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(Organizadores)
Porto Alegre
2012
AUTORES
Prefácio
Ana Maria Lisboa de MELLO
3
P. 117.
4
Uso, aqui, o conceito meta-histórico de pós-moderno de acordo com a definição dada por
Umberto Eco (1985, p. 55): “o pós-moderno não é uma tendência que possa ser delimitada
cronologicamente, mas uma categoria espiritual, melhor dizendo, um Kunstwollen, um modo de
operar. Podemos dizer que cada época tem seu próprio pós-moderno, assim como cada época teria
seu próprio maneirismo”.
fama,5 ainda que volátil, até porque, como ele mesmo reconhece, não
transmitimos a ninguém nosso legado.
Numa realidade como esta que se apresenta já não faz sentido falar de
continuidade e finalidade, projeto e utopia, relações afetivas e humanitárias. De
certo modo, esses são sintomas da literatura moderna, pois é o que se vê também,
sem maiores esforços de compreensão, em Macunaíma (para quem não há
escapatória e não se pode levar nada a sério, pois a personagem não tinha moral
consolidada, nem regras a cumprir). No entanto, outro fator, o plus pós-moderno,
se aplica, hoje, a tudo isso: a certeza de que não há mais o que preservar, já que
tudo se extingue mal raia o dia. A velocidade do mundo midiático somada ao
ritmo do tempo industrial, que substitui todas as mercadorias que não foram feitas
mais para durar, adquire proporções inimagináveis. Se em Macunaíma a regra era
aguardar os frutos da esperteza e em Brás Cubas a pretensão era vivenciar o
contínuo esgotamento das forças em cada conquista realizada, na literatura
contemporânea rompem definitivamente laços o sujeito e o objeto por uma
espécie de neutralização de algum tipo de ligação entre eles. O mundo vira
imageria que mal se costura, que mal relaciona os seres que se distribuem diante
do campo de visão do observador. Fato que é mais dramático no poema lírico do
que mesmo na narrativa, porque ao menos na narrativa há mal e mal uma história
a ser contada, ainda que não se perceba o fundamento por que as personagens
tecem algum tipo de relacionamento – o que teria motivado o encontro, por
exemplo, no romance Elogio da mentira, de Patrícia Melo, das personagens José
Guber e Fúlvia, aparentemente unidos pelo propósito de compor uma novela
5
Outro romance brasileiro do século XIX que problematiza a divulgação da imagem do
indivíduo, como configuração estética da ideia –ainda que prematura –de ação da propaganda e da
mídia na sociedade capitalista, numa espécie de antessala da literatura que hoje se produz,
antenada com o mercado, é O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, em que Aristarco se vê a si mesmo
como face de um anúncio publicitário: “Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao
homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu!
Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos calmos, soberanos, eram de um rei [...] A
irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do país [...]” (Cf. capítulo I desse
romance).
policial que ele, como escritor, tenta escrever, depois (ou ao mesmo tempo) por
uma necessidade dela, mal explicada, de matar o marido e querer para isso a ajuda
do amante e depois (ou também) por quererem fixar um caso amoroso típico de
cúmplices do mal. Fracassam ambos, porém, nesse intento, até o leitor notar que
nenhuma dessas ações é legítima nem tem substância e, por isso, nada na história
pode ser compreendido como um objetivo a ser cumprido, a não ser para que o
romance exista como discurso e artefato, se realize como tal e seja vendido,
comprado e lido em seguida.
O zapping do poema
Como não pretendo nem uma análise economicista nem muito menos
psicanalítica da poesia contemporânea, mas apenas lembrar possibilidades de
enquadramento teórico do texto, quero dizer apenas que cada vez mais ocorre o
8
2006, p. 28-29.
distanciamento da qualidade das coisas, seja pela exacerbação do fetichismo da
mercadoria, seja pelos danos que isso pode trazer à relação do homem com o
mundo, afetando consideravelmente a maneira de compreender a própria realidade
que habita. Para a maximização do sistema, é preciso que cada vez mais também
se embaralhem os dados que o compõem, porque quanto mais diluídos e dispersos
forem menos se tem noção do que representa socialmente o sistema na vida do
indivíduo.9
Observando da plateia
9
Não seria isso o mesmo que Terry Eagleton acusa ao tratar dos estudos linguísticos e
literários na contemporaneidade? Diz ele: “Se o estruturalismo separou o signo do referente, esse
pensamento – frequentemente mencionado como ‘pós-estruturalismo’ – dá um passo além: separa
o significante do significado” (EAGLETON, [198-]. p. 138).
o liame entre elas, não se sente falta disso ou daquilo, porque tudo é mesmo
volátil e contingente. Alerta o poeta:
Não há tempo nem dinheiro a perder, nem energias vitais, pois o sistema
precisa continuar vigendo e funcionando em ritmo freneticamente acelerado. A
perspectiva não é a de quem tem noção clara e distinta das coisas, fato que ajuda a
não questionar o rumo da sociedade globalizada e dos muros que ela derruba,
fundindo espaços antes discerníveis. Algo parecido com o que disse Caetano
Veloso no poema “O trem das cores”, cuja perspectiva clássica se revela
completamente arruinada em favor de uma visão fragmentária, a ponto de os
pigmentos das cores escaparem dos objetos que colorem:
Quem, aí, vê o quê, nesse trem das cores? O adjetivo “verde”, o único que
poderia se flexionar no plural nessa sequência, não concorda com “casas” porque
cor e objeto já se dispersaram um do outro. E de onde, de que lugar, é que se vê?
Aquele que está situado do lado de fora do trem ou quem está do lado de dentro?
As casas vão passando – parece ser a ilusão de quem está sentado, viajando, no
interior do trem – mas são as casas que nos veem passar. Enquanto isso, os dois
lados da janela são as duas interpretações, os dois ângulos de visão numa mesma
operação sígnica, sem que se dê, entretanto, a tão esperada síntese, pois
simultaneidade não quer dizer síntese. Porque, se se desse a síntese, que é a
operação suprema da transformação dialética, se perderia energia, algo se iria para
sempre pelo ralo; e, assim, sinistramente, desnecessariamente, numa recolocação
das perspectivas sociológica e psicanalítica, se perderia dinheiro, e se perderia
força vital, libidinal, à toa, sendo que tal desgraça não pode ocorrer num sistema
vigilante, que, no máximo, permite o jogo mas não permite em definitivo que o
jogo assuma a frente e o comando das ações políticas fundamentais, como
questionar a ideologia, por exemplo. A dualidade, pois, se preserva, apesar do
aparente embaralhar dos polos.
Não que não seja dada a oportunidade de escolher este ou aquele lado, isso
não; mas, embaralhando momentaneamente – apenas momentaneamente – a
percepção do indivíduo, o sonho se libera, sem pretender, no entanto, direcionar-
se exatamente a um alvo da realidade. No máximo, o estímulo ao desejo pode ter
muitas direções, seja qual for o objeto externo ao qual o desejo venha um dia se
ligar – afinal, o revólver do sonho não mata o desejo do que ainda não existe –,
porque o sonho já é uma realização, e o prazer é bastante e autossuficiente. O
sonho é dispersivo e não vem de quem sonha, mas, em sua total independência,
aparece desligado de uma eventual necessidade (que poderia, se tudo fosse tão
lógico assim, levar ao sonho). Não se trata, como na teoria marxista do fetichismo
da mercadoria, de uma ocultação da legítima fonte do capital, que é a mais-valia.
O sonho, no poema de Waly Salomão, é o fetiche em si e por si; nada oculta nem
disfarça porque já não há o que disfarçar, pois ele não corresponde a relações
sociais entre pessoas que, supostamente, têm necessidade.
10
1991, p. 264.
Esse sonho, que não é, pois, do homem que sonha, é, antes, do mercado
que estimula o consumo anárquico e sem direção certa. O revólver é, nessa
construção, o elemento impulsionador e propulsor do desejo como algo separado
do humano. Afinal, alguém sonha por nós, o sistema produz nossa necessidade de
sonhar, embora a necessidade, igualmente alienante, não traduza a mais autêntica
subjetividade. Pois, como disse Carlos Drummond de Andrade, “sonhei que o
sonho existia / não dentro, fora de nós, / e era tocá-lo e colhê-lo, / e sem demora
sorvê-lo, / gastá-lo sem vão receio / de que um dia se gastara”.11
Referências
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Em: ASSIS, Machado
de. Obra completa (Org. de Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.
A., 1997. p. 511-639.
VELOSO, Caetano. Trem das cores. Em: VELOSO, Caetano. Cores, nomes. São
Paulo: Philips, 1989. 1 disco laser, 4,8 pol. C 838 464-2. Gravação de som.
DO QUADRINHO À POESIA: UM RELATO PESSOAL DOS DESAFIOS
NA TRADUÇÃO DO IDIOMA ALEMÃO PARA O PORTUGUÊS
12
Citado no curso Approches theoriques et sociologiques de la lecture et du fait litteraire,
ministrado pelo professor Emmnauel Fraisse, da Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em agosto de 2011.
13
Citado pelo professor Emmanuel Fraisse na mesma ocasião apontada acima.
Quadrinho
14
KLEIST, 2006, p. 51.
15
KLEIST, 2009, p. 51.
Há casos em que a expressão idiomática é traiçoeira. Daí vem o segundo
exemplo. Em certa passagem da obra, Johnny Cash assiste a um show de Elvis e
pergunta ao colega ao lado à qual gravadora o cantor pertence. A personagem
responde que é a Sun Records e comenta que a gravadora “ist seit Elvis schwer im
Geschäft”16. Ou seja, numa tradução literal: “[a gravadora] está, desde Elvis,
‘difícil’ nos negócios”. A palavra ambígua aí é “schwer”, que significa “pesado”,
“difícil” etc. Palavra, portanto, de sentido negativo, o que remeteria
imediatamente ao significado de “dificuldades nos negócios”. No entanto, a
expressão quer dizer justamente o contrário: “Desde o Elvis eles estão com os
negócios a mil”17.
Literatura
21
Nessa tradução, usei as notas de rodapé apenas para dar breves contextualizações sobre a
História da Alemanha, e somente nos casos estritamente necessários.
Uma prova de que a cultura de chegada é o fator mais importante para a
escolha dos critérios de tradução está na reportagem Títulos daqui e d’além mar,
publicada na Revista Língua Portuguesa. O texto, de Gabriel Perissé, compara o
nome dado a obras no Brasil e em Portugal. Apesar de o idioma de chegada ser o
mesmo, o resultado é por vezes muito diferente. Afinal, as culturas não são
idênticas.
Os trechos servem também para atestar que há, sim, uma parcela de
escolha pessoal do tradutor. Essa escolha, claro, é baseada nas suas expectativas e
conhecimentos culturais da língua de chegada, mas ainda assim é uma escolha
22
Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h55min.
23
Idem.
essencialmente subjetiva, haja vista que tradutores diferentes produziriam obras
diferentes. Como diz o autor, no início do artigo da revista:
Todas essas reflexões fazem muito sentido quando penso no meu trabalho
de tradutor da língua alemã. De fato, minha experiência comprova que há
sutilezas de um idioma que não encontram paralelismo no outro. Algumas se
referem ao gosto estético. No alemão, por exemplo, a frase longa, cheio de
informações, é considerada uma comprovação da habilidade de escrita de um
autor, até porque a estrutura frasal alemã permite que se insiram inúmeras
informações em sequência, eventualmente prescindindo até mesmo do emprego
da vírgula.
25
BRAGA, 2011. Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h52min.
O idioma alemão tem ainda o caso dos artigos. São três: masculino,
feminino e neutro. Como o português só tem dois, percebe-se desde já que
qualquer tradução, por mais fiel que seja, já acarretará em perda. Afinal, o uso do
artigo não é desprovido de intenção. Há efeitos de sentido e climas que só
funcionam por causa do artigo.
A questão fica mais complicada quando pensamos que uma palavra pode
ter um artigo masculino no português e feminino no alemão. Um caso bem
conhecido e revelador envolve as palavras “sol/lua” e “Sonne/Mond”. No alemão,
“o sol” vira “die Sonne” (“a sol”), e “a lua” vira “der Mond” (“o lua”). Não se
trata apenas de uma mudança de artigo. É também uma mudança na cosmovisão.
Em conversa com um autor alemão, tive a oportunidade de aprender o quanto as
concepções de dia e noite são radicalmente diferentes no Brasil e na Alemanha.
Para nós, a noite é materna, acalentadora, apaixonante. Para eles, é o lugar do
masculino, da celebração, do hormônio, da conquista. Para nós, o dia é masculino,
quente, agitado, sinônimo de trabalho. Para eles, o sol é uma mãe que fornece
energia e calor para os seus filhos. Sem dúvida, essa diferença é bastante
evidenciada pelo uso dos artigos.
26
Idem.
Entre os elementos mais característico dos quadrinhos estão as
interjeições e as onomatopeias, a visualização de sons
paralinguísticos e ambientais que, assim como os efeitos
sonoros do cinema, são indispensáveis para a elaboração da sua
mensagem. Com pouca expressão na literatura tradicional, na
qual se prioriza a descrição dos ruídos (como, por exemplo, em
“o telefone tocava” ou “um cão latia”), as onomatopéias
encontraram seu “habitat natural” nas histórias em quadrinhos,
onde assumem várias funções além de representar sons e ruídos:
elas também podem criar um “fundo emocional”, à semelhança
da trilha sonora nos filmes, ou ainda servir como elementos de
direcionamento da leitura.
A representação gráfica de sons e ruídos nos quadrinhos é
essencial para a ambientação da trama e acabou por desenvolver
características específicas, resultando num código próprio de
leitura que mescla elementos icônicos e convencionais. 27
A leitura do artigo de Selma Meireles abriu para mim uma outra porta de
percepção, relacionada à comparação entre a tradução de quadrinhos e a de
literatura. Até agora, a minha experiência tem se concentrado na tradução de obras
de quadrinhos. Sei que preciso acumular experiência nessa área antes de passar
para a tradução de uma obra em prosa, mas penso que o próximo passo será
justamente esse: traduzir um livro de contos.
Poesia
27
MEIRELES, 2007, p. 158-159.
Na escala de dificuldades de tradução, com certeza a poesia é o gênero
mais difícil. Afinal, em um poema temos que cuidar não só o significado das
palavras, mas também seus simbolismos e suas sonoridades em um nível que a
literatura e os quadrinhos não nos exigem. Em alguns casos, tem-se ainda que
prestar atenção na métrica e na rima, cujos sistemas de valoração diferem
radicalmente de idioma para idioma.
28
Essa é uma obra teórica, cuja dificuldade de tradução não é igual à da poesia, mas quase.
Afinal, há termos técnicos cujo significado no alemão não pode ser plenamente contemplado no
português. É o caso da palavra “Stimmung”, que na tradução foi desmembrada em duas palavras:
“disposição anímica”.
29
GOETHE Em: STAIGER, 1993, p. 170.
30
STAIGER, 1993, p. 170.
Repetindo: essa tradução é intencionalmente literal. Conserva o conteúdo,
não a forma poética. Uso-a aqui apenas para comparar as dificuldades de tradução
de poesia. Vê-se aí a perda da rima: “Lippe/Klippe”, por exemplo, virou
“lábio/saltava”. Há também a força da cultura gramatical. Em alguns versos no
original alemão, sabemos, pela estrutura frasal, que a frase está em suspenso, pois
ainda está por vir um complemento. Na tradução literal, não há esse efeito. Uma
tradução que enfocasse a dinâmica lírica teria que prestar atenção nesse detalhe.
31
GOETHE, 2007, p. 216.
32
idem, p. 217.
33
HOMERO, 1996, p. 65.
males padeceu, depois de arrasar Tróia, cidadela sacra. / Viu cidades e conheceu
costumes de muitos mortais. [...]”34 Cada tradutor escolheu sua forma de expressar
a disposição anímica de Homero, cada um deles colocou-se no estado poético e
tentou traduzi-lo criativamente para o seu tempo.
Traduzir poesia é uma tarefa de dificuldade extrema. É por isso que muitas
editoras optam por edições bilíngues, onde se pode ver a diferença exercida entre
a versão do autor e a do tradutor. Este, aliás, precisa ter uma formação mais
extensa: é necessário conhecer a fundo a obra do autor, bem como as diversas
possibilidades de sons, símbolos, rimas e ritmos dos sistemas poéticos, tanto da
língua de partida quanto da de chegada. O tradutor precisa, portanto, ser ele
mesmo um poeta.
Haicai
Referências
CARONE, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PERISSÉ, Gabriel. Títulos daqui e d’além mar: diferença entre títulos de livros
lançados no Brasil e em Portugal ajuda a explicar como cada país enxerga a
cultura. Reportagem publicada na Revista Língua Portuguesa.
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12454 Acesso em 2 de
dezembro de 2011, às 11h55min.
35
Graduada em Letras, Licenciatura em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (2007) e Mestre em Letras pela mesma universidade (2010).
Atualmente é aluna de Doutorado em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
36
ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica.
Tradução por Jaime Bruna. 12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 28.
37
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M.
Magalhães. Porto: Rés, 1983, p. 63.
Para Aristóteles, o poeta imita como o pintor e isso pode ser percebido através do
uso de figuras de linguagem:
38
ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica.
Tradução de Jaime Bruna. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 48.
39
ARISTÓTELES. Poética. 7 ed. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Casa da
Moeda, 2003, p. 134.
40
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: volume IV. Tradução Marco Aurélio Werle e
Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004, p. 157-158.
Ainda no século XIX, outro autor que aborda a questão da criação poética
é Edgar Allan Poe. No seu texto “O princípio Poético” 41, Poe defende o principio
de autonomia da arte, ou seja, a arte pela arte. Ele acrescenta que não importa o
tamanho do poema, mas a emoção que ele provoca, de acordo com os usos que faz
dos elementos linguísticos de que se vale.
De fato, para Poe, a poesia não tem compromisso com a verdade e com a
ética, e a este fato ele denomina de “heresia do didático”. Ele completa afirmando
que o poema é nobre quando ele fala de dentro da alma, escrito por ele mesmo,
sem intenção de verdade, mas compromisso com o belo e com o gosto.
41
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Globo, 1985.
42
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Globo, 1985, p. 84
uma representação do mundo sem duplicá-lo, mas sim enfatizar as qualidades
belas, associadas ao que se entende por verdadeiro.
Neste sentido, não bastam apenas os recursos poéticos, mas há que pensar
em como usá-los. Eis aqui o diferencial de Jean Cohen em relação aos
pensamentos anteriores, uma vez que a singularização do sentimento, da visão de
mundo, passa pela ênfase causada pelos “ornamentos” por ocasião da expressão
da mensagem a que o poema se propõe através da linguagem.
