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Lost in Translation

Michelle Ramos

“As Palavras reduzem a realidade a algo que a mente humana pode compreender, o que não é
muito.”

Eckhart Tolle

Tradução é Traição
Certa vez ouvi a expressão “tradução é traição”. Nessa ocasião a expressão soava apenas como
algo jocoso. Não sendo a tradução uma atividade que eu desenvolvia, compreendia
superficialmente o significado. Deparei-me novamente com a temática ao ler o conto Intérprete
de Males, de Jhumpa Lahiri. Na história, o Senhor Karpasi é um indiano que trabalha como
tradutor em um consultório médico de um país com muitos dialetos, e aos finais de semana leva
turistas para conhecer os Templos da região. Em um desses passeios sua ocupação de tradutor
torna-se assunto durante o trajeto e ele se vê detentor de um segredo: a mulher americana conta
a ele que um daqueles três filhos que estão se divertindo na viagem não é filho do esposo. A
turista relata todo o horror de viver com o resultado da traição. Ela fala de dor e pede ajuda ao
Senhor Karpasi, pede um remédio, ele que ouve tantas vezes o médico receitar, certamente
saberia de algo que aplacaria tudo isso. Sem saber o que fazer, e tão confuso quanto ela, ele
pergunta: é dor mesmo o que senhora sente ou é culpa?
Essa cena nada mais é que uma sessão de psicanálise. É nesse espaço em que não cessamos
de tentar nos traduzir e nos trair. Nossa traição, não intencional, está nesse lugar em que se
torna impossível dar o exato nome ao que nos atormenta.

Unheimliche
Freud nos apresenta ao unheimliche e ao mesmo tempo nos confronta com o dilema da
tradução. Afinal, qual palavra em português representaria adequadamente o unheimliche? Antes
ainda, o que significa em alemão o unheimliche? Sem perder de vista que a tradução é traição,
poderíamos definir o unheimliche como “tudo aquilo que deveria permanecer oculto, secreto,
mas apareceu”.

Entendo que Freud se refere ao inconsciente, que em sua tentativa de acessar a consciência,
expressa algo, mas como se falasse um idioma desconhecido, acabamos por não compreender.
Percebemos que algo está sendo dito, sentimos que algo está sendo comunicado a nós, mas
não nos é possível, num primeiro momento traduzi-lo. Esse momento me faz pensar na tentativa
de ler um poema em braile, senti-lo na ponta dos dedos, mas por desconhecer a linguagem,
restar apenas a inquietação de não ter podido desvendar a mensagem.

Walter Hugo Mãe retratou esse encontro inquietante em seu livro Homens Imprudentemente
Poéticos. Nessa história temos Itaro e Saburo, dois artesãos de uma pequena tribo nos confins
do Japão, que vivem em pé de guerra. Itaro é um fazedor de leques que tem um dom triste: ele
consegue ver o futuro no corpo de insetos esmagados. O conflito entre ambos se inicia quando
a profecia de Itaro sobre a morte da esposa de Saburo se concretiza. Saburo, um oleiro dedicado
à sua esposa, culpa Itaro pela morte da mulher.

Mas a pior profecia é a que Itaro vê sobre ele mesmo: ficará cego. Ele, que já cuida com
dificuldade da irmã cega após morte dos pais, atormentado pelo fato de que não conseguirá
mais fazer leques ao perder a visão, num ato de desespero, doa a irmã. Como resultado da
culpa, passa a ser perseguido pelo fantasma do pai. Só há uma forma dele se livrar disso,
segundo o sábio da tribo: passar sete noites no fundo de um poço escuro.

Itaro é então posto no fundo do poço bem fundo, onde a luz não chega. Ocorre que na primeira
noite cai sobre ele um bicho. Ele sente sobre seu corpo o peso do animal, sente seu cheiro, mas
não é possível identifica-lo, apenas percebe-lo. “Mediam a mútua coragem e o mútuo medo, sem
poder se verem.” A primeira reação foi pensar em matar o bicho e poupar a própria vida, mas o
Sábio o proibiu.

“Subiram o sabre sem que Itaro lhe tocasse e disseram: apazigua-te com ele. Queriam dizer
que devia explicar a paz a um bicho feroz.

Como se entendesse a sua sorte, o animal invisível gemeu, talvez de alívio, talvez suplicando,
sem que pudesse ainda mover. O artesão espremeu-se o mais que pôde à parede do poço e
chorou. Em algum momento dos sete sóis e das sete luas haveria de o animal se levantar e,

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esfaimando inevitavelmente, sentiria necessidade de o comer. Agarrado ao arroz, junto ao peito
igual a levantar muito um tesouro do chão, Itaro entendeu que a melhor prudência para aquele
assustador convívio era acabar com a fome do companheiro."

E assim Itaro foi passando os dias no fundo do poço, tentando identificar o que era aquele animal
que tanto pesava sobre ele, se assenhorar daquela criatura que no início o mortificava. Com o
tempo seu medo foi amainando.

“Por que haveria de o seu predador demorar na amizade. Perguntou-se.

Era-lhe muito claro. Intuía o bastante para saber que se devorasse Itaro nenhuma sorte o
levantaria do fundo do poço.”

Ao final dos sete dias, Itaro se viu num dilema: levaria consigo o animal de volta para a superfície,
lhe devolvendo não são só o exercício da liberdade como o da maldade? O afeto que
desenvolveu pelo bicho, o fez concluir que o levaria à superfície, onde todos poderiam conhecer
a fera. Amarrou o animal ao seu corpo, aqueles que os puxavam para fora sentiam o enorme
peso, Itaro gritava de dores.

“À vista dos que espreitavam, muito perto do cimo do poço, iluminado na graça inteira do sol,
Itaro muito agradava o seu amigo, mas os outros viam nada. Viam como chegava sozinho. Os
braços diante do peito, esticados em jeito de grande esforço, mas havia ali ninguém.
Perguntavam: caiu. E o artesão respondia: está aqui. Está aqui. E havia quase uma alegria.

(...)

Então, Itaro levantou um pouco a cabeça e, como todos os outros, viu nada. Subitamente, por
ver nada, a sensação de afagar o animal desapareceu e o aperto que lhe fazia o peito também.
Estava ali ninguém.”

Vejo nesse texto o encontro do homem com seu inconsciente: sem forma, não identificado, um
animal familiar, com pelo, focinho, cheiro, patas, que poderia ser um urso, ou um tigre - mas
impossível dizer. Uma fera que amedronta e afeiçoa. Esse aparente outro, que percebemos
necessário alimentar sob pena de sermos devorado por ele. Temos que dividir a vida para que
ambos possamos existir no mundo.

“Contar-se-ia para sempre que um homem fora condenado a meditar no fundo de um poço
durante sete sóis e sete luas e que, apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo.
Sentindo-lhe carinho.”

Esse unheimliche nós conhecemos sim, de algum lugar: somos nós nos havendo
verdadeiramente conosco.

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