta leitura a turma passa a conhecer o conto, até então
lido apenas por duas equipes, e participa mais ativamente das apresentações, colaborando
assim, para o surgimento de novas discussões.
Organize a sala em círculo para que as equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois, muitas vezes, nossos
alunos precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.
219
Lumbiá
Conceição Evaristo
Lumbiá tinha ainda outros truques. Sabia chorar, quando queria. Escolhia uma
mesa qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começava
chorando por safadeza, mas em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo, magoado
se confundia. Nas histórias, que inventava nos momentos de choro para comover as pessoas,
tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado real da vida dele ou do amigo Gunga se
confundia com a invenção do menino. E enquanto chorava o pranto ensaiado para comover os
compradores, contava ora sobre a surra que havia levado da mãe, ora pela mercadoria que
estava ficando encalhada (e ele precisava retornar para casa com um bom resultado de venda),
ou ainda, pelo dinheiro, fruto de seu trabalho, que tinha sido tomado por um menino maior...
E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo
realmente triste, tão triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração
menino.
Havia, porém, uma ocasião em que nada ameaçava os dias gozosos do menino: o
advento do Natal. A cidade se enfeitava com luzes que brotavam de todos os cantos.
Lâmpadas como fogueiras incendiárias ateavam um falso fogo iluminário sobre as fachadas
dos prédios, sobre as árvores, das ruas, dos jardins públicos e privados. Entretanto, não era
esse pirotécnico espetáculo que seduzia Lumbiá. Nem o personagem Papai Noel gordo e feliz,
com o seu sorriso envidraçado dentro das vitrines. Das árvores de natal, não gostava dos
pinheiros iluminados e coloridos. Dos presentes expostos nas vitrines, principalmente os
embrulhados, tinha vontade de apanhá-los e amassá-los. Ficava irritado, sabia que tudo eram
caixas vazias. Só havia uma coisa que o menino gostava no Natal. Um único signo: o presépio
com a imagem de Deus-menino. Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade
com a mãe e mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena natalina.
Gostava da família, da pobreza de todos, parecia a sua. Da imagem-mulher que era a mãe, da
imagem-homem que era o pai. A casinha simples e a caminha de palha do Deusmenino,
pobre, só faltava ser negro como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando o presépio, buscando e
encontrando o Deus-menino.
Houve um ano em que uma notícia correu: a loja Casarão Iluminado, uma
tradicional casa especializada em vendas de iluminárias, abajures, etc., ia armar um presépio
no interior da loja. Seria o maior e o mais bonito da cidade. E foi. Lâmpadas piscas-piscas,
estrelas pendentes por fios finos e quase invisíveis iluminavam magicamente a paisagem,
como se fosse um céu aberto sobre a manjedoura em que estava o Deus-menino. Animais
pastavam mansamente sobre a relva, rios amenos cortavam os vales, que circundavam a
cabana natalina. Os Reis Magos, os dois brancos, caminhavam um pouco abaixo da estrela-
221
guia. O Rei Negro, aquele que parecia com o tio de Lumbiá, caminhava sozinho um pouco
atrás, mas com passos de quem tinha a certeza de que iria chegar. A mãe e o pai de Jesus
piedosos resguardando o Deus-menino. Toda a cidade comentava a beleza e a semelhança do
presépio com a cena bíblica que narra o nascimento de Jesus. Lumbiá atento ouvia todos os
comentários e aguardava a oportunidade de visitar a Belém instalada no interior da loja
Casarão Iluminado. Havia, entretanto um problema. Estava proibida a entrada de crianças
sozinhas e para ele era quase impossível esperar pelo dia em que a mãe pudesse levá-lo,
acompanhá-lo até lá. Na semana anterior Gunga, Beba, Beta, e outros já haviam feito algumas
tentativas vãs.
Enquanto isso, o tempo corria. Lumbiá já tinha visto todos os presépios das
redondezas. Em cada um seu coração batia descompassadamente quando fitava o Deus
menino. Tinha feito várias tentativas de entrar no Casarão, o vigilante vinha e o enxotava. O
menino não desistia, ficava rondando de longe, adivinhando a beleza de tudo, do outro lado da
calçada. Era um entra-e-sai intenso. A televisão e um jornal tinham falado sobre o presépio,
que tinha sido feito por um grande artista.
