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Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva 


é o suor do meu rosto que rega as plantações:
Naquela roça grande tem café maduro 
e aquele vermelho-cereja 
são gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado 
pisado, torturado, 
vai ficar negro, negro da cor do contratado.
Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam, 
aos regatos de alegre serpentear 
e ao vento forte do sertão:
Quem se levanta cedo? Quem vai à tonga? 
Quem traz pela estrada longa 
a tipóia ou o cacho de dendém? 
Quem capina e em paga recebe desdém 
fuba podre, peixe podre, 
panos ruins, cinquenta angolares 
"porrada se refilares"?
Quem?
Quem faz o milho crescer 
e os laranjais florescer
Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar 
máquinas, carros, senhoras 
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar, 
ter barriga grande - ter dinheiro?
Quem?
E as aves que cantam, 
os regatos de alegre serpentear 
e o vento forte do sertão 
responderão:
"Monangambééé..."
Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras 
Deixem-me beber maruvo, maruvo 
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras
"Monangambééé..."
António Jacinto
1924-1991
Profecia de Nakulenga - Origem Kwanyama

Algo de estranho se agita nas águas


algo de estranho se arrasta na terra.
Era longe, ficou perto, agora é cá.
E o povo já foge.
Talvez até caia
um pau de omuhama
na estrada a indicar que para o rei
a morte vai chegar
a vida é breve.
Eles vêm de um país muito distante
e trazem para dizer coisas diferentes
que é preciso avaliar com atenção.
Cruzava o país e dos nobres eu via
os ricos currais.
Renovo a viagem
e que vejo agora?
Dos nobres agora não vejo os currais
mas vejo dos brancos
suas construções.
1982, Ondula, savana branca

Ruy Duarte Carvalho


O Canto do Martrindinde

O canto do Martrindinde
é um canto da cidade
vem pela noite dentro
cheio de ambiguidade

O canto do Matrindinde
é um cantar nacional  
veio do mato à cidade  
e tornou-se universal.

Ernesto Lara Filho


in O Canto do Martrindinde
Luanda, União/Endiama, 1989, p.6

Benguela, Angola

1932 - 1977

Poeta e escritor
O Elefante

O enorme elefante
É o animal mais infeliz
Da floresta

Todos
Até a pulga minúscula
E Asquerosa 
Lhe trepam no lombo

Homem que engole tudo


É como o pobre elefante:
De nada lhe vale
Ser trombudo

In Fabulema
UEA, Luanda, 1986

João de Melo
Luanda, Angola 1955

Poeta
Respiração das Folhas

sussurro a respiração das folhas


com ansiedade asmática.
colhendo litorais de mabangas
e espreitando o interior das jinguengas
numa manhã de orvalho.

há sempre olhos à espreita.


há sempre olhos à beira do tempo
plantados. quais outeiros de sons
e palavras medulares
cantando a respiração das folhas.

Conceição Luís Cristóvão nasceu em Malanje, em 1962


Voz de Sangue

Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem...


ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South 

Ó negro de África
negros de todo o mundo 
eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.

Agostinho Neto
in A renúncia impossível
Canto de nascimento

Aceso está o fogo


prontas as mãos
o dia parou a sua lenta marcha
de mergulhar na noite.
As mãos criam na água
uma pele nova
panos brancos
uma panela a ferver
mais a faca de cortar
Uma dor fina
a marcar os intervalos de tempo
vinte cabaças deleite
que o vento trabalha manteiga
a lua pousada na pedra de afiar
Uma mulher oferece à noite
o silêncio aberto
de um grito
sem som nem gesto
apenas o silêncio aberto assim ao grito
solto ao intervalo das lágrimas
As velhas desfiam uma lenta memória
que acende a noite de palavras
depois aquecem as mãos de semear fogueiras
Uma mulher arde
no fogo de uma dor fria
igual a todas as dores
maior que todas as dores.
Esta mulher arde
no meio da noite perdida
colhendo o rio
enquanto as crianças dormem
seus pequenos sonhos de leite.

O lago da lua 1999


Ana Paula Tavares
Nascida na Huíla, sul de Angola, Poeta e historiadora
Marimba

à memória do cego da Baixa

Dedicados a Óscar Ribas

marimba tocada

por dedos tão dextros

marimba que vibra

que chora e não fala

que lembra o lamento

da hiena na selva

e o grito selvagem

do negro no quimbo.

marimba saudosa

nos dedos do cego

pedindo uma esmola,

de roupa estragada

já velho e sem dentes,

marimba do canto

da paz e da guerra

que lembra o passado

dos olhos a verem,

da mão que não treme

da fala serena...
marimba que recorda o passado

e vive o presente

deixa a saudade no tempo futuro!

e os dedos tão dextros

tão cheios de calos

nas mãos que a correm

marimba não fala

o homem não vê!

mas marimba recorda

os tempos passados...

os tempos passados...

marimba recorda

e o pobre ceguinho

tocando a marimba

chora com ela

e recorda também

o tempo passado...

chorando, também

eu tenho saudades

do pobre ceguinho

tocando a marimba

os olhos sem vida

a voz sem expressão...

recordo... recordo... e choro com ele


nas horas amargas

marimba não fala

mas faz recordar.

