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ANTONIO CANDIDO cesso foi determinada pelos tipos de ajustamento


OS PARCEIROS DO RIO BONITO: ESTUDO do grupo ao meio, com a fusão entre a herança
SOBRE O CAIPIRA PAULISTA E A portuguesa e a do primitivo habitante da terra; e
TRANSFORMAÇÃO DOS SEUS MEIOS DE VIDA só a análise desse processo pode dar elementos
para compreender e definir a economia semi-
Livraria Duas Cidades/Editora 34, São
nômade, que tanto marcou a dieta e o caráter do
Paulo, 2001 (1.ª ed.: 1964). paulista.” (p. 46) Surge, assim, uma relação com
a natureza que enfatiza os “níveis mínimos de
Foi com alguma surpresa e bastante embaraço que sobrevivência” – níveis esses determinados pela
acabei a leitura de Os Parceiros do Rio Bonito, de combinação histórica entre as duas heranças
Antonio Candido de Mello e Souza. Como me teria originais. Vemos, pois, como o estudo se abre à
escapado até tão tarde um estudo socioantro- influência de Marx – sem dúvida a mais marcante
pológico desta importância, publicado há tanto de um ponto de vista teórico.
tempo, ainda por cima em português? As sociedades produzem historicamente pa-
Na verdade, classifico este livro sem qualquer drões mínimos de socialidade (“bens incompres-
hesitação como um ponto alto do funcionalismo síveis”, diz o autor, citando J.-L. Lebret) que são
dos anos 50 e 60 – uma monografia para ombrear condição para “definir tipos humanos mais ou
com as melhores dos mediterranistas anglófonos menos plenos, dentro dos seus padrões e das suas
da época. Como é fundo o Atlântico, como é possibilidades de vida econômica, social, religiosa,
injusta a hegemonia do inglês! artística” (idem). Não se pode esperar que uma
Trata-se de um “estudo de comunidade” so- sociedade os abandone do pé para a mão. Pelo
bre a “sociedade caipira” (a população rural do contrário, conforme se amontoam as ameaças à sua
estado de São Paulo) e as alterações a que estava maneira de viver, mais os seres humanos se atêm
sujeita por virtude da modernização acelerada a essas “práticas e costumes [que] se tornam, em
que ocorria nos meados do século XX.1 Antonio boa parte, sobrevivências” (idem). Para Antonio
Candido identifica “um tipo social”, o “caipira”, Candido, na época em que escrevia, parecia ur-
para logo procurar as suas raízes históricas e, a gente fornecer ao caipira os meios intelectuais e
partir destas, analisar as condicionantes estru- económicos para ultrapassar a sua história, adap-
turais que integram essa “maneira de viver”. tando-se a uma modernidade, de facto, inadiável.
Procura, assim, identificar essa “equação neces- Sem isso, a urbanização do campo acabaria por se
sária entre o ajuste ao meio e a organização so- tornar um “vasto traumatismo cultural e social”
cial” que caracteriza cada sociedade num de- (p. 281). Proféticas palavras, à luz da violência
terminado momento (p. 32). urbana que se vive no Brasil!
De um ponto de vista metodológico, é bem Antonio Candido foi sempre um intelectual
patente a influência de Robert Redfield e dos engajado, fazendo parte do grupo de professores
“estudos de comunidade” tão característicos da da USP que, nessa altura, se dedicavam inten-
época. Contudo, estamos longe dos caminhos ba- samente à leitura de Marx.2 À época, fora já co-
tidos da monografia funcionalista clássica. Antonio fundador do Partido Socialista Brasileiro e, mais
Candido é francamente crítico da perspectiva tarde, desempenharia papel destacado no Partido
culturalista do mestre americano (especialmente dos Trabalhadores. Esforçar-se por melhorar as
do conceito de folk-culture, cf., por exemplo, condições sociais não era só um dever de cida-
p. 100). Mais ainda, a sua obra destaca-se pela dania, diz-nos o autor, mas uma condição in-
importância atribuída à história e à “longa du- contornável do próprio método sociológico, já
ração” na explicação das reacções à mudança. que “em todo o verdadeiro estudioso das
O livro inicia-se com uma digressão ao pas- sociedades modernas” jaz latente um “reforma-
sado, ao período dos “bandeirantes”, mostrando dor social” (p. 280). Não surpreende, portanto,
como, sobretudo a partir do século XVIII, a “ex- que o argumento geral do livro remeta para o
pansão paulista” criou uma sociedade rural es- problema da posse da terra já anunciado no título
pecífica e legou padrões de vida que, hoje, são – um apelo à “reforma agrária” (p. 281) que, no
indispensáveis para compreender a vida social e Brasil, como sabemos, continua a ser hoje uma
as expectativas culturais. “A linha geral do pro- questão actual.

