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opiniães

É possível conhecer a
verdade sobre a
tragédia grega?¹, de
William Marx

Fábio Roberto Lucas*


William Marx²
*Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (2018), realiza pós-doutorado em Estudos Literários na
Universidade Federal do Paraná (bolsista PNPD/CAPES). E-mail: fabio.lucas@usp.br

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opiniães com justiça, nos fornecem uma imagem exata do que
era a tragédia em Atenas na sua época? Em outras
palavras, sabemos realmente e podemos mesmo
O que se pode saber da tragédia grega? O esperar saber o que era uma tragédia grega normal
conhecimento que temos dela ou que acreditamos ter ou padrão no século V antes de nossa era?
é conforme à realidade do que foi essa forma de
teatro em Atenas, por volta do século V antes de Um corpus parcial
nossa era? Vamos ainda mais longe: a ambição de
conhecer a verdade, e toda a verdade, de um objeto Responder a essa questão não é tão simples
cultural tão distante de nós é razoável? quanto parece. Poderíamos crer à primeira vista que
bastaria ler exaustivamente todas as tragédias que
Tais questões podem parecer estranhas, temos para ser capaz de extrair a partir daí uma
quiçá absurdas, para nós que fomos educados por imagem média da tragédia. Ora, não é certo que esse
todos os nossos mestres, e mais amplamente, por método seja tão eficaz. Pois não somente, num
toda a tradição escolar e letrada na evidência de que universo de dezenas de dramaturgos ativos durante o
a tragédia grega é uma parte essencial de nossa período, conhecemos atualmente não mais que três
herança literária, filosófica e cultural. Ela não nos é (Ésquilo, Sófocles e Eurípides), mais desses três
um corpo estranho: desde o século XVI, de início por mesmos não conservamos a obra completa: restam
intermédio das tragédias de Sêneca, depois de modo apenas fragmentos. Das aproximadamente 90 peças
direto, ela inspirou um número incalculável de peças compostas por Ésquilo, somente sete sobreviveram.
de teatro chamadas igualmente de tragédias. Não Sófocles teria escrito 123 e aqui também subsistem
somente Corneille e Racine, mas uma infinidade de meramente sete, mais pedaços de um drama satírico.
outros autores, como Crébillon pai ou Voltaire, leram Eurípides foi relativamente mais feliz, com 19 peças
tragédias gregas, comentaram-nas, traduziram-nas, conservadas, das quais uma sem dúvida apócrifa e
adaptaram-nas e compuseram eles mesmos tragédias um drama satírico, sobre um total de 92. Seriam 32
sobre temas idênticos ou de sua invenção. A tragédia tragédias ao todo, em cerca de 220 que os três
grega é, portanto, parte integrante da literatura francesa e autores compuseram (sem contar dramas satíricos).
mais genericamente da literatura ocidental, ela constitui pura
e simplesmente uma das realizações mais altas do espírito É preciso ainda relacionar esse número com a
humano e pertence ao patrimônio mundial da humanidade, produção total de tragédias em Atenas no período. A peça
do mesmo modo que as pirâmides do Egito ou que a mais antiga que teríamos conservada é Os Persas de
Gioconda. Quem quer que tenha lido Édipo Rei, Antígona Ésquilo, criada em 472. A mais recente dataria, por sua vez,
ou a trilogia da Oresteia só pode estar convencido disso. de 401. Trata-se de Édipo em Colono, de Sófocles,
representada postumamente. Pode-se facilmente calcular o
Agora, a questão é: essas tragédias gregas número total de tragédias encenadas em Atenas na ocasião
que lemos, que vemos representar, que admiramos das festas trágicas mais importantes, a saber, as Grandes
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opiniães A resposta habitual a elas é bem conhecida: ela
consiste em supor, por um lado, que os três poetas
cuja obra sobreviveu seriam característicos do
Dionísias, entre 472 e 401. Os concursos opunham conjunto dos dramaturgos de seu tempo e, por outro,
todo ano três competidores, que apresentavam cada que nós teríamos conservado uma parte bem
um uma trilogia trágica, então três tragédias, mais um representativa de sua produção, apesar da
drama satírico. Isso daria nove tragédias por ano imensidade das perdas. Afinal, não basta uma
durante 72 anos, logo 648 ao total, mas é preciso amostragem bem pequena de uma população dada
adicionar a esse número todas as tragédias que foram para realizar pesquisas de grande fiabilidade? Mas,
apresentadas em festas menos importantes, como as para isso, é preciso que a amostra seja extraída de
Leneias, e todas aquelas representadas fora de modo perfeitamente aleatório.
Atenas – sabendo, evidentemente, que a história da
tragédia grega não começa em 472 e não termina em Ora, a transmissão das obras trágicas até nós
401. O número de 648 pode assim ser facilmente não é em nada aleatória. A escolha dos três grandes
duplicado, quiçá triplicado ou mais. Portanto, nossas poetas trágicos foi operada muito cedo. Desde o
32 tragédias completas conservadas representam século IV antes de nossa era, Ésquilo, Sófocles e
somente menos de 5% da produção de tragédias na Eurípedes aparecem em Atenas como os dramaturgos
Grécia Antiga, isso é certo, e estaríamos preferidos: o estadista Licurgo fez então levantar suas
provavelmente mais perto de 1 ou 2%: todo o resto estátuas em bronze no teatro de Dionísio e ordenou
nos é desconhecido, exceção feita a raros fragmentos conservar nos arquivos públicos uma cópia de
ou resumos que penam em nos dar uma imagem referência de suas obras, cópia que foi depositada um
fiável das obras das quais foram retirados. O desastre século mais tarde na biblioteca de Alexandria. Esse
é vertiginoso. ato foi determinante: mesmo que se tenha continuado,
ao menos até o século I de nossa era, a ler outros
Como, a partir de tal constatação, figurar-nos poetas, como Agaton ou Ion de Quios, jamais foi
o que podia ser uma tragédia padrão em Atenas no recolocada em questão a preeminência atribuída aos
século V antes de nossa era? Com muito menos do três grandes trágicos, e eis que nós ainda hoje somos
que um vinte avos do corpus conservado, há qualquer plenamente tributários de uma seleção inicial efetuada
garantia de que as peças que costumeiramente em Atenas há mais de dois mil anos.
consideramos as mais emblemáticas não seriam em
realidade as mais atípicas? Ou, pelo contrário, de que Mas a essa primeira seleção se somou uma
aquelas que estimamos hoje como as mais marginais, segunda, que geralmente é datada no século II de
certas tragédias de Eurípedes em particular, não nossa era: nessa época, nos meios escolares e
corresponderiam de fato à média das tragédias letrados, editou-se uma antologia contendo sete
representadas na época? Essas questões são tragédias de Ésquilo, sete de Sófocles e dez de
cruciais. Eurípides. É essa antologia que, copiada e difundida,
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opiniães escolha respondia a critérios de natureza sobretudo
pedagógica, permitindo referências ao cânone homérico,
manejando de uma peça a outra uma progressão da
salvou a maior parte do que conhecemos a respeito dificuldade e autorizando paralelos entre as obras dos
da tragédia ática³. três autores. Mais, de resto, estamos reduzidos a puras
conjecturas: seja ao esperar que essas 24 tragédias nos
Assim, só temos acesso à tragédia grega por deem uma imagem fiel de centenas de tragédias
intermédio de uma seleção efetuada na época produzidas na época, seja, ao contrário, ao recusar toda
romana por gramáticos que tinham em vista somente confiança a um conjunto tão arbitrariamente composto.
os interesses de seus alunos do momento. Para dar a Há grande risco, portanto de se ignorar para sempre o
medida do aspecto aberrante da situação, pode-se que era uma tragédia normal em Atenas.
tentar inverter o ponto de vista: se, por volta do ano
4400, nossos longínquos descendentes conhecerem "O que nos ensinam as tragédias “alfabéticas” de
da nossa literatura dos séculos XX e XXI apenas uma Eurípedes"
seleção operada não por nós mesmos diretamente,
mas tirada de uma espécie de Lagarde e Michardedo ⁴ Exceto que – e esse é a raiz do meu
ano da graça de 2638, que confiança nós poderíamos argumento – não temos somente as 24 tragédias que
conceder a suas interpretações e a seus foram agora evocadas, mas não menos do que 32 ao
julgamentos? Felizmente, certamente não estaremos todo. Às 24 peças da seleção foram adicionadas
mais lá para nos escandalizar com isso. outras oito, todas de Eurípedes. A história bem
extraordinária da preservação dessas peças merece
A seleção escolar do século II devia obedecer a que nos detenhamos nela ainda mais, pois ela tem
diversos parâmetros – pedagógicos, estéticos, morais, consequências capitais para nosso problema.
filosóficos, religiosos, políticos ou ideológicos em geral –
Existe, com efeito, alguns manuscritos medievais
mas em nenhum caso saberíamos hoje enxergar nela, a
que, além das dez peças de Eurípedes consagradas pela
priori, um reflexo objetivo da realidade, que só poderia ser
seleção, comportam nove peças suplementares,
mais bem suscitado por uma escolha de tipo aleatório. Os
expostas sem escólios, diferentemente das outras. Ora,
autores dessa antologia puderam eventualmente reter os
essas nove peças tem a particularidade de estarem
textos que eles preferiam, ou aqueles que a tradição
classificadas mais ou menos segundo a inicial de seus
preferia, ou talvez os mais fáceis, ou os menos
títulos gregos: épsilon para Helena, eta para Electra,
inconvenientes, quiçá, como se adoraria crer, os mais
Héracles et Os Heráclidas; capa para O Cíclope; iota,
representativos da diversidade de todas as tragédias, ou
enfim, para As Suplicantes (Hiketides), Ion, Ifigênia em
talvez ainda tudo isso ao mesmo tempo. O problema é
Táuris e Ifigênia em Áulide. Estranha classificação, mas
que jamais saberemos nada a respeito, pois nenhum texto
que se explica assim: ela seguia de maneira aproximativa
introdutório, nenhum modo de uso nos foi entregue
a ordem alfabética de uma edição antiga das obras de
junto com essa seleção. É somente provável que a
Eurípedes, da qual uma reprodução parcial de época
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opiniães em particular: Helena, Ion e Ifigênia em Táuris,
principalmente, mas também Electra e Ifigênia em
Áulide. Mais precisamente, dentre as oito tragédias
medieval existia ainda em Tessalônica no século XIV; alfabéticas, encontra-se apenas um único drama com
esse manuscrito mesmo está desaparecido hoje, mas final funesto: Héracles. Ora, a proporção é
subsistem duas cópias dele feitas no século XIV em rigorosamente inversa dentre as dez peças da seleção,
Florença e Roma⁵. Eis que estamos assim com nove das quais apenas duas terminam de modo feliz: Orestes
peças suplementares, das quais oito são tragédias, e Alceste (ainda que Alceste não devesse ser
miraculosamente reencontradas depois de estar classificado totalmente entre as tragédias ordinárias,
quase para desaparecer nos fossos da história. Essa pois ela cumpria a função de um drama satírico).
dupla tradição das tragédias de Eurípedes é em Dificilmente se poderia ter um contraste mais flagrante.
princípio bem conhecida pelos filólogos: até aqui,
portanto, nada de novo. Tal discordância entre os dois grupos é rico de
ensinamentos. Viu-se, com efeito, que Eurípedes é
Minha tese propriamente dita é a seguinte. Oito geralmente considerado na época moderna como o
tragédias, é pouco em relação à massa de todas as menos trágico dos autores. De fato, das 17 tragédias
tragédias produzidas em Atenas ou mesmo em relação que temos conservadas sob seu nome, fora Alceste,
somente às de Eurípedes. Porém, não se poderia nove apenas tem um desenlace infeliz, ou seja, 53%, e
subestimar a importância excepcional dessas oito não há dúvida de essa proporção relativamente
peças ditas alfabéticas que, por um raro concurso de pequena contribuiu para relegar esse autor à margem
circunstâncias, formam um conjunto de documentos dos grandes trágicos quando se desenvolveu na Europa
totalmente exterior à seleção escolar: não se trata mais a reflexão filosófica sobre o conceito de trágico, nos
de peças escolhidas arbitrariamente por motivos cujo séculos XVIII e XIX. Mas parece agora que essa
essencial nos escapa, mas de tragédias conservadas pequena taxa não é senão um artefato da tradição
de maneira essencialmente aleatória, pelo acaso da manuscrita, que mistura duas famílias de peças
ordem do alfabeto e de uma edição de Eurípedes que radicalmente distintas: uma determinada de maneira
se encontrava no lugar certo na hora certa. Ora, essa arbitrária, comportando 89% de fins funestos, e a outra,
diferença é enorme: eis enfim a amostragem de caráter puramente aleatório, que contém somente
testemunha indispensável para um conhecimento mais 12% com esse tipo de fim⁶.
objetivo das tragédias de Eurípedes.
Em outras palavras, se não tivéssemos jamais
Efetivamente, a comparação das tragédias conservado as peças alfabéticas, que têm todas as
alfabéticas com aquelas da seleção é esclarecedora. chances de serem mais representativas do conjunto
Basta dar uma olhada na lista para perceber que ela da obra do autor, Eurípides nos pareceria não o
contém as peças em geral julgadas como as mais menos trágico, mas o mais trágico dos autores de
atípicas no interior do corpus trágico e o de Eurípedes tragédias gregas, por ser o mais inclinado a dar para
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opiniães O que é o trágico efetivamente? Esse conceito
desenvolvido essencialmente na Alemanha ao fim do
século XVIII e início do XIX poderia ser resumido
suas peças um desenlace infeliz. Hipótese absurda, muito grosseiramente na luta do homem contra a
evidentemente, porque, por felicidade, as tragédias transcendência e, sobretudo, em seu esmagamento
alfabéticas de fato existem. Mas não tão absurda, pelo destino. Essa ideia de destino certamente já
uma vez que ela não permite compreender melhor, aparece em Homero, mas, até o século III antes de
por inferência, a situação particular na qual se nossa era e na época dos grandes trágicos em
encontram os outros dois dramaturgos. Ésquilo e particular, se dispersa no pensamento e na literatura
Sófocles. Pois esses últimos nos parecem justamente grega em uma multidão de conceitos e de
em tal configuração: deles, restam apenas as peças denominações não completamente sinônimas umas
da seleção e, contrariamente a Eurípides, não temos das outras⁷. É somente com a invenção do estoicismo
no caso dos dois nenhum acesso às tragédias que ela começa a desempenhar um papel central e
ignoradas pela tradição escolar. Daí a pensar que o estruturante no pensamento e na filosofia da
conhecimento das tragédias de Ésquilo e Sófocles Antiguidade.
exteriores à seleção abalaria a percepção que temos
de sua arte, em proporções tão consideráveis quanto Ora, de modo significativo, a época na qual se
foram para Eurípedes, é só um passo. A hipótese efetua a seleção escolar das tragédias, o século II de
deve ao menos obrigar a relativizar tudo o que nossa era, coincide com o apogeu da influência estoica
acreditamos saber da tragédia ática, caso se no mundo greco-romano, que então se estende até o
confirmasse que as tragédias consideradas em geral mais alto nível do Estado: o imperador Marco Aurélio faz
como modelos do gênero são, com efeito, apenas do estoicismo sua filosofia pessoal; os conceitos
exceções. Ora, é precisamente isso o que ensina o estoicos se banalizam e se difundem em todas as
estudo da transmissão dos textos de Eurípedes. escolas filosóficas, e particularmente as ideias de
destino e de providência se tornam infinitamente mais
Uma seleção de tragédias de inspiração estoica pregnantes do que na época dos grandes trágicos.
Sabe-se que os estoicos amavam citar Édipo Rei para
Obviamente, a seleção antiga das tragédias
explicar a força da fatalidade⁸. A seleção do século II
funcionou como um leito de Procusto – escolhendo
reflete claramente essa preferência por obras capazes
peças que tinham características comuns. Uma coisa
de fazer eco às preocupações filosóficas do momento.
é clara, em particular: a julgar pelo caso de Eurípedes,
Pode-se, portanto, formular a hipótese de que a
as peças da seleção correspondem muito mais ao
conceptualização “trágica” operada na época moderna a
conceito moderno do trágico do que aquelas que
partir das obras de Sófocles e de Ésquilo foi de algum
foram deixadas de lado. Essa defasagem poderá
modo preparada e favorecida pela seleção escolar do
talvez nos ajudar a compreender a origem e as razões
século II, que escolheu as peças mais aptas a ilustrar
da seleção feita no século II da nossa era.
a visão estoica do mundo.
163
opiniães peças. É preciso, claro, amparar-se igualmente em
todos os fragmentos trágicos que foram conservados
aqui e ali, mas mesmo com esses fragmentos a busca
Inversamente, é sintomático que as tragédias de uma verdade sobre a tragédia permanece ilusória.
alfabéticas de Eurípedes, perfeitamente Todos esses documentos podem no máximo nos dar
independentes dessa seleção, entrem bem menos uma representação mais provável, o que já não é tão
facilmente no quadro conceitual do estoicismo: elas ruim.
testemunham que o domínio da tragédia era ainda
mais diverso, estética e ideologicamente, do que Além disso, nesse domínio, vale mais, sem
permitem pensar as peças retidas pelos pedagogos dúvida, afastar as ideias de verdade e de certeza, e
do início de nossa era; elas deixam entrever um se contentar com simples probabilidades. Tal é o
universo radicalmente diferente daquele que as quinhão de toda pesquisa sobre literatura antiga:
tragédias canonizadas pela tradição figuram. nosso corpus literário grego e romano é não apenas
fragmentário e parcial, partido – isso se sabe – mas
A simples comparação das tragédias ele tem todas as chances, infelizmente, de ser
canônicas e das tragédias alfabéticas de Eurípedes também parcial, partidário, transmitido que foi por
permite não somente compreender como nosso eruditos que tinham, e isso é bem normal, suas
corpus trágico atual foi constituído, mas também e, exigências próprias para selecionar tal texto mais do
sobretudo, acessar indiretamente a parte imersa do que tal outro. Esse corpus é o produto de uma
iceberg, ou seja, o conjunto das tragédias que não transmissão ideológica e esteticamente enviesada,
foram conservadas, para penetrar melhor em suas mas é só isso – ou quase – o que temos à nossa
características. Assim, pode-se agora sustentar com disposição: enxergamos o mundo antigo com óculos
boas razões a hipótese paradoxal de que a grande que não são os nossos, e quando tentamos retirá-los,
maioria das tragédias gregas terminava bem, o que ou seja, alcançar tudo o que a tradição manuscrita
inverte todas as ideias comuns sobre o gênero deixou de lado, imediatamente tudo se torna muito
trágico. impreciso.

* * Donde uma resposta bem modesta à questão


* posta na introdução: sobre a tragédia grega tanto
como sobre a literatura antiga em geral, o estado de
Tal método nos permite com isso alcançar um saber conhecimento deve necessariamente se afastar da
verdadeiro sobre a tragédia grega? A ambição seria sem dicotomia do verdadeiro e do falso, nela há somente
dúvida excessiva: as oito tragédias alfabéticas de Eurípedes ciência do provável⁹.
não poderiam ser suficientes para nos dar, por elas mesmas,
uma representação fiável do conjunto do corpus perdido da
tragédia grega, constituído de centenas, talvez de milhares de
164
opiniães ⁶ Sem Alceste, as peças da escolha apresentam 89% de
desenlaces funestos; com Alceste, a taxa cai para 80%. O
argumento pode ser completado se for levado em conta que o
conjunto bem numeroso dos fragmentos das tragédias de
Notas Eurípedes encontrados, e que foram notavelmente editados
por Jouan F. e Van Looy H., in Euripide, Tragédies, t. VIII:
¹ N. T.: Texto publicado em Marx, William. “Peut-on connaître la Fragments, Paris, Belles Lettres, 2002-2003, 4 vol. Ver MARX
vérité sur la tragédie grecque?” in : Guerrier, Olivier (ed.). La W., Le Tombeau d’Œdipe. Pour une tragédie sans tragique,
Vérité, Publications Universitaires de Saint-Étienne, 2013, p. Paris, Minuit, 2012, p. 178-179.
195-204. ⁷ Ver GUNDEL W., Beiträge zur Entwickelungsgeschichte der
² Université Paris Ouest Nanterre-La Défense (Paris X). Em Begriffe Ananke und Heimarmene, Giessen, Brühl, 1914, p. 34-
abril de 2019, foi eleito para a cadeira de Literaturas 39, et « Heimarmene », in Paulys Realencyclopädie der
Comparadasdo Collège de France. classischen Altertumwissenschaft, Munich, Druckenmüller,
³ Ver WILAMOWITZ-MOELLENDORFF U. von, Einleitung in 1912, t. VII, vol. 2, col. 2622-2645.
die griechische Tragödie, Berlin, Weidmann, 1907, p. 195-219; ⁸ Cicéron, Du destin, xiii-30; Alexandre d’Aphrodise, Du destin,
TUILIER A., Recherches critiques sur la tradition du texte 31. Ver GOURINAT J.-B., « Prédiction du futur et action
d’Euripide, Paris, Klincksieck, 1968, p. 88-113; REYNOLDS L. humaine dans le traité de Chrysippe Sur le destin », in
D. e WILSON N. G., D’Homère à Érasme: la transmission des Romeyer Dherbey G. (dir.) et Gourinat J.-B. (éd.), Les
classiques grecs et latins (Scribes and Scholars: A Guide to the Stoïciens, Paris, Vrin, 2005, p. 270-273. Sobre a influência
Transmission of Greek and Latin Littérature, 1974), trad. C. estoica na época imperial, ver POHLENZ M., Die Stoa:
Bertrand et P. Petitmengin, Paris, CNRS, 1991, p. 36-37; Geschichte einer geistigen Bewegung (1948), Göttingen,
IRIGOIN J., La Tradition des textes grecs: pour une critique Vandenhoeck & Ruprecht, 7e éd.: 1992, p. 354-366; REALE
historique, Paris, Belles Lettres, 2003, p. 162-167; JOUANNA G., Storia della filosofia antica (1975-1980), t. IV: Le scuole
J., Sophocle, Paris, Fayard, 2007, p. 524-531. dell’età imperiale, Milan, Vita e Pensiero, 8e éd.: 1994, p. 73-
⁴ N. T. Lagarde et Micharde é o nome de um manual escolar de 148; GILL C., « The School in the Roman Imperial Period », in
literatura francesa. Publicado entre 1948 e 1962, ele serviu Inwood B. (dir.), The Cambridge Companion to the Stoics,
como base para o ensino secundário na França até os anos Cambridge, Cambridge University Press, 2003, p. 33-58. Sobre
1990 e depois se tornou uma obra referência, tendo ainda hoje o papel determinante do estoicismo na difusão dos conceitos
tiragens regulares. de destino e de providência, ver THILLET P., « Introduction »,
⁵ Ver WILAMOWITZ-MOELLENDORFF U. von, loc. cit.; in Alexandre d’Aphrodise, Traité du destin, Paris, Belles
MÉRIDIER L., in Euripide, Le Cyclope, Alceste, Médée, Les Lettres, 1984, p. lxxxii-xc; Traité de la Providence, Lagrasse,
Héraclides, Paris, Belles Lettres, 1976 (1a éd.: 1926), p. xx- Verdier, p. 30-42.
xxxi; SNELL B., « Zwei Töpfe mit Euripides-Papyri », Hermes, ⁹ Para mais detalhes sobre toda a argumentação desenvolvida
vol. 70, 1935, p. 119-120; TURYN A., The Byzantine aqui, ver MARX, W., op. cit., p. 47-83.
Manuscript Tradition of the Tragedies of Euripides, Urbana, The
University of Illinois Press, 1957, p. 222-306; ZUNTZ G., An
Inquiry into the Transmission of the Plays of Euripides,
Cambridge, Cambridge University Press, 1965, p. 276-278;
TUILIER A., op. cit., p. 114-127; JOUAN F., « Notice », in
Euripide, Iphigénie à Aulis, Paris, Belles Lettres, 1990, p. 52-
55; IRIGOIN J., Tradition et Critique des textes grecs, Paris,
Belles Lettres, 1997, p. 129-137, et Le Poète grec au travail,
Paris, Académie des inscriptions et belles-lettres, 2009 p. 335-
336.

