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RESENHAS 177

Dois clássicos em um a ciência política e a filosofia também foram con-


vocadas), levando o autor a um confronto crítico
com a tradição estruturalista do pensamento da Ce-
Francisco de OLIVEIRA, Crítica à razão dualis- pal (Comissão Econômica para a América Latina),
ta/O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003. 150 assim como com as correntes da “dependência”
páginas. que então circulavam no meio acadêmico. Desse
modo, ao fincar a análise do presente de então
Leonardo Mello e Silva (início dos anos de 1970) a uma consideração do
passado, Francisco de Oliveira terminou por acer-
A “Crítica à razão dualista” é um ensaio de tar o passo de nossa dialética da entrada na moder-
1972,1 que reaparece em 2003 em livro, juntamen- nidade capitalista, cuja marca, explicitada já no pri-
te com outro ensaio, chamado “O ornitorrinco”. O meiro capítulo do ensaio, pode ser descrita como
primeiro é um clássico da ciência social brasileira; sendo o “uso” que o setor moderno da economia
o segundo, embora menos espichado no tamanho, faz do setor “atrasado”, cravando uma unidade
caminha para o mesmo destino. A junção desses contraditória, mas funcionalmente operante, contra
dois trabalhos deu ensejo a uma nova publicação, a interpretação dominante que via antagonismo e
a cargo da editora Boitempo, permitindo ao leitor incompatibilidade entre os dois setores ou “pólos”.
uma espécie de balanço de trinta anos transcorri- Na fórmula que a partir de então ganhava uma fei-
dos entre o diagnóstico dos impasses do desenvol- ção sistemática e demonstrada, o pólo dinâmico
vimento brasileiro e a deriva dessa trajetória trun- servia-se do pólo atrasado para desenvolver-se, e
cada, desembocando em um cenário de barbárie e tal achado vai se incorporar como uma aquisição
opulência que está muito bem representado na intelectual que semeará as outras disciplinas e
capa do livro, com a foto da avenida Luis Carlos áreas das ciências sociais no Brasil – incluindo aí
Berrini, em São Paulo, ícone da modernidade capi- os estudos culturais e a literatura.2 Pesquisas sobre
talista do país e espécie de “nova Avenida Paulis- o empresariado nacional e as raízes de um pensa-
ta”, vista pela lente da favela que lhe está justo em mento liberal (ou a ausência dele) na formação da
frente, separados – favela e avenida – pelo nausea- modernidade brasileira; as contradições de uma
bundo rio Pinheiros. Essa imagem traduz bem o al- modernização social e econômica levada a cabo
cance dos dois ensaios aqui reunidos porque, no por um Estado Corporativo, assim como a oscila-
fundo, eles são uma reflexão sobre as desigualda- ção dos sentimentos de desfaçatez e mal-estar en-
des de base que atravessam a sociedade brasileira tre as elites oligárquicas diante da realidade da es-
desde pelo menos o pós-1930, passando pela con- cravidão, levando às famosas “idéias fora do
solidação da estrutura industrial, que fecharia o ci- lugar”,3 tudo isso são desdobramentos da temática
clo da modernização capitalista do século XX, no do lugar do moderno e do atraso, esboçada com
período conhecido como milagre econômico precisão no ensaio da “Crítica”.
