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DOI: http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.

2015v17n2p157

Um novo planejamento estamos mudando o país”; “é tanto problema que


para um novo Brasil? não cabe em um cartaz”. Talvez se possa dizer que
essa densidade de questões comparece e define o
Ester Limonad e Edna Castro (Org.) livro e o simpósio que lhe deu origem, com textos
Rio de Janeiro: Letra Capital; ANPUR, 2014. que apontam desde uma discussão teórica densa
até debates que cobrem um conjunto de elementos
Cibele Saliba Rizek que caracterizam, nacional ou regionalmente, o
Brasil das primeiras décadas do século XXI e sua
Universidade de São Paulo,
Instituto de Arquitetura e Urbanismo, São Carlos, SP, Brasil natureza urbana.
Na primeira parte – “Reflexões críticas e
Alguns momentos históricos parecem cruzar perspectivas possíveis: Estado, planejamento e as
dimensões e acontecimentos que irrompem dentro revoltas populares” –, Ana Fani Alessandri Carlos,
do fluxo de temporalidades aparentemente aplai- Rainer Randolph, Carlos Antônio Brandão, Ester
nadas para constituir feixes de significações e/ Limonad e Edna Castro discutem as manifes-
ou inflexões que ganham visibilidade, conferindo tações de 2013 e aquilo que era possível vislum-
densidade para eventos passados e, por vezes, anun- brar a partir de sua força e de seu caráter, até
ciando possibilidades. Julho de 2013 parece ser um certo ponto, surpreendente e inovador. Qual seu
desses momentos, não só porque era impossível não conteúdo de classe? Como definir suas dimensões
discutir os acontecimentos das chamadas “jornadas políticas? Afinal, qual novidade se avizinhava?
de junho”, mas também porque o simpósio orga- Qual novidade era desejável, diante do quadro de
nizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação crise e agravamento das condições de vida urbana?
e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional Quais transformações eram possíveis no âmbito
(ANPUR), nos momentos finais de uma gestão que da produção nas margens do Estado, como aponta
se iniciara com a posse e, em seguida, a morte de Castro, utilizando o vocabulário de interpretação
Ana Clara Torres Ribeiro, traria a marca de suas três de Veena Das e Deborah Poole?
décadas de existência. Talvez dois anos depois desse debate, diante
O livro Um novo planejamento para um do novo quadro que vem marcando as manifesta-
novo Brasil? resultou de um simpósio ocorrido ções de 2015, caiba apontar algumas das inquieta-
durante a reunião da Sociedade Brasileira para o ções e questões presentes em meio aos textos e suas
Progresso da Ciência (SBPC) em julho de 2013, ênfases. Afinal, são essas questões que parecem
cujo tema foi Ciência para um Novo Brasil, reali- continuar como uma espécie de motor contínuo na
zado na Universidade Federal de Pernambuco. O reflexão brasileira sobre a cidade, sobre os processos
tema escolhido para a reunião da SBPC inspirou de metropolização, sobre um urbano que se espraia,
o título do simpósio da ANPUR, cujos resultados colonizando e assimilando seus outros. Visitar e
foram reunidos nessa publicação, inspirada pelo mapear algumas dessas inquietações pode ser, então,
calor dos acontecimentos, em sua confluência com a melhor maneira de apontar a atualidade do texto e
a promessa de um “novo” país: uma economia mais das discussões que nele têm lugar.
vigorosa; uma trama territorial claramente urbana; A primeira dessas inquietações desenha uma
novos patamares democráticos, que comportavam crise urbana de grande espectro. Essa crise urbana
grandes manifestações de massa; uma discussão seria, ao mesmo tempo, como aponta Carlos, uma
a respeito de um horizonte de desenvolvimento; crise teórica, já que, referindo-se a Daniel Bensaïd, a
sinais de estabilidade institucional. Já em sua autora aponta a necessidade de recompor os vínculos
capa, a partir dos dizeres de alguns cartazes que entre teoria e prática (p. 28). No coração dessa crise,
marcaram as manifestações de 2013, comparece como possibilidade de entrever sua superação, seria
o que seria, desde aquele momento, denomi- necessário revelar contradições, criticar a ação do
nado como a voz das ruas: “se a tarifa não baixar Estado, desvendando sua lógica e suas imbricações
a cidade vai parar”; “desculpe o transtorno – com a acumulação do capital em suas formas e

