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O HIBRIDISMO NO OLHAR DO TRADUTOR: A ARTE E A COMUNICAÇÃO EM


VERSÕES DE O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO PARA O PORTUGUÊS

Article · January 2017


DOI: 10.5935/1679-5520.20170026

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2 authors, including:

Maurini Souza
Federal University of Technology - Paraná/Brazil (UTFPR)
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Scripta Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

O HIBRIDISMO NO OLHAR DO TRADUTOR: A ARTE


E A COMUNICAÇÃO EM VERSÕES DE O CÍRCULO
DE GIZ CAUCASIANO PARA O PORTUGUÊS

DRA. MAURINI DE SOUZA


Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR
Curitiba, Paraná, Brasil
(mauriniss@gmail.com)

DR. MARCELO FERNANDO DE LIMA


Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR
Curitiba, Paraná, Brasil
(marcelolima@utfpr.edu.br)

RESUMO: Este artigo defende que a tradução de um texto dramático deve,


quando necessário, evidenciar suas características jornalísticas, levando em
consideração que o texto teatral é híbrido. Tal opção é evidente em obras de
Bertolt Brecht. Assim, o olhar do tradutor, que atua dialeticamente para que o
acontecimento seja abordado o mais completamente possível, assemelha-se ao
do comunicador, que traduz um acontecimento conforme os gêneros
jornalísticos. Buscamos apontar os diferentes critérios levados em conta por
tradutores de O círculo de giz caucasiano, estudando excertos de traduções para
o português, apontando caminhos, para, nesses momentos, intensificar os
atributos de hibridismo do texto original.

Palavras-chaves: Literatura dramática. Jornalismo. Tradução. Bertolt Brecht. O


círculo de giz caucasiano.

Artigo recebido em 01 set. 2017.


Aceito em 03 out. 2017.

SOUZA, Maurini de; LIMA, Marcelo Fernando de. O hibridismo no olhar do tradutor: a arte
e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 44-59.
Curitiba, Paraná, Brasil
Data de edição: 11 dez. 2017.
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HYBRIDISM ACCORDING TO THE TRANSLATOR’S


GAZE: ART AND COMMUNICATION IN PORTUGUESE
VERSIONS OF THE CAUCASIAN CHALK CIRCLE

ABSTRACT: The aim of this paper is to support that the translation of a dramatic
text should highlight its journalistic features, when necessary. We consider that
the dramatic text is a hybrid, as shown in some of Brecht’s works. In this case,
the translator’s point of view, which must act in a dialectic manner in order to
explore an event, is similar to the journalist’s, which translates an event
according to specific genres. This article seeks to emphasize some criteria taken
into account in translations of The Caucasian Chalk Circle and to propose new
solutions, in which the text’s hybrid features can be intensified.

Keywords: Dramatic literature. Journalism. Translation. Bertolt Brecht. The


Caucasian Chalk Circle.

INTRODUÇÃO

Ao traduzir Bertold Brecht do original alemão para o dinamarquês, sua


língua materna, Ruth Berlau, colaboradora do dramaturgo, observou a
complexidade da tarefa:

O mais difícil foi a tradução de A mãe, porque aí eu tinha que também levar em
conta a música de Eisler. [...] Por sua própria natureza, a lírica de Brecht sempre
foi muito mais difícil de se traduzir do que sua prosa. Todas as poesias de Brecht
traduzidas por Hays, Bentley e outros, nos EUA, nunca ficaram perfeitas. Mais
duras ou mais suaves do que deviam ser, essas traduções significaram apenas
uma execução formal da tarefa. (BERLAU, 1987, p. 33)

Essa realidade também se dá quando se pensa em língua portuguesa. A


tradução no Brasil não tem conseguido recriar eficientemente os versos

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e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
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brechtianos, algumas vezes com relação à forma, para a qual o autor buscou
elementos de musicalidade disponíveis na língua alemã, mas primando pela
objetividade na informação; em outras, com relação ao conteúdo, que, no texto
alemão, procura o efeito do distanciamento.
Berlau contou com a ajuda da esposa e atriz principal de Brecht, Helene
Weigel, para questões que não conseguia resolver. Os tradutores brasileiros não
têm essa facilidade. Levando em conta as dificuldades, avalia-se que ainda há
espaço para novas traduções do teórico/dramaturgo alemão. De rimas a efeitos,
passando por ritmos e termos, são encontradas escolhas que geram a perda de
intenções teorizadas ou mesmo descritas pelo autor em seus diários de
trabalho1. Em nome da clareza, tão cara a Brecht, ou de uma compreensão
descontextualizada de sua obra, ou mesmo de uma tendência brasileira ao
caliente, são encontradas, respectivamente, traduções pobres, romantizadas ou
não consoantes com a proposta do teatro dialético.
Em algumas situações, essa dificuldade se apresenta também na prosa,
ou mesmo nos títulos das obras, como a tradução, por Geir de Campos, da peça
Der Jasager und der Neinsager, traduzida como Diz que sim, Diz que não. Sager
significa “o que diz” – do verbo sagen, “dizer”, na forma substantiva, o que é
garantido pelo “r”, e Ja e Nein são, respectivamente, “Sim” e “Não”: ao excluir o
sujeito, Campos distancia o título do teor da obra, que trata de duas situações
idênticas em que o mesmo personagem, um menino, diz sim, da primeira vez, e
não, da segunda (mas a intenção de Brecht é mostrar que a situação diferente
rege as escolhas e não que o menino seja inconstante, conforme sugere a
tradução de Campos).
Existem no mínimo, três traduções de O círculo de giz caucasiano em
língua portuguesa, o que evidencia a aceitação da peça por falantes do idioma:
de Manuel Bandeira, de Geir de Campos e dos portugueses Ilse Losa e Alexandre
O’Neil2. Por entender que muito do que se consideraria na tradução de Portugal
seria, na verdade, adaptação a uma realidade diferente da brasileira, apenas os
textos de Bandeira e Campos serão trabalhados, em comparação ao original 3.