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DOI: http://dx.doi.org/10.19177/rcc.15012020107-119

SOBREDETERMINAÇÃO E DUPLICIDADE DOS SIGNOS:


DE SAUSSURE A FREUD
SURDÉTERMINATION ET DUPLICITÉ DES SIGNES:
DE SAUSSURE À FREUD

Patrice Maniglier
Tradução de Fábio Roberto Lucas

Resumo: Psicanálise e literatura podem se medir uma à outra somente como saberes a
respeito da linguagem, uma vez que elas trazem igualmente à luz uma dimensão linguageira
que é resistente ao saber linguístico. A imagem saussurreana da linguagem, a respeito da
qual se começa a medir quanto ela estava distante daquela transmitida por esse texto
apócrifo que é o Curso de Linguística Geral, permite-nos compreender por que essa
dimensão é essencial àquilo que é a língua: pois os signos linguísticos são essencialmente
sobredeterminados.
Palavras-chave: Lacan. Mallarmé. Sobredeterminação. Valor (teoria do). Anagramas.
Résumé: Psychanalyse et littérature ne peuvent se mesurer l’une à l’autre que comme
savoirs sur le langage, parce qu’elles mettent également en lumière une dimension du
langage résistante au savoir linguistique. L’image saussurienne du langage, dont on
commence à mesurer combien elle est éloignée de celle que livrait ce texte apocryphe qu’est
le Cours de linguistique générale, nous permet de comprendre pourquoi cette dimension est
essentielle à ce qu’est la langue: parce que les signes linguistiques sont essentiellement
surdéterminés.
Mots-clé: Lacan. Mallarmé. Surdétermination. Valeur (théorie de la). Anagrammes.

Recebido em 11/05/2020. Aprovado em 24/05/2020

Há uma maneira muito triste pela qual a transferência da psicanálise à literatura


pode ocorrer e efetivamente ocorreu: a de uma técnica de interpretação a uma atividade
simbólica; quando alguém se mete a psicanalisar os textos e fatalmente reencontra ali toda
a antropologia freudiana. O risco é que, na passagem, a pessoa se desencoraje tanto de
uma quanto de outra.
Se não se quer que psicanálise e literatura se reencontrem somente em uma relação
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entre técnica de interpretação e atividades simbólicas, se, com Lacan, admite-se que à
psicanálise não cabe elucidar a literatura, mas à literatura elucidar a psicanálise – pois,
como ele dizia, o enigma está do seu lado (LACAN, 2003, p. 17) – então se deve dizer,
Página

sem dúvida, que psicanálise e literatura só se medem uma a outra, ou seja, só dão a medida
uma da outra como saberes sobre a linguagem. Saberes sobre a linguagem cuja comum


Texto originalmente publicado em MANIGLIER, Patrice. “Surdétermination et duplicité des signes: de
Saussure à Freud”. In: Savoirs et clinique, nº 6, 2005, pp. 149-160.

Realiza pós-doutorado em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsa PNPD-
CAPES. E-mail: fabio.lucas@usp.br.

MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
singularidade se reduz a um problema, ou a um desafio: a maneira similar como eles
interrogam esse outro saber sobre a linguagem que é a linguística, ou seja, finalmente, a
maneira como eles perguntam: de que tipo de saber sobre ela mesma a linguagem nos
torna capazes? Psicanálise e literatura não se contentam de ser, para a linguística,
exemplos de uso da linguagem, que essa poderia ou deveria elucidar: elas iluminam uma
dimensão da linguagem resistente ao saber linguístico. Quero dizer com isso não somente
que o que se faz com a linguagem em uma análise ou em uma obra literária não se deixa
capturar com “modelos teóricos”, como se sabe (porque, alguns diriam, só há ciência do
geral1), mas talvez até mesmo que a linguística, por sua vez, não tem literalmente nada a
fazer com isso. Imagino que é o gênero de experiência que muitos linguistas tiveram de
fazer ao ler Freud: “é linguagem, claro, mas bem, isso aí não nos concerne em nada”.
Porém, seria lamentável que a imagem que a linguística se faz da linguagem torne
incompreensível a existência mesma de tais usos. Se os textos devem efetivamente, como
diz Lacan, se medir com a psicanálise, então literatura e psicanálise devem se medir,
juntas, com a linguística. Isso se traduziria certamente pela famosa frase, em forma de
slogan: “Não existe metalinguagem”. Pois isso significa que é no uso da linguagem que
a verdade da linguagem aparece, e não ao tomar uma espécie de posição em elevação
sobre a linguagem tratada como um objeto, como se supõe que os linguistas fazem. É no
discurso que a verdade do que o faz caminhar deve aparecer e em nenhuma outra parte.
Mas, a partir daí, parecerá ainda mais estranho fazer intervir aqui o nome de
Saussure. Não é ele quem separou a linguística das outras abordagens da linguagem, ao
lhe dar como objeto a língua, realidade autônoma e copresente em todos os seus usos?
Creio poder dizer tranquilamente que o consenso hoje entre os exegetas saussureanos é
dizer que essa lição é exatamente o inverso daquilo que Saussure ensinou, para sua
infelicidade, em seu próprio trabalho de linguista ou, mais precisamente, de filólogo.
Saussure jamais quis separar a linguística para pô-la no abrigo de algum éter teórico. A
famosa frase que termina o Curso de Linguística Geral, segundo a qual, “a linguística
tem por objeto único a linguagem considerada para ela mesma e por ela mesma” é
totalmente apócrifa. Saussure se empenha, pelo contrário, em dissolver a linguística, em
mostrar que uma disciplina como tal é impossível; ele a considera mesmo como uma
dessas ilusões típicas provocadas inevitavelmente por aquilo que chama de “duplicidade
da linguagem”. É precisamente essa dissolução que promete a cunhagem da nova palavra
“semiologia”. Além disso, encontra-se sob sua pluma esta equação simples: “Semiologia
= morfologia, gramática, sintaxe, sinonímia, retórica, estilística, lexicologia etc., sendo o
todo inseparável” (SAUSSURE, 2004, p. 44).
Contudo, por outro lado, é preciso compreender que todo o esforço de Saussure está
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em mostrar que, se não há metalinguagem, é pelo fato mesmo do que é a língua, ou seja,
um sistema de signos, pelo fato de como ela é, mais precisamente, “estruturada”, ou seja,
Página

em verdade, como aquilo que suporta um inconsciente. Saussure permite em suma


compreender que a língua é o que faz um ser falante ser o sujeito de um inconsciente e

1
Com efeito, existe uma tendência em distinguir as disciplinas hermenêuticas, que buscam a singularidade
de um acontecimento de sentido, e as disciplinas gramaticais, que buscam, pelo contrário, as regularidades.
Literatura e psicanálise estariam do lado das primeiras, a linguística, do lado das segundas (para mais sobre
essa distinção, ver RASTIER, 1987).

MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
ser capaz de literatura. Isso, Lacan o repetirá, é seu ensinamento: “O indivíduo que é
afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um
significante” (LACAN, 1985, p. 194, cf. também LACAN, 2003, p. 448-497 e 508-543).
Meu problema é, portanto, duplo. Por um lado: o que é essa dimensão da linguagem
resistente ao saber linguístico que psicanálise e literatura nos obrigariam a levar em conta?
Por outro: em que a imagem saussureana da linguagem nos permite compreender que essa
dimensão é essencial à linguagem, ou seja, que tanto os lapsos, os chistes, os sonhos
quanto as obras literárias não são somente usos da linguagem dentre outros usos, mas
falas que fazem emergir no discurso a própria verdade da linguagem? A essas duas
questões, eu teria apenas uma só resposta: os signos linguísticos são essencialmente
sobredeterminados.

DE UMA DIMENSÃO DA LINGUAGEM RESISTENTE AO SABER LINGUÍSTICO

O que literatura e psicanálise nos obrigam a levar em conta da linguagem? Duas


coisas essencialmente. De início, que não se fala porque se teria qualquer coisa a dizer,
no sentido de uma significação a comunicar, mas porque se está a fazer advir uma fala.
Além disso, que a gente diz sempre mais do que queria dizer, ou, mais brutalmente, que
a gente diz sempre mais do que diria. Temos aí duas faces de uma só e mesma nova sobre
a linguagem, que se descobre ser, como dirá Deleuze em Lógica do Sentido, uma boa
nova, pois ela anuncia o seguinte: que o sentido não é a finalidade do discurso, mas seu
efeito de superfície – que o sentido não é algo a reencontrar, mas a produzir (1974, p. 74-
75).
Para o primeiro ponto – que falar não consiste em outra coisa senão produzir uma
fala no sentido teatral do termo – creio, de minha parte, que é uma das grandes lições de
Freud, a que faz com que a psicanálise não se confunda com o que está para se tornar um
dos maiores flagelos dos tempos modernos, ou seja, a psicologia. Se o inconsciente é
estruturado como uma linguagem, se o inconsciente isso fala, não é porque nossos atos e
nossas tagarelices, nossas dores histéricas e nossos ritos obsessivos teriam um sentido
secreto, um sentido profundo escondido atrás do sentido aparente, do qual não se desejaria
saber nada, mas que se poderia descriptografar e mesmo do qual seria preciso tomar
consciência para melhor se desembaraçar dele. O recalque é sim o próprio mecanismo do
discurso, mas o que é recalcado não é uma significação, é enquanto tal um signo, que é
substituído por outro signo. Desde A interpretação dos sonhos, Freud nos diz que o
conteúdo latente e o conteúdo manifesto do sonho não estão numa relação de signo à
significação, mas de texto a texto, de texto traduzido a texto original, de signo escrito a
signo verbal, de hieróglifo a alfabeto, de rébus a provérbio. Trata-se da tradução de uma
“língua” em uma outra (FREUD, 2018, l. 40).
Isso me parece essencial em todos os aspectos, e creio que é um dos pontos onde
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Lacan quis ser literal. E ainda mais essencial porque isso desdobra sobre a própria técnica
da cura. A eficácia da cura decorre, com efeito, não de o sujeito se tornar “consciente” do
conteúdo daquilo que busca dizer, reapropriando-se a si mesmo, de algum modo, mas de
Página

se liberar um “significante” cuja ausência mesma era determinada através da série das

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repetições. As formações neuróticas seriam verdadeiros agenciamentos simbólicos, que
não tem outra função senão determinar um não dito singular, e esse não dito não seria
uma significação, mas um outro signo cuja ausência mesma comanda a organização
particular do discurso de um sujeito, ou seja, de sua vida. O gesto de Lacan teria desde
então consistido em liberar a psicanálise da “psicologia”, no sentido de um pathos da
reflexividade e da compreensão de “si”, deixando espaço a toda uma abordagem tática e
estratégica da intervenção terapêutica, para a qual todo o problema seria jogar habilmente
com esses agenciamentos para neles reintroduzir o signo incluído por sua exclusão, a fim
de lhe deixar produzir seus efeitos de reagenciamento, a interpretação sendo nesse caso
apenas um meio, um ardil...
Mas é isso também o que a literatura nos ensina da linguagem. Que a função da
literatura seja precisamente nos fazer ouvir o signo contra seus recobrimentos pela
significação é, por certo, uma tese sobre a literatura, mas é uma tese que se confunde com
o momento no qual a literatura se constitui precisamente como saber sobre a linguagem.
Ela é particularmente clara em Mallarmé, especialmente nesse pequeno texto célebre
chamado “Crise de versos”. Algumas citações a título de lembrança:

Falar não tem outra inserção na realidade das coisas senão comercialmente: em literatura, o
falar contenta-se em fazer uma alusão a ela ou desmembrar sua qualidade que incorporará
alguma ideia [...]. Ao contrário de uma função de numerário fácil e representativa, como o
trata de início a multidão, o dizer, antes de mais nada, sonho e canto, reencontra no Poeta,
por necessidade constitutiva de uma arte consagrada às ficções, sua virtualidade
(MALLARMÉ, s/d).

Dito de outro modo, o poema não transmite nada; ele restitui o signo em sua
virtualidade, contra suas atualizações no discurso. A literatura corre, de algum modo, a
contrapelo do uso da linguagem, pois ela busca precisamente não fazer desaparecer a
linguagem em proveito daquilo que essa escolta, mas a fazê-la aparecer por si mesma.
Toda a arte, ou seja, todo o esforço, toda a malícia, toda a técnica do artista consiste
precisamente em produzir um signo manifestamente opaco, ou seja, resistente à
significação. Não porque ele abriria as interpretações ao infinito, como na definição da
obra aberta no sentido de Umberto Eco, mas porque o signo mesmo é virtual,
infinitamente sobredeterminado.
Passemos agora ao segundo aspecto dessa boa nova que, para mim, psicanálise e
literatura trazem para a linguística. Se o primeiro consiste em dizer que os atos de
linguagem não reenviam a significações, mas determinam signos, agora, é preciso
acrescentar que o signo se define pela lógica singular dessa determinação, que Freud
chama de “determinação múltipla” (2018, l. 42-44).
Trata-se aqui de uma efetiva definição do signo: se o sonho tem um sentido, se ele
faz signo, é porque ele é sobredeterminado. Sabe-se que o capítulo sobre o trabalho do
sonho começa pela noção de condensação: “nunca é possível ter certeza de que um sonho
110

foi completamente interpretado. Mesmo que a solução pareça satisfatória e sem lacunas,
resta sempre a possibilidade de que o sonho tenha ainda outro sentido” (FREUD, 2018, l.
Página

40). E mesmo, acrescenta Freud, essa interpretação é rigorosamente interminável. Seria


possível dizer que essa infinitude do sentido é o próprio traço do sentido. Todavia, a força

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de Freud está em não considerá-lo como uma propriedade do sentido que, por ser sempre
o correlato de um ato de interpretação, seria necessariamente infinito (como sustentam,
por exemplo, os defensores de uma filosofia hermenêutica, cf. FRANK, 1989), mas de
ver nisso antes uma propriedade do signo, do modo mesmo de determinação dessa fala
inconsciente que ele chama “umbigo do sonho”:

Mesmo no sonho interpretado de forma mais minuciosa, é frequente haver um trecho que tem
de permanecer obscuro; é que, durante o trabalho de interpretação, percebemos de que há
nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que,
além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo
do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos
levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão
fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo de
pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o
desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio (FREUD, 2018, l. 73).

Se há um excesso do signo sobre toda significação assinalável, não é porque


teríamos sempre mais a dizer do que aquilo que dizemos, não é porque, como dirá
Merleau-Ponty por exemplo, o sentido é esse excesso mesmo do sujeito que se exprime
sobre sua própria expressão, mas porque o dito do sonho é essencialmente
sobredeterminado. A sobredeterminação é o próprio mecanismo de produção do sentido.
Deleuze escrevia: “Não procuramos em Freud um explorador da profundidade humana e
do sentido originário, mas o prodigioso descobridor da maquinaria do inconsciente por
meio do qual o sentido é produzido, sempre produzido em função do não-senso” (1974,
p. 75). Essa é a maquinaria da sobredeterminação. Além disso, a introdução desse
conceito é precedida, em A interpretação dos sonhos, por esta passagem: “Estamos aqui
numa fábrica de pensamentos onde, como na ‘obra-prima do tecelão’,

um só pedal mil fios move, / ... um só piso já mil fios move,


Nas lançadeiras que vão e vêm, / Voam, indo e vindo, as lançadeiras,
Urdem-se os fios despercebidos / Em que, invisíveis, fluem tramas ligeiras,
E a trama infinda vai indo além / Um golpe mil junções promove
(FREUD, 2018, 1.41; GOETHE, Fausto, Parte I, Cena 4)2
1

A relação do texto manifesto com o texto latente não é de codificação no sentido


estrito porque ela não faz corresponder a cada elemento do texto um outro elemento do
outro, por uma correspondência biunívoca: “o sonho não é uma tradução fiel ou uma
projeção ponto por ponto dos pensamentos do sonho”. A cada elemento do sonho
corresponde uma multidão de elementos dos pensamentos do sonho: “cada um dos
111

elementos do sonho revelou ter sido ‘sobredeterminado’ - ter sido representado muitas
vezes nos pensamentos oníricos”. Ora, ocorre que Freud diz, ademais, que os
pensamentos do sonho são justamente as próprias relações dos elementos: “O que é
Página

reproduzido pelo aparente ato de pensar no sonho é o tema dos pensamentos oníricos e

2
Nota do tradutor: fornecemos a tradução apresentada no livro bem como a que Jenny Klabin Segall fez
para esse trecho em: GOETHE (1981, p. 90).

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não as relações mútuas entre eles, cuja asserção constitui o ato de pensar” (2018, l. 45).
Isso significa que o que é um signo depende de sua relação com outros signos (de sua
posição em uma rede simbólica) e, portanto, que a sobredeterminação é o modo mesmo
de determinação dos signos – que é por causa dela (ou graças a ela) que o signo faz signo,
reenviando-se sempre a outros signos. Temos, assim, duas teses, que constituem todo o
problema ao mesmo tempo especulativo e técnico da descoberta freudiana: por um lado,
o signo (a coisa a dizer) é determinado por sua posição nas redes significantes; por outro
lado, ele pertence sempre a diversas redes significantes ao mesmo tempo, redes que não
são sobreponíveis, ou seja, a partir das quais não se pode estabelecer uma espécie de
forma abstrata na qual seriam conservadas as relações em detrimento dos termos. A
sobredeterminação está o mais próximo possível do que a psicanálise faz aparecer dos
mecanismos da linguagem.

DE UM DISCURSO QUE FAZ OUVIR A LÍNGUA

Em que, hoje, a imagem saussureana da linguagem nos permite compreender que


essa dimensão é sim um saber sobre a linguagem, no sentido de alguma coisa que não
decorre somente de um de seus usos possíveis, mas sim do tipo de lógica que anima todo
ato de linguagem? Em que, em suma, ela nos permite compreender que um ser falante é
um ser suscetível de ser analisado e de ser literário?...
Saussure evidentemente não conheceu a obra de Freud. Digo que é evidente, mas
na verdade é da mesma forma um pouco estranho. Saussure e Freud são contemporâneos
exatos. O primeiro era um amigo do psicólogo Théodore Flournoy, que introduziu Freud
no mundo genebrino. Muitas coisas poderiam tê-lo atraído na obra de Freud. É um fato,
porém, que ele não conheceu nada dela. É verdade que ele morreu muito jovem e que, a
partir de 1900, parece ter se debruçado sobre as angustiantes metamorfoses dos signos e
do álcool: mais estranho, em contrapartida, é a ignorância na qual Freud permaneceu a
respeito de Saussure. Ainda mais por conhecer bem o nome de Saussure, não o do
linguista, mas o do psicanalista Raymond, filho do primeiro, que ele mesmo analisou...
Sabe-se também que ele conhecia a existência do Curso de Linguística Geral, pois ele é
explicitamente mencionado (a propósito do lapso) no livro que Raymond pediu que Freud
corrigisse e prefaciasse (1922, p. 83). Em todo caso, esse encontro entre Freud e Saussure
foi adiado e só se realizou mais tarde, na pessoa de Lacan. Ora, se é preciso procurar
retrospectivamente o que preparava mais profundamente esse encontro, é precisamente
no que Saussure disse da literatura que se deve ter interesse.
Por certo, da literatura, Saussure falou pouco. Por outro lado, ele escreveu bastante
sobre ela. Ou melhor, é sobretudo sobre ela que ele escreveu: dos manuscritos dos quais
dispomos, os que concernem a literatura representam a maior quantidade. E se trata
precisamente de abordá-la como um saber sobre a linguagem. Faço alusão aqui aos
famosos manuscritos sobre os anagramas. Esses textos são notórios, em particular, pelo
fato de encontrarem eco nos ensinamentos de Lacan. O que talvez não se diz tanto é que
112

essa pesquisa começou a partir de uma hipótese sobre a poesia como saber sobre a
linguagem. Tratava-se, a princípio, de uma tese sobre a função da poesia para os antigos
indo-europeus, tese segundo a qual essa poesia não tinha por vocação nem introduzir um
Página

pouco de música no discurso nem cantar os louvores de Deus, mas que sua “preocupação”
inicial não era nem estética, nem religiosa, mas “fônica” (STAROBINSKI, 1974, p. 26):

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O poeta se entregava, e tinha como métier comum entregar-se à análise fônica das palavras;
que é esta ciência da forma vocal das palavras que constituía provavelmente, desde os mais
antigos tempos indo-europeus, a superioridade, a qualidade particular do kavis dos Hindus,
do Vãtēs dos latinos etc. (1974, p. 27).

