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TESSITURAS DO IMAGINÁRIO POÉTICO:

ENSAIOS DE POESIA MODERNA


Ana Maria Lisboa de Mello

Anna Faedrich Martins

Estevan de Negreiros Ketzer

(Organizadores)

TESSITURAS DO IMAGINÁRIO POÉTICO:


ENSAIOS DE POESIA MODERNA

Porto Alegre

2012
AUTORES

Ana Karina SILVA – Mestre em Teoria da Literatura do Programa de Pós-


Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Ana Paula KLAUCK – Doutoranda em Teoria da Literatura PUCRS. Bolsista


Capes. Professora da área de Letras.

Ana Maria Lisboa de MELLO –

Ângela Maria Garcia dos Santos SILVA – Doutoranda no Programa de Pós-


Graduação em Letras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e
bolsista CNPq.

Anna Faedrich MARTINS – Doutoranda em Letras – Teoria da Literatura – na


PUCRS, bolsista CNPq. Doutorado-sanduíche na Université Sorbonne-Nouvelle–
Paris 3 (fev-jun/2012), com bolsa Capes.

Antônio Donizeti PIRES – Professor de Literatura Brasileira na


UNESP/Araraquara, SP, onde atua na Graduação e na Pós-Graduação.

Augusto Machado PAIM – Jornalista, escritor e tradutor. Mestrando em Letras –


Escrita Criativa –na PUCRS e bolsista Capes II.

Camila Canali DOVAL – Doutoranda em Teoria da Literatura na PUCRS e


bolsista CNPq.

Cibele Beirith Figueiredo FREITAS – Doutoranda em Letras, Teoria da


Literatura, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Daniela Lindenmeyer KUNZE – Professora de francês e Mestre em Didática do


Ensino de Francês Língua Estrangeira. Doutoranda em Letras – Teoria da
Literatura – na PUCRS e bolsista Capes II.

Estevan de Negreiros KETZER – Psicólogo pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestrando Programa de Pós-Graduação
em Letras, na área de Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Gustavo Suertegaray SALDIVAR – É Bacharel em Letras pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestrando em Teoria da Literatura pela
Pontifícia Univesidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Lídia Aparecida Rodrigues Silva MELLO – Mestranda em Estudos de


Literatura – Literatura Comparada no PPGLetras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Especialista em Cinema pela UNISINOS e Graduada em
Comunicação pela PUC MG. Roteirista e realizadora audiovisual menor.

Lina Tâmega PEIXOTO – Poeta e crítica de Literatura. Ex-professora da UnB.

Luís Roberto de Souza JÚNIOR – Mestrando em Letras/PUCRS, bolsista


CNPq.

Márcia Helena S. BARBOSA – Doutora em Letras – Teoria da Literatura e


Professora do PPGL-UPF.

Moema Vilela PEREIRA – Jornalista e escritora. É mestre em Estudos de


Linguagens – Linguística e Semiótica pela UFMS e mestranda em Letras –
Escrita Criativa pela PUCRS, este último como bolsista do CNPQ.

Roberto Sarmento LIMA – Professor Associado 3 da Universidade Federal de


Alagoas, doutor em Literatura Brasileira e integrante da área Estudos Literários,
na linha de pesquisa Literatura e História, do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística (PPGLL), da Faculdade de Letras (Fale), da Ufal.
SUMÁRIO

Prefácio
Ana Maria Lisboa de MELLO

I. ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS

Contenção de despesas na casa do Eu lírico contemporâneo


Roberto Sarmento LIMA

Do quadrinho à poesia: desafios na tradução do idioma alemão para o


português
Augusto Machado PAIM

A arte poética e a metáfora


Cibele Beirith Figueiredo de FREITAS

Poesia e gestualidade: campos privilegiados do simbólico na Literatura


Moema Vilela PEREIRA

II. POESIA MODERNA BRASILEIRA

As margens poéticas de Cataguases no imaginário das águas


Lina Tâmega PEIXOTO

Rastros de Orfeu na poesia brasileira moderna


Antônio Donizeti PIRES

Poética da pedra: a linguagem da dureza na poesia de João Cabral De Melo


Neto
Ana Karina SILVA
Poesia em tempos de guerra: a destruição, o desespero e a guerra urbana em
“Morte do Leiteiro”
Ana Paula KLAUCK

“Com o Russo em Berlim”: a marcha final


Ângela Maria Garcia dos Santos SILVA

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade: poesia e esperança em


tempo de guerra
Anna Faedrich MARTINS

As coisas sofredoras Mar Absoluto adentro


Camila Canali DOVAL

A lírica moderna e a antilírica de João Cabral de Melo Neto


Gustavo Suertegaray SALDIVAR

Bandeira na penumbra – quando o Poeta ainda não era moderno


Luís Roberto de Souza JÚNIOR

III. MANIFESTAÇÕES DA POESIA EUROPEIA

Despersonalização e criação poética em Sophia Andresen


Márcia Helena S. BARBOSA

Andrée Chedid e a metapoesia: reflexões sobre a criação poética


Daniela Lindenmeyer KUNZE

Um gesto poético: a alquimia em Paracelso e Rimbaud


Estevan de Negreiros KETZER

Tempo, memória e a poeticidade de La Jetée Ciné-Roman de Chris Marker


Lídia Aparecida Rodrigues Silva MELLO
PREFÁCIO
I. ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS
CONTENÇÃO DE DESPESAS NA CASA DO EU LÍRICO
CONTEMPORÂNEO1

Roberto Sarmento LIMA2


Universidade Federal de Alagoas

Se já era uma aventura insatisfatória e geralmente malsucedida querer


definir o poético em bases mais estáveis e sólidas, ou até mesmo provisórias, o
que não se dirá hoje dessa presunção, quando a heterogeneidade do discurso
literário se torna cada vez mais visível e presente. Desde os românticos,
preocupados com o estatuto da literatura na nova era que então se iniciava – era
pós-clássica, era moderna, como se queira dizer –, as teorias viram nascer um rol
extenso de conceitos e definições. Os conceitos foram se multiplicando, até
desembocar na teoria literária contemporânea, dispersa ainda mais em juízos por
vezes contraditórios e prematuramente envelhecidos, mal acabam de nascer. A
velocidade do momento atual, ajudada por um ímpeto comercial e tecnológico que
leva à substituição de uma mercadoria por outra em tempo recorde, faz que tudo
pareça, de repente, antigo e inviável, prestes a ser desprezado por sua inadequação
à sensibilidade e ao gosto de uma geração de pessoas que nem chegaram a
acostumar-se com a presença daquele produto. O que acontece com as coisas
materiais acontece com os bens culturais, no mesmo ritmo e desenvolvimento
temporal.

A relativização dos espaços

A consequência inevitável disso tudo é a instalação de um profundo


relativismo entre homens, valores e coisas. A velocidade do mundo e a
necessidade urgente de serem ajustados os polos de definição da realidade são tão
1
Palestra apresentada em Porto Alegre, no dia 22 de setembro de 2011 na terceira edição
das Jornadas de Poesia Moderna/Criação Poética, organizada pelo Núcleo de Estudos sobre
Imaginário e Literatura, do Programa de Pós-Graduação em Letras, da PUCRS.
2
Professor Associado 3 da Universidade Federal de Alagoas, doutor em Literatura
Brasileira e integrante da área Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura e História, do
Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL), da Faculdade de Letras (Fale), da
Ufal.
grandes e prementes que aquilo que, até umas horas atrás, era novo passa, de
súbito, a ser velho; igualmente, o que era o contrário de alguma coisa tida por sua
rival já não é, torna-se seu mais íntimo comparsa e cúmplice.

Por isso, no poema “O revólver do meu sonho”, de Waly Salomão, não é


inoportuno nem extravagante perguntar, como o faz o seu eu lírico,

Você por acaso esqueceu a buzina do vapor barato?


Apagou a fita daquela canção
A casa do sol nascente?
Enfiou a tesoura na transação?
Passou a gilete na ligação?
Meteu a borracha no traço de união
Oriente-Ocidente?

Já esqueceu, leitor, tudo isso? Lembra-se ainda de fatos que mal


envelheceram e que talvez nem tenham ainda se esvaído no túnel do tempo? Por
isso se pode perguntar: há lugar ainda para rememorações pessoais? Por exemplo,
lembranças da infância, como as que teve o eu lírico de “Profundamente”, de
Manuel Bandeira: “Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de
São João / Porque adormeci [...] Onde estão todos eles?”. O auge desse processo
veloz de apagamento de si e da realidade aparece nos versos de Waly Salomão,
precisamente em “Meteu a borracha no traço de união / Oriente-Ocidente?”.
Como diz Marco Polo, o narrador de uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino,
“os espaços se misturaram”. O que leva ao esquecimento dos espaços de origem.
Ou ao descaso, desatenção, desprezo.

Na literatura brasileira, um ancestral notável figurativo desse estado em


que os opostos se unem e mutuamente se neutralizam – mais por desconsideração
do que propriamente por outro motivo –, sem, no entanto, perder a sua
individualidade ontológica, se encontra em Memórias póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis. Evocando a bem inspirada leitura que dele fez Roberto
Schwarz no ensaio “Complexo, moderno, nacional, e negativo” (1985),
especialmente a respeito do segundo capítulo desse romance, “O emplasto”, os
polos contrários “filantropia” e “lucro capitalista” são o que aparece,
conjugadamente, no lado da medalha que se ostenta para o público, já que “sede
de fama” fica no lado da medalha que os outros não podem ver, a verdadeira
motivação da personagem. Pela lógica do romance oitocentista europeu, o comum
era uma personagem fingir que era filantropa, ocultar o seu verdadeiro interesse,
que é buscar o lucro, por debaixo dos panos; mas, em Machado, essa não é uma
oposição válida nem absoluta, senão relativa, porque uma coisa pode ficar no
lugar da outra sem que a substituição cause estranheza, já que, como diz Schwarz,
“filantropia e lucro não estão em campos opostos”, e sim “de mãos dadas, e na
mesma face da medalha”3:

Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma


virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e
lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da
glória.

Da mesma forma que, em Waly Salomão, se exorta para apagar o traço de


união no par Ocidente-Oriente e, em Calvino, os espaços das cidades se misturam
totalmente, ocorre que esse nosso, digamos assim, primeiro pós-moderno, 4o tal
Brás Cubas, já dava mostras de sensibilidade guiada pela noção de mercado e de
profunda relativização de valores imposta por um mundo em regime de voraz
transitoriedade, muito mais do que o poderiam supor os modernos de então. O
que, na verdade, Brás queria, por presunção e vaidade – não por dinheiro ou por
amor ao próximo –, era ser lembrado pelo mercado, ver seu nome divulgado nas
prateleiras das farmácias com o invento “emplasto Brás Cubas”, que lhe traria

3
P. 117.
4
Uso, aqui, o conceito meta-histórico de pós-moderno de acordo com a definição dada por
Umberto Eco (1985, p. 55): “o pós-moderno não é uma tendência que possa ser delimitada
cronologicamente, mas uma categoria espiritual, melhor dizendo, um Kunstwollen, um modo de
operar. Podemos dizer que cada época tem seu próprio pós-moderno, assim como cada época teria
seu próprio maneirismo”.
fama,5 ainda que volátil, até porque, como ele mesmo reconhece, não
transmitimos a ninguém nosso legado.

Leitura na tela do computador

Numa realidade como esta que se apresenta já não faz sentido falar de
continuidade e finalidade, projeto e utopia, relações afetivas e humanitárias. De
certo modo, esses são sintomas da literatura moderna, pois é o que se vê também,
sem maiores esforços de compreensão, em Macunaíma (para quem não há
escapatória e não se pode levar nada a sério, pois a personagem não tinha moral
consolidada, nem regras a cumprir). No entanto, outro fator, o plus pós-moderno,
se aplica, hoje, a tudo isso: a certeza de que não há mais o que preservar, já que
tudo se extingue mal raia o dia. A velocidade do mundo midiático somada ao
ritmo do tempo industrial, que substitui todas as mercadorias que não foram feitas
mais para durar, adquire proporções inimagináveis. Se em Macunaíma a regra era
aguardar os frutos da esperteza e em Brás Cubas a pretensão era vivenciar o
contínuo esgotamento das forças em cada conquista realizada, na literatura
contemporânea rompem definitivamente laços o sujeito e o objeto por uma
espécie de neutralização de algum tipo de ligação entre eles. O mundo vira
imageria que mal se costura, que mal relaciona os seres que se distribuem diante
do campo de visão do observador. Fato que é mais dramático no poema lírico do
que mesmo na narrativa, porque ao menos na narrativa há mal e mal uma história
a ser contada, ainda que não se perceba o fundamento por que as personagens
tecem algum tipo de relacionamento – o que teria motivado o encontro, por
exemplo, no romance Elogio da mentira, de Patrícia Melo, das personagens José
Guber e Fúlvia, aparentemente unidos pelo propósito de compor uma novela

5
Outro romance brasileiro do século XIX que problematiza a divulgação da imagem do
indivíduo, como configuração estética da ideia –ainda que prematura –de ação da propaganda e da
mídia na sociedade capitalista, numa espécie de antessala da literatura que hoje se produz,
antenada com o mercado, é O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, em que Aristarco se vê a si mesmo
como face de um anúncio publicitário: “Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao
homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu!
Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos calmos, soberanos, eram de um rei [...] A
irradiação do reclame alongava de tal modo os tentáculos através do país [...]” (Cf. capítulo I desse
romance).
policial que ele, como escritor, tenta escrever, depois (ou ao mesmo tempo) por
uma necessidade dela, mal explicada, de matar o marido e querer para isso a ajuda
do amante e depois (ou também) por quererem fixar um caso amoroso típico de
cúmplices do mal. Fracassam ambos, porém, nesse intento, até o leitor notar que
nenhuma dessas ações é legítima nem tem substância e, por isso, nada na história
pode ser compreendido como um objetivo a ser cumprido, a não ser para que o
romance exista como discurso e artefato, se realize como tal e seja vendido,
comprado e lido em seguida.

No poema lírico contemporâneo, a situação parece ser mais chocante


ainda, porque – à falta de um disfarce, ou do pretexto de uma história para narrar
–, em breve espaço sintagmático, imitando uma tela de TV ou de monitor de
computador, tudo não passa de uma rede de coisas e palavras que não se
completam nem se integram, talvez por inexistir algum link que faça o texto se
definitivizar. Como se se sugerisse que, para ler o poema, seria preciso o auxílio
de um mouse, e o leitor, assim, fosse capaz de estabelecer as conexões que
pretende, sem outra regra a dirigi-lo.

Continua o eu lírico de Waly Salomão:

Barato era tudo e muito mais


As curvas da estrada de Santos
O motor fervia, o carro rugia, meu amor
O coração batia tão veloz
Mas o mundo corria muito mais veloz que nós

É preciso, como no romance policial contemporâneo, matar por matar,


viver por viver, sentir por sentir, sem que os fatos narrados mostrem sua relação
necessária. O que uniria, então, “as curvas da estrada de Santos”, título de uma
canção de Roberto Carlos, ao que foi dito nos versos anteriores e é dito nos versos
posteriores do poema “O revólver do meu sonho”, senão mera aparência de
coordenação que simula pôr um dique momentâneo ao caos e às relações súbitas
estabelecidas entre coisas que, enfim, não se coordenam? Os espaços do poema
vão e vêm, nas linhas virtuais vertical e horizontal da página, por links
inesperados, como se a escrita, e provavelmente a sua leitura, se dessem numa tela
de computador – recurso que, aliás, é lembrado mais adiante, como a sinalizar, por
autorreferenciação, esse modo de organização do texto:

Interfone, blitz, joaninha, computador


O futuro comum de hoje em dia
Que eu, cigana, já pressentia

O zapping do poema

As palavras circulam no espaço da página como se movidas pelo zapping


do controle remoto. Não há nisso conexões seguras. O eu lírico aparentemente
coordena coisas; o leitor as hierarquiza a seu modo para ver nelas algum sentido
consumível. E o interessante disso tudo é que quanto mais as imagens se
acumulam menos têm a dizer. A realidade se mede por alto grau de quantidade
imagética e baixo grau de informação, como sugere Beatriz Sarlo no estudo sobre
a função do zapping no manejo do aparelho de TV6. Há, antes, um estímulo – no
qual, entretanto, não se põe fé – para que tão somente haja um motivo para
escrever o texto, numa espécie de palavra puxa palavra, sem direção nem
finalidade. Sobre essa atmosfera verificada na narrativa pós-moderna, Leyla
Perrone-Moisés (2000) disse que a esse tipo de realidade produzida pelo texto se
poderia aplicar a expressão francesa fuiteen avant, fuga desordenada para frente,
sem saber exatamente onde isso vai dar7. Sensação vivida em Macunaíma e Brás
Cubas, parentes próximos– mas não por Rubião, em Quincas Borba, nem por
Policarpo Quaresma, em Triste fim de Policarpo Quaresma. A autodestruição,
ainda que involuntária, destas duas últimas personagens citadas passa tanto por
estímulos internos (desejo de vivenciar um amor ainda que proibido, num caso, e
sentir-se paranoicamente brasileiro no país em que nasceu, no outro) quanto por
estímulos externos (em Machado de Assis, atingir a plenitude amorosa e vivencial
no ser amado, a que o dinheiro sempre ajuda, e, em Lima Barreto, pôr o Brasil no
eixo de um projeto aloprado de nacionalização por via da absorção irrefletida da
cultura indígena autóctone, tida por primacial). Nos dois casos, as personagens
6
2006, p. 57.
7
P. 250.
miram-se em espelhos que não dão certo. Como se sabe, fracassam; e fracassam
sobretudo porque enlouqueceram, prova do conflito estabelecido entre a
expectativa pessoal e o duro enfrentamento da realidade social adversa, num
espelhismo às avessas, visto que, nessas personagens, repousava, e era acalentado,
um acerto de contas final, ou consigo mesmo (Rubião), ou com o seu país
(Policarpo Quaresma).

Já na narrativa pós-moderna isso nem é cogitado, porque ninguém sabe por


que está ali, fazendo o quê e para quê. A vida, nesse caso, desenrola-se como o ato
de fazer o zapping diante do aparelho televisivo. E o eu lírico de Waly Salomão,
nesse contexto, de controle remoto na mão, foge para frente, sempre e sempre,
sem saber para onde vai, em regime de completa dispersão:

O revólver dos Beatles disparava nas paradas


Me assustava, me encantava e movia
E eu ia, e eu ia, e eu ia
Ricocheteava
Arembepe, Woodstock, Pier, verão na Bahia

Na literatura contemporânea, a demonstração desse estado parece não ter


efeitos agônicos; não conduz à loucura por causa de qualquer tipo de frustração,
como foi o caso de Rubião e de Policarpo Quaresma; nem se procura, por algum
meio, por menos dramático que seja, resolver qualquer impasse. Não há impasses,
aliás; há movimentos para a esquerda e para a direita, para frente e para trás, mas
o alvo é desconhecido, porque também não existem buscas definidas e
determinadas de coisa nenhuma. Não só porque tudo – pessoas, coisas,
sentimentos e paisagens – se conjuga, mas sem operar uma síntese, mas também
porque não se criam expectativas. O futuro, se há, é um painel branco em que
nada se escreve, ou no qual qualquer coisa pode ser reescrita segundo o modelo do
“copiar-colar” da edição de texto no computador.

Inversão da posição entre as palavras e as coisas

Estilisticamente, a configuração dessa atmosfera fragmentada apresenta-se


em linguagem rarefeita, diluída, com conexões frágeis, ralas, esgarçadas, como
pretendi mostrar até agora. Um minimalismo atinge a sintaxe e a própria
impressão do mundo sugerido à frente do leitor. Chamam atenção, nesse circuito,
não apenas a cisão entre as palavras, os seres e as coisas que se relacionam
intimamente – uma das acusações feitas à modernidade, culpada por fragmentar o
que não deveria ser fragmentado –, como também, mais do que isso, uma
antecipação do efeito em relação a uma possível causa, distanciados ambos no
tempo, como se um não precisasse do outro para acontecer, numa completa
distorção temporal e ontológica. Assim como o real se cria no texto, não sendo
mais visto como fonte do texto, conforme o presumiu a teoria da mimese, a poesia
confirma o que já se sabe que ocorre no mundo da propaganda e da difusão dos
bens materiais postos no mercado. Cria-se o desejo antes mesmo de surgir a
necessidade, invertendo-se a relação entre palavras, coisas e sujeitos. O efeito vem
antes da causa, como se percebe no refrão do poema “O revólver do meu sonho”:

O revólver do meu sonho atirava


Atirava no que via
Mas não matava o desejo do que ainda não existia

Traduz-se assim a mais brutal separação entre o mundo da qualidade e o


mundo da quantidade, mundos que abrigam as coisas no âmbito social. Disfarçada
em “sonho” – o símbolo mais bem acabado do polo da subjetividade, segundo um
dos topoi sobejamente conhecidos da literatura –, a qualidade (representada pelo
“desejo”) se separa do que há de fato (“do que ainda não existia”),
correspondendo tal gesto à divisão do trabalho, a uma artificialização que só
ocorre numa “práxis fetichizada”, como salienta, nesses termos, Karel Kosík em
seu Dialética do concreto (1976). Esse ardil – que existe na linguagem e,
evidentemente, nas relações humanas que não se deixam especular por uma visada
mais penetrante da realidade, sob pena de pôr em causa a manutenção ideológica
dessa mesma realidade – é levado às últimas consequências na poética
contemporânea, bem além da mirada moderna. Tudo para garantir a percepção
superficial dos problemas, ou, melhor ainda, a sua não percepção, logo agora que
o capitalismo se ergue à condição de sistema econômico-produtivo universal sem
encontrar adversários à altura que de algum modo o possam colocar em perigo
rumo a uma desestabilização. Se essa mesma interpretação puder ser submetida a
um ponto de vista psicanalítico, pode-se até prever que houve uma economia
libidinal – não fazer sentir –, para que as energias físicas e mentais não conheçam
a exaustão. O sistema pensa por nós, assim como os brinquedos eletrônicos
brincam pelas crianças. Ponto alto para o mercado, que, como diz Sarlo 8,
substituiu as religiões, a política, as ideologias, os espaços comunitários.
Precisamos de algum modo economizar para gastar mais adiante, racionalizando
as despesas; e, fazendo-nos consumidores, criamos uma identidade global e
globalizada, homogeneizadora, perversamente e aparentemente diluidora das
diferenças.

Visto que o sonho, segundo a explicação freudiana, corresponde a


processos primários do aparelho psíquico onde coisas e imagens se intercambiam
ou se fundem – semelhantemente, diríamos, ao menos de modo provisório, que
esse é também o processo da realização literária, apesar de consciente –, o que
ocorre no poema contemporâneo é a disjunção entre o ser e o desejo, que,
particularmente, estimularia o estado onírico. Pois “o revólver do meu sonho”
atira e mata o alvo, qualquer alvo, desrealiza energias e focos de realidade,
promove a separação entre as partes intimamente afetadas, mas não mata o desejo,
o oposto da necessidade. Entretanto, o que ainda não existe – o campo da
necessidade – se mantém intacto, justamente porque não existe. Nessa relação
invertida de causa e efeito, põe-se em evidência o produto do mercado, que, ao
invés de vir de uma necessidade humana, praticamente a cria. A pensar desse
modo, preserva-se, assim, um princípio econômico fundamental, o do fetichismo
da mercadoria, que continua a existir, mas dessa vez de modo mais autônomo
ainda, porque agora o mundo da necessidade e o do desejo não se comunicam em
hipótese alguma.

Como não pretendo nem uma análise economicista nem muito menos
psicanalítica da poesia contemporânea, mas apenas lembrar possibilidades de
enquadramento teórico do texto, quero dizer apenas que cada vez mais ocorre o

8
2006, p. 28-29.
distanciamento da qualidade das coisas, seja pela exacerbação do fetichismo da
mercadoria, seja pelos danos que isso pode trazer à relação do homem com o
mundo, afetando consideravelmente a maneira de compreender a própria realidade
que habita. Para a maximização do sistema, é preciso que cada vez mais também
se embaralhem os dados que o compõem, porque quanto mais diluídos e dispersos
forem menos se tem noção do que representa socialmente o sistema na vida do
indivíduo.9

Observando da plateia

Waly Salomão diz isso em termos de obliteração certa e inadiável:


dispersão é esquecimento; é recusa de um posicionamento mais firme ou vontade
de interferir nas coisas; é, antes de tudo, ênfase dada à observação em detrimento
da ação, como quem da plateia, à revelia de si mesmo, vê o mundo mexer-se.
Quando chamado a agir, é simplesmente lembrado de que já esqueceu. É natural
que é preciso criar a ilusão de que o sujeito age, mas no ritmo da indiferença e
descompromisso com a realidade mais próxima (“esqueceu”, “apagou”, enfiou a
tesoura”, “passou a gilete”, “meteu a borracha”), tudo em nome da
impossibilidade de deixar rastros, porque os objetos e os seres se renovam
continuamente, estimulando a produção desenfreada dos bens, ainda que não se
precise deles. O que deve ser esquecido e posto de lado é a canção, a transação, a
ligação e o traço de união que cria relações entre os para sempre opostos Oriente e
Ocidente e entre outros pares antinômicos também (relação homem-mulher, pai-
filho, adulto-criança, macho-fêmea), desestabilizando crenças e dicotomias
consideradas já sedimentadas. Na velocidade em que vivemos, a perda das
qualidades sensíveis (pelo menos daquelas em que tanto se acreditava) é altamente
operacional e conveniente à impessoalidade do sistema, porque já não se percebe

9
Não seria isso o mesmo que Terry Eagleton acusa ao tratar dos estudos linguísticos e
literários na contemporaneidade? Diz ele: “Se o estruturalismo separou o signo do referente, esse
pensamento – frequentemente mencionado como ‘pós-estruturalismo’ – dá um passo além: separa
o significante do significado” (EAGLETON, [198-]. p. 138).
o liame entre elas, não se sente falta disso ou daquilo, porque tudo é mesmo
volátil e contingente. Alerta o poeta:

Passado, futuro, presente


Fundido e confundido na minha mente
A todo vapor

Não há tempo nem dinheiro a perder, nem energias vitais, pois o sistema
precisa continuar vigendo e funcionando em ritmo freneticamente acelerado. A
perspectiva não é a de quem tem noção clara e distinta das coisas, fato que ajuda a
não questionar o rumo da sociedade globalizada e dos muros que ela derruba,
fundindo espaços antes discerníveis. Algo parecido com o que disse Caetano
Veloso no poema “O trem das cores”, cuja perspectiva clássica se revela
completamente arruinada em favor de uma visão fragmentária, a ponto de os
pigmentos das cores escaparem dos objetos que colorem:

As casas tão verde e rosa


Que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela

Quem, aí, vê o quê, nesse trem das cores? O adjetivo “verde”, o único que
poderia se flexionar no plural nessa sequência, não concorda com “casas” porque
cor e objeto já se dispersaram um do outro. E de onde, de que lugar, é que se vê?
Aquele que está situado do lado de fora do trem ou quem está do lado de dentro?
As casas vão passando – parece ser a ilusão de quem está sentado, viajando, no
interior do trem – mas são as casas que nos veem passar. Enquanto isso, os dois
lados da janela são as duas interpretações, os dois ângulos de visão numa mesma
operação sígnica, sem que se dê, entretanto, a tão esperada síntese, pois
simultaneidade não quer dizer síntese. Porque, se se desse a síntese, que é a
operação suprema da transformação dialética, se perderia energia, algo se iria para
sempre pelo ralo; e, assim, sinistramente, desnecessariamente, numa recolocação
das perspectivas sociológica e psicanalítica, se perderia dinheiro, e se perderia
força vital, libidinal, à toa, sendo que tal desgraça não pode ocorrer num sistema
vigilante, que, no máximo, permite o jogo mas não permite em definitivo que o
jogo assuma a frente e o comando das ações políticas fundamentais, como
questionar a ideologia, por exemplo. A dualidade, pois, se preserva, apesar do
aparente embaralhar dos polos.

Sem escolha e sem dialética

Linda Hutcheon afirma justamente isso: “No pós-modernismo existe


contradição, mas não dialética. E é essencial que a duplicidade seja mantida” 10.
Relembro, então, os dois lados da janela do verso de Caetano: duplicidade
preservada “e não resolvida”, continua Hutcheon (Ibid). É bom lembrar de novo,
nesse sentido, Brás Cubas, que não escolheu entre a filantropia e o lucro
capitalista; ficou com os dois, apesar de conflitantes e contraditórios entre si. Em
consequência, os polos, tidos em geral como antinômicos, não ascendem ao nível
da síntese. Juntam-se, mas não perdem suas características básicas, não chegam a
constituir qualidade superior.

Não que não seja dada a oportunidade de escolher este ou aquele lado, isso
não; mas, embaralhando momentaneamente – apenas momentaneamente – a
percepção do indivíduo, o sonho se libera, sem pretender, no entanto, direcionar-
se exatamente a um alvo da realidade. No máximo, o estímulo ao desejo pode ter
muitas direções, seja qual for o objeto externo ao qual o desejo venha um dia se
ligar – afinal, o revólver do sonho não mata o desejo do que ainda não existe –,
porque o sonho já é uma realização, e o prazer é bastante e autossuficiente. O
sonho é dispersivo e não vem de quem sonha, mas, em sua total independência,
aparece desligado de uma eventual necessidade (que poderia, se tudo fosse tão
lógico assim, levar ao sonho). Não se trata, como na teoria marxista do fetichismo
da mercadoria, de uma ocultação da legítima fonte do capital, que é a mais-valia.
O sonho, no poema de Waly Salomão, é o fetiche em si e por si; nada oculta nem
disfarça porque já não há o que disfarçar, pois ele não corresponde a relações
sociais entre pessoas que, supostamente, têm necessidade.

10
1991, p. 264.
Esse sonho, que não é, pois, do homem que sonha, é, antes, do mercado
que estimula o consumo anárquico e sem direção certa. O revólver é, nessa
construção, o elemento impulsionador e propulsor do desejo como algo separado
do humano. Afinal, alguém sonha por nós, o sistema produz nossa necessidade de
sonhar, embora a necessidade, igualmente alienante, não traduza a mais autêntica
subjetividade. Pois, como disse Carlos Drummond de Andrade, “sonhei que o
sonho existia / não dentro, fora de nós, / e era tocá-lo e colhê-lo, / e sem demora
sorvê-lo, / gastá-lo sem vão receio / de que um dia se gastara”.11

Para o poeta alagoano Maurício de Macedo, ter prazer é uma experiência


poética ou uma experiência real, tanto faz. Nos dois casos, seja lá como for, o
homem está cindido nele mesmo, como se pode ver no poema “Orgasmo”:

Reteve a musculatura o felino


e num salto penetrou no espelho.
E de repente na superfície polida
não se via mais a sua imagem.

O espelho, limite de si e do outro refletido, não reflete, contudo. Não há


síntese nem de si mesmo, pois tudo está irremediavelmente fundido e confundido
sem que esse efeito queira significar totalidade ou unidade, e sim perda, mas uma
perda desejada, esperada, não traumática. Homem e imagem se separaram para
sempre, é o que parece dizer o poeta. Foi passada a borracha no desenho, foi
cortada a ligação entre os seres, foi promovido o esquecimento de si e do outro,
num isolamento extremado. Os românticos ainda dispunham dos rios e dos lagos
em que se refletiam e com os quais conversavam, quando a realidade social e o
sentimento de irmandade lhes pareciam impossíveis, num mundo estilhaçado e
avesso à comunicação e às formas razoáveis de socialidade. Agora, não há revolta
nem medo; apenas uma constatação – sem tremores ou nostalgias – do grande
vazio do espelho, uma espécie de disco de Newton girando sem parar. Parece não
11
Quero deixar claro que a relação da arte com o dinheiro, a economia e os interesses
mercadológicos não é simplesmente um tema, mas se inscreve na própria montagem e organização
– hoje mais do que nunca – do discurso literário, como o podem revelar o poema drummondiano
“Sonho de um sonho”, de Claro enigma, aqui transcrito em parte, e sobretudo o poema de Waly
Salomão, fulcro da presente análise. Bom estudo sobre tais relações se pode ver em alguns ensaios
incluídos na coletânea Valores: arte, mercado, política, organizada por Reinaldo Marques e Lúcia
Helena Vilela (2002).
ter remédio o isolamento, nem ninguém o questiona, mas é aceito com serenidade,
com passividade, sem reflexão, e muitas vezes até com cinismo. O que fica, como
diz o poeta, é uma “superfície polida” e branca, promessa para que nela se
reescrevam instantâneos iguais a esse.

Os dois lados da janela se mantêm. A duplicidade – que, frise-se bem, não


é sinônimo de ambiguidade – não se apaga em nome de uma síntese, mas disfarça
as diferenças e as antinomias, contribuindo para uma maior eficácia do estilo.
Traduzindo isso para os termos da ciência econômica, há uma contenção de
despesas na casa do eu lírico, um gasto controlado do dinheiro e das energias
físicas, já que nada se desperdiça: é uma economia deliberada. Ou tudo se funde
num só ato, como o fez Brás Cubas ao dizer, no capítulo XVI do livro, que ia
fazer uma reflexão imoral e, ao mesmo tempo, uma correção de estilo, numa
espécie de dois em um – o que, convenhamos, é bem mais econômico. O discurso
registra as antinomias, mas não as quer resolver dialeticamente. Em situação
muito parecida com esta, Brás Cubas, que inicialmente olhou com interesse para
Eugênia, desiste de namorar a “flor da moita”, expressão metafórica de que se
arrepende e que descarta logo depois de construí-la, depois de constatar que ela
era coxa: “Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?”. A duplicidade
existe e não pode ser desmentida, mas pode ser cinicamente enfrentada. Diz então
esse narrador em favor da economia do recurso estilístico: “Retira, pois, a
expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os óculos – que isso às vezes é
dos óculos – e acabemos de uma vez com esta flor da moita”.

Não se pode perder tempo, pois perdê-lo é degenerar-se financeiramente.


Nem utilizar imagens literárias à toa, pela mesmíssima razão. Brás Cubas também
se livrou das culpas e das causas de suas ações irresponsáveis, tendo ficado apenas
com o sonho (frustrado, é verdade). Falando como um verdadeiro financista ou
economista, Brás vê a tudo cinicamente, não padecendo da derrocada das
negativas (“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não
houve míngua nem sobra”, ou então, “saí quite com a vida”, ou, ainda, “achei-me
com um pequeno saldo”). Afinal, é preciso, como lei última do mercado, conter e
controlar gastos, ver nisso alguma vantagem pecuniária.

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Em: ASSIS, Machado
de. Obra completa (Org. de Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Nova Aguilar S.
A., 1997. p. 511-639.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. de Waltensir


Dutra. São Paulo: Martins Fontes, [198-].

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Trad. de Letizia Zini Antunes e


Álvaro Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad.


de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. de Célia Neves e Alderico Toríbio. 2.


ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

MACEDO, Maurício de. Tear da palavra. Maceió: Edições Catavento, 2004.

MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena (Orgs.). Valores: arte, mercado,


política. Belo Horizonte: Editora da UFMG/Abralic, 2002.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A profecia de Mário de Andrade. Em: PERRONE-


MOISÉS, Leyla. Inútil poesia e outros ensaios breves. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 248-253.

SALOMÃO, Waly; FREJAT, Roberto; GIL, Gilberto. O revólver do meu sonho.


Em: COSTA, Gal. Gal profana. [S. l.]: RCA, 1984. 1 disco laser, 4,8 pol.
74321215242. Gravação de som.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na


Argentina. Trad. de Sérgio Alcides. 4. ed. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2006.

SCHWARZ, Roberto. Complexo, moderno, nacional, e negativo. Em:


SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987. p. 115-125.

VELOSO, Caetano. Trem das cores. Em: VELOSO, Caetano. Cores, nomes. São
Paulo: Philips, 1989. 1 disco laser, 4,8 pol. C 838 464-2. Gravação de som.
DO QUADRINHO À POESIA: UM RELATO PESSOAL DOS DESAFIOS
NA TRADUÇÃO DO IDIOMA ALEMÃO PARA O PORTUGUÊS

Augusto Machado PAIM

Traduttore tradittore, diz o provérbio italiano. Sim, traduzir é trair. Seja


trabalhando em uma tradução voltada para a língua de partida (portanto, fiel e
literal em relação ao texto original, porém correndo o risco de o texto não ser
compreendido), seja uma tradução voltada para a língua de chegada (e adaptando
assim o texto à cultura que o receberá, porém perdendo significados e sentidos
que só funcionam na cultura original), o tradutor estará inevitavelmente lidando
com um conflito insolúvel.

Traduzir é sempre um dilema. Em curso ministrado na Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul, o professor canadense Emmanuel
Fraisse disse que “é impossível ser fiel na tradução, mas é necessário ser fiel na
tradução.”12 O que parece um paradoxo é, na verdade, algo cuja compreensão está
ao alcance de todo tradutor que leva seu trabalho a sério.

Como disse Gilles Ménage: “a tradução é uma estrangeira bela que


devemos pôr nas roupas do nosso país”.13 Para refletir sobre as dificuldades
envolvendo a tradução a partir de um caso concreto, relatarei aqui as minhas
próprias experiências como tradutor do alemão para o português. O percurso
começará na tradução de histórias em quadrinhos, passando para a de literatura e a
de poesia. O objetivo é mostrar, através dessa gradação, os diferentes obstáculos
enfrentados pelo tradutor.

12
Citado no curso Approches theoriques et sociologiques de la lecture et du fait litteraire,
ministrado pelo professor Emmnauel Fraisse, da Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, na
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em agosto de 2011.
13
Citado pelo professor Emmanuel Fraisse na mesma ocasião apontada acima.
Quadrinho

Minha carreira como tradutor começou em 2009, quando verti para o


português a obra Johnny Cash – uma biografia, do quadrinista alemão Reinhard
Kleist. Recentemente, fiz a tradução da minha segunda obra, Wir können já
Freunde bleiben, de Mawil, a ser publicada em 2012.

Traduzir quadrinhos é, sem dúvida, menos trabalhoso do que traduzir


literatura e poesia. Isso porque o ritmo da narrativa já está todo dado pela
sequencialização dos quadros, e muito do clima e da ambientação está contido no
desenho e não no texto. Traduzir quadrinhos, portanto, é uma boa forma de se
fazer esse ingresso no pantanoso terreno das traduções. Já é possível perceber, no
texto dos quadrinhos, algumas das dificuldades encontradas por quem quer verter
uma obra literária do alemão para o português. Cito três exemplos advindos da
obra de Reinhard Kleist.

O primeiro deles diz respeito a uma expressão idiomática. Quando Johnny


Cash convida os outros integrantes da sua banda a fazer um teste numa gravadora,
um dos personagens, receoso, responde: “Hör mal, Johnny, das ist mir’ne
Nummer zu groß”14. Literalmente, ele disse: “Escuta, Johnny, isto é para mim um
número muito grande”. A tradução literal, no entanto, elimina o contexto da frase.
Quando diz “número”, a personagem refere-se ao tamanho de uma roupa. Ele, na
verdade, quer dizer: “este número [de calça, de camisa] fica muito grande em
mim”. Trata-se de uma expressão idiomática para sugerir que algo não está
adequado ou, no contexto do enredo da obra, de que não é o momento certo para
determinada coisa acontecer. Na tradução, precisei achar uma expressão em
português que passasse a mesma sensação. A solução encontrada foi: “Olha só,
Johnny, isso é muita areia pro meu caminhãozinho.”15

14
KLEIST, 2006, p. 51.
15
KLEIST, 2009, p. 51.
Há casos em que a expressão idiomática é traiçoeira. Daí vem o segundo
exemplo. Em certa passagem da obra, Johnny Cash assiste a um show de Elvis e
pergunta ao colega ao lado à qual gravadora o cantor pertence. A personagem
responde que é a Sun Records e comenta que a gravadora “ist seit Elvis schwer im
Geschäft”16. Ou seja, numa tradução literal: “[a gravadora] está, desde Elvis,
‘difícil’ nos negócios”. A palavra ambígua aí é “schwer”, que significa “pesado”,
“difícil” etc. Palavra, portanto, de sentido negativo, o que remeteria
imediatamente ao significado de “dificuldades nos negócios”. No entanto, a
expressão quer dizer justamente o contrário: “Desde o Elvis eles estão com os
negócios a mil”17.

O terceiro exemplo que trago diz respeito a um trocadilho. Johnny Cash,


interessado em June Carter, pergunta a ela o nome do seu marido. O diálogo é
assim: “‘wieheißterdochgleich...? Wird nix?’, ‘Rip. Rip Nix.’, ‘Nix. Passender
Name für einen Sheriff, hehehe...’”18. O grande problema advém da palavra “nix”,
que significa “nada”. Quando Cash pergunta “Wird nix?”, ele quer dizer: “essa
história de vocês não vai dar em nada, não é mesmo?” E a seguir June responde
que o nome do marido é Nix, ou seja, “Nada”. Como o livro de Reinhard Kleist é
de natureza biográfica, ou seja, não-ficcional, não é possível alterar o nome de
personagens. Afinal, Rip Nix realmente existiu. A solução que encontrei, para não
perder totalmente a intenção do autor, foi usar um outro trocadilho, dessa vez com
a palavra “RIP19”: “‘Qual-é-o-nome-dele-mesmo...? Será que essa história não vai
descansar em paz...?’, ‘Rip. Ele se chama Rip Nix.’, ‘Nix. Bom nome pra um
xerife, hehehe...’”20.

Cada trabalho apresenta desafios singulares. Na tradução de Wir können ja


Freunde bleiben (título provisório: “É melhor ser só amigos”), minha maior
dificuldade foi encontrar expressões em português que mantivessem o tom da
obra original. Trata-se de um relato autobiográfico sobre a infância e a
16
KLEIST, 2006, p. 50.
17
KLEIST, 2009, p. 50.
18
KLEIST, 2006, p. 106.
19
RIP é a sigla para a expressão inglesa Rest In Peace, ou seja, “descanse em paz”.
20
KLEIST, 2009, p. 106.
adolescência do autor na antiga Alemanha Oriental. Há uma grande ênfase no
humor, e esse humor surge principalmente dos usos dessas expressões jovens que
se situam em um local e em um tempo específico. Antes de começar a tradução,
pensei em usar algum sotaque brasileiro regional, mas logo descartei a ideia.
Perder-se-ia aí toda a referência à cultura alemã. Decidi adotar um português de
conhecimento geral e ir resolvendo as gírias caso a caso. Também tive o cuidado
de utilizar expressões de uma época mais recente, para que a obra pudesse ser
compreendida por crianças e adolescentes de hoje, o que ilustra o quanto o
público-alvo interfere no plano de tradução. Assim, a versão em português tem
expressões como “caraca”, “show de bola” e eventualmente “bom pra dedéu”.
Mais trabalho deu um trecho em que as personagens jogam pingue-pongue. As
expressões que elas usam não podem ser reproduzidas tal e qual, porque as formas
de se jogar esse jogo são diferentes na Alemanha e no Brasil.

Particularmente, o último dos quatro capítulos foi o mais árduo. Nessa


parte da história, o protagonista vai morar em uma república internacional de
estudantes em Berlim. O idioma oficial da casa é o inglês, e é nesse idioma que
ele e uma espanhola (seu par romântico) comunicam-se. No original, o texto
alterna-se entre alemão e inglês, sem tradução, já que o inglês é um idioma de
fácil domínio na Europa. No Brasil, porém, não é possível deixar partes do texto
em inglês. Pôr a tradução em notas de rodapé também prejudicaria a dinâmica ágil
da obra21. A solução encontrada foi deixar o protagonista falando português e a
espanhola falando espanhol. Manteve-se assim a confusão idiomática, importante
estratégia para a construção do humor da obra, e pôde-se alcançar o mesmo efeito
que se conseguiu no original, na alternância entre inglês e português. Adaptar,
nesse caso específico (mas também em qualquer tradução), foi uma forma de ser
fiel à obra.

Literatura

21
Nessa tradução, usei as notas de rodapé apenas para dar breves contextualizações sobre a
História da Alemanha, e somente nos casos estritamente necessários.
Uma prova de que a cultura de chegada é o fator mais importante para a
escolha dos critérios de tradução está na reportagem Títulos daqui e d’além mar,
publicada na Revista Língua Portuguesa. O texto, de Gabriel Perissé, compara o
nome dado a obras no Brasil e em Portugal. Apesar de o idioma de chegada ser o
mesmo, o resultado é por vezes muito diferente. Afinal, as culturas não são
idênticas.

Disgrace (1999), do sul-africano John M. Coetzee, é Desonra,


no Brasil, e Desgraça, em Portugal. A tradução portuguesa
destaca a ideia de infortúnio: na história, Lucy, uma jovem
branca, é violentada por três homens negros e, apesar da
insistência do pai para denunciá-los e abortar a criança gerada,
decide calar-se e ter o filho. A tradução brasileira permite
pensar na vergonha que o pai sente, mas também no fato de ele
próprio, como professor, ter-se envolvido com uma aluna negra.
A opção lusitana alinha-se com a tradução espanhola
(Desgracia), e a brasileira com a italiana (Vergogna).
(PERISSÉ, 2011) 22

Outro exemplo é dado pela obra O paciente inglês:

Um sucesso literário da década de 1990, The English


Patient (1992), do escritor cingalês naturalizado canadense
Michael Ondaatje, é comprado em Portugal com o título O
Doente Inglês, ao passo que no Brasil consta como O Paciente
Inglês. Teria a tradutora portuguesa Ana Luísa Faria receado
que alguém imaginasse um personagem inglês "paciente"
(adjetivo), tranquilo? O nosso tradutor, Rubens Figueiredo, não
se preocupou com essa ambiguidade. Nos demais idiomas,
temos Der Englische Patient (alemão), El Paciente
Inglés (espanhol), Il Paziente Inglese (italiano). Em francês,
acharam por bem acrescentar, ao Le Patient Anglais, uma
informação - L'homme Flambé ("O homem queimado"), uma
vez que é assim, coberto de horríveis queimaduras, que o
protagonista aparece, semimorto, nas areias quentes do Saara.
(PERISSÉ, 2011)23

Os trechos servem também para atestar que há, sim, uma parcela de
escolha pessoal do tradutor. Essa escolha, claro, é baseada nas suas expectativas e
conhecimentos culturais da língua de chegada, mas ainda assim é uma escolha
22
Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h55min.
23
Idem.
essencialmente subjetiva, haja vista que tradutores diferentes produziriam obras
diferentes. Como diz o autor, no início do artigo da revista:

Descobrir que o título de uma mesma obra foi traduzido de um


modo no Brasil e de outro em Portugal é revelador. Pode nos
ajudar a apreciar melhor as semelhanças e divergências entre
dois modos de ver e escrever sobre o mundo. O ato de traduzir,
afinal, permitindo uma certa margem de criação, é também uma
forma de interpretar a realidade. Essa interpretação é atribuída
ao tradutor como indivíduo que expressa sua visão e suas
idiossincrasias, mas também como representante, que ele é,
naquele momento, de um contexto cultural específico.
(PERISSÉ, 2011)24

Guilherme da Silva Braga, importante nome da nova geração de tradutores


brasileiros, em entrevista para o site Meia Palavra disse que:

Nem os títulos nem coisa nenhuma tem que ser traduzida


literalmente. Sempre há espaço para a liberdade tradutória.
SEMPRE! Esse mito da tradução literal precisa cair. Traduzir
um texto não tem nada, absolutamente nada a ver com copiar o
original em português apenas trocando as palavras de idioma;
trata-se, antes, de reescrever um texto altamente articulado, que
forma um todo coeso, em outra língua. E de reescrevê-lo em um
estilo o mais próximo possível do original – o que inclui
reescrever um texto fluente de modo fluente, entre outras coisas.
O objetivo de uma tradução literária não é dizer “o que está no
original” a qualquer custo, mas acima de tudo escrever um texto
de qualidade literária e características estilísticas semelhantes às
do original. Paradoxalmente, uma das maneiras mais garantidas
de se arruinar completamente a qualidade literária e as
características estilísticas de um texto é fazer uma tradução
literal dele. Assim, se o objetivo é apresentar ao leitor da língua
para a qual se está traduzindo um texto de características
semelhantes às da obra original, é fácil perceber que pequenas
modificações inspiradas pelo estilo do original que visem
justamente mantê-las não são apenas desejáveis, mas também
necessárias. E para obter esse resultado é preciso abrir mão do
apego desnecessariamente obstinado ao original.
Com os títulos acontece a mesma coisa. Vamos pegar como
exemplo O morro dos ventos uivantes, um título consolidado
em nossa língua. O original Wuthering Heights não diz nem
“morro”, nem “ventos” nem “uivantes”. Em suma, a tradução
não traduziu uma palavra sequer do original. Mas pouco
importa: uma tradução literal de Wuthering Heights seria
24
Idem.
desastrosa e o título que se tornou clássico em português soa
muito bem e tem tudo a ver com o livro, assim como o original.
Do ponto de vista do efeito, é uma tradução magistral. Como a
principal tarefa do tradutor literário é produzir um texto literário
de qualidade e dotado de função estética na língua para a qual
traduz, se o resultado de uma tradução é um texto sem
características e qualidade literárias, é evidente que algo está
muito errado.25

Todas essas reflexões fazem muito sentido quando penso no meu trabalho
de tradutor da língua alemã. De fato, minha experiência comprova que há
sutilezas de um idioma que não encontram paralelismo no outro. Algumas se
referem ao gosto estético. No alemão, por exemplo, a frase longa, cheio de
informações, é considerada uma comprovação da habilidade de escrita de um
autor, até porque a estrutura frasal alemã permite que se insiram inúmeras
informações em sequência, eventualmente prescindindo até mesmo do emprego
da vírgula.

Também o ritmo da frase é diferente. No alemão, os verbos ocupam uma


posição fixa. Dou um exemplo: “Ich hatte ihr geschrieben, zu sagen, dass ich sie
im nächsten Sommer besuchen werde.” A frase tem cinco verbos, marcados em
negrito. Em português, se traduzíssemos mantendo a estrutura da frase, ficaria
assim: “Eu havia a ela escrito, para dizer, que eu no próximo verão visitá-la irei.”
Uma frase, convenhamos, muito estranha no nosso idioma.

Outras dificuldades de tradução são mais simples, mas já acarretam numa


alteração em relação ao texto de partida. É o caso do uso dos pronomes pessoais
“Sie” e “du”. A grosso modo, eles podem ser substituídos respectivamente por
“o/a senhor/a” e “tu/você”, mas qualquer pessoa que já tenha traduzido um texto
do alemão para o português sabe que essa correspondência nem sempre funciona.
Às vezes, em determinados contextos, “você” é a melhor tradução para “Sie”. Em
outros, “tu” fica brusco demais para representar o “du”. O tradutor, portanto,
precisa ter bastante flexibilidade e domínio no manejo da língua, além de um
cuidado para que essa flexibilidade não se transforme em confusão.

25
BRAGA, 2011. Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h52min.
O idioma alemão tem ainda o caso dos artigos. São três: masculino,
feminino e neutro. Como o português só tem dois, percebe-se desde já que
qualquer tradução, por mais fiel que seja, já acarretará em perda. Afinal, o uso do
artigo não é desprovido de intenção. Há efeitos de sentido e climas que só
funcionam por causa do artigo.

A questão fica mais complicada quando pensamos que uma palavra pode
ter um artigo masculino no português e feminino no alemão. Um caso bem
conhecido e revelador envolve as palavras “sol/lua” e “Sonne/Mond”. No alemão,
“o sol” vira “die Sonne” (“a sol”), e “a lua” vira “der Mond” (“o lua”). Não se
trata apenas de uma mudança de artigo. É também uma mudança na cosmovisão.
Em conversa com um autor alemão, tive a oportunidade de aprender o quanto as
concepções de dia e noite são radicalmente diferentes no Brasil e na Alemanha.
Para nós, a noite é materna, acalentadora, apaixonante. Para eles, é o lugar do
masculino, da celebração, do hormônio, da conquista. Para nós, o dia é masculino,
quente, agitado, sinônimo de trabalho. Para eles, o sol é uma mãe que fornece
energia e calor para os seus filhos. Sem dúvida, essa diferença é bastante
evidenciada pelo uso dos artigos.

Penso que essas questões não impedem a tradução, apenas instigam a


criatividade do tradutor, como atesta Guilherme da Silva Braga: “Não acredito na
tradução impossível. Acredito apenas na tradução para a qual ainda não se achou
uma boa solução.”26

Esses desafios já existem na tradução de quadrinhos. A tradução do livro


de Mawil, por exemplo, trouxe uma exigência que a obra de Kleist não havia me
apresentado. Refiro-me ao uso das onomatopeias. Apesar de parecer relativamente
simples, as onomatopeias são um desafio para o tradutor. Para dar conta do
trabalho, tive que acessar bastante material teórico. Entre eles, tive a sorte de me
deparar com o artigo Onomatopeias e interjeições em histórias em quadrinhos em
língua alemã, da professora da USP Selma Meireles. Diz ela que:

26
Idem.
Entre os elementos mais característico dos quadrinhos estão as
interjeições e as onomatopeias, a visualização de sons
paralinguísticos e ambientais que, assim como os efeitos
sonoros do cinema, são indispensáveis para a elaboração da sua
mensagem. Com pouca expressão na literatura tradicional, na
qual se prioriza a descrição dos ruídos (como, por exemplo, em
“o telefone tocava” ou “um cão latia”), as onomatopéias
encontraram seu “habitat natural” nas histórias em quadrinhos,
onde assumem várias funções além de representar sons e ruídos:
elas também podem criar um “fundo emocional”, à semelhança
da trilha sonora nos filmes, ou ainda servir como elementos de
direcionamento da leitura.
A representação gráfica de sons e ruídos nos quadrinhos é
essencial para a ambientação da trama e acabou por desenvolver
características específicas, resultando num código próprio de
leitura que mescla elementos icônicos e convencionais. 27

A leitura do artigo de Selma Meireles abriu para mim uma outra porta de
percepção, relacionada à comparação entre a tradução de quadrinhos e a de
literatura. Até agora, a minha experiência tem se concentrado na tradução de obras
de quadrinhos. Sei que preciso acumular experiência nessa área antes de passar
para a tradução de uma obra em prosa, mas penso que o próximo passo será
justamente esse: traduzir um livro de contos.

Há um autor alemão recentemente descoberto por mim que eu gostaria de


traduzir. Trata-se de Siegfried Lenz. A leitura de seu livro So zärtlich war
Suleyken causou em mim forte impressão. Pude compreender o subtexto de seus
contos, bem como apreciar o ritmo de cada uma de suas frases. Penso que é um
autor cujo estilo de escrita aproxima-se do apreciado por leitores brasileiros. E é
com isso – com a identificação com o autor e com a compreensão da sua obra –
que começa o trabalho de tradução. Afinal, traduzir é tentar colocar-se na posição
do autor, tarefa que só pode ser bem-sucedida se vier impregnada de empatia.

Poesia

27
MEIRELES, 2007, p. 158-159.
Na escala de dificuldades de tradução, com certeza a poesia é o gênero
mais difícil. Afinal, em um poema temos que cuidar não só o significado das
palavras, mas também seus simbolismos e suas sonoridades em um nível que a
literatura e os quadrinhos não nos exigem. Em alguns casos, tem-se ainda que
prestar atenção na métrica e na rima, cujos sistemas de valoração diferem
radicalmente de idioma para idioma.

Vejamos um exemplo de trechos de um poema do Goethe, retirados da


obra Conceitos Fundamentais da Poética28.

Du nun selbst! Was felsenfeste / Sich vor dir hervorgetan, /


Mauren siehst du, siehst Paläste / Stets mit anderen Augen an. /
Weggeschwunden ist die Lippe,
die im Kusse sonst genas, / Jener Fuss, der an der Klippe, /
Sich mit Gemsenfreche mass. // Jene Hand, die gern und milde /
Sich bewegte, wohlzutun, / Das gegliederte Gebilde, / Alles ist
ein andres nun. / Und was sich an jener Stelle / Nun mit deinem
Namen nennt, / Kam herbei wie eine Welle, / Und so eilt’s zum
Element.29

Como o objetivo da obra é o estudo dos três grandes gêneros literários


(Lírico, Épico e Dramático), a tradutora Celeste Aída Galeão, professora da
Universidade Federal da Bahia, optou por manter os textos no idioma original e
traduzir em notas de rodapé apenas o seu conteúdo. A tradução, portanto, enfoca o
conteúdo, não o ritmo e a sonoridade:

Agora mesmo tu, outrora / rocha plantada a tua frente, / vês


muros e palácios / sempre com olhos novos; / longe e perdido
está o lábio / que antes com o beijo era prazer / e aquele pé que
saltava / na rocha qual fresca camurça. // Aquela mão terna e
prestável / a agir e fazer bem / todo o ser e sua forma / é agora
de outro modo / e o que em seu lugar / conserva agora o teu
nome / veio célere como onda / e apressa-se para o elemento. 30

28
Essa é uma obra teórica, cuja dificuldade de tradução não é igual à da poesia, mas quase.
Afinal, há termos técnicos cujo significado no alemão não pode ser plenamente contemplado no
português. É o caso da palavra “Stimmung”, que na tradução foi desmembrada em duas palavras:
“disposição anímica”.
29
GOETHE Em: STAIGER, 1993, p. 170.
30
STAIGER, 1993, p. 170.
Repetindo: essa tradução é intencionalmente literal. Conserva o conteúdo,
não a forma poética. Uso-a aqui apenas para comparar as dificuldades de tradução
de poesia. Vê-se aí a perda da rima: “Lippe/Klippe”, por exemplo, virou
“lábio/saltava”. Há também a força da cultura gramatical. Em alguns versos no
original alemão, sabemos, pela estrutura frasal, que a frase está em suspenso, pois
ainda está por vir um complemento. Na tradução literal, não há esse efeito. Uma
tradução que enfocasse a dinâmica lírica teria que prestar atenção nesse detalhe.

Para destacar essa diferença, mostramos o trecho os uma tradução de


Fausto em edição bilíngue. Em alemão, temos o texto: “MEPHISTOPHELES:
Was ziehst du mich in diese düstern Gänge? / Ist nicht da drinnen Lust genug, /
Im dichten, bunten Hofgedränge / Gelegenheit zu Spaß und Trug?”31 Na versão
em português, do tradutor Jenny Klabin Segall, ficou assim: “MEFISTÓFELES:
Por que me arrastas a esta ala sombria? / Lá dentro, então, não dá para compor-te /
Com a tropelia e a multidão da corte? / Ensejo dão para o logro e a folia.” 32 As
diferenças são muitas. A começar pelo nome do personagem, que assumiu sua
versão em português. Já o último verso deixou de ser uma pergunta. Além disso, a
rima “genug/Trug” (“suficiente/engano”) migrou para as palavras “compor-
te/corte”, alterando assim a classe gramatical das palavras rimadas. Além disso,
enquanto o segundo verso do original já permite perceber, pelo fato de o verbo
“ist” estar na posição inicial da frase, de que se trata de uma pergunta, a versão em
português só desvela o caráter interrogativo ao fim do terceiro verso, com a
chegada do ponto de interrogação.

Em função dessas dificuldades, a tradução de uma poesia pode originar


versões muito diferentes, dependendo do tradutor. Vejamos por exemplo os três
primeiros versos de Odisseia, de Homero, na versão de Manuel Odorico Mendes:
“Canta, ó Musa, o varão que astucioso, / Rasa Ílio santa, errou de clima em
clima, / Viu de muitas nações costumes vários.”33 Compare-se com a tradução de
Donaldo Schüler: “O homem canta-me, ó Musa, o multifacetado, que muitos /

31
GOETHE, 2007, p. 216.
32
idem, p. 217.
33
HOMERO, 1996, p. 65.
males padeceu, depois de arrasar Tróia, cidadela sacra. / Viu cidades e conheceu
costumes de muitos mortais. [...]”34 Cada tradutor escolheu sua forma de expressar
a disposição anímica de Homero, cada um deles colocou-se no estado poético e
tentou traduzi-lo criativamente para o seu tempo.

Traduzir poesia é uma tarefa de dificuldade extrema. É por isso que muitas
editoras optam por edições bilíngues, onde se pode ver a diferença exercida entre
a versão do autor e a do tradutor. Este, aliás, precisa ter uma formação mais
extensa: é necessário conhecer a fundo a obra do autor, bem como as diversas
possibilidades de sons, símbolos, rimas e ritmos dos sistemas poéticos, tanto da
língua de partida quanto da de chegada. O tradutor precisa, portanto, ser ele
mesmo um poeta.

Penso que ainda levarei muitos anos de estudo antes de me atrever a


traduzir uma poesia alemã. Mas é um caminho que, com anos de estudo e prática,
inevitavelmente devo trilhar.

Haicai

Em paralelo aos meus estudos (já avançados) do idioma alemão, tenho me


proposto uma nova tarefa: o aprendizado do idioma japonês. Ainda é em nível
incipiente: no início de 2012, darei início ao quarto semestre de estudos. Penso,
porém, que no futuro esse meu interesse por traduções se manifestará também
nesse idioma.

Trata-se de uma língua com dificuldades ímpares. Em primeiro lugar,


porque é baseada em ideogramas, que são grafismos com capacidade de expressar
uma ideia, um conceito ou mesmo uma frase inteira. Algumas dessas ideias não
existem no português. É por isso que o haicai, como o conhecemos no Brasil, já
não é o haicai japonês, pois o haicai no Japão pode ser composto por um único
34
HOMERO, 2007, p. 13.
ideograma capaz de expressar sozinho os três versos comumente usados nas
versões brasileiras.

É essa questão da visualidade, aliás, que me atrai, talvez pela minha


ligação com quadrinhos. Um ideograma, afinal, é ao mesmo tempo poesia,
imagem e texto.

Além disso, a cultura japonesa é muito diferente da cultura Ocidental, e


isso afeta drasticamente o trabalho de tradução. Os gestos e rituais, por exemplo,
não encontram correspondência no Brasil. Especialmente nos quadrinhos, essa
diferença torna necessário um conhecimento introdutório. Por exemplo: quando
vemos em um mangá o desenho de uma personagem com uma bolha de sangue
saindo do nariz, só leremos aí o significado de “excitação sexual” se já tivermos
certa familiaridade com a cultura nipônica. O mesmo pode ser dito em relação aos
gestos. Quando um japonês coloca os dedos indicadores sobre a cabeça, apontados
para cima, quer dizer que ele está furioso. No Brasil, esse é um símbolo de traição
conjugal.

São essas dificuldades e desafios que me fascinam. Por isso estou


aprendendo o idioma. Penso que quando começar a traduzir do japonês para o
português terei acesso a um novo mundo de reflexões sobre o processo de
tradução.

Referências

BRAGA, Guilherme da Silva. 10 Perguntas e Meia para Guilherme da Silva


Braga. Entrevista concedida para o site Meia Palavra:
http://blog.meiapalavra.com.br/2011/04/25/10-perguntas-e-meia-para
guilhermeda-silva-braga/ Acesso em 2 de dezembro de 2011, às 11h52min.

CARONE, Modesto. Lições de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto: uma tragédia – Segunda parte.


Tradução de Jenny Klabin Segall. São Paulo: Editora 34, 2007.
HOMERO. Odisséia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. 2ª edição. São Paulo:
Ars Poética: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

HOMERO. Odisséia, v. 1: Telemaquia. Tradução de Donaldo Schüler. Porto


Alegre: L&PM, 2007.

KLEIST, Reinhard. Cash – I see a Darkness. Hamburg: Carlsen, 2006.

KLEIST, Reinhard. Johnny Cash: uma biografia. Tradução de Augusto Paim.


Porto Alegre: 8Inverso, 2009.

LENZ, Siegfried. So zärtlich war Suleyken – Masurische Geschichten von


Siegfried Lenz. Hamburg : Hoffmann und Campe Verlag, 1955.

