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ÍNDICE
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – DECADENTISMO FINISSECULAR
a) Decadentismo
b) Fantasmas do Passado
c) Ambivalência entre o Decadentismo e o Modernismo
CAPÍTULO II – SÁ-CARNEIRO E A SUA CONTEMPORANEIDADE
a) A presença de Cesário Verde em Mário de Sá-Carneiro
b) A presença de Sá-Carneiro nas gerações posteriores
CAPÍTULO III – O MITO EM SÁ-CARNEIRO
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
a) Bibliografia activa
b) Bibliografia passiva
ANEXOS
Minha Senhora de mim
Dispersão
Sá de Miranda Carneiro
Comigo me desavim
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
INTRODUÇÃO
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a) Decadentismo
1
MARTINS, Fernando Cabral. Poesia Simbolista Portuguesa. 1ª ed. Lisboa: Editorial Comunicação, 1990. pp. 19-20.
2
Idem. p. 19.
5
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b) Fantasmas do Passado
“(…) l’art sans règle n’est plus l’art! C’est une femme qui
quitterait tout vêtement. (…) l’essence même de l’art
moderne est l’originalité, la provocation, bref, la rupture.
(…) le beau est toujours bizarre (…) avec un goût
consommé de la provocation (…) et les artistes n’ont
exalte qu’un aspect de la nature (…)”4.
3
Prefácio de Jacques Perrin in “BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. 2ª ed. Paris : POCKET, 2011."
4
Idem. pp. 8- 10.
5
«les dangers du parfum issu de certaines fleurs, parfum qui monte à la tête, grise les nerfs, donne le trouble, le vertige, et peut tuer
aussi», in “BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. 2ª ed. Paris : POCKET, 2011."
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O escritor e pintor português Santa-Rita Pintor foi quem deu a conhecer a Mário
de Sá-Carneiro, na sua primeira longa estadia em Paris, as vanguardas que estariam em
vigor na época por toda a cidade parisiense. O poeta manifestou principalmente mais
interesse pelo Cubismo e pelo Futurismo, sugerindo assim, a ambiguidade que sempre o
acompanhou em tudo que realizava. Sá-Carneiro tinha simultaneamente a sua face
reincidida no futuro e modernidade, exaltando o “novo” e o “original”, e o seu olhar
continuava redireccionado para o passado e as suas tradições literárias oriundas do
Romantismo e do Simbolismo.
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Foi por aderir à ruptura estética estabelecida pela geração de Orpheu que Sá-
Carneiro publicou os seus textos considerados ousados e extravagantes. A intensão de
escandalizar a burguesia da época era evidente em diversos aspectos da linguagem, era
6
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001.
7
MARTINS, Fernando Cabral. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 141.
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bela, frágil, assustada, (…) A ti, que és ténue, dócil, recolhida”) está presente no poema
de Sá-Carneiro: (“Sei que é honesta, sã, trabalhadeira, (…) Móveis úteis, sensatos e
garridos…”). As equivalências semânticas de ambos os poemas são ainda reforçadas
pela estruturação muito semelhante de alguns versos como podemos observar: No caso
de Cesário temos versos como “Eu, que sou feio, sólido, leal”; “Eu, que bebia cálices de
absinto” e “A ti, que és ténue, dócil, recolhida,” que se assemelham com os versos de
Sá-Carneiro “A ela, que era enérgica e prestável, / Eu, que até hoje nunca trabalhei!...”.
Todas estas equivalências semânticas tornam ambos os poemas ritmicamente
semelhantes como já fora anteriormente referido.
O sujeito poético observador auto caracteriza-se similarmente em ambos os
poemas como se pode observar nos seguintes versos:
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A mulher idealizada retracta a ânsia do sujeito poético pela morte, uma vez que através
dela expressa-se o desejo de fugir da realidade quotidiana e reconquistar o paraíso
perdido.
