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Tráfico e trajectos
DOI: 10.4000/books.etnograficapress.476
Editora: Etnográfica Press
Ano de edição: 2002
Online desde: 21 mars 2018
coleção: Etnográfica Books
ISBN eletrónico: 9791036511295
http://books.openedition.org
Edição impressa
ISBN: 9789727541812
Número de páginas 360
Refêrencia eletrónica
CUNHA, Manuela Ivone. Entre o Bairro e a Prisão : Tráfico e trajectos. Nouvelle édition [en ligne]. Lisboa :
Etnográfica Press, 2002 (généré le 17 septembre 2019). Disponible sur Internet : <http://
books.openedition.org/etnograficapress/476>. ISBN : 9791036511295. DOI : 10.4000/
books.etnograficapress.476.
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“Este livro é o resultado de um percurso de pesquisa com contornos raros entre nós. Há cerca de
uma década, Manuela Ivone Cunha iniciava o seu trabalho de campo no Estabelecimento Prisional
de Tires. Hoje apresenta-nos os resultados da investigação realizada durante o seu regresso
àquela instituição, num livro que é um ponto de viragem na antropologia portuguesa e no nosso
entendimento da criminalidade, do que poderíamos chamar o sistema da droga e. num âmbito
mais vasto, das estruturas de desigualdade na nossa sociedade.” Miguel Vale de Almeida.
2
SUMÁRIO
Prefácio
Miguel Vale de Almeida
Referências bibliográficas
Agradecimentos
3
Figuras
1. Penas em execução no EPT em 1997 (em percentagem)
2. Crimes objecto da condenação/acusação em 1987 e 1997 (em percentagem)
3. Nacionalidade das reclusas em 1987 e 1997 (em percentagem)
4. Profissão das detidas/Condição perante o trabalho em 1987 e 1997 (em percentagem)
5. Níveis de escolaridade da população do EPT em 1987 e 1997 (em percentagem)
6. Estado civil das reclusas em 1997 (em percentagem)
7. Estrutura etária do universo recluso em Tires em 1987 e 1997 (em percentagem)
Quadro
1. Reclusas com filhos segundo o estado civil em 1997 (em percentagem)
4
Prefácio
Miguel Vale de Almeida
1 Este livro é o resultado de um percurso de pesquisa com contornos raros entre nós - e,
infelizmente, cada vez menos comuns na prática antropológica. Refiro-me à dedicação
prolongada e aprofundada a um objecto e temática de pesquisa. Há cerca de uma
década, Manuela Cunha iniciava o seu trabalho de campo no Estabelecimento Prisional
de Tires, do qual resultou a publicação «Malhas que a reclusão tece: questões de
identidade numa prisão feminina» (Lisboa, Cadernos do CEJ, 1994). Hoje apresenta-nos os
resultados da pesquisa realizada durante o seu regresso àquela instituição, num livro
que, mais do que uma excelente tese de doutoramento, é um ponto de viragem na
antropologia portuguesa e no nosso entendimento da criminalidade, do que
poderíamos chamar o sistema da droga e, num âmbito mais vasto, das estruturas de
desigualdade na nossa sociedade.
2 Ao contrário de muitos antropólogos, Manuela Cunha não se refugiava, há uma década -
nem o fez agora - no conforto da pesquisa estritamente bibliográfica e arquivística que
tem vindo a caracterizar práticas disciplinares confrontadas com a falta de tempo e
disponibilidade para o trabalho de campo com observação participante. Mas tão pouco
procurou a autora o ilusório idílio de uma estadia de um ou dois anos em local exótico e
aprazível. A prisão deve-lhe ter surgido como o exemplo acabado da alteridade no seio
da nossa sociedade. Afinal, que há de mais diferente - mais ainda do que códigos
culturais estranhos ou exóticos - do que a privação da liberdade, a ausência de convívio
com o sexo oposto, a imposição de uma disciplina sobre o quotidiano, a vigilância e o
controlo sobre e do corpo, ou o estigma da punição? Manuela Cunha enveredava, há
uma década atrás, por um percurso difícil e desafiador. Todavia, não o fazia motivada
por um qualquer espírito de missão, por dedicação militante a uma causa, ou por
vontade em demonstrar capacidade de sacrifício. Ela procurava - creio eu - a alteridade
na «mesmidade», isto é, compreender e dar a compreender como a vida de qualquer um
de nós pode ser radicalmente alterada, obrigando à reconstituição de códigos e hábitos.
3 Dez anos depois da primeira estadia no Estabelecimento Prisional de Tires, a
antropóloga decidiu enveredar pelo que parecia, à primeira vista, ser um re-study: a
verificação das alterações que o tempo e as circunstâncias geram no objecto de estudo.
Deparou-se, de certo modo, com o reverso: a prisão mostrou-lhe o que havia mudado no
5
que tendem para o enquistamento e, por fim, gerando o lúcido desvendamento que
acorda as consciências sociais e políticas do nosso viver colectivo.
7
Trata-se, com efeito, de um eixo estruturante do trabalho, uma vez que foi na sua órbita
que se geraram as principais metamorfoses da cadeia.
4 Dez anos atrás, o campo dos estudos prisionais apresentava-se-me como um recorte
bibliográfico pacífico, a partir do qual era aliás possível construir uma razoável grelha
de leitura de Tires. Era também nele que se situavam os quadros comparativos
pertinentes, esclarecendo aspectos locais quer por semelhança quer por contraste.
Novos elementos etnográficos que Tires fornecia permitiam por sua vez reformular
algumas asserções teóricas, mas dialogando sempre no interior deste campo, regendo-
se na maioria das vezes pelas suas balizas, e filiando-se nele. No presente, e tendo
procedido à necessária actualização da literatura, encontro nos estudos prisionais
pouco auxílio para compreender esta prisão e as suas mutações. Se certas mudanças da
mesma ordem ocorreram alhures, noutros contextos carcerais, é questão à qual tais
estudos não respondem ou, quando neles as entrevejo, não parecem constituir-se em
objecto de análise, marcados que estão pelo perímetro prisional (cf. capítulo 5). E assim
como fui levada, pela «mão» das reclusas, a sair deste perímetro e a descentrar-me da
prisão como instituição, também fui atirada para outros campos bibliográficos, que não
recensearei aqui mas à medida que os dados etnográficos os forem convocando. Do
mesmo modo, figurarão na estrita medida em que especificamente contribuem para
iluminar os dados em questão. Apesar desses campos bibliográficos desempenharem
um papel não acessório, mas organizador deste trabalho, a sua variedade (por exemplo,
o dos bairros urbanos, o do narcotráfico, o da pobreza e da exclusão, o da economia
informal e, evidentemente, o das prisões) e a sua vastidão respectiva fizeram-me
renunciar a traçar aqui o usual «estado da arte» para cada um deles, permanecendo
relegado nos bastidores. Caso contrário, arriscaria perturbar a economia do texto e a
tornar bem menos perceptível um fio condutor já de si difícil de disciplinar dadas as
características desta abordagem. Fui por outro lado conduzida a recortar, na
encruzilhada daqueles campos, quadros comparativos próprios. Estes variarão no
tempo, cotejando quer realidades contemporâneas entre si, quer realidades presentes e
passadas; no modo, quer procedendo a comparações directas, quer a desvios que
integram esclarecedoras realidades adjacentes; e, por fim, na escala, tendo-me
defrontado particularmente neste trabalho com essa necessidade – tão bem enunciada
por Christian Bromberger (1987, 1997) – de manejar quer a lupa, para aceder ao tantas
vezes decisivo detalhe, quer o telescópio, para apreender configurações que só se dão a
ver à distância, e onde tantas vezes outro detalhe ganhará sentido. A variação da lente,
o vai-vém entre escalas de análise, partindo do «pequeno» para o «grande», para
regressar ao «pequeno», contribui, de resto, para reduzir eventuais efeitos de escala
(não se vê a mesma coisa de perto e de longe: e. g. o debate entre Del Hymes e Lévi-
Strauss, referido a esta luz por Bromberger, 1997). Combinada com o comparativismo,
esta abordagem levou-me a discernir propriedades e contornos específicos nas
realidades portuguesas em que fui tropeçando na tentativa de compreender as novas
lógicas prisionais. Por vezes, ambas as aproximações metodológicas alertar-me-iam
para as modulações «nacionais» de categorias de representação e análise, como o seria
para o caso da «raça»/etnicidade quando procurei dar conta do modo como ela se
conjuga, no bairro e na prisão, com a classe, o género e o tráfico num jogo singular (cf.
capítulo 6). Essa é, porventura, uma vantagem dos antropólogos da periferia 1. Levados,
por força da sua situação periférica, a integrar a produção científica que emana de
diferentes «centros», não só beneficiarão, em muitos casos, de um maior manancial
comparativo (poderei assim, por exemplo, confrontar o tráfico em Portugal com as suas
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modalidades nos EUA, bairros desfavorecidos portugueses com as suas congéneres cités
francesas e os ghettos americanos), como ganham em distanciamento e se aperceberão
com menor dificuldade da contaminação das categorias de análise pelos respectivos
sensos comuns nacionais.
5 Estou ciente de que nestas viagens cruzadas corro vários riscos interpretativos,
necessários, porém, se não quiser entrincheirar-me na etnografia notarial, estritamente
descritiva, de que fala Olivier de Sardan (1996: 55), ou nas circunvoluções estilísticas
exclusivamente derivadas da palavra dos informantes. A esses riscos, por muito que
sejam empiricamente controlados e argumentados, de qualquer forma só se escapa
inteiramente se, à semelhança do rei imaginado por Borges, elaborarmos um mapa do
tamanho do reino, à escala de 1:1. Dou-me também conta de que a perspectiva que
orienta este trabalho, em lugar de revolucionária – como por vezes é sugerido nas
introduções – caiu largamente em desuso: a sistematização do corpo de dados, a
procura das lógicas subterrâneas, de padrões, tendências, armaduras, de «estruturas»,
se quisermos, para proferir um termo que nos dias de hoje se tem por vezes a sensação
de que raia a obscenidade académica («the s-word», como lhe chama Sahlins, 1999a:
406). Apesar de vários autores, entre os quais Anthony Giddens e Pierre Bourdieu,
terem há muito resolvido a aparente antinomia entre estrutura, por um lado, e
agencialidade e sujeito, por outro, o simples exame da primeira parece suscitar uma
reacção alérgica, como se em si próprio implicasse a opção teórica de negar os
segundos2. Entende-se que os excessos do passado, em favor de uma, tenham talvez
gerado anticorpos em excesso, derrapando-se para os excessos do presente, em favor de
ambos os outros. Mas, parafraseando de novo Bromberger (1997), não se imporá
conhecer a especificidade das regras do jogo, para adequadamente apreender a
diversidade das tácticas? Não são, afinal, aquelas regras que circunscrevem o campo
dos possíveis, o âmbito da plasticidade? Nesse sentido, a liberdade dos indivíduos é
sempre uma «liberdade condicional» (ibidem: 305), e acção não equivale a volição
(Maher, 1997). Aliás, como sustenta Sherry Ortner,
[A]ction itself has structure, as well as operating in, and in relation to, structure. (...]
The idea that actors are always pressing claims, pursuing goals, advancing
purposes, and the like may simply be an overly energetic (and overly political) view
of how and why people act (1984: 150-151)3.
6 Esta é uma abordagem enraizada na «localidade», contudo não encerrada nem tão-
pouco formatada nela – ou, nos termos de Bromberger (1987), «localizada», por
oposição a «local». Na tentativa de perceber as novas configurações prisionais, tive,
como referi, de abrir a análise ao exterior e entabular um diálogo com a figura do
bairro. Mas se o bairro aclara a prisão, a prisão aclara, em alguma medida, o bairro. Ela
constitui, na verdade, uma valiosa janela a partir da qual podemos entrever certas
regularidades, certas características comuns aos vários bairros de onde as reclusas
provêm, em vários pontos do país, bem como propriedades similares relativas ao tráfico
retalhista que se desenrola em diferentes paragens nacionais. Usufruí assim, de novo,
da vocação institucional centralizadora que Tires guarda (cf. capítulo 1), outrora
explícita na designação Cadeia Central de Mulheres, e que já há uma década me havia
levado a escolher este estabelecimento. Frise-se que hoje as detidas não desaguam
atomisticamente nele, mas em constelações de parentesco e vizinhança, fornecendo
ainda cada um dos bairros múltiplas destas redes. É certo que, em primeiro lugar, o que
se ganha em extensividade e em transversalidade perde-se em profundidade e
densidade, que só os estudos de bairro podem proporcionar – ainda que só para cada
11
contexto. Mas o confronto com este tipo de estudos permite precisamente recuperar
alguma dessa espessura e aferir da verosimilhança das formas que se insinuam na
prisão. E se se deveria de preferência falar de certas formas comuns tal como elas se
insinuam na prisão, ou seja, em modo condicional e exploratório, esse mesmo
cruzamento atenua os eventuais efeitos deste grão de areia. Em segundo lugar, é de
levar em conta a velha asserção criminológica segundo a qual os estudos junto de
populações encarceradas não são fiáveis porque lidam com delinquentes «falhados»,
isto é, mal sucedidos e inábeis justamente porque foram detectados. Sim, mas...
depende. Depende, logo de início, do objecto de estudo: se se trata estritamente do
crime em geral, a prisão não será certamente a sede mais apropriada. Naquilo que me
ocupa, o crime que conduziu à cadeia entrosa-se com outras dimensões, e é convocado
na medida do que traz à sua compreensão. Ainda assim, estou em crer que as reclusas
de Tires veiculam uma imagem bastante aproximada do tráfico retalhista, pelo menos
na sua versão feminina. Na verdade, o policiamento pró-activo desta modalidade de
tráfico toma muitas vezes o bairro como alvo, o que, como se verá nos capítulos 3 e 4,
relativiza a distinção não só entre traficantes bem e mal sucedidos, como ainda entre
quem, de facto, delinquiu e não delinquiu. De resto, estudos no âmbito do tráfico a
retalho que se dão ao cuidado de constituir «amostras» extraprisionais não referem
qualquer diferença entre os participantes que já estiveram ou não presos 4.
7 Em todo o caso, e regressando a Tires, tomo os sentidos e as práticas que se produzem e
declinam neste contexto local como sujeitos de análise em si próprios, não como
estatisticamente representativos dos universos externo e interno que os enquadram.
Tal como refere Olivier de Sardan,
L’enquête de terrain parle le plus souvent des représentations ou des pratiques, pas
de la représentativité des représentations ou des pratiques. Elle permet de décrire
l’espace des représentations ou des pratiques courantes ou éminentes dans un
groupe social donné, sans possibilité d’assertion sur leur distribution statistique
[...]. Il ne faut pas dire à l’enquête de terrain plus qu’elle ne peut donner. [...]. Ainsi
permettra-t-elle de décrire l’espace des diverses logiques d’action ou des diverses
stratégies mises en œuvre dans un contexte donné, ni plus, ni moins (1995: 104).
8 Porém, se a abordagem etnográfica nada dirá quanto à representatividade quantificada
de sentidos, práticas e estratégias, pode explorar o potencial compreensivo que muitas
vezes encerram, e que os torna instrumentos de análise de realidades, processos e
categorias mais vastos. Com efeito, se a prisão de Tires é vista à luz dos últimos, ela
permite também vê-los de perto, nas suas rugosidades, nas suas transacções, no seu
jogo combinado e simultâneo. Ver de fora para dentro e de dentro para fora,
balançando entre os dois ângulos, abre atalhos para aceder à conexão desses domínios
ou categorias, bem como às suas modalidades de constituição mútua. E é ainda no modo
como operam localmente que nos apercebemos, em filigrana, de amplas e súbitas
transformações da sociedade portuguesa.
9 Os capítulos em que o texto se divide não entrelaçam temáticas relativamente
autónomas. Antes se encadeiam entre si de forma sequencial, o conteúdo de um
implicando o dos precedentes e frequentemente necessitando de antecipar o dos
seguintes através de remissões. Os elementos de uns e de outros vão sendo integrados
num percurso em espiral. Porque este trabalho nasceu das interrogações suscitadas por
uma metamorfose, na margem entre o fim de um ciclo e o início de um outro, os dois
primeiros capítulos fornecem as coordenadas dessa mudança. Contextualizando-a, são
já, contudo, capítulos analíticos. O primeiro centra-se, por um lado, nas transformações
12
NOTAS
1. Esta vantagem começa na verdade por ser uma desvantagem: como referem Akhil Gupta e
James Ferguson, o «centro» apenas contempla a antropologia praticada pelo «centro»:
Other national traditions are marginalized by the workings of geopolitical hegemony,
experienced as a naturalized common sense of academic «center» and «periphery».
Anthropologists working at the «center» learn quickly that they can ignore what is done in
peripheral sites at little or no professional cost, while any peripheral anthropologist who
similarly ignores the «center» puts his or her professional competence at issue (1997: 27).
2. Anoto de caminho que não pretendo subsumir – travestir seria a palavra – a individualidade
das reclusas nos nomes próprios que lhes atribuo (pseudónimos, evidentemente). O uso do nome
próprio não funciona aqui como artifício retórico dessa ordem, destinando-se antes a restituir a
cada prisioneira os diversos episódios e palavras que protagoniza em momentos diferentes do
14
texto, e a cruzá-los na esteira de um itinerário individual. A fim de cada um deles não se diluir
numa profusão de nomes, estes não são por vezes utilizados para reclusas que só figurarão uma
vez, a um propósito, e que situarei por outras vias. Com efeito, não recorri a informantes
privilegiadas – não no sentido de frequentar mais assiduamente umas detidas do que outras, o
que inevitavelmente fiz, mas no sentido de ancorar uma visão da cadeia exclusivamente em
algumas delas (cf. capítulo 2), uma opção, de resto, de todo em todo legítima noutras etnografias,
e consoante os objectos.
Em segundo lugar, ganhará um peso analítico no trabalho uma categoria de reclusas com um
peso demográfico extremamente reduzido. Trata-se, por um lado, de devidamente cobrir em toda
a sua extensão o espaço das representações e das práticas e, por outro, quer de iluminar pela
diferença a categoria maioritária no presente, quer de figurá-la como um contraste significativo
com o passado, onde era no quadro da categoria hoje minoritária que se produziam as
configurações dominantes.
3. (Itálicos no original.)
4. Ver, por exemplo, Jacobs e Miller, 1998, onde tal cuidado é mais do que justificado, uma vez
que se debruçam sobre as tácticas de evitamento da detecção policial (esta amostra incluiu ex-
reclusos. Dificilmente se poderá, contudo, falar de uma amostra clássica, uma vez que os
parâmetros estatísticos dos universos de ilegalidade, aos quais inere a clandestinidade, são
desconhecidos. Restou então aos autores o recurso a essa técnica, tão cara aos antropólogos, da
«bola de neve», em que um contacto leva a outro e a outro contacto). O mesmo se constatará em
Reuter et al (1990), que, recorrendo a métodos quantitativos, não pretenderam a
representatividade da sua amostra, alegando que ela apenas permitia conhecer a dimensão
mínima da população de traficantes do contexto em causa.
15
mais alta da União Europeia. Para além destes montantes e tipos suplementares de
reclusas, que a cadeia de 1954 não recebia, internamente os critérios de repartição
pavilhonar procuram ainda centrar-se na situação jurídica das reclusas (preventivas/
condenadas e, dentro das últimas, tipo de pena e estádio do seu cumprimento). Tais
critérios, no entanto, entram agora em compromisso com outros, extrajurídicos: a
existência de filhos ou de parentes no estabelecimento, mediante a qual, recordo, as
reclusas podem transitar de pavilhão.
6 Na verdade, estes dez anos saldaram-se numa evolução duplamente paradoxal. Em
1987, o princípio da compartimentação da população enclausurada, radicando, em
última instância, no objectivo da sua reabilitação, era vivamente reafirmado a contrario
na retórica do pessoal penitenciário, quando lamentava os supostos efeitos desastrosos
da mistura de todo o tipo de presas. Totalmente negada nas práticas de ocupação do
estabelecimento, a repartição espacial dessa população teria sido, todavia,
especialmente coerente nessa época, sobretudo quando olhada retrospectivamente: a
heterogeneidade de algumas das categorias jurídico-penais que a ela presidiriam (tipo
de pena e, via este, tipo de crime) recobria também, ainda que grosso modo, uma relativa
heterogeneidade sociológica (de estratos sócio-profissionais, de estilos de vida, entre
outros traços).
7 Hoje (refiro-me a 1997, o ano deste «presente etnográfico»), que a letra da reforma,
impressa na classificação pavilhonar, foi recuperada – mesmo se imperfeitamente –, em
parte o seu espírito já não pode acompanhá-la. Se proporciona alguma racionalidade
gestionária, separando horários e rotinas (em alguns casos forçosamente diversos,
como os de preventivas e RAVE, noutros, limitando-se a serem distribuídos por
diferentes corpos do pessoal de vigilância), já não separa outras diferenças. Como se
esclarecerá nos capítulos seguintes, a população que agora desemboca no EPT é
caracterizada por uma inesperada homogeneidade penal e sociológica, maior ainda, de
resto, do que aquela que a actual repartição das etiquetas jurídicas deixa supôr. Que as
diferenças jurídicas são, em certa medida, formais (embora, como é óbvio, tenham um
enorme peso na vida prisional das reclusas), parece constatar-se no facto de não mais se
ouvir ao pessoal penitenciário o discurso, outrora tão recorrente, da nefasta «mistura»
de diversos tipos de delinquentes. Não porque o staff , entretanto renovado, tenha
deixado de crer nos seus efeitos criminogéneos, mas porque a «mistura» – uma noção
que por definição pressupõe a variedade daquilo que se congrega – deixou de facto de
ocorrer quando à partida é mais o que assemelha as reclusas do que aquilo que as
diferencia.