MAWIL, Markus. É melhor ser só amigos (título provisório). Tradução de


Augusto Paim. Campinas: Zarabatana, 2012 (no prelo).

MAWIL, Markus. Wir können já Freunde bleiben. Berlin : Reprodukt, 2003.

MEIRELES, Selma. Onomatopeias e interjeições em histórias em quadrinhos em


língua alemã. Em: revista Pandaemonium germanicum, FFLCH USP, novembro
de 2007, 157-188.

PERISSÉ, Gabriel. Títulos daqui e d’além mar: diferença entre títulos de livros
lançados no Brasil e em Portugal ajuda a explicar como cada país enxerga a
cultura. Reportagem publicada na Revista Língua Portuguesa.
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12454 Acesso em 2 de
dezembro de 2011, às 11h55min.

STEIGER, H. Conceitos Fundamentais da Poética. Tradução de Celeste Aída


Galeão. 2ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
A ARTE POÉTICA E A METÁFORA

Cibele Beirith Figueiredo Freitas35

A questão da criação poética tem sido debatida desde a antiguidade, com


os filósofos da Grécia Antiga. Inúmeros críticos e estudiosos tem debatido
questões relacionadas à poesia, com intuito de caracterizá-la e criar teorias que
tratem da arte poética. Cada teórico tem o um ponto de vista, o que enriquece as
questões acerca do tema poesia.

Aristóteles, discípulo de Platão, foi um dos primeiros a contribuir com o


tema, distinguindo o poeta do historiador, afirmando que o primeiro é mais
filosófico que o segundo, pois a poesia não tem compromisso com a verdade dos
acontecimentos, sendo a verossimilhança um elemento necessário à história. Para
ele, “a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas
quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da
necessidade”.36

Assim, o autor introduz o conceito de mímesis, ou seja, a obra de arte não


representa a realidade, mas possíveis interpretações do real através de ações,
palavras e pensamentos imaginários, dos quais se originam os poemas. O ato de
imitar a realidade é inerente ao homem, pois é através dela que ele conhece a
realidade e também pelo prazer que o ato de imitar proporciona.

Em outras palavras, a definição da mímesis grega passa por uma reunião


dos “traços da mímesis que a distinguem de uma cópia que repetiria a natureza” 37.

35
Graduada em Letras, Licenciatura em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (2007) e Mestre em Letras pela mesma universidade (2010).
Atualmente é aluna de Doutorado em Letras, Teoria da Literatura, pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
36
ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica.
Tradução por Jaime Bruna. 12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 28.
37
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M.
Magalhães. Porto: Rés, 1983, p. 63.
Para Aristóteles, o poeta imita como o pintor e isso pode ser percebido através do
uso de figuras de linguagem:

Imitador como o pintor ou qualquer outro artista plástico, o


poeta necessariamente imita sempre por uma de três maneiras:
ou reproduz os originais tais como eram ou são, ou como os
dizem e eles parecem, ou como deveria ser. Isso se explica
numa linguagem em que há termos raros, metáforas e muitas
modificações de palavras, pois consentimos isso aos poetas. 38

Dessa forma, o autor afirma que a imitação ocorre através do uso de


figuras de linguagem, como a metáfora. Para Aristóteles, a metáfora “consiste no
transportar para uma coisa o nome de outra coisa, ou do gênero para a espécie de
uma para a espécie de outra, ou por analogia”.39

Após a contribuição de Aristóteles, base do pensamento ocidental sobre a


arte poética, muitos outros autores trataram do tema. No período do romantismo,
iniciou a busca para uma reflexão sobre a poesia em sua característica de
linguagem metafórica. Com efeito, no romantismo, iniciou-se a concepção de que
os recursos de linguagem na poesia servem para dar ênfase aos estados de ser do
eu-lírico. É o que se nota, por exemplo em Hegel:

O conteúdo da obra de arte lírica não pode ser o


desenvolvimento de uma ação objetiva em sua conexão que se
amplia em um reino mundano e sim o sujeito singular e
justamente com isso a singularização da situação e dos objetos
bem como do modo com que o ânimo em seu juízo subjetivo
sua alegria, seu maravilhamento, sua dor e seu sentir leva em
geral a si a consciência em tal Conteúdo.40

Neste sentido, o conteúdo da poesia adquire substancial significação, já


que reside no conteúdo da linguagem o que enriquecimento o sentido das
palavras. O enriquecimento surge a partir da singularização da perspectiva que se
tem sobre o assunto abordado.

38
ARISTÓTELES. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica.
Tradução de Jaime Bruna. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2005, p. 48.
39
ARISTÓTELES. Poética. 7 ed. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Casa da
Moeda, 2003, p. 134.
40
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: volume IV. Tradução Marco Aurélio Werle e
Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004, p. 157-158.
Ainda no século XIX, outro autor que aborda a questão da criação poética
é Edgar Allan Poe. No seu texto “O princípio Poético” 41, Poe defende o principio
de autonomia da arte, ou seja, a arte pela arte. Ele acrescenta que não importa o
tamanho do poema, mas a emoção que ele provoca, de acordo com os usos que faz
dos elementos linguísticos de que se vale.

De fato, para Poe, a poesia não tem compromisso com a verdade e com a
ética, e a este fato ele denomina de “heresia do didático”. Ele completa afirmando
que o poema é nobre quando ele fala de dentro da alma, escrito por ele mesmo,
sem intenção de verdade, mas compromisso com o belo e com o gosto.

Segundo ele, o esforço do poeta não diz respeito apenas à apreciação da


beleza, mas para ultrapassar a beleza, a qual faz compreender e sentir o poético,
destacando a música como o modo de alcançar a suprema beleza. É no encontro
da poesia e da música que se alcança um amplo espaço para o desenvolvimento
poético.

Somente na contemplação da Beleza achamos possível atingir


aquela elevação aprazível da alma, que denominamos
Sentimento Poético e que tão facilmente de distingue da
Verdade, que é a satisfação da Razão, ou da Paixão, que é o
excitamento do coração.42

A poesia deve ser guiada pelo sentimento que é a essência da beleza. E, em


verdade, a essência da beleza, como quer Hegel, representa uma singularização do
que se sente as respeito da beleza. A singularização é provocada pela emoção.

É justamente a emoção do poema que determina a singularização das


questões que expressa através da linguagem, em especial com o uso das figuras de
linguagem. O principio poético de Alan Poe defende a arte pela arte, o fazer como
prazer estético, sem dever com a verdade. E, por sinal, coincide com o
pensamento aristotélico de que a arte, notadamente a arte poética, consiste em

41
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Globo, 1985.
42
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Globo, 1985, p. 84
uma representação do mundo sem duplicá-lo, mas sim enfatizar as qualidades
belas, associadas ao que se entende por verdadeiro.

É com Jean Cohen que a reflexão sobre as figuras de linguagem, em


especial a metáfora. Na obra A estrutura da linguagem poética 43, Cohen afirma
que a linguagem usual, que ele denomina “linguagem natural”, é própria da prosa,
diferentemente da linguagem poética. Neste contexto, temos primeiramente uma
comparação da linguagem poética e da prosaica a fim de que, nesta abordagem
tipológica, a poesia adquire a sua especificidade.

Para o referido autor, as figuras de linguagem encontradas na poesia são


ornamentos necessários porque eles mostram a carga poética escondida no mundo
e, também porque a poesia, sendo composta de linguagem resumida, precisa para
expressar muito em poucas palavras.

Neste sentido, não bastam apenas os recursos poéticos, mas há que pensar
em como usá-los. Eis aqui o diferencial de Jean Cohen em relação aos
pensamentos anteriores, uma vez que a singularização do sentimento, da visão de
mundo, passa pela ênfase causada pelos “ornamentos” por ocasião da expressão
da mensagem a que o poema se propõe através da linguagem.

Dentre as figuras de linguagem, a metáfora é uma figura de mudança de


sentido. Cada palavra possui dois sentidos: um denotativo, que advém dos
dicionários, e um conotativo, que tem um sentido figurado. A metáfora é a
passagem da função conotativa para a denotativa, da linguagem denotativa para a
conotativa.

A poesia não fala a linguagem literal, ou seja, o poeta nunca diz


diretamente o que quer dizer, mas fala através de enigmas, tergiversações, em
suma, fala através das entrelinhas. De fato, a metáfora poética “[...] não é simples

43
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974.
mudança de sentido: é mudança de tipo ou natureza de sentido, passagem do
sentido nocional ao sentido emocional. Por essa razão, toda metáfora é poética”.44

Outra abordagem que Cohen faz referência diz respeito ao uso das
metáforas de cor, seguidamente utilizadas pelos simbolistas. Ele acrescenta que
atribuir uma cor aos objetos e seres é um desafio à razão, mas que faz parte do
universo simbolista que ele denomina “desconcertante”. Para ele,

A verdade é que a palavra que exprime a cor não remete para a


cor, ou melhor, só remete num primeiro tempo. Num segundo
tempo, a própria cor torna-se o significante de um segundo
significado de natureza emocional. [...] O poeta não procura
“pintar”, e a metáfora não é “pintura” como o verso não é
“música”. A metáfora poética é a passagem da língua
denotativa para a língua conotativa, passagem obtida por meio
do desvio de uma fala, que perde seu sentido ao nível da
primeira língua, para reencontrá-la ao nível da segunda. 45

Cohen acrescenta aos raciocínios anteriores que a metáfora não é apenas


uma mudança de sentido, mas uma “metamorfose” da linguagem poética de uma
maneira geral, o que torna a poesia arte. Deste modo, é lícito pensar que o poeta
precisa infringir a linguagem natural, desconstruir a linguagem literal para recriá-
la em outro plano e mostrar a face oculta, poética, da vida. E, com efeito, esta face
poética é a única que de fato importa para o eu lírico, haja vista a importância que
ele atribui à linguagem metafórica para expressar o que sente e o que pensa do
mundo ao seu redor.

Com efeito, o poeta cria uma metáfora original quando ele utiliza “uma
forma antiga numa substância nova”46; em outras palavras, ele muda o contexto
usual de uma palavra e agrega a ela outro sentido que não o sentido literal e neste
ato de agregar sentido está a recriação. Ou seja, o poeta recria a linguagem quando
é capaz de enriquecer as palavras com novas nuanças de sentido.
44
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 173.
45
COHEN, p. 173.
46
COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e Anne
Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 41.
É fato que a recriação das palavras, comum a todos os poetas, permite
constatar o caráter dinâmico da linguagem. No dinamismo da recriação, os
sentidos se renovam, as palavras revelam um corpo poético diferenciado e
mostram que sua bagagem semântica não é algo estagnado, que se restringe a
apenas determinados usos e valores. A linguagem poética é uma linguagem que se
renova porque explora novos sentidos e sensações despertadas pela interioridade
que, ao fim e ao cabo, é um contexto em que se explora o autoconhecimento.

Paul Ricoeur retoma o pensamento aristotélico para refletir a respeito da


questão da obra de arte enquanto reflexo da realidade. De fato, considerando a
linguagem poética, Ricoeur estabelece de forma bastante enfática que

A realidade permanece uma referência, sem jamais se tornar uma


determinação. É por isso que a obra de arte pode ser submetida a
critérios puramente intrínsecos, sem que pese o cuidado
ontológico de proporcionar aparência ao real. Ao renunciar ao
uso platônico de mimese que permitia tomar mesmo as coisas
naturais por imitações de modelos eternos e chamar a uma
pintura imitação da imitação, Aristóteles impôs-se usar o conceito
de imitação da natureza apenas nos limites de uma ciência da
composição poética, que conquistou a sua plena autonomia. 47

Deste modo, Ricoeur reafirma o conceito aristotélico do descompromisso


com a realidade na arte poética. O uso da metáfora proporciona uma nova leitura
da realidade a partir de novas matizes adquiridas pelo uso da linguagem. A
realidade, sendo referência, colabora apenas como ponto de partida para a
expressão poética. A linguagem metafórica é o que de fato proporcionará a
emoção do poema e, por consequência, o impacto de sua mensagem.

Se este impacto for a emoção causada, tal como quer Poe, então há que
pensar na questão dos diversos usos linguísticos que permitirão um encadeamento
de ideias e palavras tal de modo a colocar a realidade sob uma perspectiva
diferenciada e, neste contexto, abordar o sentir humano como arte poética.

47
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António M.
Magalhães. Porto: Rés, 1983, p.71-72.
Nestes termos, é importante pensar que a qualidade do “impacto” de um
poema, a medida da “emoção” que é capaz de causar, está ligada ao uso que faz
das metáforas. Se a metáfora é um elemento que estabelece a ênfase na
comunicação dos sentimentos abordados, logo ela se reveste de considerável
importância no cabedal de informações que é necessário transmitir ao leitor
mediante uma linguagem resumida. Afinal, no resumo deve estar a precisão e, na
precisão, a escolha dos termos que, mesmo sendo poucos, sejam capazes de dizer
muito.

No texto “Metáfora e símbolo”48, Paul Ricoeur afirma que a metáfora


garante a literariedade na obra literária, o que a difere do texto científico, uma vez
que apresenta um sentido explícito e um implícito. O estudioso afirma que apenas
a denotação é cognitiva e de ordem semântica, portanto, a conotação deve estar
livre de qualquer significado cognitivo.

Segundo ele,

[...] aquilo que um poema enuncia se relaciona com o que ele


sugere, da mesma maneira que a sua significação primeira se
relaciona com a significação segunda onde ambas as
significações concordam no campo semântico. E a literatura é o
uso do discurso em que várias coisas se especificam ao mesmo
tempo e onde o leitor não é mais intimado a entre elas escolher.
É o uso positivo e produtivo da ambiguidade. 49

Nesse sentido, o discurso da poesia apresenta várias camadas de


significação que auxiliam na compreensão da mensagem expressa através da
linguagem simbólica e o leitor poderá escolher quais os elementos que ele
utilizará para atribuir sentido ao poema.

Ricoeur retoma a definição aristotélica sobre metáfora como a “aplicação


de uma coisa de um nome que pertence a outro [...]” e acrescenta que “a

48
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987.
49
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 59.
comparação é uma forma ampliada da metáfora”50. Para ele, a metáfora resulta de
uma tensão entre dois termos, ou duas palavras, e só tem sentido no conjunto
organizado da frase, como enunciado metafórico. É no encontro entre duas
palavras que se dá o conflito que sustenta a metáfora numa extensão de sentido.

O autor critica o uso da metáfora na retórica clássica como simples


substituição entre as duas palavras. Ele afirma que tal figura de linguagem transita
entre dois termos que formam uma dupla interpretação: um sentido literal e um
sentido figurado. Essa dupla interpretação opõem-se à teoria da substituição
porque traz uma nova significação para o enunciado.

A partir dessa ideia, Ricoeur constrói uma nova definição, na qual


metáfora

é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não


tem estatuto na linguagem já estabelecida e que apenas existe
em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou
inesperado. Por conseguinte, a metáfora assemelha-se mais à
resolução de um enigma do que a uma associação simples
baseada na semelhança; é constituída pela resolução de uma
dissonância semântica.51

A metáfora utiliza-se da linguagem usual para atribuir um novo sentido a


uma sentença. É fruto de uma tensão entre duas palavras ou termos na tentativa de
construir um novo significado. Na poesia, a metáfora enriquece o discurso porque
traz inúmeras possibilidades de significações construídas num plano distinto da
linguagem denotativa.

No discurso poético há vários exemplos de metáfora. Com efeito, a


metáfora serve aos propósitos de expressão de sentido. Um dos momentos em que
o uso de metáforas ilustra o sentimento angustioso do eu lírico é a questão de um
amor não correspondido, como se verifica, por exemplo, no poema “Estátua”, de
Camilo Pessanha, transcrito abaixo:

50
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 59.
51
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Lisboa: Edições 70, 1987, p. 64.
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, – frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo


E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,


Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,


Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.

No poema transcrito podemos encontrar a metáfora do amor não-


correspondido através de vários recursos linguísticos. Um deles é o uso da cor, ou
melhor, da ausência de cor, simbolizando ausência de vida e, por consequência,
ausência de sentimento. O ser amado na verdade não é um objeto inatingível, mas
um ente incapaz de corresponder o amor.

No entanto, o eu lírico faz tentativas para concretizar o amor. Todas,


entretanto, infrutíferas. A falta de êxito acha-se simbolizada na onda que atinge
um rochedo, sendo o rochedo mais uma metáfora para a falta de sentimento ou de
correspondência de amor.

A falta do amor correspondido dificulta a relação do eu lírico com o outro,


isto é, com o ser amado, visto que este se apresenta como um ser sem vida, frio e
imóvel, e daí porque ele o denomina “estátua”, conforme sugere o título.

A falta de correspondência do amor expressado pelo eu lírico ocasiona um


espaço vazio entre o eu do eu lírico, e o outro, espaço este que se traduz em um
contexto de segredo. Ou seja, o ser amado tem um segredo na medida em que
revela apenas o que é por fora e não o que é por dentro tal como o eu lírico.
A tentativa de descobrir o segredo do ser amado constitui uma espécie de
exílio do eu lírico, “Segredo dessa alma e meu degredo/ E minha obsessão!”.
Neste contexto, o que fazer para que o outro possa se revelar? O eu lírico tenta
uma solução para isso através do beijo, já que o beijo significa, no contexto
poema, a revelação de um segredo.

Contudo, não houve manifestação de amor correspondido da parte do


outro, a “estátua”, visto que “Esfriou sobre o mármore correto/ Desse entreaberto
lábio gelado”. O “lábio gelado” é mais uma metáfora para a frieza do ser amado
diante do amor do eu lírico, ou seja, mais um recurso com que o poema se reveste
para expressar uma situação de amor não-correspondido.

A frieza também é atestada pelo uso da figura do mármore, que representa


o impassível, o imperturbável, o destituído de emoção e, por consequência, sem
vida. A ausência de vida, por outro lado, também se apresenta com a metáfora do
túmulo, a qual é a metáfora mais significativa para falar de ausência de
sentimento, visto que simboliza a morte: “Desse lábio de mármore, discreto,/
Severo como um túmulo fechado”.

A caracterização finaliza com a definição do outro como sendo “Sereno


como um pélago quieto”, isto é, silencioso como um mar calmo e profundo.
Entretanto, a metáfora do pélago sereno não significa paz, mas ausência de
sentimento e vida.

A questão do mar profundo, da circunstância abismal ilustra a distância


entre o eu lírico e o ser amado, daí o vazio existente entre ambos: de um lado, o eu
lírico, que não é correspondido, de outro, o ser amado em sua frieza, falta de cor,
aparência de mármore e situado em um mar sereno e profundo, sepultado para
toda e qualquer possibilidade de amor.

Outro poeta em que podemos ver o uso de metáforas é em Manuel


Bandeira, no poema ‘O Bicho”, transcrito abaixo:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Nos versos do poema “O bicho”, o eu lírico faz uma comparação do bicho


com o homem em estado de degradação. Segundo o que se depreende dos versos
do poema, um bicho é um animal que não necessariamente escolhe a comida que
vai comer. Come porque tem fome, porque precisa sobreviver.

O homem se degrada quando ele adquire este comportamento de comer


por sobrevivência, quase por instinto, o que é ilustrado no verso “Na imundície do
pátio”. Ou seja, não importa o lugar onde se coma e, desta forma, a degradação
humana se faz sentir na medida em que está ausente a característica que diferencia
o homem do animal: a higiene, a boa escolha do alimento e o olfato sensível para
aquilo que lhe é agradável enquanto humano e não enquanto animal. Isso é
possível notar nos versos “Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem
cheirava:/ Engolia com voracidade”.

Ao final do poema, então é revelado de qual animal fala o eu lírico: o


homem. Os outros animais servem de metáfora para o comportamento humano na
situação em que o homem, não podendo alimentar-se como os outros, procura
restos de comida, tal como fazem os animais, no caso cães, gatos e ratos.

O poema permite depreender que há, nas entrelinhas, a denúncia de um


problema social onde o ser humano, para não morrer de fome, está em uma
situação-limite tal que a busca do alimento é feita da forma que um animal faria,
isto é, sem escolher, sem cheirar, simplesmente engolir, sem sentir o gosto, enfim,
sem o comportamento característico de um ser humano.

O bicho-homem colocado no poema representa a degradação humana. O


fato do homem igualar-se aos animais não representa que os animais sejam
degradados, mas sim, que o homem se esvaiu de sua condição humana,
transviando-se para uma condição que, por direito, não deveria ser sua.

O examinado demonstra a importância e a contribuição dos estudos sobre


o fazer poético desde a antiguidade, iniciando por Aristóteles, com o conceito de
mimese, base dos estudos sobre poesia até os dias de hoje.

Nesse contexto, podemos perceber a importância do uso das figuras de


linguagem, em especial, a metáfora, para a construção do discurso poético. A
metáfora proporciona a ênfase de uma ideia. Portanto, a metáfora é de suma
importância para causar o impacto em um poema.

A sensibilidade humana, ao que as mais variadas produções poéticas


permitem constatar, é melhor atingida pela metáfora do que pela mesma ideia
proposta pela linguagem usual. Naturalmente o sentido da palavra não se extravia
com o uso da metáfora.

Com efeito, a metáfora enriquece o sentido das palavras e, por


consequência, da própria língua, sendo mais frequente o seu uso no discurso
poético, que “trabalha com pouco para construir muito”. Porém, para construir
muito com pouco, há que escolher os recursos linguísticos adequados para a
expressão da arte poética.

Camilo Pessanha escolhe os recursos que lhe parecem mais adequados


para abordar a frieza enquanto símbolo de não correspondência de amor. Assim,
as metáforas ali colocadas não o foram sem critério, visto que elas dão ênfase ao
sentimento do eu lírico, enriquecem o sentimento de vazio e são decisivas na
caracterização da sua experiência com relação ao ente amado.
Da mesma forma, Manuel Bandeira usa os animais como metáforas para
abordar as condições de degradação a que chega o ser humano em determinadas
circunstâncias causadas por problemas sociais. A comparação com o animal
enfatiza o humano desvirtuado de sua condição e o impacto do poema está no fato
de que tal desvirtuamento ocorre por uma necessidade premente, isto é, a fome.

Em ambos os poemas, a metáfora é responsável por grande parte da


compreensão do que é dito. Muito embora todos os poetas usem metáfora, há que
saber se ela proporciona em muitos casos emoção ao poema. Cada poeta usa
metáforas conforme seu estilo e a eficácia da comunicação de um poema depende
da ênfase que essa figura de linguagem causa ao leitor e do entendimento que ele
tiver a respeito dela. Pode-se dizer que a metáfora é um recurso que reside em
todos os tempos e modos e, se a comunicação poética é um apelo ao coração, a
figura de linguagem representa um caminho para atingi-lo.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. 7 ed. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Casa


da Moeda, 2003.

_____. Poética. Em: Aristóteles, Horácio, Longino: a poética clássica. Tradução


por Jaime Bruna. 12. Ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

COHEN, Jean. A estrutura da linguagem poética. Tradução de Ávaro Lorencini e


Anne Arnichand. São Paulo: Cultrix, 1974.

HEGEL, G. W. F. Cursos de estética: volume IV. Tradução Marco Aurélio Werle


e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004.

POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Org. Milton Amado. Tradução de Oscar
Mendes. Rio de Janeiro: Globo, 1985.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Joaquim Torres Costa e António


M. Magalhães. Porto: Rés, 1983.
_____. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa:
Edições 70, 1987.
POESIA E GESTUALIDADE: CAMPOS PRIVILEGIADOS DO
SIMBÓLICO NA LITERATURA

(elementos para estudo e análise de “making a fist”, de naomy shirab nye)

Moema Vilela PEREIRA

No ensaio “Da obra ao texto”, Roland Barthes fala do texto como o que
pratica o “recuo infinito do significado”. O infinito do texto não vem do fato de
ele ser inefável, mas de que é preciso “dar-lhe partida” para que signifique, num
jogo de perpétuas possibilidades. “O texto é radicalmente simbólico: uma obra de
que se concebe, percebe e recebe a natureza integralmente simbólica é um
texto.”52

Se, como quer Barthes e grande parte de seus contemporâneos no estudo


da literatura, essas propriedades não pertencem a nenhum gênero em especial, mas
são uma potencialidade da literatura, na história das letras a poesia sempre esteve
de alguma forma mais próxima desse convite à realização plural do sentido. Ela
tem sido um dos espaços por excelência do “excesso de significação”, como
atentou Paul Ricoeur em seu estudos sobre o simbólico na linguagem53.

Da mesma maneira, se toda esfera do humano poderia ser vista em sua


“reserva de sentido”54, considerando as práticas e compreensões dominantes a
linguagem do corpo também é lugar especial para a ambiguidade, o implícito e a
multiplicidade de sentido. Foi o que viu o dançarino, coreógrafo e pesquisador da
dança e do movimento Rudolf Von Laban, ao dizer que, embora os desenhos
visíveis da dança possam ser descritos em palavras, “seu significado mais

52
BARTHES, Roland. Da obra ao texto. Em: Rumor da Língua. Trad. Mário Larajeira. São
Paulo: Editora Brasiliense. 1988, pp. 65-70.
53
RICOEUR, Paul. Metáfora e símbolo. Em: Teorias da interpretação: o discurso e o
excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1987.
54
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987.
profundo é verbalmente inexprimível.”55. Nascido na atual Bratislava, Eslováquia,
em 1879, Laban também usa o termo “simbólico” para o que a linguagem do
movimento pode remeter. As execuções de movimentos no dia-a-dia, como
“serrar madeira, abraçar ou ameaçar alguém” são significativas, mas, para além
das ações que o ser realiza em sociedade e no cumprimento de suas necessidades
vitais, há no movimento uma potência de revelação do simbólico, que interessava
a Laban especialmente na dança.

As palavras que exprimem sentimentos, sensações, emoções ou


certos estados espirituais e mentais não são capazes de fazer
mais do que arranhar de leve a superfície das respostas
interiores que as formas e os ritmos das ações corporais têm
condições de evocar. O movimento, em sua brevidade, pode
dizer muito mais do que páginas e páginas de descrições
verbais.56

A afinidade com o simbólico que têm a linguagem do corpo e a literatura,


Walter Benjamin viu casadas na obra de Franz Kafka. No ensaio a propósito do
décimo aniversário de morte de Kafka, Benjamin analisa a gestualidade como o
“elemento nebuloso” nas parábolas kafkianas, do qual partiria toda sua obra
literária. “Toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação
simbólica não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor.” 57
Estudos e contos menores do criador de “O castelo” só apareceriam sob sua
verdadeira luz quando transformados em peças representadas no teatro ao ar livre.
Neste teatro, Benjamin aponta que a dissolução do acontecimento no gesto é uma
das funções mais significativas.

Não há muitos estudos do gesto na literatura, sendo o caso de Franz Kafka


o mais expressivo, decisivo na análise de Walter Benjamin e presente em ensaios
de Theodor Adorno, Günter Anders, Gilles Deleuze e Félix Guattari 58. O elemento

55
LABAN, Rudolf Von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus editorial, 1978, p.
53.
56
Ibid., p. 141.
57
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte. Em:
Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. vol.1: São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p.
146.
58
ADORNO, Theodor W. Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo. Editora Ática,
1998; DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro:
fundamental nas análises destes pesquisadores, de linhas teóricas as mais
diferentes, é a recusa de uma interpretação decifradora do simbolismo em Kafka,
como teria feito uma abordagem simplista, em geral de viés sociológico,
psicanalítico ou existencialista. A meu ver, tais leituras foram enriquecidas pela
análise da gestualidade, e o mesmo valeria para outras pesquisas nas letras que
atentassem para como os gestos funcionam na ficção. Para os fins deste ensaio,
centrado na poesia, vamos ver como, ao longo da história, movimentos literários
construíram diferentes relações com o simbólico, e em que medidas o universo
dos símbolos, compreendido dentro do quadro analítico do filósofo francês Paul
Ricoeur, se torna terreno propício para a poesia. Para tornar esses elementos mais
vivos e relacioná-los à gestualidade, vamos fazer uma leitura de “Making a fist”
(Fechando o Punho), de Naomi Shirab Nye, poeta americana de ascendência
palestina, nascida em 1952 em St. Louis. Nele, a imagem do abrir e fechar do
punho reúne no gesto os temas da travessia, da fugacidade da vida e da
persistência contra a morte, que estruturam o poema.

O simbólico segundo Paul Ricoeur e sua relação com a poesia

Paul Ricoeur trata a poética como um dos campos privilegiados de


investigação do simbólico, como a psicanálise e a história das religiões – esta pela
necessidade de uma linguagem simbólica para representar o transcendente, aquela
pelo interesse pelos sonhos e outros sintomas como símbolos de conflitos
psíquicos. No caso da poética, os símbolos seriam entendidos como:

[...] imagens privilegiadas de um poema ou as imagens que


dominam as obras de um autor ou de uma escola de literatura
ou as figuras persistentes dentro das quais toda uma cultura se
reconhece a si mesma, ou ainda as grandes imagens
arquetípicas que a humanidade enquanto todo – ignorando as
diferenças culturas – celebra.59
Imago, 1977; ANDERS, G. Kafka: pró e contra. São Paulo: Perspectiva, 1969.
59
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 65.
Para elaborar sua teoria do símbolo, Paul Ricouer analisou a princípio a
metáfora, já que ambos demarcariam campo para a teoria da interpretação. Para
ele, os pressupostos implícitos no tratamento retórico da metáfora centram-se
numa semântica da palavra, em vez de numa semântica da frase, concluindo que a
metáfora não representaria inovação semântica nem, por consequência,
informação nova acerca da realidade. Ricoeur, pelo contrário, recusa a
compreensão da metáfora como mero deslocamento na significação das palavras,
descolada da enunciação que lhe dá sentido. A metáfora não poderia ser
“traduzida”. Nem “deveríamos efetivamente falar do uso metafórico de uma
palavra, mas antes de enunciação metafórica 60”, onde a metáfora é o resultado da
tensão entre dois termos. O enfrentamento entre duas interpretações opostas da
enunciação, uma literal e outra metafórica, sustentaria a metáfora numa criação de
sentido peculiar e insubstituível.

Da mesma maneira, o símbolo promove o traslado entre a significação


literal e a simbólica em um único movimento, sendo contraproducente pensar nas
duas significações em separado. Na função poética, como admitiu Roman
Jakobson e reafirma Ricouer, não se suprime a função referencial. O que acontece
é uma alteração radical do mecanismo de significação que transforma a mensagem
dotando-a de ambiguidade.

Resumindo, a linguagem poética não diz menos a respeito da


realidade do que qualquer outro uso de linguagem, mas como
refere-se a ela por meio de uma estratégia complexa que
implica, como componente essencial, uma suspensão e,
analogamente, uma anulação da referência comum ligada à
linguagem descritiva.61

Sobre as ruínas da referência direta, diz Ricoeur, se constrói uma indireta,


que é primordial em sua sugestão, revelação e descoberta das estruturas profundas
da realidade. Esse resultado seria a condição para uma visão “radical” da
realidade.62

60
Idem, p. 61.
61
RICOEUR, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. Em:
SACKS, Sheldon. (org). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992, p. 154.
62
Idem, p. 155.
No caso do símbolo, esse mecanismo se torna ainda mais complexo, pois
ele, diferentemente da metáfora, compreende também uma dimensão não-
linguística, caracterizando-se como uma estrutura de duplo sentido. 63 As raízes
não-semânticas do símbolo o tornam opaco, irredutível à descrição linguística,
semântica ou lógica, lançando-o no para além do discurso. Muitas vezes, é a
estrutura metafórica que faz a ponte entre o estrato profundo e duradouro do
conteúdo simbólico e a acessibilidade da expressão linguística. Tal metáfora
tornaria explícito o que está oculto no simbólico, emprestando deste seu poder e
sua permanência.

A ambiguidade simbólica, do romantismo à poesia moderna

A presença da metáfora e do símbolo é tão forte na poesia que alguns


pesquisadores chegaram a defini-la especialmente em relação a esses
instrumentos, que remetem à ambiguidade poética e também ao mundo interior
que lhe originaria. Numa abordagem histórica, a relação da poesia com o mundo
interior pode ser recuada desde a noção da lírica, termo que a partir do século
XVII começou a abranger toda composição referente à expressão do íntimo. A
poesia era um meio de expressar a subjetividade, explicando-se assim marcas
como o uso da primeira pessoa. No mesmo período, o termo “literatura” começou
a prevalecer sobre “poesia” para designar a criação artística em geral, ajudando a
individuar a forma poética tal como a compreendemos hoje.

À medida que a expressão do eu, o sonho, a sinceridade, a espontaneidade,


a ingenuidade64 se tornam centro da criação literária no romantismo, os princípios
do lirismo se confundem, em definitivo, com a ideia de poesia.

63
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 57.
64
Esses três últimos são adjetivos de RODRIGUES, Antonio. Modernité et paradoxe
lyrique - Max Jacob, Francis Ponge. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 2006.
É sabido que a lírica era, a princípio, apenas um gênero da
poesia; porém com o declínio do grande poema narrativo e do
verso dramático, lírica e poesia terminaram por confundir-se.
No exame da literatura moderna, um termo pode ser
praticamente empregado pelo outro.65

A poesia moderna, por sua vez, não se compreendia mais como obra de
uma alma no estado de ânimo poético, mas como fruto de “uma inteligência que
poetiza”66, de uma subjetividade descolada da experiência do sujeito empírico. Ela
recusava a personalização da lírica, a lógica e a métrica românticas, levando a arte
para outras fronteiras estilísticas e de conteúdo, sem, contudo, descartar o lírico
como expressão do interior e do mundo subjetivo. Essas afinidades entre o
romantismo alemão e a poesia moderna foram assinaladas por muitos
pesquisadores da literatura, entre eles Edmund Wilson e Hugo Friedrich. Mesmo
o poeta fundador da modernidade, Charles Baudelaire, escreveu: “O Romantismo
é uma bênção celeste ou diabólica, a quem devemos estigmas eternos.”67

Leitor entusiasta de Edgar Allan Poe, influência fundamental do


simbolismo francês, Baudelaire mesclava imagens prosaicas e espirituais,
intelectuais e arcaicas, confundia as percepções sensoriais para evidenciar a magia
e a fantasia contra o banal da realidade, prenunciando “uma lírica que renuncia,
cada vez mais, à ordem lógica, afetiva e também gramatical. 68” Poe, do seu lado,
perseverando em aspectos do romantismo como o mistério e a irracionalidade,
transformou-os radicalmente ao gosto dos novos tempos.

“Eu sei”, vemos Poe escrever, por exemplo, “que a indefinição


é um elemento da verdadeira música (da poesia) – quero dizer,
da verdadeira expressão musical [...] uma indefinição sugestiva
de vago e, por isso, espiritual efeito.”69

65
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mimese – ensaios sobre lírica. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1972, p. 03.
66
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p 17.
67
Idem, p. 30.
68
Idem, p.52.
69
WILSON, Edmund. O castelo de Axel - Estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 37.
A consciência romântica de que a vida e a alma individual não podiam ser
analisadas e explicadas por um discurso racional e mecânico profetizou o próximo
olhar que viria a ser radicalizado pelos modernos.70 Em meio a uma aguda
intelectualidade, traços de origem arcaica, mística e oculta. A simplicidade da
exposição em contraste com a complexidade do que é expresso. O preciso que se
encontra com o absurdo e inextricável. Esses famosos paradoxos apontados por
Hugo Friedrich em sua análise da poesia moderna apontam para uma valorização
do simbólico, único recurso a dar conta do inapreensível. Algumas categorias
negativas que ele usa para descrevê-la vão ao mesmo sentido: desorientação,
dissolução do corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação,
reversibilidade, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes,
repentinidade brutal, deslocamento; noções que direcionam, em geral, à auto-
suficiência e pluralidade de sentido na poesia.71 Na síntese de John E. Jackson:
“L’obscurité n’est pas un mode parmi d’autres de la poésie moderne: elle lui est
inhérente.”72

Na contemporaneidade, algumas tendências ressignificam as relações entre


lírico e poético e poético e simbólico, com manifestações tais como algumas
experiências da poesia concreta, dos caligramas, ou o movimento de entrega à
percepção de realidades triviais, que à primeira vista podem parecer se afastar do
simbólico e da subjetividade moderna, mas que precisam ser estudados
detidamente. No caso da poesia de Naomi Shirab Nye, que abordamos neste
ensaio, a construção é menos problemática e pode ser percebida dentro do quadro
que evocamos acima sobre os elementos do lírico que permeiam o romântico e o
moderno e a ambiguidade construída por meio do símbolo.

70
Como observa Edmund Wilson sobre suas comparações, também para nós essa rede de
familiaridades e influências entre romantismo, simbolismo e poesia moderna não quer fazer crer
que estes movimentos foram gerados uns pelos outros, mas pensar de que maneira noções e
métodos evoluem, desaparecem ou se mantêm atuantes.
71
FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., 1978.
72
JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José Corti,
1998, p. 11.
Abrindo e fechando uma pequena mão

Making a Fist Fechando o Punho

Tradução Ivan Justen Santana.

   We forget that we are all dead men    Esquecemos que estamos todos mortos
conversing wtih dead men. Jorge Luis conversando com homens mortos. Jorge Luis Borges
Borges

For the first time, on the road north of Pela primeira vez, na estrada norte de Tampico,
Tampico,
eu senti a vida deslizando para fora de mim,
I felt the life sliding out of me,
um tambor no deserto, cada vez mais difícil de ouvir.
a drum in the desert, harder and harder to
hear. Eu tinha sete, deitada no carro, assistindo às
palmeiras
I was seven, I lay in the car
trançarem um padrão enjoativo pelo vidro.
watching palm trees swirl a sickening
pattern past the glass.

My stomach was a melon split wide inside Meu estômago, um melão rachado dentro da minha
my skin. pele.

“How do you know if you are going to


die?” “Como a gente sabe se já está morrendo?”

I begged my mother. supliquei para minha mãe.

We had been traveling for days. Viajávamos havia dias.

With strange confidence she answered, Com estranha confiança, ela respondeu:

“When you can no longer make a fist.” “Quando a gente não consegue mais fechar o punho.”

Years later I smile to think of that journey, Anos depois, eu sorrio ao pensar naquela viagem,
the borders we must cross separately, nas fronteiras que temos de cruzar separadamente,

stamped with our unanswerable woes. estampadas com nossas aflições irrespondíveis.

I who did not die, who am still living, Eu, que não morri, que ainda vivo,

still lying in the backseat behind all my ainda deitada no banco de trás das minhas perguntas,
questions,
cerrando e abrindo uma pequena mão.
clenching and opening one small hand.

Versão brasileira do poeta e tradutor curitibano Ivan


NYE, Naomi Shihab. “Making a Fist”. Em: Justen Santana, não publicada. Disponível em
Grape Leaves: A Century of Arab American http://www.felipearruda.com/blog/2010/07/fechando-
Poetry. Utah: University of Utah Press,
o-punho/. Acesso em 2 de dezembro de 2011.
1988.

O eu lírico se inscreve no presente rememorando uma cena da infância,


quando viajava com a mãe. Na memória adulta, quando se fala “nas fronteiras que
temos que cruzar separadamente, estampadas com nossas aflições irrespondíveis”,
as fronteiras deixam de ser geográficas e a viagem é ressignificada para além de
seu significado literal. Palavras como viagem, estrada (road, travelling, journey)
remetem agora a um percurso arquetípico, de uma criança que ouviu um
ensinamento sobre a morte e, adulta, o retoma para falar sobre o significado de
estar viva.

Aos sete anos, a doença que a faz “sentir” a morte e perguntar sobre ela
pela primeira vez é expressa por duas metáforas, a do melão e a do tambor. Julio
Cortázar, para quem o homem tende naturalmente para a concepção analógica do
mundo, diz:

Ao eliminar o “como” (pontezinha de condescendência,


metáfora para a inteligência), os poetas não perpetram audácia
alguma; expressam simplesmente o sentimento de um salto no
ser, uma irrupção em outro ser, em outra forma do ser: uma
participação.73

O estômago da criança era um melão rachado dentro da pele, a vida era


um tambor no deserto. Tamanha transposição fez com que Monroe Beardsly
dissesse que a metáfora seria um poema em miniatura.74

O som do tambor – ou a vida que desliza pra fora – realiza uma trajetória
de dissipação, esgotamento, que contrasta com a aliteração no original em inglês:
drum/desert, harder and harder to hear. Além da musicalidade criada, a
aliteração sublinha a força desse momento, valendo-se também de uma palavra
dura, harder. Essa figura de linguagem também está presente na outra metáfora,
que une stomach, split, inside, skin.

A criança doente está deitada no banco do carro, e a adulta retoma essa


espacialidade horizontal e recolhida quando fala das perguntas que permanecem.
Uma fragilidade infantil se manifesta na mão que é pequena, na posição que é de
maior submissão. A resposta da mãe foi literal, um ensinamento sobre como
confirmar se o sujeito estava perdendo o viço na cessação de suas atividades
orgânicas, mas o eu lírico traz o significado do gesto para além da vida orgânica,
falando do fato de permanecer vivo, cruzando fronteiras intelectuais e emocionais
(aflições/woes, all my questions/perguntas) solitariamente
(separadamente/solitariamente), sem possibilidade de resposta (irrespondíveis/
unansweable). O reconhecimento faz a adulta sorrir, em uma reconciliação com a
vida. Ela é vitoriosa em viver, embora isso não se apresente de forma definitiva. O
gesto que dá nome ao poema é um movimento inscrito no tempo, que não acaba
nem termina, evidenciado pelo gerúndio que torna a ação corporal contínua:
abrindo e fechando uma pequena mão. A promessa de morte paira sobre o poema,
mas o sujeito vive o tempo em que isso ainda não aconteceu (eu, que ainda vivo,
que não morri, que ainda abro e fecho minha pequena mão). Em sua simbologia, o
gesto traz à linguagem novos modos de estar no mundo, projetando possibilidades

73
CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. Em: Valise de Cronópio. (Tradução de Davi
Arrigucci Jr.). São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 95.
74
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1992, p. 58.
íntimas de expressar a relação com a vida e com a morte. Como enfatiza Ricoeur,
“o que liga o discurso poético é, pois, a necessidade de trazer à linguagem modos
de ser que a visão ordinária obscurece ou até reprime.”75

A satisfação pela persistência na vida vem expressa também no “sorriso”,


que confere alegria e contentamento, numa linguagem corporal codificada sem
problematização. O sorriso aparece não como resposta pragmática a outro
indivíduo, por exemplo, mas como efeito da lembrança, remetendo ao universo de
forças psíquicas de que fala Ricoeur, anteriores à verbalização. 76 O caráter pré-
semântico convocado pelo símbolo traz à tona um momento em que as vivências
profundas ainda não foram reveladas ou traduzidas pela linguagem.

Não é o caso do sorriso em “Making a fist”, mas, como o assunto é gesto e


poesia, é interessante pensar como movimentos involuntários são como a ponta
visível do iceberg em relação ao mundo interior, e podem ser utilizados para
imprimir uma indefinição desejada aos sentimentos do eu lírico. Esta qualidade do
gesto está mesmo no dicionário, fonte de sentidos em comum em uma cultura,
como sabem as pesquisas semióticas que dele partem. No Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, na primeira definição de gesto, lemos “movimento do corpo,
especialmente das mãos, braços e cabeça, voluntário ou involuntário, que revela
estado psicológico ou intenção de exprimir ou realizar algo.” “Por fazer parte
desse mundo reflexo, inconsciente, o gesto revela o que o sujeito não quer revelar.
Por isso, numa arte especialmente favorável à exposição da intimidade, como a
literatura, o gesto é incomparável para quem quer mostrar, e não dizer.”77

Referências

ADORNO, Theodor W. Prismas, Crítica cultural e sociedade. São Paulo.


Editora Ática, 1998.
75
RICOEUR, Paul. Op. cit., 1987, p. 71.
76
Idem, p. 71.
77
VILELA, Moema. Mãos pensas, olhar oblíquo: acenos para um estudo do gesto na
literatura. Ensaio em andamento, não publicado. 2010.
ANDERS, G. Kafka: pró e contra. São Paulo: Perspectiva, 1969.

BARTHES, Roland. Da obra ao texto. Em: Rumor da Língua. Trad. Mário


Larajeira. São Paulo: Editora Brasiliense. 1988, pp. 65-70.

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua


morte. Em: Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. vol.1: São Paulo:
Editora Brasiliense, 1985.

CORTÁZAR, Julio. Para uma poética. Em: Valise de Cronópio. (Tradução de


Davi Arrigucci Jr.). São Paulo: Perspectiva, 1974.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de
Janeiro: Imago, 1977.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,


1978.

JACKSON, John E. La poésie et son autre – essai sur la modernité. Paris: José
Corti, 1998.

LABAN, Rudolf von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus editorial,


1978.

MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mimese – ensaios sobre lírica. Rio de


Janeiro: José Olympio Editora, 1972.

NYE, Naomy Shirab. “Fechando o Punho.” (Tradução de Ivan Santana).


Disponível em: http://ossurtado.blogspot.com.br/2010/07/abrindo-mao-um-
amigo.html. Acesso em: dezembro de 2011.

RICOEUR, Paul. Metáfora e símbolo. Em: Teorias da interpretação: o discurso e


o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1987.

_____. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. Em:


SACKS, Sheldon. (org). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992.

RODRIGUES, Antonio. Modernité et paradoxe lyrique - Max Jacob, Francis


Ponge. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 2006.
WILSON, Edmund. O castelo de Axel - Estudo sobre a literatura imaginativa de
1870 a 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

VILELA, Moema. Mãos pensas, olhar oblíquo: acenos para um estudo do gesto
na literatura. (Ensaio em andamento, não publicado). 2010.
II. POESIA MODERNA BRASILEIRA
AS MARGENS POÉTICAS DE CATAGUASES NO IMAGINÁRIO DAS
ÁGUAS

Lina Tâmega PEIXOTO

O debruçar sobre a poesia de Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco e


Ronaldo Werneck – à procura do maravilhamento poético na espessa e densa
força de suas imagens – encontra o equilíbrio necessário e o apoio nas pesquisas,
estudos teóricos e análises sobre o Imaginário, realizadas por dois importantes
autores. Refiro-me, primeiro a Gaston Bachelard que, em seu método
fenomenológico, considera ser “[...] pela intencionalidade da imaginação poética
que a alma do poeta encontra a abertura consciencial de toda verdadeira poesia.”
E conclui: “[...] este ato consciencial, só o estudaremos [...] no campo da
linguagem, mais precisamente na linguagem poética, quando a consciência
imaginante cria e vive a imagem poética.”781

E a Gilbert Durand, onde o imaginário, visto sob o trajeto antropológico, é


“[...] o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital
pensado do homo sapiens”, apresentando-se como “o grande denominador
fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano.”E
sublinha que o símbolo e o imaginário não podem ser enfocados por apenas uma
das ciências humanas, mas por um conjunto amplo e abrangente de um universo
cultural.79

E acrescento ao feixe de textos a que tive acesso, o artigo de Ana Maria


Lisboa de Mello: “Pesquisas sobre O Imaginário: perspectivas teóricas e teorias
francesas”80, escrito com extraordinária lucidez e sensibilidade, e que nos leva

78
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
5.
79
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 18.
80
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
pelos caminhos do Imaginário em seu percurso histórico e teórico, assim como
pelos atalhos das divergências, problemas e conceituações.

O que se pretende na análise crítica dos poetas de Cataguases – autores de


obras literárias que já alcançaram outras montanhas, planícies e águas além de
Minas, do país e de além-mar – é compreender de que modo a poesia se insere
no campo de extraordinárias ressonâncias simbólicas, visualizar o gesto da
interpretação estética, evidenciar como, através do suporte mítico, já transposto o
aspecto religioso, se determinam a criação e a composição de uma cidade refeita
pela memória – afetiva e da infância – e verificar, pela “presença semântica”,
como se compõem os símbolos.

A leitura que fizemos daqueles poetas – pertencentes à geração que se


firmou literariamente a partir da década de 70 – pôs em relevo uma tensão poética,
marcando uma constelação de imagens voltadas para o rio Pomba ou para outras
águas que correm em Cataguases. O nome, rio e pássaro com seu bater as asas de
águas, é um sonho. E no pensamento imaginário vincula-se a um espaço cósmico,
fabricado com a linguagem poética, tecida com o tênue vapor e aroma da palavra
que se deita junto a outra. Assim, ele provoca inquietações, tremores de alma,
devaneios e referências simbólicas e nos incita a realizar um estudo sobre este
Imaginário das águas e de suas reverberações e resíduos.

Ernst Cassirer aponta uma possibilidade que muito se acomoda ao nosso


intento de estudo, quando diz: “[...] se acreditou que a essência de cada
configuração mítica pudesse ser lida diretamente a partir de seu nome. A idéia de
que o nome e a essência se correspondem em uma relação intimamente necessária,
que o nome não só designa, mas também é esse mesmo ser, e que contém em si a
força do ser, são algumas das suposições fundamentais dessa concepção”. 81 Na
perspectiva de nosso trabalho, esta suposição será considerada como uma

81
MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009, p. 21-26.
verdadeira e real imagem literária e, com ela, navegaremos no rio Pomba ou
córregos, em Cataguases, seus núcleos poéticos e míticos.

Voltamos os olhos para o passado a fim de verificar se havia, nos poetas


da Verde, revista do movimento modernista de Cataguases, surgido em 1927,
manchas de umidade ou fios de água que percorressem os versos. Menciona-se o
poema “Meia-Pataca”, que dá título ao livro de Francisco Inácio Peixoto e
Guilhermino Cesar, publicado em 1928.

Meia-Pataca é um córrego que banha a cidade, e foi batizado com este


nome por terem achado em seu leito meia-pataca de ouro. “Também nunca que
acharam mais nada”82, diz Peixoto. O ouro suporta apenas o significado de
riqueza, ganância e, portanto, dele se exclui qualquer vestígio mítico.

Dos textos poéticos dos participantes da Verde escorrem melancolia, perda


do amor, quadro familiar que se esvai com a morte, a natureza como desejo
amoroso, a noite como metáfora do silêncio e da ausência, acontecimentos que
representam o atropelo frenético do progresso, expressando, deste modo, o ritmo
que os conduzia a interpretar o mundo.

O registro mais remoto que encontramos, data de 1967. O poema “Carta


aos Ases”83, fabricado com as mãos de Joaquim Branco e Ronaldo Werneck,
menciona a paisagem das pontes e da curva da vida, que, semelhante à curva do
rio, são desenhadas pela sombra de uma quase esquecida memória. E aos
poucos, a partir dessa década, o rio cresce e flui, avoluma-se numa narrativa
simbólica, serve ao exercício das experiências sensíveis e íntimas, define a cidade
nas imagens do sonho e a situa num espaço mítico.

Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco e Ronaldo Werneck irão olhar


as águas e habitar as margens do rio para determinar como se processam a criação
e a composição de uma cidade, como situá-la no mundo dos sentidos, conhecer a

82
Cataguases: Verde Editora, s/d, p. s/n.
83
Suplemento, jornal do Cataguases. Cataguases: 07.09.1967, p. 8.
infância e o pensamento inclusos no sonho e de que modo o imaginário das águas
fundamenta o tecido mítico, e de como a memória conduz, infinitamente, as
feições do tempo.

Mito e Poesia indicam uma aproximação histórica entre os dois termos,


que, numa ação conjuntiva, interpretam o sentido da vida e nos remetem para as
referências metalinguísticas dos símbolos. Magia e cumplicidade.

Não nos parece, aqui, necessário mencionar definições do mito que levem
a determinar seu aspecto individual ou coletivo. Penso que nos basta, apenas,
lembrar as palavras de Gilbert Durand: “O mito é narrativa simbólica, conjunto
discursivo de símbolos, mas o que nele tem primazia é o símbolo e não tanto os
processos da narrativa.”84

Assim, retomo a evocação do mito, criado pela poesia que, ultrapassando


a fronteira do sagrado e se entendendo como forma de estar no mundo pela
linguagem, conta uma história: a do imaginário das águas de Cataguases. Ana
Maria Lisboa de Mello expressa este conceito ao dizer que “Saindo da esfera
sagrada para entrar na arte, o mito torna-se um recurso poético arquetípico,
decantado pelo tempo para revelar os meandros da psique humana, bem como, em
nível mais amplo, a sociedade e sua história”.85

Francisco Marcelo Cabral, em Inexílio86, perturbador e belíssimo poema,


enumera os elementos que identificam Cataguases, comandados pelo pronome
indefinido NADA, que concentra – na afirmação do que exclui – as imagens de
sua cidade, reordenando e reintegrando a realidade ao tempo da memória.

O poeta escreve:

NADA, Cataguases, em teu rio pobre / pomba sem vida, mudo


e sujo / rebanho cabisbaixo, a correr entre os morros, nada,
Cataguases, nem a tua indiferença ou desprezo / pelos teus
84
Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget,1996, p. 42.
85
Mito e Literatura. Em: Ciências & Letras. Porto Alegre: Revista da Faculdade Porto
Alegrense de Educação, Ciências e Letras,1977, p. 14.
86
Livro de Poemas. Cataguases: Editora-empresa Instituto Francisca de Souza Peixoto,
2003, pp. 57-74.
poetas e teus loucos, únicos / que te conferem a glória de não
seres / como outra qualquer um simples mercado.

NADA ME FAZ / lembrar um porto de diamantes / (que fossem


topázios, ametistas, / crisólidas, opalas, turmalinas!) / nem
mesmo saber – só agora – que no cascalho do leito do Meia-
Pataca / ainda repousa o ouro não minerado / inatingível sob o
lodo pegajoso.87

As repetições do pronome indefinido NADA em início de estrofes, ao


longo do poema, assemelham-se a cantos de saturação amorosa. Este movimento
de sedução e encantamento permite ao poeta reorganizar e reincorporar a
consciência poética às transitivas experiências do viver a dimensão e o lastro do
passado, onde o ouro, primitivo e puro, repousa, em lenta germinação, “pomba
sem vida”, “mudo e sujo”, “sob o lodo pegajoso”.

Lembramos “Campo marcado”, poema que dá título ao livro. 88 Diz o


poeta:

Nesse encontro de rios marquei o meu campo/ para buscar o


nobre pó quase perdido, / atrás da ígnea visão da alma candente/
não do metal em si, real e esterlino: /ouro pouco, ouro pó, ouro
poeira, escasso,/ oculto nas lájeas do fundo das correntes/ e na
matéria mineral de meus poemas. Marquei meu campo ali
lavado pelos rios / onde a curta vida se escoa / – transferindo / o
brilho de meu viço ao vórtice das palavras, / – e a mina da
poesia vai-se exaurindo.

E citamos mais um poema, “Uma vez mais”: “Na crista da enchente de


verão / afogado em poemas / invado com a espuma das palavras / as margens
encharcadas do Pomba”.

E outra estrofe: “Uma vez mais, o rio, / sangue espesso e cáqui / arrastando
pedaços da cidade, / e que eu tanto temi na minha infância”.

87
Ibid., pp. 61, 66 e 71.
88
Campo marcado. Rio de Janeiro: Booklink, 2010, p. 35.
E por fim, “Água serpente”: “Singrar o rio nos barcos de areia / abrindo a
veia / do fluxo barrento / Sangrar o Pomba para deter seu voo / de quimera /
confinado às margens”.

E finaliza: “Esgotar o rio Pomba para que libere / do ouro fino do leito, os
saibros dos poemas”.89

Podemos agrupar os fragmentos dos três poemas em uma mesma unidade


existencial, pela intertextualidade de seus tecidos imagísticos. Refiro-me ao ouro,
elemento alquimístico, transformado o metal já em substância simbólica: “a
palavra” que escreve o enigma primeiro e secreto da vida, à procura da “alma
candente”, se prolonga na completude, identidade e nas formas do fazer poético.
As palavras são águas, espumam, encharcam as margens do rio para fecundar a
linguagem a fim de configurar as possibilidades que possui como corpo criador.
Queremos destacar que não há referência ao volume das águas no leito do rio. Ele
está contido nas margens.

Ao comentar as dificuldades e os riscos que advêm da interpretação da


obra literária, Gilbert Durand nos adverte que “a leitura, que é interpretação,
constitui a felicidade da ‘leitura feliz’ (cf. Bachelard), seu sentido, só é possível
pelo [...] mito que descobre a interpretação, o mito com suas marcas de referência
metalépticas, as suas redundâncias diferenciais do ‘alguns’, seja ele ‘mito
pessoal’, seja mito de uma época, seja mito de uma cultura, seja mito eterno e
universal...”.90 Esta função exercida pelo mito nos move a buscar a interpretação
dos versos de “Água serpente”, que se assemelham a um fervilhar de imagens da
infância, ferindo o poeta adulto com suas lascas cortantes e agônicas. A infância é
uma metalinguagem simbólica, constante e profunda na obra do Autor e muitas
vezes, aparece como centro do devaneio no seu entardecer de homem.

O rio é um corpo sagrado, fechado em seu mistério. É preciso abrir-lhe as


veias e deixar que a água, fecundada pela terra, se esvaia. Esgotar o rio, extenuar a

89
Ibid., pp. 59-60 e 23.
90
Cf. Campos do Imaginário, p. 251.
sua força para que seja somente um nome confinado às margens, e se torne cego
no vôo de seu curso, pássaro abatido, e perca, por instantes, sua forma simbólica.
E o rio renasça, fluindo como murmúrios de poemas, polidos pela substância
criadora: o ouro, assombro e torções de luzes do ser poético.

E o mito é o Pomba, rio e pássaro, transmudados num só nome, que gera o


ouro em suas entranhas, elemento simbólico do germe existencial, de onde brota a
essência da palavra, a que permite ao poeta decifrar e reinventar a forma,
harmoniosa e íntima, de sua expressão no mundo. Compreendido como uma
função criadora, o ouro, como vibração mítica, sutura a memória e converte as
distensões da alma em consistentes e belas imagens poéticas.

Lembramos Bachelard, que nos adverte do devaneio que encontra nas


águas, não o do infinito do mar, mas o da profundidade que lhe dá a água do rio
ou de um riacho.91

A atitude de Francisco Marcelo Cabral é de contemplação, não a de erguer


os olhos para o céu, mas a de baixar o olhar para as águas, cortando o espaço que
vê em duas margens. Na imaginação poética, as margens definem o rio, onde se
procura a densidade da vida no ouro oculto “sob o lodo pegajoso”, “nas lájeas do
fundo das correntes”, “no fluxo barrento”. O ouro que é “inatingível”, “matéria
mineral” de poesia e libera “os saibros dos poemas”.

Ouro-palavra que escreve a graça e a sensualidade do mistério, o tremor


duro, terno e sensual do sentir e do imaginar, a substância do sensível e do
intelectivo, envolvendo infinitamente a linguagem ancorada na memória afetiva
e dos traços e resíduos da infância, na construção do Imaginário.

Gilbert Durand, citando Bachelard, nos informa que

[...] o ouro [...] é justamente o princípio primordial das coisas, a


sua substância encarnada. A substância é sempre causa
primeira, e o sal como o ouro são as substâncias primeiras,

91
BACHELARD, 2002, p. 9.
‘gordura do mundo’, ‘espessura das coisas’, como escreve ainda
um alquimista do século XVII.92

Francisco Marcelo Cabral cumpre com uma alta e solar expressão


linguística este destino da poesia, o de ser fios de sol sobre a penumbra e,
lembrando Valéry o de sonhar infinitamente desperto.

De Joaquim Branco, um poema, inédito: “Recortes para uma visão das


margens do Pomba”. O poema arrasta rigorosas imagens em direção ao
Imaginário das águas. Desdobrando-se em subtítulos, ele projeta o encontro do
olhar na recordação mesma do que foi visto. Observamos no título do poema uma
refração poética, que modula o sentido em duas direções interpretativas. Ou,
entendemos que a visão se projeta nas margens do rio, ou que ela se dá a partir
delas. De qualquer modo, a leitura amplia-se nas duas margens, no
reconhecimento deste espaço bivalente. E lemos o primeiro subtítulo:

“A Igreja”

Ao vê-la, o espelho
nem crê que a água
se revela em tudo
que faz parte dela.

Destaca-se na estrofe a imaginação das águas, onde o reflexo da igreja no


líquido espelho é um reflexo que vê. A contemplação torna-se imperfeita, quase
opaca, pois o que ela vê não participa da forma refletida no olhar. A água, por ser
transparente, adquire densidade e materializa-se no único objeto que reflete o que
ela vê: a igreja. Bachelard aborda o atrativo e a consistência das formas nascidas
das águas, que resultam em “devaneios mais materiais e mais profundos”,
impulsionando o aparecimento da força poética, que torna as águas pesadas.
Assim, elas aprofundam-se e materializam-se.93
92
Cf. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. pp. 262-263. Texto de Gaston
Bachelard em La formation de l’esprit scientifique. Paris: Vrin, p.121.

93
Cf. A água e os sonhos, p. 22.
Nota-se que o poeta situa-se num ponto fixo: “as margens” de onde parte o
movimento da realidade apreendida. O que vê são fragmentos de reflexos, que não
se relacionam entre si, aparentemente.

Menciono, apenas, algumas estrofes, das doze que compõem o poema,


pelo pouco espaço que me cabe no escrever: “o calçadão”, “a praça”, “a cidade”,
“a curva do rio”, “as fiandeiras”, marcadas, na quase totalidade, pelo artigo
definido, na intenção de preservar cada um dos subtítulos na duração que lhe
confere o transitivo contemplar. A transcrição de mais duas estrofes irão assinalar,
mais fundamente, como se intensifica a apreensão da multiplicidade de
linguagens, com que o Autor desenha os “recortes”.

“Pássaros”

Um pássaro, dois, cem


bastam para o revoo
de mil idéias que nascem
das asas deste dia?

O número dos pássaros, “dois”, “cem”, assim como a carga superlativa em


“mil ideias”, sugere a experiência da imaginação aérea e da voluptuosidade do
voo onírico. Toda a estrofe nos remete a uma impressão de ligeireza. E o poeta
indaga se toda esta sôfrega procura da essência infinita da vida, que lhe criou as
“asas deste dia”, sustentaria o sonho renovado – o “revoo” mais alto e continuo –
nascido do sopro do desejo, mas sobrecarregado pela profusão de “mil ideias”.
Cabe, aqui, no debruçar sobre a imagem na poesia de Joaquim, lembrar que para
Bachelard: “[...] no mundo do sonho não se voa porque se tem asas, as asas
crescem porque se voa.”94

E a última estrofe:

“A ponte”

Eternamente unir,
levar sofregamente,
nitidamente postar-se
94
L’air et les songes. 4e réimp. Paris: Librarie José Corti, 1943, pp. 36-38. (tradução
nossa).
fugir avidamente.

Joaquim Branco tem uma produção literária que o projeta nacionalmente


no que se refere à poesia concreta e ao poema figurativo. Talvez, por intuição ou
“um salto no escuro”, nas palavras de Dámaso Alonso, percebi na estrofe uma
peculiar estrutura, construída com apenas dois elementos: verbos e advérbios.
Visualizei, subitamente, pela leitura, a composição de formas significativas.
Explico melhor. As posições dos verbos, em final e início dos versos, assim como
as dos advérbios, em seu princípio e fim, resultaram num efeito sintático-acústico
de associações de sentido. Explico melhor. Podemos traçar, pela imaginação
visual, linhas geradas pelo atrito sonoro das rimas verbais em –ir , “unir” e
“fugir”, versos ( 1º e 4º)” em –ar, “levar” e “postar-se ” ( 2º e 3º) e as dos
advérbios em -mente, versos ( 1º e 4º )e (2º e 3º) que sugerem dois traços
inclinados que se cruzam, ao modo de um /X/. Surgem destas figurações duas
margens simbólicas, onde a ponte se firma com seu tátil e secreto arcabouço. Em
Joaquim, a emoção do lúdico e a linguagem que amplia e move o eu-lírico, se
aglutinam e sedimentam o pensar e o fazer poético, junto às margens da palavra,
em sua sensual consistência de pedra e nuvem .