É num cenário citadino que a figura feminina se movimenta confortavelmente
sem qualquer constrangimento. A cidade “Nesta Babel tão velha e corrupta” (no caso de
Cesário) e “Paris” (para Sá-Carneiro) opõe-se à “casa modesta e sossegada”, ao “ninho
de sossego”, elementos esses que representariam o local íntimo circunscrito ao universo
feminino na época. A débil passa “num largo arborizado” e ela, a de Paris, movesse “no
13
São essencialmente as últimas quatro quadras da primeira parte de Simplesmente que mais ressonâncias têm do poeta António
Nobre, quer pela presença do ambiente idílico em que a figura feminina está envolvida quer pelo ritmo que o verso adquire por
vezes.
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é substituída por:
16
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001. pp. 55-56.
17
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 137.
18
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001. p. 59.
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Esta nova quadra seria um resumo da primeira parte do poema e serviria para se
afastar da presença obsessiva de Cesário. A extracção da primeira parte estaria
relacionada com a elaboração dos restantes poemas do livro Dispersão, visto que há
todo um processo de rescrita como as cartas permitem comprovar. Se na versão inicial
era “ela” quem passava “em frente dos (…) olhos” do sujeito poético, nesta quadra
quem passa é a vida, o eu lírico vê a vida passar. A vida passa “mansamente” com as
“crianças chilreantes deslizando” e as suas “cores” são “serenas”, assim como é calma e
serena a existência e a casa da figura feminina da primeira versão do poema. A
aproximação semântica é evidente. A 13 de Maio desse mesmo ano, Sá-Carneiro
anunciara a Fernando Pessoa que tinha modificado a quadra que substituiu a primeira
parte do poema Simplesmente da seguinte forma:
19
Idem. p. 75.
20
Idem. p. 84.
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A chave para toda esta alteração lexical é a palavra “torrente”, provida da quadra
anterior, que remete efectivamente para o campo lexical do lexema água e do verbo
escoar. A aproximação que esta quadra estabelece com Camilo Pessanha é notória. A
imagem das “águas certas” da vida a “escoar-se” que na versão anterior seriam “cores
serenas” da vida a “passar” ressoa com a imagem da “água” a cair “Das beiras dos
telhados” que culmina na “água morrente” do poema Água Morrente de Pessanha.
Deste modo, Sá-Carneiro ao ocultar a presença de Cesário suscita a presença de
Pessanha. Segundo o crítico literário Oscar Lopes a própria sintaxe de Sá-Carneiro
deriva de Pessanha.
O título do poema, após consolidação de uma das linhas de leitura em
detrimento de outra, teria que ser repensado, ao que “Simplesmente” foi suprimido com
a supressão da primeira parte do poema, em que a figura feminina era a inspiradora e o
título é alterado para “Partida”. O sujeito poético afasta-se da vida comum, dirige-se
para um “triunfo maior” que resulta na sua solidão com “A tristeza de nunca sermos
21
MARTINS, Fernando Cabral. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 196.
17
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dois”. Este poema Simplesmente torna-se numa espécie de roteiro literário que Sá-
Carneiro vai percorrer de poema em poema, de narrativa em narrativa ao longo do auge
da sua produção literária, muito em particular este último verso de Simplesmente “A
tristeza de nunca sermos dois”.
Na leitura do poema O Estrume é sonante o nome de Cesário, que surge desde
logo na epígrafe do poema:
Se há algo que salta à vista, são as diversas relações intertextuais que a obra
carneiriana propicia. Leitor obstinado, tanto da literatura portuguesa como da literatura
em geral, a convivência com autores e a afectividade literária com autores de muitas
épocas resplandece na sua produção literária, não como mera assimilação, mas como
diálogo criativo em que os textos, colocados lado a lado, acabam por iluminar-se
mutuamente, como acontece entre obras de verdadeira arte. No poema Minha senhora
22
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 222.
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de mim23 de Maria Teresa Horta, no qual podemos observar como se combinam duas das
direcções da sua poética nomeadamente o diálogo com os clássicos e a assunção do
corpo.