43
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974.
mudança de sentido: é mudança de tipo ou natureza de sentido, passagem do
sentido nocional ao sentido emocional. Por essa razão, toda metáfora é poética”.44
Outra abordagem que Cohen faz referência diz respeito ao uso das
metáforas de cor, seguidamente utilizadas pelos simbolistas. Ele acrescenta que
atribuir uma cor aos objetos e seres é um desafio à razão, mas que faz parte do
universo simbolista que ele denomina “desconcertante”. Para ele,
Com efeito, o poeta cria uma metáfora original quando ele utiliza “uma
forma antiga numa substância nova”46; em outras palavras, ele muda o contexto
usual de uma palavra e agrega a ela outro sentido que não o sentido literal e neste
ato de agregar sentido está a recriação. Ou seja, o poeta recria a linguagem quando
é capaz de enriquecer as palavras com novas nuanças de sentido.
44
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 173.
45
COHEN, p. 173.
46
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 41.
É fato que a recriação das palavras, comum a todos os poetas, permite
constatar o caráter dinâmico da linguagem. No dinamismo da recriação, os
sentidos se renovam, as palavras revelam um corpo poético diferenciado e
mostram que sua bagagem semântica não é algo estagnado, que se restringe a
apenas determinados usos e valores. A linguagem poética é uma linguagem que se
renova porque explora novos sentidos e sensações despertadas pela interioridade
que, ao fim e ao cabo, é um contexto em que se explora o autoconhecimento.
Se este impacto for a emoção causada, tal como quer Poe, então há que
pensar na questão dos diversos usos linguísticos que permitirão um encadeamento
de ideias e palavras tal de modo a colocar a realidade sob uma perspectiva
diferenciada e, neste contexto, abordar o sentir humano como arte poética.
47
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M.
Magalhães. Porto: Rés, 1983, p.71-72.
Nestes termos, é importante pensar que a qualidade do “impacto” de um
poema, a medida da “emoção” que é capaz de causar, está ligada ao uso que faz
das metáforas. Se a metáfora é um elemento que estabelece a ênfase na
comunicação dos sentimentos abordados, logo ela se reveste de considerável
importância no cabedal de informações que é necessário transmitir ao leitor
mediante uma linguagem resumida. Afinal, no resumo deve estar a precisão e, na
precisão, a escolha dos termos que, mesmo sendo poucos, sejam capazes de dizer
muito.
Segundo ele,
48
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987.
49
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 59.
comparação é uma forma ampliada da metáfora”50. Para ele, a metáfora resulta de
uma tensão entre dois termos, ou duas palavras, e só tem sentido no conjunto
organizado da frase, como enunciado metafórico. É no encontro entre duas
palavras que se dá o conflito que sustenta a metáfora numa extensão de sentido.
50
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 59.
51
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 64.
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, – frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Referências
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar
Mendes. Rio de Janeiro: Globo, 1985.
No ensaio “Da obra ao texto”, Roland Barthes fala do texto como o que
pratica o “recuo infinito do significado”. O infinito do texto não vem do fato de
ele ser inefável, mas de que é preciso “dar-lhe partida” para que signifique, num
jogo de perpétuas possibilidades. “O texto é radicalmente simbólico: uma obra de
que se concebe, percebe e recebe a natureza integralmente simbólica é um
texto.”52
52
BARTHES, Roland. Da obra ao texto. Em: Rumor da Língua. Trad. Mário Larajeira. São
Paulo: Editora Brasiliense. 1988, pp. 65-70.
53
RICOEUR, Paul. Metáfora e símbolo. Em: Teorias da interpretação: o discurso e o
excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1987.
54
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987.
profundo é verbalmente inexprimível.”55. Nascido na atual Bratislava, Eslováquia,
em 1879, Laban também usa o termo “simbólico” para o que a linguagem do
movimento pode remeter. As execuções de movimentos no dia-a-dia, como
“serrar madeira, abraçar ou ameaçar alguém” são significativas, mas, para além
das ações que o ser realiza em sociedade e no cumprimento de suas necessidades
vitais, há no movimento uma potência de revelação do simbólico, que interessava
a Laban especialmente na dança.
55
LABAN, Rudolf Von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978, p.
53.
56
Ibid., p. 141.
57
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte. Em:
Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. vol.1: São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p.
146.
58
ADORNO, Theodor W. Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo. Editora Ática,
1998; DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
fundamental nas análises destes pesquisadores, de linhas teóricas as mais
diferentes, é a recusa de uma interpretação decifradora do simbolismo em Kafka,
como teria feito uma abordagem simplista, em geral de viés sociológico,
psicanalítico ou existencialista. A meu ver, tais leituras foram enriquecidas pela
análise da gestualidade, e o mesmo valeria para outras pesquisas nas letras que
atentassem para como os gestos funcionam na ficção. Para os fins deste ensaio,
centrado na poesia, vamos ver como, ao longo da história, movimentos literários
construíram diferentes relações com o simbólico, e em que medidas o universo
dos símbolos, compreendido dentro do quadro analítico do filósofo francês Paul
Ricoeur, se torna terreno propício para a poesia. Para tornar esses elementos mais
vivos e relacioná-los à gestualidade, vamos fazer uma leitura de “Making a fist”
(Fechando o Punho), de Naomi Shirab Nye, poeta americana de ascendência
palestina, nascida em 1952 em St. Louis. Nele, a imagem do abrir e fechar do
punho reúne no gesto os temas da travessia, da fugacidade da vida e da
persistência contra a morte, que estruturam o poema.
60
Idem, p. 61.
61
RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. Em:
SACKS, Sheldon. (org). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992, p. 154.
62
Idem, p. 155.
No caso do símbolo, esse mecanismo se torna ainda mais complexo, pois
ele, diferentemente da metáfora, compreende também uma dimensão não-
linguística, caracterizando-se como uma estrutura de duplo sentido. 63 As raízes
não-semânticas do símbolo o tornam opaco, irredutível à descrição linguística,
semântica ou lógica, lançando-o no para além do discurso. Muitas vezes, é a
estrutura metafórica que faz a ponte entre o estrato profundo e duradouro do
conteúdo simbólico e a acessibilidade da expressão linguística. Tal metáfora
tornaria explícito o que está oculto no simbólico, emprestando deste seu poder e
sua permanência.
63
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 57.
64
Esses três últimos são adjetivos de RODRIGUES, Antonio. Modernité et paradoxe
lyrique - Max Jacob, Francis Ponge. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 2006.
É sabido que a lírica era, a princípio, apenas um gênero da
poesia; porém com o declínio do grande poema narrativo e do
verso dramático, lírica e poesia terminaram por confundir-se.
No exame da literatura moderna, um termo pode ser
praticamente empregado pelo outro.65
A poesia moderna, por sua vez, não se compreendia mais como obra de
uma alma no estado de ânimo poético, mas como fruto de “uma inteligência que
poetiza”66, de uma subjetividade descolada da experiência do sujeito empírico. Ela
recusava a personalização da lírica, a lógica e a métrica românticas, levando a arte
para outras fronteiras estilísticas e de conteúdo, sem, contudo, descartar o lírico
como expressão do interior e do mundo subjetivo. Essas afinidades entre o
romantismo alemão e a poesia moderna foram assinaladas por muitos
pesquisadores da literatura, entre eles Edmund Wilson e Hugo Friedrich. Mesmo
o poeta fundador da modernidade, Charles Baudelaire, escreveu: “O Romantismo
é uma bênção celeste ou diabólica, a quem devemos estigmas eternos.”67
65
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mimese – ensaios sobre lírica. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1972, p. 03.
66
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p 17.
67
Idem, p. 30.
68
Idem, p.52.
69
WILSON, Edmund. O castelo de Axel - Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 37.
A consciência romântica de que a vida e a alma individual não podiam ser
analisadas e explicadas por um discurso racional e mecânico profetizou o próximo
olhar que viria a ser radicalizado pelos modernos.70 Em meio a uma aguda
intelectualidade, traços de origem arcaica, mística e oculta. A simplicidade da
exposição em contraste com a complexidade do que é expresso. O preciso que se
encontra com o absurdo e inextricável. Esses famosos paradoxos apontados por
Hugo Friedrich em sua análise da poesia moderna apontam para uma valorização
do simbólico, único recurso a dar conta do inapreensível. Algumas categorias
negativas que ele usa para descrevê-la vão ao mesmo sentido: desorientação,
dissolução do corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação,
reversibilidade, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes,
repentinidade brutal, deslocamento; noções que direcionam, em geral, à auto-
suficiência e pluralidade de sentido na poesia.71 Na síntese de John E. Jackson:
“L’obscurité n’est pas un mode parmi d’autres de la poésie moderne: elle lui est
inhérente.”72
70
Como observa Edmund Wilson sobre suas comparações, também para nós essa rede de
familiaridades e influências entre romantismo, simbolismo e poesia moderna não quer fazer crer
que estes movimentos foram gerados uns pelos outros, mas pensar de que maneira noções e
métodos evoluem, desaparecem ou se mantêm atuantes.
71
FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., 1978.
72
JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José Corti,
1998, p. 11.
Abrindo e fechando uma pequena mão
We forget that we are all dead men Esquecemos que estamos todos mortos
conversing wtih dead men. Jorge Luis conversando com homens mortos. Jorge Luis Borges
Borges
For the first time, on the road north of Pela primeira vez, na estrada norte de Tampico,
Tampico,
eu senti a vida deslizando para fora de mim,
I felt the life sliding out of me,
um tambor no deserto, cada vez mais difícil de ouvir.
a drum in the desert, harder and harder to
hear. Eu tinha sete, deitada no carro, assistindo às
palmeiras
I was seven, I lay in the car
trançarem um padrão enjoativo pelo vidro.
watching palm trees swirl a sickening
pattern past the glass.
My stomach was a melon split wide inside Meu estômago, um melão rachado dentro da minha
my skin. pele.
With strange confidence she answered, Com estranha confiança, ela respondeu:
“When you can no longer make a fist.” “Quando a gente não consegue mais fechar o punho.”
Years later I smile to think of that journey, Anos depois, eu sorrio ao pensar naquela viagem,
the borders we must cross separately, nas fronteiras que temos de cruzar separadamente,
stamped with our unanswerable woes. estampadas com nossas aflições irrespondíveis.
I who did not die, who am still living, Eu, que não morri, que ainda vivo,
still lying in the backseat behind all my ainda deitada no banco de trás das minhas perguntas,
questions,
cerrando e abrindo uma pequena mão.
clenching and opening one small hand.
Aos sete anos, a doença que a faz “sentir” a morte e perguntar sobre ela
pela primeira vez é expressa por duas metáforas, a do melão e a do tambor. Julio
Cortázar, para quem o homem tende naturalmente para a concepção analógica do
mundo, diz:
O som do tambor – ou a vida que desliza pra fora – realiza uma trajetória
de dissipação, esgotamento, que contrasta com a aliteração no original em inglês:
drum/desert, harder and harder to hear. Além da musicalidade criada, a
aliteração sublinha a força desse momento, valendo-se também de uma palavra
dura, harder. Essa figura de linguagem também está presente na outra metáfora,
que une stomach, split, inside, skin.
73
CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. Em: Valise de Cronópio. (Tradução de Davi
Arrigucci Jr.). São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 95.
74
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1992, p. 58.
íntimas de expressar a relação com a vida e com a morte. Como enfatiza Ricoeur,
“o que liga o discurso poético é, pois, a necessidade de trazer à linguagem modos
de ser que a visão ordinária obscurece ou até reprime.”75
Referências
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José
Corti, 1998.
VILELA, Moema. Mãos pensas, olhar oblíquo: acenos para um estudo do gesto
na literatura. (Ensaio em andamento, não publicado). 2010.
II. POESIA MODERNA BRASILEIRA
AS MARGENS POÉTICAS DE CATAGUASES NO IMAGINÁRIO DAS
ÁGUAS
78
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
5.
79
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 18.
80
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
pelos caminhos do Imaginário em seu percurso histórico e teórico, assim como
pelos atalhos das divergências, problemas e conceituações.
81
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
verdadeira e real imagem literária e, com ela, navegaremos no rio Pomba ou
córregos, em Cataguases, seus núcleos poéticos e míticos.
82
Cataguases: Verde Editora, s/d, p. s/n.
83
Suplemento, jornal do Cataguases. Cataguases: 07.09.1967, p. 8.
infância e o pensamento inclusos no sonho e de que modo o imaginário das águas
fundamenta o tecido mítico, e de como a memória conduz, infinitamente, as
feições do tempo.
Não nos parece, aqui, necessário mencionar definições do mito que levem
a determinar seu aspecto individual ou coletivo. Penso que nos basta, apenas,
lembrar as palavras de Gilbert Durand: “O mito é narrativa simbólica, conjunto
discursivo de símbolos, mas o que nele tem primazia é o símbolo e não tanto os
processos da narrativa.”84
O poeta escreve:
E outra estrofe: “Uma vez mais, o rio, / sangue espesso e cáqui / arrastando
pedaços da cidade, / e que eu tanto temi na minha infância”.
87
Ibid., pp. 61, 66 e 71.
88
Campo marcado. Rio de Janeiro: Booklink, 2010, p. 35.
E por fim, “Água serpente”: “Singrar o rio nos barcos de areia / abrindo a
veia / do fluxo barrento / Sangrar o Pomba para deter seu voo / de quimera /
confinado às margens”.
E finaliza: “Esgotar o rio Pomba para que libere / do ouro fino do leito, os
saibros dos poemas”.89
89
Ibid., pp. 59-60 e 23.
90
Cf. Campos do Imaginário, p. 251.
sua força para que seja somente um nome confinado às margens, e se torne cego
no vôo de seu curso, pássaro abatido, e perca, por instantes, sua forma simbólica.
E o rio renasça, fluindo como murmúrios de poemas, polidos pela substância
criadora: o ouro, assombro e torções de luzes do ser poético.
91
BACHELARD, 2002, p. 9.
‘gordura do mundo’, ‘espessura das coisas’, como escreve ainda
um alquimista do século XVII.92
“A Igreja”
Ao vê-la, o espelho
nem crê que a água
se revela em tudo
que faz parte dela.
93
Cf. A água e os sonhos, p. 22.
Nota-se que o poeta situa-se num ponto fixo: “as margens” de onde parte o
movimento da realidade apreendida. O que vê são fragmentos de reflexos, que não
se relacionam entre si, aparentemente.
“Pássaros”
E a última estrofe:
“A ponte”
Eternamente unir,
levar sofregamente,
nitidamente postar-se
94
L’air et les songes. 4e réimp. Paris: Librarie José Corti, 1943, pp. 36-38. (tradução
nossa).
fugir avidamente.
De seu livro minas em mim e o mar esse trem azul 95, destacamos trechos
de poemas, para clarificar estas considerações do pensar.
[...]
como numa interrogação
num olhar solto
no espaço
num só laço
95
Cataguases: Editora Poemação Produções, 1999.
o rio envolve
esse tropel de burros
bicicletas
meninos soltos
no pó
no pé descalço
nos galhos
pendurada no ar
nas árvores
a poesia
se desmanchando
se amarelando
se dissolvendo
tênue
MANHÃ às avessas
jorrada
pra dentro da noite.96
96
Ibid., Seção Pomba Poema, pp. 76-79.
97
Estructura Del Lenguaje Poético. Madrid, Editorial Gredos S.A., 1970, p. 55. (tradução
nossa).
98
minas em mim e o mar esse trem azul. Texto de apresentação, p.2. (grifos do Autor).
Há, na figuração deste fragmento de poema, duas vertentes de significação
que vão se unir, depois, numa mesma nascente. A primeira, a da imagem do rio,
delineada pela inversão que lhe dá o olhar. Na segunda, a imagem retorna ao
princípio de sua essência: a de ser águas, nascidas da criação poética.
Este mesmo contemplar o mundo pelo que ele se apresenta sob a visão
submersa, imagens que são sonhos e não podem ser tocadas, dá à poesia de
Ronaldo Werneck uma atmosfera de funda e dolorida procura da memória,
deitada no fundo do rio Pomba.
[...]
a em cidade
tomba
pesa sobre o rio
esquálido
não como o
cálido
vento da
infância
debruçando ingazeiros
sobre o pomba
mas como ferida
sangrando des
engrossando des
correndo solta des
bombeando às avessas num só des
fluxo des
99
Ibid., pp. 63-64.
norteando des
secando
cem rios num des
coração des
norteado
às avessas des.
...cataguases
Mesmo a curva
a mesmidão do rio
mesmo a solidão
minerada
das mesmas
minas içadas
ouriçadas minas
onde
chico
cabral&lina
acharam palavras
mineraram
poemas-pataca
perdidos rolados
no rio enrolados
por verdes
às vezes embora
sagazes
rapazes de outrora.102
101
Cf. A água e os sonhos. pp. 195-196.
102
Cf. minas em mim e o mar esse trem azul, Seção Pomba Poema, p. 44.
dos cicios de –azes nos nomes: “cataguases”, “sagazes”, “rapazes”; e também pela
função da oclusiva bilabial /p/ com suas bolhas de vento. Os versos são para ser
lidos em voz alta, dificilmente um verdadeiro leitor interpretaria e sentiria o texto
poético, se a leitura se fizesse em silêncio. Este é mesmo o imaginário das águas,
nascido de todas as palavras que, no leito das vozes ,tremem, vibram, se chocam,
se confundem, se amam.
Guilhermino Cesar sabe, em seu segredo de poeta, que “De mitos, claro,
se ordena o mundo”.105
Referências
103
Ibid., texto contracapa.
104
Gilbert Durand. L’Imagination Symbolique.,2e ed. Paris: Presses Universitaires de
France,1968, p. 9. (tradução nossa).
105
PROSAICO-voltaico. Em: Sistema do Imperfeito & Outros Poemas. Porto Alegre:
Globo,1977, p. 54.
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
_____. L’air et lês songes. 4e. réimp. Paris: Librairie José Corti, 1943.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1972.
_____. Sistema do imperfeito & outros poemas. Porto Alegre: Globo, 1977.
MELLO, Ana Maria Lisboa. Ciências & Letras. Porto Alegre: Revista da
Faculdade Porto Alegrense de Educação, Ciências e Letras, 1977.
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009.
WERNECK, Ronaldo. minas em mim e o mar esse trem azul. Cataguases: Editora
Poemação Produções, 1999.
Introdução
II – O Orfismo
a) Do Barroco ao Parnasianismo
“A morte de Orfeu”
b) Simbolismo e arredores
“O Assinalado”
106
BILAC, 1997, p. 331-332.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...
