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ARTE DA CAPA: CONDE BALTAZAR

268
Ago. 2022
2 | AGOSTO DE 2022

eduardo ferreira
TRANSLATO

MIL E UMA NOITES (2)


Contra a suposta “literalidade”,
o autor argentino suscita o fato de
que Burton “reescreve integralmente
desde 8 de abril de 2000
— com acréscimo de pormenores cir-
cunstanciais e traços fisiológicos — a
Rascunho é uma publicação mensal
história inicial e o final”. Não parece

V
da Editora Letras & Livros Ltda.
pouco desvio para uma versão que se CNPJ: 03.797.664/0001-11
olto à história da com- cesso de pudor: fora isso, “é de uma arvora literal. Caixa Postal 18821
posição e da tradução admirável veracidade”. Outra ca- A última tradução que abor- 80430-970 | Curitiba - PR
de As mil e uma noi- racterística da tradução de Lane é o damos aqui é a de Littmann. Assim
tes, com base em ensaio acúmulo de notas, as quais, segundo como Burton, o tradutor alemão rascunho@rascunho.com.br
de Jorge Luis Borges incluído em Borges, “integram um volume inde- translada em verso ocidental os ver-
www.rascunho.com.br
seu livro História da eternidade. pendente”. Conforme o escritor ar- sos árabes e oferece notas suficientes,
Nesta segunda abordagem ao tex- gentino, o “escandaloso decoro” da embora lacônicas, para a compreen- twitter.com/@jornalrascunho
to de Borges, comento as tradu- versão de Lane significou uma espécie são do texto. facebook.com/jornal.rascunho
ções por ele consideradas como de “desinfecção” das Mil e uma noi- Como aspecto positivo, o en- instagram.com/jornalrascunho
mais “literais” — ressalvando, co- tes, mas não representaria “uma cul- saísta argentino aponta sua total
whatsapp (41) 99109.4352
mo ficou dito na coluna anterior, pa dessas que o Senhor não perdoa”. franqueza: “Não o intimidam as obs-
que a literalidade é mais narrativa O texto de Richard Burton, se- cenidades mais inefáveis; verte-as a
do que realidade. gundo o autor argentino, tem como seu tranquilo alemão, alguma rara
EDITOR
Borges considera como uma de suas características a decisão de vez ao latim. Não omite uma palavra,
Rogério Pereira
mais “literais” as versões de Ed- traduzir em versos as centenas de can- nem sequer as que registram — 1000
ward Lane (para o inglês, 1839), ções e dísticos que figuram nas Mil e vezes — a passagem de cada noite à EDITOR-ASSISTENTE
Richard Francis Burton (para o uma noites. O procedimento aproxi- subsequente”. Luiz Rebinski
inglês, 1872) e Enno Littmann ma a tradução do original, sem dúvida, Por outro ângulo, Borges a con-
(para o alemão, 1928). Cada mas com uma ressalva borgiana: con- sidera como “literal medíocre”, por ser EDITORA DE POESIA
qual, como veremos, com seus tradiz a intenção de total literalidade Littmann “sempre lúcido, legível, [...] Mariana Ianelli

matizes de liberalidade. do tradutor, considerando que a ver- incapaz como Washington de men-
EDITOR DE FICÇÃO
A tradução de Edward La- são de poesia tende a ser mais “livre”. tir”. O escritor argentino insinua es- Samarone Dias
ne pode ser tachada de “literal ex- A favor da “literalidade” de Bur- perar muito mais dessa tradução ao
purgada”. Conforme Borges, a ton destaca-se outra característica de alemão: “Que não faria um homem, DIRETOR DE ARTE
tradução de Lane omite sistema- sua tradução: o farto uso de neologis- um Kafka, que organizasse e acentuas- Alexandre De Mari
ticamente supostas indecências do mos e estrangeirismos — que tendem se esses jogos [os prodígios constantes
original, empregando notas de ca- a indicar maior apego ao original. Na das Mil e uma noites], que os refizesse DESIGN
Thapcom.com
ráter moralista. E mais: as omis- avaliação de Borges, “Cada uma des- segundo a originalidade alemã, segun-
sões não alcançam apenas partes sas palavras deve ser justa, mas sua in- do a Unheimlichkeit da Alemanha?”. IMPRESSÃO
dos contos, mas às vezes contos tercalação implica um falseamento. Borges, como escritor genial, va- Press Alternativa
inteiros, “porque não podem ser Um bom falseamento, já que essas loriza muito mais os arroubos da in-
purificados sem destruição”. travessuras verbais — e outras sintáti- ventividade, mesmo que infiéis, do COLUNISTAS
Borges aponta como única cas — distraem o curso às vezes abru- que a mera tentativa de versão trans- Alcir Pécora
falha da tradução de Lane seu ex- mador das Noites”. parente, mas insossa. Eduardo Ferreira
Fabiane Secches
João Cezar de Castro Rocha
José Castello
José Castilho

rinaldo de fernandes
Luiz Antonio de Assis Brasil
Maíra Lacerda
Nelson de Oliveira
RODAPÉ Nilma Lacerda
Noemi Jaffe

MODERNISMO
Ozias Filho
as orientações estéticas do futurismo
Raimundo Carrero
italiano às do cubismo francês. Entre Rinaldo de Fernandes
os seus líderes, estava o poeta Maia-

DE 20 (1)
Rogério Pereira
kovski. Negando a tradição literária Tércia Montenegro
russa, os cubofuturistas propuseram, Wilberth Salgueiro
entre outras coisas, o desprezo à lite-
ratura de teor místico e moral, a valo- COLABORADORES DESTA EDIÇÃO
Alexis Castro
rização da poesia de experimentação
André Caramuru Aubert
linguística (o que desautoriza a teo-

O
Cristiano de Sales
ria da inspiração) e a criação de neo- Érico Nogueira
Modernismo dos anos nas artes proposta pelas vanguardas logismos; c) Expressionismo: surgido Felipe Benjamin Francisco
20 teve como princi- europeias (estou me valendo aqui, na Alemanha, teve suas orientações es- Fouad Laroui
pal propósito renovar além do livro de Gilberto Mendon- téticas propagadas entre 1910-1920. Gisele Barão
as artes. No campo lite- ça Teles Vanguarda europeia e mo- Propostas de destaque do único ma- Haron Gamal
Helena Arruda
rário, a renovação se fez em rela- dernismo brasileiro, da boa síntese nifesto da poesia expressionista lança-
João Filho
ção aos estilos de época do final feita por Lúcia Helena no seu livro do em 1918 por Kasimir Edschmid:
Jonatan Silva
do século 19, Parnasianismo e Modernismo brasileiro e vanguar- a) a realidade é representada com de- Lucinda Persona
Simbolismo, sobretudo, chama- da europeia). As vanguardas, hoje formações, já que é interpretada sub- Martim César
dos por alguns de literatura passa- denominadas históricas, são: a) Futu- jetivamente pelo artista expressionista Raquel Matsushita
dista. Alguns acontecimentos que rismo: liderado por Filippo Tommaso (Kasimir Edschmid, em seu manifes- Ricardo Azevedo
antecipam e determinam o Mo- Marinetti e cujo manifesto foi divul- to, diz: “Agora não existe mais a cadeia Sérgio Tavares
dernismo de 20, mesmo ou so- gado em Paris em 1909. Entre as pro- dos fatos: fábricas, casas, doença, pros- Ted Hughes
Tomaz Amorim Izabel
bretudo os que ocorrem fora do postas do Futurismo, destaque para as titutas, gritaria e fome. Existe a visão
país, estão situados no chamado palavras em liberdade (o que rompe, disso [grifo meu]”); b) o Expressionis- ILUSTRADORES
Pré-Modernismo (Alfredo Bo- em poesia, com a tradição da metrifi- mo é supranacional (conforme ainda Conde Baltazar
si atribui dois sentidos ao termo cação), a imaginação sem fios (escri- Kasimir Edschmid, “ele não é pro- Fabio Abreu
Pré-Modernismo: 1) o que conce- ta livre, solta, sem o engessamento da grama do estilo. É um problema da FP Rodrigues
de ao prefixo pré uma “conotação lógica gramatical) e associação livre de alma. Uma coisa da Humanidade”). Guilherme Paixão
meramente temporal de anterio- elementos (por exemplo, metáforas Os poetas expressionistas operavam Marcelo Frazão
Mariana Tavares
ridade”; 2) o que dá a esse prefixo com fusão de elementos díspares, im- com deformações grotescas do mun-
Mello
“um sentido forte de precedência previsíveis, impensados); b) Cubofu- do, com visões apocalípticas, e pro- Oliver Quinto
temática e formal em relação à li- turismo: foi lançado em Moscou em curavam refletir de perto o processo Sumaya Fagury
teratura modernista”). O primei- 1912, com um manifesto intitulado histórico, a contemporaneidade, cri- Tereza Yamashita
ro acontecimento é a renovação Bofetada no gosto do público, e juntou ticando fortemente o capitalismo. Thiago Thomé Marques
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DIVULGAÇÃO RAPHAEL PICERNI

6 17
DIVULGAÇÃO

Entrevista Inquérito
Fernanda Trías Sheyla Smanioto

THIAGO TOMÉ MARQUES


25
A porta, de Magda Szabó

22
Gisele Barão

Literatura e DIVULGAÇÃO

discurso popular
Ricardo Azevedo

DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO 29
36
Aldobrando, de Critone & Gipi
Raquel Matsushita

A tela DIVULGAÇÃO

misteriosa

40
Fouad Laroui

Poemas
Ted Hughes

CECÍLIA SÁ

8 32
O parque das irmãs magníficas,
Verbo do rio, de Camila Sosa Villada
de Mariana Paz Sérgio Tavares
Cristiano de Sales

DIVULGAÇÃO

14
HUGO PASSARELLO

Fooquedeu
(um diário), de
Nuno Ramos
24
Onze astros, de
Jonatan Silva Mahmud Darwich
Tomaz Amorim Izabel
arte da capa:
CONDE BALTAZAR
AGOSTO DE 2022 | 5

josé castello
A LITERATURA NA POLTRONA

A GOVERNANTA
CEGA

D
epois de ler uma de minhas crônicas, um alu-
no, Olavo — assim eu protejo sua identidade
— me pergunta onde fica a realidade no que
escrevo. “Quando eu o leio, nunca consigo
entender onde piso”, ele me diz, em tom de reclama-
ção. Vacila um pouco, toma coragem e avança: “Pare-
ce que o mundo está sempre de fora de seus escritos”.
Olavo é jornalista. Para ele, a realidade deve com-
parecer, com a máxima clareza, nos relatos que escreve.
Não suporta textos ambíguos, ou obscuros. A incerteza
e o imprevisto lhe causam náusea. “Se você não sabe o
que dizer, melhor não dizer”, ele argumenta. Aprecia a
lisura e a retidão. Só aceita uma escrita transparente. A
escrita deve ser um lago de águas límpidas e pacíficas.
Até porque também sou jornalista, por longo
tempo, exatamente como meu aluno, também acredi-
tei que a literatura era uma ilustração do mundo. No
máximo, uma decoração, ou então uma reforma do
mundo, uma reordenação sensata do real. Fosse como
fosse, o mundo permanecia em seu lugar. Não perdia
a visibilidade. Eu ainda estava preso à esfera da clareza.
Tudo o que me parecia confuso e tenso, eu repudiava.
Mas eu mudei — e muito. Tentei explicar a Ola-
vo que literatura é, sim, o mundo tal qual nós o co-
nhecemos. Mas é o mundo acrescido de alguma outra
coisa: um olhar imprevisto, reflexos turvos, outras vi-
sadas. Logo: a literatura não contém o mundo, co-
mo um lago transparente contém os peixes coloridos
que nele brilham. A literatura o desdobra e, ao des-
dobrar, o turva.
Através da própria escrita, descobri que a litera-
tura vai além do mundo. Que ela é uma fenda que se
abre para vidas paralelas. Sim, ainda é do mundo que se
trata, ainda é a vida que está em jogo, mas não é mais o
mesmo mundo e tampouco é a mesma vida.
São coisas (imagens, bandas, reflexos) que delas
se desdobram — como quando esticamos sobre a cama
uma colcha recém-chegada da lavanderia, impecável e
bem passada. Conforme você a abre, outros mundos
saem desse mundo inicial e fixo — um mundo engo-
mado. A cada movimento, a realidade anterior desa-
ba, sendo substituída por outras realidades. A goma se
esfarela. Novas formas aparecem.
Sim, ele ainda é o mundo que conhecemos e ex- Ilustração: Mello
perimentamos, mas não está mais preso aos limites
do que chamamos realidade. Não é mais o embrulho Sento-me para escrever. começa, porém, a desdobrar a col- Quanto mais a pobre
pronto que nos entregaram no balcão da lavanderia. Planejo, tomo notas, construo cha, por mais que traga na men- mulher se esforça e luta para
Também não é “qualquer coisa”: é o que você conse- modelos, imito as maquetes dos te a imagem abstrata do objeto organizar seus gestos, mais eles
gue arrancar (desdobrar) daquele pacote inicial. O que arquitetos. Armo-me de recur- que tem nas mãos, as coisas de- se desorganizam. Quanto mais
você encontrou de diferente dentro do mesmo. Ain- sos, de estratégias, de planos de- sandam. As pontas se perdem. As tenta impor ordem à arruma-
da é a vida, sempre a vida, mas alargada. Ela toma ou- talhados, de balancetes. Meço, barras da costura se enrolam. De- ção da cama, mais as cobertas,
tras formas que nunca imaginamos que pudesse conter. divido, separo, arrumo. Tudo is- sandam mesmo. Melhor dizer: as amarfanhadas, lhe escapam.
Não li sobre isso em lugar nenhum, não li em so me dá segurança. Experimen- coisas enfim andam. A realidade respira — a col-
nenhum livro. Cheguei a isso escrevendo. Foi o desfiar to a ilusão de que sei onde piso. Autônomas, guiadas agora cha respira, como um imenso
paciente da escrita — o desembaraçar das minúcias, Contudo, quando come- por alguma mágica, partes da col- polvo, cheio de pernas. Ela na-
como nos gestos de uma mulher que cata seus feijões ço efetivamente a escrever, por cha desaparecem, se desenrolam da mais pode fazer contra esse
— que me fez ver o que vi. Não “li sobre” — experi- mais que me esforce para seguir em direções imprevistas, tomam animal vivo, embora feito só de
mentei. Não raciocinei — senti. Poderia talvez dizer o caminho traçado, faço sem- formas não concebidas, que a po- um tecido grosso e macio, que
assim: aconteceu. pre outras coisas. Sempre ou- bre governanta não previu e que tem nas mãos.
A literatura carrega pedaços imensos da vida, ela tras coisas, e mais outras. Os não consegue entender. Até que chega um mo-
ainda é a vida, mas já é outra coisa também. É como planos, miseráveis planos, ficam Embora irritada e cansada, a mento em que, em vez de cobrir
dizemos: “Será que existe vida em outros planetas?”. para trás. Eles são como a fôrma governanta já não pensa, não se- a cama, a governanta cega, de-
Parece que existe sim, mas o grande erro está em procu- que, depois de assado um bolo, gue plano algum, não tenta chegar solada, à beira de um ataque de
rar, nesses outros mundos, a vida tal qual nós a conhe- atiramos na pia para lavar mais a nada. Limita-se a desdobrar e es- nervos, se vê envolta pelo tecido
cemos e concebemos. Queremos encontrar, em outro tarde. Quando dou por mim — ticar, esforça-se para alisar e pren- que não pode mais controlar. A
lugar, muito distante, exatamente a mesma coisa. Te- se é que em algum momento eu der, mas a colcha se desmonta e colcha a venceu. Ela ia fazer algo
mos medo da decepção. E da cegueira. dou por mim —, ajo como uma se desenrola em outras direções, externo, só um trabalho rotinei-
A vida poder ter outras formas, outras regras, governanta cega. de modo que a cama impecável ro que exigia uma técnica anti-
outros ritmos, o que leva a outras necessidades, a no- Essa governanta traz nas que ela planejou nunca estará fei- ga, mas o externo a devorou e se
vos desejos e novas faces. E, no entanto, apesar da es- mãos um pacote compacto, vin- ta. A colcha toma formas novas tornou interno. O imenso teci-
tranheza, apesar do susto que isso desperta, apesar de cado, bem dobrado e embalado e bruscas, age por si, ganha vida. do, todo amassado e disforme,
até não conseguirmos vê-la, ela ainda é vida, ainda é – a colcha bem passada que re- Torna-se um bicho que ela já não agora a envolve e toma seu lu-
de nós que se trata. cebeu da lavanderia. Quando ela consegue domar. gar. Esse tecido é a literatura.
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entrevista
• Lendo Gosma rosa, pensei é partir do presente e extrapolar
em A estrada, de Cormac Mc- umas coisas que já estão aí.
Carthy, e como aquele é di-
ferente do seu livro. De certo • A personagem principal men-
FERNANDA TRÍAS modo, Gosma rosa nos conta ciona muitas vezes o Brasil. Pa-

Encadeamento de
sobre um apocalipse abafado. rece que o país é uma espécie
Fiquei interessado com a ideia de utopia inalcançável.
de apresentá-lo a partir de um [Risos] A meta da salvação

desgraças
tom mais íntimo. é ir morar no Brasil, pensado co-
Gosto muito, obviamente, mo esse lugar maravilhoso inal-
de A estrada de McCarthy. Con- cançável. Nunca tinha pensado
sidero o livro todo fantástico, mas nisso que vou dizer, e já é me psi-
tem uma coisa que me fascina ne- canalisar. É lógico que há umas
le — o tom monocromático ao conotações maravilhosas e mis-
longo da narrativa. Esse tom cin- teriosas, sobretudo para os uru-
za e essa atmosfera monocromática guaios que, estando tão perto, ao
que geram as cinzas. E depois uma mesmo tempo estamos tão distan-
sensação, que me interessa muito, tes porque são países nada pareci-
Com resquícios de esperança, a uruguaia de círculo do inferno, já que os dos. E temos estas ideias de que
Fernanda Trías constrói um romance em torno das personagens estão perpetuamente
caminhando, mas há a sensação de
no Brasil é abundante, luminoso,
alegre. Parece ser bem diferente
catástrofes climáticas que ameaçam a humanidade que sempre é, com pequenas varia- do povo uruguaio, que é esse cin-
ções, mais do mesmo inferno. E ao zento de Gosma rosa. Já num ní-
mesmo tempo é uma distopia do vel pessoal, eu, que nasci durante
ALEXIS CASTRO | SÃO PAULO – SP movimento. Já Gosma rosa é bem uma ditadura, tenho umas lem-
o contrário, é do confinamento e branças muito velhas porque era
DIVULGAÇÃO da quietude. O que me interes- muito nova, do meu pai — ele era
sava narrar era o durante. Nun- médico, e na ditadura recrutavam
ca imaginei que fosse haver uma médicos para os centros de tortu-
pandemia, e depois a “nova nor- ra — falando para minha mãe que
malidade” passou a estar na boca se fosse convocado, ele ia embo-
de todo mundo. Então, não pen- ra pro Brasil. Havia um plano B
sei em normalizar aquilo, e que se na família, que estava ali, que era
tornasse a nova normalidade, viver um ônibus até Florianópolis, e daí
no meio da catástrofe, mas pensa- não sei para onde. Nunca aconte-
va que o durante é um momen- ceu nada, mas isso estava flutuan-
to de muita confusão, onde ainda do quando eu cresci. Então talvez
não está muito claro o que está vazou do meu inconsciente quan-
ocorrendo, onde tem gente que do escrevi o livro.
tenta negar o que está acontecen-
do, mesmo que esteja acontecen- • Algo muito interessante em
do na frente deles. Essa simulação Gosma rosa é que nunca se fala
de vida e esse continuar querer vi- da mudança climática. Não sei
vendo como se nada estivesse su- se foi algo premeditado, por-
cedendo, em alguns personagens que se aborda uma pandemia,
— alguns são mais realistas, ou- um pré-apocalipse, mas nun-
tros menos — é algo muito hu- ca se sabe muito bem o porquê,
mano. O ser humano tem essa embora é possível intuir que a
necessidade de negar o que está mudança climática esteja por
acontecendo, em parte como um trás de tudo.
estranho mecanismo de sobrevi- É verdade, não se mencio-
vência. Por meio da negação, pode na. Porém para mim estava mui-
tampar todas essas emoções e ficar to claro que tudo estava vinculado
nessa simulação de vida. à mudança climática a partir das
algas, dos tóxicos que vinham do
• Quando efetivamente se de- rio. O céu também tinha se escu-
senvolveu a pandemia ao redor recido, o sol nunca o atravessava
do mundo, você se sentiu com e isso também contribuía para a
o poder de modificar a realida- sensação de cinzento que eu que-
de? Ou seja, você escreveu um ria construir. E há sempre o ne-

G
livro sobre uma pandemia, e de voeiro estagnado sobre a cidade
osma rosa, romance da uruguaia Fer- Gosma rosa, ganhador de repente aconteceu uma pande- que só se levanta para trazer algo
nanda Trías, publicado originalmente diversos prêmios literários, conta mia. Talvez você queira escrever pior. Queria também que a par-
em 2020, foi um sucesso nos países his- a história de uma cidade castiga- um livro sobre a paz mundial te do fenômeno ficasse misterio-
pânicos. O fato de o livro ter se adiantado da por uma catástrofe climática ou sobre o cancelamento do sa, como essas coisas inexplicáveis
à pandemia de covid-19 é só uma anedota dentro que serve de gatilho para a proli- apocalipse climático. que começam a emparentar o fe-
da narrativa, que explora o mundo por meio de feração de um vírus. A narradora [Risos] Ao mesmo tem- nômeno com o horror. Porque
uma metáfora cada vez mais próxima da realidade. descreve muitos elementos que a po me fez pensar muito porque, tampouco o horror tem explica-
A autora aproveitou o discurso ao receber o pandemia de covid-19 nos ensi- quando eu era jovem, fui discípula ção. Embora não tenha me preo-
prêmio Sor Juana Inés de la Cruz, da Feira do Livro nou: as máscaras, os movimentos do escritor uruguaio Mario Levre- cupado por trabalhar nenhum
de Guadalajara, no México, em 2021, para alertar negacionistas, os hospitais lota- ro, e ele me disse depois de eu ter gênero específico, queria que es-
contra a mudança climática e os fatores que facili- dos, o lockdown. E na narrati- escrito La azotea: “cuidado com tivesse nessa fronteira do “eco-ter-
tam seu desenvolvimento. va de desespero e horror, a autora o que você escreve porque se tor- ror”, porque também é terrífico
“Para evitar o pior, as emissões mundiais de também conta sua própria histó- na realidade”. Ele era bem místico que de repente um fenômeno
dióxido de carbono deveriam se reduzir em 45% ria, com visões de seu passado, a — escreveu um manual de parap- ecológico chegue com uma amea-
antes de 2030. Atualmente, com os compromissos relação com a mãe, com o ex-na- sicologia, acreditava em todos os ça dessas. Sinto que a crítica deu
que assumiram os distintos países, só seriam reduzi- morado, com Mauro — uma das fenômenos paranormais. Então, menos importância ao que me
das em 1%. Assim, é estimado que em menos de 80 criações mais fascinantes do ro- penso que se ele estivesse vivo, parecia importante, que era jus-
anos, 74% das regiões que hoje são habitadas por mance —, uma criança que so- encontraria uma resposta quase tamente que falássemos da mu-
seres humanos terão virado ambientes propícios a fre de uma síndrome rara. telepática, diria que fiz uma es- dança climática, que falássemos
doenças letais, segundo dados das Nações Unidas.” Trata-se de um romance pécie de cambalhota temporal, de catástrofes ambientais a par-
Trías nasceu em Montevidéu, em 1976, e ini- de carácter profético, uma dis- ou algo do tipo. Mas essas coisas tir de toda a destruição do meio
ciou sua carreira como escritora em 2001 com o topia que temos vivido na pele às vezes acontecem. E com as dis- ambiente. E ela ficou mais foca-
romance La azotea. Discípula de Mario Levrero, nos últimos dois anos, e já foi topias ocorre muito, sinto que as da no “tem uma epidemia”. Mas
publicou os romances Cuaderno para un solo ojo comparado ao trabalho de es- distopias, a ficção cientifica, mui- não é uma epidemia, o que exis-
e La ciudad invencible, e os livros de contos El re- critores como Ray Bradbury ou tas vezes têm essa capacidade ante- te é uma catástrofe ambiental que
greso e No soñarás flores. J. G. Ballard. cipatória, em parte porque a ideia produz essa doença.
AGOSTO DE 2022 | 7

liberdade, e cresci querendo fugir • A parte mais emotiva do ro- dois, onde ela faz uma defesa dos cuidados como
disso. E fugi. Mas também tem mance é a relação da protago­­ um último bastião de humanidade, que é o que
de reconhecer que o Uruguai se nista com Mauro, porque nes­­sa dá sentido à vida dela. Neste momento tão escu-
transformou nos últimos quin- relação é onde se deixa entrever ro que estamos vivendo — quando Gosma rosa
ze anos, e muito teve a ver os go- certa esperança. A doença do foi publicado o momento era muito escuro, mas
vernos de esquerda, que fizeram menino é quase um suplício da não tão escuro quanto o que estava por vir — com
muito pelo país, e o Uruguai e mitologia grega. Como surgiu pandemia, guerra, ameaça nuclear... Então, é neste
Montevidéu mudaram muito, a ideia? momento que tenho muitíssima dificuldade de en-
mas de alguma maneira ficaram A doença existe e me ba- contrar a esperança. Este ano tem sido muito difí-
estagnados na minha memória seei nela e tratei de descrevê-la cil para mim animicamente, com tudo o que está
Gosma Rosa como era antes. Não vivi nada da da forma mais próxima possível à acontecendo. Já estávamos muito esgotados ani-
FERNANDA TRÍAS explosão positiva, da transforma- realidade. Essa síndrome, que se micamente pela pandemia, dizendo que já está aí
Trad.: Ellen Maria Vasconcellos ção do país, com muito mais coi- chama síndrome de Prader-Willi, o final do túnel, e quando você chega ao final do
Moinhos
sas culturais, muito mais turismo é uma doença sem cura, de nasci- túnel, surge uma guerra sangrenta [da Rússia con-
226 págs.
e uma sensação mais cosmopoli- mento congênita, e ocorre a uma tra Ucrânia], tão terrível, como antigamente, que
ta. Isso percebo só quando vou a pessoa entre um milhão. Eu li de- ninguém acreditava que podíamos voltar a ver uma
• A história se passa numa ci- passeio. Na minha memória ficou poimentos e há documentários de coisa assim... Tem sido difícil. Mas do mesmo mo-
dade não nomeada. Você pen- gravada aquela outra cidade, e em pessoas com a síndrome na In- do como há uma escuridão muito grande e uma
sava em Montevidéu quando a parte eu queria em Gosma rosa glaterra, na Austrália, em muitos grande capacidade do ser humano para o mal, não
escreveu? trabalhar essa sensação de voltar lugares. E por sinal aqui na Co- se pode negar que também há uma força e uma
Sim, pensava muito em à cidade com a memória, com a lômbia me contatou, depois de o grande quantidade de gente se organizando, ten-
Montevidéu, mas também ti- lembrança, porque do mesmo jei- livro ser publicado, a mãe de um tando contribuir. Geralmente nas catástrofes, as
nha claro que tomava empres- to há um mundo que já não existe menino com Prader-Willi. Na Es- pessoas se organizam, e se vê uma solidariedade
tadas características de qualquer para mim. Quando vou a Monte- panha, existe uma associação que popular que muitas vezes é uma solidariedade que
cidade portuária. Inclusive agora vidéu, encontro uma cidade mais trabalha para trazer visibilidade à inexiste nas autoridades, nos governos, nos polí-
que o livro está sendo traduzindo bonita, mas não é a que eu dei- doença, para conseguir melhorar ticos. São as pessoas comuns que te mostram es-
ao francês, a tradutora mora em xei. Então sempre me sinto es- a qualidade de vida e para enten- se resquício de esperança. Queria mostrar isso em
Marselha, uma cidade portuá- trangeira, e sempre sinto que há der mais, porque é uma doença Gosma rosa também. Ou seja, você vai receber
ria que também tem muito des- uma cidade que deixei que desa- pouco estudada por ser tão pou- ajuda do vizinho, não do presidente.
sa coisa industrial. E ela me disse pareceu e não sei quando a tro- co comum. Falando do tema da
que por muitos momentos lhe pa- caram por outra. A partir disso, esperança, sei que Gosma rosa é • Pode um livro mudar o mundo?
receu que a narrativa poderia estar pude emprestar um pouco des- um livro escuro, pessimista, mas Não. Mas creio que pode motivar a conver-
se passando lá. Então, acho algo sas sensações à narradora, para não o sinto cem por cento pessi- sa, o diálogo, e isso é importante porque é a partir
bem interessante, que alguém que que ela pudesse trabalhá-las, apli- mista. Sinto que há uns resquí- da conversa que podemos começar, não só a acei-
mora em Valparaíso [Chile], por cadas a sua própria história, mas cios de esperança, fissuras muito tar o que está acontecendo, mas começar a pensar
exemplo, também possa sentir desde outro lado, porque no ca- leves que podiam permitir uma juntos possíveis soluções.
que estou falando de Valparaíso. so dela é sim um mundo perdido. pequena esperança que tivesse a
Porém, estava, obviamente, com É esse mundo que evidentemen- ver com a ética do cuidado, com • Você poderia indicar um livro para entender
algumas características de Mon- te nunca mais vai voltar a ser co- os laços de solidariedade, em es- o mundo?
tevidéu bem marcadas na minha mo ela o conheceu, onde o mar ses breves momentos onde se pro- O primeiro que vem à mente é Crime e cas-
cabeça. Muitas vezes quando falo era protagonista, as praias, tudo o duz uma conexão humana entre tigo, mas é mais um livro para entender a huma-
desse tom cinza, os prédios cin- que no Brasil vão entender muito alguns personagens. Mas o cen- Leia mais em nidade, a condição humana. Acho que um livro
za, as ruas cinza, as pessoas cin- bem porque se, de repente, a água, tral é certamente a relação deles rascunho.com.br importante pra entender o mundo é Membrana,
za... Penso que talvez essa não a praia, a costa — que sempre foi do espanhol Jorge Carrión. É bem interessante: é
seja a Montevidéu de hoje, onde algo que definiu sua identidade DIVULGAÇÃO
narrado por uma inteligência artificial, e vai pas-
as pessoas são cinza, se vestem de como nação — passam a ser o fo- sando por distintos episódios que têm a ver com a
cinza, senão a Montevidéu da mi- co da infecção, da doença, há um história e a história da inteligência artificial e a his-
nha infância. A cidade dos anos luto muito grande que precisa ser tória da cultura. Acho que é um livro que ajuda a
1980 era outra, era zero cosmo- feito como comunidade, coletivi- entender o mundo. Também tenho lido livros não
polita, vinha muito arrebentada dade, como nação. E nessa coleti- literários, científicos ou, às vezes, ensaios, que vão
da ditadura, onde inclusive der- vidade há milhões de indivíduos nessa linha de entender o mundo. Um deles é A
rubaram árvores, a cidade ficou fazendo seu próprio luto e lem- sensibilidade e a inteligência das plantas, de Ste-
toda cimento. Então, cresci com brando o que perderam. fano Mancuso e Alessandra Viola. É fundamental
essa sensação do cinzento da mi- para continuar a conversa sobre temas ambientais,
nha cidade e um certo olhar pro- • Se fala muito no romance de porque te faz entender que o mundo vegetal, que
vinciano, digamos, que em parte uma misteriosa fábrica de ali- nós como espécie humana o consideramos o últi-
foi o que me impulsionou na ado- mentos... mo degrau da vida sensível, é muito mais inteligente
lescência a ir embora. Eu ansiava O assunto da indústria da do que se acredita. É sensível, forma comunidades,
algo muito mais diverso. E, além alimentação está muito presen- tem uma linguagem, se comunica. Também a par-
disso, crescer em Montevidéu na te e muito vinculado ao tema do tir de derrubar muitos mitos, abrir a cabeça e en-
ditadura e na pós-ditadura foi bas- meio ambiente. Pelo menos, para tender que somos ignorantes sobre essa espécie, o
tante horrível, porque havia uma mim, está vinculado, como eu ex- mundo vegetal, e também como vamos poder en-
quantidade de coisas que estavam perimento tudo o que está acon- tender que nós não temos direito a arrasar com tu-
vinculadas à mentalidade militar, tecendo, e o que estamos fazendo do. Uma consciência mais realista de que estamos o
que ia além do governo que esti- como espécie humana à nature- tempo inteiro interrelacionados com as outras espé-
vesse no poder. Estava nas pessoas, za, ao meio ambiente, também cies, e que devemos encontrar uma maneira de co-
na sociedade. Então na escola não é o que estamos fazendo às ou- meçar a consumir a partir de uma ética de respeito
era permitido que o cabelo dos ra- tras espécies, aos animais. E mui- às outras espécies. Encontrar outra maneira de nos
pazes tocasse os ombros, se a cor to é da indústria da alimentação relacionar que seja a partir da ética do cuidado, co-
das meias não era a “correta”, vo- por meio do consumo, da depre- mo diz Donna Haraway. Não que não se possa co-
cê era mandado de volta para ca- dação, da pesca etc. Então está aí mer um frango. O problema é a forma como esses
sa. Havia uma sensação de pouca presente através da “mugre rosa” alimentos são produzidos, como esses seres vivem,
[O título original do romance vem como se fossem criados unicamente para nosso con-
de um produto alimentar conheci- sumo e não tivessem sensibilidade.
do em inglês com o nome de pink
slime]. Se houvesse uma catástro- • Para encerrar nossa conversa, você poderia
fe ambiental, todas as espécies vi- dar conselhos a jovens escritores diante da pri-
A crítica prestou menos vas obviamente seriam afetadas. meira publicação?
Então, pensava, se há um vento Enfatizo muito a importância de criar comu-
importância ao que me tóxico, se o tóxico vem do ar mes- nidades, de cercar-se de pessoas que estejam nesse
parecia importante: falar mo, irá afetar os cultivos, a agri- círculo de interesses. Quando comecei a escrever,
da mudança climática, cultura, mas também a produção fui em busca de Mario Levrero para que ele me
das catástrofes de carne e de alimentos. E isso é guiasse, e ele dava muita ênfase para a necessidade
ambientais a partir de uma corrente imparável. Quando de se criar comunidades. E depois fui vendo com
toda a destruição do veio a covid-19, entendemos co- os meus próprios olhos como essas comunidades e
mo estava tudo tão relacionado, é essa rede de conexões é o que permite que seu livro
meio ambiente.” um encadeamento de desgraças. chegue a alguém que o leia.
8 | AGOSTO DE 2022

Rios às margens
Mariana encontra abrigo para ver- se o que estamos esperando da
sar. João Cabral de Melo Neto e poesia atual ainda não está exa-
Manoel de Barros aparecem não geradamente impregnado do mo-
apenas nos títulos, Cabral no pri- numento erguido no século 20

da comunicação
meiro (poeta do rio) e Manoel no por, entre outros, João Cabral de
segundo (poeta das matérias inú- Melo Neto.
teis que se conhece de barriga no O poeta que não deixou
chão), mas também em soluções dúvidas sobre seus rios falou, em
formais como essa de Verbo do 1954, numa conferência a escri-
rio: Na terra vegetal habita/ o seco tores em São Paulo, que a função
Poemas de Mariana Paz fazem pensar a respeito do rodeado de água,/ teu deserto./ Pon- moderna da poesia seria reesta-
campo do simbólico na poesia brasileira contemporânea to de onde partes. belecer a comunicação entre poe-
mas e leitores, bem como entre
Na esteira dos belos me- leitores e mundo; porém, claro,
tapoemas de Cabral, como em de modo a ampliar o que chama-
CRISTIANO DE SALES | CURITIBA – PR
A palo seco, ou em Psicologia da mos de comunicação. Para Ca-
composição, nota-se aqui também bral, a função da poesia é que é
a musa moderna explodindo de moderna, não a poesia. Mais re-
terreno árido. centemente, em artigo na revis-

