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CLASSES SOCIAIS,

IDEOLOGIAS, PODER
POLÍTICO E RELAÇÕES
INTERNACIONAIS

1.-Reflexão sobre as Classes Sociais e o Poder Político.

1.1- Onde ficou a teoria das classes sociais ?

A Teoria das classes sociais, que é um tema central para


Sociologia, desapareceu estranhamente do menu, sem ter, sequer,
atravessado o triângulo das Bermudas. Se repararmos bem, tudo o
que existe de bom sobre este tema, é arquétipo e tudo que veio de
novo parece pouco e marginal relativamente às preocupações de
mainstream.
O desaparecimento da ortodoxia marxista-leninista, em termos
políticos, fez sucumbir o interesse funcional e estratégico na dita
teoria. O esquerdismo que anda na moda e no governo de alguns
estados europeus, como a Grécia, Portugal e a Espanha, não se
interessa pela teoria das classes sociais porque tem um conceito
substituto para o propósito de demolição sistemática dos pilares
do Estado e da civilização ocidental: o conceito de hegemonia e
con-ito que promove entre grupos hegemónicos e grupos
minoritários, ou mais precisamente entre o que essa corrente
entende por uns e por outros, apesar das velhas classes.
Por outro lado, não será indiferente perceber que os partidos
esquerdistas são constituídos por jovens e menos jovens oriundos
da burguesia urbana, sem qualquer currículo proletário, operário
ou camponês e ainda por cima com frequentes hábitos burgueses
que, para lá da coreogra0a parlamentar e política, emergem
traiçoeiramente quando menos se espera, dando origem a

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reiterados epítetos de” Esquerda caviar” ou de” Esquerda
champanhe”.
Houve, efetivamente, uma grande evolução nas classes sociais
do Ocidente desde as formulações de Marx, Engels e Lenine, a
ponto de transformarem em arquétipo o paradigma desses autores.
Efectivamente o campesinato passou a ser uma classe residual,
periférica e estiolante, sobretudo por via do êxodo rural, da
emigração, do envelhecimento no sector terciário e sobretudo pela
transformação indústria agrícola e extrativa numa impressionante
recon0guração tecnológica que transformou os agricultores
competitivos em empresários multifuncionais cienti0camente
habilitados, apoiados em tecnologias adaptadas a todas as fases do
processo produtivo. Brevemente teremos tanta di0culdade de
encontrar camponeses na Europa como a que existe para
encontrar índios nos Estados Unidos da América.
Por outro lado a classe operária, que continua a desempenhar
um papel visível nos centros urbanos, foi discretamente
considerada inútil para a revolução socialista por parte desses
mesmos esquerdistas, uma vez que consideram que essa fração do
proletariado se tinha aburguesado e, assim, tornado indiferente à
revolução e, pior ainda, desistente da destruição do Estado
burguês. O apelo a uma nova classe revolucionária de substituição
aparece ostensivamente aquando da crise de Maio de 68 em Paris,
como já tive ocasião de referir na minha obra ”Ciência Política:
Estudo da ordem e da subversão”(ed ISCSP,9ª edição 2017).
Persistente tem sido a infra classe urbana do Lumpen a quem
os marxistas dedicavam um indisfarçado desdém, e que alimentada
por novas formas de inadaptação à sociedade contemporânea, mais
do que de exclusão, continua a tornar-se evidente nos meios
urbanos do Ocidente que a contemplam com sucessivos programas
de apoio social.
Sobre a classe média pouco se diz de substantivo. Em termos
demográ0cos tornou-se evidentemente a classe dominante. Este
fator quantitativo, aliado à transparência da democracia liberal e
ao sistema democrático con0guraria a vitória desta classe modal
enquanto classe dominante. E não é isto que acontece.
De0nitivamente quem manda, em última análise, não é a classe
média dominante. Continua a ser uma minimamente representativa
plutocracia de existência transnacional que agrega a si, por

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cooptação, elementos oriundos da classe média superior, daquilo a
que já se chamou a tecno-burocracia, para integrar o círculo
exterior da mesma classe dominante, constituindo desta feita o
nível executivo de cumprimentos das políticas ordenadas por
aquela micro plutocracia e recebendo, em conformidade, os lautos
benefícios de franja que a passam a distinguir da coreogra0a modal
vulgar das suas origens.
As classes sociais não desapareceram. Apenas se
transformaram. Mas o essencial da atitude analítica do marxismo
em relação às mesmas continua a ser pertinente desde que
adaptado às novas circunstâncias.
Para efeitos de subsequentes investigações deixo aqui algumas
linhas de interrogações que parecem ainda não respondidas
cabalmente:
1)- De0nição, natureza, âmbito evolução da microelite
plutocrática. O processo da concentração progressiva da riqueza na
mão de cada vez menos pessoas, numa época de globalização.
Limites do despotismo do capital 0nanceiro e a partilha desigual do
poder.
2)-O círculo exterior da classe dominante: a tecno-burocracia
executiva; cooptação sucessiva e simultânea, consistência
multigeracional, identidade, per0l típico;
3) O lumpen dourado- os celebs como fracção da classe média
provisoriamente na ribalta, a precariedade do êxito numa
sociedade de híper-informação e de consumo acelerado em massa,
o ciclo de vida da celebridade.
4) A consciência corporativa como impedimento geral de
constituição de uma classe média ”em si e para si”.
5) O lumpen como infraclasse social :continuidade existencial
aparente numa sociedade de mudança permanente.
6) A absorção do proletariado pelas classes médias.
7) A destruição das classes médias pela mundialização da
hegemonia da Ordem Mundial da elite globalista /Great Reset.
(“You will own nothing but you will be happy”).