107
SOUSA, 1995, p. 201.
deuses: falta-me ainda uma medida mais clara e justa das relações que se podem
estabelecer entre os vários poetas citados, mas, de um modo ou de outro, há em
todos eles um apreço requintado pelos temas gregos e certa recorrência ao mito de
Orfeu, seja por conta do amor deste por Eurídice, seja por sua condição de poeta
exemplar, seja devido aos graus de mistério e iniciação que vincam a religião do
Orfismo.
As datas convencionais que escolhi vão desde a publicação das obras
simbolistas de Cruz e Sousa (Missal e Broquéis, 1893), até o aparecimento de
Orpheu (1923), poema dramático do gaúcho Homero Prates, por ele mesmo
classificado como “[...] um canto de amor, um poema filosófico e um sonho
espiritualista”.108Vazado em versos polimétricos (com preferência pelo
alexandrino de rima emparelhada, nos colóquios de Orfeu e Eurídice), o poema
recobre todo o ciclo mítico de Orfeu, não faltando a sua consagração como “[...]
Pontífice e Rei da arte sacerdotal [...]”109, poiso moço é “Vidente”110, é “o filho
predileto / de Apolo”111 e detém o “poder secreto [...] / de encantar as almas”112.
Veja-se, nos campos floridos da Trácia, o primeiro encontro de Orfeu e Eurídice:
[...]
Orfeu
Hoje é a primeira vez que te olho face a face
e entanto é como se eu há muito já te amasse
de tal modo me bate o coração no peito.
Eurídice
Divino Orfeu! bem sei que és único e perfeito,
mas não outro senão a ti é que eu buscava
quando pelas manhãs, mal o sol despontava,
só com meu grande amor, cantando de alegria
de entre os rosais em flor dos bosques te sorria,
vendo-te em sonho, assim, tal qual te vejo agora. [...] 113
108
PRATES, 1923, p. 35. Atualização ortográfica feita por mim, com base na primeira
edição da obra (1923).
109
Idem, p. 111-112.
110
Idem, p. 111.
111
Idem, p. 111.
112
Idem, p. 111.
113
PRATES, 1923, p. 42.
Poema importante nos quadros de um Orfismo à brasileira, inclusive por
evidenciar o imbricamento Parnaso e Símbolo no nosso chamado Pré-
Modernismo, Orpheu permanece à margem do cânone e aguarda estudo e
reedição. Tal imbricamento estético do poema parece ter vincado bastante a obra
do hoje desconhecido Homero Prates, que Rodrigo Otávio Filho considera como
penumbrista e que Andrade Muricy coloca entre os últimos simbolistas, embora
ambos reconheçam o pendor esteticista, o gosto pelo helenismo, a queda pelo
esoterismo, o cultivo do idioma e a virtuose rítmica e versificatória como
características muito pessoais de Homero Prates. Otávio Filho chega a dizer que
ele, neoplatônico, “Seguia, como discípulo, a lição de Plotino: o supremo objetivo
das almas é a contemplação da Beleza”.114
c) Modernismo e contemporaneidade
No terceiro momento (a partir dos anos 1940/50 até a esta parte), decerto
por influxo da divulgação, entre nós, de poetas como Rilke e Fernando Pessoa,
constata-se a configuração mais plena e efetiva de uma poesia realmente órfica e
original, cujos vários matizes podem: a) misturar elementos mítico-poéticos e
místico-religiosos típicos do ciclo de Orfeu (Dora Ferreira da Silva); b) acrescer, a
estes, atributos católico-cristãos (Jorge de Lima); c) emular Orfeu com o poeta
moderno decaído, sem função na sociedade capitalista (Murilo Mendes, Carlos
Drummond de Andrade); d) explorar uma imagética mais tradicional, em termos
de tema e motivo, dos vários mitemas que compõem a trajetória do lendário
poeta-amante (Dante Milano, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Marly de
Oliveira); e) aclimatar Orfeu à realidade social brasileira (Vinicius de Moraes, no
teatro) etc.
Para o ensejo, lembremos primeiro o programático “Prefácio
interessantíssimo” com que Mário de Andrade abre a Pauliceia desvairada (1922)
e relativiza, de certo modo, a propalada ruptura ocasionada pela vanguarda:
114
OTÁVIO FILHO, 1986, p. 578.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim
representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis,
cinema, asfalto. [...] Sei mais que pode ser moderno artista que
se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun’Álvares.
Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de
afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-
dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes. 115
“Orfeu”
115
ANDRADE, 19__, p. 32.
116
p. 37.
117
P. 165.
118
Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Murilo
Mendes, veja PIRES (2010).
O sino volta de longe,
Desperta a ronda infantil.
Os homens-enigmas passam,
Não reconhecem ninguém.
O mundo muitas vezes
É tão pouco sobrenatural.
Ajudo a construir
A Poesia futura,
Mesmo apesar dos fuzis.
“Novíssimo Orfeu”
Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.
119
MENDES, 2002, p. 85.
120
MENDES, 2002, p. 124.
Como já aventado, são muitos os poemas que perfazem o ciclo mítico de
Orfeu (ou Orfeu e Eurídice), em nossa poesia dos anos 1940/50, até os dias atuais.
Merece menção especial, além dos nomes de Dante Milano, Carlos Drummond de
Andrade e Vinicius de Moraes, o poeta alagoano Jorge de Lima, cuja obra final,
mais propriamente órfica, inclui o Livro de sonetos (1949) e a Invenção de Orfeu
(1952). No entanto, como hipótese de trabalho em curso, a estes acrescento o
Anunciação e encontro de Mira-Celi, livro de 1943 só publicado por Lima em
1950, e cujos 59 poemas (em prosa e/ou em versos) mantêm certa aura de mistério
em relação à figura de Mira-Celi: quem é ela? A Virgem Maria? A Musa? A
mulher pura e a decaída? A mãe, a deusa, o eterno feminino? A Alma do poeta?
Mira-Celi é Eurídice? Talvez seja; e a se adotar tal linha interpretativa, vê-se que
o encontro e a anunciação da figura seriam o encontro e a anunciação da própria
Poesia personificada, como que a antecipar a aventura mais substancialmente
órfica dos dois últimos livros de Jorge de Lima, conforme se pode ler no segundo
poema da série:
2
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo
que aparece ao longo de meu poema.
Nele estás construída à semelhança de um imenso órgão
movimentado pelo meu espírito.
Cresces nele paralelamente a teu desenvolvimento físico,
mas incognitamente, como uma órfã dentro da multidão.
Às vezes, quando dobras uma página, perguntas: – ‘Sou eu?’
Mas, olhando depois a paisagem mudar tanto, no espaço de um
segundo,
encontras os teus membros na nudez de uma frase.
Nunca te libertará deste parque em que nos encerramos,
fingindo dois desaparecidos,
e em que nos nutrimos um do outro contra as leis naturais.
Outras vezes te encolhes em mim, ó minha pequena maré;
e basta que eu abra as pálpebras e a minha memória te encontre,
para te recompores imediatamente
em minha maior dimensão.
As nossas respirações enchem o mundo,
achatam o mar,
agitam as palmas e os areais.
Pairamos em planos irrealizáveis à maioria das aves
com outra visão oculta em cada palavra.
Pouca gente encontrará a chave deste mistério.
E os olhos que perpassarem através de tantos poemas que não
findam e que se transformam de momento a momento,
não compreenderão o movimento perpétuo
em que nos perseguimos e nos superpomos.
Outras vezes ainda, as minhas mãos são um disfarce de ti,
escrevendo tua história ou me sustentando a face.
Ora pareces marcha nupcial; és, no entanto, elegia.
Ora és sacerdotisa, musa, louca, pastora ou apenas ave.
Dei-te diversos nomes, para que ninguém te acompanhe.
Anuncio que morreste, para que ninguém te convide.
Quase sempre te transformo, para te distribuir.
E, quando me resta uma única migalha, reconstituo-te como
uma catedral
e alimento-te como uma criancinha.
Figuramos no mapa como um sol gêmeo que num perpétuo
eclipse
desse a impressão de um só núcleo.
Gravidades estranhas nos atraem: sombras tutelares protegem
a nossa rotação, em que tudo são coincidências de duas asas
num corpo.
Algum sacerdote antigo já nos tinha visto, por acaso, uma noite,
e morreu sem nos decifrar, pois não voltamos ainda
nem à primeira página, nem à primeira estrofe
do imenso e misterioso poema sempre por terminar. 121
122
ANDRADE, 1980, p. 165.
123
Idem, p. 205.
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.
Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.
“Orfeu”
I
Canto canções
para os que morreram.
Doces animais acorrem
para ouvir o canto
e me acolhem
nos quietos corações:
pomba, pavão,
pássaros de beira d’água,
cervos, esquilos
e a Árvore.
Vem a pantera, agora mansa.
Sob as folhas vivas
sustenho na mão a lira.
É isso a solidão.
II
Colheu a flor – o Poema –
arrancou-o à resina da vida
e entre as páginas prendeu-o
debatendo-se, vivo.
A fonte alimentou-o nas águas.
E a mão o feriu
para dispersá-lo
e, nele, o coração.
125
Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Dora Ferreira
da Silva, veja PIRES (2010 e 2011).
III
Sob a Árvore chamas,
sem que os lábios falem.
Eis o cervo, a pantera,
a áspide, o pássaro,
o boi ruminando sombra:
ramos dispersos,
bebem o orvalho da música,
reunidos nas cordas
de teu claro
coração.126
“Órfica”
Apesar de muito breve, suponho que a leitura dos poemas tenha ajudado a
mapear os rastros e os caminhos do mito de Orfeu na poesia brasileira, em seus
diversos períodos histórico-literários, e em seus vários e até contraditórios
significados estéticos e éticos.
À guisa de (in)conclusão
126
SILVA, 1999, p. 93.
127
SILVA, 2004, p. 30.
Depois do rápido périplo, considero positivo refletirmos (ainda que haja
parcas respostas) sobre algumas questões fundamentais (e atemporais) sobre o
mito, suas migrações e aproveitamento literário, e sobre a literatura brasileira:
Quem é Orfeu? Quem é o poeta? Quem é o poeta brasileiro? Qual a função do
mito? Qual a função do poeta? Qual a função do poeta brasileiro? Por que migra
Orfeu? Como migra Orfeu? Tais migrações são comparáveis às migrações e às
e/migrações do povo e do poeta do Brasil? Que metamorfoses o mito de Orfeu vai
delineando nas várias literaturas pelas quais per/passa? Que características novas,
espaciais e temporais, sintáticas e semânticas, vai adquirindo Orfeu em suas
andanças de uma literatura a outra? Qual o real significado de Orfeu (histórico,
diacrônico e sincrônico) na literatura brasileira? A utilização do mito de Orfeu,
nesta, diminuiria a originalidade e a qualidade de sua produção? Ou faria com que
ela se desvirtuasse de questões inerentes a nossa cultura, tais a identidade, o
nacionalismo, a ruptura, a antropofagia, o empenho ético-social? Por que estudar
Orfeu? Ele teria relações com algum mito prototípico indígena brasileiro, em
relação à capacidade demiúrgica de criação? Se sim, que comparações estabelecer
entre ambos, uma vez que Orfeu (o Orfismo) está baseado numa teogonia que
diverge da teogonia tradicional grega? Seria possível considerar, em civilizações
diferentes, que viagens ao Inferno pressuponham um pensamento órfico? Como
este se dá? O que é pensamento órfico? Em suma, o que é poesia órfica? O que é
poesia órfica, ontem e hoje? Toda poesia é órfica?
Enfim, a estrutura, a essência e os temas da poesia lírica talvez ainda sejam
os mesmos, na Grécia arcaica e no Brasil dilemático que emerge neste século
XXI. Porém, é meu direito advogar, em face de um mítico/místico Orfeu grego,
um Orfeu brasileiro de carne e osso (ou mesmo de papel e tinta), cujo canto-
palavra medule e module as nossas contrapostas e contraditórias vozes roucas,
nem sempre audíveis.
Referências
ANDRADE, C. D. de. Reunião: 10 livros de poesia. Introdução de Antônio
Houaiss. 10.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1980.
_____. Orfeu nos trópicos: Cláudio Manuel da Costa e Murilo Mendes. Em:
PIRES, A. D.; FERNANDES, M. L. O. (Org.). Matéria de poesia: crítica e
criação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010 (Estudos Literários, 9). p.135-167.
Paul Valéry
A análise proposta por este trabalho será justamente perceber de que forma
se articulam os preceitos poéticos de O Engenheiro à época de sua produção
128
Mestranda em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
129
A fortuna crítica de João Cabral de Melo Neto estudada para a realização desse trabalho
percorre as análises de Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Antônio Carlos Secchin, dentre
outros listados nas referências bibliográficas.
(1942–45) e publicação (1945). Considerando as assertivas “cada poema é uma
leitura da realidade”130 e “escrever um poema é decifrar o universo” 131
, ambas de
Octávio Paz, percebe-se na poesia cabralina uma apreensão bastante racional do
mundo: o próprio poeta-engenheiro afirma que “sonha coisas claras: superfícies,
tênis, um copo de água” (vv. 3 e 4).132 Não se pode ignorar a presença dessas
imagens concretas advindas dos objetos que o autor seleciona para compor seus
poemas e que traduzem um “mundo palpável”, uma leitura precisa e uma
articulação com a concretude e a objetividade. Enquadrar sua poesia em um tempo
visivelmente modificado pela Segunda Guerra Mundial é uma tarefa bastante
difícil já que em uma primeira leitura de O Engenheiro, João Cabral parece não
dialogar com a sua realidade histórica e social. No entanto, resistir a essa
tendência panfletária é uma tomada de posição. O poeta cria um universo onde a
linguagem se basta. Faz sentido, caso se considere que, em um mundo caótico,
onde predomina a violência e a opressão, a palavra resiste, permanece fora do
tempo. Merquior afirma que “a linguagem imita, ao nível das relações universais,
a aparência do mundo.”133 Nessa linha, não se pode dizer que a poesia de João
Cabral é alheia a seu tempo, porém, o poeta decide não falar diretamente e sim
mostrar uma resistência dentro desse contexto.
130
PAZ, Octavio. Analogia e ironia. Em: PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo
à vanguarda. São Paulo: Nova Fronteira, 1984, p. 98.
131
Idem, Ibid. p.98.
132
NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 34.
133
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: ______. A astúcia da mimese:
ensaios sobre a lírica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 22.
134
VALÉRY, Paul., 1991a, p. 201.
uma inspiração e não através da profundidade da mesma natureza de um filósofo,
advinda do raciocínio. Esse contraste entre inspiração e raciocínio parece vir da
época dos gregos antigos, quando o poeta invocava a Musa para realizar a sua
“missão” de escrever o poema como se ele não possuísse responsabilidade pelo
que estava sendo escrito, ou seja, era simplesmente um instrumento, a voz da
Musa no mundo. Para Valéry, todo o trabalho com a linguagem feito pelo poeta
não pode ser obra do mero acaso. A esse “estado de poesia” 135 mencionado como
“irregular, inconstante, involuntário, frágil, e que o perdemos, assim como o
obtemos, por acidente”136 não é suficiente para se fazer um poeta. É necessário
perceber a diferença entre o estado poético e a produção da poesia:
135
Ibid, p. 206.
136
Ibid.
137
Ibid, p. 217.
138
José Guilherme Merquior afirma sobre uma “incômoda convergência cronológica entre
João Cabral e os seus companheiros poetas da geração de 45 em “Falência da Poesia ou uma
geração enganada e enganosa: os poetas de 45”, ver as referências bibliográficas.
139
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 29.
Entende-se assim que o termo “geração” deve ser aplicado à situação
histórica e não a um programa estético elaborado por esses artistas. Como declara
Benedito Nunes140, ninguém escolhe em qual geração irá nascer, mas pode-se
escolher a partir dela e, às vezes, contra ela. João Cabral escolheu o caminho
contrário ao de seus contemporâneos: ele rejeita a linguagem elevada e a poesia
profunda, defendendo o princípio da clareza e do controle reflexivo da elaboração
poética. O poeta colocará em prática o preceito de que “a formulação poética só é
perfeita quando passa pelo crivo da racionalidade...” 141 e para a realização deste,
serve-se de um conjunto de imagens que alcançam um relevo plástico de
concretude e lucidez.
140
Ibid.
141
HOUAISS apud NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1974, p. 32.
142
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 35.
As tentativas de definição do elemento nuvem são feitas através de metáforas que
evidenciam uma busca pela concretude, no sentido do táctil da palavra.
Nota-se, com a leitura desse poema, que a obra de João Cabral de Melo
Neto não é de fácil compreensão. Pelo contrário, o próprio autor dizia pensar em
cada palavra esperando instigar o leitor à reflexão. Em “As Nuvens”, os aspectos
concretos dos objetos são utilizados para atingir o nível subjetivo: as imagens
inseridas nesse poema criam uma série de paradoxos que evoluem de um limite
abstrato do sensível a um ideal de lucidez poético que substitua a pura expressão
dos estados subjetivos. Há uma espécie de redução do que havia de onírico
143
NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 31.
inicialmente. Essa mutação pode ser inferida na trajetória de João Cabral já que
este ainda definia a sua poética.
Doce tranquilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem.
(em “A Paul Valéry”)148
Cada uma dessas partes do poema possui uma temática que se completa
através da imagem da pedra, como se esta fosse um objetivo a ser alcançado.
Infere-se dois estados poéticos no corpo do poema: um em que está presente a
desordem e outro em que se encontra a ordem estabelecida pela durabilidade da
pedra. As duas primeiras estrofes dessas partes mencionadas criam uma antítese
do transitório e do permanente:
148
Todos os poemas citados fazem parte da obra O Engenheiro. As palavras que fazem
alusão à pedra foram grifos meus.
149
CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. Em: CAMPOS, Haroldo de.
Metalinguagem e outras metas. Petrópolis: Vozes, 1967, p.70.
Desordem na alma
Que se atropela
sob esta carne
Que transparece
[...]
Procura a ordem
que vês na pedra
nada se gasta
mas permanece.150
150
MELO. Op. Cit., pp. 49 – 50.
151
BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação
das forças. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001a. p. 180.
152
Idem, Ibid. p. 180.
poéticas que tristeza, ou melancolia, ou angústia.”153 Daí o intenso trabalho entre
a associação das palavras, muitas vezes rompendo com a tradição poética, ligada
ao nobre e ao lirismo, e utilizando termos ligados ao cotidiano e que normalmente
não fazem parte da linguagem poética. Nessa direção, observa-se maior
quantidade de substantivos em detrimento aos adjetivos nos seus poemas, já que a
proposta de Cabral é justamente tratar da matéria própria da palavra e, através dos
substantivos ele consegue evidenciar o concreto do objeto. Um exemplo disso são
as definições de nuvem feitas no poema analisado anteriormente.
