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...
1.
Embora tenha consagrado a maior parte de sua obra his-
toriográfica à análise de nosso passado, é inegável que o obj~
tivo central da refle~ão de Caio Prado Júnior - o ponto focal a
partir do qua~ se articula o conjunto de sua ampla investigação
histórica é a compreensão do Brasil moderno. Não é casual qm
o titulo de sua história geral de nosso País - prevista para q~
tro tomos, mas dos quais foi escrito apenas o primeiro, dedica-
do à época colonial - seja Formação do Brasil contemporâneo. Po
de-se traçar uma linha contínua que liga entre si a identifica-
ção do "sentido da colonização", efetuada no brilhante capítulo
com que se inicia sua obra-prima (de 1942), e as propostas para
a "revolução brasileira", explicitadas em sua última produção
significativa (de 1966). Mesmo quando trata do passado, Caio
Prado tem sempre em vista a investigação do presente como his-
tória, o que implica para ele, enquanto marxista, uma análise
dialética da gênese e das perspectivas desse presente.
Ora, se esse movimento dialético é o núcleo de sua ref~
xão historiográfica, isso indica que nela estão contidos, ainda
que só implicitamente, conceitos de Utransição" ou de ltmoderni-
zação". Se ele quer pensar o presente como história, tem de re.,ê.
ponder necessariamente à seguinte questão: de que modo e por que
vias o Brasil evoluiu da situação colonial originária, através
do Império e das várias Repúblicas, para a constelação históri-
co-social que apresenta hoje? Embora exista em sua obra uma
certa ambigüidade a respeito da caracterização do ponto de par-
01. tida - ou seja, do modo de produção e da formação econômico-so-
cial vigentes no Brasil antes da Aboli·ção -, é indubitável que
o historiador paulista não hesita em identificàr como plenameB
te capitalista o Brasil rephbJicano. Em oposição ao modelo iB
terpretativo dominante na Terceira Internacional e do Partido
Comunista Brasileiro (pelo menos a partir de 1930), ele insiste
em que nosso País não é e jamais foi feudal ou semifeudal e, p~
isso, não careceu nem. carece de·uma "revolução agrária e antii~
perialista" para se ~ornar moderno e capitalista 1. Mas, por
outro lado, Caio Prado reconhece .traços extremamente peculiares
f - ,
em nosso capitalismo - traços que poder1amos chamar de "nao cl~
sicos" -, dedicando boa parte de sua pesquisa a identific~-los
e descobrir-lhes a gênese. Nesse sentido, a questão que antes
formulamos ganha maior concreticidade: quais foram as vias para
o capitalismo e que conseqüências tiveram na constituição de nffi
so presente 1
Na literatura marxista, existem dois conceitos extrema-
mente fecundos para analisar vias "nãó clássicas" de passagem
para o capitalismo ou,- numa linguagem menos precisa, para a "mo":
dcrnidade": o de "via prussianall, eJlborado por Lenin com o objg,
tivo principal de conceituar a modernização agrária; e o de IIre
volução passiva", utilizado por Gramsci para determinar proces-
sos sociais e politicos de transformaçio "pelo alto". Não h~,
na obra de Caio Prado, nenhuma referência explícita a tais con-
,
ceitos, nem e de supor que ele os conhecesse, sobretudo a noção
de "revolução passiva", elaborada por Gramsci nos Cadernos do
cárcere e tornada pública somente no final dos anos 40. Caio
-
Prado jamais cita Gramsci e nao e, freqüente (se excetuarmos as
referências a O Imperialismo) que cite Lenin.
O registro dessa ausência sugere uma observação mais ge
02. ral: o estoque de ·categorias marxistas de que se vale Caio Pra-
..
,
~
do não é muito rico. (Essa relativa ~~obreza é sobretudo evi-
dente em suas obras de filosofia.) Nos trabalhos de história,
por exemplo, tem pouco peso o conceito de "modo de produçio", o
que o leva por vezes a confundir, na análise da Colônia e do 1m
pério, o predomínio inequívoco de relações mercantis com a exis
t;ncia de um sistema capitalista (ainda que "incompleto"), o qm
deriva da prioridade m~todológica que ele conscientemente atri-
bui à esfera d~ circulação em detrimento da esfera da produção 2.