A função da poesia é de fazer ouvir o signo, e mais precisamente essas subunidades


“incorporais” que são os “fonemas”. Pois o problema de Saussure é precisamente que o
fonema não é sonoro, que a língua que se fala não é feita de sons, mas de puros recortes,
de articulações, que não correspondem a esquemas tipos que se poderia localizar, com
um método experimental clássico, na substância fônica da linguagem. O verdadeiro
problema, que justifica, segundo Saussure, a existência da linguística, não é que as leis
formais da linguagem são ignoradas: é que não se sabe como as próprias unidades da
linguagem são percebidas, nem mesmo o que, exatamente, é percebido na linguagem.
Esse problema, ainda hoje, não foi resolvido.
É desse ponto de vista que a poesia é, para Saussure, a primeira linguística. Ele
sugere até mesmo que a técnica poética dos anagramas é responsável pelo precoce
desenvolvimento da ciência gramatical na Índia antiga:

Não me surpreenderia que a ciência gramatical da Índia, do duplo ponto de vista duplo fônico
e morfológico, não fosse assim uma sequência de tradições indo-europeias relativas aos
procedimentos a serem seguidos na poesia para confeccionar um carmen, levando em conta
formas do nome divino (STAROBINSKI, 1974, p. 29).

O que distingue, todavia, essa poesia de todo discurso de saber é que ele não cria
uma “metalinguagem” (como já o é o alfabeto fonético) para apreender as articulações
não fônicas do discurso. O poeta faz a linguagem jogar contra si mesma para colocar em
evidência os valores acústicos no próprio poema. Ele trabalha a “matéria” sonora a fim
de que essa revele alguma coisa de sua “forma”. O princípio diretor das pesquisas sobre
os anagramas é, desse ponto de vista, tipicamente “simbolista”: o signo analisado deverá
ser manifestado em sua própria expressão fonadora, mas só poderá sê-lo sob o modo da
evocação. O termo “hipograma”, privilegiado por Saussure, decorre justamente do que
ele significa em grego, “fazer alusão” (STAROBINSKI, 1974, p. 23-24). O que é
sugerido, precisamente, não é fônico, e não poderia se tornar o objeto de uma percepção
atual. Ele está, como queria Mallarmé, nos brancos do discurso, naquilo que não se ouve,
no que resta do consumo propriamente fônico do poema. Ademais, é por essa razão que
Saussure não o chama de foné, mas de grama. Enquanto a anafonia destaca os “fonemas”
repetindo-os pelo jogo da harmonia fônica (a relação do poema com o tema sendo de
imitação fônica), o anagrama propriamente dito utiliza essa repetição para deixar um resto
que é a cifra do anagrama.
Para compreendê-lo, releiamos a técnica do anagrama, como Saussure acredita
reconstruí-la em seus cadernos (STAROBINSKI, 1974, p. 16-23). A atualização do
113

“tema” no texto se faz em ao menos dois tempos: o primeiro trata o tema como matéria
fônica, o segundo o libera como resíduo e letra. Tudo se passa, de início, como se a
matéria fônica do tema, herculei, por exemplo, fosse “analisada” em suas diferentes
Página

unidades ou subunidades, e como se o poema fosse ser composto com os entulhos dessa

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matéria fônica multiplicada e desmembrada (membra disjecta...). Desse ponto de vista,
trata-se de uma espécie de assonância ou aliteração generalizada (“harmonia fônica”). A
matéria sonora do “tema” é o material que serve para construir o poema. Contudo, uma
regra especial permite em seguida distinguir os fonemas “consumidos” dos fonemas
restantes. Os primeiros são “compensados” pela lei da repetição par, e o impar funciona
como “resíduo desejado, destinado a reproduzir as consoantes do tema inicial”. Esses
fonemas deixados “livres, ou seja, em número impar no total”, constituem as letras do
tema. Os fonemas compensados estão “ligados”, enquanto os outros estão como que
relaxados, flutuantes, assombrando o discurso graças ao jogo de criação de uma espera e
de frustração dessa espera. O poema, ao se fechar sobre sua própria matéria sonora, deixa
uma ilegalidade que não é outra que seu “tema”, ou seja, seu “assunto”, aquilo de que
trata, e isso se levanta, intratável, não consumido, inteiro após essa festa dispendiosa de
sonoridades incandescentes que foi o poema. Aquilo de que se fala morre e renasce no
poema que dele fala, como se o dito servisse apenas para fazer surgir o símbolo ou o signo
puro daquilo de que é preciso falar, em sua irredutibilidade, em sua insistência – Palavra
pura, Cifra, Fórmula, Nome, Inscrição, Memória.
A arte anagramática consiste toda em deixar um traço, abandonar o destinatário do
anagrama com uma impressão ao mesmo tempo vaga e obsedante, que é a experiência do
nome restituído em seu estado de signo não atualizado, que se entrega, portanto, somente
nessa divinação, nessa suspeição, nessa presença duvidosa, porém insistente. O poema
anagramático dá a experiência do signo. Essa experiência decorre tipicamente da
sugestão, ou seja, de uma relação inconsciente ou, como Saussure diria mais
provavelmente, junto a seus contemporâneos, “subconsciente”, ou mesmo “subliminar”,
com seu “objeto”. Ou melhor: é a própria natureza do objeto que define essa relação
“subliminar”: enquanto tal, ele só poderia ser apreendido como evocado. O próprio
Saussure descreve esse efeito que o anagrama supostamente tem, apresentando-se como
uma vítima:

Tendo, diversas vezes, procurado o que me chamava a atenção como significativo nessas
sílabas, não o encontrei inicialmente porque estava unicamente atento a Priamidēs, e de
repente [après coup] compreendi que era a solicitação de Heitor que meu ouvido recebia
inconscientemente, solicitação que criava este sentimento de ‘alguma coisa’ que tinha relação
com os nomes evocados nos verso (1974, p. 40).

Starobinski diz com muita justiça: “a palavra-tema não tendo jamais sido objeto de
uma exposição, o que se coloca não é o problema de reconhecê-la: é preciso adivinhá-la,
numa leitura atenta aos possíveis laços de fonemas espaçados” (STAROBINSKI, 1974,
p. 34).
Ora, essa segunda existência é bem a mesma das entidades de línguas, ou seja,
dessas entidades puramente virtuais que não são atualizadas no fio de um discurso, mas
estão presentes num quadro sincrônico, no lugar que é o delas no entrecruzamento das
114

diferentes séries associativas que constituem a língua. Pode-se dizer que o poeta
anagramático dispõe na linearidade do discurso os paradigmas que o linguista Ferdinand
Página

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de Saussure representa em colunas3. Sua análise não é somente “fônico-poética”, mas
também “gramático-poética”. Assim, o poema nomeia o Deus declinando todas as
possibilidades de existência sêmica do Deus, dando “atenção às variedades do nome”, ou
seja, às declinações. Vê-se que, na recitação ou celebração anagramática, não se trata de
imitar o nome de Deus, mas sim de analisá-lo. Passa-se de um nome a um caso qualquer,
a um signo virtual rodeado de todos os seus paradigmas e que não tem outra existência
do que aquela evocada em fissura pela irrupção deles. Discurso que faz ouvir o signo, fala
que torna presente a língua, assim é a poesia... Não é assim também que deveria ser,
segundo Lacan, a cura psicanalítica?

DUPLICIDADE DOS SIGNOS

Mas isso não nos diz ainda por que o signo só pode ser produzido ou revelado em
um discurso e não em um metadiscurso, e qual privilégio teria, desse ponto de vista, a
literatura ou também igualmente a psicanálise. Para compreendê-lo, é preciso voltar ao
ponto central de todo o pensamento de Saussure, ao seu verdadeiro umbigo consigo, que
é a teoria do valor. Então se verá que isso se dá porque o signo é essencialmente
sobredeterminado.
Foi dito agora há pouco que a sobredeterminação é, em suma, o equívoco. Mas – é
a menor das questões – há um equívoco sobre esse termo equívoco. Pois, geral, ele dá a
entender isto: que um mesmo signo corresponde a diversas significações, ou que uma
mesma significação corresponde a diversos signos. Homonímia, portanto, e sinonímia.
Mas vê-se facilmente que essa maneira de formular as coisas é insatisfatória, pois ela
ainda define o signo pela maneira como ele é ordenado para a significação. Com efeito,
a partir de Freud, já se diz outra coisa: que o signo pertence necessariamente a diversas
redes de signos. O que seria preciso compreender, portanto, é por que essa característica
é essencial ao signo linguístico, se ela o é. Isso implica diretamente os problemas mais
fundamentais da linguística estrutural. Pois frequentemente se pretendeu que o objetivo
dela era precisamente ter um método para definir os signos de maneira unívoca, pela
posição deles em um sistema de oposições. Ora, com Freud, aparentemente se está bem
longe da sábia repartição dos termos em um sistema no qual, em suma, cada coisa está
em seu lugar. Cada signo, pelo contrário, parece ter sempre mais de um lugar e fazer da
língua um estranho mingau, um entrelaço, um labirinto, constituído de comunicações
aberrantes entre redes aparentemente heterogêneas, bem longe daquilo que um “sistema”
evoca de arrumado. De fato, para compreender o caráter essencial do equívoco e,
portanto, do inconsciente, não se pode ficar na simples oposição signo/significação, ou
mesmo significante/significado. Não é preciso dizer que um mesmo signo pode ter
115

diversas significações, nem mesmo que um significante pode ter diversos significados, é
preciso dizer que a identidade mesma do signo é múltipla, determinada de maneira
Página

múltipla, de modo que ela só se explicará à luz de uma ontologia do múltiplo.

3
Cf. os esquemas para ensinamento, desfazer ou anma no Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 2006,
p. 145-155).

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Para compreender esse ponto, é preciso, por certo, partir da dualidade do signo, mas
compreendendo que se trata de uma dualidade interna, de uma dualidade essencial. O
signo é um ser duplo, e não uma associação de duas coisas4. Com efeito, o que se percebe
não é um som ao qual se associaria em seguida uma significação; é de pronto um
“pensamento-som” (SAUSSURE, 2006, p. 131). A maneira como se determina esse
pensamento constitui todo o objeto da teoria do valor. Resumamo-la grosseiramente. De
início, extraem-se, do contínuo da experiência, certas variações fônicas, pelo fato da
associação dessas com variações fônicas de outra natureza (por exemplo, visuais). Essas
variações só se tornam discriminantes, ou seja, só se constituem como traços distintivos,
à medida que elas são correlacionadas umas com as outras. Isso significa que você não
tem prontamente em seu cérebro uma maquinaria toda montada de traços distintivos, pois
ela se escava em você em função do meio cuja consistência se define como: correlações
regulares entre variações heterogêneas. Saussure chama esses pacotes de traços
distintivos correlacionados de “termos”. Ora, esses termos, diz ele ainda, são
redeterminados e é então que eles se tornam “valores”.
Sabe-se que Saussure sustenta que o signo pode ser definido por sua posição em um
sistema de signos, que não é preciso definir um signo por sua relação com sua
significação, mas por sua relação com outros signos aos quais ele se opõe. A identidade
daquilo que eu digo não é senão a maneira pela qual eu reprimo tudo o que eu teria podido
dizer. Todavia, não é preciso cair nas armadilhas de uma metafísica que se compraz com
a ideia de que o signo é uma entidade “puramente opositiva”. De fato, se um signo pode
ser determinado por oposição aos outros termos circundantes, isso supõe em boa lógica
que esses termos existam eles mesmos. A constituição do signo como valor opositivo é
uma operação secundária, que se exerce sobre termos já dados, para redeterminá-los:

O fenômeno de integração ou de pós-meditação-reflexão é o fenômeno duplo que resume


toda a vida ativa da linguagem e pelo qual: 1º os signos existentes evocam
MECANICAMENTE, pelo simples fato de sua presença e do estado sempre acidental de
suas DIFERENÇAS a cada momento da língua, um número igual não de conceitos mas de
valores opostos para nosso espírito (tanto gerais quanto particulares, uns chamados, por
exemplo, de categorias gramaticais, outros tachados de fatos de sinonímia etc.); essa
oposição de valores, que é um fato PURAMENTE NEGATIVO, se transforma em fato
positivo, porque cada signo, ao evocar uma antítese com o conjunto dos outros signos
comparáveis em uma época qualquer, começando pelas categorias gerais e terminando pelas
particulares, se vê delimitado, apesar de nós, em seu valor próprio. [...] A cada signo existente
vem, então, SE INTEGRAR, se pós-elaborar, um valor determinado, que só é determinado
pelo conjunto dos signos presentes ou ausentes no mesmo momento (SAUSSURE, 2004, p.
80).

Esse valor pode desde então ser definido unicamente por sua posição em um sistema
de valores, fazendo-se total abstração de sua substância, ou seja, das variações
116

diferenciais que ele atualiza. Pode-se zombar da maneira como “soleil” (“sol”) é
pronunciado, o que importa é não ser confundido com “sommeil” (“sono”). É nesse
Página

sentido que Saussure podia dizer que a língua é uma “álgebra”. Em outras palavras, o
sistema dos signos oponíveis é a língua como “forma” no sentido dos estruturalistas.

4
Permito-me aqui fazer uma remissão a meu artigo, “La langue, cosa mentale” (MANIGLIER, 2003), onde
mostro também que esse “ser duplo” dos signos os mergulha precisamente na associação no sentido
freudiano.

MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
Mas é aí que as coisas se complicam consideravelmente. Pois o problema é que não
se pode representar a língua como um sistema homogêneo ou monoplano onde cada signo
teria uma posição unívoca porque as relações seriam da mesma natureza. Com efeito,
justamente porque cada termo é oponível a outro ao mesmo tempo por sua face
significante e por sua face significada, existem sempre diversos sistemas de valores
concorrentes. Ou seja, o mesmo termo é sempre determinado de diversas maneiras
simultaneamente, ou ainda, o sistema de valor é ele mesmo pluridimensional. Os signos
se opõem do ponto de vista de seus significados diferentemente de como eles se opõem
do ponto de vista de seu significante. Isso, diz Saussure, é o “princípio fundamental da
semiologia”:

Não há, na língua, nem signos, nem significações, mas DIFERENÇAS de signos e
DIFERENÇAS de significação; as quais 1º só existem, absolutamente, umas através das
outras (nos dois sentidos) sendo, portanto, inseparáveis e solidárias; mas 2º não chegam
jamais a se corresponder diretamente (SAUSSURE, 2004, p. 65; ênfase do artigo).

Um pacote de traços distintivos acústicos distinguirá um valor de um conjunto de


outros valores, ao passo que o pacote de traços distintivos semânticos oporá esse mesmo
valor a outro conjunto de valores. Se for chamada de “significante” a primeira ocorrência
do valor, e de “significado” a segunda, então se dirá que não é pela mesma razão que o
significante é o significante desse significado, e que esse significado é o significado desse
significante. Por exemplo, o valor [sommeil] (sono) se aproxima e se distingue, por um
lado, do valor [soleil] (sol), mas, por outro lado, [soleil] (sol) se aproxima e se distingue
de [lumière] (luz). As entidades “formais”, puramente “opositivas”, pertencem, portanto,
sempre a dois sistemas de oposições; eles se relacionam com os mesmos termos
homogêneos de duas maneiras diferentes (ao menos), como se a forma se desdobrasse (se
remultiplicasse).
É o gênio do maior leitor de Saussure, Hjelmslev, que fez dessa dupla determinação
da própria forma o atributo característico de toda língua natural, o que a torna irredutível
a todo sistema formal no sentido lógico ou matemático. Deve-se falar de forma de
conteúdo e de forma de expressão, pois se trata mesmo dos próprios valores que são
determinados duas vezes. Em um texto admirável, Hjelmslev exprimiu rigorosamente a
diferença entre o formalismo e o estruturalismo: enquanto o primeiro identifica as línguas
naturais com sistemas formais, o segundo mostra a irredutibilidade entre eles:

A fim de decidir se os jogos ou outros sistemas de quase-signos tais como a álgebra pura são
ou não semióticos, é necessário ver se a descrição exaustiva deles exige ou não que se opere
com o reconhecimento de dois planos, ou se o princípio de simplicidade pode ser aplicado
de tal modo que um só plano seja suficiente. A condição que exige que se opere reconhecendo
dois planos deve ser que, quando se tenta levantar os dois planos, não se possa demonstrar
que os dois planos têm a mesma estrutura com uma relação unívoca entre os funtivos de um
plano e os de outro (HJELMSLEV, 1975, p. 117).
117

Para as linguagens formais, que não são semiologias, “as redes funcionais dos dois
Página

planos que se tentará estabelecer serão idênticas” (1975, p. 118); o próprio de uma língua
que contém sua própria interpretação é de ser atravessada por formas não sobreponíveis

MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
(1975, p. 115-119). A “estrutura”, no sentido linguístico, é exatamente o inverso de uma
estrutura no sentido matemático clássico: ela se caracteriza, ao mesmo tempo, pelo
predicado “formal” (ou “algébrico” ou “posicional”) de seus elementos e também pela
impossibilidade de extrair uma forma abstrata que poderia se realizar igualmente, como
um decalque, sobre diferentes substâncias, em outras palavras, que poderia estabelecer
entre os planos (aquilo que os matemáticos chamariam de “as interpretações” da
estrutura) uma relação de “homologia”.
Ou melhor, a distinção entre as duas formas só pode ser artificial: “É uma operação
científica que distingue signo e significação”, dizia Saussure. Na experiência do sujeito
falante, há simplesmente dupla determinação dos valores, é sim o mesmo valor que é
determinado duas vezes, em outras palavras, que se produz como duplo, em suma, como
essencialmente equívoco. Assim o valor [sommeil] (sono) é determinado tanto por sua
oposição a [soleil] (sol) quanto à [veille] (vigília), e logo a [vieille] (velha), e logo a
[jeune] (jovem) etc. – ainda que não seja de forma nenhuma por razões de mesma
natureza... É certamente por isso que podemos compreender os poemas surrealistas e os
jogos de palavras. É por isso também que somos atravessados por essas comunicações
aparentemente aberrantes entre campos semânticos que a sã razão deveria distinguir, mas
das quais Freud mostra a importância na formação dos sintomas. É por isso que, como
dizia Lacan com sua precisão habitual, o “dizer [da análise] provém apenas do fato de
que inconsciente, por ser ‘estruturado como uma linguagem’, isto é, como a lalíngua que
ele habita – está sujeito à equivocidade pela qual cada uma se distingue”. Ao que ele
completava com uma tese profundamente saussureana: “Uma língua entre outras não é
nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistir” (Lacan, 2003, p.
492). Ora, a consequência disso é que não se pode representar a língua como sistema,
pois sua escrita possivelmente imobiliza suas relações. Haverá sempre diversas redes
significantes concorrentes ininterruptamente disponíveis. Podem-se imaginar quantas
dimensões se quiser, não se poderá figurar o sistema da língua. Nesse sentido, com efeito,
não existe metalinguagem. Por outro lado, se a identidade de um valor não é
representável, ela é efetuável. É o que fazem a literatura bem como a psicanálise: não
propor um metadiscurso sobre a linguagem, mas explorar suas virtualidades, efetuar as
sobredeterminações locais que definem o signo, fazer brilhar o signo em todo seu
essencial equívoco.
Assim, pode-se encontrar na linguística saussureana uma compreensão daquilo que
faz da língua uma condição da psicanálise bem como da literatura, e ainda também o que
faz dessas últimas saberes sobre a linguagem. É pelo fato da própria natureza da língua,
de sua ontologia, para falar filosoficamente, que a verdade da linguagem só se dá no
discurso. Mas se psicanálise e literatura não são apenas lembretes piedosos de uma
dimensão resistente ao saber da linguagem, mas verdadeiros saberes, é porque é preciso
apreendê-las como dispositivos que permitem fazer emergir até a superfície da linguagem
os próprios procedimentos que a produzem (os mecanismos da sobredeterminação), fazer
aparecer no efeito a lógica de sua própria causa. Está ainda aí, acredito, um dos
ensinamentos de Lacan: ele propôs através de todo seu percurso uma “fenomenologia”
118

(não no sentido de Husserl, mas no sentido clássico de uma descrição rigorosa) da


experiência analítica. O Outro não é um conceito que descreve alguma coisa da linguagem
em geral (toda fala seria essencialmente endereçada), mas antes um elemento essencial
Página

do dispositivo da análise à medida que esse último permite um saber sobre a linguagem

MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
(a maneira como a fala analítica é endereçada é uma condição quase técnica que faz
emergir os procedimentos da linguagem no discurso). É preciso apreender psicanálise e
literatura como dispositivos semiotécnicos, no sentido em que Bachelard fala de
“fenomenotécnica”. Uma questão se abre a partir de então: o que, na literatura e na
psicanálise, lhes permite ser esses dispositivos que fazem emergir no discurso a máquina
da linguagem? Eu sugeriria de bom grado duas pistas: para a psicanálise, provavelmente
é a transferência; para a literatura, é a condição inversa, ou seja, a ausência (ou a
différance, como dizia Derrida) do destinatário, que faz emergir, no limiar da página em
branco mallarmeana, toda a língua. De todo modo, é certo que uma abordagem
inteiramente outra tanto da psicanálise quanto da literatura se abre a partir da identificação
desse lugar de encontro entre elas.
O termo dispositivo parecerá talvez a alguns um pouco metafórico. Sem dúvida.
Mas não é ainda a isso que a língua nos constrange? Saussure escrevia em seus cadernos
que não era possível dispensar metáforas para “entrever... a natureza tão complexa dessa
semiologia particular chamada linguagem [...] não em um de seus aspectos, mas nessa
irritante duplicidade que faz com que jamais seja alcançada” (2004, p. 186). O importante
é ver o que elas permitem fazer.

