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XIV Reunião de Antropologia do Mercosul

01 a 04 de agosto de 2023, Niterói (RJ)

Grupo de Trabalho:
GT107: Políticas culturales, performances y expresiones artísticas en ciudades
latinoamericanas

Título do Trabalho:
Sarau da Cooperifa: circuito e trajetos da poesia na zona sul da cidade de São
Paulo.

Nome completo e instituição do(s) autor(es):


Priscila Silva Queiroz Cevada (Autor) NAU- USP
Jose Guilherme Cantor Magnani (Coautor) NAU - USP
Sarau da Cooperifa: circuito e trajetos da poesia na zona sul da cidade de
São Paulo.

Resumo: Com a dinâmica da mobilidade urbana, a prática cultural na cidade de


São Paulo desloca-se do grande centro formando outros centros e polos culturais
que dialogam entre si, transformando estabelecimentos não convencionais em
palcos artísticos e performáticos. Assim, há vinte anos, nas noites de terça-
feira, a poesia se personifica na voz de Sérgio Vaz para comandar a organização
do Bar Zé do Batidão, transformando-o no palco para o Sarau da Cooperifa. Esta
nova configuração do espaço de produção e fruição artística produz novos
“arranjos organizacionais” que dialogam com a paisagem social e urbana da
região do Jardim São Luís, zona sul da cidade de São Paulo colocando-o no
centro do circuito dos saraus na cidade de São Paulo.
À luz das categorias analíticas proposta por José Guilherme Magnani, o
presente trabalho se propõe registrar o circuito que este sarau estabelece e os
trajetos que o compõem, seja de poetas e fruidores da poesia bem como de
ideias que florescerão a partir desses trajetos. Para a produção desta pesquisa
tomamos como método a etnografia para compreender as relações que se dão
entre os atores sociais que se relacionam com diferentes cenários da cidade de
São Paulo.

Palavras chaves: sarau, cidade, mobilidade urbana, circuito, trajetos


Distâncias
Não são só caminhos para ficar
Longe das pessoas.
São também atalhos
Para aproximar de si mesmos.
(Poeta Sérgio Vaz) 1

Introdução

No título deste trabalho um termo – Cooperifa – introduz, de forma sintética, os


dois significados que percorrem todo o desenvolvimento da pesquisa que se
pretende apresentar: o primeiro deles tem uma relação direta com a epígrafe do
poeta Sergio Vaz, acima transcrita: “aproximar as pessoas”, num espaço –
periferia – até pouco tempo encarado como desprovido dos equipamentos
urbanos mais básicos, inclusive culturais.
Este último termo, com efeito – periferia – começa a ser objeto de interesse para
as ciências sociais em São Paulo, em especial para a Antropologia, a partir de
uma conjuntura sociopolítica muito particular, na década dos anos 70, na esteira
do golpe militar de 1964.
Após a tomada do poder pelos militares e principalmente depois de 1968,
quando aumentou a repressão contra os partidos políticos, os sindicatos, as
organizações sociais, o movimento estudantil e outras associações, ocorreu um
refluxo na política institucional, com reflexos socioespaciais. E para onde refluem
esses atores sociais? Para o clássico lugar da reprodução da força de trabalho,
os bairros de moradia – não que eles já não estivessem lá, desde longa data,
mas o foco de suas práticas estava na fábrica, no sindicato e no partido político.
As atenções se voltam agora para os espaços de moradia, até então
considerados como meros “bairros dormitórios”, e para as reinvindicações por
melhores condições de vida e equipamentos urbanos.
E é principalmente à Antropologia que se voltam as atenções para saber quem
eram esses novos atores sociais. Ocorre que, quando a “grande política”, junto