153
Transcrição da fala de João Cabral de Melo Neto em entrevista apresentada pelo vídeo
“Mestres da Literatura” e disponível no site:
<http://www.youtube.com/watch?v=oJgIY5DmSDI&feature=related>
154
MANO. Op. cit., p. 196.
155
PAZ, Op. cit., p. 48 – 49.
rançoso das grandes antologias de sonetos que era obrigado a ler na época da
escola.156 Com certeza esse “horror à literatura” declarado pelo autor durante a
entrevista citada determinou o seu tipo de poesia. João Cabral de Melo Neto não
queria escrever poemas que embalassem o leitor. Ainda na entrevista, percebe-se
que ele era avesso à musicalidade: “a música embala-se, faz-me dormir. E eu
procuro viver no extremo da consciência e não embalado. A música amortece a
consciência”. A preferência por um ritmo duro, forte, é salientada pelas rimas
toantes e pelas aliterações das consoantes t e p, que marcam a batida da
construção do poeta-engenheiro:
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.157
156
Informação retirada da entrevista apresentada no vídeo mencionado nesse trabalho.
157
NETO. Op. Cit., p. 50.
geração intensificam e prenunciam nos poemas de O Engenheiro esse seu tema
mais recorrente, a poesia dentro da poesia. Contudo, existem outros assuntos que
se deixam entrever na obra: a lembrança, o cotidiano, o acaso, até chegar à
problematização da efemeridade do tempo, da fugacidade das coisas e da morte. É
diante dessa temática que a poesia de João Cabral de Melo Neto evolui para uma
perspectiva universal. O poeta não faz referência direta ao social, o qual será
reconhecido posteriormente quando escreve Morte e vida Severina, nem à época
de guerra a qual está inserido o livro O Engenheiro. Compreende-se, então, uma
concepção da linguagem cabralina como um ato de resistência, como o elemento
pétreo constante em sua obra, pois não se presta a comunicar algo que já foi dito,
mas sim, recolher-se à palavra. Em vez de gritar, o poeta escolhe o silêncio, por
ser uma época em que não se pode protestar não há mais o que falar sobre o
mundo. A solução é, portanto, a arte, no caso, a poesia. E esta, em Cabral, atinge a
dimensão de resistência comentada por Bosi:
158
BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. Em: BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 7. ed.
São Paulo: Companhia das letras, 2004, p. 165 – 166.
fugaz. O silêncio diz mais que qualquer palavreado inútil e sem sentido proposto
pela palavra opressora dos discursos dominantes ditatoriais. O “silêncio puro” –
verso 44 de “Pequena ode mineral” – mostra o ser humano que se recolhe, que faz
esse movimento de voltar a si mesmo e refletir sobre o seu destino.
Referências
159
PAZ. Op. cit., p. 38.
160
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: BENJAMIN, ADORNO,
HORKHELMER, HABERMAS. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural. 1980. p. 193 – 208.
BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a
imaginação das forças. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001a.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41. ed. São Paulo:
Cultrix, 2003.
NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.161
Nessa mesma estrofe, também observamos que o eu-lírico nos dá uma pista
sobre o caráter daqueles que recebem o leite das mãos do leiteiro. Sua profissão é
nobre, mas aqueles a quem serve nem sempre o são, segundo o julgamento da voz
que narra (“leite bom pra gente ruim”).
A quarta estrofe retoma os versos que iniciam o poema (“há pouco leite no
país / [...] ladrão se mata com tiro”), pois remonta a insegurança e a incerteza na
qual se insere o homem naquele momento. Os versos falam sobre pessoas que
desejam o leite daqueles servidos pelo leiteiro e, por isso, volta e meia se
escondem nas portas dos fundos das casas para usurpar a mercadoria. Porém, esse
mesmo cenário, os fundos das casas, serve também como uma preparação para
uma emboscada, cuja vítima será o leiteiro. Trata-se de um beco, em cujo corredor
segue o jovem, com seu passo leve, alheio às ameaças (assim como um soldado
inexperiente).
163
ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 194.
Muitos poemas de Drummond seguem nesse caminho descrito por Adorno e
partem de pequenas experiências individuais para falar de sentimentos e emoções
universais; é o caso do poema analisado acima. “Morte do Leiteiro”, entre outros
poemas de A Rosa do Povo, retrata uma sociedade desconfiada e aterrorizada,
disposta a tudo para se defender em tempos de incerteza. Essa perspectiva é
representada, conforme demonstramos acima, pelos fatos que ocorrem em uma
comunidade, entre um leiteiro e seu cliente. A compreensão dessa universalidade
descrita por Adorno só ocorre quando o indivíduo está inserido socialmente, ou
seja, quando sofre dos males da humanidade junto com ela. Adorno acredita que a
linguagem media lírica e sociedade, pois subjaz ambas, e é capaz de expressar o
sujeito objetivamente e também convidá-lo à imersão, já que não objetiva
comunicar.
164
BERNARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 35.
Ao seguirmos os passos das teorias iniciadas por Adorno e Bernardinelli,
observamos que a poesia escrita por Drummond no início dos anos 40
comunicava-se com a sociedade ao demonstrar empatia e provocar identificação.
O mote, o impulso de mudança social gerado por essa poesia, partia de seu efeito
estético, das reverberações da realidade no homem que se vê, consciente ou
inconscientemente, retratado na arte. Para os dois teóricos, a lírica não se orienta
por tentar mudar a realidade social por meio da estética e da forma, pois o mundo
real não coincide com o mundo poético: ambos estão em diferentes patamares.
São, no entanto, ligados inevitavelmente pelo elo dramático que insere o homem
nos dois âmbitos, como foi possível observar em nossa análise. A lírica expressa o
mundo real, dá voz às repercussões sociais e se liga à história de forma indelével.
A poesia foge do real quando mergulha na solidão humana, não sabendo que,
assim, volta à sua inevitável realidade. Rancière, em semelhante perspectiva, nos
lembra que “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”165.
167
BERNARDINELLI, Alfonso. Op. cit., 2007, p. 204.
168
SANT’ANNA, Afonso Romano. Drummond, o gauche do tempo. Rio de Janeiro: Lia /
INL, 1972, p. 101.
Sant’Anna afirma em sua obra O Gauche no tempo que A Rosa do Povo é
uma obra essencial para se entender a poesia de Drummond, pois foi escrita em
um momento em que o autor se mostra em guerra com a realidade que o cerca:
172
Ibid, p. 102.
A partir de A Rosa do Povo o sentido da destruição não é
apenas evidente, como se apresenta como contrapeso da própria
vida. Cerca de 23 poemas entre os 55 desse livro tratam
reincidentemente da destruição [...].
A consciência espácio-temporal que vinha se dilatando dos
primeiros livros, aqui se expande amplamente sobre a cidade, o
país, o mundo. O poeta está na pólis onde há o acontecer
histórico, por isto seu verso, curto a princípio [...] agora se torna
cada vez mais abrangente, abarca tudo que sua época oferece
aos olhos. Seus poemas são depósitos vocabulares de um
período da História, documento crítico de uma época. Por isto,
não há de se estranhar que na expansão da consciência temporal
viesse inserido o germe da destruição, que compromete e
impulsiona a consciência em transito. Acresce um dado
histórico intensificador e explicador desse clica de corrosão: o
livro foi composto durante os anos da Segunda Guerra
Mundial.173
173
Ibid, p. 149.
174
Ibid, p. 153.
interessa pelo indivíduo e que se prolonga no espaço e no tempo de maneira
constante. Morte do Leiteiro, conforme demonstramos, mostra a luta diária dos
homens que perdem sua subjetividade e sua consciência quando inseridos em um
mundo de terror e desespero. A rotina nas grandes cidades e sua ascensão caótica
e desorganizada, somadas à insegurança da guerra, cultivaram um sentimento de
medo que certamente incomodava o homem da época. Drummond, extremamente
envolvido com os acontecimentos que o cercavam, não podia deixar de se
sensibilizar com o vazio dos homens e, junto com eles, sofreu e se desiludiu. Sua
obra durante esse período não somente falava àqueles preocupados com a guerra,
mas também a todos cujo coração, assim como o dele, ansiava por períodos mais
tranquilos. Assim como afirmou Adorno, a lírica de Drummond comunicou-se
com a sociedade e, mais do que isso, tornou-se um registro histórico dos horrores
e da desgraça que angustiavam os homens de seu tempo. O poeta e sua sociedade,
mergulhados nas trevas e sem poder fugir daquele “tempo de homens partidos”
compartilhavam a arte, como uma voz que fala a todos e, mais do que isso, fala
aquilo que todos querem expressar.
Referências
Contexto histórico
182
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: A astúcia da mimese: ensaio sobre
lírica. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 7-33.
183
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 37-
50.
explica a si mesma e tende a forçar o leitor a lembrar do conflito, ainda que não
tenha vivido ou sofrido tal tragédia, basta que tenha lido ou estudado sobre o
assunto. Mas, se não estiver na mesma disposição anímica do autor, conforme
explica Emil Staiger em Conceitos fundamentais de poética184, não entenderá o
texto. É preciso, enfim, que o leitor tenha conhecimento da história para que o
poema faça para ele algum sentido. Se a imagem da guerra se apresenta de vez
desde o título, a da marcha se realiza durante o poema até o último verso, sendo
necessário analisar todos os elementos que a formam.
184
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1993.
“com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”,
“com o russo em Berlim”... Dessa forma, é possível, inclusive, visualizarmos o
desfile das tropas como se estivessem os soldados soviéticos a bater os pés no
chão, efeito conseguido pelo poeta na sílaba tônica /rus/, que marca energicamente
o ritmo da caminhada. Por esse motivo, ao contrário dos demais versos, esse tem
de ser hexassílabo e sem pausas, o que lhe dá uma certa rapidez e indica o avanço
insistente e progressivo dos soldados. Esse verso traduz o sentimento e a ideia-
chave do poema. Deixando-o, porém, junto de cada estrofe, amplia o significado
do texto. Os primeiros três versos de cada estrofe vão apresentando as mazelas e
consequências da guerra, mas nesta linha de seis sílabas existe a certeza de um
fim, alcançado somente na última estrofe, quando, enfim, cessa a marcha
soviética. Em outras palavras: mesmo que o mundo esteja um caos, mesmo que
tenham se perdido vidas, se destruído cidades, se torturado e aprisionado
inocentes, mesmo que nada pudesse ser denunciado por causa da censura, que
tenha havido todo o tipo de desperdício, a marcha russa libertadora traz a
esperança e trará êxito. Usamos o verbo no futuro porque, progressivamente, a
partir de cada momento da guerra apresentado em cada estrofe, o refrão aparece
como se estivesse caminhando para a vitória que só se realiza de fato no fim do
poema.
188
Ibid.
189
Ibid.
interrompido: a Batalha de Stalingrado. Esta foi, desse modo, um marco na
história da guerra. A recuperação da cidade era uma questão de honra para os
russos pelo valor simbólico que encerrava, pois levava o nome do líder soviético,
Stálin. Exatamente por esse motivo Hitler não queria entregá-la, mas o exército
oponente cercou o 6º exército alemão, obrigando o comandante Von Paulus a se
render. Esses versos são fundamentais para situar o leitor sobre o avanço da
“marcha russa” no poema, já que esta batalha aconteceu em 1943. O poeta aponta
assim para a primeira derrota significativa dos alemães, embora o primeiro
fracasso nazista tenha sido na Batalha de Moscou. A partir daí, os soldados de
Hitler passariam a recuar em todas as frentes, principalmente na região extinta da
União Soviética.
190
Ibid.
191
Ibid.
As pausas bem marcadas e a repetição empregada no primeiro verso da
próxima estrofe, “O campo, o campo, sobretudo o campo”, denotam uma
profunda reflexão do sujeito poético a respeito da escravização e do extermínio
brutal protagonizado pelos germanos.192 Nesse caso, a progressão da marcha dos
soldados soviéticos está representada no uso do gerúndio “desfazendo-se”, que
alonga a ação porque ainda não aconteceu, mas acontecerá quando chegar o final
do texto. É necessário, pois, que o exército heroico continue a caminhada.
192
Conforme VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003, nos campos de Auschwitz,
Chelmno, Belzek, Sobibor e Treblinka seis milhões de judeus foram exterminados, sendo que a
maior parte deles era de trabalhadores pobres da Europa Centro-Oriental. Também morreram
nesses locais seiscentos mil ciganos e milhões de russos, ucranianos, iugoslavos e poloneses.
193
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
com o russo em Berlim.194
194
Ibid.
195
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003.
196
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
Ao se transformar em muitos, passa do plano individual para o coletivo e, nas
próximas estrofes, ele é “nós”.
No segundo verso, o poeta salienta que o melhor dele está lutando, talvez,
naquele momento, construindo poemas (muitos dele próprio), as únicas armas que
possui, mostrando-se entendedor de que a ele cabe dar a conhecer a sua
mensagem para que possa chegar triunfante “com o russo em Berlim”.
E pede que não cesse esse avanço da marcha russa, embora “Este vento
que passa” e que ainda não pode ser anulado (a guerra), leve com ele as vidas e
derrube parte do mundo.
197
Ibid.
198
Ibid.
199
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
refrão cumpre papel idêntico ao das outras estrofes: a progressão da marcha
soviética que não desiste e continua avançando.
200
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
201
Vale lembrar que os russos invadiram sozinhos a Europa Oriental.
202
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.203
203
Ibid.
204
Desde o seu surgimento, os grupos de resistência dividiram-se entre conservadores
antinazistas que ansiavam pela restauração do regime anterior à guerra, e os grupos de esquerda
que desejavam que a luta de libertação fosse acompanhada de reformas sociais progressistas.
205
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.206
Considerações finais
206
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
207
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa
Editorial, 2007.
O que fica implícito no texto é o fato de que há sim a sobreposição do
sistema comunista (socialista) sobre o nazista é exatamente por isso que a
população ansiava: uma nova ordem, uma nova vida para os indivíduos. E quem
melhor representava esse sonho comunista/socialista208 era a União Soviética.
Mesmo que os Aliados tenham vencido a Segunda Guerra, foram os russos que
invadiram Berlim e os olhos do mundo estavam voltados para eles.
208
A título de esclarecimento, o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, dá as seguintes
definições de comunismo: 1conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas,
ensinadas; 2) conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso,
econômico etc.; 3) doutrina econômica e sociopolítica, de cunho revolucionário, elaborada pelos
teóricos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), que prevê a superação
do capitalismo por meio da luta de classes, o fim da propriedade privada dos meios de produção, a
instauração de um regime de partido único e, num último estágio, a supressão do Estado e o
estabelecimento de uma sociedade sem classes.
209
HAMBURGER, Käte. O gênero lírico. Em: A lógica da criação literária. São Paulo:
Perspectiva, 1975. p. 167-209.
210
Acreditamos ser importante neste momento esclarecer que não nos interessa defender
nenhuma posição política, nos detivemos exclusivamente no que pudemos depreender do texto,
por isso, para apoiar nossas conclusões finais, citaremos algumas passagens da obra de Vizentini.
O movimento fascista alemão, ou nazismo, liderado pelo austríaco Adolf Hitler não tinha uma
unidade ideológica bem definida, “apoiando-se em fontes heterogêneas, tais como ‘a vontade de
potência’, de Nietzsche, as teorias racistas, de Gobineau e Chamberlain, a ‘fé no destino’, de
Richard Wagner, as teorias sobre herança, de Mendel, a Geopolítica, de Haushofer, o
neodarwinismo, de A. Ploetz e A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler” (em VIZENTINI,
Paulo Fagundes, Op. cit., 2003, p.72). Mais adiante o historiador explica que “O obscurantismo do
fascismo alemão pretendia destruir a civilização oriunda do renascimento, do iluminismo e do
liberalismo do século XIX. Era também firmemente anticomunista e antimarxista, embora
manipulasse a ideia de um ‘nacional-socialismo’”. O autor de As guerras mundiais esclarece
ainda na página 110 que, em 1930, todos os países fomentaram o nacionalismo. No caso da
Rússia, não se tratava somente de defender o país, defendia-se, principalmente a pátria do
socialismo e “o povo sabia o que vinha por trás dos exércitos nazistas: não apenas a destruição de
todas as conquistas da Revolução como também a escravização ou o extermínio puro e simples.
Os prisioneiros judeus e comunistas foram imediatamente fuzilados.” E para terminar, Vizentini
conclui nas páginas 161 e 162: “deve-se observar igualmente que a contribuição da URSS à
derrota da Alemanha não foi apenas a de uma nova potência industrial, mas a de um novo sistema
social, o socialismo.” E insiste: “As resistências tornaram-se, especialmente na Europa,
importantes movimentos político-militares, nos quais a força de esquerda – sobretudo a
comunista – acentuava-se como resultado da própria luta, tornando-se um fator político de
primeira grandeza como condicionamento do processo de reordenação mundial.”
Referências
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
p. 37-50.
John Keats
O desespero desespera
Os olhos não são para ver
Nem os ouvidos para ouvir.
211
FISCHER, Luis Augusto. Em: Leituras Obrigatórias: Vestibular da UFRGS 2001-2002.
Porto Alegre: Novo Século, 2000, p. 127.
Os dois primeiros poemas, “Consideração do poema” e “Procura da
poesia”, são reflexões do sujeito lírico sobre o próprio fazer poético. A abertura do
livro com esses dois poemas metalinguísticos é uma escolha significativa para o
todo da obra. No primeiro, Drummond apresenta uma ruptura com a poética
tradicional, uma vez que não acredita mais no sentido vazio da rima entre as
palavras sono e outono, por exemplo, saindo, assim, do lugar-comum poético:
212
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 21.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto
à linha de espuma.213
O ritornelo “Meus olhos são pequenos para ver” pode, entre outras
interpretações, reforçar o sentimento de impotência e de insignificância do homem
face à barbárie da guerra. O eu lírico sente-se impotente ao ver o general
escolhendo a próxima cidade a ser bombardeada, pois nada pode fazer para
impedir o horror e o sofrimento dos que são atingidos. A insignificância do
homem é acentuada através dessa repetição, pois tem a consciência de que, em
alguns segundos, num bombardeio, pode virar pó, assim como uma cidade inteira
vira ruína. É uma situação de desespero, desvalorização da vida, desumanidade:
[...]
“Meus olhos são pequenos para ver” também pode ser a expressão do
desejo desse eu lírico de não querer enxergar o que está acontecendo, de sentir-se
contrariado, avesso à realidade, e, por isso, prefere negá-la, rejeitá-la:
[...]