E
Ou em A matéria mais su- ta Cult, Raúl Antelo glosou essa
m evento recente sobre suja do dia, não incorrem nes- ja do dia: A cabeça cava a forma ideia ao dizer que a vida é que é
poesia, promovido por te último prejuízo do poético, qual quer/ o gesto do desenho sub- moderna, não o artista.
um programa de pós- pois instalam o leitor na dimen- terrâneo// (a letra em segredo de ser) Admitindo esse tipo de
-graduação da Univer- são simbólica e sensível de deli- abordagem, que me parece mui-
sidade Federal do Paraná, o poeta cadezas que se enraízam numa Aqui notamos o gesto cere- to acertada, nos caberia pergun-
e tradutor Paulo Henriques Brit- sorte de economia poética que bral de Cabral — uma cabeça que tar que tipo de idiossincrasia do
to elencou uma série de caracte- se inclina para o que poderíamos “cava a forma”, bem como a sus- presente esse tipo de poesia per-
rísticas que aproxima uma parte chamar talvez de ecologia poéti- pensão em parênteses, tão presen- mite perceber. Que tipo de rit-
da produção poética contempo- ca (devemos isso mais ao léxico te no poeta pernambucano — e mo da vida contemporânea
rânea. Entre alguns desses traços, de ambos os livros). Também não a palavra em germinação, tão re- temos conseguido perceber pe-
mencionou a performance ain- paira dúvida sobre a viva capaci- Verbo do rio corrente em Manoel de Barros, la poesia atual? Estamos vivendo
da flâneur, do poeta passeador, o dade da poeta mineira em fazer MARIANA PAZ que gosta das sujeiras das maté- um tempo em que a comunica-
dado episódio, circunstancial — versos. Algumas soluções formais Nós rias. Aliás, para este poeta, maté- ção não recupera mais o princí-
111 págs.
nada de grandes acontecimentos variam de um livro para outro, a ria de poesia e sujeiras se tocam. pio etimológico de “colocar em
— e um insistente afastamento exemplo da pontuação mais defi- comum”? Um tempo que, antes,
do plano do simbólico, que, na nitiva no primeiro livro, bem co- Falta de referencialidade aponta para uma abertura radical
exposição irônica de Britto, reve- mo a utilização mais diretamente O problema a ser pensado, das evocações possíveis, de modo
laria certa recusa do poético, se en- padronizada das maiúsculas em a meu ver, no que toca a boa per- a não ter mais que articular es-
tendermos este como processo de início de frases. cepção de Britto e os livros de pessuras particulares para o leitor
articulação, composição, enfim, A dúvida que os livros lan- Mariana Paz, diz respeito à fal- vivenciar? Uma poesia que radi-
intervenção no campo dos signos çam paira mais sobre essas situações ta de referencialidade. Sabemos caliza o não ter que se explicar e
e seus efeitos. O poeta-crítico re- da poesia contemporânea mapea- que o rio que intitula um dos li- que se oferece demasiadamente
vela ainda que há uma profusão das por Paulo Henriques Britto. vros traz a ambivalência do vocá- aberta por querer conversar com
de dêiticos que não retomam re- O primeiro livro, Verbo do bulo que pode se referir também tudo, em linguagem direta, em
ferentes possíveis de serem perce- rio, é uma bonita conversa com ao verbo rir conjugado no pre- sintaxe prosaica e objetiva? Per-
bidos pelo leitor. poesia contemplativa, dialéti- sente do indicativo, embora es- guntando de outra maneira, o
Ao mapear esse possível ce- ca moderna com haicais. As pró- se aspecto não seja tão explorado campo do simbólico não é mais
nário da poética contemporânea, prias divisões do livro apontam A matéria mais suja do dia na obra. Entretanto, ao lermos um lugar de se habitar juntos?
Britto deixa no ar (muito por conta para isso: Verão, Outono, Inverno MARIANA PAZ esse Verbo do rio, não sabe- Enfim, o que estão postas
do tom, a meu ver, irônico) a dúvi- e Primavera. Numa tradição oci- Nós mos ao certo que paisagem es- aqui, a partir da leitura de livros
71 págs.
da: trata-se mesmo de um ato cons- dentalizada dos pequenos poe- tá sendo cortada. E não apenas bem escritos e versados por Ma-
ciente de composição, ou apenas mas japoneses as estações do ano no que se refere à nossa geologia riana Paz, não são dúvidas em re-
uma perda da consciência criativa aparecem frequentemente como (o que não é uma necessidade), lação à habilidade da poeta ou dos
que ainda deveria oferecer marcas pano de fundo de modo a estabe- mas também no que se refere aos poetas contemporâneos, são dúvi-
contundentes de diferenciação en- lecer a atmosfera dos livros, vide, rios do campo do simbólico. Di- das sobre as perguntas que ainda
tre um texto de poesia e um texto por exemplo, algumas composi- fícil evocar esse rio. Não é como dirigimos à poesia.
deliberadamente prosaico? ções de Alice Ruiz. Essa heran- a evocação mitológica da infân- Os livros de Mariana, ao
Acrescentaria à reflexão-pro- ça, tão bem assimilada por alguns cia no Recife proposta por Ma- não aderirem às linguagens pro-
vocação do poeta outra modalida- poetas contemporâneos, transbor- nuel Bandeira, em que, mesmo saica e direta (apesar da sinta-
de bastante frequente na poesia da de Bashô, poeta andarilho, es- sem termos visto e vivido os ele- xe predominantemente direta),
atual, o caráter documental de- pécie de sacerdote da poesia num mentos que aparecem no poema, não aderem ao excessivamente
liberadamente assumido por um outro tempo e espaço. conseguimos evocar nossas pró- documental, o que é um aspec-
engajamento direto na realidade. A inspiração de Mariana prias memórias visuais e sonoras to bem-vindo. Mas, ao investir
Sabemos que literatura, há séculos, Paz no mestre japonês não se ob- da infância. É um rio que pare- no campo do simbólico, parece
não é sobre outra coisa que não a serva apenas nos poemas curtos, ce comover apenas a poeta. Não se afastar consideravelmente da
realidade, porém, o caráter exage- pois mesmo nos poemas mais que não seja capaz de despertar perspectiva cabralina de recolo-
radamente documental pode re- longos percebemos um chamado emoções, mas o acesso à espessu- car a comunicação no gesto poé-
sultar num afastamento de uma contemplativo: Trabalho no barro/ ra desse rio parece estar confisca- tico moderno.
das principais tensões que a litera- o peso do dorso frio,/ pés rachados do apenas às vivências da poeta. De novo, o problema que se
tura sabe travar com a realidade — sobre a terra./ .../ Escavo no espaço/ N’A matéria mais suja do abre é se a poesia continua tendo
a ampliação da própria realidade. a busca das mãos em cuia/ — pre- dia não sentimos esse acesso di- esse potencial de fazer ver ritmos
Não está em questão aqui a legiti- ce de dança. ficultado, mas talvez percebamos e espessuras do tempo. Porque, se
midade ou não do engajamento na um outro excesso, o do acesso ge- ainda é disso que se trata, a poe-
realidade, afinal, foi dito acima, a A mesma articulação perce- neralizado em demasia, e assim a sia de Mariana Paz, ao lado da
relação da literatura é primordial- bemos no segundo livro, A ma- matéria suja também se difunde de muitos contemporâneos, diz-
mente com a realidade; trata-se, téria mais suja do dia, em que em múltiplas possibilidades. Isso, -nos que o tecido do nosso tem-
antes, de admitir que a interven- algumas estrofes presentes em em princípio, pode ser um elogio po (nossas idiossincrasias) tem
ção no plano da realidade atinge poemas mais longos se oferecem à literatura, mas é como se a evo- mais revelado multiplicidades de
níveis mais interessantes quan- feito haicais: rasgado à tempestade/ cação, podendo ser feita por múl- eus do que convivências de nós.
do opera no regime do simbólico, feroz entre as naves/ escorre o mar/ tiplos eus, não estabelecesse uma E então estaríamos nos afastando
dado que o simbólico, o literário, pelas cortinas// a montanha/ sobe/ o espessura em particular onde pos- da concepção cabralina dos ga-
o poético se comunicam pela em- movimento dos dedos/ debate/ bri- A AUTORA samos estar juntos. los tecendo a manhã juntos. Ou
patia mais do que pela informação. lham rostos imensos/ vive quieta a Isso não são problemas ainda, estaríamos, seja pela recusa
MARIANA PAZ
pedra/ onde encostam a face. dos livros de Mariana Paz, isso do simbólico ou pela abdicação
Ecologia poética É escritora e artista plástica. são marcas de boa parte da poe- da referencialidade, afastando-
Os livros de Mariana Paz, Ressalte-se, claro, que não Nasceu em Minas Gerais. Vive e sia contemporânea. Sendo assim, -nos em demasia da comunica-
Verbo do rio e A matéria mais é apenas no poeta sacerdote que trabalha em Belo Horizonte (MG). é importante nos perguntarmos ção poética.
AGOSTO DE 2022 | 9

luiz antonio de assis brasil


TRAMAS & PERSONAGENS
Ilustração: Marcelo Frazão

A VOCAÇÃO
4. nem concentração total. Não é al- 9.
Com o que foi dito, e como go que possa ser realizado nas so- Se alguém pensar que se
tentativa de solução do impasse, re- bras das horas, nem apenas nos está a sugerir obediência a re-

LITERÁRIA
toma-se o afirmado no parágrafo fins de semana. A tentativa de gras tão estritas quanto as que
anterior: dizemos que Fulana tem harmonizar isso tudo leva à tris- ordenam a vida dos monges
vocação literária; e tem-na porque teza e ao desânimo e, em casos cartuxos de São Bruno, está
escreve com eficiência e originalida- mais graves, ao abandono. “Vi- certo. Uma diferença: os mon-
de. Não lhe falta imaginação, nem ver para escrever” é encontrar ges acreditam mais em suas vo-
os meios aprendidos para expressá- prazer apenas na escrita, à me- cações do que os escritores. No
-la. Fulana interessou-se em apren- dida que os outros prazeres in- primeiro caso, há a garantia da
1. der esses indispensáveis meios, e telectuais ou laborais se tornam luminosa vida depois da mor-
Dada como elitista e indulgente, quando assim procedeu porque desejava es- pálidos e insatisfatórios hologra- te, cercada pelo coro dos que-
não, beletrista, a palavra talento, que tantos estra- crever de maneira a que seus leitores mas. O escritor não escreve pa- rubins; no segundo, não há
gos e incompreensões tem gerado, melhor subs- se encantassem com sua literatura. ra ornamentar sua biografia nem garantia de nada. Não existe
tituí-la por outra. Vocação apresenta as melhores ascender na consideração do uma entidade superior que pa-
condições para isso, com sua acepção mais simples 5. meio social a que pertence. Não vimente o caminho que tanto
de disposição pessoal para certa atividade. Bom esclarecer que a vocação escreve para deleitar-se com suas pode conduzir ao prêmio No-
não é “para sempre”, nem que man- obras, porque as entende sempre bel quanto a livros atulhando
2. tém a mesma intensidade no decor- como capazes de melhora. Seu depósitos ou esquecidos nos
Embora aconteça, via de regra, na juventu- rer de uma vida. Ela está sujeita a estado habitual é a insatisfação. recônditos da internet. Eis aí o
de e, até, na infância, essa disposição pode revelar- aumentar ou diminuir sua força, e real problema, e insolúvel.
-se na idade madura, e, muito excepcionalmente, até desaparecer, para depois retornar 8.
na idade “avançada”, tal como em Cora Coralina e ou perder-se para sempre. Isso expli- A vocação literária é exigen- 10.
Pedro Nava; mas se atentarmos bem para os aspec- ca a alternância qualitativa de certas te. Cada livro é uma tentativa de Não se pode eliminar, ou
tos biográficos desses últimos, veremos que nunca produções literárias, inclusivamente alívio que não acontece. fingir que não existe, a neces-
a literatura lhes foi estranha até então, e esse é um em obras de nomes canônicos, co- Retomando o visto no pará- sária luta pela vida. Há profis-
ponto que não pode ser descuidado ao avaliar-se mo Balzac ou Flaubert, Dostoiévs- grafo 5, ela demanda não apenas sões, ou melhor, atividades, que
o fenômeno de vocações tardias. ki e Machado, Eça. dedicação irrestrita, mas também ocupam as 24 horas do dia; há
ações assertivas para que não so- as que ocupam menos, há tam-
3. 6. fra as intercorrências que a podem bém as que permitem bons es-
A vocação literária manifesta-se quando se [Nesse ponto entra o juízo diminuir ou dá-la por extintas. paços de lazer intelectual e de
mostra insuficiente a expressão por escrito, se des- alheio, quase sempre sentencial, que Dentre essas ações, a principal é exercício da sensibilidade. Em
tinada apenas à comunicação prática. E por que projeta o vocacionado a um locus a leitura constante e ininterrup- todo o caso, deve-se assumir
esse fenômeno acontece com algumas pessoas, e horribilis ou, ao contrário, eleva-o a ta. Mas atenção: devemos ler ape- sinceramente: o melhor de mi-
não com outras? Sem entrar em discussões, temos um êxtase orgiástico. Só o amadure- nas quem escreve melhor do que nha capacidade intelectual e de
de aceitar, inicial e candidamente, sua existência. cimento pessoal e literário fará com nós; ler obras amadoras, além que meu tempo será dedicado à li-
Mas é existência precedida de um processo, ou, se que o escritor entenda a si mesmo e agastar nossos humores, pode ser teratura. Já o resto, o resto farei
quisermos, de uma educação. Pedro Nava e Co- entenda a dimensão de sua obra, e um mal contagioso. A segunda com sensibilidade e empenho.
ra Coralina foram leitores desde crianças. O fato é essa consciência o conduz a um pa- ação implica o escrever diário e
que, em determinado ponto da vida, em geral no tamar em que não está mais sujeito concentrado. As intermitências 11.
início da formação escolar, e porque isso nos foi a supervalorizar as opiniões dos ou- na escrita podem, pouco a pou- Uma vocação situa-se
ensinado, descobrimo-nos pessoas capazes de ler tros e — fenômeno do espírito do co, extinguir qualquer vocação li- muito acima de uma simples
e escrever, e assim destapa-se um universo que po- tempo — nem à necessidade infan- terária. A terceira ação é fornir-se tendência ou de um gosto. Se
de levar à simples prática utilitária ou, mais rara- til de fazer reiterada propaganda de com o conhecimento integrado isso nos levar a uma encruzi-
mente, ao uso da escrita como elemento simbólico tudo o que lhe acontece, como se is- da ciência e da arte, o qual pode ir lhada dramática, bem, teremos
de outras realidades, quase sempre inalcançáveis. so importasse a todo mundo.] desde as montanhas da Lua à ar- de enfrentá-la. Assim, e mais
Atente-se para a díade: ler-escrever. Escrevemos quitetura das catedrais românicas; uma vez, voltamos aos efeitos
porque lemos, e na escola não faltam estímulos à 7. caso contrário, o escritor esgota- e ações, que partem da única
leitura, nem em muitos lares. Quanto mais apro- Aceita sua existência, fique- rá logo seu repertório de motiva- certeza do escritor: saber-se vo-
fundamos a questão, entretanto, mais surgem in- mos pelos efeitos da vocação lite- ções. Não se trata de conhecer por cacionado, detentor de uma
terrogações: por que a leitura fascina alguns alunos rária. Antes de tudo, o “viver para conhecer — isso o Google faz por qualidade exclusiva. O que ele
e aborrece a outros? Se o fascínio pode levar ao es- escrever” é fonte de fruição senso- nós — mas de integrar esse co- escrever só ele poderá fazê-lo
crever, o aborrecimento é estéril. Essas platitudes rial, de tal maneira que a pessoa não nhecimento às nossas experiên- daquela forma. Isso não é pou-
levam-nos a nada, e, por isso, melhor deixá-las. consiga fazer nada mais com gosto cias vitais e emocionais. co. Isso ninguém lhe tira.
10 | AGOSTO DE 2022

JULIA STANECK

nelson de oliveira
SIMETRIAS DISSONANTES

O IDIOTA
DA FAMÍLIA

S
ou o almirante de pupilas douradas e
olhar penetrante. De meu mirante, eu
miro e reviro o moribundo mundo-mun-
do vasto e imundo. Do ponto mais alto
de meu altíssimo observatório, eu observo as ma-
nhas e artimanhas da humanidade. Do ponto mais
alto de meu altíssimo observatório, esta manhã eu
absorvo as manhas e artimanhas do Rafael Sper-
ling. Sou o almirante de pupilas douradas e olhar
penetrante, e vejo, de meu mirante, que na famí-
lia literária brasileira o mais sagaz é sempre o idio-
ta da família, o palhaço, o desordeiro. Rafael Sperling,
Putaquipariu… Rafael Sperling incorporou autor cheio
de manhas e
um demoniozinho insidioso. Seus contos e poe-
artimanhas
mas são traiçoeiras ciladas mentais que espancam
a hipocrisia e a correção política. Festa na usi-
na nuclear (2011) e Um homem burro mor-
reu (2014) logo se revelaram duas das melhores Wergon, Manganabo, Manimey Jesus Cristo espancando Hitler. Espancando e gritando coi-
coletâneas de contos deste início de século 21. Ohandna, Leretrário, Canibré- sas horríveis, para que ele sofra. Falando de como espancou e es-
Por que não foram premiadas e festejadas pelos dis, Glonzius, Catrapilas, Bordo- tuprou as avós de Hitler, a materna e a paterna. Falando coisas
festeiros institucionais é algo que eu não consigo nésio, Jasdgh, Ctywaq, Pâncreas, horríveis e espancando. Espancando seus ouvidos e gritando, fa-
compreender. Em seguida, seus primeiros poe- Matrapalhy, Curdispór Arantes zendo com que ele sofra com as palavras e com os socos. Com os so-
mas foram reunidos no décimo volume da cole- do Ná Cimento, Sânscrita, Ca- cos e com o cano de ferro.
ção Kraft (Cozinha Experimental, 2016), criada loaninho, Teolófito, Ponsamoto, (Jesus Cristo espancando Hitler)
justamente pra apresentar “novíssimos poetas em Ertrion, Jargancio, Ardriguizo,
sua primeira recolha impressa”. Salada Real, Celuleia, Canteiri- Minha bigorna cantou uma ária de Puccini com muita ele-
Nesses três livros, Rafael Sperling ridicula- nho, Klopart, Dingsold, Ouper- gância.
riza, espanca, eviscera e canibaliza nossa estúpida saf, Unompil, Toblerone, Qfwfq, Depois me disse que estava esperando um filho. Abriu sua va-
sociedade em estado avançado de decomposição, #+-4$#2, Sêlemo, Aracno, Glere- gina e me mostrou o feto de bigorna que havia dentro de seu útero:
não poupando nem mesmo a estrutura física da tribo, Ploin, Mânima, Oulo, Me- uma pequena bigorninha.
realidade. Pra escapar de suas armadilhas escato- letribas, Berio, Tópi, Bêngolas… (Minha bigorna)
lógicas, o leitor sério e severo — incluindo o espe- Os leitores recorrentes do
cialista, formador de opinião — costuma adotar ensaio O grotesco, de Wolfgang Acordei com o estrondo tutti-frutti de uma estrela que explo-
uma de duas estratégias: (1) apenas ignorar os li- Kayser, rapidamente percebe- dia na constelação de Andrômeda. Saí de dentro do micro-ondas e
vros do autor, fingindo que jamais foram publica- ram que os contos e os poemas rolei até o banheiro, onde urinei na pia de luz néon.
dos, ou (2) reconhecer sua desagradável presença, de Rafael Sperling oscilam entre (Festa na usina nuclear)
mas promover um boicote invisível e silencioso o grotesco fantástico, com seu mi-
contra novas publicações. rabolante fluxo onírico, e o gro- Tínhamos muito em comum no que concerne a raposas e co-
A prosa e a poesia do Rafael Sperling inco- tesco satírico, com seu amontoado dornas. Ele teve mais experiências com raposas do que eu com codor-
modam porque o palhaço da família, o desordeiro de máscaras bizarras. Neste e na- nas, mas eu tive mais incidentes com codornas do que ele com raposas.
do condomínio, é antes de tudo um terrorista sa- quele, de que maneira nosso de- (Raposas e codornas)
caninha que aterroriza a ordem e a razão engano- moniozinho insidioso consegue
sas, de fachada. Por meio do risível, da comicidade. o efeito de estranhamento cômi- Minha avó era um lactobacilo vivo dentro de uma garrafinha
Mais precisamente por meio do riso exterminador, co? Por meio da repetição de frases de leite fermentado Yakult. Nós a conhecemos no dia do meu ani-
de natureza trágica (segundo a classificação de (anáfora), do exagero às vezes sur- versário, durante a festa. Abri o Yakult e lá estava ela, a nadar ale-
Clément Rosset), impulso subversivo que invoca realista e do acúmulo de imagens gremente.
e abraça amorosamente o caos, o acaso, o não-lu- insólitas. Linha após linha, Rafael (Surpresa de aniversário)
gar, enfim, o nada absoluto, espaço estrangeiro pra Sperling vai dispondo absurdo ao
sempre vedado à razão e à linguagem, sempre tão lado de absurdo, violência em ci- Dante Alighieri estava sentado em sua poltrona suja, ao la-
arrumadinhas. Nos textos do Rafael Sperling “o ri- ma de violência, sem o menor pu- do de sua esposa Gemma Donati, que vestia roupas sujas, assim co-
so é carregado de uma espécie de verdade mais ver- dor, de novo e de novo: repetição, mo Dante Alighieri, num ambiente sujo e fétido, repleto de restos de
dadeira e de realidade mais real do que aquelas que exagero, acúmulo. O uso com- comida e lixo espalhados pelo chão, com seus filhos igualmente sujos
nosso pensamento consegue apreender” (palavras pulsivo da anáfora o aproxima de e fétidos, e feios, assim como Dante Alighieri e Gemma Donati…
de Verena Alberti, a respeito do humor que promo- José Agrippino de Paula e André (Um dia comum para Dante Alighieri)
ve a vitória do caos sobre a aparência de ordem). Sant’Anna. E de Fausto Fawcett, é
Página após página, as travessuras deliran- claro, com quem Rafael Sperling Eu gosto das histórias que minha babá conta. São boas histó-
tes do Rafael Sperling vão detonando e deixando compartilha também o gosto por rias e têm sexo. Eu gosto de sexo, embora tenha apenas três anos. Eu
pelo caminho muitas vítimas: o falso bom-gosto personagens e enredos aloprados. nunca fiz, mas sei como é o sexo. Já vi na internet.
(kitsch), o decoro fajuto e a prudência covarde, a Quatro irmãos no TOC, na zom- (Eu gosto das histórias que minha babá conta)
vaidade intelectual, o papo-furado engajadinho baria e no grotesco.
(caça-clique), o tempo e o espaço realistas… Aliás, Sou o almirante de pupi- Estava espancando minha octogésima sexta mulher com um
nessa caminhada homicida o primeiro a tombar é las douradas e olhar penetrante. coador grave cintilante de gengibre turco modificado, quando meu
sempre o famigerado realismo psicológico, esse zum- De meu mirante, eu miro e revi- cachorro gângster exclamou:
bi oitocentista que ainda beija e abraça a maioria ro o moribundo mundo-mundo — Céus! Esqueci as chaves pardas do carro gelatinoso na gruta
de nossos ficcionistas. Contra o civilizado realismo vasto e imundo. Do ponto mais ecumênica gastroesofágica, no lado amarelo da faixa.
psicológico o autor carioca convoca o surtado rea- alto de meu altíssimo observató- (Cenas cotidianas)
lismo psiquiátrico, mais doentio e violento. rio, eu não procuro showmícios
Do ponto mais alto de meu altíssimo ob- nem fenícios. Eu procuro inícios, Eu, você e todo mundo, juntos, tocando punheta e ejaculando
servatório, é de monstros que eu estou falando. meus amores. Irresistíveis inícios. em rede nacional, ejaculando no Brasil todo, deixando-o encharcado
De monstros histriônicos. Criaturas chamadas E estou convencido de que Ra- de porra, ejaculando na cara das crianças, dos velhos e das mulheres,
Adágia, Fincher, Lócrio, Homem, Éz, Airam, Sa- fael Sperling é autor, mais do que ejaculando na cara estúpida da tua mãe, na bunda do teu cachorro
cul, Ataner, Dagda, Plonho, Horus, Clonérie, Té- qualquer outro, de um bom sorti- e no quadro-negro das escolas…
bia, Karício, Gagá, Ralência, Tíbio, Sleia, Jarst mento de irresistíveis inícios. (Ejaculando)
AGOSTO DE 2022 | 11

rascunho recomenda
Em Inventário das sombras, reeditado pela Record, o Bettina Bopp parte de um drama pessoal
colunista do Rascunho José Castello elabora 17 perfis de para compor Pra quando você acordar,
grandes nomes da literatura — de Clarice Lispector a José um livro sobre perda e ausência. Itamar,
Saramago; de Hilda Hilst a Caio Fernando Abreu. A nova edição irmão da autora, ficou em coma por
ainda vem acrescida de dois nomes: Raimundo Carrero, 15 anos. Durante esse tempo, Bettina
também colunista do jornal, e João Gilberto Noll. “Como um escreveu crônicas e cartas ao irmão
detetive de almas levantando pistas esparsas e incompreensíveis, inconsciente, que foram publicados em
Castello consegue unir o rigor da informação objetiva com a um blog. Nos textos, ela contava sobre
insegurança da literatura e do ato de escrever”, diz Cristovão Tezza tudo aquilo que gostaria de dizer a ele:
sobre o livro. Os textos são construídos em um misto de relato Inventário das sombras o nascimento do sobrinho, o cotidiano Pra quando
jornalístico e crítica literária, situando-se em uma “zona limítrofe”. da família, o dia a dia do tratamento. você acordar
JOSÉ CASTELLO
O conjunto, editado agora com nova capa e novo projeto gráfico, Record
Nessas conversas aparentemente íntimas BETTINA BOPP
é resultado de mais de duas décadas de entrevistas realizadas por 322 págs. e particulares, no entanto, surgiram Planeta
Castello, que já ganhou três vezes o Prêmio Jabuti. Completa o questões e sentimentos universais. 320 págs.
volume um autorretrato do autor, para quem o abandono e a
solidão dos escritores sempre foram questões importantes.
DIVULGAÇÃO Para celebrar seus 70 anos de vida e 54
de carreira, o poeta, letrista e dramaturgo
Geraldo Carneiro reúne lembranças da
infância e da juventude em Folias de
aprendiz. Em uma mistura de romance de
formação e crônica de costumes, Carneiro
mostra o olhar encantado do menino que
aportou ainda criança no Rio dos anos
1950, quando seu pai dava expediente
como assessor do presidente Juscelino Folias de aprendiz
Kubitschek. Com idas e vindas no tempo, GERALDO CARNEIRO
Geraldo, que é membro da Academia Intrínseca
Brasileira de Letras desde 2016, reconstitui 237 págs.
seu mapa de afetos e divide com o leitor
lembranças cômicas e comoventes.

O livro reúne contos inéditos do mineiro


Eduardo Sabino, escritos entre 2009 e
2019. Dividido em seis partes temáticas,
flerta com gêneros como o conto
fantástico ao mesmo tempo em que,
com humor e ironia, resgata memórias
da infância e adolescência. “Os contos
de Limbo traçam, de certa forma, o
caminho estilístico do autor, da sua estreia
até Estados alucinatórios (2019)”, Limbo
escreve o crítico Nélio Silzantov. “Além
EDUARDO SABINO
da heterogeneidade nos temas, os contos Caos & Letras
trazem ainda uma variedade de ritmos 260 págs.
e formas que, se não revelam distintas
facetas do autor, certamente ampliam os
alcances daquela voz autoral encontrada
em suas obras anteriores”, conclui.

Publicado originalmente em 2004,


este breve romance de Rodrigo
Lacerda ganha agora uma nova edição.
Lacerda narra a história de amizade
Vista chinesa Depois do fim: Conversas sobre
entre Marco Aurélio e Virgílio, desde
literatura e antropoceno a infância abastada no Rio de Janeiro
TATIANA SALEM LEVY
até a maturidade, imersa em segredos
Todavia ORG. FABIANE SECCHES
112 págs. Instante
e decepções. “Uma história humana,
136 págs. uma história que fala de sonhos, de
aspirações e de frustrações (muitas Vista do Rio
frustrações) de brasileiros vivendo na RODRIGO LACERDA
Casos de feminicídio e estupro batem recorde Organizado por Fabiane Secches, colunista cidade que é um paradigma do Brasil Companhia das Letras
ano a ano no Brasil, a ponto de se tornarem do Rascunho, Depois do fim: Conversas atual”, diz o texto de apresentação 128 págs.
um problema endêmico. Vista Chinesa, mais sobre literatura e Antropoceno reúne assinado pelo gaúcho Moacyr Scliar.
recente romance de Tatiana Salem Levy, parte ensaios literários que propõem reflexões
de um caso real, vivenciado por uma amiga da sobre dilemas atuais — catástrofe climática,
autora, para falar dessa tragédia brasileira. A extinção de outras espécies, exclusão social A poeta paranaense Vanessa C.
narrativa se passa em 2014, em plena euforia impulsionada pela exploração neoliberal, Rodrigues, autora dos livros Noturno e
que tomava conta do país antes de sediar a ameaça aos povos originários, entre outros cinza e Corpo outro, tem seu primeiro
Copa do Mundo e as Olimpíadas (2016). temas —, convidando o leitor a pensar sobre livro de prosa, Anunciação, relançado
Júlia, a personagem principal, é sócia de um como tecer, em conjunto, um novo começo. pela Arte e Letra. Na novela, a autora
escritório de arquitetura que está planejando Além de escritores de ficção, o livro conta narra as angústias de uma mulher que se
alguns projetos na futura Vila Olímpica. No dia com especialistas de outras áreas, como a sente “incompleta” e que carrega, além de
de uma dessas reuniões com a prefeitura, Júlia psiquiatria. Estão na coletânea Ana Rüsche, seus medos, uma criança. Os personagens
sai para correr no Alto da Boa Vista. A certa Aurora Bernardini, Christian Dunker, principais são jovens intelectuais que se
altura, alguém encosta um cano de revólver na Daniel Munduruku, Fabiane Secches, conheceram no mundo acadêmico. Em Anunciação
sua cabeça e a leva para uma área baldia. Ela é Giovana Madalosso, Itamar Vieira Junior, uma narrativa não linear, Vanessa, por
VANESSA C. RODRIGUES
estuprada. Deixada largada e exangue na mata, Maria Esther Maciel, Micheliny Verunschk, meio de seus personagens, reflete sobre Arte & Letra
ela se arrasta para casa, onde o namorado e Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo temas delicados, como os sentimentos 90 págs.
alguns familiares a esperam. Scott e Tulio Custódio. dúbios que a maternidade traz.
12 | AGOSTO DE 2022

alcir pécora
CONVERSA, ESCUTA

EM NOME DO NOME

C
onversa, escuta, o nome rém, o que empreendem essas fi-
desta coluna, apareceu guras caricatas, donos de fortunas
naturalmente quando repentinas e de origem obscura.
Rogério Pereira me con- Já o termo “trabalho” raramente
vidou para escrever no Rascu- consta de seu cartão de visita fo-
nho. Ao topar, pensei então que lheado a minério de grilagem e in-
não queria fazer mais do que isso: vasão de terras indígenas. E se são
conversar sobre crítica e literatura tais os heróis da república, quem
com eventuais leitores. O nome serão os bandidos, senão professo-
prosaico, percebo agora, acabou res, cientistas e trabalhadores sé-
fazendo um curioso contraponto rios em qualquer atividade?
à maneira atual de pensar a crí- Ainda em formação, os jo-
tica literária, que toma ares cada vens veem essas figuras eticamen-
vez mais desesperados. te e tecnicamente desqualificadas
É óbvio que as incertezas so- serem chamadas a ocupar ministé-
bre o valor da crítica e do trabalho rios chaves, que deveriam tratar da
literário sempre existiram, em al- educação, cultura e direitos huma-
gum nível, mas também me pare- nos, e entrar lá com a missão estri-
ce óbvio que aumentaram muito ta de desmontar o que mal havia
nos últimos anos, e não de ma- sido construído, a duras penas,
neira criativa ou perspicaz. Se me com sacrifícios de muitos. “Passar
permitem uma nota de lembran- a boiada” é o novo poema-ban-
ça pessoal — nada nostálgica, aliás deira pós-Oiticica; “vida de gado”
—, no meu tempo de graduação, deixou de ser refrão irônico do Zé
mesmo vivendo em plena violên- Ramalho para tornar-se programa
cia da ditadura Medici, quando certificado pelo agro-ogro.
por vezes desapareciam colegas Como supor que os mais
de classe ou conhecidos da facul- jovens estejam dispostos a entrar
dade e depois ficávamos sabendo para o serviço público, quando os
que estavam presos ou até balea- predadores começam o desmon-
dos, a ideia de relevância da lite- te justamente pela exoneração dos
ratura ou da crítica raramente era funcionários mais capazes no exer-

Ilustração: Tereza Yamashita


posta em questão. Ainda mais cício de suas funções? Qual o ho-
porque a crítica literária não era rizonte final da barbárie brasileira
pensada isoladamente do culti- atual? As eleições de outubro da-
vo do pensamento crítico em re- rão cabo dela? Escarmentado, sus-
lação a tudo, vale dizer, à política, peito que levará muito tempo até
à sociedade, à cultura, à arte e a si que o mar lave essa montanha de
mesmo. A ideia de crítica era, sem misérias que os jovens, hoje, co- vez resguardar a estrutura mental
exagero, um pressuposto da vida nhecem cedo demais. e os valores sem os quais já não
inteligente. Era o exercício palpá- Um submundo reles, anti- seríamos capazes de nos reconhe-
vel de uma forma de vida oposta cultural, veio à tona. Apedeutas cer? Essa é a alternativa apresenta-
ao que era sentido como ameaça são dominantes nas redes sociais e da por Jonathan Lear, professor de
imediata: a voracidade venal dos as ocupam com um à vontade dig- filosofia da Universidade de Chi- ca, em literatura como em tudo
empresários e a tara de torturar e no de clowns profissionais. Parece cago, no seu belo Radical hope o mais. Estar aberto à conversa
matar dos militaristas. que as redes nasceram para eles e — ethics in the face of cultural sempre implica em se mover na
Hoje, me espanta constatar, vice-versa: vestir-se de periquito, devastation (Cambridge, Har- contramão da violência. Além
os estudantes de Letras vivem um multiplicar delírios em Miami, fi- vard University Press, 2006), disso, construir argumentos crí-
momento essencialmente mais gurar armas com os dedos contra tendo como modelo a ação ex- ticos, ler o que for possível, estu-
traumático do que aquele da di- as cabeças de quem tem cabeça — traordinária de Plenty Coups, dar — nada disso se opõe à ação,
tadura — ao menos no tocante a haja disposição dionisíaca para vi- chefe indígena da nação Crow, antes, a qualifica. Dá qualidade
sua segurança sobre a futura pro- ver tanta realidade! que teve surpreendente êxito em até ao sofrimento, quando for
fissão de críticos e de professores. E não esquecer que o delírio salvá-la do genocídio anunciado. inelutável sofrer.
Perderam a certeza que tínhamos está alavancado em favor do con- Ou a alternativa certa es- Nada disso é novo, claro. A
de nossa importância social e ci- trabando de armas reais, acumula- taria, na direção contrária, em ideia do argumento como recurso
vilizatória. E pensando bem, qual das descontroladamente nas mãos livrar-se de todo restinho de espe- contra a violência está lá nos pro-
o espanto? Afinal, ainda no está- dessa nova categoria exemplar de rança a fim de livrar-se também legômenos da apologia da Retó-
gio inicial de formação intelectual “cidadãos do bem”, os “caçadores, do medo que ela implica? É o pro- rica por Aristóteles. E ainda no
e profissional, estão vivendo num atiradores e colecionadores”, e os posto no célebre dictum estoico, início do período moderno, Bal-
ambiente público inteiramente “milicianos”, que não foram expli- que parece talhado para a misé- desar Castiglione, no seu célebre
degradado, sob ameaça constante citados nela. Quando os abilolados ria do presente: nec spe, nec metu. Libro del Cortegiano, afirma-
de golpismos. Os 7/9, o passado começarão a entrar nos campi, pois Pode não soar muito animador, va que, na vida civil e intelectual,
e o próximo, estão aí mesmo pa- em todos os outros lugares já es- mas li em algum lugar que Cí- fora da violência das campanhas
ra assistirmos a exibições obscenas tão? Quando se sentirão convoca- cero o aplicou no sentido positi- militares, só contribui verdadei-
de boçalidade patriótica. dos a apontar para os professores vo de valorização da ação contra ramente a gente que manifesta
No panteão sempre duvido- os seus instrumentos de persuasão o temor paralisante das expectati- alguma discordância. Para ele, re-
so de heróis nacionais, desta vez, extra-técnica a fim de dar cabo de vas no pior cenário possível, quan- petir o que já fora dito não po-
superaram-se. A cada dia, conde- argumentos discursivos? do a própria lei e o estado deixam dia ser verdadeiro, nem aprazível,
coram-se novas figuras bizarras, Diante de tal realidade, de ser inteligíveis. pois desvalorizava a companhia da
histriônicas, bregas a ponto de que fazer? Tatear os signos ainda Seja como for, hoje, qual- gente com quem se estava, desistia
dar inveja ao Falcão, muitas de- ininteligíveis de uma “esperan- quer tema de conversa sempre gi- da graça do diálogo, base do con-
las ostentando epítetos de players ça radical”, sem sustentação em ra em torno do damage control. E vívio pacífico, seja colaborativo ou
e brokers, ou de pastores e empre- qualquer circunstância conheci- é justamente como estratégia de confrontacional.
sários, pois, nesse estranho mun- da, a qual, entretanto, possibilite contenção do desespero que, pa- Onde se precisaria mais de
do às avessas, tudo parece que vem agir defensivamente num tempo ra mim, faz sentido reafirmar a conversa e crítica do que no Brasil
a dar no mesmo. Não é claro, po- de devastação cultural? Assim tal- relevância da conversa e da críti- da canga e do cangalho?
AGOSTO DE 2022 | 13

Como sair
RAFAELA CASSIANO

Ao se escrever esse gêne-


ro de narrativa, que focaliza um
governo de extrema direita com
características fascistas sempre a

do abismo?
incentivar seus seguidores a agi-
rem de modo violento, a dizer que
todos os cidadãos precisam estar
armados para acabar com a vio-
lência, qual estrutura este roman-
ce poderia ter? Que história, além
As discussões políticas e suas da que traz, poderia apresentar?
consequências no Brasil atual estão no É bom afirmar que o autor não
menciona em momento algum o
centro de O intérprete de borboletas nome do presidente ou de qual-
quer outro político. No entanto,
sabe-se perfeitamente a que e a
HARON GAMAL | RIO DE JANEIRO – RJ quem ele está referindo-se.