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1.2- O erro do modelo único

Criar um modelo único para traduzir a estrutura social em


termos de estrati0cação não só constitui uma tarefa difícil de
realizar como, no 0nal, acaba por consagrar um modelo arti0cial e
potencialmente inútil se não for operacionalizado como conceito
complexo. Isto é assim, desde logo, em virtude da diversidade
cultural subjacente. No Indostão, onde vive muito mais de um bilião
de seres humanos, continua a ter uma in-uência determinante o
sistema de varnas e castas, de origem religiosa, e que determina
que só os brâmanes possam ser sacerdotes, os que xátrias
governadores e chefes militares, os vaisias comerciantes ,os sudras
trabalhadores braçais, excluindo uma grande parte da população
considerada intocável os párias e que incluem pessoas que vão
desde o presidente república até às multidões de desgraçados
totalmente deserdados e que vivem à margem da sociedade. O
sistema tribal na África Negra condiciona ainda e de forma
decisiva a estrati0cação social mormente no meio rural. O
antecedente feudal da Europa ainda tem o seu peso para o status
herdado, e as novidades dos últimos séculos relativas à imagem
pública e à veneração das multidões relativamente aos seus ídolos,
determina outro tanto.
É evidente que na universidade é obrigatório classi0car e
sintetizar. Daí a utilidade do sistema classi0catório mais amplo
produzido pelo marxismo para as classes sociais(lumpen de ouro,
burguesia 0nanceira, industrial, comercial e agrícola , classes
médias com consciência corporativa dos seus múltiplos interesses e
desempenhos, proletariado que inclui os trabalhadores da indústria
e do campo, operários e camponeses como antigamente se dizia, e,
0nalmente o lumpenproletariat, os marginais e os pobres que
vivem da mendicidade, da prostituição, de trá0cos ilícitos e assim
por diante. Como é igualmente útil classi0cação mais divulgada e
simples de classe alta classe média(dividida em média alta, média
média e média baixa ). Mas corresponderão uma e outra, a
qualquer realidade?
Comecemos por um exemplo baseado na vida real: conheço um
jovem na casa dos 30 que é dono e patrão de uma o0cina de
reparação de automóveis e venda de peças perecíveis para os
mesmos, contratando quatro empregados. Ao 0m-de-semana o
mesmo senhor é músico e toca pro0ssionalmente numa pequena

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banda para animar festas e eventos sociais. Tem, ainda, uma micro
empresa de escavação, na qual o próprio opera como condutor de
uma retroescavadora sendo contratado por vários empreiteiros
para o efeito. É casado com uma pro0ssional por conta própria, e
ambos possuem um pequeno terreno onde cultivam produtos
vegetais e criam animais, consumíveis para casa. Quid juris? É
patrão? Empregado? Industrial? Camponês? Tudo ao mesmo
tempo? É claro que a solução parece fácil: o status predominante é
que classi0ca decisivamente o “de cujus”, ou seja a sua actividade
principal de patrão de 0rmas com duas vertentes. E assim deve ser
entendido. Todavia, este exemplo mostra a di0culdade
classi0catória da realidade complexa actual, bem como da sua
potencialidade dinâmica sistemática. Alarguemos a perspetiva. As
oito principais fortunas individuais do mundo somadas, concentram
mais valor económico do que a metade mais pobre da humanidade.
Estes oito grupos, che0ados por oito pessoas físicas, o que são em
termos de classes sociais e poder político? O que é este super-
capital 0nanceiro que insiste em concentrar-se alargando o fosso
entre os mais ricos e os ricos, bem como o resto da sociedade,
designadamente, os cada vez mais pobres? Que articulação têm
estes super-milionários com o poder político vigente? Não é preciso
ser adivinho para saber que existe e funciona, desde há muito
tempo, uma promiscuidade simbiótica deste grupo e os poderes
públicos nacionais e internacionais de corrupção, de in-uência
determinante, de lobby privilegiado, de agência através de gente
de mão, que é do conhecimento público e tolerado ou aceite, hoje
em dia, pela alienação ataráxica das massas como um “fact of life”.
Em que classe se inserem esses pouquíssimos membros do
super-capitalismo? Empiricamente é óbvio que se rodeiam
sistematicamente de alguns familiares próximos que fazem parte
do núcleo duro da sua ação económica, 0nanceira e política, mas
constituem com o restante dos familiares inúteis e também de
outros aderentes decorativos, uma côrte de parasitas de luxo,
tecnicamente pertencentes ao lumpen de ouro, e, ainda,
desempenham a sua função através de uma córte de técnicos e
empregados de grande nível pro0ssional, oriundos das altas classes
médias, que com eles e sob a sua direcção estratégica, constituem
o núcleo duro da nova classe dominante. Como é que uma
realidade destas se traduz gra0camente? Cabe aos sociólogos
perder um pouco mais de tempo na investigação e síntese desta
realidade contemporânea. Continua a fazer algum sentido de falar

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de burguesia como sendo os detentores dos instrumentos de
produção bem como do capital 0nanceiro? Penso que sim, dentro
da nova apreciação acima enunciada. Fará algum sentido
considerar as classes médias separadas e não uni0cadas numa
única, subdividindo-as por corporações, uma vez que é o link
corporativo o ideológico que as motiva? Sem dúvida alguma . E que
dizer do proletariado? O campesinato, tal como os marxistas o
identi0caram é hoje uma classe residual em termos demográ0cos e
a agricultura, a pecuária, a silvicultura, a piscicultura estão cada
vez mais transformadas em indústrias. Mais ainda do que
aconteceu no sector mineiro e das indústrias extrativas, onde a
lógica operária evoluída ainda está muito visível. Desde há muito
que a escola de Frankfurt e o esquerdismo que originou o Maio de
1968, denunciaram a evolução da atitude operária em direcção a
uma acomodação ao capitalismo, tendo perdido o seu ímpeto
revolucionário. E faz sentido separar hoje os trabalhadores de
maiores salários das classes médias? E que dizer da há muito
insistente aristocracia operária em relação às outras camadas
menos afortunadas do antigo proletariado ? A tendência da
academia perante uma di0culdade desta natureza é a de ignorar o
problema, simpli0cado numa não resposta. Esta atitude parece
inaceitável.
Do ponto de vista estritamente político interessa-nos a riqueza
estratégica do cada vez mais rico, poderoso e pequeno
hipercapitalismo, dos seus aliados de classe recrutados por
cooptação, quer na restante “burguesia” quer nas altas classes
médias de alta formação académica, sustentando a alienação geral
que a sociedade de consumo, para sobreviver, impôs ao resto da
humanidade, bem como interessa o conjunto de meios pelos quais o
faz.

1.3- O erro da Classe Média única.

