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Scripta Uniandrade, v. 19, n.

3 (2021)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

AS MULTIFACES DA CRÍTICA

GABRIELA RIBEIRO NUNES (DOUTORANDA)


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
(j15c17g11@hotmail.com)

RESUMO: A crítica literária, altamente regulamentada no mundo Antigo, sofreu uma


grande reviravolta quando Kant tirou o fundamento que a regia, ao publicar seu livro,
Crítica da faculdade do juízo (1790). Dando início à Modernidade Crítica, a lacuna
deixada pelo filósofo de um fundamento para o juízo estético resultou em diferentes
respostas na busca de uma nova regulamentação da crítica. Dentre elas, o presente
artigo pretende tratar de três: a biográfica/historicista, a hermenêutica e a
formalista/organicista. Também se propõe a desenvolver brevemente a crítica
impressionista praticada por Anatole France, que só foi possível depois da
desregulamentação kantiana. Dessa forma, será possível observar como a crítica é
multifacetada, possibilitando diversos juízos de valor de um objeto estético, dependendo
da concepção adotada.

Palavras-chave: Crítica literária. Modernidade Crítica. Crítica científica. Crítica


impressionista. Hermenêutica. Formalismo organicista.

Artigo recebido em: 21 set. 2021.


Aceito em: 12 out. 2021.

NUNES, Gabriela Ribeiro. As multifaces da crítica. Scripta Uniandrade, v. 19, n. 3 (2021), p. 291-
308.
Curitiba, Paraná, Brasil
Data de edição: 11 dez. 2021
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CRITICISM’S MULTIFACETEDNESS

ABSTRACT: Literary criticism, highly regulated in the ancient world, underwent a major
upheaval when Kant removed the foundation that governed it with the publication of
his book, Critique of Judgment (1790). Starting Critical Modernity, the gap left by the
philosopher of a foundation for aesthetic judgment resulted in different responses,
searching for new criticism regulations. Among them, this article intends to deal with
three: the biographical/historicist, the hermeneutic and the formalist/organicist. We
also propose to briefly develop the impressionist criticism practiced by Anatole France,
which became viable after the Kantian deregulation. So, it will be possible to observe
how criticism is multifaceted, allowing different value judgments of an aesthetic object,
depending on the conception adopted.

Keywords: Literary criticism. Critical Modernity. Scientific criticism. Impressionist


criticism. Hermeneutics. Organicist formalism.

CRÍTICA: OS PRIMEIROS PASSOS E O PROBLEMA DA FALTA DE


FUNDAMENTO EM KANT

Etimologicamente, o vocábulo “crítica” provém do verbo grego “krinein”,


que significa julgar, realçar. A princípio, era um dos estágios da gramática, como
observou Dionísio Trácio em seu pequeno tratado sobre o assunto, intitulado
Gramática:

A gramática é a experiência das coisas ordinariamente ditas em poesia e em


prosa. E são seis as suas partes: a primeira, recitação experta conforme a
prosódia; a segunda, exegese, conforme os tropos poéticos existentes; a terceira,
explicação do alcance das palavras e dos relatos; a quarta, descoberta da
etimologia; a quinta, exposição da analogia; a sexta, discernimento crítico em
relação aos poemas, a qual é a parte mais bela desta arte. (TRÁCIO, 2002, p. 35-
36)1

1 La gramática es el conocimiento de lo dicho sobre todo por poetas y prosistas. Sus


partes son seis: primera, lectura cuidada según la prosodia, segunda, explicación de las
figuras poéticas que hubiere; tercera, interpretación en términos usuales de las
palabras raras y de los argumentos; cuarta, búsqueda de la etimología; quinta,

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No vocabulário antigo, tanto gramático quanto crítico eram praticamente


sinônimos. O primeiro seria o responsável pela formação nas primeiras letras e
menos qualificado que o segundo, que teria uma competência mais profunda do
que a esperada pelo gramático propriamente dito, dominando todas as cinco
primeiras partes antes de poder exercer seu papel de juiz. A atividade do crítico,
portanto, era considerada mais elevada na sociedade grega e latina por exigir
uma habilidade maior do que a de um gramático:

Em grego, krités significa “juiz”, krineín, “julgar”. O termo kritikós, como “juiz de
literatura”, já aparece em fins do século quarto antes de Cristo. Filitas da ilha de
Cós, que chegou a Alexandria em 305 antes de Cristo para ser professor do futuro
Rei Ptolomeu II, era chamado “poeta e crítico ao mesmo tempo”. A escola de
“críticos” de Pérgamo, dirigida por Crates, fez questão de mostrar que era diferente
da escola de “gramáticos”, dirigida por Aristarco, em Alexandria. Sabemos que
Galeno, no segundo século depois de Cristo, escreveu um tratado, hoje perdido, a
respeito da questão de poder alguém ser kritikós e, ao mesmo tempo, gramatikós.
Mas ao que parece a distinção desapareceu e o termo kritikós caiu em desuso.
Criticus parece ser raro no latim clássico, embora possa ser encontrado em Cícero
e foi usado a respeito de Longino por Hierão, nas suas Epístolas. Criticus era termo
mais elevado que grammaticus, mas evidentemente o criticus interessava-se
também pela interpretação de textos e palavras. Retóricos como Quintiliano e, sem
dúvida, filósofos como Aristóteles cultivavam o que em vernáculo seria hoje
chamado de crítica literária. (WELLEK, 1963, p. 30)