8 Por outro lado, embora na realidade o estabelecimento ofereça no presente mais
oportunidades de formação escolar e profissional do que no passado (em graus para a
primeira, em diversidade para a segunda), as ambições que o discurso institucional
veicula são mais modestas. Sem explicitamente enjeitar o legado reformador, caiu o
tom grandiloquente – ou pelo menos convicto – com que em 1987 circulava
prolixamente a expressão «reinserção social». Confrontado recorrentemente com ex-
reclusas que regressam, tornou-se mais prosaico e comedido. Ontem, como hoje, os
dados estatísticos locais sobre a reincidência são em absoluto não fiáveis. Entre outros
problemas, o seu preenchimento é irregular e uma mesma pessoa pode figurar sob
apelidos diferentes. O trabalho de campo, contudo, permitiu-me assistir a esses
regressos, e sobretudo aos inúmeros comentários que pontuam a rotina prisional
acerca de quem cá está outra vez (o trabalho anterior apenas me havia confrontado com
18
10 A prisão mudou, deste modo, de objectivos ou, melhor dizendo, não tem já objectivo
próprio, excepto o da manutenção da ordem interna – que é, aliás, cada vez mais árduo.
Dificilmente seria de outra forma quando é chamada, como será questão adiante, a
gerir penas cada vez mais longas, às quais são submetidas populações cada vez mais
desmunidas e afectadas por novos problemas. O «penitenciário», para retomar os
termos da formulação foucaultiana, deixou assim de se distinguir do «judiciário», ou de
lhe suceder numa outra empreitada, e esta é, em si mesma, uma inflexão de peso. A
prisão talvez nunca tenha existido de facto como Foucault a descreveu, como uma
perfeita instituição disciplinar; talvez nunca tenha fabricado «corpos dóceis» (veja-se a
questão da resistência dos encarcerados, abordada por Garland, 1990: 173);
seguramente que sempre foi longa a distância entre a teoria da punição que a fundou e
a sua tradução prática (a este respeito os críticos são particularmente abundantes: e. g.
Rothman, 1980: 11; Pisciotta, 1994: 75-80; para Cohen, 1985:29, a obra de Foucault
construiu-se somente com base em «stories, visions, plans»). Mas não foi menos real a
«visão» que mal ou bem a prisão pôs em cena, o tipo de racionalidade que ostentou e
pelo qual – muito imperfeitamente, é certo – se guiou6. É esse programa – e não apenas
a sua execução – que deixou de ter lugar.
O modelo «doméstico-autoritário»
18 Israel Barak-Glantz (1981) identificou quatro modelos de gestão das prisões (não
programáticos, mas históricos). Apesar de terem sido delineados a partir do contexto
americano – mas Jean-Hervé Syr (1996) não deixou de reconhecer a sua valia analítica
para a compreensão da evolução das prisões europeias –, dois dos modelos podem dar
conta de características centrais da organização do EPT ontem e hoje, ainda que um
deles, como se verá, muito parcialmente: são eles o modelo «autoritário» e o modelo
«burocrático-legal»9. O primeiro, na sua forma pura, é o que mais se aproxima do
estereótipo da Prisão, ou dos seus clichés cinematográficos, embora também descreva
adequadamente certas realidades históricas e empíricas. Corresponde a uma situação
em que o director da prisão concentra amplos poderes, que exerce de forma mais ou
menos discricionária quer sobre o staff, quer sobre os reclusos. A ordem é mantida não
só por esta via, mas ainda pela emergência de uma estrutura de autoridade paralela e
informal entre os detidos, cujos líderes, possuindo por definição um elevado potencial
de controlo e influência sobre os co-detidos, são por esta razão usados subsidiariamente
pelos poderes formais (director e guardas) na manutenção da ordem, quando não
favorecidos ou protegidos por estes.
19 Laivos deste modelo encontravam-se ainda em 1987. O poder da directora, apesar de já
consideravelmente limitado na letra da lei por instâncias exteriores de controlo (a
22
envergavam sob o uniforme. Hoje, para além das normas deste tipo se encontrarem na
sua maioria agrupadas num regulamento único e estável, o conteúdo deste limita-se a
transpor o estipulado pelo Ministério da Justiça, e por outro lado, vem apenas regular
os items que este expressamente delega nas competências locais (horários, regime de
visitas, etc.)12.
24 Em suma, uma boa parte das competências que na prática outrora relevavam da
direcção, encontram-se hoje desconcentradas para cima, para instâncias superiores e
autoridades centrais, sendo assim, de certa forma, hetero-determinadas e menos
autónomas. Aliás, esta hetero-determinação não se refere apenas à legislação e às
instituições nacionais, mas também a instâncias supra-nacionais. Veja-se o caso das
Regras Penitenciárias Europeias (in Temas Penitenciários, n.º 1, 1988), que formal e
detalhadamente orientam, desde 1987, as administrações penitenciárias dos países
membros do Conselho da Europa. Por outro lado, outras competências ainda acham-se
desconcentradas, como vimos, para baixo – para os escalões intermédios dos serviços
especializados.
25 Em acréscimo, a prisão tornou-se menos «autárcica». Certos sectores foram
inteiramente subtraídos ao seu quadro, como o caso já descrito do sector de reinserção
social13. Além disso, a sua mudança de escala e a sua complexificação tornaram
inevitável um maior recurso ao exterior para a prestação de bens e serviços (que o
modelo anterior procurava assegurar internamente): no sector da saúde, em que cresce
o apelo a especialistas e instituições externas (o Serviço Nacional de Saúde e as
Administrações Regionais de Saúde, de resto, constituíram-se como parceiros formais
dos serviços prisionais); no sector do trabalho, com a celebração de protocolos com
empresas e autarquias para empregar mão-de-obra reclusa quer no interior (por
exemplo, através da modalidade do trabalho pago à peça), quer no exterior (no caso dos
RAVE); no sector do ensino e formação profissional, colaborando com instituições
públicas; e, por fim, na hotelaria, com a malograda experiência de fornecimento das
refeições das reclusas por uma empresa privada14.
26 Mais controlada do exterior e dele estruturalmente dependente, menos fechada sobre si
própria, com fluxos de toda a ordem atravessando os seus limites materiais, a prisão
deveio, por consequência, menos «total». É sobretudo a propósito da multiplicação
deste tipo de trocas entre o interior e o exterior que a pertinência do modelo de Erving
Goffman (1968) para a leitura destas instituições tem vindo a ser questionada (ver, por
exemplo, Lemire, 1990, e Farrington, 1992). Porém, porosidades menos evidentes e de
outra ordem têm vindo a desenhar-se na cadeia de Tires, e é nelas que incidirá parte
deste trabalho. Debruçar-me-ei, pois, mais tarde sobre a proposta deste autor.
27 Por outro lado, disposições internas que outrora claramente tipificavam «a
mortificação do eu» (Goffman, 1986: 56-57), característica das instituições totais,
sofreram algumas alterações relevantes. A correspondência (expedida e recebida) e os
telefonemas são agora confidenciais, furtando-se assim a práticas censórias que antes
exerciam não só um controlo securitário como também moral (cf. Cunha, 1994: 41-43),
embora o princípio, rotineiramente aplicado, da confidencialidade possa ser suspenso
caso haja a suspeita de crime. A correspondência é ainda fiscalizada aleatoriamente,
mas na presença da reclusa e visando materiais ilegais, estando portanto excluída a
leitura do seu conteúdo por parte dos funcionários. O ensejo moralizador é também
menor quando já não se veta visitantes e correspondentes com o argumento de que
25
ia mesmo acabar por vir parar à cadeia. Nos corrécios, se nos diziam para matar,
matávamos, se nos diziam para roubar, roubávamos [...]. [Quando fui presa], os
corrécios disseram que no dia seguinte me iam tirar de Felgueiras, mas eu não quis,
disse que me deixassem estar, mas que estivessem descansados que eu não ia
entregar ninguém. Ainda disseram que iam tratar do juiz, mas eu disse para não
fazerem mais mal a ninguém por minha causa. O tribunal já tinha apanhado o
número dois, mas quinze dias depois de estar preso pagaram a um advogado e
falsificaram um mandado de soltura [...], e ele saiu calmamente da prisão, a dizer
bom dia ao director. Depois da morte do meu marido os corrécios começaram a ir
abaixo. O número dois começou a ter filhos e quis desligar-se dessa vida. Os outros
começaram a traficar droga – e isso nós nunca quisemos fazer – e acabaram todos
por ser presos por tráfico.
50 Dois apontamentos breves: a Salomé e o seu envolvimento passado nos crimes a que
alude são em absoluto atípicos na população reclusa em Tires, como se verá; não deixa
de ser significativo que só se tenha conseguido pôr cobro à actividade dos corrécios a
partir do momento em que ela tocou a droga, ou seja, a rede só foi desmantelada
enquanto rede de droga.
51 Retomo as asserções do juiz de penas, que num outro momento acrescentaria, a
propósito da recusa de uma saída precária de longa duração a uma reclusa estrangeira –
um pedido que concitara o parecer favorável do conselho técnico, por oferecer um risco
mínimo:
É uma questão de prevenção e dissuasão. Não quero estrangeiros a cometer crimes
no meu país. O sistema prisional tem que ser duro e o nosso é brandíssimo. Os que
por cá passam não devem ficar com vontade de cá voltar.
52 Em suma, em todos estes comentários ressurgem de facto, e em amálgama, temas
paradigmáticos em que se capitaliza o novo «alarme social»: o tráfico de droga, a
criminalidade organizada, as suas supostas origens exógenas e a participação feminina
na grande criminalidade. Este último tema, de resto, ressoa com o tema da new female
criminal, em voga nos anos 70 e segundo o qual o feminismo teria também libertado as
mulheres para o crime – uma tese abundantemente rebatida e de momento enterrada
pela criminologia no que diz respeito à criminalidade feminina em geral 27. No entanto,
foi recentemente exumada – para se ver, de novo, contestada – a propósito da presença
de mulheres na economia da droga, como se constatará no capítulo 4.
53 Deste modo, tão rapidamente quanto a prisão se «des-ideologizou» e o «penitenciário»
deixou de reclamar para si um programa próprio, tão aceleradamente quanto se tornou
menos «total» e mais hetero-determinada, assim deviria no mesmo passo espessa a
atmosfera ideológica exterior, sintetizada no quadro de representações que acabo de
traçar. É este quadro de representações que, à escala nacional e supranacional, em
parte moldou – e foi moldado por – o campo político, mediático, legislativo e judiciário,
campos estes permeáveis e reagindo entre si. Vistas as figuras que concitadamente
visam e que suscitaram a álacre viragem nas formas do castigo, segue-se o encontro
com quem desagua, afinal, na prisão.
32
NOTAS
1. Regime de confiança, regime aberto virado para o interior (RAVI) e regime aberto virado para
o exterior (RAVE). Neste último as reclusas trabalham durante o dia fora do estabelecimento.
2. O estabelecimento prisional permite que as crianças aqui possam permanecer até aos 3 anos de
idade, dispondo para tal de uma creche com pessoal especializado e coadjuvado por auxiliares
reclusas. Recebe ela crianças a partir dos 6 meses, embora dê apoio às de idade inferior, que são
supostas permanecer com as mães nas celas. Tal como no exterior, as mães que trabalham
usufruem por sua vez de uma licença de parto de quatro meses, remunerada nos termos da
legislação geral.
3. Decreto-Lei n.º 26 643, de Maio de 1936: para o texto comentado da reforma ver Pinto e
Ferreira (1955). Trata-se, porém, de uma correspondência imperfeita: se todos os pavilhões
apresentam maiores ou menores variações quanto a regimes, regras e horários, elas são quase
nulas entre aqueles que se destinam respectivamente a penas curtas e longas. Exceptuam-se,
naturalmente, as inevitáveis diferenças resultantes da margem de manobra de que cada subchefe
de guardas dispõe na gestão do seu pavilhão.
4. Para um tratamento mais detalhado deste ponto ver M. Cunha (1994: 21-34).
5. Segundo Foucault (1975: 251), as tecnologias de correcção ou técnicas disciplinares teriam
configurado propriamente o domínio do «penitenciário», isto é, a margem suplementar pela qual
a prisão excede o domínio do «judiciário». Punindo, a cadeia deveria operar a transformação dos
indivíduos, o que implicava em primeiro lugar conhecê-los, classificá-los e fazer variar em
consequência a aplicação da pena. As tecnologias mediante as quais se agia sobre as disposições
dos prisioneiros relevariam essencialmente de três matrizes: a «político-moral», com os
princípios do isolamento e da hierarquia; a «económica», com o princípio do trabalho, ainda que
menos como actividade produtiva do que como indutor de ordem e de regularidade, da disciplina
do corpo e da alma; e a matriz de inspiração «terapêutica», com o princípio do tratamento e da
normalização.
6. Foucault (1980) responderia implicitamente a esta sorte de objecções dirigindo-se a um
historiador fictício e estereotipado com quem o haviam convidado a dialogar: «le grand témoin
du Réel», o que defende «les petits faits vrais contre les grandes idées vagues; la poussière défiant
le nuage» (ibidem: 29). Riposta o autor que o que pretendeu fazer foi a história da racionalidade
de uma prática, acrescentando a este propósito:
Il faut démystifier l’instance globale du réel comme totalité à restituer [...] Un type de rationalité,
une manière de penser, un programme, une technique, un ensemble d’efforts rationnels et
coordonnés, des objectifs définis et poursuivis, des instruments pour l’atteindre, etc., tout cela
c’est du réel, même si ça ne prétend pas être «la réalité» elle-même ni «la» société tout entière
[...] C’est ce que l’historien (...] n’entend pas, au sens strict du terme. Pour lui, il n’y a qu’une
réalité qui est à la fois «la» réalité et «la» société. [I]l croit faire une objection en disant: mais ces
programmes n’ont jamais fonctionné réellement, jamais ils n’ont atteint leurs buts. Comme si
jamais autre chose avait jamais été dit; [c]omme si l’histoire de la prison n’était pas justement
l’histoire de quelque chose qui n’a jamais marché, du moins si on considère ses fins affirmées.
Quand je parle de société «disciplinaire», il ne faut pas entendre «société disciplinée» (ibidem:
34-35, itálicos no original).
7. Utilizo esta metáfora apenas para evocar um modo específico de organização do trabalho e não
para veicular o julgamento de valor que lhe é associado. No caso em questão, esta organização do
trabalho não tem necessariamente, e por si mesma, efeitos desumanizantes.
8. Os tribunais de execução de penas decidem, depois de ouvidos os pareceres emitidos em
conselho técnico (pela directora, pelos serviços de educação e de reinserção social e pelos
33
ou às suas modalidades particulares. Assim, se a lei, por tendência estável, reflecte esta
sensibilidade, mas de maneira mais distante, os magistrados escutam-na mais de perto, por vezes
nas flutuações que nela induz, por exemplo, a notícia de um determinado crime, e poderão levá-
la em conta nas decisões que tomam dentro da margem de arbítrio que lhes é concedida.
20. Decreto-Lei n.º 15/93. Vem revogar a lei da droga anterior (Decreto-Lei n.º 430/83).
21. Art. 34.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
22. Ênfase no original.
23. Esta convenção prevê, por exemplo, a inversão do ónus da prova quanto à origem lícita de
bens e produtos passíveis de apreensão e perda para o Estado (art. 5.º, n.º 7), um princípio que o
direito nacional não acolheu – ou ainda não acolheu, uma vez que este e outros novos
instrumentos de combate ao tráfico encontram-se, no momento em que finalizo a redacção do
trabalho, em discussão na Assembleia da República, tendo já o actual Ministro da Justiça
declarado ser esta uma medida de grande alcance neste combate (cf. jornal Público, 7 de Julho de
2001: 26).
24. Em Portugal, segundo as Estatísticas da Justiça de 1987 e de 1997, o número de reclusos
passaria respectivamente de 7 965 para 14 236. Para a evolução comentada destes índices noutros
países ver, por exemplo, para países europeus, todos os artigos contidos em Ruggiero, Ryan e Sim
(1995), Wacquant (2000); e, para os Estados Unidos da América, Rothman (1995), Blumstein (1995)
e, também, Wacquant (2000).
25. Por sentimento difuso de insegurança não pretendo sugerir que se trata de um medo sem
objecto ou sem conexão alguma com as realidades do risco. Porém, como sustenta Jock Young
(1999: 74-78), além de a percepção do(s) crime(s) e do risco de vitimização formarem um
continuum com a percepção de outros problemas sociais e com outras inquietações urbanas,
variam também segundo as categorias sociais e adquirem em cada uma um significado específico
(os receios dos idosos serão maiores, por exemplo, e as mulheres recearão especialmente a
violência). Por isso:
[B]ecause human behaviour is always a subject of evaluation and assessment there can be no one-
to-one relationship between [real] “risk” and “fear”: arguments which are based simply on the
level of correlation, for or against, are positivistic blind alleys which lead nowhere (ibidem: 74).
Assim, continua o autor, em vez do vão exercício de procurar averiguar até que ponto o
sentimento de insegurança é ou não desproporcionado, seria mais profícuo tentar captar o
sentido que adquire dentro das diversas categorias sociais. Por outro lado, alega ainda Young, há
que levar em conta o aumento da expectativa ou do nível da exigência social de segurança na
modernidade tardia:
To hinge the question on whether [“risk rates”] have actually risen and whether they are
phrased in an alarmist fashion fundamentally misses the point. In some instances they have
risen, in many cases they are exagerated, but what is important is that the base line of evaluation
has increased as has the demand for a higher quality of life [...]. It is not so much that modernity
has failed to keep its promise to provide a risk-free society as that late modernity has taken
seriously this promise, has demanded more and realized the greater difficulty of its
accomplishment (ibidem: 78; em itálico no original).
Para um confronto de perspectivas sobre esta questão em Portugal ver Eduardo V. Ferreira (1998)
e a crítica que lhe é dirigida por Pedro M. Ferreira (2001).
26. Ateado por três indivíduos ligados a um estabelecimento rival, o incêndio do Meia Culpa
começou pelo recheio da discoteca e tinha por objectivo desestabilizar a concorrência, mas
rapidamente fugiu ao controlo dos incendiários – um dos quais, de resto, ficou ferido. A operação
saldou-se em 13 mortos e 22 feridos, um resultado para o qual também teria contribuído uma
porta de emergência que não funcionou, impedindo a saída dos frequentadores.
27. Pela primeira vez sustentada por Freda Adler (1975) e Rita Simon (1975), esta tese foi
desmontada em múltiplas e variadas frentes – razão pela qual mesmo uma resenha de tal
35
controvérsia implicaria um alongamento indevido deste texto. Ficam, por conseguinte, apenas as
referências mais representativas: Carol Smart (1977, 1979), Jane Chapman (1980), Meda Chesney-
Lind (1986), Edna Erez (1988), Pat Carlen (1988), Darrell Steffensmeier (1980, 1996) e Sally
Simpson e Lori Ellis (1995).
36
Penas e crimes
2 As penas que as reclusas hoje cumprem são flagrantemente mais extensas do que em
1987. A mudança profunda e inopinada que ocorreu em dez anos nesta característica do
perfil penal da população prisional traduz bem a amplitude dos impactes concretos que
teve no estabelecimento a crispação da política criminal e as alterações das políticas e
práticas legislativas e jurisprudênciais enumeradas no capítulo anterior. São nítidos,
em particular, os efeitos do processo de bifurcação aí referido. Ou seja, em primeiro
37
lugar é menor o recurso a penas curtas de prisão. Assim se entende, por exemplo, que
agora em Tires o total de reclusas condenadas a penas até seis meses não perfaça 0,5%
(ver figura 1), quando em 19871 era precisamente neste intervalo que se situava a
percentagem mais elevada (27%), seguida dos 19% referentes às penas compreendidas
entre três e cinco anos, valor hoje em regressão (15%)2.
3 A outra face da política criminal dual é draconiana: investe-se nas penas longas que,
relembro, se ampliaram. Em 1987, o EPT registava montantes ínfimos de reclusas com
penas superiores a sete anos. Dez anos depois, 51% concentram-se nas penas entre
cinco e nove anos. De resto, se se assumir como ponto de referência as penas superiores
a cinco anos (um limiar importante, pois recordo que é a partir dele que a política
repressiva se acentua e se repercute ainda mais intra-muros, com a liberdade
condicional tornada inviável antes do cumprimento de ⅔ da pena), a proporção de
reclusas nessa condição totaliza os 69%. Esta ordem de valores não tem aliás precedente
na história da instituição, nem mesmo nos seus primórdios, nos anos 50, quando a
severidade penal também se fazia aí sentir (ver Cunha, 1994: 16). Com uma robusta
maioria aglutinada nas penas superiores a cinco anos, insinua-se assim um primeiro
elemento homogeneizador da população reclusa.
4 Se são mais longas as penas que expiam as condenadas de Tires, são-no também porque
os crimes que hoje aqui as trazem circunscrevem o alvo principal da severidade penal:
os crimes de tráfico. A julgar pelos dados relativos ao ano de 1997 fornecidos pelo
Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga (GPCCD), é de aventar
que o rigor penal que inflaciona o número de ocupantes das cadeias portuguesas não se
limita aos famigerados «grandes traficantes»: o número de apreensões (classificáveis de
acordo com o critério de quantidade de substância média apreendida) foi de 89%
situável no «pequeno tráfico», 7% no «médio tráfico» e 3% no «grande tráfico».
Também assim se compreende que tendo aumentado o número de apreensões, o mesmo
não tenha sucedido com a quantidade global da droga apreendida. 76% das reclusas do
EPT vêm condenadas ou acusadas (no caso das preventivas) por tráfico de
estupefacientes, crime este que dez anos antes, apesar de já registar cifras significativas
38
categorias locais (ver, no capítulo 6, a importância da categoria por droga) que, por sua
vez, ajudarão a atravessar na direcção inversa os muros da prisão.