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Um dos aspectos mais interessantes da obra, fluida, rompendo-se a cada passo para dar saída
porém, é a forma como Antonio Candido agrega aos que iam integrar-se noutro sistema, ou correr
ao molde teórico marxista uma perspectiva de o risco da anomia no isolamento das posses dis-
estudo dos “meios de vida” totalmente distinta: a tantes” (p. 270).
obra pioneira de Audrey Richards, feita à luz da Aí se mostra como a preservação cultural face
teoria das necessidades de Malinowski, sobre a às alterações sociais em curso acaba por ser uma
dieta, a fome e a vida social dos Bemba, no forma de preservação grupal que permite aos
Nordeste da actual Zâmbia (cf. Audrey Richards, bairros funcionarem como “reguladores da mu-
Land, Labour and Diet in Northern Rhodesia, 1951). dança”. Para Antonio Candido, a urbanização em
A Marx, o autor vai buscar “a consciência da causa aqui não é necessariamente a migração para
importância dos meios de vida como factor di- a cidade, mas sim uma adaptação aos novos pa-
nâmico, tanto da sociabilidade quanto da soli- drões de subsistência implícitos na modernidade e
dariedade que, em decorrência das necessida- que funcionam tanto nos campos como na cidade.
des humanas, se estabelece entre o homem e a Aliás, a obra termina com uma curiosa citação de
natureza, unificados pelo trabalho consciente” Marx, em que nos é explicado que “a oposição
(p. 14). Mas é em Richards que encontra a entre campo e cidade só pode existir no quadro da
metodologia que lhe permite operacionalizar o propriedade privada” (p. 283).
estudo que realiza dos padrões mínimos vitais e A partir do estudo das “técnicas de viver”, e
sociais que marcam a vida caipira – essa corda em especial da alimentação, somos remetidos para
bamba da fome que, como etnógrafo, pressentira a noção de que a cultura – e, portanto, a história –
no terreno (p. 197). é um factor incontornável para a compreensão da
Nessa perspectiva, as considerações em torno acção humana: “De um ponto de vista social, a
do “desamor ao trabalho” merecem especial aten- alimentação só se torna inteligível como neces-
ção (cf. pp. 103-114). Devido à própria origem sidade na medida em que está ligada a uma
histórica da sociedade caipira e à forma como a organização para obtê-la e distribuí-la” (p. 36).
relação com o meio ambiente se estruturou, esta cul- A exploração do conceito de “fome psíquica” é
tura assentava sobre o recurso a “soluções míni- particularmente interessante neste aspecto (pp. 198
mas” de sociabilidade e subsistência. Face à socie- e 246-249), pois remete para as considerações do
dade envolvente brasileira, em que o emprego de autor sobre a “miséria” como conceito necessa-
mão-de-obra servil era generalizado, “esse caçador riamente comparativo e, portanto, radicado numa
subnutrido”, de origem branca ou mestiça de índio, história (social, económica, cultural) (p. 279). Se
“senhor do seu destino graças à independência bem que tal não seja explicitado, o conceito
precária da miséria, refugou o enquadramento do redfieldiano de the good life – como objectivo
salário e do patrão, como eles lhe foram apre- central integrante de uma visão do mundo (cf.
sentados, em moldes traçados pelo trabalho servil” João de Pina Cabral, Filhos de Adão, Filhas de Eva,
(p. 107). Assim o autor nos explica como é que o 1989) – não parece estar muito distante.
apego a padrões de lazer e à recusa do esforço O livro termina com um posfácio sobre
prolongado constituem características de adaptação “A Vida Familiar do Caipira”. Tendo em conta a
socioeconómica historicamente radicadas. natureza da tese central, é de compreender que o
O corpo central da obra é constituído por um autor tenha optado por apresentar estes aspectos
rigoroso estudo da relação entre dieta, entreajuda como se de algo de externo à obra se tratasse. Na
comunitária e vida socioeconómica. Estudando verdade, porém, tal não é o caso. Aí encontra-
minuciosamente a estruturação dos “bairros”, a mos algumas observações de enorme interesse e
principal forma social caipira, e os modelos de actualidade que constituem complementos indis-
entreajuda a que estes estão associados, o autor pensáveis ao estudo da socialidade dos bairros e
desenha um equilíbrio instável entre “comuni- dos padrões de mobilidade e entreajuda expostos
dade” e “mobilidade” (nomadismo até), aspectos no corpo central do livro. Chamo a atenção do
que perpassam historicamente a vida caipira: leitor, em particular, para as discussões sobre
“O sistema de relações nos agrupamentos vicinais matrimónio, sobre sexualidade e isolamento rural
funcionava como membrana de tensão superficial, e sobre práticas de nomeação pessoal, que são da
mantendo em equilíbrio uma população rala e maior utilidade comparativa.

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Como nos é explicado no prefácio, foi o social brasileiro, com o intuito muito preciso de poder avaliar as
políticas em curso” (José Arthur Giannotti, 1998, “Recepções de
interesse pela literatura popular caipira que levou Marx”, Novos Estudos, 50, p. 116).
o autor a querer estudar a sociedade que a pro-
duzia. Assim, pouco depois de terminar o livro, João de Pina Cabral
que constituiu a sua tese de doutoramento (em Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa
ciências sociais, na Universidade de São Paulo, em
1954), Antonio Candido decidiu dedicar-se a
“puxar o fio da formação da literatura brasileira”
(José Arthur Giannotti, “Recepções de Marx”,
1998, p. 118, destaque no original), tendo deixado GIULIANO PROCACCI
um riquíssimo legado, tanto nessa área como na da LA MEMORIA CONTROVERSA: REVISIONISMI,
intervenção política. Por esta razão, o livro cons- NAZIONALISMI E FONDAMENTALISMI NEI
titui um caso à parte na sua obra e não teve a MANUALI DI STORIA
promoção que mereceria, até porque só viria a ser Cagliari, AM&D, 2003.
publicado muito tardiamente, em 1964, numa
altura em que os ventos dominantes tinham mu- Em sete capítulos, o autor analisa as controvérsias
dado nas ciências sociais. que vêm marcando, em diferentes países e áreas
Não é caso único na literatura antropológica. do mundo, a elaboração dos manuais escolares de
Quando foram publicadas, obras de elevada cria- história. Dos chamados last comers, como as novas
tividade analítica, tais como, por exemplo, The Life- repúblicas do Leste europeu, passando por Israel,
-Giving Myth, de A. M. Hocart (1954), ou The Greek Rússia, Japão, Índia, Inglaterra ou EUA, Giuliano
Gift, de Peter Loizos (1975), correspondiam a Procacci traz-nos os debates que vêm sendo tra-
debates gastos, que já tinham sido abandonados vados entre elites políticas e científicas, movi-
pelas vozes dominantes nas ciências sociais. Com mentos culturais e governos nacionais.
o passar dos anos, contudo, estas obras desfasadas, Procacci, refira-se, é um dos mais conceitua-
abandonadas à nascença, acabaram por afirmar-se dos historiadores italianos, agora em fim de car-
pelo génio que contêm. reira. O seu percurso ideológico é, como acontece
Os Parceiros do Rio Bonito é de longe a melhor com muitos outros intelectuais italianos da sua
monografia de cariz funcionalista escrita em por- geração, indissociável do percurso do Partido
tuguês que me foi dado conhecer até hoje e, pela Comunista Italiano. Também por aqui se percebe
sua sofisticação, é um exercício teórico de in- que as reflexões de Eric Hobsbawm, muito aten-
teresse intemporal, pelo que estava eminente- dido na tradição da esquerda italiana, surjam
mente destinada a ser descoberta. Aos que vi- como o principal porto de abrigo do livro de
viam os conturbados anos da década de 1960, a Procacci no contexto dos debates teóricos sobre os
mistura de Redfield com Marx e Malinowski nacionalismos.
deverá ter parecido improvável e até insalubre. Das vastas informações expostas por Procacci
Mas, como tantas vezes ocorre, estas “idéias sublinham-se dados que nos permitem ficar a par
fora do lugar”, na expressão famosa de Ro- de várias especificidades em torno da produção
berto Schwarz, acabam por conter um inesperado dos manuais escolares. De como na Rússia e em
potencial de futuro. grande parte dos países da Europa de Leste existe
um manual de história nacional e um manual de
história geral, de como em Espanha se verifica um
1 No lindíssimo título, a palavra “parceiros” refere-se à relação plano de estudos que reserva 45% do espaço
com a terra e tem implícita em si todo um argumento crítico dedicado à história nacional à história das comu-
sobre o processo de expropriação fundiária que estava a decorrer. nidades regionais/nacionais do país. Ou, ainda, de
Parceiro, neste contexto, é o agricultor que cultiva a terra me-
diante um contrato de parceria sob o qual entrega ao dono da como na região balcânica a percentagem de espaço
terra uma percentagem da produção anual (um share-cropper ou, dedicado à história nacional se situa acima da
como se dizia no Minho, um caseiro). média global considerada pelo autor (73% no caso
2 Como nos explica José Arthur Giannotti, “todos líamos Marx

com o objectivo explícito de entender o estágio em que se


da Sérvia, 60% no caso da Croácia).
encontravam as relações sociais de produção capitalistas, para Mas, para lá dos dados quantitativos, o livro
situar nelas as dificuldades do desenvolvimento económico e de Procacci permite-nos fixar algumas proble-