Ronaldo Werneck mexe nas palavras como se elas estivessem adormecidas


num balaio do mundo. Uma poesia que se espalha na página como esteios de uma
fascinante arquitetura. A capacidade do poeta em jogar palavras e frases para criar
o prazer de um sentimento estético, se assemelha ao lançar sementes no infinito.

De seu livro minas em mim e o mar esse trem azul 95, destacamos trechos
de poemas, para clarificar estas considerações do pensar.

[...]
como numa interrogação
num olhar solto
no espaço
num só laço
95
Cataguases: Editora Poemação Produções, 1999.
o rio envolve
esse tropel de burros
bicicletas
meninos soltos
no pó
no pé descalço
nos galhos
pendurada no ar

nas árvores

a poesia
se desmanchando
se amarelando
se dissolvendo
tênue
MANHÃ às avessas
jorrada
pra dentro da noite.96

O espaço de brancura, entre os segmentos dos versos, é um espaço oco.


Sinaliza os limites das palavras, repartidas e utilizadas como fronteiras nas
páginas. Em Jean Cohen encontramos referência a este procedimento estilístico:
“O branco é o signo gráfico da pausa ou do silêncio; portanto, signo sem
referências, já que a ausência de letras simboliza naturalmente a ausência de
voz”.97 O texto poético de Ronaldo, também, nos conduz a perceber o jogo lúdico
que secciona os versos em diferentes modulações de voz, distribuídas no poema
como um elemento encantatório, permitindo ao rio e à memória, em sua duração,
modular a natureza do sonho.

No texto de apresentação do livro, minas em mim e o mar esse trem azul –


que comporta a seção Pomba poema – o Autor nos informa que “Pomba Poema”
foi um longo mergulho no rio Pomba, que banha a cidade, e na história que por
suas margens corre: minas-mar-memória”.98

96
Ibid., Seção Pomba Poema, pp. 76-79.
97
Estructura Del Lenguaje Poético. Madrid, Editorial Gredos S.A., 1970, p. 55. (tradução
nossa).
98
minas em mim e o mar esse trem azul. Texto de apresentação, p.2. (grifos do Autor).
Há, na figuração deste fragmento de poema, duas vertentes de significação
que vão se unir, depois, numa mesma nascente. A primeira, a da imagem do rio,
delineada pela inversão que lhe dá o olhar. Na segunda, a imagem retorna ao
princípio de sua essência: a de ser águas, nascidas da criação poética.

O rio sobe à superfície. Erguido pelo olhar que o interroga, solta-se no


espaço num só laço, num só lance, num só voo, talvez o de uma pomba. A poesia
que se faz gestos da linguagem, pendurados “no ar”, “nos galhos” e “nas árvores”
vai-se apagando, desmanchando-se, num movimento sem matéria. No dissolver-
se, a poesia, “tênue manhã às avessas”, lança, nas águas da noite e na boca em sua
solidão de “fala”, seu jorro de palavras.

Este mesmo contemplar o mundo pelo que ele se apresenta sob a visão
submersa, imagens que são sonhos e não podem ser tocadas, dá à poesia de
Ronaldo Werneck uma atmosfera de funda e dolorida procura da memória,
deitada no fundo do rio Pomba.

Em outro fragmento do Pomba poema99, encontramos esta mesma tensão


existencial:

[...]
a em cidade
tomba
pesa sobre o rio
esquálido
não como o
cálido
vento da
infância
debruçando ingazeiros
sobre o pomba
mas como ferida
sangrando des
engrossando des
correndo solta des
bombeando às avessas num só des

fluxo des

99
Ibid., pp. 63-64.
norteando des
secando
cem rios num des
coração des
norteado
às avessas des.

Ao lermos estes versos, mergulhamos na longa história de uma cidade que,


em decadência, agonia e sofrimento, contamina o rio onde se reflete, tornando as
águas, antes frescas e puras, como um “cálido vento da infância”, em sujas e
barrentas. A cidade desmancha-se em seu reflexo nas águas. Assim, ela que é o
“rio esquálido”, abre sulcos, feridas, numa avalanche de ecos profundos no
passado. Caminhar na lembrança é impregnar o coração do sonho do imaginário:
que o rio, quase seco, “engrossando-se mar”, recupere pela inversão das imagens,
a experiência feliz do narcisismo: o de ser o poeta e a cidade um só olhar.

O emprego do afixo “des”, junto às formas verbais, enfatiza a nulidade do


esforço em deter o tempo, em seu caminho de destruição, perda e morte. Nas
formas nominais, traduz o desvio da direção afetiva, acumulando, na leitura, o
sentido de “desde”, ou com maior relevo, entendendo “des” como um signo:
”desde sempre”.

O conhecimento das camadas imagísticas em que a poesia se acomoda, nos


leva a acompanhar a lição de Gilbert Durand a respeito do “lugar do espelho”
“que nos dá uma imagem que, apesar de semelhante àquilo que reflete, é, porém,
completamente diferente pela inversão, pela conversão que nos propõe: a lição
que nos dá o espelho é mostrar-nos que toda imagem tem um “inverso”; ela
proclama a evidência do oculto”.100

Há um “falar líquido”, segundo Bachelard. “Se não percebemos facilmente


este aspecto da imaginação falante, é porque queremos dar um sentido demasiado
restrito à função da onomatopeia. E conclui: “há portanto na atividade poética
uma espécie de reflexo condicionado, reflexo estranho pois tem três raízes: reúne
100
Cf. Campos do Imaginário, p. 243.
as impressões visuais, as impressões auditivas e as impressões vocais”. E mais
adiante, lemos: “A voz projeta visões”.101

Ronaldo Wernek nos dá a ler um poema, onde se evidencia a cadência, o


ritmo, o timbre, os efeitos acústicos que nos provocam a escutar o rio nos seus
sussurros de estremecidos devaneios e lamentos, nas associações de fatos,
acontecimentos e coisas de um tempo passado. Tudo roçando a serenidade e a
angústia da realidade presente.

...cataguases
Mesmo a curva
a mesmidão do rio
mesmo a solidão
minerada
das mesmas
minas içadas
ouriçadas minas
onde
chico
cabral&lina
acharam palavras
mineraram
poemas-pataca
perdidos rolados

no rio enrolados
por verdes
às vezes embora
sagazes

rapazes de outrora.102

Há um fluir de movimento em direção ao fruir do prazer, pelo efeito da


repetição do vocábulo “mesma”, intensificado pelo desdobramento em outros
segmentos fônicos; pela predominância da vogal i, a vogal do rio; pela inventiva e
bela criação de “a mesmidão”, aglutinando “mesma” e “imensidão”, numa
extensão poética de infinitude; pela terminação dos verbos no pretérito, pela força

101
Cf. A água e os sonhos. pp. 195-196.
102
Cf. minas em mim e o mar esse trem azul, Seção Pomba Poema, p. 44.
dos cicios de –azes nos nomes: “cataguases”, “sagazes”, “rapazes”; e também pela
função da oclusiva bilabial /p/ com suas bolhas de vento. Os versos são para ser
lidos em voz alta, dificilmente um verdadeiro leitor interpretaria e sentiria o texto
poético, se a leitura se fizesse em silêncio. Este é mesmo o imaginário das águas,
nascido de todas as palavras que, no leito das vozes ,tremem, vibram, se chocam,
se confundem, se amam.

Diz o poeta: “Retomar Pomba Poema 22 anos depois significa de novo


mergulhar nas águas de Minas. Deixar que elas fluam intactas e gerais – na
plenitude de seus moveres, nos mistérios de ruídos e remansos, de lugares e
falares”.103

Ronaldo Werneck rompe os nervos das palavras e os engata em outras para


criar sua linguagem literária, a que serve à figuração do passado, em sua
contradição no tempo presente, às amarras do amor e das sombras da infância que
refletem sua memória. A posição de Ronaldo: o estar dentro de Minas e de
Cataguases representa o símbolo em sua três dimensões: a de ser ele um poeta
cósmico, aberto aos signos do mundo, a de ser onírico, mergulhado em seus
sonhos e a de ser, enfim, poético, no emprego da linguagem mais luminosa e
abstrata em sua concha concreta.104

Só o poeta sabe traçar as formas do mundo e nos revelar os vínculos que


unem a vida à poesia, enclausurada em seu mistério, de angústia e
deslumbramento.

Guilhermino Cesar sabe, em seu segredo de poeta, que “De mitos, claro,
se ordena o mundo”.105

Referências
103
Ibid., texto contracapa.
104
Gilbert Durand. L’Imagination Symbolique.,2e ed. Paris: Presses Universitaires de
France,1968, p. 9. (tradução nossa).
105
PROSAICO-voltaico. Em: Sistema do Imperfeito & Outros Poemas. Porto Alegre:
Globo,1977, p. 54.
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
2006.

_____. A água e os sonhos. 3. tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____. L’air et lês songes. 4e. réimp. Paris: Librairie José Corti, 1943.

BRANCO, Joaquim e Ronaldo Werneck. Suplemento do jornal Cataguases.


Cataguases: 07.09.1967.

CABRAL, Francisco Marcelo. Livro de poemas. Cataguases: Editora-empresa


Instituto Francisca de Souza Peixoto, 2003.

CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1972.

CESAR, Guilhermino e Francisco I. Peixoto. Meia-Pataca. Cataguases: Verde


Editora, s/d., p.s/n.

_____. Sistema do imperfeito & outros poemas. Porto Alegre: Globo, 1977.

COHEN, Jean. Estructura del Lenguaje Poético. Madrid: Editorial Gredos


S.A.,1970.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário.3.ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2002.

_____. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

_____. L’imagination Symbolique. 2.éd. Paris: Presses Universitaires de France,


1968.

MELLO, Ana Maria Lisboa. Ciências & Letras. Porto Alegre: Revista da
Faculdade Porto Alegrense de Educação, Ciências e Letras, 1977.

MELLO, Ana Maria Lisboa de; MOREIRA, Maria Eunice; BERND, Zilá (Orgs.).
Pensamento Francês e Cultura Brasileira. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2009.

WERNECK, Ronaldo. minas em mim e o mar esse trem azul. Cataguases: Editora
Poemação Produções, 1999.

RASTROS DE ORFEU NA POESIA BRASILEIRA MODERNA


Antônio Donizeti PIRES
UNESP/Araraquara

Introdução

Este trabalho é um recorte do projeto de pesquisa “Demandas de Orfeu (e


do Orfismo) na poesia brasileira moderno-contemporânea”, que desenvolvo na
UNESP, campus de Araraquara, na qualidade de professor da área de literatura
brasileira. Por isso, ao lado de umas poucas novidades interpretativas e
conceituais, tentarei fazer uma cartografia das migrações e andanças de Orfeu (ou
Orfeu e Eurídice)por momentos vários de nossa poesia, sempre frisando os modos
como isto se deu e tentando articular diacronia e sincronia. Antes de nosso périplo
em companhia do vate lendário, porém, vejamos rapidamente alguns traços
característicos do mito.

I – O mito de Orfeu (e Eurídice)

Tradicionalmente, o ciclo mítico de Orfeu (a narrativa) constitui-se de


quatro mitemas fundamentais: a) a fabulosa viagem do poeta ao lado dos
Argonautas, em busca do Velocino de Ouro; b) o casamento infeliz com a ninfa
Eurídice, que, vitimada por uma serpente, é logo perdida pelo poeta; c) a
consequente catábase de Orfeu ao Hades, aonde vai para tentar resgatar a esposa
do mundo dos mortos; d) por fim, a violenta morte de Orfeu, esquartejado pelas
enciumadas bacantes da Trácia. Em todas as situações, sobressai o Orfeu portador
da lira, cujo canto soberbo (música e palavra; construção e sentido; som e
imagem) encanta os homens, os monstros marinhos, os animais da Terra e outros
elementos naturais, bem como os próprios deuses do mundo subterrâneo, Hades e
Perséfone. Se o primeiro mitema é vincadamente épico, tendo-nos legado
epopeias e poemas épicos como a anônima Argonáuticas órficas ou a
Argonáutica de Apolônio de Rodes ou a de Valério Flaco, os outros três são
acentuadamente líricos e dramáticos: assim, o frustrado amor de Orfeu e Eurídice,
ou a morte do poeta, fizeram brotar, principalmente desde Ovídio e Virgílio, uma
pletora de poemas líricos, poemas dramáticos, óperas, tragédias, tragicomédias,
comédias, pinturas, esculturas, mosaicos, filmes, contos, romances, histórias em
quadrinhos...

II – O Orfismo

Além dos aspectos mais gerais, afeitos aos dicionários e tratados de


Mitologia, outros problemas avolumam o “feixe de contradições” que é Orfeu,
pois se crê que ele teria sido fundador de um culto mistérico e iniciático que leva
seu nome, o Orfismo: este, mais propriamente vincado por aspectos místico-
religiosos, nem por isso deixou de imiscuir-se nas representações mais
estritamente mítico-poéticas do bardo lendário. Assim, se em alguns momentos da
literatura universal as representações mítico-poéticas possam prevalecer, em
outros é quase impossível deslindar-se, no vasto acervo literário e iconográfico
que provém de Orfeu, o limite entre questões estético-poéticas e questões ético-
religiosas. Isto já está documentado em pelo menos duas obras literárias da
Antiguidade tardia atribuídas a Orfeu, os anônimos Hinos órficos e Argonáuticas
órficas (além dos lapidários e de obras várias de cunho teogônico e/ou esotérico).
Com o advento da modernidade romântico-simbolista, pode-se dizer que a con-
fusão entre o mito e o fundador religioso se dá principalmente nos modos por que
o poeta moderno se caracteriza e se autonomeia Demiurgo, Iniciado, Vidente,
Tradutor, Profeta, Vate, Eleito etc. – e tem em Orfeu seu protótipo platônico-
ideal. É o início, diríamos, de um pensamento órfico mais claramente moderno,
em relação à poesia e ao poeta, embora ainda seja muito complicado, hoje,
afirmar-se exatamente o que constitui e o que caracteriza tal pensamento órfico:
este, muito sumariamente e em grosso modo, a) pressupõe uma visão analógica do
mundo e o apreço pelas misteriosas relações poesia e música (como se a poesia
devesse atingir a música das esferas celestes e o número mágico constitutivo do
Universo, na perspectiva pitagórica); b) perfaz-se uma forma de conhecimento
esotérica que se alimenta de paganismo e cristianismo, idealismos diversos e
filosofia; c) pressupõe um sentimento de inadequação do poeta, que se sabe
exilado no mundo e portanto alijado das realidades essenciais, mas sempre com a
consciência de que é um eleito entre os homens e que a estes sempre pode revelar
uma verdade fundamental; d) enfim, requer também o conhecimento técnico do
ofício de poeta, a fim de que possa, pela palavra (que é som e sentido; mas
também magia e sugestão; e música e imagem) apreender e transmitir aos homens
o tipo de conhecimento que só a poesia pode proporcionar (conforme ideias que se
podem pinçar da obra de um Mallarmé, um Fernando Pessoa ou um Jorge de
Lima).

III – Orfeu na literatura brasileira

a) Do Barroco ao Parnasianismo

No Brasil, ainda que não haja tradição de estudos sobre Orfeu ou o


Orfismo, é possível vislumbrarmos pelo menos três fases (ou maneiras) diferentes
da aparição de Orfeu em nossa poesia lírica: na primeira (que vai, grosso modo,
do Barroco ao Parnasianismo), ele é apenas tema e motivo, como constatamos em
poemas de Gregório de Matos, Silva Alvarenga, Cláudio Manuel da Costa, Tomás
Antônio Gonzaga, Raimundo Correa ou Olavo Bilac. Deste, o soneto abaixo
transcrito (de Tarde, 1919), é exemplar do aproveitamento temático simples do
mito (em seu quarto mitema, pois trata da morte do poeta); aproveitamento que
então se escora nos postulados estéticos do Parnasianismo (aparato descritivo e
decorativo, impessoalidade, objetividade, clareza):

“A morte de Orfeu”

Em vão as bacantes da Trácia procuraram consolá-lo. Mas


Orfeu, fiel ao amor de Eurídice, encarcerada no Averno,
repeliu o amor de todas as mulheres. E estas, despeitadas,
esquartejaram-no.

Houve gemidos no Ebro e no arvoredo,


Horror nas feras, pranto no rochedo;
E fugiram as Mênades, de medo,
Espantadas da própria maldição.

Luz da Grécia, pontífice de Apolo,


Orfeu, despedaçada a lira ao colo,
A carne rota ensanguentando o solo,
Tombou... E abriu-se em músicas o chão...

A boca ansiosa um nome disse, um grito,


Rolando em beijos pelo nome dito:
‘Eurídice!’, e expirou... Assim Orfeu,

No último canto, no supremo brado,


Pelo ódio das mulheres trucidado,
Chorando o amor de uma mulher, morreu...106

b) Simbolismo e arredores

No segundo modo (que, em minha perspectiva, engloba Simbolismo e Pré-


Modernismo, abarcando os anos de1893 a 1923), já subjaz certa cosmovisão
órfica na obra de alguns poetas, notadamente Cruz e Sousa.
Para vincar a diferença entre os procedimentos estéticos parnasianos e
simbolistas, evidenciando-se quão mais perto estes estão de um pensamento órfico
moderno, escolhi o soneto “O Assinalado”, de Cruz e Sousa (de Últimos sonetos,
1905):

“O Assinalado”

Tu és o louco da imortal loucura,


O louco da loucura mais suprema.
A Terra é sempre a tua negra algema,
Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,


Mas essa mesma Desventura extrema
Faz que tu’alma suplicando gema
E rebente em estrelas de ternura.

106
BILAC, 1997, p. 331-332.
Tu és o Poeta, o grande Assinalado
Que povoas o mundo despovoado,
De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica


Toda a audácia dos nervos justifica
Os teus espasmos imortais de louco!107

Observe-se que a cosmovisão órfica referida pronuncia-se na conjunção de


vários fatores: a) nos elementos estruturais, morfossintáticos e lexicais do poema;
b) nos aspectos semânticos perceptíveis nos estratos mais superficiais, mas
também na significação profunda do texto; c) na seleção imagética requintada,
que aproxima, por exemplo, o resultado do trabalho do poeta a “estrelas de
ternura”; d) nos aspectos rítmicos e sonoros, que se marcam tanto pelos
decassílabos sáficos e heroicos, quanto pelo sistema de rimas, pelas assonâncias e
aliterações: tudo isto adensa a sugestiva e espiritualizada musicalidade do poema,
como se este quisesse atingir as esferas mais profundas e mais altas do Universo,
projetando o eu-lírico para fora da Terra degradada. A adesão órfica do soneto, a
meu ver, completa-se pela consciência técnica do artista (já que estamos diante de
um evidente metapoema), mas, principalmente, pela autocaracterização do poeta
como “Assinalado” e “louco” e, por extensão, como “maldito” e “pária social” –
temas caros, como se sabe, ao Romantismo-Simbolismo, e que na obra de Cruz e
Sousa dizem muito de sua condição humano-social.
Outros poetas, que poderíamos considerar da “Segunda Geração
Simbolista” (Ernani Rosas, Eduardo Guimaraens, Alceu Wamosy, Emiliano
Perneta, Clemente Ritz...), somar-se-iam ao intenso trabalho de Dario Veloso em
Curitiba, cidade onde o Simbolismo brasileiro mais tingiu-se de postulados
esotéricos. Dario Veloso, muito apegado ao rito, ao mito e à iniciação, fundou
naquela cidade o Instituto Neo-Pitagórico em 1909, sediado no Templo das
Musas. Além disso, ressuscitou festas pagãs gregas consagradas às musas e aos

107
SOUSA, 1995, p. 201.
deuses: falta-me ainda uma medida mais clara e justa das relações que se podem
estabelecer entre os vários poetas citados, mas, de um modo ou de outro, há em
todos eles um apreço requintado pelos temas gregos e certa recorrência ao mito de
Orfeu, seja por conta do amor deste por Eurídice, seja por sua condição de poeta
exemplar, seja devido aos graus de mistério e iniciação que vincam a religião do
Orfismo.
As datas convencionais que escolhi vão desde a publicação das obras
simbolistas de Cruz e Sousa (Missal e Broquéis, 1893), até o aparecimento de
Orpheu (1923), poema dramático do gaúcho Homero Prates, por ele mesmo
classificado como “[...] um canto de amor, um poema filosófico e um sonho
espiritualista”.108Vazado em versos polimétricos (com preferência pelo
alexandrino de rima emparelhada, nos colóquios de Orfeu e Eurídice), o poema
recobre todo o ciclo mítico de Orfeu, não faltando a sua consagração como “[...]
Pontífice e Rei da arte sacerdotal [...]”109, poiso moço é “Vidente”110, é “o filho
predileto / de Apolo”111 e detém o “poder secreto [...] / de encantar as almas”112.
Veja-se, nos campos floridos da Trácia, o primeiro encontro de Orfeu e Eurídice:

[...]
Orfeu
Hoje é a primeira vez que te olho face a face
e entanto é como se eu há muito já te amasse
de tal modo me bate o coração no peito.

Eurídice
Divino Orfeu! bem sei que és único e perfeito,
mas não outro senão a ti é que eu buscava
quando pelas manhãs, mal o sol despontava,
só com meu grande amor, cantando de alegria
de entre os rosais em flor dos bosques te sorria,
vendo-te em sonho, assim, tal qual te vejo agora. [...] 113

108
PRATES, 1923, p. 35. Atualização ortográfica feita por mim, com base na primeira
edição da obra (1923).
109
Idem, p. 111-112.
110
Idem, p. 111.
111
Idem, p. 111.
112
Idem, p. 111.
113
PRATES, 1923, p. 42.
Poema importante nos quadros de um Orfismo à brasileira, inclusive por
evidenciar o imbricamento Parnaso e Símbolo no nosso chamado Pré-
Modernismo, Orpheu permanece à margem do cânone e aguarda estudo e
reedição. Tal imbricamento estético do poema parece ter vincado bastante a obra
do hoje desconhecido Homero Prates, que Rodrigo Otávio Filho considera como
penumbrista e que Andrade Muricy coloca entre os últimos simbolistas, embora
ambos reconheçam o pendor esteticista, o gosto pelo helenismo, a queda pelo
esoterismo, o cultivo do idioma e a virtuose rítmica e versificatória como
características muito pessoais de Homero Prates. Otávio Filho chega a dizer que
ele, neoplatônico, “Seguia, como discípulo, a lição de Plotino: o supremo objetivo
das almas é a contemplação da Beleza”.114

c) Modernismo e contemporaneidade

No terceiro momento (a partir dos anos 1940/50 até a esta parte), decerto
por influxo da divulgação, entre nós, de poetas como Rilke e Fernando Pessoa,
constata-se a configuração mais plena e efetiva de uma poesia realmente órfica e
original, cujos vários matizes podem: a) misturar elementos mítico-poéticos e
místico-religiosos típicos do ciclo de Orfeu (Dora Ferreira da Silva); b) acrescer, a
estes, atributos católico-cristãos (Jorge de Lima); c) emular Orfeu com o poeta
moderno decaído, sem função na sociedade capitalista (Murilo Mendes, Carlos
Drummond de Andrade); d) explorar uma imagética mais tradicional, em termos
de tema e motivo, dos vários mitemas que compõem a trajetória do lendário
poeta-amante (Dante Milano, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Marly de
Oliveira); e) aclimatar Orfeu à realidade social brasileira (Vinicius de Moraes, no
teatro) etc.
Para o ensejo, lembremos primeiro o programático “Prefácio
interessantíssimo” com que Mário de Andrade abre a Pauliceia desvairada (1922)
e relativiza, de certo modo, a propalada ruptura ocasionada pela vanguarda:

114
OTÁVIO FILHO, 1986, p. 578.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim
representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis,
cinema, asfalto. [...] Sei mais que pode ser moderno artista que
se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun’Álvares.
Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de
afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-
dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes. 115

Evidente que o poema Orpheu, de Homero Prates, não é ainda moderno no


sentido proposto por Mário de Andrade, mas talvez se possa dizer que este, “[...]
um tupi tangendo um alaúde!”116; dividido em “trezentos [ou] trezentos-e-
cinquenta”117; arlequim melancólico compondo poemas à negra, à amiga, ou
mesmo à cidade brumosa e aos cafezais paulistas, tenha atualizado/incorporado o
mito de Orfeu de maneira muito particular. Esta maneira pressupõe a beleza nova
e suja da cidade moderna, mas inclui também o constante atrito com sua São
Paulo contraditória, com o Brasil agreste e musical (nova Trácia recém-
descoberta), ou com a própria sexualidade do poeta.
Seja como for, o Orfeu moderno, decaído inclusive, aparece mais bem
configurado em poetas posteriores, conforme deixam entrever os dois poemas
seguintes de Murilo Mendes. Extraídos de As metamorfoses (1944), os poemas
são uma prévia do modo reiterado como Orfeu (e uma madura cosmovisão órfica,
muito essencialista e pessoal) vincará a obra de Murilo Mendes, até Convergência
(1970). As duas composições, “Orfeu” e “Novíssimo Orfeu”, foram transcritas, já
se disse, de As metamorfoses, livro cujo título ressalta o rico processo de
apropriação e transformação do poeta lendário, através do qual Mendes se insere
em seu momento histórico-político-social e refaz o questionamento sobre o papel
do poeta no “mundo caduco”, destituído de sentido118:

“Orfeu”

115
ANDRADE, 19__, p. 32.
116
p. 37.
117
P. 165.
118
Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Murilo
Mendes, veja PIRES (2010).
O sino volta de longe,
Desperta a ronda infantil.
Os homens-enigmas passam,
Não reconhecem ninguém.
O mundo muitas vezes
É tão pouco sobrenatural.

Penso nas amadas vivas e mortas,


Penso em suas filhas
Que são um pouco minhas filhas.

Ajudo a construir
A Poesia futura,
Mesmo apesar dos fuzis.

Os planetas vão se aproximando,


Alguém volta para o céu:
O universo é um só.119

“Novíssimo Orfeu”

Vou onde a poesia me chama.

O amor é minha biografia,


Texto de argila e fogo.

Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.

O mundo alegórico se esvai,


Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.

A estrela azul familiar


Vira as costas, foi-se embora!
A poesia sopra onde quer.120

119
MENDES, 2002, p. 85.
120
MENDES, 2002, p. 124.
Como já aventado, são muitos os poemas que perfazem o ciclo mítico de
Orfeu (ou Orfeu e Eurídice), em nossa poesia dos anos 1940/50, até os dias atuais.
Merece menção especial, além dos nomes de Dante Milano, Carlos Drummond de
Andrade e Vinicius de Moraes, o poeta alagoano Jorge de Lima, cuja obra final,
mais propriamente órfica, inclui o Livro de sonetos (1949) e a Invenção de Orfeu
(1952). No entanto, como hipótese de trabalho em curso, a estes acrescento o
Anunciação e encontro de Mira-Celi, livro de 1943 só publicado por Lima em
1950, e cujos 59 poemas (em prosa e/ou em versos) mantêm certa aura de mistério
em relação à figura de Mira-Celi: quem é ela? A Virgem Maria? A Musa? A
mulher pura e a decaída? A mãe, a deusa, o eterno feminino? A Alma do poeta?
Mira-Celi é Eurídice? Talvez seja; e a se adotar tal linha interpretativa, vê-se que
o encontro e a anunciação da figura seriam o encontro e a anunciação da própria
Poesia personificada, como que a antecipar a aventura mais substancialmente
órfica dos dois últimos livros de Jorge de Lima, conforme se pode ler no segundo
poema da série:

2
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo
que aparece ao longo de meu poema.
Nele estás construída à semelhança de um imenso órgão
movimentado pelo meu espírito.
Cresces nele paralelamente a teu desenvolvimento físico,
mas incognitamente, como uma órfã dentro da multidão.
Às vezes, quando dobras uma página, perguntas: – ‘Sou eu?’
Mas, olhando depois a paisagem mudar tanto, no espaço de um
segundo,
encontras os teus membros na nudez de uma frase.
Nunca te libertará deste parque em que nos encerramos,
fingindo dois desaparecidos,
e em que nos nutrimos um do outro contra as leis naturais.
Outras vezes te encolhes em mim, ó minha pequena maré;
e basta que eu abra as pálpebras e a minha memória te encontre,
para te recompores imediatamente
em minha maior dimensão.
As nossas respirações enchem o mundo,
achatam o mar,
agitam as palmas e os areais.
Pairamos em planos irrealizáveis à maioria das aves
com outra visão oculta em cada palavra.
Pouca gente encontrará a chave deste mistério.
E os olhos que perpassarem através de tantos poemas que não
findam e que se transformam de momento a momento,
não compreenderão o movimento perpétuo
em que nos perseguimos e nos superpomos.
Outras vezes ainda, as minhas mãos são um disfarce de ti,
escrevendo tua história ou me sustentando a face.
Ora pareces marcha nupcial; és, no entanto, elegia.
Ora és sacerdotisa, musa, louca, pastora ou apenas ave.
Dei-te diversos nomes, para que ninguém te acompanhe.
Anuncio que morreste, para que ninguém te convide.
Quase sempre te transformo, para te distribuir.
E, quando me resta uma única migalha, reconstituo-te como
uma catedral
e alimento-te como uma criancinha.
Figuramos no mapa como um sol gêmeo que num perpétuo
eclipse
desse a impressão de um só núcleo.
Gravidades estranhas nos atraem: sombras tutelares protegem
a nossa rotação, em que tudo são coincidências de duas asas
num corpo.
Algum sacerdote antigo já nos tinha visto, por acaso, uma noite,
e morreu sem nos decifrar, pois não voltamos ainda
nem à primeira página, nem à primeira estrofe
do imenso e misterioso poema sempre por terminar. 121

Carlos Drummond de Andrade, como se sabe, apresenta várias fases e


faces em sua obra poética, uma vez que dedicou pelo menos 60 anos ao incansável
trabalho com a palavra. Grosso modo, se nos valemos da ordem cronológica de
suas publicações, vemos que a fase inaugural (anos 30) guarda bastante afinidade
com o primeiro Modernismo; a segunda (anos 40) volta-se mais para a poesia
social, de participação (segundo Modernismo); a terceira (anos 50) quer-se mais
refinada, ligada a certa tradição elevada da lírica; a quarta (anos 60/70, a partir da
série Boitempo), reatando as fases anteriores, privilegia a memória, a infância, a
família, a biografia sua e alheia, a província. A trajetória do poeta culmina talvez
121
LIMA, 1974, p. 116-117.
com a poesia erótica dos anos 80/90, embora o tema sempre tenha sido cultivado
por Drummond e perpasse os vários momentos de sua obra. Assim, por certo se
pode considerar que a recorrência de temas e motivos confere certa unidade à obra
drummondiana, embora seja diferente e específico o valor concedido a cada um de
seus livros em particular: por exemplo, a crítica tem A rosa do povo em grande
apreço, mas o mesmo não se pode dizer da série Boitempo ou dos poemas de
circunstância. Aceita a premissa, deve-se ter em mente que ela não vale,
entretanto, para a fase dos anos 50, tempo em que o poeta, cansado dos fatos
sociais e mundanos, e cansado do próprio Modernismo, agora procura o
recolhimento, a depuração e os temas mais universais e metafísicos, cujo
rebuscamento formal e lexical acaba por redimensionar seus caminhos, ao menos
em parte. Dentre tais temas novos, é com certa surpresa que se constata o
florescimento do “orfismo drummondiano”, embora de curta duração e sem a
adesão essencial que vinca a obra de Jorge de Lima ou a de Murilo Mendes.
É no soneto “Legado”, de Claro enigma (1951), que Drummond já se
reporta ao vate lendário no segundo quarteto: “[...] Tu não me enganas, mundo, e
não te engano a ti. / Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu, / a vagar,
taciturno, entre o talvez e o se. [...]”122. Mas é em Fazendeiro do ar (1954) que,
além do soneto “Viagem de Américo Facó”, dedicado à descida do amigo morto
ao Hades (“Sombra mantuana, o poeta se encaminha / ao inframundo deserto,
onde a corola / noturna desenrola seu mistério / fatal mas transcendente [...]” 123),
encontra-se o belo “Canto órfico”, poema talvez atípico no geral da obra de
Drummond, que passo a transcrever:

A dança já não soa,


a música deixou de ser palavra,
o cântico se alongou do movimento.
Orfeu, dividido, anda à procura
dessa unidade áurea, que perdemos.

Mundo desintegrado, tua essência


paira talvez na luz, mas neutra aos olhos

122
ANDRADE, 1980, p. 165.
123
Idem, p. 205.
desaprendidos de ver; e sob a pele,
que turva imporosidade nos limita?
De ti a ti, abismo; e nele, os ecos
de uma prístina ciência, agora exangue.

Nem tua cifra sabemos; nem captá-la


dera poder de penetrar-te. Erra o mistério
em torno de seu núcleo. E restam poucos
encantamentos válidos. Talvez
um só e grave: tua ausência
ainda retumba em nós, e estremecemos,
que uma perda se forma desses ganhos.

Tua medida, o silêncio a cinge e quase a insculpe,


braços do não-saber. Ó fabuloso
mudo paralítico surdo nato incógnito
na raiz da manhã que tarda, e tarde,
quando a linha do céu em nós se esfuma,
tornando-nos estrangeiros mais que estranhos.

No duelo das horas tua imagem


atravessa membranas sem que a sorte
se decida a escolher. As artes pétreas
recolhem-se a seus tardos movimentos.
Em vão: elas não podem.

Amplo,
vazio
um espaço estelar espreita os signos
que se farão doçura, convivência,
espanto de existir, e mão completa
caminhando surpresa noutro corpo.

A música se embala no possível,


no finito redondo, em que se crispa
uma agonia moderna. O canto é branco,
foge a si mesmo, vôos! palmas lentas
sobre o oceano estático: balanço
de anca terrestre, certa de morrer.

Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos


e comovidos membros naturais,
e límpido reinaugura
o ritmo suficiente, que, nostálgico,
na nervura das folhas se limita,
quando não compõe no ar, que é todo frêmito,
uma espera de fustes, assombrada.

Orfeu, dá-nos teu número


de ouro, entre aparências
que vão do vão granito à linfa irônica.
Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa
atmosfera do verso antes do canto,
do verso universo, latejante
no primeiro silêncio,
promessa de homem, contorno ainda improvável
de deuses a nascer, clara suspeita
de luz no céu sem pássaros,
vazio musical a ser povoado
pelo olhar da sibila, circunspecto.

Orfeu, que te chamamos, baixa ao tempo


e escuta:
só de ousar-se teu nome, já respira
a rosa trismegista, aberta ao mundo.124

O “Canto órfico” de Drummond, numa primeira leitura, revela-se um


poema hermético, de difícil acesso e compreensão (inclusive no que tange ao
léxico). É um longo poema, que se auto-intitula “Canto” (decerto em lembrança às
origens conjuntas de lírica e música na tradição órfica), mas onde é patente a nota
elegíaca. Não se pode dizer que o poema seja uma tematização estrita do ciclo
mítico de Orfeu, pois outras parecem ser as preocupações de Drummond (mais
metafísicas, dir-se-ia): ele sabe quão gasta e conhecida é a história lendária do
poeta e sua amada. Por outro lado, é evidente que estamos diante de um
metapoema, uma vez que de Poesia trata a composição: das origens míticas desta;
do papel de seu fundador e de sua situação, hoje, no mundo moderno; por
extensão, do papel e da situação do próprio poeta moderno, degradado tal qual o
mito originário.
A composição soma 64 versos que, na sua maciça maioria, compõem 43
versos decassílabos (ER 6-10, sobretudo), a completar-se com alguns de 11
124
ANDRADE, 1980, p. 213-215.
sílabas poéticas, chamados hendecassílabos (“o cântico se alongou do
movimento” – ER 2-7-11), e outros, poucos, dodecassílabos: “dera poder de
penetrar-te. Erra o mistério” (ER 4-8-12); “Tua medida, o silêncio a cinge e quase
a insculpe” (ER 6-12). Entre os versos de medida curta, há um de apenas uma
sílaba poética (“Amplo”), alguns dissílabos (“vazio”; “e escuta”), hexassílabos
(“A dança já não soa”; “Orfeu, dá-nos teu número”) e de sete sílabas, as
redondilhas maiores (“e límpido reinaugura”). Se a versificação demonstra o
apuro formal do texto, corrobora também a maestria técnica de Drummond, o que
o liga à longa tradição poética em língua portuguesa: isto se verifica pelo intenso
uso do decassílabo, o mais nobre de todos os versos da língua. Porém (e isto é o
mais importante, no poema em apreço), a metrificação oscilante, ziguezagueante,
esquartejada, está a demonstrar, no plano da expressão, o tema que a composição
desenvolve: o dilaceramento de Orfeu e das coisas órficas, no mundo moderno, e
a remota possibilidade de (re)encarná-lo, presentemente. O uso oscilante dos
versos, com destaque para o decassílabo (ER 6-10), sustenta também o ritmo e a
musicalidade algo truncada (esquartejada) do poema, que não tem o respaldo de
um sistema fixo de rimas ou uma estrofação regular.
Muito se deveria dizer ainda do “Canto órfico” drummondiano, para uma
possível e clara interpretação, mas passemos enfim à apresentação dos dois
últimos poemas escolhidos para esta ocasião, da poeta paulista Dora Ferreira da
Silva. No caso dela, pode-se dizer que os deuses ainda habitam a Terra, numa
simbiose entre sagrado, poesia e telúrico difícil de separar. Assumidamente órfica,
a poesia da autora (tradutora de Rilke e Jung, entre nós) é presidida pelas figuras
de Perséfone Koré, Orfeu e Apolo. A presença destes, mais a valorização da
Natureza e a aceitação plena do mistério, confere à obra da artista uma singular
cosmovisão órfica, pois mescla o que chamo Orfismo mítico-poético e Orfismo
místico-religioso – ou seja, a poeta tematiza passagens do ciclo mítico de Orfeu
tal qual a tradição e os manuais de Mitologia nos ensinam, porém ultrapassa o
descritivismo puro e simples porque vai gravando, a cada novo poema, o
inequívoco sinal de pertencimento à crença ancestral dos órficos, dotando então
sua poesia de rara sacralidade, hermetismo e plena comunhão com a Natureza,
com o ser humano e os animais, com Deus e os deuses, com o passado e o
presente, buscando aquela atemporalidade essencial, mistérica, iniciática, que
parece definir, para Dora, a poesia lírica. Por tudo isto, leiamos o metapoético
“Orfeu” (publicado em 1973, em Uma via de ver as coisas), que faz a conexão
necessária entre o vate lendário e o poeta presente; e leiamos também o misterioso
(e também metapoético) “Órfica”, poema emblemático do pensamento da poeta,
pois que aparece e reaparece em vários de seus livros (Uma via de ver as coisas,
1973; Poemas da estrangeira, 1995; Hídrias, 2004)125:

“Orfeu”

I
Canto canções
para os que morreram.
Doces animais acorrem
para ouvir o canto
e me acolhem
nos quietos corações:
pomba, pavão,
pássaros de beira d’água,
cervos, esquilos
e a Árvore.
Vem a pantera, agora mansa.
Sob as folhas vivas
sustenho na mão a lira.
É isso a solidão.

II
Colheu a flor – o Poema –
arrancou-o à resina da vida
e entre as páginas prendeu-o
debatendo-se, vivo.
A fonte alimentou-o nas águas.
E a mão o feriu
para dispersá-lo
e, nele, o coração.

125
Para maior aprofundamento desta e de outras questões órficas na poesia de Dora Ferreira
da Silva, veja PIRES (2010 e 2011).
III
Sob a Árvore chamas,
sem que os lábios falem.
Eis o cervo, a pantera,
a áspide, o pássaro,
o boi ruminando sombra:
ramos dispersos,
bebem o orvalho da música,
reunidos nas cordas
de teu claro
coração.126

“Órfica”

Não me destruas, Poema,


enquanto ergo
a estrutura do teu corpo
e as lápides do mundo morto.
Não me lapidem, pedras,
se entro na tumba do passado
ou na palavra-larva.
Não caias sobre mim, que te ergo,
ferindo cordas duras,
pedindo o não-perdido
do que se foi. E tento conformar-te
à forma do buscado.
Não me tentes, Palavra,
além do que serás
num horizonte de Vésperas.127

Apesar de muito breve, suponho que a leitura dos poemas tenha ajudado a
mapear os rastros e os caminhos do mito de Orfeu na poesia brasileira, em seus
diversos períodos histórico-literários, e em seus vários e até contraditórios
significados estéticos e éticos.

À guisa de (in)conclusão

126
SILVA, 1999, p. 93.
127
SILVA, 2004, p. 30.
Depois do rápido périplo, considero positivo refletirmos (ainda que haja
parcas respostas) sobre algumas questões fundamentais (e atemporais) sobre o
mito, suas migrações e aproveitamento literário, e sobre a literatura brasileira:
Quem é Orfeu? Quem é o poeta? Quem é o poeta brasileiro? Qual a função do
mito? Qual a função do poeta? Qual a função do poeta brasileiro? Por que migra
Orfeu? Como migra Orfeu? Tais migrações são comparáveis às migrações e às
e/migrações do povo e do poeta do Brasil? Que metamorfoses o mito de Orfeu vai
delineando nas várias literaturas pelas quais per/passa? Que características novas,
espaciais e temporais, sintáticas e semânticas, vai adquirindo Orfeu em suas
andanças de uma literatura a outra? Qual o real significado de Orfeu (histórico,
diacrônico e sincrônico) na literatura brasileira? A utilização do mito de Orfeu,
nesta, diminuiria a originalidade e a qualidade de sua produção? Ou faria com que
ela se desvirtuasse de questões inerentes a nossa cultura, tais a identidade, o
nacionalismo, a ruptura, a antropofagia, o empenho ético-social? Por que estudar
Orfeu? Ele teria relações com algum mito prototípico indígena brasileiro, em
relação à capacidade demiúrgica de criação? Se sim, que comparações estabelecer
entre ambos, uma vez que Orfeu (o Orfismo) está baseado numa teogonia que
diverge da teogonia tradicional grega? Seria possível considerar, em civilizações
diferentes, que viagens ao Inferno pressuponham um pensamento órfico? Como
este se dá? O que é pensamento órfico? Em suma, o que é poesia órfica? O que é
poesia órfica, ontem e hoje? Toda poesia é órfica?
Enfim, a estrutura, a essência e os temas da poesia lírica talvez ainda sejam
os mesmos, na Grécia arcaica e no Brasil dilemático que emerge neste século
XXI. Porém, é meu direito advogar, em face de um mítico/místico Orfeu grego,
um Orfeu brasileiro de carne e osso (ou mesmo de papel e tinta), cujo canto-
palavra medule e module as nossas contrapostas e contraditórias vozes roucas,
nem sempre audíveis.

Referências
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POÉTICA DA PEDRA: A LINGUAGEM DA DUREZANA POESIA DE
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Ana Karina SILVA128

Todo poeta verdadeiro é muito mais


capaz do que se pensa geralmente de
raciocínio exato e de pensamento
abstrato.

Paul Valéry

O Engenheiro, terceira obra de João Cabral de Melo Neto, foi publicada


em 1945 e sinaliza uma mudança poética do autor caso se compare à poesia
anterior que diversos críticos129 acreditavam ser fortemente influenciada pelo
Surrealismo. Essa postura tomada demonstra um amadurecimento e o início de
uma trajetória lúcida apresentada pelo poema que dá título à obra: como um
engenheiro, o poeta faz um trabalho de construção, desenhando, projetando e
calculando e utilizando o lápis, o esquadro e o papel. Essa valorização do trabalho
com a linguagem é empregada conscientemente por alguns poetas da literatura
moderna como Baudelaire, Mallarmé e Valéry além dos brasileiros Carlos
Drummond de Andrade, Murilo Mendes e o próprio João Cabral. No entanto,
percebe-se, nas composições deste último, um processo, quase levado ao extremo,
em que forma e conteúdo se interpenetram criando uma espécie de programa
estético do poeta, plenamente alcançado em obras posteriores, tornando o nome de
João Cabral de Melo Neto como um marco na poesia brasileira.

A análise proposta por este trabalho será justamente perceber de que forma
se articulam os preceitos poéticos de O Engenheiro à época de sua produção

128
Mestranda em Teoria da Literatura do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
129
A fortuna crítica de João Cabral de Melo Neto estudada para a realização desse trabalho
percorre as análises de Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Antônio Carlos Secchin, dentre
outros listados nas referências bibliográficas.
(1942–45) e publicação (1945). Considerando as assertivas “cada poema é uma
leitura da realidade”130 e “escrever um poema é decifrar o universo” 131
, ambas de
Octávio Paz, percebe-se na poesia cabralina uma apreensão bastante racional do
mundo: o próprio poeta-engenheiro afirma que “sonha coisas claras: superfícies,
tênis, um copo de água” (vv. 3 e 4).132 Não se pode ignorar a presença dessas
imagens concretas advindas dos objetos que o autor seleciona para compor seus
poemas e que traduzem um “mundo palpável”, uma leitura precisa e uma
articulação com a concretude e a objetividade. Enquadrar sua poesia em um tempo
visivelmente modificado pela Segunda Guerra Mundial é uma tarefa bastante
difícil já que em uma primeira leitura de O Engenheiro, João Cabral parece não
dialogar com a sua realidade histórica e social. No entanto, resistir a essa
tendência panfletária é uma tomada de posição. O poeta cria um universo onde a
linguagem se basta. Faz sentido, caso se considere que, em um mundo caótico,
onde predomina a violência e a opressão, a palavra resiste, permanece fora do
tempo. Merquior afirma que “a linguagem imita, ao nível das relações universais,
a aparência do mundo.”133 Nessa linha, não se pode dizer que a poesia de João
Cabral é alheia a seu tempo, porém, o poeta decide não falar diretamente e sim
mostrar uma resistência dentro desse contexto.

Em Poesia e pensamento abstrato, Paul Valéry discorre sobre a criação


poética e faz uma reflexão sobre a poesia e o pensamento abstrato cuja
combinação é considerada “perigosa” pelo senso comum: “as análises e o trabalho
do intelecto, os esforços de vontade e de exatidão em que o espírito participa não
concordam com essa simplicidade de origem, essa superabundância de
expressões, essa graça e essa fantasia que distinguem a poesia.” 134 A profundidade
encontrada em uma poesia, nesse sentido, seria somente conseguida através de

130
PAZ, Octavio. Analogia e ironia. Em: PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo
à vanguarda. São Paulo: Nova Fronteira, 1984, p. 98.
131
Idem, Ibid. p.98.
132
NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 34.
133
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: ______. A astúcia da mimese:
ensaios sobre a lírica. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 22.
134
VALÉRY, Paul., 1991a, p. 201.
uma inspiração e não através da profundidade da mesma natureza de um filósofo,
advinda do raciocínio. Esse contraste entre inspiração e raciocínio parece vir da
época dos gregos antigos, quando o poeta invocava a Musa para realizar a sua
“missão” de escrever o poema como se ele não possuísse responsabilidade pelo
que estava sendo escrito, ou seja, era simplesmente um instrumento, a voz da
Musa no mundo. Para Valéry, todo o trabalho com a linguagem feito pelo poeta
não pode ser obra do mero acaso. A esse “estado de poesia” 135 mencionado como
“irregular, inconstante, involuntário, frágil, e que o perdemos, assim como o
obtemos, por acidente”136 não é suficiente para se fazer um poeta. É necessário
perceber a diferença entre o estado poético e a produção da poesia:

Um poeta, portanto, na qualidade de arquiteto de poemas, é


muito diferente daquilo que é como produtor desses elementos
preciosos com os quais toda a poesia deve ser composta, mas
cuja composição se distingue e exige um trabalho mental
totalmente diferente. [...] um poema é uma espécie de máquina
de produzir o estado poético através das palavras. 137

Nessa acepção, a obra do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto é


exemplar na literatura brasileira e considerada como um divisor de águas, uma
referência na nossa poesia. Sua mineralidade, seu raciocínio lógico e sua
arquitetura poética tão compatíveis à densidade dos materiais utilizados em sua
obra, convertem-no a um sujeito único na Geração de 45 a qual, conforme
Merquior, pertence apenas cronologicamente138. Essa “geração” de poetas cujo
propósito era de elevar

a linguagem à altura da essência poética, [...] não passou,


ressalvadas as exceções que não invalidam a generalidade deste
panorama, dos limites retóricos da dicção elevada, presa a um
vocabulário de eleição, previamente considerado poético, em
que substantivos privilegiados se uniam a adjetivos nobres. 139

135
Ibid, p. 206.
136
Ibid.
137
Ibid, p. 217.
138
José Guilherme Merquior afirma sobre uma “incômoda convergência cronológica entre
João Cabral e os seus companheiros poetas da geração de 45 em “Falência da Poesia ou uma
geração enganada e enganosa: os poetas de 45”, ver as referências bibliográficas.
139
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 29.
Entende-se assim que o termo “geração” deve ser aplicado à situação
histórica e não a um programa estético elaborado por esses artistas. Como declara
Benedito Nunes140, ninguém escolhe em qual geração irá nascer, mas pode-se
escolher a partir dela e, às vezes, contra ela. João Cabral escolheu o caminho
contrário ao de seus contemporâneos: ele rejeita a linguagem elevada e a poesia
profunda, defendendo o princípio da clareza e do controle reflexivo da elaboração
poética. O poeta colocará em prática o preceito de que “a formulação poética só é
perfeita quando passa pelo crivo da racionalidade...” 141 e para a realização deste,
serve-se de um conjunto de imagens que alcançam um relevo plástico de
concretude e lucidez.

A sua primeira obra Pedra do sono constitui uma fase de exercício


poético, mas já se percebe o sentido alegórico que possui o título: a pedra é um
objeto mediador entre o sonho e a poesia. Os poemas presentes nesse livro
sugerem “visões que visitam e fascinam o espírito adormecido.” 142 O poeta nada
em um rio invisível, onírico. Articula-se numa poética do vago, do impreciso: as
palavras que compõem os poemas da obra referida são “nuvem”, “sonho” dentre
outras que revelam uma poesia latente ao espírito em estado de sono, estado esse
que evoluirá para o de vigília a partir da terceira obra do poeta. O segundo livro,
Os três mal amados, ele escreve em prosa, conferindo uma recusa ante os valores
poéticos em vigor e tentando um exercício de legitimar suas ideias em poesia
enquanto barreira aos sentimentos e emoções, ou seja, o que os críticos definem
como antilira presente em sua obra.

Essa saída do mundo onírico para o mundo perceptivo é uma característica


da poesia cabralina, vislumbrada com a publicação de O Engenheiro. O sonho
tematizado nas obras anteriores continua sendo uma constante. No primeiro
poema “As Nuvens”, já se identifica uma transição dessa simbologia relativa aos
sonhos, ao vago, até a exploração da linguagem a partir daquilo que é observado.

140
Ibid.
141
HOUAISS apud NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
1974, p. 32.
142
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 35.
As tentativas de definição do elemento nuvem são feitas através de metáforas que
evidenciam uma busca pela concretude, no sentido do táctil da palavra.

As nuvens são cabelos


crescendo como rios
são os gestos brancos
da cantora muda;143

A natureza confusa e mal definida da nuvem evidencia seu caráter


transitório. Para constituir uma imagem precisa desse elemento, o autor lançou
mão de outros cujas características corroboram com esse propósito de dar uma
concretude à nuvem. Nesse sentido, os “cabelos crescendo como rios” (vv. 1 e 2)
fazem perceber a mobilidade e a fluidez dessas formas que se renovam assim
como o próprio movimento aéreo da nuvem. Essa forma que se desloca é
reforçada pela imagem de “países de vento” (v. 8), expressando essa mutação
figurativa da nuvem, “símbolo da metamorfose viva [...] em virtude de seu próprio
vir a ser”, conforme Chevalier. Os “gestos brancos da cantora muda” (vv. 3 e 4) e
as “estátuas de voo à beira de um mar” apresentam-se numa atitude análoga à da
indefinição da nuvem: a impossibilidade de falar da cantora muda criará uma nova
forma de expressão para que ela possa ser compreendida, assim como o voo da
estátua, que manifesta um movimento que só o voo pode dar. É a liberdade do voo
em contraste à imobilidade da estátua. Numa comparação à poesia do autor, é a
liberdade da linguagem somada à objetividade do poeta-engenheiro.

Nota-se, com a leitura desse poema, que a obra de João Cabral de Melo
Neto não é de fácil compreensão. Pelo contrário, o próprio autor dizia pensar em
cada palavra esperando instigar o leitor à reflexão. Em “As Nuvens”, os aspectos
concretos dos objetos são utilizados para atingir o nível subjetivo: as imagens
inseridas nesse poema criam uma série de paradoxos que evoluem de um limite
abstrato do sensível a um ideal de lucidez poético que substitua a pura expressão
dos estados subjetivos. Há uma espécie de redução do que havia de onírico
143
NETO, João Cabral de Melo. O engenheiro (1942 – 1945). Em: Serial e antes. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 31.
inicialmente. Essa mutação pode ser inferida na trajetória de João Cabral já que
este ainda definia a sua poética.

A cor branca é reiterada três vezes ao longo do poema, sendo significativa


a sua simbologia:

“valor limite” que ora significa ausência, vazio, ora a soma de


todas as cores; aparece ora no início, ora no final da vida diurna
e do mundo manifesto. Como “cor de passagem”, pode
representar o branco da alvorada, ainda vazia de cores, mas rica
do potencial de manifestação, pois um “vazio” suspenso entre a
ausência e a presença. Sendo “não-cor”, produz o mesmo efeito
do silêncio, entretanto, que é repleto de “possibilidades vivas”,
“um nada anterior a todo nascimento, anterior a todo começo”.
Cor iniciadora, o branco passa a ser, em sua acepção diurna ou
“solar”, a cor da revelação, da transfiguração que desperta o
entendimento, logo, “cor essencial da sabedoria.” 144

A imagem da cor branca na poética cabralina pode ser concebida


como o desejo de entendimento claro do poema, desmontando o embalo
surrealista do texto, saindo da zona menos clara das imagens do sonho e
projetando uma paisagem de vigília. Além dessa concepção, vale salientar aqui a
última estrofe do poema “As Nuvens”, que possibilita outra interpretação da cor
branca:

são a morte (a espera da)


atrás dos olhos fechados;
a medicina, branca!
nossos dias brancos. 145

A espera da morte liga-se a essa impossibilidade de deter as nuvens, que se


movem e crescem, e à “medicina branca” (v. 15), que é nula e não resolve a
morte. Numa alusão à época de escrita do poema e de publicação de O
Engenheiro, tanto a medicina como os dias brancos representam essa falta de ação
em que se encontra o ser humano, ou seja, a esse horizonte vazio em que o
período caótico de governos ditatoriais e guerras resume os dias das pessoas.

Os vinte e dois poemas de O Engenheiro demonstram esse projeto iniciado


por João Cabral em seu primeiro livro, que apesar das imagens oníricas de
144
MANO. Op. cit., 2006. p. 185.
145
NETO. Op. cit., p. 31.
influência surrealista, traz o símbolo da pedra como símbolo da “aspereza, rigidez
e resistência ao sono e ao sonho”146, como já mencionado anteriormente. Esse
aprendizado do poeta é intensificado pelos poemas de caráter metalinguístico
como “O engenheiro”, “O poema”, “A lição de poesia”, “A Paul Valéry” e
“Pequena ode mineral”, dentre outros, em que se percebe uma poesia com textura
bruta, que exige grande atenção e concentração de quem a lê, não sendo por acaso
a alcunha dada ao poeta de “pedreiro do verso”, conforme entrevista a José
Geraldo Couto:

Eu procuro uma linguagem em que o leitor tropece, não uma


linguagem em que ele deslize. O Pierre Reverdy dizia: o poeta é
“maçon” (pedreiro). Ele ajusta as pedras. O prosador é
“cimentier”, ele “couleleciment” (espalha o cimento). Eu
procuro fazer uma poesia que não seja asfaltada, que seja um
calçamento de pedras, em que o leitor vá tropeçando e não
durma, nem seja embalado.147

Esse pensar em cada palavra como um obstáculo ao leitor é a chave do


“caminho de pedras” oferecido pela estética cabralina. Avessa à desagregação ou
à desordem, a pedra corresponde à ideia de unidade, coesão e relaciona-se
perfeitamente a essa poesia enxuta, precisa e pétrea:

nos três eclipses


condenando o muro;
no duro tempo mineral
que afugentou as floras.
(in “A paisagem zero”)

Entre nossas pedras


(uma ave que voa,
um raio de sol)
um amor mineral,
a simpatia, a amizade
depedra a pedra
entre nossos mármores
recíprocos.
(in “Os primos”)
146
MANO. Op. cit., p. 186.
147
Cf. COUTO, José Geraldo. 34 letras, Rio de Janeiro, nº 3, mar. 1989. Em: MANO, Carla
da Silveira. A tradição da negatividade na moderna lírica brasileira. 2006. 273f. Tese (Doutorado
em Letras. Faculdade de Letras, PUCRS, Porto Alegre, 2006, p. 188.
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
(em “O poema”)

Doce tranquilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem.
(em “A Paul Valéry”)148

No entanto, é com o último poema da obra “Pequena ode mineral” que a


poética da pedra proposta por João Cabral de Melo Neto se faz sentir em grau
mais elevado em O Engenheiro. O título já nos remete a uma homenagem feita
pelo poeta, é uma ode à pedra. Em sua estrutura, pode-se dividir em duas partes de
6 estrofes cada uma, compostas de quatro versos. Vale ressaltar aqui essa escolha
que parece não ter sido ao acaso: a quadra lembra a forma de um quadrado, ou
seja, uma figura geométrica de quatro lados iguais. Esta forma da estrofe deve ser
compreendida como “um bloco, como unidade blocal de composição, elemento
geométrico pré-construído, definido e apto consequentemente para a armação do
poema.”149Além disso, os versos possuem quatro sílabas poéticas, reforçando essa
regularidade que só poderia ter sido pensada por alguém que prioriza uma
“matemática poética”, remetendo a um equilíbrio formal.

Cada uma dessas partes do poema possui uma temática que se completa
através da imagem da pedra, como se esta fosse um objetivo a ser alcançado.
Infere-se dois estados poéticos no corpo do poema: um em que está presente a
desordem e outro em que se encontra a ordem estabelecida pela durabilidade da
pedra. As duas primeiras estrofes dessas partes mencionadas criam uma antítese
do transitório e do permanente:

148
Todos os poemas citados fazem parte da obra O Engenheiro. As palavras que fazem
alusão à pedra foram grifos meus.
149
CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. Em: CAMPOS, Haroldo de.
Metalinguagem e outras metas. Petrópolis: Vozes, 1967, p.70.
Desordem na alma
Que se atropela
sob esta carne
Que transparece
[...]
Procura a ordem
que vês na pedra
nada se gasta
mas permanece.150

Os elementos presentes na primeira parte do poema relacionam-se com


essa desordem. Expressões como “desordem na alma” (vv. 1 e 5), “vaga fumaça
que se dispersa” (vv. 7 e 8), “informe nuvem” (v. 9) e “e cuja face nem
reconheces” (vv. 11 e 12) reforçam a ideia daquilo que é impreciso, vago,
transitório e sem forma. Essa desordem na alma humana só conseguirá alcançar
uma estabilidade através de um aprendizado, ou seja, através do “devaneio
petrificante” proposto por Bachelard, quando afirma a possibilidade de “encontrar
em certos poetas uma espécie de vontade de petrificar.” 151 E o autor acrescenta: “o
poeta vive potências medusantes, sabe imobilizar no chão o seu adversário.” 152
Nesse caso, esse adversário é a própria desordem da alma humana que é
petrificada através do olhar (“Procura a ordem que vês na pedra”).

Cabral destaca essa passagem de estados da alma: desordem e ordem,


mobilidade e imobilidade, temporário e permanente. Todo o poema é composto
por essas antíteses e encontram na pedra a solidez, a unidade que permanece no
tempo, pois ela é densa, dura e compacta, é o “pesado sólido que ao fluido vence”
(vv. 37 e 38). Essa pedra ordenada, estável e silenciosa ensina o homem a ouvir o
silêncio, relacionando essa imagem à própria economia verbal da poesia desse
autor. A pedra representa a palavra em seu estado bruto, pois como o poeta diz em
entrevista, a poesia deve ser uma linguagem sensorial e são as palavras concretas
que se dirigem aos sentidos. E acrescenta: “Eu acho, por exemplo, que uma
palavra como maçã, ou manga, ou pão, ou cadeira são palavras muito mais

150
MELO. Op. Cit., pp. 49 – 50.
151
BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação
das forças. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001a. p. 180.
152
Idem, Ibid. p. 180.
poéticas que tristeza, ou melancolia, ou angústia.”153 Daí o intenso trabalho entre
a associação das palavras, muitas vezes rompendo com a tradição poética, ligada
ao nobre e ao lirismo, e utilizando termos ligados ao cotidiano e que normalmente
não fazem parte da linguagem poética. Nessa direção, observa-se maior
quantidade de substantivos em detrimento aos adjetivos nos seus poemas, já que a
proposta de Cabral é justamente tratar da matéria própria da palavra e, através dos
substantivos ele consegue evidenciar o concreto do objeto. Um exemplo disso são
as definições de nuvem feitas no poema analisado anteriormente.

Ainda em “Pequena ode mineral”, a desordem na alma, grande motivo da


primeira parte do poema, alcança a ordenação da própria poesia, manifestada em
silêncio, fixo, pétreo, permanente a partir da sétima estrofe. Conforme Carla da
Silveira Mano, essa paradoxal voz de silêncio mais do que ausência, relaciona-se
à própria presença concreta da poesia. “A poesia tematiza o próprio silêncio num
perfeito exemplar da metapoesia alheia ao tempo e a tudo, afinal, concentrada
sobre si mesma.”154 Como afirma Octávio Paz, o poema transcende a linguagem:

A experiência poética é irredutível à palavra e, não obstante, só


a palavra a exprime. A imagem reconcilia os contrários, mas
esta reconciliação não pode ser explicada pelas palavras –
exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo. [...] O poema
é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o
extremo. Extremos da palavra e palavras extremas, voltadas
sobre as suas próprias entranhas, mostrando o reverso da fala: o
silêncio e a não significação.155

O universo imagético de “Pequena ode mineral” enuncia a identidade da


poesia cabralina em que se observa a preocupação formal como meio de
expressão. Apesar de este ser o único poema com todos os versos isométricos –
todos os versos possuem quatro sílabas poéticas –, Cabral não dá primazia a
esquemas rítmicos e rimas ou regularidade métrica em O Engenheiro. O poeta
defende um “ritmo sintático” em oposição ao ritmo automático, mecânico,

153
Transcrição da fala de João Cabral de Melo Neto em entrevista apresentada pelo vídeo
“Mestres da Literatura” e disponível no site:
<http://www.youtube.com/watch?v=oJgIY5DmSDI&feature=related>
154
MANO. Op. cit., p. 196.
155
PAZ, Op. cit., p. 48 – 49.
rançoso das grandes antologias de sonetos que era obrigado a ler na época da
escola.156 Com certeza esse “horror à literatura” declarado pelo autor durante a
entrevista citada determinou o seu tipo de poesia. João Cabral de Melo Neto não
queria escrever poemas que embalassem o leitor. Ainda na entrevista, percebe-se
que ele era avesso à musicalidade: “a música embala-se, faz-me dormir. E eu
procuro viver no extremo da consciência e não embalado. A música amortece a
consciência”. A preferência por um ritmo duro, forte, é salientada pelas rimas
toantes e pelas aliterações das consoantes t e p, que marcam a batida da
construção do poeta-engenheiro:

Tua alma escapa


como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
[...]
Nem mesmo cresce
pois permanece
fora do tempo
que não a mede,

pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.157

Em consonância ao próprio senso de objetividade e procura de clareza na


escrita, o poeta não compõe por puro entusiasmo criador ou improviso, seus
versos são resultado de muito trabalho e esforço, utilizando o raciocínio para
alcançar a essência, a exatidão e a pureza poética. O estado de vigília do
engenheiro busca conquistar o silêncio que se esconde por trás da palavra.