REFERÊNCIAS

ARRIVÉ, Michel. Linguagem e psicanálise, linguística e inconsciente Freud, Saussure, Pichon, Lacan.
Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
DELEUZE, Giles. Lógica do Sentido. Trad. Luiz R. Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974.
FRANK, Manfred. Qu'est-ce que le néo-structuralisme? De Saussure et Lévi-Strauss à Foucault et Lacan.
Paris: Passages/Cerf, 1989.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2018 (ebook).
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Trad. Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. J. Teixeira Coelho. São Paulo:
Perspectiva, 1975.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20 mais, ainda. Trad. MD Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
LACAN, Jacques. Outros Escritos. Trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
MALLARME, Stéphane. “Crise de verso”. Trad. Luiz Carreira e Álvaro Faleiros. URL:
https://edisciplinas. usp.br/pluginfile.php/7111/mod_resource/content/1/crise%20de%20verso.doc.
Acesso em 10/03/2019.
MANIGLIER, Patrice. “La langue, cosa mentale”. In: Saussure, Cahiers de L’Herne, 2003.
RASTIER, François. Sémantique interprétative. Paris: PUF, 1987.
SAUSSURE, Ferdinand. Escritos de Linguística Geral. Trad. Carlos Augusto Leuba Salim e Ana Lucia
Franco. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 44.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e lzidoro
Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.
SAUSSURE, Raymond. La méthode psychanalytique. Paris, Payot, 1922.
STAROBINSKI, Jean. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. Trad.
119

Carlos Vogt. São Paulo: Perspectiva, 1974.


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MANIGLIER, Patrice. Sobredeterminação e duplicidade dos signos: de Saussure a Freud. Crítica Cultural –
Critic, Palhoça, SC, v. 15, n. 1, p. 107-119, jan./jun. 2020.
Tradução
A crise do ensino filosófico
Fábio Roberto Lucas
Pós-doutorando em Estudos Literários pela UFPR
Bolsista CAPES
fabio.lucas@usp.br

Gabriel Salvi Philipson


Doutorando em Teoria Literária pela UNICAMP em estágio sanduíche na Frei Universität Berlin
Bolsista FAPESP e DAAD
gsphilipson@gmail.com

Jacques Derrida

Apresentação da tradução

Parece sempre se renovar o ataque à universidade, ao saber e, especificamente, à


filosofia no espaço demarcado que geralmente se chama Brasil. Diante dessas ameaças,
o que se faz no mais das vezes é defender aquilo que se considera importante ou
valioso. Nada mais natural, então, do que, em resposta a ataques e crises, o elogio à
universidade, à sua instituição, e à filosofia.
Importante na história da defesa do valor da filosofia foi a pergunta retórica e
provocante “para que filósofo?” postulada por J. A. Giannotti na década de 1970, em
outro momento no qual a filosofia e a universidade estavam em questão ou em crise
por aqui, embora ao mesmo tempo mais consolidadas do que nunca. A pergunta seria
retórica por mal dissimular um elogio, que, no fim das contas, não deixava de limitar
o questionamento proposto.
É no âmbito de uma procura por responder a essa provocação encenada por
Giannotti, “para que filósofo?”, que Bento Prado Jr. realiza a conferência “profissão: filósofo”
em 1976, publicada posteriormente, em 1980. Ao comentar esse texto, Paulo Arantes
(1996, p. 158) afirma que, “em grande forma”, Prado Jr. encena uma hesitação que dá
corda “aos ataques de Nietzsche à filosofia universitária […] sem precisar arredar pé de
sua fausse position, aliás confortável”. Os sentidos do conforto, da “fausse position” e da
não necessidade de arredar pé ficarão claros a seguir. Este ensaio é talvez a primeira
vez em que os textos derridianos sobre as instituições da filosofia e da universidade
foram abordados pela instituição filosófica paulistana. Mas aparecem ali apenas para
que “nosso herói [pudesse] se dar ao luxo de fazer graça com a gigantomaquia de um
Derrida” (ARANTES, 1996, p. 159).
Por um lado, o luxo seria caçoar daquelas autoridades europeias que criticavam
a instituição filosofia, as mesmas pelas quais as autoridades institucionais tupiniquins

Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019 173


recebiam seu caráter de auctoritas. Em outras palavras, tratava-se assim de caçoar
autoritariamente da autoridade daquela autoridade que critica a autoridade.
Por outro lado, o luxo ocorreria pela sugestão de um “efeito cômico da fala de
Derrida sobre as relações perigosas entre pensamento e instituição, quando em nosso
meio devíamos tudo ao artifício do transplante que produzira a instituição esperando
que o tempo se encarregasse de fornecer-lhe o recheio” (ARANTES, 1996, p. 159). Ou
seja, o “efeito cômico” das reflexões de Derrida sobre instituição e filosofia se daria no
Brasil porque, transferindo para a filosofia institucional as discussões de uma teoria
literária e literatura colonizadas por uma reflexão de teor sociológico sobre o local e
o universal, sobre as ideias e seus lugares, aqui a “forma” ou a instituição da filosofia
teria precedido o “conteúdo” filosófico. Mas só isso não dá conta de todo o luxo que
a filosofia institucional se dava nesse momento e que Bento Prado Jr. compartilhava
de bom grado com seus ouvintes.
É que não parece tão correta a tese, que Paulo Arantes repete, não sem ironia,
a respeito da suposta precedência da forma sobre o conteúdo no que diz respeito à
filosofia por estas bandas. Pois, a julgar pela metáfora da área da saúde empregada
por Bento Prado Jr. em seu texto, teria havido algum conteúdo filosófico “antes” da
filosofia institucionalizada em terras paulistanas. Afinal, esse afirma que institucionalizar
a filosofia teria sido bom até mesmo quando gerou uma “cauterização de feridas do
pensamento, que prometiam virulência maior” (PRADO JR., 1980, p. 24). Não só havia,
portanto, algum pensamento antes, como Bento Prado Jr. faz um juízo moral acerca da
validade da institucionalização da filosofia no Brasil, já que mesmo o que ela causou
de ruim – a eliminação ou purificação de conteúdos que de todo modo pode ser que
fossem virulentos – foi um mal que veio para o bem, se quisermos lembrar a expressão
de Mefistófeles para definir a si mesmo.
Assim, a instituição e a institucionalização da filosofia em terras paulistanas teriam
aniquilado a virulência de um pensamento anterior à implantação da forma ou da
instituição, deixando um vazio “conteudístico” que só seria preenchido posteriormente
no corpo brasileiro que se tornava saudável graças à ação efetiva de médicos do
pensamento importados de ultramar. Fugindo, então, do elogio antifilosófico da
filosofia contido na pergunta disparadora de Giannotti, Bento Prado Jr. se enreda nas
armadilhas de outro elogio – o da instituição.
Faz isso, contudo, nem por acaso, nem por ingenuidade, mas como uma encenação
anti-institucional hesitante, como uma demonstração de força e de poder da filosofia
institucional, capaz de fazer troça das denúncias e ataques à instituição, feitos por
filósofos “em seus lugares”, como seria o caso de Nietzsche e Derrida, ao menos do
ponto de vista de uma autoridade institucional da filosofia no Brasil. Não é fruto do
mero acaso, assim, sua última citação ser de Oswald de Andrade, aquele que, por estas
bandas, talvez tenha sido a principal promessa virulenta do pensamento, indistintamente
relegada dentre as que foram publicamente cauterizadas pelos bons samaritanos.
Sem pôr em discussão a falta de mediação de tal diferenciação entre forma e
conteúdo – se forma já não é um conteúdo e vice-versa, se não haveria, em outras
palavras, um ruído branco da forma, da instituição ou da mídia que fala, produz e é seu
próprio conteúdo –, o problema dessa cauterização de uma promessa de virulência

174 Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019


ou de perigo se deixa pensar, desse modo, com ajuda da noção derridiana de double
bind e de veneno-remédio.
Por um lado, o veneno poderia valer como aqueles pensamentos provindos do
Instituto Brasileiro de Filosofia, muitos dos quais tentavam justificar a Ditadura Militar
– esse seria o ataque diante do qual se quer defender os valores e as instituições do
conhecimento e do saber.
Por outro lado, contudo, o veneno cauterizado pela institucionalização da filosofia
poderia valer como a própria provocação etnográfica (DÄRMANN, 2005) da filosofia,
do saber e da universidade, e não apenas a provocação do fora de lugar periférico. Tem
a ver, portanto, com uma provocação atenta à subalternidade e à descolonização do
saber, tem a ver com uma inversão etnológica, com a virulência selvagem, ameríndia,
feminina e negra frente às instituições importadas da Europa. Não é nesse sentido
que se pode entender o que Viveiros de Castro diz da obra Extramundanidade e
sobrenatureza, de Marco Antônio Valentim (2018), ao sugerir que ela continuaria o
projeto oswaldiano contido na tese O fim da filosofia messiânica, de 1950, cauterizado
pela filosofia institucional?
Assim, a defesa dos valores muito dignos da filosofia institucional, transformada em
cauterização, ou seja, em correção violenta, insensibilização, extirpação, saneamento,
neutralização etc. serviu bem aos limitados propósitos dos agentes institucionais
da filosofia nestas terras. Mas, visto da perspectiva histórica do presente atual, não
obtiveram sucesso para conter os ataques à filosofia, à universidade e ao saber. Tais
ataques agora assumem especificidade importante: o caráter anti-establishment de
agentes do pensamento rejeitados e menosprezados pela academia, que assumem
o poder e passam a ditar, entre outras coisas, as políticas educacionais do país. A
cauterização, no final das contas, não funcionou, pelo contrário, e vivemos hoje
seus efeitos ímpares mais perniciosos. Declarar o dito discurso pós-moderno, pós e
descolonial etc. como um mal construtivista que, ao se colocar contra as pretensões de
verdade e de universalidade, teriam facilitado o rompimento dessa cauterização é não
apenas cegar-se para as especificidades da crise atual – locais, como a perpetuação de
estruturas da Ditadura Civil-Militar no período democrático posterior; e globais, como
a crise econômica de 2008 –, mas também varrer para debaixo do tapete a própria
violência que fundou a instituição filosofia no Brasil, cauterizando indiferentemente
possibilidades e virulências múltiplas do pensamento junto com discursos autoritários
e extremistas.
Nessa conjuntura, aqui apenas aludida, parece ser estratégico rever as táticas de
ataque e de defesa da universidade, da filosofia e do saber, repensar as potencialidades
e promessas de virulência do pensamento, ficando atento às relações de subalternidade
e de colonização, arriscando-se a uma reorganização de limites e de fronteiras, a
distintas formações de comunidades outras. E realizar isso no interior-exterior dessa
mesma estranha instituição filosófica que tem algo da estranheza da instituição literária
analisada, justamente, por Derrida (2014; cf. PHILIPSON; LUCAS, 2018). Trata-se de
recuperar o campo da virulência e da contrainstitucionalidade em suas multivocidades
análogas a do veneno-remédio, ao mesmo tempo rejeitando a anti-institucionalidade
que apenas reafirma a violência tolerada pelo sistema (como o anarco-capitalismo e o

Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019 175


discurso de extrema-direita em geral) e as formas de institucionalidade que reforçam,
mesmo que sub-repticiamente, as estruturas de poder, classe e subalternidade.
Derrida aparece aqui, então, como um aliado possível, como já percebia a dita
“pós-marxista” Spivak, mas também Belausteguigoitia Ríus e De la Pola (2012), que
pensam, na Cidade do México, a partir da noção derridiana de universidade sem
condição, uma sala de aula que seja também uma praça pública, que abra o espaço
universitário para diferentes corpos e seus muitos modos de agenciar e experimentar
as práticas de produção do conhecimento.
Nesse sentido, a publicação da tradução de A crise do ensino filosófico de Derrida
em uma revista acadêmica de filosofia surge em boa hora para reativar e revisitar a
perspectiva do autor sobre, de modo geral, as complexidades e ambivalências do
“direito à filosofia”. Com efeito, apesar de o leitor brasileiro já ter acesso a algumas
partes essenciais do volume Du Droit à la Philosophie, tais como O Olho da universidade,
a Universidade sem condição ou ainda Essa estranha instituição chamada literatura, mais
de dois terços do volume ainda estão sem uma versão em português – incluindo toda
a segunda seção, Qui a peur de la philosophie?, da qual este artigo faz parte. Por outro
lado, publicar especificamente este ensaio se revela oportuno, principalmente, porque
ele desfaz uma série de enganos da recepção brasileira das discussões propostas por
Derrida, fazendo com que essas passem a contribuir efetivamente com as tarefas-
renúncias (Aufgaben) que o tempo exige.
O cuidado com o termo “nós”, por exemplo, que logo de início Derrida demonstra
ao contribuir para o debate filosófico travado na África e exposto no texto aqui
apresentado é constitutivo para sua posição no interior da instituição da filosofia.
Neste texto de 1978, diversos mal-entendidos sobre Derrida caem por terra, como as
acusações de falta de historicidade ou de dimensão política em seus escritos anteriores
ao final dos anos 1980. Aqui vemos o desenvolvimento do tema da crise da filosofia
passando pelas noções de sobredeterminação, de monolinguismo, de colonialidade
e do local da filosofia, que evita uma generalização do ponto de vista europeu em sua
relação com a língua nacional e a constituição dos Estados-nações, e desfaz os nós dos
desacertos por demais apertados de uma Europa central ou universal (chamar a isso
de ideologia francesa só reforça a impressão de que aqueles que assim o fazem têm
algo a conservar das relações coloniais entre poder e saber no Brasil). A conclusão de
Derrida é a seguinte:
Logo, é claro que eu não falarei a vocês, de início porque não teria nada a lhes
dizer, da crise do ensino filosófico na própria África. Consideradas as generalidades
que acreditei dever retomar, duvido que essa “crise” nela tenha alguma unidade,
que fosse unidade de crise, a menos que ela esteja ligada à crise da unidade
africana, o que é ainda outra coisa. Em seguida porque da diversidade das
situações africanas, não tenho os meios nem a pretensão de ensinar o que
quer que seja a vocês. Enfim porque a cena de um Europeu ou mesmo de um
Euroafricano vindo diagnosticar uma crise do ensino africano diante de filósofos,
pesquisadores e educadores africanos parece insuportavelmente derrisória.
[...] Se lhes trago somente um testemunho limitado sobre minha experiência
da dita crise na França, será, sobretudo, para não proceder à exportação de um
“modelo” de crise ou de resposta a uma situação “crítica”. (DERRIDA, 1990, p. 168)

176 Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019


Por óbvio, tal declaração não deixa de testemunhar a assimetria de que deseja se
afastar: basta lembrar que, de um filósofo africano que participasse de um colóquio de
filosofia na Europa, dificilmente se esperaria tal declaração de humilitas, dado que ela
já estaria incômoda e tacitamente imposta. Contudo, se, por si só, o gesto não basta,
ele não deixa também de problematizar hábitos do debate intelectual que costumam
passar despercebidos e mereceriam ser repensados e modificados. É por meio de tal
gesto que Derrida relata sua experiência com o Greph, o Grupo de Pesquisas sobre
o Ensino de Filosofia, e com suas lutas contextualizadas e historicizadas na França,
fazendo ressoar também aqui a noção de crise em uma dupla acepção: como virulência
que é própria à filosofia, um sinônimo de sua ideia mesma; e como seu fim no interior
do então projeto neoliberal do Estado francês e europeu. Nada mais convidativo do
que isso para, de modo comparativo, respeitando as possibilidades de semelhança
e dessemelhança de caso a caso, nos pormos à tarefa que se exige hoje à filosofia e
suas crises por estas bandas.

Obras citadas

ANDRADE, O. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.

ARANTES, P. E. O fio da meada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

DÄRMANN, I. Fremde Monde der Vernunft: die ethnologische Provokation der Philosophie.
Munique: Fink Verlag, 2005.

DERRIDA, J. Du droit à la philosophie. Paris: Éditions Galilée, 1990. 

_____. O Olho da Universidade. Tradução de R. I. Canko e I. A. Neis. São Paulo: Estação


Liberdade, 1999.

_____. A Universidade sem condição. Tradução E. Nascimento. São Paulo: Estação


Liberdade, 2003.

_____. A farmácia de Platão. Tradução Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. 

_____. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida.
Tradução de M. D. Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 

PHILIPSON, G. S.; LUCAS, F. R. Filosofia, literatura e teoria literária: diálogos universitários e


institucionais. Em Tese, [S.l.], v. 23, n. 2, pp. 24-43, maio, 2018. ISSN 1982-0739. Disponível
em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/12717.
Acesso em: 23 maio 2019.

PRADO JR., B. Profissão: Filósofo. Cadernos PUC - EDUC/Cortez Editora, n. 1, pp. 15-44,
1980.

RIÚS, M. B.; DE LA POLA, R. L. (Orgs.). Pedagogías em espiral: experiencias y prácticas.


Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2012.

Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019 177


VALENTIM, M. A. Extramundanidade e sobrenatureza: ensaios de ontologia infundamental.
Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.

A crise do ensino filosófico, de Jacques Derrida1

O convite com o qual vocês me honraram se acompanhava de uma proposição.


Essa definia um título possível para uma eventual comunicação. Feliz de aceitar esse
convite e, por mais de uma razão, convencido da oportunidade de tal proposição,
retive imediatamente esse título e começo por retomá-lo: a crise do ensino filosófico.
A proposição de um título não implica somente em supor que eu tenha, eu mesmo,
algum título ou alguma justificativa particular para falar da dita “crise”, e para falar dela
com pertinência, o que pode já parecer incerto ou problemático. Mas deixemos aqui
essa dúvida. A proposição de tal título comporta outra pressuposição. Ela implica –
de direito – a legitimidade de um topos. O que é necessário entender aqui por topos?
Trata-se, por um lado, de alguma coisa da qual se pode e se deve falar. A crise do
ensino filosófico é um tema de discurso ou de reflexão, é para nós um lugar comum de
análise, de deliberação, de elaboração teórica, quiçá de prática política. Mas é também,
por outro lado, a crise do ensino filosófico, alguma coisa que acontece, que tem lugar e
cujo acontecimento e posicionamento são assinaláveis (ao menos é o que pressupõe
de direito o título, não é isso?). Nós poderíamos nomear a crise, reconhecê-la em seu
sítio (histórico, geográfico, político etc.), em seu sítio essencial, claro; ao situá-la, nós
poderíamos, em princípio, saber ou pré-compreender isso a que nos referimos quando
dizemos a crise do ensino filosófico, usando desses artigos definidos para marcar ao
mesmo tempo a generalidade e a precisão determinada da coisa.
Ora, toda uma rede de traços contextuais nos permite, penso eu, dizer inicialmente
“nós” e de nos ouvir, nos entender para entender esse enunciado (A crise do ensino
filosófico), que para dizer a verdade não é um enunciado, pois não diz nada a respeito
da dita crise; ele tem somente a estrutura de um título que pressupõe somente que
há sentido em falar disso, a dita crise, e o que quer que disso se diga. E esses traços
contextuais seriam suficientes para que juntos nós remetêssemos esse título não à
crise em geral do ensino filosófico em geral, mas a um fenômeno singular, situado, que
acontece e tem seu lugar em uma área histórica ou geopolítica que nos é, ao menos
até certo ponto, comum. Donde a generalidade relativa do título, porém estaríamos
todos decepcionados e convencidos de ter errado nosso objeto se não remetêssemos
nosso discurso, tão estreitamente quanto possível, ao que tem lugar aqui mesmo,
hoje. Os artigos definidos (a crise do ensino filosófico) operam nesse contexto que
nos é supostamente comum, a nós todos que, em virtude de um contrato ou de um
consenso ele mesmo suposto ou produzido por nossa convention (ouço essa palavra
em inglês2), nos reunimos aqui para ter um Seminário internacional sobre A filosofia

1 Conferência pronunciada em Cotonou (Benim), na abertura de um colóquio internacional reunindo filósofos


africanos francófonos e anglófonos em dezembro de 1978. N. T.: O texto da conferência La crise de l’enseignement
philosophique foi depois publicado em DERRIDA, J. Du Droit à la philosophie, Paris: Galilée, pp. 155-179. Agradecemos
a Pierre Alferi, Jean Derrida e Marguerite Derrida, por autorizarem a publicação desta tradução.
2 N. T.: Convenção se escreve convention em inglês e francês.