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máticas essenciais à relação entre historiografia e manuais históricos, isto é, a história como uma
nacionalismo. Desde logo a questão da catego- tensão dialéctica entre uma dimensão nacional e
rização da história em dois planos, um nacional e uma dimensão geral.
um outro geral. Esta categorização dicotómica é Todavia, segundo escreve Procacci no capítulo
comum à esmagadora maioria dos casos estu- dedicado ao debate nos EUA, ocorreram debates
dados por Procacci. Esta imaginação do passado nos últimos tempos em que uma mudança pa-
que o fixa num plano duplo – o “eu” e o “outro” radigmática veio sendo produzida, mesmo que
– mostra-se assim decisiva na construção das iden- esteja longe de se concretizar ou que tenha sido até
tidades nacionais. submetida. A proposta da passagem do conceito
Procacci mostra-nos mesmo como ao longo da de melting pot para o conceito de salad bowl
história, em situações de ruptura política mais ou (saladeira), no caso americano como igualmente
menos espectacular, esta continuidade persiste. no caso indiano, traz consigo a tentativa de uma
Veja-se a existência de um manual para a história nova representação do passado, onde não há uma
nacional e um outro para a história geral nos concepção do “outro” como oposto do “eu”. Trata-
países de Leste que se formaram sobre a queda da -se de algo que grande parte das propostas mul-
URSS, na qual tal separação já se verificava. ticulturais e pós-coloniais, assentando ainda numa
Mas, ainda mais significativamente do que a representação sintetizadora (sincrética) das cul-
continuidade através do tempo, Procacci mostra- turas ou limitando-se a procurar inverter o lugar
-nos a continuidade entre os projectos que se das hierarquias da dominação, acabou por não
opõem no interior de cada espaço nacional. Dos questionar.
processos de controvérsia que marcam os debates É neste contexto que uma outra influência
em torno das elaboração dos manuais não resul- intelectual marca a linha de Procacci. Ele mesmo
tam, na maior parte das vezes, rupturas com destaca o pensamento de Amartya Sen, o indiano
aquela estrutura dicotómica produtora de iden- prémio Nobel da economia que defendeu nos anos
tidade. Afectos politicamente à esquerda ou afec- 80, junto do Partido do Congresso Indiano, que na
tos politicamente à direita, os processos de revi- Índia ninguém devia ser concebido como “outro”,
sionismo que contestam a memória nacional do- propondo a laicidade do programa do partido
minante filiam-se na mesma lógica do sistema que fundador da independência.
contestam, propondo uma inversão dos conteúdos. No caso americano, a ideia da saladeira trata
É a isto que assistimos no caso de Israel, com do abandono da busca de uma identidade nacional
figuras como Shlomo Avineri a promoverem uma sintetizadora das diferentes origens, trata mesmo
revisão do nacionalismo israelita dominante por do abandono da busca de uma origem, para dar
meio da alegação das origens socialistas do sio- lugar a uma proposta de representação das iden-
nismo. É ao que assistimos, em sentido contrário, tidades que se jogam num mesmo espaço reci-
no caso da Índia, onde o revisionismo é pro- piente – é certo que contaminando-se, mas sem
movido a partir do campo intelectual da direita, que daí resulte uma qualquer massa homogénea.
em busca de uma origem ariana da civilização A ideia de uma nação multicultural, de unidade na
hindu contra uma preponderância de tradição diversidade, que de certa forma preside a parte do
marxista que se vinha sistematizando dominan- discurso progressista em França ao longo dos úl-
temente. Trata-se de conflitos que afirmam sen- timos anos, perde aqui espaço para uma cate-
tidos contrários, mas sentidos contrários que se gorização não nacional das origens históricas e das
relacionam na mesma direcção. identificações presentes. Na ideia da saladeira não
Ou seja, o revisionismo – colocado por Pro- há propriamente espaço para a ideia de unidade.
cacci de uma forma neutra, despido da carga Com a salad bowl que Procacci nos propõe, con-
ideológica que havia adquirido na tradição de tudo, fica ainda por desafiar o próprio conceito de
debate político do campo do marxismo, por um identidade e a própria ideia da história como
lado, e no campo historiográfico, como mostra a busca de origens.
situação do debate em torno da Revolução Fran- É ainda assinalável que o livro de Procacci
cesa de 1789, por outro lado – surge como uma não dedique nenhum capítulo aos casos europeus
forma de conflito que não põe em causa (antes ocidentais (se aqui não incluirmos a Inglaterra).
constitui) a mais fundamental das estruturas dos Na verdade, os recentes acontecimentos políticos