11 Os dados relativos a crimes e penas traduziram a homogeneização vincada em que se
saldou a evolução do perfil penal das reclusas na década em questão. Aliás, se abrirmos
a lente e inserirmos este período no tempo longo da instituição, desde o início do seu
funcionamento (ver Cunha, 1994), constata-se uma viragem brusca num percurso cujas
inflexões antes se insinuavam geralmente de maneira gradual e cumulativa. A diferença
dos valores atestados no intervalo de uma década é de tal ordem de grandeza que se
pode com propriedade falar de um salto qualitativo. Ora, neste mesmo período
produzir-se-ia também um processo de nivelamento no perfil sociológico desta
população.
«O que é nacional...»
19 Quanto à rubrica «outras» (profissões), os montantes também baixariam (de 22% para
18%), o que poderá de igual modo indiciar uma menor diversidade na gama de
ocupações profissionais. Mas, além disso, entre estes anos mudaram os conteúdos e a
repartição interna desta categoria. Enquanto em 1987 predominava o pessoal
administrativo e o sector dos serviços (repetindo-se as secretárias, empregadas de
escritório, cabeleireiras e esteticistas), em 1997 destaca-se antes o operariado não
qualificado – basicamente no sector dos têxteis, do calçado e na indústria conserveira.
20 Em suma, esta década parece saldar-se num maior ingresso pré-prisional desta
população no mercado de trabalho – ou nos seus interstícios – mas, nesta investida, o
universo recluso também aqui se homogeneizaria, num movimento de convergência
para uma mesma zona do espaço social estratificado. E o sentido dessa deslocação
conjunta é, notoriamente, descendente.
21 Um outro indicador associa-se estreitamente ao indicador sócio-profissional para nos
fornecer as coordenadas mais básicas de localização no espaço estrutural das relações
de classe. Dada esta transversalidade, não é assim por acaso que é similar à tendência
acima descrita aquela que os níveis de escolaridade revelam (ver figura 5). É certo que
em ambos os anos os recursos sócio-educacionais da globalidade das reclusas são parcos
e, para mais, inferiores aos da generalidade da população portuguesa. Por exemplo, o
censo de 1991 contabilizava 11% de analfabetos, quando esta fracção corresponde na
prisão a 19% em 1987 e a 21% dez anos depois (e o relatório de 1996 da Provedoria de
Justiça sobre o sistema prisional notaria que a discrepância em relação aos números
nacionais se acentua à medida que se progride nos escalões de escolaridade).
QUADRO 1 – Reclusas com filhos por estado civil (%) 1997 n = 794
Solteiras 47,9
Casadas 91,1
Viúvas 93,5
27 Esta mutação vincada na estrutura etária da população reclusa pode ser compreendida
no contexto da subida em flecha das taxas locais de reclusão motivada pelos crimes de
tráfico de droga, em primeiro lugar, e, em conjugação com este factor, pela modulação
sexual destas cifras no contexto nacional. Vejamos, então, como intervém o factor
género. De acordo com as Estatísticas da Justiça de 1997, o número de condenações
masculinas continua a ser de longe superior ao das femininas, embora seja
comparativamente um número em regressão (entre 1987 e 1997 a população prisional
feminina passou de 6% para 10%). Porém, a sua repartição interna para cada sexo é
bastante diversa: os reclusos condenados neste ano por crimes contra o património
perfazem 46%, enquanto a percentagem dos crimes de droga é de 34%. No caso
converso das mulheres os números são, respectivamente, de 16% e de 69%. As mulheres
são assim proporcionalmente muito mais condenadas a penas de prisão por crimes de
narcóticos do que os homens. Mas, para além disso, se considerarmos a evolução
comparativa das condenações em ambos os sexos, e delas excluirmos os crimes de
consumo, verifica-se que no período de 1989-1997 a subida proporcional dos crimes de
tráfico foi, no caso feminino, superior ao dobro da registada no caso masculino 10.
Idêntica proporção foi, aliás, notada num outro contexto por Karen Leander (1995:
178-179), que explica a subida nos índices de encarceramento feminino não por uma
eventual mudança na atitude dos tribunais para com este género (de «cavalheiresca»,
por exemplo, para especialmente intransigente)11, mas pela actual centralidade dos
crimes de droga nas condenações de mulheres, isto é, aqueles que são duramente
sentenciados. É de acrescentar, na mesma linha, que no caso português os crimes de
tráfico são ainda os que apresentam maiores taxas de condenação.
28 Na verdade, embora ciente de que também aqui possam intervir as sucessivas filtragens
policiais e judiciais ao longo do processo que terminará na constituição das fileiras
prisionais, o tráfico não só parece abrir novas oportunidades económicas às mulheres,
mas, mais ainda, às mulheres menos jovens. Estas novas oportunidades decorrem de
certas características da economia ilegal da droga em Portugal. Em primeiro lugar, além
de nela existirem poucas barreiras ideológicas à participação feminina, entrosa-se bem
nas esferas sociais preferenciais deste género porque é, em parte, uma actividade
incluível na esfera doméstica: muitas das reclusas eram «comerciantes de casa». Em
seguida, não requer força nem exige particular destreza física – o exigiriam vários tipos
47
compreender o facto de a maioria das reclusas ser agora menos jovem do que no
passado.
33 Se a droga parece assim constituir um factor de uniformização do perfil penal desta
população, o perfil sociológico também se homogeneizou e, no mesmo movimento, se
desclassificou. Este nivelamento por baixo pode ser descrito, noutros termos, como uma
pauperização genérica e em cadeia, abrangendo capitais económicos, sociais, escolares
(e simbólicos, como se verá), e traduzir-se-á em trajectórias de vida com ressonâncias
quase dickensianas. A precariedade, a instabilidade e a informalidade são, em vários
registos, outros avatares desta convergência. Outro avatar ainda é a recorrente
proveniência dos mesmos bairros desqualificados, sobretudo concentrados nas grandes
áreas metropolitanas, embora um idêntico padrão se reproduza fora delas; e/ou de
minorias étnicas socialmente estigmatizadas por estas e outras intersecções. Neste
balanço recordo, por fim, que a polarização institucional entre o staff e a população
reclusa tem agora a corresponder-lhe uma polarização sociológica agudizada, em que se
alargou o fosso entre os respectivos capitais e inserções estruturais: qualificou-se um,
desqualificou-se outra. De resto, ao renovarem-se ambos nestes dez anos, o primeiro
rejuvenesceu, a segunda envelheceu.
Um regresso a Tires
O mapa social e o mapa subjectivo
calhar agora não lhe apetece estar a falar nisso...». Não penso que neste segundo
trabalho de campo se tratasse com isto de apenas projectar nas reclusas as minhas
próprias noções quanto aos ritmos apropriados de construção das relações pessoais –
como durante o trabalho anterior, em que aparentemente só eu (e não as reclusas) fazia
da abordagem de temas sexuais, por exemplo, uma questão vexatória 19. De facto,
deparava-me no presente com o recuo e o fechamento que mais de uma vez se
sucederam a extensas confidências, porventura no rescaldo de quem se arrependera de
ter ido longe de mais, neste caso não tanto num desvelamento da intimidade, mas de
detalhes e circunstâncias de ordem criminal, que de resto envolviam não só a reclusa
como outros.
44 A delicadeza que desde cedo intuíra neste novo terreno reclamava ainda outras
cautelas, que pouco a pouco se revelaram cruciais. Por exemplo, foi manifesto o agrado
e a confiança que gerou na Eduarda (a reclusa inopinadamente arrancada à sua cela) a
minha recusa em anotar a morada de uma ex-reclusa sua amiga – «muito interessante»,
nas suas palavras, e que segundo ela me poderia ajudar no meu trabalho. Agradeci-lhe a
intenção, mas sugeri que talvez a reclusa não apreciasse que eu a contactasse através de
um endereço que me fora transmitido na cadeia. Embora eu não atribua exclusivamente
a este episódio a viragem que se produziu nas minhas relações com a Eduarda, foi na
verdade a partir dele que esta viria a contar-se entre as reclusas que mais me
solicitavam.
45 Encarava assim com uma nova fleuma quer os equívocos – que desfazia aos poucos, em
vez de imediato –, quer os retardamentos na progressão das relações de campo – que
em muitos casos foram investimentos que as tornariam mais sólidas. Porque a longo
termo não considerava as dificuldades insuperáveis e porque é nesta escala que o
trabalho de campo se decide, também não me pareceu imprescindível, no seu decurso,
residir na prisão. O acesso às reclusas que a instituição me proporcionou foi irrestrito e
a experiência anterior mostrara-me que o seu acompanhamento não é inviabilizado
pelo facto de se residir fora dela – já o das guardas sim, e por isso no passado pernoitava
por vezes na sua camarata, de modo a poder seguir parte das suas rotinas de trabalho
(rondas e vigílias) e a aproveitar estes períodos de acalmia nos seus afazeres para
entabular conversas menos atribuladas. Contudo, as guardas não se inscreviam hoje nos
meus horizontes de pesquisa. Cheguei a ponderar para o presente trabalho a opção de
habitar no estabelecimento, mais por razões práticas do que por aí discernir algumas
virtualidades intrínsecas que me abririam outras vias de percepção da realidade
prisional20. No entanto, além de a prisão ser por definição um quadro de vida anómalo,
onde se ingressa coercivamente e por razões precisas – ou talvez precisamente por isso
mesmo – receava que o meu estatuto perante as reclusas crescesse exponencialmente
em ambiguidade, uma vez que estava fora de causa fazer-me passar por uma delas.
Anuladas as iniciais ambiguidades mais previsíveis, que me fariam circular, como
fizeram no passado, entre os papéis de assistente social, estagiária, inspectora dos
serviços prisionais e jornalista, papéis estes mais legíveis para as reclusas, o que
restaria? Se não vinha acusada de um crime, por que me submeteria à prisão?
Arriscaria assim ou potenciar normais suspeitas de infiltramento e espionagem ao
serviço de obscuros desígnios, ou configurar o que aos seus olhos poderia surgir como
um embuste, o embuste de quem pretende partilhar parte da experiência prisional sem
se sujeitar a todos os seus constrangimentos e consequências 21. Preferi, por isso, outra
53
49 Apesar destas armadilhas, a subjectividade pode porém ser mobilizada de outra forma e
contribuir para iluminar certos aspectos do terreno, ou sinalizar nele algumas
questões23. Mencionei acima a distância estrutural que hoje aumentara entre mim e as
reclusas. Mas dela não decorria linearmente a distância intersubjectiva. Na verdade,
esse abismo sociológico era como que curto-circuitado a um outro nível. Ao deparar-me
com as histórias de vida das reclusas e com as circunstâncias em que haviam sido
perpetrados os delitos que as conduziram à prisão, via-me constantemente
transportada para o seu lugar e perturbava-me uma interpelação omnipresente: a
noção de que nos seus contextos de vida eu poderia ter procedido da mesma forma. Dez
anos atrás, sendo a distância social menor, esta identificação era, em contrapartida,
rara e pontual. Retrospectivamente apercebo-me de que este tipo de limite
54
intersubjectivo me era mais claro e tangível, que os seus crimes eram escolhos de
percurso (uma representação aliás mais recorrente nas reclusas de ontem do que de
hoje), onde intervinha, contudo, uma maior margem de escolha. No presente, ao invés,
encontravam-se ligados muito mais directamente à marginalização estrutural das
mulheres de Tires, e a opção de a eles não sucumbir parecia-me implicar uma
resistência quase hercúlea. É certo que também aqui piso o movediço terreno das
projecções. Só que, desta feita, o que de outro modo seriam meras divagações pessoais
acabou por abrir pistas eficazes. De facto, esta modalidade de identificação com as
reclusas era também, pela primeira vez, manifesta no staff prisional, e permitir-me-ia
compreender algumas lógicas de funcionamento dos seus membros, bem como das
representações que eles constroem sobre as reclusas.
50 Este trabalho foi-me pessoalmente bastante mais penoso do que o anterior, e por isso a
minha estada na cadeia ao longo de um ano conheceu várias interrupções (geralmente
de uma semana, por vezes duas). Hoje como ontem, continuo a não vislumbrar uma
especial heroicidade em empreender uma investigação de campo em terrenos
«problemáticos» ou humanamente difíceis – mau grado o misto de admiração e
comiseração que invariavelmente suscita na entourage a informação de que realizo um
trabalho na prisão, porque tal cenário seria «lúgubre», «cinzento», «deprimente», etc.
Evidentemente, mesmo aí há lugar para o riso e a festa, que em vários momentos
suspendem a dureza do cárcere. Mas hoje – até porque a prisão já não é, em sentido
inverso, isolável de uma dureza que lhe é exterior, como se verá – mesmo o riso e a
festa têm muitas vezes um travo amargo, como o que se desprende do seguinte
episódio, entre vários outros exemplos possíveis:
Comemorámos no P. A a saída da Emília, que ainda não acredita que foi mesmo
desta que conseguiu a liberdade condicional. Vai realizar-se enfim o único desejo
que há muito alimenta: ir para casa antes que o filho morra com SIDA (com essa
doença, como é o nome?). Vai poder acompanhá-lo nos tratamentos e ajudá-lo nas idas
ao hospital (já tinha sido com esse fim que ela procurara coordenar o calendário da
sua anterior saída precária). A sua alegria era imensa e esfuziante – quase me
estrangulava com um abraço – e as outras reclusas seguiam-na num entusiasmo
desassombrado. Perante aquela morte anunciada, só eu não sabia, a princípio, como
reagir, dividida que estava entre a boa e a má notícia. Acabei por seguir o
movimento geral. [Caderno de campo.]
A cozinha etnográfica
51 Dificuldades de ordem prática, por outro lado, implicaram uma outra organização do
trabalho de campo. As minhas sedes privilegiadas de observação de outrora, onde se
proporcionavam os encontros e as conversas mais casuais, encontravam-se agora
reduzidas, no caso dos grandes pavilhões, ao recreio, átrios e corredores. A anterior
sala de convívio, transformada em bar, não tinha já televisão (uma vez que as celas
passaram a dispor do aparelho), e como tal atraía e fixava menos as reclusas. Para aí
convergiam sobretudo para um rápido café, a maioria das vezes tomado em pé, e o
corropio, o barulho, as filas e os empurrões compunham um ambiente tumultuoso nada
propício aos meus fins.
52 A boa vontade da instituição tornou possíveis as conversas durante o trabalho das
reclusas quando este era remunerado por um salário fixo, mas optei por concentrá-las
fora do horário laboral no caso de ser pago à peça (por exemplo, a aplicação ou
manufactura de etiquetas, envelopes, molas, com a excepção dos tapetes de Arraiolos
55
que, sendo pagos também ao metro quadrado, eram uma actividade mais pausada), para
não induzir distracções que fariam baixar os montantes auferidos.
53 Quanto às reclusas em RAVE (e algumas em RAVI), o seu contacto implicava o
conhecimento dos dias de folga de cada uma, embora o fim-de-semana proporcionasse
outra ocasião, e tivesse também almoçado, a seu convite, com elas e as suas famílias nos
dias de visita. Assim, a diversificação dos regimes e, a vários títulos, a menor
massificação institucional obrigaram-me a uma maior coordenação prévia de
actividades e contactos, e a recorrer mais às visitas às celas para conversas quer
individuais, quer em pequenos grupos.
54 Em todo o caso, não foram só as circunstâncias logísticas ou as da disponibilidade das
minhas interlocutoras que requereram um maior planeamento dos rumos do trabalho
de campo. Todo o percurso combinou doses de informalidade e disciplina. De um lado,
deambulava ao sabor dos contactos que se iam espontaneamente encadeando, uns
remetendo para outros, segundo uma progressão de tipo «bola de neve». Seguia assim o
fio das redes locais existentes, que entretanto se iam entrecruzando na minha rede
pessoal. Mas se este rumo, arborescente e improvisado, se adaptava às dinâmicas e aos
circuitos sociais reais, por outro lado ele não subverteu inteiramente um outro, que
mantive em paralelo.
55 De facto, procurei construir com alguma ordem e sistematicidade um outro fio de
contactos, seleccionando previamente uma amostra estratificada de reclusas de acordo
com vários critérios, alguns deles próximos dos que serviram para estabelecer o perfil
sócio-penal explanado no início deste capítulo, outros recuperando dados que se
encontravam irregularmente registados, como os referentes à etnicidade, por exemplo.
A preocupação que presidiu a este ordenamento era dupla. Em primeiro lugar tratava-
se de estabelecer uma base mínima e provisória que acautelasse a comparação com a
situação passada (por exemplo, o tipo de crime repercutia-se anteriormente nas
categorias de representação e nas lógicas relacionais internas). Em segundo lugar
procurava diversificar metodicamente o leque de interlocutoras, que desejava tão
variado quanto possível – não apenas porque perfilho o elementar e salutar princípio
da triangulação (ver Olivier de Sardan, 1995: 92-94), que entende integrar múltiplas
diferenças de pontos de vista, mas ainda por uma outra razão. Apesar de hoje se
verificar ex post em vários planos uma homogeneização de facto e sem precedentes do
universo recluso, ela não deve iludir um pressuposto de heterogeneidade, que é
inerente à própria noção de prisão. Muito esquematicamente, a prisão é um quadro de
vida «artificial» e anómalo, para onde convergem, em princípio, todas as categorias de
pessoas, que no meio livre e em circunstâncias normais não se conjugariam. Por
consequência, a estratégia de investigação deveria adequar-se, mesmo que
provisoriamente, a este ponto de partida. Palmilhar, numa relativa extensão, o espaço
das práticas e representações não se destinava, entenda-se, a assegurar-me da sua
representatividade – no sentido da sua distribuição estatística – mas sim das variações
significativas que permitem, também elas, aceder às lógicas correntes e às suas relações
internas.
56 A sistematicidade prevenia também outro risco, ou pelo menos contrabalançava-o.
Dada a enorme distância social agora interposta entre mim e a maioria das reclusas,
podia dar-se o caso de as afinidades electivas, as capacidades de comunicação e
verbalização – para mencionar alguns dos ingredientes com que se constroem no
trabalho de campo as relações preferenciais, ou que em parte induzem a escolha dos
56
Um lugar no jogo
Bem entendido, esta atribuição não explicava nada por si mesma. Se assim fosse, grande
parte do legado de investigação da antropologia não teria sido possível, dada a distância
social e cultural que na maioria das vezes separava os antropólogos das populações que
os acolhiam. Por outro lado, também não era o receio de eventuais represálias
institucionais que tolhia as reclusas. Onde se mostravam menos intimidadas era
justamente na denúncia de algumas deficiências do estabelecimento, que agora
pretendiam divulgar por canais que acompanharam, também eles, o ar dos tempos e se
actualizaram: em lugar de apregoarem, como outrora, que tencionavam escrever um
livro, anunciavam ir contar tudo à SIC.
60 Não foi senão mais tarde que tomaria consciência de que se mantinha válido o que
concluíra na minha primeira estada, a saber, que a minha relação com as reclusas se
achava inextricavelmente ligada à lógica das suas relações interpessoais, situava-se em
continuidade com elas e abria sobre alguns dos processos identitários locais (Cunha,
1994: 12-13). Quer o queira quer não, o investigador participa do mesmo jogo social que
os seus interlocutores e é um dos seus actores. Foi aliás neste sentido que já outros
autores de certo modo se «objectivaram», utilizando a sua própria presença como
revelador, ou como método (ver, por exemplo, Althabe, 1990, e Sélim, 1989). No
trabalho de campo anterior, a rápida proximidade que as reclusas estabeleceram
comigo traduzia, numa certa medida, a distância que existia entre elas próprias, ou
inscrevia-se precisamente nessa estratégia de distanciação. Esta distância manifestava-
se em sociabilidades atomizadas e nos seus esforços de desqualificação das co-detidas, a
propósito de quem reproduziam discursos muito estigmatizantes (retomarei adiante
esta questão). A relação comigo parecia permitir-lhes esconjurar a identidade desviante
que a reclusão lhes impunha – e que projectavam nas colegas – e recuperar a pertença a
uma ordem «legítima», em que não haviam deixado de se rever. Em todo o caso, a
minha exterioridade ao universo recluso era então uma vantagem. Hoje, ela tornar-se-
ia um obstáculo porque, como se verá, o que estava em causa era radicalmente diverso.
A profunda marginalização anteprisional que afecta estas mulheres, a sua marcada e
colectiva exclusão simbólica, da qual a reclusão já não é senão um dos momentos e uma
das figuras, tornou a prisão um palco irrelevante para o jogo da demarcação; acima de
tudo, tornou tal jogo irrisório; o vasto entrançado de parentes, amigos e vizinhos
trouxe consigo intimidade, proximidade, segredos, alguns cuja revelação comporta
pesados riscos. Criou, em suma, eloquentes «silêncios culturais», para usar a expressão
de Rabinow (1977). E criou também a convicção de uma «comunidade», à qual eu
chegava como uma intrusa. Mais do que por razões imputáveis a mim própria ou ao
meu percurso de investigação, as minhas presentes dificuldades pareciam assim ser em
boa parte função das características do objecto.
61 O que me leva, agora, a outra questão, que retoma o tema do regresso ao terreno. Faz já
parte do senso comum antropológico a noção de que uma etnografia não é «definitiva e
atemporal» mas, pelo contrário, «selectiva e contingente», nomeadamente a uma
relação interpessoal específica e a um momento histórico particular (Kenna, 1992;
Okely, 1992). Os retornos ao terreno dão-nos as dimensões dessa contingência,
permitindo justamente situar de forma mais nítida as etnografias precedentes nas
etapas de evolução de um contexto. Dei já conta de alguns dos traços que, em diferentes
planos, marcaram a evolução deste quadro prisional, e que neste sentido temporalizam
58
o trabalho anterior. Ora, progredindo depois nos contactos com as reclusas, acederia
ainda a outros aspectos novos e contrastantes, e desde cedo comecei a antecipar
conclusões muito discrepantes daquelas que retirara do primeiro trabalho de campo.
