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A Contemporaneidade em Mário de Sá-Carneiro

Autor: Luís Manuel Henriques Alves, nº 34084, Mestrado de Estudos Portugueses


Disciplina: Seminário de Literatura Portuguesa Contemporânea
Docente: Prof.ª Dr.ª Paula Cristina Costa

Data: 30 de Dezembro de 2012


Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Ano Lectivo 2012-2013
Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea

ÍNDICE

INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – DECADENTISMO FINISSECULAR
a) Decadentismo
b) Fantasmas do Passado
c) Ambivalência entre o Decadentismo e o Modernismo
CAPÍTULO II – SÁ-CARNEIRO E A SUA CONTEMPORANEIDADE
a) A presença de Cesário Verde em Mário de Sá-Carneiro
b) A presença de Sá-Carneiro nas gerações posteriores
CAPÍTULO III – O MITO EM SÁ-CARNEIRO
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
a) Bibliografia activa
b) Bibliografia passiva
ANEXOS
Minha Senhora de mim
Dispersão
Sá de Miranda Carneiro
Comigo me desavim

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INTRODUÇÃO

Este trabalho foi realizado no âmbito da cadeira de Literatura Portuguesa


Contemporânea e tem como objectivo a elaboração de uma reflexão sobre a
contemporaneidade de poetas como Mário de Sá-Carneiro, Cesário Verde e Camilo
Pessanha, assim como as suas importâncias para as gerações posteriores.
Num primeiro significado do vocábulo “Contemporâneo” em que se entende por
contemporâneo um autor que conhecemos, ora pessoalmente, ora de que fomos
testemunhando, por assim dizer, o nascimento da sua obra. Contudo, a própria
dificuldade de se definir o que vem a ser “contemporâneo”, visto ser esta uma noção um
tanto problemática e imprecisa, leva-nos a nos questionar: qual seria a extensão
temporal dessa designação? Se será possível definir o início do que chamamos
contemporaneidade? E ainda de quem ou de que somos nós contemporâneos?
Há quem delimite a poesia contemporânea ao conjunto da produção existente a
partir da segunda metade do século XX. Outros críticos consideram-na, ou preferem
situá-la no contexto posterior à década de oitenta ou até mesmo após os anos noventa.
Não tardará muito, inclusive, para que o termo contemporâneo seja destinado única e
exclusivamente para designar tudo aquilo que é produzido a partir do século XXI. Mas
como é que se resolve o problema das gerações que se encontram e que pertencem a
determinado período histórico? Como enquadrar vivos e mortos nesse quadro? Quais os
autores que podemos nós considerar como nossos contemporâneos? O filósofo Giorgio
Agamben questionou-se sobre esta questão do conceito de contemporaneidade, e afirma
que a contemporaneidade mantém uma singular relação com o próprio tempo, aderindo
a ele e simultaneamente dele se distanciando. Daí que se depreenda a dificuldade de
circunscrever a abrangência da contemporaneidade.
A produção poética, seja ela de que época for, consente uma grande liberdade e
heterogeneidade na poesia. Os poetas têm a liberdade na escolha das suas próprias vias
criativas, é-lhes permitido recuperarem dicções do passado, inventarem outras, seguirem
vestígios deixados pelos antecedentes, adequarem-se às directrizes impostas pela época,
procurarem linguagens bizarras (aclamadas pelos simbolistas), experimentarem recursos
tecnológicos disponíveis, combinarem todas estas possibilidades, ou pelo contrário,
romperem com todas elas e procurarem outras formas de dicção. Ao termos a
consciência da forma com que um poeta retracta o seu tempo, faz uso formal da

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linguagem, recorre aos dispositivos tecnológicos disponíveis, dialoga com as obras do


passado, concebe o papel do leitor na sua obra e dá a sua contribuição ética e estética ao
mundo em que vive, permite, dessa forma, que o leitor crie um espaço de reflexão, não
apenas no âmbito dos estudos literários como também no âmbito cultural, contribuindo
assim, para que a poesia continue em constante movimento. A poesia é isso, é
movimento, é intempestiva e intemporal, ela é de todos os tempos.
É de nossa pretensão relevar quais os traços mais marcantes na obra de Mário de
Sá-Carneiro que nos levam considerá-lo um poeta contemporâneo. Para isso,
realizaremos no primeiro capítulo uma abordagem dos caminhos que levaram ao
estabelecimento da contemporaneidade da obra carneiriana e como auxílio procuramos
situar quais foram as influências, o contexto social e histórico, na criação da sua obra.
No segundo capítulo debrucei-me sobre o poema Simplesmente de Sá-Carneiro, poema
este que foi alvo de sucessivas alterações por parte do autor sugeridas por Fernando
Pessoa, que contem traços da estética de Cesário e de Pessanha. Essas sucessivas
alterações vão sendo clarificadas, ou pelo menos, vão se tornando mais evidentes, mais
perceptíveis ao longo do poema, visto que Sá-Carneiro partilhava todo o seu método de
trabalho com o seu grande amigo, e também ele outro nome incontornável da literatura
portuguesa, Fernando Pessoa através da correspondência por eles mantida.
Seguidamente, verificamos a repercussão intertextual que Sá-Carneiro tem nas gerações
posteriores que fazem do poeta órfico um poeta contemporâneo. No terceiro capítulo,
demonstraremos que o poeta de Dispersão convoca, para a sua obra literária, mitos da
antiguidade clássica e ao trazê-los para a sua criação poética torna-se num poeta
clássico e simultaneamente contemporâneo porque existe efectivamente um diálogo
intertextual. Na conclusão retomamos os aspectos principais desenvolvidos na obra de
Sá-Carneiro que comprovam a contemporaneidade do poeta.

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CAPÍTULO I – DECADENTISMO FINISSECULAR

a) Decadentismo

O Decadentismo consiste fundamentalmente numa atitude existencial do final do


século XIX, em que o fundamento que sustenta essa atitude de decadência é a filosofia
de Nietzsche e de Schopenhauer. Estes dois importantes pensadores interpretam a
sensação de mal-estar e pessimismo que dominou a Europa no final do século XIX,
após o optimismo da Belle Époque. Os principais representantes do Decadentismo são
Oscar Wilde e Charles Baudelaire, uma vez que ambos expõem nas suas obras a
sensação de desconforto com a sociedade onde estão envolvidos, além de um
pessimismo dissimulado e do culto pela arte e pelo sensorial.
Simultaneamente a essa decadência reflectida na atitude, temos a decadência
como estética, caracterizada pela busca de inovação estilística, pelo gosto doentio da
sensibilidade e pelo gosto de sensações guiadas aos extremos. “A própria escolha de
vocábulos raros, uma das marcas do estilo simbolista (…) é, já por si, a materialização
dos princípios decadentes.”1, em que, segundo afirma Fernando Cabral Martins, esse
“(…) estilo e atitude decadente assim se assume como vontade do original, do puro, do
desinteressado, do intenso, por contraste absoluto com o mundo em volta” 2. Os maiores
exemplos desta corrente literária são: Huysmans que publica, em 1884, À Rebours (Às
Avessas) que pretende ser uma bíblia da decadência e apresenta Dês Esseintes como
representação máxima do herói decadente; Laforgue e Verlaine que também eles
adoptam a estética e a atitude decadentista nas suas obras. Estes escritores são movidos
pela obra de Baudelaire e de Wilde, e viam neles o toque de uma arte associada às
cidades, à artificialidade e ao mal-estar de fim de século.

1
MARTINS, Fernando Cabral. Poesia Simbolista Portuguesa. 1ª ed. Lisboa: Editorial Comunicação, 1990. pp. 19-20.
2
Idem. p. 19.