1 Cf. BRECHT, B. Diário de Trabalho – vol. 1 – 1938-1941 . Rocco, RJ, 2002. e Ramthum,
Herta (org). Diários de Brecht: diários de 1920 a 1922; anotações biográficas de 1920 a
1954. Trad. Reinaldo Guarany. Porto Alegre: L&PM, 1995.
2 O’Neil foi responsável pelo “Arranjo dos poemas” da 2ª edição da Portugália.
3 O texto traduzido por Geir de Campos faz parte da coleção Bertolt Brecht, Teatro

completo – volume 9, lançado pela editora Paz e Terra (RJ), em 1992; o de Manuel
Bandeira, do livro O círculo de giz caucasiano, de Brecht, lançado pela Cosac & Naify
(SP), no mesmo ano. De agora em diante, serão tratados, respectivamente, como GC e
MB, respectivamente, acompanhados pelo número da página citada. O original, por sua
vez, é: BRECHT, B. Gesammelte Werke 5 Stücke 5. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1967, que será assinalado por GW e o número da página. Todos os grifos utilizados não
pertencem aos originais, mas é uma forma de destacar palavras ou termos.

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e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
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Ao final deste artigo, pretende-se demonstrar que é desejável uma


tradução em língua portuguesa em que a obra teatral seja tratada como
ferramenta da comunicação de cunho político-social, tal qual objetivava o autor.

CULTURAS DA TRADUÇÃO

Traducere significa “conduzir além, transferir”. Nessa condução, porém,


diferentes pontos devem ser levados em conta, a fim de que um texto
pertencente a uma língua, cultura e até tempos diversos possa encontrar
correspondência com o povo a que irá servir. Dois parâmetros são primordiais
para essa transferência: Goethe considerava fundamental a “relação
pragmática” na tradução; para ele, a tradução deveria levar em conta o
destinatário, valorizando, inclusive, diferentes versões de uma mesma obra tendo
em vista diferenças etárias ou culturais da sociedade a que se destinaria o trabalho,
isto é, da língua de chegada; Ortega y Gasset e Walter Benjamin, por sua vez,
defendem uma tradução fiel à língua de partida (In: DELILE et al, 1986, p. 7-9).
Nas traduções de O círculo de giz caucasiano, Geir de Campos pareceu
mais propenso à concepção de Goethe, enquanto Manuel Bandeira à de
Benjamin. Na primeira página da peça, por exemplo, o Velho Camponês lamenta
que a granja tenha se tornado apenas ruínas, ao que a Moça Tratorista
responde: “Ich habe das Feuer gelegt, Genosse” (GW, 2001), que Bandeira
traduz, conforme o original, “Fui eu que ateei fogo, camarada” (MB, 41), mas
Campos, sensível a que muitos leitores não entenderiam que os russos atearam
fogo em suas terras para enfraquecer os alemães que os atacavam, optou por: “Eu
tinha de botar fogo na granja, camarada” (GC, 189). Apesar de, em alguns momentos
da peça, essa opção não pareça clara, ela está presente em boa parte dela.
Traduzir um texto literário implica, especialmente nos domínios em que
os sistemas linguístico-culturais não apresentam correspondências, encontrar
equivalentes nacionais que, consoantes à maior ou menor abertura e
maleabilidade dos sistemas de chegada e do público visado, podem admitir
algum grau de estranheza (dissimilação) ou assimilação (por exemplo, a
germanização ou o aportuguesamento) do texto de partida.
A equivalência não é, porém, atingida sempre que o grau de estranheza
torne a obra inacessível ao novo destinatário, como, por outro lado, nem toda a
nacionalização é, em si, garantia de obtenção de uma autêntica equivalência
(DELILE et al., 1986. p. 10-11). Na área de comunicação, esses pontos também
devem ser levados em conta, o que corrobora a defesa feita neste artigo da
aproximação entre a arte literária (neste caso, o teatro) e a comunicação.
O questionamento quanto ao alcance dessa equivalência em alguns
momentos da tradução da peça brechtiana acompanha esta análise.

