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BAURU
2021
EDSON RODRIGO DE AZEVEDO
BAURU
2021
Dedico esta dissertação aos maiores amores da minha vida:
Aos meus pais: Edson e Cristina, minhas irmãs: Dani e Bia, ao meu
companheiro Danilo e à minha doce e amada Maria Luiza.
AGRADECIMENTOS
Registro aqui os meus agradecimentos a pessoas que fizeram parte deste processo de
pesquisa e que de alguma maneira estiveram presentes neste caminho de desafios, descobertas
e possibilidades.
À minha família, pais Edson e Cristina, irmãs Daniela e Ana Beatriz e minha doce e
amada sobrinha Maria Luiza. Obrigado por torcerem por mim, por me acolherem sempre e por
serem a minha família. Nada disso seria possível se não fosse a presença e a existência de vocês.
Amo-os muito!
Ao meu companheiro de vida, Danilo, que sempre acreditou em mim e no meu trabalho
enquanto pesquisador até antes de eu mesmo acreditar. Obrigado por todo amor, incentivo e
apoio neste caminho.
À UNESP, Câmpus de Bauru/SP, pela acolhida e por todo trabalho realizado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Docência para a Educação Básica e sua equipe,
em especial à Edineia, pela atenção durante todo o percurso.
Aos amigos e colegas da turma do Programa de Pós-Graduação em Docência para a
Educação Básica da turma 2019 pelo apoio e pela força, em especial aos amigos Rossane e
Vitor pela parceria e pelas tantas coisas vividas, risadas e angústias, nos caminhos para Bauru.
Aos meus colegas e amigos de profissão da rede municipal na qual atuo e aos
professores que participaram desta pesquisa.
Aos professores Monica Galindo e Eli Vagner pela leitura atenciosa e por terem
aceitado o convite de suplentes.
Aos professores Leandro Passos e Vitor Machado pelas contribuições valiosas e
precisas no exame de qualificação durante o desenvolvimento deste trabalho e pela leitura
atenciosa.
Ao meu orientador Professor Fábio Fernandes Villela por ter me acolhido neste
processo e por toda atenção, todo suporte e trabalho, fazendo com que, por meio da nossa
parceria, esta pesquisa fosse realizada. Agradeço por cada reunião, nossas chamadas no Google
Meet, conversas no WhatsApp e por tudo o que me ensinou. Muita gratidão por tudo!
E, por fim, agradeço a todos os pesquisadores negros e negras, ativistas e pessoas que
lutam por igualdade, vez e voz do povo negro.
RESUMO
Diante das práticas docentes e à luz da Lei nº 10.639/03, que torna obrigatória nos currículos
escolares a temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, o presente trabalho apresenta uma
discussão teórica a respeito do racismo e suas implicações no contexto escolar, tendo,
sobretudo, como objetivo geral investigar o protagonismo negro nas narrativas clássicas infantis
por meio de uma pesquisa a respeito das escolhas literárias presentes nas práticas pedagógicas
docentes em uma escola pública do interior paulista de ensino fundamental I (1º ao 5º ano) e da
análise das obras selecionadas no Programa Nacional do Livro Didático e Literário na edição
de 2018 por meio de um questionário estruturado. Como abordagem metodológica, foi realizada
uma análise quantitativa e qualitativa, de cunho bibliográfico e documental. A partir deste
trabalho de análise, buscou-se estabelecer diálogos e relações com as políticas públicas de
incentivo à formação de leitores e seus desencadeamentos nas práticas de leitura realizadas nas
escolas que tenham como foco o protagonismo negro e, para isso, o trabalho teve alguns aportes
teóricos, como as pesquisas e estudos de Araújo (2010, 2015), Dias (2015), Debus (2007, 2009,
2012, 2017), Gomes, (2003, 2005, 2018), Munanga (2003, 2005), Silva (2015, 2018), dentre
outros. Por fim, e após a análise das obras selecionadas para o PNLD Literário 2018 e das
discussões teóricas realizadas, o trabalho ainda apresenta como possibilidade didática o produto
educacional intitulado “Baú africano: conhecendo as princesas africanas” contendo encartes
com reescritas e narrativas sobre seis princesas africanas da cultura ioruba, banto e zulu, dentre
outras propostas didáticas que permitam o (re)conhecimento dessas personagens, possibilitando
assim a valorização da literatura infantil de matriz africana e afro-brasileira no contexto
educacional.
In view of teaching practices and in the light of Law No. 10.639/03 that makes mandatory in
school curricula the theme "Afro-Brazilian History and Culture" the present work presents a
theoretical discussion about racism and its implications in the school context having, above all,
as a general objective to investigate the black protagonism in classical children's narratives
through a research on the literary choices present in the pedagogical practices of teachers in a
public school in the interior of São Paulo elementary school I (1st to 5th grade) and the analysis
of the works selected in the National Program of The Textbook and Literary in the 2018 edition
through a structured questionnaire. As a methodological approach, a quantitative and qualitative
analysis of bibliographic and documentary nature was performed. From this analysis work, we
sought to establish dialogues and relations with public policies to encourage the formation of
readers and their triggers in reading practices carried out in schools that focus on black
protagonism and, for this, the work had some theoretical contributions such as the research e
estudos de Araújo (2010, 2015), Dias (2015), Debus (2007, 2009, 2012, 2017), Gomes, (2003,
2005, 2018), Munanga (2003, 2005), Silva (2015, 2018), among others. Finally, and, after the
analysis of the works selected for the Literary PNLD 2018 and the theoretical discussions
carried out, the work still presents as a didactic possibility the educational product entitled
African Chest: knowing the African princesses containing inserts with rewritten and narratives
about 6 African princesses of Yoruba, Banto and Zulu culture among other didactic proposals
that allow the (re)knowledge of these characters, thus enabling the valorization of children's
literature of African and Afro-Brazilian origin in the educational context.
Keywords: Law 10.639 / 03. Historical-critical pedagogy and the education of ethnic-racial
relations. African princesses. National Textbook and Literary Program.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
1.3 O mito da democracia racial: os estudos de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes ...... 24
2.2 O protagonismo negro nas obras selecionadas para o PNBE, o PNLD Literário e os
impactos da Lei nº 10.639/03 ................................................................................................ 59
2.3 PNLD Literário 2018 e a temática africana e afro-brasileira: uma análise sobre as obras
selecionadas .......................................................................................................................... 68
2.4 As práticas docentes e o protagonismo negro nas obras de literatura infantil: quais os
diálogos possíveis?................................................................................................................ 75
2.5 O PNLD e as narrativas clássicas infantis: onde estão as princesas africanas? .............. 86
3.2.1 As etapas do produto educacional: por que, para que, como? ..................................... 93
APÊNDICE – Produto Educacional. Baú africano: conhecendo as princesas africanas ........ 123
INTRODUÇÃO
A temática que trazemos como ponto de partida para a nossa pesquisa, por vezes,
configurou-se em um contexto invisibilizado e carregado de silenciamentos, inferioridades e
até mesmo de um processo histórico velado e perpetuamente vivenciado nos diversos espaços
sociais, sobretudo o escolar. Aliás, é neste cenário que emergem as problematizações aqui
explicitadas e, para tanto, torna-se importante registrarmos os percursos profissionais e
pedagógicos que culminaram no desenvolvimento e nas inquietações que este trabalho
apresenta.
Desde o início da minha trajetória acadêmica, debrucei-me sobre as questões voltadas
à literatura infantil e à formação de leitores e, dentro desse espectro, a diversidade de temáticas
presentes nos livros foi algo que começou a ocupar um espaço maior na minha trajetória e que,
a partir do contato direto com as crianças nas escolas, ganhou proporções ainda maiores. Nessa
aproximação diária com os alunos, iniciei um trabalho pautado em propostas de leitura que
pudessem potencializar, na rotina e na prática educativa, um olhar para a diversidade cultural
presente nas narrativas infantis. Com base nisso, foi possível notar que os contos clássicos
infantis sempre estiveram presentes nas rotinas escolares e até mesmo no imaginário infantil,
desencadeando, de maneira processual e natural, o reconhecimento, a valorização e até mesmo
a unicidade de estereótipos e características nas personagens apresentadas nas histórias. A
respeito das narrativas clássicas, traremos aqui uma das definições de Ítalo Calvino (1993) em
que os “clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras
que procederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram”.
Com o passar do tempo, e durante o cotidiano pedagógico, busquei planejar e
desenvolver ações educativas com o objetivo de fazer um levantamento das percepções que as
crianças tinham sobre as características das princesas. Uma das práticas realizadas foi uma roda
de conversa sobre essas personagens e suas representações, complementada com uma proposta
na qual as crianças tinham de desenhar uma princesa tendo como base as referências que elas
já tinham ouvido nas histórias. A partir dessas propostas, notei que muitas crianças tinham, de
maneira muito sólida, um ideal de representação dos personagens das histórias clássicas,
sobretudo as princesas: brancas, loiras, olhos claros, cabelos lisos, dentre tantas imagens
historicamente reproduzidas nas ilustrações das narrativas.
Portanto, diante desse contexto, surgiu no processo da práxis pedagógica a seguinte
inquietação: se vivemos em um espaço escolar multifacetado, plural e diverso, por que as
14
personagens clássicas dessas narrativas não dialogavam com a realidade multicultural presente
e visível na sala de aula? Como as crianças negras poderiam se reconhecer nas imagens ali
apresentadas, uma vez que o perfil dominante é o eurocêntrico? Foi então que, a partir desse
lugar e dessa realidade, deu-se uma das maiores inquietações e problematizações que, para mim,
são as gêneses da atual pesquisa: como as princesas africanas são representadas na literatura
infantil? Quais os estereótipos trazidos nos livros? Que espaço as princesas negras ocupam nas
narrativas infantis, sobretudo nos contos clássicos?
Essas questões foram fundamentais para chegarmos aos objetivos dessa pesquisa e,
portanto, para tornar possível esse movimento teórico-metodológico pautado em aspectos
qualitativos e quantitativos de cunho bibliográfico e documental, escolhemos alguns
instrumentos que poderiam nos permitir uma ampliação desses estudos e investigações com
base na realidade de um contexto educacional público, sendo a aplicação de uma pesquisa
(questionário) para docentes de uma escola pública e a análise dos documentos do Programa
Nacional do Livro Didático e Literário (PNLD). Assim, passaremos agora a apresentar os
pressupostos que embasaram o presente trabalho, apresentando as etapas e os percursos
utilizados durante sua realização.
Partindo das problematizações mencionadas, a pesquisa aqui apresentada teve como
objetivo geral investigar a presença do protagonismo negro nas narrativas infantis nas práticas
docentes de uma escola pública localizada na região periférica de um município do interior de
São Paulo, fazendo uma discussão sobre o racismo presente no contexto escolar e, a partir disso,
estabelecer relações e análises com o edital e o guia do PNLD do ano de 2018. Além disso, a
pesquisa teve também como objetivo específico elaborar um produto educacional trazendo a
reescrita de 6 princesas africanas da cultura iourubá, banto e zulu no sentido de possibilitar o
reconhecimento e a valorização da cultura africana e afro-brasileira presente nestas narrativas.
Para tanto, a pesquisa foi organizada em 3 capítulos: 1) O racismo e o contexto escolar: um
debate sociológico; 2) A literatura infantil e o protagonismo negro nas narrativas; e 3) Uma
possibilidade didática: conhecendo as princesas africanas.
No capítulo 1, apresentamos algumas concepções pautadas em um debate que tenha
como centralidade os estudos da Sociologia acerca do racismo e suas implicações no contexto
escolar. Sendo assim, retomamos alguns conceitos sobre raça e racismo presentes nas Ciências
Sociais, as contribuições de sociólogos na abordagem dessas temáticas, além de estabelecermos
diálogos com os estudos de Kabengele Munanga, Gilberto Freyre, o mito da democracia racial
e as pesquisas de Florestan Fernandes (2013) sobre o referido assunto. No sentido de
potencializar as discussões, também nos debruçamos sobre as investigações e os estudos
15
educacional brasileiro. Apesar de termos diversas legislações vigentes que, em 2003, ganharam
mais força, ainda é visível que as redes de ensino negligenciam a temática e, por vezes, as
minimizam em datas específicas, segmentando-as, fazendo com que deixem de dialogar com a
história e a cultura do povo africano, trazendo, muitas vezes, uma abordagem preconceituosa e
historicamente racista.