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mundiais facilitaram que se olhasse para o na- interessante perceber, num outro plano, a ten-
cionalismo num país ocidental como os EUA. Mas, dência que os manuais escolares terão para acen-
no caso da Europa Ocidental, alguma blindagem tuar a ruptura em detrimento da continuidade,
ainda resiste e Procacci tinha aqui uma boa opor- privilegiando uma história indissociável do tempo
tunidade para a desgastar. do épico.
Igualmente interessante seria explorar os
José Neves
casos africanos. Procacci nota avulsamente que, Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia
em África, uma tendência inicial parecia privi- Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
legiar a dimensão continental africana na cons-
trução da memória histórica levada a cabo pelas
elites africanas na segunda metade do século XX.
Mas logo afirma que essa tendência inicial terá
dado lugar a um esforço de singularização da TELMO H. CARIA (ORG.)
memória histórica, promovido a partir de cada EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA EM CIÊNCIAS
estado-nação, com reflexos claros nos manuais SOCIAIS
escolares. Na verdade, e tal pode ser de certa Porto, Edições Afrontamento, 2002.
forma observado no caso da África colonizada por
Portugal, parece ser a passagem de uma dimensão Um pequeno livro com textos úteis: eis uma forma
movimentista para uma dimensão soberanista que de sumariar Experiência Etnográfica em Ciências
assinala a passagem de uma retórica africanista Sociais. A colectânea junta-se à (escassa) biblio-
para uma retórica nacionalista. Será com o fim dos grafia – de resto invocada na introdução – sobre
movimentos de independência e a sua estatização metodologias e, em particular, sobre o problema
que a imagem das identidades nacionais começará de saber como se pensa e faz etnografia nas
a ser construída sistematicamente. Esta hipótese ciências sociais em Portugal. Embora os alunos do
– é a passagem de um marco movimentista para ensino superior, os investigadores juniores e o
um marco soberanista que permite a construção de público em geral merecessem mais obras espe-
identidades nacionais – vem de certa forma ques- cializadas em “normas de procedimento metodo-
tionar a necessidade da associação entre iden- lógico” (p. 9) e outros problemas estruturantes da
tidade nacional e militância anticolonialista, entre investigação que atravessam os estudos quali-
a própria ideia da identidade e a possibilidade de tativos – à imagem do que se faz noutros países –,
mobilização social conflitual. Experiência Etnográfica em Ciências Sociais não se
A leitura do livro de Procacci convida uma afirma como manual e denota até um certo anti-
preocupação: não tomar as categorias do real como normativismo, já antes defendido por Madureira-
categorias de conhecimento do real. Assim, con- -Pinto (cf. p. 10).
clui Procacci que a dicotomia nacional/geral que Os textos são dominados por um mesmo
marca a produção dos manuais é de tal forma objectivo: encontrar nas linhas teóricas que in-
geral que remete o nacional para o domínio das formam as diversas experiências etnográficas dos
especificidades. A mesma preocupação resulta da autores o sentido de todo o processo de inves-
divisão que opõe, em cada caso estudado, cos- tigação, um processo que assenta sempre na re-
mopolitas e nacionalistas (para utilizar as expres- lação particular do investigador com o seu tra-
sões do autor). Nesta perspectiva, torna-se clara a balho de campo e com a construção teórica. Assim,
ilusão da ideia de que o local corresponde ao a ideia, bem apresentada por Caria, é “objectivar
heterogéneo e o global ao homogéneo, até porque e racionalizar o que ocorreu” no campo (p. 10) –
a questão é desde logo a da impertinência deste para “compreender a (ir)racionalidade do outro”
par dialéctico. Também teria sido interessante (p. 12), a etnografia é apresentada como “lugar de
perceber a tendência que, no campo da história fronteira” (p. 13) – e a ambição é contribuir para o
geral, marcará de forma comum as diferentes “desenvolvimento de uma teoria social sobre a
abordagens nacionais da história; por exemplo, em investigação etnográfica” (p. 10).
torno da ideia, do tempo e do lugar da Idade Esta opção tem efeitos legitimadores da prá-
Média, objecto de esquecimento e/ou mistificação tica científica e, também por isso, deve ser en-
em manuais de vários países. Assim como seria carada com seriedade. A tentativa de dar segui-

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mento a eixos de reflexão propostos antes por progressivamente, vai-nos introduzindo no tema
investigadores portugueses, misturando indiscri- da sua pesquisa, que se baseia em entrevistas a
minadamente referências a sociólogos e a antro- professores dos três primeiros ciclos do ensino em
pólogos, como António Firmino da Costa, Boaven- Portugal. O autor demonstra como à medida que
tura de Sousa Santos, Madureira-Pinto, Miguel foi recolhendo narrativas biográficas foi identifi-
Vale de Almeida, Maria Cardeira da Silva ou Raul cando o seu self e traduzindo a sua própria ex-
Iturra, entre outros, aponta para a necessidade de periência de professor.
alargamento da construção e representação da Na segunda parte do livro, o quinto capí-
etnografia às várias disciplinas do social, o que tulo, Manuela Ribeiro questiona “como chegar às
aliás emana dos vários contributos textuais do pessoas?”. Apresentando expressivos apontamen-
livro. tos do registo diário do seu trabalho de terreno
A obra divide-se em duas partes: um bloco de entre famílias camponesas transmontanas, vai-nos
textos onde se questionam sobretudo práticas de demonstrando o papel do tempo na construção
investigação – que T. Caria intitula “a construção das relações interpessoais e na colaboração pro-
sociocognitiva” – e outro – que designa como “a gressiva entre investigadores e nativos. No sexto
construção socioteórica” – que questiona os limites capítulo viajamos até aos mapuche do Chile com
convencionais (mal) impostos ao conhecimento, Luís Silva Pereira. Da narrativa ressaltam dois
obrigando a uma “recontextualização da teoria aspectos: a forma como o investigador percorre
social” (p. 18). um itinerário algo sinuoso até chegar aos mapuche
À cabeça dos quatro primeiros capítulos está e as representações do estrangeiro (alicerçadas na
Luís Fernandes, um investigador que se tem afir- história local e espalhadas através de boatos) que
mado como etnógrafo urbano e que faz jus à o etnógrafo enfrenta, levando a que os nativos lhe
palavra interdisciplinaridade nas ciências sociais. enderecem frequentemente uma mesma questão:
Partindo das suas notas pessoais no diário de “qué hace por estas tierras?” No sétimo capítulo
campo em territórios psicotrópicos do Porto, o mudamos para o continente africano, para, entre
autor conduz-nos num verdadeiro trabalho de os nalu da Guiné-Bissau, Amélia Frazão-Moreira
referência para quem deseje ter uma noção fina do nos descrever aspectos da sua interacção com os
tipo de organização e indexação possíveis desse nativos em duas etapas do terreno: a da recolha
documento que tem para a maioria dos etnógrafos etnográfica mais generalizada e a do processo de
o estatuto de fonte privilegiada. Com Paulo Ra- levantamento etnobotânico e uso de técnicas da
poso entramos no domínio da discussão de ideias “antropologia experimental”. No texto é recorrente
exploratórias que atravessam a sua pesquisa, cen- a preocupação com as possibilidades de retri-
trada na observação e interpretação de perfor- buição e retorno do trabalho de campo. Manuela
mances culturais em Portugal. Partindo da ideia da Ferreira retoma o tema da educação, já antes tra-
“viagem etnográfica”, física e intelectual, do in- balhado neste volume, mas agora com a etnogra-
vestigador, o autor adianta algumas advertências fia de crianças em idade pré-escolar num jardim
teórico-metodológicas válidas para o seu campo de infância em meio rural português. A autora
de investigação. O terceiro capítulo, da respon- começa por tecer uma crítica às limitações da
sabilidade de Elísio Estanque, parte das ideias de perspectiva adultocêntrica da infância e acaba por
Pierre Bourdieu para propor uma metodologia procurar dar sentido ao jogo de perplexidades
compreensiva onde os pressupostos subjectivos do mútuas quando, como etnógrafa com o estatuto
investigador passam a ser revelados e incorpo- de “amiga”, fica para observar e participar nas
rados na análise, com o fim de prevenir eventuais actividades das crianças. Manuel Carlos Silva
efeitos preversos da ciência. Entramos no contexto encerra a colectânea com algumas considerações
fabril do calçado no Norte de Portugal e, com o sobre técnicas de recolha de dados e fala das
autor, partilhamos as ambivalências e os pro- vicissitudes das experiências de trabalho de campo
blemas que no quotidiano da investigação surgem em duas aldeias do Norte de Portugal, Aguiar e
quando negoceia, num mesmo terreno e simul- Lindoso. Na primeira experiência evidencia como
taneamente, o seu estatuto de investigador e de as aparentes vantagens das relações intrafamiliares
trabalhador. No quarto texto, Ricardo Vieira parte na região e sobretudo a posição comprometida
de considerações gerais acerca da etnografia e, com a ideologia marxista num quadro de inves-