(1968-1974) – última onda de crescimento dura- Quando o diagnóstico transita para o campo
douro da economia brasileira antes das chamadas sociológico, é a estrutura social que se desvela
“décadas perdidas” dos anos de 1980 e 1990 –, e no arranjo entre coronéis e empresários, ofuscan-
que mostram os seus efeitos por meio da estagna- do uma suposta clareza que oporia burguesia na-
ção, do desmanche de instituições regulatórias, da cional e setores agrário-exportadores, ou, mais
desintegração do tecido social e da violência. O contemporaneamente, capital financeiro e capital
conjunto formado por esses dois trabalhos é, as- produtivo. Do lado do trabalho, essa mesma estru-
sim, maior do que a pretensão de origem – espe- tura social vai encontrar o setor “informal” alimen-
cialmente no que tange à “Crítica à razão dualista”, tando a superexploração da parcela assalariada da
que se propunha um balanço da produção intelec- força de trabalho, catapultando a acumulação que
tual sobre o subdesenvolvimento (o que incluía a não se faz (apenas) pelas vias “clássicas” do con-
literatura econômica, mas não só; a sociologia, flito entre as classes do capital e do trabalho. No
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texto, fica aberta ademais a hipótese de que essa to endógeno, entre as quais está a força de traba-
não seja uma característica somente “nacional”, lho assalariada industrial, forjada sob o predomí-
sendo o amarramento particular entre “moderno” nio do populismo, o que permitiu dessa forma a
e “arcaico” um traço talvez estrutural do capitalis- estabilização de um dos fatores essenciais para
mo realmente existente e mesmo de outros mo- pôr em marcha o processo de expansão urbano-
dos de produção. Dessa forma, o mergulho fun- capitalista. O juízo sobre o papel da legislação tra-
do na análise de uma situação concreta – a balhista nesse processo tornou-se determinante
formação do modo de produção de mercadorias pela forma com a qual repôs a problemática da
num país periférico –, tendo por baliza a descons- reprodução da força de trabalho e do exército in-
trução da noção de “dualidade” (onde o atrasado dustrial de reserva como uma das modalidades de
é o “pré-industrial” e o moderno, o “industrial”), “fundo público” da acumulação. As outras moda-
não deixa de ter, indiretamente, um olhar voltado lidades (mais reconhecíveis) são: a arbitragem de
para a comparação com outros casos, em outros subsídios e de isenções fiscais entre setores, além
contextos, o que dá um sentido inadvertidamente do próprio investimento em infra-estrutura. Apa-
pouco provinciano ao ensaio: da mesma forma rece aqui também o papel da agricultura como fi-
que, em analogia talvez ousada demais, possa se nanciadora do excedente para inversão de bens
falar da universalidade do romance machadiano de capital e intermediários, por meio do trabalha-
ao resolver literariamente, mediante uma forma dor do campo – ou camponês –, que acaba por
artística ímpar, o paradoxo contido na convivên- fornecer as condições para uma verdadeira acu-
cia entre discurso universal da burguesia esclare- mulação originária, mediante a redução do custo
cida e dependência econômica associada com de reprodução da força de trabalho nas cidades.
manutenção de estruturas sociais eticamente con- Nessa altura, que é um dos pontos altos do en-
denáveis na figura extremada do trabalho servil (o saio, o autor chama a atenção para a unidade de
“ponto nevrálgico por onde passa e se revela a processos sociais que pareciam se desenvolver de
história mundial”, nos dizeres de R. Schwarz4), maneira estanque, tais como a diminuição dos
quem sabe possa se entrever aqui, na recapitula- preços dos gêneros alimentícios vegetais da la-
ção crítica do pensamento econômico latino-ame- voura e o aumento da taxa de lucro na indústria.
ricano (a formulação cepalina) um lampejo de A prescindibilidade do setor agrícola ou rural em
atualização do desenvolvimento desigual e com- relação ao setor moderno no âmbito do consumo
binado de uma maneira geral. Como se vê, as im- ganha um outro feitio, oposto, quando se analisa
plicações vão muito além da economia ou da so- do ponto de vista da produção: nesse caso, o mo-
ciologia strictu senso e inserem-se no campo mais derno aumenta mais ainda a sua taxa de lucro, o
vasto do que se poderia designar, à falta de um que explica a tendência à concentração da renda.
termo melhor, como “estudos sobre a modernida- Os limites da explicação da industrialização pelo
de brasileira”. processo de substituição de importações são tam-
“Crítica à razão dualista” está dividido em bém abordados, conduzindo a questão para as
seis capítulos: no primeiro, “Uma breve colocação variáveis internas (mais-valia absoluta e relativa).