17
[...] as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas
por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das
identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura
simbólica. Podemos dizer que as ‘raças’ são efeitos de discursos; fazem parte
desses discursos sobre origem. As sociedades humanas constroem discursos
sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o
terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos
sobre origem. Usando essa ideia, podemos dizer o seguinte: certos discursos
falam de essências que são basicamente traços fisionômicos e qualidades
morais e intelectuais; só nesse campo a ideia de raça faz sentido. O que são
raças para a sociologia, portanto? São discursos sobre as origens de um grupo,
que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos,
qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue (conceito
fundamental para entender raças e certas essências) (GUIMARÃES, 2003, p.
96).
Neste sentido, trazemos aqui trechos de um relato de Frantz Fanon (2008) na obra
“Pele negra, máscaras brancas”, publicado em 1952, em que o autor nos aponta uma realidade
social que, por vezes, pode ser vista nos dias atuais. Trata-se de um processo de descoberta
20
Na obra de Fanon (2008), o autor nos convida a uma profunda reflexão a respeito da
violência dos processos de colonização e do racismo, e de como tais processos podem fazer que
a identidade negra seja negligenciada, dentre outras provocações que o livro apresenta.
Portanto, podemos afirmar que a construção de uma identidade negra é permeada por
questões sociais e políticas, dentre outras, e, para ampliar nossas discussões, trataremos agora
de alguns conceitos e definições sobre raça e racismo.
As discussões acerca dos termos raça e racismo não são novas e, portanto, geram uma
diversidade de entendimentos e definições, como, por exemplo, o conceito mais biológico
apresentado no século XIX. Ainda no contexto histórico do termo raça, Antônio Sérgio
Guimarães aborda em seu livro “Preconceito racial: modos, temas e tempos” um levantamento
sobre os registros sociais e definições de raça, como é possível ver neste trecho:
Além disso, nos seus estudos, Guimarães (1999) aprofunda as discussões sobre o
conceito de raça, tratando de uma temática de estudos das Ciências Sociais e contrastando com
a ideia classificatória, voltando-se às questões que envolvem a realidade social atrelada à
dimensão de mundo. Diante dessas premissas, o autor afirma que
21
1
Veremos mais sobre os estudos de Florestan Fernandes durante o capítulo.
22
No fim da década de 1970, Hasenbalg (1979, p. 114) traz uma definição para o racismo
permitindo um enfoque maior nas desigualdades sociais, na estrutura de classes e nas diversas
hierarquias sociais: “o racismo, como construção ideológica incorporada em e realizada através
de um conjunto de práticas materiais de discriminação racial, é o determinante primário da
posição dos não-brancos nas relações de produção e distribuição”.
Como já visto, muitas podem ser as definições de racismo. Portanto, visando a dialogar
com os estudos mais recentes relativos ao tema, nos debruçaremos agora sobre a pesquisa
realizada por Almeida (2019) e descrita na obra “Racismo Estrutural”. Em seus estudos, o
citado autor classifica o racismo em três concepções: individualista, institucional e estrutural,
as quais são assim descritas:
Como vimos, o debate a respeito da temática racial no Brasil não é novo. Porém, é
fundamental refletirmos sobre ela no âmbito acadêmico e, sobretudo, nos diversos estudos e
debates sociais. Com o objetivo de potencializar nossas discussões, traremos aqui dois
pesquisadores: Gilberto Freyre e Florestan Fernandes. Partindo de visões antagônicas sobre a
formação da sociedade brasileira, estabeleceremos um debate sobre as questões raciais
evidenciadas e teorizadas por ambos.
De início, tomamos como base a concepção apresentada por Domingues (2003/2004,
p. 116), em que “democracia racial, a rigor, significa um sistema racial desprovido de qualquer
barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema racial
desprovido de qualquer manifestação de preconceito ou discriminação”. Ainda nesse contexto,
Nascimento nos aponta de que maneira o conceito da democracia racial surgiu no país:
O racismo brasileiro na sua estratégia age sem demonstrar a sua rigidez, não
aparece à luz; é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente em seus
objetivos. Essa ideologia é difundida no tecido social como um todo e
influencia o comportamento de todos – de todas as camadas sociais, até
mesmo as próprias vítimas da discriminação racial. Discutir a questão da
pluralidade étnica, e em especial da sua representação nas instituições públicas
e nas demais instituições deste país, ainda é visto como um tabu na cabeça de
muitas pessoas, pois é contraditória à ideia de que somos um país de
democracia racial (MUNANGA, 2003, p. 215).
Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
- Negro e pronto!
- Batuca em mim
Meu rosto
Belo contra o novo imposto
E não me prego em ser preto
Negro pronto
Contra tudo o que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo – sangue sem regra feita
Grito – negro – força
Contra grades contra forcas
Negro pronto
Negro e pronto. (CUTI, p.9).
Os versos de Cuti nos revelam um outro olhar sobre as questões raciais apresentando
um processo de desconstrução de representações negativas e estereotipadas, além de afirmar e
valorizar a identidade negra combatendo imagens cristalizadas e inferiorizadas sobre a
negritude. O poema soa como um grito de resistência, identidade e de empoderamento negro
contrastando com a ideia apresentada por Manuel Bandeira, principalmente no que diz respeito
“à alma do brasileiro” e à veneração de uma democracia racial mitológica.
Para continuar nossas discussões, traremos outra perspectiva: as contribuições e
estudos do sociólogo Florestan Fernandes3 (2013). Em sua obra, Fernandes sinaliza aspectos
2
Cuti é pseudônimo de Luiz Silva. Nasceu em Ourinhos-SP, a 31.10.51. Formou-se em Letras (Português-Francês)
na Universidade de São Paulo, em 1980. Mestre em Teoria da Literatura e Doutor em Literatura Brasileira pelo
Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp (1999/2005). Foi um dos fundadores e membro do Quilombhoje-
Literatura, de 1983 a 1994, e um dos criadores e mantenedores da série Cadernos Negros, de 1978 a 1993.
3
Doutor em Sociologia pela USP, foi professor da mesma instituição na década de 1960.
27
que, de certa maneira, desmistificam o mito da democracia racial, como pode ser visto no livro
“O negro no mundo dos brancos”, o autor afirma que:
A ideia de que existiria uma democracia racial no Brasil vem sendo fomentada
há muito tempo. No fundo, ela constitui uma distorção criada no mundo
colonial, como contraparte da inclusão de mestiços no núcleo legal das
“grandes famílias” – ou seja, como reação a mecanismos efetivos de ascensão
social do “mulato”. O fundamento pecuniário da escravidão e certos efeitos
severamente proscritos, mas incontornáveis da miscigenação, contribuíram
para que se operasse uma espécie de mobilidade social vertical por infiltração,
graças à qual a composição dos estratos raciais dominantes teve de adquirir
certa elasticidade. No entanto, mau grado a extensa variabilidade do fenômeno
ao longo do tempo e do espaço, tomou-se a miscigenação como índice de
integração social e como sintoma, ao mesmo tempo, de fusão e de igualdade
raciais (FERNANDES, 2013, p. 43-44).
Fica evidente que os estudos de Florestan Fernandes foram fundamentais para que o
mito da democracia racial, sustentado até então, pudesse ser analisado à luz de uma sociedade
atual racista que por vezes naturaliza as práticas de preconceito racial e que, “[...] pode ser uma
cruel mistificação da desigualdade, da intolerância, do preconceito, do etnicismo ou do racismo
como ‘argamassas’ da ordem social vigente, da lei e da ordem [...] (IANNI, 2004, p. 25).
Ainda sobre o mito da democracia racial e sua presença naturalizada na realidade
contemporânea, Munanga, em uma entrevista para o Portal Geledes no ano de 2016, afirma que,
Esse mito (da democracia racial) já faz parte da educação do brasileiro. E esse
mito, apesar de desmistificado pela ciência, a inércia desse mito ainda é forte
e qualquer brasileiro se vê através desse mito. Se você pegar um brasileiro até
em flagrante em um comportamento racista e preconceituoso, ele nega. É
capaz dele dizer que o problema está na cabeça da vítima que é complexada,
e ele não é racista. Isso tem a ver com as características históricas que o nosso
racismo assumiu, um racismo que se constrói pela negação do próprio
racismo”. (MUNANGA, 2016, p.1).
4
O Jornal do Brasil é um tradicional jornal brasileiro, editado na cidade do Rio de Janeiro, capital do estado
homônimo. Foi fundado em 1891 pelo jornalista Rodolfo Epifânio de Sousa Dantas e, atualmente, pertence ao
empresário Omar Resende Peres Filho.
29
Como descrito acima, esse trecho nos revela de maneira pontual os reflexos de uma
sociedade brasileira racista que, por vezes, naturaliza as relações e práticas discriminatórias.
Cenas como essa configuram uma realidade imersa pelo mito da democracia racial que se faz
presente na contemporaneidade. Na mesma edição, é possível ver que a manchete do Caderno
B faz referência à obra “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, publicada em 1933 e que,
como já vimos aqui, tratava da formação do povo brasileiro em um viés “democraticamente
racial”.
5
Legenda: O “apartheid” vertical: À primeira vista, trata-se do engenho mais inofensivo do mundo. No Brasil, no
entanto, o elevador, em princípio um agente do progresso e do conforto, transformou-se num instrumento de
discriminação social e racial. Ao se adotar a divisão entre elevador “social” e “de serviço”, e ao confinar-se ao
segundo as empregadas domésticas e outros serviçais, legalizou-se no país um apartheid que não existe nem na
África do Sul. No prédio 117 da Rua Dona Mariana, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, há uma aberração. Ali,
onde há um só elevador, moradores antigos dividiram-se em dois, improvisando uma porta no meio – de forma
que, mesmo que a viagem seja a mesma os patrões não tenham de encarar os empregados durante o percurso.
30
6
Legenda: Manchete do Caderno B, Jornal do Brasil, 04 de dezembro de 1988.
31
7
Legenda: Uma portaria típica: seu direito começa quando o meu tapete acaba.
32
[...] penso que é chegada a boa hora de “lermos imagens” em sentido paralelo
ao que destrinchamos um documento amarrotado, um texto clássico, um
documento cartorial, uma notícia de jornal [...] além de vasculhar usos de
imagens não como ilustrações, mas como documentos que, assim como os
demais, constroem modelos e concepções. Não como reflexo, mas como
produção de representações, costumes, percepções, e não como imagens fixas
e presas a determinados temas ou contextos, mas como elementos que
circulam, interpelam, negociam (SCHWARCZ, 2014, p. 391).
Ainda nesta perspectiva, Schwarcz (2015) reforça a ideia da relação entre texto e
imagem perpassando por questões éticas, das relações de poder e do conhecimento,
corroborando a pesquisa de Mitchell (2009), segundo a qual deve-se fornecer uma teoria à
imagem, uma vez que ela se comporta como uma instância privilegiada de formação de
representações, entendendo-se representação como processo e relação, além de um sistema de
transferência de valores e intercâmbios, cultura política, realidades pragmáticas e imaginários
utópicos (MITCHELL, 2009).
São essas relações que buscamos evidenciar, por meio da breve análise das imagens,
aqui expostas e referenciadas. Ressaltamos, porém, que, de acordo com Schwarcz,
33
As imagens até aqui apresentadas nos revelam processos históricos ainda presentes no
nosso cotidiano; são imagens repletas de camadas: sociais, histórias, políticas e que sinalizam
a necessidade de ações de combate ao racismo cada vez mais presentes e sólidas no cenário
brasileiro. Fazer a leitura dessas imagens nos (re)posiciona diante de práticas racistas e
cristalizadas nas diversas esferas sociais, projetando-nos para um trabalho árduo de
descolonização.
Neste sentido, a pesquisadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2015) reforça as
marcas histórias e os desafios impostos diante desse processo de descolonização. Segundo a
autora,
Por fim, evidencia-se que as questões raciais são diversas e carregam vestígios de
colonização, os quais nos colocam diante de um cenário que, por séculos, legitima e naturaliza
o racismo, insistindo em neutralizar os processos históricos que revelam práticas racistas que,
desde séculos passados, ocupam o imaginário brasileiro perdurando ainda em pleno século XXI.