Os teóricos marxistas principais habituaram-nos, e bem, ao


princípio de de0nir a chamada classe média sempre no plural
(portanto classes médias) e nunca no singular, por várias razões
das quais indico as principais acrescentando outras minhas.

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1ª)-Entre a burguesia e o proletariado, na lógica marxista,
existe uma zona da a estrati0cação social , que não participa nem
directa nem inexoravelmente no processo produtivo, embora o
possa apoiar de forma indirecta ( como por exemplo nas limpezas e
arrumações físicas, na burocracia, na segurança, no apoio social,
na decoração, em creches para os 0lho dos trabalhadores e em
zonas de distensão física, no catering e assim por diante). A maioria
desses agentes pertencem às classes médias e têm como função
melhorar o ambiente de trabalho tornando-o mais social, mais
estimulante, mais amigável, mais simpático e mais acolhedor. Mas
tecnicamente não são indispensáveis ao processo produtivo nem
sequer nele participam directamente. Temos aqui , pois, vários
casos típicos de agentes das classes médias.

2º)- Se é muito duvidoso que as classes médias constituam


uma só classe em si, ou seja se pela proximidade de rendimento,
gastos, consumos, cultura e costumes se integram todas as
pessoas próximas numa mesma classe, muito mais duvidoso é que
constitua uma só classe para si, uma vez que não têm consciência
de classe unitária ou essencialmente comum. As classes médias
agrupam os seus interesses económico- sociais por via da sua
pro0ssão. Por conseguinte a consciência que impera é uma
consciência corporativa . Exempli0cando com um facto que ocorreu
concretamente: perante uma proximidade muito provável de uma
greve dos médicos, um casal constituído por um enfermeiro ou
0sioterapeuta e uma médica, interrogados por uma cadeia de
televisão sobre se participariam ou não activamente na greve, se
obteve como resposta da médica a adesão segura à greve e por
parte do consorte a resposta de que apenas se tratava de assuntos
de médicos e que ele era apenas 0sioterapeuta ou enfermeiro.
Obviamente que aquele casal pertencia à mesma classe média mas
tinham consciências corporativas paralelas.

3ª- A estas razões é , ainda, razoável insistir que entre um


casal de jovens que apenas em conjunto conseguem suportar um
arrendamento num apartamento peri-urbano e custear uma
modesta sobrevivência respectiva, o pagamento dos impostos e as
prestações dos bens de consumo essenciais dos quais se socorrem
e uma outra família constituída por dirigentes superiores da função

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pública ou privada, de artistas de renome ou equiparáveis, a mero
título de exemplo, temos um abismo de diferença social, que
impede objectivamente de os incluir no mesmo estrato.

4ª-Ao invés, o que normalmente aproxima os membros das


classes médias é a sua origem familiar, referindo-me em especial
ao modelo ocidental.

5ª- Não é razoável criar um modelo universal. Um país


gigantesco como a China que partiu de uma estrutura feudal
evidente através que uma revolução socialista devastadora, não
pode ser comparado a outro país gigantesco como a Índia onde
impera uma religião baseada no nascimento e na estrita
estrati0cação por castas ou varnas, neste momento em processo de
neo fundamentalismo, e onde, por esse sistema 1/3 da população é
considerado intocável (os dahlit), nem tampouco a um país africano
como o Congo ou Angola ou a África do Sul, aonde, ainda hoje
impera o sistema tribal, a par de um modelo urbano mais
ocidentalizado ou mais socialista, já para não falar de países árabes
com grandes porções de deserto, tribalismo e nomadismo
sistemáticos e uma outra religião que existe como ideologia de
Estado e enforma a estrutura jurídica e política.

A teoria das classes sociais e da estrati0cação social não está


na moda. Mas é fundamental perceber que desde o tempo em que
estava para agora, houve mudanças substantivas que não se
compadecem destes alheamentos cientí0cos.

2- Classes sociais e poder político numa era de


globalização

Uma novidade da análise social do período pós primeira


guerra fria consiste na ignorância sistemática e reiterada do
relacionamento entre a estrati0cação social e o poder político. É
claro e consabido que se deve à escola marxista o desenvolvimento

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desse tema e de tal relacionamento em especial. Mas a ciência
social comprometida com o establishment vigente, aproveitou
tacticamente a evolução que o sistema de estrati0cação em classes
sociais sofreu no mundo, com a generalização de uma pequena
classe média consumista maioritária e o encolhimento do núcleo
central da classe dominante pelo velho principio e mecanismo da
concentração progressiva do capital 0nanceiro, teoria que também
é tributária a mesma escola, para 0ngir que o tema não existia ou
carecia de qualquer interesse cientí0co. E assim foi soterrado. Já
me referi este assunto em escrito anterior, mas sempre direi que a
redução quantitativa e a aproximação funcional do núcleo central
da classe dominante, detentora estratégica do capital 0nanceiro, e,
por essa via, subordinadora do poder político determinante, não
deve a sua situação actual apenas ao mecanismo das fusões e das
concentrações empresariais, nem tampouco apenas a algumas
participações cruzadas do capital 0nanceiro, mas ao sistema de
híper-sociedades anónimas de capital muito disperso, inde0nido e
volátil em termos de posse, factos que permitem que minorias
concentradas e organizadas dentro dessas sociedades, exerçam o
poder dominante e o mantenham, sem risco de ameaças de
sindicatos de capitalistas ultra minoritários. A redução demográ0ca
real dos capitalistas estratégicos do topo, já não permite um
exercício directo e permanente ao nível dos estados e das
organizações internacionais fundamentais. E é assim que a tecno-
burocracia passa a ser cooptada a partir das camadas superiores e
médias da classe média, por via das suas competências e da sua
subordinação sistemática aos interesses hegemónicos da primeira
fração referida, constituindo a coroa circular exterior que compõe a
nova classe dominante. É com este exército de gestores, de
técnicos, de políticos, de tecnocratas, de executivos, de
conselheiros, de decisores que o capital 0nanceiro exerce
consistentemente a sua dominação. É evidente que a renovação
desta coroa circular se faz recorrendo aos velhos métodos da
aristocracia, de que, de facto, é sucessora material, sem contudo
ter tido tempo, interesse e disponibilidade para exercer a
correspondente coreogra0a das elites de outrora. Funciona uma
certa sucessibilidade dentro da cooptação, mas existe uma
renovação do conjunto, com entradas de novos mais aptos e saída
de menos adequados e úteis. No fundo estamos perante uma
renovação na continuidade.

