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1.

Introdução

À filosofia brasileira se coloca a tarefa de confiar em sua capacidade de produzir


conteúdo original e crítico em todas as suas áreas. Saindo aos poucos de uma posição de
comentadora da filosofia europeia, apresenta-se a necessidade de pensarmos a nossa realidade
a partir de diferentes métodos em busca das perguntas corretas e respostas adequadas ao
mundo no qual está inserida. Há potência e criticidade na filosofia brasileira porque assim é o
seu meio e sob determinadas circunstâncias ele se desenvolveu. Resgatar e repensar nossos
principais pensadores e pensadoras é o primeiro passo desse processo emancipatório.
Para compreender plenamente a importância das contribuições de Caio Prado Jr.
para a filosofia e política brasileira, é essencial situar suas obras no contexto histórico em que
foram produzidas. No período em que ele escreveu (entre as décadas de 1940 e 1960), o
Brasil passava por transformações políticas, sociais e econômicas significativas. Era uma
época marcada pela emergência de movimentos sociais e debates intensos sobre a construção
da identidade nacional, a estrutura agrária e sua herança colonial, a industrialização e o papel
do Estado. Nesse cenário, as suas análises trouxeram uma perspectiva crítica ao propor uma
interpretação específica da história brasileira, baseada em elementos materiais, sociais e
políticos, que rompia com visões anteriores e abria caminho para um novo entendimento da
nossa realidade.
O período da colonização européia para o autor é determinante para o
entendimento do que é o Brasil e o mundo hoje. Ter em nossa história trezentos anos de
colonização direta significou a imposição de um panorama econômico e político
violentíssimo, como pouco se viu na história humana. Além disso, a colonização é parte
fundamental da exposição que Marx faz da acumulação primitiva do capital 1, base histórica
para a formação do capitalismo mundial. Nosso objetivo aqui portanto é expor parte do
pensamento de Caio Prado Jr, principalmente onde ele se ancora no método dialético
marxista e em seus entendimentos do que foi o papel do Brasil colônia enquanto parte do
fundamento de um novo modo de produção. Tal exposição recorre ao entendimento comum
nos dois autores de que a dialética não é uma caixa de ferramentas subjetiva do crítico, mas a
apresentação do movimento próprio do capital, construída na observação dos conceitos que
este abarca em seu desenvolvimento.
1 “Tínhamos naquele momento chegado a um ponto morto. O regime colonial realizara o que tinha para realizar. Sente-se que a obra da
metrópole estava acabada e nada mais nos poderia trazer (...). Não é somente o regime de subordinação colonial em que nos achávamos que
está em jogo: mas sim o conjunto das instituições, o sistema colonial na totalidade dos seus caracteres econômicos e sociais que se
apresenta prenhe de transformações profundas.” (2000, pág. 05))
2. Fundamentos teóricos