Tais marcas podem ser vistas nas diversas esferas sociais, sobretudo no contexto escolar, tópico
que trataremos a seguir, no sentido de estabelecer relações com as práticas educativas e o
racismo no discurso escolar.
As narrativas e discussões elencadas até aqui sinalizaram que o debate sobre o racismo
nos diversos contextos sociais nos coloca diante de um cenário marcado por fatos históricos
34
que, por vezes, legitimou as práticas racistas e a herança colonizadora que ainda se faz presente
no cotidiano. Nesse sentido, estabeleceremos um diálogo com as relações em que o racismo se
configura e se legitima no contexto escolar por meio de práticas enraizadas e naturalizadas nos
espaços escolares.
Silva (2015) já sinaliza que, ao pensarmos nos espaços escolares e nas ações de
combate ao racismo,
Nesta busca de novas pedagogias, Silva também aponta algumas ações que precisam
ser potencializadas nos contextos educacionais e o papel que deve ser assumido pelos docentes
nestes espaços:
Ao longo dos anos, a escola tem sido um espaço marcado por diversas transformações
e que, nesse sentido, tentam estabelecer diálogos com as mudanças presentes na sociedade.
Diante desse pressuposto, é preciso considerar que, ao mesmo tempo em que as mudanças
sociais acontecem, os sujeitos que nela atuam deparam-se com desafios cada vez mais latentes
quanto à função social da escola.
Portanto, é possível elencar que a escola tem, dentre tantas outras, a função de
socializar os conhecimentos historicamente acumulados, possibilitando que os sujeitos
envolvidos os relacionem com o contexto social em que estão inseridos e, a partir disso, sejam
capazes de fazer melhores escolhas, além de contribuir ativamente na formação de cidadãos
autônomos e críticos, que saibam se posicionar diante das fragilidades e potencialidades que os
cercam e, assim, tomar decisões mais assertivas.
35
Diante dessas premissas, Paiva (2015, p. 187) também sinaliza que “a sociedade parece
trazer, a partir do silêncio e da negação, ações constantes no cotidiano escolar, que não devem
passar desapercebidas”. Os cenários e espaços educacionais são carregados de vivências que
reforçam a negligência das temáticas raciais no contexto escolar. Ainda nesse sentido, Gomes
(2005, p. 147-148) explicita em seus estudos que não podemos nos eximir do desafio de trazer
à tona as discussões sobre o racismo e as práticas escolares, uma vez que
Gomes (2005, p. 146) ainda reforça que, diante do racismo brasileiro ora velado, ora
explícito nos diversos contextos e práticas sociais, também se faz necessário um olhar atento
para o discurso de alguns educadores no sentido de que, segundo a pesquisadora,
Gomes aponta uma realidade ainda presente no cenário educacional brasileiro, o que
também está ligado aos processos formativos docentes que, ao tratarem das questões raciais,
banalizam os conteúdos, diminuem e restringem os processos e marços históricos do povo negro
a simples datas comemorativas, como, por exemplo, o dia 13 de maio (“abolição”), reforçando
assim o apagamento da história e cultura africana reduzindo-as a episódios superficiais e que
por vezes carregam significados equivocados e que não possibilitam reflexões e construção de
conhecimentos.
Os apontamentos realizados a respeito do discurso docente sobre o racismo e as
práticas escolares também nos colocam diante dos estudos realizados por Munanga (2005, p.
11), uma vez que, segundo o pesquisador,
36
Munanga (2005) afirma que se faz necessária uma reflexão sobre os direitos sociais ou
coletivos nos espaços escolares à luz dos desafios no combate ao racismo. Neste sentido,
ressaltamos a luta do Movimento Negro, em que, para Domingues (2007), pode ser entendido
como:
Partindo deste entendimento sobre o Movimento Negro, destacamos que a sua atuação
também esteve presente em discussões importantes da política e esfera educacional. Gomes
(2018, p. 31) afirma que desde o início do século XX, as organizações negras já reivindicavam
a inclusão dos negros na escola pública como recurso argumentativo nos debates educacionais
de 1940 a 1960. Ainda segundo a autora,
É possível dizer que até a década de 1980 a luta do Movimento Negro, no que
se refere ao acesso à educação, possuía um discurso mais universalista. Porém,
à medida que este movimento foi constatando que as políticas públicas de
educação, de caráter universal, ao serem implementadas, não atendiam à
grande massa da população negra, o seu discurso e as suas reinvindicações
começaram a mudar. Foi nesse momento que as ações afirmativas, que já não
eram uma discussão estranha ao interior da militância, emergiram como uma
possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical [...]. (GOMES,
2018, p. 33).
Vimos então que, a partir dos estudos de Gomes (2018) e Araújo (2015), a atuação do
Movimento Negro foi um fator importante para a discussão de políticas públicas educacionais
e, portanto, para elucidar as relações entre o racismo e contexto escolar.
Veremos agora os dados estatísticos que revelam informações a respeito das questões
raciais presentes na escola e as pesquisas sobre a temática. Porém, vale lembrar que, segundo
Fazzi8 (2012), “os estudos sobre o preconceito racial entre crianças no Brasil se relacionam com
a discussão da escola enquanto um mecanismo de diferenciação social e reprodutora do
preconceito” e, por isso, à luz destes dados, ampliaremos nossas discussões e seus reflexos no
contexto escolar.
8
Rita de Cássia Fazzi no livro “O drama racial de crianças brasileiras – Socialização entre pares e preconceito”
publicado pela Editora Autêntica em 2012 apresenta pesquisas realizadas em escolas públicas de Belo Horizonte
acerca das questões de preconceito vividas no contexto escolar.
38
30%
70%
Os dados da figura 4 revelam que 68,6% dos cargos gerenciais do mercado de trabalho
brasileiro são ocupados por brancos; já os pretos ou pardos ocupam apenas 29,9% dos cargos
gerenciais, reforçando assim a desigualdade visível em diversas áreas. Dando continuidade,
observaremos agora a representatividade negra na esfera política, analisada aqui com base nos
Deputados Federais eleitos em 2018.
24%
76%
Diante da figura 5, notamos que os reflexos de um contexto social que, por vezes,
naturaliza as desigualdades sociais, também são facilmente visíveis no quadro político e na sua
representação9, pois apenas 24,4% dos Deputados Federais eleitos são negros ou pardos.
Veremos agora os dados levantados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas a
partir do Censo da Educação Básica10 realizado no ano de 2019. No gráfico abaixo, os dados
apresentados versam sobre o percentual de matrículas por cor/raça segunda as etapas de ensino
no Brasil sendo: Creche, Pré-escola, Ensino Fundamental Anos Iniciais e Anos Finais, Ensino
Médio, Ensino Profissional e Educação de Jovens e Adultos.
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Creche Pré- Escola Anos Iniciais Anos Finais Ensino Médio E.P. EJA
9
No ano de 2020, o TSE decidiu que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha
(FEFC) – também chamado de Fundo Eleitoral –, assim como o tempo de propaganda eleitoral na televisão e no
rádio, deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa eleitoral,
garantindo assim a igualdade de condições para o pleito eleitoral.
10
O Censo Escolar da Educação Básica é um levantamento estatístico anual coordenado pelo Inep e realizado em
colaboração com as secretarias estaduais e municipais de educação e as escolas públicas e privadas de todo o país.
A pesquisa proporciona a obtenção de estatísticas das condições de oferta e atendimento do sistema educacional
brasileiro, na educação básica, reunindo informações sobre todas as suas etapas e modalidades de ensino, e
compondo um quadro detalhado sobre os alunos, os profissionais escolares em sala de aula, os gestores, as turmas
e as escolas. Os dados e informações apuradas pela pesquisa subsidiam a operacionalização de importantes
políticas públicas, programas governamentais e ações setoriais nas três esferas de governo (federal, estadual e
municipal).
40
Com base na figura 6, podemos afirmar que, com exceção da etapa Creche, o número
de matrículas de alunos negros e pardos apresenta-se em maior quantidade, principalmente na
Educação de Jovens e Adultos. Neste sentido, nos debruçamos sobre outro gráfico elaborado a
partir das pesquisas e dados do IBGE que revelam um contraponto desse cenário: a taxa de
analfabetismo é maior entre a população preta ou parda do que entre a população branca.
Tais dados revelam que a escola que acolhe e realiza matrículas (na maioria de alunos
negros) é a mesma que exclui esses alunos, gerando níveis de analfabetismo maiores que a
população branca, tanto no contexto urbano quanto no rural.
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
Total Urbano Rural
70
60
50
40
30
20
10
0
Creche Pré- Escola Anos Iniciais Anos Finais Ensino Médio E.P. EJA
À luz dos dados da figura 8, observamos que, diferente do cenário nacional, o número
de matrículas de alunos declarados brancos no Estado de São Paulo é maior em todas as etapas
de ensino, o que nos coloca diante de desafios ainda mais latentes. Sendo assim, muitas
discussões surgem no contexto educacional sobre práticas de combate ao racismo. Tais
discussões começaram a ser ainda mais sistematizadas nas escolas a partir da promulgação da
Lei nº 10.639/0311, da Lei nº 11.645/08, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 199612, dentre outros marcos importantes que foram resultado de lutas do
Movimento Negro durante um longo período, conforme visto anteriormente nesta pesquisa.
No livro “Um olhar além das fronteiras – educação e relações raciais”, Gomes nos
apresenta um panorama sobre as relações entre o contexto escolar e o racismo:
11
Abordaremos mais sobre a Lei nº 10.639/03 no próximo capítulo desta pesquisa.
12
A LDBEN nº 9.934/96 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e foi promulgada em 20 de
dezembro de 1996.
42
13
A pesquisa também foi realizada por um grupo de pesquisadores que formam o Núcleo Relações Raciais:
memória, identidade e imaginário, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP).
44
O fato de não perceber o racismo faz com que as professoras não percebam as
práticas discriminatórias existentes na escola. Em uma das reuniões
pedagógicas, talvez sentindo necessidade de colocar o assunto em pauta – em
grande parte pela minha presença – a diretora sugere que as professoras
definam de que forma iriam trabalhar com o racismo na escola. Nesse
momento presencio o seguinte diálogo entre as professoras: — Não sei se é
necessário trabalhar o racismo, não. Na minha aula não tem nada que eu possa
fazer. Como as crianças só ficam brincando e jogando, as crianças “pretas”
até se saem melhor. Porque já viu, eles (negros) são sempre melhores nos
45
Vemos neste trecho a realidade ainda presente nos contextos escolares que banalizam
o racismo e suas práticas e que corroboram os estudos de Cavalleiro (2005, p. 71), em que,
segundo a autora, “na escola a existência de racismo é negada. Não são reconhecidos os efeitos
prejudiciais do racismo para os negros, não se buscam estratégias para a participação positiva
da criança negra, mesmo quando se reconhece a existência da discriminação no cotidiano
escolar” – ideias e premissas com as quais concordamos e que observaremos no campo da
literatura infantil de que trataremos no capítulo 02 desta pesquisa.
Esses e tantos outros relatos também dialogam com a pesquisa realizada por Villela e
Costa (2013, p. 7019), a qual constatou que nas ações discriminatórias no ambiente escolar os
alunos “consideram que a maioria das discriminações vem em forma de ‘brincadeira’14, ou seja,
pode ter grande carga de maldade, mas vem lacrada por um envoltório de algo mais ‘leve’, mais
aceitável, e não algo ‘pesado’ como um xingamento preconceituoso”. Essa visão, além de estar
presente na perspectiva do aluno, também perpassa a ação docente enraizada por séculos.
Corroborando essas ideias, Bento (2002) nos coloca diante de uma reflexão a respeito da
democracia racial brasileira:
14
Sobre a pesquisa realizada por Villela e Costa (2013), podemos agregar à discussão o conceito de racismo
cordial, em que, nesta abordagem, as práticas racistas são vistas como passionais, provocando um silenciamento
que, por vezes, se naturaliza. Aqui nesta pesquisa não ampliaremos a discussão sobre o racismo cordial; no entanto,
registramos os trabalhos realizados por TURRA, C. & VENTURI, G. (1995) na obra Racismo cordial: a mais
completa análise sobre preconceito de cor no Brasil. In: LIMA, Marcus Eugênio & VALA, Jorge. As novas formas
de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia (pp. 40 - 411), 2004.