1 Poesia de Sérgio Vaz: Flores da Batalha, 2023.


com temas como o do desenvolvimento e a teoria da dependência, ocupavam
a atenção dos demais cientistas sociais, os antropólogos prosseguiam com
seus estudos sobre personagens e temas considerados “irrelevantes” do ponto
de vista dos rumos da política nacional e de desenvolvimento econômico:
pobres, indígenas, migrantes, sistemas de parentesco e compadrio,
religiosidade, cultura popular.
Assim, quando a atenção se deslocou justamente para questões tais como as
condições de vida na periferia e o “direito à cidade” (LEFEVBRE, 2001), é o
método etnográfico que se revela como o mais adequado para mostrar onde
vivem estes novos atores sociais, de onde vieram, como constroem suas
moradias, como cuidam da sua saúde, de que forma desenvolvem vínculos de
sociabilidade na vizinhança e o que fazem em seu tempo livre.
É importante assinalar que foram as mulheres, naqueles bairros afastados, as
que por primeiro exerceram essa forma de fazer política no plano da vida
cotidiana, com suas petições e abaixo assinados pela iluminação das ruas,
transporte público, escolas, postos de saúde, etc. enquanto seus maridos ainda
militavam nas fábricas e sindicatos.
E por falar em protagonismo feminino, cabe mencionar que esta mudança de
perspectiva, no contexto das instituições acadêmicas em São Paulo, deve muito
às iniciativas de duas professoras no Departamento de Antropologia da
FFLCH/USP, Ruth Cardoso e Eunice Durham: as pesquisas de seus orientandos
voltaram-se justamente para os novos temas que a dinâmica da cidade nesses
espaços exibia – associações de bairro, movimentos sociais urbanos,
comemorações religiosas tradicionais, cultura popular.
É nessa linha de reflexões que se insere a presente pesquisa, sobre o Sarau da
Cooperifa, cuja autora – uma professora que participa do sarau há dez anos,
incentivando seus alunos do Programa Fábricas de Cultura do Jardim São Luís
a frequentar o espaço, desfrutar e produzir poesia. Seu trabalho tem como base
o método etnográfico apoiado em categorias de análise forjados ao longo das
pesquisas do Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana da USP (LabNAU),
especialmente as de trajetos e circuitos 2.

2
Para mais esclarecimentos sobre essas e as demais categorias, ver Magnani: Da Periferia ao
centro: trajetórias de pesquisa em Antropologia Urbana, 2012
Cultura, na periferia

A partir dos anos 1990, a periferia da cidade passa a ser “um lugar onde se
produz e consome arte e cultura” (NASCIMENTO, 2019, p. 18), onde

“favelados, periféricos, marginais e marginalizados, que sempre


foram tema ou inspirações de criações artísticas, passaram de
objetos a sujeitos e seguem transformando suas experiências
sociais, visões de mundo e repertórios em linguagens
específicas”. (NASCIMENTO, 2019, p.15)

Por meio do discurso da “cultura de periferia” o espaço urbano se reorganiza e


toma novos significados. A exemplo dessa reconfiguração está a formação dos
saraus, que a partir dos anos 2000, começam a ser realizados, “sendo
fundamentais para a expansão e consolidação da movimentação cultural”
(NASCIMENTO, 2019, p. 22) na periferia da cidade de São Paulo. Bares
começam a se tornar centros culturais com recitações de poesia que são,
segundo Tennina 2018,

“reuniões em bares de diversos bairros das regiões suburbanas


da cidade onde se declamam ou leem textos próprios ou alheios
diante de um microfone aberto durante um período de mais ou
menos duas horas. Estes espaços poéticos vêm conformando
uma nova cartografia que se completa por uma rede de
frequentadores que andam de bairro em bairro seguindo um
cronograma que completa a agenda da semana quase todos os
dias. Segundas-feiras, por exemplo, tem o “Sarau do Binho” (em
Campo Limpo, Zona Sul), terça-feira o “Sarau Suburbano
Convicto” (em Bixiga, Centro), quarta-feira tem o “Sarau da
Cooperifa” (em Pirapoirinha, Zona Sul), quinta-feira tem o “Sarau
Elo da Corrente” (em Pirituba, Zona Leste), sábados tem o
“Sarau Poesia na Brasa” (em Brasilândia, Zona Norte),
domingos tem o “Sarau do Ademar” (Ademar, Zona Sudeste),
etc.” (TENNINA, 2018, p. 52)