Ruy Burity da Silva


Eco

os gritos da mãe

correndo com o filho morto para a morgue

... e o espaço vazio das ruas

os gemidos da mãe

correndo para a morgue

... na agonia da tarde

o vulto carregado da mãe

... e a certeza fria da noite

Arnaldo Santos
Herança de morte

Lírios em mãos de carrascos

Pombal à porta de ladrões

Filho de mulher à boca do lixo

Feridas gangrenadas sobre pontes quebradas

Assim construímos África nos cursos de herança e morte

Quando a crosta romper os beiços da terra

O vento ditará a sentença aos deserdados

Um feixe de luz constante na paginação da história

Cada ser um dever e um direito

Na voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança

Amélia Dalomba
IRONIA

Num reverso simulado

Cada escada dá um lado

Botão sem casa

Dissimula orfandade

Mais a dor do dente cariado

Soletro um chá calmante

Sorvo as promessas gota a gota

Carapau sem espinhas

Deitado em grelha inox

Em factor de brasa quase cinzas

É , o poeta brinca

Com coisas sérias

Nunca se arrepende

Mesmo que sério

Ri de si e de alguns

Sabes que o verso

É o braço armado do poeta


Que a palavra é lágrima

Derramando no papel

Um livro de mil páginas

Sabes que existem

Leis não escritas

Nos confins da diáspora da alma

Onde o tumus realiza

Actos irascíveis

Sabes que a ironia

É carne viva da poesia

Posta em papel acetinado

Rasga as vísceras

fere e dói a vista.

KimdaMagna
EM CONSTRUÇAO

Mangueira que treme de melodia

semba ou kuduro?

O chão ama corporalmente a manga, caída.

O pequeno riacho serpenteia

as lavras de suor e escassez

desconseguir a pantomina da cobra

entre as pernas do mais velho

adormecido no calor infernal

martirizado e vivo.

Que frescura indecisa

fica no meu sorriso, ao ver

a criança onde existe o meu sangue.

Beijar a terra sagrada

rasgando a minha face

para que possa colher o fruto

entre a piteira, o chão acre e puro

nas hortas, os cantares,ouvem-se

tenaz ,persistente, este povo


rasga as impossíveis incertezas.

Se morrer, será por exemplo

do nada eterno.
KimdaMagna
POETAS

“Jay Forrester demonstrou matemáticamente, com os seus modelos


computorizados de cidades,em que torna claro que qualquer coisa que
nos propomos fazer, com base no senso comum,inevitavelmente tornará
as coisas piores, e não melhores.”

Temos de confiar nos nossos cientistas para nos ajudarem a descobrir o


caminho mais curto, maspara o percurso mais longo do futurdependemos
dos poetas.

Um poeta é afinal, uma espécie de cientista, mas empenhado numa


ciência qualitativa em que nada é mensurável.

Nos seus versos, ele pode juntar meticulosamente peças do universo, em


configurações geométricas tão belas e equilibradas como cristais.

Os músicos e os pintores escutam e copiam o que ouvem.

Mutu kene dimi, kene ukwenze 


Pessoa sem língua, não tem vigor
A CURVILÍNEA RETÓRICA

A retórica… bem falar.

Defina-se o género, as diferenças genéricas:

A curva… por instante, a do quadril,

entre a púbis e os seios.

Cuidado!

Há várias finalidades numa acção,

perigoso mesmo, é uma finalidade

em muitas acções.

A retórica… é arte

Os comediógrafos observam

a pureza do vocabulário.

Lembro, há várias finalidades,

na curva d’um traseiro redondinho,

dialecta a minha essência ( erecto Ser)

em muitas acções.

No fundo é ela própria.

Tal como eu sou.

A sedução é a resposta sem questão

numa questão que não tem resposta.


Tu pensas… queres… sou.
KIMANGOLA
Terceiro dia do ano

No meio da estrada , afora, circulo me em animal metamorfose metal,


umas vezes paralamas, outras escape, por vezes limpo parabriso me.
Nesta singularidade normal e inteligível, outros vultos circulam por aqui,
só reconheço o retrato dela, um dia falei-lhe do espaço desintegrado, ela
aceitou e disse compreender. Confessou me sua morte interior, vinha dum
doloroso desengano, senti um ponto de contacto, quando distraidamente
me afagou os faróis de nevoeiro. Tinha um nome , mas não o queria usar
mais, preferia navegar na jangada sem leme , olhar as linguagens
desfilando nos seus olhos, repetir sempre o uso do primeiro vestido de
rendas e tafetá estreado nos seus treze anos. Com os anos as cores
desbotaram mas as rendas ficaram lembrando o rendilhado de sua
existência. E era assim que se apresentava ela , hoje , terceiro dia do ano:
um caos social, uma amálgama de dores , até a nostalgia a visitava ,
deixara de acreditar no que fosse. Aquilo, vê-la assim, fez me sentir a caixa
negra de uma qualquer intenção, que não sendo minha , ocupava o meu
espaço. Meu chassi retorcia se, desacelarei e sem travar coloquei me do
lado dela. Travamos conhecimento em plena via rápida e em andamento
lento diagnosticamo nos várias insuficiências, pusemos nos de acordo.

Seria uma via de sentido único e profundo, numa viagem para lá, sempre
para lá… no sentido inverso da noite e do esquecimento.

Foi assim que conheci o meu grande amor.

Kimang

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