Posteriormente, crítica “tornou-se o termo que designa a aferição


especializada de composições literárias quanto ao seu valor” (SOUZA, 2018, p.
31). Platão pode ser considerado um dos primeiros críticos literários do mundo
clássico, guardadas as devidas proporções. No livro II, de A República, ao falar
sobre a poesia homérica, o filósofo, por meio da personagem Sócrates, critica o
fato de Homero fazer “uma descrição errônea da natureza dos deuses e dos
heróis, à maneira do mau pintor, cujo trabalho em nada se parece com o original
que se propusera retratar” (PLATÃO, 2014, p. 645). Com uma visão didático-
moralizante, Platão acreditava que a retratação mentirosa dos deuses com
defeitos humanos, além de faltar com a verdade, podia influenciar
negativamente os cidadãos jovens da nova cidade, deixando-os “levianos e
maus” (PLATÃO, 2014, p. 662):

exposición de la analogía; sexta, crítica de los poemas, que es la parte más bella de
todas de la gramática.

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— Como também, continuei, não deve ser dito, em absoluto, que os deuses
declaram guerra a outros deuses, armam ciladas uns para os outros e se
combatem entre si, o que, aliás, não é verdade, caso nos empenhemos em que
os futuros guardas de nosso burgo considerem desonroso criar inimizades
recíprocas por motivos fúteis. Muito menos devemos falar-lhes em batalhas de
gigantes ou apresentá-las em pinturas, nem nas brigas de toda espécie dos
deuses e dos heróis contra seus parentes e familiares. O contrário disso é que
será preciso fazer, se quisermos convencê-los, de fato, de que nunca, até ao
presente, houve inimizade entre os cidadãos, o que constituiria impiedade. Isso,
sim, é o que desde cedo velhos e velhas deverão dizer às crianças; e quando estas
se tornarem grandes, não deverão os poetas fazer para todas suas composições
senão de acordo com tais princípios. Hera, posta a ferros por seu próprio filho, e
Hefesto, precipitado pelo pai, por ter querido defender a mãe quando esta
apanhava daquele, e bem assim todas as batalhas entre os deuses imaginadas
por Homero, é o que será terminantemente proibido contar em nossa cidade,
quer encerrem, quer não encerrem sentido alegórico. Os moços não têm
capacidade para decidir sobre a presença ou ausência de ideias ocultas; as
impressões recebidas nessa idade são indeléveis e dificilmente erradicáveis. Por
isso mesmo, importa, antes de mais nada, que as primeiras criações mitológicas
por eles ouvidas sejam compostas com vistas à moralidade. (PLATÃO, 2014, p.
645-646)

Platão fez uma série de prescrições no decorrer dos livros II, III e X sobre
o que seria ou não aceitável nas composições épicas, dramáticas e líricas,
utilizando os exemplos de Homero, Hesíodo, Ésquilo etc. Em diversos
momentos, se aproxima de uma concepção da crítica como censura, assim como
viam os latinos (criticus), pois em diferentes trechos recomenda o apagamento
de certos fragmentos homéricos, como em: “Pediremos a Homero e aos demais
poetas que não nos levem a mal riscarmos todas essas passagens e outras do
mesmo tipo [coisas do inferno como algo negativo]” (2014, p. 654) ou
“Precisamos, outrossim, rejeitar todos esses nomes terríveis e apavorantes:
Cocito, Estige, espectros, aparições e outras denominações do mesmo tipo [...]”
(PLATÃO, 2014, p. 655, grifo do autor) ou “Como eliminaremos, também, as
queixas e lamentações dos varões famosos” (PLATÃO, 2014, p. 655).
É importante salientar que ainda que n’A República o filósofo não
apresentasse a personagem Sócrates como uma espécie de crítico (isso pode ser
pensado apenas anacronicamente), o que está sendo feito é um juízo de valor
partindo-se de poemas de poetas consagrados da época. Inclusive, nesses
diálogos, Platão já estabelece alguns regulamentos de como deve ser o modelo
da boa poesia, aquela a ser seguida:

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Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou contador de histórias mais


austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o
estilo moderado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o
início estabelecemos por lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados.
(PLATÃO, 2014, p. 668)

Platão ainda pondera sobre o “efeito das palavras” que seduzem os


ouvintes com seu “metro, ritmo e harmonia” e chega ao ápice do seu juízo de
valor quando conclui que a poesia deveria ficar a cargo dos filósofos
comprometidos com a verdade, expulsando os poetas da cidade. O autor d’A
República quer controlar o processo educativo. Todavia, o poeta é livre e, por
isso, é expulso. Não gosta de Homero justamente por não conseguir controlá-lo,
uma vez que já fazia parte da cultura clássica. Portanto, cria uma noção de
conhecimento verdadeiro em detrimento do que é falso (a poesia2).
Platão não foi o único que fez considerações acerca do assunto.
Aristóteles escreveu um tratado sobre poética, discorrendo a respeito dos
diversos gêneros clássicos, detendo-se, especialmente, nas regras de
composição de uma boa tragédia e suas partes constituintes. Não só eles, mas
outros grandes nomes do mundo clássico também deram a sua contribuição
sobre o tema. A crítica na Antiguidade, portanto, era pautada por uma legislação
de regras de gênero e de modelos pré-estabelecidos pelos notáveis escritores da
época, como Virgílio ou Homero, por exemplo. Um bom texto dentro desse viés,
basicamente, era aquele que respeitasse o que era característico de cada gênero
e que imitasse ou emulasse o estilo de uma figura já consagrada3.