À flor da pele

N
Embora tenha domínio
ada melhor ao mo- lhões de seguidores. Todos podem da sua escrita, é possível ao lei-
mento político atual, se manifestar. Isso é importante. tor atento perceber alguns eixos
quando todas as saí- O que predomina, no entanto, narrativos que poderiam ter ca-
das parecem fechadas são afirmações sem fundamentos minhos diferentes. A história é
ou em perigo, do que um roman- e acusações gratuitas, chegando ao contada muito à flor da pele, com
ce começando com um pesadelo: linchamento digital, isto é, a cul- personagens que defendem tanto
“um túnel escuro, que acaba no tura do cancelamento. um lado quanto outro. Sobressai
abismo da pura escuridão”. Todos o lado que está causando maior
os gestos parecem impotentes; to- Lados opostos malefício, porque quem está no
das as ações, desarrazoadas. Com O intérprete de borbole- poder os está a incentivar. Talvez
a chegada ao poder da extrema di- tas, romance de Sérgio Abran- com um romance mais intimis-
reita, vivemos uma era de ruptu- ches, tem o enredo de um Brasil ta, de forma que o foco princi-
ras, não só nas instituições, mas, governado pela extrema direita, pal fosse a vida pessoal de cada
principalmente, entre amigos e onde o fascismo cresce dia a dia e, personagem, as mazelas políticas
dentro das famílias. principalmente, agride. O autor pudessem se apresentar de mo-
É possível que jamais tenha cria personagens que atuam nos do mais natural. Fica parecendo
havido um período de tamanha lados opostos, mesmo perten- que os personagens não possuem
discórdia. Muitos podem dizer cendo às mesmas famílias. Antes, vida privada, que isso se perdeu
que, no passado, o Brasil também eram amigos, mas, no momento devido ao momento político. As
esteve dividido: esquerda e direi- atual, já não conseguem encon- personagens acabam transmitin-
ta, comunismo e integralismo, trar-se. Irmão contra irmão, mãe do certa artificialidade, estigmati-
golpe militar e resistência arma- contra filha, etc. zadas por ações referentes ao lado
da etc. No entanto, os dias de ho- Difícil trazer para a litera- a que pertencem.
je são mais radicais. Não por ações tura o assunto que mais nos inco- Outro problema fácil de
políticas fundamentadas por algu- moda no momento. A discussão distinguir são os longos trechos
ma razão ou teoria filosófica, mas do contemporâneo precisa de em letras menores, que focalizam
pelas possibilidades que as redes tempo, de amadurecimento, daí um tipo de reflexão das persona-
sociais oferecem quando o caso é o risco de se ficcionalizar o pre- gens envolvidas na ação naquele
a cultura do cancelamento. Uma sente que está a nos roer os pés. momento. Por exemplo, quan-
ou várias pessoas podem ser lin- Sérgio Abranches enfrenta o ris- do Maria está conversando com
chadas moralmente e jamais se re- co, expõe-se a cometer algumas o pai, ou com a namorada de-
cuperarem. Por exemplo, às vezes, falhas que, na verdade, não são le, logo depois há um trecho em
observamos que alguém é acusa- suas, mas da falta do tempo que que desaparece o narrador con-
do de determinado crime ou de- ainda não passou. vencional em terceira pessoa para
lito, mas depois, caso nada tenha No romance, todas as espe- dar lugar a um narrador em pri-
sido provado, não somos informa- ranças parecem solapadas pelo au- meira, que seria a voz da mesma
dos. Ações de linchamento moral toritarismo, os personagens mais personagem e suas reflexões. Tais
são muito comuns na Rússia. Há sensatos perdem-se em algumas reflexões, algumas vezes, soam
O AUTOR
poucos dias, esteve em cartaz o fil- dúvidas, e chega-se a dizer que os redundantes. A estrutura ficaria
me Kompromat, do diretor francês comportamentos extremos são de SÉRGIO ABRANCHES mais leve e atraente com a utiliza-
Jérôme Salle, em que um diretor ambas as partes, o que na maio- ção do discurso indireto livre, tão
Nasceu em Curvelo (MG) e mora no
da Aliança Francesa em Irkutsk, ria das vezes não é verdade. No em voga em muitos momentos da
Rio de Janeiro (RJ). É sociólogo,
na Sibéria, foi acusado de abuso terceiro terço do livro, percebe-se nossa literatura, que deu solução a
escritor e comentarista da rádio
sexual contra crianças. Nada foi que o narrador, com razão, vê nos CBN na série Conversas de política.
muitas narrativas, tornando seus
provado. Ele teve de fugir e escre- personagens de esquerda um po- É autor, entre outros, de No tempo autores mestres no gênero.
veu um livro que originou o fil- der maior de reflexão. Como é o dos governantes incidentais, A era No final do romance, ain-
me. O Brasil, infelizmente, segue caso de Afonso e de Eduardo, um do imprevisto: a grande transição da temos a chegada da pandemia
o mesmo caminho. O oponente, escritor e o amigo, que sempre se do século XXI, Copenhague ao Brasil. O autor consegue apre-
sobretudo o extremista de direita, mostraram mais sensatos, intelec- antes e depois, Que mistério tem O intérprete de borboletas sentar a luta contra o vírus nas
não aceita o contraditório nem o tuais e reflexivos. Clarice? e O pelo negro do medo. SÉRGIO ABRANCHES várias classes sociais. Há aqueles
debate. As redes sociais estão ple- A narrativa é dividida em Record que conseguiram fazer o confina-
237 págs.
nas de exemplos assim. Essas mes- fragmentos, com o nome do local mento numa casa de campo ou de
mas redes podem não ter culpa, onde acontece a ação: São Paulo, praia, enquanto outros, habitantes
mas sabemos quem são seus pro- Morumbi; São Paulo, Vila Mada- das favelas e dos cortiços, ficaram
prietários, o tanto que lucram e lena; Rio de Janeiro, Leblon, etc. jogados à própria sorte.
também sabemos a responsabili- As personagens vão aparecendo, Apesar das questões e crí-
dade que deveriam ter. num constante ir e vir, à medida TRECHO ticas enumeradas acima, o saldo
No passado, dependíamos que os conflitos se intensificam. O intérprete de borboletas deste romance é bastante positi-
dos jornais diários, de papel. Cada Além de escritores, há advoga- vo. É importante termos autores
um comprava o que mais lhe agra- dos, estudantes, intelectuais, e sempre a colocarem em questão
dava, o que mais estava de acordo pessoas de extrema direita co- Afonso, Esther, Eduardo e Carla participavam de todas as os mais diversos problemas que
com sua opinião e ponto final. No mo Isaura, mãe de Maria, e seu caminhadas de protesto, sempre ao lado daqueles que pediam que vivemos, tanto a nível individual
momento, as redes sociais fomen- irmão, o assassino do grafiteiro, fossem pacíficas. As demandas da multidão eram as mais variadas, como a nível político. O modo
tam facilidades que não existiam que não hesita em atirar num ar- como isso acontece é, na verda-
com as facções se diferenciando pelas palavras de ordem nos
antes. Uma facção de direita po- tista de rua negro que tem nos de, característica ou estilo de cada
de criar um jornal muito bonito, muros da cidade o único local cartazes e nas faixas. O fio delicado que unia aquelas tribos era a um. O que vale mesmo é comba-
publicar notícias falsas e ter mi- para apresentar sua arte. rejeição ao governo e ao autoritarismo crescente. ter a mentira.
14 | AGOSTO DE 2022

A
pedra de Drummond ocupa uma dupla fun-
ção na poesia brasileira: como pedra angular
e fundamental. Na obra de Nuno Ramos, o
poeta mineiro é o mestre de obras, um dos
empreiteiros da sua produção artística e literária —
cargo que divide com Cabral e Guimarães Rosa. A sua
obra visual — telas, instalações, vídeos e performan-
ces — e sua produção literária estão fortemente cal-
cadas nesse caminho de ruptura de forma e conteúdo,
de desvio da norma.
Seja na Bienal de 2010, quando criou a instala-
ção Bandeira branca, que ocupava a entrada do Masp
e causou alvoroço por ter dois urubus vivos — que, va-
le lembrar, eram alimentados e recebiam água — ou
em 111, instalação de 1992 em homenagem às vítimas
do massacre do Carandiru, ou ainda, na performance
Marcha à ré, de 2020, encampada na avenida Paulis-
ta e que tocava o Hino nacional de trás para frente, co-
mo protesto contra o descaso do governo brasileiro no
combate à covid-19, Nuno Ramos é um desconstru-
tor, alguém mais interessado em desfazer o servilismo
burguês ou se afastar do confortável ambiente insípi-
do das galerias e museus, levando o caos e a desordem.
Esse é também espírito de sua literatura. Foo-
quedeu (um diário), volume que reúne fragmentos
de pensamentos sobre a arte, política, democracia, li-
teratura e tantos outros assuntos, parece incrustado no
caminho aberto com seu primeiro livro, Cujo (1993),
porém, avança ao estabelecer como eixo condutor a
aleatoriedade e a impossibilidade de o autor fechar-
-se em si mesmo em uma narrativa linear. Da mesma
forma que Verifique se o mesmo (2019), também
uma obra aberta sobre o agora a partir de inúmeras
perspectivas, Fooquedeu é uma resposta ao que Hal
Foster chama, em What comes after farce? (2020),
de pós-vergonha. Nuno e Foster concordam em di-
zer que é impossível apequenar líderes políticos como
Bolsonaro e Trump diante do real, justamente, por-
Nuno Ramos por Fabio Abreu que, na era da pós-verdade, nada os embaraça. Essa
linhagem, uma extrema direita superinformacional,
cria o purgatório democrático, uma instituição falsa
e capenga, que deixou de ser um lugar dantesco para
se tornar kafkiano. Fragmentos como JN, 16.3.2016,
Canalhas, PIB negativo e o apêndice O baile da ilha fis-
cal não escondem o mar de lama surgido desde as Jor-
nadas de Junho, o “movimento popular” que acabou
por revelar o MBL e escancarar o neofascismo, perso-
nificado pelo bolsonarismo.
Desde o título, uma brincadeira com o sotaque
da artista suíço-brasileira Mira Schendel em dizer “foi
o que deu”, criando um jogo de palavras entre o fuck e
o fodeu, Nuno Ramos estabelece uma relação em que
os limites são esgarçados. Refletindo sobre a aceleração
da modernidade — em Descanse em paz, Preferiria não
fazê-lo, por exemplo — e a solidão das cidades — Pas-
teur, Direito à preguiça e o Mais sozinho –, a obra é uma
conversa machadiana, Caro leitor, cara leitora, com o
leitor. No show de horrores que apresenta, tem seu ápi-
ce no mendigo eletrocutado em Belo Horizonte e na

MANIFESTO
apatia de todos frente a tragédia de um “merduncho”
(para resgatar João Antônio), coloca-se na tradição da
sua geração, mesmo que a negue. E essa negação, ex-
plica Geoff Dyer em seu também fragmentário Wor-
king the room (2010), é o que reforça essa ideologia
rebelde que imperou no Brasil nos anos 1980, o lim-
bo entre a ditadura e a reabertura à democracia, e per-

ICONOCLASTA
mitiu não só o surgimento do rock nacional — Nuno,
por sinal, era da turma dos Titãs —, mas também uma
arte capaz de dialogar com as novas demandas sociais.
Aqui, Tunga, Leonilson, Beatriz Milhazes, Alex Vallau-
ri e Daniel Senise fazem parte dessa mesma trupe, tru-
pe que queria olhar adiante. Lá fora, Basquiat, Keith
Haring, Jeff Koons e Damien Hirst, ainda que guar-
dada as devidas proporções, também.

Fascismo à brasileira
Em tempos como os nossos, em que lidamos
com o negacionismo generalizado em tantas esferas, é
Em Fooquedeu (um diário), Nuno Ramos escancara difícil enxergar a diferença entre o show dos horrores
e a sociedade do espetáculo. Nesse sentido, Fooque-
as portas abertas de um inferno chamado Brasil deu (um diário) parece um manifesto iconoclasta.
Como Gordon Matta-Clark, o artista que fatiava
casas e prédios, Nuno Ramos implode a memória,
JONATAN SILVA | CURITIBA – PR atingindo seu ápice, em 2012, com a instalação Ai,
pareciam eternas! (3 lamas), montada em galeria mi-
neira — e inspirada no poema Morte das casas de Ouro
Preto, de Drummond — e que soterrava de lama ré-
AGOSTO DE 2022 | 15

EDUARDO ORTEGA

O AUTOR
plicas da casa em que o artista nasceu, da casa da avó Chegando na Argentina, Gullar se deparada com
ou onde cresceram seus filhos. Em uma das proposi- NUNO RAMOS outro generalato e volta ao Brasil, em regresso, as-
ções de Tractatus logico-philosophicus, Wittgens- sim como no caso de Chico Buarque, patrocinado
Nasceu em São Paulo (SP), em 1960.
tein afirma que tudo o que existe no pensamento pode por Vinicius de Morais. Fooquedeu (um diário)
Considerado um dos mais importantes
existir no mundo real. Poucos foram os artistas que artistas plásticos brasileiros, é escritor,
é isso também: o retrato de uma democracia fragi-
conseguiram expressar a relação entre mente e reali- cineasta, cenógrafo e compositor.
lizada, que encurrala e asfixia, que imobiliza e ma-
dade, ou seja, mente e corpo/mundo físico. Começou a pintar em 1984, quando passou ta por inanição e inação do Estado.
Muitos dos textos que integram o metadiário de a fazer parte do grupo de artistas do ateliê
Ramos se parecem com as casas sob o barro — repre- Casa 7, recebendo vários prêmios nacionais A extinção é para sempre
sentação que ganharia outros significados após os de- e internacionais. Estreou na literatura Em Fooquedeu (um diário), Nuno Ramos
sastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019) —: é com Cujo (1993). Publicou também O pão cria mesmo um itinerário entre as tensões que atra-
preciso chafurdar o passado, colocá-lo em xeque, para do corvo (2001), Ensaio geral (2007), Ó vessam a sua obra e o seu pensar artístico. A me-
tentar entender o presente. Em 2015, no auge do soft (2009), O mau vidraceiro (2010), Verifique táfora que melhor explica essa relação é a fita de
porn nas livrarias, publicou Sermões, uma coleção de se o mesmo (2019), entre outros livros. Moebius e a ideia de infinito. De alguma manei-
poemas eróticos cuja tessitura dialoga com a forma- ra, há uma conexão entre os textos e que dá ao li-
ção do país. Os sermões, textos religiosos e alegóricos, vro uma ideia de unidade. E essa unidade dá corpo
no livro de Nuno Ramos retornam à função primei- à tensão. Ensaio geral (2007), a primeira reunião
ra do sexo: o encontro cego entre os corpos. Aqui, a de escritos e ensaios do artista, já buscava essa mes-
religiosidade volta ao caráter primitivo da vida, algo ma tensão, voltando-se para dentro. Esse olhar, co-
que já havia se debruçado sobre em O pão do corvo mo uma força centrífuga, é, propositalmente, um
(2002) e O mau vidraceiro (2010), e Ó (2009), que evento de ruptura — como já dito antes. De qual-
lhe rendeu o Prêmio Portugal Telecom. Como se vê, quer forma, há nos textos de Fooquedeu uma fo-
seus textos são pontas de iceberg: ler, superficialmen- tografia em altíssima exposição.
te, não é suficiente. É preciso mergulhar. Essa estraté- Robert Capra, que registrou o Dia D em suas
gia de narrativa fica ainda mais notável em Fooquedeu lentes, dizia que o mais importante está na força da
(um diário). Muitas de suas anotações são lembretes cena — naquilo que ela tem a mostrar — e não na
das pequenas e grandes tragédias brasileiras. É uma li- perfeição técnica. Nuno Ramos está nessa mesma
teratura que não aceita passividade. Fooquedeu (um diário) linhagem. A coloquialidade dos seus textos — o
Quando participou do programa Roda viva, anos NUNO RAMOS tom de conversa de bar, de uma anotação inocente
atrás, o artista disse que a arte era a transformação da Todavia — é a grande força da sua narrativa. Essa pessoali-
208 págs.
limitação em linguagem. No texto que abre o volume, dade, em um diálogo direto com seu interlocutor,
Montagem, Ramos volta a esse mesmo tema, entretan- transforma os temas mais complexos, como a mon-
to, de maneira diferente, explorando a sua necessida- tagem de uma obra, em uma experiência íntima,
de de produzir e o seu desejo de não se repetir. Não é porém, coletiva. Diferentemente do que afirma no
à toa que, em geral, Nuno não remonta as suas obras e TRECHO penúltimo texto, Introdução, o livro não está desa-
não faz coletâneas de seus textos já publicados. O que tualizado e tampouco extemporâneo.
Fooquedeu (um diário)
está no mundo, simplesmente, está — não há por que Quem espera de Fooquedeu (um diário) a
voltar. Nuno Ramos representa o avesso do artista em logicidade de uma linha de produção literária irá
greve de fome: é alguém sempre pronto a devorar, a A única coisa que a obra se deparar com o completo oposto e, a fórceps, se
consumir e devolver o que mundo oferece, como se verdadeira entrega exclusivamente dará conta de que este não é um livro fácil: é uma
fosse sempre necessário — em uma urgência que nada obra que releva o mais bárbaro do Brasil, que mos-
ao artista não é seu sentido (há
tem de banal — estar na contramão, estar no sentido tra as portas abertas de um inferno que existe en-
contrário e dançar em campo minado. sempre algo de constrangedor quanto projeto de país, que sucateia as instituições
Nessa encruzilhada de narrativas e de sentidos, no artista explicando a sua públicas — que viram balcão de favores e nomea-
em que o espaço urbano é algoz e exílio, Nuno traz à obra), mas o aroma da sua ções apadrinhadas — e que leva o homem médio
tona em sua obra versos de Poema sujo, de Ferreira Gul- ao nocaute pela burocracia e imprecisão de dimen-
sucessora — a próxima obra
lar, e que dizem: “O homem está na cidade/ como uma sões continentais. É a materialização da frase mais
coisa está em outra/ e a cidade está no homem/ que es- que, necessariamente, falseará e célebre de O coração das trevas, de Conrad —
tá em outra cidade”. Quando escreveu essas linhas, em relativizará esta que temos diante “O horror! O horror!” — ou de uma de suas obras
1976, o poeta estava contra a parede. Havia deixado do nariz. Essa tradição é o beijo de mais recentes, A extinção é para sempre. Ao mes-
o Brasil para escapar ao regime militar, escolhendo o mo tempo, é um antídoto contra tudo isso, uma
judas de todo artista, uma espécie
Chile. Pouco depois de sua chegada Pinochet matou luz no final do túnel e uma ponta de esperança de
Allende e estabeleceu a ditadura na terra de Neruda — de sina biográfica — não se deter que podemos ser, enfim, um povo em bons termos
que talvez também tenha sido assassinado pelo general. naquilo que se produziu. com seu presente.
16 | AGOSTO DE 2022

wilberth salgueiro síveis/ à palma da mão./// Mas as


coisas findas,/ muito mais que lin-
SOB A PELE DAS PALAVRAS das,/ essas ficarão”. É um poema,
se vê, feito o de Ricardo, que fala

A UM ITABIRANO, COM AMOR,


de amor e, desde o título, de me-
mória. Amor e memória, porque
se perdeu o objeto amado, estrutu-

DE RICARDO VIEIRA LIMA


ram o poema do autor de Aríete.
O fecho do poema chama
a atenção, mesmo visualmente:
onde se esperava mais um terce-
to, vem um monóstico — incisi-
vo: “Amor que não me sai mais
da memória”. Também o itabira-
E como eu percorresse atentamente O poema parece, na primei- ecoa um clima bandeiriano, lem- no não esquece Itabira, de onde
uma obra de Minas, majestosa, ra leitura, que vai seguir a trajetó- brando Consoada e a visita: “Quan- vem “a vontade de amar”, e essa
que ilumina corações e mentes ria do sujeito — que, desconfiado, do a Indesejada das gentes chegar/ memória “dói”, pois que essa au-
resiste às promessas da “máquina (Não sei se dura ou caroável),/ Tal- sência segue com ele vida afora.
e devolve ao povo a sua rosa, do mundo” —, não só por conta vez eu tenha medo./ Talvez sorria, No livro de Ricardo, o poema se-
descobri que o poeta é, sobretudo, do conhecido esquema rímico de ou diga:/ — Alô, iniludível!”. De guinte fala de Ana Cristina Ce-
um exemplo de vida dolorosa. Dante (adotado por Drummond Bandeira a Ricardo, “chegar” vira sar, para quem Drummond fez
parcialmente, pois dispensa as ri- “chega” e “iniludível” vira “não me o poema Ausência: “A ausência é
Mas a vida, como se sabe, é tudo, mas em aba bcb cdc etc.), mas so- iludo”. (Bandeira e Drummond, um estar em mim”.
e a morte, essa visita derradeira, bretudo por parodiar o início do também, amicíssimos.) Tantas conexões sugerem
pode atrasar, mas chega — não me iludo. consagrado poema: “E como eu A quarta estrofe continua que o eclético paideuma poético e
palmilhasse vagamente/ uma es- o festival de paródias, intertex- a imensa “variação formal” (Mar-
A lição dessa obra é a primeira: trada de Minas, pedregosa,” se tos e lembranças. Em 1962, se cos Pasche, no prefácio ao livro)
nascemos para amar. O resto é espuma transforma em “E como eu per- lança Lição de coisas, e Ricardo de Ricardo Vieira Lima se asse-
que se esvai entre todas as besteiras corresse atentamente/ uma obra de não perde a deixa: “A lição dessa melham, mutatis mutandis, ao im-
Minas, majestosa”. Ricardo man- obra é a primeira:/ nascemos pa- pressionante leque de referências
que dizemos e fazemos. Em suma, tém o decassílabo e a rima “entre ra amar”. Em conhecida crônica, e formas do próprio Drummond.
o amor, essa “palavra essencial”, poemas”: vagamente/atentamen- Clarice Lispector declara: “Nasci Longe de qualquer pretensão de
justifica a vida. Então, nenhuma te, pedregosa/majestosa. Tal qual para amar os outros, nasci para es- unanimidade, Drummond, o ca-
Drummond faz com Machado, o crever e nasci para criar meus fi- ra, atrai a simpatia de público e
outra é mais bonita. Ou mais banal. bruxo do Cosme Velho, Ricardo lhos”. Drummond, em Amar, de de crítica. O prefácio de Pasche,
Quando o poeta itabirano nasceu, faz com Drummond, dedicando- Claro enigma, concorda: “Que a apresentação de Italo Moriconi,
há cem anos, um coro celestial -lhe amor em versos. A troca de pode uma criatura senão,/ entre a caricatura de Caruso, os muitos
“bruxo” por “itabirano” parece criaturas, amar?”. (Carlos, Clari- agradecimentos, a participação
de anjos, na verdade, emudeceu. estender ao itabirano o carinho- ce.) O amar — talvez a maior das na orelha de Saramago, Houaiss,
Porque diante de um ser muito amoroso, so apelido de bruxo. Se bruxo é inquietudes de Drummond, di- Cabral e Marly, Jorge Amado, Ol-
não há anjo, arcanjo ou orfeu quem faz mágica (mágica com a ria Antonio Candido. Sem amor/ ga Savary, Alexei Bueno, Geraldo
linguagem), o apelido cabe de fato amar, “o resto é espuma” — e na Carneiro, Tanussi Cardoso e ain-
mais puro, mais sagrado, mais zeloso. a ambos. (À dupla, se irmana ou- palavra “espuma” a insinuação da da outros poetas demonstram não
Quando o poeta itabirano se foi, tro mineiro, Guimarães Rosa: em “écume” do Brinde (Salut) de Mal- só o merecido afeto que Ricardo
em busca de um amor tão venturoso, Um chamado João, Drummond larmé, poeta que, aliás, se inscreve recebe, mas dão a ver o também
diz “Mágico sem apetrechos”. Li- no majestoso Áporo, mal disfar- impressionante leque da recepção
que unia pai e filha, os dois, ção entre amigos.) çado na expressão “sem alarme”. (calorosa, aliás) de seu livro.
irmanados na alegria e na dor, O desejo de percorrer a Ricardo Vieira Lima, poeta e en- O poema é, sim, uma de-
não sabia que, quinze anos depois, majestosa “obra de Minas” — e saísta, parece ter em mente todas claração de amor, e é também
ir com ela dialogando por meio essas — e quantas outras? — insi- uma poética, que se quer próxi-
um obscuro poeta, em seu louvor, de mil alusões — não elimina o nuações. Cabe a cada leitor e seu ma da poética do objeto/sujeito
dedicaria estes versos à glória diálogo com alusões a outras mil repertório a decifração dos códi- amado. Poéticas que se transfor-
de um itabirano, com amor. obras e autores. Na expressão “co- gos: trouxeste a chave? mam em muito mais do que se-
rações e mentes”, mesmo desliga- Adiante, o anjo torto, que te faces. O diálogo intertextual e
Amor que não me sai mais da memória. da do filme com título homônimo abre Alguma poesia, obra pri- a citação são recursos frequentes
em português (Hearts and minds, meira de Drummond, no Poema desde sempre, e na poesia contem-
Em verso de seu livro Raro mar (2006), Ar- no original), o poema indica que de sete faces, compõe um coro no porânea — arena de profissionais
mando Freitas Filho sintetizou um sentimento: essa obra aciona (“ilumina”) tan- poema de Ricardo. Terceto a ter- — se destacam. Antoine Com-
“Drummond é o cara”. Sentimento que se confir- to o sentimento quanto o pensa- ceto, vem-se desenhando a amoro- pagnon diz que a citação é uma
ma entre poetas e críticos, e entre leitores em geral, mento. Por extensão, para a lida sa homenagem. Fala-se, enfim, da metáfora e que “põe em circula-
tamanha a presença do gauche em nossa historio- com ela, é necessário um misto de filha e do pai, “irmanados na ale- ção um objeto, e esse objeto tem
grafia poética, como tão bem se mostra no estudo emoção e razão, é necessário mo- gria e na dor”, que se foram. Mas um valor”. Citar por citar pode ser
Drummond — a invenção de um poeta nacio- vimentar um vasto mundo, fazer ficaram os poetas, entre os quais o algo enfadonho, pedante, desne-
nal pelo livro didático (2013), de Maria Amélia com que o amor se disfarce em “obscuro poeta” que assina o poe- cessário. Quando, contudo, a ci-
Dalvi. O mineiro se transformou na própria pedra paixão medida (e os decassílabos ma — e no termo “obscuro” um tação se incorpora com engenho
no sapato: não se pode caminhar sem que a precio- são uma parte visível desse disfar- misto de modéstia (diante de tan- ao poema (seja no poema em fo-
sa pedra incomode. Ana Cristina Cesar, em poema ce). Se Carlos dá ao mundo A ro- ta vaidade da tribo dos poetas) e co, seja em tantos outros de Aríe-
lapidar, registrou: “pedra lume/ pedra lume/ pedra/ sa do povo, Ricardo versifica: “e grandeza (no gesto mesmo de me- te), algo acontece. Como diz Italo
esta pedra no meio do/ caminho/ ele já não disse devolve ao povo a sua rosa”, in- dir-se em face do poeta canônico), Moriconi, “o poeta Ricardo nasce
tudo,/ então?”. Aos poetas, afetados pela sombra do vertendo os substantivos e refor- além da possível alusão ao “claro” na terra fecundada por esses mes-
sagrado, resta lidar com a pedra, burilando-a, edu- çando a ideia de que o poeta deve, enigma do anagrama Carlos. O tres, mas deles se descola, e deco-
cando-a, cada qual com seus modos de dizer. Aqui, sempre que possível, servir — ela- verso final, isolado, condensa mui- la”, com “cuidado e consciência,
Ricardo Vieira Lima escolhe um caminho afim ao borar uma “poesia para”. tas surpresas: “Amor que não me disciplina e lucidez”.
caminho do próprio Drummond: a multiplicação Percorrendo a obra do poeta sai mais da memória”. A máquina do mundo de
— de faces, de mundos, de citações. de Itabira, o poeta de Niterói des- Porque Memória, de Cla- Ricardo, com toda a força da
Boa parte desses caminhos o autor de Aríe- cobre nele “um exemplo de vida ro enigma (1951), é um dos poe- “madureza, essa terrível prenda”,
te — poemas escolhidos (1990-2020), lançado dolorosa” (dor que vai se esclare- mas mais admirados e admiráveis sim, se descola e decola. A glória
em 2021, esclarece generosamente ao leitor na se- cer quando, no penúltimo terceto, de Drummond, é um poema — do poeta — pensando em Drum-
ção Escrever é cortar poemas (depoimento e notas), o poema fala da morte da filha Ma- assim como A um itabirano, com mond, “Amor que não me sai
em que diz da publicação original do poema em ria Julieta e, doze dias depois, de amor — feito em tercetos (aab/ mais da memória” — é que agora
2002 e de algumas citações: o título, vindo de A Drummond). Contudo, apologé- aab/ aab/ aab), com rimas regu- seu poema, A um itabirano, com
um bruxo, com amor (A vida passada a limpo); a tico e afirmativo, o poema — en- lares em i-i-ão e em redondilha amor, fica, também ele, a ilumi-
terza rima, herdeira de A máquina do mundo (Cla- tão em homenagem ao centenário menor. Recordemos: “Amar o per- nar corações e mentes, a partir de
ro enigma); e um verso da quinta estrofe, extraí- de nascimento do gauche — cele- dido/ deixa confundido/ este cora- Aríete, esse “livro essencial”, pro-
do de Amor — pois que é palavra essencial (O amor bra a vida, sabendo que “a morte, ção./// Nada pode o olvido/ contra paroxítono, excelente síntese da
natural). Boas e generosas dicas, mas, sob a pele essa visita derradeira,/ pode atrasar, o sem sentido/ apelo do Não./// As diversidade de nossa poesia con-
das palavras, há mais, muito mais. mas chega — não me iludo”. Aqui, coisas tangíveis/ tornam-se insen- temporânea.
AGOSTO DE 2022 | 17

inquérito
SHEYLA SMANIOTO

NO CORAÇÃO DA ESCRITA

P
RAPHAEL PICERNI

ara Sheyla Smanioto, a escri-


ta é algo que “se sente”. Que
está em plena sinergia com
os movimentos e os estímu-
los do corpo. “Eu sento diante do texto
e se meu corpo enrijecer, algo precisa
ser modificado. Então, mexo dentro da
carne do texto, com calma e ouvindo
sempre o coração do que já foi escrito”,
diz sobre seu método de escrita.
Ela se define como “praticante
de escrita e de outras artes oraculares”
e acredita que o maior inimigo do es-
critor é o neoliberalismo.
Nascida em Diadema, no ABC
paulista, em 1990, Sheyla venceu o
Prêmio Sesc de Literatura e o Prêmio
Machado de Assis da Biblioteca Na-
cional com seu romance de estreia,
Desesterro. O livro ainda foi finalis-
ta do Prêmio São Paulo de Literatura.
Ela gostaria de tomar um ca-
fé com a americana Toni Morrison
e cita Pedro Páramo, do mexicano
Juan Rulfo, como um “livro impres-
cindível”. Em 2020, Sheyla lançou
seu segundo romance, Meu corpo
ainda quente.