O poema estabelece ligações entre a questão feminina, o corpo que se rejeita ou
se oculta (“corpo que disfarço”) e o evidente diálogo com a poesia portuguesa. São
expostas as dissensões internas e pessoais que se interiorizam. O suposto poder de
emancipação do sujeito poético enquanto mulher “senhora de si”, dissipasse na
desavença de omitir o corpo como podemos observar nos versos: “Comigo me desavim
(…) / nem o corpo que disfarço”, e no conflito dos afectos a que o eu lírico está sujeito
como podemos observar no dístico: “recusando o que é desfeito / no interior do meu
peito”. O sujeito poético recusa o modelo de identidade, construído pela sociedade, que
nele se encontrava em constante conflito, recusa o sofrimento, a submissão, o recato que
caracterizava a figura feminina ao longo dos séculos e recusa as regras concebidas pela
sociedade com a tomada de consciência da sua própria identidade. No confronto entre o
instinto feminino, inseparável do seu corpo, e o modelo social de feminino, que
constitui a essência cultural da sua própria identidade, o sujeito poético assume sem
qualquer perplexidade o que o corpo deseja, resultando assim na tão ambicionada
emancipação.
Ainda que num contexto diferente existem traços comuns entre Maria Teresa
Hora e a Sá-Carneiro, nomeadamente a questão da divergência do corpo como é
possível observar-se no poema do poeta modernista Dispersão24. A divergência corporal
perceptível no poema de Sá-Carneiro, evidenciada num narcisismo explícito, “Eu beijo
as minhas mãos brancas…”, e num repúdio corporal, como podemos observar nos
versos: “Tristes mãos longas e lindas / Que eram feitas pra se dar…”, indica o conflito
próprio ao corpo disperso, comum, ainda que com diferentes significados, na poesia de
Maria Teresa Horta. Ambos os poetas vêem com desalento os limites incutidos à
expressão do corpo, visto mais como um objecto de recusa do que de plenitude, e nesse
sentido, a androgenia pode ser a solução simbólica, ou por vezes retórica, para a
discriminação que acompanha a mulher como transgressora.
O nosso percurso continua com um poema de Alexandre O’Neill (1924-1986),
Sá de Miranda Carneiro25 publicado em 1979. Na criação deste poema O’Neill recorre à
23
HORTA, Maria Teresa. Antologia Poética. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994. p. 186. (ver poema em anexo).
24
Ver excerto do poema em Anexo.
25
O’NEILL, Alexandre. Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012. p. 351. (ver poema em anexo).
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26
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 34.
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quanto mais se aproximarem da origem mais inactuais, ou seja, mais extra temporais
eles se podem tornar, salvaguardando assim a contemporaneidade. Agamben introduz
precisamente este aspecto ao conceito de contemporaneidade, isto é, a relação do
contemporâneo com o arcaico. É esta dialéctica que estes poetas estabelecem com o
arcaico que vai salvaguardar a respectiva contemporaneidade de cada um deles, visto
que o passado é a garantia do intemporal que por sua vez é garantia do contemporâneo.
Todos estes referidos poetas encontram-se envolvidos na corrente literária do
Surrealismo, o próprio Sá-Carneiro é considerado pelos críticos como um percursor do
Surrealismo português, o que significa que são sustentados pelo passado, na medida em
que essa corrente literária é sustentada pelo passado arcaico para ser projectado para o
futuro sem a necessidade de se recorrer ao presente. O encontro e o confronto entre elas
garantem igualmente a contemporaneidade das suas obras e delas próprias. A
intertextualidade que o poema Comigo me desavim, em particular, proporciona às
gerações posteriores continuando dessa forma fonte viva para a reinscrição, permite a
contemporaneidade do poema.