46
Os termos acima elencados dialogam, por vezes, com o cotidiano escolar desde muito
cedo, nos discursos, nas práticas, na escolha dos brinquedos infantis, nas relações sociais
vividas na escola, no processo de aceitação e/ou rejeição entre crianças e adultos partindo da
cor da pele, dentre tantas outras situações que mascaram e velam o racismo no espaço escolar.
Portanto, pensar em propostas de uma educação que combata o racismo é refletir em
políticas públicas potentes, assim como na necessidade de uma formação de professores voltada
às questões raciais. Sabe-se que:
dentre tantos outros meios que contrastavam com a democracia racial tão sacralizada desde
então.
No início do século passado, era comum encontrar campanhas que traziam uma
abordagem racista e que, em alguns casos, eram protagonizadas por crianças, como pode ser
visto na figura 9:
A imagem apresenta uma criança branca com um sabão na mão perguntando à criança
negra: “Por que sua mãe não lava você com sabão Fairy?” (tradução nossa). Muito mais do que
a imagem pode dizer por si só, fica evidente, nesta campanha, o apelo à higienização, à cultura
hegemônica e ao branqueamento, tão disseminados nos diversos contextos sociais. Além disso,
a presença de crianças no contexto da campanha mascara a realidade cruel e racista, herança de
uma cultura eurocêntrica e escravocrata. Ademais, vale ainda ressaltar que a campanha carrega
marcas da política do branqueamento que, no Brasil, também despontava, conforme nos aponta
Benedicto:
48
Como visto, a propaganda divulgada em 1952 trazia uma garotinha negra com os
cabelos crespos presos com fitas anunciando: “No Rio, todos me conhecem. Sou Krespinha –
a melhor esponja para a limpeza da cozinha. As paulistas também vão me querer bem”. A
campanha, que circulava nos meios impressos, endossava o discurso racista, presente na
sociedade, que se materializa nesse tipo de produção. Assim como na imagem anterior, aqui
também é utilizada a figura de uma personagem infantil abordando uma temática tão recorrente
no discurso escolar e nas crianças negras: o cabelo crespo.
49
Todas essas abordagens apresentadas, por mais que pareçam estar distantes do
contexto social atual, ainda estão presentes no cotidiano, como é possível ver em uma matéria
publicada no site BBC News Brasil, no dia 18 de junho de 2020, com a seguinte manchete:
“Bombril retira ‘krespinha’ do mercado: acusações de racismo fazem marcas reverem
produtos”. Em pleno século XXI, uma empresa resolve relançar o produto “Krespinha” em seu
catálogo de vendas e, a partir de articulações do Movimento Negro e de outros grupos sociais,
resolveu retirar o produto do catálogo.
Ainda no contexto brasileiro, podemos ver o quanto as questões raciais são tratadas
com banalidade e de maneira naturalizada nas mais diversas esferas, inclusive nas campanhas
políticas. Um exemplo recente desta banalização pode ser visto na Campanha Pátria Amada
Brasil do atual Governo Federal, conforme a figura a seguir.
50
Na figura 12, notamos de maneira explícita que as políticas públicas que reconhecem
e valorizam a diversidade da população brasileira ainda são um grande desafio. Observamos na
imagem que todas as crianças são brancas e que, desse modo, revelam o racismo brutal que
domina os espaços sociais de decisão e que marginalizam a população negra, dentre outras. São
evidências e sinais de um viés político racista e que se perpetua em cartazes e campanhas como
esta aqui apresentada e que assim reforçam ainda mais a necessidade de ações afirmativas no
combate ao racismo enraizado por séculos. São exemplos como este, dentre tantos outros, que
dialogam muito com os estudos de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2018), em que a autora
afirma que
[...] cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos
adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade
e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura
racista na qual foram socializados. Apesar da complexidade da luta contra o
racismo, que consequentemente exige várias frentes de batalhas, não temos
dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa
preliminar importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros
educadores, capazes de contribuir no processo de construção da democracia
brasileira, que não poderá ser plenamente cumprida enquanto perdurar a
destruição das individualidades históricas e culturais das populações que
formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira. (MUNANGA,
2005, p. 17).
Portanto, para ampliar nossas discussões sobre as relações entre o racismo e o contexto
escolar, no próximo capítulo, abordaremos as relações entre a literatura infantil e o
protagonismo negro nas narrativas, no sentido de analisar a potencialidade das discussões
raciais nos diversos contextos, sobretudo no escolar, e, assim, notarmos que as relações sobre
o mito da democracia racial apresentadas até então estão cristalizadas e refletidas nas mais
diversas linguagens e práticas, inclusive a literária.
53
A literatura infantil, nas últimas décadas, tem sido tema centralizador de muitas
pesquisas e transformações no cenário acadêmico e editorial, passando de um caráter moralista,
instrumental e de cunho meramente didático, para um meio possível de potencializar visões de
mundo e refletir características do universo estético e simbólico infantil.
A partir da década de 1970, a literatura infantil configurou-se como um período
marcado por grandes avanços (CADERMATORI, 2006; SANDRONI, 1985) em que, além do
aumento dos programas de incentivo à leitura, o mercado editorial ampliou suas publicações e
a literatura nacional ganhou força com a promulgação da Lei nº 5.692/7115, em diálogo com a
produção em larga escala de obras infantis, favorecendo um cenário caracterizado pelo
capitalismo recém-inaugurado no país.
Portanto, à luz dessas premissas históricas que versam sobre a literatura infantil, é
preciso destacar a especificidade do texto literário para a infância: a criança. Sendo assim, nos
deparamos com diversos desafios e peculiaridades a respeito dessa temática, pois a formação
literária perpassa por processos que, por vezes, são legitimados nos espaços escolares. Nesse
sentido, Lajolo nos convida a pensar nas relações entre a literatura para a infância e as práticas
escolares, fazendo-se necessário
Com base no trecho acima, observa-se que pensar na literatura infantil é refletir sobre
sua função não apenas no âmbito educacional, mas sim na perspectiva histórica e político-
pedagógica em que as narrativas são produzidas e publicadas. Além disso, é pensar no lugar
que a literatura ocupa nos espaços escolares e nas práticas cotidianas no sentido em que,
segundo Umberto Eco (2003, p. 12), “as obras literárias [...] propõem um discurso com muitos
15
Lei de Diretrizes e Base de 1971 - Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Em 1971, o governo militar instituiu
a Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus, depois de tramitação sumária no Congresso. A Lei nº 5.692 mudou a
organização do ensino no Brasil na época, passando a ter como principal objetivo a profissionalização.
54
planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades, da linguagem e da vida” e, ainda
mais: são capazes de criar identidade e comunidade.
Durante este capítulo, abordaremos os diálogos entre a literatura infantil e as relações
étnico-raciais e, neste sentido, a pesquisadora Eliane Debus (2012) nos afirma que ao pensar na
potência deste diálogo é preciso ressaltar que
Para isso, nos últimos vinte anos, visando a ampliar as propostas de trabalho com a
formação literária de alunos e professores, algumas políticas públicas de incentivo à leitura
começaram a ganhar espaço nas escolas públicas brasileiras, como, por exemplo, o PNBE, do
qual trataremos a seguir, descrevendo-se seus pressupostos, objetivos e encaminhamentos, bem
como os dados que o compõem. Ainda neste capítulo, nos debruçaremos sobre as narrativas
55
Com base no trecho do documento, verifica-se que o Programa, ao longo dos anos, foi
ganhando uma ampliação significativa, principalmente no que diz respeito à democratização do
acesso às fontes de informação e cultura e, sobretudo, nos processos de escolha das obras
literárias, respeitando as especificidades dos diversos contextos educacionais brasileiros.
Contudo, o Programa Nacional Biblioteca da Escola teve sua última distribuição entre
os anos de 2014 e 2015. A partir de então, o Programa foi extinto, sem previsões de
continuidade. Diante desse cenário, em meados de 2017, foi expedido o Decreto nº 9.099, de
18 de julho, unificando as ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários,
anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). A proposta assumiu uma nova nomenclatura
(PNLD Literário) e passou a incluir outros materiais de apoio à prática educativa, além das
obras didáticas e literárias: obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de
formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros (BRASIL, 2017).
Em 2018, foi lançado um Edital de Convocação para o Processo de Inscrição e
Avaliação de Obras Literárias para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD Literário 2018 – Edital 02/2018) a partir do Decreto que unificou os Programas, além
de estar em consonância com a Base Nacional Curricular Comum16. Nesse novo formato, pode-
se destacar alguns objetivos, dentre eles:
16
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades
da Educação Básica. O documento foi homologado em 2017.
57
Portanto, nessa edição do Programa, nota-se que a proposta ainda era potencializar os
acervos literários das escolas públicas alinhados às políticas e documentos educacionais
vigentes, porém, outras alterações foram apresentadas no Edital, podendo promover
questionamentos sobre a formação do leitor sem fazer uso meramente didático das obras
selecionadas, uma vez que o PNLD era um programa estritamente voltado aos livros didáticos
e não literários. O edital trouxe na sua integralidade as categorias em que as obras literárias
poderiam ser inscritas, conforme descrito no quadro abaixo:
Categoria Temas
a) Descoberta de si;
b) A casa e a família;
Categoria 1 (Creche I)
c) O mundo natural e social;
d) Outros temas.
58
Categoria Temas
a) Descoberta de si;
b) Família, amigos e escola;
Categoria 2 (Creche II) c) O mundo natural e social;
d) Diversão e aventura;
e) Outros temas.
a) Descoberta de si;
b) Família, amigos e escola;
Categoria 3 (Pré-escola) c) O mundo natural e social;
d) Diversão e aventura;
e) Outros temas.
a) Descoberta de si;
b) Família, amigos e escola;
Categoria 4 c) O mundo natural e social;
d) Diversão e Aventura;
e) Outros Temas.
a) Autoconhecimento, sentimentos e emoções;
b) Família, amigos e escola;
c) O mundo natural e social;
Categoria 5
d) Encontros com a diferença;
e) Diversão e aventura;
f) Outros temas.
a) Projetos de vida;
b) Inquietações das Juventudes;
c) O jovem no mundo do trabalho;
d) A vulnerabilidade dos jovens;
e) Cultura digital no cotidiano do jovem;
Categoria 6 f) Bullying e respeito à diferença;
g) Protagonismo juvenil;
h) Cidadania;
i) Diálogos com a sociologia e a antropologia;
j) Ficção, mistério e fantasia;
k) Outros temas.
Fonte: FNDE (2018)
Os temas elencados acima nortearam o processo de inscrição das obras literárias para
o atual Programa. Percebe-se que há uma “progressão temática” nas categorias de acordo com
as características específicas da faixa etária. Entretanto, no decorrer dessa pesquisa, pretende-
se analisar os temas descritos nas Categorias 4 e 5 (1º a 5º anos do Ensino Fundamental), com
foco no protagonismo negro das obras selecionadas, com vistas a estabelecer relações com os
critérios de escolha que respeitem e legitimem os pressupostos da diversidade cultural descritos
nos editais anteriores do PNBE e, mais recentemente, no PNLD Literário.
59
Além disso, vale a pena ressaltar que as políticas públicas educacionais, sejam de
incentivo à leitura ou outras instâncias, carregam marcas de uma cultura neoliberalista,
conforme afirma Knebel:
2.2 O protagonismo negro nas obras selecionadas para o PNBE, o PNLD Literário e os
impactos da Lei nº 10.639/03
17
O termo “obras de qualidade” apresentadas neste trabalho se relacionam com os critérios de escolha
estabelecidos e previstos nos Editais do PNLD Literário citado nesta pesquisa, tais como: Qualidade do texto
verbal e do texto visual; Adequação de categoria, de tema e de gênero literário; Projeto gráfico-editorial e
Qualidade do material de apoio
60
Nesse sentido, o cenário educacional brasileiro, a partir de 2003, passou por inúmeras
transformações e avanços no que diz respeito às pautas educacionais. A partir de então, diversas
políticas públicas voltadas à educação marcaram um novo período para as escolas brasileiras,
dentre elas, a Lei nº 10.639/03, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira” (BRASIL, 2003).