O dia caminhava para seis da tarde, vinte e três de dezembro. O menino aguardava
ali desde as nove da manhã. Em sua viagem costumeira do subúrbio para o centro da cidade,
se distanciou de Gunga e da irmã. Tinha flores nas mãos, rosas amarelas. Havia combinado
com o amigo que venderiam flores, mas aquelas ele daria para o Menino Jesus e também
poria algumas nas mãos do Rei Baltasar. Fazia frio, muito frio, era um dia chuvoso. Tinha a
roupa colada sobre o frágil corpo a tremer de febre. A loja já estava para fechar. As vendas
tinham cessado desde o dia anterior. O Casarão Iluminado abrira naquele dia só para visitação
pública ao presépio. Precisava chegar até lá. Como? Já tinha feito várias tentativas, sendo
sempre expulso pelo segurança. Ia arriscar novamente. Em dado momento aproximou-se
devagar. Ninguém na porta. Mordeu os lábios, pisou leve e, apressado, entrou.
Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como
ele. Nem as luzes da loja, nem as falsas estrelas conseguiam esconder a sua pobreza e solidão.
Lumbiá olhava. De braços abertos, o Deus-menino pedia por ele. Erê queria sair dali. Estava
nu, sentia frio. Lumbiá tocou na imagem, à sua semelhança. Deus-menino, Deus-menino!
Tomou-a rapidamente em seus braços. Chorava e ria. Era seu. Saiu da loja levando o Deus-
menino. O segurança voltou. Tentou agarrar Lumbiá. O menino escorregou ágil, pulando na
rua.
O sinal! O carro! Lumbiá! Pivete! Criança! Erê, Jesus Menino. Amassados,
massacrados, quebrados! Deus-menino, Lumbiá morreu!
222
ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO
Primeira opção:
Elaborar uma notícia em que seja relatada a história de Lumbiá e/ou morte do
menino.
Segunda opção:
Terceira opção:
OFICINA IX
Objetivos
Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
Propiciar a leitura e discussão do conto ―Olhos d‘água‖, de Conceição Evaristo a partir
da metodologia dos círculos de leitura
Refletir sobre a história de lutas das mulheres negras.
Refletir a respeito do papel de mãe, relações familiares, memória e ancestralidade
suscitadas pelo conto.
Recursos
Cópias do conto ―Olhos D‘água‖
Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)
Duração prevista:
2 aulas
Professor (a),
Assim como na oficina anterior, antes das equipes iniciarem suas apresentações,
você pode entregar uma cópia do conto a ser trabalhado na aula para que o restante da turma
faça uma primeira leitura silenciosa. Acreditamos que a partir desta leitura a turma passa a
conhecer o conto, até então lido apenas por duas equipes, e participa mais ativamente das
apresentações, colaborando assim, para o surgimento de novas discussões.
Organize a sala em círculo para que as equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois muitas vezes nossos alunos
precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.
224
Olhos d’água
Conceição Evaristo
salivar sonho de comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela
mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe
era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira.
Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso
barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E
diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça
para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só
ria de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha
mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a
nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se
sentava na soleira da porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu.
Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu,
colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós.
Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se
esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da
cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de prantos
balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E
eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me
causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de
minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia!
Então, por que eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu
estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida
para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás. Mas eu nunca
esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de
minhas tias e de todas as mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava
cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida
com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas
Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os
olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar à cidade
226
em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para
nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um
ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe. E
quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os
olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas,
que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d‘água. Águas
de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida
apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas
se misturarem às minhas.
Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos
olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma se tornam o espelho para os
olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós
duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho,
como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a
revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha
filha falou:
— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO
Primeira opção:
Segunda opção:
Terceira opção:
Produza um poema que traga como figura central a mulher negra, sua história
de lutas e sua representatividade.
OFICINA X
Objetivos
Proporcionar aos alunos o máximo de contato e reflexão com os textos literários afro-
brasileiros lidos.
Propiciar a leitura e discussão do conto ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖ de
Conceição Evaristo a partir da metodologia dos círculos de leitura
Refletir sobre as condições de vida dos afrodescendentes em nosso país.
Discutir a respeito das desigualdades sociais e as diversas formas de violência
presentes em nossa sociedade.
228
Recursos
Cópias do conto ―Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos‖
Material de papelaria (cartolina, papel ofício, canetinha, lápis de cor)
Duração prevista:
2 aulas
Professor (a),
Assim como nas oficinas anteriores, antes das equipes iniciarem suas
apresentações, você pode entregar uma cópia do conto a ser trabalhado na aula para que o
restante da turma faça uma primeira leitura silenciosa. Organize a sala em círculo para que as
equipes possam se apresentar.
Durante as apresentações, seja mediador da discussão, instigue os alunos a
participarem e fomente o debate e aprofundamento de ideias, pois, muitas vezes, nossos
alunos precisam de auxílio para ampliar os sentidos do texto por serem leitores em formação.