Homero mostrou qual o ritmo apropriado à narração dos feitos dos reis e capitães
nas guerras funestas. Em dísticos de versos desiguais encerrou-se de início a
endecha; mais tarde, também a satisfação dum voto atendido. Mas quem seria
o inventor da curta estrofe elegíaca? Discutem-no os filólogos e o processo ainda
se encontra nas mãos do juiz. A cólera armou a Arquíloco [Arquíloco de Paros,
admirado e imitado por Horácio] de jambos todo seus; esse pé adequado ao
diálogo, que sobrepuja a zoada do público e nasceu para a ação, perfilharam-no
os socos e os imponentes coturnos [socos, calçado próprio da comédia; coturno,
da tragédia]. A Musa conferiu à lira o privilégio de celebrar os deuses, os filhos

2Especificamente, a dos poetas não comprometidos com a verdade, os não filósofos.


3Cada crítico pode considerar outros aspectos somados a esses dois na hora de fazer o
seu julgamento, mas esses dois pontos eram um dos mais essenciais no momento da
crítica.

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dos deuses, o púgil vencedor, o cavalo ganhador da corrida, as inquietações da


mocidade e as liberdades do vinho.
Se não posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gênero literário, por que
saudar em mim um poeta? Por que a falsa modéstia de preferir a ignorância ao
estudo?
A um tema cômico repugna ser desenvolvido em versos trágicos; doutro lado, o
Jantar de Tiestes indigna-se de ser contado em composições caseiras, dignas,
por assim dizer, do soco. Guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta.
(HORÁCIO, 2005, p. 57, grifo meu)

Durante muito tempo, foi assim que funcionou a crítica no mundo


clássico. Entretanto, tudo mudou de configuração a partir de Kant, figura que
deu início à chamada Modernidade Crítica. Em seu livro Crítica da faculdade do
juízo (1790), o filósofo, ao tratar especificamente da questão estética,
inviabilizou uma teoria da arte, alegando que não havia um fundamento objetivo
para o gosto:

[...] na família das faculdades de conhecimento superiores existe ainda um termo


médio entre o entendimento e a razão. Este é a faculdade do juízo, da qual se
tem razões para supor, segundo a analogia, que também poderia precisamente
conter em si a priori, se bem que não uma legislação própria, todavia um
princípio próprio para procurar leis; em todo caso um princípio simplesmente
subjetivo, o qual, mesmo que não lhe convenha um campo de objetos como seu
domínio, pode todavia possuir um território próprio e uma certa característica
deste, para o que precisamente só este princípio poderia ser válido. (KANT, 2002,
p. 21, grifo do autor)

É com base nesse argumento kantiano que a crítica sofre uma


desregulamentação. Para ele, o sentimento de prazer e desprazer provocado por
um objeto estético não é regulado por nenhum sentido a priori. Kant acreditava
que não havia nada do entendimento – a priori da faculdade de conhecimento –
e da razão prática – princípio regulador da faculdade de apetição – que regia a
terceira faculdade – do juízo –, que na ausência de conceitos, é puramente
subjetiva.
De acordo com Kant (2002, p.23), "se só o particular for dado, para o qual
ela deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente
reflexiva". Ele também afirmou que:

A faculdade de juízo reflexiva, que tem a obrigação de elevar-se do particular na


natureza ao universal, necessita por isso de um princípio que ela não pode retirar

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da experiência, porque este precisamente deve fundamentar a unidade de todos


os princípios empíricos sob princípios igualmente empíricos, mas superiores e
por isso fundamentar a possibilidade da subordinação sistemática dos mesmos
entre si. Por isso só a faculdade de juízo reflexiva pode dar a si mesma um tal
princípio como lei e não retirá-lo de outro lugar (porque então seria faculdade de
juízo determinante), nem prescrevê-lo à natureza, porque a reflexão sobre as leis
da natureza orienta-se em função desta, enquanto a natureza não se orienta em
função das condições, segundo as quais nós pretendemos adquirir um conceito
seu, completamente contingente no que lhe diz respeito. (KANT, 2002, p. 24)

Apesar de não haver um fundamento objetivo para o gosto, já que,


segundo Kant, a experiência estética se dá na ausência de conceitos, ele afirmou
que “O belo é aquilo que apraz universalmente sem conceito” (1995, p. 64). Um
crítico, portanto, mesmo sabendo que o seu gosto é subjetivo, vai buscar a
universalidade. Logo, no campo do juízo kantiano é possível a crítica (subjetiva
e ao mesmo tempo universal – grande paradoxo), mas não a teoria.
A visão kantiana originou um vácuo estético, uma vez que, se até o século
XVIII a crítica era altamente regulamentada, tendo o juízo de valor pautado nos
regulamentos da retórica, da gramática e da poética, depois de Kant, o
julgamento se tornou arbitrário por não haver sistema que o orientasse. A
postura do filósofo abriu espaço para a crítica impressionista, que nada mais
era do que impressões de leituras. Entretanto, esse mesmo movimento kantiano
também gerou novas discussões sobre o estético em uma tentativa de buscar
um fundamento para esse campo, transformando-o de juízo reflexivo –
necessidade de reflexão para encontrar a regra, que não é dada de antemão;
caso particular em que não há a regra geral – em juízo determinante – dado a
priori. Nos próximos tópicos pretende-se ver algumas dessas formas de se fazer
a crítica.