do problema”, é apresentada a questão do desen- Ainda nesse capítulo vamos encontrar a discussão
volvimento e os quadros gerais de sua insuficiên- sobre o terciário “inchado” e a indicação de que
cia teórica, segundo o autor. No segundo, “O de- informalidade e acumulação formam um conjun-
senvolvimento capitalista pós-anos 1930 e o to coerente: os serviços, em aparência improduti-
processo de acumulação”, o período que se es- vos (por exemplo, serviços pessoais, os quais
tende até os meados dos anos de 1950 com o Pla- chamaríamos hoje de “atividades por conta pró-
no de Metas de JK é caracterizado como o de pria”), na verdade encontram seu dinamismo nos
“destruição” das antigas bases da acumulação que períodos de maior expansão da economia, capita-
se assentavam na extroversão, simultaneamente à neado pelo setor secundário (industrial) – à épo-
“criação” das condições para um desenvolvimen- ca, os debates acerca da associação entre urbani-
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zação e marginalidade raramente apresentavam o modo, “O ornitorrinco” é também a narrativa de


problema dessa maneira. uma ruptura. Ruptura com as esperanças do de-
O terceiro capítulo, sobre a revolução bur- senvolvimento, entendido como processo de inte-
guesa no Brasil, marca a consolidação de um pa- gração ou de estabilização de uma trajetória de
drão econômico que, depois dos anos de 1930, acumulação de expectativas. Em outros termos, a
passa a ter como característica central o fato de que destruição de lugares sociais a partir dos quais se
o sistema se repõe a partir dele mesmo, sem o im- teciam projetos de mobilidade e transformação de
pulso necessário de “fora”; em outras palavras, tra- posições de grupos e classes. Se a crítica da dua-
ta-se da famosa endogenização das condições de lidade já mostrava a sobreposição do moderno e
acumulação. O quarto capítulo, cobrindo o perío- do arcaico, um dos pólos (o campo ou a cidade,
do desenvolvimentista e da abertura ao capital es- por exemplo) ao menos fornecia uma espécie de
trangeiro com incorporação de tecnologia, vai tra- porto-seguro para as estratégias sociais de “apos-
zer à compreensão do arranque industrializante e ta”: o migrante que se estabelecia no Sudeste usa-
da formação de um mercado interno os dados que va a base do capitalismo industrial mais avançado
deslocam da economia para a política as razões do para uma acumulação primitiva para si e para o
sucesso da empreitada: as famosas querelas entre resto da família que ficou no Nordeste, enquanto
cientistas políticos sobre o caráter da Revolução de essa última contava com a longa duração da desi-
30 são recolocadas magistralmente em poucas li- gualdade econômica e do poder absoluto dos
nhas, quando fica nítido que os constrangimentos proprietários de terras para ir construindo tam-
externos são processados pelas relações internas bém a sua própria referência e suas escolhas, a
de classe, e o atamento desse interesse com o in- saber, acompanhar os que partiram ou ficar e re-
teresse da “nação”, em uma verdadeira operação becer os que fracassaram “em São Paulo”, mesmo
de hegemonia. Os índices mais determinantes a à custa das opressões de sempre. Quando as
partir de então para se entender o sucesso do mo- transformações do neoliberalismo de hoje arra-
delo passam a ser internos, como o valor do salá- sam as relações de interdependência conhecidas
rio mínimo e a relação entre salário real e produti- entre o moderno e o arcaio, conduzindo-as a um
vidade, assim como entre salário real e custo de novo patamar, destróem os portos-seguro de an-
reprodução da força de trabalho urbana (p. 78), tanho, sem apontar para a construção de novos,
ambos os indicadores fornecendo o parâmetro devido ao terreno de enorme indeterminação no
para a taxa de exploração do trabalho, variável de- qual está assentado. Assim, a pequena proprieda-
cisiva do período. O capítulo cinco analisa a vaga de ou o pouco da terra que sustentava uma famí-
pós-1964, decifrando o papel jogado pela concen- lia é expulsa pelo agro-negócio; o desemprego e
tração de renda na totalidade coerente da econo- a reestruturação produtiva minam o sonho de um
mia brasileira. Finalmente, o capítulo seis retoma destino baseado na relação salarial de tipo fordis-
as considerações anteriores e demonstra a não-in- ta, e as privatizações e as reformas no serviço pú-
compatibilidade entre a junção particular e especí- blico eliminam uma fonte importante de absorção
fica do velho e do novo na formação brasileira, por e sedimentação estamental para as classes médias.
um lado, e, por outro, a “fuga para a frente”, repre- De todos os lados de onde se vê, o “desenvolvi-
sentada pela continuidade do processo de acumu- mento” é hoje um pálido simulacro do projeto que
lação. Estava anunciado o bicho. constava da agenda da literatura sociológica bra-
“O ornitorrinco” é já de uma fornada mais sileira e latino-americana dos anos de 1960 e
recente. Nesse texto, o foco originário da “Crítica” 1970, mesmo na dissecação que já lhe havia dedi-
radicalizou-se no sentido de aprofundar o impas- cado a “Crítica” de 1972.