Ao considerarmos as reflexões de Marx sobre a acumulação primitiva do capital,


percebemos a importância da compreensão desse processo histórico para a análise da
colonização. A noção de violência, expropriação e dominação emerge como elementos-chave
na compreensão das relações coloniais e das implicações políticas e filosóficas desse período.
Assim, a colonização não pode ser simplesmente interpretada como uma reprodução linear
dos processos históricos europeus, mas sim como um complexo arranjo de relações de poder,
exploração e subjugação que moldaram profundamente a realidade colonial. Por isso a
dialética marxista nos convida a uma reflexão crítica sobre as raízes e as consequências da
acumulação primitiva do capital na formação das sociedades coloniais e suas relações com o
sistema capitalista mundial.
A análise dialética das contradições e consequências da colonização, à luz das
reflexões de Caio Prado Jr., revela-se como uma abordagem essencial para compreendermos
as dinâmicas sociais, econômicas e políticas que permearam esse período histórico. Sob a
influência da dialética marxista, Prado Jr. nos convida a ir além da superfície dos eventos
coloniais e adentrar no cerne das contradições que marcaram essa experiência.
Ao examinarmos a colonização como um processo histórico específico,
identificamos um movimento contraditório entre a dominação externa e a reconfiguração
interna das estruturas sociais. A presença colonizadora impôs-se com violência, usurpando
terras, expropriando recursos naturais e subjugando as populações nativas. No entanto,
simultaneamente, a colonização gerou uma série de contradições internas, estabelecendo
relações sociais e econômicas complexas que moldaram a realidade do Brasil.
Prado Jr. destaca que a colonização do Brasil não se deu de forma homogênea,
mas sim sob uma lógica contraditória que revela a ação simultânea de forças opostas. A
relação entre colonizador e colonizado, explorador e explorado, manifestou-se como um
embate de interesses, onde a busca pelo lucro e a acumulação de capital se chocavam com as
demandas e resistências das populações subjugadas.
Seus estudos sobre a dialética - particularmente a dialética marxista - indicam a
necessidade de considerarmos as peculiaridades do desenvolvimento econômico que se
desenrolaram na específica história colonial local. Para isso, ele ensina que precisamos ir
além da aparência do que era o Brasil colônia e procurar investigar o que está por trás disso,
qual nexo desenrola a economia em questão e que a expõe com determinada aparência.
Particularmente o século XIX Prado Jr coloca como divisor; é a culminação de um processo
anterior agora saturado e que exige alguma mudança estrutural. O sistema colonial como um
todo estava sendo questionado na sua eficiência, considerando a sua relação necessária com o
capitalismo que se tornava mundial. Ele afirma que o que é instaurado com a colonização no
Brasil é certamente consequência de uma relação imposta pela Europa, mas em um
desenvolvimento muito diferente do que foi o desenvolvimento europeu. Não podemos
esperar que o entendimento que se tem sobre os processos históricos que lá culminaram com
o capitalismo se repitam no Brasil como uma teleologia específica e inevitável. Sua crítica
dirige-se principalmente a pensadores da dita Escola Paulista de Sociologia (Sérgio Buarque
de Hollanda, Gilberto Freyre, etc) que afirmavam a necessidade do Brasil superar etapas
(distintos modos de produção) para alcançar o capitalismo moderno e ter uma burguesia
estabelecida para que assim então pudesse se pensar em alguma superação da sociedade
contemporânea.
Ao se aprofundar na análise da acumulação primitiva do capital e em sua crítica,
Caio Prado Jr. estabelece um diálogo com outros pensadores e correntes de pensamento do
seu tempo. Ele questiona a noção de que o desenvolvimento brasileiro seguiria uma trajetória
linear e teleológica, na qual seria necessário passar por estágios ou etapas (daí o conceito de
etapismo) específicos de desenvolvimento para atingir o capitalismo moderno. Ao invés
disso, ele destaca a singularidade do processo histórico brasileiro, enraizado em uma
colonização marcada por relações de exploração e expropriação. Sua abordagem dialética,
fundamentada na perspectiva marxista, permite analisar as contradições e as especificidades
do desenvolvimento brasileiro, desafiando interpretações simplistas e engessadas, propondo
uma compreensão mais abrangente do papel do Brasil na formação do sistema capitalista
global.

3. Caio Prado Jr: interpretação dialética da colonização

Mais do que uma simples adaptação dos conceitos e história europeus à realidade
brasileira, o convite de Caio Prado Jr. é que pensemos a realidade nacional pelo olhar
específico da nossa história, ao mesmo tempo entendendo que já em seu início e
progressivamente a nossa economia é assimilada pelo capitalismo nascente, como seu
fundamento histórico material e como futuro sustentáculo moderno na produção de matéria
prima na divisão internacional do trabalho.
Em sua interpretação, não podemos esperar que uma estrutura de exploração de
riquezas consequência de fatores nascidos da história européia tenha por foi condutor
processo igual ao que passou o velho mundo, como se fosse um mundo estagnado que, agora
tocado pela civilização européia, é capaz de seguir o rumo estabelecido pelo exemplo
europeu. A dialética marxista - na qual se ampara Caio Prado Jr - não é um conjunto de
orientações subjetivas prontas para serem aplicadas à história humana e aos seus diferentes
modos de produção. Na realidade, Marx nos ensina que ela é a abstração de um concreto
efetivo que precisa ser previamente analisado e compreendido. Trata-se da lógica do capital,
a maneira pela qual ele se move dentro do sistema capitalista e para o entendermos
precisamos partir do concreto efetivo onde ele se construiu ou com o qual se relaciona.
Prado Jr. nos traz novas bases para o entendimento sociológico do Brasil.
Considera o colonialismo no século XIX uma etapa decisiva em nossa história e que inaugura
um processo específico e endêmico no desenvolvimento histórico local. Partindo de uma
perspectiva materialista da sociedade, defende que há um sentido na história que pode ser
percebida ao olharmos para trás e analisarmos o que definiu os caminhos seguidos por aquela
população específica dentro do horizonte específico que a cerca.. Há um sentido na
colonização brasileira que se inicia naquela fase, uma direção para a qual ela aponta e Caio
Prado quer nos mostrar esse sentido: “Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um
certo “sentido”. Este se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos
fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo.” (2000, pág.
13)
A colonização brasileira se deu como “um capítulo da história do comércio
europeu” (2000, pág. 16). A intenção da coroa portuguesa no Brasil tinha como norte o
estabelecimento de uma empresa comercial. O desenvolvimento que a metrópole procurava
proporcionar aqui limitava-se a garantir a produção de mercadorias tropicais e extração de
minérios. A relação econômica do Brasil com Portugal era exclusiva e por muito tempo a
profundidade dessa dependência significou colocar a colônia como um prolongamento
econômico do além mar. O desenvolvimento de uma cultura e sociedade próprias é parte da
saturação que a Europa teve que lidar quanto à estrutura colonial e de dominação comercial.
O avanço da capitalização das relações de produção, ao mesmo tempo que permitiu uma
transferência de valor jamais vista, criou condições para a exigência de um avanço estrutural
na sociedade colonial, conforme indica Prado Jr2.