216
ELIOT, T. S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Tradução Maria Luiza
Nogueira. Rio de Janeiro. Artenova, 1972, p. 49.
Eliot afirma que cantar é outro modo de conversar, por isso, ao falar da
musicalidade da poesia, o teórico e poeta inglês dá ênfase à conversação. A
musicalidade, por sua vez, não existe à parte do seu significado e a poesia tem de
ser a que está latente na fala comum de sua época. Para Eliot, o poeta é um
escultor dessa linguagem da conversa, ele não a reproduz, mas sim encontra nela o
material de sua poesia. É interessante quando o poeta inglês afirma que a
musicalidade do verso não está em cada linha, mas no poema como um todo, há,
nele, a musicalidade de imagens, bem como de sons, exatamente como vimos no
poema “Visão 1944”, em que tanto a repetição do primeiro verso, o ritornelo,
quanto a construção de imagens compõe esse “outro modo de conversar” da
canção, ou seja, a significação do poema.
Os olhos do eu lírico são pequenos para ver, mas veem. Esta é a revelação
final do poema. Podemos dizer que, em sua maioria, os finais dos poemas de
Drummond são surpreendentes, no sentido de provocar surpresa, como uma
quebra no sentido do que vinha sendo dito. Há neles uma revelação ou um
profundo lirismo que é fundamental para o seu todo. Essa revelação parece
contraditória, uma tensão entre o intenso pessimismo e a esperança revelada nos
últimos versos. No final de “Visão 1944”, surge uma esperança com um “outro
mundo”. E é um outro mundo que brota em meio ao sangue, à sujeira. Um mundo
que brota da lama, como a flor de lótus, que o poeta refere no poema pelo termo
científico “nelumbo”.
Os olhos do eu lírico são pequenos demais para ver uma porção de coisas,
entretanto, no final, existe um “outro mundo”, símbolo de esperança, que os olhos
conseguem ver, querem ver, e eles “veem, pasmam, baixam deslumbrados”:
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
A rosa do povo é uma obra que é considerada, por muitos, “datada”, isto é,
registra uma época, faz parte de um contexto histórico-social marcado. Entretanto,
se considerarmos a missão da poesia, conforme os apontamentos de Marcel
Raymond217, como uma permissão ao eu escapar a seus limites e dilatar-se até ao
infinito, ou seja, apreender os sentidos através de uma realidade complexa, vemos
que a poesia de Drummond vai além da representação da crise mundial. Há, isso
sim, uma subjetivação do sentimento humano face à Guerra. É a dor e o
sofrimento do eu lírico que compõem o poema, assim como o sentimento de
esperança que surge a cada desfecho. Sendo assim, a repercussão do dado social
na interioridade do sujeito permite ao poema o seu aspecto atemporal.
217
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução Fúlvia M. L. Moretto &
Guacira Marcondes Machado. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 20.
218
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p.
23.
219
Ibid, p. 26
“Visão 2010” foi uma paródia despretensiosa que fiz do poema de
Drummond. Ao incluir essa paródia aqui, a minha intenção é mostrar que a poesia
de Drummond mantém um diálogo com os nossos tempos atuais. Esse diálogo só
é possível porque, mesmo um lirismo social e político, que o poeta pratica na
tentativa de superação do lirismo individual, conforme Antonio Candido observa
quando fala das inquietações do Drummond, esse cantar “se torna realmente geral
porque é, ao mesmo tempo, profundamente particular.”220
Visão 2010
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 41. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2008.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
223
SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba: Editora
UFPR; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 41.
SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba:
Editora UFPR; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
AS COISAS SOFREDORAS MAR ABSOLUTO ADENTRO
Camila Canali DOVAL
Introdução
Gotas de Cecília
225
DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos Pagu, n. 27,
julho-dezembro de 2006, p. 335. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf>.
Acesso em: 9 dez. 2010.
Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos
contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram,
desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que
docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno
que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por
vezes, cheia de violência. Em toda vida, nunca me esforcei por
ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha
personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito,
em Literatura, Jornalismo, Educação e mesmo Folclore.
Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em
que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em
profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas
por uma contemplação poética afetuosa e participante. 226
226
Apud DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. Em: Obra poética. Rio
de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1972, p. 58.
227
DAL FARRA, Maria Lúcia. Op. cit., 2006, p. 336.
É pela mão de Cecília e do marido, o artista plástico Fernando Correia
Dias, com quem se casara em 1921, que surge a primeira biblioteca infantil do Rio
de Janeiro, posteriormente fechada por Getúlio Vargas, sob suspeita de
ilegitimidade moral e educacional dos livros constantes do acervo, por exemplo,
As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, considerado pernicioso para a
formação das crianças.228
228
Ibid.
229
Ibid., p. 337.
vem para causar polêmica e malestares nos meios intelectuais
da Academia Brasileira de Letras.230
230
Ibid., p. 339.
231
Ibid., p. 340.
232
Ibid., p. 340.
233
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p.13.
Participante do grupo que compunha a revista Festa, que, conforme
descrita na dissertação de mestrado intitulada “A revista Festa e a modernidade
universalista na arte”, de Joseane de Mello Rücker: (2005, p. 27):
234
RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na arte.
Estudo de caso: Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2005, p. 27.
235
2005, p. 31.
236
RÜCKER, Joseane de Mello. Op. cit., 2005, p. 31.
237
BACKES, Karin Lilian. Mar de poeta: A metáfora do oceano nas líricas de Cecília
Meireles e Sophia Andresen. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS,
Porto Alegre, 2008.
Sobre a mesma discussão, Damasceno acrescenta:
Embora este texto até aqui se refira à poesia de Cecília Meireles em geral,
nosso objetivo se delimita em buscar imagens, na obra Mar absoluto, que reflitam
de alguma o período de guerra em que foi escrito. Não há dúvida de que uma obra
tão importante para a literatura brasileira quanto a de Cecília Meireles mereça
estudos verticais e frequentes, pois muito há para se descobrir e contar.
Consideramos este texto uma gota diante do mar que se derrama das mãos da
poetisa carioca em direção ao mundo.
238
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 14.
239
BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 62.
Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio eu,
pode-se dizer que se estende a influência da poesia; e isso pode
ser melhor expresso pela afirmação de que, no decurso do
tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas
vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os
membros de uma comunidade, de todo o povo,
independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou
até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os nomes de seus
maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante
periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito
difícil de ser comprovada. [...] Assim, se rastrearmos a
influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às
pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em
toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional
estiver viva e sadia, pois numa sociedade saudável há uma
influência recíproca e uma interação continuas de uma parte
sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social
da poesia em seu mais amplo sentido: é isso o que,
proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a
sensibilidade de toda a nação.240
240
ELIOT, T. S. A função social da poesia. Em: De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense,
1991. Disponível em: <http://blogs.abril.com.br/singrandohorizontes/2009/06/t-s-eliot-funcao-
social-poesia.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.
241
Ibid.
Para Theodor W. Adorno, falar de lírica e sociedade num mesmo contexto
“trata-se de manusear o que há de mais delicado, de mais frágil, de pô-lo em
contato justamente com aquela roda-viva da qual preservar-se intacta faz parte do
ideal da lírica, pelo menos no sentido tradicional.”242
Para Trevisan,
Talvez seja esse um dos principais motivos pelo qual Cecília é acusada de
alienação. Sua linguagem jamais próxima do ordinário a distancia de uma visão
pragmática de ser social, e o que há de transcendente em suas palavras a condena
diante da iminência do mundo. Enquanto Trevisan afirma que “O poeta social
deverá ser, obrigatoriamente, humilde” 244, Cecília impõe-se a tarefa de “Acordar a
criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar.
Mostrar-lhes a vida em profundidade.”245 Dessa forma, ao associar sua experiência
de vida — e morte — a sua arte, Cecília corrobora com Adorno, quando o filósofo
afirma que “da mais irrestrita individuação a formação lírica tem esperança de
extrair o universal.”246
Trevisan afirma que o poema é “uma coisa alada que não pode
transformar-se num leão ou elefante. Se o poeta quiser ser eficaz, seja homem de
242
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, p. 193.
243
TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993, p. 33. Os
grifos são do autor.
244
Ibid, p. 34.
245
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 58.
246
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
ação. A práxis da poesia é a da ação indireta. A práxis política, a da ação direta.
[...]”247. Cecília era uma mulher de ação. Na vida, não na poesia. Ou talvez, como
pretendemos demonstrar, não de forma constantemente explícita na poesia. A obra
de Cecília toma outros caminhos para se inscrever na sociedade: “Aparentemente
desligado da história, o poema introduz-se nela pela conspiração do silêncio e da
ruptura da linguagem.”248
247
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 34.
248
Ibid, p. 34.
249
Ibid, p. 10.
250
Ibid, p. 11.
251
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 193.
distantes do dia a dia, do sofrimento advindo de situações reais da vida, Cecília é
capaz de aproximar o interlocutor de um sentimento que é extraterreno, mas
intimamente humano. Quando, ao contrário, a poeta parte da situação mínima do
nosso cotidiano para demonstrar um sentido metafísico máximo da humanidade,
ela igualmente nos adentra com suas palavras, nos reúne nelas. Na ânsia de
demonstrar ao humano o que é de fato humano, mesmo que à primeira vista não
pareça, incluindo o que lhe é intrínseco e superior, Cecília está agindo
socialmente, em prol do que impôs como missão para a sua poesia. Adorno sobre
o esquema universal / individual, aponta:
252
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
253
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 24. Os grifos são do autor.
O uso da palavra é, em si mesmo, uma atitude transgressora, pois o papel
do poeta é recriá-la; inaugurar seu sentido, surpreender as expectativas; romper
com o pré-estabelecido:
254
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 195.
255
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 25.
256
Ibid, p. 24.
As pessoas suspeitam às vezes de qualquer poesia com um
propósito particular, isto é, a poesia em que o poeta defende
conceitos sociais, morais, políticos ou religiosos, assim como
outras pessoas julgam amiúde que determinada poesia seja
autêntica só porque exprime um ponto de vista que lhes apraz.
Eu gostaria de dizer que a questão relativa ao fato de o poeta
estar utilizando sua poesia para defender ou atacar determinada
atitude social não interessa. O mau verso pode obter fama
temporária quando o poeta reflete uma atitude popular do
momento; mas a verdadeira poesia sobrevive não apenas à
mudança da opinião pública como também a completa extinção
do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve
apaixonadamente envolvido.257
O que era a guerra para quem não estava na guerra? Onde acontecia? Que
forma tinha? Tinha cor? E cheiro? O que era o cheiro da guerra?
Do mundo, o que se tem depois da guerra? Quem ficou? Quem nem sabia
que poderia ter ido? Quem não pensou que guerra era coisa feita por alguém?
Há guerra para todos os lados, também para os de Cecília.
257
ELIOT, T. S. Op. cit., 2010.
Pinçaremos da sua obra Mar absoluto, escrita em 1945, certas imagens que
se referem ao momento sócio-histórico de final de guerra ao qual o mundo vivia.
Em primeiro lugar, entretanto, é preciso estabelecer alguns conceitos do que
entenderemos aqui como imagem poética.
Para Octavio Paz, “Convém advertir, pois, que designamos com a palavra
imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que
unidas compõem o poema.”258 Dessa definição (muito) aparentemente simples, o
autor extrai que “Cada imagem – ou cada poema composto de imagens – contém
muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem
suprimi-los.”259
O poema não diz o que é e sim o que poderia ser. Seu reino não
é o do ser, mas o do “impossível verossímil” de Aristóteles.
Apesar dessa sentença adversa os poetas se obstinam em
afirmar que a imagem revela o que é e não o que poderia ser. E
ainda mais: dizem que a imagem recria o ser. 260
Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou explicado por
outra frase. Em consequência, o sentido ou o significado é um
querer dizer. Ou seja: um dizer que pode dizer-se de outra
maneira. O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria
imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem
explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer
dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem
mais sentido que as suas imagens.264
265
BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 38.
266
Ibid, p. 44.
267
Ibid, p.46.
Até onde dá pé
268
MEIRELES, Cecília. Mar absoluto. Em: Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia José
Aguilar Editora, 1972.
mundo. Sentenciada, a poeta proclama: “Deus te proteja, Cecília, que tudo é mar
— e mais nada.”269
269
MEIRELES, Cecília. Op. cit., 1972.
conforme o trecho: “Vem para perto, nem que já estejas desmanchando/em
fermentos do chão, desfigurado e decomposto!/Não te envergonhes do teu cheiro
subterrâneo,/dos vermes que não podes sacudir de tuas pálpebras,/da umidade que
penteia teus finos, frios cabelos/cariciosos./Vem como estás, metade gente,
metade universo,/com dedos e raízes, ossos e vento, e as tuas veias/a caminho do
oceano, inchadas, sentindo a inquietação das marés.”
Embora Cecília não seja considerada uma poetisa engajada, é sua a poesia
que tão bem ilustra o ser movido pela guerra; irrefreável em direção à violência;
desprovido de sentido e esperança como só um humano pode ser: “Nós
merecemos a morte,/porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas
mãos,/pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,/por nosso sangue
estranho e instável, pelas ordens/que trazemos por dentro, e ficam sem
explicação.” Neste trecho de “Lamento do oficial por seu cavalo morto” temos a
mesma imagem de distância e proximidade, em que Cecília usa a primeira pessoa
do plural para se unir ao homem que guerreia, que ‘mata seus irmãos’.
O poema “Prazo de vida” traz uma rima soturna (frio – sombrio – vazio)
que personifica o clima apocalíptico e culmina com a visão máxima do fim do
mundo pela guerra: “O universo ficou vazio,/porque a mão do amor foi partida/no
vazio.” Da mesma forma encontramos, em “Vigilância”, imagens profundamente
sombrias proferidas pelo eu lírico que vigia e se aflige, que vê na beleza apenas
outra face do sofrimento: “presságio triste”; “errantes barcos”; “almas de angústia
demorada e cega”; “Ilha em sobressalto”; “eternamente aflita”; “tempestade
certa”. Em “Evidência”, declara-se o fim da pureza para um mundo
definitivamente corrompido: “Puros e tristes ficamos,/puros e tristes e sós./O
coração é vaga nuvem./E vaga areia, a voz.”
Conclusão
Referências
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009.
270
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 12.
RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na
arte. Estudo de caso: Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de
Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2005. Disponível em:
271
HEGEL, 1964, p. 155.
Como ficou dito antes, a poesia épica era a responsável pela divulgação
dos grandes feitos da história grega. Entretanto, observando a lógica do
pensamento hegeliano presente no excerto acima, não havia lugar nesse perfil
poético para a demonstração da individualidade do produtor cultural. É em
decorrência da necessidade de inserção da subjetividade do poeta que surge o
estilo lírico.
... ...
II est des parfums frais comme des chairs Aromas frescos como a carne dos infantes,
d'enfants, Doces como o oboé, verdes como a campina,
Doux comme les hautbois, verts comme les E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
prairies,
— Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do
Ayant l'expansion des choses infinies, Oriente,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.
275
MELO NETO, 2003, p. 728.
276
Ibid, p. 346.
ou mais profundo, usando menos recursos vocabulares. A esse respeito, o poeta é
enfático ao afirmar, não destituído de certa dose de ironia, que fala, em seus
poemas, “com as mesmas vinte palavras.”277
Por sua vez, o teórico Ivo Barbieri, ao tratar dessa distinção da poesia
cabralina, comenta sobre a racionalidade consciente do autor no tangente à
linguagem: “[...] o poeta assume a posição do engenheiro, que [...] suprime
brechas de linguagem por onde pudessem se insinuar imprecisões, sombras ou
mistérios.”278
Outro debatedor que aponta para essa realidade é Décio Pignatari,
afirmando que a caracterização básica que pode ser feita à prática do poeta é o seu
pendor pelo emprego da “palavra nua e seca, as poucas palavras, a escolha
substantiva da palavra [...] a serviço de uma vontade didática de linguagem
direta.”279
Retornando, entretanto, às questões da antilírica, as colocações expostas
acima parecem estabelecer um descompasso entre a tendência da lírica moderna à
obscuridade e ao hermetismo e a poética do autor de Quaderna, mormente no
sentido de esclarecer que a linguagem cabralina tende (obsessivamente) à clareza.
Evidencia-se o primeiro indício da secura na arte do poeta: a secura de
palavras.
Outro aspecto importante dos textos do vate se encerra na questão da
musicalidade de sua produção. Ou na contrariedade dessa virtude: a
antimusicalidade.
Entendido, pois, que a criação cabralina busca exilar-se dos preceitos da
lírica secular, então também surge como coerente a tentativa de abstração, na
esfera de sua escrita, de um dos caracteres fundadores da antiga poesia lírica.
Nesse sentido, o crítico Ivo Barbieri nos brinda com um posicionamento revelador
a respeito da escolha melódica de Cabral, apontando que sua “preferência pelo
concreto, pela palavra mineralizada na escrita, pela bem tramada sintaxe, pelo
277
Ibid, p. 311.
278
BARBIERI, 1997, p. 11.
279
PIGNATARI apud BARBIERI, 1997, p. 31.
relevo escultural da imagem bastaria para apagar toda ressonância musical das
palavras.”280
Tomando o cuidado necessário para não cair no anacronismo, o presente
ensaio revisita Nietzsche em sua concepção de que "a poesia se encontra
frequentemente a caminho de tornar-se música, quando ela busca conceitos mais
sutis, aqueles em que o lado material do conceito quase desaparece." 281 Esta
asserção do filósofo alemão diz respeito a um paradoxo cunhado por João Cabral
ao valorizar a antimusicalidade em seus versos: o apartamento da poética em
relação à musicalidade se faz com a matematização das relações rímicas e
vérsicas, o que parece um contrassenso no sentido de que a poesia e a música são,
em larguíssima medida, devedoras da precisão e do cálculo matemático.
De qualquer modo, como prova dessa virtude do texto cabralino, tem-se
abaixo um excerto da poesia “Alguns toureiros”, presente na obra Paisagens com
figuras:
[...]
Mas eu vi Manuel Rodriguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
[...]
O que melhor calculava
O fluido aceiro da vida,
O que com mais precisão
Roçava a morte em sua fímbria
[...]
Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
Nem deve a voz ter diarréia
284
Ibid, p. 49.
285
MELO NETO, 2003, p. 596.