Zaíta espalhou as figurinhas no chão. Olhou demoradamente para cada uma delas.
Faltava uma, a mais bonita, a que retratava uma garotinha carregando uma braçada de flores.
Um doce perfume parecia exalar da figurinha ajudando a compor o minúsculo quadro. A irmã
de Zaíta há muito tempo desejava o desenho e vivia propondo uma troca. Zaíta não aceitava.
A outra, com certeza, pensou Zaíta, havia apanhado a figurinha-flor. E agora, como fazer?
Não poderia falar com a mãe. Sabia no que daria a reclamação. A mãe ficaria com raiva e
bateria nas duas. Depois rasgaria todas as outras figurinhas, acabando de vez com a coleção.
A menina recolheu tudo meio sem graça. Levantou-se e foi lá no outro cômodo da casa
voltando com uma caixa de papelão. Passou pela mãe, que chegava com algumas sacolas do
supermercado
A mãe de Zaíta estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais
velhos já estavam homens. O primeiro estava no Exército. Queria seguir carreira. O segundo
também. As meninas vieram muito tempo depois, quando Benícia pensava que nem
engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A
229
diferença estava na maneira de falar. Zaíta falava baixo e lento. Naíta, alto e rápido. Zaíta
tinha nos modos um quê de doçura, de mistérios e de sofrimento.
Zaíta virou a caixa, e os brinquedos se esparramaram, fazendo barulho. Bonecas
incompletas, chapinhas de garrafas, latinhas vazias, caixas e palitos de fósforos usados.
Mexeu em tudo, sem se deter em brinquedo algum. Buscava insistentemente a figurinha,
embora soubesse que não a encontraria ali. No dia anterior, havia recusado fazer a troca mais
uma vez. A irmã oferecia pela figurinha aquela boneca negra, a que só faltava um braço e que
era tão bonita. Dava ainda os dois pedaços de lápis cera, um vermelho e um amarelo, que a
professora lhe dera. Ela não quis. Brigaram. Zaíta chorou. À noite dormiu com a figurinha-
flor embaixo do travesseiro. De manhã foram para escola. Como o quadrinho da menina-flor
tinha sumido?
Zaíta olhou os brinquedos largados no chão e se lembrou da recomendação da
mãe. Ela ficava brava quando isto acontecia. Batia nas meninas, reclamava do barraco
pequeno, da vida pobre, dos filhos, principalmente do segundo.
Um dia Zaíta viu que o irmão, o segundo, tinha os olhos aflitos. Notou ainda
quando ele pegou uma arma debaixo da poltrona em que dormia e saiu apressado de casa.
Assim que a mãe chegou, Zaíta perguntou-lhe porque o irmão estava tão aflito e se a arma era
de verdade. A mãe chamou a outra menina e perguntou-lhe se ela tinha visto alguma coisa.
Não, Naíta não tinha visto nada. Benícia recomendou então o silêncio. Que não perguntassem
nada ao irmão. Zaíta percebeu que a voz da mãe tremia um pouco. De noite julgou ouvir
alguns estampidos de bala ali por perto. Logo depois escutou os passos apressados do irmão
que entrava. Ela se achegou mais para junto da mãe. A irmã dormia. A mãe se mexeu na cama
várias vezes; em um dado momento sentou assustada, depois se deitou novamente cobrindo-se
toda. O calor dos corpos da mãe e da irmã lhe davam certo conforto. Entretanto, não
conseguiu dormir mais, tinha medo, muito medo, e a mãe lhe pareceu ter passado a noite toda
acordada.
Zaíta levantou e saiu, deixando os brinquedos espalhados, ignorando as
recomendações da mãe. Alguns ficaram descuidadosamente expostos pelo caminho. A linda
boneca negra, com seu único braço aberto, parecia sorrir desamparadamente feliz. A menina
estava pouco se importando com os tapas que pudesse receber. Queria apenas encontrar a
figurinha-flor que tinha sumido. Procurou pela irmã nos fundos da casa e, desapontada, só
encontrou o vazio.
A mãe ainda arrumava os poucos mantimentos no velho armário de madeira. Zaíta
teve medo de olhar para ela. Saiu sem a mãe perceber e bateu no barraco de Dona Fiinha, ao
230
lado. A irmã não estava ali também. Onde estava Naíta? Onde ela havia se metido? Zaíta saiu
de casa em casa por todo o beco, perguntando pela irmã. Ninguém sabia responder. A cada
ausência de informação sua mágoa crescia. Foi andando junto com a desesperança. Tinha o
pressentimento de que a figurinha-flor não existia mais.