SOUZA, Maurini de; LIMA, Marcelo Fernando de. O hibridismo no olhar do tradutor: a arte
e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
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No final do prólogo, ao responder quanto ao tempo da história contada,


o menestrel (“Cantor”, para Campos e “Recitante”, para Bandeira), responde:
“Es ist eigentlich zwei Geschichten. Ein paar Stunden” (GW, 2007). “Na verdade
são duas histórias. Algumas horas” (MB, 50). Campos, porém, traduz o texto
como: “são só dois episódios: duas horas” (GC, 190). Observa-se, aqui, a falta
da chamada equivalência denotativa.
Sem atribuir o sentido de “ein paar” (alguns, algumas) ao texto, Campos
o traduziu por “um par”, isto é, duas, representando uma opção na tradução
também observada em “Meint ihr, sie werden sich vergreifen an mir?” (GW,
2020), traduzida por Bandeira como “vocês acreditam que eles levantariam a
mão contra mim?” (MB, 68), levando em conta que uma das traduções do verbo
“sich vergreifen” é “profanar”, aplicado aqui como “levantar a mão”. Campos
traduziu o texto como “Estão pensando que eu vou cair nas mãos deles?” (GC,
203), levando em conta o significado “enganar-se”, também atribuído ao verbo
“sich vergreifen”, mas nunca, o que é desprezado pelo tradutor, quando ele é
seguido do pronome “an”. Esse engano, que levaria a governadora a “cair nas
mãos” do povo, direcionou a transposição do sujeito do texto original em objeto
da oração e levou à inversão no sentido da fala. Ainda nesse sentido, a tradução
de Bandeira explicita a característica brechtiana de denunciar a autoconfiança
de quem está no poder4com relação à manipulação do povo.
Equivalência denotativa também foi colocada em dúvida na tradução da
seguinte fala, após Laurenti revelar a Grusche que seu casamento por
encomenda custará quatrocentas piastras:

Grusche: Woher hast du die?


Laurenti (schuldbewußt): Anikos Milchgeld (GW, 2050)

Traduzida por Bandeira como:


Gruscha: E aonde vais buscar esse dinheiro?
Laurenti (com ar de culpado): O dinheiro do leite de Aniko

E por Campos:
Grusche: E onde foi que você arranjou tanto dinheiro?
Laurenti (com a consciência pesada): Aniko Milchgeld.

4 “A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros./ Os dominadores se estabelecem


por dez mil anos./ Só a força os garante./ Tudo ficará como está. Nenhuma voz se
levanta além da voz dos dominadores. (Poema “Elogio à dialética”, Bertolt Brecht.
Disponível em http://www.culturabrasil.pro.br/brechtantologia.htm# A exceção e a
regra. Acesso em 21 dez.2013).

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O alemão, assim como o inglês, utiliza o substantivo posposto ao genitivo


– o “s” incluído no final de “Aniko”, o nome da esposa de Laurenti, esclarece
qualquer dúvida neste sentido. Além disso, a mulher de Laurenti Vachnadze
deveria se chamar Aniko Vachnadze, já que Grusche, numa cena posterior, para
contar a Simon que estava casada, pergunta-lhe quanto à situação em que uma
mulher muda de sobrenome, indicando que, no contexto da peça, carrega o
nome do marido. Além disso, essa fala demonstrava que o poder que Aniko
exercia sobre o marido decorria do fato de ser ela quem possui o dinheiro, o que
remete à postura marxista apoiada por Brecht de que o contexto econômico
exerce poder sobre o indivíduo. A escolha do tradutor, portando, dissocia o texto
dessa informação.
É do mesmo grupo a falta de equivalência em “Und jetzt sing ich was auf
dich, hör zu:” (GW, 2044 – grifo nosso), que Bandeira traduz como: “E agora,
vou cantar-te uma cantiga que fala de ti, escuta!” (MB,103); e Campos: “E agora,
vou cantar uma canção para você, preste bem atenção!” (GC, 230), confundindo
a preposição “auf”, que induz ao significado expresso pela primeira tradução,
por “für”, que seria utilizada caso a música fosse “para” Michael. Mais uma vez,
a opção afasta o espectador da proposta teórica do autor. As representações
populares são transmitidas com o objetivo de trazer à tona a história dos povos
– é a “voz do narrador anônimo, que existiu antes de toda a literatura”
(BENJAMIN,1993, p. 219), sem a visão individualista de ressaltar o ouvinte. É
essa história que o povo (a criada Grusche) canta sobre o opressor (o bebê
Michael), buscando distanciar (efeito V5, da teoria brechtiana) os personagens
das características individuais e associá-los às sociais e históricas por meio
desse gestus6.
Também no verso da canção: “Sie können nicht auf vier zählen, fressen
aber acht Gänge”, traduzido por Bandeira como: “Não sabem contar até quatro
e devoram oito pratos de enfiada”, deveria ser levado em conta que “fressen”, é
o verbo que designa o “comer” dos animais: um homem “ißt”(do verbo “essen”),
e um animal “frißt”. E que “Gänge”, palavra com várias traduções, como galeria,
passagem ou marcha, também significa prato. Assim fez o poeta. Campos,
porém, adaptou o texto para: “Não sabem contar nem de um até quatro, mas
oito empregos sabem ocupar”, numa expressão que optou por privilegiar a