• Quando se deu conta de que que-


ria ser escritora?
Foi um arrepio na espinha em
31/12/2006.
• O que considera um dia de tra- • Que assunto nunca entraria Encontrar a palavra certa. Presen-
• Quais são suas manias e obsessões balho produtivo? em sua literatura? ciar o nascimento de uma obra e
literárias? Quando me sinto mais viva de- Qualquer coisa que eu es- do que ela inaugura no mundo.
Eu sento diante do texto e se pois de escrever. crevesse aqui me assombraria de- Ter um sonho revelador. Viver a
meu corpo enrijecer, algo precisa ser pois, prefiro não. queda livre da inspiração.
modificado. Então, mexo dentro da • O que lhe dá mais prazer no pro-
carne do texto, com calma e ouvindo cesso de escrita? • Qual foi o lugar mais inusi- • Qual dúvida ou certeza
sempre o coração do que já foi escrito. Tocar o mistério, dançar com os tado de onde tirou inspiração? guiam seu trabalho?
Se o coração parar de bater, Ctrl+Z. livros já escritos, sentir a morte dan- Acredita que nenhum lugar A imaginação é uma par-
Se ele continuar a bater, sigo. Sigo até çando junto, me sentir mais viva. En- me veio à cabeça? Só alguns tro- te do corpo. Uma parte atro-
meu corpo relaxar e brilhar, de novo, contrar a palavra certa, aquela que abre cadilhos. fiada pelo neoliberalismo, não
aquele arrepio. a porta. Ficar imaginando como vai fi- sem motivo: sem uma imagina-
car o corpo do leitor, se ele também vai • Quando a inspiração não ção saudável, sem saúde criativa,
• Que leitura é imprescindível no sentir isso que estou sentindo, se vai vem... nos sentimos presos no concre-
seu dia a dia? sorrir e chorar e se indignar comigo. Eu a invoco (por um lado, to, incapazes de criar novas rea-
Algo que me assombre. O que não me interessa criar fora do re- lidades. A literatura e a arte
em geral envolve poesia, algum ro- • Qual o maior inimigo de um es- lacionamento com a inspiração; cuidam da terra da nossa paisa-
mance e tarô. critor? por outro, não vejo a inspiração gem interna, cuidam do corpo,
O neoliberalismo. como um acaso, e sim como uma cuidam do futuro.
• Se pudesse recomendar um livro força que vem quando há espaço;
ao presidente Jair Bolsonaro, qual • O que mais lhe incomoda no para invocá-la uso o que o corpo • Qual a sua maior preocupa-
seria? meio literário? pede, em geral algumas ervas e as ção ao escrever?
No momento, alguma biogra- O fato de que nos parecemos palavras dos mortos). Não enlouquecer muito.
fia do Lula. tanto. Não enlouquecer o suficiente.
• Qual escritor — vivo ou mor-
• Quais são as circunstâncias ideais • Um autor em quem se deveria to — gostaria de convidar para • A literatura tem alguma
para escrever? prestar mais atenção. um café? obrigação?
Meu corpo vivo, um caderno, Entre várias, vou dizer duas que Toni Morrison. Não sei, tem?
alguma urgência. A inspiração me sempre me espantam: Carla Piazzi e
abraça por dentro. O que escrevo se Carla Kinzo. • O que é um bom leitor? • Qual o limite da ficção?
revela, me surpreende. Ao fim, me sin- Aquele que existe. A abstração.
to viva novamente. • Um livro imprescindível e um
descartável. • O que te dá medo? • Se um ET aparecesse na sua
• Quais são as circunstâncias ideais O imprescindível: Pedro Pá- Descobrir que, esse tempo frente e pedisse “leve-me ao seu
de leitura? ramo. O descartável eu não termi- todo, eles estavam certos e eu es- líder”, a quem você o levaria?
Ter tomado banho e ficar esfre- nei de ler. tava louca. Andrea Del Fuego. Ela sa-
gando os pés entre as almofadas. Poder beria o que fazer.
mudar de posição quando um aconte- • Que defeito é capaz de destruir • O que te faz feliz?
cimento irrompe da página. Eu gosto ou comprometer um livro? Silêncio e conversas apaixo- • O que você espera da eter-
de ter uma xícara por perto, mas a ver- Pra mim, a falta de ritmo. Só nadas. Pessoas que vivem suas al- nidade?
dade é que só me lembro dela quando porque me incomoda fisicamente, mas (dá pra sentir). Pés descalços. Que ela não espere nada de
o chá já esfriou. então eu largo e não volto. Descobrir um livro na hora certa. mim.
AGOSTO DE 2022 | 19

joão cezar de castro rocha


NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO

MIDIOSFERA
tipo de rivalidade quando trans- expiatório solucionará sempre os
ferida para a totalidade de um conflitos miméticos e que tal re-
grupo social; afinal, o desejo mi- solução assumirá sempre as mes-

BOLSONARISTA
mético é contagioso e pode agra- mas formas. Por que não imaginar
var-se na exata proporção em que situações em que grupos sociais
um número maior de agentes es- desintegraram-se precisamente

E DISSONÂNCIA
tiver envolvido no curto-circuito porque não desenvolveram um
provocado pela rivalidade miméti- mecanismo de controle da vio-
ca. Se nenhuma forma de controle lência endógena ocasionada pelo

COGNITIVA (11)
da dimensão apropriativa da mí- desejo mimético? Girard defende
mesis for desenvolvida, a própria que os grupos sociais que organi-
formação social pode vir a desin- zaram associações cada vez mais
tegrar-se em meio ao conflito ge- complexas descobriram o meca-
neralizado. Eis o caráter paradoxal nismo do bode expiatório; contu-
do fenômeno: sem a imitação, não do, cada grupo o fez a seu modo
se pode criar vínculos comuns, não e sem necessariamente trilhar um
se pode sequer falar a mesma lin- caminho único. Posteriormente,
Mímesis de apropriação por Girard e compõem a espinha guagem; porém, o potencial con- esse mecanismo foi aperfeiçoado
Nesta já longa série de ar- dorsal de sua teoria. flituoso do ato imitativo levará à mediante a criação de ritos e ins-
tigos, chegou a hora de tratar da O pensador francês conce- disputa pela posse de objetos de- tituições particulares. Em outras
teoria mimética. beu duas formas de mediação. sejados através da mesma imitação palavras, a hipótese do assassinato
Ao publicar Mensonge ro- Na mediação externa, o mo- que num primeiro momento tor- fundador fornece apenas a matriz
mantique et vérité romanesque delo está tão distante do sujeito nou a coesão social possível. geradora e não uma forma deter-
(1961), René Girard revelou o mimético que o risco de confron- minada, sempre a repetir-se — o
mecanismo do desejo mimético to desaparece: o Dom Quixote de O bode expiatório equívoco mais comum dos críti-
inicialmente na literatura moder- Cervantes adota o personagem No instante em que a crise cos apressados da teoria miméti-
na, demonstrando que o desejo, Amadis de Gaula como modelo mimética atinge seu auge, amea- ca. Pelo contrário, aquela matriz
em lugar de autônomo, depende supremo, mas, salvo engano, ja- çando dissolver os laços sociais, o é experimentada através de uma
sempre da figura de um media- mais poderá encontrar-se pessoal- mecanismo do bode expiatório, tal pluralidade de formas; formas es-
dor; figura essa orientadora da di- mente com o lendário cavaleiro. como descrito por Girard, oferece sas naturalmente adaptadas a con-
reção do nosso olhar. Tal intuição Por isso mesmo, o confronto aber- uma alternativa ímpar. No auge da textos específicos. De um lado,
deu origem à complexidade do to não terá vez. Daí, Girard deriva violência endógena, um fenôme- portanto, Girard propõe a exis-
pensamento girardiano. Seu co- o corolário: quanto mais externa a no ocorre, e, devido ao êxito com tência de uma matriz universal:
rolário denuncia a ilusão de auto- mediação, mais pacífico será o resul- que permite controlar os efeitos o processo civilizatório transfor-
nomia do sujeito, pedra de toque tado da imitação. desagregadores da mímesis, ten- ma a violência mimética em orga-
de concepções românticas, ain- Pelo contrário, na media- de a ser repetido até alcançar a re- nizações sempre mais complexas
da hoje dominantes, baseadas na ção interna o modelo se encontra gularidade e o formalismo de um através da sacralização da vítima.
noção idealizada de uma subjeti- perigosamente próximo do sujei- rito fundador: a violência, antes in- De outro lado, porém, Girard re-
vidade autossuficiente, porque au- to mimético: é seu professor; seu discriminada, de todos contra to- conhece que as formas de atuali-
totélica. Nesse horizonte, a relação amigo bem-sucedido; seu vizinho, dos na disputa fratricida pelo(s) zação dessa mesma matriz serão
amorosa é sempre compreendida cuja mulher cobiçamos — sim, é mesmo(s) objeto(s), é dirigida ar- necessariamente diversas entre si,
como o vínculo direto entre dois isso mesmo: cobiçamos. A teo- bitrariamente contra um único pois serão irredutivelmente parti-
sujeitos, ideal expresso na fórmu- ria mimética convida-nos a com- membro do grupo. Todos então culares. Nesse horizonte, Michel
la consagrada do “amor à primeira preender o mimetismo em nossas se voltam contra ele, canalizando Serres pôde considerar Girard um
vista”. No horizonte descortinado ações cotidianas, em lugar de de- a violência que, de geral e inespe- autêntico “Darwin das Ciências
pela teoria mimética, vivencia-se fini-lo como uma abstração sem cífica, portanto anárquica e auto- Humanas”; afinal, sua teoria bus-
uma realidade muito diferente. vínculos com o dia a dia. Nessa destruidora, adquire uma direção ca oferecer uma chave interpre-
Desse modo, Girard revelou circunstância, o desejo mimético única, por isso mesmo, reordena- tativa da origem da organização
a instabilidade do “eu” associada à se converte rapidamente em rivali- dora do próprio grupo. O bode ex- social, com base na resolução do
necessidade de recorrer a “outros” dade e essa pode originar disputas piatório é assim sacrificado e, ao conflito mimético. Contudo, não
na configuração da identidade. Tal irreconciliáveis — tema predile- final do ritual, a ordem retorna: a se deve esquecer da condição sine
característica, além de abalar de to de muitos romancistas. Daí, violência, de origem mimética, en- qua non a governar todo o proces-
forma definitiva os fundamentos Girard deriva o corolário: quan- gendra o sagrado, na figura da res- so: o bode expiatório somente fa-
autotélicos do sujeito, levou à des- to mais interna a mediação, mais tauração da ordem social através culta a resolução do conflito se um
coberta de uma zona sombria no violento será o resultado da imita- do assassinato fundador — e es- complexo mecanismo estiver em
processo mimético. Ora, se adoto ção. Na visão do autor, a análise ses termos pertencem ao vocabu- ação. É fundamental que o gru-
alguém como meu modelo, passa- minuciosa da mediação interna e lário girardiano. Como resultado po realmente acredite em sua cul-
rei a desejar os objetos por ele de- de seus inúmeros desdobramentos do processo, o bode expiatório pas- pa: para o grupo, não se trata de
sejados. Essa circularidade é tanto caracteriza o romance moderno. sa a ser divinizado, pois seu sacrifí- uma vítima, arbitrariamente esco-
mais forte quanto menos me dou No passo seguinte, dado em cio resolveu o conflito, restaurando lhida para canalização da violên-
conta de sua emergência. Com o La violence et le sacré (1972), ele a ordem e sobretudo colocando à cia endógena, mas de um membro
passar do tempo, o conflito pa- estudou a presença potencialmen- disposição do grupo um mecanis- do grupo objetivamente culpado
rece inevitável, pois, se desejo a te desagregadora da mímesis nos mo mediador da violência. e, por isso, um verdadeiro bode
mesma pessoa ou o mesmo obje- primórdios da organização social, Contudo, para fazer justi- expiatório. Caso contrário, tra-
to que meu modelo, a rivalidade buscando identificar os mecanis- ça à complexidade do sistema mi- tar-se-ia de um simples caso de
tende a crescer e paulatinamente mos subjacentes ao processo ci- mético é necessário reconhecer autoengano deliberado, incapaz
substituirá o caráter “neutro” ge- vilizatório. Segundo Girard, esse que Girard não vislumbra a histó- de converter a violência miméti-
ralmente atribuído à imitação. O processo dependeu da descober- ria como um processo linear e te- ca em instituições sociais de cará-
desejo mimético, pelo contrário, ta de um mecanismo controlador leológico, mas como uma espiral, ter sagrado, pois, em lugar de um
esclarece que muito provavelmen- da violência desencadeada pelo de- animada por uma matriz comum, acontecimento ritual, o assassina-
te buscarei apropriar-me do objeto sejo mimético. Recorde-se, aqui, a mas cujos desdobramentos não to fundador, estaríamos diante de
desejado por meu modelo. A me- derivação apropriativa do com- podem ser determinados a priori. um simples linchamento.
diação transforma-se em confron- portamento mimético: ao imitar Tal distinção é fundamental, em- Na próxima coluna, come-
to aberto e a mímesis, ao tornar-se meu modelo, terminarei por dese- bora seja negligenciada com fre- çaremos a rematar esta série, as-
de apropriação, revela uma pulsão jar os objetos que ele possui e farei quência pelos seus críticos mais sociando o universo digital e o
conflituosa cujos desdobramentos o possível para deles me assenho- apressados. Girard nunca afir- mundo das redes sociais ao meca-
foram minuciosamente estudados rear. Imagine-se o alcance desse mou que o mecanismo do bode nismo do bode expiatório.
20 | AGOSTO DE 2022

josé castilho
LEITURAS COMPARTILHADAS

ANIQUILAR OU PRESERVAR, EIS A QUESTÃO

O
Ilustração: Mariana Tavares
início deste julho de
2022 estará marcado
por alguns fatos que fi-
zeram história no país,
tanto para colocá-lo nas profun-
dezas do esgoto enquanto polis,
quanto para exaltar as opções in-
clusivas e democráticas de parcela
expressiva de seu povo.
Dois movimentos antagôni-
cos ocorreram na mesma semana
e se chocam enquanto aniquila-
ção ou preservação da civilidade
e da convivência política baseada
na violência ou no debate de ar-
gumentos e forças não armadas.
Do lado do pior fruto do
fascismo que sustenta o ódio e a
negação do contraditório, tive-
mos o assassinato de Marcelo
Arruda, líder petista em Foz
do Iguaçu, por um policial
tomado pela fúria da aniquilação
do outro que o contradiz. Inva-
dindo a festa de aniversário de
seu “inimigo”, gritava o nome do
presidente que amiúde incentiva
seus seguidores ao aniquilamen-
to do partido político que mais sei o grau de ignorância que encon- se valem das armas, hoje distribuí- bu, acolheu um público enorme e alegre que foi à pro-
o combate e que abriga o candi- tramos em grande parte de nosso das às mãos-cheias, para resolve- cura de livros e convivência com autores e debates de
dato preferencial à presidência da povo, ignorância que significa au- rem suas desavenças. temas que ficaram longe do discurso medíocre e insu-
república segundo todas as pes- sência de conhecimentos, sejam A conivência e a convivên- flador do ódio à democracia e aos direitos humanos.
quisas. A equação dos poderosos os adquiridos formalmente, sejam cia com a necropolítica corroem a Não nos iludamos atribuindo apenas ao longo
de plantão é clara e diária: elimi- aqueles que aprendemos com os sa- espinha dorsal da sociedade, que- confinamento causado pela covid-19, ou a não reali-
nar a ameaça que pode tirar-lhes beres tradicionais na lida do viver. brando-a em suas relações sociais zação da Bienal em 2020, a grande afluência de públi-
o poder. Poder que a democracia Se partirmos dessa premis- e interpessoais. Pergunte-se: por co que lotou todos os dias os pavilhões de exposição da
impõe que seja efêmero, mas que sa, se consideramos verdadeira es- que minhas relações familiares e capital paulista durante nove dias. Não tivemos apenas
os candidatos a tiranos e os fascis- ta tragédia civilizatória promovida pessoais estão muito mais tensas afluxo superior de pessoas, mas compras que ultrapas-
tas desejam eternizar. por uma elite secular que restrin- do que em épocas anteriores? Co- saram mais que o dobro de anos anteriores, conforme
As mazelas que acompa- giu barbaramente o acesso à edu- mo permitimos que divergências relataram várias editoras. As pessoas foram à Bienal e
nham nossa triste e sofrida história cação e à cultura à maioria do povo de opiniões políticas ou religiosas compraram livros em época de grave crise financeira.
de exclusão de direitos para todos brasileiro, não será muito difícil destruíssem amizades entre pes- Este fato revela muito do que podemos esperançar
são constitutivos ao ato do assassi- percebermos que o discurso de soas que se conhecem a vida toda para o futuro porque aponta o que parte expressiva de
no de Foz de Iguaçu. O pano de ódio do mandatário maior e seus ou entre irmãos e primos de uma nossa população deseja. Em um período que os pode-
fundo permanente continua sendo seguidores, voltado a combater o mesma família? res federais facilitam a compra de armas, muitos prefe-
o racismo estrutural e a violência pensamento autônomo e liberta- A tragédia que tirou a vida rem comprar livros. Quando todo o esforço da chamada
das relações que subjugam coti- dor de nossos maiores cientistas de uma pessoa que apenas expres- “guerra cultural”, assim denominada pelos sabidos deste
dianamente as mulheres e os “dife- e humanistas e de nossos mestres sava, na alegria de uma festa de governo, se volta para o discurso anti-humanista e pró
rentes”, perpetuando no poder de populares, discurso que demoni- aniversário familiar, a sua preferên- difusão de preceitos religiosos que se sobrepõem à razão,
mando em múltiplas instâncias ho- za todo o campo democrático, é o cia política, é a expressão mais per- tivemos esgotados nos estandes das editoras universitá-
mens brancos, velhos e muito ri- combustível imediato e detonador versa e cruel da política entendida rias livros que debatem teorias e práticas do pensamen-
cos. Mas seria ingenuidade afirmar de todo ato de barbárie que en- como eliminação física dos adver- to científico contemporâneo e clássico.
que o assassinato foi fruto apenas frentamos diariamente desde que sários. Já convivemos várias vezes Se o “fenômeno” Bienal do Livro de SP 2022
de nossas desigualdades e desequi- perdemos o rumo da débil demo- no Brasil com este entendimento não é um dado absoluto de desejo de mudança para
líbrios enquanto civilização. cracia brasileira em 2016. da política como eliminação do sairmos deste caos civilizatório em que nos metemos,
Se há fatores objetivos na A palavra do candidato a ti- outro nas ditaduras que tivemos. certamente ele é um sinal potente para tentarmos en-
história política brasileira que pre- rano carrega a arma do assassino, Hoje, o único polo que tem sau- tender que o movimento atual da sociedade brasileira
cisamos considerar, mirando o infla a atitude violenta de muitos dades desses tempos horrorosos tende a ser mais a favor de um Estado democrático do
presente à luz do passado e na espe- em um debate de ideias, faz cegar está sentado na cadeira da presi- que o dominado pela violência e pela ignorância que o
rança do futuro, é preciso também a visão de seus discípulos aos mais dência da república, cercado pelos atual desgoverno representa.
entender que o malefício do bol- evidentes desatinos de seu chefe. seus aliados, muitos deles “filhotes Num país pauperizado pelo neoliberalismo avas-
sonarismo enquanto fator princi- Não há radicalização pola- da ditadura”, alcunha forjada pelo salador da atual política econômica; num país que viu
pal de exaltação da barbárie é hoje rizada em dois lados, mas discur- saudoso e combativo Leonel Bri- voltarem a fome e a insegurança alimentar para mi-
o pior de nossos males. E a barbá- so persuasivo e muitas vezes eficaz, zola. É preciso dar um basta a es- lhões; num país que viu milhares dos seus compatriotas
rie nunca pode ser naturalizada, de exaltação do ódio, de um úni- ta sanha de terror que enterrará o morrerem de covid-19, mortes provocadas pelo nega-
como se sua realização em nossas co lado, o do candidato a tirano, país talvez de maneira irreversível. cionismo que gerenciou pessimamente a crise sanitária
vidas fosse algo que fluísse como que precisa eliminar todos que se Do lado das forças não ar- no país; num país de sem-teto e sem-trabalho, os sinais
um riacho. Naturalizar a barbárie opõem ao seu desejo de poder per- madas, da civilidade e do amor de esperança começam a ser traduzidos pela cultura e
é aceitá-la como inevitável. Outro manente. Por consequência, esse à ciência, à cultura, à educação e pelo desejo de mais e melhor conhecimento para todos.
equívoco é entendê-la como re- modo de ser na política se alastra contra a ignorância, tivemos na Por enquanto são sinais, precisamos que eles se
sultado de uma polarização entre por todo o tecido social. Desde o mesma semana um público es- materializem em mudanças reais, que clamem por po-
contrários que se identificam e se resgate dos velhos machistas, que trondoso na mais frequentada líticas públicas fortes e duradouras, políticas de Estado,
igualam em seus extremos, situa- perderam seus poderes perante es- Bienal do Livro de São Paulo em que nos libertem definitivamente da ameaça tirânica de
ção que não existe na atual situação posas e filhas, e que vislumbram sua história. Poucas semanas an- parte da elite nacional que quer voltar à Casa Grande e
política e social brasileira. retomar seus postos de domina- tes, A Feira de Livros, em frente à Senzala. É preciso dar um basta à regressão se quiser-
Em colunas anteriores anali- dores, até a rixa entre vizinhos que do histórico estádio do Pacaem- mos, algum dia, nos chamarmos de nação.
AGOSTO DE 2022 | 21

raimundo carrero
LUTA VERBAL

PARA APROXIMAR
com a sensibilidade, a compreen-
são, o que resulta, sem dúvida,
em melhor sociabilidade. Portan-

O ESTUDANTE DA
to, paz no mundo.
Por tudo isso, escrevi A lu-
ta verbal — um manifesto literá-

LITERATURA
rio que se define como um grito
de dor contra a fome, contra o ra-
cismo, contra toda discriminação,
com um apelo de entusiasmo a fa-
vor da leitura, da escrita, sobretu-
do a favor da mulher brasileira e

A
do seu empenho pela educação e
tarefa é difícil, muito jovens, e não exatamente para jo- rua, um lixão ou mesmo pequenos pela cultura desse país.
difícil, parece impossí- vens. Tudo bem, é por aí. montes de lixo, deve fazer um vídeo Não é possível, em absoluto,
vel. Talvez seja preciso Cada vez me atormentava no celular e levá-lo à sala de aula pa- imaginar uma literatura ausente
dizer para não sair do mais até que inventei uma propos- ra exibição aos colegas que podem dos problemas sociais e, para isso,
lugar-comum — às vezes o lu- ta pedagógica lançada agora no li- comentar em forma de slam ou de é preciso contar com a participa-
gar-comum faz um bem incrível. vro A luta verbal (Iluminuras). hip-hop, de samba — tipo parti- ção dos jovens estudantes.
Muitas vezes, soluciona questões Em princípio, pensei numa manei- do alto — ou até de duelo de vio- Como disse anteriormente,
graves de criação literária. E va- ra de usar o celular, objeto de de- leiros. Em seguida, inventam uma o estudante deve participar da lei-
mos ao caso: sou procurado cons- sejo de todo jovem — de forma a dança e, caso seja necessário, sobem tura por meio daquele que é o fe-
tantemente por professores que animá-lo e interagir com uma tec- ao palco da escola para exibição pú- tiche, o objeto de desejo de todo
confessam desesperados: não con- nologia, definitivamente ligada à blica. Finalmente, o professor deve jovem neste tempo tecnológico: o
seguem fazer com que os jovens vida brasileira e, óbvio, mundial. recomendar uma redação. celular. E utilizando aspectos da
estudantes leiam novelas e ro- Daí imaginei que o professor adote De certa forma, a propos- música popular, sobretudo atra-
mances destinadas especialmente o livro Seleta de Marcelino Freire, ta resolve o sonho antigo de fazer vés de ritmos consagrados, como
a eles. Imaginem Jorge Amado ou indicando o conto Muribeca, que as pessoas lerem romances, sem a o slam, o hip-hop, além do sam-
Graciliano Ramos, por exemplo, faz referência a um lixão do Recife. sensação de inutilidade, como se ba, frevo e por aí afora.
Capitães da areia ou Histórias Depois da leitura rápida, o costuma dizer por aí, nem sequer Nossa proposta envolve, as-
de Alexandre. Até posso concor- estudante é estimulado a locali- considerando que a leitura abre a sim, a literatura, a dança e a mú-
dar que Capitães é um livro de zar em seu bairro, talvez até na sua sensibilidade para o mundo. E, sica.
22 | AGOSTO DE 2022

Literatura,
discurso popular
e modernidade
Ideias para discutir a divisão e as diferenças entre literatura popular e a
literatura representada pela cultura escrita, pelo pensamento técnico

RICARDO AZEVEDO | SÃO PAULO – SP

S
empre achei inconsisten- ter. Quero ser claro. Com algo em torno de 9 anos não tinha
te a divisão de pessoas competência para ler esses poemas. Mas escutar é outra histó-
em faixas etárias, princi- ria. Hoje pensando sobre o assunto, percebo que esses poemas
palmente se pensarmos tinham dois pontos em comum:
em literatura. Por trás dessa divi- 1. utilizavam vocabulário público e acessível;
são, está a crença na existência de 2. eram narrativos, ou seja, descreviam uma cena ou con-
grupos homogêneos de pessoas. tavam um caso de forma acumulativa, com começo, meio e fim.
Ignora-se as características indi- Mesmo pessoas que não tiveram a sorte de ouvir esses
viduais e únicas de cada um de discos na infância, certamente escutaram letras de músicas por
nós, as culturas familiares, as ex- meio de rádios e discos, o que dá mais ou menos na mesma.
periências pessoais, as vocações, Vou citar duas canções que tocavam no rádio no meu
os interesses particulares, as cren- tempo de criança. A primeira é Aos pés da Santa Cruz, de Zé da
ças, as origens etc. Zilda e Marino Pinto:
Como trabalho principal-
mente com livros considerados Aos pés da Santa Cruz
para crianças e jovens, já cansei de Você se ajoelhou
ver leitores com um livro na mão E em nome de Jesus
falando: “Pô! Esse livro é pra gente Um grande amor
de 11 anos. Eu tenho 12!”. Você jurou
Estou entre aqueles que Jurou mas não cumpriu
acreditam que os chamados li- Fingiu e me enganou De cada um que, no fundo, buscam, mesmo
vros para “crianças e jovens” na- Pra mim você mentiu A literatura é como a vida: que aos trancos e barrancos, cons-
da mais são, em grandes linhas, Pra Deus você pecou acontece na nossa frente, inde- truir uma sociedade mais huma-
do que trabalhos que recorrem O coração tem razões pendentemente de nós (e de nos- na e civilizada.
ao que podemos chamar de um Que a própria razão desconhece sas “faixas etárias”) e, ao mesmo Acontece que no mesmo
“discurso popular”. Vou tentar Faz promessas e juras tempo, acontece dentro de nós. ambiente e ao mesmo tempo,
me explicar melhor. Depois esquece Diante dela, tentamos tirar nos- convivemos com analfabetos e se-
Na infância, tive a sorte de Seguindo esse princípio sas conclusões e cada um faz o que mianalfabetos (cerca de 70% da
ter uma aproximação com a lite- Você também prometeu pode a partir de suas característi- população); gente morando em
ratura muito interessante. Nas- Chegou até a jurar um grande amor cas individuais, cultura familiar, favelas com esgoto a céu aberto;
ci em 1949. Na década de 50, a Mas depois se esqueceu experiências pessoais, vocações, crianças e jovens fora da escola;
gravadora Festa lançou discos de crenças, origens etc. gente com menos de 10 anos que
poesia brasileira, alguns poemas A outra é Me deixa em paz, do grande sambista Monsueto: De forma bem esquemática, já trabalha; gente de 30 anos que
declamados por atores e outros creio que é possível dividir a litera- já é avô; cercado pelo racismo e
pelos próprios poetas. Um gru- Se você não me queria tura em dois grandes grupos: um pelo desprezo por negros, indíge-
po de quatro atores, os Jograis de Não devia me procurar que pode ser descrito como “po- nas e pobres; de gente condenada
São Paulo, produziu discos anto- Não devia me iludir pular” e outro representado pelo ao trabalho braçal; pela ausên-
lógicos. Tínhamos alguns desses Nem deixar eu me apaixonar conhecimento universitário, pela cia de uma mínima igualdade de
discos em casa e meus pais ado- cultura escrita, pelo pensamento oportunidades entre os cidadãos;
ravam ouvir. Na época, eu devia Evitar a dor técnico, por teorias abstratas, pelas pela falta de políticas públicas pa-
ter meus oito ou nove anos e fi- É impossível vanguardas e coisas assim. ra a Educação, para Cultura etc.; e
cava por ali escutando também. Evitar esse amor Mas antes, vou abrir parên- ainda por políticos corruptos sol-
Meu primeiro encontro com a É muito mais tese. É preciso reconhecer que, tos graças ao inacreditável “foro
poesia de poetas extraordinários Você arruinou a minha vida de certa forma, vivemos nos sé- privilegiado”; e até por crimino-
como Manuel Bandeira, Carlos Me deixa em paz! culos 18, 19, 20 e 21 tudo ao sos presos em celas especiais por
Drummond de Andrade, Muri- mesmo tempo. ter “nível superior”.
lo Mendes, Mário de Andrade e Qualquer criança entenderia, entende e pode ser emo- Andamos mergulhados nas Há uns dez anos participei
Vinicius de Moraes, entre outros, cionar ou se identificar diante de letras como essas. Assim co- demandas contemporâneas, na de um evento em Ilhéus (BA). Mal
deu-se através desses discos. Es- mo vai se interessar ou se identificar por, por exemplo, Vietnã, pós-modernidade; na glorificação cheguei e ainda estava no aeropor-
cutar José, O caso do vestido e A poema de Wislawa Szymborska (Poemas, Companhia das Le- das subjetividades e das singula- to, apareceu um menino de uns 9
morte do leiteiro na voz do próprio tras, 2011): ridades; no relativismo cultural anos e me pediu que o levasse para
Drummond; Estrela da manhã e e nos desconstrutivismos. Assim casa. Entendi que ele queria uma
Vou me embora pra Pasárgada com Mulher, como você se chama? — Não sei. como, no feminismo e na mu- carona. Não. Queria ir para minha
Manuel Bandeira; o belíssimo e Quando você nasceu, de onde você vem? — Não sei. dança do papel social das mulhe- casa. Disse a ele que morava em
surpreendente Jandira, de Muri- Por que cavou esse buraco no chão? — Não sei. res; na luta contra o preconceito e São Paulo. “Eu posso trabalhar”,
lo Mendes; Dia da criação de Vi- Desde quando está aí escondida? — Não sei. o racismo; na defesa do meio am- respondeu. Falei: cara e sua famí-
nicius de Moraes ou trechos de Por que mordeu minha mão? — Não sei. biente e das culturas indígenas; lia? E seu pai? Foi o pai dele que
Carnaval carioca de Mário de Não sabe que a gente não vai te fazer nenhum mal? nas demandas LGBT e transgêne- mandou ir ao aeroporto ver se ar-
Andrade declamados pelos ma-  [— Não sei. ros; na chamada quarta revolução ranjava alguém que cuidasse dele.
ravilhosos Jograis de São Paulo De que lado você está? — Não sei. industrial com sua inteligência ar- Como desenvolver um tra-
foi uma experiência fundamental É guerra, você tem que escolher. — Não sei. tificial, redes sociais, engenharia balho, escrever para crianças, jo-
na minha vida. Creio que perce- Tua aldeia ainda existe? — Não sei. genética, robôs e plataformas, en- vens ou adultos, tanto faz, diante
bi ali a força que um texto pode Esses são teus filhos? — São. tre outras questões importantes e de uma sociedade tão injusta,
AGOSTO DE 2022 | 23

Ilustração: Thiago Thomé Marques


Passo a elencar algumas tendências do tal dis-
curso-nós, o discurso popular, um discurso acessível
à maioria das pessoas do nosso país, independen-
temente de classes sociais, graus de instrução e fai-
xas etárias.

1. A utilização de linguagem e do vocabulário


público, direto, acessível, familiar e compartilhável.
2. As imagens visualizáveis relatando cenas e
atos concretos e cotidianos, capazes de emocionar e
gerar identificação, ou seja, nada de conceitos abs-
tratos, subjetivos, impessoais e descontextualizados.
3. O discurso “transitivo”, sugerido por Mu-
niz Sodré, aquele que brota do assunto tratado, e
não o “intransitivo”, que olha de fora, analisa e jul-
ga de longe o assunto que trata.
4. A concisão, nem sempre valorizada num
ambiente que prefere o discurso marcado pela sub-
jetividade e pela experimentação que, ao contrá-
rio, por vezes aprecia ser prolixo e propositalmente
hermético.

Todos conhecemos os contos populares,


mas nem sempre lembramos da complexidade e
da riqueza de motivos e imagens presentes em seus
enredos incrivelmente enxutos. Na verdade, eles
costumam ser uma metáfora, uma versão simbólica
e intuitiva da existência, das coisas que mais teme-
mos e daquilo que mais buscamos. García Már-
quez certamente partiu desses contos pra criar sua
extraordinária literatura.
As quadras populares também são exemplos
dessa concisão popular.