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b) Fantasmas do Passado

O Decadentismo teve em Paul Verlaine um dos expoentes máximos, os seus


versos reproduziam o intimismo, o profundo e revelavam as emoções extremas do seu
estado de espírito. Como consequência da sua forma de se posicionar no mundo
literário, foi também um poeta injustiçado na sua época, visto que o seu trabalho e
talento não lhe foram reconhecidos pelos seus contemporâneos, porém, nas gerações
posteriores, o poeta foi e é constantemente citado e aclamado.
Outros três escritores foram intrinsecamente fundamentais, na medida em que
tiveram o mérito pela estética decadente, são: Charles Baudelaire, Oscar Wilde e
Huysmans. Baudelaire é considerado o percursor do Simbolismo, e o poeta que deu
início a um novo pensamento abrindo, dessa forma, as portas da arte para a
modernidade. Segundo Jacques Perrin “(…) on peut considérer Baudelaire comme le
premier artiste de la modernité (…)”3. Além de ter introduzido e feito uso da palavra
modernidade, Charles Baudelaire foi um teorizador sobre o conceito de modernidade.
Na publicação d’ As flores do Mal são abordados alguns dos aspectos mais importantes
desse conceito. Jacques Perrin reuniu algumas ideias do poeta relativamente ao conceito
e ao significado da palavra como se pode observar na seguinte citação:

“(…) l’art sans règle n’est plus l’art! C’est une femme qui
quitterait tout vêtement. (…) l’essence même de l’art
moderne est l’originalité, la provocation, bref, la rupture.
(…) le beau est toujours bizarre (…) avec un goût
consommé de la provocation (…) et les artistes n’ont
exalte qu’un aspect de la nature (…)”4.

Jacques Perrin escreveu o prefácio para a publicação d’ As Flores do Mal,


prefácio esse, em que exalta o poeta e nessa exaltação revela as características mais
marcantes das Flores5, características estas que anos depois (em pleno Modernismo)
foram escritas como típicas do Decadentismo. Podemos concluir que Baudelaire é o

3
Prefácio de Jacques Perrin in “BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. 2ª ed. Paris : POCKET, 2011."
4
Idem. pp. 8- 10.
5
«les dangers du parfum issu de certaines fleurs, parfum qui monte à la tête, grise les nerfs, donne le trouble, le vertige, et peut tuer
aussi», in “BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. 2ª ed. Paris : POCKET, 2011."

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primeiro dos decadentes, contudo nunca participou em nenhuma manifestação


consciente que lhe permitisse a atribuição desse título.
Outro escritor decadente foi Oscar Wilde, escritor este, que conseguiu
manifestar e disseminar a teoria do “Movimento Estético” em que crê ser o belo a única
chave contra a degradação social. De encontro com Platão, reconhecia no ideal de
beleza a possibilidade de chegar ao prazer, não um prazer mundano, mas sim um prazer
proveniente do estímulo dos sentidos nomeadamente da audição e da visão. Era o típico
decadente do fim do século que carregava em si as inquietações próprias da época e
estava sempre num processo de dessintonia com tudo que o envolvia. A obra mais
importante do escritor foi O Retracto de Dorian Gray, publicada em 1890, obra essa,
que apresenta todo um universo decadente.
Por fim, o último grande nome evocado pelos decadentes foi o escritor
Huysmans, cuja obra À Rebours (Às Avessas) publicada em 1884, foi o expoente
máximo da decadência. Dês Esseintes, personagem principal da obra, é a melhor
representação da ideologia decadente.
As influências destes escritores mencionados não só comprovam a sua
importância para a formação da ideologia decadente como revelam também um padrão
de comportamento, que será seguido por gerações posteriores, como é o caso de Mário
de Sá-Carneiro, e posteriormente ao poeta órfico continuará a ser seguido garantindo
dessa forma a contemporaneidade de todos estes escritores.

c) Ambivalência entre Decadentismo e Modernismo

O escritor e pintor português Santa-Rita Pintor foi quem deu a conhecer a Mário
de Sá-Carneiro, na sua primeira longa estadia em Paris, as vanguardas que estariam em
vigor na época por toda a cidade parisiense. O poeta manifestou principalmente mais
interesse pelo Cubismo e pelo Futurismo, sugerindo assim, a ambiguidade que sempre o
acompanhou em tudo que realizava. Sá-Carneiro tinha simultaneamente a sua face
reincidida no futuro e modernidade, exaltando o “novo” e o “original”, e o seu olhar
continuava redireccionado para o passado e as suas tradições literárias oriundas do
Romantismo e do Simbolismo.

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A ligação ao passado e o desgosto com a vida revelam-se evidentes na sua obra e


estabelecem igualmente a relação do poeta com aqueles que serviram de modelo para
muitos dos seus trabalhos, como Cesário Verde e António Nobre. É facilmente notória a
presença do poeta Cesário Verde na obra carneiriana, nomeadamente em toda a
atmosfera citadina que percorre a sua obra, na presença da sensualidade feminina e no
prazer pela vida do artista. A influência de António Nobre na obra carneiriana reflecte-
se na predilecção pela morte e pela dificuldade com os diversos estados da
personalidade humana.
Após tomado o contacto com as vanguardas europeias, Mário de Sá-Carneiro,
que em 1912 vivia em Paris, escrevia a Fernando Pessoa enaltecendo o Futurismo e o
Cubismo sugerindo uma total renovação da literatura, como podemos observar no
excerto: “ No entanto, confesso-lhe, meu caro Pessoa, que sem estar doido, eu acredito
no Cubismo. (…) Picasso, de quem tenho visto imensos trabalhos (…) realizou
maravilhas – admiráveis desenhos e águas fortes (…)”6.
Em 1915, a literatura e as mais diversas artes plásticas assumem uma renovação
radical em Portugal com a publicação da revista Orpheu. Esta revista literária contou
com a colaboração de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros,
Santa-Rita Pintor, Amadeu de Sousa-Cardoso, entre outros, que manifestaram ao país
uma ruptura com as expressões artísticas anteriores. Segundo Fernando Cabral Martins:

“A grandeza em arte ganha esse critério de não obediência


a escolas, a estilos comuns, e o Modernismo segundo Sá-
Carneiro e Pessoa torna-se uma libertação de todas as
cadeias poéticas. É a doença-de-novo entendida na sua
máxima força: não suporta senão a originalidade, logo
nenhuma se pode forjar entre a arte de dois artistas
diferentes”7

Foi por aderir à ruptura estética estabelecida pela geração de Orpheu que Sá-
Carneiro publicou os seus textos considerados ousados e extravagantes. A intensão de
escandalizar a burguesia da época era evidente em diversos aspectos da linguagem, era

6
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001.
7
MARTINS, Fernando Cabral. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 141.

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inovadora pelo que causava estranheza, criava associações lexicais agramaticais,


empregava, frequentemente, neologismos por vezes sarcásticos e transgredia as regras
gramaticais da sintaxe com objectivo de atribuir nova expressividade às frases.
Poucos leitores e críticos literários aceitaram o projecto renovador da revista,
pelo que a sociedade conservadora não compreendia a transformação que se estava a
processar na arte, o que deu origem a que muitos dos colaboradores a abandonassem
antes mesmo de surgir o seu segundo número. A revista Orpheu foi publicada em Março
de 1915 e é considerada como o marco do Modernismo Português, contudo Sá-Carneiro
morreu em 1916 e não teve tempo para a concretização do seu projecto modernista. O
seu único poema modernista é Manucure, todos os outros estão ligados às tradições
literárias anteriores.
A obra do poeta vê-se frequentemente confrontada pelas explicações e
interpretações fundamentadas nos aspectos biográficos. A vida e a obra do autor não são
reflexivas, visto que a literatura e a criação literária também não o são, porém Sá-
Carneiro tem como objectivo metamorfosear a vida em arte a arte em vida, ou seja, ele
crê serem dois aspectos inseparáveis. O seu pensamento revela-se impregnado de um
desejo de escrever algo comprometido com a originalidade, um dos temas mais
frequentes é a agonia aliada à identidade (características da literatura moderna), mas
paralelamente a isto, Sá-Carneiro concebe uma obra com um compromisso explícito
com os aspectos estéticos cujos temas são a morte, o bizarro e o mistério.
Intensionalmente, ele procura escrever uma obra moderna, contudo os seus textos estão
intrinsecamente ligados a uma tradição literária decadente.