É preciso, no entanto, compreender esse relacionamento entre poema e


poeta. O tratamento da imagem poética é um elemento num conjunto maior,
através do qual o escritor medita acerca de suas relações com o real. A
modernidade de João Cabral de Melo Neto e a ruptura com os poetas da sua

156
Informação retirada da entrevista apresentada no vídeo mencionado nesse trabalho.
157
NETO. Op. Cit., p. 50.
geração intensificam e prenunciam nos poemas de O Engenheiro esse seu tema
mais recorrente, a poesia dentro da poesia. Contudo, existem outros assuntos que
se deixam entrever na obra: a lembrança, o cotidiano, o acaso, até chegar à
problematização da efemeridade do tempo, da fugacidade das coisas e da morte. É
diante dessa temática que a poesia de João Cabral de Melo Neto evolui para uma
perspectiva universal. O poeta não faz referência direta ao social, o qual será
reconhecido posteriormente quando escreve Morte e vida Severina, nem à época
de guerra a qual está inserido o livro O Engenheiro. Compreende-se, então, uma
concepção da linguagem cabralina como um ato de resistência, como o elemento
pétreo constante em sua obra, pois não se presta a comunicar algo que já foi dito,
mas sim, recolher-se à palavra. Em vez de gritar, o poeta escolhe o silêncio, por
ser uma época em que não se pode protestar não há mais o que falar sobre o
mundo. A solução é, portanto, a arte, no caso, a poesia. E esta, em Cabral, atinge a
dimensão de resistência comentada por Bosi:

A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos


discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis
[...]. Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em
um meio hostil ou surdo, não constituem o ser da poesia, mas
apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior
do processo capitalista. [...] a poesia moderna foi compelida à
estranheza e ao silêncio. Pior, foi condenada a tirar só de si a
substância vital.158

Apesar de O Engenheiro não possuir esse caráter ideológico percebido em


diversas obras que dialogavam diretamente com a guerra, é impossível não
perceber marcas profundas desse momento no conteúdo poético da obra. Os
paradoxos presentes nos poemas analisados e a própria imagem de transição
formada pelos elementos escolhidos pelo autor demonstram essa instabilidade em
que vivia o ser humano e essa fragilidade diante de um futuro incerto. Em “As
Nuvens”, a espera da morte e os dias brancos podem se referir a essa situação,
assim como a desordem na alma em “Pequena ode mineral”. A pedra resiste,
assim como a palavra e a arte que transcendem, permanecem fora desse tempo tão

158
BOSI, Alfredo. Poesia-resistência. Em: BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 7. ed.
São Paulo: Companhia das letras, 2004, p. 165 – 166.
fugaz. O silêncio diz mais que qualquer palavreado inútil e sem sentido proposto
pela palavra opressora dos discursos dominantes ditatoriais. O “silêncio puro” –
verso 44 de “Pequena ode mineral” – mostra o ser humano que se recolhe, que faz
esse movimento de voltar a si mesmo e refletir sobre o seu destino.

O homem se redescobre através da lírica cabralina. O poeta vive o clima


da guerra e isso é traduzido em sua poesia através de um elemento que pode ser
entendido como uma proteção: a pedra. Essa imagem áspera, dura, impenetrável
da pedra sobrevive a esse meio hostil, lugar onde o silêncio se faz poesia. “A
imagem é cifra da condição humana.”159 Dessa maneira, O Engenheiro, apesar de
distante da realidade, assume um caráter social já que é através da linguagem
hermética que João Cabral de Melo Neto critica o sistema. Essa crítica está
subentendida dentro da metapoesia e do contexto de produção da obra, escrita no
período de 1942 a 1945, em pleno auge do regime fascista no mundo e do Estado
Novo no Brasil.

Sendo assim, a arte do poeta-engenheiro voltada para si mesmo vai ao


encontro da teoria de Adorno160 que vê, dessa forma, a lírica atingindo o universal.
Através de sua linguagem precisa, sua exatidão de raciocínio, João Cabral de
Melo Neto reage a essa desordem, a essa transitoriedade das coisas e à
efemeridade da vida, revelando a sua forma de apreender o mundo como uma das
mais criativas da poesia brasileira e tão perene quanto ao “elemento-pedra” que
definiu a sua poética.

Referências

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HORKHELMER, HABERMAS. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural.
1980. p. 193 – 208.

159
PAZ. Op. cit., p. 38.
160
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: BENJAMIN, ADORNO,
HORKHELMER, HABERMAS. Textos escolhidos. São Paulo: Abril cultural. 1980. p. 193 – 208.
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1991c.
POESIA EM TEMPOS DE GUERRA: A DESTRUIÇÃO, O DESESPERO E
A GUERRA URBANA EM “MORTE DO LEITEIRO”

Ana Paula Klauck

A Rosa do Povo é uma das obras mais importantes de Carlos Drummond de


Andrade, especialmente pelo envolvimento que o autor demonstra com o contexto
histórico em que escreve seus poemas, publicados em 1945. Muitos dos poemas
de A Rosa do Povo apresentam uma temática claramente referente aos
acontecimentos que assolaram o mundo nos anos anteriores à obra. Trata-se de
referências à Segunda Guerra Mundial e ao obscuro período pelo qual passava a
humanidade, que assistiu desesperada aos horrores bélicos. Muitos estudiosos da
obra de Drummond, por sua vez, afirmam que A Rosa do Povo, mais do que
envolver-se declaradamente com a Segunda Guerra Mundial, foi capaz de
representar o sentimento de medo e desespero que sentiam as populações urbanas
brasileiras da época. Dessa forma, até mesmo os poemas que não trazem notas
diretas à guerra são permeados por temáticas de destruição, terror e fragmentação
do indivíduo, seja por ele estar inserido no recém consolidado meio urbano, seja
por viver em um mundo cujo momento histórico é violento e opressor. Em ambos
os casos, o homem de Drummond aparece como um ser derrotado, frustrado,
destruído.

O pessimismo, dessa forma, penetra nos poemas da obra e aparece


representado no homem, em sua rotina e em seu meio. Também aparece nas
cidades destruídas pela guerra ou naquelas ‘destruídas’, de alguma forma, pelo
progresso e pelo caos urbano. Diante do contexto histórico em que vive,
Drummond se sensibiliza e leva os poemas ao máximo contato com a realidade
presente, misturando o espaço urbano com o tempo de guerra para falar do
homem como um ser partido, inacabado. O autor parte da vivência individual do
homem inserido num contexto opressor para falar da humanidade e seu pesar e
desespero em relação ao seu momento histórico.

O poema “Morte do Leiteiro”, apesar de não tratar diretamente da temática


da guerra, apresenta uma atmosfera de incerteza, violência e medo, que aponta
para a época em que foi escrito. Para verificarmos a presença de tais aspectos,
analisaremos o poema a seguir, de acordo com a existência de elementos e
imagens que apontem para tal direção.

Há pouco leite no país,


é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro


de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca


não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos


também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil


de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico


(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono


de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.161

O poema inicia falando sobre a escassez de leite no país e, em contrapartida,


da sede abundante, que gera a necessidade de ‘entregá-lo cedo’. Havendo a
urgência da entrega, surge o leiteiro, cuja função é descrita como das mais nobres,
por ser ele o responsável em nutrir e alimentar os trabalhadores do país. A
expressão ‘é preciso entregá-lo cedo’, que se repete nos versos dois e quatro,
reforça a impessoalidade da tarefa. O eu-lírico não menciona que alguém
especificamente deveria entregar o leite, apenas que é necessário fazê-lo; ou seja,
nao importa quem o faça, contanto que seja feito. A figura do leiteiro, assim,
surge como alguám despido de personalidade, caracterizado pela sua profissão e
eficiência, o que é enfatizado na segunda estrofe do poema. O leiteiro, logo nesses
primeiros momentos, começa a ser moldado com características semelhantes a dos
soldados da guerra, o que será enfatizado nas estrofes seguintes, principalemente
pela importância que é atribuída à sua tarefa na luta diária pelo trabalho e pela
sobrevivência.

Ainda na primeira estrofe, observamos a construção do espaço em que o eu-


lírico situa os personagens do qual vai falar no texto. Além da sede, o país
também tem um costume, uma regra apócrifa, de que as ameaças devem ser
eliminadas com tiros, ou seja, com violência. Nessa primeira estrofe, o eu-lírico
caracteriza o país de duas formas: pela sede (escassez) e pelo medo, ambos
decisivos no desfecho trágico do leiteiro. Mais do que isso, essa primeira insere a
narrativa162 do poema em um ambiente de insegurança, de medo e de ameaça: na
161
ANDRADE, Carlos Drummond. Morte do Leiteiro. Em: A rosa do povo. Rio de Janeiro:
Record, 2001.
162
Partimos do pressuposto de que se trata de um poema narrativo e, por isso, além de
características líricas, o texto também possui elementos narrativos, tais como personagens, espaço,
tempo e até falas.
mesma medida, há a escassez e o ódio contra aqueles que tentam usurpar o pouco
que há.

Na estrofe que segue, vemos que o eu-lírico caracteriza o leite como um


elixir que traz força e vontade de lutar ao trabalhador em sua guerra urbana. O
leite é um tônico (“o leite mais frio/ e mais alvo da melhor vaca / para todos
criarem força / na luta brava da cidade”) que habilita os homens a viver e a
sobreviver. O cenário descrito é de uma batalha urbana, para a qual o homem só
está preparado quando tem acesso ao precioso alimento, que também é seu alento,
sua força. Com tal descrição do leite, o papel do leiteiro no texto se eleva e ele se
torna uma espécie de porta-voz da esperança, um portador da força, da segurança
que tanto é escassa em um país com tanta sede. Da mesma forma, nessa estrofe,
podemos observar que aquela comunidade que serve o leiteiro não é a sua (“e veio
do último subúrbio”); em outras palavras, é tão nobre sua tarefa de levar o leite às
famintas bocas da sociedade, que ele deve vir de outras terras, o que exalta ainda
mais o difícil trabalho do jovem. O leite surge como a esperança que o leiteiro
devolve às pessoas. Mais uma vez, o leiteiro pode ser aproximado com um
soldado: enquanto a população dorme, ele tem a importante tarefa de supri-la com
segurança, com alento, com força para que ela possa continuar a viver. Enquanto
o leitero se arrisca por territórios inóspitos, o povo dorme, na certeza de eficiência
do leiteiro/soldado focado em sua função.

Nessa mesma estrofe, também observamos que o eu-lírico nos dá uma pista
sobre o caráter daqueles que recebem o leite das mãos do leiteiro. Sua profissão é
nobre, mas aqueles a quem serve nem sempre o são, segundo o julgamento da voz
que narra (“leite bom pra gente ruim”).

Na estrofe seguinte, algumas características sobre o leiteiro aparecem, em


uma tentativa de humanizar aquele que fora tratado até então apenas pela sua
alcunha profissional. O eu lírico, porém, faz questão de dizer que o moço que
entrega leite, embora tenha suas particularidades, é “ignaro”, ou seja, não tem
consciência de si, da importância de sua tarefa ou da exatidão de seus atos. Ele
realiza seu trabalho sem ter tempo de pensar sobre ele (“não tem tempo de dizer /
as coisas que lhe atribuo”), apenas com o intuito de ‘deixar a mercadoria’. O
leiteiro, mais uma vez, assim como na estrofe anterior, aparece como um ser
deslocado, estrangeiro (“ignaro / morador da rua Namur”), alguém que
desconhece, mas que também é desconhecido. O leiteiro realiza altivo trabalho,
mas, ainda assim, ninguém está interessado em conhecê-lo ou ele de conhecer o
lugar onde está ou aqueles a quem serve. A pressa do rapaz (“e já que tem
pressa”) também reforça sua característica servil e sua não necessidade de pensar
ou compreender sua condição. A idade do rapaz também denuncia sua falta de
consciência sobre a tarefa que realiza: ele tem apenas 21 anos, é jovem e
inexperiente, cumprindo apenas uma obrigação que lhe foi atribuída e que nada a
ele representa se não um trabalho a ser feito. Da mesma forma, o jovem é
chamado à guerra e tem que deslocar-se para outros territórios, em uma luta que
pouco tem a ver com seus ideais e cujos motivos ou justificativas ele desconhece.

A quarta estrofe retoma os versos que iniciam o poema (“há pouco leite no
país / [...] ladrão se mata com tiro”), pois remonta a insegurança e a incerteza na
qual se insere o homem naquele momento. Os versos falam sobre pessoas que
desejam o leite daqueles servidos pelo leiteiro e, por isso, volta e meia se
escondem nas portas dos fundos das casas para usurpar a mercadoria. Porém, esse
mesmo cenário, os fundos das casas, serve também como uma preparação para
uma emboscada, cuja vítima será o leiteiro. Trata-se de um beco, em cujo corredor
segue o jovem, com seu passo leve, alheio às ameaças (assim como um soldado
inexperiente).

A quinta estrofe denuncia a inocente luta do leiteiro ante tamanhas ameaças


que o cercam: ele não sabe marchar, mas desliza, em silêncio, sutil, muitas vezes
sendo surpreendido por obstáculos e inimigos diversos (“passo errado / vaso de
flor no caminho / cão latindo por princípio / ou um gato quizilento”), devido a sua
pouca vocação para a batalha que lhe foi atribuída. O eu lírico também fala
daqueles ‘senhores’ que acordam, por algum barulho, mas que tornam a dormir na
certeza de que se trata do leiteiro, servindo-lhes leite, o elixir para a luta urbana.
Os senhores voltam a dormir, pois sabem que o leiteiro lhes traz segurança,
tranquilidade pelas coisas estarem correndo conforme o esperado. Ou seja, a fim
de que o senhor possa dormir em sua cama, seguro e confortável, um outro tem
que se arriscar, em um horário inseguro, por terras desconhecidas, diante de
obstáculos diversos. O leiteiro, ao sair para a batalha matutina, garante um
mínimo de tranquilidade em um mundo tão inseguro. Nesse ponto do poema,
também é possível perceber um conflito de classes, perpetrado nas ações do
leiteiro versus as ações do senhor que descansa. Nesse caso, um deve se sacrificar
para o conforto do outro. Mais do que isso, a desaproximação entre meio urbano
(representado pela cidade perigosa e incerta) e meio rural (representado pelo leite,
sinônimo de tranquilidade) aparece como inevitável, já que as diferenças entre
ambos causam conflitos e medo.

Tais conflitos surgem quando um dos ‘clientes’ do leiteiro, influenciado


pelo caos e pela violência que se entrelaçam na rotina urbana, ao ouvir ruídos na
madrugada, os relaciona aos ladrões que ‘infestam o bairro’. No mundo urbano
em que agora vivem os homens, a insegurança e o medo lhes tiram o sono e não
há mais lugar para uma relação de confiança entre morador e leiteiro. O homem
que acorda aterrorizado não concebe o leiteiro como um prestador de serviços,
mas como um invasor da propriedade. Esse homem é o inimigo que embosca o
rapaz, aquele que nega a identidade do jovem soldado e o vê apenas como uma
ameaça. Nesse caso, cada um tem a seu favor a sua própria luta: enquanto um
defende a propriedade, outro trabalha para seu sustento. A forma como o leiteiro
se dirige à casa do homem que o vai assassinar remonta uma cena de batalha
militar, na qual o mais fraco é encurralado. Nesse emboscada, assim como na
guerra, há quem esteja defendendo seu território e há o que invade o território
estrangeiro. Em ambos os casos, um desconhece o outro e acaba vencendo o que
está melhor armado, melhor preparado. O leiteiro, com juventude e seu passo
leve, certamente não estava preparado para esse embate urbano.

A sexta estrofe é marcada pelo assassinato do leiteiro e pela tentativa de


remissão da culpa do assassino. Nessa estrofe, os objetos ganham vida, a fim de
ironicamente justificar a atitude do culpado: a “arma salta da gaveta”, os “tiros
liquidaram” – tudo gerado pelo pânico do morador que acordou aterrorizado por
ter sua propriedade maculada. O fato de os objetos “tomarem vida” e substituírem
a vontade humana, nesse caso, a arma e as balas, remetem à atmosfera de medo
em que vive a comunidade em questão. Os homens não têm total consciência da
violência com que podem agir; mais do que isso, ao responsabilizar as armas
pelos atos do ser humano, o eu lírico aproxima a realidade do homem e a do
leiteiro à da guerra, na qual os soldados não têm juízo de todos os seus atos ou de
como os seus atos de violência atingirão o seu semelhante. Em uma situação de
violência e ameaça, seja urbana, seja bélica, a violência aparece como uma
resposta automática, justificada, e anula qualquer subjetividade que possa haver
nas relações dos sujeitos em questão.

Nesse momento, novamente, o eu lírico se aproxima do leiteiro de maneira


afetuosa ao chamá-lo de “meu leiteiro”. Ele também reforça a ideia de que a vida
do rapaz foi abortada, foi tomada antes do tempo e que o jovem morreu em
virtude da sua função, seu dever, já que ninguém conhecia outras características
que não fossem o fato de que era um leiteiro (“se era noivo, se era virgem / se era
alegre, se era bom / não sei / é tarde para saber”). Morreu, portanto, pela função
que exercia, não havendo importância alguma em saber como era sua
personalidade ou sua vida.

Na sétima estrofe, o eu lírico dá voz ao assassino, mostrando o descaso e o


cinismo com que ele lida com o acontecimento. Nesse momento, o culpado, que
antes pensava no invasor como “ladrão”, “gatuno” ou como uma ameaça, passa a
tratá-lo como “irmão”, “filho de meu pai”, “inocente”. Apesar de palavras de um
aparente arrependimento, o eu lírico resume o sentimento do assassino e sua
justificativa para o seu ato quando afirma “está salva a propriedade”. Essa estrofe
trata de uma tentativa de “justiça” sendo posta em prática: a morte, no entanto,
não redime, não resolve, não se justifica depois de realizada. O assassinato foi
consumado de forma ‘acidental’ mas, nem por isso, exonera a culpa do assassino e
tampouco a do inocente. A morte, não obstante, aparece como justificada na
situação de terror em que os homens se encontram; a bala que sai da arma do
homem, assim como na guerra, não distingue quem é criminoso de quem é
inocente, ela apena mata.

A afirmação de que “está salva a propriedade”, nessa perspectiva, representa


a reificação pela qual adentrava a humanidade no período de grande urbanização
das cidades, bem como durante a guerra: a terra é mais importante do que a vida; a
ordem descaminha a subjetividade; a vida é desvalorizada e a luta humana passa
a ser pelas coisas e pela propriedade e não por si mesmo. No final da sétima
estrofe, vemos uma referência à noite, que é longa e demora em dar lugar à
aurora. O tempo é de trevas, de incerteza, de medo e a insegurança da noite faz
agonizar aqueles que esperam pela manhã. O leiteiro, nesse cenário, encontra-se
“estatelado, ao relento / perdeu a pressa que tinha”. A manhã, assim como leiteiro,
perdeu a pressa de chegar e aos homens resta apenas a incerteza da noite.

A última estrofe, em contrapartida, vem aparentemente como um alento


àqueles que assistem com terror às caóticas cenas noturnas: ela anuncia a aurora, a
luz, que vem redimir os homens e iluminar seus medos. Nesse cenário, porém, o
eu lírico reitera a reificação a que foram sujeitos os homens, afirmando que,
enquanto jazem o leiteiro e sua garrafa quebrada no chão, são os objetos que estão
“confusos” e “mal redimidos” e não os homens, mesmo ante tal cena aterradora. A
“garrafa estilhaçada” e o “ladrilho sereno”, nessa perspectiva, se opõem, um
representando o caos da noite (a garrafa estilhaçada = assassinato) e o outro a
calma da manhã (serenidade). Outros elementos colaboram para essa oposição que
o eu-lírico constroi entre luz e escuridão, noite e dia, caos e tranquilidade: trata-se
das duas cores que “se procuram” – o vermelho, representando a violência e o
caos e o branco, representando a servidão, a inocência, o trabalho. Nesse
momento da humanidade, esses elementos convivem, confundindo e
desorganizando o homem: no caos urbano e bélico, o sujeito perde sua identidade
subjetiva e fica deslocado em relação à objetividade da violência. As duas cores,
unidas, formam um tom diverso, o rosa, ou a cor da aurora – como chama o eu
lírico.
A aurora, por sua vez, não aparece como um símbolo de esperança em
relação à incerteza da noite. Ela aparece como uma mistura melancólica da
desilusão dos homens e, ainda, seu desejo por mudança. A cor que se forma a
partir da violência e da esperança é uma melancolia, que, ora mantém a incerteza
dos homens, ora liricamente os convida a continuar. O tom da aurora nasce da
morte, da injustiça, do caos – dos “objetos confusos / mal redimidos da noite”;
surge do não arrependimento do assassino, da falta de atitude dos moradores (já
que, se tivessem removido o corpo do rapaz, a fim de prestarem-lhe socorro, o
sangue não permaneceria escorrendo e misturando-se ao leite e aos ladrilhos do
chão), da não estupefação diante da violência. A forma como o eu-lírico termina o
poema, assim, mais do que um reluzir de esperança ou um antever de um mundo
melhor, demonstra a melancolia de um sujeito oprimido por um mundo em terror
e que tenta, por mais que as circunstâncias não colaborem, antever qualquer tipo
de mudança e, quiçá, de melhora.

A destruição, a obscuridade, a violência, nessa perspectiva, controem um


poema cuja realidade é semeada pela desconfiança e pela incerteza, sentimentos
que povoam o homem em um cenário de guerra.

Adorno afirma que um poema não é feito de vivências meramente


individuais ou de emoções específicas de um sujeito; um poema é a
universalização do que é individual, quando catalisado pela experiência estética, e
toma forma artística por deixar de representar apenas um homem, mas muitos, ou
todos. Diz o estudioso alemão:

[...] O mergulho no individuado eleva o poema lírico ou


universal porque põe em cena algo de não desfigurado, de não
captado, de ainda não subsumido e, desse modo, anuncia por
antecipação algo de um estado em que nenhum universal
postiço, ou seja, particular em suas raízes mais profundas,
acorrente o outro, o universal humano. Da mais irrestrita
individuação, a formação lírica tem esperança de extrair o
universal.163

163
ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 194.
Muitos poemas de Drummond seguem nesse caminho descrito por Adorno e
partem de pequenas experiências individuais para falar de sentimentos e emoções
universais; é o caso do poema analisado acima. “Morte do Leiteiro”, entre outros
poemas de A Rosa do Povo, retrata uma sociedade desconfiada e aterrorizada,
disposta a tudo para se defender em tempos de incerteza. Essa perspectiva é
representada, conforme demonstramos acima, pelos fatos que ocorrem em uma
comunidade, entre um leiteiro e seu cliente. A compreensão dessa universalidade
descrita por Adorno só ocorre quando o indivíduo está inserido socialmente, ou
seja, quando sofre dos males da humanidade junto com ela. Adorno acredita que a
linguagem media lírica e sociedade, pois subjaz ambas, e é capaz de expressar o
sujeito objetivamente e também convidá-lo à imersão, já que não objetiva
comunicar.

Bernardinelli baseia-se em ensinamentos de Adorno e também acredita na


força social da lírica quando ela retrata as reverberações de um sujeito para falar
dos cataclismas da humanidade. A lírica imerge no homem, mas o faz vestida de
linguagem poética, que transforma as objetividades em dualismos e
subjetividades. O homem resultado desse processo é todos os homens ou qualquer
um. É a profunda individuação, catalisada pela poesia, que gera a universalização
da lírica. Diz Bernardinelli:

A única verdade ou autenticidade possível da lírica está em seu


alheamento diante do suporte e da garantia dos esquemas
intersubjetivos por meio dos quais a socialização salva e
subsume em si o indivíduo. É a tomada de partido por uma
‘individualização implacável’ que permite à lírica exprimir sua
mensagem e sua verdade não manipulada do seu conteúdo
social. [...] A lírica moderna fala de reificação, de anomia, de
risco de insensatez. Porém, justamente por isso, a autenticidade
específica dessa lírica está em sua objetiva declaração de
impotência diante da existência petrificada e lacerada. A poesia
não pode recuperar esteticamente as condições da própria
existência social. Não pode, com os meios de que dispõe,
superar a fratura entre indivíduo e sociedade e recomeçar de
novo.164

164
BERNARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 35.
Ao seguirmos os passos das teorias iniciadas por Adorno e Bernardinelli,
observamos que a poesia escrita por Drummond no início dos anos 40
comunicava-se com a sociedade ao demonstrar empatia e provocar identificação.
O mote, o impulso de mudança social gerado por essa poesia, partia de seu efeito
estético, das reverberações da realidade no homem que se vê, consciente ou
inconscientemente, retratado na arte. Para os dois teóricos, a lírica não se orienta
por tentar mudar a realidade social por meio da estética e da forma, pois o mundo
real não coincide com o mundo poético: ambos estão em diferentes patamares.
São, no entanto, ligados inevitavelmente pelo elo dramático que insere o homem
nos dois âmbitos, como foi possível observar em nossa análise. A lírica expressa o
mundo real, dá voz às repercussões sociais e se liga à história de forma indelével.
A poesia foge do real quando mergulha na solidão humana, não sabendo que,
assim, volta à sua inevitável realidade. Rancière, em semelhante perspectiva, nos
lembra que “O real precisa ser ficcionado para ser pensado”165.

Para podermos pensar na obra de Drummond e, mais especificamente no


poema “Morte do Leiteiro” como relacionados ao contexto em que o autor os
escreve, vale recorrermos às considerações de Kate Hamburger. A autora afirma
que a vivência pode ser desencadeadora da construção lírica, mas nunca aparece
no poema exatamente como ocorreu. O poema não pode simplesmente representar
a realidade, afirma Hamburger166, pois, se assim o fizer, estará valorizando mais o
objeto de que se fala do que a linguagem, o poema em si. Um poema de
qualidade, afirma a estudiosa, parte do real, mas se distancia dele o suficiente para
torná-lo universal e subjetivo. Em outras palavras, não se deve negar
completamente que o poema tem conexão com a realidade; da mesma forma,
quando ele é ligado de forma indelével a determinado contingente e não pode ser
significado e reverberado fora dele, o texto torna-se pobre, pouco passível de
construção de imagens e sentidos e de pouco efeito estético. A realidade que é
referida no poema tem relação com o eu lírico que fala, mas é também manipulada
de forma a ter alguma relação com os homens que lerão esse poema, traduzindo-
165
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: 34. 2005. p. 58.
166
HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva, 1975.
se em significados diversos. Hamburger, assim como Bernardinelli, acredita que a
realidade do poema não pode ser comparada a uma realidade qualquer, mesmo “se
esta for o núcleo da enunciação”167, pois está ela sempre aberta a sentidos vários.

A poesia de Drummond dos anos 40, embora envolvida com o contexto


histórico que inevitavelmente abraçava os homens em todos os níveis da
sociedade e de diversos países do mundo, foi pensada de forma universal,
representando realidades humanas permeadas por obscuridade e negativismo, não
necessariamente ligadas à Segunda Guerra. A solidão humana e a violência
inerente às sociedades urbanas, a intoxicação do indivíduo em meio a um mundo
ameaçado e, mais do que isso, o desespero do sujeito ante sua desconexão com o
mundo em que vive são temáticas presentes nos poemas dessa obra, inclusive
naquele analisado anteriormente. “Morte do Leiteiro” adentra o momento
histórico por meio de representações das grandezas e das pequenezas da guerra e
seus reflexos no coração e na vida dos homens. Trata-se do individual ressoando o
coletivo, das reverberações de um homem despedaçado e cuja dor se sobrepõe à
dor do universo. O homem e sua desilusão com o mundo infiltram-se no desenho
que Drummond faz da sociedade da época e, por tabela, da humanidade em geral.
O eu-lírico em “Morte do Leiteiro” vislumbra o caos e a tragédia que espreitam o
homem na década em questão (e ainda o fazem nos dias de hoje), ao escrever
sobre uma pequena batalha humana e urbana, em uma comunidade qualquer, que,
assim como o resto do mundo, está envolvida em medo e desespero. Escreve
Afonso Romano de Sant’Anna:

O surgimento do futuro na obra de Drummond se dá


inicialmente através de uma expectação trágica. Há uma
apreensão em torno do destino individual e coletivo dos
homens. O tom dos versos nessa fase é apocalíptico. Fora
iniciada a Segunda Guerra Mundial e o irromper violento do
nazismo, quebrando todas as fronteiras, surge como uma
imagem da própria morte.168

167
BERNARDINELLI, Alfonso. Op. cit., 2007, p. 204.
168
SANT’ANNA, Afonso Romano. Drummond, o gauche do tempo. Rio de Janeiro: Lia /
INL, 1972, p. 101.
Sant’Anna afirma em sua obra O Gauche no tempo que A Rosa do Povo é
uma obra essencial para se entender a poesia de Drummond, pois foi escrita em
um momento em que o autor se mostra em guerra com a realidade que o cerca:

É o ponto em que o personagem (gauche) está na parte mais


aguda de sua luta aberta com a realidade. É o ponto crítico na
travessia da náusea, o momento de descoberta do “mundo
grande”, onde o tempo é sentido em todas as suas irradiações. 169

O autor acredita que, em tal fase, Drummond sentia-se demasiadamente


preso ao contingente e sofria por sentir o peso da destruição do mundo que o
cercava. Segundo Sant’Anna, A Rosa do Povo conta a caminhada do eu-lírico em
um mundo do qual não consegue se desvencilhar e afirma que essa obra
demonstra a inserção total do eu lírico no tempo presente, o que a torna diferente
de outras obras de Drummond, que são emborcadas na memória e na nostalgia.
Imerso no contingente, o eu lírico conhece “o âmago do mundo”170 e a ferida
histórica de uma guerra em tempo real o afeta, provocando uma voz
profundamente contaminada de realidade e consciente de seu tempo.

Sant’Anna, que dedicou boa parte de sua carreira como estudioso da


literatura à obra de Drummond, alega que, em boa parte dos poemas, o eu lírico
reflete um desajuste com o mundo, um não se encaixar constante. A realidade
exterior e a realidade interior do eu lírico não coincidem e, por consequência, suas
falas são sempre entrelaçadas por um sentimento de desajuste, de desilusão
permanente. Segundo Sant’Anna:

O presente social e histórico representado na ascensão do


nazismo e do fascismo, no irromper da Guerra Civil Espanhola
e na conflagração da Segunda Guerra Mundial, tanto quanto o
acirramento das questões ideológicas entre capitalismo e
comunismo, coincidem, e não por acaso, em sua poesia, com o
desvelar de seu drama existencial. O gauche de então é o
indivíduo conflagrado totalmente com a realidade, preso à sua
contingência e se esforçando por superá-la pela abertura de seu
próprio Ser.171
169
Ibid, p. 22.
170
Ibid, p. 23.
171
Ibid, p. 94.
Os poemas de Drummond nessa fase, diz Sant’Anna, apresentam homens
fragmentados de medo, em constante luta pela sobrevivência e, em muitos casos,
em desconsideração pelo próximo – possível ameaça –, como é o caso do simples
leiteiro, visto como bandido pelo dono da casa. A batalha da guerra torna mais
difícil a luta cotidiana, e o homem urbano se vê cerceado, entrincheirado no
próprio temor. Nesse cenário de obscuridade, no qual o homem despedaçado
enfrenta constantes trevas, o poeta antevê uma leve possibilidade de mudança,
com um frágil raio de luz que fragmenta e noite da humanidade e, assim
possibilita a aurora. Trata-se de um esforço de esperança, misturado com um
sentimento de melancolia e desilusão, conforme demonstramos no poema
analisado, diante da opressão que impera na realidade. Sant’Anna afirma: “o poeta
supera o pessimismo e o pânico prevendo um tempo em que, sendo diferente do
atual, seja também de realização de sonhos passados.”172

Outra característica importante que aparece nessa fase de Drummond e que


é apontada por Sant’Anna é a transformação do contexto temporal em
representações de espaço. Nesse viés, a cidade de homens devastados passa a ser
sinônimo do momento bélico pelo qual passa o mundo. A guerra, mais do que um
período que todos vivem, torna-se um sentimento que permeia os homens em
geral e é representado pelo caos em que se tornam as cidades – ou pelo sono com
medo dos homens ou pelas reações violentas ante os ruídos da madrugada, que
nada mais são do que a presença matutina do leiteiro. Nessa mesma época, o meio
urbano está em ascensão e as cidades ganham importância, tamanho e crescem em
população. As cidades, no entanto, ainda estão muito desorganizadas e caóticas,
características que, somadas à desesperança da guerra, deixam os homens
amedrontados e vazios. O desespero, o caos e a morte passam a ser rotinas diárias
na existência desses ‘homens partidos’, constantemente espreitados pela
destruição:

172
Ibid, p. 102.
A partir de A Rosa do Povo o sentido da destruição não é
apenas evidente, como se apresenta como contrapeso da própria
vida. Cerca de 23 poemas entre os 55 desse livro tratam
reincidentemente da destruição [...].
A consciência espácio-temporal que vinha se dilatando dos
primeiros livros, aqui se expande amplamente sobre a cidade, o
país, o mundo. O poeta está na pólis onde há o acontecer
histórico, por isto seu verso, curto a princípio [...] agora se torna
cada vez mais abrangente, abarca tudo que sua época oferece
aos olhos. Seus poemas são depósitos vocabulares de um
período da História, documento crítico de uma época. Por isto,
não há de se estranhar que na expansão da consciência temporal
viesse inserido o germe da destruição, que compromete e
impulsiona a consciência em transito. Acresce um dado
histórico intensificador e explicador desse clica de corrosão: o
livro foi composto durante os anos da Segunda Guerra
Mundial.173

O sentimento de destruição, mencionado por Sant’Anna, na obra de


Drummond, é também relacionado à reificação dos homens e à desvalorização do
individual que aparecem em muitas imagens construídas nos poemas, assim como
em Morte do Leiteiro. A valorização dos objetos e da propriedade em detrimento
do homem, a antropormorfização das coisas, que se tornam extensões do sujeito e
das quais ele passa a depender mais do que do seu próprio semelhante, também
são recorrentes em muitos poemas. Em Morte do Leiteiro, o profissional em
questão é identificado pelos objetos que porta e pelas roupas que veste e não pela
sua consciência individual. O próprio leiteiro não sabe de si ou de sua tarefa e sua
morte é caracterizada por ‘objetos confusos’ que se misturam ao seu sangue e ao
leite que carrega, e não pela estupefação do assassino ou daqueles que
acompanham o acontecimento. O poeta, assim, narra a ascensão das cidades e sua
simultânea corrosão e destruição: “Poeta cidade são o mesmo Ser em destruição,
conhecendo ambos a morte progressiva na água-tempo.”174

À medida que o homem é reificado, os objetos são humanizados e a cidade


e indivíduo se confundem. O homem é a cidade e a cidade é o homem, ambos
oprimidos por uma guerra que não prevê subjetividade ou consciência, que não se

173
Ibid, p. 149.
174
Ibid, p. 153.
interessa pelo indivíduo e que se prolonga no espaço e no tempo de maneira
constante. Morte do Leiteiro, conforme demonstramos, mostra a luta diária dos
homens que perdem sua subjetividade e sua consciência quando inseridos em um
mundo de terror e desespero. A rotina nas grandes cidades e sua ascensão caótica
e desorganizada, somadas à insegurança da guerra, cultivaram um sentimento de
medo que certamente incomodava o homem da época. Drummond, extremamente
envolvido com os acontecimentos que o cercavam, não podia deixar de se
sensibilizar com o vazio dos homens e, junto com eles, sofreu e se desiludiu. Sua
obra durante esse período não somente falava àqueles preocupados com a guerra,
mas também a todos cujo coração, assim como o dele, ansiava por períodos mais
tranquilos. Assim como afirmou Adorno, a lírica de Drummond comunicou-se
com a sociedade e, mais do que isso, tornou-se um registro histórico dos horrores
e da desgraça que angustiavam os homens de seu tempo. O poeta e sua sociedade,
mergulhados nas trevas e sem poder fugir daquele “tempo de homens partidos”
compartilhavam a arte, como uma voz que fala a todos e, mais do que isso, fala
aquilo que todos querem expressar.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

BERNARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

HAMBURGER, Kate. A lógica da criação literária. São Paulo: Perspectiva,


1975.

RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: 34.


2005.

SANT’ANNA, Afonso Romano. Drummond, o gauche do tempo. Rio de Janeiro:


Lia / INL, 1972.
“COM O RUSSO EM BERLIM”: A MARCHA FINAL

Ângela Maria Garcia dos Santos SILVA175

Contexto histórico

A consequência dos efeitos sociais, políticos e diplomáticos da crise


econômica iniciada em 1929, o surgimento dos governos totalitários na Europa a
partir desse mesmo ano e o desejo de expansão territorial de países como a
Alemanha, a Itália e o Japão estão entre as principais causas que desencadearam a
Segunda Guerra Mundial. A fim de elaborar um plano estratégico de conquista,
essas três nações se uniram e formaram o chamado Eixo. Em contrapartida, em
1941, outros acordos se estabeleceram nas relações internacionais e estruturou-se
um grupo oponente, os Aliados, constituindo as mais inusitadas alianças 176 no
intuito de interromper os planos dos adversários. As batalhas que sucederam
desses confrontos devastaram quase toda a Europa e parte da Ásia, sendo que
países como a URSS, a Polônia e a Alemanha ficaram totalmente em ruínas.

O mundo assistia horrorizado as destruições e as perdas humanas, um total


de, segundo Vizentini177, 55 milhões de mortos, 35 milhões de mutilados e três
milhões de desaparecidos. Nesses números, estão incluídos seis milhões de judeus
e 600 mil ciganos, além do que milhões desses indivíduos morreram nos campos
175
Ângela Maria Garcia dos Santos Silva é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Letras, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e bolsista do CNPq.
176
Países capitalistas como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a França juntaram-se aos
comunistas russos para combater os alemães, ignorando as atrocidades cometidas pelo ditador
soviético Stálin, pois, nesse momento, por razões mais relevantes como a de colocar um “freio”
nas intenções do Eixo, principalmente nas de Adolf Hitler, já não era considerado o mesmo
perverso de 1930, mas um dos principais líderes contra o nazismo ao lado do Primeiro-Ministro da
Inglaterra, Winston Churchill, do Presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosvelt, e do General
francês De Gaulle, que estava exilado na Inglaterra durante o conflito.
177
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
de concentração e nos territórios ocupados, vítimas da fome e da extrema
violência nazista.

Apesar do medo, da angústia e da tristeza que caracterizava o clima dos


derradeiros anos da guerra, a esperança de uma vida melhor renascia depositada
nas importantes vitórias dos Aliados, principalmente na resistência dos russos,
considerados pela população mundial como heróis libertadores. Esse sentimento
de uma nova ordem se intensificou com a chegada dos soviéticos em Berlim, no
ano de 1945, dando fim ao evento considerado por muitos historiadores como o
maior, mais sangrento e desastroso conflito da história da humanidade.

Se em 1945 o mundo comemorava o fim da guerra, no Brasil os brasileiros


festejavam o fim do Estado Novo, período ditatorial de Getúlio Vargas, um dos
momentos mais esperados pela população e pelos intelectuais que ansiavam pela
democracia.178

Nesse contexto histórico do século XX, como intelectual comprometido e


também como sujeito social do seu tempo, Carlos Drummond de Andrade traduz
a inquietude, o medo e as dores das pessoas, reflexo de uma fase individual e
coletiva tanto em nosso país como no mundo. Com os olhos voltados para esses
acontecimentos, o poeta centra o seu foco poético nas questões históricas,
políticas e sociais desenvolvendo, desse modo, conforme Silviano Santiago em
artigo intitulado Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de
178
Vale lembrar que a participação do Brasil na Segunda Grande Guerra foi determinante
para a derrubada do sistema de governo de Vargas, uma ditadura inspirada no fascismo. Quando a
crise de 1929 reduziu o comércio e os investimentos internacionais, a política exterior brasileira
oscilou entre cooperar com a Alemanha ou com os Estados Unidos, o que, conforme Vizentini em
As guerras mundiais, tratava-se de uma estratégia de Getúlio Vargas para forçar as relações com
os EUA. O presidente Roosevelt demonstrava preocupação na ligação comercial entre a Alemanha
e o Brasil por vários motivos: primeiro, porque nosso país significava a melhor porta de entrada no
continente, em caso de expansão alemã; segundo, porque se a indústria alemã dominasse os
recursos brasileiros, contaria com considerável alteração na balança mundial de poder; terceiro,
pelas tendências autoritárias pró-fascistas de Vargas e de parte significativa de seu exército, além
da presença de grandes colônias italiana e alemã no país. E mais da metade desta última
simpatizava com o nazismo. Por conta disso, Roosevelt empenhou-se em afastar a América Latina
de Berlim numa longa negociata comercial e diplomática. Vargas, por sua vez, tendo entrado em
acordo com os Aliados, obteve dos EUA a modernização do exército brasileiro através do
fornecimento de armas, o financiamento das importações e a construção da usina siderúrgica de
Volta Redonda. O acordo realizado determinou definitivamente o rompimento das relações
diplomáticas do Brasil com o Eixo.
Andrade179, o seu engajamento político à esquerda, que “se acentua com o correr
dos anos e vai desaguar em A rosa do povo [...]”. A poesia de Drummond está,
pois, intimamente relacionada com os eventos descritos e revela, em seu
conteúdo, a realidade político-sócio-cultural depreendida pela percepção do poeta
nesse período. Essa ideia de que o assunto dos poemas representa o produto de
uma mimese cultural foi levantada por José Guilherme Merquior, no capítulo
“Natureza da lírica”, da obra A astúcia da mimese: ensaio sobre lírica. Citamos
esse autor porque o livro de Drummond foi considerado pela crítica de uma
maneira geral, nas palavras do próprio Merquior em Verso Universo em
Drummond180, como poesia social “no sentido de arte engajada, levando em conta,
sobretudo, se não exclusivamente, os trechos ideológicos e o lirismo coral dos
poemas de guerra como: “Carta a Stalingrado”, “Visão em 1944”, “Com o russo
em Berlim”, entre outros. Este último texto é o objeto de análise deste ensaio por
ser um dos mais representativos do contexto em que estava inserido o sujeito
Drummond enquanto ser social de sua época e, ainda, por refletir sobre o clima
depressivo durante o período de conflito e sobre o otimismo da população
mundial com a derrocada do Eixo.

O poema: aspectos literários e históricos

Nesse cenário de destruição de países transformados em depósitos de


cadáveres, o poeta anuncia a utopia de uma nova ordem, cantando o sentimento
captado naquele instante de perplexidade diante do comportamento das pessoas e
da progressão de acontecimentos durante a guerra. Como a traduzir esse tempo, o
poema “Com o russo em Berlim” 181 concentra em seus versos a força da política e
179
Este artigo está publicado na crítica reunida constante na Poesia completa de Carlos
Drummond de Andrade, lançada em 2002, pela Nova Aguilar.
180
MERQUIOR, José Guilherme. Verso Universo em Drummond. Tradução de Marly de
Oliveira. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 122.
181
Em Uma história da poesia brasileira, Alexei Bueno considera esse o maior poema
inspirado pela Segunda Grande Guerra e também um dos maiores originários do conflito na
literatura ocidental.
da história tratando, principalmente, do fim da guerra com particular ênfase aos
obstinados e resistentes russos, que contavam com a simpatia da população
mundial. A chegada dos soviéticos em Berlim representou mais do que a derrota
dos alemães, significou a conquista da liberdade e a esperança de uma nova vida.

Ainda que este texto demonstre um forte caráter universal e o engajamento


social e político de Drummond, é preciso registrar que não se trata de vida real,
mas de representação e esta é regulada de acordo com Merquior182, pelas normas
do espírito, não pela realidade fora do poema. O poeta não está, pois, a descrever
ou a documentar a história (ainda que a sua mensagem poética continue a alcançar
gerações) porque a poesia não se presta a relatos ou descrições; ele simplesmente
capta o sentimento coletivo particularizando-o de tal forma que expõe a sua
percepção da realidade traduzindo o seu estado de ânimo naquele momento. E é
isso que confere novidade ao tema. Mais importa, pois, como o artífice representa
esse evento do que ele propriamente dito que é exterior ao texto. Para dar conta
dessa imitação da realidade, o poeta se utiliza das palavras, sua principal
ferramenta de trabalho. Os vocábulos são também elementos da imagem, como
postula Octávio Paz em Signos em rotação183. O modo como Drummond estrutura
e arranja esses vocábulos estabelece uma relação de independência entre eles de
maneira que nenhum deles pode sair do lugar para que não se perca a unidade e,
tampouco, o efeito que o poeta concedeu ao seu texto. Para isso, abusa do ritmo
(nesse caso bem marcado), das aliterações e assonâncias, elementos fundamentais
para a constituição da imagem de uma caminhada militar e que igualmente
constrói o sentido do texto.

No que se refere à imagem, o leitor é já, no título do poema, colocado


diante do cenário de guerra que lhe é imposto num só golpe e que não é a
realidade, mas realidade poética criada a partir da percepção do poeta sobre tudo o
que se passa no seu entorno. A imagem inicial do domínio de Berlim pelos russos

182
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: A astúcia da mimese: ensaio sobre
lírica. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 7-33.
183
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 37-
50.
explica a si mesma e tende a forçar o leitor a lembrar do conflito, ainda que não
tenha vivido ou sofrido tal tragédia, basta que tenha lido ou estudado sobre o
assunto. Mas, se não estiver na mesma disposição anímica do autor, conforme
explica Emil Staiger em Conceitos fundamentais de poética184, não entenderá o
texto. É preciso, enfim, que o leitor tenha conhecimento da história para que o
poema faça para ele algum sentido. Se a imagem da guerra se apresenta de vez
desde o título, a da marcha se realiza durante o poema até o último verso, sendo
necessário analisar todos os elementos que a formam.

Tomando por base a estrutura do texto, verificamos que a forma utilizada


para a sua construção, 17 estrofes distribuídas em quadras brancas compostas por
três decassílabos em refrão hexassílabo, se presta mais para traduzir a
interioridade de Drummond naquele momento. Fica claro que para dar um sentido
de marcha militar progressiva a fim de atingir um objetivo final e também para
abordar todas as questões da guerra que, em forma de conteúdo, estão
intimamente entrelaçadas com o todo do poema, o poeta não poderia usar, por
exemplo, um soneto. Evidentemente, Drummond necessitava escrever um poema
longo com métrica bem determinada para traduzir o movimento ritmado do seu
espírito e do exército russo. Começando pelo refrão, o uso do metro enfaticamente
marcado e as dezessete vezes em que é repetido no poema, produz o que Staiger
chama de linguagem onomatopaica. O ritmo dessa linha combinado ao uso de
assonâncias e aliterações – principalmente se levarmos em consideração as vogais
fechadas “i” e “u”, e as semifechadas “e” e “o”, aliadas às consoantes “c” “r” e
“b” –, imitam uma espécie de jornada militar ininterrupta e em evolução rumo ao
fim da guerra, à liberdade dos países ocupados pelo movimento fascista e à utopia
de uma nova ordem.

A imagem da marcha se concretiza mais fortemente se isolarmos o refrão e


o lermos repetidamente: “com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”,

184
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1993.
“com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”, “com o russo em Berlim”,
“com o russo em Berlim”... Dessa forma, é possível, inclusive, visualizarmos o
desfile das tropas como se estivessem os soldados soviéticos a bater os pés no
chão, efeito conseguido pelo poeta na sílaba tônica /rus/, que marca energicamente
o ritmo da caminhada. Por esse motivo, ao contrário dos demais versos, esse tem
de ser hexassílabo e sem pausas, o que lhe dá uma certa rapidez e indica o avanço
insistente e progressivo dos soldados. Esse verso traduz o sentimento e a ideia-
chave do poema. Deixando-o, porém, junto de cada estrofe, amplia o significado
do texto. Os primeiros três versos de cada estrofe vão apresentando as mazelas e
consequências da guerra, mas nesta linha de seis sílabas existe a certeza de um
fim, alcançado somente na última estrofe, quando, enfim, cessa a marcha
soviética. Em outras palavras: mesmo que o mundo esteja um caos, mesmo que
tenham se perdido vidas, se destruído cidades, se torturado e aprisionado
inocentes, mesmo que nada pudesse ser denunciado por causa da censura, que
tenha havido todo o tipo de desperdício, a marcha russa libertadora traz a
esperança e trará êxito. Usamos o verbo no futuro porque, progressivamente, a
partir de cada momento da guerra apresentado em cada estrofe, o refrão aparece
como se estivesse caminhando para a vitória que só se realiza de fato no fim do
poema.

Analisando as duas primeiras estrofes, percebemos que os seis versos


decassílabos que antecedem “com o russo em Berlim” intensificam a espera do
sujeito poético pelo efeito de lentidão provocado pelo uso de pausas e de sílabas
tônicas lembrando os seis anos de duração do conflito (1939-1945). A longa
espera, no entanto, se converte em esperança de que esse evento que abalou a paz
do mundo terá fim. O verbo “chegarei” e a expressão “um dia entrar” realizam a
imagem (ainda tímida) de otimismo do sujeito lírico atento a todas as ocorrências
da guerra registradas nas demais estrofes. O motivo pelo qual sente-se aliviado é
por ter “agora” a certeza de que não esperou em vão.

Esperei (tanta espera), mas agora,


nem cansaço nem dor. Estou tranquilo.
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.


Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.185

O registro do caos em que se encontrava o mundo se faz mais claro a partir


das próximas linhas tanto no conteúdo quanto na escolha do poeta pelos versos
brancos. De acordo com T.S. Eliot em “Musicalidade da poesia” 186, o verso
branco pode ser usado para propósitos meditativos, idílicos, filosóficos e épicos.
Ao que parece, a preferência de Drummond tem um objetivo claro: referir-se aos
russos como heróis dando um tom de epopéia ao texto, ao mesmo tempo em que o
sujeito poético medita sobre a guerra e seus efeitos. A desorganização do mundo
também é reforçada pela falta de rimas o que causa certa desarmonia no poema
análoga às consequências da guerra, ocasionadas pelo “tempo de ódio e mãos
descompassadas.” O conteúdo revela igualmente um dos resultados dessa
desordem: o período de silêncio que se estabelecera no mundo todo por conta da
censura controlada pelos regimes totalitários não permite ao sujeito poético se
manifestar e ele só pode fazê-lo através das palavras. Como então lutar sem elas,
“penetrando com o russo em Berlim?”. O jeito é ficar acompanhando as notícias
pelo jornal, calado, sem poder manifestar sua posição, sem poder usar a sua
ferramenta mais preciosa.

Minha boca fechada se crispava.


Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos


ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.187
185
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2002.
186
ELIOT, T.S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Estudos e ensaios. Rio
de Janeiro: Artenova, 1972.
187
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
A ênfase à censura se repete denunciando esse tempo em que as bocas
calaram-se por toda a parte. No caso do Brasil, o autor de A rosa do povo assistiu
a instauração do chamado estado de emergência que permitia a Getúlio Vargas um
poder absoluto: podia ele prender, exilar, invadir domicílios, suspender a
imunidade dos parlamentares e para completar, legalizou a censura para todos os
meios de comunicação espalhando o medo e evitando manifestações contrárias à
sua política pró-fascista. Nessa época de total repressão, somente os olhos
desejosos de um outro desfecho assistem a tudo; e a anáfora “só os olhos” se
repete para sublinhar que toda a esperança estava depositada no “exército
vermelho”. Se nada se podia dizer, os olhos fixavam o mapa observando a
evolução da marcha soviética.

Pois também a palavra era proibida.


As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.188

No entanto, os lábios contraídos e o sentimento antes abafado pelo silêncio


imposto ressurgem com a expectativa de vitória desses soldados. Foi preciso ter
paciência, esperar “com esperança fria”:

Eu esperei com esperança fria,


calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.189

Na próxima estrofe, numa referência às diversas batalhas ocorridas na


China, na França, na Bélgica (Batalha de Ardenas) e na África (Batalha de
Tobruc), o eu poético retoma os momentos de longa espera para destacar àquela
que deu finalmente algum sinal de que o projeto nazista de expansão seria

188
Ibid.
189
Ibid.
interrompido: a Batalha de Stalingrado. Esta foi, desse modo, um marco na
história da guerra. A recuperação da cidade era uma questão de honra para os
russos pelo valor simbólico que encerrava, pois levava o nome do líder soviético,
Stálin. Exatamente por esse motivo Hitler não queria entregá-la, mas o exército
oponente cercou o 6º exército alemão, obrigando o comandante Von Paulus a se
render. Esses versos são fundamentais para situar o leitor sobre o avanço da
“marcha russa” no poema, já que esta batalha aconteceu em 1943. O poeta aponta
assim para a primeira derrota significativa dos alemães, embora o primeiro
fracasso nazista tenha sido na Batalha de Moscou. A partir daí, os soldados de
Hitler passariam a recuar em todas as frentes, principalmente na região extinta da
União Soviética.

Eu esperei na China e em todo canto,


em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado,
com o russo em Berlim.190

Todas essas batalhas, obviamente, tiveram tristes e negativos resultados:


muitas baixas humanas, cidades inteiras extintas e colheitas arruinadas. Nos
versos que seguem, logo depois de lamentar suas perdas, o eu lírico faz menção à
política russa de defesa de terra arrasada: tudo o que não podiam levar para o
leste, destruíam e queimavam para que não fosse usufruído pelas tropas inimigas
(fábricas, colheitas e outros recursos). Apesar de tanto aniquilamento, insiste que
tudo será reconstruído, ideia de esperança reforçada pela expressão “que ressurge”
com a marcha contínua dos russos.

Cidades que perdi, horas queimando


na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.191

190
Ibid.
191
Ibid.
As pausas bem marcadas e a repetição empregada no primeiro verso da
próxima estrofe, “O campo, o campo, sobretudo o campo”, denotam uma
profunda reflexão do sujeito poético a respeito da escravização e do extermínio
brutal protagonizado pelos germanos.192 Nesse caso, a progressão da marcha dos
soldados soviéticos está representada no uso do gerúndio “desfazendo-se”, que
alonga a ação porque ainda não aconteceu, mas acontecerá quando chegar o final
do texto. É necessário, pois, que o exército heroico continue a caminhada.

O campo, o campo, sobretudo o campo


espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.193

Nas estrofes anteriores, o sujeito poético está perplexo observando e


refletindo sobre os crimes, resultado da barbárie da guerra. Entretanto, a partir dos
próximos versos, ainda que o poeta tenha usado o pronome me (“os peixes me
devorando”), o eu lírico agora se inclui na ação: ele faz parte de um grupo de
marinheiros que morreram durante os ataques dos submarinos alemães aos navios
brasileiros quando transportavam matérias-primas estratégicas para os Estados
Unidos (carvão, ferro, areias monazíticas etc.). Ao todo, 35 navios foram
afundados numa reação dos nazistas pela ruptura do Brasil com o Eixo. O
acontecimento provocou grande mobilização popular, de intelectuais e da União
Nacional de Estudantes – UNE pressionando Vargas a declarar guerra contra a
Alemanha. A carga perdida era de fundamental importância para sustentar o
exército americano, importante aliado dos russos.

Nas camadas marítimas, os peixes


me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar

192
Conforme VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003, nos campos de Auschwitz,
Chelmno, Belzek, Sobibor e Treblinka seis milhões de judeus foram exterminados, sendo que a
maior parte deles era de trabalhadores pobres da Europa Centro-Oriental. Também morreram
nesses locais seiscentos mil ciganos e milhões de russos, ucranianos, iugoslavos e poloneses.
193
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
com o russo em Berlim.194

Nas quatro próximas linhas, numa espécie de retorno ao ponto em que se


via apenas como observador, o sujeito poético refere-se, provavelmente, à aviação
americana autorizada por Vargas a utilizar os aeródromos do nordeste com os
objetivos de combater os submarinos alemães, proteger os comboios de navios
mercantes, e como ponto estratégico de escala da rota para a África e para a Ásia.
Em janeiro de 1943195, os EUA construíram a Base Aérea de Natal e, em seguida,
num acordo entre Roosevelt e o presidente brasileiro, foi criada a Força
Expedicionária Brasileira – FEB, no intuito de participar do conflito contra o
bloco fascista. Assim, o Brasil pôde auxiliar da luta anti-submarina próxima ao
nosso litoral com unidades aéreas e, posteriormente, estender o apoio em outras
batalhas. Se não participa da ação nesse momento como na estrofe anterior, o
sujeito poético manifesta a vontade de fazê-lo quando nota “a batalha no ar” e se
pergunta “por que não/ com o russo em Berlim?”. Mesmo que sejam citadas fases
em que não é possível identificar a presença direta dos soviéticos, o poeta retoma
o verso hexassílabo para lembrar que os soldados russos continuam a sua luta, a
sua marcha.

Essa batalha no ar, que me traspassa


(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).196

Várias unidades navais brasileiras também prestaram socorro às unidades


aéreas contra os submarinos nazistas. A referência da participação da Marinha
brasileira no conflito denota uma mudança explícita no texto: o eu poético
identifica-se com os marinheiros quando diz “Muitos de mim saíram pelo mar”.

194
Ibid.
195
VIZENTINI, Paulo Fagundes. Op. cit., 2003.
196
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
Ao se transformar em muitos, passa do plano individual para o coletivo e, nas
próximas estrofes, ele é “nós”.

No segundo verso, o poeta salienta que o melhor dele está lutando, talvez,
naquele momento, construindo poemas (muitos dele próprio), as únicas armas que
possui, mostrando-se entendedor de que a ele cabe dar a conhecer a sua
mensagem para que possa chegar triunfante “com o russo em Berlim”.

Muitos de mim saíram pelo mar.


Em mim o que é melhor está lutando.
Possa também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.197

E pede que não cesse esse avanço da marcha russa, embora “Este vento
que passa” e que ainda não pode ser anulado (a guerra), leve com ele as vidas e
derrube parte do mundo.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.


Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.198

No segundo semestre de 1943 e durante todo o ano de 1944199, os Aliados


realizaram ofensivas no Pacífico e no sudeste asiático libertando muitos países
ocupados pelos inimigos e obtendo grandes vitórias. Drummond observa essa
onda de otimismo que se espalha pelo mundo e reproduz, no texto, a sua
percepção do momento. O sujeito poético já convertido em “nós” representa
milhões de pessoas que têm fé, que têm certeza de que esse terrível evento está
chegando ao fim. A garantia está na afirmativa “nós a temos”. A retomada do

197
Ibid.
198
Ibid.
199
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
refrão cumpre papel idêntico ao das outras estrofes: a progressão da marcha
soviética que não desiste e continua avançando.

Olha a esperança à frente dos exércitos,


olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.200

Mas ainda era preciso conquistar a cidade poderosa: Berlim. O eu lírico


reconhece que a empreitada não será fácil quando afirma “E não cairá tão cedo.”,
pois, apesar das derrotas sofridas antes de 1945, a Alemanha ainda contava com
forças poderosas e organizadas dispostas a morrer lutando em defesa do território
do Reich. Em abril de 1945, o exército soviético iniciou os ataques a Berlim e
cercou a cidade “colar de chamas forma-se a enlaçá-la”. O “russo” já está,
finalmente, em Berlim201.

Uma cidade existe poderosa


a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.202

Ao contrário do que acontecia no oeste, onde as tropas alemãs rendiam-se


aos americanos sem muita luta, em Berlim, os soldados nazistas resistiam
violentamente usando todo o poderio de armas de que dispunham no seu “ventre
metálico”. Essa cidade cruel, um “ajuntamento” de homens estúpidos agora
“treme com o russo em Berlim”. O medo da invasão russa tinha razão de ser
porque quando invadiram a Rússia, os alemães foram extremamente ferozes e
impiedosos matando, escravizando, estuprando inocentes e massacrando cidades
para tomar suas indústrias, riquezas e recursos naturais. Depois que os soviéticos
se apossaram do prédio de Reichestag, Hitler se suicidou, atitude repetida por
outros dirigentes nazistas.

200
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
201
Vale lembrar que os russos invadiram sozinhos a Europa Oriental.
202
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.203

Ao final do texto, o sujeito poético convoca os trabalhadores para que,


junto com os russos, esmaguem Berlim, fazendo uma alusão ao famoso grito de
protesto do socialismo constante no Manifesto Comunista de Karl Marx e
Friedrich Engels. É importante não esquecer que, durante a guerra, em quase
todos os países, organizaram-se movimentos político-militares de resistência que
foram reconhecidos e apoiados pelos aliados ocidentais. Esses grupos204 tiveram
formas de atuação variadas de acordo com as nações a que pertenciam. Alguns,
conforme Vizentini205, dedicaram-se à espionagem, à organização de greves, aos
atos de sabotagem à indústria bélica, aos atentados contra oficiais, soldados e
políticos fascistas, à propaganda e publicação clandestinas e à luta de guerrilhas,
chegando a travar grandes batalhas contra os invasores.

A referência aos grupos de resistência (os trabalhadores do mundo) nessa


estrofe serve apenas para enfatizar a simpatia de Drummond pelo movimento,
pois não encontramos em nenhum livro de História relatos de que guerrilheiros
tenham auxiliado os russos na invasão contra Berlim. Sendo Drummond
comunista como é de conhecimento público, sonhava, naturalmente, com uma
nova vida, diferente da que se vivia na época. O seu poema é, de certa forma, uma
homenagem àqueles que realizaram essa marcha de libertação. Identificamos uma
reverência particular do poeta à marcha dos comunistas russos. Essa promessa de
libertação e de uma nova ordem também era defendida por um dos movimentos de
resistência, que desejava que a luta pela liberdade viesse acompanhada de
reformas sociais progressivas.

203
Ibid.
204
Desde o seu surgimento, os grupos de resistência dividiram-se entre conservadores
antinazistas que ansiavam pela restauração do regime anterior à guerra, e os grupos de esquerda
que desejavam que a luta de libertação fosse acompanhada de reformas sociais progressistas.
205
VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais. Porto Alegre: Leitura XXI, 2003.
Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.206

Considerações finais

Ao final da análise, ainda se fazem necessárias algumas considerações


acerca deste texto considerado por Alexei Bueno207 como um dos mais
importantes textos oriundos da guerra. Carlos Drummond de Andrade vive num
tempo em que o cenário social, político e cultural esmaga a população mundial e
não podemos esquecer que ele presenciou igualmente todas as atrocidades
cometidas pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas. “Com o russo em Berlim”
apesar de tratar de temas que denotam essa realidade, não trata exatamente dela,
porque é, na verdade, o resultado da grande angústia que sente o poeta diante da
dor e do sofrimento individual e coletivo.

Por tudo isso, Drummond assume um posicionamento político de esquerda


que significava, na época, mais do que ser comunista, significava ser contrário ao
horror nazista que se espalhava pelo mundo. Ele traduz em versos esse sentimento
dando ênfase justamente ao ano de 1945 quando os russos invadiram Berlim e
aconteceu, finalmente, o fim da guerra. É fato declarado no texto a simpatia do
poeta pelos sacrifícios e sucessos da URSS, uma vez que representa a marcha
“epopeica” dos soviéticos em um texto longo e bem ritmado capaz de traduzir o
avanço do exército heroico naquele instante. A ideia central do texto está, desse
modo (e desde o título!), no verso hexassílabo.

206
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., 2002.
207
BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa
Editorial, 2007.
O que fica implícito no texto é o fato de que há sim a sobreposição do
sistema comunista (socialista) sobre o nazista é exatamente por isso que a
população ansiava: uma nova ordem, uma nova vida para os indivíduos. E quem
melhor representava esse sonho comunista/socialista208 era a União Soviética.
Mesmo que os Aliados tenham vencido a Segunda Guerra, foram os russos que
invadiram Berlim e os olhos do mundo estavam voltados para eles.