se civilizatório do “moderno”, conduzindo o leitor Isso é expresso na atualidade, entre outras
até o cenário do século XXI, em que impera o coisas, tanto pelo drama da violência social “pri-
desmanche e o fracasso daquele projeto, que é o vatizada” (pobres em guerra contra pobres),
projeto do desenvolvimento da periferia. Desse como por uma espécie de demissão das burgue-
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sias com qualquer plataforma nacional – o que A teoria da regulação transfor-


fica patente com a fase atual de financeirização e
globalização econômica. Essa situação seria o re- ma-se em “técnica de regulação”
sultado de dois processos negativos que se sobre- em tempos neoliberais?
põem: primeiro, a não resolução – nos termos da
antiga teoria do desenvolvimento – dos impasses
estruturais da modernização em um país latino-
Ruy BRAGA, A nostalgia do fordismo: moderniza-
americano; e, segundo, a vinculação imediata,
ção e crise na teoria da sociedade salarial. São
pelo lado das empresas, com o ciclo da terceira
Paulo, Xamã, 2003. 248 páginas.
revolução tecnológica de base microeletrônica,
que leva à economia de postos de trabalho e a es-
Graça Druck
calas de investimento (inclusive em conhecimen-
to) impensáveis para os países periféricos. O or-
A nostalgia do fordismo: modernização e
nitorrinco, que é uma metáfora de um ser
crise na teoria da sociedade salarial é, indubita-
malformado, a meio caminho da evolução, não vê
mais saída – do tipo daquela que era anunciada, velmente, uma contribuição inédita sobre a ori-
à guisa de programa, nas palavras finais da “Críti- gem e a trajetória da “Escola da Regulação” ou,
ca” de 1972: “apartheid ou revolução social”. O como denomina o autor, da “Teoria Francesa da
apartheid virou condição naturalizada de um esta- Regulação”, para a sociologia brasileira, em espe-
do de exceção (convivendo, aliás, perfeitamente cial, para a sociologia do trabalho.
com as instituições democráticas) que se vai re- Com refinada análise crítica, Ruy Braga per-
produzindo como regra e fagocitando as promes- corre as principais obras dos autores regulacionis-
sas de mudança. Nesse mau agouro para os cida- tas, desde aquela considerada a primeira a formu-
dãos e cidadãs do Brasil, um desafio para as lar os princípios fundadores da Escola da
ciências sociais. Regulação (Regulação e crises do capitalismo, de
Michel Aglietta, 1976 – um dos seus principais teó-
ricos), passando pelos escritos mais importantes da
Notas geração regulacionista formada por Robert Boyer,
Benjamin Coriat e Alain Lipietz que, em parceria
1 A economia brasileira: crítica à razão dualista, com outros autores, constroem um “programa teó-
Petrópolis, Vozes/Cebrap, 1981. Publicado original- rico e político” em conformidade com as mudan-
mente em Estudos Cebrap (2), 1972. ças dos padrões de desenvolvimento capitalista.
2 Não à toa, a atual edição suprimiu do título a ex- Braga está convencido – e convence o leitor –
pressão “a economia brasileira”, presente na primei- sobre a relevância das formulações dos regulacio-
ra edição. Reconhecimento do caráter nem tanto as- nistas no âmbito acadêmico, dadas a difusão e a
sim especializado e mais interdisciplinar da obra. influência que exercem entre pesquisadores e ins-
tituições acadêmicas de inúmeros países, utiliza-
3 Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas, São Pau-
das em temáticas diversas das ciências sociais e,
lo, Duas Cidades, 1977.
em especial, nos estudos sobre trabalho. Nesses
4 Idem, pp. 23-24. estudos, são relevantes especialmente as contri-
buições sobre o fordismo, cuja originalidade é re-
conhecida pelo autor quanto à formulação de
LEONARDO MELLO E SILVA é professor do uma “economia política do fordismo”, que expli-
Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. ca um novo estágio do processo de acumulação
do capital, representada num dos mais importan-
tes conceitos construídos por M. Aglietta, a saber,
o “modo de regulação”.

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