2 “(...) Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser
explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações tem, ao contrário, suas raízes nas condições
materiais de existência, sem suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia
A função social da estrutura colonial deu-se em torno da exploração das riquezas,
o que significa que as cidades, ruas, moradias, leis, estado, etc construíram-se em torno ao
máximo de eficiência dessa exploração. A ocupação do campo, portanto, não se dá como
resultado de um processo secular de distribuições de terras baseado em defesa e proteção
mútua (como no feudalismo europeu). Não havia realmente um regime a ser superado como
houve na Europa. Podemos encontrar um fio condutor ao olharmos para o passado de uma
sociedade, mas isso não significa que este fio - abstração de uma realidade concreta, histórica
- seja independente ao ponto de poder ser aplicado em contextos diferentes. A abstração que
se expõe é exposição de uma realidade concreta e dela depende conceitualmente. O
capitalismo acabou por se desenvolver e se consolidar no Brasil, mas por vias próprias3.

4. Conclusão

Essa contradição fundamental desencadeou uma série de consequências que


repercutem até os dias atuais. A apropriação dos recursos naturais, por exemplo, resultou na
devastação ambiental e no esgotamento dos ecossistemas, afetando não apenas as
comunidades locais, mas também a sustentabilidade do próprio sistema capitalista. Da mesma
forma, a imposição de um modelo de produção voltado para a exportação de commodities
gerou dependência econômica e fragilidade estrutural, dificultando o desenvolvimento
autônomo do país.
No plano social, as relações coloniais estabeleceram uma estrutura de
desigualdade e exclusão, onde a hierarquia racial, a exploração do trabalho e a negação dos
direitos básicos foram pilares fundamentais. Essas contradições sociais persistem até hoje,
manifestando-se nas desigualdades socioeconômicas, no racismo estrutural e nas injustiças
que permeiam a sociedade brasileira.
No âmbito político, a colonização também deixou suas marcas. A ausência de
participação popular efetiva ( apesar das diversas lutas e movimentos de resistência ao longo
do período colonial) e a instrumentalização do Estado em favor dos interesses colonizadores
resultaram em instituições frágeis e em um legado de autoritarismo e clientelismo. A luta por

sob o nome de “sociedade civil”. (2008, pág, 47). O movimento contraditório que configura a dialética marxista não é a reconstrução
histórica do capitalismo, mas é a exposição das contradições de um sistema de produção quando assimilado ou em relação com o capital.
3 Tal conceito não tem origem em Marx, ainda que este o tenha usado criticamente. Os liberais ingleses já
falavam sobre o processo de fundamentação do capitalismo como um momento primitivo desse modo de
produção. No geral, a acumulação primitiva é descrita pelas características de transição do feudalismo para um
novo sistema econômico; Marx se apropria dessa definição criticamente, expondo as contradições e violência
necessárias a tal processo inicial.
autonomia política e pela superação dessas estruturas opressivas tornou-se uma demanda
constante na história do Brasil.
A análise dialética das contradições e consequências da colonização, realizada
por Caio Prado Jr., permite-nos compreender a complexidade desse processo histórico e suas
implicações filosóficas e políticas. Ela nos convida a olhar além das aparências e desvelar as
forças contraditórias em ação, revelando as tensões, os embates e os desdobramentos que
moldaram e continuam a moldar a realidade brasileira. Somente por meio de uma
compreensão profunda dessas contradições é possível avançar rumo à superação das
estruturas coloniais e à construção de uma sociedade mais justa, igualitária e autônoma.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
_______ “A revolução brasileira”. In: Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes: clássicos sobre a
revolução brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2000 [1966].
MARX, K. Contribuição à crítica da economia política. Tradução de Florestan Fernandes.
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, K. O capital: Livro 1, Volume 2. 4. ed. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 1971.

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