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tigação-acção se transformam em desvantagens no MANUELA IVONE CUNHA


trabalho de campo; na segunda narra as difi- ENTRE O BAIRRO E A PRISÃO: TRÁFICO E
culdades que experimenta na sua inserção na TRAJECTOS
aldeia e a forma como vai resolvendo tais equí- Lisboa, Fim de Século-Edições, 2002.
vocos e operacionalizando a etnografia.
Que lições retirar deste variado conjunto de Muito para além da leitura destinada a uma re-
textos? Parece sempre proveitoso juntar pessoas censão, o livro de Manuela Ivone Cunha rapi-
que praticam e escrevem etnografia e fazer, de damente se transforma num excelente instrumento
tempos a tempos, esse escrutínio das práticas, de trabalho. Desde logo pelos temas que trata: i)
desses modos de construção de teoria ancorada na por dar a conhecer o papel de mulheres por-
observação do real para produzir uma “episte- tuguesas no mercado free-lance de drogas (uma
mologia auto-reflexiva” no quadro das ciências “economia de droga semiperiférica”, p. 169); ii)
sociais e traduzir algumas lógicas que informam o por se detalhar na relação das reclusas com o
“jogo de espelhos” no campo (Estanque, pp. 62 e 75) policiamento e o dispositivo de controlo legal; iii)
e, idealmente, avaliar as formas de representação por finalmente nos permitir ir dentro de uma
em etnografia (Van Maanen, Representation in prisão feminina (Tires) e seguir um fio interpre-
Ethnography, 1995). São livros como este que nos tativo acerca das experiências de vida, redes de
obrigam a não perder de vista questões basilares parentesco e relações nos bairros degradados de
(que talvez merecessem revisitação): como pensar onde provêm estas mulheres, mas também sobre
terrenos tão diversos e particulares a partir de uma as práticas discursivas sobre a delação (o “chi-
abordagem que tem tanto de idiossincrática como banço”), os sentidos das clivagens e da “integração
de disciplinar e sistemática? Que generalizações na exclusão” (p. 6).
podem ir sendo feitas? O uso da palavra “filigrana” (p. 25) convoca
Ainda assim, os contributos presentes em um patamar de discussão a partir do qual se per-
Experiência Etnográfica em Ciências Sociais são algo cebe a presença de um texto de grande qualidade.
desiguais, traduzem diferentes níveis de desen- A apresentação comparada de um conjunto de
volvimento da reflexão metodológica e a diferente dados sociográficos correspondentes aos finais das
permeabilidade à complexidade que tal reflexão décadas de 1980 e 1990 faz emergir a profunda
convoca. É provável que também reflictam os transformação entretanto operada no perfil penal
pontos de investigação em que foram escritos, os das reclusas. Enchendo a cadeia de mulheres
estatutos profissionais presentes dos investiga- progressivamente menos jovens, aqueles dez anos
dores e, mesmo que indirectamente, as tradições e reduziram “a diversidade criminal” das presas,
os territórios disciplinares mais ou menos sen- agora esmagadoramente condenadas “a penas
síveis à “nudez” metodológica (Raposo, p. 44) e muito mais longas”. Dando conta de uma “pau-
sua reflexão sistemática. Não é de estranhar que perização genérica” da população prisional, cons-
alguns dos contributos assentem em objectivos tata-se, em simultâneo, uma homogeneização,
concretos, como dar a conhecer dimensões pes- “por baixo”, do seu perfil sociológico (pp. 76-77).
soais do trabalho de campo, e nesse sentido se Inscrita em todo o itinerário analítico, é esta
evidenciem mais “confessionais” (cf. Van Maanen, transformação que é sistematicamente sujeita a um
Tales of the Field: on Writing Ethnography, 1988), e inquérito no qual o exercício comparado da via-
outros se comprometam com a ambição de adi- gem pelo tempo do cárcere e pelas transformações
vinhar soluções ou retirar algumas lições epis- entretanto operadas vai sendo acompanhado por
temológicas a partir dos seus itinerários etno- uma discussão teórica, fina e bibliograficamente
gráficos. Todavia, é sempre bom saber do que estribada. Somos assim apresentados a uma obra
falamos quando falamos de etnografia, o que nuns muito completa e densa mas sempre compreen-
casos é muito mais evidente do que noutros. sível; de opções originais, porventura ambicio-
Susana Durão sas (até pelo constante recurso à comparação
Bolseira FCT com trabalhos referentes a outros contextos), mas
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE) claras.
O texto é também uma excelente etnografia.
O que não é pouco, atendendo aos perigos que

467
rondam a construção de um objecto como o seu: – e desmontado o mito do “grande traficante” e do
a ter em conta os discursos que têm vindo a discurso que o organiza, fica à vista a articulação
construir o problema-droga e que tendem a des- da precariedade estrutural das economias e de
tituir todos os agentes nele envolvidos do direito algumas das relações domésticas destas mulheres,
a um sentido para as suas palavras e acção, os com as suas incursões nas periferias da economia
simples actos de ouvir e olhar para compreender legal e da venda a retalho. Relatadas as segundas,
constituem, por si mesmos, um exercício da maior ficam à vista as “braçadas” de arguidas (p. 188)
importância. Ao colocar este trabalho e a sua au- que, dos bairros, trazem para dentro da prisão
tora na melhor tradição antropológica, esta uma parte do seu universo de relações e as con-
característica funda também a sua importância cepções com que organizam as suas lealdades.
política: em Tires, cada uma das mulheres – a É já claro que este trabalho de investigação
Zulmira, a Iolanda, a Maria Emília, a Lavínia… – vem lembrar que não é necessariamente nos es-
é, sem uma mediação quantitativa que oblitere a tudos de objectos consagrados na antropologia
sua humanidade, escutada pelo sentido literal da que surge inovação teórico-metodológica. Eviden-
sua fala. ciando que a disciplina não mais se confunde com
Para o leitor é já evidente que, embora par- os seus (tradicionais) objectos, Manuela Ivone
tindo de uma experiência de campo situada, não Cunha conduz-nos ainda numa espécie de itine-
satisfazem a autora reflexões demasiado presas ao rário científico cruzado, conciliador de escalas.
perímetro prisional, preferindo esta colocar em A reflexão no capítulo 2 acerca do seu estatuto de
evidência os universos sociais que, em muito larga antropóloga, a negociação e renegociação de pa-
medida, se repercutem no lugar que é a prisão. péis em “mapas” simultaneamente “sociais e sub-
E, como se tal não bastasse, a autora vai ainda jectivos” (p. 77), por um lado, e o epílogo, pela
percorrer toda a lógica que compõe e recompôs em reflexão ampla acerca das políticas para as prisões,
dez anos de vida em Portugal os bairros e a prisão por outro, são dois dos momentos-chave que
(especificamente na distância que medeia os dois sublinham essa opção. Se com esta obra a autora
momentos da sua investigação, 1987 e 1997). está a contribuir para o encontro de respostas que
A discussão antiga na antropologia, e em larga colocam a antropologia no seio de discussões de
medida extensiva às ciências sociais, de produzir estado, tal não serve para abandonar aspectos
um conhecimento em contexto por alternativa a cruciais inerentes ao saber-fazer dos etnógrafos. Se
uma análise mais “sistémica” não é aqui uma as opções metodológicas nem sempre merecem a
opção de um sentido apenas. A riqueza da obra atenção devida nas etnografias que delas tanto
está em conseguir ser “dois em um”, problemática dependem, já a reflexão implicada, embora não
social e organizacional. Deste ponto de vista, e a seja novidade nas ciências sociais, tem sido uma
título de exemplo, leia-se a discussão dos por- prática pouco acarinhada entre antropólogos por-
menores diferenciados das relações entre os di- tugueses (dos mais empiristas aos mais teori-
versos tipos e origens das presas e as respectivas zantes). A partir de um texto integrado, Manuela
guardas. Ivone Cunha vem recolocar na ordem do dia estas
Assim vão sendo derrubados os muros da duas dimensões da produção de saber. E, mais
cadeia. Analisando a “proveniência maciça e sis- uma vez, fá-lo de modo engenhoso.
temática de um leque de bairros precarizados” e a Não admira então que este texto tenha, em
existência “de núcleos mais ou menos alargados 2002, sido premiado pelo Instituto de Ciências
de reclusas que se conheciam já antes da prisão” Sociais com o prestigiado prémio Sedas Nunes,
(p. 95), vamos sendo confrontados com o im- pois “mais do que uma excelente tese de dou-
bricamento das condições de vida destas últimas toramento, é um ponto de viragem na antropo-
com as características das práticas policiais que logia portuguesa e no nosso entendimento da
organizam as suas detenções – é cada um daqueles criminalidade, do que poderíamos chamar o sis-
bairros que se constitui como alvo – e com as tema da droga e, num âmbito mais vasto, das
assimetrias verificadas no acesso a um serviço estruturas de desigualdade na nossa sociedade”
jurídico de qualidade. Demonstradas as caracte- (prefácio de Miguel Vale de Almeida). A inves-
rísticas das primeiras – marcadas pela pobreza e tigação em antropologia que nos ajuda a conhecer
pela maleabilidade do parentesco e da vizinhança melhor Portugal e que fundamenta opções a que