A CRÍTICA CIENTÍFICA DE SAINTE-BEUVE E TAINE E O IMPRESSIONISMO


CRÍTICO DE ANATOLE FRANCE

A partir do século XIX, surgiram novas formas de regulamentação


moderna da crítica. Uma delas foi a importação dos métodos das ciências exatas
para as ciências humanas, resultando na crítica científica. Sainte-Beuve, Taine
e Lanson (menos cientificista que os dois primeiros) foram alguns dos
representantes dessa corrente.
Sainte-Beuve, embora fosse considerado um bom juiz, teve que se
defender das acusações de que sua crítica não teria código ou qualquer teoria,

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sendo “integralmente histórica, integralmente individual” (2011, p. 520). Para


isso, explicou o seu método para julgar uma obra, alegando que, para fazê-la,
era necessário conhecer o homem que a escreve:

A literatura, a produção literária, não é para mim de modo algum distinta ou


sequer separável do homem e da organização; posso fruir uma obra, mas para
mim é difícil julgá-la independentemente do conhecimento do próprio homem; e
direi de bom grado: tal árvore, tal fruto. (SAINTE-BEUVE, 2011, p. 521)

Para ele, o trabalho do crítico passa pelo julgamento sobre o autor,


portanto, é preciso de informações biográficas das mais variadas naturezas
sobre um escritor para poder julgar sua obra (“tal árvore, tal fruto” – metáfora
biológica). Diante disso, segundo Sainte-Beuve, não é possível julgar os Antigos,
uma vez que não se pode saber com precisão como foram suas vidas, apenas
imaginá-las.
Primeiramente, para Sainte-Beuve, é preciso “situar o escritor superior
ou distinto no seu país natal, na sua raça”, já que só conhecendo
“fisiologicamente bem a raça, os ascendentes e ancestrais, teríamos luz sobre a
qualidade secreta e essencial dos espíritos” (2011, p. 522). Depois, seria
necessário reconhecer o homem superior nos pais e nos irmãos para encontrar
seus traços essenciais. Ele vai ainda mais a fundo com o repertório biográfico e
indica a importância de se saber sobre o escritor de quem se quer julgar dados
de sua infância, educação, primeiro grupo literário de que fez parte, discípulos
e antagonistas. Para o crítico, qualquer informação sobre a vida do autor é
relevante para realizar a crítica, já que tudo isso influenciaria na escrita e na
obra desse ser superior:

Enquanto não recorremos sobre um autor a certas perguntas, e enquanto não


as temos respondidas, ainda que só para nós mesmos e em surdina, não estamos
seguros de apreendê-lo por inteiro, mesmo que tais perguntas pareçam as mais
estranhas à natureza de seus escritos: – O que pensava ele sobre religião? –
Como se sentia afetado pelo espetáculo da natureza? – Como se comportava com
relação a mulheres? Com relação a dinheiro? – Era rico, ou era pobre? – Qual
era seu sistema, qual era sua maneira cotidiana de viver? – Enfim, qual era seu
vício ou seu fraco? Todo homem tem um. Nenhuma das respostas a essas
perguntas é impertinente para julgar o autor de um livro e o próprio livro, se
esse livro não é um tratado de geometria pura, se é sobretudo uma obra literária,
onde o autor entra plenamente. (SAINTE-BEUVE, 2011, p. 526)

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Entretanto, ainda que Sainte-Beuve tente traçar o seu método a partir de


sua perspectiva historicista-positivista, ele não explica como chega à conclusão
de que um escritor mereça tamanho trabalho de análise biográfica. Durante sua
explicação, usa termos como "escritor superior ou distinto" (2011, p. 522),
"homem superior" (2011, p. 522), "grande indivíduo" (2011, p. 522), "escritor
eminente" (2011, p. 523), "jovens espíritos" (2011, p. 523), "jovens talentos"
(2011, p. 523) para justificar a importância da pesquisa biográfica, mas quem
define isso? Há um trabalho crítico prévio de merecimento autoral que não é
exatamente explicitado. O crítico demonstra isso quando afirma que é preciso
“conhecer um homem e, mais do que isso, conhecê-lo bem, sobretudo se esse
homem é um indivíduo marcante e célebre" (2011, p. 521). Para chegar a esse
juízo de valor sobre um homem (“marcante” e “célebre”) é preciso que alguém já
o tenha dito. Ainda assim, há um fundamento para a crítica histórico-biográfica
de Sainte-Beuve em que o valor da obra está na proporção em que ela reflete a
vivência do próprio autor.