62 Como encarar esta divergência? Sê-lo-ia porque tive de facto a ocasião de assistir ao fim
de um ciclo e ao início de um outro, não só no que diz respeito à instituição, mas
também ao universo recluso? Ou seria que – para colocar muito esquematicamente a
questão – as tendências e os elementos centrais que agora podia discernir se
encontravam já presentes aquando da investigação anterior, não me tendo eu
apercebido deles? Por outras palavras, ter-se-ia dado o caso de me escaparem em razão
das escolhas metodológicas e das lentes teóricas de que ia munida – que podem orientar
o olhar numa direcção mas afastá-lo de outra? É indubitável que uma etnografia é
conduzida não apenas num momento específico do ciclo de vida do investigador, mas
igualmente numa etapa da sua maturação intelectual e do seu percurso teórico.
63 Tive porém a surpresa de constatar afinal numa franja minoritária de reclusas a
reiteração, no presente, dos mesmos discursos, representações, práticas e formas de
sociabilidade que há dez anos eram salientes na maioria da população prisional, uma
surpresa que não deixa de ser tranquilizadora mesmo para quem aprendera a aceitar o
carácter contingente dos resultados de um empreendimento etnográfico. Este actual
grupo reduzido de reclusas, que veio substituir as do passado, correspondia de muito
perto às descrições e análises que eu construíra para o quadro pretérito, e desta forma
quase que as cristalizava. O regresso ao terreno produziu assim um imprevisto efeito de
controlo retrospectivo da investigação passada, mas que se repercute também na
actual. Brevemente, se grosso modo vejo através das mesmas lentes, mas o que observo é
muito diferente, terão sido então principalmente transformações exteriores ao meu
próprio percurso pessoal que conduziram a conclusões divergentes. Assim, neste caso
concreto o retorno ao mesmo contexto acabou por funcionar como uma espécie de
triangulação no tempo, de algum modo validando para trás e para a frente parte dos
alicerces de uma etnografia segmentada em dois momentos.
NOTAS
1. Pela dificuldade de representação gráfica da diversidade de situações jurídicas que desde 1954
e até 1987 conduziam reclusas a Tires e se reflectiam no cômputo das penas e medidas de
segurança (muitas destas indeterminadas), não havia elaborado em Cunha (1994), para 1987 como
para os anos anteriores, um quadro que representasse de outra forma os valores que então me
limitei a referir no texto. Por esse motivo, hoje o quadro referente às penas atém-se ao ano de
1997.
2. Todos os números que aqui refiro para 1987 foram objecto de uma conversão relativamente
aos publicados em Cunha (1994). Por razões que se prendiam com a harmonização de
procedimentos necessária para o tratamento dos dados da evolução da população reclusa desde
1954, as proporções foram então achadas face ao total deste universo. Pelas mesmas razões, para
poder compará-las com as actuais, calculo-as agora tendo por referência o total de dados
conhecidos para cada variável.
59
3. A classificação aqui usada (ver figura 2) sintetiza crimes previstos em legislação penal avulsa e
no Código Penal. Por outro lado é o resultado de um compromisso entre as classificações oficiais e
a inevitável agregação de algumas das suas múltiplas categorias, imposta pelos constrangimentos
da figuração dos dados. Por conseguinte, «burla», por exemplo, integra a “simples” e a
“agravada”; «homicídio» o “simples”, o “qualificado” e o “privilegiado”; «tráfico» inclui o de
“menor gravidade” e a situação de “tráfico-consumo”; etc.
4. No comum emprego do termo «toxicodependência» confunde-se não raro o registo do uso, do
abuso, e da dependência. Não é por isso que ele deixará, todavia, de figurar neste trabalho já que
toxicodependente, bem como consumidor/a, são também categorias emic, usadas indiferentemente
pelas reclusas e à revelia de definições clínicas.
5. A «construção social» da criminalidade é uma questão clássica da sociologia do crime. Além de
este ser em si mesmo uma categoria sócio-jurídica – serão crimes os actos que num dado contexto
histórico e cultural são classificados como tais –, as taxas da criminalidade não reproduzem
necessariamente a delinquência real. Poderão reflectir, por exemplo, a eficácia policial na sua
detecção, razão pela qual se procura contornar o problema das «cifras negras» recorrendo a
inquéritos de vitimação ou de delinquência auto-revelada. No contexto português, a propósito da
distância entre a criminalidade real e a conhecida, ver, entre outros, Lourenço e Lisboa (2000), e
entre a real e a processada pelo campo judicial, Sousa Santos et al (1996: 295-296; 384-385).
6. Para a análise dos dois anos em causa orientei-me pela Classificação Nacional das Profissões
(nas versões de 1980 e de 1994). Utilizei apenas algumas das suas categorias, uma vez que a
esmagadora maioria da população reclusa em Tires se concentra monotonamente na zona dos
trabalhadores não qualificados e em poucos sectores de actividade. Acrescentei à classificação
profissional a condição perante o trabalho para poder abarcar a situação da população prisional
«não activa».
7. Não constam aqui os dados de 1987. Nessa altura não eram contempladas nos registos locais as
situações de coabitação marital, sendo estas remetidas para a rubrica «solteiras» – o que torna
essa informação pouco útil para lá de uma perspectiva estritamente legalista do estado civil.
8. Este número é provavelmente bastante superior. De facto, sucede não serem mencionados nas
fichas os filhos adultos, já que são os menores que potencialmente mobilizarão um ou outro tipo
de intervenção por parte do pessoal do estabelecimento.
9. O contingente de críticos desta tese é muito vasto, pelo que enumero apenas alguns: Loïc
Wacquant (1996), que além disso escalpeliza a própria noção de «underclass», Joan Brown (1990),
que aponta os erros metodológicos de Charles Murray e, tal como Lydia Morris (1994), examina as
mediações estruturais escondidas em correlações deste tipo; Jock Young (1999: 148-158), que, de
resto, não prescinde da ironia da comparação com as famílias da «Mafia»:
Here we have it all: the dedicated father, the traditional mother, the extended family, the
children entering the family business, the close sense of community. [I]n the case of organized
crime, the strong family is almost a sine qua non of success (ibidem: 155).
10. 11 e 5 pontos percentuais, respectivamente: cálculos efectuados a partir dos dados constantes
nos Sumários de Informação Estatística do GPCCD (1997: 31).
11. Esta é uma outra extensa controvérsia da criminologia, desta feita justamente em torno do
perene diferencial entre os índices prisionais masculinos e femininos. Eficientes recensões desta
literatura encontram-se em Stenffensmeier et al (1993) e Heidensohn (1997).
12. Os Estabelecimentos Prisionais Regionais femininos de Felgueiras e de Odemira e os
Estabelecimentos Prisionais Centrais de Castelo Branco e de Custóias, que, além de outros,
também prevêem uma lotação para mulheres.
13. Refiro alguns dos mais salientes:
Para a área de Lisboa: Galinheiras, Curraleira, Cheias, Casal Ventoso, Musgueira (norte e sul),
Laranjeira, Bairro da Liberdade, Quinta do Monte Coxo (Olaias), Bairro Nascente do Cabo
(Vialonga), Bairro da Cruz Vermelha (Alcoitão), Bairro das Marianas (Carcavelos), Bairro do Fim
60
do Mundo (S. João do Estoril), Pedreira dos Húngaros (Algés), Alto da Cova da Moura (Buraca),
Bairro das Fontainhas (Damaia), Quinta do Mocho (Loures), Bairro Estrela de África, Azinhaga dos
Besouros (Amadora), Bairro da Bela Vista (Setúbal), entre outros.
Para a área do Porto: Bairro do Lagarteiro, Bairro de S. João de Deus, Bairro de Aldoar, Bairro do
Cerco, Bairro de Ramalde, Bairro do Aleixo, Bairro da Sé, entre outros.
14. Nos registos locais este tipo de dados são anotados irregularmente, como pude depois
constatar quando contactei directamente as reclusas. É possível que tal se prenda com a
legislação em vigor (Decreto-Lei n.º 28/94) que impede a recolha de dados que se reportem, entre
outras identificações, à origem étnica.
15. Apesar de tudo, o qualificativo «confessional» aplicável a estas etnografias é amplo e de
ordem metafórica. Já com ele descreveria mais literalmente outras de onde parece emanar uma
redenção paroxística e quase religiosa na confissão pública de certos pecados – que nem por isso
abdicam de uma aparente aura de glória. Veja-se, a título de exemplo, esse verdadeiro
confessionário sociológico e criminológico que é Ethnography at the Edge, editado por Ferrell e
Hamm (1998):
This chapter is my confessional of participating in illegalities, intentionally taking sides,
withholding information, deceiving, and lying to authorities, all while engaged in qualitative
research into the decision making of property offenders and in a lengthy case study of a specific
violent crime (Tunnell, 1998: 207).
16. Talvez porque tudo seja resumido a questões de representação textual, e não só de
representação tout court, Tyler suprime a diferença entre estes dois tempos:
[Etnography] is not a record of experience at all; it is the means of experience. That experience
became experience only in the writing of the ethnography. Before that it was only a disconnected
array of chance happenings. No experience preceded the ethnography. The experience was the
ethnography (1986: 138).
Também daqui se pode depreender que a monitorização auto-reflexiva do investigador é
inteiramente diferida para o momento da escrita, e não é exercível nem coeva ao momento do
trabalho de campo.
17. A expressão «populismo metodológico» é de C. Bromberger (1997: 303), que a utiliza para
descrever a simetria dos saberes (do autor e do «outro») que pareceria pressuposta na negação de
qualquer autoridade etnográfica.
18. Só em parte tal é verdade, na medida em que me limitei a estabelecer os contactos
necessários e a desencadear o processo aquando do primeiro trabalho de campo (ver Cunha,
1991).
19. Não só as reclusas tocavam nestas questões sem grande rebuço, como o faziam muitas vezes
por sua iniciativa (ver Cunha, 1994: 150).
20. Cito a este propósito o caso recente da experiência involuntária de uma reclusa antropóloga.
Tentando reflexivamente, e mau grado a própria, aproveitar o primeiro estatuto em prol do
segundo, não só notoriamente a crítica distância mínima entre ambos deixou de ser possível,
como confessadamente verificou que eram mais as portas que se fechavam do que aquelas que se
abriam (ver Spedding, 1999).
21. Meses depois de eu ter iniciado o trabalho de campo, duas estudantes optaram por instalar-se
num compartimento de um dos pavilhões e submeter-se às rotinas carcerárias (revistas, visitas,
refeições) para realizar um trabalho sociológico sobre a prisão. Devo dizer que o que receara para
mim, e me conduziu a renunciar a esta modalidade de inserção na cadeia, só em parte se
confirmou para elas. Na realidade, se várias reclusas se mostravam perplexas e chocadas com o
facto por razões próximas das que apontei, outras, mais jovens, não só o encaravam com relativa
naturalidade, como se mostravam até admirativas do que lhes parecia ser um acto de bravura
louvável. Porém, não estavam arredados os equívocos, embora desconheça se a leitura que dele
faziam as detidas era consentânea com os objectivos do trabalho em causa. De facto, esta
61
estratégia metodológica surgia-lhes como um meio eficaz para «descobrir os podres da cadeia»,
assimilando assim inteiramente a figura do investigador à do inspector, ou colando-lhe de igual
modo a ideia de espionagem – mas com um alvo invertido.
22. A noção weberiana encontra-se em itálico no original.
23. Para dar um exemplo relativamente anódino do que poderia ser, literalmente, um
conhecimento incorporado, foi na prisão que pela primeira vez os meus precoces cabelos brancos
me causaram desconforto e alguma inadequação. Estes sentimentos foram-se instalando à
medida que ia plasmando nalguns esquemas de percepção localmente importantes. Por dicas
indirectas ou sugestões directas – em todo o caso bem mais insistentes que as da minha
cabeleireira – várias reclusas e algumas guardas aplicaram-se a significar-me que esses cabelos
brancos seriam indignos de mim, porque traduziriam um desmazelo que neste contexto é agora
frequentemente interpretado à luz dos avatares da toxicodependência. «Andar arranjada», «não
se desmazelar», é, inversamente, um signo da regeneração física e moral das reclusas
toxicodependentes. Assim, aquilo que até aí era para mim uma questão basicamente estética, ou
de negociação do envelhecimento, passara a ter um alcance moral.
24. On ne prête qu’aux riches, uma expressão usada a este propósito por C. Bromberger
(comunicação oral).
62
nem falava do filho. Dissesse a verdade. E eu também dizia que é verdade, que não
era sabedora...
9 Vemos aqui que a própria Zulmira não se acha certa do verdadeiro responsável pela
posse do produto, entregando-se a uma série de conjecturas que a levam a pender –
como, aparentemente, o juiz – para o marido. Ora, vários membros do pessoal
penitenciário comunicaram-me ser sua convicção de que há procedimentos e prisões
duvidosos/as. Esta percepção de que haveria uma grande dose de roleta judicial e de
arbitrário no percurso que conduziu muitas reclusas e seus familiares à prisão, uma
percepção recorrente que outrora apenas se havia manifestado a propósito de um caso,
é tanto mais significativa quanto se trata de profissionais naturalmente rodados e
calejados perante reivindicações de inocência por parte da sua clientela. Além disso,
esta convicção radica nalgumas equações interpretativas muito comuns. Por exemplo,
alegam que há reclusas tão frustes que seria muito pouco provável inventarem histórias
tão pormenorizadas e complexas; ou que essas mesmas e outras detidas lhes confiaram,
sem cuidarem de se proteger, factos que as comprometeriam tanto ou mais do que
aqueles pelos quais foram condenadas ou presas preventivamente.
10 Mas, por outro lado, estes mesmos membros do staff reconhecem a dificuldade (com
que a própria Zulmira se debateu em particular) em estabelecer penalmente a real
cumplicidade ou encobrimento de quem se encontrava nas cercanias do local onde foi
encontrada droga (uma casa, um carro, um pátio), tanto mais que se trata de família,
amigos ou vizinhos:
Vêm presas preventivamente porque é difícil saber quem era cúmplice ou não, de
quem era a droga, quem traficava. Muitas vezes a ligação é pouca ou nenhuma. E vai
toda a gente da casa. Estas mulheres têm problemas e dão problemas, não
compreendem porque estão aqui, porque é que apanham penas tão pesadas.
11 Contudo, por vezes não é só por serem «da casa» que alguns parentes rumam a Tires,
embora a circunstância de se terem visto alguma vez envolvidos num destes processos
colectivos possa pesar numa decisão posterior de prisão efectiva, quando antes haviam
sido libertados. É o caso da filha da Zulmira, cujas conexões sociais a levaram a outra
zona «quente» e compactaram assim o risco de ter no seu agregado familiares
traficantes e consumidores. Na verdade, todas estas circunstâncias esclarecem talvez
um dos sentidos possíveis da expressão, abundante nos meios policiais e nos processos
judiciais, de «conotado/a com o tráfico». As declarações da mãe, que iliba uma filha já
condenada, são especialmente credíveis já que a Zulmira identificou-me sem rebuço
filhos traficantes que se encontram em liberdade.
A minha Rosa não vendia, nem tinha nada com ela, só foi a um barraco do [Bairro]
do Cerco, ela e o meu filho, que vinha de trabalhar e namora para uma mocinha do
Cerco. Ele também é daqui do Lagarteiro. Foram ao barraco da Quinhas por causa de
um passeio. Mas a minha filha andava nos carimbos 2 do tempo em que foi presa
comigo e o meu marido. Quando os agentes que fizeram a casa a essa tal Quinhas
viram lá os meus filhos a falar, meteram-nos no carro da polícia e levaram-nos para
Custóias. Sem droga nenhuma. Os agentes até diziam que não os conheciam de
vender droga. Defenderam os meus filhos, foram umas jóias, não posso estar contra
eles. O Ministério Público é que é um bocadinho torrão. Deram 30 anos para 7
pessoas. A Zira que tinha a droga apanhou 5 anos, a outra que era muito batida a
vender droga que era a Linda [também se encontra em Tires], que tem cá uma filha
chamada Cláudia, apanhou 5 – e a droga era da Zira e da Cláudia, não era da minha
filha – um ressacado, coitadinho, 4, outra desgraçada ressacada que está ali no outro
pavilhão apanhou 4 anos. Não tem pés nem cabeça, o Ministério Público não deve
estar bom para dar assim uma condenação.
66
Para a Rosa já meti os papéis para ir para [o estabelecimento prisional de] Castelo
Branco3. A filha dela, a minha neta, está com outra minha filha de 18 anos, que anda
de bebé e já tem dois filhos. Mas o marido dessa é um vagabundo, que anda a vender
droga na casa da mãe dele, que é do bloco [x] do Bairro Novo, e não dá o sustento à
minha filha. Por isso estou a ver que a minha neta tem que vir para aqui. Ela está
bem estimadinha, mas é uma grande canseira para a rapariga que anda de bebé.
12 Assinalo nesta narrativa a menção a três bairros, o que nos permite alargar o âmbito
das redes de interconhecimento possíveis em Tires, que assim não se limitam ao estrito
círculo de parentes e vizinhos. De facto, reecontram-se aqui muitas reclusas que,
residindo em bairros distintos, já então entreteciam relações em registos não limitados
à instrumentalidade das ligações da economia ilegal. É o caso das portuenses Aurora, do
Bairro do Cerco, e Ermelinda, do Bairro da Sé, ambas na mesma cela e de resto já
inseridas em fragmentos das respectivas redes de vizinhas que convergiram para a
cadeia. A primeira tem a sogra, um filho, um cunhado e um sobrinho presos; a segunda,
a mãe, a irmã, uma cunhada e três irmãos. É certo que a Ermelinda era fornecedora do
marido da Aurora, toxicodependente. Mas o circuito da droga não era responsável pela
proximidade entre a sua mãe e a sogra da Aurora, que há vários anos se davam muito
uma com a outra. Ambas estão também em Tires. Por fim, e para apenas referir reclusas
aqui mencionadas, do leque de conhecimentos prévios da Aurora constavam ainda a
Zulmira e a Eulália, do Bairro do Lagarteiro, e a Tina, de que falarei adiante, do Bairro
do Cerco. Aliás, a mãe da Tina, já falecida, andou durante muitos anos na venda de salsa
e morangos com a Zulmira. Criou-se por isso entre as duas reclusas uma estreita relação
de entreajuda na prisão:
A Tina é boa moça, boa mãe, gosto muito dela. Coitada, não teve sorte com o homem
dela, é como o meu. As de Lisboa dão-me muita coisa, queijo, bolo, fruta... Mas como
ela não tem nada, reparto com ela. Ainda hoje me deram um bocadinho de peru, eu
levei à cela dela. Ela está sozinha [quer dizer, não tem família em Tires], não tem
nada nem tem visitas. As de Lisboa são muito minhas amigas, dão-me roupa e tudo,
e eu dou-lhe também. Ela não tem chinelos e eu vou ver se peço a uma de Lisboa –
também deram à minha filha. Vou dizer que é para mim.
13 Esta trança de relações que articulava já geografias mais ou menos distantes é
especialmente notória entre as reclusas ciganas, cujas parentes e afins que se
reencontram neste estabelecimento prisional se distribuíam por várias vilas e cidades,
principalmente do Norte e Centro do país.
14 Mas o relato da condenação à reclusão da filha da Zulmira mostra também que nem
sempre os familiares desembocam em simultâneo na prisão, podendo em vez disso
entrar por via de processos consecutivos e independentes entre si; e, por outro lado,
que um mesmo processo judicial pode abranger muitas outras pessoas não aparentadas.
Na verdade, pode abranger pessoas sem conexão alguma. Veja-se em suplemento, a este
propósito, a Tina, que se iniciara quinze dias antes no tráfico, em regime free-lance,
quando foi detida:
Apareceu uma rusga e havia muita gente que costumava vender à minha porta. E eu
vim também, mas não estava a vender, estava em casa. Perguntaram-me se eu os
conhecia e eu disse que não-menti. A juíza do TIC [Tribunal de Instrução Criminal]
disse-me: “Então a senhora entrava e saía, via-os ali à porta e não os conhecia?”.
Pois eu assim conhecer, conhecia, são lá do bairro, mas não tinha nada a ver com
eles. Na altura da rusga eu não tinha nada em casa, nunca guardava droga em casa.
Só havia os plásticos para embalar. Eles cá fora apanharam doze sacos e disseram
que foi lá em casa. Mas eu só tinha plásticos. Não sei como é que eles se enganaram,
não sei como é que fizeram aquilo... Somos treze no mesmo processo. Arranjaram-
67
me um advogado oficioso, mas eu disse que não queria aquele. Era o mesmo dos
outros todos e eu não queria, porque queria contar o meu caso. Mas depois aqui vim
a saber que afinal era o mesmo.4
15 Esta conexão poderá, por outro lado, revelar-se parcial e definir apenas pequenos
núcleos, no sentido em que A era cúmplice de B num evento 1, e B, por sua vez, de C e
de D num evento 2. Mas embora A não tivesse participado no evento 2 e porventura
nem conhecesse C e D – e reciprocamente – todos acabarão incluídos num mesmo
processo por intermédio do comum personagem B. Foi assim que a Zara, que era paga
para transportar «encomendas» entre dois indivíduos (um deles indetectado pela
justiça), se viu num julgamento com cinco outros, cuja existência desconhecia.
16 Ora, esta colectivização processual que tipifica muitas das fornadas de reclusas
chegadas a Tires rasura a individualidade reivindicada pela Zara e especialmente pela
Tina, que tentou em vão resistir à sua diluição como sujeito do seu próprio crime. De
resto, o seu caso não é único, já que uma das expressões frequentemente ouvidas entre
as presas preventivas resume a mesma batalha: tirar do processo, ou separar do processo.
Individualizá-lo, porém, é um empreendimento menos acessível às que dispõem de
advogados oficiosos do que àquelas que se puderam prover de advogados próprios.