Esses encontros se dão em espaços sem grandes preparos de infraestrutura,


pois são bares que já possuem seu funcionamento cotidiano de modo que se
tornam eventos de baixo custo para os frequentadores dos saraus, “dado que a
única coisa de que se precisa para acontecer é um microfone para a amplificação
do som”.
Nos dias que não acontece o sarau, os estabelecimentos continuam com sua
programação normal e seus frequentadores são iguais aos de qualquer outro
“boteco das quebradas” paulistanas. (TENNINA, 2018, p. 56). Durante os
eventos, porém, o bar se transforma em centro cultural, tornando um lugar
significativo “como espaço de incentivo para profissionais não relacionados as
atividades intelectuais ou artísticas a assumir a identidade de poetas”
(NASCIMENTO, 2019, p.25).
Assumem também lugar de divulgação e apreciação estética da literatura,
formando ouvinte/consumidores, “já que as pessoas que estão presentes nos
saraus tomam conhecimento dessa produção” (NASCIMENTO, 2019, p. 27) a
partir da fruição da literatura/poesia declamada. O bar, palco para performance
artística é também escola de formação, transcendendo o sentido convencional
da ideia de teatro (palco/plateia), pois agora está no contexto dos bairros
populares, transpondo a dicotomia entre periferia e centro da cidade: é agora
“um centro cultural” (TENNINA, 2019, p.99)
Na dinâmica semanal do evento, em datas comemorativas como aniversários,
lançamentos de livros, momentos políticos que mereçam falas sobre a
importância da Cooperifa, o poeta Sérgio Vaz faz uso do microfone em tom de
discurso. Nessas ocasiões ele conta histórias que marcam a esta pesquisa,
como indicadores históricos ou direcionadores de pensamento, de modo que
estas falas serão tomadas como referência de interlocução para este trabalho.
Certa vez, ele (Sérgio Vaz) conta que “um dia teve uma apresentação de teatro
antes do Sarau e uma pessoa que mora na região ficou abismado pois ‘iria ter
um teatro na periferia’. A apresentação acontece, e quando ele, poeta, olha para
as mesas do bar, lá está o homem com a esposa, todo feliz bebendo sua coca
cola e diz: ‘Vaz, muito obrigado! Se não fosse assim, talvez eu morreria sem
nunca ter ido ao teatro! ’”
Para Sérgio Vaz, existem dois tipos de espaços públicos na periferia: a igreja e
o bar. Para o Seu Zé, dono do bar Zé Batidão, “o bar precisa mostrar que não
está na comunidade só pela bebida, o bar pode ter cultura”. Para manter essa
cultura literária, ele mantém uma biblioteca pessoal disponível para a
comunidade com empréstimos a todas as pessoas que quiserem ler.
Assim, a reconfiguração urbana ao redor do bar também acontece por meio das
relações que os participantes estabelecem, pois ao consumirem a “cultura da
periferia” também movimentam a economia do bairro. Nas noites de terça-feira
o fluxo do bairro se altera pois durante o sarau vendem-se bebidas e comidas,
as pessoas chegam e vão de transporte público, carros de aplicativos. Escolas
levam alunos, professores se organizam em grupos; ou seja, o bar se torna o
centro da periferia!

Sarau da Cooperifa

No final dos anos 90, Sérgio Vaz decidiu dedicar-se a viver economicamente de
poesia. No início, com dificuldades, foi apelidado de “tiozinho da poesia” pois
aproveitava os intervalos dos shows de rap para recitar poesia e divulgar seu
trabalho. Nas primeiras vezes pediu para entrar no palco de música usando a
ideia de que rap faz música e poesia, porém faltava a poesia falada diferente da
poesia cantada = música. “Um belo dia deu um problema técnico na pikcup3 e
para fechar o tempo sem tirar o público da plateia eu fui convidado. ‘Chama o
tiozinho da poesia ai! ’” (Depoimento de Sérgio Vaz ao microfone da Coopeirfa).
Assim, por insistência e por acreditar que a poesia poderia trazer produzir bons
efeitos na periferia, aos poucos passa a ser convidado.
Neste interim, surge o grupo das Quintas Malditas no bar do Portuga, em
Taboão da Serra. Grupo de amigos que se reuniam nos bares, nas quintas feiras
a noite, após o trabalho, para bater papo, trocar ideia e falar de poesia. É a partir
desse grupo que o Sarau da Cooperifa nasce em 2001 num terreno cedido de
uma fábrica abandonada em Taboão da Serra. Segundo Rose Dorea, (produtora
da Cooperifa) “começou com 17 pessoas e hoje movimenta centenas de pessoas
toda semana”, a partir da ideia de cooperação entre as pessoas da periferia. O
primeiro ano de atuação aconteceu no Bar Garajão em Taboão da Serra até o
bar ser vendido. Sem aviso prévio, quando os amigos chegam para o sarau e
encontram pessoas “chorando na porta pois o bar tinha sido vendido e ninguém
tinha sido comunicado” (Relato de Sérgio Vaz).