O texto que ora chega a termo buscou fazer um apanhado dos
acontecimentos que marcaram a trajetória do conceito de lirismo dentro da poesia,
desde seu aparecimento até os dias atuais. Finalmente, houve a descrição da
maneira pela qual o gênero tem sido explorado contemporaneamente, pela
apresentação das características poéticas de um autor claramente inserido nas mais
modernas tendências de produção literária.
Referências
LIMA, Luiz C. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
MELO NETO, João C. de. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.
Um outro Bandeira
Vou tratar aqui de um poeta que usa e abusa dos tons crepusculares e da
melancolia da herança romântico-simbolista. Um poeta que segue o hábito do
verso regular, construído segundo os cânones da metrificação tradicional, uma
preocupação de influência parnasiana. Um poeta com tendências monótonas e
melancólicas. Um poeta fascinado pelo mistério e pelas sombras. Que fala do
tédio e esfuma a realidade.
286
ARRIGUCI, 1990, p. 53.
287
Ibid, p. 139.
Segundo Maria Lúcia Pinheiro288, o pré-modernismo é um período literário
que se iniciou com o fim do simbolismo e se encerrou com o começo do
modernismo: “[...] É um período sincretista, às vezes neo-simbolista ou neo-
parnasiano, ou as duas coisas simultaneamente.”
288
PINHEIRO, 1991, p. 19.
289
Ibid, p. 19.
290
COELHO, 1982, p. 6.
291
Ibid, p. 22.
No romance, o jovem alemão Hans Castorp vai visitar um primo
tuberculoso no sanatório de Berghof e quase por acaso descobre que também está
doente, passando a viver a rígida monotonia do lugar, um lugar isolado do mundo,
onde sobra tempo para contemplação e inquietações filosóficas.
Poesia da penumbra
294
BOSI, 1982, p. 332.
295
COELHO, 1981, p. 23.
296
COUTO, 1960, p. 66.
297
FILHO, 1970, p. 71.
confidências. O artigo se intitula Poesia da penumbra e afirma – com exagero,
segundo Filho – que no Brasil “a poesia era pura eloquência” e que o poeta que
desejasse triunfo rápido “tinha que se transformar num pirotécnico hábil, capaz de
pôr bichas e bombas chilenas nos seus endecassílabos, buscapés, salta-moleques
nas suas redondilhas, foguetes de assobio nos seus alexandrinos.”
Para ele, não foram poucos os poetas brasileiros que “durante uma certa
época, andaram esquecidos de que viviam em uma terra de sol e céu azul”. Otávio
Filho defende que esses poetas, “animados pelos sentimentos de uma mocidade
livresca, perguntavam à poesia: quando serás penumbra? E a ela entregaram-se de
corpo e alma”.
298
Ibid, p. 71-73.
zona simbolista para, ao fim do vôo, criar e alimentar o
modernismo299.
304
COUTO, 1960, p. 67.
305
BANDEIRA, 2008.
306
JUNQUEIRA, 2003, p. 212.
Propício ao surgimento da melancolia e da monotonia
(palavras-eixos do léxico do Simbolismo, onde se transformam,
a partir do próprio Baudelaire, em verdadeiros emblemas da
angústia moderna), o tédio, que em A cinza das horas cai até
dos telhados.307
E principalmente:
307
COELHO, 1982, p. 16.
308
Ibid, p. 19.
309
Ibid, p. 17.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)
Estamos longe dos versos livres, uma vez que há uma regularidade métrica
e fônica, um ritmo marcado pela repetição e pelo emprego de rimas.
310
BANDEIRA, 2008.
311
COELHO, 1982, p. 13.
Porém também há aqui algo do modernismo posterior do poeta. Não é
exagero afirmar que em Inútil luar “Dentro desses esquemas e tendências [...]
sobressai de vez em quando a ainda tímida (mas já tangível) originalidade de
Bandeira.”312
Aqui se trata de um Bandeira que já assume “uma posição livre diante dos
materiais tão heterogêneos com que trabalha”, mesmo que esses materiais e essa
liberdade não estejam tão evidentes, e o resultado esconda “o jogo com os
materiais alheios ou estranhos.”313
Frouxas amarras
312
Ibid, p. 13/14.
313
ARRIGUCI, 1990, p. 141.
314
REGIS, 1986, p. 18.
315
GOLDSTEIN,1983, p. 110.
Nestes livros, podemos falar de um poeta com características diversas das
que consagrariam o Manuel Bandeira modernista. Esse outro Bandeira tem a
“expressão de um escrever ‘Art Nouveau’ que foi primacialmente o dele antes da
adoção ‘oficial’ do discurso modernista.”316
O exemplo é O inútil luar. A análise deste poema mostra que “embora seja
a partir do livro O ritmo dissoluto, publicado em 1924, que se tornou mais
316
COELHO, 1981, p. 6/7.
317
COUTO, 1960, p. 67.
318
ARRIGUCCI, 1990, p. 125.
319
Ibid, p. 141.
320
COELHO, 1982, p. 107.
frequente a presença da linguagem coloquial e popular na poética de Manuel
Bandeira, já no livro A cinza das horas, de 1917, se percebe esta tendência”321.
Referências
321
REGIS, 1986, p. 17.
JUNQUEIRA, Ivan. Apresentação. Em: Testamento de Pasárgada: antologia
poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
322
LOPES, 1990, p. 15-16.
323
Ibid, p. 15-16.
escritora que manteve uma produção constante e recebeu importantes prêmios até
pouco antes de sua morte, ocorrida em 2004. Os dois ensaístas, ao falarem sobre
aquela que foi considerada pela crítica como uma das grandes vozes da expressão
lírica em língua portuguesa, ressaltam a leitura precisa que Sophia Andresen
realizou de Fernando Pessoa.324 Na opinião do primeiro crítico, expressa no
prefácio à Antologia da escritora, “jamais se revisitou, por dentro, a aventura sem
fim de Fernando Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável poema
‘Cíclades’”, incluído em O nome das coisas.325 Por sua vez, Fernando Martinho,
ao mesmo tempo que reafirma “a presença tutelar” de Pessoa na poesia
portuguesa contemporânea, chama atenção para “o entendimento por dentro das
fecundas propostas de modernidade contidas na poesia pessoana”, alcançado pelos
autores “que melhor corporizaram o espírito dos Cadernos de Poesia, entre os
quais Sophia de Mello Breyner Andresen.”326
328
LOURENÇO, 1975, p. IV-V.
329
Ibid, p. VI- VII.
330
Para a análise realizada a seguir, foram utilizados, além de O búzio de Cós e outros
poemas, coletânea lançada em 1997, os três tomos que integram a Obra poética da escritora – o
primeiro editado em 1990 e os outros dois, em 1991 –, onde estão reunidos os livros que publicou
de 1944 até 1989: Poesia (1944), Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954),
Mar novo (1958), Livro sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O nome das coisas (1977),
Navegações (1983) e Ilhas (1989).
Fernando Pessoa”, “Personna” e “Cíclades” –, opta-se por comentar este último, o
longo poema incluído em O nome das coisas e distinguido por Eduardo Lourenço,
do qual transcreve-se um fragmento:
Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
...............................................
...............................................
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse. 331
331
ANDRESEN, 1991b, p. 175-178.
332
ANDRESEN, 1991a, p. 129.
existência como “personalidade” e sujeito, ele se tornou “Viajante incessante do
inverso”. Em vez de entregar-se ao mar, ao fluxo da vida, fez-se um aplicado
cartógrafo: criou obras com características específicas para cada um de seus
heterônimos e imaginou os elementos que comporiam a biografia desses seres.
Pessoa evitou, desse modo, os riscos que poderia enfrentar numa viagem
destinada a explorar não os mapas, mas o território: “Mantiveste em dia os teus
cadernos todos / Com meticulosa exatidão desenhaste os mapas / Das múltiplas
navegações da tua ausência”. Mais adiante, há outra afirmação do eu lírico que
pode ser interpretada de maneira semelhante: “Viajavas no avesso no inverso do
adverso”. Percebe-se, ainda, que a palavra “ilha” está lá – “Aquilo que não foi
nem foste ficou dito / Como ilha surgida a barlavento” – para reativar o sentido de
isolamento. Fica demonstrado, assim, que essa “navegação com bússola e sem
astros”, como é denominada no poema intitulado “Fernando Pessoa”, ao mesmo
tempo que desvia o viajante de certas adversidades, leva-o a assumir perigos de
natureza distinta.
O balanço desse exílio, que Pessoa efetua nos limites da sua poesia, também
faz o “não-vivido” transformar-se em linguagem, conforme se percebe nos versos
de Sophia Andresen: “Com prumos sondas astrolábios bússolas / Procedeste ao
levantamento do desterro”. Fernando Martinho observa que uma passagem do
texto da escritora – “Nasceste depois / E alguém gastara em si toda a verdade / O
caminho da Índia já fora descoberto” – indica a ampla dimensão de tal desterro.
Pessoa é apresentado aqui como “o exilado no lugar e no tempo”, de acordo com
o crítico, que lê, por trás das palavras da autora, os versos de Álvaro de Campos
em Opiário: “Pertenço a um gênero de portugueses / que depois de estar a Índia
descoberta / Ficaram sem trabalho”.333
Junto e, ao mesmo tempo, separado dos que nasceram depois do período dos
descobrimentos e sofreram com a crise que assolou o país, está um poeta
extemporâneo. Segundo Leyla Perrone-Moisés, Pessoa era “demais” para
Portugal, “que não sabia o que fazer daquele grande poeta épico, daquele ‘supra-
333
MARTINHO, 1982, p. 27.
Camões’ advindo num momento em que a glória das Navegações se perdia num
passado longínquo”. E na palavra “desterro”, empregada por Sophia Andresen,
podem ser vislumbrados os diversos aspectos que constam no inventário realizado
pela ensaísta acerca do criador de heterônimos. Num esforço de síntese, Leyla
Perrone-Moisés define Pessoa desta forma: “Sujeito em crise de identidade, poeta
em crise de língua, gênio poético acuado num país que atravessava ele mesmo
uma crise política e econômica.”334
Condenado ao exílio por todas essas razões, Pessoa, como lembra o eu lírico
de “Cíclades”, experimenta ainda outra espécie de desterro, pois sua condição
humana o separa dos deuses, que, na Antigüidade Clássica, transitavam no mesmo
espaço que os seres humanos, e que depois se ausentam neste mundo: "Dos deuses
só restava / O incerto perpassar / No murmúrio e no cheiro das paisagens”.
Conforme se verá a seguir, o sujeito poético compartilha com seu interlocutor o
sentimento de desamparo provocado por tal divisão, mas Pessoa, na voz de
Ricardo Reis, vai além e, assim, afasta-se do eu lírico de “Cíclades”. Reis é aquele
que se diz “desterrado da pátria antiqüíssima da minha / Crença, consolado só por
pensar nos deuses.”335 No entanto, fugindo de tudo quanto ameace mudá-lo “para
melhor que seja”, o que realmente deseja é ser esquecido pelos deuses: “Quero
dos deuses só que me não lembrem. / Serei livre – sem dita nem desdita.”336
Mesmo sabendo que Pessoa se dividiu em “muitos rostos / Para que não
sendo ninguém” dissesse “tudo”, o eu lírico de Sophia Andresen age no avesso do
avesso e reúne, no seu campo de visão, elementos que possam tornar a ausência
do poeta uma presença. Esse ato começa com uma invocação: “Porém obstinada
eu invoco – ó dividido – / O instante que te unisse / E celebro a tua chegada às
ilhas onde jamais vieste”. Depois, o eu lírico dirige-se ao poeta como quem
entrega presentes a um estrangeiro. São oferecidos a Pessoa, no texto de Sophia: a
inteireza, a noção de conjunto que o rosto do poeta, repartido em “ilhas”, jamais
334
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 11.
335
PESSOA, 1995, p. 318.
336
Ibid, pp. 273-295.
alcançou; a alegria, o “estio”, que ele não recebeu dos deuses nem quis para si, e,
novamente, o esplendor, a nitidez do real, a qual o olhar de Caeiro procurou se
abrir.
A unidade, a luz e a harmonia encontradas na Grécia real contrastam com a
fragmentação de Pessoa e, por isso, o enigma que ele representa surge, “mais nu e
veemente”, a interrogar o eu-lírico. A invocação ao escritor vem, então, opor-se a
sua “viuvez”. O sujeito poético clama por Pessoa como se ele chegasse “neste
barco”, e como se a presença do real penetrasse o espaço de ausência e negação
em que o criador de heterônimos se constituiu. Assim, as ilhas gregas e a voz do
eu lírico são mostradas como o abrigo, o lar e o amor, que precisam ir ao encontro
desse Odysseus e “invadi-lo”, porque ele só conhece a solidão.
338
Ibid, p. 175.
339
ANDRESEN, 1991b, p. 38.
340
Ibid, p. 147.
341
Ibid, p. 73.
No texto intitulado “Ariane em Naxos”342, o percurso do sujeito poético
cruza-se com o da filha de Minos, rei de Creta. A evocação a Ariane, personagem
que empresta a Teseu o fio que lhe permite sair do labirinto, de certo modo, é uma
volta à figura de Penélope. Todavia, constata-se que, assim como o eu-lírico
feminino transforma-se de Penélope em Ulisses em alguns textos de Sophia
Andresen, em outros, não satisfeito em ser apenas aquela que provê e guia –
Ariane –, vai avançar na pele de Teseu pelos corredores do labirinto: “Sozinha
caminhei no labirinto.”343 O mesmo ocorre em “O Minotauro”344, texto já citado,
em que o sujeito poético afirma ter mergulhado no mar de Creta, visto aqui como
o lugar onde reina o monstro com corpo de homem e cabeça de touro.
342
Ibid, p. 153.
343
ANDRESEN,1991a, p. 123.
344
ANDRESEN,1991b, pp. 147-149.
345
Ibid, pp. 202-203.
regresso”. Na terceira parte, verifica-se que esse ser múltiplo, tão ansiosamente
esperado já se faz anunciar – “Pois no ar estremece tua alegria” –, trazendo
consigo sua “jovem rijeza”, seu “ímpeto”, sua “fuga e desafio”, sua “inteligência”
e “argúcia”, e também seu “riso”.
346
Ibid, p. 147.
347
Ibid, pp. 202-203.
A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão
348
Ibid, p. 209.
349
Ibid, p. 208.
350
Ibid, p. 89.
351
Ibid, pp. 70-71.
Fernando Martinho comenta o diálogo que Sophia Andresen estabelece com
Pessoa e afirma que “um poeta quando cita os outros é a si próprio, às suas
obsessões, ao sentido da sua busca, que muitas vezes, afinal, cita”. Na leitura de
“Cíclades”, o crítico verifica que a mesma autora que, “no princípio conhecera a
harmonia, o esplendor, e neles se reconhecera e extasiara como os deuses da sua
Grécia ideal na sua própria ‘imagem’ se extasiavam, vem a experimentar a cisão,
a ter o conhecimento da dor e da desarmonia”. Ela, tal como Pessoa, “constata o
‘crepúsculo’, o apagamento dos ‘deuses.’”352
352
MARTINHO, 1982, p. 27.
353
ANDRESEN, 1990, p. 46.
354
PEREIRA, 1992, p. 6.
Como define Sophia Andresen, numa entrevista em que nega a suposta
influência do poeta sobre o seu trabalho, em Fernando Pessoa “o jogo da
despersonalização” é “diferente”; é “uma viagem sem volta”. A autora declara
que, quando começou a ler os textos de Pessoa, “já tinha formado ou elaborado
uma maneira de escrever”, e conclui: “O Pessoa deslumbrou-me mas não foi uma
influência. Tive uma guerra com o Pessoa, digamos assim. Por isso é que escrevi
vários poemas sobre ele. Para mim a arte é um espelho em que o artista vê o
mundo mas não se vê a si próprio.355
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram
escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao
universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste
mundo dito por ele próprio.
357
ANDRESEN, 1991b, p. 349.
358
ANDRESEN, 1999, p. 8.
359
ANDRESEN, 1991b, p. 95.
outros artistas. No contato com esses parceiros, ela identifica e define com
precisão suas próprias escolhas e o seu modo peculiar de perceber as coisas. No
texto sem título que abre o primeiro volume de sua Obra poética, a escritora
relata:
360
ANDRESEN, 1990, p. 7.
361
ANDRESEN, 1991b, pp. 167-168.
O texto intitulado “Regressarei” sugere que o poema se parece com o
palco de um teatro, invadido pelo som e a luminosidade. A esse lugar o eu lírico
retorna para “buscar obstinada a substância de tudo / E gritar de paixão sob mil
luzes acesas.”362 Em outro texto363, chama de “canto” a poesia que pede à Musa. O
nome de tal entidade é empregado pelos antigos para responder “como, onde e por
quem“ é feito o poema, conforme esclarece a autora em “Arte Poética IV”. Sophia
Andresen adverte que essa não é a única forma de referir-se ao fenômeno e lembra
que alguns falam de “subconsciente”. Ela imita os antigos, mas confessa que é
complicado nomear o que “não distingue bem”. “É-me difícil, talvez impossível,
distinguir se o poema é feito por mim, em zonas nebulosas de mim, ou se é feito
em mim por aquilo que em mim se inscreve”, diz a escritora.364
Referências
AMARAL, Fernando Pinto do. Sophia: a luz sem mancha do primeiro dia. Jornal
de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, p. 11, 1º ago. 1989.
362
Ibid, p. 228.
363
Ibid, pp. 102-103.
364
Ibid, pp. 166-169.
365
Ibid, p. 350.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 1990.
VASCONCELOS, José Carlos de. Sophia: a luz dos versos. Jornal de Letras,
Artes e Idéias, Lisboa, p. 8-11, 25 jun. 1991.
ANDRÉE CHEDID E A METAPOESIA:
REFLEXÕES SOBRE A CRIAÇÃO POÉTICA
Introdução
366
Todos os poemas de Andrée Chedid utilizados neste trabalho possuem traduções minhas.
Essas traduções são literais, não levando em consideração o ritmo, mas somente o sentido, aqui
mais importante.
367
VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002.
368
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de
Cette émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.
Andrée Chedid é uma escritora francófona nascida no Egito em 1920 e
morta em 2011 em Paris. Desde cedo, escolheu o francês como língua de
expressão artística e de criação literária. Aos 26 anos, instalou-se em Paris e,
nessa cidade, escreveu quase toda a sua obra poética.
369
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris: Belfond,
2006.
370
CHEDID, Andrée. 2010, p.95 : “Esfinge no meu rimador/ Paris ao longo do coração/Nilo
em minhas veias/ Nas minhas artérias corre o Sena.”