A promulgação da Lei nº 10.639/03 é um marco histórico e social que possibilitou
avanços significativos no processo de (re)construção e valorização da história e cultura africana
e afro-brasileira nos diversos contextos, sobretudo os escolares. Diante desse cenário, a escola
assume um papel fundamental no sentido de potencializar ações positivas e práticas
pedagógicas planejadas e pautadas no processo de construção histórico-cultural (GOMES,
2002).
Para elucidar e potencializar as práticas educativas que, a partir de então, deveriam
estar inseridas nas rotinas das escolas e em outras esferas, o Ministério da Educação lançou, em
2004, um documento importante com o objetivo de transpor as premissas teóricas promulgadas
na Lei nº 10.639/03 em práticas afirmativas de combate ao preconceito e ao racismo nos espaços
escolares: as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Dentre tantos princípios e pontos
norteadores, as Diretrizes destacam que,
Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que
desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o
etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais,
desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras
e a raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizados vivida pelos
negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas nas escalas
de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas (BRASIL, 2004,
p. 15).
[...] rompendo com a visão depreciativa do negro, para que se possam oferecer
subsídios para a construção de uma verdadeira identidade negra, na qual seja
visto não apenas como objeto de história, mas sim como sujeito participativo
61
Para além do rompimento de uma visão estereotipada de práticas escolares que, por
vezes, negligenciaram a temática africana e afro-brasileira em seus currículos, outras ações
educativas são contempladas nas Diretrizes que, a partir de 2004, precisariam ser assumidas e
vivenciadas no cotidiano escolar. Por se tratar de uma pesquisa com foco na literatura infantil,
destacam-se a seguir algumas destas ações a respeito da produção literária e das relações étnico-
raciais:
Diante das premissas e ações elencadas no documento, o mercado editorial passou por
um período marcado por movimentações na publicação e em suas produções literárias. Tais
mudanças refletem o viés mercadológico que, por vezes, permeia o cenário literário e que, por
consequência, pode negligenciar ou estereotipar a pluralidade cultural, sobretudo no que diz
respeito ao protagonismo negro nas obras infantis. Em outra perspectiva, Debus (2017, p. 37)
afirma que
A partir dos dados da tabela, nota-se que, dos mais de 870 livros selecionados para
compor os acervos das bibliotecas escolares, apenas 60 traziam o negro como protagonista, o
que representa uma quantidade inferior a 7% dos títulos. Dentre tais obras, vale a pena ressaltar
um título que foi selecionado no edital do PNBE em 2006, cuja escolha diverge dos princípios
elencados em editais do programa.
Espera-se que a diversidade cultural seja minimamente respeitada e o protagonismo
negro seja representado de maneira afirmativa, possibilitando o combate ao preconceito e
racismo. Porém, a história escrita por Drummond Amorim, intitulada “Xixi na Cama”, teve sua
primeira publicação em 1979, pela Editora Dimensão. Selecionado para compor o acervo das
63
bibliotecas escolares em 2006, seu enredo marca a “saga” de um menino negro adotado por
uma família branca. Os relatos presentes na narrativa não dialogam em nada com os
pressupostos do programa e, sobretudo, sistematizam de maneira preconceituosa e “agressiva”
o cotidiano do personagem principal apelidado de “Xixi na Cama”. Um dos trechos e sua
ilustração demonstram o cenário em que o menino negro vivencia situações constrangedoras:
A opção por obras que privilegiem culturas diversas, entre elas a africana, é
uma forma de permitir que as crianças construam seu imaginário com imagens
provindas de várias culturas. Abrir espaço e acolher outras, outras culturas nas
65
Sendo assim, fica claro que as escolhas das obras literárias dos Editais nº 01 e 02/2018
do PNLD Literário carregam intencionalidades que, por vezes, silenciam as vozes de povos e
culturas negligenciadas nas práticas leitoras e educativas até os tempos atuais.
Após tais análises, verificamos que, apesar das fragilidades apontadas, a Lei nº
10.639/03 trouxe para o campo editorial reflexões importantes a respeito da diversidade cultural
que deveria estar presente na literatura infantil, o que mobilizou equipes e sistemas de ensino
para que observassem de maneira criteriosa a qualidade literária e estética das obras
apresentadas.
Conforme descrito anteriormente, a pesquisa terá como foco a investigação das
categorias dos anos iniciais do Ensino Fundamental e, posteriormente, trará uma análise das
obras selecionadas no edital lançado em 2018 trazendo o negro como protagonista.
No que diz respeito às orientações e indicadores presentes no edital, foi possível
observar diversas mudanças, dentre elas a possibilidade de escolha das obras literárias pelo
grupo docente das escolas. Para auxiliar nesse processo de análise e escolha dos livros, o
Ministério da Educação disponibilizou para as unidades escolares um Guia do PNLD Literário
2018, trazendo alguns pressupostos como:
À luz das tabelas que nortearam as escolhas e os temas das obras literárias selecionadas
para o PNLD 2018, verifica-se que no quadro 4 (categoria 04) há um apagamento dos temas
relacionados à cultura africana e afro-brasileira. Pode-se apontar, ainda, mesmo que de maneira
superficial, que o tema intitulado “O mundo natural e social” sinaliza uma relação muito
pequena no trabalho com a diversidade cultural no trecho da descrição: “devem ser destacados
temas que abordem contextos regionais e locais e que estimulem o respeito ao outro e o
reconhecimento da diferença” (grifo nosso).
Já no quadro 5 é possível notar que o tema “Encontros com a diferença” traz uma
tentativa de estabelecer algumas relações com as diferentes culturas, porém, pautadas na
perspectiva da descoberta, do contato e das interações, o que sinaliza um cenário aparentemente
vago a respeito das obras infantis que trazem perspectivas afirmativas em relação ao
protagonismo negro, pois não define critérios sólidos e explícitos para que a escolha das obras
literárias contemplem a diversidade étnico-racial brasileira, incluindo a africana e afro-
brasileira, apresentando ainda uma visão superficial em vez de possibilitar e garantir um regaste
histórico-cultural presentes em obras na produção literária.
Os termos utilizados nos temas e nas descrições (“reconhecimento e encontros com a
diferença”) traduzem os processos de negação que, por séculos, acompanham os espaços
escolares e suas práticas, enraizadas no eurocentrismo em diversos aspectos, inclusive os
literários. São terminologias que, para além do léxico, generalizam as temáticas africanas e
afro-brasileiras nas obras literárias, passando apenas pelo viés da aceitação, e não pelo combate
ao racismo, pela representatividade nos livros e por propostas afirmativas em relação ao povo
negro.
Ainda nesse sentido, a pesquisadora Rosa Vani Pereira (2010, p. 11) afirma que
“historicamente a negação de direitos fundamentais, a negação da identidade, da dignidade do
outro pauta-se em interesses políticos e econômicos e constituem um exercício arbitrário de
poder”. Tal afirmação dialoga muito com o período em que o recente edital do PNLD foi
oficializado, pois, à época, o cenário político brasileiro passava por muitas transformações e
retrocessos no que diz respeito às políticas públicas. Portanto, generalizar e não deixar claro a
necessidade de critérios pontuais sobre as temáticas africanas e afro-brasileiras, assim como as
descrições que nortearam as escolhas das obras literárias, possivelmente abriu caminho para
que o apagamento das diversas culturas estivesse presente nos ambientes e espaços escolares.
No que diz respeito à importância do trabalho com a diversidade na escola, Pereira reforça que
68
2.3 PNLD Literário 2018 e a temática africana e afro-brasileira: uma análise sobre as
obras selecionadas
[...] a avaliação pedagógica das obras literárias deste PNLD 2018 - Literário
incidiu em quatro dimensões, aplicadas às obras inscritas em qualquer um dos
níveis de ensino recobertos por esta edição do Programa: 1.1. Qualidade do
texto verbal e do texto visual; 1.2. Adequação de categoria, de tema e de
gênero literário; 1.3. Projeto gráfico-editorial; 1.4. Qualidade do material de
apoio (BRASIL, 2018, p. 13).
Quadro 6 - Obras selecionadas do PNLD Literário 2018 que trazem as temáticas africanas e afro-brasileiras
Página
Qtde. Título do Livro Autoria Tema Categoria Gênero
(guia)
Alafiá e a Marcel Tenório da Costa (Marcel
Ensino Conto, crônica,
pantera que Tenório), Olavo Costa Frade de Paula Diversão e aventura, O
01 Fundamental - 1º novela, teatro, texto 112
tinha olhos de (Olavo Costa), Theo de Oliveira (Theo mundo natural e social
ao 3º Ano da tradição popular
rubi de Oliveira)
Autoconhecimento,
sentimentos e emoções, Ensino Conto, crônica,
Aminata, a
02 Marie Therese Kowalczyk (Maté) Família, amigos e escola, O Fundamental - 4º novela, teatro, texto 118
tagarela
mundo natural e social, Ano e 5º Ano da tradição popular
Outros temas
Blimundo: o Ensino Conto, crônica,
Celso Sisto Silva (Celso Sisto), Elma
03 maior boi do O mundo natural e social Fundamental - 4º novela, teatro, texto 168
Maria Neves da Fonseca (Elma)
mundo Ano e 5º Ano da tradição popular
Bolota - uma Ensino Conto, crônica,
A Descoberta de Si, O
04 certa jabuticaba Iray Maria Galrao (Iray Galrao) Fundamental - 1º novela, teatro, texto 170
mundo natural e social
muito esperta ao 3º Ano da tradição popular
Luís Lázaro Sacramento de Araújo Ensino Memória, diário,
Caderno sem Diversão e aventura, Família,
05 Ramos (Lázaro Ramos), Maurício Fundamental - 4º biografia, relatos de 190
rimas da Maria amigos e escola
Negro Silveira (Maurício Negro) Ano e 5º Ano experiências
Luís Lázaro Sacramento de Araújo Ensino Memória, diário,
Cadernos de A Descoberta de Si, Família,
06 Ramos (Lázaro Ramos), Maurício Fundamental - 1º biografia, relatos de 192
rimas do João amigos e escola
Negro Silveira (Maurício Negro) ao 3º Ano experiências
André Luís Neves da Fonseca (André Ensino Conto, crônica,
Cartas a povos
07 Neves), Fábio Henrique Lima de Castro Encontros com a diferença Fundamental - 4º novela, teatro, texto 202
distantes
Monteiro (Fábio Monteiro) Ano e 5º Ano da tradição popular
Ensino Conto, crônica,
Cinco fábulas da
08 Gustavo Damiani, Júlio Emílio Braz O mundo natural e social Fundamental - 1º novela, teatro, texto 223
África
ao 3º Ano da tradição popular
71
Página
Qtde. Título do Livro Autoria Tema Categoria Gênero
(guia)
Conto, crônica,
Ana Maria Martins Machado (Ana Ensino novela, teatro, texto
Histórias
09 Maria Machado), Laurent Nicolas Encontros com a diferença Fundamental - 4º da tradição 338
africanas
Cardon (Laurent Cardon) Ano e 5º Ano
popular
Autoconhecimento,
Histórias de Carlos Alberto de Carvalho (Carlos sentimentos e emoções, Ensino Conto, crônica,
10 ouvir da África Alberto de Carvalho), Fábio Osmar de Diversão e aventura, Família, Fundamental - 4º novela, teatro, texto 340
fabulosa Oliveira Maciel (Fábio Maciel) amigos e escola, O mundo Ano e 5º Ano da tradição popular
natural e social
Janete Lins Rodriguez, Josilane Maria A Descoberta de Si, Família, Ensino Conto, crônica,
Kiriku e a
11 do Nascimento Silva, Maria Carmelita amigos e escola, O mundo Fundamental - 1º novela, teatro, texto 376
feiticeira
Lacerda natural e social ao 3º Ano da tradição popular
André Praça de Souza Telles (André Ensino Memória, diário,
12 Martin e rosa Telles), Raphaële Frier (Raphaële Frier), Encontros com a diferença Fundamental - 4º biografia, relatos de 421
Zaü (Zaü) Ano e 5º Ano experiências
Carmen Lucia Da Silva Campos
(Carmen Ensino Conto, crônica,
Meu avô Encontros com a diferença,
13 Fundamental - 4º novela, teatro, texto 433
africano Lucia Campos), Laurent Nicolas Cardon Família, amigos e escola
Ano e 5º Ano da tradição popular
(Laurent Cardon)
Bell Hooks, Chris Raschka, Ellen Ensino
Meu crespo é de Cristina
14 A Descoberta de Si Fundamental - 1º Poema 439
rainha
Nascimento Lopes (Nina Rizzi) ao 3º Ano
Olelê - uma A Descoberta de Si, Diversão Ensino Conto, crônica,
Fábio Simões Soares (Fábio Simões),
15 antiga cantiga e aventura, O mundo natural Fundamental - 1º novela, teatro, texto 622
Marilia Pirillo (Marilia Pirillo)
da África e social ao 3º Ano da tradição popular
Ombela: a Autoconhecimento, Ensino Conto, crônica,
Ndalu de Almeida (Ondjaki), Rachel
16 origem das sentimentos e emoções, Fundamental - 4º novela, teatro, texto 624
Marques Caiano (Rachel Caiano)
chuvas Diversão e aventura Ano e 5º Ano da tradição popular
72
Página
Qtde. Título do Livro Autoria Tema Categoria Gênero
(guia)
Rosângela Maria de Queiroz Bezerra A Descoberta de Si, Família, Ensino Memória, diário,
Os tesouros de
17 (Rosinha), Sônia Regina Rosa de amigos e escola, O mundo Fundamental - 1º biografia, relatos de 642
Monifa
Oliveira Dias de Jesus (Sônia Rosa) natural e social, Outros temas ao 3º Ano experiências
Maria Cristina Agostinho de Andrade
Ensino Conto, crônica,
Rapunzel e o (Cristina Agostinho), Ronaldo Simões
18 Diversão e aventura Fundamental - 1º novela, teatro, texto 720
quibungo Coelho, Walter Roberto Lara (Walter
ao 3º Ano da tradição popular
Lara)
Zumbi, o Conto, crônica,
Ensino novela, teatro, texto
menino que Gilberto Tome, Janaína Passos Amado
19 Encontros com a diferença Fundamental - 4º da tradição 812
nasceu e morreu Baptista de Figueiredo
Ano e 5º Ano
livre popular
Com base nos dados acima, verifica-se que, dentre os 400 títulos selecionados, apenas
19 trazem a temática africana e afro-brasileira e/ou apresentam o negro como protagonista,
representando aproximadamente 5% das obras selecionadas, conforme a figura 15.