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e o desenvolvimento das ciências na África. Naturalmente, os limites de um contexto
são sempre difíceis, mesmo impossíveis de definir, e mais do que nunca em um caso
como este, a princípio porque coisas como a crise, o ensino, a filosofia, as ciências – e
mesmo a África! – colocam problemas de limite, de fronteira, de autonomia que fazem
talvez a própria crise; em seguida porque o contexto efetivo desse Seminário será, em
certa medida difícil de avaliar, definido pelo que nele se dirá e pela maneira como os
participantes tratarão seu próprio contrato.
Eu não multiplico esses reparos sobre a estrutura da referência, o valor de
contextualidade ou de contrato, o artigo definido em um título etc. para desorientar
a atenção de vocês com generalidades linguísticas ou lógico-gramaticais, ou para
desviar, com protocolos, de certa urgência, qualquer que seja a maneira de determiná-
la: historicamente, politicamente, cientificamente, filosoficamente. Pelo contrário,
procedo assim para tentar determinar essa urgência e para submeter à discussão de
vocês algumas hipóteses sobre a natureza dessa urgência.
Para reconhecer mais estritamente, em sua singularidade, a urgência que nos
provoca aqui, eu proporia inicialmente denunciar dois álibis.
Eles têm, ambos, a forma da generalidade, o que não é um mal em si, mas de uma
generalidade vazia e destinada a evitar o aqui-agora que nos situa.
Primeiro álibi, primeira generalidade, primeira trivialidade também: a filosofia, nos
seria dito, não é somente um projeto universal e sem fronteira histórica, linguística,
nacional. Ela seria também um projeto estruturado permanentemente por sua própria
crise. A filosofia teria sido sempre a experiência mesma de sua própria crise, ela sempre
teria vivido se interrogando sobre seu próprio recurso, sobre sua própria possibilidade,
na instância crítica em que se trataria de julgar ou de decidir (krinein) sobre seu próprio
significado, também sobre sua sobrevivência, e de se avaliar, de se pôr a questão de
seus títulos e de sua legitimidade. Desde então, o movimento autocrítico, se é possível
dizer, pertenceria ao mais próprio do filosófico enquanto tal. A filosofia se repetiria
e reproduziria sua própria tradição como ensino de sua própria crise e como paideia
da autocrítica em geral. Essa paideia vem sempre junto, e nada de fortuito nisso, com
uma segurança que eu diria, sem facilidade, imperialista da filosofia. A filosofia é uma
ontologia e sua paideia, uma enciclopédia. Ela está no direito de definir e de situar todas
as regiões do ente ou da objetividade. Ela não tem objeto próprio particular porque ela
legisla sobre a objetividade em geral. Ela domina de modo justamente crítico, para lhes
assinalar seus limites e sua legitimidade, todas as ciências ditas regionais. Dominando
o campo das disciplinas e das ciências ditas regionais, cultivando-o e nele marcando
cercas de propriedade, a ontoenciclopédia filosófica está em casa em todo lugar, e seu
movimento autocrítico não é senão a reprodução de sua própria autoridade.
Esse esquema é bem conhecido, perdoem-me por relembrá-lo aqui. Introduzir-
se à filosofia, ensinar a filosofia, é frequentemente autenticar esse esquema. Sem
desqualificá-lo enquanto tal, sem mesmo ter aqui os meios e o tempo de discuti-lo,
eu o situaria aqui como um álibi. Por que um álibi?
Porque nós paramos de habitar simplesmente o lugar onde tal crise estava destinada
a se reproduzir. Nós não o abandonamos simplesmente – e é por isso que o esquema
dessa repetição não parou subitamente de nos requerer – mas nós, de alguma forma,
o transbordamos, ou melhor fomos transbordados na medida em que teríamos nos

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identificado nesse lugar. Pois o que chamamos hoje, servindo-nos de uma linguagem
velha, de “crise da filosofia”, participa já de uma necessidade histórica toda outra: onde o
que vem em “crise” é essa perpetuação mesma do filosófico como liberdade autocrítica e
(o que é o mesmo) como projeto ontoenciclopédico ligado a universitas, como repetição
de si através da linguagem do krinein, através da possibilidade da decisão, segundo
uma lógica do decidível, em outras palavras da oposição, seja ela dialética ou não, e
dialética idealista ou materialista. A época da desconstrução – e, servindo-me dessa
palavra, por economia, eu não nomeio nem um método (mesmo que crítico, pois a
desconstrução não é simplesmente uma crítica), nem uma técnica, nem mesmo um
discurso, seja ele filosófico, metafilosófico ou científico – seria a época em que, através
de todas as instâncias classicamente identificadas ao título do histórico, do político, do
econômico, do psicológico, do lógico, do linguístico etc., viria a vacilar a autoridade da
filosofia, sua autoridade ao mesmo tempo autocrítica e ontoenciclopédica. E, portanto,
com ela, o conceito mesmo de “crise”, na medida em que ele pertence a uma lógica da
oposição e da decidibilidade. Crise da crise, se vocês quiserem, mas vejam bem que
as duas ocorrências aqui são apenas homônimas: “crise” não tem o mesmo sentido
duas vezes. Quando a crise da crise concerne o modo de produção e de reprodução
do filosófico enquanto tal, do autocrítico e do próprio ontoenciclopédico, isso também
vale naturalmente para o ensino, para esse elemento da tradição que no Ocidente é
chamado de paideia, skholè, universitas etc., noções que eu não assimilo entre elas e
que retomarei daqui a pouco.
Descrevo aqui em termos muito abstratos uma situação cujos efeitos nos assediam
da forma mais sensível, mais quotidiana. Esses efeitos parecem às vezes terríveis e
implacáveis, às vezes também terrivelmente libertadores e irrespiravelmente novos.
Ora, não há sem dúvida nada de fortuito na sincronia paradoxal que nos reúne
aqui. No momento em que, de modo sem dúvida muito diverso, muito desigual e
inegavelmente tematizado, as diferentes tradições filosóficas europeias são trabalhadas
por esses tremores desconstrutivos – que não são nem o fim nem a morte da filosofia
– nesse momento mesmo, neste continente, como se diz, que se chama África, povos,
nações e Estados estão a definir praticamente (quero dizer não somente segundo
uma operação conceitual de definição, mas na realização concreta e detalhada das
instituições culturais e das políticas pedagógicas) uma nova relação com o filosófico.
Esses povos, essas nações e esses Estados – o que não é necessariamente a mesma
coisa, e essa não coincidência traz, vocês o sabem, problemas espantosos – estão a
definir essa nova relação depois dos movimentos de descolonização de tipos diversos,
ou mesmo no próprio processo de uma descolonização em curso. Se o conceito de
descolonização e, a princípio, de colonização podia ter um sentido radical, o que deveria
se seguir daqui? Que essa nova relação ao filosófico, para não ser nem colonizada nem
neo-colonizada, não deveria importar nem a autorrepetição da filosofia ocidental, nem
mesmo sua crise ou seus “modelos” de crise, nem mesmo seus valores de propriedade
ou de reapropriação, que puderam às vezes impor sua necessidade estratégica aos
movimentos de libertação e de descolonização. A ideia mesma de importação ou o
motivo oposto de não-importação pertencem à mesma lógica. Donde a extraordinária
dificuldade – teórica e prático-política: como fazer mais e outra coisa do que reverter e
(logo) reapropriar? Essa dificuldade – mais que crítica – é comum tanto aos movimentos

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de desconstrução quanto aos movimentos de descolonização. Pois eu creio – e digo de
uma vez, mas sem facilidade demagógica ou deferência convencional em consideração
a meus anfitriões, e mais como esse tipo de africano desenraizado que sou, nascido na
Argélia, em um meio a respeito do qual será sempre difícil de dizer se ele era colonizador
ou colonizado – que, entre a efetividade da época desconstrutiva e a efetividade das
descolonizações, a concatenação histórica é necessária, irredutível, significante de
uma ponta a outra. Dizer que ela é histórica é ainda qualificar essa concatenação com
recursos de uma das fontes conceituais (certo conceito de história nesse caso) que não
são mais autoevidentes. Se ela é, como a filosofia e como a desconstrução do filosófico,
interminável, é porque a descolonização não pode ser efetiva nem sob o simples modo
da reapropriação, nem sob o simples modo da oposição ou da reversão. Levada a seu
extremo limite, e é nisso que é interminável, ela não deveria importar, interiorizar
ou guardar em si nem o que liga o filosófico a outra nação, a outra cultura, a outro
Estado – ou seja, que o liga ao modelo tanto quanto à realidade deles (supondo que
tais dissociações tenham um sentido) – nem mesmo, consequentemente, o modelo
ou a realidade da crise deles, ou mesmo o estilo de sua desconstrução. Pois não existe
a desconstrução, existem movimentos singulares, estilos mais ou menos idiomáticos,
estratégias, efeitos de desconstrução heterogêneos de um lugar a outro, de uma situação
(histórica, nacional, cultural, linguística, quiçá individual) a outra. Essa heterogeneidade
é irredutível e levá-la em conta é essencial a toda desconstrução. Aqui, eu arriscarei
bem rapidamente uma proposição para submetê-la à discussão de vocês.
Um dos aspectos europeus da crise – se há uma – vem de diferenças nacionais.
É sem dúvida um traço permanente e estrutural da filosofia, da crise da filosofia e da
filosofia como crise e como unidade que se coloca apenas em sua precariedade crítica.
As diferenças nacionais – isso é verdade também na Europa, como vocês sabem – não
recobrem rigorosamente as diferenças linguísticas, nem, ademais, as diferenças estatais.
Ora, a toda essa multiplicidade, cujo entrelaçamento não posso tentar desmembrar
aqui, correspondem diferenças filosóficas que não se limitam somente a questões
de estilo, de método ou mesmo de campo problemático, no sentido convencional e
pretensamente externo desses termos. Essas diferenças são às vezes tão graves – por
exemplo, entre as filosofias ditas continentais e as filosofias ditas anglo-saxãs – que as
condições mínimas de uma comunicação e de uma cooperação vêm a falhar. O contrato
mínimo de um código comum não está mais assegurado e, ao falar de código, não
viso apenas o elemento estritamente linguístico dessas regras de troca. No interior
de uma mesma área linguística, por exemplo, a anglofonia britânica ou americana,
a mesmo perturbação ou a mesma opacidade podem interditar a comunicação
filosófica e pôr até mesmo em dúvida a unidade do filosófico, do conceito ou do
projeto suposto sob a palavra “filosofia”, que arrisca então, e a cada vez, de não ser
mais que um embuste homonímico. Esses dois exemplos (idiomas europeus ditos
continentais e idiomas anglo-saxões) se impuseram a mim porque eles cruzam, através
de todos os tipos de sobredeterminações outras, o que gostaríamos de identificar
como os dados propriamente africanos de nosso problema, de um problema ou de
uma problematicidade que não afeta somente tal ou tal conteúdo – o ensino filosófico,
a filosofia e o desenvolvimento das ciências etc., mas também o rigor e a unidade do
“propriamente africano”. Quaisquer que sejam os processos de descolonização, de

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constituição ou de reconstituição cultural, nacional ou estatal, quaisquer que sejam
as estratégias e as políticas linguísticas dos diferentes países da África a esse respeito,
deverá ter sido levado em conta o que se passa, o que passa e o que não passa entre
essas duas áreas ou forças político-filosóficas ditas europeias. Elas foram e continuam,
em muitos sentidos, dominantes. Ora, se a unidade mesma do filosófico parece tão
precária e enigmática através dessas diferenças nacionais ou outras, como essa crise
se sobredetermina em áreas culturais e políticas não europeias, mas ainda marcadas,
de um modo ou outro, por esses tipos de filosofia europeia? Essa dominação não tem
necessariamente a forma facilmente identificável da hegemonia política-econômica,
seja ela colonial ou neo-colonial. Resta que, como se sabe bem, o controle pode ainda
se exercer por meio da (ou de uma) língua filosófica, no sentido mais largo desse termo,
quando as outras formas de dominação, as mais espetaculares e as mais codificadas,
batem em retirada. Como suponho que essa questão essencial da língua não deixará de
estar presente nesse Seminário, gostaria de definir, sem premissa e sem demonstração
– por falta de tempo – o que me parece poder ser proposto para o exame de vocês
e debatido ao longo da discussão como o princípio de uma política da língua nesse
domínio. Sem dúvida, é preciso aqui evitar um linguisticismo ou um logocentrismo
que pretenderia regularizar todos os problemas com decisões voluntárias concernindo
a linguagem, a língua ou o discurso. Mesmo assim, é também paradoxalmente uma
posição logocentrista aquela que, fazendo da língua um médium transparente ou um
acidente extrínseco, secundariza o dado linguístico. Esse princípio, eu o enunciaria de
modo sumário: a escolha não existe, e a escolha que não existe não é entre uma língua
e outra, um grupo de línguas e outro (com tudo o que se implica em uma língua). Todo
monolinguismo e todo monologismo restaura o controle ou a controlabilidade. É ao
tratar diferentemente cada língua, ao enxertar as línguas umas sobre as outras, jogando
com a multiplicidade das línguas e com a multiplicidade dos códigos no interior de
cada corpus linguístico que se pode lutar ao mesmo tempo contra a colonização em
geral, contra o princípio colonizador em geral (e vocês sabem que ele se exerce bem
para além das zonas que se diz estarem submetidas à colonização), contra a dominação
da língua ou pela língua. A hipótese subjacente a esse enunciado é a de que a unidade
da língua é sempre um simulacro investido e manipulado. Tem sempre umas línguas
na língua e o rigor estrutural do sistema da língua é, ao mesmo tempo, um dogma
positivista da linguística e um fenômeno não encontrável. Tentei demonstrá-lo em
outro lugar. Tudo isso não deixa de acarretar consequências políticas; ou melhor, é
um tema político, de uma ponta a outra.
Ele atravessa também o espaço que vincula a filosofia às ciências. E, também
nesse assunto, deverei me limitar ao enunciado sumário de uma proposição. Ela diz
respeito a um tipo de double bind, de uma dupla postulação contraditória, de duas
exigências incompatíveis e simultâneas. Partamos desse fato de que se toda língua
filosófica guarda nela um elo irredutível com uma língua dita natural (ou materna),
e com a tendência de a linguagem científica ir, no sentido contrário, em direção a
uma formalização crescente, essa polaridade organiza, dinamiza um tipo estranho
de frente. A autonomização crescente das ciências e dos poderes tecnocientíficos,
indissociavelmente tecno-científicos, tende a escapar – de início pela formalização,
pela autojurisdição axiomática, pela reapropriação das instâncias epistemológicas por

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cada ciência etc. – da autoridade do filosófico como ciência das ciências, ontologia
geral ou lógica absoluta, ontoenciclopédia. Com isso, as ciências também permitem
resistir mais eficazmente ao poder político monológico exercido através da filosofia
e que forças nacionais ou continentais podem exercer. Esse poder não é exercido
somente por meio de toda a “ideologia” (sirvo-me dessa palavra por comodidade,
consciente de que ela pertence ainda àquilo de que se trata aqui de desconstruir) de
uma espécie de centralismo filosófico, de tribunal de última instância e de hegemonia
ontoenciclopédica; esse poder é exercido também, indissociavelmente, a partir daquilo
que liga esse projeto hegemônico a uma língua ou família de línguas naturais europeias.
Nessa medida, todo movimento de formalização (e já sempre há um na própria língua
filosófica, tal como há sempre ainda “naturalidade” linguística nas línguas científicas)
desenvolve meios de resistir à hegemonia ontoenciclopédica, ou seja, também, não o
esqueçamos, à estrutura estatal e mesmo ao conceito Estado, sobre o qual se poderia
mostrar que é indissociável, em sua história e em sua arquitetura, dessa hegemonia
filosófica.
Mas inversamente – e é por isso que falei de double bind e de frente estranha
– o desenvolvimento das ciências pode comportar riscos contra os quais a crítica
filosófica, sob sua forma clássica ou sob uma forma mais própria a detectar os
filosofemas dogmaticamente implicados pelo discurso pretensamente científico,
pode ainda ser indispensavelmente eficaz. Esses riscos, por certo, não são produzidos
pelo desenvolvimento das ciências nele mesmo, mas o que é esse mesmo, esse nele-
mesmo? Do lado das ciências físico-matemáticas, o investimento técnoeconômico se
deixa cada vez menos dissociar do processo científico “ele mesmo”. O que é chamado
de política da ciência não é mais, nesse sentido, uma disciplina secundária e não há
desenvolvimento das ciências que não a ponha imediatamente em jogo, quer se esteja
consciente disso ou não. É aí que uma vigilância crítica cisma em se exercer, pondo
em ação instrumentos de análise, formas de questão e esquemas problemáticos que
derivam da crítica filosófica e que supõem um conhecimento de especialista na história
da filosofia, como história e como combinatória de possibilidades conceituais. Um Estado
que pretende não deixar sua política da ciência embargada por forças que combate,
forças que podem progredir sobre um terreno de dogmatismo ou de obscurantismo
pré-científico, deve formar filósofos e ampliar o campo da análise filosófica em seus
programas de educação. É verdade que, por vezes, é contra o próprio Estado que
essa crítica filosófica pode mirar sua vigilância, quer se trate da racionalidade estatal
enquanto tal ou das forças determinadas e particulares que se apropriaram por algum
tempo do poder do Estado. Donde o nó retorcido do problema – do problema teórico
e do problema estratégico. É sempre difícil saber onde está o Estado.
Isso que acabei de dizer das ciências físico-matemáticas vale a fortiori para as ciências
ditas humanas, tomadas uma a uma em seu conjunto agrupado. Elas oferecem um terreno
privilegiado para os investimentos ideológicos mais ingênuos e, ao mesmo tempo,
os mais massivamente manipuláveis por forças ou interesses (político-econômicos ou
outros). O pré-crítico, o pré-filósofico, mesmo o pré-científico ou pré-epistemológico,
espreita as ciências humanas como uma presa fácil e preciosa. O que aqui toma forma
de nodosidade, e que dá ao nó a estrutura, uma vez ainda, do double bind, é que o
pré-crítico que retém ou retarda as ciências ditas humanas é muitas vezes de natureza

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filosófica: frequentemente, são os resíduos de velhos filosofemas não reconhecidos
como tais que vêm, de modo mais ou menos coerente, pré-determinar o discurso
das ditas ciências. E, naturalmente, o lugar do Estado – que pode ser também o lugar
das forças determinadas que ele representa em dado momento – é tanto mais difícil
de assinalar quando é necessário desenvolver ao mesmo tempo as ciências e seus
instrumentos críticos, a filosofia e os instrumentos de uma desconstrução filosófica.
Para responder à urgência de tal requerimento, é preciso sem dúvida se privar de
um segundo álibi. Ele tem ligação, justamente, com a questão do Estado. E ele também
toma, em primeira análise, a forma da generalidade ahistórica. A filosofia foi sempre, por
essência, ligada ao seu ensino, digamos, pelo menos, a uma paideia que pôde se tornar
em certo momento da história “ensino”, no estreito sentido que liga a prática educativa
a certo conceito ou a certa instituição do signo. Em todo caso, jamais se concebeu ou se
viveu a filosofia sem esse vínculo dialético-pedagógico que chamamos hoje de “ensino”.
Segue-se daí que, por razões que evocava há pouco, a crise permanente, fundadora,
instituidora da filosofia terá sempre sido simultaneamente uma crise do pedagógico.
Mas se queremos situar o que tem lugar para nós, hoje, é preciso sem dúvida voltar da
generalidade flutuante desse esquema para uma determinação histórico-geográfica,
política, epocal em geral, mais estrita. É, digamos, o momento quando, na Europa, as
estruturas do ensino filosófico vêm se estatizar, direta ou indiretamente. Não posso aqui
me engajar na análise desse processo que data da primeira metade do século XIX. Noto
somente que ele não é fortuitamente contemporâneo dos grandes empreendimentos
coloniais de um novo tipo, e que, no caso do exemplo francês, a imposição colonial de
modelos pedagógicos vinha, ao menos em parte (pois é preciso excluir daí a pedagogia
das Missões que, ela, derivava de modelos pré-revolucionários e pré-estatais), instalar
as estruturas estatais em processo de constituição na França.
Desde então, a especificidade das crises do ensino filosófico terá sempre uma
ligação estreita com esse fenômeno de estatização, quer se trate dos Estados europeus,
não importa a sua natureza, quer se trate dos Estados africanos, e isso seja quando
as estruturas de sua estatização (principalmente no que concerne aos dispositivos
escolares ou universitários) permanecem análogas a modelos europeus, seja quando
elas deles se afastam ou a eles se opõem. Como o processo de estatização vem
regularizar as ligações entre a filosofia e seu ensino, entre o ensino da filosofia e o
ensino das ciências, das ciências ditas humanas e das outras, entre sua “política-da-
ciência” e sua “política-da-filosofia” etc., eis aí um escopo da questão cuja necessidade,
parece-me, não pode ser reduzida desde o momento em que se interroga a crise do
ensino filosófico. Nesse grau de grande generalidade, essa questão me parece valer
tanto para a “Europa” quanto para a “África”, nomes próprios que ponho nesse instante
entre aspas pelas razões que mencionei há pouco. Não mais que na unidade da filosofia
(europeia ou africana), não creio ser possível se fiar hoje à unidade do “propriamente
europeu” ou do “propriamente africano” em geral. A crise da crise está aí. E se a crítica
da “etnofilosofia” me parece tão legítima para a Europa quanto para a África (e, para
falar a verdade, ela remete a um projeto de reapropriação e também a um valor de
próprio muito comum a toda filosofia como tal), creio que sua radicalização é necessária
e ela não pode então deixar intacto nenhum critério de unificação ou de identificação
essencial, sobretudo o geográfico.

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Se, portanto, a dita crise do ensino filosófico sempre teve uma ligação profunda
com as vias da estatização, suas formas variarão de uma entidade estatal para outra,
mesmo se essa entidade é uma formação recente, instável ou provisória.
Logo, é claro que eu não falarei a vocês, de início porque não teria nada a lhes
dizer, da crise do ensino filosófico na própria África. Consideradas as generalidades
que acreditei dever retomar, duvido que essa “crise” nela tenha alguma unidade, que
fosse unidade de crise, a menos que ela esteja ligada à crise da unidade africana, o que
é ainda outra coisa. Em seguida porque da diversidade das situações africanas, não
tenho os meios nem a pretensão de ensinar o que quer que seja a vocês. Enfim porque
a cena de um Europeu ou mesmo de um Euroafricano vindo diagnosticar uma crise
do ensino africano diante de filósofos, pesquisadores e educadores africanos parece
insuportavelmente derrisória.
Eu falarei a vocês então sobre uma coisa completamente outra. Se lhes trago
somente um testemunho limitado sobre minha experiência da dita crise na França, será,
sobretudo, para não proceder à exportação de um “modelo” de crise ou de resposta a
uma situação “crítica”. Eu selecionarei, contudo, nessa brevíssima apresentação alguns
traços da situação francesa cuja análise e discussão me parecerão poder, em razão de
uma certa rede de analogias que formo por hipótese, alargar-se em uma certa medida
para além da França.
Consideremos inicialmente tal revelador espetacular de uma crise naturalmente
mais antiga e mais estrutural. Trata-se justamente de uma intervenção do Estado em
seu próprio aparelho de educação. O que se chamou, desde então, de Reforma Haby
estabelecia, em 1975, todo um conjunto de disposições que deveria levar muito
rapidamente – o processo já está em curso – ao quase desaparecimento do ensino e
da pesquisa filosófica na França. Não posso analisar em detalhe os procedimentos e
as expectativas dessa Reforma. Sob muitos aspectos, ela só acentuava uma política já
antiga e sua principal peça, naquilo que concerne à filosofia, era uma redução massiva
do ensino filosófico na escola secundária, nessa classe “Terminal”3, que era uma das
especificidades do modelo francês de ensino secundário. As motivações explícitas
e implícitas dessa Reforma são numerosas e mereceriam uma longa análise. Eu me
limitarei aos seguintes pontos:
1. Necessidade técno-econômica – em certo estágio do desenvolvimento e em
certa fase do mercado na sociedade industrial – de desviar uma grande quantidade de
estudantes das disciplinas consideradas na França como “literárias” e não científicas.
Quando digo “necessidade”, traduzo a interpretação interessada de certos tecnocratas
ou gerentes do sistema em questão e não necessidade objetiva. A não-rentabilidade
da filosofia nessa sociedade industrial – sua não-rentabilidade imediata –, que ela
partilharia com todas as “humanidades”, e principalmente com a história, havia
justificado desde há muitos anos já uma orientação ativa, mesmo violenta e feroz,
dos alunos selecionados como “melhores” para as disciplinas científicas nas escolas
secundárias. Ainda que essa política “técno-cientista” responda a uma demanda do
mercado capitalista e, por vezes, mesmo a uma demanda expressamente formulada

3 N. T.: Terminale vem de Classe terminale, classe, situada no fim dos estudos secundários, na qual os estudantes
se preparam para o exame do baccalauréat, exigido para o ingresso no ensino superior.