Deparamo-nos assim com um outro efeito de homogeneização, produzido no interior do
campo judicial e desta feita apagando o sujeito.
17 Tais trâmites assemelham-se de algum modo aos procedimentos descritos por D.
Kaminski (1990), embora estes caracterizassem sobretudo a gestão penal da
toxicomania – uma gestão que, aliás, não teria paralelo com outras formas habituais de
processamento da criminalidade. Segundo o autor, o investimento repressivo atulhou
os tribunais em processos relativos a questões de drogas. O inevitável entupimento da
máquina judiciária que se lhe seguiu foi temporariamente reduzido pelos reenvios
colectivos aos tribunais, através de um esquema análogo de junção de processos.
Porém,
[L]es voies de constitution des “groupes” de toxicomanes sont purement
institutionnelles, l’existence de ces groupes étant confinée à la phase du jugement;
ils n’ont en effet aucune consistance sociologique antérieure et la peine prononcée
au terme du procès fait l’objet d’une exécution individuelle. [...] Les dossiers sont
joints selon des liens de connexité dont le seul signifiant «toxicomanie» assure la
légitimité (ibidem: 188).
18 Ora, ainda de acordo com este autor, sucede que são muitas vezes fluidas as condições
que permitem criar estas conexões entre os factos, sendo assim os processos
coordenados e retrabalhados na base de elos relativamente ténues (ibidem: 188-189).
Por outro lado, e em acréscimo ao que vimos desenhar-se, mutatis mutandis, no plano do
tráfico, a determinação jurídica dos próprios factos pode caracterizar-se pela mesma
fluidez. Referindo-se à jurisprudência relativa aos casos de tráfico, Maia Costa sustenta
serem recebidos
[...] como “factos” descrições tão indeterminadas e abstractas que não têm
realmente qualquer suporte fáctico, referido ao espaço, tempo, e outras
circunstâncias que individualizam os factos [...]. Na verdade, é muito frequente,
para não dizer normal nos crimes de tráfico, atribuir-se ao acusado a venda de
estupefacientes por período não determinado a indivíduos desconhecidos , em
quantidades indeterminadas e por preços também não determinados (1998: 113) 5.
19 Regressando à recorrente colectivização processual por via da qual uma pluralidade de
arguidas foram reunidas, numa ou noutra fase do percurso judiciário, num processo
conjunto, ela pode vir a consubstanciar-se numa acusação de associação criminosa (cuja
68
uma razão que outras detidas, numa situação idêntica, me apontaram. Os motivos da
Salomé eram outros:
Preferia a minha cela. Havia mais segurança do que aqui. Aqui há uma que passa
droga. Tenho muito medo que se houver uma rusga e essa tiver droga desconfiem e
castiguem toda a gente. Eu sinto-me menos protegida, há menos segurança. Isto
assim torna-se muito mais pesado.
22 A expressão apanhar por tabela, que numa outra ocasião a Salomé empregaria a este
mesmo propósito, ingressou aliás igualmente no léxico do pessoal penitenciário e
condensa para este, como se verá mais tarde, um corpo de representações que é
construído na cadeia mas cujas implicações se situam sobretudo na sua vida exterior e
extra-profissional. Ou seja, no trânsito intra-extra muros essas representações
percorrerão o mesmo caminho, mas em sentido inverso ao das reclusas.
passando a probabilidade de os negros se verem detidos a ser cinco vezes superior à dos
brancos, quando anteriormente se mantinha estável no dobro. Porém, acrescentam,
It is highly unlikely that these race differences represent general substance abuse
patterns since drug arrests grew at a time when national self-report data showed
that drug use was declining among both blacks and whites. Rather, these
differences reflect the governments targeting and enforcement of specific types of
drug use and trafficking (ibidem: 327).
26 Julian Roberts e Anthony Doob (1997) fazem para o caso do Canadá uma observação
convergente. O momento onde os mecanismos discriminatórios se revelavam
genericamente mais salientes era o encontro com agentes policiais. Porém, na etapa
seguinte, quando os suspeitos compareciam perante um juiz, desapareciam as
diferenças já que os índices de libertação de brancos e negros se equilibravam. Mas
também aqui se registava uma excepção notória, respeitante aos acusados de crimes de
droga, onde o enviesamento persistia. Aliás, depois de relevar este mesmo
enviesamento ligado a esta categoria de crimes, Norval Morris dirá que se a população
dos EUA é etnicamente tão desequilibrada, tal dever-se-ia ainda ao facto de as minorias
serem sobretudo visadas pelos crimes que mais inflamam a opinião pública e que mais
atraem a prisão (entre eles os de droga):
Another possible cause of this racial skewing is that whereas blacks and Hispanics
disproportionately commit what might be called “imprisonable” crimes, white
offenders express their criminality, disproportionately higher than do blacks and
Hispanics, in frauds, embezzlements, and white-collar offenses, which do not so
inflame public opinion and do not so readily attract imprisonment as a punishment
(1995: 241).
27 Para chegar à questão dos bairros como alvo colectivo de controlo, importa primeiro
proceder a um relativo desvio que recenseie estas relações entre etnicidade e o
processamento repressivo da criminalidade. Na vasta bibliografia que as examina,
especialmente sob o ângulo dos eventuais mecanismos discriminatórios que
produziriam o encarceramento desproporcionado de minorias, parecem hoje desenhar-
se algumas linhas de consenso. Na verdade, quer se reportem aos EUA, quer a diversos
países europeus, vários autores convergem na conclusão de que não se verificaria no
saldo deste processamento criminal um enviesamento étnico-«racial» sistemático,
directo e generalizado que permitisse dar inteiramente conta das discrepâncias
proporcionais minorias-maioria constatadas em fim de linha (Tonry 1997a; Tonry et al,
1997b; Smith, 1997; Sampson e Lauritsen, 1997). Discernir-se-ia sim, por um lado,
alguma discriminação, em algumas etapas do processo; e, por outro, a aplicação
universalística e imparcial de certos critérios legais aparentemente neutros, mas que
acabam por resultar de facto, e indirectamente, em detrimento dessas minorias. A
título de exemplo, os tribunais optariam mais facilmente pela prisão preventiva
daqueles com vidas menos estáveis (em termos de residência, trabalho e família),
situação em que incorreriam, via uma precaridade genérica, muitos membros de
minorias; e, nos sistemas em que a declaração de culpa por parte do arguido lhe é
favorável, esses mesmos tribunais decidiriam por penas mais longas quando a culpa é
negada – o que tenderia a suceder no seio daqueles grupos dada a desconfiança em
relação ao sistema legal e as suspeitas de parcialidade que lhe votam.
28 Em todo o caso, onde esse enviesamento se parece insinuar com alguma nitidez é nos
momentos iniciais do percurso, ou seja, nos encontros com a polícia e nas interpelações
a que procede no exercício dos seus poderes discricionários. Elas traduzem-se, por
exemplo, em operações stop (acompanhadas ou não de revistas a viaturas e pessoas)
71
levadas a cabo quer no quadro rodoviário quer pedonal. Este policiamento pode visar
desde delitos de trânsito até furto e crimes de droga. É neste tipo de encontros que
certas minorias se encontram, em vários contextos, sobre-representadas. Para além
disso, Norris et al (1992), por exemplo, mostraram que os negros britânicos são mais
susceptíveis de se verem interpelados com base em suspeitas genéricas do que em
indícios específicos, enquanto as abordagens de brancos se fundamentam em razões
menos especulativas. E Wesley Skogan (cit. por David Smith, 1997) referiu que, uma vez
abordadas, essas mesmas pessoas incorrem num risco muito superior de serem
revistadas.
29 No entanto, investigações de outros autores inflectiram um pouco o sentido destas
conclusões, conduzindo à hipótese de que talvez a «raça» e a etnicidade não
constituíssem per se uma influência decisiva na selecção dos alvos das práticas policiais.
Assim, Tony Jefferson (1993) verificou na Grã-Bretanha que os estilos de policiamento
variavam consoante as áreas onde as incursões eram levadas a cabo. Com efeito, a
frequência das interpelações era muito superior em zonas urbanas desqualificadas,
quaisquer que fossem. Mas era nestas zonas que tendia a ser maior a concentração de
britânicos de origem afrocaribenha. Deste modo, a acção policial atingia mais esta
minoria via esse catalizador que era a composição sócio-residencial de uma
determinada área. Na mesma linha Douglas Smith (1986), por seu turno, mostrou para
os EUA que o que pesava nas decisões policiais de detenção era sobretudo o contexto
residencial dos possíveis suspeitos. É certo que a probabilidade do uso das várias
modalidades da autoridade coerciva era maior em bairros de minorias ou etnicamente
mais mistos. Porém, dentro destas zonas os referentes étnico-«raciais» deixavam de
constituir um indicador possível do comportamento policial. Em acréscimo, os
suspeitos negros eram alvo de menor severidade residindo em bairros «brancos» do
que em bairros de minorias. Depreende-se, por conseguinte, que esta actuação tenha
sido menos influenciada pelas características individuais dos visados do que pelo
estatuto étnico e sócio-económico do bairro de residência considerado como um todo.
Este mesmo padrão foi também observado por outros autores a propósito de
intervenções ou crimes específicos: por exemplo, Ronald Flowers (1988) refere que em
casos de incidentes relacionados com disputas inter-individuais a decisão policial de
nelas intervir e as modalidades de intervenção adoptadas variavam com a posição
sócio-económica do bairro onde ocorriam; e Richard Hollinger (1984) notou a mesma
parcialidade a propósito da condução alcoolizada, sendo os signos de classe mais
cruciais do que os «raciais»/étnicos.
30 Assim, neste como noutros patamares do processamento da criminalidade, a «raça»/
etnicidade poderá operar indirectamente através de outros factores ou em interacção
com eles. Em parte por isto se assiste cada vez mais a uma opção por análises mais
contextuais, que convocam questões relativas ao espaço recuperando e desenvolvendo
noutros moldes algumas das possibilidades teóricas já equacionadas por Clifford Shaw e
Henry McKay, em 1942, cuja focagem incidia na comunidade e nas condições sócio-
ecológicas que podem mediar a relação etnicidade-crime (cf., entre outros, Peebles e
Loeber, 1994) ou etnicidade-criminalização (Chiricos e Crawford, 1995). São análises
incidindo nos processos que a nível local modulam factores globais de ordem histórica,
social e política, e que nesse sentido aliam de certo modo as perspectivas clássicas da
Escola de Chicago, centradas na «comunidade», a perspectivas relevando, por exemplo,
da economia política. É o caso igualmente dos «neo-chicagoanos» William Julius Wilson
(1987) e Robert Bursik e Harold Crasmick (1993), para referir os mais destacados. Não se
72
trata, pois, de apenas acoplar a «classe» à «raça», dado que a uma mesma posição
estrutural no espaço das classes podem corresponder inserções contextuais em meios
diversos, cada um declinando uma conjunção particular de várias características (entre
as quais se podem contar a concentração da pobreza, o desemprego, a segregação racial,
etc.). Como sustentam Sampson e Lauritsen,
[The] differential ecological distributions by race lead to the systematic
confounding of correlations between community contexts and crime with
correlations between race and crime. Analogous to research on urban poverty,
simple comparisons between poor whites and poor blacks are confounded with the
finding that poor whites reside in areas which are ecologically and economically
very different from those of poor blacks. [...] Hence, observed relations between
race and crime are likely to reflect unmeasured advantages in the ecological niches
that poor whites occupy (1997: 338).
31 Porém, se esta observação é justa, ela é-o sobretudo para contextos norte-americanos,
onde estes complexos topográficos se encontram mais nitidamente delimitados
segundo linhas étnico-«raciais». Aí esta segregação urbana de minorias
subproletarizadas parece revelar-se internamente mais homogénea do que em
coordenadas europeias, onde a penúria tende, ao invés, a congregar residencialmente –
e não a separar – populações etnicamente mais diversificadas (cf. Wacquant 1993; 1995).
Este ponto será especialmente relevante quando entrevirmos alguns bairros
portugueses a partir da prisão, bairros esses que em acréscimo parecem apresentar
algumas propriedades específicas em relação a outros contextos europeus similares na
sua inserção estrutural global, a examinar adiante.
32 Ora, sucede ainda que no caso dos EUA a real espacialização étnica da pobreza veio a ser
compactada pela «racialização» de certas drogas, como o crack , que passou a ser
associado nas representações dominantes à população negra de baixos estratos sociais.
E recordo que foi justamente no quadro dos crimes de droga que mais emergiram nas
práticas policiais e judiciais tendências discriminatórias de acordo com o alinhamento
racial dos suspeitos, crimes estes que hoje se encontram na base da desproporção
crescente entre as taxas de encarceramento de brancos e negros americanos. Assim,
como referem para este contexto Sampson e Lauritsen,
By the 1990’s, race, class and drugs became intertwined; it is difficult if not
impossible to disentangle the various elements of the problem (1997: 400).
33 Como veremos, uma perspectiva comparativa permitirá relativizar esta asserção para
outras geografias. Mais uma vez, esta tripla sobreposição será aí menos conforme e
sistemática, desenhando-se antes cruzamentos parciais. No caso que me ocupa, estas
intersecções vão aliás coser-se ao nível do bairro, onde pessoas de diversas inserções
étnicas/«raciais» emparceiram, ao mesmo título, na participação na economia legal e
ilegal. Mesmo a minoria cigana tende a deixar de constituir uma excepção à medida que
se vai integrando em bairros de habitação social ou bairros de barracas já etnicamente
mistos, muito embora certos segmentos permaneçam residencialmente segregados, por
exemplo, em acampamentos na órbita de várias localidades.
34 Regressemos, pois, ao bairro, tendo em mente os factos em que desembocou o desvio
pelas questões da «raça» e etnicidade, designadamente o da selectividade na actuação
pro-activa das forças policiais se poder pautar afinal menos pelas marcas individuais
dos suspeitos (i. e. étnicas) do que pelo estatuto colectivo das zonas onde estes habitam
– ou transitam. Deste modo é, antes de mais, o bairro que será suspeito, tratando-se
assim de um alvo generalizado. Certos locais passariam a ser associados a crime e
73
droga, atraindo por isso uma atenção policial intensa. A intensificação da acção destas
forças pode de resto não se limitar estritamente a prevenir e a elucidar crimes
concretos, revestindo-se muitas vezes de um aspecto mais demonstrativo do poder
policial, que se destina sobretudo a transmitir para o exterior o sinal de que se controla
esses bairros. Em Portugal pode também tratar-se de responder às acusações que
intermitentemente surgem nos media na sequência de incidentes ocorridos, por
exemplo, em bairros de Lisboa e do Porto, segundo as quais a polícia já não conseguiria
aí entrar. Nesta linha, um comissário policial britânico citado por Nigel Dorn et al (1992:
103) referia-se a este tipo de locais tornados sinónimos de criminalidade como «symbolic
locations for policing», e um quadro superior da PSP dizia-me que em certos bairros do
Porto os agentes deste corpo aí se deslocam em pelotão, nunca vão sozinhos ou em par, vão
aí uns dez ou vinte para mostrar força, seja para restabelecer a ordem ou para simples
rondas. Por outro lado, as Brigadas Anti-Crime (BAC) da PSP que intervêm na apreensão
de drogas dispõem de coletes antibala com letras reflectorizantes, tendo sido
provavelmente estas forças que revistaram a casa da Alzira (supra: 101), uma vez que
esta as assimilou a bombeiros; mas poderia também ter-se defrontado com os piquetes
da 4.a divisão da PSP-Porto, frequentemente confundidos nos bairros sociais com o
Corpo de Intervenção, dado usarem, à sua semelhança, capacetes, viseiras e matracas.
Ambas as forças são aliás aí conhecidas pelo mesmo nome: Ninjas. Já em França o
uniforme das BAC, com competências idênticas às das suas homónimas em Portugal,
tornou-se similar ao da polícia de choque (e o mesmo equipamento vem referido
também em Dorn et al, 1992: 99 para uma rusga no contexto britânico). Nessa
indumentária investem regularmente as cités ou os bairros problemáticos, tal como as
suas congéneres portuguesas, o que provoca com frequência queixas dos seus
residentes quanto à ambiência «estado de sítio» e de intimidação que por si mesma cria,
quando não acicata reacções de confronto por parte das camadas juvenis. Em todo o
caso, o complexo-droga que em diversos contextos nacionais associa certas áreas às
substâncias ilegais veio propiciar a acentuação da componente demonstrativa das
incursões policiais, cuja afirmação de poder e autoridade pode ser lida como um dos
termos de uma confrontação simbólica.
35 Este aspecto expressivo torna-se particularmente indissociado da componente
investigativa nessa modalidade de acção policial que são as rusgas. Trata-se de
interpelações generalizadas acompanhadas frequentemente de revistas e detenções
para identificação e interrogação. Estas incursões tipo blitzkrieg , relativamente
rotineiras nos bairros conotados com o tráfico e consumo de narcóticos, podem com
efeito produzir um grande número de detenções (eventualmente seguidas de uma
acusação ou resultando em referências para uma futura vigilância), embora o número e
a ordem de grandeza das apreensões de substâncias proibidas ou de bens suspeitos de
provirem de ganhos ilícitos nem sempre corresponda à envergadura da operação.
Quanto aos últimos, para uma noção do tipo de bens confiscáveis aquando destas
buscas, menciono alguns dos que figuram na relação de apreensões constantes num
processo colectivo envolvendo várias reclusas de Tires. O processo abarcava vinte e um
arguidos e estas reclusas encontravam-se em prisão preventiva, vindo posteriormente a
ser absolvidas (em caso de condenação e de prova de que resultam de ganhos ilegais, os
bens revertem a favor do Estado). Entre outros artigos de maior ou menor valor
contam-se:
[...] 1 par de brincos de criança em ouro, no valor de 2000$00; 1 argola sem valor; 1
brinco com pedras de imitação sem valor; 1 botão de punho sem valor; 1 par de
74
brincos fantasia sem valor; uma caixa de lençóis brancos com bordado e uma caixa
de lençóis igualmente brancos; uma caixa de toalhas de banho de cor branca marca
[...] e uma caixa de toalhas de banho cor laranja marca [...]; uma fruteira em metal,
uma fruteira de barro castanho/cinza c/asa, uma saladeira com flores pintadas [e
outras, sendo o total valor pericial atribuído (VPA) 3000$00]; uma travessa com
frutos pintados, duas travessas em vidro rectangulares, duas travessas em vidro
redondas, uma terrina cerâmica com asas e sem tampa [VPA 2000$00]; uma tigela de
sobremesa, um recipiente para molho em cerâmica, duas taças para sobremesa, um
saleiro em vidro/cristal, um saleiro de plástico, dois baldes em vidro/cristal, para
gelo [VPA 3000$00]; seis bases/copos, em metal branco/prateados, uma base em
ferro amarelo para ovos cozidos, três cálices de vidro, uma jarra em vidro de cor
castanha, oito canecas de vários tamanhos/formato e cor [VPA 3000$00]; [...] três
canivetes de lâminas cada, possuindo dois saca-rolhas, com cerca de 6 cm de lâmina,
um porta-chaves com o emblema do F.C. do Porto, com seis chaves de veículo
automóvel, três isqueiros BIC, PROF e DENIN, um comando TV, um cinzeiro, uma
carteira de homem e uma carteira de senhora com alguns documentos pessoais
[VPA 2000$00); [...]; 10 moedas de 100$00 cada; [...]; uma balança de mão em metal/
ferro amarelo sem prato, um quadro de CRISTO [VPA 200S00]; um par de cabos de
bateria, dois caixilhos em barro para fotografias [VPA 1 500$00]; [...] oito garrafas de
vinho branco marca [...], duas garrafas de vinho do Porto, uma garrafa de vinho
tinto sem marca, uma garrafa de espumante [...]; seis escovas de dentes, quatro
pacotes de leite em pó, com os dizeres «venda proibida», um rolo em papel de prata,
aos quais não foi atribuído qualquer valor pericial [...].
36 E esta extensa e monótona listagem que aqui usei como documento etnográfico
prossegue ainda por várias páginas de igual minúcia, que decerto implicaram longas e
pacientes horas de redacção e de avaliação pericial.
37 Quanto às substâncias apreendidas, bastará uma atenção regular à imprensa escrita
para nos apercebermos de que o volume de narcóticos detectados nestas incursões é
geralmente de ordem irrisória, quando comparado com operações que envolvem uma
maior selectividade, vigilância e investigação prévia – porventura uma das razões pelas
quais nessa imprensa aqueles raids figuram normalmente nas rubricas de fait-divers. De
resto, alguns autores notaram também para outros contextos as quantidades limitadas
de estupefacientes que estas rusgas divisam. Por isso Dorn et al sustentam para o quadro
britânico que:
The main intention of such raids is to demonstrate police “control” of a problem
and an area. The type and amount of seizures are secondary criteria, although they
certainly have had the potential to embarrass the police (1992: 98).
38 ... embora por outro lado aleguem adiante que operações semelhantes são «[...] designed
to disrupt localised markets simply by increasing the difficulty for sellers and buyers to make the
deal» (ibidem: 100). Esta parece ser uma perspectiva igualmente endossada por forças
portuguesas quando um oficial superior da GNR declara, na sequência de uma rusga
levada a cabo em dois bairros de uma cidade nortenha no quadro do combate ao
tráfico/consumo (nesta acção foram no total apreendidas 66 doses individuais de
heroína e levantados 44 autos de contra-ordenação no âmbito do código da estrada):
É preciso transmitir confiança aos moradores honestos daqueles bairros e, além
disso, criar um clima de instabilidade no seio de traficantes e consumidores de
droga7.
39 Num outro contexto ainda, um comando policial americano citado por Mike Davies
corrobora por seu turno esta estratégia ao afirmar:
75
I think people believe that the only strategy we have is to put a lot of police officers
on the street and harass people and make arrests for inconsequential kinds of
things. Well, that’s part of the strategy, no doubt about it (1990: 284).