De acordo com Käte Hamburger209, o objeto do poema não precisa


aparecer de maneira objetiva, ele pode ficar sugerido no plano simbólico. Nesse
sentido, podemos dizer, por fim, que a repetição do verso ideia-chave do texto traz
em si o otimismo da população e, principalmente o do Drummond comunista ao
assistir a queda do regime fascista derrotado pelos também comunistas russos.210

208
A título de esclarecimento, o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, dá as seguintes
definições de comunismo: 1conjunto coerente de ideias fundamentais a serem transmitidas,
ensinadas; 2) conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso,
econômico etc.; 3) doutrina econômica e sociopolítica, de cunho revolucionário, elaborada pelos
teóricos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), que prevê a superação
do capitalismo por meio da luta de classes, o fim da propriedade privada dos meios de produção, a
instauração de um regime de partido único e, num último estágio, a supressão do Estado e o
estabelecimento de uma sociedade sem classes.
209
HAMBURGER, Käte. O gênero lírico. Em: A lógica da criação literária. São Paulo:
Perspectiva, 1975. p. 167-209.
210
Acreditamos ser importante neste momento esclarecer que não nos interessa defender
nenhuma posição política, nos detivemos exclusivamente no que pudemos depreender do texto,
por isso, para apoiar nossas conclusões finais, citaremos algumas passagens da obra de Vizentini.
O movimento fascista alemão, ou nazismo, liderado pelo austríaco Adolf Hitler não tinha uma
unidade ideológica bem definida, “apoiando-se em fontes heterogêneas, tais como ‘a vontade de
potência’, de Nietzsche, as teorias racistas, de Gobineau e Chamberlain, a ‘fé no destino’, de
Richard Wagner, as teorias sobre herança, de Mendel, a Geopolítica, de Haushofer, o
neodarwinismo, de A. Ploetz e A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler” (em VIZENTINI,
Paulo Fagundes, Op. cit., 2003, p.72). Mais adiante o historiador explica que “O obscurantismo do
fascismo alemão pretendia destruir a civilização oriunda do renascimento, do iluminismo e do
liberalismo do século XIX. Era também firmemente anticomunista e antimarxista, embora
manipulasse a ideia de um ‘nacional-socialismo’”. O autor de As guerras mundiais esclarece
ainda na página 110 que, em 1930, todos os países fomentaram o nacionalismo. No caso da
Rússia, não se tratava somente de defender o país, defendia-se, principalmente a pátria do
socialismo e “o povo sabia o que vinha por trás dos exércitos nazistas: não apenas a destruição de
todas as conquistas da Revolução como também a escravização ou o extermínio puro e simples.
Os prisioneiros judeus e comunistas foram imediatamente fuzilados.” E para terminar, Vizentini
conclui nas páginas 161 e 162: “deve-se observar igualmente que a contribuição da URSS à
derrota da Alemanha não foi apenas a de uma nova potência industrial, mas a de um novo sistema
social, o socialismo.” E insiste: “As resistências tornaram-se, especialmente na Europa,
importantes movimentos político-militares, nos quais a força de esquerda – sobretudo a
comunista – acentuava-se como resultado da própria luta, tornando-se um fator político de
primeira grandeza como condicionamento do processo de reordenação mundial.”
Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2002.

BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff


Casa Editorial, 2007.

CHURCHILL, Winston. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Tradução Vera


Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

HAMBURGER, Käte. O gênero lírico. Em: A lógica da criação literária. São


Paulo: Perspectiva, 1975. p. 167-209.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2009.

MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial. Tradução Ângela M. S. Corrêa.


São Paulo: Contexto, 2010.

MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. Em: A astúcia da mimese:


ensaio sobre lírica. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 7-33.

_____. Verso Universo em Drummond; tradução de Marly de Oliveira. 2. ed. Rio


de Janeiro: José Olympio, 1976.

PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
p. 37-50.

PROENÇA, M. Cavalcanti. Ritmo e poesia. Rio: Simões, 1955.

SANTIAGO, Silviano. Introdução à leitura dos poemas de Carlos Drummond de


Andrade. Em: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. 2. ed. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 1993.

ELIOT, T.S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Estudos e


ensaios. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.

VIZENTINI, Paulo Fagundes. As guerras mundiais (1914-1945). Porto Alegre:


Leitura XXI, 2003.
A ROSA DO POVO, DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE:
POESIA E ESPERANÇA EM TEMPO DE GUERRA

Anna Faedrich MARTINS

A poem needs understanding through the senses. The point of


diving in a lake is not immediately to swim to the shore but to
be in the lake, to luxuriate in the sensation of water. You do not
work the lake out. It is an experience beyond thought.
Poetry soothes and emboldens the soul to accept mystery.

John Keats

Quando vi que a proposta dos ensaios era “poesia em tempo de Guerra”,


minha primeira reação, ingênua, foi a de me questionar como eu escreveria sobre
uma poesia produzida no Brasil, com esta temática, se, aqui, nós não tivemos a
experiência da Guerra. Além disso, sempre ouvimos dizer que os brasileiros não
têm o sentimento da Guerra, da dor e do desespero vivenciados em outros
continentes, principalmente o europeu. O horror daqueles que carregam consigo o
trauma da catástrofe e do absurdo nunca é associado aos brasileiros, os cordiais
brasileiros, que, aparentemente, não compartilham desse sentimento.

No entanto, ao longo do estudo sobre poesia brasileira, em especial,


Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e
Murilo Mendes, vimos que o sofrimento e as consequências da Guerra estão
presentes na lírica produzida no País. O sentimento da Guerra pode aparecer de
maneira implícita ou explícita nos poemas. Cecília Meireles (1901-1964),
conhecida por suas belas e suaves canções e pelo plano transcendental presente
em sua lírica, também trata de situações mais concretas da vida, num viés crítico
e, até mesmo, sociopolítico. Em “Lamento do oficial por seu cavalo morto”,
Cecília condena a Guerra, o uso de armas e de tecnologia para fins de destruição:
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,


os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,


recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.

Animal encantado – melhor que nós todos! – que tinhas


[tu com este mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Já Murilo Mendes (1901-1975), no poema “Lamentação”, mostra a


perplexidade e o desespero face à falta de esperança, à falta de perspectiva de uma
saída, num mundo onde o próprio homem constrói a sua algema:

Nenhum homem tem mais saída:


Antes de nós o dilúvio.
Durante, o tédio no caos.
Depois, o épico escuro.

O desespero desespera
Os olhos não são para ver
Nem os ouvidos para ouvir.

O diálogo virou monólogo,


Meio-dia é meia-noite.
Todos curvados constroem
Suas próprias algemas

O grande ai das criaturas


Sobe para o céu
Forrado de espadas.

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um livro


composto por 55 poemas, escritos no período de 1943 e 1945 e publicado em
1945, momento crítico pelo qual o mundo passava. O contexto é de tensão, de
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), campos de concentração, judeus
torturados, milhares de mortos, combates, pessoas perseguidas, invasões, etc. No
Brasil, o contexto é de Ditadura Militar, transcorria o período do Estado Novo,
antecedido pela Era Vargas, pelo constante progresso da cidade e pela
modernização.

Este é o livro de poemas de Drummond mais aclamado pela crítica


literária, talvez por sua intensa reflexão sobre o tempo de Guerra pelo qual o
mundo passava, sendo esta uma poesia que pode ser considerada de caráter social.
Entretanto, creio que tais afirmações categóricas, como “o melhor e mais
significativo poeta jamais surgido na língua portuguesa do Brasil lança aquele que
será, para sempre, seu mais importante livro, A rosa do povo”211, são perigosas,
pois desmerecem as demais produções líricas do poeta, bem como se restringem a
uma valorização extrema da análise social do poema, não levando em
consideração que, mesmo em A rosa do povo, a poesia de Drummond supera
qualquer tentativa de reducionismo, uma vez que sua poesia é uma verdadeira
explosão de sentidos. Conforme T. S. Eliot (1972), o poema, aqui, pode significar
muito mais do que aquilo que o próprio autor tinha consciência.

Percebe-se em A rosa do povo uma variedade temática, marcada pela


metalinguística, pela reflexão existencial, pelo cotidiano, pelo passado, pelo amor,
pela celebração dos amigos, pela paródia, entre outros temas. Entretanto, tal
variedade temática volta-se, sempre, para o sentimento da Guerra, que, quando
não está explicitamente colocado, aparece nas entrelinhas, repercutindo na
interioridade do eu lírico, que sente e sofre diante da crise mundial.

211
FISCHER, Luis Augusto. Em: Leituras Obrigatórias: Vestibular da UFRGS 2001-2002.
Porto Alegre: Novo Século, 2000, p. 127.
Os dois primeiros poemas, “Consideração do poema” e “Procura da
poesia”, são reflexões do sujeito lírico sobre o próprio fazer poético. A abertura do
livro com esses dois poemas metalinguísticos é uma escolha significativa para o
todo da obra. No primeiro, Drummond apresenta uma ruptura com a poética
tradicional, uma vez que não acredita mais no sentido vazio da rima entre as
palavras sono e outono, por exemplo, saindo, assim, do lugar-comum poético:

Não rimarei a palavra sono


com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis. 212

A poesia enquanto tema na lírica drummondiana é uma expressão da


preocupação do poeta sobre a arte da poesia, o ofício de escrever, a estruturação
do texto e o trabalho da linguagem lírica. Em a “Procura da poesia”, o eu lírico
utiliza o imperativo para refletir o que é a poesia através da negação do que ela
não é, do que não deve ser feito:

Não faças versos sobre acontecimentos.


Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à
efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro


são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.


O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das
casas.

212
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 21.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto
à linha de espuma.213

Os teóricos John Fletcher e Malcolm Bradbury observam a tendência do


romance moderno em preocupar-se com o caráter técnico e fictício do romance.
Tal consciência sobre o fazer literário é denominada, pelos de teóricos, de
introversão:

A forma não é um simples meio de manipular o conteúdo; em


certo sentido, ela própria é o conteúdo: a experiência gera a
forma, mas a forma gera a experiência, e é nos delicados
cruzamentos entre as pretensões de totalidade formal e da
contingência humana que encontramos algumas das principais
táticas e estéticas da ficção modernista. 214

O mesmo procedimento que Fletcher e Bradbury analisam no romance


modernista pode ser associado ao aspecto moderno dos poemas de Drummond. O
movimento de introversão na obra de arte moderna é um de seus grandes temas,
ou seja, a arte do próprio romance, dando à ficção um caráter simbolista, o que
obriga o leitor a entrar em sua forma e ir além do conteúdo:

Na criação literária, a experiência individual se transforma num


‘equivalente espiritual’; descobrindo-nos, desvelamos o mundo
artístico que se encontra dentro de nós. E, como é apenas pela
arte que emergimos de nós mesmos, o estilo de um escritor não
é uma questão de técnica, mas uma visão ou uma totalidade
simbolista.215

Face à variedade temática de A rosa do povo, o recorte de análise, aqui,


será o poema “Visão 1944”. Aparentemente, a relação do título com o poema
propriamente dito é uma contradição. O título refere-se à visão de uma
determinada época, e o poema repete a cada nova estrofe a impossibilidade do eu
lírico em enxergar face à pequenez de seus olhos. O poema é composto de 22
estrofes de quatro versos cada, chamadas de quadras ou quartetos, e, o início de
cada estrofe é marcado pelo ritornelo, ou seja, o retorno do verso “Meus olhos são
213
Ibid, p. 24.
214
FLETCHER & BRADBURY, 1989, p. 325.
215
Ibid, p. 330.
pequenos para ver”. Tal repetição também é conhecida como refrão, que age no
poema de maneira a deixar a leitura mais tensa, chamar a atenção ao reforçar a
ideia que nele expressa e dar ritmo à sua composição formal.

O ritornelo “Meus olhos são pequenos para ver” pode, entre outras
interpretações, reforçar o sentimento de impotência e de insignificância do homem
face à barbárie da guerra. O eu lírico sente-se impotente ao ver o general
escolhendo a próxima cidade a ser bombardeada, pois nada pode fazer para
impedir o horror e o sofrimento dos que são atingidos. A insignificância do
homem é acentuada através dessa repetição, pois tem a consciência de que, em
alguns segundos, num bombardeio, pode virar pó, assim como uma cidade inteira
vira ruína. É uma situação de desespero, desvalorização da vida, desumanidade:

Meus olhos são pequenos para ver


a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.

[...]

Meus olhos são pequenos para ver


o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

“Meus olhos são pequenos para ver” também pode ser a expressão do
desejo desse eu lírico de não querer enxergar o que está acontecendo, de sentir-se
contrariado, avesso à realidade, e, por isso, prefere negá-la, rejeitá-la:

Meus olhos são pequenos para ver


o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

Os olhos do eu lírico são pequenos para ver o futuro, o que poderia


acontecer caso as cidades não estivessem sendo atacadas e a população não
estivesse sendo perseguida, torturada e morta. O poema expressa a repercussão da
Guerra na interioridade do sujeito, no caso mais particular, como é o beijo
cancelado de uma mulher, um beijo cancelado pelas granadas, pelos ataques, pelas
mortes. A destruição e o desespero são totais, e o poeta constrói imagens fortes,
como a de um botão que se desfolhará no céu e a dos peixes que convivem
silenciosamente com os destroços humanos afundados no mar, tal como a do beijo
cancelado, que nos levam à percepção intensa da tensão da época:

Meus olhos são pequenos para ver


o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

[...]

Meus olhos são pequenos para ver


na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver


o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Assim, percebemos que a poesia social de Drummond não se trata


meramente de uma denúncia social ou do registro de uma crise mundial. Também
a significação do seu poema escapa à paráfrase, de acordo com Eliot, ela “pode
ser algo muito maior do que o propósito consciente de seu autor, e algo afastado
de suas origens.”216 Para Eliot, se a poesia nos toca, ela significa algo. E, lendo
“Visão 1944”, posso me sentir tocada mesmo que eu não tenha a experiência da
Guerra, pois “o poema significa mais do que o discurso comum pode significar”, a
poesia, segundo Eliot, “tenta exprimir algo além daquilo que é expresso na prosa”,
ela permanece da mesma forma uma pessoa falando a outra, e isso também é
verdadeiro na canção.

216
ELIOT, T. S. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Tradução Maria Luiza
Nogueira. Rio de Janeiro. Artenova, 1972, p. 49.
Eliot afirma que cantar é outro modo de conversar, por isso, ao falar da
musicalidade da poesia, o teórico e poeta inglês dá ênfase à conversação. A
musicalidade, por sua vez, não existe à parte do seu significado e a poesia tem de
ser a que está latente na fala comum de sua época. Para Eliot, o poeta é um
escultor dessa linguagem da conversa, ele não a reproduz, mas sim encontra nela o
material de sua poesia. É interessante quando o poeta inglês afirma que a
musicalidade do verso não está em cada linha, mas no poema como um todo, há,
nele, a musicalidade de imagens, bem como de sons, exatamente como vimos no
poema “Visão 1944”, em que tanto a repetição do primeiro verso, o ritornelo,
quanto a construção de imagens compõe esse “outro modo de conversar” da
canção, ou seja, a significação do poema.

Os olhos do eu lírico são pequenos para ver, mas veem. Esta é a revelação
final do poema. Podemos dizer que, em sua maioria, os finais dos poemas de
Drummond são surpreendentes, no sentido de provocar surpresa, como uma
quebra no sentido do que vinha sendo dito. Há neles uma revelação ou um
profundo lirismo que é fundamental para o seu todo. Essa revelação parece
contraditória, uma tensão entre o intenso pessimismo e a esperança revelada nos
últimos versos. No final de “Visão 1944”, surge uma esperança com um “outro
mundo”. E é um outro mundo que brota em meio ao sangue, à sujeira. Um mundo
que brota da lama, como a flor de lótus, que o poeta refere no poema pelo termo
científico “nelumbo”.

Os olhos do eu lírico são pequenos demais para ver uma porção de coisas,
entretanto, no final, existe um “outro mundo”, símbolo de esperança, que os olhos
conseguem ver, querem ver, e eles “veem, pasmam, baixam deslumbrados”:

Meus olhos são pequenos para ver


essa mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver


o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
– mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.

Esse mesmo procedimento pode-se encontrar em “A flor e a náusea” e


“Morte do leiteiro”, por exemplo, poemas do mesmo livro. No primeiro, uma flor
rompe o asfalto, fura o tédio, o nojo e o ódio. A flor é uma dose de esperança face
à crise cotidiana experienciada no poema:

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Em “Morte do leiteiro”, o desfecho cruel do poema, em que o leiteiro,


trabalhador inocente, é confundido com um ladrão e assassinado pelo dono da
casa onde entregava o leite todas as manhãs, é marcado pela junção das cores do
sangue e do leite, que, ao se misturarem, transformam-se em tom rosa, o terceiro
tom, o qual o eu lírico chama de aurora:

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

A rosa do povo é uma obra que é considerada, por muitos, “datada”, isto é,
registra uma época, faz parte de um contexto histórico-social marcado. Entretanto,
se considerarmos a missão da poesia, conforme os apontamentos de Marcel
Raymond217, como uma permissão ao eu escapar a seus limites e dilatar-se até ao
infinito, ou seja, apreender os sentidos através de uma realidade complexa, vemos
que a poesia de Drummond vai além da representação da crise mundial. Há, isso
sim, uma subjetivação do sentimento humano face à Guerra. É a dor e o
sofrimento do eu lírico que compõem o poema, assim como o sentimento de
esperança que surge a cada desfecho. Sendo assim, a repercussão do dado social
na interioridade do sujeito permite ao poema o seu aspecto atemporal.

José Guilherme Merquior chama de “astúcia da mimese” o procedimento


que permite à representação singular a significação universal, uma vez que “a
mimese poética é imitação das palavras, que se refletem e se correspondem, antes
mesmo de ser representação de algo externo.” 218 Merquior percebe que tal astúcia
da mimese não concerne apenas ao lírico, mas sim a todos os gêneros literários: “é
o modus operandi da literatura em geral”. Sendo assim, ela indica “a causa final
do literário, que guarda o segredo da universalidade das suas obras” 219, ou seja,
promove o aspecto atemporal da poesia, isto é, interessa aos homens em qualquer
tempo e lugar.

Se formos pensar no nosso contexto atual, Brasil, ano de 2010, o Rio de


Janeiro tem passado por uma experiência de Guerra. A ocupação das favelas por
parte da integração da Polícia Civil, Militar e das Forças Armadas tem causado
um momento de profundo pânico e terror. Dessa forma, o sentimento de
impotência e de insignificância do homem, expresso no poema “Visão 1944”, é
um sentimento universal e atemporal, pois, mais de 50 anos depois, podemos ler
esse poema, sentindo e reconhecendo na dor do eu lírico a nossa própria dor, a
nossa perplexidade em frente à violência e à desumanização.

217
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução Fúlvia M. L. Moretto &
Guacira Marcondes Machado. São Paulo: EDUSP, 1997, p. 20.
218
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p.
23.
219
Ibid, p. 26
“Visão 2010” foi uma paródia despretensiosa que fiz do poema de
Drummond. Ao incluir essa paródia aqui, a minha intenção é mostrar que a poesia
de Drummond mantém um diálogo com os nossos tempos atuais. Esse diálogo só
é possível porque, mesmo um lirismo social e político, que o poeta pratica na
tentativa de superação do lirismo individual, conforme Antonio Candido observa
quando fala das inquietações do Drummond, esse cantar “se torna realmente geral
porque é, ao mesmo tempo, profundamente particular.”220

Visão 2010

Meus olhos continuam pequenos para ver


chuva de balas, Rio em chamas
números de um balanço no jornal
que cresce, aumenta, espanta.

Meus olhos continuam pequenos para ver


carros blindados, subida no morro,
tiros para todo o lado
família em desespero.

Meus olhos continuam pequenos para ver


guerra contra os traficantes, contra o povo,
é na Vila Cruzeiro, é no Complexo do Alemão
é na cidade maravilhosa onde se morre.

Meus olhos continuam pequenos para ver


Números de sábado: 45 mortos, 99 veículos incendiados,
192 prisões, 2 toneladas de drogas apreendidas.
Pequenos para ver fuzis, metralhadoras, bombas, granadas.

Meus olhos continuam pequenos para ver


o nelumbo de outrora, o brotar da rosa, o alívio do povo.
A flor que é feia, mas nasce no enlodo.
- Não veem, blindados, resistem assustados.

É interessante observar a questão levantada por Merquior em relação ao


fato de os estudos de sociologia da literatura terem tomado por base a narrativa e
não a lírica. Predominou, durante muito tempo, a convicção de que o romance
refletia a realidade enquanto a poesia era questão de “imaginação”. Esta tendência
nos estudos sobre lírica aconteceria “em virtude do fenômeno de interiorização
220
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 127.
que lhe está na raiz”. Sendo assim, percebe-se que a lírica de Drummond reflete a
realidade político-social, a cultura e aspectos permanentes da vida humana. De
acordo com Merquior, “para a análise literária, convém discernir, entre essas
várias dimensões do real, qual a mais favorecida pela mimese particular de cada
estilo e de cada obra.”221

O estudioso chama a atenção para a estrutura do poema, sem isolá-lo do


mundo, revelando como o poema se articula com a representação da existência:

A fidelidade ao concreto e, de certo modo, a própria mimese


começam na articulação da estrutura verbal do poema. Um
poema é uma mensagem única, ainda que veicule conceitos
abstratos (como na poesia sentenciosa) ou se componha de
expressões simples e diretas (como no caso da canção sem
“imagens”). A disposição das palavras no poema singulariza-as;
o contexto poético neutraliza a generalidade que elas
apresentam na linguagem casual. Daí o estabelecimento, entre o
significado geral dos versos e a interação particularíssima dos
elementos do significante, de uma tensão viva, que já nos anos
heróicos do formalismo russo se julgava capaz de aguçar a
percepção do real e captar em minúcia as suas linhas. 222

Para os formalistas russos, renovar a percepção é um desejo de novidade


pela fuga do racional, da vida mecânica, da automatização do pensamento. É o
que eles denominam de estranhamento. Se o mundo moderno faz com que as
coisas percam o sabor, cabe à arte devolvê-lo. Tal recriação linguística está ligada
à poesia pura, ao voltar para uma língua antes de babel, ao sentido original da
língua, que se perdeu na automatização da modernidade. Guimarães Rosa, em
diálogo com Günter Lorenz, diz que “Somente renovando a língua é que se pode
renovar o mundo”. Assim, a forma adquire, por sua vez, um objetivo ético de
resgatar o valor da vida.

Roberto Said, ao analisar a poesia de Drummond, observa o fluir constante


do passado no presente: “[...] como se nessa escrita passado e presente fossem
menos dois momentos sucessivos no tempo, que elementos coexistentes, como se
221
MERQUIOR, José Guilherme. Op. Cit., 1997, pp. 32-33.
222
Ibid, p. 23.
o passado não parasse de passar, como se não parasse de ser no presente.” 223
Dessa forma, podemos dizer que tal movimento marca a tensão viva da lírica
drummondiana, que permite ao leitor de “Visão 1944”, hoje, ler e sentir a angústia
e a insignificância do homem face às consequências da Guerra; a sua impotência
diante do massacre, do poder e das tecnologias que permitem a destruição total.
Por outro lado, também é possível reconhecer o sentimento de esperança que
brota, inesperadamente, como uma flor no meio da sujeira e do horror, tal como a
poesia e a sua função, que alivia o povo da crise mundial – talvez por vislumbrar o
final da Guerra – e existencial.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 41. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2008.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

ELIOT, T. S.. Musicalidade da poesia. Em: A essência da poesia. Tradução Maria


Luiza Nogueira. Rio de Janeiro. Artenova, 1972.

FLECHTER, John & BRADBURY, Malcolm. O romance de introversão. Em:


BRADBURY, Malcolm & MACFARLANE, James (org.). Modernismo: Guia
Geral. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. Em: Guimarães Rosa.


COUTINHO, Eduardo (Org.). Coleção Fortuna Crítica. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.

MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: Topbooks,


1997.

RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Tradução Fúlvia M. L.


Moretto & Guacira Marcondes Machado. São Paulo: EDUSP, 1997.

223
SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba: Editora
UFPR; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 41.
SAID, Roberto. A angústia da ação: poesia e política em Drummond. Curitiba:
Editora UFPR; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
AS COISAS SOFREDORAS MAR ABSOLUTO ADENTRO
Camila Canali DOVAL

Introdução

A arte de Cecília Meireles é indissociável de sua biografia; ao confrontá-


las, nos deparamos com um movimento circular que se autoalimenta e não cessa
de interagir. Poderíamos, da mesma forma, afirmar que a sua poesia é
indissociável da época e da sociedade em que viveu e produziu? É possível que
uma primeira leitura acuse Cecília de ser essencialmente metafísica,
descomprometida com as agruras concretas da humanidade. Mas para este breve
estudo, em Cecília Meireles, assim como em Guimarães Rosa para Antonio
Candido, há de tudo para quem souber ler.

A função da poesia é um tema polêmico entre a crítica e o público, e até


entre os próprios artistas. Cabe a pergunta de Armindo Trevisan para dar início à
discussão: “Qual, em última análise, a responsabilidade do poeta?” Assim como
cabe a sua resposta para nortear o desenvolvimento da nossa análise:

A de constituir, dentro da sociedade, uma objeção e uma


resposta. Uma objeção, em época de flagrantes (ou veladas)
injustiças, quando a luta pela vida rasteja tanto que não sobeja
ao homem espaço psíquico para sua liberdade. [...] Uma
resposta, igualmente: cabe ao poeta salvaguardar, ao nível das
sensibilidades, as utopias. E as promessas também. Imaginar
que, para tornar-se eficaz, deve a poesia renunciar à sua
essência é o mesmo que pretender matar a fome com
palavras.224

Sob essa perspectiva, buscaremos na obra Mar absoluto imagens que


demonstrem a poesia de Cecília Meireles como objeção à opressão infligida à
224
TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993.
vida pelo horror da guerra, bem como resposta ao esvaecimento das esperanças de
homens e mulheres em um dia ver o seu mundo refeito.

Para alcançar esse objetivo, traçaremos um breve percurso entre a vida e a


obra de Cecília, algumas noções acerca de uma possível função social da poesia e
uma sucinta conceitualização de imagem poética, rota que culminará na aventura
de mergulhar em Mar absoluto.

Gotas de Cecília

A poesia de Cecília é filiada, antes de a qualquer movimento estético, às


questões da vida e da morte – sobretudo da morte. Segundo Maria Lúcia Dal
Farra, em seu artigo “Cecília Meireles: imagens femininas”:

Nascida sob um signo a que nada faltaria para ser funesto,


Cecília reconhece, nesse infortúnio, o sinal ativo de forças que
lhe serão muito próprias, capazes de esclarecer o seu estar no
mundo e a sua especificidade existencial. Deveras. Três meses
antes do seu nascimento, seu pai, funcionário do Banco do
Brasil, falece, culminando, desse modo, o encadeamento das
mortes dos três irmãos mais velhos da menina. Todavia, a
corrente de catástrofes não se aplacava aí, pois que, três anos
após o seu nascimento, é a vez da mãe professora, que morre
deixando a guarda da filha à avó materna, Jacinta Garcia
Benevides, por quem Cecília será criada e a cuja memória
dedicará, depois, em 1945, o belíssimo e pungente ciclo das oito
Elegias acopladas a Mar absoluto.225

Um breve voo sobre a vida da poetisa permite que se sobressaia ao olhar a


construção de uma personalidade marcada pela tragédia, mas que não deixou de
exercer durante a vida a função de educadora, nem de produzir e coordenar
projetos em prol de uma sociedade justa, educada, sensível — um mundo
habitável. Conforme palavras da própria Cecília Meireles,

225
DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos Pagu, n. 27,
julho-dezembro de 2006, p. 335. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf>.
Acesso em: 9 dez. 2010.
Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos
contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram,
desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que
docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno
que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por
vezes, cheia de violência. Em toda vida, nunca me esforcei por
ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha
personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito,
em Literatura, Jornalismo, Educação e mesmo Folclore.
Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em
que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em
profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas
por uma contemplação poética afetuosa e participante. 226

A explicação de si mesma realizada pela poetisa esclarece, de alguma


forma, sua múltipla atuação: engajada na Cecília jornalista; revolucionária na
Cecília educadora; metafísica na Cecília poeta. Poetar sobre a existência humana
de aqui e de além não a impediu de encarar no front a realidade efêmera do ser
humano, seja assinando coluna em jornal, seja dirigindo um centro de educação
infantil:

A admirável mulher que nos transmite tais palavras sofreria


ainda outro e outro infortúnios – maneiras que a vida
certamente encontrou para ir depurando e aperfeiçoando a
têmpera do seu caráter. Durante a primeira metade da década de
trinta, Cecília atravessará atribulações de um período de
perseguição política mais ou menos velada que, em verdade,
tem início logo em 1929. Nessa altura, a defesa brilhante da sua
tese, intitulada “O espírito vitorioso”, escrita para a obtenção da
cátedra de Literatura na Escola Normal do Distrito Federal, não
será suficiente para impedir a arbitrariedade do júri, de modo
que a poetisa se vê preterida. Por ironia (e, certamente, por
desagravo do destino), é apreciando as mesmas questões
pedagógicas que o seu trabalho discutia, que o Diário de
Notícias do Rio de Janeiro a contrata como colunista durante os
próximos quatro anos, quando então, já em 1934, Cecília será
finalmente designada, pela Secretaria de Educação, para dirigir
o recém-fundado Centro Infantil no Pavilhão Mourisco do Rio
de Janeiro.227

226
Apud DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. Em: Obra poética. Rio
de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1972, p. 58.
227
DAL FARRA, Maria Lúcia. Op. cit., 2006, p. 336.
É pela mão de Cecília e do marido, o artista plástico Fernando Correia
Dias, com quem se casara em 1921, que surge a primeira biblioteca infantil do Rio
de Janeiro, posteriormente fechada por Getúlio Vargas, sob suspeita de
ilegitimidade moral e educacional dos livros constantes do acervo, por exemplo,
As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, considerado pernicioso para a
formação das crianças.228

Após esse duro episódio, Cecília sofre o baque do suicídio do marido, em


novembro de 1935, e tudo o que decorreu dessa perda, como a responsabilidade
sobre a educação e a manutenção das três filhas. Conforme Dal Farra:

É a partir de então que ela se sobrecarrega de atividades: torna-


se professora de Literatura Luso-Brasileira e da disciplina de
Técnica e Crítica Literária na Universidade do Distrito Federal,
ao mesmo tempo em que mantém uma coluna sobre folclore no
jornal A Manhã, outra, de crônicas semanais, no Correio
Paulistano, outra, de escritos regulares, n’A Nação, além de
organizar a revista Travel in Brazil.229

Diante de uma vida destinada à tragédia, Cecília parece construir um


bunker de trabalho ao seu redor, protegendo-se de ser absorvida pela neblina que a
perseguia desde antes do nascimento. Sob o abrigo das atividades racionais em
que se envolvera, deixa transbordar na poesia o ser formado a ferro e fogo, numa
produção contínua, sólida e cercada de polêmica:

Cecília estreara, em 1919, com o livro de poemas Espectros,


aliás, muito bem recebido por João Ribeiro, que preconizara,
para muito breve a ela, “a reputação de poetisa, que de justiça
lhe cabe” em virtude do seu “talento” e das suas “qualidades
poéticas”. Depois disso, Cecília publicara Nunca mais... e
Poema dos poemas, em 1923, e Baladas para El-Rei, em
1925, ambos ilustrados pelo marido Correia Dias. Em 1939,
portanto, depois de todos os percalços que narrei, dera à luz ao
extraordinário Viagem que, embora sendo o resultado da
depuração das intemperanças sinistras dessa década, parece
trazer, ainda, a marca do tempo em que foi composto, pois que

228
Ibid.
229
Ibid., p. 337.
vem para causar polêmica e malestares nos meios intelectuais
da Academia Brasileira de Letras.230

Seguindo a trilha de sua produção literária, em 1940, casada com Heitor


Grillo, Cecília vai dar aulas na Universidade de Austin (Texas). Segue-se a esse
período uma farta e incansável produção. Conforme Dal Farra, “ao mesmo tempo
em que publica obras primas como Vaga música (1942), Mar absoluto (1945) e
Retrato natural (1949), ela leva a cabo uma extensa pesquisa cujos frutos só dará
à luz, dez anos depois, em 1953.”231 em Romanceiro da Inconfidência. Depois de
Romanceiro, Cecília publica Canções (1956), Metal rosicler (1960) e o último,
Solombra (1963).

Da saga de viagens a qual Cecília se lança a partir de 1940, por países


como a Argentina, o Uruguai, a França, a Bélgica, a Holanda, a Índia, incluindo
Goa, a Itália, Porto Rico e Israel, que não eram para ela “simples terras a viajar,
mas culturas a serem decifradas, geografia e história a serem apreendidas,
experiências poéticas que redundaram em obras que, embora sendo versos de
itinerância, são, antes, pura poesia contemplativa.” 232 São elas: Doze Noturnos da
Holanda (1952), dos Poemas escritos na Índia (1953), dos Poemas italianos
(1953), de Pistóia, cemitério militar brasileiro (1955) e dos Poemas de viagens
(1940-1964).

Se por um lado a filiação existencial de Cecília Meireles era múltipla e


indefinível, servindo-se a diferentes papéis na sociedade, sua filiação estética não
era muito diferente. Conforme Damasceno: “Seu aparecimento coincide com a
eclosão do movimento modernista, do qual pretenderam aqueles escritores
representar uma tendência, malgrado a diversidade de pontos de vista no
enfocamento do fenômeno literário por parte dos grupos concorrentes.”233

230
Ibid., p. 339.
231
Ibid., p. 340.
232
Ibid., p. 340.
233
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p.13.
Participante do grupo que compunha a revista Festa, que, conforme
descrita na dissertação de mestrado intitulada “A revista Festa e a modernidade
universalista na arte”, de Joseane de Mello Rücker: (2005, p. 27):

Apresenta uma visão totalista e universalista da arte. Os seus


colaboradores não acreditavam em ruptura brusca como
proclamavam os primitivistas, mas em continuidade. Não
queriam construir a modernidade negando a tradição, mas
dialogando com ela, utilizando-se das nossas origens e da nossa
história cultural, sem aguilhoar-se ao pitoresco. A inovação não
deveria se edificar em oposição ao velho, mas como um
caminho para uma literatura que ultrapassasse o regional e
atingisse o universal, opondo-se à excessiva cor local. Festa
almejou por uma arte sem fronteiras, fruto da crença no
espiritualismo como elemento redentor [...].234

Ainda, para Tasso da Silveira, um dos fundadores da revista, a quem se


refere Rücker235: “[...] a hora era de renovação, mas não de uma renovação que
representasse apenas ruptura, mas que voltasse às raízes cadenciais do
universalismo, e cita, como exemplo, a poesia de Cecília Meireles.”236

No entanto, para Manuel Bandeira, citado na tese de doutorado “Mar de


poeta: A metáfora do oceano nas líricas de Cecília Meireles e Sophia Andresen”,
de Karin Lilian Backes:

se as quatro diretrizes do grupo de Festa – velocidade,


totalidade, brasilidade, universalidade - estão bem definidas nos
poemas do principal porta-voz do grupo, Tasso da Silveira, são
incapazes de dar conta das características da poesia de Cecília
Meireles, cuja voz a esse tempo já se distinguia entre os nossos
poetas pela maestria no manejo de sua arte, em que jamais a
mensagem foi prejudicada em favor de uma destreza técnica.
Em Cecília, a forma, longe de ser apenas um adorno, identifica-
se com a mensagem do poema.237

234
RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na arte.
Estudo de caso: Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2005, p. 27.
235
2005, p. 31.
236
RÜCKER, Joseane de Mello. Op. cit., 2005, p. 31.
237
BACKES, Karin Lilian. Mar de poeta: A metáfora do oceano nas líricas de Cecília
Meireles e Sophia Andresen. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Letras, UFRGS,
Porto Alegre, 2008.
Sobre a mesma discussão, Damasceno acrescenta:

Isso explica o fato de que, embora manejando metros


tradicionais, Cecília Meireles fosse apontada, quando da
publicação de seus primeiros livros, como exemplo das
possibilidades renovadoras que se atribuía à corrente
espiritualista. Mas o estudo acurado de Baladas para El-Rei e
Nunca Mais... e Poema dos poemas evidenciaria uma natureza
artística muito afinada, ainda, com o movimento simbolista, e
cujas peculiaridades, se pressagiadoras de um novo estilo
poético, eram-no em favor da artista, que estreava provida de
uma intuição rara em nossas letras, e não à conta do grupo a que
pertencia.238

Ainda, à sombra de Bandeira sobre o caráter singular da poesia de Cecília,


Backes reitera:

Por vezes inserida no movimento modernista (caso de Alfredo


Bosi), a lírica de Cecília Meireles tem marcas que a colocam,
acertadamente, ombreada a versos como os do Cemitério
marinho, obra que muito deve à poesia pós-simbolista, que, a
rigor, já pertence ao modernismo. Assim, se a inserção da
autora no Modernismo se deve a versos em que há maior
liberdade da forma, cabe perguntar se essa é uma conquista que
veio com ele, ou se é herança devida, como em Valéry, ao
influxo simbolista. Mas Bosi acerta quando diz que ela, como
Murilo Mendes, nada deve ao grupo de Festa, que caminhou
em direção contrária ao grupo de Oswald de Andrade. 239

Embora este texto até aqui se refira à poesia de Cecília Meireles em geral,
nosso objetivo se delimita em buscar imagens, na obra Mar absoluto, que reflitam
de alguma o período de guerra em que foi escrito. Não há dúvida de que uma obra
tão importante para a literatura brasileira quanto a de Cecília Meireles mereça
estudos verticais e frequentes, pois muito há para se descobrir e contar.
Consideramos este texto uma gota diante do mar que se derrama das mãos da
poetisa carioca em direção ao mundo.

Por onde navegam poeta e poesia

238
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 14.
239
BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 62.
Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio eu,
pode-se dizer que se estende a influência da poesia; e isso pode
ser melhor expresso pela afirmação de que, no decurso do
tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas
vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os
membros de uma comunidade, de todo o povo,
independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou
até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os nomes de seus
maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante
periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito
difícil de ser comprovada. [...] Assim, se rastrearmos a
influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às
pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em
toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional
estiver viva e sadia, pois numa sociedade saudável há uma
influência recíproca e uma interação continuas de uma parte
sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social
da poesia em seu mais amplo sentido: é isso o que,
proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a
sensibilidade de toda a nação.240

Muito se fala sobre a metafísica de Cecília Meireles e sua opção por


alienar-se num momento em que poetas engajavam-se. De fato, é tarefa árdua
encontrar produção acadêmica a respeito de um veio de cunho social na poesia de
Cecília, pois, ao que aparentemente se conclui, este perfil ficou limitado a sua
carreira jornalística e a sua atuação como professora.

Diante disso, cabe refletir um pouco sobre a poesia e a função do poeta e


de sua obra na sociedade. Para T. S. Eliot, por exemplo, o levantar da questão já é
polêmico: “Quando aludimos à ‘função’ de qualquer coisa, provavelmente
estamos pensando naquilo que essa coisa deve produzir em vez daquilo que ela
produz ou haja produzido.”241 Temos como dúvida, por exemplo, saber como se
define uma poesia socialmente engajada; qual o limite entre o engajamento e o
panfleto; o quão explicitamente uma poesia deve clamar pela justiça social para
ser considerada engajada — ou ao menos preocupada com a sociedade.

240
ELIOT, T. S. A função social da poesia. Em: De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense,
1991. Disponível em: <http://blogs.abril.com.br/singrandohorizontes/2009/06/t-s-eliot-funcao-
social-poesia.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.
241
Ibid.
Para Theodor W. Adorno, falar de lírica e sociedade num mesmo contexto
“trata-se de manusear o que há de mais delicado, de mais frágil, de pô-lo em
contato justamente com aquela roda-viva da qual preservar-se intacta faz parte do
ideal da lírica, pelo menos no sentido tradicional.”242

Para Trevisan,

Quando um poeta escreve um poema social localiza-se no


espaço e no tempo. Abdica da utopia, numa tentativa extrema –
e a priori fracassada – de influir na história. O poema torna-se,
realmente, uma arma para ele. O poeta quer produzir
determinado efeito, não só emocional como atual. Não se limita
a lavrar o coração, esperando que um dia a semente frutifique
em ações eficazes; o poeta, nesse caso, quer induzir o coração à
ação. Ao menos intencionalmente, o poema social reafirma-se
prático. [...] Poesia é linguagem extraordinária. Nesse caso,
poder-se-á falar poeticamente permanecendo-se dentro dos
limites do ordinário?243

Talvez seja esse um dos principais motivos pelo qual Cecília é acusada de
alienação. Sua linguagem jamais próxima do ordinário a distancia de uma visão
pragmática de ser social, e o que há de transcendente em suas palavras a condena
diante da iminência do mundo. Enquanto Trevisan afirma que “O poeta social
deverá ser, obrigatoriamente, humilde” 244, Cecília impõe-se a tarefa de “Acordar a
criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar.
Mostrar-lhes a vida em profundidade.”245 Dessa forma, ao associar sua experiência
de vida — e morte — a sua arte, Cecília corrobora com Adorno, quando o filósofo
afirma que “da mais irrestrita individuação a formação lírica tem esperança de
extrair o universal.”246

Trevisan afirma que o poema é “uma coisa alada que não pode
transformar-se num leão ou elefante. Se o poeta quiser ser eficaz, seja homem de
242
ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, p. 193.
243
TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993, p. 33. Os
grifos são do autor.
244
Ibid, p. 34.
245
DAMASCENO, Darcy, Op. cit., 1972, p. 58.
246
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
ação. A práxis da poesia é a da ação indireta. A práxis política, a da ação direta.
[...]”247. Cecília era uma mulher de ação. Na vida, não na poesia. Ou talvez, como
pretendemos demonstrar, não de forma constantemente explícita na poesia. A obra
de Cecília toma outros caminhos para se inscrever na sociedade: “Aparentemente
desligado da história, o poema introduz-se nela pela conspiração do silêncio e da
ruptura da linguagem.”248

Em Cecília Meireles, temos a poesia como a poesia é em essência,


desobrigada de funções sociais específicas, por natureza agregadora do sentimento
da humanidade. Realiza-se dessa forma o seu caráter universal, oriundo do um,
mas desligado dele ao alcançar o outro:

Dá-se como uma fusão de mitos coletivos e mitos pessoais na


vida de cada um. O poeta não se subtrai a essa lei. O que faz é
unificar, na medida do seu talento, o patrimônio mítico pessoal
com o patrimônio coletivo. É tanto mais poeta quanto mais
atinge essa coincidência. Os grandes poetas afloram o milagre:
dão a impressão de que seus mitos pessoais se converteram em
mitos de todo um povo.249

Ainda conforme Trevisan, “Inútil imaginar que a poesia se constrói com


bons ou maus sentimentos; ela se constrói, além dos bons e maus sentimentos,
mediante palavras, que são materiais tão resistentes como quaisquer outros.”250
Para Adorno, igualmente, “o conteúdo de um poema não é a mera expressão de
emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas
quando, exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estético,
adquirem participação no universal.”251

A maestria no uso da linguagem é o ponto alto da poesia de Cecília.


Através do manejo arguto das palavras é que ela conduz o leitor a um plano
superior da existência, num jogo de aproximação e distância de experiências, de
presença e ausência de sentidos. Mesmo quando parte de sensações aparentemente

247
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 34.
248
Ibid, p. 34.
249
Ibid, p. 10.
250
Ibid, p. 11.
251
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 193.
distantes do dia a dia, do sofrimento advindo de situações reais da vida, Cecília é
capaz de aproximar o interlocutor de um sentimento que é extraterreno, mas
intimamente humano. Quando, ao contrário, a poeta parte da situação mínima do
nosso cotidiano para demonstrar um sentido metafísico máximo da humanidade,
ela igualmente nos adentra com suas palavras, nos reúne nelas. Na ânsia de
demonstrar ao humano o que é de fato humano, mesmo que à primeira vista não
pareça, incluindo o que lhe é intrínseco e superior, Cecília está agindo
socialmente, em prol do que impôs como missão para a sua poesia. Adorno sobre
o esquema universal / individual, aponta:

Essa universalidade do conteúdo lírico, todavia, é


essencialmente social. Só entende aquilo que o poema diz quem
escuta em sua solidão a voz da humanidade; mais ainda, a
própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade
individualista e, em última análise, atomística, assim como,
inversamente, sua postulação de validade universal vive da
densidade de sua individuação.252

Portanto, almejando o universal, mas preso ao espaço circunscrito e ao


mesmo tempo inesgotável da linguagem humana, o poeta procura se movimentar.
No momento em que limita a sua palavra a um espaço e/ou a um tempo, suicida-
se artisticamente, pois cai no lado ordinário da linguagem:

A palavra, ou antes, a frase, que o poeta trabalha, constitui uma


realidade própria com leis físicas e metafísicas. O problema
reside aí: a palavra não é um material polivalente apenas a partir
do seu exterior; é um material polivalente a partir do seu
interior também. Só que esse interior não é propriedade privada.
Sendo o bem humano mais comum, todos o possuem, ninguém
o possui. O monólogo tende a transcender-se. É uma palavra em
busca de um interlocutor, isto é, uma palavra tresmalhada, ou
então, uma palavra que se suicida, a protestar contra suas
companheiras. Sempre uma palavra no meio de outras
palavras.253

252
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 194.
253
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 24. Os grifos são do autor.
O uso da palavra é, em si mesmo, uma atitude transgressora, pois o papel
do poeta é recriá-la; inaugurar seu sentido, surpreender as expectativas; romper
com o pré-estabelecido:

Essa exigência feita à lírica, todavia, a exigência da palavra


virginal, é, em si mesma social. Implica o protesto contra um
estado social que todo indivíduo experimenta como hostil,
alheio, frio, opressivo, e imprime negativamente esse estado na
formação lírica: quanto mais pesa esse estado, mais
inflexivelmente lhe resiste a formação, não se curvando a nada
de heterônomo e constituindo-se inteiramente segundo a lei que
lhe é própria. Seu distanciamento da mera existência torna-se a
medida do que há nesta de errado e ruim. Em protesto contra ela
o poema enuncia o sonho de um mundo em que seria
diferente.254

Na forma da utilização da palavra é que o poeta se define e define sua


interação com a sociedade. É neste âmbito que analisaremos a poesia de Cecília
Meireles: confiando ao seu lirismo uma atitude de alcance social. Para Trevisan,
“Por mais lírica que seja a poesia, ela traduz uma inquietação coletiva. Não existe
palavra impune. Nem silêncio descomprometido.”255

Silêncio. Eis um elemento crucial na poesia de Cecília Meireles. Ler


Cecília é ler também – e sobretudo – silêncios. Apegar-se ao que nela está
explícito é afogar no próprio mar de sua poesia o que está silenciado, mas presente
e atuante na significação: “Que faz o poeta se não adensar o silêncio? Um poema
é uma ou várias palavras rodeadas de silêncio por todos os lados. O silêncio não
subsiste por si mesmo. É como a palavra: um espaço dentro do qual a significação
circula.”256

Nos silêncios de Cecília pretendemos ler o que se esconde por trás da


metafísica resplandecente; onde vive e significa o “meramente” humano; de que
formas a poeta se faz social num discurso desobrigado do efêmero e voltado ao
eterno. Nas palavras de T. S. Eliot,

254
ADORNO, Theodor W. Op. cit., 1980, p. 195.
255
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 25.
256
Ibid, p. 24.
As pessoas suspeitam às vezes de qualquer poesia com um
propósito particular, isto é, a poesia em que o poeta defende
conceitos sociais, morais, políticos ou religiosos, assim como
outras pessoas julgam amiúde que determinada poesia seja
autêntica só porque exprime um ponto de vista que lhes apraz.
Eu gostaria de dizer que a questão relativa ao fato de o poeta
estar utilizando sua poesia para defender ou atacar determinada
atitude social não interessa. O mau verso pode obter fama
temporária quando o poeta reflete uma atitude popular do
momento; mas a verdadeira poesia sobrevive não apenas à
mudança da opinião pública como também a completa extinção
do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve
apaixonadamente envolvido.257

Em meio às ondas, avistando a margem

Depois de termos observado a vida e a carreira de Cecília Meireles e


discutido sobre a função da poesia na sociedade, faz-se fundamental estabelecer
um modo de análise para os poemas. O objetivo principal é invadir a poesia de
Cecília Meireles com olhar perscrutador, a fim de avistar o que há de terra firme
beirando tanto mar, o que há de dor terrena, da guerra, da perda, de quem fica e vê
partir.

Não se trata de olhar para a sua imensidão e inebriar-se e desesperar-se e


perder-se. E deixar-se levar. Não se trata de bancar o navegador intrépido ou o
Ulisses ardiloso. Trata-se, antes, de nadar em segurança, até aonde ainda se dá pé,
e de lá encarar a beira. As margens. O que há de humano, concreto, acessível.
Referências do cotidiano de quem não foi à guerra, nem lutou, nem morreu.
Apenas ficou, esteve e sentiu. De alguma forma, distante e distorcida ou apenas
nebulosa — por distante.

O que era a guerra para quem não estava na guerra? Onde acontecia? Que
forma tinha? Tinha cor? E cheiro? O que era o cheiro da guerra?
Do mundo, o que se tem depois da guerra? Quem ficou? Quem nem sabia
que poderia ter ido? Quem não pensou que guerra era coisa feita por alguém?
Há guerra para todos os lados, também para os de Cecília.

257
ELIOT, T. S. Op. cit., 2010.
Pinçaremos da sua obra Mar absoluto, escrita em 1945, certas imagens que
se referem ao momento sócio-histórico de final de guerra ao qual o mundo vivia.
Em primeiro lugar, entretanto, é preciso estabelecer alguns conceitos do que
entenderemos aqui como imagem poética.

Para Octavio Paz, “Convém advertir, pois, que designamos com a palavra
imagem toda forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que
unidas compõem o poema.”258 Dessa definição (muito) aparentemente simples, o
autor extrai que “Cada imagem – ou cada poema composto de imagens – contém
muitos significados contrários ou díspares, aos quais abarca ou reconcilia sem
suprimi-los.”259

É desses significados contrários ou díspares que passamos a ter noção da


riqueza da imagem. Um poema é feito de imagens e é ele mesmo uma imagem
capaz de se desdobrar em tantos sentidos quantos forem as leituras dele realizadas.
Uma imagem não diz apenas do significado dado pelo poeta; ela diz da dialogia
entre poeta e poema, poema e leitor, poeta e leitor, poema e mundo, humano e
mundo, e todas suas possibilidades. Assim,

O poema não diz o que é e sim o que poderia ser. Seu reino não
é o do ser, mas o do “impossível verossímil” de Aristóteles.
Apesar dessa sentença adversa os poetas se obstinam em
afirmar que a imagem revela o que é e não o que poderia ser. E
ainda mais: dizem que a imagem recria o ser. 260

O reino do poema, na verdade, como já dito, é a linguagem. Nela são


realizados os sentidos, não há fim possível além da própria linguagem; essa é sua
vantagem e seu desespero. Procurar o além dela é cair no abismo surdo das
referências, as quais não encontram objetivo plausível no mundo real. Tudo
acontece internamente ao poema e ressoa em seu exterior:

A condenação das palavras origina-se da incapacidade da


linguagem para transcender o mundo dos opostos relativos e
258
PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 37.
259
Ibid, p. 38.
260
Ibid, p. 38.
interdependentes, do isto em função do aquilo. “Quando se fala
de apreender a verdade, pensa-se nos livros. As palavras, é
claro, têm um valor. O valor das palavras reside no sentido que
ocultam. Ora, este sentido não é senão um esforço para alcançar
algo que não pode ser alcançado realmente pelas palavras. Com
efeito, o sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas não as
alcança jamais. Os objetos estão mais além das palavras. 261

Portanto, ao propormos o pinçar dessas imagens em Mar absoluto que se


referem ao momento vivido pela humanidade quando da escritura da obra,
estabelecemos previamente a consciência de que essas imagens atravessam a
realidade e não é possível estagná-las em estruturas pré-concebidas ou categorias
imaginadas. Isso seria forçar sentidos não intrínsecos aos poemas. Seria tentar
fazer a obra literária caber nos conceitos que aqui nos movem; tarefa de antemão
inútil. Conforme Octavio Paz, “A imagem diz o indizível: as plumas leves são
pedras pesadas. Há que retornar à linguagem para ver como a imagem pode dizer
o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de dizer.”262

É pela imagem que a poesia se liberta dos limites da linguagem e o


indizível se, então, demonstrável: “A linguagem explica, representa; o poema não
explica: apresenta. Não alude à realidade; pretende – e às vezes o consegue –
recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade.”263

Ainda para Paz dessa forma:

Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou explicado por
outra frase. Em consequência, o sentido ou o significado é um
querer dizer. Ou seja: um dizer que pode dizer-se de outra
maneira. O sentido da imagem, pelo contrário, é a própria
imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem
explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer
dizer. Sentido e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem
mais sentido que as suas imagens.264

Na sua tese de doutorado, Backes traz conceitos de outros autores sobre o


tema da imagem poética, entre eles o britânico Cecil Day Lewis:
261
Ibid, p. 43.
262
Ibid, p. 44.
263
Ibid, p. 50.
264
Ibid, p. 47.
Indagando o que se entende por imagem poética, o poeta inglês
[Cecil Day Lewis] comenta que um epíteto, uma metáfora, um
símile, podem criar uma imagem, mas que toda imagem poética
é, de algum modo, metafórica, e mesmo as emocionais e
intelectuais trazem algum traço do sensível que as move do tipo
mais comum, as visuais, conclamando também os outros
sentidos.265

Além de Day Lewis, a tese apresenta a definição de Bachelard:

Para Gaston Bachelard, antes de caber à imaginação o papel de


formar imagens, ao contrário, cabe a ela deformar o que é
fornecido pela percepção, pois sua função é libertar-nos das
imagens prontas, “[...] uma imagem estável e acabada corta asas
à imaginação.” O imaginante na linguagem só é
verdadeiramente sentido quando procuramos “[...] a propósito
de todas as palavras, os desejos de alteridade, os desejos de
duplo sentido, os desejos de metáfora”, acrescentando ser
natural na linguagem poética exceder os limites do pensamento,
pois essa é uma das formas da audácia humana, fazer o irreal
parecer verdadeiro. [...] E o mérito de ser reconhecida como
imagem literária vem somente através da originalidade,
transformando um sentido já desgastado em um novo
significado, acrescido de um onirismo novo, “significar outra
coisa e fazer sonhar diferentemente, tal é a dupla função da
imagem literária. A poesia não exprime algo que lhe permanece
estranho. [...] a imagem literária não vem revestir uma imagem
nua, não vem dar a palavra a uma imagem muda” ela é a
emergência da imaginação e representa um desejo humano. 266

Ainda, complementando o exposto até aqui, Backes apresenta a visão do


filósofo francês Mikel Dufrenne: “para Dufrenne, ‘penetrar no mundo de um
poeta não é descobrir certas imagens obsessivas, é aprofundar um sentido’, pois a
poesia não exprime uma emoção, mas através de seu assunto, exprime um
mundo.”267
A partir daqui, munidos de um pouco da essência do ser-Cecília, de
noções acerca de uma possível função social da poesia e de breve
conceitualização de imagem poética, podemos iniciar o mergulho exploratório em
Mar absoluto.

265
BACKES, Karin Lilian. Op. cit., 2008, p. 38.
266
Ibid, p. 44.
267
Ibid, p.46.
Até onde dá pé

Na última parte deste artigo, realizaremos, na obra Mar absoluto, uma


coleta de imagens que reflitam o sentimento da sociedade no período de guerra e
pós-guerra. Serão levadas em consideração questões referentes à distância em que
o Brasil se encontrava da guerra e à forma como os acontecimentos referentes ao
conflito se refletiam no cotidiano do brasileiro.

O que se busca não é a guerra em si, mas o clima, a partir do entendimento


de que era inerente à Cecília “um poder de abraçar, de envolver/as coisas
sofredoras,/e levá-las nos ombros como os anhos e as cruzes.” 268 Nas imagens que
buscamos, o eu lírico personifica aquele que ficou em terra brasileira, que vê a
guerra de longe, em quem ressoa o sofrimento do mundo de diferentes formas e
em diferentes níveis de intensidade.

Mar absoluto, além dos poemas diretamente alusivos à guerra, é repleto de


signos do pessimismo, da fragmentação, da desolação inerente à época em que foi
publicado. Mas é, também, repleto da marca da distância de quem observa ao
longe, que fareja, que adivinha, mas jamais viverá o que se sente no front.

Tentaremos pensar Cecília como a poeta que abraça a dor do mundo,


esquecendo um pouco a dor do ser — e de ser — tão própria de suas palavras. Um
eu lírico marcado pela experiência de estar no mundo num momento em que o
mundo se desfaz e se recomeça; mesclando uma existência metafísica com uma
responsabilidade física de existir.

Em Mar absoluto, a primeira imagem que pinçamos é a do próprio mar:


imenso e absoluto, cobrindo a terra, regido em todos os quatro cantos pela mesma
lua, porém assumindo diferentes formas em cada margem que toca. Distância e
proximidade numa mesma imagem; o mar é a alma do mundo, mas indiferente ao

268
MEIRELES, Cecília. Mar absoluto. Em: Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia José
Aguilar Editora, 1972.
mundo. Sentenciada, a poeta proclama: “Deus te proteja, Cecília, que tudo é mar
— e mais nada.”269

A maior parte dos títulos da obra sugere: escuro (“Noturno Madrugada no


campo”, “Minha sombra”, “Retrato obscuro”, “Madrugada na aldeia”, “Noturno”,
“Noite no rio”, “Noite”, “Constância do deserto”, “Nós e as sombras”,
“Sobriedade”, “Dia de chuva”); morte (“Os presentes dos mortos”, “Suave
morta”, “Os mortos”, “Natureza morta”, “Enterro de Isolina”); apego ao passado
(“Museu”, “Convite melancólico”, “Desejo de regresso”, “Desapego”, “Saudade”,
“Cantar saudoso”); desesperança em relação ao futuro (“Prazo de vida”,
“Caronte”, “Blasfêmia”); distância (“Distância”, “Vigilância”); torpor
(“Irrealidade”, “Mulher adormecida”, “Suspiro”, “Contemplação”).

Há, ainda títulos que se referem explicitamente à guerra: “Lamento da


noiva do soldado”; “Balada do soldado Batista”; “Lamento da mãe órfã”;
“Lamento do oficial por seu cavalo morto”; e “Guerra”. Entretanto, não serão
esses o foco da observação, visto que nos interessamos por uma alusão menos
direta. O que nos importa, nesta obra de Cecília, é o clima de perda do sentido ao
ver — de diferentes distâncias e perspectivas— o mundo se desfazer.

Mesmo nos poemas que se referem explicitamente à guerra, como


“Balada do soldado Batista”, a questão da distância insondável é marcante. Os
seguintes trechos denotam o sentimento da dor imprecisa, porque imaginada:
“Não vem certa? Onde está, que não manda uma letra?/Que demora tão
esquisita!/Perto do amor. Longe da vista.”; “Nas cadeiras de vime, os velhinhos
sentados/perguntam a quem chega: ‘Quanto dista/a África do Brasil? Que
distância infinita!’ e “Enquanto não souberem, sonharão que ainda exista/em
algum lugar seu filho, o soldado Batista.”

Em “Lamento da mãe órfã” há o retrato do desespero de uma mãe distante,


que não sabe o que o filho passou, viu ou viveu, cuja distância não a permite nem
imaginar como ele está. Ela apenas o quer de volta, da forma em que esteja,

269
MEIRELES, Cecília. Op. cit., 1972.
conforme o trecho: “Vem para perto, nem que já estejas desmanchando/em
fermentos do chão, desfigurado e decomposto!/Não te envergonhes do teu cheiro
subterrâneo,/dos vermes que não podes sacudir de tuas pálpebras,/da umidade que
penteia teus finos, frios cabelos/cariciosos./Vem como estás, metade gente,
metade universo,/com dedos e raízes, ossos e vento, e as tuas veias/a caminho do
oceano, inchadas, sentindo a inquietação das marés.”

Embora Cecília não seja considerada uma poetisa engajada, é sua a poesia
que tão bem ilustra o ser movido pela guerra; irrefreável em direção à violência;
desprovido de sentido e esperança como só um humano pode ser: “Nós
merecemos a morte,/porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas
mãos,/pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,/por nosso sangue
estranho e instável, pelas ordens/que trazemos por dentro, e ficam sem
explicação.” Neste trecho de “Lamento do oficial por seu cavalo morto” temos a
mesma imagem de distância e proximidade, em que Cecília usa a primeira pessoa
do plural para se unir ao homem que guerreia, que ‘mata seus irmãos’.

“Lamento da noiva do soldado” repete o tema da distância, reforçando o


sentimento daquele que ficou: “Teus olhos, que me viram, como podem ser
fechados?/Aonde foste, que não me chamas, não me pedes,/como serei agora, sem
ti?/Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu/coração… Longe e solitário…
Neve, neve…/E eu fervo em lágrimas, aqui.”

Em “Guerra”, por fim, a alusão ao combate é direta, porém, nos ateremos à


questão da distância. O eu lírico demonstra profunda preocupação com o que é
individual em meio à massa disforme: “Oh! os dedos com alianças perdidos na
lama.../Os olhos que já não pestanejam como a poeira.../As bocas de recados
perdidos.../O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes...” Essa é a
marca da distância. Temos a impressão de que o eu lírico observa a guerra através
de fotografias, e busca incansável nelas o que é verdadeiro e humano, o que a
imagem estática não é capaz de apreender e que, portanto, não podemos sentir. O
trecho “[...] e nós e vós, imunes,/chorando, apenas, sobre fotografias,/— tudo é
um natural armar e desarmar de andaimes/entre tempos vagarosos,/sonhando
arquiteturas" mostra como a guerra se naturaliza no cotidiano de quem a
acompanha de longe, através de uma representação da realidade.

Após a observação de imagens da distância nos cinco poemas


explicitamente referentes à guerra, partiremos para as associações menos
explícitas, porém igualmente representativas do clima de guerra e pós-guerra,
encontradas em Mar absoluto.

Em Contemplação, temos a atitude contemplativa — e distante — perante


a vida. E qual outra seria? Como viver uma guerra que não é sua? “Não acuso.
Nem perdoo./Nada sei. De nada./Contemplo.”; “Parece que às vezes me
falam./Mas também não tenho certeza./Quem me deseja ouvir, nestas
paragens/onde somos todos estrangeiros?”; “Tão pouco somos, — e tanto
causamos,/com tão longos ecos!” Mesma atitude encontramos em Sugestão, agora
na imagem da lua, que se repete no livro como símbolo da distância; alta e isenta;
ora quente, ora fria; a mesma e diferente; pairando sobre o mundo ao mesmo
tempo em guerra e ao mesmo tempo cotidiano, pois a natureza não se move em
função do que é humano: “Lua que envolve igualmente/os noivos abraçados/e os
soldados já frios./Também como este ar da noite:/sussurrante de silêncios,/cheio
de nascimentos e pétalas.” O eu lírico retoma a mesma lua em “Distância”: “- Para
esse mundo vão meus pensamentos,/tão estrangeiros, tão desapegados,/como se
esta varanda fosse a Lua.”

O poema “Prazo de vida” traz uma rima soturna (frio – sombrio – vazio)
que personifica o clima apocalíptico e culmina com a visão máxima do fim do
mundo pela guerra: “O universo ficou vazio,/porque a mão do amor foi partida/no
vazio.” Da mesma forma encontramos, em “Vigilância”, imagens profundamente
sombrias proferidas pelo eu lírico que vigia e se aflige, que vê na beleza apenas
outra face do sofrimento: “presságio triste”; “errantes barcos”; “almas de angústia
demorada e cega”; “Ilha em sobressalto”; “eternamente aflita”; “tempestade
certa”. Em “Evidência”, declara-se o fim da pureza para um mundo
definitivamente corrompido: “Puros e tristes ficamos,/puros e tristes e sós./O
coração é vaga nuvem./E vaga areia, a voz.”