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pelos representantes do patronato francês, pode-se razoavelmente pensar que ela
seria mantida, no essencial, por uma gestão dita de “esquerda” da mesma sociedade
tecnoindustrial, se ao menos se leve em conta o estado real da filosofia e da filosofia
da educação nos partidos de esquerda tradicionais. Nada em seus programas anuncia
outra coisa que não reformas secundárias a esse respeito. A ideia fundamental de
educação permanece a mesma. É por isso que o Greph (Grupo de Pesquisas sobre o
Ensino Filosófico4) – sobre o qual direi algumas palavras daqui a pouco – organizou a
luta contra a Reforma Haby, não era apenas por tomar posições originais em relação
aos partidos de esquerda e aos sindicatos (mesmo se ele aqui ou ali se aliava a eles em
tal ou tal fase da luta), era também com a convicção de que essa luta deveria continuar
naquilo que então era a perspectiva e a esperança de uma chegada da esquerda ao
poder. Nós sabíamos que a luta então seria outra, talvez mais fácil, sobre um terreno
novo em todo caso, mas não tínhamos nenhuma ilusão: seria preciso continuar a
combater para evitar a mesma interpretação, imposta pelas restrições do mercado,
interior e mundial, o alinhamento sobre os sistemas de educação de outros países
industriais (principalmente os europeus, no dito quadro da unidade da Europa), para
evitar, portanto, que a mesma interpretação e a mesma política se impusessem sob a
autoridade da “esquerda”. Esses temores moderados, como se sabe já há alguns meses,
ainda eram otimistas5.
2. Outra motivação (essa não confessada) da Reforma Haby: a destruição da “classe
de filosofia” deveria retirar da massa de escolas secundárias o exercício da crítica
filosófica e política. Da crítica histórica também: a cada vez que a classe de filosofia foi
ameaçada na França, desde o século XIX, o ensino da história foi igualmente visado, por
razões políticas análogas. A classe de filosofia era o único lugar onde a modernidade
teórica, elementos de marxismo e de psicanálise, por exemplo, tinham chance de ser
abordados. Nunca antes, nunca depois, para aqueles que não se especializavam nessas
direções e que, portanto, arriscavam ser tanto menos numerosos em fazê-lo por não
serem iniciados antes dos estudos universitários. Depois de 68, todos os signos de
uma vigilância repressiva haviam ademais se multiplicado no encalço da Terminal, de
alguns de seus alunos e de alguns de seus professores.
3. Ao sufocar o ensino filosófico desde a escola secundária, deixava-se ser instalada,
sem crítica, uma ideologia e finalmente conteúdos filosóficos, implícitos, mas bem
determinados, que haviam se insinuado, necessariamente, através dos outros ensinos.
Esses outros ensinos são, sobretudo (não unicamente, mas sobretudo) os “literários”
(língua e literatura, francesa e estrangeira), bem como, e esse é o ponto que eu
gostaria de sublinhar, os ensinos ditos de “ciências humanas” – principalmente de
ciências econômicas e sociais – que se tenta desenvolver simultaneamente nas escolas
secundárias. Em princípio, nada a reprovar em tais ensinos, sob a condição de que eles
sejam dispensados de modo crítico, que eles não estejam, direta ou indiretamente,
regulados por imperativos ideológicos ou técno-econômicos. Ora, tudo, nas condições
efetivas e concretas desses ensinos, deixa recear que essas “ciências” ditas humanas,
econômicas e sociais sejam o objeto de discursos não críticos e lastreados de conteúdos

4 N. T.: Groupe de Recherche sur l’Enseignement Philosophique (GREPh).


5 Alusão a uma então recente derrota eleitoral da esquerda.

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ideológicos muito determinados. E, logo, também de certa filosofia implícita; pois aqui
o fronte que se instala não é entre a filosofia e a não-filosofia, mas entre práticas e
conteúdos filosóficos determinados. A Reforma Haby não representa uma antifilosofia,
mas certas forças elas mesmas ligadas a certa configuração filosófica que, em uma
situação histórico-política, tem interesse em favorecer tal ou tal estrutura institucional.
Mesmo que o Greph não seja constituído em resposta ao projeto de Reforma
Haby, mesmo que seu Anteprojeto (do qual eu poderia ler algumas passagens ao
longo da discussão) date de antes da dita Reforma, é verdade que o Greph cresceu
consideravelmente por toda a França e fez suas posições, seu programa de pesquisas
e de ação serem mais bem conhecidos no contexto de urgência criado pelo projeto
governamental. Mais do que desdobrar todo o discurso que o Greph tentou avançar há
alguns anos, parece-me preferível definir a posição singular que ele tomou diante da
Reforma Haby, precisamente em um momento no qual a “crise” parecia mais urgente
e mais espetacular. Essa posição me parece bastante reveladora quanto ao conjunto
de nossa problemática. O Greph se opôs simultaneamente às forças representadas
pela posição governamental – e, portanto, à política visando a desaparição do ensino
filosófico – e às forças que pareciam, de modo conservador, querer defender o status
quo e a classe Terminal tal qual ela estava. De fato, essas duas posições aparentemente
antagonistas deviam culminar, dado o estado real do ensino nessas Terminais e a
política geral da educação, na mesma consequência: a asfixia progressiva de todo
ensino filosófico. A singularidade do Greph consistiu em exigir que não somente se
continue a ensinar a filosofia, de maneira não opcional, não facultativa, em Terminal,
mas que se lhe conceda o direito reconhecido a toda outra disciplina, a saber, um ensino
progressivo e “longo” desde as classes mais “pequeninas”. Naturalmente isso supunha
uma reelaboração geral dos conteúdos, dos métodos, dos vínculos interdisciplinares,
etc. É essa reelaboração que ocupa os grupos que se constituíram no interior do Greph
e que reúnem educadores do secundário e do superior, estudantes secundaristas e
universitários.
Por certo, o Greph não é somente um grupo de pesquisas teóricas, é também um
movimento que pretende intervir na instituição, segundo modos políticos específicos
que não são nem aqueles dos partidos ou dos sindicatos (nossa independência
a esse respeito é preciosa e absoluta, mesmo se alguns dentre nós pertencem a
organizações políticas e sindicais), nem aqueles de uma organização profissional e
corporativa. Eu poderia, se vocês quiserem, lhes dar mais precisões sobre os textos e
os argumentos concernindo aquilo que chamávamos inicialmente a “progressividade”
do ensino filosófico. O que era então, e permanece, nossa palavra de ordem tinha
por alvo o ferrolho político-sexual que reservava o acesso ao ensino filosófico para o
jovem, homem, de dezessete ou dezoito anos pertencente, no mais das vezes, a certa
classe social e advindo à filosofia uma vez que os outros ensinos (principalmente o
das “humanidades” e das ciências ditas “humanas”) haviam cumprido seu papel de
impregnação ideológica. Mais do que retomar, portanto, toda nossa argumentação a
esse respeito (e ela mexe, percebe-se logo, com o todo da tradição filosófica e de seu
ensino, pois essa questão da idade é uma espécie de revelador geral), mais do que
falar com vocês a respeito das lutas e das experimentações praticadas em torno dessa
palavra de ordem, parece-me preferível insistir aqui sobre as razões pelas quais nós

Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019 187


rapidamente abandonamos a palavra “progressividade” e a substituímos pela palavra
“extensão”. Parece-me preferível insistir nisso porque se trata justamente do papel do
Estado nessa crise, quaisquer que sejam as forças que ele pretende servir ou sobre as
quais ele pretende se apoiar, mesmo que sejam forças “progressistas” ou de “esquerda”.
Do que se trata?
Muito rápido, e no interior mesmo do Greph, certo equívoco apareceu, ligado à
palavra ou mesmo à coisa dita “progressividade” do ensino filosófico. Colocou-se em
dúvida se a repartição de tal ensino em muitos anos não tinha risco de conduzir a uma
dispersão e a uma desarticulação empirista; ou o risco de reiterar o ensino tradicional,
enfraquecendo-o, tornando-o mais acessível a desvios ideológicos ou a sua dissolução
em disciplinas não filosóficas; ou o risco de ampliar o imperium filosófico, e mesmo, em
tal ou tal situação política, a hegemonia de tal ou tal filosofia sub-repticiamente tornada
filosofia oficial, filosofia de Estado, e dispensada como um dogma ao longo de toda a
escolaridade. Nesse caso, a palavra de ordem da progressividade reproduziria, e quiçá
agravaria uma situação que se desejava, pelo contrário, transformar do início ao fim. A
essa objeção, que foi levada a sério e que, para dizer a verdade, havia imediatamente
sido ponderada no interior do Greph, nossa resposta era, em seu princípio, a seguinte:
sem dúvida, o valor da progressividade é derivado da pedagogia mais tradicional. Nós
não devemos recebê-lo como uma novidade nem, sobretudo, “fetichizá-lo”. Mas em
uma fase determinada da luta, era estrategicamente oportuno exigir para o ensino
filosófico o respeito de normas tradicionais legitimando que outras disciplinas se
beneficiassem de um ensino longo e “progressivo”. Uma vez adquirida uma extensão
legítima e dita “natural”, outros debates poderão se desenvolver mais facilmente quanto
aos conteúdos e às formas de ensino, suas articulações, suas comunicações, entre si
e com o exterior da escola. As proposições do Greph sobre a progressividade visavam
toda essa transformação profunda. E gostaria de citar aqui uma declaração pela qual
eu então havia exprimido, creio, uma preocupação essencial do Greph, e que submeto
à discussão de vocês porque ela me parece de um alcance suficientemente geral para
valer não só no contexto estritamente francês onde foi formulada:
“Naturalmente, se, sob o pretexto de progressividade, um aprendizado, quiçá
um adestramento, fosse reinstaurado com finalidades suspeitas, se uma “formação”
se distribuísse orientada como progresso em direção ao acabamento harmonioso
de algum télos, qualquer que ele fosse, seria preciso, será preciso certamente
combater tal reapropriação, cujo risco (ou segurança) reaparecerão sempre. Outras
frentes se desenharão. Mas, uma vez que a filosofia não será mais o lote de uma
classe, o alargamento do campo tornará o trabalho, as trocas críticas, os debates e os
enfrentamentos mais efetivos. Em todo caso, é certo desde já que recusar a extensão do
ensino filosófico sob pretexto de que o motivo da “progressividade” não resolve todos
os problemas e pode ser reapropriado pelo campo que se diz adverso é dar crédito a
um argumento mistificador, seja ele ou não enunciado de boa-fé. Mistificador e sem
porvir, a demonstração disso está feita. É preciso, pelo contrário, trabalhar a partir de
agora para criar as condições de uma extensão ou de uma transformação do assim
chamado ensino filosófico, abrir debates, elaborar experimentações, associar-lhes o
maior número de educadores, estudantes secundaristas e universitários, não somente

188 Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019


na “disciplina” filosófica, nem somente na escola. O processo está em curso, dele temos
mais de um sintoma, e o terreno de lutas por vir já lhe está prescrito”6.
Desde essa época, o Greph multiplicou suas ações, seus grupos de trabalho, estendeu
as consequências de suas primeiras palavras de ordem, particularmente no que diz
respeito ao que agora chamamos de a necessária “deslocalização” do corpo docente:
mobilidade, desierarquização, circulação de professores segundo novos modos de
“formação”. Nós podemos, se vocês quiserem, voltar a isso ao longo da discussão. O
que gostaria de simplesmente situar, ou pelo menos, de nomear, talvez analisar, antes
de concluir, são os tipos de dificuldade que o Greph encontra em seu trabalho teórico
e em sua atividade militante. Talvez essa tipologia não seja, em sua generalidade,
limitada à cena francesa. A lei dessa tipologia vem da necessidade e, por vezes, da
impossibilidade de lutar em duas frentes, variando os alcances e os ritmos dessa luta.
1. Por um lado, pensamos dever manter a unidade da disciplina filosófica contra
todos os tropismos sedutores das ciências humanas (psicanálise, sociologia, economia
política, etnologia, linguística, semiótica literária etc.) e, através dessa unidade, a força
crítica da filosofia e das epistemologias filosóficas. É verdade que educadores em número
crescente teriam tendência a ceder a tais tropismos e, portanto, a limitar a formação
dos estudantes secundaristas e universitários, seu treinamento com a vigilância crítica
diante de todos os conteúdos ideológicos, dogmatismos e filosofemas pré-críticos que
espreitam constantemente o discurso das ciências humanas.
Mas, por outro lado, não queremos assumir o que essa palavra de ordem (“unidade
e especificidade da disciplina”) pode comportar de reativo, ou mesmo, às vezes, de
obscurantista. Tal palavra é muitas vezes destacada pelos representantes mais legítimos,
em todo caso oficiais, da instituição. Lutamos, portanto, ao mesmo tempo, para que a
preocupação com a especificidade filosófica, até certo ponto, seja mantida diante de
uma dispersão pseudocientífica, e, de fato, fragilmente filosófica, mas também para
que seja ampliado o campo da especificidade no ensino, mesmo que isso possa parecer
ameaçar a representação que se fazem certos filósofos de uma unidade intocável em
sua disciplina. Essa contradição ou essa lei de double bind, cuja fatalidade nomeio
secamente, vocês sabem que ela pode ter efeitos muito concretos em nossa prática.
Para tratá-la ao fundo, seria necessário desdobrar evidentemente um longo e poderoso
discurso sobre o científico e o filosófico, sobre uma “crise” que excede sem dúvida o
que Husserl teria desejado conjurar sob o título de Crise das ciências europeias7... ou
de Crise da humanidade europeia e a filosofia8.
2. Em suas ligações com o Estado, com tudo aquilo que este tenta programar
de ensino da filosofia e de suas vinculações aos ensinos e às práticas científicas, com
todos os modos de formação e reprodução pelos quais o Estado finaliza o sistema
educativo, o Greph tenta ser também independente, mestre de suas críticas, de sua
problemática, de seus motivos de ação, como ele tenta sê-lo em relação ao código

6 Réponses à la Nouvelle Critique, maio-junho de 1975, retomado em Qui a peur de la philosophie, obra coletiva
do Greph, Paris: Flammarion, 1977, pp. 457-458; Esse texto também está reproduzido em DERRIDA, J. Du Droit à la
philosophie, Paris: Galilée, p. 249-250.
7 HUSSERL, E. La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. Trad. de l’allemand et
préfacé par Gérard Granel. Paris: Gallimard, 1976.
8 Op. cit, p. 347 e sq.

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dominante do político, aos partidos, organizações sindicais e associações corporativas.
Longe de ser um fator de despolitização, essa liberdade (relativa) e essa distância sem
separação deveriam nos permitir, pelo contrário, re-politizar as coisas, transformar o
código político dominante e abrir à politização zonas de questionamento que lhe
escapavam por razões sempre interessadas e interessantes. Essa liberdade (relativa)
em relação às estruturas estatais, não buscamos tomá-la inicialmente em relação a um
Estado em geral, ao Estado em si, mas, tão precisamente quanto possível, em relação
às forças particulares que, dominando os poderes de Estado em dado momento, lhe
ditam – por exemplo – sua política da ciência e da filosofia.
Afinal, por outro lado, inversamente, nossa ligação com o Estado não é nem simples
nem homogênea. Certa racionalidade estatal nos parece não somente acordada à
unidade do filosófico que não desejávamos abandonar pura e simplesmente, mas
também representar o meio mais potente de lutar contra as forças ou os interesses de
classe (por exemplo) que se aproveitariam do empirismo ou do anarquismo político.
Com efeito, não é menos verdade que, em sua forma mais acabada, a racionalidade
estatal-filosófica (quer seja pensada de modo hegeliano de direita ou de esquerda,
marxista ou não marxista etc.) deve também estar ao alcance de questionamento
(teórico) ou de contestação (prática).
3. Esforçamo-nos para não dissimular todas essas contradições que atravessam a
reflexão e a prática do Greph e acreditamos que elas são significativas. Elas retomam,
todas talvez, em sua generalidade mais formalizada, a necessidade de não renunciar
nem a uma desconstrução (do filosófico, do que liga o filosófico ao Estado, ao ensino,
às ciências etc.), nem a uma crítica filosófica em sua forma mais exigente e mais efetiva,
hoje, aqui, agora, de sua tradição. Não renunciando nem à desconstrução, nem à crítica,
o Greph se divide, se diferencia, se partilha segundo lugares, indivíduos, urgências,
situações. Ele não tem estatuto, de todo modo, nenhum lugar ou forma fixa. Bem
que houve estatutos provisórios, mas a história desses estatutos mostra que o Greph
jamais pôde ou quis se dar um estatuto. Até o momento, quanto à contradição que
acabei de nomear, é um lugar um pouco vago onde um consenso mínimo se renova
desde há quatro anos para uma prática relativamente comum e, sobretudo, para um
debate tão vigilante e tão liberal quanto possível.
Um debate tão vigilante e tão liberal quanto possível era também a promessa deste
colóquio, e é o que me encorajou a lhe trazer – como uma saudação – este testemunho
e a falar com vocês desse lugar ou a partir desse lugar que se chama Greph. A respeito
dele, esquecia-me de precisar que, por mais francês que pareça, e confinado neste
momento em suas fronteiras, ele registrou, desde seu Anteprojeto, que não pretendia
“excluir o alcance desses problemas fora da França”9. E, de fato, mais de um grupo
de trabalho tentou levar em conta problemáticas e situações não francesas ou não
europeias, às vezes trabalhando com companheiros do Greph não francês. Eles são
bem numerosos, na Europa, na América do Norte e do Sul, e sobretudo na África, onde
se conhecem problemas análogos, o que não é nada fortuito para a África francófona.
Esse testemunho muito limitado, eu poderia talvez tentar ampliá-lo e discuti-lo,
se vocês o quiserem, ao longo de nossos debates. Mas gostaria, sobretudo, de insistir

9 Ver DERRIDA. Du Droit à la philosophie, op. cit., p. 148.

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neste fato: a relação que fiz ou analisei não comportava nenhuma mensagem. Ela
não era, tal relação, um relatório sobre o estado da filosofia, do ensino da filosofia e
das ciências endereçado a vocês por um correspondente estrangeiro, nem mesmo
um relatório sobre as relações entre o Estado e a Filosofia. E sim um preâmbulo um
pouco longo, perdoem-me, às questões que gostaria de colocar para vocês, e também
à discussão da qual espero tomar parte, uma maneira um pouco lenta, a minha, de
me preparar para escutá-los.

Recebido em: 05/Jun/2019 - Aceito em: 28/Out/2019.