O irmão de Zaíta, o que não estava no Exército, mas queria seguir carreira,
buscava outra forma e local de poder. Tinha um querer bem forte dentro do peito. Queria uma
vida que valesse a pena. Uma vida farta, um caminho menos árduo e o bolso não vazio. Via os
seus trabalharem e acumularem miséria no dia a dia. O pai dele e do irmão mais velho gastava
seu pouco tempo de vida comendo poeira de tijolos, areia, cimento e cal nas construções civis.
O pai das gêmeas, que durante anos morou com sua mãe, trabalhava muito e nunca trazia o
bolso cheio. O moço via mulheres, homens e até mesmo crianças, ainda meio adormecidos,
saírem para o trabalho e voltarem pobres como foram, acumulados de cansaço apenas. Queria,
pois, arrumar a vida de outra forma. Havia alguns que trabalhavam de outro modo e ficavam
ricos. Era só insistir, só ter coragem. Só dominar o medo e ir adiante. Desde pequeno ele
vinha acumulando experiências. Novo, criança ainda, a mãe nem desconfiava e ele já traçava
o seu caminho. Corria ágil pelos becos, colhia recados, entregava encomendas, e
displicentemente assobiava uma música infantil, som indicativo de que os homens estavam
chegando
Zaíta andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. Algumas pessoas
conhecidas perguntavam o porquê de ela estar tão longe de casa. A menina se lembrou da mãe
e da raiva que ela devia estar. Ia apanhar muito quando voltasse. Não se importou com aquela
lembrança. Naquele momento, ela buscava na memória como o desenho da menina-flor tinha
nascido em sua coleção. A figurinha podia ter vindo em um daqueles envelopes que o irmão,
o segundo, às vezes comprava para ela. Quem sabe viera no meio das duplicatas que a mãe
ganhava da filha da patroa, ou ainda fruto de alguma troca que ela fizera na escola? Mas podia
ser também parte de um segredo que ela não havia contado nem para sua igual, a Naíta. A
figurinha podia ser uma daquelas dez, que ela havia comprado um dia com uma moeda que
tirara da mãe, sem que ela percebesse. Zaíta por mais que se esforçasse retomando as
lembranças, não conseguia atinar como a figurinha-flor tinha se tornado sua.
A mãe de Zaíta guardou rapidamente os poucos mantimentos. Teve a sensação de
ter perdido algum dinheiro no supermercado. Impossível, levara a metade do salário e não
conseguiria comprar quase nada. Estava cansada, mas tinha de aumentar o ganho. Ia arranjar
trabalho para os finais de semana. O primeiro filho nunca pedia dinheiro, mas ela sabia que
ele precisava. E sem que o segundo soubesse, Benícia colocava uns trocadinhos debaixo do
231
travesseiro para ele, quando ele vinha do quartel. Havia também o aluguel, a taxa de água e de
luz. Havia ainda a irmã com os filhos pequenos e com o homem que ganhava tão pouco.
A mãe de Zaíta, às vezes, chegava a pensar que o segundo filho tinha razão. Vinha
a vontade de aceitar o dinheiro que ele oferecia sempre, mas não queria compactuar com a
escolha dele. Orgulhosamente, não aceitava que ele contribuísse com nada em casa. Estava,
porém, chegando à conclusão de que trabalho como o dela não resolvia nada. Mas o que
fazer? Se parasse, a fome viria mais rápida e voraz ainda. Benícia, ao dar por falta das
meninas, interrompeu os pensamentos. Não ouvia as vozes das duas há algum tempo. Deviam
estar metidas em alguma arte. Sentiu certo temor. Veio andando aflita da cozinha e tropeçou
nos brinquedos esparramados pelo chão. A preocupação anterior se transformou em raiva.
Que merda! Todos os dias tinha que falar a mesma coisa! Onde as duas haviam se metido?
Por que tinham deixado tudo espalhado? Apanhou a boneca negra, a mais bonitinha, a que só
faltava um braço, e arrancou o outro, depois a cabeça e as pernas. Em poucos minutos a
boneca estava destruída; cabelos arrancados e olhos vazados. A outra menina, Naíta, que
estava no barraco ao lado, escutando os berros da mãe, voltou aflita. Foi recebida com tapas e
safanões. Saiu chorando para procurar Zaíta. Tinha duas tristezas para contar a sua irmã igual.
Havia perdido uma coisa que Zaíta gostava muito. De manhã tinha apanhado a figurinha
debaixo do travesseiro. Queria sentir o perfume de perto. E agora não sabia mais onde estava
a flor... A outra coisa era que a mamãe estava brava porque os brinquedos estavam largados
no chão e de raiva ela havia arrebentado aquela bonequinha negra, a mais linda...