CAPÍTULO II – SÁ-CARNEIRO E A SUA CONTEMPORANEIDADE

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a) Presença de Cesário Verde em Mário de Sá-Carneiro

Como referi no capítulo anterior, a ligação ao passado e o desgosto com a vida


revelam-se evidentes na obra de Sá-Carneiro e estabelecem igualmente a relação do
poeta com aqueles que serviram de modelo para muitos dos seus trabalhos, como
Cesário Verde. É facilmente notória a presença do poeta Cesário na obra carneiriana,
nomeadamente em toda a atmosfera citadina que percorre a sua obra, na presença da
sensualidade feminina e no prazer pela vida do artista. Podemos, desde logo, observar a
primeira versão do poema Simplesmente enviada numa carta a Fernando Pessoa a 26 de
Fevereiro de 1911. Essa primeira versão tem evidentes ecos de Cesário, é visível a
aproximação entre a primeira parte8 com alguns poemas de Cesário tanto na ambiência,
no tema, na situação do sujeito poético, como também na forma e estética,
nomeadamente no aspecto rítmico.
Comparando o poema A Débil de Cesário Verde, poema esse de 1875, podemos
deduzir que existe uma relação deste com o poema de Sá-Carneiro, uma vez que são
sistemáticos os pontos de contacto entre ambos. O sujeito poético surge, teatralmente,
como um sujeito aniquilado que observa uma mulher de vida saudável e honesta que lhe
causa ilustres sentimentos e versos. A ficção gerada é comum a ambos os poemas. Por
um lado Cesário dirige-se à sua “pombinha” na segunda pessoa do singular, o título do
poema apresenta-a num formato impessoal “A Débil”, próxima do tratamento na
terceira pessoa do singular utilizado por Sá-Carneiro. A figura feminina surge vestida de
“linhos matinais” porque Cesário recorre à frescura e delicadeza da mulher em contraste
com o escuro do ambiente decadente citadino que a envolve. Contudo a figura feminina
em Sá-Carneiro é vista “toda negra de crepes lutuosos”, uma vez que esta mulher é
vítima de uma recente orfandade visto que “o pai lhe morreu recentemente”.
Poderemos também observar a analogia rítmica existente entre ambos os
poemas, semelhança esta que se deve a uma utilização idêntica dos mesmos lexemas
nos seguintes versos: “E eu, que urdia estes fáceis esbocetos, / Julguei ver, com a vista
de poeta” no caso de Cesário Verde e “E eu que não sou nem nunca fui poeta, / estes
versos começo a meditar.” no caso de Sá-Carneiro. A tripla adjectivação tão
característica dos autores Naturalistas/Realistas e tão própria de Cesário (“A ti, que és
8
A primeira parte do poema Simplesmente foi integralmente substituída por apenas uma quadra, após sucessivas modificações
sugeridas por Fernando Pessoa.

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bela, frágil, assustada, (…) A ti, que és ténue, dócil, recolhida”) está presente no poema
de Sá-Carneiro: (“Sei que é honesta, sã, trabalhadeira, (…) Móveis úteis, sensatos e
garridos…”). As equivalências semânticas de ambos os poemas são ainda reforçadas
pela estruturação muito semelhante de alguns versos como podemos observar: No caso
de Cesário temos versos como “Eu, que sou feio, sólido, leal”; “Eu, que bebia cálices de
absinto” e “A ti, que és ténue, dócil, recolhida,” que se assemelham com os versos de
Sá-Carneiro “A ela, que era enérgica e prestável, / Eu, que até hoje nunca trabalhei!...”.
Todas estas equivalências semânticas tornam ambos os poemas ritmicamente
semelhantes como já fora anteriormente referido.
O sujeito poético observador auto caracteriza-se similarmente em ambos os
poemas como se pode observar nos seguintes versos:

“Sentado à mesa, dum café devasso, (…)


Eu, que bebia cálices de absinto, (…)”9
“Olhando a minha vida deplorável – (…)
Eu, que até hoje nunca trabalhei!...”10

O primeiro sentido que a figura feminina faz provocar no sujeito poético em


ambos os poemas é a visão, cujos versos “Ao avistar-te, há pouco, (…) E pus-me a
olhar, vexando e suspirando,” no caso de Cesário e “Em frente dos meus olhos, ela
passa (…) Eu perco o meu olhar de quando em quando,” no caso de Sá-Carneiro
comprovam essa afirmação. Ela também suscita inveja e desejo de uma vida simples e
afectuosa em ambos os sujeitos poéticos como sugerem os versos:

“E invejava, – talvez que o não suspeites! –


(…) A tua boa mãe, que te ama tanto, (…)
E uma família, um ninho de sossego, (…)11
“Ah! como nesse instante a invejei, (…)
Uma existência calma e santa e nobre. (…)
Uma casa modesta e sossegada; (…)”12
9
VERDE, Cesário. Poesia Completa. 1ªed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001. p. 90.
10
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 135.
11
VERDE, Cesário. Poesia Completa. 1ªed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001. pp. 90-91.
12
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. pp. 135-136.

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É evidente a semelhança da figura feminina que o sujeito poético observa, em


ambos os poemas, visto que ela nos é apresentada como: débil, “Os seus passos são
leves, vigorosos”, “é honesta, sã, trabalhadeira” e “No seu perfil há distinção, há graça”
ou, no poema de Cesário ela é “(…) recatada, / Numa existência honesta, de cristal”,
“ténue, dócil, recolhida”. A mulher é, em ambos os poemas, modesta, elegante e sem
ostentação. Como, a nível formal, as enumerações das voluptuosidades sonhadas destas
figuras femininas se assemelham, é reforçada a aproximação dos poemas. O modelo
feminino, sublimado e idealizado por Sá-Carneiro, aproxima-se igualmente do modelo
feminino de António Nobre expresso no poema Purinha que surge como socorro e
protecção para o sujeito poético frágil, carente e infantilizado, como está patente nos
seguintes versos:

“Mas a Purinha, então, vindo da rua,


Toda de branco surgirá, como uma lua!
E, então, acordarei d’essa desesperança
E pela mão me levará, como uma criança.
(…)
E eu hei-de em minhas obras imital-a
E amal-a como à Virgem e adoral-a.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão
As marés-vagas d’este doido coração (…)13

A mulher idealizada retracta a ânsia do sujeito poético pela morte, uma vez que através
dela expressa-se o desejo de fugir da realidade quotidiana e reconquistar o paraíso
perdido.
É num cenário citadino que a figura feminina se movimenta confortavelmente
sem qualquer constrangimento. A cidade “Nesta Babel tão velha e corrupta” (no caso de
Cesário) e “Paris” (para Sá-Carneiro) opõe-se à “casa modesta e sossegada”, ao “ninho
de sossego”, elementos esses que representariam o local íntimo circunscrito ao universo
feminino na época. A débil passa “num largo arborizado” e ela, a de Paris, movesse “no

13
São essencialmente as últimas quatro quadras da primeira parte de Simplesmente que mais ressonâncias têm do poeta António
Nobre, quer pela presença do ambiente idílico em que a figura feminina está envolvida quer pelo ritmo que o verso adquire por
vezes.