40 Aliás, o próprio autor descreve aí o processo da institucionalização das rusgas (sweeps)
como «[...] semi-permanent community occupations, “narcotic enforcement zones”, acting as
the urban equivalent of strategic hamlets» (ibidem: 277).
41 Ora, tal como os bens colhidos nas malhas destas buscas podem ser objecto de um
arresto relativamente indiscriminado – como o atesta, entre outras insólitas
minudências extraídas do rol atrás destacado, o pormenor das seis escovas de dentes –,
também as pessoas interpeladas nas rusgas parecem ser visadas de um modo pouco
selectivo. Como sugestivamente referem Dorn et al (1992: 100), subscrevendo o que
outros já haviam caricaturado, «everything that moves on two feet, and some on four, is
arrested». Já sabemos, porém, que é uma determinada área que é instituída como alvo
colectivo. Por outro lado, é também via a suspeição genérica impendendo sobre ela que
torna aí regulares outras modalidades de intervenção policial mais direccionadas para
indivíduos específicos, designadamente através da utilização de informadores e agentes
encobertos. Não é por isso surpreendente que as populações dessas áreas desenvolvam
o «imaginário persecutório» e evoluam na «atmosfera de tensão generalizada» de que
nos fala Chaves (2000: 234-236) a propósito do Casal Ventoso, e que a velha injunção não
chibar (não denunciar) tenha ganho, como veremos, novos contornos na cadeia.
42 Assim, quer se trate dessas investidas maciças que são as rusgas, quer de repetidas
intervenções mais individualizadas, ou de uma combinação de ambas como sucede com
algumas buscas, a acção policial intensa desenvolvida em certos segmentos sócio-
espaciais aumenta a probabilidade de detenção dos seus residentes e, por conseguinte,
constituirá um dos factores pelos quais se reencontram na prisão não só parentes, mas
vizinhos, amigos e conhecidos. É de resto o eixo criminal da droga (em torno do qual se
agregam crimes conexos como a receptação de artigos furtados) que, induzindo nas
agências policiais uma actuação de tipo pró-activo, desencadeia hoje um processo de
colectivização de certos bairros que atrás vimos compactar-se subsequentemente a
níveis mais finos por via de alguns mecanismos de processamento judicial. É este
processo da constituição «em rede» das fileiras de arguidos pelas lógicas dos campos da
lei e da ordem que Dominique Duprez e Michel Kokoreff constataram também em
França:
[D]ans bien d[es] jugements récents, c’est la simultanéité des arrestations policières
sur un secteur géographique qui permet de présenter une trentaine de prévenus au
tribunal. S’ils habitent et/ou commercent sur un même quartier, il s’agit de micro-
réseaux de quelques personnes qui travaillent chacune pour leur compte. Beaucoup
d’affaires jugées dans les [tribunaux] sont présentées comme de “grosses affaires”
et le démantèlement de “gros réseaux” alors que ce sont simplement les opérations
policières qui les constituent comme telles (2000: 234-235).
43 Mas as redes entrelaçando os parentes, vizinhos, amigos e conhecidos que convergem
para a prisão constituem-se também através de processos extrajudiciais/policiais,
processos esses que se prendem com o próprio funcionamento da economia da droga. É
deles que constará o próximo capítulo.
76
NOTAS
1. Para ter uma noção prévia do peso global dos familiares de reclusas no estabelecimento, uma
presença com que me confrontava sistematicamente, consultei as fichas das educadoras. Porém,
eram escassos os dados relativos às preventivas, mesmo os estritamente sociográficos, já que
tendo estas entrado mais recentemente no estabelecimento não houvera ainda tempo suficiente
da parte das técnicas para constituir o seu dossier, como é de regra. Contactando depois estas
detidas pude, todavia, constatar que o seu perfil sociológico em nada diferia do das condenadas,
inclusive na trama de relações parentais em que se encontram envolvidas.
2. Andar nos carimbos ou levar um x tempo de carimbos é a expressão com que as reclusas designam
quer o período de pena suspensa, quer o período de liberdade condicional.
3. Na altura o Tribunal de Execução de Penas da área desse estabelecimento era suposto ser mais
generoso na concessão de liberdades condicionais, pelo que muitas reclusas solicitavam para aí
transferência.
4. Numa ocasião diversa uma outra reclusa, bem inteirada dos meandros de alguns destes
circuitos, corroboraria a sua história:
Tenho muita pena da Tina, que é uma jóia de rapariga. O problema dela é que disse que vendeu droga, que
vendeu quinze dias. Se não até podia ter ido para a rua. Assim vai ser condenada, e com a malta que aí
está... É muita gente. Ela não tem nada a ver, porque a droga que foi apanhada foi atrás das janelas dela.
Olha ela disse logo que vendeu! Ela nunca havia de assumir, porque essa droga não era dela, era da
Almerinda, que é uma grande traficante – o irmão dela é outro grande. E vai a desgraçada apanhar uma
data de anos e os filhinhos num colégio, que precisam da mãe...
5. (Itálicos no original.)
6. Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 1994, in Decisões...; ênfase minha.
7. Citado no jornal Público, de 28 de Julho de 2001.
77
baixos patamares do tráfico não seria alheia ao desencanto resultante dos insucessos da
estratégia inversa: a detecção dos «grandes» traficantes, ou a supressão em cascata do
narcotráfico pelo desmantelamento das poucas «grandes» organizações que
supostamente o controlam, entendidas desta forma como entidades confinadas e
finitas. Esta estratégia ascendente corresponderia a uma visão deste mercado ilegal
como organizado e hierarquizado em grande escala – uma visão, se quisermos, em
organigrama – que de algum modo espelha a própria estruturação dos corpos policiais
ou legitima opções organizacionais centralizadoras:
Terms such as organised crime are significant not just as descriptions of criminality
but, rather more, as ways of legitimising particular aspects of law enforcement. If
crime is described as organised on a regional, national, or even international level,
then it seems to follow that enforcement agencies should be organised accordingly
(Dorn et al 1992: 203)1.
3 Contudo, e contrariamente a uma noção corrente segundo a qual o volume de droga
transaccionado/apreendido iria de par com a magnitude da organização envolvida (ou
seja, grandes quantidades pressuporiam grandes organizações), mesmo as operações de
tráfico aos níveis médio e alto deste mercado são antes empreendidas na sua maioria
por uma multiplicidade de indivíduos e pequenos grupos independentes entre si e
funcionando de maneira flexível. Aliás, como mostrou Patricia Adler (1993), a sua
posição nos patamares do mercado não é fixa, podendo cada um dos intervenientes,
segundo as circunstâncias, negociar ao nível dos quilos ou dos gramas, ou constituir-se
num momento como comprador e noutro como fornecedor. Na sua etnografia sobre os
– geralmente grossistas – traficantes californianos, Adler detalha assim os termos desta
inconsistência:
Drug entrepreneurs would rarely be consistent in the same quantity and divide that
amount into smaller segments to be sold in fixed units. Rather they wheeled and
dealed, as they flexibly varied quantity and style of operation depending on their
mood. They thus often handled different amounts from one deal to the next,
“stooping” on one deal and “reaching” on another, selling pounds one time, ounces
the next, and buying grams in a third. They also bought and sold back and forth
among dealers on their same level, acting as the supplier in one deal and the
customer in the next. Dealers, then, trafficked in circles of associates rather than in
fixed quantities, their drug world relationships having greater importance than any
customary level of operation» (1993: 62).
4 Duprez e Kokoreff fizeram uma constatação semelhante em mercados franceses:
Les trois niveaux généralement distingués (« grossistes », « détaillants »,
« consommateurs ») se retrouvent certes, ici, mais ces catégories se révèlent
relativement flottantes : au moins deux des trois « grossistes » revendent en gros et
en détail [et] les « détaillants » sont aussi pour d’autres des « semi-grossistes »
(2000: 241).
5 Ao encarar o processo de distribuição de drogas como alojado menos numa
«organização» do que em redes lassas e não necessariamente duradouras de relações de
patrocinato/clientelismo, também Joseph Albini (1992: 92-93) refere a constante
mutação das posições hierárquicas, podendo um «patrono» numa situação tornar-se
mais tarde num «cliente» do seu original subordinado.
6 Assim, ainda que uma determinada operação de tráfico possa decerto envolver um
quantitativo substancial de droga, quem nela participa nem sempre opera
invariavelmente à grande escala. A figura do «grande traficante» parece por isso bem
mais evanescente do que supõem as comuns elaborações discursivas que dele se fazem.
79
meses que ele anda a vender...» Não disse nada, cheguei a casa e disse assim: «Então
tu vês-me a pegar no bilhete para arranjar para vos dar de comer e tu andas-me a
vender droga? Pois tá descansado que eu vou denunciar-te à polícia». – «Ai o
Bentinho não tinha nada que lhe dizer, o Bentinho é um porco», diz ele. Eu dei-lhe
um estalo, ele saiu e eu sempre atrás dele. Isto foi uma coisa que eu nem sei... [...]
Isto do Bentinho passou-se. Uma vez vou atrás do meu filho e vejo ele ir pela rampa
de Azevedo para a casa de uma chamada Lidinha. Ele e o filho de uma Mena, que
mora lá no bairro. E o irmão do Bentinho também ia. E eu deixei-os entrar. O que é
que eles iam fazer? Iam fazer o consumo deles, da droga. Ó, eu insultei-os, dei
porrada no meu, foi o fim do mundo... Ele andava a consumir droga sem eu saber há
muito tempo...
17 Numa outra ocasião, quando a Zulmira me descrevia o seu próprio ingresso no tráfico,
acrescentava a este propósito:
Ai menina, aqueles dois ou três meses que eu vendi... Parece que ao mesmo tempo
tinha Deus: «Deixa-me isso, deixa-me essa porcaria...». Eu tocava no meu coração e
era o Diabo. E depois o meu filho era assim [de nariz no ar]: «O que é que tá aqui?
Ah, droguinha» E digo eu para mim: «Ai meu Deus, o meu filho anda a consumir e
eu a vender. Tem calma, eu vou parar». Aí fizeram o barraco a uma Idália e a uma
Carmelinda e eu parei imediatamente.
– E quando vendia o que é que o seu marido dizia?
Ele não sabia, mas depois via-me a comprar as coisas e começou a perceber. E ele
era assim: «Aqui há droga...» – «Há droga aonde?», dizia eu – que eu tenho muito
respeito aos meus filhos. Entrava-me por ali um deles, que eu tenho-lhe muito
respeito, e dizia-me: «Mãe, você veja o que anda aí a fazer, não mexa em nada». «Eu
não», dizia eu, só para me dar ao respeito, compreende? O meu marido deixou de
trabalhar, só gostava da pinga. E aí eu disse ao meu marido: «Ai é? Não te
aperguntas donde vêm as coisas, se vêm daqui, se dacolá, era a tua obrigação.
Aperguntavas: donde vem esta mesa? donde vem esta cadeira? Tu vês dois dos teus
filhos a trabalhar, que não dá para nada, nem água, nem luz [Um aparte para mim:
tive que ligar a água lá fora sem a Câmara saber. Assim que tive dinheiro paguei
logo a água e a luz, pus logo tudo direitinho, tudo legal]. E disse-lhe mais: Porque se
tu trabalhasses, se tu fosses um bom homem, eu nunca tinha mexido na droga». E
então eu comecei a mandar vir com ele, fiz vergonhas acabadas, tanto que ainda
hoje, vai fazer um ano que eu não recebia uma carta dele.
18 Relembre-se que quando a Zulmira foi presa pela detecção de estupefacientes na sua
casa (ainda que não fosse, nessa ocasião, responsável por eles e desconhecesse a sua
origem), ela chegou a cogitar na hipótese de o próprio marido ter realizado uma
incursão no tráfico. Mas se o inicial desconhecimento mútuo do envolvimento com
drogas por parte dos membros do agregado foi aqui generalizado, trata-se de um caso
que, embora não raro, não deixa de representar uma modalidade extrema. De resto, é
de supor que as acima narradas revelações do Bentinho se devessem mais a um deslize
do que a uma intenção de denúncia, deslize esse provocado pela sua surpresa perante a
ignorância da Zulmira acerca das actividades do filho. Tendo ainda em conta que esta
conversa decorreu na presença da própria mãe do Bentinho, essa surpresa poderá
indicar que para ele tal seria uma situação inusitada, ou porventura que a sua
experiência prévia lhe mostrara o contrário.
19 Mas que parentes ou membros de um agregado estejam ao corrente destas actividades
no seu círculo não significa, em primeiro lugar, que as levem a cabo conjuntamente,
como o atestam os numerosos casos de mulheres que se lançaram no tráfico em
circuitos paralelos e independentes daqueles em que se movem filhos ou maridos
toxicodependentes, umas e outros aí desembocando respectivamente por razões, por
vezes, bem diversas: os últimos para directamente financiarem o consumo, as
84
tentara adquirir (mas entretanto vê-se a braços com a oposição das autoridades
sanitárias a esta mudança); o dinheiro reservado para o pagamento do empréstimo foi
apreendido e a pensão holandesa de invalidez auferida pelo marido foi suspensa: uma
vez preso, em primeiro lugar não havia feito prova de vida; depois, ficou
impossibilitado de se deslocar à Holanda para frequentar um curso a que agora o
obrigavam alterações legislativas nesse país relativas à concessão destas prestações
sociais. Por último, ao ser representada como desonra, a prisão debilitou capitais
familiares. O pai da Iolanda cortou relações com ela e recusa-se a visitá-la – «A educação
que eu lhe dei não foi para isto.» E a Iolanda apresenta-se ela própria desqualificada, não
só nos papéis parentais e na esfera familiar, como até na sua inserção étnica:
Eu é que tenho que dar educação aos meus filhos e eu é que vim presa. Não queria
nada ser este exemplo. [...] O que me custou na cadeia foi a minha família saber que
eu vim presa. É uma família muito respeitada em Cabo Verde. E depois eu sou cabo-
verdiana, represento Cabo Verde e não queria que houvesse delinquência no meu
país. Não represento bem o meu país.
24 A Iolanda mobilizou assim uma pequena parcela do agregado doméstico (o marido e o
enteado) para o tráfico. Outras reclusas viram-se antes envolvidas numa participação
acessória e menos activa nas transacções empreendidas por familiares masculinos, que
ora se caracterizavam como venda, ora como compra para consumo próprio, ou ambas.
Numa cadeia de operações onde vigora por precaução toda uma série de práticas de
segmentação, como a de primeiro se estabelecer com um cliente os termos do negócio
antes de se transportar os estupefacientes, estas reclusas funcionaram como breves
depositárias do produto no decurso de uma transacção, levada a cabo por outros. A
Maria Emília, uma cigana idosa que cumpre uma pena de três anos e meio, foi apanhada
numa rusga com várias doses de heroína que perfaziam sensivelmente 1 gr:
Não me lembrei de deitar fora, nem de fugir. Também não estava a fazer nada de
mal, não estava a vender... A droga era para uma pessoa, diz em voz baixa [Mais
tarde diria que era para o enteado, toxicodependente e entretanto hospitalizado
com SIDA e Hepatite B]. Disse ao juiz que era para mim, para o meu consumo [Um
coro de risos, meus e de duas outras reclusas participantes na conversa, ao qual a
Maria Emília se juntou: fosse qual fosse o estereótipo do consumidor de drogas que
em cada uma se evocou no momento, a Maria Emília estaria sempre nos seus
antípodas. E perante o juiz, pelos vistos, não foi mais convincente]. Primeiro,
sustentou-nos que foi para proteger o enteado: Escolhi vir presa em vez dele.
Depois, o aparente altruísmo de uma escolha revelava-se afinal medo por parte de
um agente menos autónomo, que falaria num outro momento de uma lei cigana: Um
cigano não pode descobrir outro senão matam-no. Ou então é a família dele que se
vinga mais tarde nos filhos, nos sobrinhos, e continua muito tempo assim 8.
[Caderno de campo.]
25 Com um genro também preso por tráfico, a Lavínia encontra-se por sua vez a cumprir
uma pena de seis anos de prisão por ter desempenhado, em parceria com o filho, um
papel semelhante ao da Maria Emília:
Estava numa carrinha com 5 gr de heroína enquanto o meu filho ia ter com uma
pessoa por causa da droga. Ele também era viciado. A droga era dele, mas eu
também estava a ajudar. Vim presa e depois o meu filho foi entregar-se, ele disse
que a droga era dele. Mas viemos os dois presos com a mesma pena. Ele foi para
Alcoentre, mas morreu há dois anos em Caxias, por causa da droga. A minha família
está muito revoltada com a droga, por causa do meu filho e da minha filha.
86
26 Esta cigana alentejana, há muito residente no bairro lisboeta da Musgueira, vê-se assim
regressada na sua velhice a Tires, dado que este estabelecimento figurara já como uma
das etapas que marcaram o seu percurso juvenil.
A minha mãe deixou-me a mim e aos meus irmãos quando éramos pequenos.
Puseram-me no Santo Condestável, e depois até trabalhei lá com farda, a fazer
recados. O meu pai, que Deus tem, depois foi-me lá buscar e viemos para Lisboa. Eu
andava a pedir, que era proibido, e não tinha cédula. Fui parar à Mitra. Também
tínhamos que usar uniforme, como aqui, só que era aos quadradinhos azul e branco.
E também tínhamos que usar um boné branco. Um dia eu não tinha posto o boné,
passou o guarda e fui seis meses de castigo para Tires. Foi no tempo das freiras. Vim
para cá com a minha filha bebé. A madre, até está ali na igreja uma fotografia dela,
era muito velhaca, havia muitos castigos. Estava cá aquela guarda, a D. Raquel,
agora é a filha dela que é guarda9.
27 Numa irónica simetria, a Lavínia encontra-se acompanhada neste regresso a Tires por
uma filha adulta, que então trouxera consigo quando esta ainda era bebé, e por uma
neta que, não fora achar-se aqui também na qualidade de condenada, acabaria por
reeditar uma díade da mesma ordem uma geração mais tarde. No entanto, apesar da
filha e da neta estarem envolvidas com drogas – pelo menos no seu consumo – foram
presas através de diferentes processos judiciais, em diferentes momentos e por
diferentes motivos. Mais uma vez, as redes familiares que se delineiam na prisão não
configuram necessariamente as redes familiares do tráfico, ou reproduzem
forçosamente os seus contornos:
A minha filha também foi viciada. Ia às Taipas, a tratamento, não conseguia. Depois
queria mesmo largar, mas não a atendiam em lado nenhum, tinha que esperar. Até
que ela queria mesmo sair daquilo e partiu um vidro de uma montra para vir presa,
para se vir tratar. Veio para cá porque pensavam que ela queria roubar a loja. Tem
que fazer três anos e meio, já cá eu estava nos RAVI, e assim não ficámos juntas. Ela
depois atirou-se do terceiro piso do P1 e foi a tratamento para Caxias. Agora
trabalha no jardim e conseguiu largar a droga. Os filhos dela estão com uma ama e a
Santa Casa ajuda a pagar. Outros dois estão no colégio da Santa Casa. A minha neta
também está metida na droga. Veio para cá com uma pena de um mês e meio,
porque não tinha a senha do autocarro e não tinha dinheiro para pagar a multa.
28 Se a Maria Emília e a Lavínia assessoraram, mais ou menos fortuitamente, as
actividades de tráfico dos respectivos filhos, outras reclusas assumiram também um
papel instrumental, mas desta vez no consumo de drogas por parte de familiares. A
pedido de companheiros ou filhos toxicodependentes, levaram-lhes as doses que eles
não se puderam proporcionar, impossibilitados que estavam de se reabastecerem por
circunstâncias várias, entre as quais se conta a de se encontrarem presos ou
hospitalizados. Assim, apesar de muitas destas mulheres terem sido condenadas na
categoria de «tráfico» (noutros casos a imputação foi a de «introdução de
estupefacientes em meio prisional»), esta constitui uma modalidade de evolução
conjugal ou parental nos narco-circuitos que se situa num plano relativamente distinto
das restantes.
29 Será já por demais evidente que, por muito numerosos que possam ser os parentes ou
os membros de um agregado que se movimentam nestes circuitos, raramente o tráfico
congrega todas essas pessoas numa operação concertada e num projecto colectivo, à
maneira de uma empresa familiar. Poder-se-ia mesmo transpor para a micro-escala
destes círculos de parentesco a sugestiva fórmula com que Reuter (1983) descreveu o
funcionamento de outros mercados ilegais, a saber, a de «crime desorganizado». Se os
87
que comprar fraldas para a minha mãe que estava doente de cama. Andava tão aflita
que fui ter com uma vizinha que traficava, a ver se me podia valer com algumas
gramas. Só que agora fiquei pior, agora já não posso ajudar os meus filhos nem a
minha mãe. Tenho a minha filha comigo e os outros dois num colégio. O meu
marido trabalha longe, não pode ficar com eles [...] Aqui dentro, quando entrei, as
outras do meu bairro ajudaram-me muito, e as minhas patrícias também.
34 À Tina ocorreu-lhe uma via semelhante para ultrapassar a situação difícil que previa ser
o Natal que se aproximava, por razões expostas mais adiante:
Falei com uma amiga lá do bairro. Estava a desabafar com ela, isto tudo do Natal. Eu
sabia que os filhos dela vendiam, e pensei: «se eu vendesse três graminhas, cinco
graminhas, só até ao Natal...» Ela falou com os filhos, e foi assim. Eu só vendi quinze
dias, porque depois apareceu aquela rusga...