468
Recensões

não estamos habituados, algo ‘radicais’ na forma (commodification) e etiquetagem. No entanto, e


e na crítica social, política e económica merece, no como sugere Teresa Fradique (na linha de Simon
mínimo, celebração. Frith), a “música” também é veículo de expe-
riências, construtora de alianças, produtora de
Susana Durão
Bolseira FCT
narrativas individuais de desejo e emoção, cria-
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE) dora de espaços sociais, estilos de vida (pp. 19-
-30)... É neste entrecruzar de processos e realidades
Luís Vasconcelos que a antropologia da música se deverá situar, de
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
forma a poder proporcionar reflexões socialmente
relevantes.
Neste contexto, Fixar o Movimento, de Teresa
Fradique – resultado de uma investigação reali-
TERESA FRADIQUE zada no âmbito de um curso de mestrado em
FIXAR O MOVIMENTO: REPRESENTAÇÕES antropologia no ISCTE –, procura não uma análise
DA MÚSICA RAP EM PORTUGAL técnica, musicológica, de um determinado “género
Lisboa, D. Quixote, 2003. musical” num contexto geográfico circunscrito – o
rap em Portugal –, mas sim uma reflexão sobre
Um dos principais desafios da antropologia con- os discursos, representações públicas, práticas,
temporânea, enquanto analista e interpretadora consumos e produções que o conformaram num
de fenómenos sociais e culturais, será provavel- período específico – entre os anos de 1994 e 1998
mente o reenquadramento espacial e temporal dos –, período em que se verificou uma “explosão” do
“objectos” que estuda. Noutras palavras, perante rap “português” em termos de produção musical,
aquilo que costumamos sintetizar na palavra cultural e comercial (com a proliferação de edições,
“globalização” e seus efeitos, isto é, perante o cada acontecimentos e grupos), e sobretudo em termos
vez mais frequente e facilitado acesso e circulação de visibilidade e exposição mediática e como
da diversidade de realidades, representações e objecto discursivo e publicitado.
produtos, torna-se cada vez mais complicado ao Assim sendo, Teresa Fradique procura – atra-
analista (que é simultaneamente observador, in- vés de uma multisited ethnography que acompanha
terpretador, consumidor, produtor) pensar as ma- espaços de produção cultural multifocalizados –
nifestações socioculturais em termos sincrónicos e reflectir em torno de questões tais como: quais os
de “lugar”. Neste sentido, a multiplicação de processos através dos quais o rap foi, no período
discursos e interpretações publicitadas e vei- em questão, legitimado por políticas sociocultu-
culadas pelo fluxo crescente de canais de comu- rais mais vastas que lhe conferiram visibilidade
nicação e intercâmbio (media) obriga-nos a reflectir e “hegemonia” momentânea? Nesta lógica, que
sobre o papel do antropólogo na construção e discursos e práticas foram considerados social-
partilha de conhecimentos sobre os fenómenos mente pertinentes (ou “consumíveis”)? Que pro-
culturais da contemporaneidade: já não detendo o cessos, condições, estratégias e critérios transfor-
monopólio interpretativo dos fenómenos obser- maram o rap num produto cultural de consumo
vados, as suas reflexões e discursos são por sua “mercadorizado” e assimilado pelo mainstream?
vez incorporados nos processos de produção e Qual o contexto social, cultural, económico e polí-
circulação informativa onde a “actualidade” se tico português que envolveu estes processos?
encontra em constante mutação e onde predomina (pp. 31-35).
uma “polifonia de significados”. Esta abordagem, temporalmente situada mas
O caso da “música” – enquanto “cultura”, ou territorialmente multifocalizada (embora centrada
seja, inserida em lógicas de acção, produção e no contexto português), remete pois para a di-
significação que a transcendem – é particular- mensão processual, criativa e dinâmica que ca-
mente sensível: através da sua dimensão colectiva, racteriza o seu objecto de estudo – daí a neces-
pública e performatizada encontra-se cada vez sidade de fixar o movimento através das suas várias
mais sujeita, por um lado, a discursos de iden- vertentes e eixos, reconhecendo abertamente o
tidade e legitimação e, por outro, a processos carácter fluido e polifocal da “música” enquanto
globais e industrializados de mercadorização fenómeno “observável”.