Jurei, juraste, juramos


Juramos, jurei, juraste
Quebrei, quebraste, quebramos
Quebramos, quebrei, quebraste

Os contos e quadras são uma prova de que


um discurso popular pode tratar de assuntos com-
plexos.
A tendência à narratividade: enredos transiti-
vos, coordenados, lineares e acumulativos, com co-
imoral, desumana, desequilibra- 1. a metalinguagem (o dis- da afirmação da emoção do escritor meço, meio e fim, entre outros recursos.
da e descivilizada como a nossa? curso reflexivo que fala de si mes- ou artista, como disse R. G. Collin- No caso do escritor da cultura dominante —
Como o espaço é curto, vou mo); gwood — agora me refiro princi- o do discurso-eu marcado pelo individualismo, pela
tentar trazer algumas característi- 2. a exposição na obra dos palmente ao artista do povo com o técnica e pela cultura escrita — a tendência é es-
cas do que imagino ser um discur- “andaimes” da própria obra e seu qual podemos aprender muito —, crever como quem escreve para alguém que vai ler
so popular. processo construtivo; tem como marca não o “eu sinto”, e que, portanto, durante a leitura, pode consultar
No ambiente moderno, in- 3. temas como a “incomu- mas, sim, o “nós sentimos”. dicionários, pode reler e refletir sobre o que leu pa-
dividualista e tecnológico, nos- nicabilidade entre as pessoas” ou Neste caso, o artista, embo­­ ra finalmente criar sua interpretação.
sa bolha cultural e nosso espírito o “sentir-se diferente de todos” (as ra tenha suas questões pessoais e No caso do discurso-nós, o escritor — marca-
dominante, se pensarmos no tex- vozes do valorizado outsider), en- sua subjetividade, opta por co- do pela cultura oral — tende a escrever como quem
to escrito, surgem alguns recursos tre outros. locar os interesses da coletivida- fala diante de alguém que escuta num contato fa-
típicos, como a experimentação e de em pé de igualdade ou até em ce a face, o que exige sempre a sobreposição do que
a fragmentação do discurso, que E, claro, o descompromis- maior grau de importância com se diz e do que se quer dizer tendo em vista a com-
passa, muitas vezes, a ser consti- so com o compartilhamento e a relação a seus interesses pessoais. preensão imediata.
tuído de frases e palavras desar- identificação e, mesmo, com a Parece não haver sentido para o Adotamos estratégias mentais diferentes
ticuladas, apresentadas de forma compreensão, por parte da maio- artista popular colocar-se fora de quando falamos de viva voz numa situação face
caótica, “fluxos de consciência”, ria dos leitores. seu contexto de vida e das angús- a face e quando escrevemos um texto para ser lido
discursos “caleidoscópicos”, ma- Podemos, em todo caso, cha- tias de seu grupo. posteriormente. Trata-se de uma escolha.
nipulações sintáticas etc. mar esse discurso de discurso-eu. Podemos chamar esse dis- Sei que o discurso da arte sempre foi ligado
Tendências, portanto, que Ocorre que fora da caixa curso de discurso-nós. Quero ao desvio da norma e a uma certa exceção. Mas ten-
pressupõem a necessária e com- cultural dominante, floresce ou- ressaltar as implicações e a impor- to ressaltar um modelo cultural que valoriza dema-
pulsória “interpretação”. tro discurso: aquele que prefi- tância da ideia “nós”. siadamente a exceção e despreza qualquer tipo de
O filósofo Jürgen Habermas ro chamar de popular. Segundo Primeiro, trata-se de uma regra ou convenção. Numa sociedade individualista
aponta para um aspecto interessan- certa crença, quando falamos em linguagem poderosa, pois conse- e consumista, com fortes marcas escravocratas co-
te: o fenômeno moderno da “auto- “popular”, logo pensamos em po- gue gerar identificação e emocio- mo a nossa, isso, creio eu, pode resultar em arrou-
certificação”. Em outras palavras, bres, analfabetos e favelados. Não nar ricos e pobres, universitários bos narcisistas autocomplacentes e simulacros seja
é o desprezo crescente em nossos é meu ponto aqui. e analfabetos, velhos, moços e das literaturas, seja das artes em geral.
dias pelas instâncias consagradas Por “popular”, estou ape- crianças, Deus, todo mundo e Certamente, criar uma obra de ficçaõ e poe-
de legitimação e reconhecimento, nas me referindo a um discurso mais uns três. sia que tenha valor — independentemente de gêne-
típicas de ambientes onde alguma altamente diversificado que bus- Em segundo lugar, creio ros, movimentos, estilos, modas e escolas literárias,
hierarquia ainda está presente. que a comunicação imediata en- que o dia que um branco olhar ou da pretensão de atingir este ou aquele público —
Neste caso, você pergunta tre as pessoas. um preto e pensar: “nós”; ou um sempre foi e sempre será algo muito difícil de fazer.
pro cara: quem disse que isso é li- Tal discurso é encontrado heterossexual olhar um gay e pen- Num país que faz conviver numa boa os sécu-
teratura? E escuta como resposta: em tudo quanto é lado: nas letras sar “nós”; ou o rico olhar o pobre RICARDO los 19, 19, 20 e 21, o elogio do discurso elitista e sin-
“Eu digo, ué! Qual é o problema?”. de samba, no rap, no rock e em e pensar “nós”, o cristão olhar o AZEVEDO gular, acessível apenas a poucos iniciados, parece ter
Aqui e ali, surgem até es- parte relevante da música popu- muçulmano e pensar “nós”, o ci- É escritor e tudo a ver com a sociedade desigual nele instalada.
critores que declaram: “Não es- lar, assim como em textos e poe- dadão local olhar o imigrante e desenhista. Este Vou concluir. Imagine um mundo atomiza-
crevo pra ninguém. Escrevo pra mas, particularmente na chamada pensar “nós” ou o adulto olhar a ensaio é baseado do com milhões de pessoas vivendo cada uma no
em vários artigos e
mim mesmo”. Por que lutam pa- literatura infantil e juvenil. Na criança e pensar “nós”, e vice-ver- palestras do autor e seu universo particular. Imagine um mundo onde
ra publicar seus livros é um mis- verdade, praticamente todos os sa em todos os casos, nosso mun- também em seu livro a Linguagem, talvez o mais importante invento co-
tério profundo. escritores, poetas e cronistas vol- do, tenho certeza, será mais rico, Abençoado e danado letivo que conhecemos, morreu, pois cada um tem
do samba – Um estudo
Cito outros recursos apre- ta e meia recorrem a ele. diversificado, civilizado e mais sobre o discurso sua própria linguagem. Num ambiente assim, Ar-
ciados pela cultura dominante: Para o discurso popular, to- humano. popular (Edusp, 2013). te e Literatura pra quê?
24 | AGOSTO DE 2022

Refugiado
livro é refletir sobre o exílio força- Simbolismo que a poesia supera
do e a invasão de terras a partir da a visualidade como sentido prin-
história específica dos palestinos e cipal e passa e explora os cheiros,
da vida do autor. os tatos e sabores, a poesia árabe

universal
É trabalhando com essa ca- de Darwich conduz o leitor a uma
pacidade de com-paixão da poe- experiência sensorial profunda,
sia, de sofrer com o outro, que em que os espaços são compostos
Darwich transforma a Nakba, e sentidos através de índices diver-
a tragédia palestina da expulsão sos. Não é uma viagem de passa-
pelo invasor judeu no século 20, do, que vê tudo por cima, mas de
Em Onze astros, a poesia árabe de Mahmud Darwich em imagem universal de outras quem respira e ouve e sente a tex-
conduz o leitor a uma profunda experiência sensorial tragédias de expulsão. Forma-
-se uma triste constelação entre
tura e o calor dos diferentes espa-
ços apresentados. As palavras se
êxodos e diásporas de todos os perfumam, são lisas ou quebradi-
tempos: a invasão europeia das ças, agudas ou mornas. Tudo isso
TOMAZ AMORIM IZABEL | SÃO PAULO – SP
Américas é contada melancoli- é relembrado, presentificado no-
camente por um líder indígena e vamente no exílio, no luto, pela
ecoa no diálogo do poeta palesti- força de reminiscência da poesia.
no com um amigo iraquiano de-

M
saparecido na invasão americana. Nosso chá é verde e quen-
ais de uma década do estribilho, olhou para os co- A expulsão dos árabes na penín- te, bebam-no, nosso pistache é cro-
atrás me voluntariei legas e gritou em árabe: “Ele es- sula ibérica relembra a expulsão cante, comam-no, nossas camas são
para dar oficinas de tá falando de Mahmud Darwich”. dos palestinos que abriu caminho verdes, da madeira do cedro, usem-
poesia em um campo A pronúncia, muito diferente da para a fundação do estado de Is- -nas para descansar após tão longo
de refugiados na Cisjordânia. A minha, foi como o sol da revela- rael. As memórias de um Mar cerco, e durmam sobre as plumas de
proposta era ousada porque eu ção no rosto de todas as crianças. Morto salgado de lágrimas, reto- nossos sonhos.
não falava árabe. E os alunos, to- Do outro lado da primeira filei- madas no poema a respeito dos
das crianças, falavam um inglês ra, levantou-se um menino mui- Manuscritos, testemunham sobre A diáspora traz uma afasia.
bastante quebrado que teria de to pequeno e pôs-se a recitar com uma terra em que povos irmãos O rompimento do exílio impede
bastar como língua de comuni- uma seriedade estranha para uma Onze astros podem conviver em paz e em a continuidade da fala. A poesia
cação. Nas semanas anteriores à criança: “ ”, “Registre MAHMUD DARWICH guerra. Um poema de amor entre tem que gaguejar e assim ela o faz,
viagem, me preparei buscando aí, eu sou árabe”. Trad.: Michel Sleiman pessoas de grupos rivais apresen- embora a exuberância e a precisão
Tabla
os nomes mais representativos Era o poema em inglês que ta as duas possibilidades: a união da técnica de Darwich disfarcem
112 págs.
da poesia árabe e, especificamen- eu havia selecionado como exercí- amorosa em símbolo universal do o procedimento. Se é impossí-
te, palestina. cio e, de repente, não era eu quem humano ou o bloqueio, a separa- vel contar diretamente a história
A primeira aula no cam- ensinava, mas quem aprendia com ção, a saudade, o exílio do outro, traumática, o possível é contá-
po de refugiados foi um caos. O a menor das crianças, que recita- causado pela guerra. -la por meio de metáforas que se
LEIA TAMBÉM
espaço era pequeno demais, as va justamente o mesmo poema, O título do livro faz lem- multiplicam, e de outros exem-
crianças numerosas e o próprio no árabe em original, de cor, com brar a famosa citação de Walter plos históricos. A condição pales-
tema da aula parecia incompreen- uma postura física e uma autorida- Benjamin sobre os soldados que tina evoca todos os refugiados do
sível. Depois de alguns minutos de que talvez apenas os refugiados voltavam mudos das trincheiras: mundo para poder ela mesma fa-
tentando encontrar a palavra em do mundo tenham. Ele recitou o “Uma geração que ainda fora à es- lar. O trauma que não pode ser
árabe para “poesia”, já que o ter- poema inteiro, em voz alta, dian- cola num bonde puxado por cava- contado se torna tarefa prioritária
mo em inglês não fazia sentido, te do silêncio respeitoso da sala de los viu-se abandonada, sem teto, da literatura, arte da palavra. Daí a
mudei de estratégia e avancei para aula e do meu espanto. Essa foi numa paisagem diferente em tu- importância histórica da poesia de
os poemas. Por tudo que eu tinha a primeira vez que ouvi recitado do, exceto nas nuvens”. O frágil Darwich de dizer o impossível de
pesquisado, Mahmud Darwich em árabe um poema de Mahmud corpo humano em uma paisagem ser dito. “Como escrever na nu-
deveria ser algo como o poeta na- Darwich, cujo livro mais recente diferente em tudo, exceto nas nu- vem o testamento de meu povo?”
cional da Palestina. E seu poema traduzido para o português, Onze Memória para o esquecimento vens, ou seja, exceto no mundo Se a poesia pode ajudar a
Carteira de identidade, que eu já astros, comento em seguida. sob os onze astros mencionados delimitar o indizível, cercar o
MAHMUD DARWICH
conhecera de uma coletânea de Os textos de apoio da be- Trad.: Safa Jubran
nos livros antigos das religiões abismo, por outro lado, outro de
poesia árabe, deveria causar um la edição da Tabla ajudam a dar o Tabla abraâmicas — e atualizados pela seus poderes é a invocação. Assim,
impacto nos alunos. contexto da vida e obra de Dar- 216 págs. astronomia usual, nove planetas o ausente se faz presente. A elegia
Falei um pouco da vida de- wich. A excelente tradução de mais Lua e Sol. Um tempo su- ressuscita, a canção de exílio rea-
le e da importância de sua poe- Michel Sleiman apresenta ao pú- pra-histórico em que os conflitos bre as portas das casas, ainda que
sia. Nenhuma reação. Comecei blico brasileiro uma das vozes se repetem diante dos astros, mas por um momento. A lembrança
então a ler a tradução do poema mais importantes da poesia do sé- aqui, um tempo humano, sublu- como resistência ao exílio força-
em inglês. Os alunos passaram da culo 20. Esse livro em especial faz nar, cheio de paixões. A referência do, a rememoração como religa-
excitação extrema do novo pro- pensar sobre a capacidade da arte, ao sonho de José e sua mudança ção entre o exilado e a terra. “Meu
fessor brasileiro, para o tédio ab- e da poesia em especial, de trans- de posição, de hebreu a egípcio, tempo dentro de mim se distan-
soluto. Mas eis que uma menina formar uma imagem única, um dá a dimensão dinâmica das tra- cia de meu lugar às vezes, e meu
que me olhava com os olhos se- acontecimento próprio, a histó- gédias de expropriações. O livro lugar dentro de mim se distancia
micerrados levantou-se da cadei- ria específica de um povo, em al- não produz apenas uma acusação de meu tempo.”
ra subitamente durante a leitura go universal. O gesto principal do legítima diante de uma tragédia Poesia como fio de liga-
recente, mas, a partir dela, uma ção com a terra para os que se
DIVULGAÇÃO reflexão trans-histórica sobre a fi- foram. Poesia como fio de liga-
O AUTOR
gura do refugiado ou do exilado ção para os que ficam. Poesia que
MAHMUD DARWICH na própria terra. insiste em contar a história de
Como não poderia deixar massacre na origem de todos os
Nasceu na aldeia de Al-Birwe, na
de ser, em um livro que se propõe estados nacionais. Poesia como
Galileia, Palestina, em 1941. Um dos
maiores escritores de língua árabe,
a essa temática, multiplicam-se justiça histórica, como memória
é considerado o poeta nacional da
as imagens de desmembramen- dos mortos de todas as colônias.
Palestina. No Brasil, a Tabla publicou to. No exílio, coisas insubstituí- Poesia como revelação do mun-
Onze astros, Da presença da ausência veis ficam para trás. Ressurge dos do moderno assentado sobre ba-
e Memória para o esquecimento. tempos imemoriais a expulsão do ses de cemitérios indígenas:
Darwich morreu em 2008. Paraíso e a figura do refugiado co-
mo Adão de dois paraísos que “ar- Mortos dormem nos quartos
ma uma tenda por saudade da  [que vocês vão construir.
palmeira original”. Minha terra, Mortos visitam seu passado
como se sabe, tem palmeiras. O [nos lugares que vocês vão destruir.
corpo se vai e os pés ficam presos Mortos passam em cima das
à terra. A terra é indistinguível do  [pontes que vocês vão construir.
corpo, por isso, a dor é também Mortos iluminam a noite das
física e por isso a perda da amada [borboletas, mortos chegam de
também é como um exílio. [surpresa para tomar um chá com
É uma poesia de muitos [vocês, vêm calmos como os
sentidos. Se entre nós é apenas no [deixaram seus fuzis.
AGOSTO DE 2022 | 25

Amizade
DIVULGAÇÃO

que nesta mesma personalidade


complexa, ela guarda generosida-
de e cuidado extremos com as pes-
soas de seu círculo pessoal.

e mistério
Nas primeiras páginas, fi-
camos sabendo não apenas que
Emerenc morreu, mas que Mag-
da se sente responsável pela mor-
te dela. Mais do que isso, ela faz
uma confissão de culpa. Somen-
A porta, romance da húngara Magda Szabó, te com o andamento da história é
trata de uma relação entre mulheres de possível entender como essa mor-
te se deu e o motivo de Magda se
personalidades distintas e afetos intensos autorresponsabilizar. A revelação
adiantada, no entanto, nada nos
tira da curiosidade sobre o enredo
GISELE BARÃO | CURITIBA – PR nem prejudica o seu desenvolvi-
mento. Na verdade, só causa ain-
da mais interesse. A aura fantástica
de algumas passagens faz da leitu-

A
ra uma experiência marcante.
porta, da húngara Mag- missa. Ou com desprezo pela sua Aos poucos, Szabó nos en-
da Szabó, mostra que o profissão, já que Emerenc desvalo- trega pistas das razões para que a
afeto e a amizade às ve- riza qualquer trabalho estritamen- funcionária seja tão fechada em seu
zes andam por caminhos te intelectual, acredita apenas no próprio mundo, literal e metafori-
espinhosos. Essa é a sensação que o trabalho braçal, na força, na resis- camente. O espaço que Magda às
romance causa sobre a relação en- tência física para as atividades co- vezes chama de “Cidade Proibida”.
tre as personagens principais — a tidianas. Assim, escrever ou falar Parte delas está nos enormes trau-
narradora da história (uma escritora sobre literatura é perda de tempo mas que acometem a mulher, en-
que depois sabemos se chamar tam- para ela. Também não é possível es- volvendo os impactos dos regimes
bém Magda) — e Emerenc, con- perar posicionamentos seus quan- políticos da Hungria, a perda vio-
tratada para trabalhar em sua casa to à política. Os comentários vêm lenta de familiares e o abandono.
como empregada doméstica. carregados de ressentimento, cor- Vale mencionar que esse pequeno e
Foi uma amiga da escritora tam logo o assunto — mais tarde restrito mundo de Emerenc come-
que indicou os serviços de Eme- entendemos a razão de tudo isso. ça a correr o risco de desmoronar
renc. Famosa no bairro, a mulher quando ela confia à patroa seus se-
cuidava de outras casas, tirava ne- Essa senhora não apenas não A AUTORA
gredos e a deixa entrar em sua casa.
ve da rua, gerenciava a vida do- tem consciência patriótica, ela não O pano de fundo das conse-
méstica das famílias. Logo no tem consciência nenhuma, seu es- MAGDA SZABÓ quências do pós-Segunda Guerra
início, no entanto, percebemos pírito luminoso brilha forte, mas Nasceu em uma família protestante se mistura também com a histó-
que se trata de uma mulher insu- na neblina. em Debrecen (Hungria), em 1917. ria de Magda Szabó. Nascida ainda
bordinável. Isso porque Emerenc Estudou latim e húngaro e atuou como no período do Império Austro-
deixa claro que é ela quem esco- Essa forma extremamen- professora nas ocupações alemã -Húngaro, na cidade de Debrecen,
lhe seus patrões, e não o contrário, te cética de ver o mundo não im- e soviética no país nos anos 1940. a autora viveu diferentes regimes
pois dizia que não lavava roupa pressionaria se a própria patroa Em 1947, publicou dois volumes de políticos. Em 1949, ela teve um
suja de “qualquer um”. A escrito- não se ofendesse tanto. Por algum poesia pelos quais recebeu o prêmio prêmio revogado pelo governo,
ra e o marido passam pela seleção motivo, a escritora quer a aprova- Baumgartner, em 1949. Entre seus que a considerava uma inimiga.
romances estão Freskó (1958) e Az oz
de Emerenc — que não se sabe ção de Emerenc, lê seus textos pa- Entre 1949 a 1956, período sta-
(1959). A porta foi publicado em 1987. A
exatamente que critérios tem —, ra ela, aguarda sempre um elogio, linista da Hungria, não teve per-
versão para o cinema (Atrás da porta),
e dali em diante são muitos anos tenta entender como pode recu- de 2012, dirigida por István Szabó,
missão para publicar seus textos.
de uma relação que reúne cuida- sar a religiosidade, como pode es- tem a atriz Helen Mirren no papel de É importante falar sobre a
do e agressividade quase na mes- tar alheia a discussões políticas Emerenc. Sua obra está traduzida em trajetória de Magda na literatura
ma proporção. As duas mulheres num contexto como aquele. Esse mais de 30 idiomas e foi distinguida porque a escrita e o meio literário
se tornam cada vez mais próximas, confronto perpassa toda a história com inúmeros prêmios internacionais. também são como personagens
mas isso tem um custo alto para enquanto também se desenvolve A autora faleceu em 2007. do livro. De certa forma autobio-
ambas e nos deixa na dúvida sobre uma dependência emocional en- gráfico, A porta mostra um pou-
quem está subordinada a quem. tre ambas. É como se, ao mesmo co como o processo artístico da
As atitudes de Emerenc tempo, Emerenc causasse estra- patroa se relaciona com cada fa-
afrontam os patrões. Ela mesma nhamento e encantamento. se da amizade com a empregada.
decide em quais horários vai com- Embora seja até invasiva no É interessante acompanhar, por
parecer para trabalhar. Um dia, trato com o ambiente onde tra- exemplo, um momento em que
junta quinquilharias de decoração balha, no que diz respeito à pró- a escritora se divide entre os pre-
adquiridas de um bazar no bairro e pria casa, Emerenc se comporta parativos para dar uma entrevista
as espalha em locais de sua própria de modo diferente. Ninguém tem na TV sobre um prêmio recebido
preferência pelos cômodos da ca- permissão para entrar no seu espa- e, ao mesmo tempo, resolver um
sa, gerando uma desavença de pro- ço. Sabe-se que ela mantém gatos impasse decisivo na vida de Eme-
porção quase difícil de assimilar, se e talvez alguns artigos de família renc. Além disso, Magda deixa
a personagem não fosse tão bem ou presentes. Mas ninguém po- claro que são cuidados de Eme-
construída. No final, eles cedem. de passar da porta. Amigos e vi- A porta renc que permitem que ela tenha
Além de dominar o lar em si, zinhos, quando convidados, são MAGDA SZABÓ condições de se dedicar à escrita.
a força de influência de Emerenc recebidos no quintal. Seu passa- Trad.: Edith Elek Responsável por proje-
Intrínseca
se estende para o cachorro adota- do é um quebra-cabeça que a pa- tar Magda Szabó internacional-
256 págs.
do pela família. O mascote Viola troa vai juntando aos poucos com mente, A porta foi publicado em
— nome escolhido pela funcioná- ajuda da comunidade e de fami- 1987. Só ganhou uma edição em
ria — obedece muito mais a ela do liares de Emerenc, ou até em uma inglês em 2005, pelas mãos de Len
que ao casal. Esse poder também visita à cidade natal dela — um Rix. O livro chega tardiamente ao
exala um carisma que só deixa a dos melhores trechos do romance. TRECHO Brasil em 2021, com tradução de
personagem ainda mais envolvente. A porta Edith Elek. A tradutora, filha de
Emerenc é mágica, atrai tu- Admiração e respeito húngaros que nasceu no Brasil,
do que estiver ao seu redor para lo- Mesmo com a rispidez com também é escritora. Por aqui, a lei-
go em seguida distribuir insultos que trata até as pessoas que se Todo mundo confiava em tura da obra tem sido estimulada
àqueles que lhe demonstram afe- aproximam para ajudá-la, Eme- Emerenc, mas Emerenc não com ajuda de clubes como o Leia
to. No caso da escritora que a con- renc representa praticamente um confiava em ninguém, ou, para Mulheres, uma importante via de
tratou, a agressão vem na forma de mito nesse espaço que habita, tem entrada para obras clássicas e con-
ser mais exata, ela destinava
críticas à religiosidade, com um co- a admiração, respeito e devoção de temporâneas e para as produções
mentário ácido na ponta da língua todos do bairro, é tratada quase as migalhas de sua confiança a de países que podem receber mais
cada vez que a mulher sai para ir à como uma entidade superior. É alguns poucos escolhidos. atenção do mercado editorial.
26 | AGOSTO DE 2022

fabiane secches
CADERNOS DE LEITURA
Ilustração: Sumaya Fagury

PARA A
MINHA AVÓ

“É
diferente estar quase ce Maria Cardoso, a autora es- tendiam até março, dependendo dela. Eu, que desde pequena ti-
morta do que estar creve: “A cabeça e o corpo da avó do calendário escolar. Passamos nha dificuldade de comer carne,
morta mesmo. É di- estavam a morrer, qualquer pes- inúmeros natais e anos-novos ia até a cozinha e pedia a ela, por
ferente, e só sei dis- soa podia ver isso, só que a cabeça juntos, algumas viagens e carna- favor, que deixasse o meu bife o
so agora que ela morreu.” A frase estava a morrer mais depressa do vais, muitas aventuras que só fa- mais achatado possível, e tam-
é da escritora Noemi Jaffe, em Li- que o corpo e, se isso não magoava ziam sentido para a gente. E isso bém o mais tostado, para que a
li, novela de um luto, um relato o corpo da avó, magoava o meu”. só foi possível porque meus avós textura não me lembrasse da va-
de inspiração autobiográfica em Enquanto escrevo esse tex- eram um alicerce sólido e uma ca que havia morrido para estar
que a autora narra o tempo mais to, faz um mês que perdi minha fonte inesgotável de disponibili- no meu prato. Carnívora como
agudo que se seguiu à morte da avó materna, aos 92 anos. Ela te- dade, interesse e amor. ela era, ainda assim, nunca ten-
mãe. Diante da absurda consta- ve uma vida longa para os pa- Ainda na infância, meus tou me convencer do contrário,
tação que a morte existe para nós drões estatísticos, uma vida longa pais começaram a construir uma e eu esticava os pés para acompa-
e para as pessoas que amamos, a e rica. Fez muitas amizades. Teve casa espaçosa, a nossa primei- nhar o que se passava na bancava.
cultura ocidental achou por bem uma filha, minha mãe, e um tio, ra casa, e como eram médicos Ela fazia exatamente o que eu pe-
recalcar o tema. que me deu primos amados, com com vidas profissionais exigen- dia. Eu também tinha que comer
Para onde vamos e para on- quem cresci tão misturada que tes, meus avós vieram morar co- verduras como as outras crianças.
de vão as pessoas que amamos, não saberia dizer qual foi a minha nosco e dividiram com ambos A carne não era a minha única di-
que ainda ontem estavam aqui, infância e qual foi a deles. Com- parte da maternidade e da pa- ficuldade alimentar, e todas eram
muitas vezes se refestelando na partilhávamos os mesmos avós, ternidade. Tínhamos sorte, mi- levadas em consideração pela mi-
vida, repletas de energia e proble- Dalva e Walther, compartilháva- nha irmã e eu, embora às vezes nha avó como assunto sério.
mas e sonhos que também não mos as mesmas férias, as mesmas também fosse confuso. É como A minha avó sempre en-
existem mais? Muitas religiões brincadeiras, o mesmo vocabulá- se naquela casa houvesse mais xergou a minha dor e sempre a
têm respostas e, às vezes, é tão rio afetivo. Vivíamos a 800 quilô- mães e pais do que filhas. Está- acolheu. Dizia que eu tinha um
reconfortante ouvi-las. A convic- metros de distância e, ainda assim, vamos sempre amparadas. “coração de ouro”, o que talvez
ção que me falta e lá está. éramos como irmãos. Por cerca de Embora tivéssemos aju- fosse uma forma de dizer que era
Há as pessoas que vão de- quatro meses do ano, estávamos da, minha avó acabava fazendo uma criança sensível, que me tor-
saparecendo devagar, definhando todos juntos. Nas férias escolares de tudo, sempre preferiu que as nei uma adulta sensível, e virava
aos poucos. No romance Eliete: a de julho e, depois, nas de dezem- coisas fossem do jeito dela. Co- uma fera se sentia que qualquer
vida normal, da portuguesa Dul- bro a fevereiro, que às vezes se es- zinhar, por exemplo, era tarefa pessoa abusasse da minha boa fé.
AGOSTO DE 2022 | 27

Ao mesmo tempo, sempre me dormia cedo e a essa altura já esta- uma dívida, e sim como um dese- cendo, mas me perguntou, como
tratou como uma amiga, nunca va no sétimo sono. O homem bo- jo. Éramos tão ligadas, nos com- se soubesse que eu a levava a sério:
com condescendência, e por is- nito, elegante, esbelto e delicado preendíamos tanto, que tinha a será que quando você vier, eles vão
so conseguíamos falar de todas as do dia a dia se transformava num sensação de que seria eu a segurar aparecer para você? Eu disse que
coisas. Talvez ela enxergasse tam- roncador profissional, com inter- a mão dela na despedida. Mas não não sabia, talvez tivesse a mesma
bém a minha força e vivia dizen- valos regulares, e picos altíssimos. foi assim que aconteceu. Minha sorte de compartilhar essa reali-
do que sentia orgulho da minha Aquela sinfonia me acalmava: sa- avó ficou viúva, depois de seis dé- dade. De novo, sem condescen-
inteligência, da minha imagina- ber com o que podia contar, que cadas de um casamento que sem- dência. As nossas conversas eram
ção e da minha habilidade com o silêncio era sempre temporário, pre nos inspirou, e reagiu a isso improváveis, mas honestas.
a palavra escrita. Acho que her- que logo viria o estrondo, eu ia en- com a fibra que sempre teve, com O último ano foi muito di-
dei dela o talento, se é que posso trando em ressonância e adorme- o pragmatismo que sempre teve, fícil para a nossa família. Um ano
chamar assim, de ouvir, ler, ver e cia. Era a única neta que gostava e que tantas vezes me falta. E en- de muitas perdas. O mundo pro-
contar histórias. No lugar das pe- do ronco do vovô. Minha avó e eu tão, com oitenta e oito anos, ela se dutivista nos cobra algo que nem
ripécias que encontrávamos nos li- compartilhávamos essa intimida- mudou de cidade para estar mais sempre podemos dar. Temos que
vros habituais, ela inventava tudo, de sem mencioná-lo, como se fos- perto dos meus primos e de seus nos consertar, como máquinas, e
do começo ao fim, e eram sem- se um grilo tagarela, um coaxar de primeiros bisnetos — que, como seguir em frente. Mas o que fazer
pre histórias singelas, lentas, ricas sapo, o canto de uma cigarra, ou- nós, também a adoravam. se ainda não me sinto consertada?
de detalhes, histórias perfeitas tros sons tão comuns à minha in- Até pouco antes de morrer, O que fazer se sinto que preciso
para que uma menina angustia- fância numa cidade pequena de ela estava completamente lúcida e de mais tempo do que o mundo
da com a noite conseguisse entrar Minas Gerais. Eu batia à porta relativamente saudável para uma pode me dar?
em outros mundos e adormecer. e ela abria. Era sempre a última mulher de 92 anos. Muito ativa e Quando soube da morte
Ainda hoje posso ver uma moça a dormir e a primeira a acordar, cheia de opiniões, o que muitas dela, viajei imediatamente, em-
bonita sentada com um vestido um poço de eletricidade, peque- vezes nos dava bastante trabalho, barquei no primeiro voo. Ain-
leve de verão de tecido cor ver- na, magra, ágil, enérgica, brigona. porque para que ela concordasse da assim, perdi o velório, perdi a
de água e um chapéu amarrado Havia muito drama, muita inten- em seguir um tratamento médi- chance de abraçá-la pela última
na cabeça por uma fita da mesma sidade, sempre. Mas comigo, co- co, ou em ter ajuda de uma cui- vez. Essa falta sempre ficará comi-
cor com um laço logo embaixo migo ela não brigava. Comigo, ela dadora para coisas mínimas, era go e passará a me constituir, como
do queixo, sob uma árvore fron- era de uma delicadeza, de um cui- sempre uma batalha. Minha avó todas as experiências importantes
dosa, num campo vasto cheio de dado, de uma adoração. Eu dizia: prezava por autonomia, e foi as- nos constituem. Ouço muitas ve-
outras plantas, talvez às margens vovó, eu te amo. E ela me respon- sim até o fim. zes o último áudio que ela me
de um lago. Já meu pai contava as dia: e eu, te adoro. Eu pergunta- mandou no WhatsApp (felizmen-
histórias mais engraçadas e esca- va então, desapontada, porque Um gato te, tenho muitos), tão amoroso,
tológicas: criou um personagem ela não me amava de volta e ela Nos últimos meses, eu sen- cheio de vitalidade, mas, ouvindo
chamado Babacurso, um urso me dizia que, no seu dicionário, ti que ela estava indo embora. assim em retrospecto, com um ar
ingênuo, mas muito grande, de- adorar era muito mais, era além Ela teve um gato que adorava, e de despedida. Chegando na casa
sastrado e comilão, que vivia fa- de amar. Fui entendendo com o com quem viveu por treze anos, dela, mesmo sem um corpo para
zendo estragos por onde passava, tempo e hoje sei exatamente o que um gato lindo e velho como ela, abraçar, quis dormir na cama de-
e acaba salvando a floresta, invo- quer dizer. Minha avó me adora- e quando percebeu que não con- la, no travesseiro dela, com os len-
luntariamente, com seu funciona- va. Ela me chamava de “meu bis- seguiria mais cuidar dele da ma- çóis dela. Quis tomar banho no
mento intestinal particular, com cuit” e de “minha santa”. O “meu neira que ele precisava, me pediu chuveiro dela, usando o sabone-
seu bafo devastador. Nos dias de biscuit” sei que é porque quando para fazer isso por ela. Meu ma- te dela, o sabonete recém-aberto,
Babacurso, os palavrões pulula- nasci, e ela me conheceu na ma- rido e eu o acolhemos imediata- mas que deve ter tocado o corpo
vam, e minha irmã e eu fecháva- ternidade, ficou encantada, como mente, e ele viveu mais dois anos da minha avó ao menos uma úni-
mos a porta do quarto, como se se eu fosse uma daquelas bone- com a gente e com as nossas ga- ca vez. Quis me olhar no espelho
entrássemos em uma sessão secre- cas de louça. O “minha santa” eu tas, um período de harmonia co- que ela se olhava todos os dias, e
ta da qual os outros adultos não nunca entendi, mas sabia que não mo poucos que experimentamos. tirei uma foto da minha imagem
podiam participar, sob pena de vinha de uma idealização católi- Morreu meses antes dela. Tê-lo refletida nele, imaginando quan-
censura. Mas a verdade é que to- ca — o que ela era, muito. Vinha aqui não foi um ônus de forma tas vezes a imagem dela também
dos sabiam divertidos o que acon- da tal adoração. Como se assim, alguma: compartilhar esse ga- foi refletida ali. Pensei que era o
tecia lá dentro. Entre as histórias sendo a santa dela, fosse permiti- to com a minha avó, comparti- que me restava, a minha forma de
bucólicas de vovó e os contos bes- do me amar da forma que ela me lhar o amor que sentimos por ele, me despedir. Quantas células dela
teirentos de papai, crescemos as- amava, como se assim não fosse conhecê-lo na intimidade como ainda deviam vagar por ali.
sim, minha irmã e eu, com nossa uma heresia. Quando eu batia à apenas nós conhecíamos, foi uma Minha avó foi uma mulher
própria costura de referências. porta, e podia ser tarde da noite, maneira de estarmos juntas mais brilhante, forte, vigorosa, linda,
ela sempre abria, pegava um col- uma vez. Ele foi perfeito em cada amorosa e difícil. Se hoje escre-
Contemplação e humor chão azul que guardava embai- dia que esteve aqui. vo, sou devedora de um caminho
Quando fui alfabetizada, xo da cama, enquanto eu entrava Depois disso, ela passou a que ela apenas pode começar,
passei a escrever livrinhos e depois com meu travesseiro. Ela me co- ver um gato que vinha visitá-la de porque precisou, com muito pe-
algumas crônicas e contos, pas- bria com lençol e um cobertor fi- vez em quando. Fiz perguntas cui- sar, interromper os estudos com
sando um pouco mais tarde para no e amarelo. Nas noites mais dadosas e descobri que ela mes- doze anos. Fico imaginando o que
romances de gaveta. Fui perceben- frias, também com um edredom. ma sabia que não era um gato real, ela teria feito com mais recursos,
do, aos poucos, que tudo come- Como eu gostaria de me lembrar nenhum gato concreto que conse- como ela mesma sempre imagi-
çou ali, nas histórias que aqueles de cada detalhe, como eu gosta- guia escalar até o seu apartamento, nou. Eu disse muitas vezes, em vi-
adultos nos contavam com tanta ria de estar naquele quarto hoje, atravessar a tela, entrar e sair co- da, que tinha orgulho de ser neta
habilidade, excelentes narradores, enquanto escrevo esse texto, es- mo bem queria. Ela sabia que era dela, e agora quero dizer uma vez
complementares em temas e esti- cutando o ronco do vovô — a vi- um gato diferente. Uma espécie mais. Aqui, nessa coluna assinada,
los. Eles não podiam saber à épo- da dele vibrando — e sussurrando de delírio, para a medicina. Para por escrito, para que fique regis-
ca, mas em conjunto estavam nos com a vovó, enquanto ela me aco- mim, era apenas uma outra his- trado para a posteridade. Minha
preparando para viver nesse mun- lhia. Eu perguntava se ela não sen- tória, como as muitas que ela me avó me abasteceu de amor e de fé
do tantas vezes sem sentido, nesse tia medo e ela não me dizia que contava. E eu a escutava interes- em mim mesma — lia e guarda-
mundo em que construímos sen- fantasmas não existiam, ela não sada: o que ele fazia, onde deita- va muitos dos meus textos. En-
tido à medida que contamos uma me dizia que não havia razão pa- va, como era. De repente, passou contrei um conto que escrevi aos
história. Vovó Dalva me ensinou ra ter medo. Ela me dizia que sim, a ser uma ninhada inteira que se oito anos em uma de suas caixas,
a arte da contemplação. Papai, a também tinha medo, mas agora acomodava embaixo da cômoda enquanto desmontávamos a últi-
arte do humor. Dois instrumen- estávamos juntas. E eu me sentia do quarto. Eu perguntava o que ma casa em que ela viveu.
tos valiosos para sobreviver a to- acompanhada, compreendida e, minha avó sentia quando os via, Ela não está mais aqui, fi-
da sorte de desafios que viríamos assim, logo adormecia. se sentia medo ou alegria. Era ale- sicamente, e eu sinto falta da sua
enfrentar, conforme crescíamos e Sempre tive uma fantasia de gria. Eles a faziam companhia, ela voz, do seu abraço, das nossas con-
nos tornávamos adultas. que, quando ela morresse, eu es- se sentia bem com as visitas, dor- versas, do seu temperamento. Mas
Nas noites em que eu sen- taria com ela. No momento exa- mia melhor com elas por perto. sei que posso recorrer a esse vasto
tia mais medo, era ao quarto dos to da passagem. Como ela esteve Então me disse que não gostava de depósito de afeto que ela me dei-
meus avós a que eu recorria. Vo- por mim, de tantas outras formas, contar isso para ninguém, porque xou como herança quantas vezes
vô Walther, metódico como era, em todos esses anos. Não como achavam que ela estava enlouque- precisar, enquanto eu durar.
28 | AGOSTO DE 2022

rascunho recomenda INFANTOJUVENIL HQS

Nina Simone é uma das maiores cantoras do século 20 e também um Vampiros nunca envelhecem apresen-
ícone do movimento negro. Esta biografia ilustrada, feita para jovens ta aos leitores o que se pode chamar de
leitores, mostra como a música e o ativismo se entrelaçaram na trajetória uma “evolução” a respeito dessa criatu-
da artista americana, que transitou pelo jazz, R&B, blues e folk. Mas, ra tão amada e enigmática. Há histórias
antes de ser Nina Simone, ela era Eunice Kathleen Waymon, uma sobre vampiros stalkers das redes sociais,
menina prodígio que aprendeu as primeiras notas no piano no colo vampiros rebeldes, famintos por mais do
do pai. Quando as portas se fecharam por causa da cor de sua pele, ela que apenas sangue e vampiros ansiosos pa-
compreendeu que seu talento poderia não ser suficiente para alcançar ra debutar — e para arranjar sua primei-
seus objetivos. Ela, por exemplo, foi impedida de ingressar em um ra vítima. Editado por Zoraida Córdova
Nina — Uma história instituto de música, na Filadélfia. Mas, devido ao seu ativismo e talento, e Natalie C. Parker, traz histórias de au- Vampiros nunca
de Nina Simone cantou no enterro de Martin Luther King. Nina ocultou sua mágoa tores best-sellers, incluindo Samira Ah- envelhecem
TRACI N. TODD
e perseverou, encontrando uma maneira de se expressar, apesar dos med, Dhonielle Clayton, Tessa Gratton, ORG. ZORAIDA CÓRDOVA E
Pequena Zahar obstáculos. Ao exigir justiça, seu clamor ecoou por todo o mundo, e seu Heidi Heilig, Julie Murphy, Mark Oshi- NATALIE C. PARKER
64 págs. legado continua sendo até hoje um apelo à ação e à esperança. ro, Rebecca Roanhorse, Laura Ruby, Kay- Galera
DIVULGAÇÃO la Whale e V. E. Schwab. 266 págs.