5Verfremdungseffekt, o “efeito do distanciamento”, na teoria de Brecht, que pressupõe


opções geradoras da não empatia entre público e espetáculo. O texto, as atuações, os
cenários, as indumentárias e os demais elementos da peça teatral fazem parte dessas
opções.
6 Também elemento da teoria de Brecht, o conceito de gestus ou gesto social é definido

da seguinte maneira: “Por gesto social deve entender-se a expressão mímica e conceitual
das relações sociais que se verifica entre os homens de uma determinada época”
(BRECHT, 1978. p. 84). Associada à busca pelo distanciamento (efeito V), “A perspectiva
que adota é crítico-social” (BRECHT, 1978. p. 84).

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postura crítica adotada por Brecht à estrutura social da época à literalidade do


texto e, ao mesmo tempo, associá-la às críticas atuais de corrupção no serviço
público.
Outra diferença de tradução sobre a qual refletir refere-se à fala:“Ich
glaub, ich bet besser schnell noch einen Rosenkranz, da der Richter besoffen
ist” (GW, 2090); para Bandeira: “Acho melhor eu rezar outro rosário pra que o
juiz esteja bêbado” (MB, 170), traduzido por Campos como: “Acho melhor rezar
depressa um terço para o Juiz não estar bêbado” (GC, 280); observa-se em
Campos uma inversão à proposta da peça, já que uma das críticas de Brecht é
ao sistema jurídico. Um juiz, bêbado, que é melhor que os sóbrios, revela a
postura do autor quanto ao assunto. Mais uma vez, a opção de Campos leva em
conta as condições individuais do personagem, omitindo a real crítica do autor,
que é dirigida à lei em si – como a lei é pervertida; quanto menos um juiz for fiel
a ela (bêbado), melhor será para o povo7.
Bandeira também deixa de lado a equivalência denotativa quando traduz
a interjeição: “O Verwirrung!” (GW,2058), (“Que confusão!” GC, 245), por “Oh, a
lição” (MB, 123), que cabe em uma palavra que denota loucura, desordem ou
mesmo a “confusão” proposta por Campos. Esse aspecto faz parte de uma
característica do poeta, comentada pela equipe portuguesa de Problemas da
tradução literária:

Outro princípio programático enunciado por Arnaldo Saraiva, que nem sempre se
nos afigura totalmente cumprido, é o de não ‘literatizar’ o texto de partida. Tal
propósito, em si altamente louvável, é desde logo prejudicado, em casos pontuais,
pela sobrecarga imagética, como atrás pudemos verificar (...) de textos que se
pretenderiam enxutos e até com assomos de rudeza, para fazer jus à matriz.
(DELILE et al., 1986, p. 101-102)

7 A postura brechtiana sobre o sistema judiciário pode ser confirmada na “Canção dos
Tribunais”, da peça A exceção e a regra: “Seguindo os rastros dos salteadores,/ Surgem
os tribunais: /Depois que o inocente é trucidado,/ Reúnem-se em volta dele os juízes e
ele é condenado. / Em torno à cova do trucidado, /Também o seu direito é mutilado.
/Dos tribunais as sentenças se precipitam /Quais sombras de falcões de magarefes.
/Um falcão desses tem força à beça, e dispensa /O contrapeso de qualquer sentença. /
Olhem: é vôo de abutres! Aonde vão?/Do deserto, onde não há nada mais, /Fogem, para
comer os tribunais. /Os assassinos lá estão. Os perseguidores /Em segurança lá estão.
Os perseguidores /Em segurança lá estão. E os que roubam /Vão lá esconder seus
roubos, enrolados /Num papel onde há uma lei lavrada. que roubam /(Disponível em
http://dialogosliterarios.files.wordpress.com/2013/04/a-excessc3a3o-e-a-regra.pdf.
Acesso em 25 dez. 2013).

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Encontrada em outras passagens da tradução, principalmente naquelas


em que se observa o hibridismo lírico. O poeta Manuel Bandeira optou pela
“recriação poética” de algumas canções, o que é tido como “não apenas lícito,
mas também altamente meritório”, mas é possível perceber, em alguns casos, o
“prejuízo da equivalência conotativa” (p. 27; 28). Foi o que ocorreu em uma
canção como:

Da dich keiner nehmen will


Muß nun ich dich nehmen
Mußt dich, da keinandrer war
Schwarzer Tag immagernJahr
Halt mitmirbequemen.