Ipseitas, São Carlos, vol. 5, n. 2, pp. 173-191, jul-dez, 2019 191


Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
revista de crítica genética

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente,


só existem diferenças?1
Patrice Maniglier2

É DE MUITO BOM TOM SEPARAR O ESTRUTURALISMO COMO MÉTODO PARA AS CIÊNCIAS HUMANAS E O
ESTRUTURALISMO COMO EVENTO MEDIÁTICO que, nessa consciência que uma época toma de si através dos
jornais, teria vindo substituir o existencialismo, antes de ceder o passo diante das “filosofias da diferença”. A
infelicidade é que uma leitura pouco atenta das próprias análises estruturais faz aparecer uma diversidade muito
grande de métodos. Também é possível se propor a considerar o estruturalismo não como um método nem
como uma doutrina, mas como um campo problemático, e a buscar sua unidade precisamente na maneira com a
qual diversas atividades teóricas se encontraram – cada vez por razões singulares e, em alguns aspectos,
heterogêneas – confrontadas com problemas filosóficos análogos. Esse encontro entre projetos positivos e
especulações filosóficas, essa espécie de excesso especulativo que se impõe e se reimpõe no seio mesmo das
abordagens teóricas, permitiria apreender o estruturalismo como movimento ou como acontecimento. Assim se
compreenderia como essa intensa atividade filosófica encarnada pelos nomes de Althusser, Foucault, Deleuze ou
Derrida tenha podido se escorar em trabalhos modestos de fonologia diacrônica (a recíproca sendo mais rara).
Os textos de Saussure, do qual se começa somente a ter uma ideia um pouco mais completa, para além da
apresentação que Bally e Séchehaye fizeram deles, encontram-se num estado particularmente favorável a uma
leitura desse gênero. De fato, Saussure parte de um problema que se poderia dizer metodológico: os
fenômenos da linguagem se apresentam ao mesmo tempo como heterogêneos (alguns são fônicos; outros,
articulatórios; outros, semânticos etc.), contínuos (não existe nenhum critério experimental para delimitar as
unidades da linguagem, por exemplo, a partir da observação das curvas de frequências ou da fisiologia do
aparelho fonador) e dessemelhantes (diferentes atualizações de uma mesma palavra, por exemplo, “senhores”,
não preservam nenhum perfil acústico, fisiológico ou semântico). A tese semiológica vem responder a esse
problema metodológico: a identificação e a delimitação das unidades linguísticas se fazem por associação entre
uma ou muitas diferenças sonoras e uma ou muitas diferenças psicológicas. Mas essas unidades então
apresentam propriedades estranhas: elas são duplas, nem totalmente físicas, nem totalmente psicológicas, e
constituídas unicamente de diferenças. Portanto, ao fazer isso, Saussure introduz uma hipótese ontológica

1
Tradução de Fábio Roberto Lucas, que desenvolve seu pós-doutorado em Estudos Literários na Universidade Federal do
Paraná com apoio da Bolsa PNPD/Capes. Texto cedido pelo autor especialmente para ser traduzido para o português do
original em francês. Ver MANIGLIER, Patrice. Methodos, n. 7, 2007. Disponível em:
https://doi.org/10.4000/methodos.674. Acesso em: 27 jul. 2020. Trechos citados de outros livros ou artigos escritos em
língua francesa e sem tradução em português também são apresentados em tradução livre. Nos outros casos, atualizamos a
referência bibliográfica para indicar fontes já traduzidas e publicadas em língua portuguesa.
2
Professor de Filosofia da Universidade Paris Nanterre. Contato: patrice.maniglier@gmail.com.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 230


Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
revista de crítica genética

forte, que não cessará de mobilizar sua recepção, especialmente através das grandes construções filosóficas de
Gilles Deleuze3 e Derrida4.
Essa tese segundo a qual “na língua, só existem diferenças” está seguramente no coração do estruturalismo
como movimento no sentido em que o definimos. Melhor, pode-se compreender a partir dela a estranha
inversão aparente constituída por aquilo que alguns diagnosticaram como a passagem das filosofias da estrutura
às filosofias da diferença. Mas ela tem também interesse por estar no coração de certas críticas feitas ao
estruturalismo, entendido como interpretação filosófica de enunciados teóricos. Assim, Vincent Descombes
dizia simplesmente:

Foram retidos da análise estrutural certos slogans (que os filósofos se apressaram em entender
num sentido dialético ou neodialético): só existem diferenças, não termos que diferem. Esses
slogans foram justamente criticados como sendo obscuros ou ridículos: se existe uma
diferença, é preciso que existam coisas que difiram sob certa relação 5.

É verdade ser impossível fingir que uma tese filosófica paradoxal se tornaria suficientemente explícita pelo
mero fato de um linguista apresentá-la como necessária para a construção de sua própria teoria. De resto, Jean-
Claude Milner procurou mostrar que uma teoria experimental da linguagem podia muito bem dispensar esse
problema, e é precisamente o que fez Chomsky6. Tentaremos, todavia, sugerir qual custo propriamente teórico
supõe essa evasão do problema filosófico e quais argumentos empíricos poderiam ser invocados em favor da
posição saussureana. Mas tentaremos, sobretudo, mostrar que a ontologia negativa aparentemente admitida por
Saussure é apenas aparente, e que a teoria do valor esconde, em realidade, uma construção nitidamente mais
complexa na qual, com efeito, projeto teórico e questões filosóficas se interpelam e se relançam.

1. Os paradoxos de uma ontologia do negativo


Para compreender bem o problema de Saussure, é preciso inicialmente compreender as razões teóricas que o
motivam. Pois se é verdade que não se pode fundar apenas sobre a afirmação de Saussure toda uma nova
ontologia, não é verdade, todavia, que o linguista possa simplesmente dispensar a hipótese ontológica e aplicar
tranquilamente o método estrutural. Ou mais exatamente, ele pode fazê-lo, mas a certo custo teórico. Autores
como Troubetzkoy, Jakobson ou Martinet, por exemplo, podem muito bem não se colocar a questão ontológica,
mas na medida em que eles definem a linguagem como um meio de comunicação7. Ora, isso implica, ao menos, que

3
DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition. Paris: PUF, 1968. DELEUZE, Gilles. Logique du sens. Paris: Minuit, 1969.
4
DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Minuit, 1967. DERRIDA, Jacques. Marges de la Philosophie. Paris:
Minuit, 1972.
5
DESCOMBES, Vincent. Le même et l’autre, Quarante-cinq ans de philosophie française (1933-1978). Paris: Minuit,
1979, p. 182.
6
MILNER, Jean-Claude. O amor da Língua. Campinas: Editora Unicamp, 2012, p. 62-63.
7
“O funcionamento do fonema na língua é um fenômeno que nos leva à conclusão: o fonema funciona, ergo ele existe.
Muito se discutiu sobre o modo dessa existência: essa questão, concernindo não somente o fonema, mas todo valor
linguístico em geral, está evidentemente fora do alcance da fonologia e mesmo de toda a linguística, e seria mais sensato
abandoná-la à filosofia, particularmente à ontologia, que especula sobre o ser. A tarefa que se impõe ao linguista é a análise
aprofundada do fonema, o estudo sistemático de sua estrutura”. JAKOBSON, Roman e WAUGH, Linda. La charpente

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 231


Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
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aquilo que há a comunicar esteja determinado em si. Do mesmo modo, seria possível muito bem dizer, por
exemplo, que as nuances qualitativas são índices permitindo reconhecer um signo que pode ser, sim, definido
positivamente, em relação a um “pensamento” ou uma “representação”. Nesse caso, os traços distintivos
funcionariam simplesmente como critérios que permitem identificar uma entidade perfeitamente definida nela
mesma, talvez até mesmo uma “representação fonológica” para retomar o vocabulário dos Princípios de fonologia
generativa de Chomsky8. Essa entidade não tem seguramente nada de “diferencial” em si, nem de opositivo, e não
traz nenhum problema ontológico novo: ela se contenta em recolocar a questão do “mental” em termos bastante
tradicionais. Pode-se dizer que uma “unidade linguística” é identificada com a ajuda de certos traços diferenciais.
Por exemplo, eu “reconheço p”, não porque possuo uma espécie de retrato falado ou automático da impressão p,
mas porque estou atento aos traços distintivos particulares no fenômeno fônico que me permitem inferir p. Mas
isso não significa que p seja com isso puramente diferencial: trata-se de um símbolo definido por sua função em
um cálculo, graças a qual se obtém fórmulas cuja interpretação é heterogênea ao sistema simbólico em si. Assim,
não há nenhuma consequência direta entre a tese do caráter distintivo do nível fonológico (que persiste ainda em
nossos dias como a base instrumental de toda fonologia) e a tese ontológica forte que Saussure crê encontrar
nela. Se os fonemas são “diferenciais”, isso significa simplesmente que o sujeito falante busca, nas realizações
sonoras da linguagem, algo com o qual distinguir “representações” que ele é suscetível de ter. É porque esse nível
é somente um meio que ele é, precisamente, distintivo.
Além disso, é sobre essa ideia que Thomas Pavel apoia sua crítica às tentativas de recuperação filosófica da
tese de “distintividade” dos signos e, em particular, às proposições de J. Derrida em “A diferença”9.

A exemplo dos signos saussureanos, os vestígios [traços / traces] constituem um sistema


aberto onde cada posição não é definida senão por sua não identidade com as posições que a
cercam. Mas a razão pela qual os sistemas de signos adotam essa estrutura vem da economia de
meios e não da negatividade transcendental. Os linguistas identificaram sistemas diferenciais
precisamente lá onde a língua, dispondo de meios limitados, deve chegar a um rendimento
máximo10.

Em outras palavras, essa propriedade seria perfeitamente banal (o que, de resto, Martinet sempre disse).
Certo, mas isso implica uma posição sobre a semântica, posição legítima, seguramente, porém difícil de
sustentar, pois ela exclui totalmente a distintividade do domínio do sentido. Não é, de modo nenhum, seguro que
tal exclusão (na semântica cognitiva, por exemplo) tenha tido resultados convincentes, e os trabalhos de François

phonique du langage. Paris: Minuit, 1980, p. 79. Mas essa maneira de afastar o problema ontológico finalmente só é
possível porque o fonema é definido por sua função na língua. Troubetzkoy, ao expor o debate sobre o estatuto do fonema,
recorre à mesma solução, ou melhor, à mesma maneira de evitar o problema. O que os obriga a pressupor a função da
linguagem (comunicar) em vez de fazer dessa própria função um objeto de pesquisa positiva. TROUBETZKOY, N. S.
Principes de phonologie. Paris: Librairie C. Klincksieck, 1949, p. 44.
8
CHOMSKY, Noam e HALLE, Morris. Principes de phonologie générative, Paris: Minuit, 1973, p. 35-38; 59-63.
9
DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991, p. 33-64.
10
PAVEL, Thomas. A miragem linguística, ensaio sobre a modernidade intelectual. Campinas: Pontes, 1990, p. 106.

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Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
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Rastier testemunham que uma nova semântica estrutural pode plenamente reivindicar sua pertinência11. Em
todo caso, é certo que Saussure desejava estender à face semântica da linguagem (o “conceito”) a tese
diferencialista que se impunha com toda evidência para sua face fônica (a “impressão acústica”): “Não há ideias
positivas dadas”12, ele dizia. “Assim, sol parece representar uma ideia perfeitamente positiva, precisa e
determinada, assim como a palavra lua: entretanto, quando Diógenes diz a Alexandre ‘Sai da frente do meu sol!’,
não há mais, em sol, nada de sol a não ser a oposição com a ideia de sombra (...)”13. Vê-se que Saussure escolheu
um exemplo aparentemente desfavorável para sua tese, um no qual o signo parece designar uma coisa que
aparenta ser perfeitamente determinada, pois única, para mostrar que, em todos os casos, a significação é
negativa. Na verdade, nesse caso, “sol” não designa o astro ele mesmo, mas, sim, a luz que dele provém, e se
opõe, portanto, à sombra, mais que à lua. Ademais, essa é a razão pela qual não há diferença entre o uso
referencial e o uso metafórico do termo 14: a designação do astro não vem “primeiro” em relação à da luz. A
pluralidade dos usos de um termo decorre precisamente dessa indeterminação intrínseca. É também a
verdadeira razão que Saussure dá para recusar a representação da língua como nomenclatura. O que é
“conteúdo” semanticamente em uma entidade dada de língua não é outra coisa que a combinação de certos
traços determinados.
Vê-se que o problema saussureano só se coloca com a condição de que se aplique ao “significado” o que parece
valer antes de tudo para o “significante”. Isso significa que os traços diferenciais não permitem identificar
qualquer coisa, pois o que se trata de identificar ou de reconhecer na ocasião de um ato de fala particular é
precisamente um conjunto de diferenças, e unicamente isso. Não há diferença entre os critérios de identificação
de uma coisa e a coisa ela mesma: “Para o fato linguístico, elemento e característica são eternamente a mesma coisa.
É próprio da língua, como de todo sistema semiológico, não admitir nenhuma diferença entre o que distingue
uma coisa e o que a constitui (porque as “coisas” de que se fala aqui são signos, que não têm outra missão,
essência, além do fato de ser distintos)”15. Os traços diferenciais não são somente marcas, mas são constitutivos
do próprio objeto, como se as marcas não tivessem, no fim das contas, nada a marcar... Esse paradoxo é
próprio a Saussure, e sem dúvida somente a ele na tradição linguística. Não é preciso polir seu gume, pois,
pelo contrário, é ele que Saussure quer deixar saliente. Inversamente, é preciso mostrar o que, à primeira
vista, a tese saussureana tem de inaceitável.
Normalmente, a diferença vem funcionar como critério do reconhecimento de uma identidade. Com isso,
pode-se definir um som por seus intervalos. Mas o que então se limita é um “corte de sonoridade”, por exemplo,
uma banda de frequência. Seria um mal jogo de palavras dizer que essa porção de espaço é “constituída” por seus

11
RASTIER, François. Sémantique interprétative. Paris: PUF, 1987. RASTIER, François. Sémantique et recherches
cognitives. Paris: PUF, 1991.
12
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale, éd. Rudolf Engler, Wiesbaden: Otto Harrassowitz, Tome 1,
1967, P. 71, n. 1941. Os textos das aulas de Saussure serão sistematicamente citados a partir da edição crítica do Cours de
linguistique générale, estabelecida por Rudolf Engler (Ibid.), às vezes com a menção da passagem do Curso de Linguística Geral
na edição brasileira (Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006, abreviado CLG). Trata-se, portanto, do texto
dos cadernos dos estudantes. Para a edição Engler, a partir daqui, será fornecido o número da página e do fragmento.
13
SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 68. Abreviado ELG daqui em diante.
14
Cf. o exemplo da flor: “uma palavra pode exprimir ideias bastante diferentes sem que sua identidade fique seriamente
comprometida (cf. ‘adotar uma moda’ e ‘adotar uma criança’, ‘a flor da macieira’ e ‘a flor da nobreza’ etc.)”. CLG, p. 126.
15
SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos de linguística geral, op. cit., p. 224. Fórmula idêntica nos “aforismos”. Ibid., p. 109.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 233


Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
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próprios limites. Os limites são os limites de alguma coisa: entre tal e tal limite, tudo o que surge será
considerado como uma só e mesma coisa. É possível que a definição de uma coisa implique necessariamente a
delimitação, em outras palavras, que ela só possa se fazer por uma marcação das fronteiras ou, como se diz, por
demarcação. Mas isso não significa que a coisa seja intrinsecamente negativa. Assim, se o animal de O Covil, de
Kafka, pergunta-se onde começa e onde termina seu território, é, sim, “alguma coisa” que ele se propõe
identificar, neste caso, “seu território”: o conteúdo dessa alguma coisa é positivo, trata-se de certos direitos que
ele acredita ter ou que lhe são atribuídos, em suma, um conceito. Os limites vêm, portanto, definir a extensão de
um conceito que ele e outros, em tese, têm em comum, o de “meu território”. A infelicidade do animal de Kafka é
precisamente ele estar sozinho ao se colocar essa questão, que assim se torna interminável e ainda mais dolorosa
que uma resposta desagradável... Em outros termos, não é porque a diferença é o único meio para reconhecer
uma coisa que essa coisa é negativa. Pode-se perguntar se Saussure não caiu em uma confusão desse gênero.
Mais grave, não se vê como se pode passar dessa tese sobre o caráter diferencial dos signos à noção de
unidade, ou seja, à descontinuidade que é precisamente aquilo de que Saussure procura dar conta. Com efeito, se
um signo realizado é o conjunto dos traços qualitativos distintivos que permitem separá-lo de outro, ou seja, se o
signo “sol” não é senão a diferença acústica que se faz de ouvi-la, não se vê no que isso teria como constituir, de
qualquer maneira que fosse, uma unidade. Há, sim, nuances, mas nenhuma saberia dar lugar a uma unidade
distintiva. Se a diferença não é diferença de nada, ou entre nada e nada, mas “diferença pura”, não se vê por que
ela deveria ter um valor distintivo. Assim, para Bergson, é precisamente à medida que a diferença não é distintiva,
mas, pelo contrário, contínua, que se pode dizer que há “diferenças em si”: trata-se de uma pura variação
qualitativa não marcada, que não tem nem começo nem fim, e que não teria como separar duas coisas.
De fato, o problema – uma vez que se supõe que a língua atue sobre um só plano qualitativo – é que se torna
impossível compreender como as diferenças podem constituir uma unidade que não seria, ela própria, separável
de suas próprias marcas. Com isso, fica-se perdido em paradoxos inextricáveis que podem servir de metafísica
sutil desde que não se olhe muito para eles. Mas caso seja reintroduzida a dualidade, a coisa se ilumina. Os
editores exprimiram isso muito bem: “Mas dizer que na língua tudo é negativo só é verdade em relação ao
significante e ao significado tomados separadamente: desde que consideremos o signo em sua totalidade,
achamo-nos perante uma coisa positiva em sua ordem”16. Saussure havia começado a explicar esse ponto
justamente na última aula de linguística geral que ele teria proferido.

[1944] Só há diferenças caso se fale seja dos significados, seja dos significantes. Quando se
chega aos próprios termos, resultados da relação entre significante e significado, pode-se falar
de oposições [...]
[1941] ‘Só existem diferenças; e nenhum mínimo termo positivo’, aqui, é de uma diferença do
significante que falamos. O jogo dos significantes está fundado sobre diferenças. O mesmo para
os significados: só existem diferenças que serão condicionadas pelas diferenças de ordem
acústica [...]
[1945] Graças ao fato de as diferenças se condicionarem umas às outras, teremos alguma coisa
que pode se assemelhar a termos positivos pela tomada em consideração de tal diferença da

16
CLG, p. 139.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 234


Manuscrítica § n. 42 • 2020 Tradução
revista de crítica genética

ideia com tal diferença do signo. Pode-se então falar da oposição dos termos e, portanto, não
manter que só existem diferenças ‘por causa desse elemento positivo da combinação’ 17.

Esse texto é essencial porque ele mostra duas coisas. Inicialmente, que as realidades mentais que constituem a
linguagem não são “entidades puramente negativas”, mesmo se elas não correspondem a nenhuma classe de
acontecimentos substanciais dados. Elas são entidades perfeitamente positivas, e é ademais precisamente porque
elas o são que elas são reais. Quero dizer que a “realidade” mental, que deixa sua marca no cérebro e constitui um
elemento do “tesouro mental” que é a língua18, é essa positividade mesma. Todavia, essa positividade é um
resultado, um resíduo, um resto, uma consequência involuntária, uma positividade induzida que não corresponde
a nada de dado. É que não se pode contentar em definir a positividade do signo como uma correlação de
diferenças: trata-se de uma correlação entre diferenças oposta a outras correlações. Esse texto mostra também que
Saussure efetivamente entende a negatividade sempre em dois sentidos, por um lado, como diferença, e, por
outro, como oposição19. Veremos que essa distinção está no coração da teoria do valor, uma teoria que propõe
uma verdadeira gênese das positividades semiológicas sem, contudo, corresponder nem a uma gênese empirista
(abstração das identidades a partir da repetição dos dados qualitativos) nem a uma gênese racionalista (projeção
sobre o dado qualitativo de uma forma dada no espírito).

Gênese do valor
Para compreender como, da simples correlação entre diferenças, podem nascer termos positivos, é preciso
partir de uma situação na qual os termos não estão dados. Talvez se esteja tentado a crer que isso significa que
somente as diferenças estão dadas: não teríamos ainda as coisas quentes e as coisas frias, mas desde já o contraste
do quente e do frio. Esses contrastes seriam retidos como “traços distintivos” e nós os associaríamos uns aos
outros para definir uma entidade negativa, à maneira de Jakobson para o fonema20. Mas, em realidade, não há
nenhuma razão para crer que as variações qualitativas se dão prontamente sob a forma do contraste. Entre um
som mais estridente e um som mais abafado, não há hierarquia qualitativa, mas somente uma alteridade. O
aspecto gradual da experiência não está na própria experiência. Todo o sentido da crítica da noção de

17
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale, op. cit., p. 272, n. 1944sq.
18
Esse aspecto particularmente incômodo do pensamento de Saussure geralmente não é revelado. Porém, ele está no
coração do problema que o linguista busca levantar. Para alguns elementos no mesmo sentido, ver sobretudo MANIGLIER,
Patrice. La langue, cosa mentale. In: Saussure. Paris: Editions de l’ Herne, 2003.
19
Troubetzkoy não admitia a distinção conceitual entre diferença e oposição: “A ideia de diferença supõe a ideia de
oposição”. TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonologie, op. cit., p. 33. Essa posição nos parece totalmente coerente com
um postulado funcionalista, que será mais bem explicitado por Jakobson. Deleuze, renovadamente, viu muito bem a
importância conceitual dessa recusa de distinguir diferença e oposição (ainda que ele a atribua a Saussure) bem como sua
ligação com uma abordagem funcionalista da linguagem, ou seja, que postula o sentido como alguma coisa já dada,
indiferente para o linguista cujo objeto seria unicamente as “ferramentas”, como dirá Chomsky, de reconhecimento da
significação: “Quando interpretamos as diferenças como negativas e com a categoria da oposição, já não estaríamos do lado
daquele que escuta e até mesmo que ouviu mal, que hesita entre várias versões atuais possíveis, que tenta ‘reconhecer-se’
pelo estabelecimento de oposições, o pequeno lado da linguagem, não o lado daquele que fala e que atribui sentido?”.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2009, p. 289.
20
JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963, p. 103-107.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 235


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intensidade feita por Bergson, no primeiro capítulo de Dados imediatos da consciência, está em mostrar que uma
variação qualitativa não é em si ordenável e que não se tirará jamais, de uma simples variação qualitativa, uma
“polaridade”21. Não obstante, Jakobson se esforçou precisamente em mostrar que os traços distintivos eram
dados universais do espírito humano22.
Na verdade, não é filosoficamente impossível sustentar que a variação é em si uma diferença, mas apenas à
condição de que a variação perca precisamente seu caráter qualitativo, ou mais exatamente, de que a dimensão
qualitativa se torne uma modalidade “fenomenal” de uma realidade que não é, na verdade, nada qualitativa, mas,
sim, espiritual e mesmo lógica. É bem isso que Hegel quis mostrar nas passagens justamente célebres da Ciência
da Lógica consagradas à identidade, à diferença e à contradição23. Com efeito, a noção de uma diferença pura ou
de uma diferença em si é contraditória em si, o que não quer dizer, para Hegel, que ela não é real, mas, pelo
contrário, que ela testemunha ser o próprio real prontamente lógico, pois, de fato, a contradição é uma relação
lógica. De modo que, se é possível mostrar que os constituintes elementares da experiência são eles próprios
contraditórios (ou melhor, são modalidades da contradição, diria Hegel), isso significa que o dado sensível não é,
inversamente ao que queria Kant, exterior ao espírito, mas, pelo contrário, uma das primeiras manifestações do
Espírito, que é a própria contradição. O diverso sensível é, enquanto tal, uma ideia, mas uma ideia que não pode
aparecer ela mesma senão como irredutível ao que é ideal. Pois, como se sabe, a diferença entre espiritual e não
espiritual é interior ao próprio espírito e a sensação não é senão a primeira modalidade dessa contradição consigo
mesma que é o espírito (também é com a sensação que começa a Fenomenologia do Espírito). A variação
qualitativa, se ela tivesse de se dar prontamente como diferença, não teria, portanto, nada de estético, seria
somente uma das primeiríssimas figuras da contradição interna e a melhor testemunha em favor do idealismo
absoluto24. Em outras palavras, o conceito de “diferença qualitativa” (que constituiria traços ou dimensões
estruturantes a priori da experiência) é um conceito mal determinado, ao qual é melhor renunciar.