5%
Outras temáticas
18
Bernardes (2018) faz uma análise de 360 títulos selecionados nos editais do PNBE nos anos de 2008, 2010, 2012
e 2014.
74
O PNBE nas quatro edições da Educação Infantil (2008, 2010, 2012 e 2014)
promoveu o envio de títulos para essa etapa da Educação Básica, mas estudos
demonstram que o protagonismo negro não ocupou um espaço de visibilidade
no conjunto do acervo, tal como evidenciam que o racismo não está na pauta
de discussões e acaba sendo reforçado. Após analisar os livros, ficou
comprovado que nos acervos do programa além da pouca representatividade
de personagens negras, a representação, na sua maioria, dá-se de forma
estereotipada e com pequena participação nas narrativas. (BERNARDES,
DEBUS, 2020, p. 143).
Diante disso, reforçamos a potência da literatura como uma das ações no combate do
racismo no contexto escolar e as possibilidades que os livros e as narrativas que trazem o
protagonismo negro podem possibilitar um espaço de construção positividade de identidade,
rompendo com estereótipos inferiorizados. Essa ideia também corrobora Bernardes e Debus,
uma vez que
2.4 As práticas docentes e o protagonismo negro nas obras de literatura infantil: quais os
diálogos possíveis?
19
O PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é um compromisso formal e solidário assumido
pelos governos Federal, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, desde 2012, para atender à Meta 5 do
Plano Nacional da Educação (PNE), que estabelece a obrigatoriedade de “Alfabetizar todas as crianças, no
máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do Ensino Fundamental. Dentre as propostas formativas, incluía-se a
formação literária contando ainda com a distribuição de kits de livros para o acervo das salas de aula, com diversas
obras literárias infantis. O PNAIC foi extinto no ano de 2018.
76
Porém, apesar da definição vista acima, e que posteriormente será retomada por Ítalo
Calvino, no capítulo 3 desta pesquisa apresentaremos um outro gênero que dialoga com as
princesas africanas que serão apresentadas: o realismo animista.20
Em continuidade à descrição da pesquisa realizada com os professores,
apresentaremos agora o contexto da Unidade Escolar na qual a pesquisa foi realizada. A escola
está localizada na região periférica de uma cidade no interior paulista, atende alunos de 1º a 5º
ano do Ensino Fundamental, contando com aproximadamente 600 alunos nos períodos
matutino e vespertino e com 20 professores. No ano de 2018, a Instituição de Ensino participou
de todo o processo de escolha das obras literárias do PNLD para compor seu acervo, desde o
cadastro no sistema do Ministério da Educação, o recebimento do Guia on-line com as resenhas
dos títulos selecionados até a escolha dos livros pelo grupo docente, pautando-se em critérios
pré-determinados que serão apresentados no decorrer dessa pesquisa.
Por meio de um questionário composto por 11 questões (sendo elas objetivas e
dissertativas e presentes nesta pesquisa no anexo A), participaram da pesquisa 20 professores.
Após a leitura e análise do material coletado, apresentaremos a seguir os dados e observações
realizadas pelo grupo de professores no sentido de estabelecer diálogos possíveis entre as
práticas pedagógicas realizadas no cotidiano das escolas e o trabalho com a literatura infantil
com foco no protagonismo negro nas narrativas clássicas infantis.
Um dos primeiros pontos analisados foi o tempo de atuação na Educação Básica. Tal
análise permitiu mapear o perfil do grupo docente a respeito da experiência profissional e os
possíveis encaminhamentos acerca dessa experiência, uma vez que, segundo Tardif, os “saberes
docentes” também se (re)constroem nas práticas experienciais:
Os saberes experienciais [...] são saberes práticos (e não da prática: eles não
se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela
são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de
representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e
orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões.
Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação. (TARDIF, 2014,
p. 48-49).
20
No capítulo 3 desta pesquisa traremos a definição do termo realismo animista pautando-nos nos estudos de
Garuba (2012).
77
Nessa perspectiva, com base nos dados obtidos por meio do questionário, o grupo
docente da Unidade Escolar pesquisada pode ser assim representando no que tange à
experiência profissional na Educação Básica:
15%
40%
Menos de 1 ano
25% 1-3 anos
3-5 anos
20% 5 anos ou mais
5%
30%
65%
Nenhum 01 a 05 5 ou mais
africana, o quadro apresentado foi bastante diferente, pois 100% dos professores afirmaram que
no último ano leram 10 ou mais obras que traziam tais temáticas (europeias). Este quadro, em
síntese, legitima, de certo modo, o quanto a literatura infantil tem sido compartilhada nas rotinas
e práticas escolares apenas pelo viés eurocêntrico que, por vezes, é predominante no cenário
literário, dentre tantos outros.
Ainda nesse contexto, Debus ressalta os diálogos entre as práticas literárias e o
protagonismo negro nas narrativas infantis, além de provocar reflexões sobre as relações de
poder presentes na literatura e seus sujeitos:
Tendo como norteadores os dados até então apresentados, acrescenta-se a essa análise
os apontamentos do grupo docente sobre os possíveis motivos pelo qual o trabalho com a
literatura infantil de matriz africana e/ou afro-brasileira ainda é pouco realizado nas escolas,
conforme a figura 18:
Figura 18 - Motivos que dificultam o trabalho com a literatura de matriz africana e afro-
brasileira apontados pelos docentes entrevistados
Os resultados demonstram que, para a maior parte do grupo docente, o motivo pelo
qual o trabalho com a literatura infantil de temática africana e afro-brasileira é pouco explorado
nas escolas é o número pequeno das obras no acervo das bibliotecas escolares; a outra parte do
grupo (6 professores) acredita que há uma carência de propostas e pautas formativas a respeito
do tema, o que, de certa maneira, dificulta o trabalho docente.
Vale a pena ressaltar que tais informações evidenciam e retomam cenários já
apresentados anteriormente, como, por exemplo, o edital do PNLD Literário 2018, em que, das
400 obras selecionadas, apenas 19 traziam a temática africana e afro-brasileira
(aproximadamente 5%). Além disso, conforme já apontado, as pesquisas recentes
(SEGABINAZI, SOUZA e MACEDO, 2017) também demonstram que nos últimos editais do
PNBE os livros que traziam o negro como protagonista apresentavam números bastante
reduzidos, revelando um processo ainda embrionário sobre a temática africana e afro-brasileira.
Quanto às ações afirmativas (aqui já citadas), as políticas públicas de formação
continuada de professores apresentaram avanços a partir do ano de 2003, especificamente em
relação às relações étnico-raciais no ano de 2004, com a publicação das “Diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana”.
Porém, apesar dessas iniciativas, o trabalho voltado à formação de professores nessa
temática ainda é bastante negligenciado, refletindo-se nos currículos escolares e demonstrado
de maneira parcial e representativa nos dados apontados pelos professores. Tais constatações
também convergem com os estudos de Nilma Lino Gomes. Segundo a pesquisadora, “é
necessária uma formação político-pedagógica que subsidie um trabalho efetivo com a questão
racial na instituição escolar. Boa vontade só não basta!” (GOMES, 1995).
Outro ponto analisado na pesquisa versou sobre a participação dos docentes no
processo de escolha dos livros com base no Guia do PNLD Literário 2018. As respostas
indicaram que, dos 20 professores atuantes na Unidade Escolar, apenas 5 participaram do
processo de escolha, sendo que o restante do grupo estava atuando em outra escola e/ou rede
de ensino. Diante disso, a maioria dos professores entrevistados não soube informar a
quantidade de livros de matriz africana e afro-brasileira selecionados pela escola no presente
edital.
No viés da pesquisa realizada com os professores, buscou-se realizar um levantamento
do número de livros de temática africana conhecidos pelo grupo durante suas trajetórias
escolares e/ou profissionais. Dentre os títulos elencados, verificaram-se os seguintes títulos:
81
Nesse mesmo caminho, outro livro apontado pelos professores foi “O menino
marrom”, de Ziraldo, que teve sua primeira edição lançada em 1986. Na história, dois meninos
(um negro e branco) vivem diversas aventuras. Esse título, apesar de trazer em seu bojo a
proposta de apresentar o negro de forma diferente de como era apresentado na década de 1980
(associado à pobreza, marginalidade, passividade), também suscita várias discussões a respeito
da representatividade e identidade do personagem. As duas obras, por mais que tenham
aparecido nos relatos dos professores como obras de representativa negra, não dialogam com o
protagonismo negro aqui apresentado, uma vez que não estabelecem relações históricas e
culturais, mas que ressaltam os estereótipos historicamente construídos e presentes nas
narrativas infantis.
82
Foram citadas duas obras que podem ser classificadas como mais contemporâneas:
“Obax” (NEVES, 2010) e “Amoras” (EMICIDA, 2018). Os livros apresentam perspectivas
voltadas à representatividade positiva do negro, trazendo em seus enredos outras possibilidades
de narrativa. Tais obras, em síntese, não têm o objetivo de moralizar as temáticas voltadas ao
preconceito e/ou racismo, mas sim de oportunizar narrativas em que o negro assuma um lugar
de protagonista, não apenas pela tonalidade da pele. No livro “Amoras”, o autor nos apresenta
de uma forma bastante poética as reflexões de uma menina negra e, além disso, traz no final
um glossário com saberes da cultura africana, como podemos ver na figura 19.
Já em “Obax”, o autor revela a história de uma menina solitária, que saiu pelo mundo
para viver diversas aventuras. O livro mostra a diversidade da cultura africana, utilizando cores
e paisagens que evidenciam tal cultura, conforme visto na figura 20:
83
30%
70%
Nesse sentido, verificou-se que, dos 20 docentes da Unidade Escolar, 14 dizem não
conhecer nenhum livro em que apareça uma princesa africana, enquanto apenas 6 relatam
conhecer pelo menos uma história em que as princesas africanas aparecem.