José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira (1901-1969) foi outro
escritor que apresentou na sua obra relações inter-discursivas com os poetas da geração
de Orpheu. A sua admiração pelos poetas órficos, nomeadamente Mário de Sá-Carneiro,
levou-o a escrever uma peça de homenagem a Sá-Carneiro intitulada por Mário ou Eu
Próprio – o Outro, no livro Três peças em um acto em 1957. Esta peça teatral, que é
como uma continuidade da novela carneiriana Eu – próprio o Outro do livro Céu em
fogo, o autor presencista reflexiona sobre um dos temas nucleares da obra carneiriana,
ou seja, a presença do duplo que percorre toda a obra de Sá-Carneiro. Temos uma
personagem fictícia Mário, um poeta na iminência de se suicidar, que num momento de
angústia e solidão é surpreendido pela figura do Outro, personagem com quem
estabelece um diálogo conflituoso que se mantém ao longo de toda a peça. Esta figura
do Outro acaba por se manifestar como sendo o alter-ego de Mário e mostra-lhe que o
que faz dele um génio é a essência criativa que faz parte integrante do seu próprio
íntimo superando assim todas as limitações físicas que tanto incomodam Mário.
Assim, como Sá-Carneiro, a personagem regiana repugna a sua própria
aparência física, a sua imagem de “papa açorda” e “esfinge gorda”. Mário, cuja
aparência é disforme, surge em cena como uma figura impaciente e desequilibrada
emocionalmente, e em oposição o Outro é calmo, belo e veste-se elegantemente o que
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leva Mário a exaltar-se impetuosamente. A peça teatral termina com Mário incapacitado
de se suicidar, visto que se encontra inconformado com a figura do Outro e nunca o
aceita como o seu alter-ego, jaz após ter ingerido um líquido preparado pelo Outro,
reproduzindo a atitude da figura real de Mário de Sá-Carneiro que se suicidou ingerindo
estricnina, a personagem regiana morre e a cena é envolvida por palhaços e figuras
circenses que teatralizam fielmente o último poema escrito pelo poeta órfico como
podemos observar no seguinte excerto:
Régio, na sua obra dramática, vai ao encontro dos factos da vida real do poeta
órfico sendo fiel aos textos por ele produzidos, textos esses que serviram de base para
uma recriação, na óptica regiana, do drama vivido por Sá-Carneiro e para uma recriação
da problemática da fragmentação do sujeito também presente na ficção sá-carneiriana.
A intertextualidade com a obra do poeta órfico dá-se inicialmente, pela voz de Mário,
com a estrofe inicial do poema Fim que é citada quase na íntegra. No seguimento da
peça regiana, o diálogo com a obra de Sá-Carneiro alude para o poema 7, escrito em
1914 pertencente ao livro Indícios de Oiro, na voz da personagem Mário como
podemos observar:
“Mário grita berrando: Sereno, eu?! (…) “Eu não sou eu
nem sou o Outro, sou qualquer coisa de intermédio…”
(…) Devo estar hoje sereno, que hoje é um grande dia. O
maior dia de minha vida. (De novo levanta a face e
declama.) “Pilar da ponte do tédio” (…)”30
29
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. pp. 154-155.
30
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. p. 135.
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Neste excerto, Mário serve-se dos três primeiros versos do poema 7 de Sá-
Carneiro e surgem identificados, na obra regiana, com o sinal gráfico de aspas
marcando a posição de uma citação. As referências intertextuais, nomeadamente dos
poemas Aquele Outro, 7, O Lord e Fim, percorrem toda esta obra regiana. Todavia, José
Régio não obstante da homenagem explícita a Sá-Carneiro, intercede implicitamente,
como um crítico literário da época, como se pode observar:
“O Outro
Não queres fazer uma alocação ao público?
Mário
Que público?
O Outro
Não fazes versos? Quem faz versos tem um público.
Mário
Muito restrito! Devo ter um público muito restrito. Quase
ninguém percebe, quando verdadeiramente se fala em nós:
de mim e ti; e de eles; os papa-açorda. Quase ninguém
percebe! Só depois de eu morto, sim. Hão-de pôr-me o
retracto nos jornais. Hão-de acusar-me uns aos outros de
me não terem compreendido (…)”31
O autor da presença faz uma crítica explícita, recorrendo à voz da sua personagem, aos
leitores da época que pouco compreendiam a concepção artística de Sá-Carneiro. Assim
poder-se-á concluir que a intertextualidade com a obra carneiriana serve também de
recurso utilizado por Régio para uma reflexão sobre a literatura da época.