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A ideia peregrina de que estávamos para 0car de0nitivamente
num novo mundo unipolar sem qualquer concorrência séria a nível
estratégico, permitiu, todavia, a arrogância das políticas encetadas
por Margaret Thatcher e Ronald Reagan que levaram ao regresso
do liberalismo e à concomitante tentativa de destruição do estado
social, encetado a partir do New Deal dos anos 30. A agenda
neoliberal passou a determinar uma nova desregulação da
economia, a abertura de todos os sectores ao capital 0nanceiro
internacional, a destruição de fronteiras e a globalização
correspondente, a economia de casino, concertada com uma
promiscuidade completa entre as falsi0cações das agências de
notação, por um lado, e a venda massiva de produtos económicos
contaminados pela especulação e falsidade, por outro, que deram
origem a catastró0ca crise de 2007 e 2008.
Em termos políticos a nova pseudoelite dirigente, circulando
livremente entre as secretarias dos grupos económicos e os
gabinetes do poder político, trouxe daquelas para estes a cultura
da arrogância, do quero posso e mando, do desprezo por eles que
estão abaixo.
Controlados os poderes políticos por este esquema, foram
destruídas soberanias, destruídos sectores industriais inteiros,
vendidas parcelas gigantescas do poder bancário, postas em
comum matérias-primas valiosas, sempre com um desdém
extraordinário para o que ia acontecendo ao povo anónimo, ao novo
proletariado e a nova classe média baixa, aos remanescentes
agricultores e silvicultores, aos criadores de gado sobrantes, ao
sector primário, aos empregados, aos estudantes, às novas
gerações, a todos aqueles que por uma razão ou por outra, não
tinham conseguido cooptação para aceder ao conforto da classe
dominante, ainda que na sua periferia, mas que por efeitos das
redes sociais, da sociedade informação, da globalização
instantânea da comunicação, do colapso do segredo, olhavam
estupefactos para está evolução alucinante, para a sua
marginalização de0nitiva, na maioria dos casos, para uma nova
desigualdade trazida e posta em marcha como uma epidemia.
Curiosamente o Centrão, proprietário do poder político para servir
os interesses dominantes no esquema acima referido, tinha na sua
direita os novos liberais, convictos ou adequados e á sua esquerda,
a esquerda que detestava as multidões e a sua cultura bruta,
redutora, primária, imediatista, tacanha e de péssimo gosto

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estético. Como este desdém não depende do género nem da etnia, é
perfeitamente compaginável com um novo código ideológico da
correcção política. O povoléu não percebia o porquê de tanta
destruição e deslocalização, de tanto e contumaz desemprego, a
par das torrentes ameaçadoras de terrorismo e de refugiados que
pareciam fazer parte do mesmo fundamentalismo odioso e odiado.
Os alternantes o0ciais do Centrão geriram os dossiers com um
mesmo enfado e superioridade apriorística. Chegamos assim à
vitória dos populismos, ao assanhar crescente das extremas
direitas, ao anti-europeísmo militante, a palhaços que chegam a
líderes (Brasil, Itália, e não digo mais) ao princípio do 0m do
establishment. Uma de duas reacções vai prevalecer: ou um recuo
nas elites habituais com grandes concessões ao populismo ou o
colapso violento e encadeado das peças deste sistema.
Pelo andar da carruagem quando acordarem já vai ser tarde.

3.- Em vez da luta de classes


Apesar do que 0cou dito no número anterior, sobre a
constituição da nova classe dominante, e para muitos
estranhamento, não se desenvolveu uma nova luta de classes
consequente. A0nal, manteve-se a situação e análise dos
esquerdistas dos anos 60 do século passado, designadamente de
Herbert Marcuse e Cohn-Bendit sobre o aburguesamento da classe
operária e a consequente perda da respectiva apetência
revolucionária, fenómeno ao qual se juntou o, desaparecimento
progressivo, em termos demográ0cos, da importância da fracção
do campesinato, por via da industrialização da Agricultura, classe
que se tornou dependente do grande comércio e que igualmente
deixou de servir como aliada para efeito da revolução socialista.
Efetivamente a evolução do da conjuntura internacional, sobretudo
depois do 0m da primeira Guerra Fria , no sentido da
implementação da globalização, do liberalismo económico
internacional, da abertura das fronteiras e do comércio livre, das
privatizações de sectores públicos, se consolidou um conjunto
estratégico convergente de decisores internacionais, de super-
burocracia e de uma rede de empresários secundários que
alargaram a coroa circular dos associados ao núcleo central da
classe dominante referida no número anterior. Este conjunto

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costuma designar-se, em geral, por establishment ou, em português
mais simples, por sistema. O Sistema é, pois, o conjunto de
bene0ciários gerais e de servidores hierarquizados que compõem o
aparelho dominante, o qual numa lógica Althusseriana seria
constituído por uma infraestrutura económica e uma superstrutura
política e ideológica, na última das quais se contava o domínio não
só dos Estados como das comunidades internacionais, e das
organizações internacionais anexas, como hardware respectivo, em
articulação com os media, com as redes sociais, com a industria
cinematográ0ca, com a arte e a cultura adequadas, como software.
Esta enorme rede funciona integradamente e in-uencia a sua
própria sustentabilidade quer por acção quer por omissão, criando
candidatos, cooptando outros tantos, remunerando-os com imagem
e proventos, rejeitando os que não servem ao projecto,,ora
favorecendo ora marginalizado ao mesmo tempo. Até aqui esta
monstruosa rede tem saído vitoriosa ,embora a sua política
pública tenha evoluído no sentido da catástrofe. Primeiramente
foram as crises económicas sucessivas de estagnação, de fraco
crescimento económico, de de-ação, de desemprego, as quais
tiveram picos de colapso nos anos de 2007 e 2008 com a enorme
crise económica cujos os efeitos perduraram até hoje.
A classe política adjacente a este projecto governou num
aparente pluralismo, alternando ao centro com formações
supostamente adversárias, mas que no essencial comporiam a
agenda e os propósitos da nova classe dominante. Para trás 0caram
milhões cidadãos afectados pela deslocalização das indústrias, pela
liberdade concorrencial no comércio dos novos gigantes
industriais, pela exploração da Agricultura por parte do retalho de
grande superfície, pela natureza hermética das elites governantes,
pela insu0ciência da formação académica para o êxito, e o que é
mais grave, pela arrogância e o desdém com que essa classe
política e os meios de comunicação social ao seu dispor trataram os
marginalizados, transformando-os em revoltados. Nem as
crescentes votações em partidos populistas de nova extrema direita
na Europa e do Ocidente em geral, nem o processo que culminou
com o referendo do Brexit, no Reino Unido, serviram de aviso
su0ciente para que alguma modéstia, espírito crítico, realismo
político, humildade académica, in-uenciasse o partido dos novos
decisores políticos no sentido de perceber a revolta generalizada
que contra eles se montava. Chegamos assim a eleição esmagadora