Cada obra de um autor, vista, examinada desse modo, no seu contexto, após a
recolocarmos na sua moldura e a cercarmos de todas as circunstâncias que a
viram nascer, adquire todo o seu sentido – seu sentido histórico, seu sentido
literário –, retoma seu justo grau de originalidade, de novidade ou de imitação,
e não se corre o risco, ao julgá-la, de inventar falsas belezas e de admirar à
distância, como é inevitável quando nos apoiamos na pura retórica. (SAINTE-
BEUVE, 2011, p. 524)

Taine foi outro crítico que importou os métodos das ciências naturais
para a sua crítica, tendo como base o trabalho já efetuado por Sainte-Beuve.
Entretanto, para Taine era necessário partir do método de seu conterrâneo para
depois superá-lo, provocando uma “evolução ulterior” (TAINE, 2011, p. 532). De
fato, há diferenças consideráveis na metodologia utilizada por ambos. De acordo
com Hennequin, o método de Taine:

[...] é uma espécie de dialética que consiste em subir da ordem literária ao


homem físico que a produziu, deste homem físico ao homem íntimo, à alma, e
depois às causas desta constituição física. Estas causas parecem residir, na
opinião de Taine, no conjunto das circunstâncias físicas e sociais de que o
escritor se encontra rodeado e, por Taine, são classificados em três categorias: a
raça, o meio físico e social e o momento. (HENNEQUIN, 1910 [1988], p. 12)

Hennequin considera a crítica biográfica de Taine uma versão aperfeiçoada


da realizada por Sainte-Beuve, já que, segundo ele, conhecer os fatores que possam

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ter atuado no desenvolvimento intelectual de um escritor, como o meio físico, os


antecedentes hereditários, a educação etc., preconizado por Sainte-Beuve, “no
estado atual da ciência, estas ações, indicadas pelas massas às quais se aplica a
lei das médias, atuam muitíssimo irregularmente e pouco distintamente na
formação dos escritores, nem aumentando nem diminuindo em nada o valor do
que tenham podido produzir” (1910 [1988], p. 12).
Outra distinção essencial entre os dois críticos franceses encontra-se na
própria postura crítica. Enquanto Sainte-Beuve postula que seu método
biográfico-investigativo faz parte do fundamento de seu julgamento crítico, uma
vez que para julgar uma obra é preciso julgar antes quem a escreveu, Taine
“renuncia, tácita mas praticamente, à censura ou ao louvor das obras e dos
escritores de que fala. O simples fato de se ocupar deles parece-lhe bastante
para indicar que os considera de merecimento e significativos” (HENNEQUIN,
1910 [1988], p. 12). Portanto, existe um critério no ato de julgar, mas este não
é explicitado. É por essa razão que Hennequin diz que a crítica de Taine é
científica e não literária.
Já o impressionismo crítico ou crítica impressionista, diferentemente da
crítica científica, tem pouco interesse com qualquer tipo de objetividade, de
sistema ou de método que oriente o crítico no seu trabalho analítico junto aos
textos. O texto literário, mais do que um objeto de análise, torna-se uma ocasião
para uma dissertação mais ou menos descomprometida em que o crítico muitas
vezes extrapola o objeto que deveria ser analisado e permite simplesmente fazer
do seu texto crítico algo como um depoimento das suas impressões de leitura,
como observou Souza:

[...] contrariando a sólida tradição de que a produção literária se presta a tornar-


se objeto de um estudo – de caráter normativo ou descritivo-especulativo –,
desenvolveu-se uma posição que pretende subtrair o texto literário a esse
circuito analítico, para confiá-lo à fruição subjetiva e desinteressada de métodos
e conceitos, próxima àquela espécie de desarmamento conceitual próprio do
leitor comum. Essa atitude antiteórica é conhecida pelo nome de impressionismo
crítico, tendo encontrado seu momento de formulação em fins do século XIX e
início do século XX, como reação contra o esforço de atingir objetividade
científica, característico das teorias da literatura hegemônicas no século XIX.
Assim para os adeptos do impressionismo, o que se pode fazer com a produção
literária não é teorizar a seu respeito, mas tão somente registrar impressões de
leitura, sem a preocupação de sistematizá-las ou submetê-las a controle
conceitual. (SOUZA, 2018, p. 21)

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Um dos maiores defensores dessa corrente foi Anatole France, que


alegou, assim como Kant, que “Não existe crítica objetiva, tanto quanto não
existe arte objetiva [...]” (FRANCE, 1950, p. 3). Se a crítica não pode ser objetiva,
logo não pode haver critérios objetivos para julgar uma obra. A crítica, dessa
forma, além de ser subjetiva, passa a ser apenas uma espécie de resenha de
uma obra. O impressionismo crítico torna-se, então, mais acessível ao leitor não
especializado, uma vez que nem critérios literários, nem científicos são
enumerados para justificar o valor ou a falta de valor de um livro. Apesar disso,
em uma época onde o cientificismo estava muito em voga, nem mesmo o ligeiro
apadrinhamento de Kant para a crítica impressionista a salvou de ser alvo de
julgamento, justamente pela ausência de técnica ou método:

Desde a origem até o atual estado, a crítica das obras d’arte manifesta em seu
desenvolvimento duas tendências divergentes, cujo antagonismo hoje podemos
verificar. Convém que não confundamos trabalhos tão diferentes como a crônica
dum jornal acerca do livro que acaba de sair a lume, as notas biográficas duma
revista, os folhetins que dão a resenha do Salon ou das peças teatrais
representadas durante a semana com alguns estudos como os de Taine, um
trecho de Rood acerca da pintura, as investigações de Posnett acerca da
literatura do clã, de Parker acerca da origem dos sentimentos que a certas cores
associamos, de Reuton e de Bain acerca das formas do estilo. Ao passo que os
escritos da primeira série se consagram, na realidade, a criticarem, a
apreciarem, a pronunciarem-se categoricamente acerca do valor desta ou
daquela obra, livro, drama, quadro ou sinfonia, os da segunda, como é sabido,
procuram outro objetivo, tendem para deduzir dos caracteres particulares da
obra alguns princípios de estética, ou a existência de determinado mecanismo
cerebral no autor, ou ainda uma condição definida do conjunto social em que se
formou, explicando por leis orgânicas ou históricas as emoções que suscita e as
ideias que exprime. Nada há menos semelhante que a análise dum poema no
intuito de o achar bom ou mau, tarefa quase judicial e comunicação confidencial
que se resume em muitas perífrases, em dar sentenças e confessar preferências,
e a análise desse mesmo poema com o intuito de encontrar indicações estéticas,
psicológicas e sociológicas, trabalho de ciência pura, em que o autor se dedica a
extrair causas dos fatos, leis dos fenômenos, estudando tudo sem parcialidade
e sem predileções. (HENNEQUIN, 1910 [1988], p. 5)

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A CRÍTICA NA TRADIÇÃO HERMENÊUTICA DE SPITZER, AUERBACH E


DILTHEY

A hermenêutica – doutrina e arte de interpretar a tradição escrita –, foi


outra resposta ao vácuo estético deixado por Kant. Diferentemente da corrente
historicista-positivista de Sainte-Beuve e Taine, os defensores dessa chave não
adotam a postura cientificista. Eles acreditam que a obra de arte concretiza a
vivência de quem a criou. A literatura seria, portanto, a materialidade poética
da experiência interior de um autor, que carrega características culturais e
psicológicas dele, de um povo e de uma época, por meio da palavra. A filologia
ganhou, então, grande importância, já que é a partir da linguagem que se chega
à experiência interior, como observou Spitzer (1974, p. 26, tradução nossa): “O
impulso criativo do pensamento é imediatamente traduzido para a linguagem
como um impulso criativo linguístico4”; e também Dilthey:

A importância imensurável da literatura para nosso entendimento da vida


espiritual e da história reside exatamente no fato de que a vida interior encontra
somente na linguagem sua expressão completa, exaustiva e objetiva. Por isso, a
arte de entender tem seu centro na exegese ou interpretação daquilo que foi
preservado da existência humana pela tradição escrita. (DILTHEY, 2010, p. 367)

O método para a hermenêutica é a interpretação de texto, uma vez que é


o texto que carrega a experiência interior de um escritor, só podendo ser
acessada através da interpretação. Um seguidor de tal corrente só pode afirmar
aquilo que pode ser encontrado na obra, levando em consideração somente o
que está dito. Pode-se levar também em consideração aspectos externos às
obras, desde que o ponto de partida seja o que é interno:

Ela [a interpretação de textos] pode visar unicamente ao valor artístico do texto


e à psicologia peculiar de seu autor; pode-se propor a aprofundar o
conhecimento que temos de toda uma época literária; pode também ter como
objetivo final o estudo de um problema específico (semântico, sintático, estético,
sociológico etc.); neste último caso, distingue-se dos antigos processos pelo fato
de que não começa por isolar os fenômenos que lhe interessam de tudo quanto
os rodeia, isolamento que dá a tantas investigações antigas um ar de compilação
mecânica, grosseira e destituída de vida, mas os considera antes no meio real
em que se encontram envolvidos, só o destacando a pouco e pouco e sem lhe
destruir o aspecto peculiar. (AUERBACH, 2001, p. 42)

4“El impulso creador del pensamiento se traduce inmediatamente en el lenguaje como


impulso creador lingüístico” (SPITZER, 1974, p. 26).

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O bom poeta seria então aquele que transforma a experiência interior em


realidade poética – linguagem. Em consonância com Dilthey (2010, p. 368), “a
obra de um grande escritor ou descobridor, de um gênio religioso ou de um
filósofo autêntico só pode ser a expressão genuína de sua vida psíquica”. Já o
bom texto seria aquele que, quando bem analisado, levasse a resultados e
descobertas interessantes, de diversas ordens, ultrapassando a si próprio para
propiciar informações externas a ele, como sobre quem o escreveu, uma época,
o desenvolvimento de um pensamento, uma forma artística ou de vida etc.
(AUERBACH, 2001, p. 41). Portanto, a crítica literária, na concepção de Dilthey,
estaria necessariamente ligada ou seria imanente ao processo hermenêutico.
“Não há compreensão sem sentimento de valor – mas este só é confirmado
objetivamente e de maneira universalmente válida pela comparação. Para tanto,
é preciso definir o que é normativo [...]. A crítica filológica parte dessa norma"
(DILTHEY, 2010, p. 383). Dessa forma, o fundamento crítico para o julgamento
de uma obra numa chave hermenêutica é o quanto um texto reflete e diz sobre
o exterior.
A hermenêutica, apesar de adotar um método diferente da crítica
científica de Sainte-Beuve e Taine, foi acusada por Wellek e Warren (2003, p.
184) de falácia biográfica, posto que a preocupação continuava em torno do
autor. Sendo assim, outra forma de se conceber a crítica surgiu, ainda no século
XIX, dessa vez preocupada somente com a obra em si: a formalista/organicista,
que será vista a seguir.