Nesta mesma entrevista, a autora aborda também a outra temática
dominante na sua criação poética: a metapoesia, determinada pela importância
atribuída à definição da poesia e do fazer poético. Ela dedica uma boa parte desta
entrevista para a exposição de suas noções de poesia e para a explicação de seu
processo criativo tanto em verso quanto em prosa, demonstrando, assim, a
importância destas reflexões metapoéticas, que ganham um lugar privilegiado em
sua obra. Muitos de seus livros possuem títulos reveladores desta vontade de
definir e problematizar a criação poética como Textes pour un poème371 e Poèmes
pour un texte372, que a própria autora explica serem o reflexo de sua busca
criativa:
Poetas como Paul Valéry, Pierre Reverdy, Yves Bonnefoy, Octavio Paz ou
ainda Arthur Rimbaud possuem alguns textos em prosa problematizando questões
371
CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987.
372
CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991.
373
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond,
2006, p.76: “Intitulei dois de meus livros Textos para um poema e Poemas para um texto, os dois
títulos são espelhos. O primeiro quer dizer que escreve-se textos para tentar chegar ao poema. O
segundo, é um pouco semelhante, escreve-se poemas, mais e mais, para tentar chegar a um texto
que escapa-lhe sempre. Esta é, de certa maneira, minha corrida.”
374
Cf. CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.
375
Cf. CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.
teóricas sobre a poesia e a criação poética. Alguns analisam a poesia de maneira
geral; outros, sua própria criação ou seu projeto poético, como Rimbaud em suas
Lettres du Voyant376, cartas em que ele explicita seu processo criativo e seu
programa poético. Alguns destes textos são utilizados como instrumentos para o
estudo da teoria da literatura juntamente com textos de estudiosos que produzem
somente teoria e não são poetas.
376
Cf. LEUWERS, Daniel. Les lettres du voyant Rimbaud. Paris: Ellipses, 1998.
377
IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris: Seghers, 2004, pp. 32-33: “E importante constatar
que Andrée Chedid faz, de certa maneira, um trabalho de critica, no interior de seus próprios
textos, ou, mais precisamente, escreve o poema; sua surpresa, diante das palavras, a fascina. E
isso, dará nascimento, posteriormente, de maneira mais clara, no Visage Premier, em Terre et
Poésie, a uma sucessão de reflexões sobre a poesia.”
Pode-se constatar que a metapoesia de Chedid aborda as mesmas noções
estudadas pela teoria da criação poética. Em alguns metapoemas, ela apresenta sua
definição de poesia e o que a compõe e, em outros, ela analisa o ato de criação, as
palavras e suas combinações e a condição do homem que se faz poeta. Estas
mesmas reflexões encontram-se nos ensaios de Valéry e de Reverdy.
Para ela, a força maior de sua poesia reside nesse “choc des mots”,
produzido pela combinação inusitada de palavras e de imagens e principal criador
de metáforas. Ela aplica este exercício poético nos poemas Poésie II, do livro
Visage Premier, citado por Izoard, e Poésie, do livro Par-delà les mots. Ela utiliza
este procedimento para definir a poesia com uma sucessão de imagens
contraditórias e inesperadas.
378
CHEDID, Andrée. Op. cit. 2006, p.68. “Mas existe também ‘o choque das palavras’. As
que não são feitas para estar juntas e que, de repente, por estarem lado a lado, criam uma
luminosidade, um brilho.”
379
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de Cette
émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003, p. 98. “A maneira
particular de dizer uma coisa muito simples.”
Poésie II
Poésie
En deçà du verbe
Elle questionne l'univers
380
CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991, p.56:
Poesia II
O que é perecível
Mas que renasce adiante
O que é evidência
Mas continua em suspenso.
Au-delà des murailles
Elle nomme la liberté
Et désigne le mystère
Qui demeure entier.381
381
CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995, p. 7:
Poesia
Aquém do verbo
Ela questiona o universo
Desertando as conquistas
Ela promete aventura
Não parece ser por acaso que este “choc des mots” apareça frequentemente
em seus metapoemas que tentam definir a poesia. Eles expressam, no fundo, a
própria impressão de impossibilidade de definição que a poesia suscita. Esta
impressão aparece também, no texto de Valéry quando ele afirma: “entre Voix et
Pensée, entre la Pensée et la Voix, entre la Présence et l'Absence, oscille le
pendule poétique.”383 E o “pendule poétique” de Andrée Chedid oscila também
entre o presente e o ausente, entre o capturável e o invisível, entre o individual e o
coletivo, quando ela escreve o poema em prosa Visage Premier, do livro Poèmes
pour un texte:
382
REVERDY, Pierre. Op. cit. 2003, p. 114: “Faz-se necessário dizer que a poesia somente é
inteligível ao espírito e sensível ao coração sob a forma de uma certa combinação de palavras, na
qual ela se concretiza, se torna precisa, se fixa e assume uma realidade particular que a torna
incomparável a qualquer outra.”
383
VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002, p. 683 : “Entre Voz e
Pensamento, entre Pensamento e Voz, entre a Presença e a Ausência, oscila o pendulo poético.”
384
CHEDID, Andrée. Op. cit., 1991, p. 13:
“
Rosto primeiro
Com a paixão pelo concreto, através da prova da lucidez, reconhecer, renomear, celebrar
– sem renúncia – o Rosto. Porque ele é vida, ele é fonte. Porque ele é nós, na sua nudez, na raiz do
sensível; sem dúvida também na sua coerência e na sua significação.
Poesia, movimento sem final que nos assombra, como um ritmo, desde o começo dos
tempos. Caminho recomeçado, com suas passarelas onde se encontram sonho e cotidiano,
palpável-invisível, o instante e o longínquo. Poesia que constrói o olhar; faz surgir, por
fragmentos, do mundo exíguo, anedótico, de nossas existências, esse fundo do fundo de nós:
ROSTO PRIMEIRO.
‘O EU da poesia é para todos.’
A terra é. Nos a tocamos.
Neste poema, a autora compara a terra que se toca com a poesia suspensa
que só existe através do leitor. Reverdy afirma igualmente que é próprio do poema
deixar espaço para que o leitor crie suas próprias imagens. Para Valéry, assim
como para Chedid, o poeta tem a função de criar no leitor o “état poétique”, de
fazer sentir o que o poeta sente: “le JE de la poésie est à tous”.
Neste trecho do poema Démarche I, Chedid define uma poesia que deve
fundir sua realidade interior à realidade coletiva e ao próprio universo: “J'ai tenté
de joindre ma terre, à la terre”. A poesia é concebida, desta maneira, como o
espaço de encontro e de troca entre o eu do poeta e o eu de todos, como salienta
Judy Cochran no artigo Andrée Chedid, poète de présence et d'avenir: “le lieu-
poème étant pour cet auteur le lieu sacré où l'âme du poète se joint à l'âme de
l'univers.”386 Para tanto, o poeta de Chedid ganha um ar de profeta, de vidente, na
A poesia – evidência, mas que fica em suspenso – somente espera-nos, para tornar-se.”
385
CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987, p.21.
“Tentei juntar minha terra, a terra;
As palavras à trama do silêncio;
O alto mar, ao canto velado.
Le large, au chant voilé.
Tentei dizer o encontro possível,
Libertar o lugar da rede dos refúgios;
Curvar a palavra até dividi-la.”
386
COCHRAN, Judy (citado por GIRAULT, Jacques; LECHERBONNIER, Bernard (org.).
Andrée Chedid, Racines et liberté. Paris: L'harmattan, 2004, p. 110). “O lugar-poema é, para essa
autora, o lugar sagrado onde a alma do poeta se encontra com a alma do universo.”
medida em que seu olhar deve ser capaz de capturar o mundo: “Il faut au poète
une fenêtre sur l’inconnu, un espace que ne gouverne aucune structure rigide,
aucun dogme. Un regard qui embrasse de vastes et multiples horizons.”387
Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres.389
[...] j'ai besoin aussi que les mots chantent, j'essaie de trouver
une musicalité. C'est essentiel dans la poésie. Je suis également
attentive à ne pas brouiller le sens. Il faut à la fois dire quelque
chose, composer une musique, des mots justes, inventer aussi
de nouveaux moyens d'expression.390
387
CHEDID, Andrée. Au coeur du coeur. Paris: Librio, 2010, p. 26: “É necessário ao poeta
uma janela sobre o desconhecido, um espaço que não governe nenhuma estrutura rígida, nenhum
dogma. Um olhar que abarque vastos e múltiplos horizontes.”
388
VALÉRY, Paul. Op. Cit., 2002, p.683. “A sensação de união intima entre a palavra e
espírito.”
389
CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, p. 29. “Que alfabeto / Leva em conta
/ Nossas clarezas e também nossas sombras.”
390
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond,
2006, p. 67: “Necessito também que as palavras cantem, tento achar uma musicalidade. É essencial
na poesia. Sou igualmente atenta à não confundir o sentido. E necessário, ao mesmo tempo dizer
alguma coisa e compor uma musica, as palavras justas, inventar também novos meios de
expressão.”
em certos metapoemas, como em Poésie, de 1995, no qual ele é definido como
“l'humble outil” da poesia.
Épreuves du langage
II
Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres
Quel langage
Raboté par nos riens
Ameute le souffle
Quel désir
Devient cadences
Images métamorphoses
Quel cri
Se ramifie
Pour reverdir ailleurs
Quel poème
Fructifie
Pour se dire autrement?
III
IV
Que cherche-t-elle
Devant les grilles
De l'indicible
Dont nous sommes
Fleur et racine
Mais jamais ne posséderons?
Ainsi chemine
Le langage
De terre en terre
De voix en voix
Ainsi nous devance
Le poème
Plus tenace que la soif
Plus affranchi que le vent!391
Neste metapoema, são retomadas e aplicadas todas as definições, todas as
regras e todos os questionamentos presentes nos demais metapoemas da autora. A
poeta trabalha com o choque de palavras, contrastando imagens e fazendo
391
CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, pp. 29-33:
Provas da linguagem
I
II
Que alfabeto
Leva em conta
Nossas clarezas e também nossas sombras
Que linguagem
Polida por nossas ausências
Agita a respiração
Que desejo
Torna-se cadência
Imagens metamorfoses
Que grito
Ramifica-se
Para verdejar em outro lugar
Que poema
Frutifica
Para dizer-se de outra maneira?
III
IV
Assim caminha
A linguagem
De terra em terra
De voz em voz
Conclusão
Este trabalho espera, desta forma, ter conseguido revelar sua importância,
assim como a riqueza de noções e de imagens que formam a sua Arte Poética e
que a definem-se, de certa maneira, como a ilustração desta poética
contemporânea que rompe fronteiras geográficas em busca de noções universais.
Referências
AQUIEN, Michèle. Dictionnaire de poétique. Paris: LGF, 1997.
_____. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond, 2006.
PAZ, Octavio. El arco y la lira. Mexico D. F.: Fondo de cultura economica, 1986.
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi
de Cette émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.
UM GESTO POÉTICO:
A ALQUIMIA EM PARACELSO E RIMBAUD
Estevan de Negreiros KETZER
Rimbaud
Paracelso
Tabula smaragdina
392
BACHELARD, 2009; 1999; 1996.
393
JUNG, 1985.
A poesia que marca a segunda metade do século XIX na França vive ainda
sobre o primado da obra Charles Baudelaire, Flores do Mal, de 1857. Nesse livro,
Stéphane Mallarmé, em 1865, qualifica a obra citada como “mergulho cheio de
prazer nessas tão queridas páginas.”394 Mais importante do que a crítica da época,
mesmo com as considerações de Mallarmé, é enxergarmos em Baudelaire 395 o
precursor de um ambivalente movimento entre o “eterno e o transitório”. Sendo
assim, a arte na Modernidade teria ambos os caráteres que compõem em um só
escopo os opostos e o homem que daí surge terá de viver com essa insegurança de
ter de se deparar na unidade das coisas com as variedades. Isso fica mais evidente
quando analisamos alguns de seus poemas contidos em As Flores do Mal, como
no exemplo de A Beleza:
Que espécie de beleza é essa? Tão recolhida na sua dor que não é capaz de
sair de um mundo feito para si própria e que só tem serventia quando vista muito
de fora. É beleza que está contida na matéria? Então a beleza mesmo não fala, não
tem tanta vida ou graça. Sua serventia é muito diferente da concepção que
anteriormente se pensava saber dela. A poesia de Baudelaire fala pela primeira
vez de uma incompatibilidade entre sua forma e a vida humana. Mesmo na razão
mais arguta é possível que ela se perca, mas se perder logo voltará com nova
aparência.
394
BAUDELAIRE, 1995, p. 1003.
395
MALLARMÉ, 2011, p. 25.
396
BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
397
BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
Se aos poetas é permitido falar de tudo, esses pagarão com o preço de
crerem na palavra, só verão a si mesmos, aí reside a verdadeira beleza que está de
fora, na claridade de dentro, sem explicação qualquer. E aí creio que reside a
forma do estudo de Baudelaire pelo seu incipiente simbolismo: o símbolo interior
possui ressonância, e reverbera ante qualquer regime de igualdade ou eternidade.
Talvez o próprio autor já tenha se dado conta de que os costumes são impeditivos
para algo muito maior: a experiência moderna. Esta, uma vez na envergadura do
mundo, abre a incompletude humana para o mal-estar e a experiência inadvertida.
A obra começa a falar, quebrar o silêncio que possuía antes.
398
RIMBAUD, 2009, p. 39.
Alquimia e poesia: vertentes da imagética
399
JUNG, 1985, p. 59.
400
RIMBAUD, 2009, p. 40.
vidro, este uma invenção moderna, possui o ideal da união entre o Rei e a Rainha,
devaneio máximo que às “origens obscuras da vida.”401 Essa força poética das
imagens, algo que extrapola a mera acumulação do conhecimento em verdadeiro
ou falso. Para um alquimista o conhecimento está muito além disso. É conhecer
etapas psicológicas muito arcaicas, vestígios de impurezas que o enxofre não
dissolveu completamente.
401
Ibid, p. 75.
402
RIMBAUD, 2008, p. 65.
Essa crítica esta contida já nos problemas epistemológicos de Bachelard.
Em A formação do espírito científico a alquimia já coloca problemas básicos para
a formação de qualquer movimento: o conceitual é muito secundário, o desafio é
como poder descobrir a si mesmo diante de um laboratório. “[...] somos nós
mesmos, nossas surdas paixões, nossos desejos inconscientes, vamos estudar de
perto algumas fantasias referentes à matéria, tentar mostrar suas bases afetivas e o
dinamismo subjetivo.”403 Como será possível que as paixões particulares
influenciem em um laboratório? Bachelard investiga o posicionamento do
alquimista diante de sua experiência. Ele não reduz o problema a sua
impossibilidade técnica ou a inviabilidade dos resultados. Se assim ocorreu com o
experimento, o problema deve estar no próprio experimentador. A poesia não
estaria também aí inserida? Se um poema possui sua métrica bem feita, seu
encaixe e sonoridade, ainda assim ele pode não ser bom. Deve haver outra
substância, de disposição interna, para causar uma ruptura com a problemática do
mundo físico. Essa atribuição de autenticidade é extremamente simbólica para o
alquimista. “Como vai o alquimista purificar a matéria se não purificar primeiro a
própria alma?”404. Nesse trabalho em que o objeto e o sujeito estão plenamente
simbolizados parece ser necessário rever como a poética pode se fazer sentir
diante de um devaneio. Estranha zona que parece cruzar dois paradigmas muito
distintos: o do saber e o do sentir. Ambos já não podem mais dar conta da
epistemologia da modernidade, mas ambos ainda podem criar no humano, pois só
habitam o homem em sua alternativa imaginária complexa. Em a Psicanálise do
Fogo, Bachelard405 retoma esse valor do imaginário como alternativa a todo o
pensamento racional. “A ciência forma-se muito mais sobre uma experiência, e
são necessárias muitas experiências para se apagarem as brumas do sonho.” É o
ato subjetivo por excelência que pode possibilitar a descoberta do inédito. Assim é
o laboratório, um constante estar pronto sem nunca estar completamente. Não
deve ser essa a postura do poeta? “Nada de esperanças / Nem de recomeço.
403
BACHELARD, 1996, p. 57.
404
Ibid, p. 62.
405
BACHELARD, 1999, p. 34.
Ciência e paciência, / O suplício é certo.” 406 Então Rimbaud não nos dá garantia
nenhuma de sua ida ao inferno? Ao que tudo indica é dever do poeta fazer uma
visita lá e voltar para contar suas experiências.
Mesmo que o desejo não se faça frente ao mundo material, este fica na
espera de que a próxima forma não esteja restrita a explicações fáceis, concretas
na exatidão torpe de palavras vagas que são explicitadas pelo seu uso cotidiano.
Limitações de ordem prática se impõe e elas devem dar lugar as imagens
bachelarianas que não se transformam em pensamentos, exigem um devir da
palavra acesa, como o fogo a queimar o composto químico e dar forma nova a
este. Assim é o trabalho do poeta no delírio das palavras, assim é “[...] o
alquimista, tão logo termina uma destilação, recomeça-a misturando de novo o
elixir e na matéria morta, o puro e o impuro, para que o elixir aprenda, por assim
dizer, a libertar-se de sua terra.”408 Um poeta, nessa acepção, não é um homem
inspirado, gênio como a velha crítica costumava dizer, mas sim demiurgo do
inacabado, esforço de oleiro sobre a argila. Muito esforço e uma percepção
objetiva são os elementos alquímicos elementares. “O amor é a primeira hipótese
científica para a reprodução objetiva do fogo”, nos diz Bachelard 409 sobre algo
406
RIMBAUD, 2008, p. 75.
407
Ibid, p. 69.
408
BACHELARD, 2008, p. 73.
409
BACHELARD, 1999, p. 37.
indispensável ao poeta e ao alquimista e que na figura da sexualidade eleva o
pensamento aos seus mais altos extertores da fricção, os fogos que nascem do
contato.
A poética se reclina sobre uma psicanálise muito primitiva, ainda por vir
da alma, repleta de interações simbólicas. Amor e fogo. Estes já dão mostras de
um desenvolvimento em relação ao outro, outro da palavra incandescente, outro
que olha no horizonte descontínuo de algo muito maior do que si e desperta no
segredo fundamental: “Porque Eu é um outro”410. A célebre frase de Rimbaud
indica algo a mais da composição que precisa ser pensado: essa forma de
alteridade não se dá de outro modo se não na percepção de uma realidade interna
que desperta, a outridade da razão. Por isso o romantismo não foi bem entendido
segundo Rimbaud. O amor por si só é superficial, mas esse estranhamento inicial,
princípio máximo de toda a mímesis, é o ponto forte dos poemas de Baudelaire.