José Régio foi um grande conhecedor da produção artística de Mário de Sá-
Carneiro, na medida em que contribuiu para a divulgação da obra carneiriana na revista
Presença e escreveu diversos ensaios sobre a obra do poeta órfico. Num dos artigos da
Presença, Régio considera Sá-Carneiro como “o nosso maior poeta contemporâneo (…)
o maior intérprete da melancolia moderna, e um dos grandes poetas portugueses de
todos os tempos”. Uma vez mais, Sá-Carneiro é ressuscitado por um autor de uma
geração posterior, é chamado por Régio para a sua geração poética, tornando-o desse
31
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. pp. 146-147.
24
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32
CORREIA, Hélia. Soma. Lisboa: Relógio D’Água, 1987. p. 30.
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O espelho impõe-se, portanto, como a ponte que liga as outras dimensões a outros
planos da existência, uma janela aberta aguardando que as personagens a transponham.
Classifica-se, assim, como um objecto que projecta a dimensão fantástica e misteriosa
do texto. Nesta fase, poder-se-á afirmar que a repercussão intertextual que Sá-Carneiro
tem, em particular nas gerações posteriores continuando dessa forma fonte viva para
33
CORREIA, Hélia. Soma. Lisboa: Relógio D’Água, 1987. pp. 98-99.
34
SÁ-CARNEIRO, Mário de. A Confissão de Lúcio. Edição Francisco Lyon de Castro. Mem Martins: Publicações Europa-
América, 1994. pp. 72 – 73.
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Sem antes de concluir, não se pode deixar de abordar a questão do mito em Sá-
Carneiro. Ainda que a obra sá-carneiriana apresente diferentes contornos da mitologia,
próprios do Modernismo, é possível reconhecer algumas alusões ao mito clássico.
Diversos críticos, entre eles David Mourão Ferreira ou Maria Aliete Galhoz, associam a
obra do poeta ao mito de Ícaro. Assim como Ícaro (personagem mítica que,
deslumbrado em alcançar o absoluto, não seguiu o conselho dado pelo pai de evitar
aproximar-se demasiado do sol, vê as asas de cera derretidas e a queda é inevitável) há
no sujeito carneiriano um desejo de libertação ascensional, de alcançar uma estética
iluminada e perfeita, para ser reconhecido literalmente. O poeta nunca chega a alcançar
o sol, ou seja, o reconhecimento desejado, pois há um movimento descendente, não é
uma queda como a de Ícaro, mas sim uma queda sobre si próprio, numa morte
metafórica, uma espécie de queda moral.
N’A Confissão de Lúcio podemos associar a personagem feminina Americana à
figura bíblica do mito de Salomé35, ambas se assemelham fisicamente e dançam
sensualmente ao ponto de seduzirem o “outro”. Tal como a Americana, podemos
também associar Marta à figura de Salomé, visto que ela torna-se na encarnação do mal,
é ela quem rompe as amizades, é fonte de incertezas e intranquilidades, é uma mulher
traidora que difunde a discórdia.
Poder-se-á, de certa forma, concluir que Sá-Carneiro ao convocar mitos da
antiguidade clássica e trazê-los para a sua criação poética torna-se num poeta clássico e
simultaneamente contemporâneo porque existe efectivamente um diálogo intertextual.
Segundo a professora Paula Costa, todos os poetas que conseguem unir em si um
pendor clássico com uma originalidade actual têm reunidas as condições para serem
35
Salomé é uma figura bíblica que personificou a mulher que recorre ao seu poder sedutor para destruir, a sua vaidade originou que,
num acto de vingança ou simples capricho, pedisse a cabeça do apóstolo João Baptista numa bandeja de prata. No final do século
XIX, a figura de Salomé surge como musa dos decadentes.