Isso faz também com que ele utilize de modo pouco rigoroso a nE.
ção de burguesia: seriam "grandes burgueses nacionais", por eX6!l
pIo, os latifundi~rios escravocratas do Império 3. Resulta i-
gualmente do desconhecimento do conceito marxista de capitalis-
mo de Estado (ou de capitalismo monopolista de Estado) o empre-
go tardio da imprecisa noção de "capitalismo burocrático" - um
termo inventado por ex-trotskistas para definir o regime social
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cas" para o capitalismo. t o que tentarei mostrar, ainda
sumariamente, nos próximos dois itens.
que
2.
Quando Lenin tenta conceituar a diversidade de vias pa-
ra o capitalismo, inovando em relação ao marxismo evolucionista
e Q~ilinear da Segunda Internacional, constrói sua tipologia ~
parti~ do modo pelo qual o capitalismo resolve a questão agrá-
ria. "Nar-x já dizia - recorda Lenin - que a f'o rrna de propriedE
de agrária que o modo de produção capitalista encontra na histó
ria, ao começara desenvolver-se, não corresDonde ao capitalis-
mo. O próprio capitalismo cria para si as formas corresponden-
tes de relações agrárias, par~indo das velhas formas de posse da
terra (••.). Na Alemanha, a transformação das formas medievais
de propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo
a via reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propri~
dades feudais, que se for~m transformando lentamente em fazen-
04. das de junkers (•••). Rffi Est~dE' UidoP, a transformação foi vio:-r:
lenta ( •••). As terras Idos latifundiár~091 foram fracionadas;
a grande propriedade agrária feudal se converteu ,.empequena pr,2
priedade burguesa" 5.
são aqui indicadas duas vias principai9• que Lenin chama-
ria de "americana" (ou "clássica") e de "prussiana". A via "clá;
~i~lica r ,
s~ca (uma radical transformação da estrutura agraria: a antiga
propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em peq~
na exploração camponesa.
.. ,
Nesse caso, nao so desaparecem as re-
lações de trabalho pré-capitalista, fundadas na coerção extra-
econômica sobre o trabalhador, mas também é erradicada a velha
classe rural dominante, já que são eliminadas as formas econômi
cas em que ela se apoiava e de cuja reprodução dependia a sua
,
própria reprOdução como classe. Diverso e o caso da I1via prus-
sianall: aqui, a velha propriedade rural, conservando sua grande
dimensão, vai se tornando progressivamente empresa agrária capi-
talista, mas no quadro da :manutanç;ão}·
de formas de trabalho fun-
dadas na coerção extra-econômica, em vínculos de dependência ou
subordinação que se situam fora das relações "impessoais" do mer
cado, e ,qrn vão desde a violência aberta até a intromissão na vida
privada do trabalhador. É evidente que isso permite a conserva-
ção (ou mesmo o fortalecimento) do poder político do velho tipo
de proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegia-
dos no aparelho de Estado da nova ordem capitalista.
O leitor atento de Caio Prado não tardar~ em reconhecer
a proximidade de suas análises da questão agrária brasileira com
a descrição leniniana da "via prussiana". Para o historiador
paulista, a modernização de nossa estrutura agrárie não se deu
segundo uma "via clássicau; não se pode falar, aqui, da supres-
são radical da grande propriedade pré-capitalista e de sua subs-
05. tituição pela pequena propriedade camponesa. Observa ele: liA si
..
..
'
tuação no Brasil se apresenta de forma distinta, pois na base
e na origem de nossa estrutura agrária não encontramos, tal c2
mo na Europa, uma economia camponesa, e sim a grande exploração
rural que se perpetuou desde os inicios da colonização brasilei
ra até nossos dias; e se adaptou ao sistema capitalista de pro-
dução através de um processo ainda em pleno desenvolvimento e
não inteiramente cornple,tad.~
(••• ) de substituição do trabalho es
cravo pelo trabalho liv,re" 6.
