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Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos

Article  in  Mana · October 2006


DOI: 10.1590/S0104-93132006000200015

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Miguel Chaves
Universidade NOVA de Lisboa
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RESENHAS 533

mas uma questão de possibilidades não passagem da morte do domínio da ex-


exploradas. A incompletude constitutiva periência para o domínio da articulação,
da memória possibilita distanciamento possibilitando que sirva como metáfora
reflexivo em relação ao que foi e abre o do fim do mundo. O livro encerra-se com
horizonte (ético e esperançoso) do que uma sugestão em forma de pergunta — o
poderia ter sido. fechamento dos horizontes imaginativos
Refletindo, em World-Ending, sobre o não seria uma forma de morte? — e assi-
Apocalipse cristão, a escatologia judaica nala o horizonte vital em que podemos
e as experiências psíquicas de fim do fazer habitar seu texto e o tecido do iti­
mundo de um camponês de Berna, Cra- ne­rário do autor, de Tuhami e Waiting a
panzano distingue concepções do fim do Hermes’ Dilemma and Hamlet’s Desire
mundo como o conhecemos para advento e Serving the Word: inquietar horizontes
de um novo mundo daquelas do fim do imaginativos que, sem permanecerem
mundo em definitivo. Ademais, questiona solidificados e fechados, podem assim se
a visão convencional de que existiriam estender e se abrir para a alteridade de
sociedades imersas no tempo cíclico e um inesperado e inarticulável futuro.
repetitivo do eterno retorno, chamadas
de “primitivas”. Para ele, tal imagem não
dá conta da dimensão do inesperado. CUNHA, Manuela Ivone. 2002. Entre o
Mais que o contingente, o inesperado bairro e a prisão: tráfico e trajectos. Lisboa:
desafia possibilidades imaginativas e Fim de Século. 356pp.
cognitivas, impedindo especificação e
categorização. A repetição pode guardar Miguel Chaves
e produzir o inesperado: pode ocorrer em Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Uni-
um tempo disjuntivo. Freqüentemente, versidade Nova de Lisboa
com o respaldo da antropologia, diz-se
que a idéia de fim do mundo tornou-se Há cerca de uma década que Manuela
possível para tais sociedades primitivas Ivone Cunha se tem debruçado sobre o
com a chegada dos ocidentais. Isso seria universo prisional, concretamente a prisão
negar a possibilidade de resposta nativa feminina de Tires, a mais emblemática ca-
diante do desafio do inesperado e do deia de mulheres existente em Portugal.
completamente novo. Este trabalho deu origem a diversos
Com notas sobre os aborígenes aus­ artigos publicados em revistas interna-
tralianos e a consciência mítica do cionais, bem como a uma primeira obra
Dreaming, os deslocamentos simbólicos intitulada Malhas que a Reclusão Tece.
implicados no encontro colonial com o Questões de Identidade numa Prisão
missionarismo cristão, sobre os Urapmin Feminina (1994, Cadernos do Centro de
de Papua Nova Guiné, em cujo universo Estudos Judiciários, Lisboa).
simbólico um certo milenarismo cristão O conjunto do trabalho da autora re-
é cotidianamente ressignificado, sobre presenta um esforço de análise sistemáti-
os Canaque da Nova Caledônia, onde a ca da realidade prisional, erigido em um
inclusão na sociedade dos brancos subs- confronto permanente com abordagens
tituía a morte no processo de colonização, sociológicas e antropológicas desenvolvi-
sobre a vida ritual hindu, que associa das em contexto internacional, culminan-
profundamente nascimento e morte, do na construção de uma visão extrema-
(re)criação e dissolução do cosmos, Cra- mente original deste universo, na qual se
panzano delineia uma compreensão da sustenta que os muros e os limites físicos
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da cadeia estão hoje longe de constituir Em Entre o Bairro e a Prisão, Ma-