A visão do passado que morre sem deixar esperanças para o futuro


também é expressa em “Museu”, local onde tudo o que pensamos que somos
acaba indo parar. Aqui, o eu lírico se questiona retoricamente, pois tudo já se
encontra morto e frio: Espadas frias, nítidas espadas,/duras viseiras já sem
perspectiva,/cetros sem mãos, coroa já não viva/de cabeças em sangue
naufragadas;/anéis de demorada narrativa,/leques sem falas, trompas sem
caçadas,/pêndulos de horas não mais escutadas,/espelhos de memória
fugitiva;/ouro e prata, turquesa e granadas,/que é da presença passageira e
esquiva/das heranças dos poetas, malogradas:/a estrela, o passarinho, a sensitiva, a
água que nunca volta, as bem amadas,/a saudade de Deus, vaga e inativa...?”

A descrença no futuro é explícita no poema “Futuro”: “Perguntareis: ‘Mas


era aquilo, o teu silêncio?’/Perguntareis: ‘Mas era assim, teu coração?’/Ah,
seremos apenas imagens inúteis, deitadas no barro,/do mesmo modo solitárias,
silenciosas,/com a cabeça encostada à sua própria recordação.” e culmina em
“Convite melancólico”: “Já nem queremos nada,/tanto estamos desgostosos:/nem
água nem ouro nem beijo./Para nunca mais – o horizonte e a sua flor!”; e “Desejo
de regresso” relata a ânsia de voltar a um mundo que se quebrou: “Deixai-me
nascer de novo,/nunca mais em terra estranha,/mas no meio do meu povo,/com
meu céu, minha montanha,/meu mar e minha família.”

Juntamente à descrença no futuro, destaca-se a falta de sentido da vida, sob


a visão do mesmo eu lírico desolado. O destino é certo e vão: a morte. Fim. É o
que nos relatam os trechos de “Cavalgada”: “Irás ao céu num selim de ouro,/sem
saberes quem pôs teu pé no estribo./Rodarás entre a poeira e Sírius,/com esses
ginetes sem voz e sem sono,/até vir o mais poderoso/que esmague a rosa guardada
em teu peito./Depois, continuarão saltando, mas tão longe/que não perturbarão
tuas pálpebras soterradas.”
Também cabe ressaltar a frustração do eu lírico com o seu humano. Ao
mesmo tempo em que não se abstém da culpa da humanidade, o eu lírico lamenta
a existência de uma raça sem solução, responsável por sua própria miséria, como
em “Pássaro azul”: “Mas não voltes aqui, pois é pesado e triste/o humano clima,
para o teu destino aéreo./Eu mal te posso amar, com o sonho do meu
corpo,/condenado a este chão e sem gosto terrestre.” e em “O tempo no jardim”:
“Se algum de nós avistasse o que seríamos com o tempo,/todos nós choraríamos,
de mútua pena e susto imenso.” Em “Os mortos”, o eu lírico proclama um ser
humano cuja maior desgraça é sua própria existência como tal, ou seja, a
impossibilidade de redenção: “Creio que o morto chorou depois da morte.
/Chorou por não ter sido outro./(É só por isso que se chora.)” Já em “Os homens
gloriosos” transborda o desejo do eu lírico de não ser humano, pois em relação à
espécie só resta desolação: “Senhor da Vida, leva-me para longe!/Quero
retroceder aos aléns de mim mesma!/Converter-me em animal tranquilo,/em
planta incomunicável,/em pedra sem respiração./Quebra-me no giro dos ventos e
das águas!/Reduze-me ao pó que fui!/Reduze a pó minha memória!/Reduze a pó/a
memória dos homens, escutada e vivida...”

“Compromisso” revela a capacidade do eu lírico de absorver a dor alheia,


de carregar nos ombros o dever de sentir pelos outros, por não se permitir estar no
mundo sem padecer as dores do mundo, mesmo as distantes: “Vive! — clamam os
que se foram,/ou cedo ou irrealizados./Vive por nós! — murmuram
suplicantes./Vivo por homens e mulheres/de outras idades, de outros lugares, com
outras falas./Por infantes e velhinhos trêmulos./Gente do mar e da terra,/suada,
salgada, hirsuta./Gente de névoa, apenas murmurada.”

Para essa “gente de névoa, apenas murmurada” o eu lírico endereça Carta,


objeto por si mesmo emblema da distância, busca do olhar o do outro, cujo
conteúdo lamenta, mais uma vez, uma humanidade que consome a si mesma e que
um dia necessitará de perdão pelo próprio desmazelo: “Eu, sim. – Mas a estrela da
tarde, que subia e descia o céu, cansada e esquecida?/Mas os pobres, batendo às
portas, sem resultado, pregando à noite e o dia com seu punho seco?/Mas as
crianças, que gritavam de coração alarmado: ‘por que ninguém nos
responde?’/Mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos estendidas
à toa?/Ah! – Eu, sim – porque já chorei tudo, e despi meu corpo usado e triste,/E
as minhas lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou./Mas os mortos,
que dentro do chão sonhavam com pombos leves e flores claras,/Mas os que no
meio do mar pensavam na mensagem que a praia desenrolaria rapidamente até
seus dedos.../Mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília – e eu não sei
mais se acordarão.../E os que morreram de tanta espera... – e que não sei se foram
salvos./Eu sim. Mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto da
vida,/Não sei se te olharão como eu,/renascida de mim, e desprovida de
vinganças,/no dia em que precisares de perdão.”

Em contrapartida ao ser humano condenado, “Mar absoluto” revela um


mundo vivido à parte do clima apocalíptico da guerra, o mundo de quem segue
vivendo sua vida, para quem a guerra não passa de notícias de jornal: “Caem as
folhas secas sobre os longos relatos de guerra:/e o sol empalidece suas letras
infinitas.” No mesmo poema, o eu lírico faz menção àqueles que mantém o mundo
funcionando enquanto outros guerreiam: “Aqui, toda a vizinhança proclama
convicta:/’Os jornais servem para fazer embrulhos’./E é uma das raras vezes em
que todos estão de acordo.”

Paradoxo é viver sob o clima fragmentar de um mundo desfeito pela


guerra enquanto longe da devastação física a vida segue o ritmo inexorável da
vida: o sobreviver. Em “Mulher ao espelho”, temos um eu lírico que diferencia —
mas não hierarquiza — níveis diferentes de consciência: “Falará, coberta de
luzes,/do alto penteado ao rubro artelho./Porque uns expiram sobre cruzes,/outros,
buscando-se no espelho.”; em “Transeunte”, o paradoxo é claro: “Tenho vergonha
dos meus sonhos de beleza”; em Inscrição, o questionamento revela uma
desconstrução de valores em tempos nos quais o correto era sofrer: “Por que
havemos de ser unicamente humanos,/limitados em chorar?”
Por fim, trazemos o que consideramos um dos mais significativos poemas
de “Mar absoluto”, no sentido de descrever o sentimento do eu lírico em relação
ao mundo vigente. No plano real, talvez, uma resposta — e um desafio — de
Cecília Meireles aos que colocam em xeque seu comprometimento com a
sociedade. Em “Interpretação”, Cecília se expõe, se defende, se explica, se duvida
e duvida da necessidade de se retratar na poesia uma realidade que pode ser ela
mesma ilusão: “As palavras aí estão, uma por uma:/porém minha alma sabe
mais./De muito inverossímil se perfuma/o lábio fatigado de ais./Falai! que estou
distante e distraída,/com meu tédio sem voz./Falai! meu mundo é feito de outra
vida./Talvez nós não sejamos nós.” Hipótese de irrealidade corroborada em “Nós
e as sombras”: “Éramos duplos, éramos tríplices, éramos trêmulos,/à luz dos bicos
de acetilene,/pelas paredes seculares, densas, frias,/e vagamente
monumentais./Mais do que as sombras éramos irreais.”

Conclusão

Com o objetivo de recortar imagens sobre o clima de desolação,


fragmentação e desesperança que tomou conta do mundo durante o período da
Segunda Guerra Mundial e também do pós-guerra, em que parte da humanidade
havia sido exterminada ou devastada, realizamos esta análise. É claro que, diante
de águas tão profundas quanto às de Cecília Meireles, pudemos explorar apenas
até onde “dávamos pé”.

Não encontramos todas as imagens nem tampouco chegamos ao fundo das


que encontramos, mas, neste breve espaço, procuramos ilustrar o que pensamos
sobre o que seria a vida de quem viveu a guerra à distância e a reproduziu em
palavras. Nada no mundo escapou à onda avassaladora da guerra, e a poesia de
Cecília não seria uma exceção.
Diz Trevisan: “O poeta testemunha a história, impõe mesmo uma
mensagem política, mas sem autoflagelar-se. Seu depoimento confunde-se com
sua expressão. E com sua autenticidade. A única coisa que não pode corromper-se
é o sentimento.”270 No Mar absoluto de Cecília Meireles, o sentimento não se
corrompe, muito antes o contrário, ele se alimenta da dor do mundo da poetisa e
emerge em direção ao transcendente da arte, que não tem guerra, época ou
estrutura — é um sempre porvir ao leitor.

Referências

ADORNO, Theodor W. Lírica e sociedade. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril


Cultural, 1980.

BACKES, Karin Lilian. Mar de poeta: A metáfora do oceano nas líricas de


Cecília Meireles e Sophia Andresen. Tese de Doutorado, Programa de Pós-
Graduação em Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2008.

DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Cadernos


Pagu, n. 27, julho-dezembro de 2006, pp. 333-371. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf>.
Acesso em: 9 dez. 2010.

DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. Em: Obra poética.


Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1972.

ELIOT, T. S. A função social da poesia. Em: De poesia e poetas. São Paulo:


Brasiliense, 1991. Disponível em:
<http://blogs.abril.com.br/singrandohorizontes/2009/06/t-s-eliot-funcao-social-
poesia.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.

MEIRELES, Cecília. Mar absoluto. Em: Obra poética. Rio de Janeiro:


Companhia José Aguilar Editora, 1972.

PAZ, Octavio. A imagem. Em: Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2009.

270
TREVISAN, Armindo. Op. cit., 1993, p. 12.
RÜCKER, Joseane de Mello. A revista Festa e a modernidade universalista na
arte. Estudo de caso: Adelino Magalhães. Dissertação de Mestrado, Programa de
Pós-Graduação em Letras, UFRGS, Porto Alegre, 2005. Disponível em:

TREVISAN, Armindo. Reflexões sobre a poesia. Porto Alegre: InPress, 1993.


A LÍRICA MODERNA E A ANTILÍRICA DE JOÃO CABRAL DE MELO
NETO

Gustavo Suertegaray Saldivar

“... machine à émouvoir...”


Le Corbusier, epígrafe de O engenheiro

O advento da Modernidade enquanto evento de natureza cultural carreou


consigo uma imensurável coleção de mudanças nos modos pelos quais a
humanidade compreendia os fenômenos ligados à interpretação da existência.

Como decorrência dessa revolução do pensamento, a literatura, veículo


dos mais sofisticados para a expressão dos anseios e das angústias inerentes ao
ideário humano, sofreu mudanças de várias ordens, abandonando valores
secularmente vigentes e adquirindo nuances inovadoras, transformadoras.

Dentre as características formais e estéticas derivadas dessa abrangente


mudança de paradigmas, é possível de se identificar, por exemplo, a absorção e o
emprego, por parte dos poetas do século XIX, dos conceitos ligados ao termo
lirismo como modo de identificar determinadas virtudes constantes da produção
poético-cultural do tempo em questão.

Entretanto, da mesma forma que encetou a criação de novos atributos no


âmbito da poética, o Modernismo também promoveu, em longo prazo, a íntima
transformação das virtudes reunidas sob a égide do lirismo. De forma a tornar
explícito o quadro de alterações pelo qual o termo passou desde sua fixação até os
dias que correm, o presente estudo se serviu de conjuntos de interpretações
desenvolvidas por poetas e por teóricos da matéria literária acerca da evolução do
conceito, desde os primórdios, na Grécia Antiga, até a atualidade, bem como
buscou fixar um caso emblemático do resultado dessas modificações, através de
uma visada sobre algumas das produções do poeta pernambucano João Cabral de
Melo Neto, possivelmente o maior representante contemporâneo e nacional do
que a teoria literária tratou como a antítese do julgamento original, o antilirismo.

Inicialmente, faz-se necessária a compreensão das motivações que levaram


ao aparecimento do termo “lirismo” no terreno literário.

Historicamente, a designação “lírica” surgiu na Grécia Antiga,


originariamente com a função de identificar uma forma de poesia cujo
acompanhamento era executado por instrumentos tais como a flauta e a lira. A
poesia lírica decorre, pois, da associação entre certa espécie de declamação
poética e o toque de liras.

Para melhor compreender o evento da formação do estilo lírico na poesia,


convém a observação do pensamento do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich
Hegel. A partir de suas investigações em áreas ligadas à história da cultura
humana através dos tempos, o estudioso esclareceu o modo pelo qual a poesia
grega sofreu as alterações que acarretaram no surgimento do novo formato.

Sendo, pois, a poesia épica a grande representante da intelectualidade e da


filosofia gregas, bem como sendo este o gênero que serviu como modelo absoluto
de veiculação da totalidade da história e da cultura desse país, dado o simples fato
de que as narrativas dos mais relevantes feitos haviam sido criadas dentro do
conjunto de normativas da épica, foi a partir de variações desse consagrado e
celebrado molde que a lírica nasceu.

O modo pelo qual essas transformações sobrevieram está ligado a um


imperativo de mudança na forma de representação suscitada pela lógica poética
grega. A esse respeito, Hegel sustenta que

[...] se a poesia épica traz diante de nossa representação


intuitiva o seu objeto – ou em sua universalidade substancial ou
em espécie adequada à escultura ou pictórica –, como aparição
viva, então desaparece, pelo menos na altura desta arte, o
sujeito que representa e sente em sua atividade poética diante da
objetividade daquilo que ele coloca para fora a partir de si 271.

271
HEGEL, 1964, p. 155.
Como ficou dito antes, a poesia épica era a responsável pela divulgação
dos grandes feitos da história grega. Entretanto, observando a lógica do
pensamento hegeliano presente no excerto acima, não havia lugar nesse perfil
poético para a demonstração da individualidade do produtor cultural. É em
decorrência da necessidade de inserção da subjetividade do poeta que surge o
estilo lírico.

Na inauguração dessa nova maneira de pensar a construção poética, outro


fator importante de caracterização da nova arte recaiu sobre uma escolha bastante
singela, do ponto de vista da funcionalidade do formato nascente: houve um
movimento de conjunção, de familiarização da tipologia poética com a
musicalidade presente nas composições dos instrumentos que lhes serviam de
acompanhamento. Assim, por conta dessa fusão simples, estabeleceu-se o novo
paradigma de produção cultural.

Naturalmente, a nova disposição poética estabeleceu uma relação


diferenciada entre a musicalidade resultante do emprego da lira e a constituição
interna dos seus versos. A respeito dessa peculiaridade da lírica, o teórico alemão
Emil Staiger observa que “o valor dos versos líricos é justamente essa unidade
entre a significação das palavras e sua música.”272

Filosoficamente falando, no entanto, foi novamente Hegel que sublinhou


outra importante distinção introduzida pelo lirismo: a universalidade presente
nessa poesia de cunho mais pessoal. Dentro deste prisma, o erudito considera que,
“por meio deste princípio, que reside no lírico, da particularização, da
particularidade e da singularidade, o conteúdo pode ser da maior multiplicidade e
atingir todas as direções da vida [...]”273

No entanto, o aspecto mais importante da linguagem lírica, desde sua


origem, é, sem sombra de dúvida, aquele que jaz na expressão do sujeito, da
subjetividade, da interioridade do poeta.
272
STAIGER, 1975, p. 7.
273
HEGEL, 1964, p. 158.
Porém, os séculos se escoaram e a cultura grega observou a derrocada do
país frente aos macedônios – com a manutenção, todavia, de partes desse sistema
cultural na porção mais Oriental do novo reino –, a ascensão e a queda de Roma, o
nascimento e a proliferação do Cristianismo, a chegada ao modo feudal e à
filosofia teocrática, quando aconteceu o retorno da cultura grega ao continente
europeu, pelo avanço dos mouros na península Ibérica, a chegada ao modo de
produção capitalista e o renascimento urbano e cultural da Europa, entre os
séculos XVI e XVII.

Finalmente, com o retorno aos preceitos da Antiguidade Clássica, ao longo


dos séculos XVIII e XIX, houve movimentos de revalorização das formas
poéticas gregas, instante no qual se tornou possível a revitalização do estilo lírico,
e a cultura europeia viu nascer um movimento de forte contraposição ao modelo
econômico do capitalismo e às filosofias marcadamente utilitaristas e racionalistas
do período do Iluminismo: emerge o Romantismo.

A lógica romântica, de cunho fortemente humanista, asseverava, em seu


bojo, o valor dos nacionalismos, das utopias, do subjetivismo, do eu-do-autor e, é
claro, do lirismo. A abrangência e a influência do romantismo foram tão fortes
que, de certa forma, acabaram por estabelecer uma nova preceptística para a vida
na Europa, além de se estender por outros continentes, no Ocidente, entre a
metade final do século XIX e o primeiro quartel do século XX.

Falando mais especificamente do terreno da literatura, se, de um lado, o


movimento romântico instituiu novas séries de modelos e mudou profundamente a
relação entre autor e obra, bem como acarretou mudanças também nas relações
comerciais decorrentes dessa união, como o estabelecimento dos direitos autorais,
por exemplo; de outro, ao retomar certas bases filosóficas e ao explorar novos
jogos temáticos e conceituais, como os do campo do onírico, o próprio
romantismo terminou por produzir exacerbações e sensíveis derivações dos
ideários originais, fato que levou à revisão dos valores da corrente literária e à
eventual dissipação e reposicionamento de seus franqueados dentro de outras
tendências.

Todavia, como uma das principais consequências dos acontecimentos que


levaram à supervalorização da instância do indivíduo, a chegada do século XX
carreou consigo, no âmbito da literatura, a dissensão das fronteiras que separavam
e possibilitavam a caracterização das várias convergências literárias de época,
instituindo o que hoje se compreende como movimentos literários unitários,
individuais, pessoais.

Do mesmo modo, outra mudança profunda na lógica composicional


artística teve lugar com a aquisição, por parte dos maiores nomes da poética do
momento, de um maior grau de consciência a respeito do tempo histórico em
decurso. Desse processo sobreveio a revisão da posição do poeta no tocante ao
uso da linguagem, das formas, dos modelos, enfim, da totalidade das condições de
produção, redundando no surgimento de uma poética notadamente mais reflexiva,
mais crítica e mais objetivada.

A partir, pois, dessa série de câmbios de pensamento na Modernidade, e da


revisão de conceitos em várias correntes filosóficas, nas diversas instâncias do
conhecimento, a poética literária também conhece e reconhece como seu ponto de
mudança paradigmática a obra do francês Charles Baudelaire.

O escritor de Paraísos artificiais modificou sobremaneira o terreno da


poética, introduzindo elementos, como a visão da decadência em oposição à
vivência ordinária, a abstração dos desejos de ascensão, de escape e de evasão da
realidade – motivos tão caros à construtiva romântica –, entre outros. Nessa linha,
o poeta também abriu espaço em suas obras para figuras marginais da sociedade
francesa de época: os rebaixados, as prostitutas, os viciados, etc.

Ademais, Baudelaire conseguiu compreender, conforme apontou o escritor


norte-americano T. S. Eliot, não somente o próprio sofrimento como também o do
Homem de seu tempo, sufocado pela premência civilizatória das metrópoles
modernas. Tal entendimento do real levou o poeta ao ápice de se submeter a toda
sorte de experiências como justificativa para as descrições minuciosas das
sensações, dos sentimentos, fato que foi conceituado por Eliot como o correlato
relativo, isto é, a construção da verossimilhança entre as vivências do autor e sua
escrita.

Um indicativo desta condição baudelaireana pode ser observado no trecho


do texto Correspondências, cuja transcrição segue:

... ...

II est des parfums frais comme des chairs Aromas frescos como a carne dos infantes,
d'enfants, Doces como o oboé, verdes como a campina,
Doux comme les hautbois, verts comme les E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
prairies,
— Et d'autres, corrompus, riches et triomphants, Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do
Ayant l'expansion des choses infinies, Oriente,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

Também em termos formais o bardo instaura uma série de rupturas para


com a poética romântica, questionando as questões ligadas à inspiração e à
passionalidade, bem como à idealização, marcas representativas do movimento; e
para com os parnasianos, por conta da superficialidade psicológica e fixidez
construtiva de seus escritos.

Contrariando ambas as tendências literárias – muito embora se valendo de


virtudes presentes nas duas escolas –, Baudelaire buscou valorizar o trabalho na
poesia, a prática laboriosa e tenaz sobre o texto, a ourivesaria na inserção da
palavra no poema.

Ao revisar os valores norteadores da poesia de sua época, o vate francês


lançou as bases para a grande transformação pela qual a poética lírica ainda
haveria de atravessar.
No terreno histórico, a humanidade experienciou eventos de natureza
econômica (a Segunda Revolução Industrial e a publicação do Manifesto
Comunista, por Marx e Engels, por exemplo) e científica (e. g., as teorias
evolutivas de Darwin e a invenção da psicanálise, por Freud), o que trouxe
reflexos diretos sobre o ambiente cultural da passagem do século XIX. Já ao
princípio dos anos 1900, o Pragmatismo e a Fenomenologia concorreram, no
âmbito da filosofia, para um estreitamento ainda maior nos laços entre o Homem e
a existência prática.

Esses foram apenas alguns dos fenômenos ligados ao estabelecimento dos


pressupostos da estética da Modernidade.

Na esfera da literatura, sendo esta uma das formas mais evoluídas de


manifestação do engenho humano, os efeitos das alterações empreendidas pela
Modernidade histórica se fizeram sentir por meio de questionamentos dos
preceitos das escolas literárias do Romantismo – e de seu principal
desdobramento, o Simbolismo – e do Realismo, bem como de sua extensão, o
Real-Naturalismo. Como resposta à mudança dos tempos e do pensamento
humanos, vários pequenos movimentos de transgressão estética eclodiram na
Europa, nos primeiros decênios do séc. XX: as chamadas Vanguardas artísticas.
Coube a estas novas tendências promover a inscrição, mais ou menos atabalhoada,
das concepções artísticas mais tradicionais dentro dos novos paradigmas de
produção cultural.

A poesia lírica, funcionando sob a égide do tempo histórico e sendo


correlata ao pensamento de época, foi, igualmente, revisada e reconfigurada pelas
mudanças estéticas levadas a cabo desde a insurgência de Baudelaire e de su’As
flores do mal. Como decorrência majoritária dessa verificação, o lirismo sofreu
intervenções de ordem linguística, o que fica evidente no dizer do debatedor Luiz
Costa Lima:
[...] entre linguagem e sociedade corre um vínculo estreito [...]
que faz com que a sombra desta se projete no semblante
dessemelhante daquela. É dentro dessa concepção dinâmica da
linguagem que se põem os termos da desestruturação e da
estruturação.274

O crítico insere aqui dois conceitos basilares para a compreensão das


mudanças ocorridas na literatura com a chegada do século XX. O termo
desestruturação, colocado anteriormente ao seu antípoda de forma proposital, diz
respeito aos inúmeros fenômenos ocorridos ao longo da linha temporal da poesia
lírica.

A questão da estruturação – reestruturação, neste caso – se refere aos


resultados práticos, no campo da produção literária, dos processos de
desconstrução que desembocaram no afloramento deste novo paradigma de
poesia, corretamente reconhecido por Costa Lima, no contexto da literatura
brasileira, sob a alcunha de antilírica.

O conceito de antilírica deve ser entendido, aqui, em acordo com o


trabalho elaborado pelo estudioso francês Michel Collot, que descreveu as
transformações pelas quais a lírica tradicional passou. Como resultado de seus
estudos, o teórico procurou observar e sublinhar a característica-chave envolvida
nesse fenômeno: a questão da despersonalização do sujeito-lírico. Na esteira dessa
alteração, Collot identificou outras mudanças que sobrevieram, como a
impossibilidade da expressão dos sentimentos íntimos do poeta, que é substituída
pela introjeção e pela interação com os acontecimentos da esfera do mundo
exterior, que passam a tocar a fibra sensível do espírito criador.

Outro ponto salientado pelo crítico francês assinala o fato de que o eu


lírico moderno é, em certa medida, desfamiliarizado da musicalidade que serviu
originalmente como matéria de distinção de gênero. Além disso, também se fazia
premente, como reafirmou Luiz Costa Lima, a reconfiguração da obsoleta
linguagem romântica, cujo novo papel seria o de promover a mediação entre o
subjetivo do poeta e o objetivo das coisas do mundo.
274
LIMA, 1968, p. 5.
A partir desse importante conjunto primordial de variações, as líricas
moderna e contemporânea passaram a produzir suas obras em consonância com
uma filosofia de valorização de experimentações, encerrando leques de
possibilidades que abrangeram a introdução da linguagem quotidiana, a
dissolução dos parâmetros de métrica e de rima, e a construção de poemas-
imagem, entre outros.

No roldão dessas derivações, alguns poetas modernos levaram as


desconstruções iniciadas por Baudelaire às últimas instâncias, sobrepujando-o em
certos aspectos, inclusive. Este é o caso do poeta João Cabral de Melo Neto, a
quem este ensaio focaliza doravante.

Dono de uma técnica construtiva absolutamente ímpar, o pernambucano


João Cabral de Melo Neto, a despeito de não haver sido o fundador da tendência
na qual se inscreve, revolucionou a cultura poética brasileira e se destacou, desde
o momento da fixação de seu estilo, na expressão do que José Castelo denominou
como “estética da secura”.

Concernente às problemáticas levantadas por este exame até o momento, o


entendimento do conceito de secura foi constituído em função do alheamento dos
escritos do vate recifense do conjunto características tradicionalmente votadas à
lírica de ordem romântica e de sua predileção, em diametral oposição, pela
extremada valorização da técnica e do despojamento vocabular na construção
vérsica, virtudes dispostas no programa da antilírica.

De modo, pois, a compreender as formas de manifestação dessa tendência


em sua poética, bem como dos mecanismos pelos quais operam suas escolhas
estéticas, faz-se necessária a intervenção do próprio autor. Nesse sentido, o extrato
abaixo, retirado do ensaio Poesia e composição, evidencia a opinião de João
Cabral quanto à sua prática, ao afirmar que o

[...] trabalho de arte pode valer a atividade material e quase de


joalheria de construir com palavras pequenos objetos para
adorno das inteligências sutis e pode significar a criação
absoluta, em que as exigências e as vicissitudes do trabalho são
o único criador da obra de arte.275

Eis a primeira componente de uma lógica compositiva que desafia a


preceptística da lírica de cunho romântico: as expressões "[...] atividade [...] de
joalheria" e o último período, "[...] as exigências e as vicissitudes do trabalho são
o único criador da obra de arte", seguramente reforçam a escolha do escritor pelo
emprego da técnica, pelo trabalho de joalheria – de ourivesaria, como ficou dito
antes – na invenção poética.

Entretanto, é justamente no exercício da escrita que as opções do vate se


fazem observar de forma mais veemente. Em grande parte, esta colocação se
justifica pela significativa quantidade de unidades textuais erigidas sob o mote do
fazer poético. Segue outro exemplo, sublinhado do poema “Catar feijão”:

Catar feijão se limita com escrever:


jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavra na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar [...]276

A partir desta porção de versos é possível de se inferir o


comprometimento do autor em descrever a sua prática e sua propensão pela
atividade da escrita, como se houvesse uma força que impelisse o poeta ao ato
criador, uma espécie de necessidade orgânica de deitar sobre o papel o resultado
de suas elucubrações mentais. Nota-se, igualmente, a inserção de suas escolhas
vernaculares, bem como da imagética presente neste excerto, nos modelos
consagrado pelo modernismo, com temática e linguagem associadas a temas do
quotidiano. E se apresenta, mais uma vez, no verso que completa a quadra, a
preocupação norteadora do fazer do escritor: a questão da depuração do poema.

A quase obsessão de João Cabral de Melo Neto pela laboriosa preparação


vérsica é uma das marcas de uma poética que prima pelo menos; por dizer mais,

275
MELO NETO, 2003, p. 728.
276
Ibid, p. 346.
ou mais profundo, usando menos recursos vocabulares. A esse respeito, o poeta é
enfático ao afirmar, não destituído de certa dose de ironia, que fala, em seus
poemas, “com as mesmas vinte palavras.”277

Por sua vez, o teórico Ivo Barbieri, ao tratar dessa distinção da poesia
cabralina, comenta sobre a racionalidade consciente do autor no tangente à
linguagem: “[...] o poeta assume a posição do engenheiro, que [...] suprime
brechas de linguagem por onde pudessem se insinuar imprecisões, sombras ou
mistérios.”278
Outro debatedor que aponta para essa realidade é Décio Pignatari,
afirmando que a caracterização básica que pode ser feita à prática do poeta é o seu
pendor pelo emprego da “palavra nua e seca, as poucas palavras, a escolha
substantiva da palavra [...] a serviço de uma vontade didática de linguagem
direta.”279
Retornando, entretanto, às questões da antilírica, as colocações expostas
acima parecem estabelecer um descompasso entre a tendência da lírica moderna à
obscuridade e ao hermetismo e a poética do autor de Quaderna, mormente no
sentido de esclarecer que a linguagem cabralina tende (obsessivamente) à clareza.
Evidencia-se o primeiro indício da secura na arte do poeta: a secura de
palavras.
Outro aspecto importante dos textos do vate se encerra na questão da
musicalidade de sua produção. Ou na contrariedade dessa virtude: a
antimusicalidade.
Entendido, pois, que a criação cabralina busca exilar-se dos preceitos da
lírica secular, então também surge como coerente a tentativa de abstração, na
esfera de sua escrita, de um dos caracteres fundadores da antiga poesia lírica.
Nesse sentido, o crítico Ivo Barbieri nos brinda com um posicionamento revelador
a respeito da escolha melódica de Cabral, apontando que sua “preferência pelo
concreto, pela palavra mineralizada na escrita, pela bem tramada sintaxe, pelo

277
Ibid, p. 311.
278
BARBIERI, 1997, p. 11.
279
PIGNATARI apud BARBIERI, 1997, p. 31.
relevo escultural da imagem bastaria para apagar toda ressonância musical das
palavras.”280
Tomando o cuidado necessário para não cair no anacronismo, o presente
ensaio revisita Nietzsche em sua concepção de que "a poesia se encontra
frequentemente a caminho de tornar-se música, quando ela busca conceitos mais
sutis, aqueles em que o lado material do conceito quase desaparece." 281 Esta
asserção do filósofo alemão diz respeito a um paradoxo cunhado por João Cabral
ao valorizar a antimusicalidade em seus versos: o apartamento da poética em
relação à musicalidade se faz com a matematização das relações rímicas e
vérsicas, o que parece um contrassenso no sentido de que a poesia e a música são,
em larguíssima medida, devedoras da precisão e do cálculo matemático.
De qualquer modo, como prova dessa virtude do texto cabralino, tem-se
abaixo um excerto da poesia “Alguns toureiros”, presente na obra Paisagens com
figuras:

[...]
Mas eu vi Manuel Rodriguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
[...]
O que melhor calculava
O fluido aceiro da vida,
O que com mais precisão
Roçava a morte em sua fímbria

O que à tragédia deu número,


À vertigem, geometria,
Decimais à emoção
E ao susto, peso e medida, [...]282

A partir deste trecho, é possível de se identificar alguns dos condicionantes


mais empregados por João Cabral em sua produção.
280
BARBIERI, 1997, p. 21.
281
NIETZSCHE apud BARBIERI, 1997, p. 21.
282
MELO NETO, 2003, p. 158.
Há, por exemplo, a liberdade de versificação e de construção rímica. Essa
negligência para com as rimas – que é, evidentemente, proposital – contribui para
o desaparecimento do sentido musical do poema.

Um segundo elemento aponta para o empréstimo tomado pelo poeta de


expressões provenientes do campo semântico da matemática, prática corriqueira
na poesia cabralina e que, além disso, denota a predileção do autor por esta área
do conhecimento.

Entretanto, o que talvez fique mais evidente na leitura da porção extraída


para este trabalho se encerre no terreno da significação, pois o encontro da
temática da tauromaquia com o vernáculo rigoroso, severo, deste poema desvela a
tentativa – bem sucedida, aliás – do vate, que objetiva, tal como o toureiro busca
domar artisticamente a massa bruta e potente do animal, adestrar as palavras da
composição, isto é, tornar o verbo manso e obediente à plasticidade de seus
anseios poéticos.

Observa-se, ainda, o movimento do autor em debelar da atividade do


toureiro, da sede irredutível do animal humano em fazer prostrar diante de si a
natureza do animal-fera, a totalidade das ações motivadas pela paixão e pelo
impulso. As ações de touro e de toureador são baseadas na precisão coreográfica –
e poética.

João Cabral atua, neste poema, como um verdadeiro escultor da palavra,


que desbasta o bloco mineral do vernáculo até o limite possível da criação,
retirando os excessos e revelando aquilo que a pedra traz de mais íntimo e
elementar.

Eis a forma pela qual se dá o fenômeno da secura da musicalidade na


poética do pernambucano.

Outro fenômeno possível de se verificar na produção cabralina concerne às


escolhas de temas e imagens, vistas aqui de forma associada, sob a ótica
igualmente restritiva da economia.
Ao colocar as questões temáticas e imagéticas nesses termos, este texto se
reporta, novamente, ao crítico Ivo Barbieri, que, inspirado pela parcimônia
vocabular do autor, sentencia:

A repetição de umas tantas palavras, o retorno insistente a uns


poucos sítios temáticos, a persistência obsessiva de meia dúzia
de imagens, a reprise das mesmas paisagens com outras figuras,
todos esses expedientes são índices seguros de uma tonicidade
poética que se mantém tensa e ativa, graças a um processo de
autocontrole interno ao sistema da obra.283

O que se depreende da assertiva deste teórico nada mais é do que a


afirmação de tudo o que vem sendo trabalhado nestas últimas páginas, ou seja,
João Cabral faz sua poesia operar dentro de limites construtivos muito estreitos e,
concorrentemente, sob uma lógica de valorização – quando não, de exacerbação –
da escassez, da privação e da carência.

Tratando este tema de modo mais amplo, há de se revisar o contexto de


inserção do poeta no cenário físico e humano do Brasil. Com a preocupação de
não ser reducionista e tampouco biografista, o fato é que João Cabral de Melo
Neto é pernambucano, filho do Nordeste brasileiro, filho de uma terra com um Sol
abrasador e sufocante, uma terra na qual todo o esforço e energia devem ser
cogitados, de modo a não serem consumidos em vão. E, tal qual a do poeta, a
quase totalidade da cultura nordestina se emerge a partir de temáticas ligadas a
esse fenômeno da terra, que é muito mais do que físico, é preponderante no
momento em que sujeita os seres a sua existência inclemente.

Juntando-se a isso o gosto do poeta pela poupança vocabular e pela sua


capacidade de produzir o máximo na significação pelo mínimo na escrita, chega-
se a um conjunto bastante rarefeito de temas e de imagens que povoam os escritos
cabralinos: a morte (muito embora ela possa se inscrever na obra do poeta como
elemento de redescoberta da vida, a exemplo do que ocorre em Morte e vida
severina, o que é absolutamente inusitado), a seca e o rio (elementos justapostos,
indissolúveis e conflitantes), a pedra (o símbolo da resistência do Homem ao meio
283
BARBIERI, 1997, p. 11.
e do meio ao Homem, concomitantemente), o mineral (a parte íntima constituinte
de toda a matéria e da condição humana), a faca (que corta o real e o espesso do
poema) e o Homem (ao mesmo tempo presente na paisagem ou sendo a própria
paisagem, nela incrustado e dela dependente).

Como saldo da junção dos elementos descritos até o momento, tem-se na


textualidade cabralina uma poesia mormente voltada para si, ou seja, para a
própria lógica de produção, cercada de preocupações quanto à sobriedade
estrutural e vocabular, constituída dentro de um ideário de secura, de negativa de
elementos, por um autor que compreende que

[...] tanto no ferreiro que trabalha para domar o ferro quanto no


poeta que, no seu fazer, submete o fluxo das palavras a um
comando de construção calculada, o que prevalece, na analogia
de posturas frente à relutância da matéria a ser modelada, é a
tenacidade do engenheiro, cujo empenho a dificuldade
fecunda.284

A esse propósito, o poeta recifense deixou, no texto “O ferrageiro de


Carmona”, a despeito da coloquialidade da linguagem e do tom aparentemente
corriqueiro do tema, uma consideração bastante simplificada, que serve como
ilustração de seu pensamento sobre o labor que deve nortear a atividade da escrita
de versos.

[...]
Dou-lhe aqui humilde receita,
Ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se
Nem deve a voz ter diarréia

Forjar: domar o ferro à força,


Não até uma flor já sabida,
Mas ao que pode até ser flor
Se flor parece a quem o diga285

284
Ibid, p. 49.
285
MELO NETO, 2003, p. 596.
O texto que ora chega a termo buscou fazer um apanhado dos
acontecimentos que marcaram a trajetória do conceito de lirismo dentro da poesia,
desde seu aparecimento até os dias atuais. Finalmente, houve a descrição da
maneira pela qual o gênero tem sido explorado contemporaneamente, pela
apresentação das características poéticas de um autor claramente inserido nas mais
modernas tendências de produção literária.

Parece evidente que, da mesma forma que os círculos críticos e literários


decretaram o fim da épica clássica nos seus moldes mais ortodoxos, também a
poesia lírica secular não apresenta mais um nicho ao qual possa se associar. E as
razões pelas quais tal formato não encontra mais consonâncias nos tempos de hoje
estão ligadas aos eventos que concorreram para a chegada da Modernidade na
História do Homem.

Do mesmo modo, há uma tendência, entre os debatedores da literatura


atual, em afirmar que o gênero lírico vem sofrendo, há mais de uma centena de
anos, importantes alterações, que, ao que se depreende da atualidade da produção
cultural, estão surtindo efeito e reinscrevendo o estilo nos contextos do século
XXI.

Nesse sentido, os exemplos trazidos neste ensaio, além de explicitar dados


sobre a poética do vate pernambucano João Cabral de Melo Neto, lançaram
alguma luz acerca da atualidade literária do gênero, muito embora não tenham
chegado a demarcar as novas fronteiras da antiga lírica, empreitada que fatalmente
demandaria uma numerosa coleção de livros.

De fato, a problemática da despersonalização na literatura – e na própria


esfera da condição humana – apresentada nos estudos de Michel Collot,
argumento que parece indubitável em termos filosóficos, originou novas
formatações no terreno das manifestações poéticas, preceitos estes cuja adoção
tem se mostrado tão natural, no contexto da contemporaneidade cultural, quanto
pode ser tomada como precisa e cerebral a estética da máquina de emocionar da
poética de João Cabral.

Referências

BARBIERI, Ivo. Geometria da composição: morte e vida da palavra severina.


Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. 143 p.

BARBOSA, João A. As ilusões da modernidade: notas sobre a historicidade da


lírica moderna. São Paulo: Perspectiva, 1986. 159 p.

BLOG DO ELAPHAR. Correspondências. Tradução de Ivan Junqueira.


Disponível em: <http://blogelaphar.blogspot.com/2010/09/30-de-setembo-dia-do-
tradutor.html> Acesso em 27 out 2011.

CARA, Salete de A. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1998.

ELIOT, T. S. Baudelaire. Em: ELIOT, T. S. Ensaios. São Paulo: Art Editores,


1989.

FLEURS DU MAL. Correspondances by Charles Baudelaire. Disponível em:


<http://fleursdumal.org/poem/103> Acesso em 26 out 2011.

HEGEL, G. F. Estética: Poesia. (Tradução de Álvaro Ribeiro). Lisboa:


Guimarães, 1964, vol. 7.

LIMA, Luiz C. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.

MELO NETO, João C. de. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. (Tradução de Celeste Aída


Galeão). Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1975.
BANDEIRA NA PENUMBRA:

QUANDO O POETA AINDA NÃO ERA MODERNO

Luís Roberto de Souza JÚNIOR

Um outro Bandeira

Vou tratar aqui de um poeta que usa e abusa dos tons crepusculares e da
melancolia da herança romântico-simbolista. Um poeta que segue o hábito do
verso regular, construído segundo os cânones da metrificação tradicional, uma
preocupação de influência parnasiana. Um poeta com tendências monótonas e
melancólicas. Um poeta fascinado pelo mistério e pelas sombras. Que fala do
tédio e esfuma a realidade.

Este poeta é Manuel Bandeira.

Pois o Bandeira que ficou conhecido pela modernidade de sua poesia, na


qual “a vida de relação, tal como se mostrava no dia-a-dia, se torna matéria
literária”286 , o Bandeira que, embora não tenha sido o primeiro a empregar o
verso livre no Brasil, é o poeta mais importante a fazê-lo em sua época, o
Bandeira que se consagrou por uma poesia epifânica, de êxtase diante do sublime
que se encontra no cotidiano e acaba por revelar o insondável, esse Bandeira que é
tão bem estudado e referido na história da poesia brasileira, ele apenas se mostrou
completamente a partir de Libertinagem (1930).

Antes, existia um outro Bandeira, o que escreveu seus primeiros livros – A


cinza das horas (1917), Carnaval (1919) e O ritmo dissoluto (1924) – oscilando
entre formas poéticas tradicionais e modernas, uma gangorra que a cada livro “se
inclinava de vez para a modernidade.”287

286
ARRIGUCI, 1990, p. 53.
287
Ibid, p. 139.
Segundo Maria Lúcia Pinheiro288, o pré-modernismo é um período literário
que se iniciou com o fim do simbolismo e se encerrou com o começo do
modernismo: “[...] É um período sincretista, às vezes neo-simbolista ou neo-
parnasiano, ou as duas coisas simultaneamente.”

É aí que se enquadra o Manuel Bandeira do qual vou tratar. Mais


especificamente no que “os manuais de literatura brasileira reconhecem
unanimemente um certo período de transição entre simbolismo e modernismo, ora
chamado de crepuscularismo, ora de pós-simbolismo, ora de penumbrismo.”289

Ao retratar esse “poeta na penumbra”, mostrando quando a gangorra de


sua poesia ainda pendia para o lado das poéticas tradicionais, analisando as
influências de seus primeiros livros, busco os alicerces da poesia futura de
Bandeira. Pois “[...] é no período de formação dos grandes escritores que devemos
procurar, quem sabe, a explicação talvez mais válida para o futuro esplendor de
sua maturidade artística.”290

Pequena história suíça

Manuel Bandeira foi o homenageado da Festa Literária Internacional de


Paraty (Flip) em 2009. Na conferência de abertura, Davi Arrigucci Jr, falando da
formação poética de Bandeira, disse que ele “poderia ter sido um personagem de
Thomas Mann em seu A montanha mágica”.

De fato, em junho de 1913, Bandeira embarcou para a Suíça a fim de se


tratar no sanatório de Clavadel, perto de Davos-Platz, “cenário que em 1895
testemunhara os suspiros tísicos de Antônio Nobre e que Thomas Mann tornaria
famoso n’A montanha mágica, de 1924.”291

288
PINHEIRO, 1991, p. 19.
289
Ibid, p. 19.
290
COELHO, 1982, p. 6.
291
Ibid, p. 22.
No romance, o jovem alemão Hans Castorp vai visitar um primo
tuberculoso no sanatório de Berghof e quase por acaso descobre que também está
doente, passando a viver a rígida monotonia do lugar, um lugar isolado do mundo,
onde sobra tempo para contemplação e inquietações filosóficas.

Thomas Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando


sua mulher estava em recuperação num sanatório da região de Davos-Platz, e ele a
visitava com frequência. Ou seja, literalmente, Manuel Bandeira poderia ter sido a
inspiração para um dos personagens.

Mas não é essa coincidência que torna relevante a afirmação de Arrigucci


Jr. É que o espírito dos personagens de Mann – a melancolia e a incerteza
reinantes, devidas à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, sobretudo, à batalha
diária contra a morte travada por cada vítima da tuberculose – faz-se presente nos
versos que Bandeira então escreveu. Afinal, como bem coloca Joaquim-Francisco
Coelho em Biopoética de Manuel Bandeira:

Dado que obra alguma de arte floresce no vácuo, procurou-se


também situar a produção europeia do tempo, em que ela tão
obviamente radica, sobretudo a literatura parnasiano-simbolista
de expressão francesa, seminal, ninguém o desconhece, na
eclosão de uma escrita belle-époque contra a qual se rebelariam
(mesmo quando contaminadas por ela) as primeiras vanguardas
do século.292

Nas muitas vezes enevoadas montanhas suíças, Bandeira dedica-se


principalmente a ler, escrever e refletir sobre poesia. Segundo Coelho, em outro
estudo sobre o poeta – Manuel Bandeira pré-modernista – essas “horas de
inefável repouso”, as encostas cobertas de neve, as pastagens alpestres com seus
“densos bosques de pinheiros” compõem a própria geografia dos primeiro versos
de Bandeira: “Na geografia alpina dos seus primeiros versos, a paisagem que
vemos constitui no limite a transposição artística da paisagem que ele via, do
solário do sanatório, deitado na cama-de-vento.”293
292
Ibid, p. 7
293
COELHO, 1982, p. 23.
Ali ele reaprende o alemão, que estudara no ginásio, e faz amizade com
Paul Eugène Grindel, um jovem de 18 anos que depois assinaria Paul Éluard e
seria um dos principais poetas surrealistas franceses. Bandeira e Éluard se
influenciam mutuamente. Éluard empresta a Bandeira livros de Vildrac, Fontainas
e Claudel, e talvez seja por isso que o brasileiro volte da Europa “marcado por um
neo-simbolismo.”294

É na Suíça também que Bandeira compõe e decide publicar seu primeiro


livro, para o qual escolhe o nome de Poemetos melancólicos. Bandeira tentou
primeiro publicá-lo em Coimbra, Portugal, mas não conseguiu, e o livro, com
modificações (ele esqueceu os originais no sanatório e não conseguiu refazê-lo
integralmente) foi publicado em 1917, “só que a melancolia dos poemas ressaltou
com mais força do título que afinal prevaleceu, A cinza das horas.”295

A cinza das horas é uma coletânea dos primeiros versos de Bandeira.


Ribeiro Couto, um dos melhores amigos do poeta, relembra que “em 1917 fizeste
imprimir em 200 exemplares os antigos Poemetos melancólicos no volumezinho
de A cinza das horas. Era uma experiência de vossa curiosidade. Queríeis saber
‘como era aqui fora.’”296

Os poemas que ficaram de fora desse livro, acrescidos a outros que


compostos nos anos seguintes, foram reunidos na segunda obra de Bandeira,
Carnaval, publicada em 1919.

Poesia da penumbra

De acordo com Rodrigo Otávio Filho 297, o termo penumbrismo vem de um


artigo de Ronald de Carvalho sobre o livro de Ribeiro Couto O jardim das

294
BOSI, 1982, p. 332.
295
COELHO, 1981, p. 23.
296
COUTO, 1960, p. 66.
297
FILHO, 1970, p. 71.
confidências. O artigo se intitula Poesia da penumbra e afirma – com exagero,
segundo Filho – que no Brasil “a poesia era pura eloquência” e que o poeta que
desejasse triunfo rápido “tinha que se transformar num pirotécnico hábil, capaz de
pôr bichas e bombas chilenas nos seus endecassílabos, buscapés, salta-moleques
nas suas redondilhas, foguetes de assobio nos seus alexandrinos.”

Rodrigo Otávio Filho comenta longamente o artigo de Ronald de


Carvalho, diz que:

Felizmente, outra é a entonação de seu pensamento quando,


referindo-se ao livro de Ribeiro Couto, confessa a existência de
alguns artistas bastante corajosos, que chegam a trocar o verso
reluzente e a rima fatal por uma entidade quase metafísica,
desconhecida da maioria dos nossos versejadores oficiais. São,
continua Ronald, poetas tentados pela sombra, fascinados pelo
mistério. A sombra e o silêncio influenciam a verdadeira poesia
nova do Brasil, e "o brilho do mundo contingente não encontra
um eco favorável.”298

Para ele, não foram poucos os poetas brasileiros que “durante uma certa
época, andaram esquecidos de que viviam em uma terra de sol e céu azul”. Otávio
Filho defende que esses poetas, “animados pelos sentimentos de uma mocidade
livresca, perguntavam à poesia: quando serás penumbra? E a ela entregaram-se de
corpo e alma”.

O estudioso, porém, não acredita na existência de uma escola penumbrista.


Ele afirma que, em vez disso, houve “uma atitude, um movimento emocional,
uma coincidência temática, tendente a um acentuado intimismo poético”:

[...] que pode ser definido numa tentativa de enquadramento em


nossa história literária como nítido exemplo de literatura de
transição ou intermediária. Foi uma espécie de flecha de vôo
lento que, vindo de um decadentismo um tanto mórbido,
influenciada por certo nefelibatismo passageiro, e por
hermetismo que esteve em moda, atravessasse brilhantemente a

298
Ibid, p. 71-73.
zona simbolista para, ao fim do vôo, criar e alimentar o
modernismo299.

Norma Seltzer Goldstein300 diz que o penumbrismo foi “mais tendência


poética do que grupo propriamente dito” e que se caracteriza [...] por uma
melancolia agridoce, pelos temas ligados ao quotidiano, por uma morbidez velada
– atitude doentia de perplexidade em face do progresso e da técnica, traduzida, no
plano afetivo, por uma atenuação dos sentimentos.

Goldstein classifica o Manuel Bandeira dos dois primeiros livros como o


principal poeta do penumbrismo. Ela constata que uma leitura cuidadosa de As
cinzas das horas permite perceber que a maioria dos poemas está:

[...] dentro do universo crepuscular, marcado pelos efeitos de


atenuação, pela atitude contemplativa, pelas horas de penumbra,
pelo tom melancólico. Também a maioria apresenta
regularidade de composição e certos recursos retóricos de sabor
clássico ou parnasiano.301

Sobre Carnaval, ela afirma que “no plano formal predominam a


regularidade e os torneios retóricos. No plano temático, reina a atmosfera
crepuscular.”302

Alguma (s) poesia (s)

Vamos agora ver como as características citadas se evidenciam em dois


poemas de A cinza das horas. Escolhi este livro – e não Carnaval – porque é,
sobretudo, nele que a linguagem do poeta é “decadista e ‘crepuscular.’” 303 Em
299
Ibid, p. 73.
300
GOLDSTEIN, 1983, p. 5.
301
Ibid, p. 97.
302
Ibid, p. 107.
303
COELHO, 1982, p. 7.
Carnaval, o eu lírico ainda gosta da penumbra, mas se disfarça um pouco, sendo
“um ‘Clown lastimoso’, que esconde sua angústia sob as máscaras.”304

O primeiro poema a ser analisado é Imagem:

És como um lírio alvo e franzino,


Nascido ao pôr-do-sol, à beira d’água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...
A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...305

O poema traz implícito o mito de Narciso. Fala de um lírio nascido à beira


d’água, alguém que há de amar e sofrer incompreendido, fala de alguma forma de
um amor impossível, o amor, o desejo por si mesmo. Dito isso, logo se nota o tom
melancólico.

Na antologia Testamento de Pasárgada, o organizador, Ivan Junqueira,


coloca Imagem na subdivisão temática O amor e as mulheres. Junqueira usa
biografismo para explicar a melancolia contida nos versos.

[...] na poesia de Bandeira, a morte e o amor muitas vezes se


tangenciam, adquirindo a partir daí a condição de
acontecimentos cruciais na vida do autor, que apenas através
deles conseguia evadir-se daquela existência que lhe foi sempre
madrasta.306

O fato é que em Imagem “a vida é amarga”, o sol se põe, dando lugar à


penumbra “numa paisagem erma, onde cantava um sino”.

Imagem também é um poema que – como o próprio penumbrismo –


atravessa a zona simbolista. Pois:

304
COUTO, 1960, p. 67.
305
BANDEIRA, 2008.
306
JUNQUEIRA, 2003, p. 212.
Propício ao surgimento da melancolia e da monotonia
(palavras-eixos do léxico do Simbolismo, onde se transformam,
a partir do próprio Baudelaire, em verdadeiros emblemas da
angústia moderna), o tédio, que em A cinza das horas cai até
dos telhados.307

E principalmente:

À tradição do Simbolismo-Decadentismo filia-se, por outro


lado, uma parte considerável do léxico do livro, sobretudo na
série nome/verbo/adjetivo: névoa, lírio, harmonia, crepe,
espirais, nevrose, crânio, luar, tédio, ermo, círio, cinza, etc... 308

Neste poema, também se encontram vários mandamentos simbolistas,


como o a sugestão cromática (o desalento é expresso nas meias-tintas
crepusculares), a justaposição cumulativa (os versos finais – “Lírio franzino,
inquieto, ansioso/ Frágil e dolorido” – apresentam seis adjetivos na sequência),
alegorias pessimistas e os esboços de atmosfera vaga.

Percebem-se essas tonalidades fugidias “típicas da escola simbolista ao


influxo da qual se formou o nosso poeta, manifestam-se com maior força nas
cenas de fim de tarde, quando o sol, no recolhimento do poente.”309

Agora vamos ao segundo poema escolhido – O inútil luar:

É noite. A Lua, ardente e terna,


Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .
Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha . . .

No largo, sob os jambolanos,


Procuro a sombra embalsamada.

307
COELHO, 1982, p. 16.
308
Ibid, p. 19.
309
Ibid, p. 17.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.


Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . .


Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,


Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.

Adiante uma senhora magra,


Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:


— "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,


Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia...310

Sem dúvida, percebemos em O inútil luar características penumbristas. O


eu-lírico, por exemplo, mostra uma atitude contemplativa, e o poema fala da noite,
tudo ocorre à meia-luz. Além disso, reina a melancolia.

Estamos longe dos versos livres, uma vez que há uma regularidade métrica
e fônica, um ritmo marcado pela repetição e pelo emprego de rimas.

Pode-se dizer que o poema se encaixa claramente no “ciclo de 1917,


dominado pelo binômio cinéreo/funéreo, de matiz romântico-simbolista com
tonalidade parnasianas.”311

310
BANDEIRA, 2008.
311
COELHO, 1982, p. 13.
Porém também há aqui algo do modernismo posterior do poeta. Não é
exagero afirmar que em Inútil luar “Dentro desses esquemas e tendências [...]
sobressai de vez em quando a ainda tímida (mas já tangível) originalidade de
Bandeira.”312

Aqui se trata de um Bandeira que já assume “uma posição livre diante dos
materiais tão heterogêneos com que trabalha”, mesmo que esses materiais e essa
liberdade não estejam tão evidentes, e o resultado esconda “o jogo com os
materiais alheios ou estranhos.”313

Peguemos o seguinte trecho: “Outra a entretém, a conversar:/ — Mamãe


não avisou se vinha./ Se ela vier, mando matar/ Uma galinha".

Transparece aqui a coloquialidade, o que faz Maria Helena Camargo Regis


afirmar que:

Este poema, publicado em 1917, já manifesta características


que vão revolucionar a poesia brasileira: a presença da
linguagem coloquial, a valorização do cotidiano, a
representação do receptor como meio de figurar a língua oral e
outros fatos de estilo, até então inadmissíveis na obra literária,
sobretudo em verso.314

Somente resta concordar com ela.

Frouxas amarras

A título de conclusão, podemos afirmar que os dois primeiros livros de


Manuel Bandeira – A cinza das horas (1917) e Carnaval (1919) formam um
conjunto quase uniforme “dada a similaridade de suas características:
predominância de traços penumbristas acrescidos da ‘máscara’, em Carnaval.”315

312
Ibid, p. 13/14.
313
ARRIGUCI, 1990, p. 141.
314
REGIS, 1986, p. 18.
315
GOLDSTEIN,1983, p. 110.
Nestes livros, podemos falar de um poeta com características diversas das
que consagrariam o Manuel Bandeira modernista. Esse outro Bandeira tem a
“expressão de um escrever ‘Art Nouveau’ que foi primacialmente o dele antes da
adoção ‘oficial’ do discurso modernista.”316

Em A cinza das horas e Carnaval notam-se versos com amarras da


versificação regular, nas quais “o lirismo escolhia não só as formas fluidas de
expressão, como empregava, também, os modelos graciosos da tradição
portuguesa, tudo com a marca inconfundível da vossa personalidade, que era um
secreto acento de pudor e ironia.”317

São livros que fazem parte de um “lento processo de assimilação da


experiência poética, até o progressivo domínio das palavras” 318. Trata-se de um
Manuel Bandeira cujo caráter variado, “combinando elementos temáticos e
formais, e podendo resultar até da interferência de linguagens de outras artes, não
fica decerto evidente desde o início.”319

Porém devemos considerar também que o Bandeira modernista, que


desentranha a poesia do cotidiano, o poeta do alumbramento, o que não faz
cerimônia para usar a linguagem coloquial, esse poeta está prenunciado desde o
primeiro livro, já que:

[...] alguns textos apresentam inovações rítmicas, ora já


avançadas (versos livres), ora prenunciadoras do Modernismo
(tensão rítmica, deslocamentos de acento, versos polimétricos).
De modo discreto, permanece a temática do quotidiano –
tratada com o aprofundamento característico de Manuel
Bandeira –, vazada em tom coloquial.320

O exemplo é O inútil luar. A análise deste poema mostra que “embora seja
a partir do livro O ritmo dissoluto, publicado em 1924, que se tornou mais
316
COELHO, 1981, p. 6/7.
317
COUTO, 1960, p. 67.
318
ARRIGUCCI, 1990, p. 125.
319
Ibid, p. 141.
320
COELHO, 1982, p. 107.
frequente a presença da linguagem coloquial e popular na poética de Manuel
Bandeira, já no livro A cinza das horas, de 1917, se percebe esta tendência”321.

Em Apresentação da Poesia Brasileira, Manuel Bandeira, falando sobre


Murilo Mendes, diz que a concepção da poesia como um "estudo" que nunca se
conclui e, uma vez publicada, se oferece a outros poetas como matéria de
recriação. Também se pode aplicar esse raciocínio a ele próprio, então os versos
de seus primeiros livros serviram a ele como estudo e matéria de recriação para
sua maturidade artística.

Referências

ARRIGUCCI Júnior, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel


Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira: seguida de uma


antologia de versos.  Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1957.

_____. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix,


1982.

COELHO, Joaquim-Francisco.  Biopoética de Manuel Bandeira. Recife: Ed.


Massangana, 1981.

_____. Manuel Bandeira pré-modernista. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio


Editora, 1982.

COUTO, Ribeiro. Dois retratos de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Livraria São


José, 1960.

FILHO, Rodrigo Otávio. Fragmento de simbolismo e penumbrismo. Rio de


Janeiro: Livraria São José, 1970.

GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro


Bandeira e outros poetas significativos. São Paulo: Ática, 1983.

321
REGIS, 1986, p. 17.
JUNQUEIRA, Ivan. Apresentação. Em: Testamento de Pasárgada: antologia
poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

REGIS, Maria Helena Camargo. O coloquial na poética de Manuel Bandeira.


Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1986.

SAMPAIO, Maria Lúcia Pinheiro. História da poesia modernista. São Paulo: J.


Scortecci, 1991.
III. MANIFESTAÇÕES DA POESIA EUROPEIA
DESPERSONALIZAÇÃO E CRIAÇÃO POÉTICA
EM SOPHIA ANDRESEN

Márcia Helena S. BARBOSA

Situar a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen no panorama da


literatura portuguesa é uma tarefa difícil, como destaca Silvina Rodrigues Lopes,
que organizou o volume da coleção Textos Literários dedicado ao estudo dos
textos da escritora. Essa dificuldade deve-se, em parte, à “distância” guardada
pela autora “em relação a qualquer hipótese de escola ou movimento literário”. A
participação de Sophia Andresen nos Cadernos de Poesia, revista literária que
circula entre 1940 e 1942, anuncia o seu surgimento no cenário das Letras e abre
caminho para a publicação de seu primeiro livro, Poesia, em 1944. Na época,
como adverte a ensaísta, “a ‘Presença’ se impõe no panorama artístico português”.
Entretanto, a escritora “não partilha a sua imposição de uma interioridade e
subjectividade subjugantes”; antes afirma [...] a sua singularidade num movimento
des-subjectivante, movimento poético de transfiguração que é paixão do
exterior.”322

Ainda de acordo com a ensaísta, Sophia Andresen produz uma poesia


“clássica” – nos dois sentidos que habitualmente são conferidos a essa palavra –,
porque relacionada “com a civilização grega ou romana ou com os seus
renascimentos na história” e subtraída “às variações epocais do gosto”. No que diz
respeito à segunda acepção do termo, a estudiosa explica que a autora mantém-se
independente das tendências de ruptura e inovação que caracterizam a
modernidade literária e em função das quais o clássico tende a desaparecer.323

Eduardo Lourenço e Fernando Martinho, de certo modo, também referem-


se à posição ocupada, no cenário da literatura portuguesa, por Sophia Andresen,

322
LOPES, 1990, p. 15-16.
323
Ibid, p. 15-16.
escritora que manteve uma produção constante e recebeu importantes prêmios até
pouco antes de sua morte, ocorrida em 2004. Os dois ensaístas, ao falarem sobre
aquela que foi considerada pela crítica como uma das grandes vozes da expressão
lírica em língua portuguesa, ressaltam a leitura precisa que Sophia Andresen
realizou de Fernando Pessoa.324 Na opinião do primeiro crítico, expressa no
prefácio à Antologia da escritora, “jamais se revisitou, por dentro, a aventura sem
fim de Fernando Pessoa, poesia e vida confundidas, como nesse admirável poema
‘Cíclades’”, incluído em O nome das coisas.325 Por sua vez, Fernando Martinho,
ao mesmo tempo que reafirma “a presença tutelar” de Pessoa na poesia
portuguesa contemporânea, chama atenção para “o entendimento por dentro das
fecundas propostas de modernidade contidas na poesia pessoana”, alcançado pelos
autores “que melhor corporizaram o espírito dos Cadernos de Poesia, entre os
quais Sophia de Mello Breyner Andresen.”326

Eduardo Lourenço observa, ainda, que existem “poucos itinerários poéticos


em língua portuguesa tão impregnados de positividade original, tão de raiz, canto
ao rés de uma realidade aceite como esplendor efêmero e eterno e por isso tão
isentos de polemismo e intrínseca negatividade”, como o de Sophia Andresen. A
constatação, inscrita no texto em que o crítico mostra a presença de Pessoa na
obra da autora, dá lugar a uma indagação – como “a maga do sentimento pânico e
harmonioso do mundo”, trilhando “um caminho de serenidade e irradiante
presença”, poderia “encontrar-se com o ‘dividido’, a ausência feita voz, a
multiplicidade sem centro, o ‘viajante no anverso’?”327

O ensaísta lembra que a escritora e seu interlocutor ocupam pólos opostos e


que ela, mais do que qualquer outro poeta, põe termo à longa travessia da
324
De acordo com Eduardo Lourenço, somente nas últimas obras de Sophia Andresen, “a
presença de Pessoa surge com uma insistência enigmática”, e é em Livro Sexto, datado de 1962,
que se esboça “o primeiro retrato-diálogo com Pessoa” (LOURENÇO, 1975, p. IV-V). Para
Fernando Martinho, porém, “a presença do criador de heterônimos em Sophia” é anterior à
“inclusão do ‘retrato’ de Pessoa no livro de 1962”, embora até esse momento ocorra apenas “de
forma difusa, e mais ao nível da ‘dicção’ e do tom” (MARTINHO, 1982, p. 26).
325
LOURENÇO, 1975, p. VI.
326
MARTINHO, 1982, p. 26.
327
LOURENÇO, 1975, p. II.
consciência poética como consciência infeliz, inaugurada por Antero de Quental e
alçada à sua expressão “épica” por Álvaro de Campos. Ao mesmo tempo, o crítico
sugere uma resposta para a pergunta que ele próprio formulara, observando o
momento em que, na sua opinião, ocorre o “encontro” efetivo entre Sophia
Andresen e Pessoa. Nas últimas obras da autora, a presença de Pessoa teria
surgido “com uma insistência enigmática, como se Sophia sentisse a necessidade
de integrar a sua sombra imersa, ou a plenitude inversa que ele instalou na
consciência poética contemporânea”, ao seu mundo, justamente na hora em que
neste “é mais fulgurante do que nunca o sentimento da realidade.”328

Instante privilegiado dessa integração, o poema “Cíclades” é, no ponto de


vista de Eduardo Lourenço, o retrato de Pessoa que permanecerá para sempre e
“que acaso só uma mulher e um grande poeta podiam conceber, oferecendo a sua
disponibilidade maternal ao que não chegou a tocar-se como existente.” Segundo
o crítico, por meio da evocação de Pessoa, Sophia Andresen se aloja na diferença
que a separa do escritor e, simultaneamente, a vincula a ele. Dessa forma, a autora
estaria situada como “não errante na errância do nosso Ulisses” e, em “Cíclades”,
sintetizaria “o seu destino de Penélope, a si mesma fiel, tecedora do mais alto dia
e da mais viva esperança no meio da noite nossa e da vida.”329

Mesmo que se possa questionar se a “disponibilidade maternal” e a “não-


errância” de Sophia Andresen explicam de maneira satisfatória, como quer
Eduardo Lourenço, a presença de Pessoa no universo poético daquela que o
sucedeu, a direção apontada pelo crítico abre caminho para a reflexão acerca da
despersonalização na obra da escritora.330 Com o propósito de encaminhar a
discussão do tema, e na impossibilidade de focalizar os diversos textos da autora
que tematizam o “drama em gente” – “Fernando Pessoa”, “Em Hydra evocando

328
LOURENÇO, 1975, p. IV-V.
329
Ibid, p. VI- VII.
330
Para a análise realizada a seguir, foram utilizados, além de O búzio de Cós e outros
poemas, coletânea lançada em 1997, os três tomos que integram a Obra poética da escritora – o
primeiro editado em 1990 e os outros dois, em 1991 –, onde estão reunidos os livros que publicou
de 1944 até 1989: Poesia (1944), Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954),
Mar novo (1958), Livro sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O nome das coisas (1977),
Navegações (1983) e Ilhas (1989).
Fernando Pessoa”, “Personna” e “Cíclades” –, opta-se por comentar este último, o
longo poema incluído em O nome das coisas e distinguido por Eduardo Lourenço,
do qual transcreve-se um fragmento:

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença


O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse

Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
...............................................
...............................................
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos seus quartos altos
Entre seus cabelos te fiasse. 331

Abre o texto a “claridade frontal do lugar” a reclamar o olhar de Caeiro. A


luz “impõe” ao eu lírico a presença de seu interlocutor e faz emergir o nome do
poeta, como se aí o “negativo” que ele foi de si próprio “se revelasse”. São
lembrados, nos versos de Sophia Andresen, os poucos papéis que Pessoa
desempenhou, com discrição, na “irrealidade” de sua vida cotidiana: o do
“inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria”, o do “empregado
competente de uma casa comercial” e o do “frequentador” dos “cafés da Baixa”.