469
Com esta abordagem, a autora opta, numa juventude, subúrbios, etc. (capítulo 6) –, e à
primeira instância, por uma análise crítica da indústria musical portuguesa (editoras, músicos,
produção literária e teórica que acompanhou o imprensa) enquanto “promotora” de culturas
desenvolvimento da música rap desde a sua nacionais, construtora de “géneros musicais”, par-
origem no Bronx nova-iorquino, entrecruzando ticipante de processos globais e comercializadora
aspectos musicais, especificidades técnicas, per- de práticas musicais (capítulo 7).
sonagens, práticas e dimensões expressivas, pro- Concluindo, esta análise de um fenómeno
jectos ideológicos e mediatizações com uma musical específico como é o do rap revela-se
produção teórica “cristalizadora”, construtora de extremamente válida, não apenas pela abordagem
temas recorrentes, historiografias e análises con- compreensiva, interpretativa e contextualizadora de
textuais (capítulo 1). É a partir dessas narrativas um fenómeno sociocultural – que, ao contrário do
que é contextualizado o aparecimento do “rap sistema de parentesco dos crow ou da bruxaria
português” inserido numa cultura suburbana pós- azande, nos é, pelo menos, familiar, sendo servido
-colonial portuguesa, marcada por experiências à nossa mesa no jornal matutino ou no telejornal do
quotidianas (a street...) e opções pessoais nego- jantar –, mas também pelo reconhecimento (através
ciadas, dinamizadas e “sincretizadas”, e onde a de uma capacidade reflexiva notável) de uma
cultura hip-hop (e a música rap) aparece como contemporaneidade social e cultural nos fenómenos
fenómeno diaspórico, pluriterritorializado, inter- musicais que obriga, como afirma a autora, a uma
classista, multiétnico e transnacional (capítulo 2). inversão do processo antropológico clássico (p. 210):
A seguir, e partilhando com o leitor o seu não é já ao antropólogo que cabe sistematizar e
“diário de bordo”, a autora percorre os espaços construir representações de lógicas culturais “ou-
públicos de performance, consumo e produção do tras”, mas sim aos indivíduos que ele observa, e que
rap em Portugal – dinâmicas de acção, tempo e produzem discursos, definições e manipulações das
espaço que, por um lado, fomentam momentos de suas próprias ideologias e práticas, esses que são
visibilidade pública e “polissemias comunicativas” frequentemente publicitados, chegando, também
(p. 89) e, por outro, constituem possibilidades por essa via, aos ouvidos do antropólogo.
experienciais, reflexividades e representações (ca- Neste contexto, uma obra como Fixar o Mo-
pítulo 3). Serão precisamente essas possibilidades vimento representa um passo em frente no que diz
experienciais (trajectos biográficos, vivências, respeito à (escassa) produção das ciências sociais
redes de sociabilidade, projectos identitários, etc.) em Portugal sobre a música e seus contextos,
que a autora procurará retratar – discursos refle- constituindo uma nova e necessária proposta
xivos, afectivos e de auto-representação que os metodológica de análise e oferecendo ainda um
“actores” partilham e cuja heterogeneidade ajuda contexto empírico e um conteúdo teórico per-
a ultrapassar categorias essencialistas frequen- tinentes e necessários, sobretudo no que diz res-
temente associadas à música rap (negritude, afri- peito à descrição pormenorizada do “fenómeno
canidade, etc.) (capítulo 4). rap”, à abordagem crítica dos media portugueses e
Numa “segunda parte” do livro a autora pro- da indústria musical, e à descrição contextualizada
cede a uma desconstrução dos discursos públicos dos contextos urbanos que constituem focos de
e políticas socioculturais hegemónicas que en- produção cultural.
quadraram o “aparecimento” do rap na esfera Ruy Llera Blanes
pública e comercial portuguesa: desde as retóricas Bolseiro FCT
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
da multiculturalidade, racismo e etnicidade (“mi-
noria étnica”) que caracterizaram as agendas e
linguagens políticas – assim como um importante
sector da produção das ciências sociais (capítulo 5) SUSANA DURÃO
– até aos media como veículos de cultura, criadores OFICINAS E TIPÓGRAFOS: CULTURA
de padrões de representação cultural, prescritores E QUOTIDIANOS DE TRABALHO
de realidades (como defendia Pierre Bourdieu) Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003.
através de agendas jornalísticas e processos de
newsmaking – produzindo associações superficiais A mudança social é uma das marcas mais fortes do
entre o rap e criminalidade, violência, raça negra, sistema mundial moderno. As suas reconfigu-

470
Recensões

rações recentes articulam-se estreitamente com as política do país, desde a I República até ao pre-
transformações sociotécnicas que estão a alterar sente, em estreita articulação com os processos de
profundamente as relações sociais e as culturas nos aquisição e transmissão dos saberes ligados à
espaços de produção. Susana Durão, com Oficinas profissão no quadro duma vivência quotidiana
e Tipógrafos: Cultura e Quotidianos de Trabalho, leva- centrada no trabalho oficinal. De modo con-
-nos a um território industrial, o das tipografias, vincente, mostra-nos como neste espaço produtivo
onde elas se fazem sentir com viva intensidade. os saberes técnicos constituem um capital im-
Interessada em registar os “mundos sociais, cul- portante que é utilizado pelos seus detentores para
turais e profissionais em desaparição e ampla negociarem uma melhor posição na estrutura
transformação” (p. 28), a sua etnografia densa social e, não raro, como contraponto ao poder
– que poderá, por vezes, parecer fastidiosa ao patronal ancorado no capital-dinheiro e no direito.
leitor menos familiarizado com o texto antropo- No seu entender, eles estão ligados às “práticas e
lógico – foi construída, como sublinha na conclu- competências fixadas em códigos” (p. 85) que
são, “em torno das relações sociais no trabalho e contribuem para a representação dos tipógrafos
dos mecanismos que permitem a reprodução de como aristocracia operária. Embora não faça parte
uma cultura de trabalho e de profissão” (p. 291). da problemática central que organiza o livro, a sua
O livro começa pela discussão das conti- etnografia faz referência amiúde às preferências
nuidades e rupturas verificadas no “mundo” dos políticas dos actores sociais que concorrem para,
tipógrafos, preparando o leitor para o exame no contexto nacional, contraditar a tese marxista
minucioso dos quotidianos de trabalho e “além do clássica da adesão desta camada ao reformismo
trabalho”, como sugestivamente indica o título do político, confirmando (ou mesmo acentuando) o já
seu filme etnográfico sobre espaços e actores observado por Nicos Poulantzas (Teoria das Classes
sociais observados. Neste contexto, formula uma Sociais, 1976) para outros países europeus, nos
crítica pertinente ao conceito de “cultura de quais o seu posicionamento não é muito diferente
empresa” trazido para o debate pelas teorias da do dos “operários pobres”.
gestão (ver, entre outros, Charles Hampden-Tur- A aprendizagem da “arte-negra” é um pro-
ner, Cultura de Empresa: do Círculo Vicioso ao Círculo cesso complexo e longo, realizado no posto de
Virtuoso, 1993, e Thomas Peters e outros, In Search trabalho. Como nos mostra Susana Durão, de-
of Excellence, 1987). Esta reinterpretação das velhas pende de uma relação social desigual entre o
estratégias de dominação ligadas às abordagens detentor dos saberes, que não se esgotam no
tecnocráticas alicerçadas no taylorismo, no movi- domínio técnico, e aquele que aprende, o aprendiz.
mento das relações humanas, no enriquecimento Este sofisticado processo corresponde ao padrão
das tarefas e, mais próximo de nós, nas dinâmicas de aprendizagem de ofícios definido por Pierre
de grupo e na autoformação (ver Oscar Ortsman, Bourdieu (O Poder Simbólico, 1989: 22): reprodução
Mudar o Trabalho: as Experiências, os Métodos, as dos saberes de prática para prática, baseado na
Condições de Experimentação Social, 1984), encami- vivência quotidiana entre aquele que ensina e
sadas por uma retórica ancorada em aspectos aquele que aprende, modo de transmissão de
como a participação, a responsabilização e a saberes utilizado nas sociedades sem escrita e sem
comunicação, é justamente criticada por Susana escola que também é aplicado em sociedades com
Durão, que a considera assente numa visão pas- escrita e com escola. Ou seja, também neste meio
sadista da cultura, que privilegia a coesão e a oficinal a observação e a prática continuam a ser os
homogeneidade em detrimento das complexi- mecanismos centrais de aprendizagem dos sa-
dades relacionadas com os conflitos, as mobi- beres. Mais importante do que a explicação oral
lidades e as estratégias presentes nos espaços de dada por aquele que sabe ao que está a aprender,
produção. é o ver-fazer, que não se esgota na aquisição da
Elegendo quatro tipografias de Lisboa e uma competência técnica para a correcta execução da
de Almada – a localizada no Chiado, “A Gloriosa”, operação necessária à realização da tarefa. De
assume uma posição preponderante na investi- facto, a aprendizagem possui também uma di-
gação –, a etnografia de Susana Durão percorre mensão relacionada com o modo de estar nas
toda a história, velha de décadas, das transfor- tipografias, o conhecimento preciso do que é
mações sociotécnicas, sem obnubilar a trajectória permitido fazer, das posturas e discursos consi-