Penso que Lenin não hesitaria em definir como "não clás
sica" essa peculiar adaptação da "grande exploração rural" escra
vista, herdada da Col~nia, ao capitalismo - uma adaptação que
conserva, além da grande propriedade, traços servis nas relaçõro
de trabalho. Característica da via "não clássica", ou "prussia-
na", é precisamente essa complexa articul&ção de "progresso" (a
adaptação ao capitalismo) e conservação (a permanência de impoE
tantes elementos da antiga ordem). Nas, além de registrar a pr~
sença· desse processo de "modernização conservadora" (na feliz
expressão de Barrington Moore Jr.) no Brasil, Caio Prado aponta
também seus traços especificos e mesmo singulares, o que permite
distingui-Io de outros casos igualmente 'hão clássicos", como o
"da própria Alemanha dos Junkers, ao qual se refere Lerrí.n , Ao <D1
• ,c
, .
nos até os anos 60. Ignorando a proble~ática das formas "não
clássicas" de transiçio para o capitalismo (e as peculiaridades
da formação capitalista que dela resulta), os marxistas brasi-
leiros - sobretudo os ligados ao PCB - afirmaram durante muitos
anos que o Brasil era .".'''a I
um pa~s "semifeudal" e "semicolo-
nial", que se defrontava ainda, por conseguinte, com a tarefa
de efetuar uma "revolução democrático-burguesa" ou de "liberta-
t'J ~.:;,~,-- 4..\;,·yn •.lS~ \ )
ção nacional t1 .\(Estava impiici ta, a .noção - falsa - de que para
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central que irá indicar se a implantaçã? ou consolidação da !o~
mação econômico-social '••·.'.r_.,de tipo
capitalista será ,••••••••••
"prussiano" ou, ao contrário, de tipo "clássico". Lenin pros-
segue: "Os anos 1948-1971 foram/na Alemanha! a época de uma luta
revolucionária e.contra-revolucionária entre duas v'ias para a
unificação, ou seja, para a solução do problema nacional do de-
senvolvimento burguês na 4aemanha, uma das quais conduzia à uni
ficação através da república da Grande Alemanha, e a outra atra
, 14
ves da monarquia prussiana" •
Também a Itália, em meados do século passado, defronta-
. que er-a entro
va-se com o desafio da construção de um Estado unific~
<i_
4.
1933, ~~
l
que hoje buscam entender o caráter "não cLas ei.c o" da transição
10. Cf., para uma crítica dessas posições de Caio Prado, rui-
do Mantega, A economia politica brasileira, são Paulo/Pe-
pp. 250 e ss.
trópolis, Poli s/Vozes , 1981.J-,
11. Caio Pr-ado Jr., 11. IP. 97-98.
revolução br::;sileir.:.~,
12. Cf., em particular, fus ensaios de Grarnsci contidos em A
questão meridio::~'al,ed, brasileira, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1987.
13. V.I. Lenin, "Lettre à I. Skovorstsov-Stépanov", in OEuvres,
ed. francesa, Paris, Ed. Sociales, vol. 16, 1973, p. 122.
14. Ibid., p. 124.
20.
15. Para uma síntese do conceito gramsc~ano de "revolução pas-
siva", cf. C.N. Coutinho, "As categorias de ~ramsci e are.!
lidade brasileira", in Presep~, nº 8, setembro de 1986,
pp. 141-162.
..Brasil, cit., pp. 49-
16. Caio Prado Jr. , Evolução poli tica _<!o.
50.
17. Ibid. , p. 74.
18. Ibid. , p. 63.
19. Ibid. , p. 81.
20. Ibid., p. 91.
"-
21. Ibid., p. 94.
22. Cf. J.C. Mariátegui, Sete ensaios de interpretação d~ re~
lidade peruãna~; ed. br-a sã Le í.r a , são Paulo, Alfa-êmega, 1075,
pas sí.m ,
23. Gramsci, QUBderni deI carcere, Turim, Einaudj, 1975, p.
1767.
24. Caio Prado Jr., A revolução brasileira, cit., p. 240.
25. Ibid., p. 30. ESf';Bcentralidade ,,~;n[:fid do campo é
, . .
?
22.