a melhor forma de circunscrever a prisão nuela Ivone Cunha começa por analisar
enquanto objeto de análise. Pelo contrá- o modo como as concepções do sistema
rio, a realidade empírica observada no penitenciário, filiadas a um “modelo
interior da prisão contemporânea obri- doméstico-autoritário”, transitaram
ga-nos, cada vez mais, a ultrapassar as progressivamente para um “modelo de
suas fronteiras, centrando-nos quer em gestão burocrático-legal”. Esta mudança
regiões urbanas que a ela se encontram de paradigma da política prisional sur-
indelevelmente ligadas, quer na análise ge acompanhada de uma alteração das
da própria política criminal de caráter finalidades da própria cadeia. Mais do
classista que inconscientemente lhe que prosseguir nos ideais de reabilitação
serve de suporte. Como a própria autora e de tratamento comportamental que
refere: “a continuidade entre o interior e constituíram, ao longo dos séculos XIX
o exterior é constitutiva da prisão, a ponto e XX — por vezes mais no discurso do
desta não poder mais ser pensada senão que na prática — o “modernismo penal”
através de um constante movimento de e a criminologia positivista, encontramo-
zapping entre ambos” (:19). nos perante um sistema penitenciário
Neste sentido, embora ancorada na que já não reivindica tanto “um projeto
realidade prisional, a perspectiva de Ma- próprio”, passando a relevar “menos da
nuela Ivone Cunha está longe de poder razão ortopédica do que da razão gestio-
ser “catalogada” na classe dos estudos nária, menos da transformação dos indi-
prisionais, pois percorre vários domínios víduos que da sua contenção” (:307). To-
— do gênero à família, da pobreza à ex- davia, esta perda progressiva do caráter
clusão — apresentando-se igualmente ideológico da prisão que se registra em
como um sofisticado exemplo de articu- nível internacional, e que parecia pré-
lação entre micro e macroanálise. anunciar um recuo da sua importância
O presente livro — que mereceu a atri- no tratamento das “patologias sociais”,
buição do Prêmio Sedas Nunes de Ciên- deparou-se, paradoxalmente, com uma
cias Sociais, porventura o mais importante intensificação da envolvente ideologia
do gênero concedido em Portugal — tem externa, caracterizada por um intenso
como base a revisitação etnográfica da apelo repressivo fortemente enraizado
prisão feminina onde a autora já havia pes- no “problema da droga”, e por uma alte-
quisado há uma década atrás. No entanto, ração da política criminal desenvolvida
se a sua intenção inicial era a de desenvol- a este propósito.
ver uma espécie de re-study, depressa se Com efeito, a partir do início dos anos
apercebe que o ambiente prisional sofrera, 90, as transgressões mais graves, parti-
ao longo da década de 90, transformações cularmente o narcotráfico, sofreram um
tão relevantes que os quadros conceituais forte endurecimento das penas. Nesse
de que dispunha dificilmente poderiam mesmo período, alguns bairros onde se
resistir à erosão provocada pela passagem desenvolve o comércio de drogas a varejo
do tempo. Assim, reentrar nesta cadeia passaram a ser alvo de uma ofensiva
significava, antes de mais nada, repensar permanente e sem precedentes reali-
o meio prisional e reaprender a interrogá- zada pelos aparelhos policiais através
lo: tudo estava, portanto, em aberto — a de processos que, “dada a dificuldade
aventura teórica, metodológica, relacional em deslindar as responsabilidades in-
e existencial no mundo prisional tinha dividuais pela droga encontrada num
como que voltado ao início. determinado local” (:309), tendem a
RESENHAS 535

coletivizar as detenções e, naturalmente, tênues, convertendo a prisão em um locus


as condenações. de análise em que as oposições analíticas
Este duplo processo acabou por con­ dentro/fora não só perdem pertinência,
duzir-nos à segunda grande mutação como podem converter-se em um fator
do meio prisional, que é também a mais de perturbação, na compreensão de uma
profundamente dissecada nesta obra. Re- realidade que, na verdade, é constituída
ferimo-nos às transformações ocorridas com base na combinatória de espaços e
na estrutura da população prisional. Com de feixes relacionais múltiplos que urge
efeito, em lugar dos contingentes hete- identificar e entretecer?
rogêneos do ponto de vista das origens Todo o esforço de Manuela Ivone
sociais, das proveniências geográficas e Cunha vai pois no sentido de criar uma
das infrações cometidas que se podiam “interface analítica” que permita dar conta
encontrar em décadas anteriores, depa- do modo como, através desta interligação,
ramo-nos, a partir da segunda metade o cotidiano prisional, as relações entre as
da década de 90, com uma população reclusas, as vivências e os quadros repre-
fortemente homogeneizada. A esmaga- sentacionais internos à cadeia — bem
dora maioria das reclusas encontra-se como as concepções do tempo e do corpo
detida por processos relacionados com que emergem no quadro prisional — trans-
o narcotráfico, tendo sido recrutada nos formaram-se radicalmente.
mais baixos estratos sociais, mais concre- A ruptura que a autora empreende
tamente em certos bairros degradados e com a concepção da cadeia como enti-
estigmatizados onde a venda de drogas é dade fechada permite-lhe ainda discutir
alvo de um intenso escrutínio policial. vários aspectos que extravasam o seu
Assim, de uma situação em que a argumento central como, por exemplo,
população prisional apenas se conhecia o modo com que a economia familiar e
intramuros, transitamos para uma outra, vicinal do tráfico em Portugal distingue-
em que fortes contingentes de pessoas se de outros mer­cados a varejo no quadro
ligadas há muito por vínculos de paren- internacional — significativamente o da
tesco, de vizinhança e de amizade ora economia das drogas nos guetos norte-
são detidos de forma simultânea, ora americanos. Com efeito, nos contextos
vão se revezando em território prisional, urbanos do narcotráfico em Portugal, as
cumprindo penas bastante longas. concepções de gênero conjugam-se com
Esta interpenetração, diria mais, a economia a varejo do tráfico de uma
esta incorporação mútua entre bairro e forma original, tendo como conseqüên-
prisão tornam impossível, como a autora cia uma partici­pação muito efetiva das
demonstra, analisar estes contextos sepa- mulheres, quer como meras assalariadas,
radamente, obrigando-a, logo de saída, quer como “pequenas empresárias” do
a reavaliar a pertinência da concepção comércio de drogas. O narcotráfico acaba
goffmaniana de “instituição total” no por constituir-se, assim, em uma oportu-
estudo da prisão contemporânea. nidade ilegal para um vasto conjunto de
De fato, como privilegiar este modelo mulheres habitantes de regiões urbanas,
conceitual em um contexto prisional as quais se mantiveram em uma situação
onde desde a década de 70 entraram “em de extrema marginalização econômica
declínio os ideais de reabilitação cometi- e simbólica ao longo de décadas e de
dos à prisão” (:323)? Como sustentá-lo, sucessivas gerações.
em um momento em que as delimitações Esta última constatação coloca-nos
físicas e simbólicas da cadeia tornam-se perante um outro aspecto extremamente
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fundamental desta obra. Referimo-nos MACHADO-BORGES, Thais. 2003. Only for