3
Equipamento de som utilizado nos shows de música.
Diante da negativa, por parte da nova direção do bar, de cessão do espaço para
o sarau, era necessário encontrar outro lugar. Então surge a proposta de levar o
evento para o Bar do Zé Batidão, bar que anos atrás pertencia ao pai do poeta
Sérgio Vaz. Assim ,o sarau se estabelece como uma atividade cultural com dia
da semana, horário e espaço físico estabelecidos na periferia. E, segundo a
etnografia de Fernandez e Leite (2019), até os dias de hoje a toda terça-feira se
torna um acontecimento poético.
Sua criação e trajetória estão registradas pelo poeta e fundador Sérgio Vaz em
Cooperifa: antropofagia periférica, (2008). A manutenção do evento
semanalmente, ao longo desses anos, tem sido inspiração para inúmeros saraus
nas periferias, até mesmo em outras cidades longe de São Paulo e, a cada dia
“aprimorando o sentido da palavra que nomeia o Sarau: Cooperifa = cooperação
+ periferia” (FERNANDEZ e LEITE, 2019, p. 474), com o

“objetivo de trazer o centro para os becos e vielas das periferias.


Não importar a arte, mas produzi-la no seio de sua realidade
cultural. Assim, apropriando-se desse espaço de um modo
diferenciado, isto é, unindo arte e conhecimento, identidade e
reconhecimento de um povo esquecido. ” (FERNANDEZ e
LEITE, 2019, p. 424)

Em 2007, o Sarau da Cooperifa promoveu a Semana de Arte Moderna da


Periferia, fazendo referência ao Movimento Modernista da Semana de Arte
Moderna de 22. “As atividades aconteceram em escolas públicas; nas ruas e na
única Casa de Cultura da região, a Casa de Cultura de M’boi Mirim, com muitas
apresentações artísticas, teatro, cinema, saraus e distribuição de livros gratuitos
a todas e todos” (MARINHO, 2015, p.17). Na ocasião, o poeta Sérgio Vaz
escreveu o Manifesto Antropofágico da Periferia (2007)4, em diálogo direto com
o Manifesto Antropófago (1928)5, de Oswald de Andrade.
Este Manifesto ecoa sobre o fazer poético da periferia desde então pois,
segundo o poeta Márcio Vidal Marinho (2015), a intenção do Manifesto era
“chamar a atenção para a literatura que vem dos becos e vielas, que une a
comunidade contra a arte fabricada que destrói o senso crítico” (MARINHO,
2015, p. 17), incentivando novos poetas, além dos saraus nos bares da periferia,

4
https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/sergio-vaz-manifesto-da-antropofagia-periferica/
5 https://cdn.culturagenial.com/arquivos/manifesto-antropofago.pdf
indo para o centro da cidade como o Theatro Municipal de São Paulo, Biblioteca
Mario de Andrade e Paço das Artes. Ainda segundo Marinho 2015, o manifesto
teve

“grande relevância social por estar, de modo geral, ligados à


justificativa de atos históricos e, na fundamentação de direitos.
Por esta razão, muitos textos foram escritos em forma de
manifestos, a fim de cobrarem seu espaço dentro da sociedade,
da cultura, da política ou de um determinado grupo”. (MARINHO,
2015, p. 23)

A força contida neste manifesto e seu poder de mobilizar os poetas em torno da


Poesia Marginal Periférica trouxe uma perspectiva transformadora, incentivando
cada dia mais a produção literária na periferia. Mais pessoas tomaram coragem
de produzir livros, publicar seus textos e a viver economicamente de literatura.