Com uma trajetória longa na literatura, o


português Afonso Cruz soma mais de 30
obras, entre romances, livros de contos,
ensaio, poesia e teatro. Em A contradição
humana ele mostra suas ideais para o pú-
blico infantil. Vencedor do Prémio SPA/
RTP para melhor livro de literatura in-
fantojuvenil de 2011 e selecionado para
a exposição White Ravens (2011), a obra
apresenta bravos domadores de leão que A contradição humana
não domam o próprio medo de microscó-
AFONSO CRUZ
picos micróbios, pessoas solitárias cerca- Peirópolis
das de “amigos”, entre outras incoerências 32 págs.
de um mundo em que, contraditoriamen-
te, todas as coisas estão ao avesso, embora
permaneçam em seus lugares.

O que primeiro chama a atenção em Os


irmãos é sua diagramação e estrutura.
A obra é composta por três pequenos li-
vros ao mesmo tempo independentes e
unidos entre si. As três narrativas contam
as vantagens e desvantagens de cada ir-
mão. As histórias estão encadernadas em
tamanhos diferentes, conforme o perso-
nagem: o irmão mais velho, no cader-
no maior, o irmão do meio, no caderno Os irmãos
médio, e o irmão mais novo, no caderno PATRICIA AUERBACH
menor. Um livro divertido sobre as delí- FTD
cias da irmandade. 72 págs.

Os fãs de Hunther S. Thompson não es-


quecem dos marcantes desenhos de Ralph
Steadman que povoam o clássico Medo e
delírio em Las Vegas. Mas esse é só mais
um de seus trabalhos marcantes. Artista
Pode me chamar de Dodô Meu diário de Nova York prolífico, com mais de 60 anos de carrei-
ra, Steadman produziu milhares de obras
DANIELLA MICHELIN JULIE DOUCET
ÔZé Veneta
de arte inovadoras e influentes. Em Sig-
208 págs. 104 págs. mund Freud, o britânico usa sua sagaci-
dade e sua caneta feroz para transformar Sigmund Freud
os acontecimentos mais significativos da
RALPH STEADMAN
Desenvolvido como trabalho de conclusão “Não é exagero dizer que os quadrinhos de Julie vida do gênio da psicanálise em situações
Nova Fronteira
de curso da escritora Daniella Michelin, Doucet mudaram a história dos quadrinhos.” típicas de anedotas. Esta biografia pouco 120 págs.
Pode me chamar de Dodô discute de Essa foi a definição da Paris Review sobre o ortodoxa baseia-se nas técnicas de chiste
forma filosófica questões do cotidiano. As trabalho da autora canadense, que em 2022 do livro do próprio Freud.
ilustrações de Elisa Carareto trazem o sentido ganhou o Grand Prix de Angoulême, maior
espacial de observação do universo de um premiação dos quadrinhos na França. Meu
jardim, em sintonia com partes principais diário de Nova York é um retrato franco a Inspirada no conto popular do peixinho
do texto. Haroldo, ao se relacionar com respeito das ambições, angústias, sonhos e que morreu afogado, já contado por
outros bichos do jardim, traz à luz questões tropeços de uma jovem mulher iniciando sua Mário Quintana e que teria sido a
como amizade e respeito, misturando um vida sexual e profissional. As HQs do álbum primeira história infantil escrita por
campo harmônico a uma visão de dentro foram lançadas pela primeira vez em 1998 e Monteiro Lobato, essa narrativa renasce
para fora do jardim de uma casa habitada esse é o primeiro livro de Doucet publicado em nova roupagem, desta vez retratando
por alguns bichos estranhos, dentre eles o no Brasil (e na América do Sul). Saudada logo com ironia o estilo de vida alucinante
bicho-equilibrista (humano). Os humanos, no início de carreira por grandes mestres do das grandes cidades e sua tão difundida
que detêm o poder e o exercem em proveito quadrinho norte-americano como Robert concepção de sucesso e felicidade. A autora
próprio, não enxergam os demais seres Crumb, Aline Kominsky-Crumb e Art Marilia Pirillo e o artista Eloar Guazzelli A velha história
daquele universo. A invisibilidade e as Spiegelman, Doucet foi ela própria a mestra mostram que, enquanto a “vida moderna” do peixinho que
relações políticas e sociais dos micro e macro pioneira que inspirou uma nova geração de proporciona mais agilidade, informação morreu afogado
poderes estão intercaladas na máxima da quadrinistas, de Marjane Satrapi à brasileira e conforto, também nos deixa cada vez MARILIA PIRILLO
convivência e coexistência entre os diferentes Fabiane Langona, para quem a canadense é menos tempo para desfrutar o simples e Saíra
seres em um território comum. “ídola de sempre”. para praticar o exercício do sonhar. 52 págs.
AGOSTO DE 2022 | 29

O valor de um
REPRODUÇÃO

coração puro
A narrativa cinematográfica de Aldobrando
faz de um livro de quadrinhos uma experiência
de leitura que se aproxima da arte do cinema

RAQUEL MATSUSHITA | SÃO PAULO – SP

B
atizado pelos próprios
autores como um “con-
to iniciático”, Aldo-
brando tem o roteiro
de Gipi e o desenho de Critone,
colorido por Claudia Palescan-
dolo e Francesco Daniele. Es-
sa nomeação faz muito sentido
se pensarmos na condição de ig-
norância de vida do personagem
que dá título à obra — um jovem Aldobrando
sem malícia alguma e desprovido CRITONE & GIPI
de grande inteligência (o caris- Trad.: Renata Silveira
Nemo
ma imediato me impede de cha-
208 págs.
má-lo de burro) — que o coloca
absurdamente desprotegido dian-
te dos homens mundanos. Mes-
mo sua característica mais nobre, Muitas cores mano, a manifestação mais sofisticada do espírito
a lealdade, é uma porta de entra- Aldobrando parece ser um humano”. O humor está presente tanto nos diálo-
da para humilhações. Até que, lo- grande storyboard, com tomadas gos quanto na construção dos personagens, seja na
go no início da aventura, o fiel de cenas que não revelam tudo, morfologia, seja nas situações inusitadas — e apavo-
Aldobrando, para salvar a vida OS AUTORES personagens de costas, por exem- rantes — que vivenciam. No encontro do nosso he-
de seu grande mestre, sai de ca- LUIGI CRITONE plo, nos dão a oportunidade para rói com um fugitivo de aparência duvidosa, que se
sa com suas pernas de passarinho imaginarmos as feições. A meto- esconde dentro de uma toca isolada da aldeia, temos
rumo à floresta em busca da “erva Nascido em 1971, em Sant’Arcangelo nímia de alguns enquadramentos, o seguinte diálogo:
do lobo”. Esse ato primário é uma (Itália), estudou arte em Roma. Em somente a entrega de um objeto
passagem de iniciação do persona- seguida, foi aluno da famosa Escola pelas mãos, a parte pelo todo, ten- — Meu nome, escudeiro, é Sir. Gennaro Mon-
gem para a vida real. Internacional de Quadrinhos, em ciona ainda mais a cena. Outro as- tecapoleone Delle Due Fontane. Filho de Brudagone
Florença. Com roteiro de Nicolas Jarry
À medida que avancei na pecto interessante é a vasta paleta Montecapoleone Delle Due Fontane, dito o “desposa
e France Richemond, desenhou livros
leitura, tive a impressão de estar de cor. Graficamente, elas anun- moçoilas”. E você, plebeu, tem um cognome ou devo
da série La rose et la Croix, assinando
diante de uma tela de cinema, pois dois volumes em 2005 e em 2006.
ciam, em muitas situações, uma forjar-lhe um?
o modo de narrar se assemelha, a Critone adaptou a biografia de Jean mudança de cena, tal qual um cor- — Aldobrando, vossa senhoria.
meu ver, ao de um filme. O enqua- Teulé sobre o poeta François Villon: te de filmagem, potencializando- — Então doravante você será Aldobrando das
dramento dos desenhos com clo- Je, François Villon. A série de três -as. O livro começa com uma cena Tocas Alheias, escudeiro e aio de Sir. Gennaro Mon-
ses silenciosos, sem balão de fala, volumes, publicada entre 2011 e 2016, dramática em tons frios e, ao virar tecapoleone Delle Due Fontane, filho de Brudagone
intensifica a expressão dos perso- recebeu o prêmio Cases d’Histoire. a página (o projeto gráfico clara- Montecapoleone Delle Due Fontane. O que acha?
nagens, assim como os takes pa- Em parceira com Gipi, Critone mente prevê o movimento do lei- — Só Aldobrando basta.
norâmicos revelam cenários que, desenhou Aldobrando, descrito pelos tor nos segundos que se leva para o
mais do que situam o leitor, os co- autores como um “conto iniciático”. virar de uma página), nos depara- No entanto, é por meio do humor que se fa-
Em 2021, o livro foi selecionado pelo
locam dentro da história. Esse en- mos com outra paleta de cor com la de coisa séria. A trama, como evidente crítica so-
Grand Prix de la Critique e pelo Fauve
quadramento cinematográfico me tons quentes, alaranjados, num cial, aborda os espectros de uma sociedade injusta,
d’Or no Festival de Angoulême.
remete à fala do cineasta alemão tempo progresso. O contraste de violenta, para não dizer doente. A corrupção, a trai-
Wim Wenders, no documentário GIPI cores entre as cenas deixa o frio ção, a ganância e o abuso do poder se instalam nos
Janela da alma (2001), de Eduar- mais frio e o quente mais quente. meandros das relações humanas. Um exemplo é
do Coutinho. Ao responder a per- (o pseudônimo de Gian-Afonso A percepção cinematográfi- o inescrupuloso rei, beberrão e altamente desagra-
gunta O que é mais importante no Pacinotti) é um dos mais renomados ca da obra não me parece simples dável. Com um toque de criança mimada em sua
enquadramento?, o cineasta, após cartunistas e ilustradores italianos coincidência. Gipi, um dos mais aparência, ele personifica tudo o que há de pior no
de todos os tempos. Ele nasceu
ajeitar os óculos que o faz ver o renomados cartunistas e ilustrado- ser humano. A princesa, que, antes da morte da ra-
em Pisa, em 1963, e vive em Roma.
mundo através de um frame, diz: res de todos os tempos, bebe dessa inha, ocupava o lugar de enteada, passa a ser moti-
Começou a publicar contos em
revistas italianas satíricas em 1994,
fonte. Depois de criar e dirigir vá- vo de cobiça erótica deste repugnante rei.
O enquadramento é algo enquanto trabalhava como ilustrador rios curtas, ele lançou em 2011 seu Mas, sejamos justos, pois há que se falar do
muito estranho porque o que es- para o mercado editorial e para a primeiro longa-metragem, L’ultimo amor. “Às vezes, basta o valor de um coração puro
tá fora é quase mais importante do imprensa internacional. Em 2006, seu terrestre. Em 2018, dirigiu o filme para derrubar a tirania.” Dentre os desastres que se
que o que está dentro. Costumamos livro Appunti per una storia di guerra Il ragazzo più felice del mondo. Os sobrepõem na trama, nasce também uma história ro-
olhar um enquadramento pelo que ganhou os prêmios de Melhor Roteiro desenhos de Critone, também com mântica. Há espaço para reencontros e reconstruções
ele contém, num quadro, numa foto e Melhor Álbum no prestigioso Festival vasta obra publicada, contribuem de vida. Por último, deixo a frase contida no “Grande
ou num filme. Normalmente, pen- Internacional de la bande dessiné para trazer movimento e música à manual do feiticeiro”, como um enigma a ser revela-
samos no que está no interior. Mas o d’Angoulême, o que consagrou ainda obra, elementos básicos do cinema. do: “E ele trará consigo a recompensa por essa gran-
mais seu trabalho internacionalmente.
verdadeiro ato de enquadrar consiste Com aguadas precisas, traços bas- de mudança”. Ao final, saboreamos uma sequência
Depois de criar e dirigir vários curtas
em excluir algo. Acho que o enqua- tante expressivos e cheio de deta- de imagens cinematográficas que dispensa palavras.
independentes, para web e televisão,
dramento se define muito mais pe- Gipi lançou em 2011 seu primeiro
lhes, ele constrói planos profundos Aldobrando foi selecionado em 2021 pe-
lo que não se mostra do que pelo que longa-metragem, L’ultimo terrestre. E na leitura das imagens. lo Grand Prix de la Critique e pelo Fauve d’Or no
se mostra. Há uma escolha contínua em 2018, dirigiu o filme Il ragazzo più O humor é algo que tam- Festival de Angoulême. Agora editado pela Nemo,
quanto ao que será excluído. [...] felice del mondo. Suas graphic novels bém salta aos olhos neste livro. Já com tradução de Renata Silveira, é um deleite aos
Portanto, o enquadramento tem to- estão traduzidas em vários idiomas dizia Freud: “o humor é o mais ele- fãs de quadrinhos, de literatura e daqueles que sim-
tal relação com o contar da história. e premiadas na Itália e no exterior. vado grau de sofisticação do ser hu- plesmente apreciam a arte.
30 | AGOSTO DE 2022

nilma lacerda e maíra lacerda


CALEIDOSCÓPIO
Ilustração: Maíra Lacerda

FRONTERA:
UMA COLEÇÃO

A
América Latina, assim
nomeada no século 19
por interesses estrangei-
ros, basicamente fran-
ceses, em busca de oposição à
América anglo-saxônica, define-
-se pelos idiomas latinos — espa-
nhol, português e francês — do
processo colonizador, baseado na
exploração, em vez da perspectiva
de uma nação a construir, tal co-
mo foi pretendido ao Norte pelos
emigrantes ingleses. No entanto,
também aí, a tônica foi o geno-
cídio, o apagamento das culturas
nativas e a consideração da histó-
ria a partir da chamada descoberta.
A memória volta-se para os atos de
ocupação do território, conceden-
do-se aos habitantes anteriores o
rótulo de exóticos e inferiores. O
percurso marcado pela opressão ça a circular no final do século rios países: Colômbia, Argentina, da (O mar nunca transborda),
e despotismos variados, além do e continua vigorosa neste início Brasil — com significativo nú- de Ana Maria Machado, e Len-
empenho deliberado para a frag- do 21, localiza a arte no espaço mero de obras —, Chile, Suécia e gua madre, de María Teresa An-
mentação identitária, traduz-se de uma fronteira indômita, lugar Grécia, de onde vêm clássicos da druetto, que confere à língua mãe
bastante bem naquilo que Eduar- de liberdade, em que o indivíduo luta contra ditaduras, aquelas que o papel de recomposição da pro-
do Galeano resume em O século não se encontra submetido ao eu submetem todo um país, aquelas tagonista com a história pátria e
do vento: “A América Latina é um intransigente e radical, nem à ti- que submetem a infância. com a história pessoal, marcadas
arquipélago de pátrias bobas, or- rania de um pensamento alheio; A experiência do abandono por dolorosas rupturas.
ganizadas para o desvínculo e trei- nem sucumbir aos próprios delí- infantil, fruto de condições sociais Frontera é, portanto, uma
nadas para desamar-se”. rios, nem alienar-se de si, sucum- de extrema desigualdade, e as ex- coleção em consonância com a
Galeano falou de situação bindo ao desejo do outro, tal a periências radicais daí originadas identidade vitalista desta Améri-
visível ainda no século passado função dessa zona. são partilhadas em No comas re- ca Latina, com seu toque carna-
e que não terá se modificado de Montes focaliza o papel da nacuajos, de Francisco Montaña valizado, crítico, lírico e corajoso,
forma substancial no presente, escola em alargar ou estreitar essa Ibañez, obra aguda e quase insu- em um mundo de ponta-cabeça
embora tenham ocorrido e ocor- região, que responde diretamen- portável na exposição da miséria e com permanente reinvenção de
ram importantes movimentos de te pela maior ou menor capaci- humana; a poesia e a muda cons- regras, a fim de enfrentarem-se os
aproximação entre essas nações, dade de realizar com sucesso as ciência da infância em face da his- perigos inesperados do existir. As-
com base no reconhecimento de travessias pessoais e a compreen- tória, no viés familiar e nacional, sim, em El día de la mudanza,
um passado histórico e cultu- são das circunstâncias sociais e representam-se com ousadia e de Pedro Badrán, os protagonis-
ral comum. Na década de 1990 históricas. Pródigos em reflexões, sinceridade em Álbum familiar, tas movimentam-se no intrinca-
e nos primeiros anos do século análises e troca de experiências, de Sara Bertrand. A infância co- do tabuleiro advindo da derrocada
21, vimos acontecer ações que os encontros aludidos colabora- mo assento do afeto, do medo e financeira do pai, enfrentando,
reverberaram em fértil troca so- ram para gerar e fortalecer ações do recalque é o ponto-chave das junto com a mudança de casa,
bre a identidade latino-america- editoriais voltadas a pautas lati- obras de Helena Iriarte, que con- a mudança do valor que a famí-
na. No campo específico de que no-americanas. fere à memória delicado toque lia tem como peça no jogo social.
falamos, os nomes de Silvia Cas- Dentre tantos projetos sé- de intimidade, bem diverso dos Fragilidade, descarte, exposição
trillón, Elizabeth D’Angelo Serra rios e bem embasados neste apresentados por Rogério Pereira aos males de que estavam ante-
e Emilia Gallego Alfonso respon- campo, destacaríamos a coleção e Bartolomeu Campos de Quei- riormente protegidos traduzem a
deram, na Colômbia, no Brasil e Frontera, descortino exemplar da rós. En la oscuridad, mañana situação de perplexidade generali-
em Cuba, por encontros sobre a colombiana María Osorio, com (Na escuridão, amanhã) e Ro- zada: “Dizem que o pai de Samuel
formação leitora da infância e da publicações que visam alcançar jo amargo (Vermelho amargo), é um mafioso, embora eu ainda
juventude e a produção literária leitores com experiência de leitu- o pano de fundo são os aprisiona- não saiba se esse é um título de
concernente a essas faixas. A cir- ra, em volumes sóbrios e forma- mentos de origem psíquica, exer- nobreza ou uma censura”.
culação de obras com destaque to que foge ao design habitual das cidos na dimensão familiar por Sempre condenados a le-
para vozes de problematização e obras consideradas juvenis. Ne- crueldade, opressão, preconcei- vantar um véu para enxergar
resistência, conferindo maior vi- nhuma ilustração acompanha as tos, sentimentos destrutivos. Em além da superfície dos fatos, co-
sibilidade às tradições indígenas temáticas complexas, em alta vol- Pluma de ganso (Pena de gan- mo faz o personagem Pedro, em
e africanas, foi uma das conse- tagem literária, na qual a proble- so), de Nilma Lacerda, é uma La noche de las cosas, de Lau-
quências desses encontros. matização é o viés escolhido para questão de gênero que encerra a ra Escudero Tobler, nós, leitoras,
O “olhar oblíquo”, de que o diálogo com as demandas críti- menina Aurora na condição de leitores da América Latina rea-
fala Ricardo Piglia, fomentará a cas do jovem em sintonia com o analfabeta e abre discussões sobre lizamos a travessia pela história,
consciência de um pensamen- contemporâneo, sem perda, po- o destino feminino, tema recor- valendo-nos da fronteira indô-
to local, na criativa tensão com rém, de uma perspectiva poética, rente na literatura contemporâ- mita, mas ignorando fronteiras
ensinamentos passados e matri- vital ao humano. nea, e ao qual Marina Colasanti entre os países ou entre as ida-
zes estrangeiras. José Martí e Ra- Vislumbrar uma América concede densidade e complexida- des. Esse o visionarismo da edi-
fael Pombo, no século 19, Lobato Latina de diversidades que se re- de incomuns na obra Entre la es- tora de Babel Libros, com títulos
e Cecília Meireles no século 20, conhecem e se estreitam no abra- pada y la rosa (Entre a espada e que dão a conhecer parte da his-
juntam-se à argentina Graciela çar de suas origens e questões não a rosa). Outros textos de Frontera tória de autoritarismo e opressão
Montes na formação de um blo- é exatamente um objetivo do pro- apresentam essa questão, recon- que caracteriza esses países, junto
co crítico que fala do lugar da jeto editorial, mas uma evidência tando a história a partir de rela- à luta e ao lirismo postos na ba-
América Latina e para esta Amé- de sua construção, patente nos vo- tos por tanto tempo sufocados, se de um porvir sonhado como
rica. Montes, cuja obra come- lumes que incluem autorias de vá- como em El mar no se desbor- tempo justo e feliz.
AGOSTO DE 2022 | 31

tércia montenegro
TUDO É NARRATIVA

OBJETOS TRANSITÓRIOS

J
DIVULGAÇÃO

á tratei da literatura de Menções à histeria sur-


Siri Hustvedt em textos gem igualmente em O mundo
anteriores nesta coluna em chamas, com a lembrança de
— mas preciso voltar à Anna O., famosa referência nos
escritora porque recentemente ela estudos de Breuer e Freud. Essa
me provou como algumas obras personagem, como tantas outras
parecem nascer da mesma safra, mulheres silenciadas, rotuladas
são obras irmãs e, portanto, ideal- ou diminuídas ao longo da his-
mente merecem ser lidas em se- tória, ressurge como um símbo-
quência, ainda que não pertençam lo de poder. Afinal, O mundo
a um ciclo ou “saga”. O que eu em chamas é um livro poderosa-
amava e O mundo em chamas mente feminista, que afirma: “To-
são, nesse sentido, livros gêmeos. da artista mulher se depara com
À primeira vista, o segun- a propagação insidiosa do status
do apresenta uma estrutura bem quo masculino”. A protagonista
diferente do primeiro, que de- Harriet Burden decide, então, de-
senvolve uma narrativa mais monstrar o preconceito de gêne-
clássica. Entretanto, apesar de ro na sociedade, fazendo com que
O mundo em chamas sugerir suas obras de arte circulem sob o
um dinamismo maior, pela nar- nome de três homens — que des-
rativa que se distribui em diver- pertam o interesse imediato dos
sas vozes (Hustvedt circula com marchands e do público.
maestria por diversos estilos) e Os dois romances trazem
pela mistura de textos, que en- reflexões sobre massificação, mer-
volvem fragmentos de diários, cado e mídias, mas em O mundo
cartas, depoimentos ou entre- em chamas encontramos um teor
vistas, as obsessões temáticas são ainda mais direto de denúncia.
idênticas. Harriet Burden e Bill Num trecho do diário de Harriet
Wechsler são protagonistas que Burden, vemos como ela se entre-
produzem, ambos, instalações ga à paródia de um discurso cura-
com caixas, exploram conexões torial: “A aporia na obra de X é
intertextuais e buscam a própria alcançada por meio dos proces-
identidade através da arte. Para sos de autoindução para ausência.
os dois, seria válido o mesmo re- Os atos autoeróticos com origem
sumo: “(...) a trajetória de sua ex- sexual implícitos, portanto invi-
periência artística se transformou síveis, dão abertura a um colap-
em movimento na direção de so abismal, a fantasias de ruptura
uma ambiguidade crescente e si- e à retirada do objeto de desejo”.
nistra”. (O mundo em chamas) Logo adiante, ela admite que “a
Apesar de às vezes Hust- fabricação dessa prosa pretensio-
vedt parecer salpicar seu enredo sa e simulada” poderia matá-la, e
de âncoras eruditas meio gratui- outra personagem do livro acres-
tas, ela também constrói aproxi- centa: “Críticos de todas as estir-
mações interessantes (no sentido pes gostam de se sentir superiores
de imprevisíveis ou estranhas) en- a uma obra de arte; se ela os con-
tre assuntos diversos, que vão se funde ou intimida, é mais prová-
tangenciando pelas realizações ar- vel que a destruam”.
tísticas dos pintores. Assim, em Há também a presença
O que eu amava a pesquisa de- de personagens secundários e
senvolvida pela segunda esposa insanos — o Senhor Bob, um
de Bill Wechsler, Violet, acerca sem-teto que profere bênçãos es-
das pacientes histéricas do hos- tranhas e fala sobre móveis anti-
pício La Salpêtrière, vira inspira- gos possuídos por fantasmas, em
ção para uma série de instalações O que eu amava, e o Barôme-
sobre a histeria. tro, outro desabrigado, acolhido
Essas mulheres, vítimas de por Harriet Burden: um lunático
uma medicina machista —, que que acreditava registrar, em sua
até hoje interfere vorazmente nos Siri Hustvedt, autora de O que eu amava e O mundo em chamas cabeça, cada mudança na pres-
corpos femininos — eram sub- são do ar. Talvez sejam estes se-
metidas a vários experimentos, res errantes, que atravessam os
dentre eles a dermografia, o ato de do La Salpêtrière. Certamente, is- posa. Uma série híbrida, com telas livros parecendo apenas repetir
escrever sobre a pele, induzindo so faz ressoar a ambiguidade dos e instalações, tanto parece recu- os cacoetes de seus delírios, uma
inflamações que pareciam osten- primeiros quadros de Wechsler, perar a proposta deformante dos verdadeira chave de leitura para
tar a assinatura dos médicos, co- quando ele pintou Violet em va- corpos (pois as crianças, conforme a obra de Siri Hustvedt. Como
mo se eles de fato tivessem a posse riados volumes, emagrecendo ou a narrativa do conto, são represen- as esculturas que Harriet produz
dos corpos que tratavam. A posse engordando sua silhueta de uma tadas no início como famintas e para recordar o marido morto
do pintor sobre a figura que retra- tela a outra. O título que confe- esqueléticas e, depois, como cati- (os “objetos transitórios”, con-
ta é uma aproximação subliminar riu a essa série, Autorretrato, in- vas da bruxa da casa feita de doces, forme ela as chama) — e como
que o livro traz, mas, para além dica toda a profundidade dessa engordando cada vez mais), como qualquer coisa ou pessoa, aliás,
desse desejo de “assinar” deter- fixação ambígua. também sugere a síntese masculi- entregue à velocidade das expe-
minadas alterações físicas, há um Uma terceira e última obra no-feminino no par infantil, João riências e, depois, ao apagamen-
interesse no travestimento: uma descrita em O que eu amava é e Maria. Aliás, o próprio Mark, ao to das memórias, tudo vai passar.
das histéricas, Augustine, aparece inspirada na história de João e longo de sua adolescência comple- Tudo é efêmero — e a arte, nes-
na instalação de Wechsler usando Maria, a predileta da infância de xa, reprisa esse jogo de travesti- sa tentativa patética de vencer o
um disfarce de homem, que teria Mark, o filho que Bill Wechsler mento, disfarçando-se de mulher tempo, sempre irá exibir um es-
o sido o modo com que ela fugiu teve com Lucille, sua primeira es- em algumas ocasiões. forço ambíguo.
32 | AGOSTO DE 2022

Celebração da

RESISTÊNCIA
H
á um aspecto identitá- Mesclando experiências
rio e ambíguo no título
original de O parque pessoais e elementos
das irmãs magníficas mágicos, O parque das
que é obliterado na adaptação pa-
ra a edição brasileira. Las malas irmãs magníficas retrata
(As más, numa tradução livre) diz o cotidiano de violência
respeito à imagem feita pela so-
ciedade do grupo de travestis que e de lutas de um grupo
habita o enredo, mas também de travestis argentinas
à franqueza rascante com que a
própria autora trata essas persona-
gens, descritas sem piedade melo- SÉRGIO TAVARES | NITERÓI – RJ
dramática ou romantização. Isso
porque a argentina Camila Sosa
Villada traz essas histórias marca-
das na pele. Seu livro de estreia
se constitui de fragmentos de um
registro autobiográfico que se en-
trecruza com uma série de relatos
sobre tipos que fazem ronda no
Parque Sarmiento, em Córdoba,
em sua maioria para a prática da
prostituição. São experiências do
vivido contadas, muitas vezes, pe-
la inflexão da crônica, e revestidas
por um verniz cuja essência pare-
ce extraída do realismo mágico,
embora não seja de fato. O que
soa insólito e sublime é a inter-
pretação metafórica da realidade,
alegorias luminosas para circuns-
tâncias obscuras.
Agente ao mesmo tempo Camila Sosa Villada
que testemunha dos fatos, a es- por Oliver Quinto
critora se esconde atrás de uma
narradora anônima que conduz
o vaivém entre o lugar das lem-
branças e o curso corrente da
trama, situando certos episódios
num contexto imaginário. Vinda
do interior para fazer faculdade
de Comunicação Social e Teatro
na capital, a personagem acaba
de passar pela transição de gêne-
ro quando avista, pela primeira
vez, o movimento da “manada”
nos arredores do parque. “As tra-
vestis esperam sob os ramos ou
em frente aos automóveis, pas-
seiam seu feitiço pela boca do
lobo, diante da estátua de Dan-
te, a histórica estátua que dá no-
me à avenida”. Filia-se, então, à
congregação que vende sexo co-
mo forma de sobrevivência. Nes-
sa mesma noite, ressoa um choro
mirim em meio à vegetação. Tia
Encarna, a líder do grupo, uma
espécie de versão trans de Úrsu-
la Iguarán, de Cem anos de so-
lidão, descobre um bebê de cerca
de três meses encafuado numa
moita. Apesar de todos os pro-
blemas que pode gerar, ela deci-
de adotar o menino, dando-lhe o
nome de O Brilho dos Olhos. E
AGOSTO DE 2022 | 33

o ato se torna a chave definitiva Passado sem


para o ingresso nesse universo e a encantamento
linha guia ao longo do processo Operar sob os véus da fan-
de urdidura do texto. tasia, no entanto, está longe de ser
A entrada pelos corredores uma dissimulação para a contun-
do romance é o refúgio no casa- dência dos mecanismos que regu-
rão rosa de dois andares, de onde lam a vida coletiva, punindo as
registra a rotina interna das resi- condutas consideradas clandesti-
dentes e propaga os sons acumu- nas e delinquentes, excluindo os
lados no peito que estas trazem desviantes da ordem e da mora-
de fora, nos gritos, nos choros, O parque das irmãs magníficas lidade. A exploração do suprar-
nos lamentos. Transitando de CAMILA SOSA VILLADA real leva o fato para um nível de
uma personagem a outra, e usan- Trad.: Joca Reiners Terron apreensão mais amplo, eviden-
Tusquets
do de situações individuais para ciando os catalisadores de con-
208 págs.
desenhar um cenário recorrente, junturas tão disparatadas que
Villada (ou melhor, seu eu ficcio- transcendem a normalidade —
nal) detalha o horror da violência aqui, a Justiça, a Igreja, a Família.
e da discriminação, das institui- “As travestis padecem mais além
ções que marginalizam e conde- da morte os olhares dos curio-
nam, das doenças incuráveis e dos sos, os interrogatórios da polícia,
crimes de ódio. Os furtos, o ví- os cochichos dos vizinhos sobre o
cio em drogas e a rivalidade por sangue ainda morno e cremoso
pontos e clientes são abordados que unta a cama”, aponta.
do mesmo modo; “somos hipó- Talvez por isso, nos aces-
critas também, urgentes travestis sos ao próprio passado, a narra-
que, por dinheiro, se encavalam dora se depare com uma lucidez
sobre qualquer coisa que se me- mais profunda e, menos vibran-
xa”, declara. Porém, apesar do te e magnética, sua voz adquire o
nítido sentido de manifesto, da tom de quem se sabe parte cen-
voltagem de contestação, nun- tral de uma história pesarosa que,
ca se transforma numa peça pan- mesmo ficcionalizada, não con-
fletária, tampouco em elóquios segue totalmente desnaturalizar.
apelativos sobre a brutalidade. São crônicas de uma vida dupla
A autora demonstra uma desen- moldada pelo medo do pai vio-
voltura admirável para inserir os lento e conservador, pelo estupro
comentários como partes intui- que definiu a perda da inocência
A AUTORA
tivas do andamento narrativo, e por uma juventude assombra-
estabelecendo uma atitude que CAMILA SOSA VILLADA da por temores e inseguranças,
impulsiona o leitor a assumir na- por um desejo inquietante de
Nasceu em 1982, em La Falda
turalmente uma perspectiva críti- “demonstrar que era possível
(Argentina). Formou-se em
ca, engajado pelo impacto e pelo Comunicação Social e Teatro na
prescindir de quase tudo que dis-
poder de atração da escrita. Universidade Nacional de Córdoba.
seram ser imprescindível”. Em
Em 2009, como atriz, estreou seu meio a essa rotina de repressões,
Fantástico como primeiro espetáculo, Carnes tolendas, o único alento era o ritual de se
representação trans retrato escénico de un travesti. Em travestir com as roupas da mãe,
Instaladas essas lentes, a li- meio a diversos trabalhos nos palcos, as maquiagens velhas das primas
teratura militante não precisa ser no cinema e na televisão, passou a e o perfume furtado da farmácia,
agressiva para abordar a agressivi- dedicar-se à escrita. É autora do livro espelhando-se na figura de Cris
dade, desdobrando-se em formas de poemas La novia de Sandro, do Miró, a primeira vedete travesti
de representação que encontram ensaio El viaje inútil e dos romances da Argentina a aparecer na tele-
Tesis sobre una domesticación e O
no deslocamento do real seus có- visão e a ser aceita pelos meios de
parque das irmãs magníficas, que,
digos de deciframento. É pró- em 2020, recebeu o prêmio Sor Juana
comunicação. No futuro, ao se
prio do realismo fantástico tirar Inés de la Cruz, da Feira Internacional
recordar do menino incapaz de
do absurdo pontos corresponden- do Livro de Guadalajara (México). traduzir o que passava dentro de
tes para certos alvos de interpre- si, a personagem se dá conta de
tação. A prosa mista de Villada que o desconcerto causado pela
lança mão desses elementos pa- aparição de Miró determinou seu
ra tocar em aspectos latentes do destino. O reconhecimento na-
sestro da transexualidade. Tia En- quela que se colocava à mostra,
carna, com a idade de 178 anos, quando o habitual era se escon-
é a existência paradoxal utilizada der; que se tornou emblema na
para ilustrar o abominável pano- luta pelo direito de existir.
rama de que as travestis latino- O parque das irmãs mag-
-americanas têm uma expectativa níficas é, em resumo, uma ce-
de vida de 30 anos. Outra per- lebração da resistência. Porém,
TRECHO
sonagem, Nadía, “a sétima filha constituído de uma estrutura
homem de sua família que, nas O parque das irmãs magníficas multifacetada, que pode ser lida
noites de lua cheia, se converte como o testemunho de uma vida,
em lobiscate”, faz referência ao a radiografia de um grupo, uma
Se alguém quisesse fazer uma
doloroso e estigmatizado rito de fábula ou uma narrativa de ter-
transmudação do corpo. Ao pas- leitura de nossa pátria, dessa ror — às vezes, uma cornucópia;
so que María, a Muda, a jovem pátria pela qual juramos às vezes, uma caixa de Pandora.
que começa a notar penas brota- morrer em cada hino cantado Villada mescla atmosferas e cores,
rem da pele, expressa o simbolis- sabendo comover e indignar ao se
nos pátios da escola, essa pátria
mo da liberdade, da mudança em valer de recortes da realidade para
pássaro para se livrar das amarras que levou vidas de jovens em trazer a lume as tragédias vincula-
e do preconceito social, tal qual a suas guerras, essa pátria que das ao cotidiano das personagens
escritora trans que se projeta pa- enterrou gente em campos que aborda, ao converter seus
ra o mundo pela força da sua ar- dramas pessoais em elementos
de concentração, se alguém
te, ou a personagem Valentín, de subjetivos para transmitir men-
O beijo da mulher-aranha, de quisesse fazer um registro exato sagens coletivas. É combativo e
Manuel Puig, que, encarcerada, dessa merda, deveria, então, encantador. Uma leitura marcan-
acalenta um ideal de ganhar o ver o corpo da Tia Encarna. te como um choro de bebê que
mundo, despendendo-se das teias ecoa pela noite fria e, se não for
Somos isso como país também,
de um sistema que exila aqueles identificado e acolhido, só mos-
que, mesmos livres, se diferen- o dano sem trégua contra o tra como nos tornamos seres des-
ciam pela condição sexual. corpo das travestis. prezíveis e irracionais.
34 | AGOSTO DE 2022