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de Donald Trump para ser o 45º presidente dos Estados Unidos da
América. É sintomático que dos cerca de 230 maiores jornais e
revistas diários norte-americanos, apenas 10 tenham apoiado o
candidato Donald Trump. As grandes cadeias de comunicação
social, vendidas ao sistema, concertaram-se no assassinato político
e na vexação pública do milionário contribuindo para a sua vitória
impensável. A vitória do novo presidente foi conseguida através de
uma coligação negativa de grupos de marginalizados pelo sistema,
gente da classe média cuja situação piorou por causa dele,
desanimados pela impenetrabilidade do sistema, revoltados pela
agenda fracturante da esquerda que a nova elite dominante
resolveu implementar para agregar assim frações que outrora eram
contestatárias urbanas, de grupos minoritários ligados ao género e
questões conexas.
O complexo militar industrial foi igualmente derrotado em
parte, uma vez que a abertura da segunda guerra Fria, criou uma
hostilidade absurda para com as ditaduras que mantinham o
Egipto, a Líbia, o Iraque, a Síria, cujos colapsos criaram a Terceira
Guerra Mundial, ou ainda com a nova Rússia de Putin/Medvedev,
como pano de fundo para favorecer os orçamentos de
rearmamento.
Todavia, o estrago está feito. Muito di0cilmente pode haver
uma reversão do processo histórico. Para exemplo temos aí a
tentativa de anular o referendo do Brexit no Reino Unido com uma
votação parlamentar e com a hipótese de novo referendo que anule
o primeiro, ou ainda com uma di0culdade tão grande de controlar
os dossiers do mesmo processo que torne, na prática, inviável a
decisão soberana do povo britânico.
O sistema ainda não percebeu.

4- O regresso camuflado da luta de classes

A luta de classes foi, durante a maior parte do tempo da


História, um processo opressivo da pequena elite dominante sobre
os pobres, os trabalhadores indiferenciadas, a pequeníssima
burguesia e, em geral, contra as restantes frações sociais
dependentes.

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A revolução norte-americana e a revolução francesa abriram o
caminho da luta vitoriosa da burguesia contra a mesma elite
dominante tradicional. Napoleão foi um dos resultados mais
bizarros dessa substituição de classes. Depois da sua derrota em
1815, inicia-se o período das revoluções liberais, dirigidas pela
burguesia ilustrada, militar ou político-administrativa, contra o que
sobrava do antigo regime, aliando-se e dirigindo as massas
populares em processos subversivos. As massas, depois, seriam
deixadas ao abandono mediante a introdução de novos códigos, de
novas leis e do novo regime económico de natureza liberal. O
laissez faire, laissez passer que le monde và de lui mème era
0nalmente vitorioso em todo o seu esplendor e este programa mas
não fez mais do que enriquecer a nova burguesia à pala das
nacionalizações feitas à Igreja Católica e da sua distribuição pelos
amigos (que mais não foram do que con0scos feitos às extensas
propriedades dos conventos e das igrejas, acabando nos próprios
edifícios geralmente históricos e de grande dimensão, postos, a
breve trecho, em hasta pública para que os novos burgueses
vitoriosos os pudessem arrematar por confortáveis importâncias
que encheram, ainda assim, o erário público depauperado). Na
segunda metade do século XIX as revoluções assumem um carácter
nacionalista. Mais uma vez a nova burguesia ascendente,
mobilizando as classes trabalhadoras e os povos dependentes em
geral, se guindaram às esferas do poder local, regional e central,
dando o primeiro pontapé de saída para um imperialismo
transcontinental mais descarado e de pendor extorsionista, que,
por sua vez, abriu as portas para as ideologias de extrema direita,
desenvolvidas, sobretudo, a partir do ano de 1919 com o 0m da
primeira Grande Guerra Mundial acompanhada da trágica
pandemia da gripe espanhola ou pneumónica. Em Portugal, fomos,
discretamente, precursores neste movimento com a ditadura do
general Pimenta de Castro em 1915 e com a ditadura do doutor e
Major Sidónio Bernardino da Silva Pais, chamada república nova ,
apoiada pelos cadetes da Academia Militar.
Em 1919 foi fundado o Partido fascista em Itália e nesse
mesmo ano foi criado Partido dos Trabalhadores da Alemanha,
mais tarde renomeado de Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores da Alemanha, o Partido nazi. Em 1917 Lenine e
Trotsky transformam a revolução burguesa de fevereiro (do senhor
Kerenski) na primeira revolução socialista vitoriosa do mundo.
Mais uma vez é a pequena burguesia que formando uma vanguarda