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boulevard”, todavia a própria atmosfera envolvente é idêntica como podemos visualizar


nos seguintes versos:

“E ao claro sol, (…)


Soberbo dia!”14
“Paris. Inverno e sol. Tarde gentil. (…)
sorvendo o ar de abril.”15

O facto de ambos os poetas se posicionarem fora do seu tempo histórico, das


suas respectivas épocas torna-os contemporâneos. Há, nestes dois poemas, dois
confrontos importantes que estabelecem um jogo de espelhos que ambos os poetas
equacionam no sentido de uma auto-análise do “eu” e essa auto-análise é, de algum
modo, complementada pelo confronto alternado sistematicamente entre o “tu” com o
“eu” e com “os outros” que coabitam nesse universo poético. Por um lado temos um
“eu” poético que reflecte a deploração e a decadência do ambiente onde está integrado e
a multidão entenebrada tal como o grupo de padres, o “bando ameaçador de corvos
pretos”, “o povo turbulento”, “as crianças chilreantes” e “os fracos”, por outro lado a
fragilidade da figura feminina, esta protegida pela mãe, que era energética e prestável, e
que representa o outro lado da realidade, o que é “simplicidade” e “natural”. Esta figura
feminina poderá contribuir para que o sujeito poético se liberte, seja salvo da vida
melancólica e decadente em que se arrasta devido à vida infrutuosa e boémia que o vai
deteriorando, tornando-o saudável e sereno. Entre estes dois poemas há uma tendência
para a decadência do sujeito poético, pois ele lamenta-se da solidão e inveja aquela
figura feminina, sendo também este um aspecto que une a temática destes dois poetas e
é igualmente um dos temas tópos da estética de ambos.
Poder-se-á considerar que existe uma intertextualidade em determinadas
circunstâncias, explicitas para o leitor mais atento que tenha contacto com as cartas de
Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, que parece apontar para um lugar comum aos
dois poetas. Podemos assim concluir que o poema Simplesmente de Sá-Carneiro garante
a contemporaneidade do poema A Débil de Cesário, visto que, segundo as definições de
contemporâneo desenvolvidas por Agamben, o contemporâneo ou a obra
contemporânea é aquela que permite uma dialéctica entre os diversos tempos numa
14
VERDE, Cesário. Poesia Completa. 1ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001. p. 91.
15
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 135.

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relação especial entre os vários tempos e nesse sentido, a contemporaneidade é o


encontro e confronto entre os diversos tempos e as várias gerações. Sá-Carneiro ao
recorrer à estética de Cesário cria dessa forma uma relação estabelecida por afinidades
literárias o que o torna num poeta contemporâneo de Cesário.
Numa carta enviada no dia 10 de Março de 1913, Sá-Carneiro defende a sua
posição, de não alterar o poema em três pontos, relativamente à sugestão que Fernando
Pessoa lhe propôs no sentido de alterar o poema:

“Concordo plenamente com a sua crítica à minha poesia


menos em dois pontos secundários: O verso «A cada
aurora acastelando em Espanha» agrada-me não pelo que
diz mas pela sua corque acho muito intensa e vermelha,
cor dada pelas palavras aurora, acastelando e Espanha.
Coisa curiosa! A quadra foi feita para este verso. Os dois
primeiros, que o meu amigo estima, são uma
consequência deste que surgiu isolado. O outro ponto
sobre o qual não concordo é com a supressão dos
apóstrofes em cor’s e imp’rial. (…) acho que no verso
em casos como este há toda a conveniência em
exactamente diligenciarmos fazer a elisão porque a
verdade é esta, ninguém pronuncia co-res ou im-pe-ri-al.
(…) Ainda o saltar me sugere uma objecção. O meu
amigo diz bem. Mas eu também digo bem. (…) Quanto
ao resto tem o meu amigo razão. Entanto poucas
emendas farei na poesia. É que como muitos pais, a
estimo pelos seus defeitos que ela não podia deixar de ter
em virtude da forma como foi feita. Eu não tinha plano
algum quando comecei. Esperava o Santa-Rita na
terrasse dum café. Passou uma rapariga de preto. Eis
tudo. (…) E a imitação de Cesário Verde – como se
tratava na ocasião dum puro divertimento sem amanhã –

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foi propositada! Mau gosto é claro. Mas eu estava a


brincar.”16

O que é interessante sublinhar neste excerto da carta de Sá-Carneiro é o facto


das palavras do poeta irem ao encontro do conceito de clássico que por sua vez se
aproxima do contemporâneo. O poeta vê Cesário como um pai, no sentido de percursor,
e ao apropriar-se da sua poesia torna-o seu contemporâneo devido às afinidades
poéticas. Segundo Eliot, a literatura, ou um determinado autor só pode atingir uma
determinada maturidade quando anteriormente a ele, alguém o preparou para tal, isto é,
quando os seus antecessores tornaram possível que esse autor chegasse a essa
maturidade não só da língua como também literária. A maturidade de Sá-Carneiro e dos
demais autores de gerações posteriores foi tornada possível porque anteriormente a eles,
os seus antecessores prepararam a língua e a literatura para que essa maturidade pudesse
advir.
A 16 de Março, Sá-Carneiro modifica o poema, como lhe haveria sugerido
Fernando Pessoa, anulando por assim dizer a resistência de alterar o poema que ia sendo
prolongada. A primeira quadra da segunda parte do Simplesmente

“Sinto quasi desejos de fugir


Ao mistério que é meu e me seduz.
Contenho-me porém. A sua luz,
Não há muitos que a saibam reflectir.”17

é substituída por:

“Afronta-me um desejo de fugir


Ao mistério que é meu e me seduz;
Mas logo me triunfo: a sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.”18

16
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001. pp. 55-56.
17
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 137.
18
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Ed. de Manuela Parreira da Silva. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2001. p. 59.

15
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea

A palavra “Sinto” é mais ampla no seu significado e mais comum do que


“Afronta-me” que é composta pelo pronome reflexivo na primeira pessoa do singular
cujo objectivo é evidenciar uma acção de uma força que seria alheia ao sujeito poético
que seria o desejo de fugir. De forma semelhante “me triunfo” evidencia,
narcisicamente, um triunfo sobre si próprio que seria o resultado de uma acção em si
incidida. Noutra carta de 4 de Maio de 1913, o poeta informa Fernando Pessoa de que
teria substituído toda a primeira parte do poema por uma única quadra:

“Ao ver passar a vida mansamente


Nas suas cores serenas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.”19

Esta nova quadra seria um resumo da primeira parte do poema e serviria para se
afastar da presença obsessiva de Cesário. A extracção da primeira parte estaria
relacionada com a elaboração dos restantes poemas do livro Dispersão, visto que há
todo um processo de rescrita como as cartas permitem comprovar. Se na versão inicial
era “ela” quem passava “em frente dos (…) olhos” do sujeito poético, nesta quadra
quem passa é a vida, o eu lírico vê a vida passar. A vida passa “mansamente” com as
“crianças chilreantes deslizando” e as suas “cores” são “serenas”, assim como é calma e
serena a existência e a casa da figura feminina da primeira versão do poema. A
aproximação semântica é evidente. A 13 de Maio desse mesmo ano, Sá-Carneiro
anunciara a Fernando Pessoa que tinha modificado a quadra que substituiu a primeira
parte do poema Simplesmente da seguinte forma:

“Ao ver escoar-se a vida humanamente


Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.”20

19
Idem. p. 75.
20
Idem. p. 84.

16
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Mestrado de Estudos Portugueses Literatura Portuguesa Contemporânea

Nesta quadra a expressão “ver passar” dá lugar à expressão “ver escoar-se” o


que garante ao poema um movimento mais restrito, que faria mais sentido uma vez que
também alterou a expressão “nas suas cores serenas” por “Em suas águas certas.”. O
advérbio de modo “mansamente” é igualmente substituído por “humanamente”,
sugerindo assim que a vida de todos os homens é mansa já que teria pensado
inicialmente no advérbio de modo “mansamente”. A influente mediocridade propaga-se
a todos os homens excepto ao sujeito poético cujo génio impede a sua estagnação e
permite que suba mais alto “subir além dos céus”, um destino alto e raro o que cria uma
imagem eufórica do sujeito. Segundo Fernando Cabral Martins esta imagem eufórica do
sujeito poético pode ser confirmada transcrevendo um excerto da carta de 26 de
Fevereiro, onde se estabelece uma correspondência com outro texto da mesma série
textual O Homem dos Sonhos:

“Há versos que me agradam muito, porque me encontro


neles. Assim, «viajar outros sentidos, outras vidas, numa
extrema-unção d’alma ampliada» é simplesmente o
homem dos sonhos. (…)”21

A chave para toda esta alteração lexical é a palavra “torrente”, provida da quadra
anterior, que remete efectivamente para o campo lexical do lexema água e do verbo
escoar. A aproximação que esta quadra estabelece com Camilo Pessanha é notória. A
imagem das “águas certas” da vida a “escoar-se” que na versão anterior seriam “cores
serenas” da vida a “passar” ressoa com a imagem da “água” a cair “Das beiras dos
telhados” que culmina na “água morrente” do poema Água Morrente de Pessanha.
Deste modo, Sá-Carneiro ao ocultar a presença de Cesário suscita a presença de
Pessanha. Segundo o crítico literário Oscar Lopes a própria sintaxe de Sá-Carneiro
deriva de Pessanha.
O título do poema, após consolidação de uma das linhas de leitura em
detrimento de outra, teria que ser repensado, ao que “Simplesmente” foi suprimido com
a supressão da primeira parte do poema, em que a figura feminina era a inspiradora e o
título é alterado para “Partida”. O sujeito poético afasta-se da vida comum, dirige-se
para um “triunfo maior” que resulta na sua solidão com “A tristeza de nunca sermos

21
MARTINS, Fernando Cabral. O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 196.

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dois”. Este poema Simplesmente torna-se numa espécie de roteiro literário que Sá-
Carneiro vai percorrer de poema em poema, de narrativa em narrativa ao longo do auge
da sua produção literária, muito em particular este último verso de Simplesmente “A
tristeza de nunca sermos dois”.
Na leitura do poema O Estrume é sonante o nome de Cesário, que surge desde
logo na epígrafe do poema:

“Ó pobre estrume, como tu compões


Estes pâmpanos doces como afagos!
Cesário Verde – «Nós»”22

Nesta epígrafe está a evocação e o reconhecimento explícito da influência que a poesia


de Cesário Verde incute na obra de Mário de Sá-Carneiro, sobretudo na sua fase
literária prematura. Como nos sugere desde logo o título em que Sá-Carneiro reflecte,
através do léxico “estrume”, o mau cheiro e a podridão da sociedade da época. Temos
também neste poema a presença da teoria darwiniana do transformismo, da perda de
crença em Deus, da primazia na natureza vegetal em detrimento da natureza humana.
Sá-Carneiro ressuscita Cesário chamando-o para a sua geração poética tornando-o assim
seu contemporâneo. Esta afirmação torna-se possível na medida em que há uma
dialogação poética ao longo do poema que se estabelece entre os poetas. Apropriando-
se da poesia do “outro” torna-o dessa forma seu contemporâneo através de afinidades
poéticas o que nas gerações posteriores virá a suceder-se com o próprio Sá-Carneiro.

b) Presença de Sá-Carneiro nas gerações posteriores

Se há algo que salta à vista, são as diversas relações intertextuais que a obra
carneiriana propicia. Leitor obstinado, tanto da literatura portuguesa como da literatura
em geral, a convivência com autores e a afectividade literária com autores de muitas
épocas resplandece na sua produção literária, não como mera assimilação, mas como
diálogo criativo em que os textos, colocados lado a lado, acabam por iluminar-se
mutuamente, como acontece entre obras de verdadeira arte. No poema Minha senhora

22
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 222.

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de mim23 de Maria Teresa Horta, no qual podemos observar como se combinam duas das
direcções da sua poética nomeadamente o diálogo com os clássicos e a assunção do
corpo.
O poema estabelece ligações entre a questão feminina, o corpo que se rejeita ou
se oculta (“corpo que disfarço”) e o evidente diálogo com a poesia portuguesa. São
expostas as dissensões internas e pessoais que se interiorizam. O suposto poder de
emancipação do sujeito poético enquanto mulher “senhora de si”, dissipasse na
desavença de omitir o corpo como podemos observar nos versos: “Comigo me desavim
(…) / nem o corpo que disfarço”, e no conflito dos afectos a que o eu lírico está sujeito
como podemos observar no dístico: “recusando o que é desfeito / no interior do meu
peito”. O sujeito poético recusa o modelo de identidade, construído pela sociedade, que
nele se encontrava em constante conflito, recusa o sofrimento, a submissão, o recato que
caracterizava a figura feminina ao longo dos séculos e recusa as regras concebidas pela
sociedade com a tomada de consciência da sua própria identidade. No confronto entre o
instinto feminino, inseparável do seu corpo, e o modelo social de feminino, que
constitui a essência cultural da sua própria identidade, o sujeito poético assume sem
qualquer perplexidade o que o corpo deseja, resultando assim na tão ambicionada
emancipação.
Ainda que num contexto diferente existem traços comuns entre Maria Teresa
Hora e a Sá-Carneiro, nomeadamente a questão da divergência do corpo como é
possível observar-se no poema do poeta modernista Dispersão24. A divergência corporal
perceptível no poema de Sá-Carneiro, evidenciada num narcisismo explícito, “Eu beijo
as minhas mãos brancas…”, e num repúdio corporal, como podemos observar nos
versos: “Tristes mãos longas e lindas / Que eram feitas pra se dar…”, indica o conflito
próprio ao corpo disperso, comum, ainda que com diferentes significados, na poesia de
Maria Teresa Horta. Ambos os poetas vêem com desalento os limites incutidos à
expressão do corpo, visto mais como um objecto de recusa do que de plenitude, e nesse
sentido, a androgenia pode ser a solução simbólica, ou por vezes retórica, para a
discriminação que acompanha a mulher como transgressora.
O nosso percurso continua com um poema de Alexandre O’Neill (1924-1986),
Sá de Miranda Carneiro25 publicado em 1979. Na criação deste poema O’Neill recorre à
23
HORTA, Maria Teresa. Antologia Poética. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994. p. 186. (ver poema em anexo).
24
Ver excerto do poema em Anexo.
25
O’NEILL, Alexandre. Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012. p. 351. (ver poema em anexo).

19
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apropriação de quatro versos de Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) e de quatro


versos de Mário de Sá-Carneiro.
Este poema de Alexandre O’Neill faz, simultaneamente, uma homenagem aos
dois ilustres poetas da lírica portuguesa Sá de Miranda e Sá-Carneiro, e actua, através
dos efeitos irónicos provocados pela montagem, numa leitura crítica e desconstrutiva da
figura de um sujeito poético disperso e atormentado, historicamente relevante na
literatura portuguesa. Apesar dos três poetas pertencerem a períodos cronológicos
diferentes, situando-se em contextos específicos à época a que pertencem, facilmente
apontamos algumas semelhanças entre eles. Todos eles são responsáveis por inovações
consideráveis quer a nível de linguagem poética quer a nível de estética da poesia,
valorizando o experimentalismo e optando por uma atitude provocatória para com o
passado, ao mesmo tempo que recuperam elementos oriundos da tradição. Cada poeta,
porém, expõe uma perspectiva diferente que responde a um contexto de uma
determinada época.
No poeta Sá de Miranda, temos um “eu lírico” que está em conflito consigo
próprio. Em Sá-Carneiro, o conflito do duplo ganha uma nova complexidade em relação
ao poeta renascentista, na medida em que o questionamento ontológico do sujeito
poético dispersasse com o sofrimento psicológico do sujeito poético. O confronto
consigo mesmo é ultrapassado pelo auto aniquilamento e a dispersão do eu: “Não sinto
o espaço que encerro / Nem as linhas que projecto: / Se me olho a um espelho, erro / −
Não me acho no que projecto.”26 Alexandre O’Neill, concede ao tema uma elaboração
irónica. A impossibilidade do sujeito poético perante o doloroso conflito interno, leva-o
a expor o tema com um certo distanciamento, desconstruindo o tom com que sempre foi
elaborado na lírica portuguesa. O distanciamento irónico e crítico, por sua vez atenua,
porém não anula o tema da fragmentação do sujeito, que continua a dialogar com os
poetas contemporâneos.
Um dos suportes deste poema de O’Neill é o poema 7 de Sá-Carneiro, como referido
anteriormente, escrito em 1914 e publicado no livro Indícios de Ouro. Este poema
funciona como uma síntese que sustenta toda a obra carneiriana. Trata-se do conflito
entre o “eu” e o “outro”

“Eu não sou eu nem sou o outro,

26
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 34.