“Para mim é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento: eu a contemplo, eu a
escuto. Tiro uma nota ao violino: a sinfonia agita-se nas profundezas, ou ganha de
um salto a cena”411. A arte traz sempre algo a mais, o Outro do discurso, o
inconsciente freudiano aí também reside e dele se pode criar o que parece não ter
explicação. Esse Eu de Rimbaud já sabe ser o Eu do passado, o mesmo Eu do
Estado, concepção de que algo ficou no lugar para dar conta da identidade. O
poeta verifica um Eu que é transformação incessante quando desperto para essa
força inconsciente.
410
RIMBAUD, 2009, p. 38.
411
Ibid, p. 38.
412
PARACELSO, 1983.
própria razão de ser em nós mesmos.”413 Em seu método de analogia do
microcosmo com o mundo é que o homem pode compreender seu ser. O médico
suíço enxerga o horizonte de transformação do homem, todas as esferas que seu
corpo lhe pode proporcionar. Ele ruma para os fármacos e revolve em nomes
astrológicos as possibilidades da cura. São dos astros os conhecimentos de todos
os compostos. “O médico é como o fabricante de vidros. Ainda que tenha diante
de si um doente e diversos medicamentos à disposição falta-lhe a ciência e o
conhecimento das causas.”414 O médico não segue só seus instintos, assim como a
poeta não segue sua sensibilidade sem um estudo aprofundado das essências das
coisas – ou entidades como preferia Paracelso. “Através do exterior ele vê o
interior.”415 Haveria maior poética que imaginar o quanto o exterior mostra o
interior do homem? “Assim estamos no mesmo céu que se estende diante de
nossos olhos mas atrás dos olhos, por isso não o podemos ver.” 416 Talvez na voz
de Jung esteja a última grande compreensão dos mistérios sagrados que
configuraram as alternativas à ciência contemporânea propriamente dita. Esses
movimentos que a alquimia começa a unir entre a cabala hebraica, a filosofia
grega e a química árabe podem ser associados e trazer novamente a pergunta
sobre o que o saber pode proporcionar ao homem, se pode transformá-lo e
enriquecê-lo com algo surpreendente e que outrora não era conhecido. “Na
prática, isto significa que a filosofia se acha, de certa forma, oculta dentro da
matéria, podendo por isso também lá ser encontrada.”417 E a filosofia então passa a
ser algo que está tanto dentro quanto fora, tanto no mundo dos quatro elementos
quanto no mundo dos astros. Cabe a filosofia mostrar à matéria inferior sua
origem, podendo ser encontrada no homem, aquele que desbrava o interior das
matérias. A filosofia acaba possuindo propriedades mágicas de ligação entre os
elementos da matéria (terra e água) e os elementos astrais (fogo e ar).
413
Ibid, p. 56.
414
Ibid, p. 162.
415
PARACELSO, citado por JUNG, 1985, p. 18.
416
Ibid, p. 18.
417
Ibid, p. 19.
Mas o homem não deve esquecer que é o objeto que projeta para ele seu
sentido, demonstrando sua essência. E o que o homem pode compreender disso é
o seu próprio Archasius.418 Logo, a compreensão de Paracelso aqui se coloca
muito próxima da fenomenologia mais recente. Não será esta a mesma proposta
de Bachelard em seu A Poética do Devaneio, ao elevar o método fenomenológico
a entrar em contato com a consciência do próprio poeta? “A descrição dos
psicólogos pode, sem dúvida, fornecer documentos, mas o fenomenólogo deve
intervir para colocar esses documentos no eixo da intencionalidade.”419 Essa
consciência de criatividade não está solta e os esforços para que o devaneio seja
poético não podem restringir o homem a seus achados meramente psíquicos. Daí a
imaginação ser para o futuro, para o que ainda não se conhece e que o anterior,
mesmo com a restituição de seu sentido, não é capaz de dar conta. O sonho não
deveria ser encarado como o recalque do diurno, mas como a liberdade crescente
do enigma que traz à memória a vivacidade de um instante vivo.
422
Ibid, p. 21.
423
Ibid, p. 25.
424
Ibid, p. 27.
425
Ibid, p. 31.
O que será essa temporada no inferno? Não será esta também a mesma
proposta dos alquimistas diante dos afetos? Tentei pensar essa problemática
inaudita quando as expressões utópicas de fins do século XIX se mostram
infrutíferas para darem conta da fragmentação do sistema simbólico que
anteriormente reinava na arte. Diante do que antes era tão certo e consistente, em
Baudelaire habita dúvida diante da resposta apressada. Também nesse lugar de
flerte com o aparecimento da alquimia como um saber arte faz muito sentido,
segundo as concepções bachelarianas de uma estética da criação que se lance ao
devaneio infantil da descoberta do mundo – desafios estes que acompanham a
busca do conhecimento científico.
426
Embora Paracelso tenha desenvolvido estudos astrológicos, alquímicos, dava aulas em
alemão ao invés do latim e queimado tratados de importantes médicos consagrados como Avicena,
Galeno e Rhazes (JUNG, 1985) não se pode negar que apesar dessa aparente contestação da ordem
seu pensamento tenha gerado muitas implicações na filosofia até então metafísica. Paracelso
possuía uma concepção binarista entre corpo (sêmen) e alma (potência), por ele designadas ens
seminis e ens virtutis (PARACELSO, 1983). Faço questão de apontar esse fato, pois é exatamente
sobre esse binarismo que a filosofia do século XVI e XVII irão se reclinar, a partir de Descartes e
culminando com Spinoza, este último com uma forte tradição judaica como pano de fundo de um
sistema filosófico inovador e altamente cético.
Referências
Gilles Deleuze
427
Esse livro foi editado pela 1ª vez em 1996, foram impressos poucos exemplares e logo
esgotado, em 2008 foi reeditado pelas Éditions Kargo/L´Eclat, esta é versão que utilizo nesse
ensaio. La Jetée em francês significa plataforma, terraço, mas na trama do livro, um corredor
temporal por onde o protagonista se lança, viaja no tempo.
428
Marker (29 de julho de 1921 - 29 de julho de 2012) é um dos realizadores da Nouvelle
Vague, viveu 91 anos. Além de roteirista, montador e realizador audiovisual, foi assistente de
direção e co - dirigiu filmes, tem formação em filosofia, é fotógrafo, escreveu cerca de 10 livros
(romance,ensaios,poesia) e outros tipos de textos - um artista múltiplo. Sua obra audiovisual
compreende cerca de 50 filmes (curtas, médias e longas-metragens). Marker até recentemente
continuava inovando com sua estética para além do fílmico e do literário. Início de 2011 criou a
instalação Passengers que ficou em exposição até junho 2011 na Peter Blum Gallery em New
York. Para essa instalação Marker fotografou às escondidas pessoas desconhecidas/mulheres no
metrô de Paris, entre 2008 e 2010 e montou as imagens com algumas telas consagradas, como por
exemplo, a Mona Lisa de Da Vinci, construindo assim uma obra pictórica e fotográfica ao mesmo
tempo, evocando a memória das telas, atualizando-as no tempo presente, e mostrando como o
realismo devém uma ilusão. Sobre tal exposição, disse Marker: ”Cocteau costumava dizer que
durante a noite, as estátuas escapavam dos museus para ir as ruas. Durante a minha peregrinação
no Metrô de Paris, eu fiz esse encontro incomum. Modelos de pintores famosos ainda estavam
entre nós, e eu tive a sorte de tê-los sentados diante de mim.” Para esse artista atualizar o passado
era uma constante em seu trabalho, e é nessa montagem de imagens memoriais e do presente que
expressa seu modo de ver o mundo, misturando vida e arte.
imagens fotográficas, em preto e branco, que compõem tal romance, têm
caráter poético. Desejo perceber como o escritor utiliza da poeticidade em seu
conteúdo e forma, buscando entender o poético por meio dos elementos que
Marker faz uso e pela temática do tempo e da memória nesse romance,por
serem fundantes da trama. Tomo como ponto de partida o protagonista e suas
viagens no tempo.
Lembro que esse livro ainda não foi publicado no Brasil, não encontrei
nenhuma produção acadêmica ou de outro tipo sobre ele, logo, ouso com meus
conhecimentos e palavras estudar tal romance, apoiada por teóricos da literatura e
também com o pensar da filosofia, pois o romance tem um tom filosófico e
poético. A opção de escrever sobre La Jetée ciné-roman, se dá por ser um dos
objetos de estudos do meu projeto de dissertação de mestrado em curso no
PPGLET-UFRGS.429
431
Segundo DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 213, os perceptos não mais são percepções,
são independentes do estado daqueles que os experimentam e os afectos não mais são sentimentos
ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por ele.
simultânea vida que perpassa presente e passado. Um enlace de aprisionamento
e libertação.
432
BERGSON, 2006b.
todavia, de acordo Valéry433 (1939), o que faz sentido num gênero literário pode
não fazer em outro.
435
BERGSON, 2006c.
Esta é a história de um homem, marcado por uma imagem de
infância. A intensa cena que o perturba, e cujo significado
compreenderia apenas anos mais tarde, teve lugar num terraço
de Orly - aeroporto de Paris, alguns anos antes do início da III
Guerra Mundial. Em Orly, aos domingos, os pais levavam os
seus filhos para ver a partida dos aviões. Num domingo, a
criança sobre a qual contamos essa história, estava tentando
olhar através do sol forte, a paisagem do outro lado do terraço e
um rosto de uma mulher. Nada separa essas lembranças de
outros momentos, mais tarde é preciso que nos lembremos disso
quando veremos as marcas que delas ficaram. Esse rosto que ele
teria visto foi a única imagem em tempo de paz, que sobreviveu
a guerra. Pergunta-se durante muito tempo, se ele realmente a
teria visto ou teria inventado esse terno momento para romper
com momento de loucura que estaria por vir. 436
Penso que o livro de Marker também é poético, pelo modo que usa o
tempo e a memória na construção da trama de La Jetée para transmitir, conforme
Deleuze e Guattari437, um composto de afectos e perfectos - um bloco de
sensações, vivenciadas pelo protagonista; o poético pode ser evidenciado ainda
pela escolha estética ao mesmo tempo textual e visual de seu romance. Nesse
sentido, argumenta Paul Valéry, que os efeitos poéticos de um texto podem ser
percebidos, associados “às imagens, às ideias, às excitações do sentimento e da
436
Eis o texto original: “Ceci est l'histoire d'un homme marqué par une image d'enfance. La
scène qui le troubla par sa violence, et dont il ne devait comprendre que beaucoup plus tard la
signification, eut lieu sur la grande jetée d'Orly, quelques années avant la début de la Troisième
Guerre Mondiale. À Orly le dimanche, les parents mènent leurs enfants voir les avions en
partance. De ce dimanche, l’enfant dont nous racontons l’histoire devait revoir longtemps le soleil
fixe, le décor planté au bout de la jetée, et un visage de femme. Rien ne distingue les souvenirs des
autres moments : ce n’est que plus tard qu’ils se font reconnaître, à leurs cicatrices. Ce visage qui
devait être la seule image du temps de paix à traverser le temps de guerre, il se demanda longtemps
s'il l'avait vraiment vu, ou s'il avait créé ce moment de douceur pour étayer le moment de folie qui
allait venir.” (Toda tradução que consta nesse ensaio é minha).
437
DELEUZE e GUATTARI, 2007.
memória, aos impulsos virtuais e às formações de compreensão – em uma palavra,
tudo o que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso.”438
438
VALÉRY, 2007, p. 213.
439
Saliento que o livro tem um texto que é todo comentado por um único narrador.
440
RICOEUR, 2007.
441
BERGSON, 2006b, p. 31.
442
VALÉRY, 1939, p. 214.
evocando algo em sua memória? Ou estaria ele tomando a imagem pela realidade?
Sobre a memória, retomarei tal discussão mais à frente.
443
DELEUZE, 1990, p.185.
444
BERGSON, 2006a.
Sobre a personagem secundária, a Mulher cuja imagem ficou na memória
do protagonista, percebo sua imagem como imagem-lembrança, pois, segundo
Bergson445, uma imagem-lembrança refere-se ao conjunto de nossas imagens
passadas que nos permanece presente. A imagem dessa Mulher que o viajante no
tempo fixou em sua memória é evocada durante as viagens. Ele a reconhece
quando a encontra, mas a trama deixa em aberto se ela existiu ou foi uma criação
do protagonista. Além disso, o olhar de tal Mulher nas fotografias do livro, está
sempre carregado de poesia. Para além do que nele vê o protagonista, ou ficou
guardado em sua memória, resta a lembrança de um momento feliz, mas que ele
não sabe de imediato porque o afeta tanto.
445
BERGSON, 2006b.
Sobre o narrador do romance La Jetée é único, masculino - percebido pela
sua voz, onisciente, em 3ª pessoa e anônimo. Apresenta os eventos narrados
adotando uma postura aparentemente neutra, deixa o leitor livre para imaginar,
contestar e atribuir diversos sentidos, fazer escolhas, e assim vai comentando as
ações do protagonista. É pela palavra escrita, de sua voz, que tomamos
conhecimento da trama de La Jetée. Portanto, é um narrador heterodiegético446 e o
nível da narração é extradiegético: alguém que está fora da história, mas dela tudo
sabe e comenta.
446
O narrador não participa da história, conceito proposto por GENETTE, 1972.
447
DUBOIS, 2006.
Porém uma memória, como argumenta Deleuze448 ,que não só relata a narrativa,
mas que tem também uma função de futuro, que retém o que passa, para dele fazer
o objeto porvir de outra memória.
Argumenta Bergson:
448
DELEUZE, 1985.
449
RICOEUR, 2007.
450
BERGSON, 2006b, p.158.
451
GENETTE, 1972.
real, e são descritos pelo narrador os seguintes lugares dessa cidade: laboratório de
experiências, acampamento e galerias subterrâneas, plataforma/terraço do
aeroporto, museu, ruas, avenidas e jardins. Todos os eventos se passam em Paris,
antes da guerra, durante e depois da guerra. As mudanças observadas nestes
espaços nos dão a noção do transcorrer do tempo. Na medida em que o
protagonista se desloca no tempo, é possível observar as alterações ocorridas no
espaço, nos lugares que transita em momentos distintos.
Por exemplo, em sua viagem final no tempo, o protagonista foi seguido até
o terraço do aeroporto por um homem que estivera com ele no acampamento
subterrâneo, e, nesse ato, por meio das imagens, é possível perceber seu
deslocamento. Ele vai em direção a Mulher “[...] quando ele reconhece o homem
que o havia seguido desde o acampamento subterrâneo, e compreende que não
podia escapar do tempo.”452 Desse modo, surge outro questionamento: por que
fora o protagonista assassinado pelo chefe do laboratório que comandava as
experiências das viagens no tempo? Talvez porque o Homem viajante recusava o
futuro, temia um tempo que dele nada sabia.
452
MARKER, Chris. La Jetée ciné-roman. Paris: Editions de l’Éclat, 2008.
Comentei algo sobre a guerra porque também não posso ignorar o contexto
da França, o qual Marker cria La Jetée em 1962. Nessa época, o país ainda se
recuperava da 2ª guerra mundial, ocorrida entre 1939-1945 da qual a Alemanha
saíra vencedora depois da ocupação. As marcas/lembranças da guerra de certa
forma são atualizadas na trama, porém, não significa que o escritor queira atestar a
verossimilhança dos fatos abordados em seu romance. Essas lembranças
atualizaram-se, talvez, porque o protagonista é um sobrevivente de guerra e
vivenciou o momento de destruição parcial de Paris. Temeria ele reviver esse
passado de guerra? Ou estaria ajustando as contas com ele?
453
BERGSON, 2006a, p. 57.
454
DELEUZE, 2008, p. 46.
Quanto a essa memória também coexistente, que se contrai e dilata,
comenta Bergson:
455
BERGSON, 2006b, p. 266.
456 BENJAMIN, 1994, p. 212.
tempo por diferentes lugares e tempos, pondo em evidência as contradições desse
combate temporal.
457
KUNDERA, 2009.
E algum tempo após, veio a destruição de Paris […] O Homem
sobre o qual contamos essa história foi eleito entre mil, devido
sua fixação com uma imagem do passado […] No início, nada
mais se retira do tempo presente e de seus tormentos […] Ao
décimo dia da experiência, começam a surgir imagens, como
confissões. Uma manhã do tempo de paz, um quarto do tempo
de paz […] Os cientistas que conduzem a experiência
intensificam seu controle. Enviam-no de novo sobre o mesmo
rastro. O tempo retrocede de novo, ele retorna àquele momento
passado. Desta vez aproxima-se dela, fala com ela. Ela acolhe-o
sem surpresas. Eles de nada recordam, nem têm planos. O
tempo escorre sem dificuldade entorno deles. 458
Outro exemplo do livro, desse tempo duração, que dura e muda: “Mais
tarde, ele compreendeu que tinha visto a morte de Homem.” 459 Morto por um dos
homens do laboratório que coordenava as viagens no tempo, o protagonista
descobre que esse momento fixado em sua memória era o de sua própria morte,
em uma de suas vidas. Talvez a execução do protagonista possa significar que ele
é assombrado por suas memórias e pelo tempo; tempo que dele é impossível
escapar, tempo que flui sem cessar até a morte. Essas e todas as vivências do
protagonista na trama se dão, num tempo coexistente.
458
MARKER, Chris. Op. cit., 2008.
459
Ibid.
Não pretendo chegar a uma decisão se essa imagem da Mulher fixada na
memória do protagonista existiu ou não, mas do ponto de vista filosófico, pode ser
pensada com base no pensamento de Bergson460 que, segundo ele, consciência
significa principalmente memória, enquanto duração é consciência e é também
memória: uma atenção voltada para o mundo interior, que conserva e acumula o
passado no presente e antecipa o futuro. A consciência então ligaria o que foi com
o que será, passado e futuro, agindo assim sobre as dimensões do tempo. Não é
por acaso que o protagonista guarda tal recordação e a evoca no tempo presente e,
quando vai para o futuro, escolhe retornar ao passado, como se não quisesse
esquecer, mas conservar tal imagem da Mulher mesmo sem saber o motivo dessa
marcante lembrança, ou se ela foi mesmo uma criação sua. Acrescenta Bergson:
460
BERGSON, 1979.
461
Ibid, p. 75.
perceptos que tensionam a vida do protagonista nos diferentes e simultâneos
tempos que ele vive e percorre.
Referências
CHRIS MARKER. Notes from the Era of Imperfect Memory. Disponível em:
<http://www.chrismarker.org>. Acesso em: 30 nov. 2011.
_____. A literatura e a vida. Em: Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1993.