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subversiva dirige as classes dependentes contra a aristocracia do
poder e do dinheiro, tomando conta de tudo na Rússia. A crise
económica de 1929 foi muito parcialmente resolvida (cerca de 1/3)
com o New Deal do presidente Roosevelt e só com envolvimento
dos Estados Unidos na segunda grande guerra mundial,
aproveitando o magní0co pretexto do bombardeamento de Pearl
Harbor, e depois, com a globalização possível do plano Marshall no
pós-guerra, e da cadeia das alianças militares che0adas sistemática
e exclusivamente pelos Estados Unidos (NATO,CENTO, CEATO,
ANZUS, aliança para o progresso, pacto de Bagdad, com a
ocupação do Japão pelo General MacArthur, a tutela geoestratégica
da Coreia do Sul, de Taiwan, das Filipinas, e assim sucessivamente)
foi possível pagar o resto do estrago do Crash bolsista e sustentar
o progresso aparentemente ilimitado da hegemonia norte
americana contra o bloco socialista do pacto de Varsóvia, a
República Popular da China, Cuba, Vietname do Sul, Coreia do
Norte, e outros aliados menores.
O processo da independência das colónias europeias depois de
1945, ao abrigo da nova Carta da ONU, não entregou o poder dos
novos países que triplicaram o número de Estados (os cerca de 50
do 0nal da guerra passaram para cerca de 150 do 0nal da Guerra
Fria) à classe popular dessas ex-colónias mas sim ás suas novas
elites nacionais que saíram dos movimentos terroristas e
independentistas que haviam combatido as metrópoles respectivas,
apesar do 0gurino para-marxista que ostentavam essas novas
repúblicas populares. O processo, quando analisado de um ponto
de vista sociológico, permite concluir uma tendência geral e
uniforme: da revolução de independência norte-americana até ao
triénio que marca o 0nal da Guerra Fria(1989 a 1991) assistimos
ao período de ouro da emergência e da consolidação das classes
médias no poder político, nos sectores administrativo, burocrático e
militar, com tudo o que isso implica do ponto de vista da ideologia
dominante, sendo certo como o é, o princípio marxista -leninista de
que ideologia da classe dominante é a ideologia dominante que é
enforma e informa o Estado.
O presidente Ronald Reagan e a primeira ministra Margaret
Thatcher derrotaram Rússia de Mikhail Gorbatchev e o colapso
subsequente da administração de Boris Yeltsin. Não perderam
tempo em desmantelar, peça a peça, o sistema social-democrata da
economia intervencionista e tributária que con0gurou o Estado

15
social avançado (de que foi paradigma maior o chamado modelo
sueco) privatizando os investimentos e equipamentos mais
insuspeitos, muitos deles garantes da própria soberania nacional,
como foram as minas, os correios públicos, as autoestradas, os
portos e aeroportos, as companhias de eletricidade, gás, as de
distribuição desses bens e serviços a título de exemplos).
O capitalismo social democrata deu origem ao “capitalismo de
casino”, desregulado, globalizado, falsi0cado (lembremos as
mentiras e omissões feitas pelas grandes agências de notação
apadrinhando a venda bolsista de lixo), apropriadamente chamado
de ”anarco- capitalismo” . Este delírio generalizado, além de
enfraquecer, de uma maneira geral, os poderes políticos,
subordinando-os ao poderio económico transnacional,
desencadeou a catastró0ca crise de 2007/2008 chamada crise do
subprime, provocando, por sua vez pseudo solução maligna de
imprimir triliões nas moedas dominantes tradicionais e injetando-as
na salvação dos grandes bancos e na economia em crise. Esta fase
está aproximando-se rapidamente do seu 0m. Já começou o novo
ciclo subsequente, do império da moeda virtual, da concomitante
destruição progressiva da circulação 0duciária, acompanhada da
ditadura electrónica sobre as populações e os respetivos consumos
e desempenhos. É chegado o Grande Reset, o pesadelo orweliano
de uma ditadura transnacional camu-ada em que a propriedade
privada é posta em causa (a mantra do Fórum Económico Mundial
não é mais do que you will have nothing but you will be happy.). O
Império contra-ataca. Trata-se, naturalmente, do império do
grande capital 0nanceiro apátrida, globalizado, transnacional, que
manda nos governos e nos centros de decisão internacional. E a
vítima principal será, desta feita, a grande classe média, até há
pouco tempo dominante. De crise em crise vai de0nhar
progressivamente, vigiada e chipada como os animais, tal como
aconteceu aos judeus na Alemanha nazi, até se chegar ao
extermínio da solução 0nal. Desta vez a primeira vítima serão os
”comedores inúteis”. Depois serão outros. A luta de classes
continua. De certa forma voltamos ao princípio. Para pior.

5- Quem manda? Forças, fraquezas, oportunidades e


ameaças.

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Quem manda? é o título de uma notável obra do meu saudoso
colega de sempre professor Doutor António Marquess Bessa e o
resto do título constitui a conhecida dialética múltipla da análise
SWOT. De facto falta fazer uma re-exão profunda sobre quem
manda no sentido quantitativo, ou seja, na prática, quem e quanto
manda. Uma resposta linear e simples está errada. Aliás, o erro
grosseiro e sistemático das teorias da conspiração mais
rudimentares. Há sempre uma elite restrita que manda tudo. A
experiência política, autárquica, governativa, parlamentar,
internacional, partidária, de organizações não-governamentais,
grupos de pressão e de grupos de interesse, demonstram, à
saciedade, a impossibilidade de continuar a acreditar nesse modelo
tão interessante para 0cção terrorista conspirativa. Desde logo
por causa do peso da burocracia e da sua quota-parte instalada de
poder. Curiosamente, com a substituição do pensamento marxista
clássico pelo pensamento marxista esquerdista, deitaram-se fora
várias peças fundamentais para a percepção, compreensão e
discernimento político. Uma delas foi teoria da burocracia. Era
tempo de voltar aos escritos mais famosos sobre burocracia a
começar pelos da insuspeita Hanna Arendt. Lembro-me, aqui, de
citar uma falecida senhora, aristocrata e terra-tenente que repetia
entre duas garfadas no bolo inglês do chá das cinco que uma
fazenda agrícola devias ser tão grande que até chegasse para os
donos. Ouvia-a eu, muitas vezes, recitar esta frase e nunca mais
esqueci dela. Grande verdade. Ora com o poder acontece
exactamente o mesmo, mutatis mutandis,
O que signi0ca que há uma prioridade de apropriação do
poder por parte da burocracia permanente relativamente aos
dirigentes do topo da política, os primeiros claramente
permanentes” e resistentes às crises que se sucedam e os segundos
claramente efémeros, amovíveis e circunstanciais. Calculou não ter
de explicar a todos os que já passaram pelo poder, durante um
tempo razoável, o que é ter de pactuar com a burocracia para
poder exercer o poder. Esta equação merecia ser escalpelizada e
dissecada de uma forma académica, para se compreender a
questão do “quanto” acima referida e assim se lograr uma
avaliação razoavelmente pertinente daquilo que são as “ perdas de
água da canalização”. Esta realidade sistemática, naturalmente
varia de país para país e de cultura para cultura, é transversal.
Abrange o poder executivo, legislativo e judicial. Permanece no
poder autárquico e no poder regional. Existe nas organizações