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modulações contemporâneas, indicar a impossibi- pelo desenvolvimento desigual do processo de


lidade de resolução das questões social e urbana por acumulação do capital (p. 61). Diante da falta e das
meio de políticas públicas, à luz da recusa crítica lacunas dessas conformações teóricas e analíticas,
do existente, capaz de permitir um salto para além Brandão aponta ainda a necessidade de perceber e
“da dimensão ideológica do conhecimento” (p. 29). desvendar a transformação do espaço nacional em
A homogeneização e fragmentação dos lugares da “base operativa e plataforma de simples circulação
cidade, indelevelmente constituída pela propriedade de capitais usurários e lócus de valorização dos
privada e pela forma mercadoria, a imposição do grandes capitais ancorados na predação e degradação
homogêneo, o esvaziamento dos espaços de socia- humana e ambiental” (p. 66). Nessas condições, “a
bilidade põem os impasses entre uma teoria desti- cidade mesma se torna um negócio e há uma ‘priva-
tuída da prática e uma prática destituída da teoria tização’ do planejamento urbano” (p.71). Classes,
(p. 35). Essa crítica radical tem ainda como alvo divisão do trabalho, Estado, espaço e grande capital
uma suposição de forte conteúdo ideologizante. Os conformariam, então, um nó central do debate em
argumentos do texto se contrapõem à presença de busca de requalificação, a partir de um arcabouço
um caráter civilizador associado ao modo capitalista contra-hegemônico que permitiria entrever uma
de produção, enfatizando, sobretudo, que o capita- nova produção social e política do espaço (p.78).
lismo contemporâneo, em seu momento financeiri- Os dois textos que finalizam a primeira parte
zado, encolhe, quando não destitui direitos sociais, do livro são de suas organizadoras, não por acaso
entre os quais o direito à cidade, que os movimentos duas presidentes da ANPUR: Ester Limonad e Edna
de junho de 2013 pareciam reivindicar. Castro. A pergunta de Limonad – “novo planeja-
É também sobre a prática ou a práxis que o mento ou novo Estado para o Brasil?” – não poderia
texto de Rainer Randolph se debruça. Novamente, ser nem mais pertinente, nem mais contemporânea.
um conjunto de temas, perguntas e questões sobre A autora indica, entre muitos outros elementos, “a
a insurreição – as possibilidades das zonas insur- interescalaridade da lógica territorial do Estado e da
gentes e seu deslizamento crítico para a subversão no lógica da acumulação, entrelaçadas historicamente,
âmbito das dimensões espaciais, somadas à poten- e a transescalaridade dos fluxos que se materializam
cialidade dos espaços subterrâneos de resistência – através da financeirização do espaço social contempo-
delineia o que o autor denomina de meta-planeja- râneo” (p. 88). As opacidades de todo esse processo,
mento. Seu delineamento guardaria a possibilidade o caráter ilusório das formas de participação institu-
de subversão das relações entre planejadores e popu- cionalizada, a ruptura entre o “social” e o “político”,
lação envolvida, abrindo a possibilidade de perceber a fragilidade intelectual e dos intelectuais, isto é, a
e potencializar as energias utópicas que pulsam fragilidade de seu comprometimento com a trans-
nesses lugares recônditos, localizados abaixo das formação social, demonstram que “estamos a buscar
camadas mais visíveis de deterioração das condi- saídas ou formas de avançar em um jogo que se asse-
ções urbanas e das condições de vida. Promessa melha cada vez mais a um jogo de cartas marcadas
e redenção se assentariam, então, na potência do onde [sic] o oponente, além de dar as cartas, estabe-
deslizamento da insurgência à subversão. lece as regras do jogo, que mudam casuisticamente
O texto de Brandão traz no título a palavra conforme os interesses hegemônicos [...]” (p. 97).
desafio. Seu objeto de discussão são os desafios Castro, por sua vez, mobilizando um referen-
teóricos e analíticos: trata-se de recolocar como cial teórico que se assenta em Veena Das e Deborah
centro das questões teóricas as relações entre as Poole1 para pensar as margens do Estado, também
classes e o espaço urbano regional. A identificação problematiza os limites da interpretação e a tensão
dos “agentes cruciais”, dos sujeitos, das classes e
suas alianças e coalizões aponta para a necessidade 1 Ver: DAS, Veena; POOLE, Deborah (Ed.). Anthropology in
the Margins of the State. Santa Fe: School of American Re-
de uma Economia Política do desenvolvimento search Press; James Currey, 2004. Ver também: DAS, Veena.
socioespacial desigual ou mesmo de uma economia Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas witt-
gensteinianos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n.
política da geografia, cujo objeto seria constituído 40, p. 31-42, jun. 1999.