21
É sabido que Bergson mostra que a noção de intensidade é um “misto” conceitual, mistura de qualidade pura e de
movimento. A percepção de uma diferença de luz como uma diferença entre “mais” ou “menos” luminoso não provém da
própria qualidade, mas de que essa qualidade, propõe Bergson, funcione como signo de um esforço a se fazer: seja para se
aproximar a fim de ver melhor, seja, pelo contrário, para se afastar a fim de não ter a visão ofuscada etc. BERGSON, Henri.
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 23-39.
22
cf. principalmente JAKOBSON e WAUGH, La charpente phonique du langage, op. cit., p. 212-216.
23
HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica: 2 – A Doutrina da Essência. Orsini. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 53-92, primeira
seção, capítulo segundo.
24
Vê-se aqui em que sentido a ambição “estruturalista” de ter construído outro conceito da “diferença em si” pôde
justificadamente parecer, durante certo tempo, fornecer o elo perdido, se é possível dizê-lo, da operação de “materialização
da dialética”, que Marx e Engels haviam anunciado. Pode-se, com efeito, afirmar que a contradição é “material” caso se limite
a entender esse conceito no sentido que é o seu, ou seja, o sentido lógico. Afunda-se então mais na mitologia do que na
filosofia ou na “ciência”. É bem isso que Althusser mostrou nitidamente. Porém, não é certo que Althusser tenha
compreendido (ou admitido) que o materialismo dialético devia passar pela reconstrução de um conceito estético da
diferença, o que teria podido levar a comparar o empreendimento de Marx ao de alguns pós-kantianos, em particular os de
Salomon Maïmon e de Hoëne Wronski (cf. DELEUZE, Diferença e Repetição, op. cit., p. 248-250), mas também, mais
tardiamente, de Hermann Cohen, que tentavam mostrar que não havia diferença entre a dialética e a estética, todavia não
para, à maneira de Hegel, disparar o movimento de idealização do real, mas, pelo contrário, para “materializar” o espírito, ou
melhor, afirmar a inutilidade de ultrapassar o momento da sensação. Caberá a Deleuze, particularmente em Diferença e
Repetição, ter claramente extraído essa solução. O problema de um materialismo dialético também é, entretanto, muito

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 236


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De fato, Saussure não diz de modo nenhum que as diferenças significantes e significadas são dadas, e que é ao
associá-las que se fabrica a entidade linguística. Ele diz mesmo exatamente o contrário:

1º A figura vocal, em si mesma, nada significa.


2º A diferença ou identidade da figura vocal em si mesma não significa NADA.
3º A ideia em si mesma não significa nada.
4º A diferença ou a identidade da ideia em si mesma não significa NADA.
5º A união do que tem uma significação para a língua é
a) a diferença ou a identidade da ideia SEGUNDO OS SIGNOS.
b) a diferença ou a identidade dos signos conforme a ideia; e as duas coisas estando, além disso,
indissoluvelmente unidas25.

Em outras palavras, as diferenças não são dadas prontamente. Digamos que só são dadas as variações
qualitativas, sem direção nem fim, igualmente incomparáveis. Mas uma variação qualitativa se torna uma diferença
intensiva na medida em que ela é sistematicamente correlacionada com outra variação qualitativa que se encontra
sobre outro plano qualitativo. Reservaremos o termo heterogêneo para designar a diferença entre os planos
qualitativos. É somente à condição dessa correlação que se pode falar de uma diferença qualitativa: só há diferença
qualitativa sobre um plano porque há outra diferença sobre um plano heterogêneo. Para haver uma diferença, é
preciso sempre que haja duas. Só existe traço distintivo duplo: “Princípio fundamental da semiologia ou da
‘língua’ considerada regularmente como língua e não como resultado de estados precedentes. Não há, na língua,
nem signos, nem significações, mas DIFERENÇAS de signos e DIFERENÇAS de significação; as quais 1º só
existem, absolutamente, umas através das outras (nos dois sentidos) sendo, portanto, inseparáveis e solidárias;
mas 2º não chegam jamais a se corresponder diretamente”26. A constituição de um plano semiológico supõe um
trabalho de seleção de variações substanciais pela correlação delas com variações heterogêneas, e essa seleção as
constitui, isolando-as, de fato, em traços diferenciais sobre seu próprio plano qualitativo. Assim, a qualidade de
um “som da língua” não é determinada unicamente pelos sons que podem cercá-lo: somente certos contrastes
sonoros são retidos, aqueles que são associados a contrastes “conceituais”. Ou mais exatamente, somente certas
variações são retidas, e aquelas que são retidas então funcionam como contrastes.
Todavia, com isso não foi explicado como emerge uma positividade do conjunto desses traços distintivos. Na
verdade, é do mesmo movimento que nascem ao mesmo tempo traços distintivos e “singularidades” qualitativas.
A correlação entre as variações instaura limiares no seio da experiência, que fazem bascular de um plano
qualitativo a outro. Esses limiares não correspondem tanto a fronteiras “naturais” entre qualidades dadas sobre
cada plano qualitativo, mas, sim, a pontos de basculamento sobre outro plano, arbitrariamente determinados
pela associação ou correlação deles com variações heterogêneas, onde o jogo da diferenciação, se é possível dizê-
lo, recomeça com um conjunto de limiares todo outro. São essas fraturas que introduzem a descontinuidade na
continuidade. São as variações sobre outro plano qualitativo que determinam as singularidades do primeiro.

presente em Lévi-Strauss (ver o artigo “Dialética” em MANIGLIER, Patrice. Le vocabulaire de Lévi-Strauss. Paris:
Ellipses, 2002.
25
ELG, p. 68.
26
ELG, p. 65.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 237


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Assim, se fosse preciso fazer uma comparação matemática, deveria ser dito que a língua é um conjunto de
singularidades extraídas da relação entre duas funções, das quais uma é a derivada da outra, e reciprocamente27.
Seria por uma espécie de reciprocação da derivação que seriam construídos, pedaço por pedaço, de modo
dinâmico, as duas curvas, que não cessariam de se reatravessar uma a outra, um pouco à maneira de um ponto de
basta [capiton], para retomar a metáfora muito acertada de Lacan28. A correlação entre os dois domínios de
variações contínuas faz emergir essas descontinuidades que são os signos. É isso que Saussure queria dizer
quando dizia que o pensamento-som implica divisões e comparava os valores às ondas. Os termos dessa primeira
articulação não são senão esses pontos de basculamento de um registro de diferenciação qualitativa para outro:
eles nascem “da combinação de tantos signos acústicos com tantos recortes no pensamento”29. São, portanto,
experiências que efetivamente não correspondem a um conteúdo qualitativo particular, ou seja, não são
substanciais, porque elas são apenas experiências das mudanças de substância dependendo de uma covariação.
Contudo, um traço distintivo não corresponde somente a um só outro traço distintivo heterogêneo, mas a
um conjunto de traços distintivos heterogêneos. Assim, o traço da labialização que se reconhece em /sommeil/
(sono) não implica, sobre o plano do conteúdo, uma só variação, mas um conjunto de variações, aquelas que se
deslocam de ‘soleil’ (sol) para ‘sommeil’30. ‘Soleil’, por sua vez, caracteriza-se por um conjunto de traços sêmicos
todo outro, que não se limitam à passagem da obscuridade à luz, mas se estendem à oposição do animado e do
inanimado, por exemplo, da coisa e da atividade etc. Reciprocamente, bastaria fazer variar um só traço sêmico de
‘soleil’, por exemplo, a diferença do animado e do inanimado, para provocar um conjunto de variações sobre o
plano de expressão, por exemplo, aquelas que se atualizam na imagem acústica /Jupiter/, que, com toda
evidência, difere ela mesma de /soleil/ em um bom número de traços acústicos. Passa-se aqui dos “traços
distintivos” selecionados às “unidades distintivas” que são nós de traços distintivos heterogêneos. São essas
unidades que constituem o que Saussure chama de “formas”. “FORMA = Não uma certa entidade positiva de
uma ordem qualquer, e de uma ordem simples; mas a entidade ao mesmo tempo negativa e complexa: que
resulta (sem nenhuma espécie de base material) da diferença com outras formas, COMBINADA à diferença de
significação de outras formas” 31.
É somente depois de se ter mostrado que singularidades emergiam apesar de nós da dupla determinação das
diferenças qualitativas que se pode voltar à formulação paradoxal de Saussure: “um signo não é nada em si, ele é
somente tudo aquilo que os outros não são”. Na verdade, deveria ser evidente que o fato de um termo poder ser
determinado por oposição a termos circundantes supõe, como uma condição inevitável, que esses termos

27
É possível apoiar essa interpretação em um texto de Saussure: com efeito, quando esse reprova os linguistas por separar as
duas dimensões do signo, em um fragmento no qual ele compara o objeto linguístico a uma placa de ferro amarrada a um
cavalo, ele os acusa de querer “partir pela tangente”, acrescentando: “que me seja permitida uma expressão verdadeiramente
muito justa aqui”. ELG, p. 21-22. Como se, portanto, a “ideia” fosse a tangente da “forma”, e a “forma”, a tangente da “ideia”...
28
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 3, as psicoses, 1955-1956. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 303.
29
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale, op. cit., p. 272, n. 1946.
30
Utilizaremos as barras para indicar o valor fonológico (significante) e as aspas simples para indicar o valor semântico
(significado). Colocaremos entre colchetes o valor total em si. Reservaremos, como se deve, as aspas duplas para a simples
menção de um termo tal como ele pode aparecer em nosso próprio texto, em outras palavras, quando essa menção não
corresponder a nenhuma definição técnica particular e não recair, portanto, em nenhuma separação “teórica” entre
linguagem e metalinguagem.
31
ELG, p. 36.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 238


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circundantes sejam, por sua vez, dados, ou seja, preexistentes. Eles não poderiam ser dados pelo termo
circundante que eles próprios determinam. Para sair dos falsos paradoxos da ideia de entidade “opositiva”, é
preciso supor que o jogo da oposição se faz entre termos já dados, e que ele não poderia constituir os signos – mas
que ele pode, por outro lado, redeterminá-los. Ora, um texto de Saussure testemunha sem ambiguidade que era
assim que ele entendia a questão: nele, a determinação do valor é caracterizada pela oposição como uma forma
de “pós-mediação reflexiva” ou de “pós-elaboração”.

O fenômeno de integração ou de pós-meditação-reflexão é o fenômeno duplo que resume toda


a vida ativa da linguagem e pelo qual
1º os signos existentes evocam MECANICAMENTE pelo simples fato de sua presença32 e do
estado sempre acidental de suas DIFERENÇAS a cada momento da língua, um número igual
não de conceitos, mas de valores opostos para nosso espírito (tanto gerais quanto particulares, uns
chamados, por exemplo, de categorias gramaticais, outros tachados de fatos de sinonímia etc.);
essa oposição de valores, que é um fato PURAMENTE NEGATIVO, se transforma em fato
positivo, porque cada signo, ao evocar uma antítese com o conjunto de outros signos
comparáveis em uma época qualquer, começando pelas categorias gerais e terminando pelas
particulares, se vê delimitado, apesar de nós, em seu valor próprio [...].
A cada signo existente33 vem, então, SE INTEGRAR, se pós-elaborar, um valor determinado [],
que só é determinado pelo conjunto de signos presentes ou ausentes no mesmo momento34.

Portanto, a posição de Saussure é clara: dizer que o signo é somente aquilo que os outros não são só é
verdadeiro porque secundariamente o valor do signo vem se integrar ao signo. A definição do termo pela
oposição, com isso, é sempre uma segunda determinação. A determinação do valor (da positividade de língua) é
necessariamente uma determinação dupla ou uma dupla determinação: uma língua, ou mais geralmente todo
sistema de valores, constitui-se sempre em duas etapas. Ela é dupla não no sentido em que o significante
determina o significado que determina reciprocamente, por sua vez, o significante, também não no sentido em
que os termos se determinariam uns aos outros reciprocamente, mas no sentido em que eles se constroem em
dois momentos: a dualidade aqui não é mais recíproca, mas hierárquica. Ou seja, um valor é determinado ao
mesmo tempo por um jogo diferencial e por um jogo opositivo.
Saussure separa diversas vezes a diferença e a oposição, e sempre da mesma maneira. Assim, ele compara a
língua e a escrita para extrair quatro traços principais de todo valor: o primeiro é arbitrário, o segundo é o “valor
puramente negativo ou diferencial do signo: ele retira seu valor exclusivamente das diferenças”. Esse traço é
cuidadosamente distinguido do terceiro:

Os valores da escrita agem somente como grandezas opostas em um sistema definido; eles são
opositivos, só se tornam valores por oposição. Há um limite no número de valores (Não é
exatamente a mesma coisa que 2), mas se resolve finalmente no valor negativo) 35.

32
Ênfase de Maniglier.
33
Ênfase de Maniglier.
34
ELG, p. 80.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 239


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O que ele retoma imediatamente a propósito da linguagem:

2) O valor negativo da palavra é evidente. Tudo consiste em diferenças. 3) O valor se torna


positivo graças à oposição, pela vizinhança, pelo contraste [...]. Esses signos agem, portanto,
não por seu valor intrínseco, mas por sua posição relativa, como em um jogo de xadrez36.

Saussure não somente distingue conceitualmente diferença e oposição, mas também distingue
conceitualmente a entidade determinada pela combinação de diversos traços diferenciais, que ele chama de
termo, daquilo que constitui mais rigorosamente o valor, que não é outra coisa que o termo redeterminado pelos
termos circundantes, ou seja, as oposições entre ele e os outros termos dados (sobre a base de suas diferenças):

O valor de uma palavra resultará unicamente da coexistência dos diferentes termos. O valor é a
contrapartida dos termos coexistentes37.

É preciso notar que, nesse nível, pode-se não levar em conta que o signo é uma entidade obtida de duas
substâncias ao mesmo tempo. Consideram-se os termos como dados e mostra-se que eles são necessariamente
determinados pelo que há em torno deles, pelo que eles não são. Pode-se muito bem estudar a língua até certo
ponto, abstraindo-se totalmente da natureza desses termos do ponto de vista das substâncias (fônicas ou
psicológicas) e do caráter preciso de suas diferenças, e concentrando-se somente nas relações entre os termos, ou
seja, precisa Saussure, na identidade ou não identidade entre eles, ou em seu número:

Uma apreciação sensata do que é o mecanismo de uma língua revela que há apenas uma
importância muito limitada em conhecer os valores absolutos que nela se encontram, contanto
que sua oposição – que não significa, aqui, sua diferença, mas apenas sua identidade ou não
identidade, ou, em definitivo, seu número – se ache rigorosamente observada38.

Não é necessário saber quais diferenças precisas um signo conjuga, mas somente o que há em torno dele,
aquilo pelo qual ele é substituível. Nesse sentido, chega-se a um sistema puramente formal, onde o que conta é
unicamente a posição dos termos uns relativamente aos outros. Pode-se considerar até certo ponto a
interioridade de um valor como uma caixa preta, o que se pode chamar, parodiando Quine, o princípio da
inescrutabilidade relativa dos valores. É possível descrevê-la não mais unicamente enumerando todos os seus

35
CLG, p. 139; SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale, op. cit., p. 269, n. 1932.
36
Ibid., p. 270, n. 1936.
37
Ibid., p. 259, n. 1864. Ver também os seguintes textos: “O valor de uma palavra não será jamais determinado senão pelo
concurso dos termos coexistentes que a limita; ou, para melhor se apoiar sobre o paradoxo em relevo: o que está na palavra
não é jamais determinado senão pelo concurso do que está em torno dela (o que está na palavra é o valor) – em torno dela
sintagmaticamente ou em torno dela associativamente. É preciso abordar a palavra de fora, partindo do sistema dos termos
coexistentes”. Ibid., p. 260, n. 1975, ênfase de Maniglier. “Esse valor resultará da oposição dos termos na língua”. Ibid., p. 263,
n. 1894, ênfase de Maniglier.
38
ELG, p. 210.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 240


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traços distintivos, mas colocando-a em um campo de termos aparentados, que são eles próprios combinações de
traços distintivos. É assim que Saussure procede no capítulo sobre o “mecanismo da língua”, a propósito do
termo “ensinamento”. Cada termo se define em relação a todos os outros, mas em uma proporção desigual: é
porque um termo não se opõe igualmente a todos os outros que ele pode ser determinado precisamente. Essa
hierarquia permite que haja uma parte do termo que varia e outra que não varia, de acordo com uma relação de
semelhança e dessemelhança, com dois termos se opondo mais quanto mais arriscam ser confundidos. A
diferença entre a oposição e a diferença é conceitual: trata-se de dois registros da variação. Além de supor que os
termos já estejam dados, a oposição supõe sempre uma variação na unidade, ou seja, um termo que varia e um
termo que não varia. Mas a diferença não é medida em relação a uma constante; ela é determinada, como
mostramos, somente pela correlação com outra diferença.
Essas duas relações estão, contudo, intimamente misturadas uma à outra. Há como que uma integração da
oposição na diferença. O traço distintivo determina a entidade linguística não somente ao qualificar ou
condicionar a costura [capitonnage] dos dois planos qualitativos, mas também agora ao permitir distinguir essa
combinação complexa de traços distintivos heterogêneos de outra combinação oposta no sistema. Nesse sentido, a
diferença funciona como critério da oposição. Reciprocamente, a distinção ou oposição entre os termos depende do
controle dos traços diferenciais. Um hispanófono terá dificuldade em distinguir entre “le vent” e “le banc”. Sabe-
se bem que a língua japonesa não faz diferença entre o “r” e o “l”; Pinker o ilustra com uma brincadeira de gosto
duvidoso feita pelo linguista Masaaki Yamanashi, que o acolheu um dia dizendo-lhe: “Aqui no Japão temos
muito interesse na ere(i)ção [erection] de Clinton”39. Só agora o conceito de traço distintivo adquire todo seu
sentido. É possível dizer então que o traço de labialização distingue a entidade “total” [sommeil] (sono) da
entidade total [soleil] (sol). É assim que se explica o fenômeno para o qual Saussure chamava atenção, que estará
no núcleo da noção de fonema e que ele chamava de “flutuação”: a realização de um valor pode ser alterada em
proporções bem substanciais, desde que ela não recubra um valor existente40. Assim, /sommeil/ (sono) pode
perder seu traço de labialização e se pronunciar /sonneil/ ou /sommile/ desde que permaneça distinto de /soleil/
(sol) ou de /sommier/ (estrado da cama). Se uma palavra desaparece de uma língua, seu domínio de realização
(fônica e semântica) fica livre para os termos circundantes que assim mudam de valor, ainda que eles não tenham
mudado de natureza. Assim, [jugement] (julgamento) permanece [jugement] (do ponto de vista de seus traços
diferenciais), mas seu valor muda, o que pode fazer, a curto ou longo prazo, com que os traços diferenciais
inúteis se transformem.
Assim, a opositividade define o domínio da linguística “pura”, da língua “nela mesma e para ela mesma”. É
porque há redeterminação das diferenças pelas oposições e, logo, “determinação recíproca” dos valores uns
pelos outros que a linguística pode considerar esses termos como termos algébricos, ou seja, definidos
unicamente uns pelos outros em função de suas relações recíprocas. É o fundamento da linguística sincrônica.
Mas vê-se que essa autonomia da língua é secundária, e que ela é frágil. Pode se tornar necessário conhecer os
“valores absolutos”, especialmente quando um fonema se altera por razões materiais ou substanciais, e não
formais. Em outras palavras, pode ser necessário se interessar pela natureza dos traços diferenciais que servem

39
PINKER, Steven. O instinto da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 214.
40
Assim, o “r” em francês pode ser ápico-alveolar, ao contrário do alemão, o “t”, molhado, ao contrário do russo etc. CLG, p.
138.

A ontologia do negativo: na língua, verdadeiramente, só existem diferenças? 241


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para marcar as oposições. Seria possível mostrar que, do ponto de vista propriamente teórico, o objetivo dessa
teoria do valor é mostrar que de tanto falar uma língua termina-se por falar outra, ou para dizê-lo de outro modo,
que só se pode comparar os sistemas simbólicos com jogos à condição de perceber que as regras do jogo não
param de mudar à medida mesma que se joga. Contentemo-nos somente de notar que ela vale como uma
resposta para o problema filosófico da gênese do inteligível a partir do sensível, que se distingue das duas
grandes opções nas quais a modernidade filosófica se repartiu: o projeto de uma gênese empírica e o de uma
reconstrução transcendental. Ela afirma, com efeito, que é a pluralidade de níveis da sensibilidade que per mite
introduzir unidades que nem se encontram dadas na experiência, nem são introduzidas pela função sintética do
espírito. É a essas idealidades estranhas que, sob o nome de signos, somos entregues. Gilles Deleuze 41 tinha
então razão para fazer do critério “simbólico” – como terceiro face ao real e ao conceito, nem físico nem
moral, incorporal mas real – o primeiro critério que permite reconhecer o estruturalismo. Pode-se apostar
que se trata ainda de um critério para o futuro.

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41
DELEUZE, Gilles. Em que se reconhece o estruturalismo in: História da filosofia, t. VIII: o século XX. Rio de Janeiro:
Zahar, 1982, p. 271-303.

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Recebido em: 11 de fevereiro de 2020


Aceito em: 22 de junho de 2020

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