17
internacionais. Existe nos partidos políticos e nas organizações não
governamentais. A sua actuação compreende métodos que incluem
a sabotagem pura e simples, o atraso sistemático, o boicote, o
favorecimento diferencial, a desinformação, o faz que anda mas não
anda e assim por diante.
Perante este enorme problema, a questão sistemática e
universal da falta de verba, ou a do controlo feito pelo antigo
quarto poder, a chamada comunicação social ou mass media,
quase desaparecem como problemas para o poder político, até
porque a propriedade desses meios foi há muito adquirida por
grupos serventuários da macro-elite económico-0nanceira e
deixaram de constituir questão relevante. Basta ver o que
aconteceu na eleição de Donald Trump.
O segundo bloco de problemas que se prende com a partilha
quantitativa do poder tem a ver com a criação ou não de uma
sociedade civil independente, organizada e actuante contra o
poder. Ora em certas culturas nacionais, a domesticação da
população em democracia pluralista foi de tal maneira bem
sucedida que faz parecer muito mais realista a célebre obra
“1984” com a vantagem adicional da invisibilidade do Big Brother.
O nosso país, Portugal, é um exemplo acabado da completa
castração da sociedade civil perante o poder político. Nem nos 48
anos de ditadura do Estado Novo se conseguiu tamanha proeza.
Apesar da ditadura, da censura, da PIDE /DGS, sempre houve
organizada uma vanguarda de resistência . E depois do 25 de abril
e sobretudo durante o PREC, a direita foi capaz de formar uma “
maioria silenciosa”, um Exército de Libertação de Portugal, ELP e o
Movimento Democrático para a Libertação de Portugal MDLP.
Tudo isto porque a população em geral tinha sido treinada primeiro
pela Mocidade Portuguesa, depois da Legião Portuguesa, depois
pelo serviço militar obrigatório e pela Guerra do Ultramar, por um
lado e por outro chegou ter mais de meio milhão de caçadores
treinados e armados, circunstâncias perigosas para o poder
dominante que a democracia se encarregou de destruir sem
substituição para qualquer destes casos. A tolerância e a
libertinagem permissiva superveniente redundou na destruição da
família tradicional, na ausência de sustentabilidade demográ0ca, e
foi maquiavelicamente acompanhada pela destruição do ensino da
história e da geogra0a humana, acompanhada pela alienação
informática das novas gerações. Assim se completou o processo de

18
destruição duradoura da sociedade civil e da possibilidade de
resistência pelos tempos mais próximos.
Cá está outro aspecto que valeria a pena, de uma forma
académica e sociológica, estudar de modo quantitativo, para
encaixar na equação do poder.
Um aspecto fundamental é, ainda, o da estrutura social.
Curiosamente escrevo sobre ele desde 1976, ano em que publiquei
um folheto ingénuo intitulado ”Classes sociais e poder político: da
teoria ao exemplo português”. O sistema de ensino o0cial continua
a papaguear as gerações sucessivas uma patranha relativa a
estrutura social portuguesa e não só, como se esta compreendesse
uma classe alta, uma classe média e uma classe baixa. Tenho-me
esforçado para destruir este ensinamento aos meus alunos,
fornecendo-lhes uma alternativa mais completa baseada na lógica
marxiana extensa que vai desde o lumpenproletariat até ao lumpen
de ouro,às classes com consciência de classe ou sem ela , como e
porquê, completada com uma avaliação sobre a elite política
baseada na deliberadamente esquecida escola Italiana de
Sociologia que inclui nomes totalmente ignorados hoje como os de
Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca ou Roberto Michels.
Ainda assim é preciso inovar. No tempo da Segunda Guerra
Mundial ainda não era totalmente óbvio que híper plutocracia iria
internacionalizar o capital 0nanceiro de tal modo que se sobreporia
aos Estados, às organizações internacionais, às alianças militares,
às igrejas, ao crime organizado ao terrorismo e assim
sucessivamente. Há efectivamente uma micro super elite 0nanceira
que planeia os destinos do mundo. Coisa diferente já é implementar
as políticas inerentes a nível internacional e , pior ainda, nos
Estados em concreto. Essa micro super elite dominante é
demogra0camente tão pequena que carece inevitavelmente de se
socorrer duma gigantesca tecno-burocracia, paga a peso de oiro
com todos os “fringe bene0ts”, cooptados que são dos melhores
alunos e executores oriundos da classe média e sem a qual não
haveria dominação mundial tendencial sequer. Daí que o sistema
instalado esteja orientado para os produzir abundantemente,
permitindo uma seleção e cooptação mais favorável e hierarquizada
pela própria elite.
O sistema está razoavelmente completo e coerente. Vamos
ver como se comporta durante uma crise catastró0ca mundial como

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a que vai começar com a operação COVID 19. Em 1984 também
havia o grupo dos proletários. Carne para canhão e marginalidade
em todo o sentido. Os miseráveis raramente se organizam e se
revoltam. Até o próprio Marx o sabia. Mas podem criar o caos. Ou
ajudar a criar e a manter.