O homem cuja passagem pela vida foi “imperceptível” como o “dedilhar”


de suas mãos nas mesas dos cafés é, aqui, chamado de “viúvo de ti próprio”,
expressão que faz eco a outra – “viúvo de pessoa” –, empregada no poema
“Fernando Pessoa”332, de Livro sexto. “Esquartejado pelas fúrias do não-vivido”,
isto é, dividido e apartado “dos outros e da vida”, Pessoa viveu “no avesso”.
Lançando-se à escrita com uma paixão que não soube e/ou não quis dedicar a sua

331
ANDRESEN, 1991b, p. 175-178.
332
ANDRESEN, 1991a, p. 129.
existência como “personalidade” e sujeito, ele se tornou “Viajante incessante do
inverso”. Em vez de entregar-se ao mar, ao fluxo da vida, fez-se um aplicado
cartógrafo: criou obras com características específicas para cada um de seus
heterônimos e imaginou os elementos que comporiam a biografia desses seres.

Pessoa evitou, desse modo, os riscos que poderia enfrentar numa viagem
destinada a explorar não os mapas, mas o território: “Mantiveste em dia os teus
cadernos todos / Com meticulosa exatidão desenhaste os mapas / Das múltiplas
navegações da tua ausência”. Mais adiante, há outra afirmação do eu lírico que
pode ser interpretada de maneira semelhante: “Viajavas no avesso no inverso do
adverso”. Percebe-se, ainda, que a palavra “ilha” está lá – “Aquilo que não foi
nem foste ficou dito / Como ilha surgida a barlavento” – para reativar o sentido de
isolamento. Fica demonstrado, assim, que essa “navegação com bússola e sem
astros”, como é denominada no poema intitulado “Fernando Pessoa”, ao mesmo
tempo que desvia o viajante de certas adversidades, leva-o a assumir perigos de
natureza distinta.

O balanço desse exílio, que Pessoa efetua nos limites da sua poesia, também
faz o “não-vivido” transformar-se em linguagem, conforme se percebe nos versos
de Sophia Andresen: “Com prumos sondas astrolábios bússolas / Procedeste ao
levantamento do desterro”. Fernando Martinho observa que uma passagem do
texto da escritora – “Nasceste depois / E alguém gastara em si toda a verdade / O
caminho da Índia já fora descoberto” – indica a ampla dimensão de tal desterro.
Pessoa é apresentado aqui como “o exilado no lugar e no tempo”, de acordo com
o crítico, que lê, por trás das palavras da autora, os versos de Álvaro de Campos
em Opiário: “Pertenço a um gênero de portugueses / que depois de estar a Índia
descoberta / Ficaram sem trabalho”.333

Junto e, ao mesmo tempo, separado dos que nasceram depois do período dos
descobrimentos e sofreram com a crise que assolou o país, está um poeta
extemporâneo. Segundo Leyla Perrone-Moisés, Pessoa era “demais” para
Portugal, “que não sabia o que fazer daquele grande poeta épico, daquele ‘supra-
333
MARTINHO, 1982, p. 27.
Camões’ advindo num momento em que a glória das Navegações se perdia num
passado longínquo”. E na palavra “desterro”, empregada por Sophia Andresen,
podem ser vislumbrados os diversos aspectos que constam no inventário realizado
pela ensaísta acerca do criador de heterônimos. Num esforço de síntese, Leyla
Perrone-Moisés define Pessoa desta forma: “Sujeito em crise de identidade, poeta
em crise de língua, gênio poético acuado num país que atravessava ele mesmo
uma crise política e econômica.”334
Condenado ao exílio por todas essas razões, Pessoa, como lembra o eu lírico
de “Cíclades”, experimenta ainda outra espécie de desterro, pois sua condição
humana o separa dos deuses, que, na Antigüidade Clássica, transitavam no mesmo
espaço que os seres humanos, e que depois se ausentam neste mundo: "Dos deuses
só restava / O incerto perpassar / No murmúrio e no cheiro das paisagens”.
Conforme se verá a seguir, o sujeito poético compartilha com seu interlocutor o
sentimento de desamparo provocado por tal divisão, mas Pessoa, na voz de
Ricardo Reis, vai além e, assim, afasta-se do eu lírico de “Cíclades”. Reis é aquele
que se diz “desterrado da pátria antiqüíssima da minha / Crença, consolado só por
pensar nos deuses.”335 No entanto, fugindo de tudo quanto ameace mudá-lo “para
melhor que seja”, o que realmente deseja é ser esquecido pelos deuses: “Quero
dos deuses só que me não lembrem. / Serei livre – sem dita nem desdita.”336

Mesmo sabendo que Pessoa se dividiu em “muitos rostos / Para que não
sendo ninguém” dissesse “tudo”, o eu lírico de Sophia Andresen age no avesso do
avesso e reúne, no seu campo de visão, elementos que possam tornar a ausência
do poeta uma presença. Esse ato começa com uma invocação: “Porém obstinada
eu invoco – ó dividido – / O instante que te unisse / E celebro a tua chegada às
ilhas onde jamais vieste”. Depois, o eu lírico dirige-se ao poeta como quem
entrega presentes a um estrangeiro. São oferecidos a Pessoa, no texto de Sophia: a
inteireza, a noção de conjunto que o rosto do poeta, repartido em “ilhas”, jamais

334
PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 11.
335
PESSOA, 1995, p. 318.
336
Ibid, pp. 273-295.
alcançou; a alegria, o “estio”, que ele não recebeu dos deuses nem quis para si, e,
novamente, o esplendor, a nitidez do real, a qual o olhar de Caeiro procurou se
abrir.
A unidade, a luz e a harmonia encontradas na Grécia real contrastam com a
fragmentação de Pessoa e, por isso, o enigma que ele representa surge, “mais nu e
veemente”, a interrogar o eu-lírico. A invocação ao escritor vem, então, opor-se a
sua “viuvez”. O sujeito poético clama por Pessoa como se ele chegasse “neste
barco”, e como se a presença do real penetrasse o espaço de ausência e negação
em que o criador de heterônimos se constituiu. Assim, as ilhas gregas e a voz do
eu lírico são mostradas como o abrigo, o lar e o amor, que precisam ir ao encontro
desse Odysseus e “invadi-lo”, porque ele só conhece a solidão.

O eu lírico encerra “Cíclades” com a manifestação de um desejo que se sabe


irrealizável: o de que o instante da festa, da “chegada” de Pessoa às ilhas gregas,
fosse como o regresso de Odysseus a Ítaca. Encontrando uma Penélope que se
unisse a ele, e unisse nele os pontos dispersos, Pessoa alcançaria, no “um da
boda”, a coincidência entre “ser e estar”. Dessa forma, veria rompido o seu luto e
sairia inteiro de uma viuvez três vezes sofrida, pois deixaria de ser,
simultaneamente, viúvo de si mesmo, dos outros e da vida. No entanto, seu
caminho não passa nesse porto.

Aquilo que ocorre em “Cíclades” repete-se em muitas outras oportunidades:


o eu lírico da obra de Sophia Andresen assume o papel de Penélope, a
companheira de Ulisses na Odisséia, a fim de reagir às diversas formas de
destruição e dispersão com que se depara. Nessas ocasiões, o sujeito poético fia ou
desfia. A resistência a todas as divisões, rupturas e desvios requer a dupla
habilidade da personagem de Homero. Exemplo disso é o texto intitulado
“Penélope”:

Desfaço durante a noite o meu caminho.


Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo. 337
337
ANDRESEN, 1990, p. 226.
O tempo consumido nas tarefas cotidianas ou empenhado em
“contratempos” é um caminho que leva para longe da plenitude e, por isso, é
necessário “destecê-lo”. Ao desmanchar essa trama, compõe-se, na verdade, uma
outra teia, como mostra o poema denominado “O vento”: “Sento-me ao lado das
coisas / E bordo toda a noite a minha vida.” 338 Conforme lê-se em “Espera”339 e
em inúmeros outros textos, é na “hora tardia” que o sujeito poético encontra o
“silêncio” e a “concentração” para atingir o despojamento desejado e reconquistar
a unidade, embora, em determinadas ocasiões, o excesso de claridade, o sol a
pino, também possa conduzi-lo a esse estado.
Esses aspectos sugerem que, de esperar, tecer e destecer, faz-se a vida
dessa Penélope que fala nos poemas de Sophia Andresen. Todavia, sua existência
não pode ser definida somente por esses três verbos, pois é inquestionável o fato
de que o eu lírico não se nega à busca nem ao risco, e irá assumir papéis distintos
ao longo da obra da autora, alguns dos quais serão comentados a seguir.

Em “O Minotauro”340, o sujeito poético diz ter beijado o chão de Creta


“como Ulisses”. No poema denominado “Ítaca” 341, conversa consigo mesmo ou
transmite a outrem um saber, ao que tudo indica, feito de experiência. O tom de
anunciação que imprime a suas palavras, e a riqueza de detalhes com que se refere
ao ritual a ser cumprido, revelam que o eu lírico já foi iniciado nesse segredo que
agora repete para si ou compartilha com um interlocutor feminino como ele.
Nesse texto, o sujeito poético identifica-se, mais uma vez, com o herói homérico,
pois a sabedoria que detém diz respeito a uma aventura semelhante àquela que foi
protagonizada por Ulisses. O ritual consiste em deixar o cais, perder-se “no
interior da noite no respirar do mar”, sendo esta “a vigília de um segundo
nascimento”, para depois ser acordada pelo sol e recuperar, em Ítaca, “a sabedoria
inicial”, emergindo “confirmada e reunida”.

338
Ibid, p. 175.
339
ANDRESEN, 1991b, p. 38.
340
Ibid, p. 147.
341
Ibid, p. 73.
No texto intitulado “Ariane em Naxos”342, o percurso do sujeito poético
cruza-se com o da filha de Minos, rei de Creta. A evocação a Ariane, personagem
que empresta a Teseu o fio que lhe permite sair do labirinto, de certo modo, é uma
volta à figura de Penélope. Todavia, constata-se que, assim como o eu-lírico
feminino transforma-se de Penélope em Ulisses em alguns textos de Sophia
Andresen, em outros, não satisfeito em ser apenas aquela que provê e guia –
Ariane –, vai avançar na pele de Teseu pelos corredores do labirinto: “Sozinha
caminhei no labirinto.”343 O mesmo ocorre em “O Minotauro”344, texto já citado,
em que o sujeito poético afirma ter mergulhado no mar de Creta, visto aqui como
o lugar onde reina o monstro com corpo de homem e cabeça de touro.

No texto intitulado “Enquanto longe divagas”345, o sujeito poético mostra


que a sua existência está ligada ao retorno daquele que lhe serve de interlocutor e
revela que este experimenta variações de aspecto e de comportamento. As
mudanças, sucessivamente enumeradas na primeira parte do poema, explicam por
que esse “tu” a quem o eu lírico se dirige é apresentado, nos versos iniciais, como
um “fugitivo perseguido por inomeadas formas”. Ele se assemelha a Teseu ao
percorrer os labirintos, onde “tateia”, “duvida” e “espanta-se”, buscando a si
próprio e sendo guiado apenas por um “fio” – a sua “saudade da vida”. Em
seguida, na trilha da Ariane, ele regressa, como a si mesmo, ao mar; “emerge
entorpecido”; naufraga; depois dorme “como criança na praia”. No momento
posterior, volta lentamente a seu corpo, “como jovem toiro espantado de se
reconhecer”, transfigurando-se, então, no próprio ser a quem parecia disposto a
dar combate.

Na segunda parte do poema, o eu lírico confessa aguardar com enorme


expectativa o momento em que, concluída tal cadeia de transformações, seu
interlocutor deverá retornar: “O meu amor da vida está paralisado pelo teu sono /
E como ave no ar veloz detida / Tudo em mim se cala para escutar o chão do teu

342
Ibid, p. 153.
343
ANDRESEN,1991a, p. 123.
344
ANDRESEN,1991b, pp. 147-149.
345
Ibid, pp. 202-203.
regresso”. Na terceira parte, verifica-se que esse ser múltiplo, tão ansiosamente
esperado já se faz anunciar – “Pois no ar estremece tua alegria” –, trazendo
consigo sua “jovem rijeza”, seu “ímpeto”, sua “fuga e desafio”, sua “inteligência”
e “argúcia”, e também seu “riso”.

A leitura da primeira parte do poema leva a pensar que é a um poeta e,


portanto, a si próprio que o eu-lírico está falando, pois a trajetória descrita do
primeiro ao último verso pode ser vista como uma alusão ao processo de criação.
A etapa inicial é o esquecimento da palavra, a divagação, e a fase final da jornada
consiste na recuperação da “mão”, do “gesto” e do “amor das coisas sílaba por
sílaba”. Desejando a volta do poeta que mora dentro de si e às vezes se perde, de
maneira provisória, nos desvios do labirinto, o eu lírico define-se como um ser
multiforme. Além disso, ao sintetizar, no encerramento do texto, os atributos que
possui, abre e fecha a lista com o estado ou manifestação – a “alegria”, o “riso” –
que, em outros momentos, reconhece em Dyonisos e que oferece, em mais de uma
ocasião, a Fernando Pessoa, nos poemas a este dedicados.

À medida que se identificam alguns dos principais papéis assumidos pelo


sujeito poético ao longo da obra de Sophia Andresen, vêm à tona aspectos
relevantes a serem considerados no diálogo que a autora trava com Pessoa. Após a
análise desenvolvida, é possível afirmar que, para o eu lírico, tecer, destecer e
esperar são formas de unir, de preservar e, fundamentalmente, um modo de reagir
a toda espécie de dispersão. Em geral, as divisões são impostas por elementos
exteriores ao indivíduo, o tempo por exemplo. Porém, a ação desenfreada da
consciência é outra ameaça que precisa ser afastada, pois geraria um novo tipo de
fragmentação. Tudo isso demonstra que a ação silenciosa e sutil de Penélope
pressupõe o pleno conhecimento dos “desastres” que rondam o ser humano.

Verifica-se, todavia, que a disposição para a busca e o combate, bem como a


consciência do risco, tornam-se mais evidentes quando a aventura do sujeito
poético funde-se com a experiência de Ulisses, do Minotauro e de Teseu. Do
primeiro, ele aprende a vontade de navegar; a coragem de perder-se no mar e das
águas renascer; o desejo de retornar e a comunhão com a terra. Do Minotauro,
incorpora o instinto, a “fúria” – “A fúria reina intacta / E penetra comigo no
interior do mar”346 – e a duplicidade, pois esse ser mitológico está situado entre o
humano e o animal. De Teseu, assimila a determinação, a ousadia de olhar o
perigo de frente, a força, a capacidade de saber o momento certo de recuar e a
hora precisa de atacar o adversário – eis a “dança que se dança na frente de um
toiro” –, para, desse modo, sobreviver à ruína e sair vitorioso de dentro do
labirinto.
Ao aproximar-se de tais figuras, o eu lírico feminino afirma sua prontidão
para a luta, mas as personagens de Ariane e Dyonisos surgem para mostrar, outra
vez, que fazer frente não é apenas “arremeter”. O sujeito poético herda de Ariane
alguns traços que já encontrara em Penélope: a perspicácia; a tarefa de guiar e
orientar, guardando um centro de referência para si e para os outros; a espera e,
finalmente, a vocação para o renascimento e a boda. A alegria e a ligação com a
natureza, ele absorve de Dyonisos.
Esse breve levantamento indica que as qualidades de que o eu-lírico é
impregnado, ao confundir-se com as diferentes personagens mitológicas, são as
mesmas que ele outorga a si próprio no final do texto intitulado “Enquanto longe
divagas”347, no instante em que recupera sua condição de poeta. Chamam atenção
a diversidade e o expressivo número de predicados que compõem o inventário.
Além disso, cabe destacar que as sucessivas transformações experimentadas pelo
eu-lírico ao longo da obra de Sophia Andresen, e em alguns casos dentro de um
único texto, revelam um fenômeno que não é episódico na poesia da autora.

Convém, ainda, salientar que unir-se a Dyonisos e refazer o caminho


daqueles que celebraram uma aliança com o divino é o modo que o sujeito poético
achou de virar-se para o exterior e de confundir-se com as coisas, que, por vezes,
recebem a visita súbita e fugaz dos deuses. Veja-se, no poema "O rei de Ítaca" o
elemento que chama a atenção da escritora nas atitudes de Ulisses e que garantem
a ele a ligação com o mundo, com a terra:

346
Ibid, p. 147.
347
Ibid, pp. 202-203.
A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco


E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.348

Esse mesmo saber, a autora encontra numa atividade semelhante,


mencionada no poema "Esteira e cesto":

No entrançar de cestos ou de esteira


Há um saber que vive e não desterra
Como se o tecedor a si próprio se tecesse
E não entrançasse unicamente esteira e cesto

Mas seu humano casamento com a terra. 349

O eu lírico, que diz acrescentar-se de tudo quanto vê350, alcança a unidade


por meio da diversidade. Converte-se, assim, num ser multiforme e, por isso
mesmo, mais preparado para entrar no labirinto e debelar o Minotauro, algo
necessário, uma vez que o “paraíso terrestre” percebido pela escritora não existe
sob a forma de eternidade, e a iniciativa de conquistá-lo ou fabricá-lo compete a
cada um. A procura do reino é, portanto, uma constante e as ameaças estão sempre
presentes desde que “se apagaram / Os antigos deuses sol no interior das
coisas”.351

Se Odysseus-Persona perde-se nos labirintos da escrita, a Penélope que fala


na obra da escritora entrega-se, em várias circunstâncias, ao mar e, às vezes, a
suas próprias divagações. Destaca-se, ainda, o fato de Sophia Andresen oferecer a
Pessoa não apenas a acolhida e a possibilidade de integração. Ela, a exemplo do
que ocorre com o criador de heterônimos, não está a salvo das divisões e, por isso,
em certos momentos, quando se aproxima de Pessoa, comunga do sofrimento e da
sensação de desamparo que o afrontam.

348
Ibid, p. 209.
349
Ibid, p. 208.
350
Ibid, p. 89.
351
Ibid, pp. 70-71.
Fernando Martinho comenta o diálogo que Sophia Andresen estabelece com
Pessoa e afirma que “um poeta quando cita os outros é a si próprio, às suas
obsessões, ao sentido da sua busca, que muitas vezes, afinal, cita”. Na leitura de
“Cíclades”, o crítico verifica que a mesma autora que, “no princípio conhecera a
harmonia, o esplendor, e neles se reconhecera e extasiara como os deuses da sua
Grécia ideal na sua própria ‘imagem’ se extasiavam, vem a experimentar a cisão,
a ter o conhecimento da dor e da desarmonia”. Ela, tal como Pessoa, “constata o
‘crepúsculo’, o apagamento dos ‘deuses.’”352

Percebe-se, entretanto, que, se as obsessões dos dois poetas guardam


algumas semelhanças, o modo de reagir encontrado por Sophia Andresen é
diferente daquele que foi adotado pelo criador de heterônimos. Por isso, ela afirma
que teve "uma guerra com o Pessoa", como se verá logo a seguir, contrariando –
ou, quem sabe, complementando – o pensamento de Eduardo Lourenço, que vê
nessa aproximação apenas a "disponibilidade maternal" da escritora. A autora,
tendo a exata consciência de que habita um mundo dividido, nunca deixa de
caminhar para a “única unidade.”353 A despersonalização é, nos seus textos, o
modo de atingir a harmonia num mundo sem deuses. Contudo, se tal
procedimento é o mesmo praticado por Pessoa, a natureza do fenômeno e suas
conseqüências são distintas nas obras dos dois escritores. Miguel Serras Pereira
explica que, “enquanto Pessoa multiplica os eus e as máscaras, na voz de Sophia,
[...] o eu supera a repetição e os mapas do já sido e despersonaliza-se, para se
reunir, ‘no um da boda’, à vaga incessante onde o real é excesso de si próprio”. Na
autora, “a voz se expande e impessoaliza em autocriação do mundo”,
reencarnando sempre, na medida em que se estabelece uma “dimensão conjuntiva
de sujeito e objeto, do devir e permanecer do universo”. Em Pessoa, “os excessos
e a indeterminação da subjectividade levam [...] à invenção repetida de outros
eus”.354

352
MARTINHO, 1982, p. 27.
353
ANDRESEN, 1990, p. 46.
354
PEREIRA, 1992, p. 6.
Como define Sophia Andresen, numa entrevista em que nega a suposta
influência do poeta sobre o seu trabalho, em Fernando Pessoa “o jogo da
despersonalização” é “diferente”; é “uma viagem sem volta”. A autora declara
que, quando começou a ler os textos de Pessoa, “já tinha formado ou elaborado
uma maneira de escrever”, e conclui: “O Pessoa deslumbrou-me mas não foi uma
influência. Tive uma guerra com o Pessoa, digamos assim. Por isso é que escrevi
vários poemas sobre ele. Para mim a arte é um espelho em que o artista vê o
mundo mas não se vê a si próprio.355

A declaração de Sophia Andresen sobre a sua arte é corroborada pelo poeta e


crítico português Fernando Pinto do Amaral, que assim se manifesta sobre a
poesia da autora:
Paralelamente a todas as estéticas da recusa e da contestação
que terão marcado no nosso século a chamada Modernidade –
arrastando consigo uma profunda consciência da arte como
ruptura e anunciando mesmo a sua morte – persistiu uma outra
atitude que talvez pudéssemos designar por um retorno ao
essencial. No caso de alguma poesia, essa exigência prescinde
dos labirintos mais ou menos dilacerados de uma certa tradição
subjectivista ou interiorizante, conduzindo, em vez disso, a uma
percepção assombrada e ao mesmo tempo lúcida de um mundo
reconciliado com a sua verdade primeira. 356

Se Sophia Andresen, como escritora, busca na poesia o "retorno ao


essencial", é, talvez, porque esse retorno lhe foi propiciado ainda na infância, num
momento em que podia assumir apenas a condição de ouvinte e recitadora de
poemas. Em “Arte Poética V”, a autora inscreve uma das experiências mais
remotas de que se lembra no que diz respeito a seu contato com a literatura. O
texto fala da menina que descobriu o poema antes de ter aprendido a ler e que,
dessa forma, começou a preparar-se para ser uma leitora permanentemente ligada
na palavra oral e uma escritora sempre em busca da imanência:

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de


cor um antigo poema tradicional português, chamado “Nau
355
VASCONCELOS, 1991, p. 11.
356
AMARAL, 1989: 11.
Catarineta”. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a
sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.

Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram
escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao
universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste
mundo dito por ele próprio.

Pensava também que, se conseguisse ficar completamente


imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu
conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha
em si.357

Anos depois, experiências como essa iriam tornar-se o fundamento do seu


processo de criação literária. A autora conta que, durante toda a vida, tentou
escrever esse “poema imanente”, e que aqueles momentos em silêncio, no jardim,
ensinaram-lhe que não há poesia em silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a
despersonalização. Em outro texto que também leva o nome de “Arte poética”
refere-se a sua dicção da seguinte forma:

A dicção não implica estar alegre ou triste


Mas dar minha voz à imanência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão.358

Além disso, a leitora que recitava os poemas alheios, dá origem à autora


para quem a poesia é um “encontro com as vozes e as imagens”, uma vez que
esses elementos lhe facultam a “participação no real”. Para ela, o poema fala de
“uma vida concreta” – e não de “uma vida ideal” –, propiciando a convivência
com os mais diversos sinais, não raro captados por meio da contemplação ou da
escuta: “ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra
dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração
da noite, perfume da tília e do orégão.” 359 Sophia Andresen comenta que tais
convicções se evidenciam e fortalecem na medida em que lê e/ou aprecia obras de

357
ANDRESEN, 1991b, p. 349.
358
ANDRESEN, 1999, p. 8.
359
ANDRESEN, 1991b, p. 95.
outros artistas. No contato com esses parceiros, ela identifica e define com
precisão suas próprias escolhas e o seu modo peculiar de perceber as coisas. No
texto sem título que abre o primeiro volume de sua Obra poética, a escritora
relata:

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente


do mar dentro do qual está, poisada em cima duma mesa, uma
maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da
maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não
era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria
presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros
artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar.
Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse
esplendor da presença das coisas. E também a reconheci,
intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Sousa
Cardoso.360

Atenta ao papel relevante desempenhado pela imagem e pelo som na arte


de outros indivíduos, Sophia Andresen também reconhece a importância que a
visão, de um lado, e a audição e o canto, de outro, adquirem em suas próprias
composições. Tais elementos já se fazem presentes na primeira etapa do processo
criativo da autora – o momento que precede e anuncia a escrita dos textos. Em
“Arte Poética IV”, Sophia Andresen revela que, em determinadas ocasiões, “surge
não um poema mas um desejo de escrever, um ‘estado de escrita’. Há uma aguda
sensação de plasticidade e um vazio, como num palco antes de entrar a bailarina”.
Além disso, estabelece-se, nessas situações, “uma espécie de jogo com o
desconhecido, o ‘in-dito’, a possibilidade”. Então, o “branco do papel torna-se
hipnótico”, provocando na escritora uma reação semelhante à que ela esboça
quando atraída pelas imagens que alguns artistas produzem. Ainda em “Arte
Poética IV”, Sophia Andresen revela que escrever, para si, consiste em ouvir o
poema, em deixar que este “se diga por si, sem intervenção minha (ou sem
intervenção que eu veja), como quem segue um ditado.”361

360
ANDRESEN, 1990, p. 7.
361
ANDRESEN, 1991b, pp. 167-168.
O texto intitulado “Regressarei” sugere que o poema se parece com o
palco de um teatro, invadido pelo som e a luminosidade. A esse lugar o eu lírico
retorna para “buscar obstinada a substância de tudo / E gritar de paixão sob mil
luzes acesas.”362 Em outro texto363, chama de “canto” a poesia que pede à Musa. O
nome de tal entidade é empregado pelos antigos para responder “como, onde e por
quem“ é feito o poema, conforme esclarece a autora em “Arte Poética IV”. Sophia
Andresen adverte que essa não é a única forma de referir-se ao fenômeno e lembra
que alguns falam de “subconsciente”. Ela imita os antigos, mas confessa que é
complicado nomear o que “não distingue bem”. “É-me difícil, talvez impossível,
distinguir se o poema é feito por mim, em zonas nebulosas de mim, ou se é feito
em mim por aquilo que em mim se inscreve”, diz a escritora.364

Talvez a despersonalização – assim como o apego às imagens e aos sons –


seja não apenas uma fonte para o tipo de escrita que a autora pratica, mas também
um ponto de partida ou estímulo para uma determinada espécie de recepção.
Quem sabe a “palavra alada impessoal”, que foi dita pela poeta e que ela
reconhece “por não ser já sua”365, possa transformar-se numa nova convocação ao
leitor, já atraído pelo canto e as aparições que pulsam na obra de Sophia
Andresen. É provável que, diante da despersonalização que marca os poemas da
escritora, o destinatário se veja instigado a instalar-se, dentro do âmbito textual,
no intervalo aberto por ela, onde poderá encontrar não um sujeito que se confessa,
mas um espaço de atenção, aquele "esplendor da presença das coisas" que a autora
percebeu no mundo exterior e na obra de outros artistas.

Referências

AMARAL, Fernando Pinto do. Sophia: a luz sem mancha do primeiro dia. Jornal
de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, p. 11, 1º ago. 1989.
362
Ibid, p. 228.
363
Ibid, pp. 102-103.
364
Ibid, pp. 166-169.
365
Ibid, p. 350.
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética I. Lisboa: Caminho, 1990.

_____. Obra poética II. Lisboa: Caminho, 1991a.

_____. Obra poética III. Lisboa: Caminho, 1991b.

_____. O búzio de Cós e outros poemas. 3. ed. Lisboa: Caminho, 1999.

LOPES, Silvina Rodrigues. Apresentação crítica. Em: ___. (Org.). Poesia de


Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Comunicação, 1990. p. 11-48.

LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. Em: ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner.


Antologia. Lisboa: Moraes Editores, 1975. p. I-VII.

MARTINHO, Fernando, J. B. Sophia lê Pessoa. Persona, Porto, n. 7, p. 26-29,


1982.

PEREIRA, Miguel Serras. O testemunho poético de Sophia. Jornal de Letras,


Artes e Idéias, Lisboa, p. 6, 10/16 mar.1992.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins


Fontes, 1990.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

VASCONCELOS, José Carlos de. Sophia: a luz dos versos. Jornal de Letras,
Artes e Idéias, Lisboa, p. 8-11, 25 jun. 1991.
ANDRÉE CHEDID E A METAPOESIA:
REFLEXÕES SOBRE A CRIAÇÃO POÉTICA

Daniela Lindenmeyer KUNZE

Introdução

Este trabalho tem como objetivo revelar e analisar a poética da autora


francófona Andrée Chedid através de alguns de seus poemas 366 dedicados à
análise da poesia e da criação poética – aqui entendidos como metapoemas. A
obra poética desta escritora destaca-se no contexto literário francófono
contemporâneo por algumas características temáticas e formais, entre elas,
justamente, a preocupação com o fazer poético, evidenciada por seus muitos
metapoemas. A poesia, teorizada, questionada, analisada, se faz presente em todos
os seus livros.

Para chegar ao cabo deste objetivo, este estudo partirá de alguns


metapoemas de Andrée Chedid para ir ao encontro de textos teóricos sobre poesia
e criação poética escritos igualmente por poetas. Estes poetas são Paul Valéry e
Pierre Reverdy, cujas reflexões teóricas, parecem, muitas vezes, aproximar-se dos
conceitos e das definições expostos nos poemas de Chedid.

Alguns poetas aventuram-se a descrever a poesia em textos teóricos;


outros fazem destas reflexões poemas. Valéry em Poésie et pensée abstraite367 e
Reverdy em Cette émotion appelée poésie, Circonstances de la poésie e La
fonction poétique368 expõem suas definições de poesia e suas concepções do fazer
poético e do poeta, enquanto Andrée Chedid, por sua vez, transforma estas
reflexões em material poético para uma das principais vertentes de sua poesia.

366
Todos os poemas de Andrée Chedid utilizados neste trabalho possuem traduções minhas.
Essas traduções são literais, não levando em consideração o ritmo, mas somente o sentido, aqui
mais importante.
367
VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002.
368
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de
Cette émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.
Andrée Chedid é uma escritora francófona nascida no Egito em 1920 e
morta em 2011 em Paris. Desde cedo, escolheu o francês como língua de
expressão artística e de criação literária. Aos 26 anos, instalou-se em Paris e,
nessa cidade, escreveu quase toda a sua obra poética.

Neste artigo, pretendo, primeiramente, apresentar uma visão geral da obra


poética desta autora para, num segundo momento, consagrar-me à sua poética,
revelada pelas reflexões sobre sua obra – e a poesia de uma maneira geral –
presentes em seus metapoemas.

A obra poética de Andrée Chedid

A autora começa a escrever na juventude e, aos 18 anos, publica seus


primeiros poemas ainda no Egito. Desde cedo, adota a língua francesa como
língua de criação literária e, em Paris, começa a explorar outros gêneros,
escrevendo inúmeros romances, novelas e peças de teatro. Seu primeiro livro de
poemas em francês foi publicado em 1948, em Paris. Ela conta com 21 livros de
poemas publicados até agora, sendo o último em 2010, a menos de um ano de sua
morte. Atualmente, ela ocupa um lugar privilegiado entre os autores francófonos
contemporâneos pela riqueza e pela diversidade da sua obra. Suas numerosas
publicações, tanto em verso quanto em prosa, valeram-lhe importantes prêmios
literários como o Prix de l'Académie Mallarmé (1976), o Grand Prix de la Poésie
de la Société des Gens de Lettres (1990), o Prix Paul Morand de l'Académie
Française (1994), o Prix Goncourt de la poésie (2002) pelo conjunto de sua obra
poética, entre outros.

No estudo de sua produção poética, evidencia-se, de imediato, a presença


de duas temáticas dominantes: a metapoesia e a interculturalidade. Andrée Chedid
representa uma mescla de culturas formadoras da própria francofonia: filha de
pais libaneses, nascida no Egito e educada em escolas francesas, ela escolhe o
francês como língua de expressão artística.

A cultura francesa domina sua formação intelectual, assim como a de


muitos egípcios de sua geração. Desde os primeiros anos escolares, ela frequenta
internatos franceses, e sua formação acadêmica oscila entre a francesa e a inglesa.
Sua família encarna uma classe social egípcia privilegiada voltada principalmente
para a França. Sua formação afetiva também é fortemente influenciada pela
cultura e pela língua francesas, representadas por uma mãe extremamente
apaixonada pela França, que vive no Egito como se estivesse em Paris. Andrée
Chedid comenta, em uma entrevista publicada no livro Entre Nil et Seine369, a
importância que essa paixão materna exerceu em sua formação e em suas escolhas
futuras e o quanto ela tornou quase natural essa escolha pela língua francesa e por
Paris como cidade de exílio.

Esta multiculturalidade se reflete em sua criação através de nuances


culturais diversas que se combinam e se entrelaçam de maneira harmônica e
igualitária para formar algo novo, produto desta gênese intercultural. Assim, Nilo
e Sena se cruzam e se encontram em muitos de seus romances e poemas, seja na
escolha de personagens e cenários, seja no ritmo e nas tonalidades que ganham
seus poemas. Suas raízes libanesas e as lembranças de uma infância egípcia se
traduzem numa poética de fórmulas simples, mas genialmente combinadas,
luminosa e extremamente musical. O calor e as cores do Egito, assim como a
miséria e a Guerra do Líbano se misturam com a liberdade e magia da vida
parisiense. A própria autora evidencia o caráter intercultural de sua poética num
poema escrito para seu neto, o músico Matthieu Chedid:

Du Sphinx dans mon rimeur


Paris au fil du cœur
Du Nil dans mes veines
Dans mes artères coule la Seine.370

369
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris: Belfond,
2006.
370
CHEDID, Andrée. 2010, p.95 : “Esfinge no meu rimador/ Paris ao longo do coração/Nilo
em minhas veias/ Nas minhas artérias corre o Sena.”
Nesta mesma entrevista, a autora aborda também a outra temática
dominante na sua criação poética: a metapoesia, determinada pela importância
atribuída à definição da poesia e do fazer poético. Ela dedica uma boa parte desta
entrevista para a exposição de suas noções de poesia e para a explicação de seu
processo criativo tanto em verso quanto em prosa, demonstrando, assim, a
importância destas reflexões metapoéticas, que ganham um lugar privilegiado em
sua obra. Muitos de seus livros possuem títulos reveladores desta vontade de
definir e problematizar a criação poética como Textes pour un poème371 e Poèmes
pour un texte372, que a própria autora explica serem o reflexo de sua busca
criativa:

J'ai intitulé deux de mes livres Textes pour un poème et Poèmes


pour un texte, les deux titres sont des miroirs. Le premier veut
dire qu'on écrit des textes pour essayer d'atteindre le poème. Le
deuxième, c'est un peu pareil, on écrit des poèmes, encore et
encore, pour essayer d'atteindre un texte qui vous échappera
toujours. C'est un peu cela ma course.373

Outros títulos como Par-delà les mots374 e Rythmes375 evocam igualmente


essa tendência e reafirmam esta inclinação à produção metapoética em seus livros.

A metapoesia de Andrée Chedid

Poetas como Paul Valéry, Pierre Reverdy, Yves Bonnefoy, Octavio Paz ou
ainda Arthur Rimbaud possuem alguns textos em prosa problematizando questões
371
CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987.
372
CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991.
373
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond,
2006, p.76: “Intitulei dois de meus livros Textos para um poema e Poemas para um texto, os dois
títulos são espelhos. O primeiro quer dizer que escreve-se textos para tentar chegar ao poema. O
segundo, é um pouco semelhante, escreve-se poemas, mais e mais, para tentar chegar a um texto
que escapa-lhe sempre. Esta é, de certa maneira, minha corrida.”
374
Cf. CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.
375
Cf. CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.
teóricas sobre a poesia e a criação poética. Alguns analisam a poesia de maneira
geral; outros, sua própria criação ou seu projeto poético, como Rimbaud em suas
Lettres du Voyant376, cartas em que ele explicita seu processo criativo e seu
programa poético. Alguns destes textos são utilizados como instrumentos para o
estudo da teoria da literatura juntamente com textos de estudiosos que produzem
somente teoria e não são poetas.

Este trabalho pretende, propositalmente, deixar de lado os teóricos e


salientar a produção metaliterária dos poetas. Para chegar ao extremo desta busca,
pretende traçar o fazer poético através não somente de artigos teóricos escritos por
poetas, mas também de poemas que fazem as vezes de textos teóricos, isto é, de
poemas que definem e ilustram a teoria da criação poética.

Muitos poetas, em todo o mundo, se inscrevem nessa tradição de uma


escritura em que poesia e metapoesia se confundem. Pode-se pensar em exemplos
próximos, em língua portuguesa, como Cecília Meireles, Ferreira Gullar ou
Fernando Pessoa. Porém, neste artigo, o propósito é partir mais longe
geograficamente, mas mais perto no tempo. Para tanto, ficaremos com a poeta
francófona contemporânea que mais utiliza este recurso em sua obra. Serão
apresentados e analisados poemas de Andrée Chedid nos quais sua poética é
explicitada, em que ela se faz, mais do que poeta, crítica da criação poética, como
salienta Jacques Izoard em seu livro dedicado à autora.

Il est significatif de constater qu'Andrée Chedid fait, en quelque


sorte, œuvre de critique à l'intérieur de ses propres textes, ou,
plus exactement, écrit le poème; sa surprise, en face des mots,
la fascine. Et cela donnera naissance, par la suite, plus
nettement, dans Visage Premier, à Terre et Poésie, une
succession de réflexions sur la poésie.377

376
Cf. LEUWERS, Daniel. Les lettres du voyant Rimbaud. Paris: Ellipses, 1998.
377
IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris: Seghers, 2004, pp. 32-33: “E importante constatar
que Andrée Chedid faz, de certa maneira, um trabalho de critica, no interior de seus próprios
textos, ou, mais precisamente, escreve o poema; sua surpresa, diante das palavras, a fascina. E
isso, dará nascimento, posteriormente, de maneira mais clara, no Visage Premier, em Terre et
Poésie, a uma sucessão de reflexões sobre a poesia.”
Pode-se constatar que a metapoesia de Chedid aborda as mesmas noções
estudadas pela teoria da criação poética. Em alguns metapoemas, ela apresenta sua
definição de poesia e o que a compõe e, em outros, ela analisa o ato de criação, as
palavras e suas combinações e a condição do homem que se faz poeta. Estas
mesmas reflexões encontram-se nos ensaios de Valéry e de Reverdy.

Estes dois últimos escritores problematizam a definição da poesia e do


fazer poético de maneira muitas vezes similar, e suas idéias se cruzam e se
encontram, em muitos momentos, com as de Andrée Chedid. Valéry fala de “état
poétique”, e Reverdy, de “choc poétique”, para explicar o ato de criação poética.
Andrée Chedid, por sua vez, utiliza o que ela chama de “choc des mots” para
nomear um dos pilares de sua poética. No livro Entre Nil et Seine, ela afirma a
importância desse procedimento que aparece em muitos de seus poemas. “Mais il
y a aussi ‘le choc des mots’. Ceux qui ne sont pas faits pour être ensemble et qui,
tout d'un coup, parce qu'ils sont côte à côte, créent une luminosité, un éclat!”378

A afirmação de Chedid aproxima-se, de maneira significativa, do que


Reverdy chama de “la façon particulière de dire une chose très simple” 379, própria
do poema. Sua maneira particular de se expressar em poesia é, justamente, através
da criação destes choques entre as palavras.

Para ela, a força maior de sua poesia reside nesse “choc des mots”,
produzido pela combinação inusitada de palavras e de imagens e principal criador
de metáforas. Ela aplica este exercício poético nos poemas Poésie II, do livro
Visage Premier, citado por Izoard, e Poésie, do livro Par-delà les mots. Ela utiliza
este procedimento para definir a poesia com uma sucessão de imagens
contraditórias e inesperadas.

378
CHEDID, Andrée. Op. cit. 2006, p.68. “Mas existe também ‘o choque das palavras’. As
que não são feitas para estar juntas e que, de repente, por estarem lado a lado, criam uma
luminosidade, um brilho.”
379
REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi de Cette
émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003, p. 98. “A maneira
particular de dizer uma coisa muito simples.”
Poésie II

Ce qui est plus que le mot


mais que le mot délivre

Ce qui est périssable


mais qui renaît devant

Ce qui sombre à foison


mais sans cesse se bâtit

Ce qui nous passe toujours


mais dont nous sommes semence

Ce qui a nom de vie


mais que les jours écartent

Ce qui est évidence


mais qui reste en suspens. (Andrée Chedid, 1991, p.56)380

Poésie

Par-delà les mots


Elle sécrète la parole

En deçà du verbe
Elle questionne l'univers

380
CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991, p.56:

Poesia II

O que é mais que a palavra


Mas que a palavra liberta

O que é perecível
Mas que renasce adiante

O que desaparece em abundância


Mas que constantemente se constrói

O que sempre nos foge


Mas do qual somos semente

O que tem nome de vida


Mas que os dias afastam

O que é evidência
Mas continua em suspenso.
Au-delà des murailles
Elle nomme la liberté

En deçà de chaque flot


Elle révèle l'océan

Désertant les conquêtes


Elle promet l'équipée

Elle remue le souffle


Sacre l'humble outil

Elle assemble les fragments


Du visage dispersé

Et désigne le mystère
Qui demeure entier.381

Tanto Reverdy quanto Valéry salientam essa particular combinação e


associação de palavras, de sons e de imagens que diferenciam a poesia de todas as
outras linguagens.

381
CHEDID, Andrée. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995, p. 7:

Poesia

Além das palavras


Ela torna secreta a fala

Aquém do verbo
Ela questiona o universo

Além das muralhas


Ela nomeia a liberdade

Aquém de cada onda


Ela revela o oceano

Desertando as conquistas
Ela promete aventura

Ela remexe o sopro


Consagra o humilde instrumento

Ela junta os fragmentos


Do rosto disperso

Ela designa o mistério


Que continua inteiro.
Il faut donc se décider à dire que la poésie n'est intelligible à
l'esprit et sensible au cœur que sous la forme d'une certaine
combinaison de mots, en quoi elle se concrète, se précise, se
fixe et assume une réalité particulière qui la rend incomparable
à toute autre.382

Não parece ser por acaso que este “choc des mots” apareça frequentemente
em seus metapoemas que tentam definir a poesia. Eles expressam, no fundo, a
própria impressão de impossibilidade de definição que a poesia suscita. Esta
impressão aparece também, no texto de Valéry quando ele afirma: “entre Voix et
Pensée, entre la Pensée et la Voix, entre la Présence et l'Absence, oscille le
pendule poétique.”383 E o “pendule poétique” de Andrée Chedid oscila também
entre o presente e o ausente, entre o capturável e o invisível, entre o individual e o
coletivo, quando ela escreve o poema em prosa Visage Premier, do livro Poèmes
pour un texte:

Poésie, mouvement sans finale qui nous hante, comme un


rythme, depuis le début de temps. Chemin recommencé, avec
ses passerelles où se joignent rêve et quotidien, saisissable-
invisible, l’instant et l’ailleurs. Poésie qui construit le regard;
fait surgir, par bribes, du monde exigu, anecdotique, de nos
existences, ce fond des fonds de nous : VISAGE PREMIER.
‘Le JE de la poésie est à tous.’
La t erre est. Nous la touchons.
La poésie – évidence, mais qui reste en suspens – n’attend que
nous, pour devenir.384

382
REVERDY, Pierre. Op. cit. 2003, p. 114: “Faz-se necessário dizer que a poesia somente é
inteligível ao espírito e sensível ao coração sob a forma de uma certa combinação de palavras, na
qual ela se concretiza, se torna precisa, se fixa e assume uma realidade particular que a torna
incomparável a qualquer outra.”
383
VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002, p. 683 : “Entre Voz e
Pensamento, entre Pensamento e Voz, entre a Presença e a Ausência, oscila o pendulo poético.”
384
CHEDID, Andrée. Op. cit., 1991, p. 13:

Rosto primeiro
Com a paixão pelo concreto, através da prova da lucidez, reconhecer, renomear, celebrar
– sem renúncia – o Rosto. Porque ele é vida, ele é fonte. Porque ele é nós, na sua nudez, na raiz do
sensível; sem dúvida também na sua coerência e na sua significação.
Poesia, movimento sem final que nos assombra, como um ritmo, desde o começo dos
tempos. Caminho recomeçado, com suas passarelas onde se encontram sonho e cotidiano,
palpável-invisível, o instante e o longínquo. Poesia que constrói o olhar; faz surgir, por
fragmentos, do mundo exíguo, anedótico, de nossas existências, esse fundo do fundo de nós:
ROSTO PRIMEIRO.
‘O EU da poesia é para todos.’
A terra é. Nos a tocamos.
Neste poema, a autora compara a terra que se toca com a poesia suspensa
que só existe através do leitor. Reverdy afirma igualmente que é próprio do poema
deixar espaço para que o leitor crie suas próprias imagens. Para Valéry, assim
como para Chedid, o poeta tem a função de criar no leitor o “état poétique”, de
fazer sentir o que o poeta sente: “le JE de la poésie est à tous”.

Chedid transforma, assim, a fórmula inaugurada pelos românticos e


colocada em evidência por Rimbaud – “Je est un autre” – para mostrar que o poeta
não somente é outro, mas também todos e o universo inteiro. Sua tarefa é revelar
o que está presente em todos através de seus sentimentos e do seu olhar. A poesia
tem, para ela, esta grande força de identificação e revelação do outro através de si.

J'ai tenté de joindre ma terre, à la terre;


Les mots à la trame du silence;
Le large, au chant voilé.
Tenté de dire la rencontre possible,
Dégager le lieu de la nasse des refuges;
Fléchir la parole, jusqu'à la partager.385

Neste trecho do poema Démarche I, Chedid define uma poesia que deve
fundir sua realidade interior à realidade coletiva e ao próprio universo: “J'ai tenté
de joindre ma terre, à la terre”. A poesia é concebida, desta maneira, como o
espaço de encontro e de troca entre o eu do poeta e o eu de todos, como salienta
Judy Cochran no artigo Andrée Chedid, poète de présence et d'avenir: “le lieu-
poème étant pour cet auteur le lieu sacré où l'âme du poète se joint à l'âme de
l'univers.”386 Para tanto, o poeta de Chedid ganha um ar de profeta, de vidente, na
A poesia – evidência, mas que fica em suspenso – somente espera-nos, para tornar-se.”
385
CHEDID, Andrée. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987, p.21.
“Tentei juntar minha terra, a terra;
As palavras à trama do silêncio;
O alto mar, ao canto velado.
Le large, au chant voilé.
Tentei dizer o encontro possível,
Libertar o lugar da rede dos refúgios;
Curvar a palavra até dividi-la.”
386
COCHRAN, Judy (citado por GIRAULT, Jacques; LECHERBONNIER, Bernard (org.).
Andrée Chedid, Racines et liberté. Paris: L'harmattan, 2004, p. 110). “O lugar-poema é, para essa
autora, o lugar sagrado onde a alma do poeta se encontra com a alma do universo.”
medida em que seu olhar deve ser capaz de capturar o mundo: “Il faut au poète
une fenêtre sur l’inconnu, un espace que ne gouverne aucune structure rigide,
aucun dogme. Un regard qui embrasse de vastes et multiples horizons.”387

Outra tarefa do poeta, para Valéry, é suscitar no leitor “la sensation de


l'union intime entre la parole et l'esprit.”388 Seguindo esta mesma tendência,
Chedid problematiza, em alguns de seus metapoemas, a relação entre palavra e
sentimento e questiona os limites da linguagem, como neste trecho do poema
Épreuves du langage:

Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres.389

Duro é o trabalho do poeta, que deve buscar incessantemente a palavra


exata que transmita sensações e imagens, sons e ritmo. E esta é uma das
preocupações de Chedid, que aparece tanto em seus metapoemas quanto em sua
entrevista do livro Entre Nil et Seine:

[...] j'ai besoin aussi que les mots chantent, j'essaie de trouver
une musicalité. C'est essentiel dans la poésie. Je suis également
attentive à ne pas brouiller le sens. Il faut à la fois dire quelque
chose, composer une musique, des mots justes, inventer aussi
de nouveaux moyens d'expression.390

Em seus poemas, o ritmo e a musicalidade estão extremamente presentes.


Nos metapoemas, esta predileção pela música aparece, muitas vezes, com
evocações ao ritmo da respiração, do fôlego. Assim, a palavra “souffle” se repete

387
CHEDID, Andrée. Au coeur du coeur. Paris: Librio, 2010, p. 26: “É necessário ao poeta
uma janela sobre o desconhecido, um espaço que não governe nenhuma estrutura rígida, nenhum
dogma. Um olhar que abarque vastos e múltiplos horizontes.”
388
VALÉRY, Paul. Op. Cit., 2002, p.683. “A sensação de união intima entre a palavra e
espírito.”
389
CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, p. 29. “Que alfabeto / Leva em conta
/ Nossas clarezas e também nossas sombras.”
390
CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond,
2006, p. 67: “Necessito também que as palavras cantem, tento achar uma musicalidade. É essencial
na poesia. Sou igualmente atenta à não confundir o sentido. E necessário, ao mesmo tempo dizer
alguma coisa e compor uma musica, as palavras justas, inventar também novos meios de
expressão.”
em certos metapoemas, como em Poésie, de 1995, no qual ele é definido como
“l'humble outil” da poesia.

A Arte Poética de Andrée Chedid

Entre os inúmeros metapoemas presentes na obra da autora, dois poemas


mais longos apresentam uma brilhante síntese de todas as concepções de poesia e
do projeto poético de Chedid citados neste trabalho. Estes poemas são
considerados, por alguns estudiosos da obra da poeta, uma verdadeira Arte
Poética – tal qual a de Aristóteles ou de Boileau –, contendo uma reflexão
completa sobre a criação poética. Um destes poemas e, a meu ver, o mais
significativo, é Épreuves du langage, do livro Rythmes:

Épreuves du langage

D'où vient le son


qui nous ébranle
Où va le sens
Qui se dérobe
D'où vient le mot
Qui libère
Où va le chant
Qui nous entraîne
D'où surgit la parole
Qui comble le vide
Quel est le signe
Qui fauche le temps?

II

Quel alphabet
Prend en compte
Nos clartés comme nos ombres
Quel langage
Raboté par nos riens
Ameute le souffle
Quel désir
Devient cadences
Images métamorphoses
Quel cri
Se ramifie
Pour reverdir ailleurs
Quel poème
Fructifie
Pour se dire autrement?

III

Issu de notre chair


Tissé de siècles
Et d'océans
Quel verbe
Criblera nos murs
Sondera nos puits
Modèlera nos saisons?

Avec quels mots


Saisir les miettes
Du mystère
Qui nous enchâsse
Ou de l'énigme
Qui nous surprend?

IV

Que veut la Poésie


Qui dit
Sans vraiment dire
Qui dévoie la parole
Et multiplie l'horizon

Que cherche-t-elle
Devant les grilles
De l'indicible
Dont nous sommes
Fleur et racine
Mais jamais ne posséderons?

Ainsi chemine
Le langage
De terre en terre
De voix en voix
Ainsi nous devance
Le poème
Plus tenace que la soif
Plus affranchi que le vent!391
Neste metapoema, são retomadas e aplicadas todas as definições, todas as
regras e todos os questionamentos presentes nos demais metapoemas da autora. A
poeta trabalha com o choque de palavras, contrastando imagens e fazendo

391
CHEDID, Andrée. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003, pp. 29-33:

Provas da linguagem
I

D'où vient le son


Qui nous ébranle
Où va le sens
Qui se dérobe
D'où vient le mot
Qui libère
Où va le chant
Qui nous entraîne
D'où surgit la parole
Qui comble le vide
Quel est le signe
Qui fauche le temps?

II

Que alfabeto
Leva em conta
Nossas clarezas e também nossas sombras
Que linguagem
Polida por nossas ausências
Agita a respiração
Que desejo
Torna-se cadência
Imagens metamorfoses
Que grito
Ramifica-se
Para verdejar em outro lugar
Que poema
Frutifica
Para dizer-se de outra maneira?

III

Issu de notre chair


Tissé de siècles
Et d'océans
Quel verbe
Criblera nos murs
associações inesperadas. Voltam à tona os questionamentos sobre a linguagem da
poesia, capaz de dizer o indizível, sobre o ritmo e o movimento marcados pela
respiração e pelo vento. A necessidade de escrever é reafirmada, e esta poesia que
transborda todos os limites e multiplica os horizontes é evocada novamente. A
palavra do poeta que liberta e seu “grito” que revela no outro a sua força conferem
ao poema esta maneira particular de sugerir e de se multiplicar no leitor. O verbo
poético que modela o mundo e revela o mistério, o enigma dos seres e das coisas
do universo, é novamente preconizado.

Sondera nos puits


Modèlera nos saisons?

Avec quels mots


Saisir les miettes
Du mystère
Qui nous enchâsse
Ou de l'énigme
Qui nous surprend?

IV

O que quer a Poesia


Que diz
Sem realmente dizer
Que perverte a palavra
E multiplica o horizonte

O que procura ela


Diante das grades
Do indizível
Do qual somos
Flor e raiz
Mas jamais possuiremos?

Assim caminha
A linguagem
De terra em terra
De voz em voz

Assim nos ultrapassa


O poema
Mais tenaz que a sede
Mais livre que o vento!
Enfim, o “canto”, a “carne”, a “palavra”, o “grito”, a “respiração”, a
“cadência”, a “imagem”, a “metamorfose”, o “mistério” e o “desejo”, entre outras
imagens fortes e significativas, marcam e revelam a Arte Poética de Andrée
Chedid: a metapoesia em sua manifestação, mais clara, mas, ao mesmo tempo,
mais sugestiva, que consegue entrelaçar de maneira genial a teoria literária e o ato
criativo.

Conclusão

Andrée Chedid fixa, com sua produção metapoética, um projeto de criação


que ela consegue levar a cabo perfeitamente. Ela define a poética de uma maneira
geral, mas define também a sua poesia de forma extremamente precisa. Ela
estabelece regras e define parâmetros que regem toda a sua criação e revelam o
essencial da poesia.

Esta riqueza e esta exatidão metapoéticas justificam o estudo do conjunto


de metapoemas da autora no contexto literário desta produção, ao lado de outros
poetas que igualmente o exploraram, mas também no contexto da teoria da
literatura, como ilustração destes conceitos revelados sob forma de verso. Andrée
Chedid insere-se, desta maneira, nesta linhagem de poetas que pensam e refletem
sobre sua própria obra e sobre o ato criativo em geral.

Este trabalho espera, desta forma, ter conseguido revelar sua importância,
assim como a riqueza de noções e de imagens que formam a sua Arte Poética e
que a definem-se, de certa maneira, como a ilustração desta poética
contemporânea que rompe fronteiras geográficas em busca de noções universais.

Referências
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CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica


literária. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CHEDID, Andrée. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris: Flammarion, 1991.

_____. Textes pour un poème (1949-1970). Paris: Flammarion, 1987.

_____. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.

_____. Territoires du souffle. Paris: Flammarion, 1999.

_____. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.

_____. Entre Nil et Seine. Entretiens avec Brigitte Kernel. Paris : Belfond, 2006.

_____. Au coeur du coeur. Paris: Librio, 2010.

CHEDID, Andrée; CHEDID Louis-Antoine. Le coeur demeure. Paris: Stock,


1999.

DECAUDIN, Michel; ROY, Claude. Anthologie de la poésie française du XXe


siècle, T1. Paris: Gallimard, 2000.

GIRAULT, Jacques; LECHERBONNIER, Bernard (org.). Andrée Chedid,


Racines et liberté. Paris: L'harmattan, 2004.

IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris: Seghers, 2004.

LEUWERS, Daniel. Les lettres du voyant Rimbaud. Paris: Ellipses, 1998.

PAZ, Octavio. El arco y la lira. Mexico D. F.: Fondo de cultura economica, 1986.

REVERDY, Pierre. Au soleil du plafond, La liberté des mers, Sable mouvant suivi
de Cette émotion appelée poésie et autres essais. Paris: Gallimard, 2003.

SEMPRUN, Jorge et PARA, Jean-Baptiste. Anthologie de la poésie française du


XXe siècle, T2. Paris: Gallimard, 2000.

VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard, 2002.

UM GESTO POÉTICO:
A ALQUIMIA EM PARACELSO E RIMBAUD
Estevan de Negreiros KETZER

Mas noto que meu espírito adormece. Se estivesse acordado


sempre, a partir deste momento, chegaríamos logo à verdade.

Rimbaud

O que é que o homem descobre por si ou através de si mesmo?


Nem um paninho suficiente para fazer calças.

Paracelso

O que está embaixo é como o que está em cima.


O que está em cima é como o que está embaixo para realizar os
milagres de uma coisa só.

Tabula smaragdina

Introdução: criações poéticas, criações alquímicas

Sobre um alpendre de ranhuras intermináveis um homem em pé observa


aquelas colunas jônias do jardim como se ali tivesse vivido sua infinita infância.
As cores em tons pastéis nunca mais brilharão como antes. É o homem que ganha
ainda mais ao deixar o vento outonal sobre a face e dele retirar o próximo passo
para a aurora. Um gole de vinho antes do trabalho com o mundo, manuais de
ervas medicinais, e de uma medicina dos astros. Essa velha memória sempre
impinge a degustação elaborada das substâncias mais finas, movimento superficial
que invade o verbo só ter o gosto de saber o que é, o que é... Mas o vento também
traz a solidão e diante do mármore antigo do alpendre sua resposta é o silêncio. É
aí que deve advir a primeira experiência: abrir os braços e cantar um hino novo
aprendido com as gotas d’água ali na antiga fonte do jardim. Colheu as flores e
captou o orvalho. Deu ódio a todas as palavras e queimou o enxofre para dar
início ao tratamento. Fez assim, até a tingir a exaustão da mente torturada pelo
cansaço. Será suficiente para ter o ouro ou a vida eterna? Serão tais argumentos
que validam a busca filosofal?
A poética encontra a alquimia, seus movimentos não são simples e levam a
uma importante meditação que ainda deixa dúvidas: será que ambas ainda tem
algo para dizer em tempos cheios de mercados integrados? Dúvida essa que como
veremos tem muito a ver com a poética de Arthur Rimbaud e a alquimia do
médico medieval Paracelso (Philippus Aureolus Bombast Von Hohenheim).
Ambos, em eras diferentes, e com propostas diferentes, se propuseram a pensar
elementos essenciais da vida humana que precisavam ser considerados para
romperem com dogmas e superficialidades. Essa autenticidade no trabalho de
ambos é uma marca importante de uma arte que na dificuldade de encontrar
explicações exteriores, passa a um trabalho na direção da interioridade, sem se
restringir a considerações psicológicas, tendo em vista que na obra de ambos
parece haver algo a mais que excede a vida meramente individual, conforme
coloca Bachelard392 ao se referir aos obstáculos do conhecimento científico e da
criação poética. Acerca da universalidade da compreensão dos símbolos
alquímicos e da obra poética Jung393 denominará arquétipos do inconsciente
coletivo ao trabalho assim dirigido para as grandes ideias que envolvem o sentido
simbólico subjacente.

Aqui a análise do poético não se restringirá ao fazer da poesia


propriamente dita, mas minha proposta é examinar a ocorrência da poética diante
da modernidade e das diferenças que são reconhecidas sobre a subjetividade, uma
vez escrita e editada, não se deve esquecer o valor do pensamento, do fazer pensar
sobre o registro fônico e de sensibilidade encontrado na prosa poética de Rimbaud
Uma temporada no inferno, escrito em 1873. A relação de Rimbaud com a
alquimia é por demais estreita, portanto o livro de Paracelso A Chave da Alquimia
também será pensado na possibilidade de que a alquimia problematize outra
interpretação do sentido poético encontrado em Rimbaud.