à sua manifesta relevância política, di­ you! Brazilians and the telenovela flow.
mensão que se torna particularmente Stockholm: Stockhom Studies in Social
patente no último capítulo intitulado Anthropology. 249pp.
“Uma janela partida”. Aí Manuela Ivo­ne
Cunha demonstra-nos como todo esse Diana Nogueira de Oliveira Lima
processo de aprisionamento e as lógicas Pós-doutoranda, IFCS/UFRJ
de transformação do universo prisional
que com ele se encontram conjugadas Nos anos 1980, a figura do sujeito e a
podem, em larga medida, ser entendidos noção de agência assumem posição dian-
como correspondendo à instauração de teira no debate em diferentes círculos
uma “política da indiferença” — ex- disciplinares. Nos estudos de mídia, esse
pressão utilizada por Miguel Vale de deslocamento provoca uma transição no
Almeida no prefácio do livro, ao cons- foco de interesse, e a ênfase na esfera da
tatar estarmos “perante um processo de produção — pensada como instrumento
constituição de grupos humanos como conservador de reforço dos discursos do-
que “definidos” para o aprisionamento, minantes sobre um público considerado
em um processo que vai garantindo a passivo — cede lugar à preocupação
continuação incólume da verdadeira com as variadas maneiras como os textos
economia do tráfico” (:14). audiovisuais são interpretados e incor-
E, de fato, que outra expressão que porados pelas audiências nos distintos
não “indiferença” poderia traduzir me­ contextos sociais de recepção.
lhor a discricionariedade de todo este Na antropologia, os pesquisadores
quadro penológico, bem como a dene- voltados para o tema têm indagado sobre
gação e o desconhecimento dessa discri­ a relação entre mídia e mudança social
cionariedade? Que outro termo poderia e vêm enfrentando o desafio de inves-
ser utilizado quando se constata que a tigar o modo como o público assiste à
intensificação extremada do combate ao programação, buscando elucidar o lugar
narcotráfico “não se exerce propriamente da televisão no cotidiano dos sujeitos
sobre traficantes tout court, mas concreta- sociais através de esforços etnográficos
mente sobre traficantes das ditas “massas que envolvem a observação da recepção
laboriosas”? (:326). no espaço e no momento mesmo em que
Em suma, Entre o Bairro e a Prisão ela acontece. Enquanto a maioria dos
é pois um estudo de caso que depressa trabalhos sobre as reações e as interpre-
sente a imperativa necessidade de ex­ tações dos espectadores às telenovelas
travasar os limites do que seria o seu brasileiras elaboram suas questões a par-
“território natural”. Através de uma ja­ tir do acompanhamento de uma trama em
nela com grades, ele procura lançar um um ambiente de audiência bem definido,
profundo olhar sobre as formas de ex- normalmente formado por mulheres de
clusão, de desigualdade e de dominação camadas populares, Thais Machado-
que se registam na sociedade portuguesa Borges inova em vários sentidos.
contemporânea, mas que se reproduzem Depois de muitos anos de residência
em escala global. E deixa-nos perplexos e estudos na Suécia, Thais retorna à sua
com o que a partir dessa nesga aparente Belo Horizonte natal com a memória so-
é possível vislumbrar. bre os tempos em que as novelas faziam
parte de sua vida e uma pergunta sim-
ples: como os espectadores se colocam

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