Circuito e trajetos dos Saraus

Esta prática performática da poesia formou grupos “espalhados pelo mapa da


cidade”, constituindo um “circuito” cultural independente e autônomo em relação
àquele outro que se constituiu no chamado centro de São Paulo” (TENNINA,
2018, p.54), no eixo Theatro Municipal, Theatro São Pedro e Sala São Paulo,
transformando o cenário da periferia, mudando a lógica do cotidiano das
pessoas. Sérgio Vaz afirma que na periferia há muitas igrejas e bares, mas se
perguntava: porque não tinha cinema, livraria, teatro, espaço de cultura na
“quebrada”? É a partir dessa necessidade que surge a ideia de transformar o bar
num espaço sagrado, principalmente porque é nele que as pessoas se reúnem,
depois de “adorarem um Deus chamado trabalho”. E hoje, 20 anos depois, a
ressignificação desse espaço se deu como consequência da literatura porque
“as pessoas começaram a ler, começaram a ter livros, começaram a escrever,
começaram a entender o lugar que se mora, entender a própria comunidade.
Começou-se a conversar sobre livros”.
Circuito, para Magnani, (2012)”

“trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta


de determinado serviço em estabelecimentos, equipamentos e espaços que não
mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em
seu conjunto pelos usuários habituais: por exemplo, o circuito gay, o circuito dos
cinemas de arte, o circuito neoesotérico, dos salões de dança e shows black, do
povo-de-santo, dos clubbers, dos evangélicos gospels e tantos outros.”.
(MAGNANI, 2012, p.97)

Assim, cada “circuito”, a partir de sua dinâmica própria, junta “usuários, adeptos
ou frequentadores” que se movimentam a partir instituindo seus “trajetos”.
(MAGNANI, 2012, p.128 e p.138). É o que ocorre no Sarau da Cooperifa, onde

“a proposta dos saraus da periferia forjou um universo de


significados e um conjunto de comportamentos que se
projetariam como os suportes para o desenvolvimento cultural
do próprio espaço do bar e do bairro periférico. Além da estrutura
dos estabelecimentos, equipamentos e espaços que fazem do
conjunto de saraus um “circuito”, todos os poetas e
frequentadores dos saraus da periferia têm uma preocupação
comum ligada à ressignificação de uma ideia de periferia que
cultivam e exibem nos textos declamados, em seus corpos, nas
formas de cumprimentar-se, nas manifestações de gosto e nos
valores que enaltecem” (TENNINA, 2018, p.70).

Pode-se dizer que o Sarau da Cooperifa está no centro do circuito dos saraus da
zona sul, ou mais ainda, no circuito dos saraus da cidade de São Paulo, pois ao
longo de duas décadas de existência e resistência se mantem-se ativo vivo sem
passar por interrupções. A ideia de utilizar a poesia declamada nos espaços de
bares da periferia influenciou a fundação de vários outros saraus tanto em São
Paulo quanto em outras cidades como Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro,
Arco Verde (PE).
Como exemplo, eis alguns saraus cujos poetas e fundadores estão presentes na
Cooperifa semanalmente:
- Sarau do Binho6: fundado em 2004 pelo Binho e pela Suzi, no bar que eles
mantinham na região do Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo. Hoje
o sarau acontece de forma itinerante na escolas e bibliotecas da região.
- Sarau Elo da Corrente7: fundado por Michel Yakini em 2007, no bairro de
Pirituba em São Paulo, realizado no bar do Santista.

6
http://saraudobinho.blogspot.com/
7 http://elo-da-corrente.blogspot.com/p/quem-somos.html
- Sarau do Ademar8: fundado em 2008 na Cidade Ademar, bairro da zona sul de
São Paulo.
- Sarau Poesia na Brasa9: fundado em 2008 na Brasilândia, idealizado Sônia
Bischain, Zona Norte da cidade, e acontecia Bar do Cardoso e depois Bar do
Carlita.
- Sarau da Vila Fundão10: fundado por Fernando Ferrai, em 2009 e acontece toda
quinta feira no Capão redondo, zona sul de São Paulo.
- Suburbano Convicto11: fundado por Alessandro Buzo em 2010, no bairro do
Bexiga, em São Paulo, e em 2015 abre um segundo espaço em São Sebastião,
litoral do estado, passando a ser o único sarau que acontece em duas cidades
diferentes.
- Sarau da Pretas12: fundado em 2016 por Débora Garcia, Elizandra Souza,
Amanda Telles, Lilian Rocha e Oluwa Seyi, integrante de um coletivo de
mulheres pretas da periferia da zona sul de São Paulo.
Além de incentivar novos espaços de literatura na periferia, a Cooperifa também
fomenta a presença das pessoas do bairro no sarau concedendo premiações
com menções honrosas a grupos que atuam na comunidade, inclusive
partilhando as mesmas ideias ou que tiveram a Cooperifa como inspiração para
suas fundações. Segundo Sérgio, “os grupos se ligam pela forma de fazer ou de
viver a poesia na quebrada”. Como por exemplo o Samba da Vela13: grupo
liderado pelo sambista Chapinha que anualmente lança novos nomes no
panorama musical da cidade e o Pagode da 27 grupo de músicos que realizam
apresentações de samba numa rua anos atrás marcada pela violência na qual,
hoje o bar está aberto para a dança e a música. 14. Além de música, o futebol de
várzea também está presente no sarau recebendo incentivo pois “os jogadores
vêm no sarau com as suas famílias, e a gente ajuda doando o uniforme do time.”
(Relato de Sérgio Vaz)