35 Quanto à Zulmira, começou antes por ser sondada por uma vizinha com quem não
tinha, de resto, um contacto de especial proximidade. E uma primeira relação de tráfico
que, a concretizar-se, teria sido de ordem mais «contratual», acabou, também ela, por
dar lugar a um empréstimo informal que permitiria à Zulmira lançar-se como free-
lancer:
Uma vez uma lá do bairro pediu-me para eu guardar cinco gramas. Eu peguei, e diz
ela, «Olha, toma, eu dou-te dois contos». Eu peguei naqueles cinco gramas e disse:
«Ó fulana, leva isso que eu não quero guardar» – porque eu era contra a droga. Elas
lá no bairro até tinham medo de falar comigo porque diziam que eu mandava vir a
autoridade [A Zulmira entretanto expôs-me as circunstâncias que a fizeram mudar
de ideia, relato esse que referirei abaixo]. Passaram-se uns dias, não via nada, e fui
ter com ela. E disse: «Olha, já vejo que confias em mim para guardar. Fia-me cinco
gramas.» E diz ela: «Ó mulher, fio!» E foi a castanha. Foi aí que eu comecei.
36 Estas reclusas recorreram assim a redes vicinais femininas, quer para aceder
directamente ao produto a transaccionar, quer utilizando-as como brokers para chegar
aos traficantes masculinos, como no caso da Tina. Por outro lado, que estas redes são,
com alguma autonomia, declináveis segundo o género, parece atestá-lo o pronome
usado no feminino pela Zulmira: «Elas lá no bairro até tinham medo de falar comigo...».
Um ethos hedonista?
37 Se, como vimos, a estrutura interna do mercado descrito por Adler (1993), bem como a
dimensão e o modo de composição dos seus núcleos, o aproximam destes mercados
retalhistas, um e outro afastam-se no tipo de redes extrafamiliares e, em segundo lugar,
nas condições sociais, estilos de vida e disposições dominantes que respectivamente os
enquadram. Perante a desadequação de teorias criminológicas clássicas aos traficantes
de classe média que estudou – como é o caso da proposta mertoniana de Cloward e
Ohlin (1960) e Cloward (1969), que sustenta a relação entre o ingresso no crime e o
bloqueamento da estrutura de oportunidades legais –, Adler defende, em alternativa,
uma «perspectiva existencial» (1993: 143-155) onde o gosto do risco, o prazer, a
gratificação imediata, em suma, um ethos hedonista, figuram quer como as motivações-
chave, quer como os princípios analíticos para a compreensão dessa «subcultura
desviante»:
Drug dealers and smugglers were above all motivated by hedonistic materialism.
They were commited to living the fast life. Primary to the fast life was abundant
drug consumption, generating intense pleasures. They wanted these pleasures now
and for all time, not ten years from now when their investments or pension plans
90
52 Mas as redes parentais de tráfico são não só, antes de tudo, de forte componente
dominicana como são, em segundo lugar, masculinas. Se as latinas, e principalmente as
dominicanas, estariam à partida melhor posicionadas para beneficiar do recorte étnico
desta estrutura de oportunidades do que as mulheres de outras categorias «raciais»/
étnicas que frequentam o bairro, também elas se vêem excluídas, por duas ordens de
razões. A primeira diz respeito à violência endémica que enquadra estes mercados de
crack, já exemplarmente descrita por Philippe Bourgois (1995) que, a seu propósito, fala
de uma «cultura de terror». Para além de ser usada como meio de punição de
prevaricadores, a violência é regularmente demonstrada como meio de construir e
manter uma reputação dissuasiva de eventuais prevaricações. Ora, por muito que as
mulheres envolvidas na esfera ilegal adoptem posturas e retóricas agressivas – uma
estratégica persona de rua que, de resto, crêem melhor protegê-las da vitimização –,
esta performance não é suficiente para persuadir os empregadores desta economia, para
quem as necessárias capacidades de «dureza» física e mental são atributos
intrinsecamente masculinos (ver também, a este propósito, Waterston, 1993). Se os
requisitos exigidos na economia da droga contribuem assim para reproduzir a
masculinidade hegemónica e actualizar o «sexismo do submundo» – para utilizar a
expressão de Steffensmeier e Terry (1986) –, por outro lado as definições culturais
locais dos papéis de género confinam com maior rigor as latinas à tradicional esfera
doméstica e aos papéis de mãe, esposa ou filha (Maher, 1997: 180-181). Por isso, o
mesmo nepotismo que promove, no caso dos homens (latinos), o ingresso e a ascensão
no tráfico funciona, ao invés, para as mulheres (latinas e não latinas) como uma
barreira à entrada.
53 Dada a organização simultaneamente sexuada e etnicizada do tráfico, as mulheres
acantonam-se na sua periferia. Na limitada medida em que nele podem participar
(nomeadamente enquanto exército de reserva usado quando a mão-de-obra masculina
escasseia ou na iminência do risco de uma intervenção policial), assumem funções
marginais como publicitação de drogas, aluguer ou venda de parafernália acessória ao
consumo (seringas, cachimbos), assistência na administração de drogas a terceiros,
prestação de serviços variados nas casas de crack (ver ainda Maher e Daly, 1996). Deste
modo criam nesta economia nichos que correspondem a novos papéis, especificamente
femininos, e que não se encontravam inventariados em anteriores tipologias (ver
Dunlap, Johnson e Maher, 1997). As mulheres que aí ingressam na esfera ilegal são na
quase totalidade consumidoras de drogas – como aliás sucede, em geral, com
praticamente todos os intervenientes nos mercados retalhistas americanos (Fagan,
1994; Fagan e Chin, 1989). Mas, ao contrário do que sucede com os seus homólogos
masculinos, é apenas nos interstícios da economia da droga que elas geram
rendimentos para financiarem o consumo – à excepção da prostitutição, uma fonte de
rendimento precarizada pelo aumento da competição no mercado sexual, saturado por
noviças toxicodependentes (Maher, 1997).
54 Estes dados conduziram assim a uma reavaliação, mais fina, do tráfico enquanto
estrutura de oportunidades ilegais em contextos americanos. Foi com o advento do
crack, na década de 80, que estas oportunidades se expandiram de forma inaudita ao
nível retalhista, já que as redes pré-existentes, centradas principalmente no mercado
de heroína, não estavam aptas a dar resposta ao aumento exponencial da procura da
nova substância. Esta mudança coincidiu, aliás, com um período de aguda precarização
de certos bairros urbanos predominantemente habitados por minorias étnicas (Fagan,
96
1994), para quem esta nova modalidade da economia da droga passava a representar
um acesso mais democratizado ao «emprego» (Williams, 1992). Deste ponto de vista,
Bourgois (1989: 630) descreve mesmo esta economia como a estrutura de emprego onde
vigoraria por excelência a «igualdade de oportunidades».
55 Muitos autores viram também nela incluídas, enfim, as mulheres. Na anterior economia
da heroína, de dominação masculina, de pequena amplitude e mais estável, as incursões
das mulheres no tráfico eram limitadas, mediadas por homens – de quem eram meras
adjuntas e, além disso, no quadro de parcerias amorosas –, e por isso era sobretudo a
prostituição que gerava os rendimentos ilegais com os quais muitas toxicodependentes
financiavam o consumo (Rosenbaum, 1981). A efervescente e proliferante economia do
crack parecia proporcionar agora às mulheres novas formas de participação nos
mercados ilegais, mais autónomas e não modeladas pelos papéis de género, como
sustenta Fagan (1994), criando ao mesmo tempo opções económicas que lhes
permitiriam evitar o recurso a outros tipos de actividades ilegais, como a prostituição
(Sommers, Baskin e Fagan, 1996; Taylor, 1993). Para além da expansão vertiginosa do
mercado de droga, outras razões foram apontadas para o suposto aumento da
participação feminina no tráfico: o declínio da ascendência masculina, dada a
diminuição da dimensão das anteriores redes, de onde muitos homens foram evacuados
pela repressão policial (Baskin, Sommers e Fagan, 1993; Mieczkowski, 1994); uma
genérica emancipação feminina, que se reflectiria também nestes contextos, tese
defendida por Bourgois e Dunlap (1993) e Bourgois (1989) – embora este mesmo autor a
relativize substancialmente mais tarde (1995); outros autores (e. g. Wilson, 1993), vendo
também promover-se no tráfico a igualdade de oportunidades, explicam ao invés a
maior participação das mulheres nesta economia pela sua própria domesticidade e
pelas responsabilidades maternais que lhes restringem a mobilidade (em suma, pelos
clássicos padrões de género que, outrora, as teriam mantido arredadas da esfera
criminal): uma casa, um telefone proporcionariam uma retaguarda especialmente
adequada para a condução dos negócios por parte dos voláteis traficantes masculinos, a
quem, assim, elas seriam mais facilmente associáveis nos empreendimentos ilegais.
56 Todavia, se parece ser consensual que se abriram oportunidades ilegais e que passou a
haver uma maior presença de mulheres no tráfico, as posições divergem quanto à
natureza dessas oportunidades. Como argumenta Maher (1997: 18), «actividade» não
pode ser tomada por «igualdade», do mesmo modo que «presença» não é sinónimo de
«participação»10. Por exemplo, a tese segundo a qual a «feminina» esfera doméstica se
prestaria à sua absorção pela economia ilegal não permite atestar, a partir daí, da
existência de associações paritárias – como é amplamente constatável nas etnografias
de Fleisher (1995) e de Bourgois (1995), onde a casa das parceiras afectivas aparece
como meramente instrumental a negócios masculinos (quando não se resume a
providenciar o «repouso do guerreiro»), mais do que a sede de um empreendimento
conjunto. De facto, em primeiro lugar a maioria das oportunidades para as mulheres
surgiu nos patamares mais baixos, precários e arriscados do mercado retalhista, onde
prevaleceu uma hegemonia masculina que impermeabilizava as organizações do tráfico
a quaisquer veleidades «emancipatórias». Como o documentou o acima referido
trabalho de Maher (1997; ver também Maher e Curtis, 1994, e Maher e Daly, 1996), o
muito estruturado mercado de crack apresentava uma vincada estratificação por
género, bem como por «raça»/etnicidade, além do que as redes parentais masculinas
que o dominavam fecharam as brechas por onde antes, no mercado de heroína,
entravam incidentalmente amigas e namoradas dos pequenos distribuidores. Donde,
97
onde uns autores viram mudança na participação feminina no tráfico, outros viram
continuidade.
57 Porém, e em segundo lugar, esta divergência analítica pode não dever-se apenas ao
facto de uns terem podido tomar a nuvem por Juno, mas decorrer também da própria
divergência entre os respectivos materiais empíricos, que envolvem diferentes
estruturas de mercado. Assim, alguns autores inventariaram, de facto, um leque mais
amplo de papéis femininos no patamar retalhista da economia da droga, entre os quais
se discernem posições bem menos subordinadas e experiências bem mais sucedidas e
lucrativas do que as reportadas por Maher (1997). É o que relatam, por exemplo, Bruce
Jacobs e Jody Miller (1998) para um mercado de crack em St. Louis, Missouri, e Patricia
Morgan e Jaren Joe (1997) para dois mercados californianos e um hawaiano de
metanfetaminas. Sucede que todos estes mercados são de feição free-lance, ou seja,
fluidos, descentralizados, com pouca ou nenhuma interdependência hierárquica e fraca
divisão funcional do trabalho. E mesmo que possam, também eles, pautar-se por uma
forte dominação masculina e pelo aparato de um ethos agressivo que, à partida, os
configura como arenas desfavoráveis às mulheres (como é o caso do contexto de St.
Louis), a própria estrutura free-lance destes mercados faz com que as barreiras à entrada
destas no que seria uma coutada masculina sejam mais frágeis, ineficientes e, portanto,
mais permeáveis. Há, assim, maior latitude para as investidas das mulheres no tráfico,
bem como maior autonomia nas decisões que tomam sobre «onde, quando e como
vender» (Jacobs e Miller, 1998: 563).
certo que várias reclusas mais novas não adoptam já a discrição das suas mães e
cultivam uma persona dura, desafiadora e fanfarrona. Mas esta postura destina-se
menos a anunciar o potencial de violência perante congéneres e suas ameaças do que a
exibir uma valentia genérica, uma «fibra moral» à prova do confronto com a lei e
perante não-«desviantes» – por exemplo, alardeando a resistência à delação – o que,
evidentemente, não deixa de enviar ao mundo do tráfico a devida mensagem de
coragem. Por outro lado, se muitas das reclusas foram regularmente brutalizadas por
homens ao longo da sua vida, foram vitimizadas no espaço doméstico, no contexto das
relações conjugais e parentais; não enquanto participantes no espaço público, e muito
menos no contexto das relações «profissionais» da economia ilegal. Não se trata assim
de escamotear aqui as estruturas de dominação que as afectam, mas apenas de sugerir
que estas se modulam segundo os contextos, pelo que não basta enunciá-las
genericamente, como por vezes ocorre com alguma literatura criminológica feminista 11.
60 Segue-se que estas reclusas estão longe de se verem confinadas, quer prática, quer
ideologicamente, à esfera familiar e doméstica. Recorde-se, a este propósito, a queda de
31 pontos percentuais na categoria «doméstica» que ocorreu na população do
estabelecimento no intervalo de uma década, uma queda que reflectiria, aliás, o
nivelamento por baixo da condição social desta população, cujas origens eram outrora
mais diversas e absorviam ainda, nessa altura, áreas próximas da pequena burguesia
(supra: 64-67). Como outras mulheres de baixos estratos sociais, as actuais reclusas
sempre investiram na esfera do trabalho, não enquanto opção «emancipatória» ou
«resistência contra-hegemónica», mas como condição e estratégia de sobrevivência.
Nas classes populares as definições culturais dos papéis de género também remetem
para as mulheres as responsabilidades familiares e domésticas 12. Contudo, não lhes
vedam o papel extradoméstico de providenciadora de recursos, nem este é
necessariamente representado como um desvio ao script feminino ou como um fracasso
masculino, diversamente do que sucede nos contextos americanos atrás descritos 13.
Veja-se a «cultura social do trabalho» referida por Joan Pujadas para meios populares
urbanos portugueses, marcada pela «ideia da permanente disponibilidade para o
trabalho por parte de todos os membros do grupo doméstico» (1994: 15-17). E veja-se
ainda a este propósito a construção cultural das mulheres em Vila Chã como
trabalhadeiras, onde a capacidade feminina para o trabalho é positivamente valorada na
ideologia de género desta comunidade piscatória e onde vigora mesmo um ideal
paritário na reprodução económica do agregado doméstico (Cole, 1991: 77-107). Diga-se
que este ideal paritário é encarado por Sally Cole como um elemento cultural de
«resistência contra-hegemónica» e, por conseguinte, como uma estratégia positiva de
demarcação dos valores de género dominantes. No entanto, ainda que, como defende
James Scott (1985), a noção de resistência possa ser entendida de outra forma que não
acção colectiva e formalmente organizada, partilho inteiramente da crítica avançada
por João de Pina Cabral à perspectiva daquela autora:
O facto de existirem recorrências nas formas de autojustificação que estas mulheres
estigmatizadas produzem não pode ser concebido na mesma linha das
reivindicações dos movimentos feministas politizados que fizeram um corte crítico
com o discurso hegemónico. Pelo contrário, a existência de formas recorrentes de
autojustificação, tanto quanto as práticas sociais que estão ligadas à gestão da vida
familiar num contexto de matrifocalidade resultante da incapacidade por parte dos
homens de estabelecerem a sua autoridade doméstica, devem ser vistas como
estratégias negativas – formas de responder ao discurso hegemónico num contexto
99
Acabei de pedir à subchefe para ir trabalhar para a portaria. Estou a ver se consigo
sair do pavilhão. Fechadas no pavilhão não se consegue nada. Podendo circular
consegue-se mais coisas: encontra-se a educadora, vai-se dar uma palavrinha à
[reclusa] que trabalha no dentista – foi assim que eu consegui uma consulta mais
cedo –, põem-me à frente. Encontra-se este, encontra-se aquele... Senão, está-se
muito tempo à espera e não se consegue nada.
67 Esta reformada é muito provavelmente uma daquelas reclusas que um membro do staff
teria em mente, quando, referindo-se aos problemas de gestão e disciplina colocados
por um novo tipo de população prisional, me asseverou:
Há apenas uma minoria, as do tráfico organizado, que sabem muito bem o que
fizeram e onde se iam meter. E essas, são presas exemplares. Não massacram os
serviços, resistem bem, não dão problemas.
regular (aquele que realiza mais do que uma operação de venda por semana)
comparecer perante a justiça, sendo essa probabilidade de um terço para os vendedores
ocasionais (activos uma vez por semana ou menos, ibidem: 92). É assim que, à la longue, o
capital acumulado poderá ser bem mais frugal do que o supõem percepções comuns
sobre a economia da droga – e do que o supõem, por vezes, os próprios traficantes.
Veja-se a este propósito o contraste entre as formulações discursivas dos traficantes de
El Barrio apresentados por Bourgois (1995) e as suas reais carreiras materiais; e, ainda, a
discrepância apontada por Viscusi (1986) entre os rendimentos ilegais esperados e os
efectivamente consumados, sendo os primeiros pelo menos cinco vezes superiores aos
segundos. É também de notar que a variação da estrutura dos mercados retalhistas não
parece modular significativamente os níveis de rendimento. O mercado da cidade de
Washington estudado por Reuter et al (1990), que apresenta os traços distintivos das
estruturas free-lance, não diverge, neste aspecto, de mercados mais organizados (onde
vários tipos de tarefas são remuneradas por um salário), a propósito dos quais são
invariavelmente referidos, para patamares inferiores, níveis de rendimento abaixo do
salário mínimo.
70 Ignoro a que cálculos e estimativas se terão livrado as reclusas de Tires, se é que alguma
vez os empreenderam desta forma, tão evocativa da razão fria do homo economicus. Em
todo o caso, a entrada no narcomercado raramente teve por efeito a saída do mercado
de trabalho. Quando uma tal sucessão cronológica ocorre, o tráfico não está
forçosamente na origem do abandono das ocupações legais; por vezes sucederá o
inverso, como a circunstância do desemprego da Tina, que, conjugada com outros
eventos, contribuiu para a conduzir à economia ilícita. É certo que os períodos em que
estas mulheres lograram permanecer no tráfico se revelaram, em média,
invariavelmente curtos e demasiado breves para que se possa testar com consistência a
hipótese da ausência de uma tal deriva, onde o trabalho ilegal acabaria por destronar o
legal. Porém, é para essa hipótese que igualmente apontam muitas das reclusas que já
antes tinham estado presas. De facto, se reincidiram no tráfico, reincidiram, também,
em ocupações legítimas. Poder-se-ia ainda dar o caso de estas representarem apenas
uma conveniente fachada, acessória da actividade criminal. Mas o patamar retalhista
em que o grosso das reclusas se movia e as pequenas quantidades aí transaccionadas
não parecem requerer semelhantes expedientes branqueadores. Diversamente do que
atrás sugeria a Maria Emília (a gente não consegue esconder o dinheiro [...], mesmo que
quisesse esconder a riqueza não conseguia), a riqueza que esta reclusa concebia e cujos
signos eram, para ela, coisas como fruta e frango assado (mas podemos aqui recordar
ainda os móveis usados adquiridos pela Zulmira), não será provavelmente de ordem a
alertar as forças da lei, por muito conspícua que ela se possa revelar entre iguais.
71 Na verdade, muitas das reclusas combinaram os rendimentos do tráfico com os
rendimentos não criminais, não raro numa lógica meramente supletiva. Neste aspecto
aproximam-se dos pequenos traficantes estudados por Reuter et al (1990), cujas
actividades ilegais figuravam como complemento a um emprego legal e regular. Note-
se, porém, que estes evoluíam num típico mercado americano free-lance dos anos 80,
mercado este que deixava uma maior margem para as incursões relativamente
esporádicas do que a versão empresarial que viria a predominar na década seguinte.
Com efeito, nos EUA não só parece terem-se tornado menos recorrentes as constantes
travessias das pontes entre o trabalho legal e ilegal, como parece inclusive que tais
pontes se rarefizeram – até pela própria natureza do dominante modelo empresarial do
tráfico retalhista, pautado, ele próprio, pela especialização e pela divisão funcional de
103
importante ainda, cada reclusa podia ter exercido a mesma ocupação na modalidade
legal e clandestina, quer em diferentes momentos da sua vida, quer simultaneamente,
em locais diversos e, por vezes, comercializando diferentes produtos.
75 Por fim, a complexificar este quadro, outras reclusas ainda eram ao mesmo tempo
trabalhadoras por conta própria e por conta de outrem, uma e outra situação
ocorrendo tanto em regime formal como informal. Por exemplo, as empregadas de
limpeza ou na restauração, declaradas ou não, enveredavam também pela venda
ambulante de vestuário, peixe, ou produtos hortícolas. Embora em alguns casos esta
ocupação estivesse legalmente registada, abundam em contrapartida os relatos de
reclusas acerca da sua modalidade irregular e semioculta, nomeadamente sobre a maior
ou menor repressão policial que haviam enfrentado e sobre as manobras esquivas e a
esgotante mobilidade a que ela obrigava19. Nesta inserção pluriactiva no trabalho
descortina-se, deste modo, a mesma continuidade entre o sector formal e o informal 20.
De resto, este entrosamento é ainda ampliado pela frequente combinação entre os
pluri-rendimentos assim gerados e outros elementos estratégicos para a sobrevivência
económica, como o recurso à penhora e ao fiado. E utilizo deliberadamente o termo
fiado, não só porque corresponde à designação emic, mas porque sublinha a distinção
entre formas de aquisição e empréstimo ancoradas no interconhecimento e nas redes
de vizinhança, e formas impessoais que requerem outra ordem de garantias, como será
o caso do crédito. Aliás, uma forte implicação das redes de vizinhança e parentesco nos
processos económicos tem sido genericamente apontada como uma das características
importantes da economia informal (cf. Portes e Borocz, 1988, e ainda Duprez e Kokoreff,
2000: 258, que a designam como uma «économie de la débrouillardise»). Vimos já, por
outro lado, que o fiado se revelou um dispositivo-chave de acesso ao tráfico por parte
das reclusas. Uma vez que se iniciaram nele não como assalariadas mas como free-
lancers, apenas as práticas do fiado lhes teriam permitido lançarem-se assim por conta
própria, já que não dispunham do capital económico necessário para dar o primeiro
passo, ou seja, efectuar a primeira compra de drogas para posterior revenda. Tais
práticas, engendradas nos meandros das redes de vizinhança, foram também
identificadas por Vicenzo Ruggiero, que caracterizou da seguinte forma a economia
retalhista da droga num bairro londrino:
[L’]économie de la drogue [...] est une économie domestique, petite, de gagne-petit.