[…]

WerfdeinfeinesHemdleinweg
Wickle dich in Lumpen
Wasche dich und taufe dich
Mitdem Gletscherwasser.
(Mußt es überstehen) (GW, 2041)

Que Campos, optando por uma tradução mais literal (com exceção do
último verso, em que “überstehen” significa “sobreviver, suportar”) representou
da seguinte forma:

Ninguém quis cuidar de ti


E eu tive que te cuidar;
Tu, sem teres mais ninguém,
Por maus dias de um mau ano
Tiveste que me aturar.

[...]

Te dispo a camisa fina,


Te enrolo num pano velho
E te lavo e te batizo
Na água branca da geleira.
(É uma bênção verdadeira!) (GC, 226, 227)

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E Bandeira:
Já que em ninguém encontraste
Coração amigo,
Tens que, à falta de outro amparo,
Te arranjar comigo.

[...]

Tira a camisinha fina


Veste este trapo, lavar
Te vou e te batizar
Na água gelada do rio,
Meu lindo! Tens que aguentar (MB, 98, 99).

As expressões “coração amigo”, e “meu lindo!” destoam das


características da personagem. A criada Grusche, para o autor, não deveria ser
combinada a palavras convencionalmente carinhosas. Nas Anotações sobre O
círculo de giz caucasiano, traduzidas pelo próprio Bandeira, Brecht escreveu
que:

Já não estou satisfeito com a gruscha do C(írculo de) G(iz caucasiano). ela devia
ser simplória, uma besta de carga. Devia ser mais cabeçuda que rebelde, mais
dócil que bondosa, mais resistente que incorrompível, e assim por diante. Essa
simplicidade não devia passar por ‘sabedoria’(como quer o chavão), pois devia
ser inteiramente condizente com a índole prática, até mesmo com a astúcia e o
tino para as qualidades humanas. Na medida em que carrega o selo do atraso
de sua classe, grucha não devia se prestar tão facilmente à identificação (dos
espectadores), para assim, em certo sentido, figurar objetivamente como
personagem trágica. (MB: 201)

No momento em que Simon estava se preparando para pedi-la em


casamento, ela o interrompe no meio do pedido com a afirmação: “Simon
Chachava, como eu tenho de ir para o terceiro pátio e estou com muita pressa,
minha resposta é: sim!” (GC, 201); quando iria deixar o menino com a
camponesa, com carinho fala com ele, chamando-o de “kleinen Dreck” (GW,
2035), ou seja, pequena porcaria ou imundícia ou ninharia, que Bandeira
traduziu por “mijãozinho” (MB, 90) e Campos por “pingo de gente” (GC, 220),
em expressões eufêmicas. Na canção que faz para a criança, ela diz, numa
tradução literal de Bandeira: “Teu pai é um bandido; tua mãe, uma puta: Verás
a teus pés/ O homem mais honrado”. Essa é a linguagem da criada. Até durante

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o julgamento, ao se referir às belas palavras da governadora e seus advogados


para reaverem a criança, ela expressa essa dificuldade: “Bonita Justiça! A gente
é castigada só porque não sabe fazer discurso enrolado, como aquela mulher e
os advogados dela” (GC, 290). Portanto, apesar de ser uma “recriação poética”,
o texto de Bandeira “redunda em prejuízo da equivalência conotativa” (DELILE
et al, 1986. p. 27-8) quando se preconiza o olhar do comunicador Brecht, que
busca, no expectador, o distanciamento necessário para analisar a obra de arte
como relato social, tal qual um texto jornalístico.
O mesmo acontece na canção do despenhadeiro:

Tiefist der abgrund, Sohn


Büchig der Steg
Aber wirwählen, Sohn
NichtunsernWeg. (GW, 2043)

É fundo o depenhadeiro
E a ponte é frágil, filhinho,
Mas não foi nenhum de nós
Que escolheu este caminho. (GC, 229)
Fundo é o abismo, filhinho,
Frágil a pinguela, mas
Não somos nós que escolhemos,
Meu lindo, o nosso caminho. (MB, 102)

Sohn é filho, não “filhinho”, e muito menos “meu lindo”, na mesma


tendência à literatização que atribui à personagem uma característica que a
afasta do teatro proposto pelo dramaturgo. Como ferramenta de comunicação
transformadora, o texto teatral deve primar por despertar no leitor/espectador
a crítica proveniente da análise. Quanto mais esse texto investir na
individualização do personagem, menos ele vai transmitir as características
sociais que pretendem ser expostas. “Filho” é uma posição social, com uma
definição concreta; “filhinho” ou “meu lindo” são expressões subjetivas.
Algumas traduções retardam a velocidade ou objetivo do texto e do
contexto da peça. Por exemplo, quando o Menestrel, numa frase colocada entre
várias linhas de rubricas, exclama“alto”: “Schrecklich ist die Verfürung zur
Güte!” (GW, 2025).Ele realmente quis expressar o que traduziu Bandeira:
“Terrível é a tentação do bem!” (MB, 75), pois schreklich é “terrível, horrível,
horroroso, medonho, espantoso, insuportável”8,o que condiz com tudo o que