8 http://saraudaademar.blogspot.com/
9 http://brasasarau.blogspot.com/
10 https://juntos.org.br/2011/02/sarau-vila-fundao/
11 http://sarausuburbano.blogspot.com/
12 https://ims.com.br/eventos/sarau-das-pretas/
13 https://pt.wikipedia.org/wiki/Comunidade_Samba_da_Vela
14 https://www.agenciamural.org.br/pagode-da-27-cria-novo-espaco-cultural-casa-27/
O Sarau

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso! Com essa frase, o sarau é aberto as
20h. A organização da Cooperifa tem um acordo com a comunidade do entorno
ao bar de modo que o evento deve acabar as 22h. Esse acordo diz respeito ao
barulho e também estabelece um limite de tempo para as apresentações: duas
horas para acontecer a poesia, no cenário que é constituído pelo bar, um
microfone e duas caixas de som.Três grupos de pessoas têm funções
estabelecidas dentro desse cenário para que a poesia aconteça: são os
organizadores da Cooperifa, os poetas e o público.

Os organizadores

- Seu Zé, com sua esposa e uma garçonete organizam a cozinha do bar. Eles
produzem o !escondidinho” de carne seca como o carro chefe da noite de terça
feira. Além do torresmo que ele frita momentos antes do começo das atividades
para servir fresquinho e crocante. Quando começa o sarau, os pedidos são feitos
e retirados no balcão; não há serviço de mesa, principalmente porque o bar fica
muito cheio e se torna inviável o trânsito do serviço. Logo que o sarau acaba,
os funcionários do bar começam a limpeza das mesas que se tornam
aglomerados de pratos e copos deixados ao longo das apresentações.
- Cocão fica responsável pela montagem do microfone, mesa de som, caixas de
som e manter tudo funcionando.
- Lu Souza fica com a recepção dos poetas anotando os nomes dos
declamadores do dia.
- Rose Doria, Jairo Periafricania, Marcio Batista, Caio Paraguaio trabalham como
mestres de cerimônia dividindo a tarefa de anunciar o próximo poeta, além de
cuidarem para a manutenção do silêncio.
- Esposa e a filha do poeta Sérgio Vaz ficam na venda de produtos como
camisetas, bonés, jaquetas.
Toda essa equipe faz parte da Cooperifa; todos trabalham para a manutenção
do evento de modo que tudo aconteça sempre da mesma forma, com a mesma
regularidade de todos os dias.
O silêncio é uma prece! Esta é a frase que funciona como mantra para a
manutenção do silêncio enquanto se declama poesia. Ela é pronunciada ao
microfone por um dos mestres de cerimônia e, prontamente, o silêncio e
estabelecido como numa igreja.

Pode bater palma com vontade! É a frase que é proferida tanto para apresentar
um poeta ao microfone, como quando acaba a declamação do poeta e o público
recebe com palmas. Se as palmas começam a cair de volume, logo surge a Rose
Dorea dizendo: Pode bater palma por igual!

Hu! Cooperifa, hu! Cooperifa! É o mote para fechar a noite. Após o último poeta
declamar sua poesia, o mestre de cerimônia em vez de anunciar mais um nome,
faz essa chamada que define o final do sarau. Todos os presentes repetem a
exclamação várias vezes que concluída por uma salva de palmas. Em seguida
já entra uma música na caixa de som e o bar se transforma voltando rapidamente
a ser um bar convencional, como nos outros dias da semana.