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CONCLUSÃO
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Conforme nos envolvemos num trabalho, num estudo ou mesmo num projecto
de vida, a nossa motivação aumenta com o aumento das descobertas e conquistas no
sentido de chegarmos à(s) resposta(s) para as nossas questões. Paralelamente a isso,
também nos satisfaz o facto de quando descobrimos, naquilo que estamos
comprometidos, razões para continuar a acreditar em algo que tenha sentido para a vida
humana. Assim, quando o autor ou a obra conquistam essa condição e provocam no
leitor o desejo de querer viver experiências que alimentam a imaginação, a ele autor, ou
a ela, a obra, não se deve voltar as costas ou fechar os olhos.
Mário de Sá-Carneiro é esse autor que criou uma obra, que suscitou o interesse
das gerações posteriores, sob as diversas influências clássicas e modernas sendo o maior
poeta sensacionista36, que teve como característica não adoptar nenhum movimento
literário especifico, e sim, admitir, na sua obra, elementos de qualquer escola literária,
desde que fosse a favor da sensação. Na sua obra condensam-se características de
diferentes estilos, portanto o poeta não pode ser considerado nem surrealista, nem
simbolista, nem romântico, nem mesmo um futurista ou qualquer outra coisa. É nesse
sentido que Fernando Cabral Martins afirma que “a lírica de Sá-Carneiro é um patch-
work de romântico, futurista, expressionista, decadente, simbolista, cubista” 37,
confluindo assim diversas escolas literárias, sem nunca se esgotar, conferindo-lhe dessa
forma a contemporaneidade. O poeta que opte pela posição de não se integrar em
nenhum movimento literário específico e de não se sujeitar a escolas ou grupos
literários, estéticos ou doutrinários que lhe fossem contemporâneos, no sentido temporal
da palavra, torna-o num poeta, ou estão reunidas as condições do poeta de se tornar num
poeta contemporâneo.
Desse modo, Sá-Carneiro fica a oscilar, ora aproxima-se de uma tendência, ora
de outra, porém nunca pode ser associado a nenhuma delas, até porque, como foi
anteriormente referido, a sua lírica é um patch-work de estilos. Isso talvez porque a
própria criação artística carneiriana encontra alguma raízes no passado. É como se o
passado regressasse ao palco para proporcionar ao autor do presente a observação e a
consciencialização do que se criou no passado e o que poderá deixar de herança às
gerações futuras, inclusive a sua. Compreender o que foi realizado no passado, num
36
A adopção do Sensacionismo é em Sá-Carneiro intensa e frenética, “nenhum sensacionista foi mais além do que Sá-Carneiro”
afirmou Fernando Pessoa numa carta a João Gaspar Simões. (PESSOA, Fernando António. Cartas a João Gaspar Simões. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. p. )
37
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 12.
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instante histórico da realização dos factos, assim como ter a capacidade de compreender
o presente, é, segundo Agamben, a condição para ser contemporâneo e viver a
contemporaneidade. Mário de Sá-Carneiro foi contemporâneo à sociedade da sua época
que, mesmo por meio dos seus desafectos, repulsa social e narcisismo, viveu a
incompatibilidade com essa sociedade e é simultaneamente contemporâneo às gerações
posteriores devido ao seu dimensionamento de revivalismo no seio das mesmas.
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia Activa
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
PESSANHA, Camilo. Clépsydra. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. ISBN: 972-37-0795-
3;
RÉGIO, José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro.” in Três peças em um acto. 2ª ed.
Lisboa: Portugália, 1969;
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. ISBN: 972-37-0193-6;
______. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira
da Silva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. ISBN: 972-37-0659-8;
______. Cartas a Fernando Pessoa, I-II. Lisboa: Ática, 1973;
SÁ DE MIRANDA, Francisco. Obras Completas. Vol. 1. 5ª ed. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 2002. ISBN: 972-562-336-3;
VERDE, Cesário. Poesia Completa 1855-1886. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2001. ISBN: 972-20-1951-1.
Bibliografia Passiva
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Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Ano Lectivo 2012-2013
Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
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Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Ano Lectivo 2012-2013
Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
ANEXOS
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
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Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Ano Lectivo 2012-2013
Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea
Comigo me desavim,
sou posto em todo o perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
(Francisco Sá de Miranda)
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Imigo: inimigo. Forma antiga.
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