8MICHAELIS: pequeno dicionário alemão-português, português-alemão/ Alfred Josef


Keller. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

SOUZA, Maurini de; LIMA, Marcelo Fernando de. O hibridismo no olhar do tradutor: a arte
e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
Uniandrade, v. 15, n. 3 (2017), p. 44-59.
Curitiba, Paraná, Brasil
Data de edição: 11 dez. 2017.
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Grusche passará com o menino. Não, como traduziu Campos: “Que poder
fabuloso tem a vocação da bondade!” (GC, 209), alterando o sentido. Justamente
em busca do distanciamento, Brecht critica a bondade da criada, que só lhe
geraria problemas, como a atitude irresistível do oprimido, representado por ela,
de ajudar o mais fraco, atitude que faz parte do seu cotidiano.
Na discussão com o juiz, Grusche é ameaçada com uma multa de vinte
piastras, ao que responde, numa representação da espontaneidade da fala
popular: “Und wenn’s 30 werden, ich sag dir, was ich von deiner Gerechtigkeit
halt, du besoffene Zwiebel” (GW, 2100). Que, em uma tradução mais próxima
ao original, seria algo como “E se tiver que pagar trinta, vou te dizer o que acho
da tua justiça, sua cebola bêbada”, mas encontrada em Campos como: “Mesmo
que tenha de pagar trinta piastras, ainda quero dizer mais uma coisa sobre essa
sua justiça, seu pimentão encharcado em álcool” (GC, 290; 291), reduzindo a
velocidade imposta pelo original, introduzindo “mesmo que tenha...ainda quero
... mais uma coisa”, e mudando o incisivo “cebola bêbada” para “pimentão
encharcado em álcool.” Já Bandeira manteve o dinamismo: “E que fossem
trinta, eu havia de dizer o que penso de tua justiça, esponja borracha” (MB,
183), mas dificilmente o público entenderia que “esponja borracha” é uma
ofensa ao alcoolismo do juiz.
A falta de equivalência conotativa se observa na caracterização de Azdak,
por Campos, quando informa que o juiz “perde a paciência” (GC, 291); o original
sequer esboça tal reação e perder a paciência não é uma característica do juiz,
que se apresenta irônico e dominador em todo o julgamento.
Uma das contribuições de Campos, em busca de maior correspondência
com a língua de chegada, foi a adaptação dos provérbios populares encontrados
no original; quando Grusche fala com o menino Miguel, por exemplo:

Mitagszeit, essend’Leut. Da bleibenwir also gespanntim Gras sitzen, bis die


guteGruscheeinKännchenMilcherstanden hat. (GW, 2027)9

A tradução literal da primeira frase seria algo como: “Ao meio-dia, as


pessoas comem”. Campos inclui o provérbio: “Meio-dia: panela no fogo, barriga
vazia! Está na hora da gente comer. Agora vamos ficar sentadinhos aqui na
grama até a Gruschezinha voltar com uma caneca de leite!” Essa intervenção
demonstra os pontos levantados neste artigo.
Brecht inclui, no texto, vários provérbios que podem exemplificar a
posição de Bandeira em primar pela língua de partida e a de Campos em preferir

9 Tradução de Bandeira (fiel ao original): “Meio-dia, todo mundo vai comer. Não vamos
ficar sentados na grama, esperando que a boa Gruscha arranque deles uma canequinha
de leite”.

SOUZA, Maurini de; LIMA, Marcelo Fernando de. O hibridismo no olhar do tradutor: a arte
e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
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adaptar a tradução a “equivalentes dinâmicos, com o mesmo valor estilístico e


pragmático” (DELILE et al, 1986, p. 20). Nesse caso, é preferível, certamente, a
tradução de provérbios e ditados feita por Campos, porque os provérbios
utilizados pelo povo oprimido são uma forma de representação social, que
Brecht busca retratar com fidelidade próxima à dos textos de comunicação.
Quando fala em Gestus, Brecht inclui expressões que, como os
movimentos, deverão ser reconhecidas pelo público. Tal como os chavões
bíblicos, provérbios e falas populares fazem parte dessa concepção. Para o
brasileiro, “Quando se ferra o cavalo, o carrapato estica as pernas” (GC, 289) é
Gestus, enquanto “Quando se vai ferrar o cavalo, o escaravelho do cavalo
estende logo as pernas” (MB, 182) perde essa característica, presente no texto
original. Outro exemplo, que faz parte da sequência de ditados expressos por
Azdak e Simon é o traduzido por Campos como “O peido é assim porque não
tem nariz” (GC, 290), e por Bandeira como “O peido não tem narinas” (MB, 182),
o que revela que Campos foi preciso na equivalência conotativa dessas falas e
que a peça teatral com essa tradução vai trazer à tona mais fielmente as
características do povo que se pretende apresentar.
Os efeitos sonoros inseridos nos textos abaixo carregam uma
característica que Brecht atribuiu ao menestrel – a forma popular de repetir
expressões de apoio para narrar uma história:

Da kehrte der Governeur in seinenPalastZurück


Da war die FestungeineFalle
Da war die Gansgerupft und gebraten
Da wurde die Gansnichtmehrgegessen
Da war Mittagnichtmehr die Zeitzum Essen
Da war Mittag die ZeitzumSterben. (GW, 2013)

O “da” (“daí” ou “então”) reproduzido insistentemente em todos os versos


busca imitar a língua falada, em que o orador (popular, não sofisticado) vai
sequenciando e ecoando essa expressão. Tal marca foi omitida por Bandeira,
que em alguns versos optou pela conjunção “e”:

O Governador voltou ao seu palácio;


E a trincheira era uma cilada,
E o pato estava depenado, assado
E o pato nunca foi comido,
E meio-dia não era mais a hora do banquete,
Meio-dia era a hora da morte. (MB, 59)

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Geir de Campos manteve maior fidelidade nesse ponto, preservando a


impressão da linguagem utilizada pelo povo ao contar histórias. Não manteve o
“Aí”, porém, nos dois últimos versos’:

Aí o Governador volta para o palácio.


Aí do fortim dele agora é uma armadilha.
Aí já estava o ganso depenado e assado.
Aí o ganso não ia mais ser provado.
Meio-dia não era mais hora de comer:
Meio-dia era agora a hora de morrer. (GC, 196)

Em pontos como esse, observa-se o investimento do autor em reproduzir


no palco a linguagem dos grupos sociais representados no texto; acredita-se que
uma diferença entre o texto jornalístico e o literário é que aquele não comporta
acréscimos ao relato, nem distorções dos fatos, ao passo que a literatura tem
liberdade de criação. Tal postura é desmistificada por Genro (1987) que, em
consonância com os estudos de análise do discurso, defende a multiplicidade e
pluralidade dos fatos como formas dialeticamente constituídas. Para Genro, a
diferença entre literatura e jornalismo se dá pela perpetuação daquela em
contraste com a efemeridade deste:

É a dimensão objetiva da singularidade que diferencia o jornalismo da arte. Esse


compromisso prioritário com a singularidade objetiva impede que
o particular possa cristalizar-se - pelo menos em regra - enquanto categoria
estética, como ocorre na produção artística. (GENRO, 1987)

As crônicas, porém, que resistem ao tempo, desmistificam a postura de


Genro, sendo apontadas como gênero híbrido; essa classificação aponta para a
complexidade, tanto do gênero jornalístico quanto do artístico e conduz à
suposição de que, se o texto jornalístico, com uma característica especial, pode
tornar-se literatura, por que a literatura não poderia ser também jornalismo,
se, da mesma forma, reunir características próprias da “dimensão objetiva da
singularidade?”.
No caso da literatura brechtiana, que por meio de “fábulas” busca
denunciar o tempo em que está (efêmero), a sociedade de que participa
(proximidade), com objetivo de transformação do dia-a-dia do seu espectador, é
possível atribuir à dimensão objetiva (informativa?10) à linguagem, à descrição

10No sentido de Benjamin (1985): “A cada manhã, recebemos notícias do mundo inteiro.
E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos
chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que

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de cenários, aos figurinos ou à intenção do texto, numa proposta que se mostra


híbrida entre a arte e a comunicação. Se o enredo não encontra um referente
no mundo, os traços de ferramenta de comunicação se dão nesse entorno.
O outro aspecto diferencial entre as duas áreas, para Genro, é que, na
arte, a subjetividade do autor é soberana, regendo a representação de forma
arbitrária: “O jornalismo tampouco elabora uma espécie de representação cujo
aspecto singular é arbitrário, projetado soberanamente pela subjetividade do
autor, tal como acontece na arte, onde o típico é o eixo fundamental de contato
com a realidade” (1987). Como artista, o dramaturgo teria essa possibilidade,
da qual abre mão em benefício de uma proposta teórica que romperia com as
propostas anteriores11, na qual as características do tempo presente
fusionariam as temáticas abordadas, substituindo o “típico” pelas
características sociais de sua época.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As peças de Brecht eram seu jornal, seu palanque, uma forma de


representar a sociedade com objetivos de transformação: “creio que o mundo de
hoje pode ser reproduzido, mesmo no teatro, mas somente se for concebido
como um mundo suscetível de modificação” (BRECHT, 1978. p. 7). Quando o
dramaturgo orienta, em Estudos sobre Teatro, à inserção de telas com textos
nas apresentações das peças, para conferir ao palco uma “feição literária”, ele
demonstra seu investimento em extrapolar as fronteiras da literatura ao
encontro de outras “instituições da atividade intelectual”, da qual a
comunicação faz parte:

As telas, sobre as quais se projetaram os títulos das cenas, são um impulso


inicial de conferir ao teatro uma feição literária. A este impulso de transformação
do teatro (no sentido de torná-lo mais literário) e, de um modo geral, de
transformação de todos os setores da vida pública, deverá se dar o máximo
incremento. Atribuir uma feição literária ao teatro significa impor a figuração
dos acontecimentos através de sua formulação. Tal processo possibilita ao teatro
aproximar-se das outras instituições da atividade intelectual. Esta

acontece está a serviço da narrativa e quase tudo está a serviço da informação. Metade
da arte narrativa está em evitar explicações (p. 203).
11 “Estas peças divergem entre si à maneira dos astros do novo universo da física, como

se ali também não sei que núcleo da arte dramática tivesse explodido. Isto posto, a teoria
que as sustenta ou que delas se pode deduzir é, por seu lado, muito precisamente
definida em relação a outras teorias. Talvez não se deva tampouco esquecer que o tempo
fusiona as diferentes obras de um poeta” (BRECHT, 2002. p. 187, 188)

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transformação permanecerá, contudo, unilateral, enquanto o público nela não


coparticipar e enquanto não ascender, através dela, a um nível superior.
(BRECHT, 1978, p. 26)

Um teatro que busca se dissociar das propostas de arte pela arte e


completar-se no confronto com o público, intervindo na sociedade em que atua,
buscando extrapolar seus limites e somar-se a outras instituições, é uma arte
que se propõe híbrida com a comunicação, numa proposta conjunta em prol da
transformação social. As opções apresentadas aqui – defendidas ou criticadas –
tiveram como objetivo destacar essa característica do autor como indissociável
da sua obra, e se entende que o olhar do comunicador, no momento da
tradução, pode resgatar essa proposta de hibridismo, não somente do trabalho
de Brecht, mas também de qualquer obra literária que tenha características
afins a essa outra área do conhecimento.
O dramaturgo/comunicador Bertolt Brecht representa uma linha da
dramaturgia que apresenta uma provocação aos pesquisadores/profissionais
da área da Comunicação, no sentido de buscar também no teatro fontes para o
desenvolvimento de uma comunicação dialética que atue como elemento
transformador da sociedade.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio


Paulo Rouanet e Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BERLAU, R. Lai-tu, a amiga de Brecht. Trad. M. Lisboa. São Paulo: Brasiliense,


1987.

BRECHT, B. Diário de trabalho. Trad. R. Guarany e J.L. de Melo. Rio de Janeiro:


Rocco, 2002

______. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama P. Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.

______. Teatro completo. O círculo de giz caucasiano. Trad. Geir de Campos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______. O círculo de giz caucasiano.Trad. Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac &
Naify , 1992.

______. GesammelteWerke 5 Stücke 5. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1967.

DELILE, K e M; HÖRSTER, M; CASTENDO, M; CORREIA, R. Problemas da


tradução literária. Coimbra: Almedina, 1986.

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GENRO, A. O enigma da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo.


Porto Alegre: Tchê, 1987.

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Josef Keller. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

SOUZA, M. O hibridismo de gêneros literários como procedimento dialético e


fator de distanciamento no teatro de Bertolt Brecht. Dissertação. (Mestrado em
Estudos Literários). UFPR. Curitiba, 2005.Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/4257/disserta%C
3%A7%C3%A3o%20Maurini.pdf?sequence=1. Acesso em: 27 dez. 2013.

TAVARES, E. Jornalismo nas margens – uma reflexão sobre a comunicação em


comunidades empobrecidas. Florianópolis: Companhia dos Loucos, 2004.

MAURINI DE SOUZA é professora na Universidade Tecnológica Federal do


Paraná (UTFPR), no programa de Mestrado em Estudos de Linguagens (PPGEL)
e nas graduações de Comunicação Organizacional e Letras. Doutora em
Sociolinguística (texto publicitário Brasil - Alemanha) e mestre em Letras
(Dialética no Teatro de Bertolt Brecht) pela Universidade Federal do Paraná.
Possui graduação em Comunicação Social Jornalismo, graduação em Letras
Alemão e graduação em Letras Português pela Universidade Federal do Paraná.
Tem experiência nas áreas de Comunicação, Ciências Sociais e Literatura
dramática, atuando principalmente nos seguintes temas: texto jornalístico e
publicitário, questão agrária brasileira e teatro político-social. Publicou artigos
na área de Comunicação e Arte (teatro), sob a perspectiva sociológica, como “A
escritura cenográfica no trabalho de Fernando Marés. Repertório: teatro &
dança” (2016); “Categorias sociais da A Ópera do Malandro” (2016) e “Discursos
do Feminino na Contemporaneidade: Revista TPM” (2016).

MARCELO FERNANDO DE LIMA é professor-adjunto da Universidade


Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) - Campus Curitiba, atuando no
Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação (DALIC), nas
graduações em Letras e em Comunicação Organizacional e no Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Linguagens (PPGEL). Graduado em Jornalismo
(1992, PUC-PR), mestre (1998) e doutor (2010) em Letras (UFPR), Trabalhou por
uma década como repórter e assessor de comunicação. É autor de Sobre galhos,
esqueletos (Aos Quatro Ventos, 1999), Nas trilhas de Saint-Hilaire (FCU, 2002)
e Jornalismo cultural e crítica (Editora UFPR/Argos, 2013).

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e a comunicação em versões de o Círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
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