A CRÍTICA FORMALISTA/ORGANICISTA

A abordagem formalista-organicista vê as obras literárias como objetos


autônomos, que se desvinculam do autor assim que são criadas. Segundo Kant
(1792, p. 122 citado em Abrams, 2010, p. 276), "uma obra de arte deve ser vista
como uma obra da natureza, uma obra da natureza deve ser vista como uma
obra de arte, e o valor de cada uma deve surgir dela própria e ser considerado
nela própria". Esta afirmação serviu justamente para o organicismo formalista
de língua inglesa como síntese de seu programa: é a ideia de que tal como a
obra da natureza, a obra de arte tem um fim em si mesma e deve ser julgada
em si mesma, com valores intrínsecos a si, que não foram dados nem por uma
preceptística, nem por uma consciência do poeta, mas que está no modo de
organização interna da própria obra:

Pusemos na cabeça que escrever um poema simplesmente pelo poema e


reconhecer que tal tenha sido nosso desígnio, seria confessar-nos radicalmente

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carentes da verdadeira dignidade e vigor Poéticos: mas o fato simples é que se


nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias almas, imediatamente
lá descobriríamos que sob o sol nem existe nem pode existir qualquer trabalho
mais plenamente dignificado, mais supremamente nobre do que o próprio
poema, este poema per se, este poema que é um poema e nada mais, este escrito
só em função dele mesmo. (POE, 2011, p. 413, grifo do autor)

O que interessava observar nas produções não era o homem e sim a


“verve inerente” à obra em que nada sobra e nada falta, mas tudo está encaixado
perfeitamente como um organismo em que cada elemento tem a sua função para
fazê-lo funcionar como deve ser. Já os critérios de valoração crítica com base
nesse viés seriam a análise do quão bem ou quão mal estruturadas estão as
obras/organismos estéticos de um escritor, a tensão de pares de opostos que
são congregados mais ou menos harmonicamente em um todo, o paradoxo, a
economia interna, a unidade no múltiplo, o dialogismo interno etc.:

Para uma obra de arte, a dimensão da grandeza torna-se, conjuntamente, a


riqueza – a quantidade e diversidade – dos materiais componentes, e o nível em
que esses estão combinados na interdependência característica de um todo
orgânico. Embora toda beleza seja multiplicidade na unidade, o grau de beleza
varia diretamente com a multiplicidade: uma obra de arte, segundo Coleridge,
será “rica em proporção à variedade de partes que ela mantém na unidade”.
(ABRAMS, 2010, p. 293-294)

Isto quer dizer que quanto maior a quantidade e a complexidade dos


materiais assimilados pela estrutura, maior a complexidade da obra, logo mais
elevado seu valor estético. O grande artista nesse viés é aquele que consegue
dar uma forma harmônica ou econômica interna e coerente à estrutura, que por
si só é intrinsicamente tensa e paradoxal, sem eliminar o fato de que aquilo é
constituído por elementos dissonantes.
Tendo como base esses critérios, a crítica se preocuparia em observar o
modo como uma obra é bem-sucedida ao agregar todos esses possíveis materiais
e se tudo funciona:

Julgar um poema é como julgar um pudim ou uma máquina. Exige-se que ele
funcione. Só inferimos a intenção do artesão porque seu produto funciona. “Um
poema não deve significar, mas ser.” [...] A poesia triunfa porque tudo ou quase
tudo que nela se diz ou se encontra implícito é relevante; o que não importa foi
excluído, como os caroços de um pudim ou os enguiços de uma máquina. A este
respeito, a poesia difere das mensagens práticas, que são bem-sucedidas se e

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apenas se inferimos corretamente sua intenção. (WIMSATT; BEARDSLEY, 2002,


p. 642)

Wimsatt e Beardsley (2002, p. 643) também afirmaram sobre a crítica,


baseando-se no argumento de Coomaraswammy, de que há dois tipos de
questionamento da obra de arte. O primeiro referente a "(1) se o artista realizou
suas intenções" e o segundo "(2) se a obra de arte 'deveria ter sido de todo
empreendida' e, portanto, 'se vale a pena preservá-la'". De acordo com os
autores, a segunda indagação é "de mais valia" que a primeira e, "uma vez que
(2) e não (1) é capaz de distinguir a poesia do assassínio, o nome 'crítica artística'
é adequadamente concedido a (2)". Sendo assim, o questionamento (2) também
vem a ser um ponto para a crítica.
Considerações acerca da vida do autor, sua vivência, sua relação com o
que é externo à obra ou sua intenção ao escrever determinado romance ou
poema não têm vez nessa chave. A crítica só está interessada na análise daquilo
que é interno ao texto. Edgar Allan Poe, por exemplo, em O princípio poético
(1850), ao julgar o poema “June”, de Bryant, faz apenas alegações sobre a
realização linguística, sem mencionar nada que seja extrínseco ou que tenha a
ver com quem o escreveu:

A fluência rítmica, aí, é mesmo voluptuosa. Nada podia ser mais melodioso. O
poema sempre me impressionou de maneira notável. A intensa melancolia que
parece emergir à força até a superfície de todo o dizer alegre do poeta acerca de
seu túmulo faz-nos estremecer no fundo da alma, ao mesmo tempo que esse
estremecimento encerra a mais verdadeira elevação poética. A impressão
deixada é a de uma agradável tristeza. (POE, 2011, p. 417)