84
Diante desses dados, pode-se concluir que o protagonismo negro ainda é apresentado
de maneira fragmentada e reduzida, tanto pelos acervos e pelas obras literárias quanto pelos
processos formativos e pelas práticas docentes. Em um dos seus trabalhos, Cavalleiro faz uma
análise destes processos históricos de silenciamento nas propostas das escolas infantis,
afirmando que
Fonte: Ata de Escolha dos livros do PNLD da unidade escolar, 2018. Elaboração própria
Nas turmas de 1º e 3º ano não foi encontrado nenhum livro que trazia a temática
africana e afro-brasileira em sua narrativa, conforme é possível observar no quadro acima. Por
outro lado, nas turmas de 2º ano foram selecionadas as seguintes obras: “Rapunzel e o
Quibungo” (Maria Cristina Agostinho de Andrade, Ronaldo Simões Coelho e Walter Roberto
Lara); “Meu crespo é de Rainha” (Bell Hooks, Chris Raschka e Ellen Cristina Nascimento
Lopes); “Kiriku e a feiticeira” (Janete Lins Rodriguez, Josilane Maria do Nascimento Silva e
Maria Carmelita Lacerda); e “Os tesouros de Monifa” (Rosângela Maria de Queiroz Bezerra e
Sônia Regina Rosa de Oliveira Dias de Jesus). Já nas turmas de 4º ano, os 4 títulos selecionados
foram: “Histórias Africanas” (Ana Maria Martins Machado e Laurent Nicolas Cardon);
“Blimundo: o maior boi do mundo” (Celso Sisto Silva e Elma Maria Neves da Fonseca);
“Ombela: a origem da chuva” (Ndalu de Almeida e Rachel Marques Caiano); e “Caderno sem
rimas da Maria” (Luís Lázaro Sacramento de Araújo Ramos e Maurício Negro Silveira). Por
fim, nas salas de 5º ano, apenas um título foi selecionado, sendo: “Zumbi, o menino que nasceu
e morreu” (Gilberto Tome e Janaína Passos Amado Baptista de Figueiredo).
Dentre os 205 títulos selecionados pela Unidade Escolar, apenas 9 trazem a temática
africana e afro-brasileira em suas narrativas, reforçando o processo histórico e ainda vivenciado
nos ambientes escolares no que diz respeito ao número reduzido de obras que valorizem a
diversidade cultural e étnica presente nas diversas realidades brasileiras.
86
Assim, o papel assumido pelos contos clássicos – narrativas populares que povoam
boa parte dos livros de literatura infanto-juvenil – permeiam o cenário literário por séculos. No
âmbito da literatura infantil, as narrativas clássicas, em sua maioria, são denominadas contos
de fadas: gênero literário que ocupa um lugar já consolidado nas práticas de leitura realizadas
nas escolas. Ainda nesse contexto, os acervos das bibliotecas escolares geralmente trazem
títulos diversos dos clássicos contos de fadas que, de maneira quase unânime, carregam na
essência de suas narrativas e enredos uma personagem muito presente: as princesas. A leitura
dos contos protagonizados por tais personagens possibilita relações diretas com o imaginário
infantil, assim como afirmam Saldanha e Souza (2016, p. 03):
Nesse sentido, pode-se afirmar que em grande parte das obras publicadas, tanto na
literatura infantil quanto nos trabalhos cinematográficos, as personagens princesas apresentam
características eurocêntricas que se perpetuam ao longo dos anos e que estão frequentemente
presentes nas escolas. Pesquisas realizadas sobre a temática puderam revelar, por meio de uma
investigação nos acervos do PNBE, uma fragilidade latente na publicação de obras em que as
narrativas infantis clássicas trouxessem o (re)conhecimento da memória das princesas africanas
em seus enredos (SEGABINAZI, SOUZA e MACEDO, 2017).
As pesquisadoras fizeram um levantamento bibliográfico em todas as edições do
PNBE e, dentre os resultados obtidos, foi possível observar que, apesar dos avanços relativos à
promulgação da Lei nº 10.639/03, o número de obras em que o protagonismo negro é pautado
nas princesas africanas ainda era extremamente pequeno, legitimando assim um processo
histórico de apagamento da cultura africana e afro-brasileira presente na literatura infantil.
Diante desse quadro e com base na análise da edição do PNLD Literário 2018, afirma-
se que o cenário atual não é muito distante daquele apontado pelas pesquisadoras. Ao
investigarmos as obras literárias que trazem o negro como protagonista e, especificamente,
abarcam o (re)conhecimento das princesas africanas, encontramos apenas uma obra: “Rapunzel
e o Quibungo”, escrita em 2012 por Maria Cristina Agostinho de Andrade, Ronaldo Simões
Coelho e Walter Roberto Lara e publicada pela Mazza Edições. Como critério de análise,
buscou-se, além das características relacionadas às representações nas imagens, as descrições
na resenha do livro presentes no guia:
Os termos grifados acima nos chamam a atenção para dois pontos importantes: a) ao
trazer na sua descrição que a proposta possibilita uma comparação à versão europeia, pode-se
afirmar que há uma tentativa de promover o (re)conhecimento de outra proposta imagética da
personagem princesa, que, por séculos, foi representada de maneira única e estereotipada; b) no
que diz respeito à representação positiva da negritude, a narrativa potencializa características
importantes e que, de certa maneira, contribuirão com o processo de identidade e
representatividade racial das crianças brasileiras nos espaços escolares. Para elucidar tais
apontamentos, vejamos a imagem da capa do livro na figura abaixo:
própria vida e com os quais elas se casam, sendo, então, “felizes para sempre”.
Pertencem aos contos de fadas, são europeias e suas histórias aconteceram há
muito e muitos anos (ROCHA, 2009, p. 21).
[...] torna-se claro a ausência de uma pesquisa aprofundada por partes dos
autores para a construção de uma narrativa que resgate os valores africanos.
Temos princesas dotadas dos mesmos hábitos, comportamentos e linguagens
da história europeia que já nos foi contada. Dessa forma, reforçamos nos
nossos questionamentos: se estamos falando de uma literatura afro-brasileira,
por que não resgatar as histórias africanas? Por que não apresentar as princesas
africanas esquecidas? Se o espaço que há tanto tempo foi negado, agora fora
conquistado, por que os autores ainda estão reproduzindo os clássicos contos
populares europeus? Que identidade afro-brasileira está sendo construída? Se
essa for apenas para fins estéticos, certamente, há muito que se avançar.
(SEGABIZINI, SOUZA, MACEDO, 2017, p. 230-231).
[...] inserir princesas negras na literatura infantil e juvenil, não se trata apenas
de modificar a cor da pele, o maior objetivo deveria ser o de contribuir para a
propagação da cultura desse povo que por tanto tempo foi esquecido, a fim de
cooperar para a consolidação da identidade das princesas africanas nos contos
populares contemporâneos. Para isso, faz-se necessário um resgate de uma
literatura genuinamente de matriz afro-brasileira ou africana e não uma troca
de cores e traços, que talvez possa confundir o leitor (SEGABINAZI, SOUZA
e MACEDO, 2017, p. 238-239).
Portanto, fica evidente que, mesmo diante da edição de políticas públicas de incentivo
à leitura e formação de leitores com novos formatos, o velho silenciamento e apagamento da
90
história e da cultura dos povos africanos nas narrativas infantis, especificamente no que diz
respeito às princesas negras africanas, ainda se faz presente. Resta-nos o desafio de
potencializar, nos espaços escolares, análises e reflexões cada vez mais minuciosas sobre a
qualidade dos títulos que chegam aos acervos das escolas na dimensão literária e estética, no
sentido de possibilitar, além do resgate histórico, o (re)conhecimento das princesas negras
africanas que, muito mais do que a simples representatividade estampada nos tons de pele,
revelam a ancestralidade e a cultura secular do povo africano historicamente apagado e
invisibilizado.
No próximo capítulo e à luz das discussões até aqui realizadas, apresentaremos uma
possibilidade didática que terá como objetivo potencializar nos contextos escolares o
reconhecimento e a valorização do protagonismo negro nas narrativas infantis por meio das
princesas africanas.
91
21
A Pedagogia Histórico-Crítica traz em sua essência a concepção de que o papel da educação escolar é possibilitar
aos indivíduos o acesso aos conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade. Em 1984, após
estudos, adota-se a denominação “pedagogia histórico-crítica” que se difundiu de maneira mais forte com a
publicação, em 1991, do livro “Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações”, escrito por Dermeval
Saviani.
92
Ainda diante dessa perspectiva, Saviani (2014) em uma das suas pesquisas, traz à tona
que, para potencializar o trabalho com a Pedagogia Histórico-Crítica no contexto escolar,
alguns encaminhamentos precisam ser garantidos. Em um sentido mais amplo, o autor sinaliza
que, nesse processo teórico-metodológico, dentre tantos pontos norteadores, é preciso
evidenciar que
A partir dessa referência, pensar na prática social é se colocar diante das questões já
abordadas anteriormente, relacionadas ao racismo no contexto escolar, por exemplo. A partir
dessa abordagem teórica, são necessários outros encaminhamentos apresentados por Saviani e
Duarte (2012) e também estudados por Gasparin (2012), tais como: problematização,
instrumentalização, catarse e prática social final descritos no quadro 9, os quais serão abordados
em uma proposta de projeto de trabalho durante esse capítulo.
Tais pressupostos acerca das relações sobre o meio social nos colocam diante do papel
assumido pela escola quando falamos em práticas que privilegiem certas culturas em detrimento
de outras e que, muitas vezes, ignoram os processos históricos aos quais essas culturas foram
expostas. Tais ideias corroboram Libâneo, pois, segundo o autor,
Portanto, a partir disso, é possível pensar em práticas educativas que busquem romper
com estes estereótipos. Dentre as atividades propostas, a oficina trazia a propositura da
99
Com base nas imagens acima, é possível destacar que, apesar do trabalho prévio
realizado com a leitura do livro, que trazia a personagem africana, e da roda de conversa a
respeito dessas características, podemos notar que em um dos desenhos houve a tentativa de
ilustrar uma princesa africana, mas sem a utilização de lápis de cor para caracterizar a pele
negra da princesa apresentada, evidenciando assim o processo histórico de naturalização do
apagamento da cultura negra em todas as suas perspectivas. As observações realizadas nos
desenhos apresentados na figura 12 partem do método de análise de imagens e representações
de Schwarcz (2014) e que, neste sentido, são vistas
O trabalho feito a partir dessa oficina permitiu novos olhares para o planejamento do
produto aqui já mencionado. Durante todo o período das ações realizadas, ficou evidente que
100
22
Kiusam de Oliveira é doutora pela Universidade de São Paulo, contadora de histórias e escritora. Em suas obras,
a autora busca valorizar a cultura negra por meio do empoderamento das identidades negras e, dentre suas
publicações infantis, se destaca o livro “O mundo no black power de Tayó”.
101
Passos, Passos e Nascimento (2019, p.08) afirmam que “a cada orixá é associada uma
cor, alguns animais e instrumentos, tais como espada, machado, sabre, cajado, espelho, arco e
flecha, chave, pilão, etc. De acordo com o mito iorubá, cada orixá possui sua história, seu
símbolo e seus ritos”. Na obra de Kiusam de Oliveira (2009), essa relação entre os orixás e as
princesas africanas revela-se durante todo o livro, fazendo referências aos elementos da
102
Sendo assim, fica evidente que as narrativas que trazem as questões voltadas à
mitologia africana ocuparam, por vezes, um lugar de inferioridade no cenário educacional e
literário brasileiro e é a partir dessas premissas que a proposta didática “Baú Africano:
conhecendo as princesas africanas” objetiva que as histórias que abarcam tais temáticas estejam
inseridas nas propostas didáticas e no planejamento curricular.