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Sou qualquer coisa de intermédio:


Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.”27

A experiência do sujeito poético em relação ao seu conflito interno vai da fragmentação


à dispersão completa do eu, cuja infelicidade já viria dos poemas do livro Dispersão de
1913. Fraccionado entre o desejo de ser um sujeito comum, que simplesmente se
entrega à vida, e o desejo de assumir a genialidade que lhe consinta a transcendência da
banalidade do quotidiano, o sujeito poético dispersa-se sem alcançar uma identidade
própria. Entregue à tristeza pela impossibilidade de não poder ser dois, o sujeito poético
é possuído por uma sensação de abulia, que o leva a identificar-se como o “pilar” de
uma “ponte de tédio” que estabelece a ligação entre as duas margens do ser.
O outro suporte do poema de Alexandre O’Neill e o de Maria Teresa Horta é o
poema Comigo me desavim28 de Sá de Miranda, um dos poetas mais revisitados pelas
gerações posteriores que nele admiram os temas e estilo conciso e elíptico. O poema
reflecte o estado de espírito do sujeito poético que se sente fragmentado em virtude do
seu conflito interior. À luz dos conflitos que marcaram a transição do mundo medieval
para o mundo renascentista, a fragmentação do sujeito poético poderia ser interpretada
como a resultante de um confronto entre forças antitéticas de compreender a vida e o
ser, que coabitam em si. Poderia também essa fragmentação ser interpretada como a
constatação ontológica a respeito de uma dualidade inerente ao ser humano, separado
entre o corpo e a alma, questão esta muito desenvolvida pelos clássicos da antiguidade.
A temática da fragmentação do eu, que se torna numa das mais frequentes na
lírica moderna, era já retratada pelo poeta quinhentista aquando da formação da classe
burguesa. O que se pode considerar moderno no tratamento, em Sá de Miranda, é a
forma como retracta a dor do sujeito poético, o sofrimento que deriva da fragmentação
que lhe causam alienação, impedindo-o de assumir uma identidade própria. O
sofrimento procedente da procura de uma identidade tornou-se recorrente na lírica
moderna, tal como a temática da fragmentação do eu como referido anteriormente. Tal
como Sá-Carneiro e Maria Teresa Horta, O’Neill estabelece uma relação ambígua com
o passado. Recorrendo a formas literárias clássicas, provenientes de fontes medievais e
renascentistas, os poetas afastam-se mas simultaneamente aproximam-se da origem, e
27
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 73.
28
SÁ DE MIRANDA, Francisco. Obras Completas. Vol. 1. 5ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 2002. p. 9. (ver poema em anexo).

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quanto mais se aproximarem da origem mais inactuais, ou seja, mais extra temporais
eles se podem tornar, salvaguardando assim a contemporaneidade. Agamben introduz
precisamente este aspecto ao conceito de contemporaneidade, isto é, a relação do
contemporâneo com o arcaico. É esta dialéctica que estes poetas estabelecem com o
arcaico que vai salvaguardar a respectiva contemporaneidade de cada um deles, visto
que o passado é a garantia do intemporal que por sua vez é garantia do contemporâneo.
Todos estes referidos poetas encontram-se envolvidos na corrente literária do
Surrealismo, o próprio Sá-Carneiro é considerado pelos críticos como um percursor do
Surrealismo português, o que significa que são sustentados pelo passado, na medida em
que essa corrente literária é sustentada pelo passado arcaico para ser projectado para o
futuro sem a necessidade de se recorrer ao presente. O encontro e o confronto entre elas
garantem igualmente a contemporaneidade das suas obras e delas próprias. A
intertextualidade que o poema Comigo me desavim, em particular, proporciona às
gerações posteriores continuando dessa forma fonte viva para a reinscrição, permite a
contemporaneidade do poema.
José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira (1901-1969) foi outro
escritor que apresentou na sua obra relações inter-discursivas com os poetas da geração
de Orpheu. A sua admiração pelos poetas órficos, nomeadamente Mário de Sá-Carneiro,
levou-o a escrever uma peça de homenagem a Sá-Carneiro intitulada por Mário ou Eu
Próprio – o Outro, no livro Três peças em um acto em 1957. Esta peça teatral, que é
como uma continuidade da novela carneiriana Eu – próprio o Outro do livro Céu em
fogo, o autor presencista reflexiona sobre um dos temas nucleares da obra carneiriana,
ou seja, a presença do duplo que percorre toda a obra de Sá-Carneiro. Temos uma
personagem fictícia Mário, um poeta na iminência de se suicidar, que num momento de
angústia e solidão é surpreendido pela figura do Outro, personagem com quem
estabelece um diálogo conflituoso que se mantém ao longo de toda a peça. Esta figura
do Outro acaba por se manifestar como sendo o alter-ego de Mário e mostra-lhe que o
que faz dele um génio é a essência criativa que faz parte integrante do seu próprio
íntimo superando assim todas as limitações físicas que tanto incomodam Mário.
Assim, como Sá-Carneiro, a personagem regiana repugna a sua própria
aparência física, a sua imagem de “papa açorda” e “esfinge gorda”. Mário, cuja
aparência é disforme, surge em cena como uma figura impaciente e desequilibrada
emocionalmente, e em oposição o Outro é calmo, belo e veste-se elegantemente o que

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leva Mário a exaltar-se impetuosamente. A peça teatral termina com Mário incapacitado
de se suicidar, visto que se encontra inconformado com a figura do Outro e nunca o
aceita como o seu alter-ego, jaz após ter ingerido um líquido preparado pelo Outro,
reproduzindo a atitude da figura real de Mário de Sá-Carneiro que se suicidou ingerindo
estricnina, a personagem regiana morre e a cena é envolvida por palhaços e figuras
circenses que teatralizam fielmente o último poema escrito pelo poeta órfico como
podemos observar no seguinte excerto:

“(…) ouvem-se estridências de latas, apitos estalos de


chicote, gargalhadas (…). Entram, aos saltos, palhaços
tocando pratos, figuras de circo fazendo estalar chicotes,
enchendo a cena com as suas risadas e cabriolas. É de
facto uma cena de circo (…). Dois ou três figurantes
erguem o cadáver de Mário, vão pô-lo, (…) sobre as
costas do burro, (…)”29

Régio, na sua obra dramática, vai ao encontro dos factos da vida real do poeta
órfico sendo fiel aos textos por ele produzidos, textos esses que serviram de base para
uma recriação, na óptica regiana, do drama vivido por Sá-Carneiro e para uma recriação
da problemática da fragmentação do sujeito também presente na ficção sá-carneiriana.
A intertextualidade com a obra do poeta órfico dá-se inicialmente, pela voz de Mário,
com a estrofe inicial do poema Fim que é citada quase na íntegra. No seguimento da
peça regiana, o diálogo com a obra de Sá-Carneiro alude para o poema 7, escrito em
1914 pertencente ao livro Indícios de Oiro, na voz da personagem Mário como
podemos observar:
“Mário grita berrando: Sereno, eu?! (…) “Eu não sou eu
nem sou o Outro, sou qualquer coisa de intermédio…”
(…) Devo estar hoje sereno, que hoje é um grande dia. O
maior dia de minha vida. (De novo levanta a face e
declama.) “Pilar da ponte do tédio” (…)”30

29
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. pp. 154-155.
30
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. p. 135.