Assim como Poe, os textos para os formalistas/organicistas devem ser


analisados com base em suas arquiteturas, sendo julgados levando em conta o
funcionamento deles e valorando tudo aquilo que guia a uma complexidade. Já
o método dessa corrente está no próprio objeto, visto que a obra fala por si
mesma. É pela análise da prova interna, que é pública, que será possível chegar
a conclusões sobre um escrito, que dizem respeito somente a ele mesmo:

Considerando o significado de um poema, há uma distinção entre a prova


interna e a externa. E afirmar que o que é (1) interno é também público, constitui
um paradoxo apenas verbal e de superfície, porquanto a prova interna é
descoberta através da semântica e da sintaxe de um poema, através de nosso
conhecimento habitual da linguagem, através das gramáticas, dos dicionários,
de toda a literatura que é a fonte dos dicionários, através, em geral, de tudo que
forma a linguagem e a cultura; enquanto o que é (2) externo é particular ou

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idiossincrático, não uma parte da obra enquanto fato linguístico [...]. (WIMSATT;
BEARDSLEY, 2002, p. 647)

A prova externa, então, não é recomendável nesse tipo de perspectiva,


por extrapolar o material linguístico. O foco é a própria obra e o que nela se
encontra. Qualquer coisa que venha de fora, como a resposta de um autor para
alguma pergunta feita a respeito do texto em que a resolução não esteja nele
próprio, não tem nada a ver, de acordo com Wimsatt e Beardsley, com a obra e
nem é uma indagação crítica. Segundo eles (2002, p. 655), “as perguntas
críticas, contrariamente às apostas, não são respondidas desta maneira. Não
são resolvidas pela consulta a um oráculo”, mas sim pela consulta ao próprio
objeto de análise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi visto, a crítica literária, em sua origem, era altamente


regulamentada:

[...] tratava-se de verificar a fidedignidade das versões de um texto, pelo cotejo


com determinada versão considerada autêntica; mas também, em uma operação
menos mecânica, o objetivo podia ser avaliar uma obra literária segundo seu
grau de correspondência maior ou menor a modelos de gênero e estilo prescritos
por normas gramaticais, retóricas e poéticas. (SOUZA, 2018, p. 31)

Entretanto, foi a partir de Kant que a crítica sofreu uma grande


reviravolta, tornando-se um casuísmo. O filósofo, excluindo a possibilidade de
uma teoria que encorasse o estético ou um sistema que orientasse a crítica,
abriu espaço para uma subjetividade emancipada e para vertentes como o
impressionismo crítico (popular em jornais e revistas e voltada para um público
não especializado).
O movimento kantiano também possibilitou reações contrárias, na busca
de uma nova regulamentação (dessa vez moderna) para o estético. O
historicismo-positivista de Sainte-Beuve foi uma dessas respostas a Kant.
Pautando-se no modelo da ciência, o fundamento dessa corrente era o homem
superior e tudo aquilo que o influenciasse e o determinasse. A hermenêutica
também trouxe outro fundamento: a vivência. Ancorada pelos estudos
filológicos, procurava-se na obra literária, por meio da palavra, a psiquê do
autor e toda uma confluência de ideias de uma época e de uma sociedade. Na
hermenêutica moderna, não há mais regras a serem seguidas como na
Antiguidade, então as regras e composições da obra, como a divisão de

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capítulos, as metáforas, as palavras utilizadas etc. vêm do sujeito. Uma terceira


resposta veio com os organicistas, visto que as duas doutrinas anteriores não
eram consideradas por eles especificamente literárias. Dessa forma, some a
figura clássica do autor e a obra literária ganha autonomia própria, valendo por
si mesma. Utilizando a metáfora de Sainte-Beuve, “tal árvore (autor), tal fruto
(obras)”, nessa última vertente, o fruto se separa da árvore de tal forma que não
tem mais vínculo com o autor. É da biologia que o organicismo retira suas
metáforas organicistas biológicas.
Essas só foram algumas das tentativas de buscar-se um novo
fundamento para a crítica, como resposta à desregulamentação trazida por
Kant. Todas elas mostram como a crítica é multifacetada e como o juízo de valor
de uma manifestação literária vai depender de qual fundamento respalda o
crítico. Assim, pode-se perceber que o trabalho do crítico literário possui muito
mais nuances do que apenas a emissão de um julgamento, baseado em
casuísmo. A não ser que o crítico seja Anatole France.

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Teoria da literatura em suas fontes. Vol. 2. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização
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GABRIELA RIBEIRO NUNES é graduada em Letras pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro (2018). Em 2020, concluiu o mestrado em Literatura
Brasileira pela mesma instituição, defendendo a dissertação "O kitsch
em Quincas Borba, de Machado de Assis". Atualmente, é doutoranda no
Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ. Dentre suas publicações estão
os artigos "Os folhetins A mão e a luva e Helena, de Machado de Assis" (Miguilim,
2019) e "A erotização em Anna Karenina e uma possível leitura com viés
pornográfico", publicado nos Anais Eletrônicos do Congresso Internacional
Abralic, de 2019.

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