Além disso, a proposta de planejar e apresentar narrativas nas quais os mitos aparecem
como um dos pilares corrobora os estudos de Prandi (2001, p. 24), para quem “o mito é a chave
para ‘alcançar’ não apenas o passado, mas também o presente e o futuro”. Um trabalho com a
literatura infantil de matriz africana e afro-brasileira, que permita a ampliação do repertório
cultural das crianças, configura-se como elemento importante na construção de um currículo
cada vez mais descolonizado e eurocêntrico. Ainda à luz do trabalho com os mitos por meio de
histórias nos contextos escolares, Hofbauer, em uma de suas publicações, nos mostra a
importância dessas histórias, no sentido de que,
Ao tratarmos das narrativas sobre as princesas africanas que farão parte do produto
educacional, ressaltaremos os estudos de Harry Garuba (2012) a respeito do realismo animista.
Segundo o autor, o termo é utilizado para
Ao trazermos princesas como Oyá, Iemanjá, dentre outras, abarcamos nas narrativas
do produto essas relações sinalizadas por Garuba e ainda objetivamos que “a literatura, talvez,
possa fornecer um exemplo conveniente, pois sendo um ato de linguagem ela é necessariamente
atraída pelo antropológico e, portanto, naturalmente se entrega ao imaginário e ao fantástico”
(Garuba, 2012).
Portanto, elaborar e apresentar as narrativas por meio das reescritas propostas no
produto “Baú Africano: conhecendo as princesas africanas” possibilitará a ampliação no
repertório cultural dos alunos, além de estabelecer tentativas de romper com as práticas
minimalistas e que, por vezes, caracteriza o trabalho com os mitos africanos por um viés exótico
e preconceituoso. A respeito dos desafios voltados ao trabalho voltado à cultura africana e afro-
brasileira, registraremos aqui um dos reflexos desses processos naturalizados e preconceituosos
que ocupam os espaços escolares.
Um destes exemplos pode ser visto na matéria publicada no portal da Revista Fórum
do dia 19 de março de 2018, cujo título é “Pais de alunos de escola no RJ tentam censurar livro
sobre cultura africana”. Trata-se do livro “Omo-Oba: Histórias de princesas”, de Kiusam de
Oliveira (2009), referenciada no produto educacional aqui apresentando. Na matéria, podemos
observar que um grupo de pais entrou em contato com a instituição de ensino solicitando a
retirada do livro na lista de obras solicitadas partindo da justificativa de que a cultura africana
não é vista como objeto de importância para a formação cidadã do povo brasileiro.
As “reinvindicações” expostas por um grupo de pais ganharam visibilidade quando
uma das mães de aluno da referida escola postou em suas redes sociais um comunicado enviado
104
pela coordenação pedagógica da instituição fazendo uma pesquisa sobre a aquisição do livro,
conforme pode ser visto na imagem abaixo.
23
No capítulo 1 apresentamos algumas ações e lutas do Movimento Negro.
105
A partir de exemplos como esse, fica evidente que o presente trabalho poderá
contribuir, de maneira significativa, na superação do apagamento da cultura africana nas
realidades educacionais brasileiras que, por séculos, reproduzem a unicidade cultural em suas
práticas.
Atividade Materiais
Descrição
proposta utilizados
Nesta etapa, deve-se apresentar a proposta com o produto
educacional “Baú Africano: conhecendo as princesas
1.
africanas”, instigando algumas perguntas como: O que a
Apresentação da palavra baú nos lembra? -
proposta
(espera-se que as crianças demonstrem interesse e relacionem
o objeto Baú a algo precioso, etc.)
106
Atividade Materiais
Descrição
proposta utilizados
Em um segundo momento, será realizada uma roda de
conversa a respeito da personagem princesa e, para isso,
algumas perguntas poderão ser norteadoras:
a) Vocês já ouviram histórias em que aparecem princesas? Se
sim, quais?
b) Como eram as princesas nessas histórias (características
físicas, etc.)?
2.
c) Quais podem ser as características de uma princesa
Roda de -
verdadeira?
Conversa
d) Será que só existem essas princesas nas histórias?
e) Vocês já ouviram alguma história de princesas que não são
essas tão conhecidas? Se sim, quais?
Por fim, sugere-se que os alunos façam o desenho de uma
princesa com as características que eles conheçam. Estes
desenhos serão utilizados em oportunidades posteriores para
problematização.
Nesta etapa, será apresentando o Baú Africano contendo as 6
histórias reescritas com as histórias das princesas africanas.
Para isso, seguem sugestões de encaminhamentos:
3.
a) Estão lembrados que nas aulas passadas falamos sobre o
Apresentação do Baú e as
objeto baú e sobre as princesas africanas? Hoje vamos
Baú Africano: narrativas
conhecer um baú com histórias de princesas africanas.
conhecendo africanas
princesas Neste momento, o professor poderá fazer a leitura das impressas
africanas narrativas, dando luz à beleza das histórias e das personagens,
os símbolos, os elementos que compõem as narrativas, etc. O
momento deve ser voltado à leitura e apreciação das
narrativas, tanto escritas quanto visuais.
4. Após a leitura e apreciação das histórias, sugere-se que o
Confecção de professor organize um momento para que os alunos
um baú pelos confeccionem e montem seu próprio baú com as histórias das Estrutura do baú
alunos e princesas africanas. e as narrativas
ilustração de Por fim, os alunos também poderão criar uma nova princesa impressas
uma princesa africana, por meio de um desenho que use algumas das
africana referências culturais apresentadas.
significativas e que dialoguem com as ações educacionais e contextos sociais dos alunos é
realizar o levantamento prévio dos conhecimentos dos estudantes. Segundo o autor,
Os apontamentos sobre a construção do sentido dos conteúdos para os alunos têm, nas
últimas décadas, suscitado, nos processos de formação continuada docente, reflexões
importantes e que englobam não apenas o papel dos educadores e dos alunos, mas também das
relações vivenciadas entre eles no espaço escolar. Masetto aborda a importância do papel
docente e seu caráter mediador no processo de ensino e aprendizagem a partir da seguinte
perspectiva:
Mobilização.
Neste sentido, as propostas aqui apresentadas e sugeridas são pontos de partida para
que as práticas educativas sejam cada vez mais plurais, multiculturais e que, sobretudo, não
perpetuem histórias e culturas únicas em seus currículos. Além disso, o trabalho, na perspectiva
cultural, por meio de narrativas literárias, possibilita nas crianças,
Sendo assim e diante dessas possibilidades, espera-se que esse produto educacional
contribua de maneira significativa para as aprendizagens dos alunos, principalmente no que diz
respeito à valorização e ao reconhecimento do povo e da cultura africana como o berço da
humanidade e também como casa de ricas e diversas culturas que, por séculos, tem sido
invisibilizada. Por fim, entendemos essas propostas como um começo, que se construirá com
práticas e currículos cada vez menos colonizados.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
concordamos integralmente com as pesquisadoras, pois, mesmo com os marcos legais que
foram conquistados após muitas lutas do Movimento Negro, os currículos escolares, na sua
maioria, ainda são eurocêntricos. Os marcos históricos, as narrativas literárias (aqui
apresentadas e analisadas no edital 01/2018) e os conteúdos escolares quase sempre são vistos
pela ótica da branquitude, haja vista as campanhas publicitárias que compõem este trabalho e
alguns recortes de livros aqui apresentados. Portanto, romper com esta realidade que invisibiliza
a história e a cultura negra devem ser pontos norteadores de discussão nas instituições de ensino
e, consequentemente, conteúdos discutidos e narrados nas escolas e nos currículos de maneira
sistematizada e contínua.
A respeito dos livros selecionados e da análise realizada no guia do PNLD Literário e,
ainda, no diálogo com os dados da pesquisa com os professores, podemos afirmar que o objetivo
proposto nesta pesquisa foi alcançado, uma vez que, a partir da investigação da presença do
protagonismo negro nas narrativas infantis e da pequena representatividade negra presente nos
livros, constatamos que o trabalho com a diversidade cultural e literária apresenta uma grande
lacuna nas práticas escolares e também nas políticas públicas de incentivo à leitura e formação
de leitores.
No sentido de minimizar essas lacunas, elaboramos o produto educacional intitulado
“Baú-Africano: conhecendo as princesas africanas” e suas possibilidades didáticas, atingindo
também uma especificidade objetivada neste trabalho: possibilitar nas escolas a diversidade
literária e o protagonismo negro nas narrativas. Durante a elaboração do produto, tivemos como
pontos de partida os estudos aqui realizados e a oportunidade de fomentar nos espaços
educacionais o reconhecimento de personagens negras nas histórias infantis por meio das
princesas africanas. Assim, nos debruçamos sobre as histórias da cultura iorubá, banto e zulu
resgatando narrativas sobre princesas e deusas africanas. O produto também contou com a
produção de encartes com perguntas problematizadoras e outras possibilidades didáticas, como
a realização de uma oficina de desenhos de princesas africanas, por exemplo. Ainda a respeito
do produto educacional, ressaltamos aqui que ele não foi aplicado em sala de aula, porém, os
estudos para o processo de sua elaboração perpassaram as experiências docentes e observações
do pesquisador e que, deste modo, a aplicação deste objeto educacional nos projetam para novas
pesquisas, possibilitando novos estudos sobre a temática.
Por fim, diante dos estudos e dados apresentados nesta pesquisa, afirmamos que é
extremamente necessária a discussão permanente sobre as questões raciais e suas implicações
em diversos contextos, sobretudo o escolar, resultando em posturas e ações afirmativas efetivas
no combate ao racismo. Evidenciamos ainda que tais ações precisam partir de práticas
114
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2) Nas suas práticas pedagógicas, qual a frequência do trabalho com propostas de leitura
realizadas pelo professor (leitura em voz alta)?
( ) Pelo menos 1 vez na semana.
( ) 2-3 vezes na semana.
( ) Diariamente.
( ) Outra. Qual? ______________________________________________
3) Dentre os títulos lidos para as turmas que você trabalha e/ou trabalhou qual(is) os gêneros
literários mais frequentes?
( ) Conto (inclusive as narrativas clássicas infantis, contos de fada)
( ) Fábulas
( ) Poesia
( ) Textos informativos, jornalísticos e instrucionais
( ) Outros. Quais? ____________________________________________
4) Nas propostas de leitura, quantos livros de matriz africana ou afro-brasileira você já leu para
os seus alunos no último ano?
( ) 1-5 livros.
( ) 5-10 livros.
( ) 10 ou mais.
( ) Não li nenhum livro sobre essa temática.
5) E quantos livros de matriz europeia (ou outra matriz) você leu para os seus alunos?
Observação: livros de matriz europeia: contos de fada clássicos, etc.
( ) 1-5 livros.
( ) 5-10 livros.
( ) 10 ou mais.
( ) Não li nenhum livro sobre essa temática.
6) Na sua opinião, qual(is) o(s) motivos(s) pelo qual o trabalho com a literatura de matriz
africana e afro-brasileira é pouco trabalhado?
( ) Falta formação continuada a respeito do tema.
( ) O acervo das bibliotecas escolares tem um número pequeno das obras dessa temática.
( ) Os professores não conhecem livros dessa temática.
( ) Não é um trabalho pertinente para ser realizado em sala de aula.
( ) Eu acho que o trabalho com a literatura de matriz africana e afro-brasileira é
plenamente trabalhado nas escolas.
142
8) Se sim, quantos livros de matriz africana e afro-brasileira foram selecionados pela sua
escola?
( ) 1-5 livros.
( ) 5-10 livros.
( ) Mais de 10 livros.
( ) Nenhum livro.
( ) Não sei informar.
9) Durante toda a sua trajetória escolar, quantos livros de matriz africana e afro-brasileira você
conhece?
( ) 1-5 livros.
( ) 5-10 livros.
( ) Mais de 10 livros.
( ) Não conheço nenhum livro.
10) Dos livros de matriz africana e afro-brasileira que você conhece, em quais deles é possível
encontrar um/uma personagem protagonista da realeza (princesa)?
( ) Não conheço nenhum livro em que apareça uma princesa africana.
( ) 1-5 livros.
( ) 5-10 livros.
( ) Mais de 10 livros.
Justifique:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
143
________________________________
Nome e assinatura do sujeito da pesquisa
___________________________________________________________
Nome(s) e assinatura(s) do(s) pesquisador(es) responsável(responsáveis)