471
derados legítimos pela ordem instituída, quer di- tipografias merecem o grosso da atenção de Su-
zer, implica uma aprendizagem dos modos de sana Durão. Debruçando-se com detalhe sobre a
estar e, se possível, de pensar dos operários, enfim, evolução tecnológica, com destaque para a entrada
uma disciplina de trabalho adequada às neces- em cena do offset, na sua etnografia são abun-
sidades da produção industrial. dantes as narrativas dos actores sociais sobre os
Como sustenta Susana Durão, o lugar que efeitos provocados por essas mudanças, nomea-
cada um ocupa no espaço de produção é inse- damente para a negociação da posição social e,
parável, em regra, da trajectória das aprendizagens mais grave ainda, da própria reprodução social da
realizadas, desde aprendiz até oficial, podendo profissão, quer dizer, da existência da classe na
alguns chegar a chefe directo ou encarregado- configuração que ela conheceu ao longo de quase
-geral. Essas categorias são reservadas aos homens, todo o século XX. Como dizem os tipógrafos, “a
dado que a entrada das mulheres nas oficinas de tipografia está a morrer” (p. 119), “estamos em vias
tipografia é relativamente recente, estando confi- de extinção” (p. 302), expressões fortes da angústia
nadas a tarefas de reduzida complexidade técnica, e do sofrimento que estes homens são, de todo,
em que os saberes exigidos para a sua boa exe- incapazes de conter ou afastar, perante as mu-
cução são simples e de fácil aquisição. Aliás, são de danças que não podem pilotar. Afastando-se das
salientar os abundantes elementos etnográficos abordagens que olham a tecnologia separada dos
apresentados sobre as relações entre os géneros, actores sociais e de tudo o que lhes é subjacente ou
marcadas pelas mais diversas formas de divisão e por eles produzido – saberes, gestos e ferramen-
de desigualdade, que não se esgotam no espaço tas –, Susana Durão examina demoradamente o
restrito da oficina, antes se prolongam para fora modo como ela modifica a cultura no espaço de
dela e do próprio tempo de trabalho. produção, relevando os seus efeitos na desqua-
A etnografia traz também à existência as lificação do trabalho nas tipografias, em particular
disputas entre operários e entre estes e os patrões, nas categorias profissionais mais exigentes e pres-
numa perspectiva histórica longa que contribui tigiadas. Na esteira de uma reflexão já longa (ver,
para compreender com bastante clareza que se por exemplo, Wright, Class, Crisis and the State,
trata de espaços industriais trespassados por con- 1979), torna evidente que a tecnologia não é
flitos e formas de resistência, muitas vezes de tipo socialmente neutra, podendo destruir trabalho
infrapolítico (ver James Scott, Domination ant the qualificado em benefício de outro de menor exi-
Arts of Resistance: Hidden Transcripts, 1990), ligados gência técnica, situação que é bem percepcionada
ao processo político-social do país e à história dos pelos tipógrafos, quando estes “lamentam as
tipógrafos, enquanto classe comprometida com os transformações técnico-sociais que desprestigia-
ideais socialistas e revolucionários. É certo que ram o ofício, sobretudo ao nível das competências
Susana Durão nos avisa que não pretendeu tratar profissionais” (p. 243).
com finura os conflitos nem as relações entre Por fim, uma nota breve sobre a revisão da
“o patronato, e o variado espectro de clientelas” problemática relativa ao trabalho de campo, com a
(p. 298), porém, e conquanto falte a necessária arti- qual Susana Durão encerra o seu livro. Socor-
culação com a teoria, que faz com perícia para rendo-se de algumas das mais recentes referências
outros aspectos como o das aprendizagens, a sua teóricas, discute aspectos cruciais como o tempo, a
etnografia está saturada de factos e narrativas que participação, a relação com os actores sociais
permitem ao leitor penetrar nos meandros das envolvidos e as crises que marcam qualquer ex-
lutas operárias neste meio oficinal, em especial periência de pesquisa etnográfica. A sua integração
para o período estado-novista, no qual os tipó- implicou a ocupação de uma posição precisa nos
grafos eram vistos com enorme e justificada des- lugares onde efectuou o trabalho de campo – “al-
confiança pelo regime. São magníficas as des- guém que chega para observar” (p. 307) –, con-
crições dos actores sociais sobre as pequenas quistada à força da remoção de desconfianças e
“gralhas”, cometidas com toda a intencionalidade, dúvidas no relacionamento com os actores sociais
para denegrir a figura do ditador, ou as leituras de “interlocutores”. E, sobretudo, de “imaginação
Émile Zola, Steinbeck e Jorge Amado, elas também metodológica”.
fundamentais para a plena integração dos tipó-
grafos no seu meio profissional. Fernando Bessa Ribeiro
Embora sempre presentes ao longo do texto, Departamento de Economia e Sociologia
é no capítulo 7 que as mudanças sociotécnicas nas da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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