LUCINDA PERSONA
poesia brasileira Segredo

(Cuiabá – MT) EDIÇÃO: MARIANA IANELLI Eles nem imaginam


Mas enquanto estão em seus gabinetes,
Maquinando mil maneiras de lucrar hoje
Fêmea MARTIM CÉSAR para lucrar ainda mais
(Jaguarão – RS) amanhã...
Que hábitos são esses Nós, as cigarras,
— voos repetidos, razões de prazer e dor? De bares, teatros e calçadas,
Até hoje não lhes conheço a origem Babilon Estamos gastando no presente
Até mesmo o que não temos,
Sou esfinge-mãe à janela I por viver...
(ao modo bisbilhoteiro) Nada novo sob o sol de Babilon.
seguidamente bebendo Mesmo assim,
a linguagem das nuvens A casa segue sendo vigiada. temos um segredo:
a lonjura do horizonte Apenas as grades estão cada vez mais altas, (Por favor, não lhes contem!)
Com guaritas expectantes noite e dia.
O excesso de alimento Somos ricos!...
amadurece-me os ovos Olhos eletrônicos seguem espreitando cada movimento, Imensamente ricos!
Algumas vezes, percorro milhas e milhas Com cães, do tamanho de leões, rondando os muros.
para desovar no lombo das montanhas. Nós guardamos nosso ouro sob as asas!
Mesmo os beija-flores são motivos de alarme,
Mesmo as borboletas sobrevoando os jardins cuidados
Podem disparar os delicados sistemas.
Luvas Vivos e mortos
Apenas os sentidos dos guardas ficaram mais alertas
Tenho estas luvas pardas E disparam toda vez que os pesados portões se abrem Muito mais fácil é elogiar artistas mortos
corrugadas, sem brilho Para que passem seus poucos moradores. Render-lhes honras, batizar nomes de rua
(pele de minhas mãos) Porém bem antes — eis a verdade nua e crua! —
E estes gestos lentos A casa segue sendo vigiada, É que incomodam, porque pensam e são tortos!
dos meus dedos fracos, confusos Monitorada, observada por cem olhos inquisidores,
derrubando tudo Mais cuidada ainda por dentro que por fora. Enquanto vivos, melhor viessem natimortos
Tenho estas luvas pardas Há que esquecê-los, senão sua força se acentua
frouxamente ajustadas II Estão sempre noutro mundo — que é o da lua! —
aos músculos e ossos Por não se conhecerem esses dois mundos, Corsários loucos que assolam calmos portos
E um silêncio de morte Os de fora acham que dentro vivem
reinando entre as falanges. delicados pássaros... Depois que partem, aí sim, são bem lembrados
Dá-se o valor que enfim merecem suas obras
E vivem! Medalhas, placas... algum diploma com louvor...
Basta ver seus jardins multicores,
Matéria matinal Onde a primavera sempre derrama seu mel, Mas quando vivos, que sigam assim ignorados,
E suas cores. Pois se valem algo é que seu dorso não se dobra
Nada quebra a receita cósmica neste novo dia E se se dobra... é que não têm nenhum valor!
A manhã plenamente aberta Por não conhecerem esses dois mundos,
O doce gosto da luz Os de dentro acham que ali fora vivem
A flor pontual que a determina Terríveis aves de rapina.
MARTIM CÉSAR
(O sol caramelizado é um clássico na celebração da vida,
dá-se a lamber por nossas línguas mornas entre sonhos) E não vivem! Nasceu em Jaguarão (RS), fronteira do Uruguai
com o Brasil. Autor de quatro livros de poesia:
As vidas seguindo o curso habitual São os mesmos delicados pássaros, Poemas ameríndios, Poemas do baú do tempo,
No coração da casa todo um cardápio de rotina Só que sem primavera, sem flores, sem cores Dez sonetos delirantes e um Quixote sem cavalo
a flutuar entre os dedos e sem mel. e Sobre amores e outras utopias. Vencedor por
duas vezes do Prêmio Rua dos Cataventos, da Sociedade
O que vem à mesa. A nota forte do café. A maciez do pão. Mario Quintana de poesia. Também compositor de trabalhos
E aqueles que provam o nada, até a última fatia. Nada novo sob o sol de Babilon. discográficos, com parcerias musicais na Argentina e no Uruguai.

Camponesa HELENA ARRUDA


(Rio de Janeiro – RJ)
Essa constância à janela
(costume de tantos anos)
amealhando céus e terras Ave-mulher
flores e folhas das estações
uma mulher com a faca afiada olha o animal morto
Ninguém viu ainda sobre a pia da cozinha.
mais do que a metade do meu corpo ali, num ritual pagão, ela destrincha o animal.
dentro de uma blusa anacrônica retira, uma a uma, suas penas, põe todas numa bacia de alumínio
abotoada até o pescoço e atiça fogo. labaredas sobem e parecem desenhar formas
no ar. um código. toda mulher lê sinais.
No entanto, o coração ao ar livre
está oferecido e pronto para depois ela amola a faca e, cirurgicamente, recorta a ave morta
antigos assobios de amor estirada, de olhos semicerrados. tira-lhe o fígado.
como daqueles moços camponeses o coração, ainda quente, dá a última pulsão de esperança.
(com seus arados)
para aquelas moças debulhando trigo. ela pensa no quanto da ave há nela
: olhos cerrados para o que não quer ver.
a mulher, perplexa, reflete-se na ave que está ali, exposta.
LUCINDA PERSONA
Golpe mortal Nasceu em Arapongas (PR) e decide então ela mesma abrir-se ao meio para ver o que há lá
reside em Cuiabá (MT). Membro nas suas entranhas. para ver se o seu coração ainda bate quente,
da Academia Mato-Grossense
Nenhum indício de vida de Letras, poeta, ficcionista se ainda bate.
e bióloga, é autora dos livros
Sendo hoje domingo de poesia Por imenso gosto a mulher e a ave se igualam em delicadeza. uma não sobrevive
(1995), premiado pela UBE em
com esse modo de tingir em sangue 1997, Ser cotidiano (1998), Sopa sem a outra. elas se olham e se enlaçam. e, dançando nuas, voam
o calendário escaldante (2001), premiado pela para outras bandas, onde já não há dor
faz acreditar UBE em 2002, Leito de acaso
(2004), Tempo comum (2009),
que esteja morto à facada Entre uma noite e outra (2014) e nem nuvens de algodão.
(na jugular) O passo do instante (2019).
AGOSTO DE 2022 | 35

JOÃO FILHO
(Salvador – BA)

Faxina Aquele sítio


ÉRICO NOGUEIRA
Algumas vezes morremos Um pouco de silêncio, meus amigos, (São Paulo – SP)
mais do que o devido, um pouco de silêncio nesta noite,
a parte que morreu como se em solidão já não ouvíssemos
sabe que morreu o mundo em precipício a quem o ouve. Carne culta no amor que se desama
e dói inacessível.
Não precisamos nos calar tranquilos De tanto amar um só e dele os muitos,
Mas não acumule e nem fazer da vida ouvidos moucos, Incontáveis lugares e minutos
as partes perdidas, mas achar no barulho aquele sítio E rostos em que flana a sua flama
quarto da bagunça onde somos nós mesmos sem retorno. É a só que sobe a antrópica montanha
atulhado de perdas, E só se o pensamento exato e enxuto
sombras inimigas. Dói sermos esse ponto indivisível, Não for culto de formas, mas for culto
a noite sem plateia e com ferrolho, Em armar aranhóis, absorta aranha.
Ponha a dor em caixas, doer é uma forma de estar vivo — Assim, se a carne sobe, numa teia
varra os seus resquícios, um pouco de silêncio nesta noite. Do pensamento arácnido quem sabe
a cicatriz que ficar Se mais lúcida abelha não se enleia
vai para o inventário E alumia o que a carne só não sabe.
da dolorosa faxina. É um outro amor, este do pensamento;
Percurso Um brilho, um voo, um eco, um raio, um vento.
O peso de perder
nos ressuscita. Sentados ou em pé, a viagem não é fácil,
o preço da passagem custa o sonho,
o tempo na bagagem pesa em dobro, É o pensamento, pois, que se despoja
mas no ponto esperamos esperança.
Mesopotâmias num minuto Cada um, no coração, leva uma cidade, Da série monocórdia de sinapses
o seu trajeto — ida e volta — sem suborno, E entre lobos e córtices se arroja
Um minuto, maestro, um só minuto, e mesmo que não saiba o ponto certo, Tão vária e velozmente que num lapso
pra bebermos à luz de estarmos vivos; descerá quando for o seu momento. O sistema ancestral cai em colapso;
a batuta suspensa traça um susto No entanto, todos sabem sem palavras E o pensamento, puro do que enoja,
no centro deste instante já antigo. que a vida vale mais em movimento. Como luz e calor na mesma tocha,
Converge em raros, rarefeitos ápices;
Mesopotâmias vibram, eu escuto, Mas, ai, que a carne clama, inda que douta,
no ar, bem ao redor, quase em sigilo, E, socolor de cíclico equilíbrio,
e sopram cuneiformes que tabulam 34 — O sistema caído se levanta;
os nossos perdimentos desavindos. No breu de um pensamento já sem brio
Para Flávia Aninger O cérebro soletra coloidal
Mas estarmos aqui, tão inconclusos, E a nova se enovela, e é o velho mal.
respirando não sermos tão finitos, as fragilidades sustentam o mundo
JOÃO FILHO
talvez, maestro, talvez, seja um abuso
não bebermos à luz de estarmos vivos. o menos que frêmito Nasceu em 1975, em Bom
Jesus da Lapa (BA). Participou
entre o ser de antologias de contos Mal da fosca frieza que descreve
e o seu fracasso na Argentina, no Peru e na
Alemanha. Seu livro de poesia A maligna engrenagem do relógio
A dimensão necessária
o sol é um ponto de luz ganhou o Prêmio Alphonsus E o minuto e o segundo, como fogem,
no olho do canário de Guimaraens da Biblioteca E como corre o mal e quanto ferve;
Nacional, em 2015. Publicou, A arquivolta, a arquitrave e os tramos lógicos,
entre outros, Dicionário amoroso
a amêndoa ao cair de Salvador (crônicas, 2014) e Um Alaques e predelas que refervem
equilibra o espaço sol de bolso (poesia, 2020). De nervuras nublosas e da verve
De ornatos flóreos e ornitológicos;
Mas o mal não evita, quando vem;
Mas o bem, quando foi é que o adora;
Cidade submersa Borrões do tempo E um conhece se aflui, o outro se falta;
Desce aos detalhes e os descreve bem,
sou agora outra cidade as asas da mariposa desmancham-se sobre meus pés Mas, atômico número do ouro,
: palpável feridos Não sobe nem reflete nem refrata.
: afogada em finas camadas de papel : cinzas dos mortos nos crematórios de Deus
de onde traço mapas subterrâneos à procura
de saídas. o mundo é desfazimento e dor
um rio corta a paisagem que lateja sob meus pés : volatilização, vapor
cansados de pisar as asperezas do mundo.
sigo meu itinerário tudo some com o vento, tudo retorna às origens
e ao centro da terra, coração do mundo, às entranhas
atravesso paredes invisíveis
: cortinas d’água despencam sobre meus ombros depois ouço o silêncio
ÉRICO NOGUEIRA
nus de alegrias. e o sal a inundar meus olhos negros
o peso do mar sobe as montanhas, inunda a menina da escuridão É poeta, tradutor e professor
de Língua e Literatura Latinas
dos meus olhos fundos na Universidade Federal de
e desaba em minhas entranhas, rasgando-as registro minhas memórias num caderno azul-mediterrâneo São Paulo (Unifesp). Entre
até a madrugada. ouço gritos brotando de dentro da terra : borrões do tempo poesia, ensaio e ficção, suas
publicações incluem Poesia
: voçorocas com goelas vermelhas abertas bovina (finalista do Prêmio Jabuti
sugando tudo sou memória; também sou esquecimento. de 2015), Contra um bicho da terra
: pontes janelas portas saídas tão pequeno (finalista do Prêmio
São Paulo de 2019) e O esmeril de
vidas. Horácio (2020), entre outros.
já é outro dia.
o céu explode sobre a cidade devastada. não há constelações.
HELENA ARRUDA
o brilho das estrelas é um país ausente
que berra dentro de mim. Nasceu em Petrópolis (RJ). É autora dos livros
de poesia Interditos (2014), Corpos-sentidos
sou agora outra cidade (2020) e Há uma flor no abismo (2021). Finalista do
: submersa silenciosa apagada Prêmio Off-Flip de Literatura (2021) em poesia, escreve
mas espero a carta do sol quinzenalmente para a coluna Flauta Vertebrada, do Jornal
eletrônico O Partisano, integra o corpo editorial da Revista Topus
que virá com o vento – espaço, literatura e outras artes, da Universidade Federal do
soprando tudo Triângulo Mineiro, e o coletivo Teias, da região sul fluminense.
: recomeços.
36 | AGOSTO DE 2022

A TELA
MISTERIOSA
FOUAD LAROUI
Trad.: Felipe Benjamin Francisco

Ilustração: FP Rodrigues

Bab Doukkal va-se na mesma cadeira, todos os dos transeuntes — sem dúvi- “Esse… esse… tableau!”,
dias, exatamente às 12h15. Na pa- da, um cacoete da profissão, mas disse o inspetor em francês, já que
Ele entrou pela porta do res- rede à sua frente, a apenas duas me- quem não tem suas manias? certamente não conhecia a palavra
taurante às 12h15, do jeito que sas de distância, havia um grande Um dia, ele se cansou de ob- “quadro” em árabe, ou, quem sa-
sempre fazia. quadro. Na verdade, o quadro só servar as pessoas na calçada com be, já a tivesse esquecido.
O inspetor Hamdouch era apareceu, de forma misteriosa, na sua balbúrdia odiosa, os nume- “Oui, Ssi comissér?”, disse
metódico, quase maníaco, nas terceira vez em que o inspetor foi rosos turistas de sempre, que já o proprietário em tom atencioso
palavras de sua falecida esposa ao restaurante. Aquilo o deixou le- partiriam de vez no dia seguin- e servil.
— uma francesa do Marrocos, vemente incomodado. Até então, te. Virou-se então para a esquer- Hamdouch baixou a voz,
vítima de tétano poucos anos de- tudo que havia diante dele era uma da, com o copo de chá na mão, que inspirava ameaça — ele sabia
pois de se casarem. Viúvo e sem parede ocre sem graça. Hamdouch e se deteve na tela. Apertou um exatamente como e quando deve-
filhos, Hamdouch almoçava to- almoçava olhando para o vazio, o pouco os olhos por causa do refle- ria falar assim, afinal não se tor-
dos os dias, ou pelo menos qua- que lhe aprazia bastante, pois po- xo da luz, até que conseguiu dis- nou inspetor de polícia à toa.
se todos, no restaurante Délices dia ficar ali, pensando na vida. Até tinguir a cena da pintura de cores “Por acaso é Sua Majestade
de l’Orient, em frente ao palácio que um dia, materializou-se à sua gritantes com diversos persona- o rei, que Deus o guarde, que está
do paxá Glaoui. frente, inesperadamente, aquele gens. Um deles prendeu sua aten- representado no centro da pintu-
O proprietário do restau- enorme retângulo colorido. ção. Examinou cuidadosamente a ra? A maneira como o fizeram bei-
rante, Driss Bencheikh, cuidava O policial não era um ho- silhueta. Minha nossa! ra o desrespeito!”
para que a mesa do inspetor es- mem das artes, mesmo aprecian- Hamdouch franziu o cenho Por obrigação, Driss lançou
tivesse sempre reservada das 12h do a poesia musicada do melhoun. e gritou para o proprietário: “Ssi um olhar relâmpago para o per-
às 14h. Caso um turista distraído Em todo caso, não entendia nada Driss!”. sonagem que ocupava o centro
ou algum local desavisado ousas- de pintura. No início, percebeu al- O dono do restaurante cor- da tela e respondeu sem hesitar:
sem se sentar à mesa do inspetor, go novo em seu campo visual, mas reu em sua direção, enquanto se- “Não, meu Deus, não! Esse é o pa-
Bencheikh indicava outra mesa não lhe deu a devida atenção. Era cava as mãos com uma toalha xá… digo o antigo paxá, Moulay
de modo autoritário, pois agia — uma pequena mudança em sua ro- branca. Abaixou-se, esboçando Mimoun”.
de certa forma — em nome do tina, circunstância que até o inco- um sorriso tímido, pronto para Hamdouch insistiu: “Mes-
Makhzen, o Reino Marroquino, o modava, mas que estava longe de atendê-lo. O inspetor apontou mo assim, ele está no centro, co-
que explicava seu comportamen- ser, como dizem por aí, o fim do para a razão de sua ira com a mão mo se fosse um senhor montado
to um tanto rude. Afinal, não se mundo. Como de costume, conti- direita, a mesma que segurava o num belo cavalo”. O inspetor,
questiona a autoridade do Reino. nuava a olhar para fora, pela jane- chá, de modo que parecia brindar então, apoiou o copo na mesa
Assim, Hamdouch senta- la, como se monitorasse o vaivém — talvez à arte? e, com o dedo em riste indicou
AGOSTO DE 2022 | 37