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entre teoria e empiria, fartamente atualizada pelo mônicas sobre o espaço urbano-metropolitano” (p.
caráter múltiplo e um tanto inédito dos movimentos 144). De outro lado, um projeto alternativo “preen-
de junho de 2013. A questão, a partir dessas refe- cheria” a governança metropolitana com outras
rências, afirma a autora, é “o lugar de onde procu- representações, imaginários e horizontes de eman-
ramos compreender o que de fato é o Estado, ou cipação social, questionando relações naturalizadas
melhor, uma etnografia sobre as práticas sociais, os entre Estado, sociedade e cidades num mundo
lugares e as linguagens que conformam os lugares globalizado e mercantilizado.
nas margens do Estado-Nação” (p. 103). Utili- Outros temas e questões ainda compõem essa
zando o repertório das ciências sociais e da socio- coletânea: a dimensão regional apresentada por
logia contemporânea, em particular, o artigo busca Hipólita Siqueira, que destaca as desigualdades
analisar as mobilizações insurgentes e a potencia- entre as regiões e o pacto federativo; o debate fede-
lidade de conflitos que ganharam a cena pública rativo e o caráter metropolitano da jovem capital
em 2013: aos movimentos de junho, somaram-se brasileira, no artigo de Benny Schvarsberg; as
as mobilizações em torno das intervenções vincu- questões de mobilidade urbana no âmbito metro-
ladas à Copa do Mundo e seus custos, passíveis de politano; a tensão entre fragmentação e integração
serem mensurados em lágrimas e sofrimento (como nas metrópoles brasileiras; o tema do planejamento
sugeriria Veena Das). Castro ainda tece um quadro e suas relações com a dimensão participativa por
de análise desses eventos a partir de uma reflexão meio das questões de Belo Horizonte, sistemati-
ancorada nos chamados estudos pós-coloniais, na zadas por Jupira Gomes de Mendonça, no âmbito
perspectiva de desconstrução de imagens, represen- metropolitano; por meio da discussão de Olinda,
tações e crenças que não questionam os parâmetros a perspectiva da conservação integrada e do que
impostos pelas raízes fincadas pela colonização. Para os autores Virgínia Pontual e Silvio Zanchetti
além de uma suposta uniformidade, a autora aponta identificaram como planejamento culturalmente
o que pulsa no “sentimento do brasileiro diante de orientado; os elementos e dimensões da questão
uma ordem política, social e jurídica que [...] [o] ambiental urbana, pela ótica de Maria Lucia Refi-
fragiliza, invisibiliza, subtrai da existência como netti Martins; e, finalmente, as “cidades da floresta”
cidadãos de direito e sujeitos capazes de pensar sobre pela ótica de Saint-Clair Cordeiro da Trindade Jr. Os
seus desejos, seus direitos e sua existência” (p. 117). vários artigos desse livro desenham as questões de
A segunda parte do livro dedica-se à reflexão um Brasil urbano, em suas determinações e tensões
dos espaços metropolitanos, das desigualdades e com o planejamento, a participação, o Estado, as
mobilidade urbana. O artigo de Jeroen Klink põe a relações de classe, as desigualdades e as dimensões
questão da governança (ainda que necessariamente teóricas e políticas que se articulam em cada prisma,
de ponta-cabeça) e o tema, inescapável, do Estado em cada elemento. No enovelamento e nas articula-
desenvolvimentista ao longo da história brasileira. ções, nas esquinas das cidades e no cruzamento dos
Na conclusão do artigo, o autor aponta os desafios textos, o leitor entrevê a necessidade e a urgência de
da articulação de escalas, circuitos econômicos, ir além do que está dado, de desvendar e revelar as
discursos e práticas espaciais contra-hegemônicos, urdiduras que constituem o Brasil e o urbano do
assim como uma herança tecnoburocrática que século XXI. Esse era o lugar que, naquele momento,
teria profissionalizado o planejamento participativo, o simpósio e seus resultados buscaram ocupar.
distanciando os movimentos sociais e “dissociando
o debate sobre o planejamento das discussões mais Cibele Saliba Rizek: cibelesr@uol.com.br.
amplas sobre poder, conflitos e representações hege-

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