Os poetas

- Os poetas: pessoas que são profissionais da literatura ou não, mas que tem o
prazer de declamar poesias de autoria própria ou de outros poetas no microfone
do sarau, pois

“Ser poeta dos saraus da periferia paulistana é algo que se


completa no e com o corpo: as formas de falar e de rimar, de
aproximar-se do microfone, de ficar em pé, os movimentos das
mãos e a própria atitude corporal fazem parte de um conjunto de
comportamentos exibidos e cultivados nesses espaços. Trata-se
de uma corporalidade que se associa a biografias vinculadas à
dor provocada pela discriminação, pela pobreza, bem como por
outros fatores como a religiosidade, o esgotamento corporal, a
convivência com a morte e a violência em suas diferentes
formas, mas que são ressignificadas como capitais simbólicos”.
(TENNINA, 2018, p. 72)

Muitos desses poetas viajam longas distancias na cidade para ter alguns minutos
ao microfone declamando sua poesia. Muitos gastam viajam cerca de 2h ou 3h
de transporte público para tal, vindo da zona leste, Carapicuíba, Osasco, de
modo que Sérgio Vaz fala que o “sarau pode ser considerado como o movimento
dos sem palco, porque todos podem falar sua poesia e todos vão ouvir em
silêncio”.
O acordo com a comunidade do bairro para o sarau terminar até as 22h limita o
tempo em que os poetas têm de microfone, pois há noites em que as duas horas
da sessão é dividida entre 40 ou 50 poetas inscritos. A preferência sempre é
para os mais assíduos, mas a oportunidade de inscrição é dada a todos que
comparecerem na noite, de modo que os “novatos” ou “visitantes” ficam para o
final.
O último poeta que fecha o sarau sempre tem a reponsabilidade da melhor
performance. Muitas das vezes ficam a cargo de um rapper ou de uma cantora
que ao transformar suas músicas em poesia declamada é acompanhada pelo
público que bate palmas ou canta as melodias dos refrãos. Cantoras como Ana
Cannas, Izzi Gordon; Mcs Gaspar Z’Africa, Fino do Rap; Dj KLJay entre outros
são nomes que fazem esse fechamento do sarau, quando presentes.

O público

- O público: professores que trazem seus alunos, oriundos das escolas pulicas,
poetas que circulam no circuito dos Saraus da zona sul, familiares dos
organizadores ou os poetas e amigos em geral. Lucia Tennina reproduz uma
crítica de Fernando Ferrai, criador do Sarau da Vila Fundão, na qual ele afirma
perceber “que às vezes é o mesmo público: o mesmo público que frequenta o
Binho, a Fundão, frequenta a Cooperifa. E não é isso que eu quero. Eu quero
que a comunidade esteja presente”. (TENNINA, 2018, p. 76)
Situação que nem sempre se pode levar ao pé da letra pois os poetas, os
professores e demais frequentadores do sarau, e realizam ações pedagógicas
nas escolas formando novos leitores e frequentadores, a cada semana e até em
penitenciárias. Em certa ocasião, numa antiga FEBEM, hoje Fundação Casa15,
Sergio Vaz perguntou se os meninos gostavam de poesia e a resposta foi:

15
https://pt.wikipedia.org/wiki/Funda%C3%A7%C3%A3o_CASA
“Não”! Logo em seguida pergunta se eles gostam de Racionais MC’s16 e a pronta
resposta: “Logico!”. “Então vocês gostam de poesia, só não sabiam o que era”.

Enfim, o Sarau da Cooperifa constitui o centro do “circuito dos saraus” como


ponto de partida e referência para “trajetos” motivados pela poesia, tanto de
poetas para apresentar suas performances, lançar e vender seus livros, quanto
para fruidores que se deslocam para apreciar esta forma de manifestação
cultural na periferia da cidade de São Paulo.

A literatura
Pode vir do nó da madeira
Ou do bloco de cimento.
Se ela desce do pedestal
Tem o poder de nos fazer entender
Quem nós somos
E quem são os nós.
(Poeta Sérgio Vaz)17

16
Grupo de rap muito conhecido na cidade de São Paulo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Racionais_MC%27s
17
Poesia de Sérgio Vaz: Flores da Batalha, 2023.
Bibliografia

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