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Neste excerto, Mário serve-se dos três primeiros versos do poema 7 de Sá-
Carneiro e surgem identificados, na obra regiana, com o sinal gráfico de aspas
marcando a posição de uma citação. As referências intertextuais, nomeadamente dos
poemas Aquele Outro, 7, O Lord e Fim, percorrem toda esta obra regiana. Todavia, José
Régio não obstante da homenagem explícita a Sá-Carneiro, intercede implicitamente,
como um crítico literário da época, como se pode observar:

“O Outro
Não queres fazer uma alocação ao público?
Mário
Que público?
O Outro
Não fazes versos? Quem faz versos tem um público.
Mário
Muito restrito! Devo ter um público muito restrito. Quase
ninguém percebe, quando verdadeiramente se fala em nós:
de mim e ti; e de eles; os papa-açorda. Quase ninguém
percebe! Só depois de eu morto, sim. Hão-de pôr-me o
retracto nos jornais. Hão-de acusar-me uns aos outros de
me não terem compreendido (…)”31

O autor da presença faz uma crítica explícita, recorrendo à voz da sua personagem, aos
leitores da época que pouco compreendiam a concepção artística de Sá-Carneiro. Assim
poder-se-á concluir que a intertextualidade com a obra carneiriana serve também de
recurso utilizado por Régio para uma reflexão sobre a literatura da época.
José Régio foi um grande conhecedor da produção artística de Mário de Sá-
Carneiro, na medida em que contribuiu para a divulgação da obra carneiriana na revista
Presença e escreveu diversos ensaios sobre a obra do poeta órfico. Num dos artigos da
Presença, Régio considera Sá-Carneiro como “o nosso maior poeta contemporâneo (…)
o maior intérprete da melancolia moderna, e um dos grandes poetas portugueses de
todos os tempos”. Uma vez mais, Sá-Carneiro é ressuscitado por um autor de uma
geração posterior, é chamado por Régio para a sua geração poética, tornando-o desse

31
RÉGIO; José. “Mário ou Eu-Próprio – O Outro” in Três peças em um acto. 2ª ed. Lisboa: Portugália, 1969. pp. 146-147.

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modo seu contemporâneo. A constante dialogação literária que se estabelece entre a


peça regiana e a obra carneiriana comprova a contemporaneidade do poeta órfico
através das afinidades literárias que o autor da Presença tem por ele.
Em Soma, uma novela de Hélida Correia (1949), a escritora no papel da sua
personagem principal “António” tem uma atitude semelhante a Mário de Sá-Carneiro no
papel da personagem “Ricardo de Loureiro” da novela A Confissão de Lúcio como
podemos observar no seguinte excerto:

“Por instantes, António saiu do próprio corpo para tomar o


lugar da rapariga, semicerrar os olhos e alcançar aquele
homem magríssimo, amarelo, de cara ensombrecida pela
pequena barba, com os dedos cravados na gola do casaco,
a respeito de quem só podia sentir-se ou medo ou piedade
que iriam resultar num ligeiro tremor e num virar de
costas; tal sucedera a Bárbara, um minuto atrás.”32

Esta capacidade de se desdobrar, de se presenciar diante de si próprio, chegando mesmo


à transmutação de corpos e o apontamento para um processo de metamorfose e
possessão vai ao encontro da atitude de Ricardo de Loureiro, n’A Confissão de Lúcio
que também se desdobra em Marta para, dessa forma, possuir todos aqueles que
pretendia possuir. O duplo assume, porém, outros contornos em Soma, designadamente
por intermédio de Moira, outra personagem da novela, que não reflecte a sua imagem, o
que poderá aludir à imagem de uma porta de passagem para outra dimensão, permitindo
que de uma realidade se perspective outra:

“Numa salinha francamente iluminada Moira sorria a um


pequeno espelho que no entanto não a reflectia. Ele
lembrou por momentos como os velhos contavam que só
por esse indício podiam distinguir-se as almas do outro
mundo e estremeceu, mordendo as mãos geladas. A
mulher acenou aprovadoramente ao que quer que estivesse
a contemplar e depois caminhou na direcção da porta com

32
CORREIA, Hélia. Soma. Lisboa: Relógio D’Água, 1987. p. 30.

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uma ligeireza inadequada ao seu corpo de velha. Ele


esperou uns minutos (...) Depois chegou-se ao espelho e
olhou. Não compreendeu logo que a moldura encerrava
uma placa transparente: que servia de pequena janela
sobre o quarto”33

António, sem perceber nitidamente o início e o fim do sonho e da realidade,


coloca-se face a um espelho que não lhe devolve uma imagem de si, tal como não
reflectiu a imagem de Moira. Contudo, aquela janela abre-lhe a oportunidade de aceder
a uma outra realidade. Por outras palavras, neste caso, o duplo está presente, não porque
se assista a uma mutação da personagem num outro até então subentendido pelos
mecanismos do inconsciente, mas porque de um plano vivencial é concebível
vislumbrar o outro. De forma semelhante acontece com a personagem de Ricardo n’A
Confissão de Lúcio, na medida em que a sua imagem também não lhe é devolvida pelo
espelho.

“− Sabe você, Lúcio, que tive hoje uma bizarra


alucinação? Foi à tarde. Deviam ser quatro horas…
Escrevera o meu último verso. Saí do escritório. Dirigi-me
para o meu quarto… Por acaso olhei para o espelho do
guarda-vestidos e não me vi reflectido nele! Era verdade!
Via tudo em redor de mim, via tudo quanto me acercava
projectado no espelho. Só não via a minha imagem… Oh!
não calcula o meu espanto… a sensação misteriosa que me
varou (…)”34

O espelho impõe-se, portanto, como a ponte que liga as outras dimensões a outros
planos da existência, uma janela aberta aguardando que as personagens a transponham.
Classifica-se, assim, como um objecto que projecta a dimensão fantástica e misteriosa
do texto. Nesta fase, poder-se-á afirmar que a repercussão intertextual que Sá-Carneiro
tem, em particular nas gerações posteriores continuando dessa forma fonte viva para

33
CORREIA, Hélia. Soma. Lisboa: Relógio D’Água, 1987. pp. 98-99.
34
SÁ-CARNEIRO, Mário de. A Confissão de Lúcio. Edição Francisco Lyon de Castro. Mem Martins: Publicações Europa-
América, 1994. pp. 72 – 73.

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rescrita dessas gerações, garante a sua contemporaneidade. Podemos considerar Mário


de Sá-Carneiro um poeta contemporâneo de todos os tempos, intempestivo e
simultaneamente intemporal no seu tempo.