o que estava descrevendo, conti- de filosofia. Que absurdo! Ele, o japoneses que acabava de entrar, e O inspetor começou a esfre-
nuou: “Atrás dele há alguém com inspetor Hamdouch, mkhennech, se pôde ouvi-lo louvar seu espaço gar a testa freneticamente com a
um grande guarda-sol branco, e ensacado! Era o mundo virado do e sua cozinha num inglês trôpego, ponta dos dedos da mão direita.
há também muitas pessoas vira- avesso! De tanta indignação, des- ousando barulhos de sucção: “The Sentia o início de enxaqueca, sinal
das na sua direção… Na verdade, pertou. Suava e tremia da cabeça best in Marrakech, of course!”. de que uma intuição se aproxima-
todos estão posicionados como se aos pés. Hamdouch terminou a re- va, do tipo que em outros tempos
Sua Majestade estivesse na ceri- Agora, comia sua salada de feição sem conseguir tirar os olhos o ajudara a desvendar casos espe-
mônia de lealdade durante a Fes- pimentão com tomate, os olhos fi- do quadro. Tratava-se de uma me- cialmente difíceis. Sua falecida es-
ta do Trono, a bay’a”. xos na pintura maléfica, como se ra obra de arte ou de algo mais? E, posa, Hélène, meio brincando,
“Eu lhe asseguro, Ssi Ha- quisesse descobrir algum segredo afinal, o que era a arte? O policial meio afetuosa, costumava chamar
mdouch, que se trata do paxá. E ali. Na verdade, fora tomado por perdeu-se num abismo de ideias. esses episódios de “les migraines de
depois, mesmo que os traços dele um sentimento estranho durante mon Maigret”. Ha, ha. Ele devia o
não estejam evidentes, é possível sua intrusão noturna naquela ce- De volta ao escritório, sucesso da carreira à intuição. Sua
distinguir seu cavalo preferido.” na que parecia eternamente con- Hamdouch chamou um de seus mais recente transferência da cida-
Aliviado, o inspetor pergun- gelada: todo mundo observava o agentes, Ba Mouss, conhecido de de Safi a Marraquexe fora uma
tou novamente: “Que paxá é este? paxá, o que era totalmente natu- como “Computador” graças à bela promoção por ter soluciona-
Seria Ssi Lamrani?”. ral — até um cachorro estava vi- sua memória extraordinária, pelo do diversos crimes, entre eles o do
“Não, não. Como eu lhe rado para ele —, mas o inspetor menos quanto a crimes, contra- “Açougueiro de Hay el-Majd”, que
disse, trata-se de seu antecessor, havia sentido que todos aqueles venções e outras ocorrências ex- havia saído em todos os jornais e
Moulay Mimoun.” olhares estavam, de certa forma, cepcionais na área. Fora isso, não aterrorizado a população.
“Só queria me certificar.” carregados. Nenhum olhar de- sabia mais nada. Ba Mouss nun- O que deixava sua men-
O inspetor, satisfeito, assen- monstrava a menor curiosidade ca fora transferido para outra uni- te em chamas no momento era
tiu com a cabeça, deu mais um go- ou admiração — que bela procis- dade, pois transferi-lo significaria uma coincidência de que acaba-
le no chá e voltou a examinar a são! — ou mesmo o tão conhe- perder um computador, ou seja, va de se dar conta: o homem do
cena movimentada da tela à sua cido hiba, “medo reverencial”, perder todos os dados que ele ar- sonho que tentara enfiar um saco
frente e suas cores sugestivas. Após sobre o qual se alicerça a estrutu- mazenava — e ninguém queria em sua cabeça…
aguardar alguns minutos, o dono ra do Makhzen. Aquelas miradas uma coisa dessas. Mas, antes disso... vamos
do restaurante viu que sua pre- expressavam algo mais. Estavam Baixo, de corpo franzino e do começo: Madani, o ex-chefe
sença não era mais necessária e se carregadas — pensou o inspetor, olhos verdes, o homem-máquina de polícia, tinha sido forçado a se
retirou, espantando moscas ima- frustrado por sua inabilidade em entrou na sala do chefe, que cor- aposentar depois de um escânda-
ginárias com a toalha. encontrar palavras para descrever tou direto para o assunto e foi logo lo — desvio de recursos públicos,
o que observava, pois seu repertó- dizendo: “Ba Mouss, você já ou- tudo uma grande confusão — do
No dia seguinte, quando rio de adjetivos era muito limita- viu falar de um tal Brahim Labatt? qual não participou diretamente,
Hamdouch se sentou à sua mesa, do nas duas línguas que conhecia: Um pintor?”. mas acabou implicado por ten-
olhou de imediato para a pintura, o árabe e o francês. Como se Hamdouch tives- tar acobertar o principal bene-
antes mesmo de dar uma espiada Hamdouch refletia, resig- se apertado a tecla “Enter”, Ba ficiário; que era ninguém mais,
na rua. Com olhar sombrio e fei- nado — os olhos na tela, o garfo Mouss ficou na posição de senti- ninguém menos que o ex-paxá
ção tensa, concentrou-se fixamen- no ar com um pedaço de pimen- do, limpou a garganta e começou Moulay Mimoun.
te no quadro. tão. “Estou abrindo uma investi- a apresentar as informações: “Bra- Portanto, há dois suspeitos
Havia sonhado com a pin- gação”, murmurou em voz baixa. him Labatt, filho de Abdelmou- nessa história, além do enforcado.
tura a noite inteira. Ao captar algumas palavras la, era encanador. Não terminou E um quadro ligando os três.
O inspetor odiava sonhar. incompreensíveis, o dono do res- o secundário e era o único filho Hamdouch começou a se
Ficava furioso sempre que se lem- taurante se apressou: “Monsieur le da viúva Halima, com quem mo- lembrar do homem que no so-
brava de algum sonho ao despertar. comissér? Mais pão? Quem sabe rava no Derb Dekkak, onde per- nho tentava enfiar o saco em
Sentia-se insignificante e humi- um pouco d’água?”. maneceu sozinho após a morte da sua cabeça, e voilà: era Madani!
lhado. Tinha a impressão de ter Pego de surpresa, o inspetor mãe. Era também pintor amador, Hamdouch o reconhecera na pin-
perdido o controle de si mesmo desatou a tossir e apontou com o pode-se dizer. Pintava quando não tura e agora o ex-policial ressur-
naquelas aventuras noturnas on- garfo para a parede — o pedaço de tinha trabalho, o que era bastan- gia no meio da noite, do fundo
de tudo parecia possível — e qual pimentão dependurado bem na te frequente, e expunha suas obras de seu subconsciente, parecendo
o propósito, meu Deus? Será que ponta do talher. Em seguida ou- na rua, próximo à barbearia. Che- querer matá-lo. “Essa história es-
os gatos também sonham? Senta- viu sua própria pergunta: “Quem gou a vender alguns quadros pa- tá se complicando”, murmurou.
do na cama, recitou a tradicional pintou esta tela?”. ra turistas alemães”. Seguiu-se um
invocação muçulmana: “Maldito O proprietário olhou para breve suspiro antes de anunciar as O inspetor saiu correndo
seja Satã!”. Como não era um ti- o garfo, depois para a parede, de- más notícias: “Desculpe, chefe… do gabinete, caminhou a passos
po totalmente inculto, logo se per- pois para a tela. Linhas expressivas Brahim Labatt cometeu suicídio firmes pela rua Fatima Zahra e
guntou o que diria a psicanálise de despontaram em sua testa horizon- sete ou oito anos atrás. Por enfor- virou à esquerda em direção ao
seus sonhos absurdos. Havia um talmente — tinha o ar de quem re- camento. Que Deus tenha mise- restaurante. Àquela hora da tar-
número razoável de psicanalistas fletia —, e por fim respondeu: “É ricórdia de todos nós!”. de o lugar estava praticamente
em Marraquexe — ele tinha al- de um jovem chamado Brahim La- Hamdouch assentiu com vazio. Um gato dormia encolhi-
guns cartões de visita —, mas com batt. Ele morava num bairro próxi- a cabeça, com um esgar nos lá- do no canto, e apenas três turis-
certeza não iria se consultar com mo, ao lado do souk dos artesãos de bios — era como agradecia seus tas franceses demoravam-se com
nenhum deles. Seria reconhecer a ferro”. Driss se aproximou do in- subordinados —, depois pergun- seus cafés. Ignorando a expressão
derrota. Você não manda um ins- vestigador e, adotando o ar fúnebre tou: “Temos certeza de que foi de estranhamento do proprietá-
petor de polícia se deitar num divã. que precede este tipo de revelação, suicídio?”. rio — por que raios Hamdouch
É ele quem interroga os suspeitos cochichou: “Ele suicidou-se alguns “Só Deus sabe, chefe.” tinha voltado? —, o inspetor se-
e não o contrário. E quem poderia anos atrás. Que Deus nos proteja”. “E fora Deus?”, Hamdouch guiu direto para a pintura, a fim
ser mais suspeito do que um laca- Pronunciou de forma quase inau- retrucou, impaciente. A resposta de confirmar sua intuição.
niano em Marraquexe? dível. “Parece que esta tela foi seu de Mouss beirava a blasfêmia; on- Sim, não havia dúvida de
Naquela noite, sonhou com último trabalho antes de…” de já se viu um computador invo- que a pessoa representada ao la-
o quadro que decorava a parede do Driss não terminou a frase. car o nome de Deus? “Quero fatos do do belo cavalo do paxá era de
restaurante. No sonho, a cena pul- O inspetor, por sua vez, gravou na e números, deixe Deus para seus fato Madani. Era possível reco-
sava, viva; de certa forma, o poli- memória a informação e naquele especialistas, como os alfaquis.” nhecer seu rosto repulsivo, mes-
cial fora engolido por ela. Viu-se momento abriu — sempre men- “Seu antecessor, o inspetor mo pintado de maneira grosseira,
acompanhando os passos do ala- talmente — um dossiê em nome Madani, arquivou o caso como como uma caricatura. No entan-
zão que levava o paxá, enquanto de Brahim Labatt, jovem faleci- suicídio. O pobre pintor tinha…” to, a própria natureza parecia já
todos o ignoravam e o empurra- do sob circunstâncias suspeitas. O “Espere!”, disse Hamdouch, ter se encarregado de caricaturar
vam — que falta de respeito com inspetor sabia — as estatísticas não espantado. “Quer dizer que Ma- aquele homem horrendo e cor-
sua patente! Em meio ao caos do mentiam — que o suicídio era ra- dani arquivou o caso?” rupto. O pintor nem precisou se
ambiente — burburinho, furor, ro em terras do islã. Por isso pre- “Sim, e o arquivou imedia- esforçar muito.
poeira —, um dos homens da pin- cisava esclarecer aquela situação. tamente… Na verdade, bem rá- O inspetor notou mais um
tura tentou enfiar um saco de lo- Com um gesto desenvolto e o pi- pido. O caso não tinha nada de detalhe que fez piorar sua enxaque-
na em sua cabeça — isso mesmo, mentão precariamente equilibrado suspeito.” ca. Considerando que todos os per-
um saco de lona! —, como aqueles na ponta do garfo, interpretando “Ótimo, isso é tudo. Está sonagens tinham o olhar carregado
da polícia secreta nos velhos tem- seu papel vagamente acusador, pe- dispensado.” — por falta de adjetivo melhor —,
pos, na década de 1970, os anos de diu que Driss se retirasse. O pro- Ba Mouss assentiu com a ainda assim havia uma exceção:
chumbo, quando se sequestravam prietário do restaurante correu cabeça sem dizer qualquer pala- Madani, o ex-chefe de polícia, pa-
políticos, sindicalistas e estudantes para receber um grupo de turistas vra e se retirou. ra quem Hamdouch agora volta-
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va toda a sua atenção, não estava tos congelados na pintura, e o ve- Esse tom melancólico da cor pare- lhava de volta à Terra carregando
olhando para o paxá; ele encara- redicto foi unânime: “Oh là là, cia tomar seu rosto inteiro, de mo- uma serpente que se retorcia com
va o observador da obra. Naque- eles não parecem felizes, não pa- do que ele parecia um minúsculo violência em suas garras. Estou
le exato momento, Madani parecia recem amigáveis de forma alguma. marciano despertado da sesta. perdendo tempo com uma lenda
examinar o rosto do homem que o Eu diria até que estão furiosos”. “Quero que você me conte idiota, pensou, incomodado.
sucedera: Hamdouch. Sua expres- Hamdouch, satisfeito, tudo que sabe sobre o paxá Mou- Então se lembrou de uma
são revelava perplexidade, mistura- apontou para um sujeito espe- lay Mimoun”, bradou o inspetor. expressão que Hélène às vezes usa-
da com medo e certa altivez, além cífico: “E este aqui?”. Indicava o “Tudo! Fatos, devaneios, rumores, va: oiseau jacasseur. Ela teve que
de… algo mais. O que seria? ex-chefe de polícia, Madani. Os fofocas… tudo!” lhe explicar o significado de jacas-
E outra coisa: a mão direita três turistas aproximaram o rosto, Ba Mouss suspirou e come- seur: falar muito depressa, de mo-
de Madani, que dava a impressão quase tocando a tela com o nariz. çou a relatar a rica vida do paxá. do irritante.
de acariciar o pescoço do cavalo, Desta vez, sim, suas impressões fo- O inspetor deixou a enxurra- Um pássaro falante?
na verdade estava sobre a mão es- ram distintas. da de informações fluir, interrom- Isso lhe lembrava alguma
querda do paxá Moulay Mimoun. “Um sujeito asqueroso”, pendo o computador humano aqui coisa. Fechou os olhos e se con-
Os dois, com as mãos juntas, pare- disse o primeiro. e ali para esclarecimentos. Quando centrou na imagem. Memórias de
ciam enfrentar a fúria da multidão. “Arrogante”, continuou o Ba Mouss acabou, Hamdouch se sua infância e adolescência, coisas
Sim, fúria! Era o que signifi- segundo. manteve em silêncio por um ins- que tinha lido e ouvido iam apa-
cavam os olhares “carregados” que O terceiro, um ruivo desen- tante. Então disse: “Essa história recendo numa espécie de auréola
Hamdouch notara. Era isso! Evi- gonçado, levou algum tempo para sobre o assassinato de um rival. Po- sobre ele…
dentemente, o falecido Labatt es- se manifestar: “Não, senhores. Ele de me falar mais disso?”. Após alguns instantes, abriu
tava longe de ser um Rembrandt, tem um ar de culpa. Como um “É só um rumor, chefe. E os olhos e sacudiu a cabeça. Em
afinal nem sempre conseguira pin- delinquente pego com a boca na não há nenhuma prova de que seguida, pegou o telefone e, de-
tar o que queria, mas estava cla- botija. Um infeliz que se entrega houve assassinato. Um funilei- pois das saudações habituais, per-
ro que era “fúria” o que pretendia pela expressão do rosto”. ro, um tal de Dadouchi, tinha guntou a seu interlocutor: “Nós
mostrar no rosto daqueles figuran- Os quatro ficaram exami- pedido a mão de uma linda mu- temos acesso a uma lista de per-
tes, exceto no dos dois protagonis- nando a cara asquerosa daque- lher do bairro de Kennaria, o que tences do paxá anterior ou a ob-
tas: o paxá e o ex-chefe de polícia. la figura. Não havia dúvida. Isso lhe foi concedido. Os preparati- jetos que pertenceram a ele? Isso
O inspetor se virou para os mesmo: ele tinha um ar de culpa. vos para o casamento estavam in- mesmo, Moulay Mimoun… Po-
três turistas, abriu um sorriso cor- “Bravo, Christian!”, excla- do bem… para azar do funileiro! demos ver? Vai levar muito tem-
dial, apesar da dor que lhe partia maram os companheiros do rui- Acontece que o paxá Moulay Mi- po? Eu tenho todo o tempo do
o crânio, e lançou um animado: vo, que reagiu com modéstia. moun tinha interesse nessa mesma mundo!”, ele disse, deixando es-
“Bienvenue à Marrakech!”. Satisfeito, Hamdouch agra- mulher. E um dia Dadouchi desa- capar uma risada levemente amar-
Ele falou em francês, com o deceu aos franceses pelos comen- pareceu. Ele saiu para atender um ga, ao pensar em sua condição de
“r” vibrante. Surpresos, os três ho- tários. Um deles tomou coragem cliente e não voltou. Nunca mais viúvo sem filhos. “Pode me man-
mens hesitaram alguns segundos, e disse, sorrindo: “E agora o se- foi visto. Então, após alguns me- dar por um chaouch, algum fun-
para se certificar de que aquele ho- nhor vai tentar nos vender esse li- ses, o paxá levou a moça para o seu cionário de confiança?”
mem elegante, de cabelo grisalho xo? Boa técnica! Bravo! Caímos harém. No entanto, ele a rejeitou Desligou o telefone, acendeu
e bigode bem aparado, não era feito patinhos. Quanto é?”. meses depois, para a ira e a ver- um cigarro e abriu ao acaso uma
mais um pedinte, um inconve- Com ar glacial, Hamdouch gonha da família dela.” Ba Mouss das pastas espalhadas na mesa.
niente ou ainda um Clark Gable respondeu: “Não sou vendedor baixou a voz. “E se espalhou o Dias depois, Hamdouch re-
ressurgido dos mortos. Isso fei- de quadros. E, a propósito, es- boato de que havia sido ele, o pa- cebeu a lista que solicitara. Correu
to, responderam à sua saudação: te… isto não me pertence. Au re- xá, quem sumiu com o artesão.” o dedo muito rapidamente pela
“Merci, monsieur…?”. voir, messieurs!”. “Cui bono?”, Hamdouch página até parar em um nome —
“Hamdouch, a seu dispor.” O trio voltou a seu lugar, murmurou. O inspetor conhecia o nome de um riad que perten-
Houve uma pausa. “Sou um animados com a apresentação. No umas poucas expressões latinas de cia ao paxá.
amante da pintura e gostaria de momento em que o inspetor esta- grande valor prático que circula- “Bingo!”, exclamou em voz
pedir a opinião dos senhores”, dis- va saindo, o tal Christian o cha- vam na École de Police, um lega- alta, sorrindo.
se enquanto indicava a pintura co- mou novamente: “Ei, tem mais do dos franceses.
mo se fizesse um convite. “O que uma coisa que não vai bem nes- “O que disse?” No fim da viela, a maioria
acham desta?” se seu lixo de quadro… desculpe, “Nada, nada, continue.” dos transeuntes costumava virar à
Entretidos com essa surpresa na sua pintura”. “Eu estava dizendo que cir- esquerda. Raramente alguém en-
na encantadora cidade de Marra- O ruivo se levantou para culava à boca pequena que o paxá trava à direita. No chão, marcas
quexe, os três homens se levanta- apontar, embaixo à esquerda, um foi quem sumiu com o Dadou- escuras deixadas por centenas de
ram e foram até a pintura. Haviam detalhe. chi. E tem mais: houve rumores motocicletas ao longo dos anos in-
bebido duas boas garrafas de Vo- “Não sou nenhum espe- de que existia a prova do crime dicavam apenas uma direção: es-
lubilia e, animados, decidiram es- cialista, obviamente, muito pelo por aí e que um dia ela viria à to- querda. Era o caminho que ia dar
pontaneamente — sem combinar contrário! Mas nunca vi um zel- na.” Ba Mouss hesitou um instan- em Bab Doukkala, a principal via
nada — bancar os especialistas. lige numa muralha. Este mosaico te, depois soltou: “Falava-se que a no interior da medina.
Poderia ser divertido, estavam de aqui é um zellige, não?” verdade seria revelada por um pás- O inspetor, acompanhado
férias e teriam uma história para Hamdouch, que já estava na saro mágico”. de seu assistente Hariri, virou de-
contar quando voltassem a Paris. porta de saída, se virou e foi até o Como Ba Mouss esperava, o cidido à direita. Ele sabia aonde
Então, seguiu-se um festival de fra- quadro. Com o indicador tocou o chefe levantou os ombros, irritado. estava indo.
ses prontas em tom afetado. ponto que Christian mostrara. “É “Pássaro mágico? Por que Em frente ao riad, um vigia
“Essa luz, senhores! Es- isso mesmo”, murmurou, perplexo. não um elefante voador? Você acha idoso aguardava sentado em uma
sa luz… há algo aqui de Claude “Um zellige amarelo na pa- que estamos nas Mil e uma noites? banqueta. Vendo Hamdouch e
Gellée, mais conhecido como Le rede exterior de uma muralha não Que ignorância! É a polícia, e não Hariri se aproximar, levantou-se
Lorrain…” faz nenhum sentido.” os pássaros, que encontra provas!” e discretamente espanou a poei-
“Vejam o drapeado daque- Como não tinha visto es- Sem entrar no debate sobre ra da roupa, como se estivesse se
la jelaba naquele canto… é mara- se detalhe? Estaria perdendo sua ciência e superstição — debate que colocando em posição de sentido.
vilhoso.” capacidade de observação? Ficou o chefe sempre ganhava pela força “Salam aleikum!”, saudou o
“E esse cavalo, a energia, o constrangido por alguns instan- dos argumentos e das ameaças —, inspetor.
movimento… é Delacroix puro! tes, mas não deixou transparecer. Ba Mouss concluiu: “Voilà. Isso é “Aleikum assalam, Ssi inspe-
Veja este nobre cavaleiro… não Christian voltou para a me- tudo que se sabe da história”. tor”, respondeu o vigia.
seria o seu rei?” sa, onde seus companheiros o pro- “Obrigado. Está dispensado.” “Os franceses estão em casa?”
O inspetor, que estava che- vocavam, alegres: “Que olho ele O computador pareceu ter “Não, sidi, eles saíram pa-
gando ao limite de sua paciência tem! Que olho clínico!”. sido desligado e saiu da sala. O ra comprar frutas e verduras. Mas
por causa da enxaqueca, resol- Enquanto isso, Hamdouch inspetor fechou a porta e se aco- pode entrar.”
veu acabar com a festa: “Senho- saía de cena, perdido em seus pen- modou confortavelmente à me- “Tudo bem, vou esperar eles
res, acalmem-se! Se me permitem, samentos. sa, o queixo repousado sobre as voltarem. E jamais deixe ninguém
gostaria de lhes fazer uma única mãos juntas, e começou a refle- entrar numa casa na ausência de
pergunta. O que os senhores veem De volta a seu gabinete, dei- tir. A história do pássaro mági- seus proprietários. Nem mesmo
nos olhos desses homens todos? xou a porta aberta e consultou seu co o incomodava e, quanto mais eu! A lei proíbe.”
Esqueçam o cavaleiro, interessa- computador: “Ba Mouss!”. tentava ignorá-la, mais pensa- Quinze minutos depois,
-me saber dos outros”. Sua voz ecoou por toda a va nela. Começou a imaginar al- os proprietários, François e Cé-
O trio de turistas começou delegacia, e um pequeno homem go como Simurgue, uma criatura cile, voltaram do souk. O inspe-
a trabalhar. Interromperam sua surgiu quase instantaneamente, os alada colorida e gigantesca que su- tor os cumprimentou sorrindo e
pantomina, examinaram os ros- olhos mais verdes do que nunca. bia aos céus e em seguida mergu- com um tipo de saudação, levan-
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do dois dedos à testa. Depois apre- Cécile cambaleou e tombou “Mas como o senhor teve pido. Mas ainda precisa praticar
sentou a si e a seu assistente. numa poltrona, enquanto Fran- a ideia de vasculhar aquele riad? um pouco a pronúncia”, brincou
“Polícia? Espero que não se- çois perguntava, espantado: “Fu- Como soube?” o inspetor. “É âmes, e não ânes…
ja nada grave”, disse François. nileiro? É algum animal?”. Hamdouch sorriu. “Riad são almas e não burros. Ainda que
“Não, não”, tranquilizou- Hamdouch deu de ombros Boulboul? ‘Boulboul’ não lem- Madani sempre tenha sido burro,
-os o inspetor. “Apenas gostaria de e pediu que seu assistente provi- bra você alguma coisa? O pássa- na minha opinião; é de se pensar
dar uma olhada no riad, com a sua denciasse um pedreiro e dois po- ro falante das Mil e uma noites? como ele conseguiu fazer carreira.
permissão, claro. Se trata de um liciais robustos — sem se esquecer Tão logo soube que a casa havia Minha hipótese é que foi prestan-
caso antigo que não tem nenhu- das maletas, dos martelos e de um pertencido a Moulay Mimoun, do favores aos poderosos. Como
ma relação com vocês. Aconteceu saco plástico bem grande! entendi a origem da história do nesse triste caso.”
muito antes de comprarem…” Enquanto François, abaixa- pássaro mágico que um dia re- O inspetor bebeu um lon-
Hamdouch fez uma pausa e ges- do, cuidava de Cécile, que reco- velaria tudo. Labatt teria dito go gole de seu chá e apontou para
ticulou em direção à porta da an- brava a consciência aos poucos, ‘boulboul’ e, de boca em boca a o dono do restaurante. “Ainda há
tiga propriedade. o inspetor lhes explicava, sereno: referência ao riad se perdeu; as uma peça desse mistério que pre-
François e Cécile trocaram “Avec votre permission, faremos pessoas preferiram uma explica- ciso resolver. A pintura não estava
olhares e deram de ombros ao um buraco nesta parede para re- ção fantasiosa a um simples en- aqui quando comecei a frequen-
mesmo tempo. tirar o cadáver escondido aí. Mas dereço real. Mas eu, eu ajo com tar seu restaurante. Por que você
“Bem, podem entrar”, disse não se preocupem, fecharemos a razão. Sou cartésien, como dizia só pendurou o quadro na minha
François. “Estamos sem chá, po- tudo novamente”. minha esposa, que Deus a tenha frente há pouco tempo?”
demos oferecer um suco.” Hamdouch saiu para fumar em Sua misericórdia.” Driss Bencheikh balançou
“Não, obrigado.” um cigarro à sombra da laranjeira. “O que acontecerá com o a cabeça, puxou uma cadeira e se
Os quatro entraram na casa, ex-paxá? E com Madani, o ex-che- sentou ao lado do inspetor.
o vigia permaneceu do lado de fo- Alguns dias depois, Ha- fe de polícia?” “Bem, achei que o senhor ti-
ra. O inspetor começou a vascu- mdouch estava sentado em sua Hamdouch deu de ombros. vesse adivinhado.”
lhar, virando a cabeça para todo e cadeira de sempre no restauran- “Nada. Nada de mais. Moulay “Não. Como eu disse, esse é
qualquer canto. te — os restos de um tagine de Mimoun sempre teve costas quen- o último mistério.”
“O senhor está procurando frango com azeitonas à sua fren- tes nas altas instâncias e, em todo Então o dono do restauran-
alguma coisa?”, perguntou François. te. Com a fome saciada, soltou caso, está velho e senil, já esqueceu te continuou.
“Sim, estou atrás de um tre- um arroto discreto e pediu um tudo. Que juiz reabriria esse tipo “Brahim Labatt era primo
cho de parede revestido de zelli- chá de hortelã. Por fim, concor- de caso? Não se pode mandar um da minha esposa, e acabei her-
ge”, Hamdouch respondeu. “De dou em revelar o caso para o do- velho gagá para a prisão. Quan- dando esta tela, entre outras. Eu
tom amarelo.” no do restaurante, que o rodeara to a Madani, já está aposentado. sabia que ela continha um segre-
“Un petit pan de mur jaune”, a tarde inteira. Se Moulay Mimoun está absolvi- do, porque foi seu último traba-
brincou Cécile. “Você sabia que Brahim La- do, não há razão para se preocupar lho, e era muito diferente do que
“O quê?” batt também era encanador? Pro- com seu cúmplice… sua âme da- ele pintava. Não era algo aleató-
“Nada, é só uma referência vavelmente foi contratado para mnée — alma condenada — co- rio… a pintura devia significar
literária, uma frase de Proust no fazer alguns bicos no riad, e, dis- FOUAD LAROUI mo dizem os franceses. Conhece alguma coisa. Nunca acredi-
Em busca do tempo perdido”, dis- creto como era, esqueceram com- Nasceu em 1958, em Oujda (Marrocos). a expressão?” tei que Brahim tivesse se mata-
se Cécile. “Mas há uma parede se- pletamente que ele estava lá. Sem Doutor em Ciências Econômicas, atualmente “Não”, suspirou Driss Ben- do, mas também não conseguia
melhante a essa aqui.” querer, Labatt acabou presencian- leciona Literatura Francesa na Universidade cheikh. “Estou um pouco desapon- imaginar o que tinha acontecido.
de Amsterdã. Escreveu mais de dez
“Busca? Esse é o nome do do o assassinato do funileiro pe- romances, com destaque para Les dents tado de que a justiça não seja feita.” Quando o senhor começou a al-
meu departamento”, observou lo paxá ou por seus capangas. Eles du topographe, ganhador do prêmio Albert- “Ah, mas de certa forma, moçar aqui todos os dias, agar-
o inspetor com ar de aprovação. atraíram o rapaz sob o pretexto de Camus em (1996), e Les Tribulations du ela foi feita. A reputação desses rei a oportunidade. Uma mente
dernier Sijilmassi, que venceu o prêmio Jean
“O seu Proust... ele escreveu so- uma encomenda de bandejas de Giono (2014). Publicou diversas coletâneas dois infelizes está arruinada para de investigador como a sua certa-
bre Marraquexe?” cobre ou algo do tipo. Pobre ho- de contos, entre elas L’Étrange Affaire sempre. Vão terminar a vida en- mente iria decifrar a tela.”
“Não, não… o pedaço de mem. Espero que não o tenham du pantalon de Dassoukine, indicada ao vergonhados, odiados por todos, O inspetor permaneceu em
prêmio Goncourt na categoria Conto, em
parede amarela é em Delft, na emparedado vivo. Do contrário, 2013. Também foi condecorado com a mesmo pelos mais próximos, es- silêncio por alguns instantes, de-
Holanda, a cidade natal de…” que fim atroz… De qualquer for- medalha Grand prix de la Francophonie em perando ir direto para o inferno.” pois levantou o copo na direção
Hamdouch levantou a mão, ma, Labatt escapou dali sem nin- 2014 pela Academia Francesa. O conto A tela “São dois… como era? Ânes do quadro. O dono do restauran-
misteriosa integra a coletânea Marraquexe
interrompendo Cécile. guém se dar conta e em poucas noir, organizada por Yassin Adnan, a ser damnés.” te o imitou e, com os olhos mare-
“A Holanda não está na mi- semanas concluiu a tela delatora. lançada em breve pela Tabla. “Bravo, você aprende rá- jados, murmurou: “Ao artista!”.
nha jurisdição. Deixe para lá. On- De certa forma, era a única ma-
de é a parede?” neira de expressar o que vira…”
Eles o levaram até um dos “Mas por que ele não de-
quartos laterais, deixando Hari- nunciou o paxá à polícia?”, per-
ri para trás. Metade de uma das guntou o dono do restaurante.
paredes estava revestida de zellige “Naquela época, ninguém
ocre. Curiosamente, não havia ou- confiava na polícia, muito menos
tra igual, o que a fazia parecer um um simples trabalhador, un fils du
teste que acabou não agradando e peuple como Labatt. E mais: en-
que também não valia a pena des- frentar o paxá… poucos ousariam.”
fazer. Hamdouch analisou a pare- “Que época perversa”, la-
de com atenção, ajoelhou-se para mentou o dono do restaurante.
examinar a base e depois bateu em “Contudo, ele não con-
diferentes pontos, colando a ore- seguiu guardar um segredo tão
lha à superfície. Hariri e o casal sombrio e contou a alguém. Dis-
francês assistiam a tudo perplexos. se ter provas para pôr tudo abaixo.
“O senhor acha que há al- Mas seu confidente deu com a lín-
guma coisa aí atrás?”, perguntou gua nos dentes e o boato se espa-
Cécile. Sem aguardar a resposta, lhou. Madani soube e, como era
ela se virou para o marido. “Você mancomunado com o paxá, logo
se lembra dos Hébert? Eles com- o avisou. O pintor foi preso dis-
praram uma casa antiga em Paris, cretamente — e sem dúvida tor-
no Marais. Quando faziam uma turado —, depois terminaram o
reforma, descobriram uma pare- serviço enforcando-o e fazendo pa-
de falsa e, atrás dela, numa male- recer suicídio”, concluiu o inspe-
ta, um violino valiosíssimo. Um tor. “Revistaram sua casa de cima
Guarneri, acho.” a baixo em busca de documentos
“Podemos ficar ricos!”, dis- que incriminassem o paxá. Esta-
se François. vam desesperados para encontrar
O inspetor, ajoelhado para um caderno, uma carta, algumas
examinar a parede, ergueu-se com palavras soltas num pedaço de pa-
dificuldade e respondeu: “Não sei pel, mas ninguém pensou nas telas
se o senhor vai ficar rico no mer- — nas pinturas que enfeitavam as
cado de ossos. Se conseguir, será paredes! Foi ali que ele fez sua de-
uma sorte: há o esqueleto de um talhada denúncia. Mesmo assim,
funileiro atrás desta parede”. era necessário saber observar…”
40 | AGOSTO DE 2022

TED HUGHES
DIVULGAÇÃO

TED HUGHES
Nasceu em Mytholmroyd
(Inglaterra), em 1930. Ficou
marcado por ter sido
casado com Sylvia Plath (e
principalmente por ter sido,
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert supostamente, o grande
causador do suicídio da poeta,
além do suicídio de sua segunda
mulher, Assia Wevill, que levou
junto a filhinha do casal). Mas,
para além de sua tumultuada
e trágica vida afetiva, Hughes
Pastoral symphony Nº 1 foi um dos principais poetas
Two finger Arrangement britânicos de sua geração.
Morreu em 1998.

Far thunder of the coming sun; ablaze


At horizon that wild green rush bursts with the dawn;
Spring winds run in the valleys with the days,
The choking claw-down grip from their hearts torn
In a tossing flame of flowers their quick feet run;
While the white blizzards shriek in the North heaven,
In terror from the exulting season driven,
Ride their gray clanging seas out of the sun;
Polar eagle and owl scream, and retire
In their wrecked storms nurtured, dreading the warm light;
Dizzy with ecstasy for the warm light
Birds dance from the soaring sun, nurtured in fire,
Dazing the vales of the flowered time with songs:
And shall the song and dance of the singers go?
When from the sun’s frenzy and cruel snow
That nurtured them, hung murderous in the wind,
The bearded ravens gather; sudden their throngs
Flock, blotting day, and swirling darkly and roaring, fall
Bringing night.

Sinfonia pastoral Nº 1
Arranjo para dois dedos Still Life

Trovão distante do sol que chega; em chamas Outcrop stone is miserly


No horizonte aquele verde junco irrompe com a aurora;
Ventos primaveris viajam pelos vales ao longo dos dias, With the wind. Hoarding its nothings,
As garras apertadas de seus corações dilacerados, e Letting wind run through its fingers,
Sobre flores em chamas seus pés ligeiros correm; It pretends to be dead of lack.
Enquanto as brancas nevascas berram nos céus do norte, Even its grimace is empty,
Aterrorizadas pela exultante estação que avança, Warted with quartz pebbles from the sea’s womb.
Conduzindo seus ressoantes e cinzentos céus para longe do sol;
Gritam o urso polar e a coruja, recolhendo-se It thinks it pays no rent,
Para suas ruinosas e bem nutridas tempestades, com medo da luz cálida; Expansive in the sun’s summerly reckoning.
Extasiados e apalermados pela luz cálida, Under rain, it gleams exultation blackly
Pássaros dançam ao sol que se eleva, nutridos pelo fogo, As if receiving interest.
Atordoando com suas canções os vales floridos: Similarly, it bears the snow well.
E irão também as canções e as danças dos cantores?
Quando, do frenesi do sol e da neve cruel Wakeful and missing little and landmarking
que os nutriram, dependurados no vento os mortíferos e The fly-like dance of the planets,
Barbados corvos se reunirem; e de repente seus ruidosos The landscape moving in sleep,
Rebanhos, apagando o dia, rugindo e rodopiando, sinistros, caírem It expects to be in at the finish.
trazendo a noite. Being ignorant of this other, this harebell, Natureza morta

That trembles, as under threats of death, A pedra na superfície é avarenta


In the summer turf’s heat-rise,
And in which — filling veins Com o vento. Acumulando seus nadas,
Any known name of blue would bruise Deixando que o vento corra por entre seus dedos,
Out of existence — sleeps, recovering, Ela finge estar morta de fome.
Snowdrop Até mesmo suas expressões são vazias,
The maker of the sea. Nauseada com os seixos de quartzo do ventre do mar.
Now is the globe shrunk tight
Round the mouse’s dulled wintering heart. Ela pensa que nem aluguel paga,
Weasel and crow, as if moulded in brass, Expansiva na contabilidade do sol de verão.
Move through an outer darkness Sob a chuva, ela cintila exultante, negra,
Not in their right minds, Como se recebesse juros.
With the other deaths. She, too, pursues her ends, E da mesma maneira lida bem com a neve.
Brutal as the stars of this mouth,
Her pale head heavy as metal. Desperta, pouco deixando escapar e marcando
A dança ao estilo das moscas dos planetas,
A paisagem se movendo enquanto dorme,
Floco de neve Ela espera estar lá, no final.
Sem dar atenção à outra, à campainha,
Agora é o globo muito encolhido
Em volta do invernal coração do camundongo Que treme, como se ameaçada pela morte
Doninhas e corvos, como se moldados em bronze, No calor crescente da relva de verão,
Movem-se na escuridão lá de fora Na qual — preenchendo as veias
Não muito preocupadas Qualquer nome que se desse à melancolia, feriria
Com as outras mortes. Ela, também, persegue seus fins, Para fora da existência — dormindo, curando,
Brutais como as estrelas desta boca,
Sua cabeça, pálida, pesada como metal. O criador do mar.
AGOSTO DE 2022 | 41

Public bar T.V. The door A porta

On a flaked ridge of the desert Out under the sun stands a body. Lá fora sob o sol há um corpo.
It is growth of the solid world. Do mundo sólido crescido.
Outriders have found foul water. They say nothing;
With the cactus and the petrified tree It is part of the world’s earthen wall. Ele é parte da parede de terra do mundo.
Crouch numbed by a wind howling all The earth’s plants — such as the genitals As plantas da terra — como os genitais
Visible horizons equally empty. And the flowerless navel E o umbigo sem flores
Live in its crevices. Vivem em suas fendas.
The wind brings dust and nothing Also, some of the earth’s creatures — such as the mouth. E também algumas das criaturas da terra — como a boca.
Of the wives, the children, the grandmothers All are rooted in earth, or eat earth, earthy, Todas são enraizadas na terra, ou comem terra, terrena,
With the ancestral bones, who months ago Thickening the wall. Engrossando a parede.
Left the last river,
Only there is a doorway in the wall — Mas há uma soleira na parede —
Coming at the pace of oxen. A black doorway: Uma soleira negra:
The eye’s pupil. A pupila do olho.

TV de bar Through that doorway came Crow. Através daquela soleira veio o Corvo.

Numa encosta escarpada do deserto Flying from sun to sun, he found this home. Voando de sol a sol ele encontrou este lar.

Exploradores encontraram água suja. Não falam nada;


Com o cacto e a árvore petrificada
Agachados e entorpecidos pelo vento uivando e todos
Os horizontes visíveis igualmente vazios.

O vento traz poeira e nada


Das esposas, dos filhos, das avós
Que com seus ossos ancestrais, dois meses atrás
Deixaram o último rio, Chlorophyl Clorofila

Vindo a passos de boi. She sent him a blade of grass, but no word. Ela lhe enviou uma lâmina de relva, sem nada dizer.
Inside it Dentro dela
The witchy doll, soaked in Dior. A boneca bruxa, encharcada em Dior.
Inside it Dentro dela
The gravestone. Inside it A lápide. Dentro dela
A sample of her own ashes. Inside it Uma amostra de suas próprias cinzas. Dentro dela
Her only daughter’s O sorriso de sua única
Otherwise non-existent smile. Filha, fora isso, inexistente.
Fighting for Jerusalem Inside it, the keys Dentro dele, as chaves
Of a sycamore. De um plátano.
The man who seems to be dead Inside those, falling Dentro delas, caindo
The keys As chaves
With Buddha in his smile Of a sycamore. Inside those, De um plátano. Dentro delas,
With Jesus in his stretched out arms Falling and turning in air the Caindo e girando no ar, as
With Mahomet in his humbled forehead Keys Chaves
Of a sycamore. De um plátano.
With his feet in hell
With his hands in heaven
With his back to the earth

Is escorted
To his eternal reward
By singing legions Visitation Visita

Of what seem to be flies All night the river’s twists A noite toda os rios se contorcem
Bit each other’s tails, in happy play. Mordendo as caudas um do outro, em alegre brincadeira.

Guerreando por Jerusalém Suddenly a dark other De repente um outro, escuro


Twisted among them. Se contorce entre eles.
O homem que parece estar morto
And a cry, half sky, half bird, E um grito, meio céu, meio pássaro,
Com Buda em seu sorriso Slithered over roots. Desliza sobre as raízes.
Com Jesus em seus braços estendidos A star Uma estrela
Com Maomé em sua testa humilde
Fleetingly etched it. Fugaz o causticou.
Com seus pés no inferno Dawn A aurora
Com suas mãos no céu Puzzles a sunk branch under deep tremblings. Atrapalha um galho submerso em profundos tremores.
Com suas costas na terra
Nettles will not tell. As urtigas nada falarão.
É escoltado Who shall say Quem dirá
Para a eterna recompensa That the river Que o rio
Por legiões cantando Crawled out of the river, and whistled, Rastejou para fora do rio, e assobiou,
And was answered by another river? Recebendo una resposta de outro rio?
Que parecem ser moscas
A strange tree Uma estranha árvore
In the water of life — É a água da vida —

Sheds these pad-clusters on mud-margins Que arremessa buquês nas margens barrentas
One dawn in a year, her eeriest flower. Uma aurora por ano, a sua mais sinistra flor.
42 | AGOSTO DE 2022

ozias filho
QUEM EU VEJO QUANDO LEIO

GABRIELA
GOMES
GABRIELA GOMES
Nasceu em Niterói (RJ). Poeta, mestre em Estudos
Literários, Culturais e Interartes pela Universidade do Porto,
cidade onde vive. Autora de Acidentes tropicais (Quelônio),
Cloro (Flan de Tal), Língua-Mãe (Fresca). Participou nas
antologias Terceira margem: Poesia de Portugal e do
Brasil (Enfermaria 6), Volta pra tua terra! – uma antologia
antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em
Portugal (Urutau), e 110 anos, 110 poetas – Antologia
comemorativa dos cento e dez anos da Universidade
do Porto (U. Porto Press). Tem se dedicado à pesquisa da
literatura e da maternidade e, com Cacau Araújo, ministra
a oficina de leitura e escrita: Línguamãe, um espaço para
discutir, ler, escrever e refletir as representações da
maternidade na literatura.

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AGOSTO DE 2022 | 43

rogério pereira
SUJEITO OCULTO

BARATAS

Ilustração: Guilherme Paixão


volta olhando os pedaços do lagarto
misturados à terra. De repente, mi-
nha irmã mais nova arqueou o cor-
po franzino e vomitou sobre o nosso
improvável almoço.
Tinha o ridículo sonho de
construir um deck de madeira dian-

O
te de casa. Meus filhos — saudáveis,
nojo ganha contornos de bonitos e que nunca colheram ou
breves choques no rosto, comeram serralha — riem das mi-
como se agulhas de acu- nhas manias de construtor. Estou
puntura a tivessem atra- sempre às voltas com uma obra.
vessando a pele. Os cantos da boca Aos poucos, a calçada deu lugar ao
ensaiam um esgar de repugnância. deck. Algo bastante simples: uma fi-
O inusitado da minha resposta so- leira de estreitas tábuas lado a lado
bre o distante país a ser visitado cau- do portão à porta de entrada. Sem-
sara o mal-estar: hospede-se no hotel pre que olho para o deck, lembro
que tiver menos baratas. Não pen- do paiol e dos ratos. Mas não há ra-
sei em Kafka ou em Gregor Samsa tos em torno da casa. É um lugar
(sim, o assombroso inseto não pas- de descanso. Ao final do dia, arras-
sa de uma barata nos meus sonhos to uma leve poltrona e leio à espera
também intranquilos). Os insetos da noite e da luz artificial do pos-
rastejando, de patinhas ágeis, pelas te. Nunca me preocupei com o que
frinchas dos quartos me pareceram poderia acontecer no submundo do
o mais importante a informar sobre deck. Uma lona plástica evita que o
a viagem de férias que o casal pre- inço avance para a superfície.
tendia empreender numa tentativa, Elas surgiram aos poucos.
talvez ingênua, de fugir de paisagens Quando me dei conta, já faziam
óbvias. Claro, há também os passeios parte da rotina. As patinhas ligei-
de camelo. Ao redor, o farfalhar de ras, o esconder-se de repente, para
vozes alegres na festa preenchia o va- surgir em seguida: umas traiçoei-
zio na tarde de domingo. ras à espera de algo que desconhe-
Sempre convivi bem com ani- ço. Com o tempo, proliferaram-se,
mais asquerosos. No paiol de ripas ganharam coragem e me desafiam
onde brincávamos, os ratos prolifera- em meu território. Não havia al-
vam em ninhadas graúdas. Ao encon- ternativa: iniciamos uma batalha
trá-los, os filhotes se mexiam numa sangrenta. Talvez tenham surgido
massa informe, meio rosada, um as- devido ao matagal nos terrenos vi-
pecto ao mesmo tempo angustiante e zinhos. Não me importa a origem.
sedutor. Parecia algo gostoso de mor- É preciso combatê-las com méto-
der, macio, suculento. Uma iguaria do e competência. As doses de ve-
aos nossos miseráveis cardápios diá- neno compradas no supermercado
rios de arroz, feijão e o maldito chu- demarcam partes da casa, mas não
chu. Mas logo se transformariam em são a certeza do extermínio. É co-
pequenos inimigos a nos incomo- mum que apareçam no deck sem-
dar nas peraltices pelos vãos da velha pre no início da noite. As baratas da
morada. Corríamos atrás deles com minha casa são notívagas. É quando
improvisadas espadas de madeira. In- temos tempo para a guerra.
vocávamos em urros os heróis dos de- No início, um asco me per-
senhos animados que nos chegavam corria todo o corpo. Baratas sem-
em raios pela velha Telefunken. Pe- pre me pareçam mais nojentas que
na que era em preto-e-branco. Mas espaço com pedestres e carros, ratos esmagados por espadas infan-
quando as cores aportaram, numa tem algo a ver com voltar no tempo tis. Com o tempo, o nojo deu lugar
tevê pequena de bordas arredonda- — à infância cercada por um am- à fúria. Deixo o chinelo ao lado da
das, descobri que me eram um in- biente rural, de pequenos animais e prido, às mãos assassinas do pai. Na poltrona e as espero. Elas não po-
ferno cromático: seria sempre um improváveis perigos. lateral da cabeça, via-se o corte do dem ultrapassar a soleira da porta. A
daltônico atrapalhado a enxergar o Era um tempo de fome e pe- facão. Nunca descobri como o pai casa é um território proibido, qua-
mundo de uma maneira torta. Ao núria. Antes de chegarmos a C., a conseguira atingir um lagarto com se sagrado. Feito um rei num caste-
encurralá-los (os ratos) a um canto, cidade grande que nunca compreen- tamanha precisão. Ele, o pai, sem- lo medieval, convoco meu exército
desferíamos golpes atabalhoados e, demos, a roça e um ambiente brutal, pre me pareceu um homem lento, inexistente para a batalha. Não é al-
por vezes, certeiros. Logo, voltavam apesar de lúdico, eram nossa mora- preguiçoso e despreocupado. Com o go muito simples matar uma bara-
à forma de ninhada, mas vermelhos da. A mãe lavava roupa no rio, so- tempo, tornou-se também violento ta. São lépidas, espertas ao percorrer
de sangue e desfigurados pela fúria vava o puído tecido com a mesma — uma história óbvia e inesquecível. pequenas distâncias, infiltram-se
de nossa infância selvagem. fúria com que fazia pão. As mãos da A mãe, que nunca cozinhou com facilidade em qualquer fresta.
Agora, aranhas passeiam pela mãe nunca foram dadas a delicade- muito bem, não sabia o que fazer Ao atingi-las, uma gosma es-
casa com certa frequência. Em ge- zas. O pai corria o mato atrás de ja- com o lagarto. Mas não podíamos palha-se. As patinhas ainda se de-
ral à noite, povoam o piso de porce- buticabas e animais silvestres. Nós, desperdiçar a carne. Encher o bu- batem à espera do fim. Viro-as com
lanato cinza. Têm um amplo e liso os filhos, caçávamos passarinhos e cho supera qualquer ignorância. Ao cuidado. Gosto de vê-las agonizando
caminho pela frente, mas preferem colhíamos serralha sem saber de sua final, cortou o bicho em pedaços e com a pança gorda para cima. Quan-
as frestas, os cantos, os esconderijos riqueza em vitaminas — não passava os depositou no pequeno tacho de do ainda lhes resta algum resquício
entre as lombadas dos livros. São de um mato amargo que a mãe afo- ferro. O que aconteceu é um misté- de vida, observo a morte com cer-
traiçoeiras. No início, assustava-me gava em vinagre e sal, e fingíamos to- rio que nunca tentei desvendar. Aos to gosto assassino. Talvez seja uma
com o tamanho e a quantidade de dos ser uma deliciosa salada. Lembro poucos, um fedor quase insuportá- herança paterna. Aos poucos o mo-
algumas. Com o tempo, acostumei- do pesadelo em que pés gigantes de vel preencheu a casa, deu voltas pe- vimento se esvai. Aguardo pela pró-
-me ao convívio. É muito simples serralha corriam atrás de mim e de las tábuas podres, infiltrou-se em xima inimiga. Elas sempre aparecem.
cuidar delas. Hoje, mato-as com a meu irmão. Hilário e ridículo como nossas almas perdigueiras. À medida Uma noite, deixei uma barata
ponta dos dedos ou com o chinelo, boa parte da nossa infância. que cozinhava, o lagarto se vingava a morta no piso da garagem. Pela ma-
dependendo da espessura da inimi- Mas naquele dia, o pai chegou sua maneira. O cheiro vinha do fo- nhã, encontrei o corpo eviscerado
ga. Ao contrário dos ratos, não me com um monstro nas mãos: um gor- gão a lenha. A mãe agarrou o tacho por formigas minúsculas e famin-
parecem nada suculentas. Viver pró- do lagarto. Um dinossauro em mi- e correu porta afora feito uma bruxa tas. Elas se banqueteavam.
ximo à vida selvagem, numa cida- niatura. Era nojento e atraente. estabanada. No terreiro, despejou o Lagartos também se alimen-
de pequena, onde cavalos disputam Morto, moldava-se, molenga e com- caldo fedorento. Ficamos todos em tam de baratas.

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