Uma poética da modernidade

392
BACHELARD, 2009; 1999; 1996.
393
JUNG, 1985.
A poesia que marca a segunda metade do século XIX na França vive ainda
sobre o primado da obra Charles Baudelaire, Flores do Mal, de 1857. Nesse livro,
Stéphane Mallarmé, em 1865, qualifica a obra citada como “mergulho cheio de
prazer nessas tão queridas páginas.”394 Mais importante do que a crítica da época,
mesmo com as considerações de Mallarmé, é enxergarmos em Baudelaire 395 o
precursor de um ambivalente movimento entre o “eterno e o transitório”. Sendo
assim, a arte na Modernidade teria ambos os caráteres que compõem em um só
escopo os opostos e o homem que daí surge terá de viver com essa insegurança de
ter de se deparar na unidade das coisas com as variedades. Isso fica mais evidente
quando analisamos alguns de seus poemas contidos em As Flores do Mal, como
no exemplo de A Beleza:

Eu sou bela, ó mortais! Como um sonho de pedra,


E meu seio, onde cada um se fere um pouco,
É feito para inspirar ao poeta um amor louco
Eterno e mudo como Fedra.396

Que espécie de beleza é essa? Tão recolhida na sua dor que não é capaz de
sair de um mundo feito para si própria e que só tem serventia quando vista muito
de fora. É beleza que está contida na matéria? Então a beleza mesmo não fala, não
tem tanta vida ou graça. Sua serventia é muito diferente da concepção que
anteriormente se pensava saber dela. A poesia de Baudelaire fala pela primeira
vez de uma incompatibilidade entre sua forma e a vida humana. Mesmo na razão
mais arguta é possível que ela se perca, mas se perder logo voltará com nova
aparência.

Os poetas, diante minhas graves atitudes,


Que pareço copiar de monumentos semelhantes,
Gastarão os seus dias em austeras virtudes; 397

394
BAUDELAIRE, 1995, p. 1003.
395
MALLARMÉ, 2011, p. 25.
396
BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
397
BAUDELAIRE, 2003, p. 20.
Se aos poetas é permitido falar de tudo, esses pagarão com o preço de
crerem na palavra, só verão a si mesmos, aí reside a verdadeira beleza que está de
fora, na claridade de dentro, sem explicação qualquer. E aí creio que reside a
forma do estudo de Baudelaire pelo seu incipiente simbolismo: o símbolo interior
possui ressonância, e reverbera ante qualquer regime de igualdade ou eternidade.
Talvez o próprio autor já tenha se dado conta de que os costumes são impeditivos
para algo muito maior: a experiência moderna. Esta, uma vez na envergadura do
mundo, abre a incompletude humana para o mal-estar e a experiência inadvertida.
A obra começa a falar, quebrar o silêncio que possuía antes.

Não será também aí que Rimbaud parece tanto se esforçar? Em sua


correspondência a Paul Demeny, em 15 de maio de 1871, o poeta falará da busca
de todo o poeta a uma nova forma de contato com os sentidos. “Todas as formas
de amor, de sofrimento, de loucura; buscar-se a si, esgotar em si mesmo todos os
venenos, a fim de só lhes reter a quintessência.”398 Notamos aí o uso do termo
quintessência, linguagem empregada pelos alquimistas para falar acerca de um
outro elemento da natureza que não se restringiria aos já conhecidos terra, fogo,
água e ar. A busca desse quinto elemento sempre foi cercada de mistério em
grande parte da antiguidade. Por mais que notemos o quanto custa saber o que seja
esse elemento, parece com grande propriedade que os alquimistas investiram
muito tempo nessa busca, na verdade podemos inicialmente olhar com atenção
que os interesses dos alquimistas eram basicamente dois e se vertiam para o
mundo natural: 1) imortalidade do corpo; 2) transformação de chumbo em ouro.
Interesses relativamente físicos, como os que encontramos hoje nos cartazes de
auto-ajuda espalhados pela internet. Podemos pensar se ela se restringe a isso,
pois nossa constatação pode ser facilmente olhar para a alquimia como uma
tentativa suplementada pela proposta científica de fins do século XIX,
principalmente com a química atomística contemporânea, ou reclinar-nos sobre
ela para pensarmos como o homem pode se conhecer melhor.

398
RIMBAUD, 2009, p. 39.
Alquimia e poesia: vertentes da imagética

Não teriam os filósofos e os médicos feito a mesma coisa com objetivos


diferentes? Resta perguntar se os poetas não poderiam tentar também encontrar
aquilo que os proporcionaria mexerem com as palavras no nível da transformação,
da verdadeira transformação que só diz respeito a cada um. Dar vida ao símbolo,
sua linguagem primeira destituída de um representante formal e unívoco. Para
Jung,399 “verdadeiros e autênticos símbolos, isto é, tentativas de expressar alguma
coisa para a qual ainda não existe conceito verbal.” Nessa linguagem de difícil
acesso deve residir a verdadeira apreensão de algo extraordinário que não pode ser
banalizado com risco das pessoas perderem a importância. Jung estuda alquimia,
para poder considerar não somente seu descontentamento com o saber, mas para
que este o ajuda a saber algo do humano. Como psiquiatra e, portanto como
médico, ele olha para e enfermidade com os olhos de dúvida: não saber algo é um
importante começo. A poesia é também esse dissaber como crê Rimbaud e
dissaber inaugura também a alma universal de seu tempo, como coloca na carta a
Paul Demeny.

A arte eterna terá suas funções, já que os poetas serão cidadãos.


A Poesia não marcará mais o ritmo da ação; ela estará na frente.
Esses poetas virão! Quando for quebrada a servidão infinita da
mulher, quando ela viver por si mesma, quando o homem – até
então abominável – lhe tiver dado sua alforria, também ela será
poeta!400

E na força da mulher reside justamente o oposto do homem trazido à tona.


Utopia de que a poesia seja algo muito diverso na sua simplicidade. Gaston
Bachelard ao analisar os desenhos de alquimistas medievais, o Rosarium
Philosophorum, nota que os opostos vivem no mesmo psiquismo. O frasco de

399
JUNG, 1985, p. 59.
400
RIMBAUD, 2009, p. 40.
vidro, este uma invenção moderna, possui o ideal da união entre o Rei e a Rainha,
devaneio máximo que às “origens obscuras da vida.”401 Essa força poética das
imagens, algo que extrapola a mera acumulação do conhecimento em verdadeiro
ou falso. Para um alquimista o conhecimento está muito além disso. É conhecer
etapas psicológicas muito arcaicas, vestígios de impurezas que o enxofre não
dissolveu completamente.

E Rimbaud só incide em histórias de loucura, pois observa que seu eu


lírico já ousara ter coisas de que pudesse se orgulhar da beleza. Em um claro
diálogo com os poemas de Baudelaire, o poeta observa que esses valores são
efêmeros demais para saciarem os sentidos. A alquimia do verbo é inventiva, só
ela resolve os problemas de uma linguagem para bons moços: “Foi primeiro um
experimento. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava
vertigens.”402 Se acentua o caráter de uma arte que o poeta não sabe qual direção
tomar. Me parece essa a insatisfação primeira de toda a postura do bom poetar:
saber na sensibilidade dos sentidos.

401
Ibid, p. 75.
402
RIMBAUD, 2008, p. 65.
Essa crítica esta contida já nos problemas epistemológicos de Bachelard.
Em A formação do espírito científico a alquimia já coloca problemas básicos para
a formação de qualquer movimento: o conceitual é muito secundário, o desafio é
como poder descobrir a si mesmo diante de um laboratório. “[...] somos nós
mesmos, nossas surdas paixões, nossos desejos inconscientes, vamos estudar de
perto algumas fantasias referentes à matéria, tentar mostrar suas bases afetivas e o
dinamismo subjetivo.”403 Como será possível que as paixões particulares
influenciem em um laboratório? Bachelard investiga o posicionamento do
alquimista diante de sua experiência. Ele não reduz o problema a sua
impossibilidade técnica ou a inviabilidade dos resultados. Se assim ocorreu com o
experimento, o problema deve estar no próprio experimentador. A poesia não
estaria também aí inserida? Se um poema possui sua métrica bem feita, seu
encaixe e sonoridade, ainda assim ele pode não ser bom. Deve haver outra
substância, de disposição interna, para causar uma ruptura com a problemática do
mundo físico. Essa atribuição de autenticidade é extremamente simbólica para o
alquimista. “Como vai o alquimista purificar a matéria se não purificar primeiro a
própria alma?”404. Nesse trabalho em que o objeto e o sujeito estão plenamente
simbolizados parece ser necessário rever como a poética pode se fazer sentir
diante de um devaneio. Estranha zona que parece cruzar dois paradigmas muito
distintos: o do saber e o do sentir. Ambos já não podem mais dar conta da
epistemologia da modernidade, mas ambos ainda podem criar no humano, pois só
habitam o homem em sua alternativa imaginária complexa. Em a Psicanálise do
Fogo, Bachelard405 retoma esse valor do imaginário como alternativa a todo o
pensamento racional. “A ciência forma-se muito mais sobre uma experiência, e
são necessárias muitas experiências para se apagarem as brumas do sonho.” É o
ato subjetivo por excelência que pode possibilitar a descoberta do inédito. Assim é
o laboratório, um constante estar pronto sem nunca estar completamente. Não
deve ser essa a postura do poeta? “Nada de esperanças / Nem de recomeço.

403
BACHELARD, 1996, p. 57.
404
Ibid, p. 62.
405
BACHELARD, 1999, p. 34.
Ciência e paciência, / O suplício é certo.” 406 Então Rimbaud não nos dá garantia
nenhuma de sua ida ao inferno? Ao que tudo indica é dever do poeta fazer uma
visita lá e voltar para contar suas experiências.

Rimbaud e Paracelso: a medicina da palavra mágica

A velharia poética tinha boa parte na minha alquimia do verbo.


(...)

Em seguida, explicava meus sofismas mágicos com a


alucinação das palavras!

Acabei por considerar sagrada a desordem de meu espírito. 407

Mesmo que o desejo não se faça frente ao mundo material, este fica na
espera de que a próxima forma não esteja restrita a explicações fáceis, concretas
na exatidão torpe de palavras vagas que são explicitadas pelo seu uso cotidiano.
Limitações de ordem prática se impõe e elas devem dar lugar as imagens
bachelarianas que não se transformam em pensamentos, exigem um devir da
palavra acesa, como o fogo a queimar o composto químico e dar forma nova a
este. Assim é o trabalho do poeta no delírio das palavras, assim é “[...] o
alquimista, tão logo termina uma destilação, recomeça-a misturando de novo o
elixir e na matéria morta, o puro e o impuro, para que o elixir aprenda, por assim
dizer, a libertar-se de sua terra.”408 Um poeta, nessa acepção, não é um homem
inspirado, gênio como a velha crítica costumava dizer, mas sim demiurgo do
inacabado, esforço de oleiro sobre a argila. Muito esforço e uma percepção
objetiva são os elementos alquímicos elementares. “O amor é a primeira hipótese
científica para a reprodução objetiva do fogo”, nos diz Bachelard 409 sobre algo

406
RIMBAUD, 2008, p. 75.
407
Ibid, p. 69.
408
BACHELARD, 2008, p. 73.
409
BACHELARD, 1999, p. 37.
indispensável ao poeta e ao alquimista e que na figura da sexualidade eleva o
pensamento aos seus mais altos extertores da fricção, os fogos que nascem do
contato.

A poética se reclina sobre uma psicanálise muito primitiva, ainda por vir
da alma, repleta de interações simbólicas. Amor e fogo. Estes já dão mostras de
um desenvolvimento em relação ao outro, outro da palavra incandescente, outro
que olha no horizonte descontínuo de algo muito maior do que si e desperta no
segredo fundamental: “Porque Eu é um outro”410. A célebre frase de Rimbaud
indica algo a mais da composição que precisa ser pensado: essa forma de
alteridade não se dá de outro modo se não na percepção de uma realidade interna
que desperta, a outridade da razão. Por isso o romantismo não foi bem entendido
segundo Rimbaud. O amor por si só é superficial, mas esse estranhamento inicial,
princípio máximo de toda a mímesis, é o ponto forte dos poemas de Baudelaire.
“Para mim é evidente: assisto à eclosão de meu pensamento: eu a contemplo, eu a
escuto. Tiro uma nota ao violino: a sinfonia agita-se nas profundezas, ou ganha de
um salto a cena”411. A arte traz sempre algo a mais, o Outro do discurso, o
inconsciente freudiano aí também reside e dele se pode criar o que parece não ter
explicação. Esse Eu de Rimbaud já sabe ser o Eu do passado, o mesmo Eu do
Estado, concepção de que algo ficou no lugar para dar conta da identidade. O
poeta verifica um Eu que é transformação incessante quando desperto para essa
força inconsciente.

Não estará aí o trabalho de Paracelso com sua medicina fortemente


galgada na cura com fármacos? O pensamento de Paracelso olha para os astros
com fim a alertar os homens sobre tais pretensões. Era importante alertar as
pessoas de que os movimentos dos astros não mudam a vida das pessoas. 412 Sua
ideia de ciência parte para uma consideração altamente materialista por um lado e
altamente ontológica por outro: “[...] todos e cada um de nós levamos nossa

410
RIMBAUD, 2009, p. 38.
411
Ibid, p. 38.
412
PARACELSO, 1983.
própria razão de ser em nós mesmos.”413 Em seu método de analogia do
microcosmo com o mundo é que o homem pode compreender seu ser. O médico
suíço enxerga o horizonte de transformação do homem, todas as esferas que seu
corpo lhe pode proporcionar. Ele ruma para os fármacos e revolve em nomes
astrológicos as possibilidades da cura. São dos astros os conhecimentos de todos
os compostos. “O médico é como o fabricante de vidros. Ainda que tenha diante
de si um doente e diversos medicamentos à disposição falta-lhe a ciência e o
conhecimento das causas.”414 O médico não segue só seus instintos, assim como a
poeta não segue sua sensibilidade sem um estudo aprofundado das essências das
coisas – ou entidades como preferia Paracelso. “Através do exterior ele vê o
interior.”415 Haveria maior poética que imaginar o quanto o exterior mostra o
interior do homem? “Assim estamos no mesmo céu que se estende diante de
nossos olhos mas atrás dos olhos, por isso não o podemos ver.” 416 Talvez na voz
de Jung esteja a última grande compreensão dos mistérios sagrados que
configuraram as alternativas à ciência contemporânea propriamente dita. Esses
movimentos que a alquimia começa a unir entre a cabala hebraica, a filosofia
grega e a química árabe podem ser associados e trazer novamente a pergunta
sobre o que o saber pode proporcionar ao homem, se pode transformá-lo e
enriquecê-lo com algo surpreendente e que outrora não era conhecido. “Na
prática, isto significa que a filosofia se acha, de certa forma, oculta dentro da
matéria, podendo por isso também lá ser encontrada.”417 E a filosofia então passa a
ser algo que está tanto dentro quanto fora, tanto no mundo dos quatro elementos
quanto no mundo dos astros. Cabe a filosofia mostrar à matéria inferior sua
origem, podendo ser encontrada no homem, aquele que desbrava o interior das
matérias. A filosofia acaba possuindo propriedades mágicas de ligação entre os
elementos da matéria (terra e água) e os elementos astrais (fogo e ar).

413
Ibid, p. 56.
414
Ibid, p. 162.
415
PARACELSO, citado por JUNG, 1985, p. 18.
416
Ibid, p. 18.
417
Ibid, p. 19.
Mas o homem não deve esquecer que é o objeto que projeta para ele seu
sentido, demonstrando sua essência. E o que o homem pode compreender disso é
o seu próprio Archasius.418 Logo, a compreensão de Paracelso aqui se coloca
muito próxima da fenomenologia mais recente. Não será esta a mesma proposta
de Bachelard em seu A Poética do Devaneio, ao elevar o método fenomenológico
a entrar em contato com a consciência do próprio poeta? “A descrição dos
psicólogos pode, sem dúvida, fornecer documentos, mas o fenomenólogo deve
intervir para colocar esses documentos no eixo da intencionalidade.”419 Essa
consciência de criatividade não está solta e os esforços para que o devaneio seja
poético não podem restringir o homem a seus achados meramente psíquicos. Daí a
imaginação ser para o futuro, para o que ainda não se conhece e que o anterior,
mesmo com a restituição de seu sentido, não é capaz de dar conta. O sonho não
deveria ser encarado como o recalque do diurno, mas como a liberdade crescente
do enigma que traz à memória a vivacidade de um instante vivo.

Por vezes é esse esfacelamento do instante que Rimbaud traduz em forma


de poesia, dando vida à uma matéria no limiar de seu apagamento. “Minha saúde
ficou ameaçada, o terror vinha vindo. Caía em sonos de dias e, de pé, prosseguiam
os sonhos mais tristes. Estava maduro para o falecimento; por uma rota de
perigos, minha fraqueza me levava aos confins do mundo [...]”420. Daí também a
imaginação de um espírito do tempo (Zeitgeist) que não se consola com a vida de
sonhos cristalizados e bem delineados. O poeta ao entrar no inferno não volta o
mesmo, pois sua vida o levou para muito longe dos outros e da velha “moral”
cristã que tanto Nietzsche estava no fluxo batendo com um martelo. Também aqui
a filosofia quer ir mais além, quer falar da essência do homem que está
embriagado com uma aparência muito positivista. A poesia não pode aceitar isso,
nos diz Rimbaud, deve ser na figura da degradação: “A raça inferior cobriu tudo –
o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.” 421 Que raça inferior é esta?
418
Conforme Jung (1985) explica, o conceito de Archasius refere-se ao calor vital interno do
homem. É o espírito que no homem gera a digestão, assim como nos metais é necessário um forno
(chamado pelos alquimistas de Atanar) para purificar os minerais.
419
BACHELARD, 2009, p. 4.
420
RIMBAUD, 2008, p. 77.
421
Ibid, p. 25.
Estamos no meio de uma nova crença a deflagrar nossos interesses mais pessoais.
É assim que o poeta fala da perda de tudo o que antes a humanidade tinha fé e
passa a dar luz a voz da ciência com seus progressos que não retomam mais o
significado do homem no mundo. Também aí a intenção do poeta em sair do
mesmo ritmo da pena em substituição ao arado. “Que século de mãos! Não darei
nunca a minha. Depois, ser doméstico leva longe demais. A honestidade de
mendigar me aflige. Os criminosos repugnam como os castrados: eu, estou
intacto, e para mim é o mesmo.” 422 Também aqui o trabalho não é apreciado como
uma simples resposta a sociedade, se não for algo que possamos responder para
nós: de que adianta tanto esmero? Onde o homem pode olhar para si mesmo
diante do outro? Um homem castrado já não pode mais ter o que fazer diante de
uma mulher, assim como um homem sem desejo pela vida. “Não acabo de me
rever no passado. Mas sempre só, sem família; até, que língua eu falava?” 423 Aqui
o poeta encontra sua decadência, pois não está no outro o que realmente lhe aflige,
mas em si mesmo, na tonalidade de cores que sua alma não ruboriza e nem a
alquimia tem conseguido transubstanciar. Finalmente, vem a acomodação da
palavra, sem rumo e sem ser: “A gente não parte. Retoma o caminho, e
carregando meu vício, o vício que lançou raízes de dor ao meu lado desde a idade
da razão, e sobe ao céu, me bate, me derruba, me arrasta.” 424 E mesmo o mundo
não tendo jeito para receber suas considerações, ainda assim o mundo não deve
saber de todos esses desânimos. Um homem que não tem esperança não tem
consideração da sociedade e isso toca a fundo a compreensão do alquimista, a
começar seu experimento na alma. “Sim, tenho a vista fechada a vossa luz. Sou
um animal, um negro.”425

Conclusão: uma dor, uma criação... um outro

422
Ibid, p. 21.
423
Ibid, p. 25.
424
Ibid, p. 27.
425
Ibid, p. 31.
O que será essa temporada no inferno? Não será esta também a mesma
proposta dos alquimistas diante dos afetos? Tentei pensar essa problemática
inaudita quando as expressões utópicas de fins do século XIX se mostram
infrutíferas para darem conta da fragmentação do sistema simbólico que
anteriormente reinava na arte. Diante do que antes era tão certo e consistente, em
Baudelaire habita dúvida diante da resposta apressada. Também nesse lugar de
flerte com o aparecimento da alquimia como um saber arte faz muito sentido,
segundo as concepções bachelarianas de uma estética da criação que se lance ao
devaneio infantil da descoberta do mundo – desafios estes que acompanham a
busca do conhecimento científico.

A concepção de Jung do trabalho de Paracelso traz certamente uma luz


para as investigações desse autor diante da medicina e não devem ser desprezadas
quando olhadas à luz da estética da criação poética, pois Jung mostra que os
estudos de Paracelso já rumavam para as relações entre o microcosmo (homem) e
macrocosmo (universo), encadeando aí uma concepção de ciência e de cura
médica pelo advento da criatividade e da percepção sensível, esta última muito
valorizada pelo empirismo inglês na busca do método científico 426.

Sustento, assim como Bachelard o fez, que o conhecimento e a poética


estão altamente entrelaçados, sendo os desafios de suas manifestações muito
próximos de uma concepção de conhecimento complexo. O que é de fato o
complexo? Ele ainda não é, mas pode ser: se o pensamento observar com os afetos
e se os afetos captarem a tenacidade dos pensamentos.

426
Embora Paracelso tenha desenvolvido estudos astrológicos, alquímicos, dava aulas em
alemão ao invés do latim e queimado tratados de importantes médicos consagrados como Avicena,
Galeno e Rhazes (JUNG, 1985) não se pode negar que apesar dessa aparente contestação da ordem
seu pensamento tenha gerado muitas implicações na filosofia até então metafísica. Paracelso
possuía uma concepção binarista entre corpo (sêmen) e alma (potência), por ele designadas ens
seminis e ens virtutis (PARACELSO, 1983). Faço questão de apontar esse fato, pois é exatamente
sobre esse binarismo que a filosofia do século XVI e XVII irão se reclinar, a partir de Descartes e
culminando com Spinoza, este último com uma forte tradição judaica como pano de fundo de um
sistema filosófico inovador e altamente cético.
Referências

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro:


Contraponto, 1996.

_____. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Porto Alegre: Sulina, 2003.

_____. Sobre a Modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

JUNG, Carl Gustav. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.

MALLARMÉ, Stéphane. Sinfonia Literária. Em: BAUDELAIRE, Charles.


Poesia e Prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1995.

PARACELSO. A Chave da Alquimia. São Paulo: Editora Três, 1983.

RIMBAUD, Arthur. Uma Temporada no Inferno. Porto Alegre: L&PM, 2008.

_____. Correspondência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.


TEMPO, MEMÓRIA E A POETICIDADE DE LA JETÉE CINÉ-ROMAN
DE CHRIS MARKER

Lídia Aparecida Rodrigues Silva MELLO

Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre


um fazer-se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida.

Gilles Deleuze

Ao lançar-me na escritura deste ensaio, acompanha meu pensamento


essa noção deleuziana da escrita como algo inseparável do devir e que se dá no
processo. Não busco atingir uma fórmula, mas instaurar uma zona de vizinhança
com o objeto de estudo, pois não há linha reta na linguagem.

Escolhi o romance La Jetée ciné-roman427 de Chris Marker428, para tecer


uma reflexão sobre esse livro, partindo da ideia de que as palavras escritas e as

427
Esse livro foi editado pela 1ª vez em 1996, foram impressos poucos exemplares e logo
esgotado, em 2008 foi reeditado pelas Éditions Kargo/L´Eclat, esta é versão que utilizo nesse
ensaio. La Jetée em francês significa plataforma, terraço, mas na trama do livro, um corredor
temporal por onde o protagonista se lança, viaja no tempo.
428
Marker (29 de julho de 1921 - 29 de julho de 2012) é um dos realizadores da Nouvelle
Vague, viveu 91 anos. Além de roteirista, montador e realizador audiovisual, foi assistente de
direção e co - dirigiu filmes, tem formação em filosofia, é fotógrafo, escreveu cerca de 10 livros
(romance,ensaios,poesia) e outros tipos de textos - um artista múltiplo. Sua obra audiovisual
compreende cerca de 50 filmes (curtas, médias e longas-metragens). Marker até recentemente
continuava inovando com sua estética para além do fílmico e do literário. Início de 2011 criou a
instalação Passengers que ficou em exposição até junho 2011 na Peter Blum Gallery em New
York. Para essa instalação Marker fotografou às escondidas pessoas desconhecidas/mulheres no
metrô de Paris, entre 2008 e 2010 e montou as imagens com algumas telas consagradas, como por
exemplo, a Mona Lisa de Da Vinci, construindo assim uma obra pictórica e fotográfica ao mesmo
tempo, evocando a memória das telas, atualizando-as no tempo presente, e mostrando como o
realismo devém uma ilusão. Sobre tal exposição, disse Marker: ”Cocteau costumava dizer que
durante a noite, as estátuas escapavam dos museus para ir as ruas. Durante a minha peregrinação
no Metrô de Paris, eu fiz esse encontro incomum. Modelos de pintores famosos ainda estavam
entre nós, e eu tive a sorte de tê-los sentados diante de mim.” Para esse artista atualizar o passado
era uma constante em seu trabalho, e é nessa montagem de imagens memoriais e do presente que
expressa seu modo de ver o mundo, misturando vida e arte.
imagens fotográficas, em preto e branco, que compõem tal romance, têm
caráter poético. Desejo perceber como o escritor utiliza da poeticidade em seu
conteúdo e forma, buscando entender o poético por meio dos elementos que
Marker faz uso e pela temática do tempo e da memória nesse romance,por
serem fundantes da trama. Tomo como ponto de partida o protagonista e suas
viagens no tempo.

Lembro que esse livro ainda não foi publicado no Brasil, não encontrei
nenhuma produção acadêmica ou de outro tipo sobre ele, logo, ouso com meus
conhecimentos e palavras estudar tal romance, apoiada por teóricos da literatura e
também com o pensar da filosofia, pois o romance tem um tom filosófico e
poético. A opção de escrever sobre La Jetée ciné-roman, se dá por ser um dos
objetos de estudos do meu projeto de dissertação de mestrado em curso no
PPGLET-UFRGS.429

Na trama de La Jetée, a única maneira possível de sobreviver seria pelo


tempo: o protagonista evoca passado e futuro em socorro do presente. Em uma
Paris devastada pela 3ª Guerra Mundial, em ruínas, os poucos humanos
sobreviventes são colocados a experimentar viagens no tempo. O chefe das
experiências, com a intenção de enviar alguém de volta ao passado, no pré-
guerra, busca no tempo presente, encontrar uma solução para o futuro da
humanidade e reabastecer os estoques decrescentes de alimentos, remédios e
energias de Paris, destruída pela guerra. Um Homem 430, personagem
protagonista, tomado como cobaia na experiência para viajar no tempo, por ser
perturbado por uma forte lembrança de infância, é enviado em viagens no
tempo. Durante tais viagens, ele procura em sua memória tal lembrança. No
início da trama, o protagonista enquanto criança, estava no aeroporto com seus
429
O outro objeto é La Jetée photo-roman, 1962, um filme de ficção científica do passado, com
duração de 28min.
430
Opto por usar a grafia Mulher e Homem com iniciais maíusculas para referir ao
protagonista e a personagem mulher,pois eles não têm nomes na trama de Marker, são
mencionados apenas como homem e mulher.
pais vendo aviões partir; no momento que olhava para uma Mulher presenciara
a morte de um Homem na plataforma do aeroporto de Paris; a imagem dessa
Mulher ficou na sua memória, e mais tarde veio a saber que esse momento era o
de sua própria morte enquanto adulto. Em outra vida? Quando o menino cresce,
ele vai em busca da Mulher nas viagens no tempo e a reencontra. Durante tais
viagens enquanto adulto, o Homem sai do presente-no pós-guerra em direção ao
passado–antes da guerra. E relembra de um outro passado-durante a guerra,
mas não se sabe se esses passados foram de fato vivenciados pelo protagonista
ou por ele inventados. Além disso, é convocado a visitar o tempo futuro,mas
recusa.

A narrativa de La Jetée ciné-roman é de ficção científica, do passado, uma


narrativa labiríntica ao modo de Kafka, cujo enredo traz,pois, a história de um
Homem escolhido para fazer viagens no tempo, em razão de guardar consigo
uma forte imagem do passado: o rosto de uma Mulher. Atrás de tal enredo, o
escritor deixa entrever um possível romance do protagonista com a Mulher, a
qual ele guardara em forma de imagem. Os perceptos e afectos431 do
protagonista, o atravessam de modo que independe se viveu ou inventou o
romance com a mulher. Eles transbordam sua memória e consciência.

Refletindo o tempo e memória de La Jetée partindo da vida do


protagonista, correria o risco de pensar a trama do romance como uma linha
temporal cronológica, que recorta o real em função da necessidade de se viver, o
tempo cronológico é o tempo mensurável, matematizado e dividido em
instantes. Mas com base nos eventos que compõem a narrativa de La Jetée
pensar em termos de linearidade não é possível, tão pouco é possível pensar a
vida do protagonista do ponto de vista linear, pois ele parece ter uma dupla e

431
Segundo DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 213, os perceptos não mais são percepções,
são independentes do estado daqueles que os experimentam e os afectos não mais são sentimentos
ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por ele.
simultânea vida que perpassa presente e passado. Um enlace de aprisionamento
e libertação.

O escritor provoca ao longo da narrativa constantes mudanças temporais,


tudo se passa em tempos que coexistem e beira o indiscernível. Nesse pensar, o
filósofo Henry Bergson432 afirma que somos interiores ao tempo, a esse tempo
que dura e muda, a esse presente que passa e se conserva no passado; um
passado que coexiste com o presente que ele foi. Talvez por isso o protagonista
seja atormentado por lembranças confusas de tempos coexistentes.

Em La Jetée ciné-roman, Marker faz uso de um texto curto e denso,


distribuído nas folhas de fundo azul petróleo de formato retangular 23x27cm,
ora com emoldurações das imagens, ora não, num certo encadeamento textual,
porém, de modo fragmentado, sem numeração de páginas ou divisão em
capítulos. Configura-se em uma rica combinação de palavras e muitas imagens
fixas: fotografias em preto e branco, funcionando como elementos narrativos
que produzem diferentes sentidos para o leitor; criando uma concepção estética
em que o semântico e o imagético são expressivos, produzindo um estilo literário
singular que dialoga com áreas artísticas distintas, porém afins: a fotografia, o
design, a literatura e o cinema.

Parto do princípio de que o escritor do livro em estudo não quer atestar


verossimilhança dos fatos abordados em seu romance, em sua ficção, mas
percorrer territórios imaginativos, provocar rupturas, realizar capturas e
possibilitar diversas interpretações e sentidos a serem atribuídos pelos leitores,
buscando afetá-los de algum modo pelo tempo, pela memória e por outros
recursos também poéticos. Entendo que recursos poéticos são comuns ou
podem estar presentes em qualquer obra literária, não é um privilégio da poesia;

432
BERGSON, 2006b.
todavia, de acordo Valéry433 (1939), o que faz sentido num gênero literário pode
não fazer em outro.

Interessa-me, pois, perceber como Marker constrói artisticamente esse


romance, como sensibiliza o leitor através dos elementos poéticos que o
constitui. Paul Valéry434 afirma que certas combinações de palavras produzem
emoções, e isso pode ser denominado poética. Eu acrescentaria, no caso de La
Jetée, que a junção da narração com as imagens fotográficas em preto e branco,
o tempo e a memória produzem sensações, ampliam tais emoções e os sentidos
visíveis. A série de fotografias em preto e branco que compõe o enredo de La
Jetée, uma certa história fotográfica comentada por um único narrador, dá a
trama um caráter singular e poético. Imagens usadas para expressar, junto com o
que está sendo narrado, as memórias da vida do protagonista, que são por ele
lembradas de modo parcial e truncado no tempo presente da trama. Quando se
olha o passado através de um álbum de fotos as lembranças que vêm a memória
estão, pois, em desordem temporal, como saltos no tempo, alterando as
emoções diante do que se vê. As imagens fotográficas por natureza tentam
congelar, fixar um tempo que passou.

Trago um exemplo de duas imagens do livro: numa imagem da Mulher,


que o escritor coloca no livro, aparentemente se vê o rosto dessa personagem,
mas o narrador comenta que pode ser a única imagem do tempo de paz a
atravessar o tempo da guerra, os tempos experenciados pelo protagonista. Ou
seja, é uma imagem de um tempo passado que perdura na memória desse
Homem e é evocada, atualizada no tempo presente de La Jetée. O olhar da
Mulher parece nada saber sobre esse Homem que a procura em suas viagens no
tempo, e nem mesmo porque a procura. Esse rosto nem mesmo o protagonista
tem certeza se viu ou se criou, mas conserva sua imagem como um momento
terno, que o ajudaria a escapar dos momentos difíceis que estavam por vir.
433
VALÉRY, 2007.
434
VALÉRY, 2007.
Numa outra imagem, em que eles estão juntos, quando ele viaja ao
passado, está com a Mulher. Podemos ver os dois passeando por um jardim. O
Homem a olha com afeto e com um certo temor de não mais vê-la, dada sua
fascinação por essa Mulher e, talvez, pela falta de confiança em sua própria
memória, uma vez que não tem certeza se ela existiu ou se é uma criação sua.
Esse homem sofre, é atormentado pela ausência dessa mulher.

Nessas imagens que comentei e em todas do livro, com base na noção de


tempo duração de Bergson435, tem-se um corte móvel na duração, pois não é
possível separá-las do que as precedeu ou as preenche, não se pode isolá-las,
converter em representação. Há, nessas imagens, virtualidades a serem
atualizadas pelo protagonista e pelo leitor, virtualidades que estão além do
aparente, é aquilo que existe em potência.

Sobre a poética, o título do livro já traz em si, uma certa poeticidade, La


Jetée ciné-roman, é um romance cinematográfico, ou seja, feito para o cinema. O
escritor faz de imediato uma alusão ao suporte do qual surge tal romance, e
recria no suporte livro, o filme intitulado, La Jetée photo-roman, um romance
fotográfico, desse mesmo escritor/diretor. Ele joga com a imaginação do leitor,
com a literatura, com o cinema e com a fotografia, aproximando tais artes e
criando uma nova estética, que não é apenas específica de uma ou outra
linguagem. Além de promover encontros e tensões, enriquece as relações entre
elas. Não busco tecer uma comparação entre livro e filme; essas observações
servem para situar o leitor explicitando de onde surgiu o livro em foco.

Outra questão que chama atenção é o texto escrito na contracapa, do


lado esquerdo, uma espécie de prefácio, no qual o escritor fornece uma visão da
trama a ser narrada. Tal prefácio tem, já de início, um tom poético, com forte
apelo expressivo e instiga o leitor:

435
BERGSON, 2006c.
Esta é a história de um homem, marcado por uma imagem de
infância. A intensa cena que o perturba, e cujo significado
compreenderia apenas anos mais tarde, teve lugar num terraço
de Orly - aeroporto de Paris, alguns anos antes do início da III
Guerra Mundial. Em Orly, aos domingos, os pais levavam os
seus filhos para ver a partida dos aviões. Num domingo, a
criança sobre a qual contamos essa história, estava tentando
olhar através do sol forte, a paisagem do outro lado do terraço e
um rosto de uma mulher. Nada separa essas lembranças de
outros momentos, mais tarde é preciso que nos lembremos disso
quando veremos as marcas que delas ficaram. Esse rosto que ele
teria visto foi a única imagem em tempo de paz, que sobreviveu
a guerra. Pergunta-se durante muito tempo, se ele realmente a
teria visto ou teria inventado esse terno momento para romper
com momento de loucura que estaria por vir. 436

O narrador anuncia uma trama que se passa no presente, mas com


experimentos científicos de um hipotético futuro pós-guerra e de um marcante
acontecimento do passado - o possível encontro do protagonista, o Homem com a
Mulher, através de viagens no tempo, num tempo que é coexistente. Como não há
diálogos, o narrador, do início até o final do filme, relata a teia de relações do
protagonista com seu mundo, através dos tempos pelos quais ele vive e viaja.

Penso que o livro de Marker também é poético, pelo modo que usa o
tempo e a memória na construção da trama de La Jetée para transmitir, conforme
Deleuze e Guattari437, um composto de afectos e perfectos - um bloco de
sensações, vivenciadas pelo protagonista; o poético pode ser evidenciado ainda
pela escolha estética ao mesmo tempo textual e visual de seu romance. Nesse
sentido, argumenta Paul Valéry, que os efeitos poéticos de um texto podem ser
percebidos, associados “às imagens, às ideias, às excitações do sentimento e da
436
Eis o texto original: “Ceci est l'histoire d'un homme marqué par une image d'enfance. La
scène qui le troubla par sa violence, et dont il ne devait comprendre que beaucoup plus tard la
signification, eut lieu sur la grande jetée d'Orly, quelques années avant la début de la Troisième
Guerre Mondiale. À Orly le dimanche, les parents mènent leurs enfants voir les avions en
partance. De ce dimanche, l’enfant dont nous racontons l’histoire devait revoir longtemps le soleil
fixe, le décor planté au bout de la jetée, et un visage de femme. Rien ne distingue les souvenirs des
autres moments : ce n’est que plus tard qu’ils se font reconnaître, à leurs cicatrices.  Ce visage qui
devait être la seule image du temps de paix à traverser le temps de guerre, il se demanda longtemps
s'il l'avait vraiment vu, ou s'il avait créé ce moment de douceur pour étayer le moment de folie qui
allait venir.” (Toda tradução que consta nesse ensaio é minha).
437
DELEUZE e GUATTARI, 2007.
memória, aos impulsos virtuais e às formações de compreensão – em uma palavra,
tudo o que constitui o conteúdo, o sentido de um discurso.”438

A composição formal do livro, criada a partir das imagens fotográficas em


preto e branco e com o texto/narração é, pois, outro aspecto poético desse
romance; é fortemente expressiva e potencializa a relação entre os tempos
passado, presente e futuro de forma não linear. Tais imagens são encarregadas,
juntamente com o texto, de narrar uma história que não poderia ser contada
apenas com palavras.439

Com projeto gráfico do contemporâneo designer canadense Bruce Mau,


pensado a partir das ideias do escritor e das imagens do filme, tal composição
ilumina o discurso e a subjetividade do escritor. Mau compõe páginas inteiras em
preto e vazios, deixando livre a imaginação do leitor. E nas páginas com texto e
imagens o narrador vai comentando as ações dos personagens, dos espaços e
tempos por onde circulam, e acompanhando os conflitos do protagonista com suas
confusas lembranças “guardadas” e evocadas em sua memória.

Não por acaso, argumenta Paul Ricoeur440, a memória é pouco confiável.


Bergson afirma que a memória “existe sobre duas formas, contrai uma
multiplicidade de momentos e dilata uma camada de lembranças, pode suprimir
ou acrescentar dados”441, ou seja, depende do interesse e atenção de quem as
suprime ou as conserva. O poeta e teórico Paul Valéry, por sua vez, disse que “a
memória é a substância do pensamento” […]. E completa: “o pensamento é o que
origina em nós o que não existe.” 442 Em Matéria e Memória, Bergson afirma que
o pensamento está sempre em movimento. Diante desse pensamento e memória
em movimento, estaria o protagonista de La Jetée ciné-roman imaginando ou

438
VALÉRY, 2007, p. 213.
439
Saliento que o livro tem um texto que é todo comentado por um único narrador.
440
RICOEUR, 2007.
441
BERGSON, 2006b, p. 31.
442
VALÉRY, 1939, p. 214.
evocando algo em sua memória? Ou estaria ele tomando a imagem pela realidade?
Sobre a memória, retomarei tal discussão mais à frente.

Nesse momento, faço uma pausa para refletir sobre os personagens


centrais de La Jetée, e trago o seguinte argumento do filósofo Gilles Deleuze: “É
preciso que a personagem seja primeiro real, para afirmar como potência […], a
personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que
se confunde com um povo.”443 Essa questão levantada por Deleuze aproxima-se
do protagonista de La Jetée, já que ele parece ter vivido duas vidas; também se
aproxima da Mulher, personagem que o narrador nos deixa em dúvida se ela
existiu ou se foi uma criação ou imaginação do protagonista ex-
combatente/prisioneiro e sobrevivente da 3ª guerra.

Com referência a esse viajante no tempo convocado a experiência de


reviver o passado e viajar para o futuro, percebe-se que está cheio de conflitos e
dúvidas, que vive um dilema interior e seus afectos e perceptos, blocos de
sensações, são trazidos para fora através de suas ações, pelas viagens e pela voz
do narrador que o guia. Ele, o protagonista da história de La Jetée ciné-roman é
partícipe dessas experiências no tempo presente. Bergson444 afirma que o tempo é
duração, isto é, que dura e muda constantemente. O tempo se estende e se contrai,
retorna ao passado e avança para o futuro. O presente é o tempo vivido, com seu
movimento necessário e incessante.

Em suas viagens temporais, o protagonista vai em busca de lugares do seu


passado, atraído pela imagem da Mulher que se cristalizou em sua memória, algo
que talvez seja para ele uma nova chance de vida, de reviver e recuperar um
tempo perdido, de tentar trazê-lo de volta, ainda que possa perdê-lo novamente,
dada a mobilidade que é a vida e a movência do tempo duração. Marker constrói
um personagem protagonista que experimenta a alegria de imaginar ou ter uma
segunda vida, em troca de uma tragédia - uma segunda morte, uma relação,
portanto, paradoxal.

443
DELEUZE, 1990, p.185.
444
BERGSON, 2006a.
Sobre a personagem secundária, a Mulher cuja imagem ficou na memória
do protagonista, percebo sua imagem como imagem-lembrança, pois, segundo
Bergson445, uma imagem-lembrança refere-se ao conjunto de nossas imagens
passadas que nos permanece presente. A imagem dessa Mulher que o viajante no
tempo fixou em sua memória é evocada durante as viagens. Ele a reconhece
quando a encontra, mas a trama deixa em aberto se ela existiu ou foi uma criação
do protagonista. Além disso, o olhar de tal Mulher nas fotografias do livro, está
sempre carregado de poesia. Para além do que nele vê o protagonista, ou ficou
guardado em sua memória, resta a lembrança de um momento feliz, mas que ele
não sabe de imediato porque o afeta tanto.

A narrativa joga com o tempo passado, presente e futuro considerando os


diversos eventos vividos pelo protagonista. Todavia, esses eventos não são
narrados em ordem cronológica. Ele viu a mulher pela primeira vez na plataforma,
quando era criança, no mesmo momento em que assiste sua própria morte
enquanto adulto, embora sem ter consciência de que era ele quem morria, e
somente reconhece a Mulher quando ele viaja no tempo, quando vê, aproxima e
tenta manter contato com ela.

Já o antagonista, o homem chefe do laboratório das experiências, envia o


protagonista nas viagens no tempo tendo, como ponto de controle, a imagem da
Mulher que ficou em sua memória, embora seu objetivo fosse outro: enviar
homens ao passado e ao futuro, através das viagens no tempo, em busca de salvar
a humanidade.

Quanto à relação entre esses personagens centrais do enredo de La Jetée


ciné-roman, o chefe do laboratório conduz as ações do viajante do tempo, por
meio do experimento das viagens e de sua memória. Entre o protagonista e a
Mulher perdura um suposto romance e a imagem-lembrança que ele viveu, ou é
algo que inventou. E há entre todos os personagens um mútuo atravessamento de
afectos e perceptos que se entrecruzam.

445
BERGSON, 2006b.
Sobre o narrador do romance La Jetée é único, masculino - percebido pela
sua voz, onisciente, em 3ª pessoa e anônimo. Apresenta os eventos narrados
adotando uma postura aparentemente neutra, deixa o leitor livre para imaginar,
contestar e atribuir diversos sentidos, fazer escolhas, e assim vai comentando as
ações do protagonista. É pela palavra escrita, de sua voz, que tomamos
conhecimento da trama de La Jetée. Portanto, é um narrador heterodiegético446 e o
nível da narração é extradiegético: alguém que está fora da história, mas dela tudo
sabe e comenta.

Um narrador exterior que, segundo o teórico Philippe Dubois447, torna-se


uma instância invisível, que conhece a totalidade da história do protagonista e fala
de um futuro enunciativo pelo qual o presente do enunciado somente pode ser o
passado estratificado. Dubois comenta ainda que em Marker a revelação sempre
se deu após um certo tempo e que existe, do ponto de vista da enunciação, uma
conservação do tempo no passado, pois é atravessado, conectado por uma
trajetória na consciência. Isto é, é preciso projetar-se no futuro se quisermos
compreender o presente, o qual se esclarece somente de forma retrospectiva,
sendo um passado que retorna como uma imagem. Percebe-se aí uma concepção
bergsoniana, de um presente extensivo e movente, de um presente feito com
fronteiras flutuantes entre passado e futuro.

O narrador faz referência direta, e com certa imparcialidade, aos


acontecimentos vividos pelo protagonista e demais personagens, que têm voz por
meio de sua fala e das imagens fotográficas, mas não intenciona prestar conta ao
leitor a respeito do modo pelo qual veio a conhecer os fatos por ele narrados, não
certificando uma verdade. Pergunto-me se seria o narrador um testemunho do
passado do protagonista ou ele mesmo em sua vida anterior? Ou seria a
consciência do tempo ou da memória? Memória que em La Jetée conduz a
narrativa. É a voz que fala, relata o que passou na vida do protagonista, e é um
forte elemento poético desse romance, pois a narrativa aparece na memória.

446
O narrador não participa da história, conceito proposto por GENETTE, 1972.
447
DUBOIS, 2006.
Porém uma memória, como argumenta Deleuze448 ,que não só relata a narrativa,
mas que tem também uma função de futuro, que retém o que passa, para dele fazer
o objeto porvir de outra memória.

De acordo com Paul Ricoeur449, nos valemos da memória porque não


temos nada melhor que a memória para declararmos que algo aconteceu e passou,
antes que declarássemos nos lembrar dos fatos. O narrador nos relata os afectos e
perceptos vivenciados pelo protagonista algo que ele parece ter vivido ou
imaginado, e que está em sua memória de forma confusa.

Argumenta Bergson:

Imaginar não é lembrar-se. Sem dúvida uma lembrança à


medida que se atualiza tende a viver numa imagem, mas a
recíproca não é verdadeira, a imagem pura e simples não me
reportará ao passado, a menos que seja efetivamente no passado
que eu vá buscá-la.450

Quando o narrador afirma que o rosto da Mulher na mente do protagonista


foi a única imagem em tempo de paz, antes da guerra, é porque isso é algo
demasiado significativo para esse homem, mesmo que tal imagem tenha sido por
ele imaginada ou não lembrada.

O foco narrativo do romance em reflexão é, segundo Genette451, o ponto de


vista de quem conta a história, é o de um narrador que tudo sabe e tudo vê, e que
revela os sentimentos, emoções e pensamentos dos personagens, controla os
eventos relatados, as ações dos personagens no tempo e no espaço em que se
situam e nos quais se movem.

Outras questões que compõem a estética poética do livro La Jetée, podem


ser levantadas a partir dos espaços por onde transitam, movimentam-se os
personagens, em especial o protagonista. La Jetée se passa em Paris – um lugar

448
DELEUZE, 1985.
449
RICOEUR, 2007.
450
BERGSON, 2006b, p.158.
451
GENETTE, 1972.
real, e são descritos pelo narrador os seguintes lugares dessa cidade: laboratório de
experiências, acampamento e galerias subterrâneas, plataforma/terraço do
aeroporto, museu, ruas, avenidas e jardins. Todos os eventos se passam em Paris,
antes da guerra, durante e depois da guerra. As mudanças observadas nestes
espaços nos dão a noção do transcorrer do tempo. Na medida em que o
protagonista se desloca no tempo, é possível observar as alterações ocorridas no
espaço, nos lugares que transita em momentos distintos.

Por exemplo, em sua viagem final no tempo, o protagonista foi seguido até
o terraço do aeroporto por um homem que estivera com ele no acampamento
subterrâneo, e, nesse ato, por meio das imagens, é possível perceber seu
deslocamento. Ele vai em direção a Mulher “[...] quando ele reconhece o homem
que o havia seguido desde o acampamento subterrâneo, e compreende que não
podia escapar do tempo.”452 Desse modo, surge outro questionamento: por que
fora o protagonista assassinado pelo chefe do laboratório que comandava as
experiências das viagens no tempo? Talvez porque o Homem viajante recusava o
futuro, temia um tempo que dele nada sabia.

Outro assunto a abordar é a guerra, um dos subtemas da trama de La Jetée.


A guerra pertence ao mundo da realidade através das imagens fotográficas
presentes no romance. Por meio da ficção científica do passado o narrador busca
em La Jetée produzir no leitor um certo efeito do real, embora o escritor não
queira atestar verossimilhança. Colabora para o universo diegético com a
realidade factual/histórica, mas também confunde, provocando a imaginação do
leitor e pertubando as fronteiras. O caráter histórico desse tempo de guerra é pano
de fundo para o fluxo narrativo presente no desenrolar das viagens do
protagonista, das passagens de tempo e do desenvolvimento de conflitos que
permite sua memória ora lembrar, ora esquecer.

452
MARKER, Chris. La Jetée ciné-roman. Paris: Editions de l’Éclat, 2008.
Comentei algo sobre a guerra porque também não posso ignorar o contexto
da França, o qual Marker cria La Jetée em 1962. Nessa época, o país ainda se
recuperava da 2ª guerra mundial, ocorrida entre 1939-1945 da qual a Alemanha
saíra vencedora depois da ocupação. As marcas/lembranças da guerra de certa
forma são atualizadas na trama, porém, não significa que o escritor queira atestar a
verossimilhança dos fatos abordados em seu romance. Essas lembranças
atualizaram-se, talvez, porque o protagonista é um sobrevivente de guerra e
vivenciou o momento de destruição parcial de Paris. Temeria ele reviver esse
passado de guerra? Ou estaria ajustando as contas com ele?

Retomo a discussão sobre o tempo e a memória em La Jetée ciné-roman


por serem fundantes na trama criada por Marker. Por serem constituintes da
poeticidade do romance e valho-me novamente das noções teórico-filosóficas de
Bergson a respeito de um tempo que dura e muda, do tempo enquanto duração: “a
duração é essencialmente uma continuação do que não mais é.”453

Percebo que Marker utiliza tanto o tempo como a memória como


elementos poéticos, que permitem ao protagonista transitar de um espaço e tempo
a outros; de um território a outro, carregando consigo afectos e perceptos de
momentos distintos de sua vida, alguns que ele não lembra, uns que conservam
em sua memória, e outros que por razões afetivas inventou. Em La Jetée, o que
conta é o tempo presente, pois passado e futuro são dimensões do presente, os
tempos são, pois, coexistentes.

Sobre essa coexistência Deleuze afirma que “o passado não só coexiste


com o presente que ele foi, mas se conserva em si (ao passo que o presente passa)
– é o passado inteiro, integral, todo o passado que coexiste com cada presente.”454
Essa é a metáfora do cone bergsoniano: todos os tempos parecem convergir em
um só tempo, logo, coexistindo. Em La Jetée, o protagonista parece vivenciar
paisagens interiores do tempo, da memória que, assim como o tempo, se desdobra,
coexiste.

453
BERGSON, 2006a, p. 57.
454
DELEUZE, 2008, p. 46.
Quanto a essa memória também coexistente, que se contrai e dilata,
comenta Bergson:

[...] tem por função primeira evocar todas as percepções


passadas análoga a uma percepção presente, recordar-nos o que
precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a decisão mais
útil. Mas não é tudo. Ao captar numa intuição única momentos
múltiplos da duração, ela nos libera do movimento de
transcorrer das coisas, isto é, do ritmo da necessidade. 455

É pela necessidade de agir, pelo desejo de rever a Mulher que o


protagonista sai do presente em direção ao passado e recusa o futuro, pois sabe
que lá, ela não está. Essa coexistência virtual da memória, o que está em vias de se
atualizar, imagens que se conservam e se acumulam na trajetória das viagens
temporais dele, vão ora se contraindo pelo esquecimento ou confusão sobre o que
viveu ou imagina ter vivido, e ora se dilatando quando evoca o passado, em
especial a imagem que tanto perturba o protagonista.

Com relação ao tempo na literatura, constitutivo do romance, citando


Georg Lukács argumenta Walter Benjamin:

[...] toda ação interna do romance não é senão a luta contra o


poder do tempo… Desse combate... emergem as experiências
temporais […] Somente no romance... ocorre uma
reminiscência criadora, que atinge seu objeto e o transforma... 456

Nesse sentido o tempo no romance, não necessita ser assimilado à


realidade, mas o tempo presente intervém na compreensão do passado e do futuro,
para criar novos sentidos e ser transformador, sendo assim, o escritor se apropria
do tempo de forma criadora em sua ficção, produzindo na narrativa literária,
encontros e tensões fazendo coexistir distintos momentos da vida do viajante no

455
BERGSON, 2006b, p. 266.
456 BENJAMIN, 1994, p. 212.
tempo por diferentes lugares e tempos, pondo em evidência as contradições desse
combate temporal.

Sobre a noção de romance, o teórico e escritor Milan Kundera 457, afirma


que a ambiguidade é o que melhor define o gênero. Ele argumenta ainda que a
função do romance não é outra senão a de explorar dimensões possíveis, passar do
vivido a uma vida outra, extrapolar o vivido, mas sem tomar a ficção por
realidade. Nesse sentido, Marker, na esteira de Musil, Kafka e Kundera, rompe o
“contrato” entre romance e leitor com relação à verossimilhança, abrindo a
imaginação do leitor diante do que ele vê e lê.

Sigo pensando as viagens no tempo do protagonista pela narrativa não


linear de La Jetée. Tomo como parâmetro a vida dele num tempo não cronológico,
mas em fluxo, em que evoca passado e futuro, imagina-os e visita-os para tentar
proteger o presente. A narrativa se passa, a princípio, no pós 3ª guerra, no
presente, mas dura e muda, se dá no tempo duração, de modo coexistente.
Bergson, e Deleuze em sua esteira, defendem a ideia de que presente e passado
coexistem, pois o presente se conserva no passado; passado e futuro são
dimensões do presente.

Nesse tempo em fluxo, duração, o Homem viajante no tempo se duplica,


de modo que, quando criança, ele assiste a sua própria morte enquanto adulto. Nas
viagens temporais, o protagonista faz saltos no tempo, vai do presente ao passado
e do presente ao futuro. São tempos que coexistem enquanto imagens-lembranças.
Ele vive simultaneamente no presente, o que já foi e o que será, ou seja, do real,
da imaginação, de expectativas e de imagens criadas, guardadas em sua memória.
O protagonista ao viajar no tempo, tem como motivação algo que lhe é interior: a
imagem da Mulher. Através de experiências de ficção científica do passado, ele
vai do presente em direção ao tempo passado cheio de marcas, e recusa um futuro
que teme. Vejamos um exemplo por meio de uma fala do narrador:

457
KUNDERA, 2009.
E algum tempo após, veio a destruição de Paris […] O Homem
sobre o qual contamos essa história foi eleito entre mil, devido
sua fixação com uma imagem do passado […] No início, nada
mais se retira do tempo presente e de seus tormentos […] Ao
décimo dia da experiência, começam a surgir imagens, como
confissões. Uma manhã do tempo de paz, um quarto do tempo
de paz […] Os cientistas que conduzem a experiência
intensificam seu controle. Enviam-no de novo sobre o mesmo
rastro. O tempo retrocede de novo, ele retorna àquele momento
passado. Desta vez aproxima-se dela, fala com ela. Ela acolhe-o
sem surpresas. Eles de nada recordam, nem têm planos. O
tempo escorre sem dificuldade entorno deles. 458

Outro exemplo do livro, desse tempo duração, que dura e muda: “Mais
tarde, ele compreendeu que tinha visto a morte de Homem.” 459 Morto por um dos
homens do laboratório que coordenava as viagens no tempo, o protagonista
descobre que esse momento fixado em sua memória era o de sua própria morte,
em uma de suas vidas. Talvez a execução do protagonista possa significar que ele
é assombrado por suas memórias e pelo tempo; tempo que dele é impossível
escapar, tempo que flui sem cessar até a morte. Essas e todas as vivências do
protagonista na trama se dão, num tempo coexistente.

A confusão entre o que é vivido pelo protagonista ou inventado, se dá


desde o início do romance. Não sabemos ao certo se os cientistas o projetam para
um passado real ou se ele próprio inventa ou recorda suas lembranças. Trata-se de
uma viagem que se dá, portanto, não apenas no tempo, mas também na memória.

Com relação à imagem da Mulher fixada em sua memória, imagem que o


faz partir em viagens no tempo, ele não sabe se ela existiu, ou poderia tê-la
conhecido numa época anterior a de seu próprio nascimento. Então, teria ele a
conhecido em uma outra vida? Ou criado isso, como uma força interior para
suportar o que lhe viria acontecer em outros momentos?

458
MARKER, Chris. Op. cit., 2008.
459
Ibid.
Não pretendo chegar a uma decisão se essa imagem da Mulher fixada na
memória do protagonista existiu ou não, mas do ponto de vista filosófico, pode ser
pensada com base no pensamento de Bergson460 que, segundo ele, consciência
significa principalmente memória, enquanto duração é consciência e é também
memória: uma atenção voltada para o mundo interior, que conserva e acumula o
passado no presente e antecipa o futuro. A consciência então ligaria o que foi com
o que será, passado e futuro, agindo assim sobre as dimensões do tempo. Não é
por acaso que o protagonista guarda tal recordação e a evoca no tempo presente e,
quando vai para o futuro, escolhe retornar ao passado, como se não quisesse
esquecer, mas conservar tal imagem da Mulher mesmo sem saber o motivo dessa
marcante lembrança, ou se ela foi mesmo uma criação sua. Acrescenta Bergson:

Utilizando-se o que já foi, a vida se empenha desde o começo


em conservar o passado e antecipar o futuro numa duração em
que passado, presente e futuro penetram um no outro e formam
uma continuidade indivisa: esta memória e esta antecipação são,
como vimos, a própria consciência. E esta é a razão, de direito,
se não de fato, de que a existência seja coextensiva à vida. 461

Assim, a duração como estado interior da consciência e essa confrontação


do protagonista consigo mesmo seria o único meio de se libertar da imagem
guardada ou criada.

Já chegando ao tempo duração desse ensaio, os aspectos poéticos que


percebo no romance em estudo estão nos encontros e tensões do tempo com a
memória e na composição do texto/narração com as imagens fotográficas do livro
La Jetée ciné-roman. É interessante pensar o modo como o escritor produz
sentido ao compor o livro La Jetée ciné-roman, como um romance
cinematográfico, com imagens a princípio feitas para o cinema. Ele as recria na
forma livro, traçando a composição com um texto filosófico carregado de
poeticidade, acrescido do tempo e memória coexistentes e dos variados
enquadramentos das fotos. Enquandramentos que expressam os afectose

460
BERGSON, 1979.
461
Ibid, p. 75.
perceptos que tensionam a vida do protagonista nos diferentes e simultâneos
tempos que ele vive e percorre.

Ao analisar La Jetée filme, o teórico Raymond Bellour462 afirmou que


Marker faz uso do tempo de modo fluído, pelos enquadramentos, ângulos e pelas
múltiplas durações das fotos. Assim, penso que tais imagens recriadas em livro
afligem o protagonista, e movem o leitor junto com ele pelas suas viagens no
tempo. Imagens que o constituem e produzem diferentes sentidos para o leitor.
Ainda sobre as fotografias, relata Bellour: “que a fotografia […] não duplica o
tempo [...]; ela o suspende, fratura, congela.”463 Ela conserva o tempo, não por
acaso Marker escolhe imagens fotográficas, relaciona esse seu poder de fixar o
tempo, com a fixação do protagonista com uma imagem do passado, de sua
infância.

O estilo de La Jetée ciné-roman compreende uma estética literária que


conjuga imagens fotográficas em preto e branco e um texto curto, mas denso. A
inserção de imagens fotográficas no livro cria poeticidade e abre à interpretação
do leitor, imagens que são inseparáveis do texto, e ampliam a multiplicidade de
sentidos. Todavia, se por um lado o leitor pode aproximá-las ou confrontá-las,
tecendo diferentes relações, por outro lado exige uma maior capacidade de leitura
e compreensão, já que os códigos são verbais e visuais. Esse livro tem, portanto,
uma particularidade na sua composição narrativo-formal, ficando entre a narrativa
das artes visuais e da literatura, sendo feito de pouca escrita e muitas imagens,
onde o visual e o textual têm forte apelo, embora não haja valor de superioridade
de um sobre o outro, e sim de ampliação dos sentidos aparentes. Além disso,
relembro que o livro não tem uma forma de livro tradicional que visa uma relação
causal.

A proposta literária do romance em reflexão rompe, pois, com a narrativa


calcada na causalidade e que faz uso apenas da palavra escrita, é um romance
462
BELLOUR, 1997.
463
Ibid, p. 170.
poético, imagético-textual. A visualidade de um dialoga com a verbalidade do
outro, porém, sem o privilégio de uma linguagem sobre a outra. Assim pensando,
creio que a narrativa desse livro expressa uma rica invenção poética, a junção de
palavras escritas com as imagens fotográficas, com o tempo e a memória, e
vibram intensidades para além do literário.

Saliento que Chris Marker pensa em imagens e textos. Além de escritor,


fotógrafo e filósofo, é um realizador audiovisual, faz um diálogo constante do
imagético com o textual, de uma linguagem ou arte com a outra, sem hierarquia
entre elas. No próprio ato de nomear o livro de romance cinematográfico ele deixa
vestígios desse livro que, antes, foi um filme.

A poética de tal romance junta, pois, lembrança e imaginação, tempo e


memória que coexistem na vida do homem viajante do tempo, com as imagens e
texto que o compõem.

Aproximando, de fato, das palavras findas, creio que, apoiadas pelos


teóricos citados ao longo desse ensaio, o poético no romance La Jetée ciné-roman,
pôde ser percebido tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, na verbalidade
escrita e na visualidade das imagens, produzindo assim um encontro potente. Não
pretendendo exaurir o assunto, deixo em aberto o pensamento, e como citei no
início desse ensaio, segundo Deleuze, escrever é uma questão sempre inacabada,
em devir.

Referências

BELLOUR, Raymond. Entre – imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus,


1997.

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Em: Obras Escolhidas.


São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994, Vol. 1.

BERGSON, Henri. Duração e simultaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.


_____. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2006b.

_____. A Consciência e a Vida. (Tradução de Franklin Leopoldo e Silva). Em: Os


Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

CHRIS MARKER. Notes from the Era of Imperfect Memory. Disponível em:
<http://www.chrismarker.org>. Acesso em: 30 nov. 2011.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 2008.

_____. A literatura e a vida. Em: Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1993.

_____. A imagem-tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução de Bento


Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed.34, 2ª edição, 5ª
reimpressão 2007.

DUBOIS, Philippe. La Jetée de Chris Marker ou le cinématogramme de la


conscience. Collection Theoreme, nr. 6, Paris: Editeur Presses De La Sorbonne
Nouvelle, 2006.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Ed. Vega,1972.

KUNDERA, Milan, A arte do romance. Tradução Teresa Bulhões Carvalho


Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Título original: L'art du roman.

LA JETÉE. Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/La_Jetée>. Acesso em:


30 nov. 2011.

MARKER, Chris. La Jetée ciné-roman. Paris: Editions de l’Éclat, 2008.

VALÉRY, Paul. Poesia e Pensamento Abstrato. Em: Variedades. São Paulo:


Iluminuras, 2007, pp.193-210.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed.


UNICAMP, 2007.

FICHA DO LIVRO LA JETÉE CINÉ-ROMAN:


Texte et Images: Chris Marker
Concepção gráfica: Bruce Mau
Colaborador gráfico: Greg Van Alstyne
[Adaptation française: Le Théâtre des Opérations]
Remerciments à
Chris Marker,Gus Kiley/Zone Books, Michel Valensi, Bernard Lamonier,
Stéphanie Dubois.
Ce 27ª et ultime livre des Éditions Kargo
(et le 266ª des Éditions de l´Eclat)
a été achevé d´imprimer par France-Quercy
à Mercuès (France) le 5 mai 2007.
© 1996 Urzone, Inc.
© 2008 Éditions de l´Eclat pour la présente édition
ISBN 978-2-84162-165-1

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