CAPÍTULO III – O MITO EM SÁ-CARNEIRO

Sem antes de concluir, não se pode deixar de abordar a questão do mito em Sá-
Carneiro. Ainda que a obra sá-carneiriana apresente diferentes contornos da mitologia,
próprios do Modernismo, é possível reconhecer algumas alusões ao mito clássico.
Diversos críticos, entre eles David Mourão Ferreira ou Maria Aliete Galhoz, associam a
obra do poeta ao mito de Ícaro. Assim como Ícaro (personagem mítica que,
deslumbrado em alcançar o absoluto, não seguiu o conselho dado pelo pai de evitar
aproximar-se demasiado do sol, vê as asas de cera derretidas e a queda é inevitável) há
no sujeito carneiriano um desejo de libertação ascensional, de alcançar uma estética
iluminada e perfeita, para ser reconhecido literalmente. O poeta nunca chega a alcançar
o sol, ou seja, o reconhecimento desejado, pois há um movimento descendente, não é
uma queda como a de Ícaro, mas sim uma queda sobre si próprio, numa morte
metafórica, uma espécie de queda moral.
N’A Confissão de Lúcio podemos associar a personagem feminina Americana à
figura bíblica do mito de Salomé35, ambas se assemelham fisicamente e dançam
sensualmente ao ponto de seduzirem o “outro”. Tal como a Americana, podemos
também associar Marta à figura de Salomé, visto que ela torna-se na encarnação do mal,
é ela quem rompe as amizades, é fonte de incertezas e intranquilidades, é uma mulher
traidora que difunde a discórdia.
Poder-se-á, de certa forma, concluir que Sá-Carneiro ao convocar mitos da
antiguidade clássica e trazê-los para a sua criação poética torna-se num poeta clássico e
simultaneamente contemporâneo porque existe efectivamente um diálogo intertextual.
Segundo a professora Paula Costa, todos os poetas que conseguem unir em si um
pendor clássico com uma originalidade actual têm reunidas as condições para serem

35
Salomé é uma figura bíblica que personificou a mulher que recorre ao seu poder sedutor para destruir, a sua vaidade originou que,
num acto de vingança ou simples capricho, pedisse a cabeça do apóstolo João Baptista numa bandeja de prata. No final do século
XIX, a figura de Salomé surge como musa dos decadentes.

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considerados poetas Contemporâneos. Mário de Sá-Carneiro é um bom exemplo, de


entre os poetas portugueses, a este nível.

CONCLUSÃO

Mover-se pela obra carneiriana torna-se, portanto, semelhante a perder-se por


entre os seus poemas e textos narrativos, entranhar-se por entre os seus caminhos
intimistas e desconhecidos, isto porque Sá-Carneiro não é um poeta de fácil acesso. Ele
suscita ao leitor uma visualização de representações de imagens, como se o leitor
tivesse, através da sua leitura, a ideia de penetrar num mundo irreal, num mundo
intemporal e são essas representações que, não só embelezam a sua obra, como o
tornam num poeta contemporâneo de todos os tempos.

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Conforme nos envolvemos num trabalho, num estudo ou mesmo num projecto
de vida, a nossa motivação aumenta com o aumento das descobertas e conquistas no
sentido de chegarmos à(s) resposta(s) para as nossas questões. Paralelamente a isso,
também nos satisfaz o facto de quando descobrimos, naquilo que estamos
comprometidos, razões para continuar a acreditar em algo que tenha sentido para a vida
humana. Assim, quando o autor ou a obra conquistam essa condição e provocam no
leitor o desejo de querer viver experiências que alimentam a imaginação, a ele autor, ou
a ela, a obra, não se deve voltar as costas ou fechar os olhos.
Mário de Sá-Carneiro é esse autor que criou uma obra, que suscitou o interesse
das gerações posteriores, sob as diversas influências clássicas e modernas sendo o maior
poeta sensacionista36, que teve como característica não adoptar nenhum movimento
literário especifico, e sim, admitir, na sua obra, elementos de qualquer escola literária,
desde que fosse a favor da sensação. Na sua obra condensam-se características de
diferentes estilos, portanto o poeta não pode ser considerado nem surrealista, nem
simbolista, nem romântico, nem mesmo um futurista ou qualquer outra coisa. É nesse
sentido que Fernando Cabral Martins afirma que “a lírica de Sá-Carneiro é um patch-
work de romântico, futurista, expressionista, decadente, simbolista, cubista” 37,
confluindo assim diversas escolas literárias, sem nunca se esgotar, conferindo-lhe dessa
forma a contemporaneidade. O poeta que opte pela posição de não se integrar em
nenhum movimento literário específico e de não se sujeitar a escolas ou grupos
literários, estéticos ou doutrinários que lhe fossem contemporâneos, no sentido temporal
da palavra, torna-o num poeta, ou estão reunidas as condições do poeta de se tornar num
poeta contemporâneo.
Desse modo, Sá-Carneiro fica a oscilar, ora aproxima-se de uma tendência, ora
de outra, porém nunca pode ser associado a nenhuma delas, até porque, como foi
anteriormente referido, a sua lírica é um patch-work de estilos. Isso talvez porque a
própria criação artística carneiriana encontra alguma raízes no passado. É como se o
passado regressasse ao palco para proporcionar ao autor do presente a observação e a
consciencialização do que se criou no passado e o que poderá deixar de herança às
gerações futuras, inclusive a sua. Compreender o que foi realizado no passado, num

36
A adopção do Sensacionismo é em Sá-Carneiro intensa e frenética, “nenhum sensacionista foi mais além do que Sá-Carneiro”
afirmou Fernando Pessoa numa carta a João Gaspar Simões. (PESSOA, Fernando António. Cartas a João Gaspar Simões. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. p. )
37
SÁ-CARNEIRO, Mário de. Poemas Completos. 2ª ed. de Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. p. 12.

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instante histórico da realização dos factos, assim como ter a capacidade de compreender
o presente, é, segundo Agamben, a condição para ser contemporâneo e viver a
contemporaneidade. Mário de Sá-Carneiro foi contemporâneo à sociedade da sua época
que, mesmo por meio dos seus desafectos, repulsa social e narcisismo, viveu a
incompatibilidade com essa sociedade e é simultaneamente contemporâneo às gerações
posteriores devido ao seu dimensionamento de revivalismo no seio das mesmas.

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ANEXOS

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Minha senhora de mim Dispersão

Comigo me desavim Perdi-me dentro de mim


minha senhora Porque eu era labirinto,
de mim E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
sem dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Comigo me desavim Na ânsia de ultrapassar,
minha senhora Nem dei pela minha vida…
de mim
Para mim é sempre ontem,
nunca dizendo comigo Não tenho amanhã nem hoje:
o amigo nos meus braços O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
Comigo me desavim
minha senhora (O Domingo de Paris
de mim Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
recusando o que é desfeito Os Domingos de Paris:
no interior do meu peito
Porque um Domingo é família,
(Maria Teresa Horta) É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias…


Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada


Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,


Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traíu a si mesmo

Não sinto o espaço que encerro


Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim,


Mas nada me fala, nada!

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Tenho a alma amortalhada, Serei, mas já não me sou;


Sequinha, dentro de mim. Não vivo, durmo o crepúsculo.

Não perdi a minha alma, Álcool dum sono outonal


Fiquei com ela, perdida. Me penetrou vagamente
Assim eu choro, da vida, A difundir-me dormente
A morte da minha alma. Em uma bruma outonal.

Saudosamente recordo Perdi a morte e a vida,


Uma gentil companheira E, louco, não enlouqueço…
Que na vida inteira A hora foge vivida,
Eu nunca vi… Mas recordo Eu sigo-a, mas permaneço…

A sua bôca doirada …………………


E o seu corpo esmaecido, …………………
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada. Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei. …………………
Ai, como eu tenho saudades …………………
Dos sonhos que não sonhei!...)
(Mário de Sá-Carneiro)
E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital. SÁ DE MIRANDA CARNEIRO

Vejo o meu último dia


Pintado em rolos de fumo, comigo me desavim
E todo azul-de-agunia
Em sombra e além me sumo. eu não sou eu nem sou o outro

Ternura feita saudade, sou posto em todo perigo


Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade sou qualquer coisa de intermédio
Em face dessas mãos brancas…
não posso viver comigo
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar… pilar da ponte de tédio
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas… não posso viver sem mim

Eu tenho pêna de mim, que vai de mim para o Outro


Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal? (Alexandre O’Neill)
Um elo? Um rastro…Ai de mim!...

Desceu-me nalma o crepúsculo;


Eu fui alguém que passou.

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Comigo me desavim,
sou posto em todo o perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,


antes que esta assi crecesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo38 de mim?

(Francisco Sá de Miranda)

38
Imigo: inimigo. Forma antiga.

37

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