6- Classes sociais, Ideologias e Relações


Internacionais

Não conheço ninguém, defeito meu seguramente, que


comece as análises e sínteses na área da Ciência Política e das
Relações Internacionais com a abertura do tema referido em
epígrafe. Assim como no século XIX e XX a biologia e as ciências
naturais serviram de apoio às ideologias racistas (Gobineau,
Ammon, Lapouge, Chamberlein, Rosenberg...) assim agora a
Ciência Política e as Relações Internacionais têm servido de apoio
às ideologias facciosas, opressoras e imperialistas contemporâneas.
Trata-se, obviamente (?) de pseudociências ou de para-ciências,
que utilizam a temática e a linguagem cientí0cas para conseguir
propósitos enviesados.
Comecemos por um axioma que até hoje não me foi
contrariado: Nada é neutro no domínio nas ideias, dos valores e das
prioridades. Se recuarmos até ao Decálogo facilmente
percebemos que ali não existe neutralidade. Nem em qualquer livro
sagrado o há. Daí em diante há sempre parcialidade. Pode-se ser
contra ou a favor, por omissão ou por acção. Mas isso as massas
não compreendem tão obviamente. Em conclusão, a ideologia é
omnipresente em tudo o que é acção ou inacção humana quer se
goste quer não, quer se deseje quer não.
Em segundo lugar, existe a sistemática ignorância ou
desvalorização da questão das classes sociais e do seu papel no
contexto dos fenómenos políticos, quer ocorram no seio do Estado,
ou no seu contexto, quer ocorram fora dele, no âmbito da política
internacional. Quando Karl Marx e Friedrich Engels escreveram
sobre as classes sociais, poderiam ter muito mais razão do que hoje
lhes assiste. Há 60 anos íamos, eu e os meu primos, tios e avós
passar o verão uma casa da minha avó materna que
frequentemente não tinha nem luz elétrica nem água corrente.

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Assim acontecia na vila inteira e todos viviam conformados com o
sistema. Se ocorresse o mesmo hoje, semana após semana,
seguramente que haveria uma revolta popular. No tempo em que
Marx e Engels escreveram a sociedade interna e internacional
eram muito mais fragmentárias e não tinham conexões rápidas.
Hoje a sociedade é uma e a conexão é permanente e quase que
instantânea. Já não é possível entender que “a ideologia dominante
é a ideologia da classe dominante que enforma o Estado”. Esta
a0rmação é apenas a verdade na política telúrica estruturante e
muito menos óbvia na espuma dos dias. A dita ideologia dominante
consiste num “trade o_” de geometria relativamente variável, entre
os interesses permanentes da classe dominante, cada vez mais
invisível e os interesses imediatos das multidões, sobretudo nos
chamados regimes democráticos e liberais, mas mesmo em teatros
políticos diferentes, caracterizados por uma autocracia mais
grosseira e à -or da pele. Nas organizações internacionais e no
normativo jurídico que as fundamenta, nas constituições dos
Estados, nas leis mais ou menos estruturantes está
inexoravelmente contida a parafernália da ideologia que defende
os interesses “sine qua non” da exígua classe dominante que
manda nas políticas públicas, nas políticas internacionais, no
comércio internacional, na paz e na guerra, nas migrações, na
demogra0a, na comunicação social, no ensino, na saúde pública
que agora inclui matar crianças nascituras ou até já nascidas a
expensas do erário público e assassinar doentes terminais ou
descontentes com a sua própria existência, igualmente às expensas
dos impostos dos contribuintes e assim por diante. O sistema
tornou-se mais dúctil e o concerto do poder hegemónico, ainda que
óbvio para os informados, sobretudo pela convergência de
“outputs” de grupos elitistas formais internacionais, públicos e
privados, mas sistematicamente concertados, consiste num não
facto ou numa não evidência para esmagadora maioria das massas
populares por virtude da propaganda omnipresente que inclui a
política da diversão permanente. Panem et circenses.
A forma de contrariar academicamente esta subversão
cientí0ca é a de introduzir sistematicamente nas análises e estudos
a realizar o princípio do contraditório.
A Academia tem-se revelado, nesses domínio do
conhecimento, tolerante para com invasão dos discursos de
justi0cação nas pretensas análises cientí0cas. Aliás as escolhas

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alternativas das escolas e dos métodos acríticamente aceites como
equivalentes constituem uma cedência às ideologias políticas
sociais económicas, tal como ocorreu com a biologia utilizada para
de0nir as raças superiores e inferiores que conduziram ao nazismo
e ao holocausto.

7- Do contraditório em Ciências Políticas


Se revisitarmos os primórdios proto-históricos do processo
penal e do processo civil, encontraremos o instituto embrionário do
contraditório. A Ciência do Direito não existe sem este conceito
central. Curiosamente, as Ciências Políticas, que nasceram do
Direito em boa medida e que lhe são constantemente tributárias,
evitaram a centralidade deste conceito. A bem dizer, as doutrinas e
metodologias das Ciências Políticas, evoluíram divergentemente
para nichos dogmáticos fechados , incompatíveis muitas vezes, e
arrogantemente ignorantes umas das outras, como se a verdade
explicativa fosse propriedade privada de cada uma delas. Resta um
vestígio do contraditório a nível interior de cada uma dessas para-
religiões, criando oposições sistémicas ou alternativas modelares,
mas persiste uma espécie de horror subliminar a um confronto e
uma convergência explicativa para o apuramento da verdade. A
questão central que se propõe agora é a de que há uma vantagem
0nal na convergência dialética de explicações divergentes e de
metodologias que especializaram afastando-se umas das outras.
Não me re0ro em tese a paci0ca questão da multidisciplinaridade
alternativa, nem sequer quero frisar um elogio, que é universal e
politicamente correcto, à variedade da paleta de modelos
observantes, cada vez mais rica. Essa é a situação atual e pací0ca
no contexto da Academia. Já é tempo, amadurecidas e autónomas
que estão as variantes do pensamento metodológico das Ciências
Políticas, não de uma fusão nem de uma síntese que sempre seriam
empobrecedoras, mas de convergências explicativas dialéticas, tal
como na aplicação do Direito, ou seja da recuperação no princípio
do contraditório como hoje é central na procura da verdade no
contexto dos ramos dos processos para o campo das Ciências
Políticas. Em certa medida uma investigação ideal seria aquela em
que o mesmo assunto pudesse ser avaliado e explicado
academicamente por uma multiplicidade de enfoques, de
metodologias e de modelos observantes alternativos, permitindo,

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no 0nal uma conclusão sintética trans-metodológica. Claro que é
um sistema trabalhoso. Mas não acho que se deva continuar, como
em certas correntes e atitudes contemporâneas das Belas Artes e
enveredar pelo facilitismo. Chegamos a um ponto em que já é
razoável opor arte a facilitismo. As ciências políticas, infelizmente,
não estão muito longe disto.

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