Nos últimos tempos na favela, os tiroteios aconteciam com frequência e a
qualquer hora. Os componentes dos grupos rivais brigavam para garantir seus espaços e
freguesias. Havia ainda o confronto constante com os policiais que invadiam a área. O irmão
de Zaíta liderava o grupo mais novo, entretanto, o mais armado. A área perto de sua casa ele
queria só para si. O barulho seco de balas se misturava à algazarra infantil. As crianças
obedeciam à recomendação de não brincarem longe de casa, mas às vezes se distraíam. E,
então, não experimentavam somente as balas adocicadas, suaves, que derretiam na boca, mas
ainda aquelas que lhes dissolviam a vida.
Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Uma
criança, antes de fechar violentamente a janela, fez um sinal para que ela entrasse rápido em
um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença da menina, imitou o gesto
feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela procurava, entretanto, somente a sua
figurinha-flor... Em meio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como
flores malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da
232
menina. Daí um minuto tudo acabou. Homens armados sumiram pelos becos silenciosos,
cegos e mudos. Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, jaziam no chão.
A outra menina seguia aflita à procura da irmã para lhe falar da figurinha-flor
desaparecida. Como falar também da bonequinha negra destruída?
Os moradores do beco onde havia acontecido o tiroteio ignoravam os outros
corpos e recolhiam só o da menina. Naíta demorou um pouco para entender o que havia
acontecido. E assim que se aproximou da irmã, gritou entre o desespero, a dor, o espanto e o
medo:
— Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos!
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
ATIVIDADE DE EXTRAPOLAÇÃO
Segunda opção:
PALAVRA FINAL
dos estudantes. Em todas as etapas desta proposta de leitura literária o professor precisa atuar
como mediador e incentivador no processo de leitura do texto literário; enquanto que aos
alunos cabe a tarefa de assumir um papel ativo na construção de sentidos do texto e,
consequentemente, na construção de seu próprio conhecimento.
Embora esta proposta tenha sido aplicada em uma turma de nono ano e destine-se
em primeiro plano a esta série, podemos desenvolvê-la em turmas de 6º, 7º ou 8º ano do
Ensino Fundamental, uma vez que o aprendizado de estratégias e habilidades de leitura do
texto literário deve ser desenvolvido em todas as séries. Para tanto, é fundamental que o
professor, ao adotar nossas sugestões de atividade, faça os devidos ajustes ao seu contexto de
ensino.
Por fim, esperamos que nossa proposta de letramento literário com contos
africanos e afro-brasileiros possa render muitas discussões e reflexões sobre questões
importantes de nosso cotidiano e assim, contribua para a formação de leitores críticos e
conscientes.
SUGESTÕES DE LEITURA
KOCH, I.V.; ELIAS, V.M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo, Contexto,
2006.
______. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
234
ANEXOS
235
Eu sou de lá
Dois africanos
Refrão:
Eu sou de lá, sou da África
Sou filho de lá, filho da África
Cada sonho tem um preço
236
Refrão
Calor de um continente
Trago lembranças pesadas na mente.
Se diz, que liberdade é aceitar
As realidades, mas será?
O que sobe tem que descer
Mas quando é que vamos subir?
Temos que aprender.
A juventude sabe agora
Tiveram o tempo de entender
Novo plano, nova era
Fala pra eles: ninguém vai nos ajudar
Temos que conseguir sozinhos na luta.
Nada é fácil nessa vida tem que saber
237
Refrão
Isso pra Benin, Togo, Cameroun, Congo, Mike Amisi, KabweKasindi, Chris
Tsitsimbi, Becacoto, Bubacar Embalo, Katedraticous, Guinée Bissau, Cabo verde,
Angola,
África!
Disponível em: https://letrasweb.com.br/dois-africanos/eu-sou-de-la.html. Acesso em: 21 agos. 2018.
238
Vozes-mulheres
_________________________________________
Assinatura
Eu,_______________________________________________________, portador do RG nº
_____________________ declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios da
participação do meu filho(a) ___________________________________________________,
portanto
( ) aceito que ele(a) participe ( ) não aceito que ele(a) participe
________________________________________________________
(Assinatura do responsável ou representante legal)
O pesquisador me informou que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em
Seres Humanos da UECE que funciona na Av. Silas Munguba, 1700, Campus do Itaperi,
Fortaleza-CE, telefone (85)3101-9890, email cep@uece.br. Se necessário, você poderá entrar
em contato com esse Comitê o qual tem como objetivo assegurar a ética na realização das
pesquisas com seres humanos.
244
___________________________________________________
Assinatura da pesquisadora
245