Dans un sens, cette économie informelle reflète l’échange régulier de choses et de
petites sommes d’argent qui a lieu dans certains logements sociaux. De petites
quantités de drogue sont parfois échangées, prêtées ou vendues, de la même
manière que des sommes inférieures à 10 [livres] sont quelques fois prêtées aux
voisins (1993: 374).
76 Ora, o tráfico vem precisamente inscrever-se na zona estrutural de confluência entre o
sector formal e informal, que delimitava já o espaço de geração de rendimentos e,
sobretudo, o espaço de inserção laboral da maioria das reclusas. Na medida em que
constitui mais um dos «biscates» e expedientes que atravessam essa zona de margem
(no duplo sentido de periferia e de liminaridade «transitiva»), o tráfico representa um
dos avatares ou desdobramentos desta ambiguidade e, ao mesmo tempo, prolonga-a. De
resto, as práticas discursivas locais, onde a palavra venda equivale, também, a «tráfico»,
reflectem em parte tal ambiguidade, e o contexto do seu uso foi muitas vezes para mim
fonte de confusão ao longo do trabalho de campo: a expressão andar na venda , por
exemplo, podia designar indiferentemente tanto as ocupações legais ou semilegais,
como as ilegais, sem curar, pois, do estatuto dos produtos vendidos ou da licitude das
105
transacções. Daí haja que conservar em mente que o tráfico é, antes de tudo, uma
categoria jurídica e policial.
77 Importa aqui determo-nos brevemente no âmbito da noção de economia informal. Se é
consensual o critério da ausência da regulação do Estado para estipular a
«informalidade» dos processos geradores de bens, serviços e rendimentos – por outras
palavras, aqueles que escapam à alçada da intervenção do Estado –, alguns autores
divergem quanto à esfera legal que deverá ser tomada por referência para delimitar o
sector informal. Assim, uns reservam esta designação apenas para a produção ou venda
ilegal (querendo com isto significar não-regulada) de bens e serviços lícitos, ou seja, os
que de qualquer forma podem já ser produzidos e vendidos no sector formal, desde que
obtidas as devidas licenças (Castells e Portes, 1989: 15). Não é por isso contemplada a
economia subterrânea criminal em torno de produtos ilícitos, como é o caso do tráfico.
Uma outra perspectiva adopta uma definição mais lata e abrangente do sector informal,
onde não figura esta distinção (ver Gaughan e Ferman, 1987). Alguns autores, entre os
quais Maher, alegam que uma tal separação obscurece mesmo a compreensão dos
fenómenos sociais:
[F]rom the perspective of the people involved, the idea that law or legal regulation
provides a major demarcation of social life and cultural practice is false [...]; in
practice the boundaries between criminal and other forms of unlawful commerce
are blurred, and are historically and culturally variable. The institution of a
primary division creates, at best, an unnecessary separation and, at worst, a false
dichotomy (1997: 59-60).
78 Esta perspectiva permite, com efeito, melhor dar conta da experiência das reclusas e
enquadrar os seus sucessivos trânsitos pelas múltiplas facetas da economia informal. Na
verdade, se a demarcação entre ocupações ilegais e criminais não é inteiramente
arbitrária (ela pode representar, por exemplo, a distância entre a simples multa e a
prisão), ela revela-se apenas uma entre muitas outras fronteiras de tal forma porosas
no espaço estrutural em que as reclusas se movem (como se continuará a esclarecer nos
capítulos seguintes), que perde valor analítico. Ruggiero e South registaram por seu
turno o mesmo continuum entre mercados irregulares e criminais em contextos urbanos
britânicos, bem como o movimento pendular entre legalidade e ilegalidade. A
«mobilidade lateral» que assim caracteriza estes fluxos é descrita como
[U]n mouvement intermitent allant d’emplois mal payés à la petite criminalité
contre les biens, d’une forme d’allocation de chômage à la petite distribution de
dope et d’autres marchandises, et ainsi de suite. Cette sorte de mobilité s’applique
aux toxicomanes, aux petits délinquants contre les biens et à d’autres qui
commettent une « délinquance à la sauvette », à temps partiel, aucun d’eux
n’estimant [...] pouvoir être décrit comme des «scélérats à temps plein» ou comme
« délinquants de carrière » (1996: 318).
79 E é neste sentido que os autores criticam o simplismo da definição sócio-espacial de
«zonas de delinquência» por parte da sociologia urbana da escola de Chicago, onde se
delimitam com precisão e quais blocos monolíticos os comportamentos delinquentes, e
lhe preferem a metáfora do «bazar» para dar conta da mistura, da coexistência e da
mobilidade de limites entre a legalidade e as diversas formas de ilegalidade (ibidem:
323-324).
80 Ora, esta coexistência complexa e estes entrosamentos prefiguravam, como referi, o
quadro que situava as reclusas muito antes do tráfico e onde as suas novas actividades
retalhistas se vieram enxertar. Num espaço de margem onde já então deslizavam entre
106
por conta própria antes dessa data e viu nela uma das razões para a taxa de
proletarização em Portugal ser a mais baixa da Europa. Mas esta tendência agudizar-se-
ia entre 1992 e 1996, com a eliminação de muitos postos de trabalho por conta de
outrem, o aumento dos contratos com vínculo não permanente e dos trabalhadores
independentes «isolados», ou seja, sem pessoal ao serviço (Capucha, 1998: 223-224).
84 Por outro lado compare-se, a título de exemplo, o perfil dos beneficiários do
Rendimento Mínimo Garantido (RMG) português com o daqueles que em França
usufruem de uma prestação social equivalente e atribuída de acordo com critérios
semelhantes – o Revenu Minimum d’Insertion (RMI) –, pessoas aí designadas
popularmente de RMIstes , um termo que aliás carrega a conotação pejorativa de
«falhados da vida»23. Setenta e cinco por cento dos beneficiários franceses eram
«pessoas isoladas», a maioria encontrava-se desempregada ou inactiva e não possuía
morada própria (cf. Dubar, 1996: 114); no caso dos portugueses a quem foi atribuído o
RMG, metade vivia de rendimentos do trabalho e ⅓ de pensões (rendimentos estes
evidentemente muito baixos); além disso, quase todos integravam agregados familiares:
apenas 1/5 eram pessoas sozinhas (Instituto de Desenvolvimento Social, 1998). Como
sustenta Dubar (1996), em França a pobreza recobre uma dupla desafiliação, isto é, a do
trabalho e a sócio-familiar. E, com efeito, registou-se neste e noutros países
desenvolvidos uma forte correlação entre, de um lado, a fragilidade face ao emprego e
fracos recursos económicos (ver Paugam, 1996b) e, de outro, a fragilidade da
sociabilidade familiar e das redes privadas de entreajuda. Por outras palavras, quanto
maior é o afastamento em relação ao emprego estável, maior é não só a pobreza
económica como a pobreza relacional (ibidem: 401).
85 Mas François Merrien questiona, com outros autores, a universalidade deste tipo de
processos de exclusão nas sociedades contemporâneas (o autor circunscreve-se, na
verdade, às sociedades ocidentais). Referindo-se às elevadas taxas de pobreza nos países
do sul da Europa, observa a este propósito que
[I]l n’en demeure pas moins que la pauvreté massive dans ces pays ne s’accompagne
pas du processus de précarisation sociale ou de double désaffiliation que l’on
constate plus particulièrement dans certains pays riches comme la France, le
Royaume-Uni ou les États-Unis. Dans les pays du Sud, la pauvreté demeure une
pauvreté monétaire, une pauvreté absolue typique des sociétés préindustrielles,
mais la famille et les réseaux de solidarité de voisinage autorisent des stratégies de
survie (travail au noir, travail à domicile, sous-traitance, travail informel...) et
limitent les processus de désinsertion sociale (1996: 422).
86 Nesta mesma linha de abordagem, Serge Paugam (1996b) discerne três equações entre
pobreza e exclusão, modalidades essas que correspondem, ainda que imperfeitamente e
de forma não linear, a diferentes etapas do desenvolvimento das sociedades industriais
e/ou a diferentes contextos nacionais. A primeira modalidade – a «pobreza integrada» –
caracterizaria as sociedades mediterrânicas europeias subindustrializadas, onde a
sociedade salarial é pouco organizada e onde coexistem sistemas contraditórios de
produção e troca. Em parte porque numerosas, as pessoas de fracos recursos
económicos não seriam especialmente estigmatizadas e encontram-se inseridas em
redes sociais assentes em laços de parentesco e vizinhança. Quando tocadas pelo
desemprego, este não acarreta por si mesmo uma especial desvalorização de estatuto e
é atenuado por recursos da economia paralela, cujas actividades, aliás, podem
contribuir para cimentar relações sociais (ibidem: 394).
108
96 É também por esta razão que os laços familiares nestes empreendimentos ilegais não
são remissíveis ao paradigma familialista da mafia, que impregnou e formatou algum
crime organizado. Aí, tais laços recortam unidades mais vastas, relativamente fechadas,
social e economicamente integradas, cujos contornos delimitam a um tempo a esfera
dos negócios e da sociabilidade. Em contrapartida, aqui as solidariedades constroem-se
de modo mais aleatório, entre o universo dos parentes e o dos vizinhos, dado até que o
primeiro não se concerta numa estrutura vertical de autoridade nem dispõe dos
recursos para, por inteiro, «organizar a vida» dos seus. Tal universo não é assim
mobilizável à grande escala e num projecto colectivo, mas por pequenos segmentos, em
alianças variáveis e, por conseguinte, em incursões mais atomísticas. Poder-se-á por
isso revelar enganador o grande número de parentes que desfilam perante os tribunais
e desembocam na prisão – muitas vezes, relembro, em diferentes momentos, por
diferentes vias e por diferentes motivos. Esse leque alargado de parentelas não traduz
necessariamente a participação conjunta numa mesma iniciativa. Dito de outro modo,
se se trata sim de uma rede de parentes, não se trata inevitavelmente de uma rede de
tráfico. Sucede que cada um terá investido por si, ou em pequenas coligações, numa
estrutura de oportunidades que o tráfico realmente abriu a todos e à qual os vizinhos
estão, de igual modo, expostos.
97 Parentes e vizinhos encontravam-se já articulados em redes de suporte e de entreajuda.
E assim como estas redes participam da forte «sociedade-providência» de que fala B. de
Sousa Santos, também protagonizam algumas das facetas de uma economia informal
igualmente forte à escala nacional e que se erige na continuidade e em entrosamento
com o sector formal. É nesse continuum que essas redes se dispõem, tendo o tráfico
vindo prolongá-lo e deslocar-lhe os limites da ilegalidade. Noutras paragens, quer por
via de um controlo estatal menos incipiente (que estreita as margens do sector
informal), quer por via do declínio dos mercados free-lance (que encerravam menos os
indivíduos na esfera criminal do que a modalidade que lhes sucederia), as várias zonas
deste continuum parecem ter-se tornado menos ambíguas e mais sincopadas. Sendo
assim, são mais difíceis as travessias nos dois sentidos do percurso compreendido entre
a legalidade e a ilegalidade. Tais tendências, aí intersectadas com perfis de pobreza
excluída (muitas vezes compactada por toxicodependências) e aos quais não serão,
porventura, totalmente alheias, permitem-nos enquadrar o advento no mundo do
tráfico daquilo a que Ruggiero e South (1995: 126-127) chamaram de «“mass” criminal»:
Such contributors to the drug economy are found across the globe: they ensure the
success and reproduction of drug markets despite all enforcement efforts and
triumphs. They are interchangeable, replaceable, powerless, moveable, dependent.
The work of «mass criminals» implies a routinization of tasks, a specific set of roles,
a fixed place in the division of labour and a virtually stagnant career (ibidem: 127).
98 Algumas jovens reclusas, muitas vezes exteriores ao bairro onde se abasteciam e sem
outros laços nele, poderiam virtualmente figurar neste vasto e flutuante exército de
mão-de-obra toxicodependente, precária e de quem não se requer iniciativa, exército
esse que os autores constataram em vários contextos europeus – mas não tão
nitidamente no mercado italiano (ibidem: 182). Não quero com isto significar que tais
reclusas correspondessem ao perfil escapista e inteiramente alheado que Merton (1957)
e depois Cloward e Ohlin (1960) traçaram dos toxicodependentes através do conceito
de «retreatism»: o primeiro autor vendo-os arredados e inanes por relação a ideais de
sucesso e aos meios legítimos para os atingir; os segundos vendo-os duplamente
arredados e inanes, ou seja, quer nas carreiras legais quer ilegais, falhando como
112
NOTAS
1. (Itálicos no original.)
2. Ênfase minha.
3. Curiosamente, a investigação empreendida pelo juiz Falcone (cit. por Ruggiero e South (1995:
86-87) concluiria que quer as decisões relativas ao envolvimento da mafia no tráfico, quer os
fundos que aí eram investidos, tiveram origem não num qualquer corpo central, mas decorreram
de iniciativas pessoais de indivíduos e grupos.
4. O mesmo carácter aleatório foi constatado por Kellerhals et al (1986) em meios populares
urbanos, contrastando com o tipo de solidariedade familiar em camadas sociais mais favorecidas.
Mais organizada, esta teria além disso por eixo uma forte intervenção financeira, enquanto a
ajuda naqueles meios seria sobretudo de ordem pessoal e assente na prestação de serviços.
5. Membros do staff que no decurso da sua carreira trabalharam em estabelecimentos prisionais
masculinos e femininos comentaram repetidamente, em termos que parcialmente se cruzam com
estes, diferenças ligadas ao género. O seguinte comentário reflecte uma apreciação recorrente:
Os homens perdem a cabeça com mais facilidade, são mais violentos. Mas também dá-se um murro na mesa
e recuam, o assunto morre ali. As mulheres não. São mais chatas, mais problemáticas. Dão muito mais
trabalho porque não desistem, voltam à carga. É os filhos, a casa, as finanças, organizar tudo dá-lhes muitas
angústias cá dentro. Têm mais responsabilidades. Os homens têm menos tentáculos lá fora. Têm
preocupações diferentes. Só têm é receio de serem traídos ou abandonados pelas companheiras. O resto não
ligam. Se os filhos ficam com a família, ficam descansados, é raro falarem neles.
6. O assunto foi abundamente comentado no pavilhão e outras reclusas informaram-me
posteriormente que havia sido objecto de debate no programa televisivo «Casos de Polícia».
Ainda na posse de escassas informações, a Aurora narrava assim as suas suspeitas:
Ele tinha saído dois meses antes da cadeia e andava a roubar para o vício dele. A polícia levou-o a 1 de Maio
de 1996 e nunca mais o vi, nem eu nem ninguém. Ninguém sabe dele. Não aparece o registo na esquadra em
como entrou, mas as vizinhas viram. Uma ouviu um agente a dizer-lhe que ele ia, mas que tão depressa não
voltava, que se iam ver livres dele. E ninguém mais o viu. Se deram cabo dele, a lei manda prender, não
manda matar. O povo diz que ele deve estar num centro de recuperação em Espanha, que não pode
comunicar com a família. Eu só queria ir à esquadra. Os meus filhos, eu já não consigo telefonar, é a
menina, a que está com a vizinha, sempre a perguntar quando é que eu vou dormir com ela, eu e o pai. O
meu filho noutro dia disse-me: «A polícia levou o pai, se eu tivesse uma pistola dava à polícia». Já viu a
conversa da criança?
7. Recenseando a vasta bibliografia sobre a iniciação das mulheres nas drogas, Ansley Hamid
(1998) indica alguns estudos que reportam serem elas iniciadas neste consumo tanto por homens
como por mulheres. No entanto, salienta nessa literatura a predominância do tema da mulher
«desviada» pelo namorado ou marido, tornando-se em acréscimo dependente deste parceiro para
a obtenção de drogas (ibidem: 202-205). Se as reclusas em questão foram de facto assim iniciadas –
o que não significa que fossem vítimas indefesas às mãos dos parceiros masculinos –, elas
próprias investiram nos círculos do tráfico daqueles e financiavam o consumo de maneira
autónoma.
8. Na verdade, ao contrário do que daqui parece decorrer, quer o medo das consequências da
delação, quer o poder coercivo da interdição do chibanço estão longe de serem na cadeia
especificamente «ciganos». Este é, porém, assunto de um outro capítulo. Ainda a propósito deste
extracto, refiro um dado indicado por J. S. Moreira (1999: 71-73), referente a meados de 1998: se o
tráfico é de longe o principal motivo de reclusão da população cigana feminina, só uma ínfima
fracção deste universo consumia estupefacientes, divergindo bastante neste aspecto da
população reclusa cigana masculina.
114
informais, quer dependentes quer independentes, tal desregulação pode redundar numa
desprotecção crítica em caso de desemprego, doença e velhice (ver Capucha, 1998: 227).
19. É também de ver a este respeito o notável registo etnográfico efectuado por Kesha Fikes
(1998) das permanentes confrontações das peixeiras de origem cabo-verdiana com as forças
policiais.
20. A continuidade entre a economia formal e informal foi já assinalada por Manuel Villaverde
Cabral (1983) noutros contextos portugueses.
21. A pobreza pode além disso ser avaliada a partir de várias perspectivas: por referência a um
limiar de sobrevivência (pobreza absoluta); por referência às condições de vida «médias» de uma
dada sociedade (pobreza relativa), seja de ordem unidimensional, limitando-se às condições
materiais de existência, seja de ordem multidimensional, abrangendo também as privações de
ordem social e relacional; enfim, por referência à leitura que os próprios actores fazem da
situação em que se encontram (pobreza subjectiva) – ver Strobel (1996) e Townsend (1993). Os
dados oficiais decorrem normalmente de uma das duas primeiras perspectivas e restringem-se ao
plano material da pobreza.
22. Dados do Eurostat (ver relatório de 1998) relativos ao ano de 1995 apontavam Portugal como
o país da União Europeia com maior percentagem de pobres (24% dos portugueses viviam abaixo
do limiar de pobreza) e com maiores disparidades na distribuição de rendimentos. É também
significativo um outro dado, que traduz bem a fraqueza do Estado-providência no atenuamento
destas assimetrias através de esquemas de protecção social: em média, enquanto na Dinamarca
16% do rendimento resulta de transferências sociais, estas apenas representam 5% no
rendimento de um português.
23. O RMG não se encontrava ainda em vigor quando iniciei o trabalho de campo, pelo que não
pude apreciar os seus impactes nos rendimentos da população em estudo nem as suas possíveis
relações com a economia da droga.
24. Não se veja porém na sociedade-providência o cumprimento informal das ideias de cidadania
vigentes nos estados democráticos modernos – justamente as que também organizam os
mecanismos redistributivos do Estado-providência. Senão vejamos:
[A] sociedade-providência é avessa à igualdade ou, pelo menos, não distingue tão bem quanto o
Estado-providência entre desigualdades legítimas e ilegítimas; [...] é hostil à cidadania e aos
direitos porque as relações sociais de bem-estar são concretas, multiformes e assentes na
reciprocidade complexa de sequências de actos unilaterais de boa vontade; [...] cria dependências
e formas de controlo social que, podendo ser mais flexíveis e negociáveis, são porém mais
flagrantes; [...] tem tendência a criar rigidez espacial; [...] e os custos do bem-estar social que
proporciona recaem nas mulheres [...] (Santos: 1994: 48-49).
25. Ver em concreto Chaves (1999b) para os processos de estigmatização dos habitantes do Casal
Ventoso e ainda Fernandes (1998), Fernandes e Agra (1991) para zonas residenciais no Norte de
Portugal.
26. A clandestinidade dos imigrantes indocumentados torná-los-ia inacessíveis ao rastreio e
tratamento da tuberculose e como tal constitui-los-ia em veículos de propagação da doença,
especialmente nos bairros onde residem.
27. Por cair fora do âmbito deste trabalho, a ideia de semiperiferia não contempla, contudo, o
sentido suplementar de «intermediação» que B. de Sousa Santos (1993) lhe atribui para situar o
lugar de Portugal nos fluxos e trocas que atravessam o sistema mundial. Transpondo esta noção
para os fluxos ilegais; poder-se-ia considerar a economia da droga à escala mundial como um
sistema, hoje complexificado pelo esbatimento de anteriores clivagens entre países produtores e
países consumidores: os primeiros não só registam consumos crescentes, como os padrões deste
consumo se alteraram pela incorporação nas substâncias tradicionais da farmacopeia ocidental;
os segundos, com o advento de drogas sintéticas e a menor dependência daquelas matérias-
primas, tornam-se, cada vez mais, produtores (ver, por exemplo, Labrousse, 2000, e Grimal, 2000).
116
de uma cela. Salta de imediato uma do meu grupo e sai a correr chamar a guarda.
– O que é que terá acontecido?
– É aquelas duas outras vez. São duas irmãs que estão sempre a discutir por causa do
processo. Uma vez até já andaram à pancada. Tem de se ir lá antes que aconteça alguma
coisa. [Na sequência deste incidente as irmãs foram finalmente separadas, deixando
de partilhar a cela onde até então coabitavam.] [Caderno de campo.]
9 O tom desta vinheta de uma agitada manhã de Primavera no EPT ecoa algumas das
temáticas a desenvolver nos capítulos que se seguem. Nela insinuam-se, em uníssono,
as vicissitudes das relações de parentesco que atravessam o cárcere; as novas balizas
das práticas discursivas sobre a delação (o chibanço); uma aparente clivagem (Norte/Sul)
e a ausência de outras (neste caso, entre bairros, dada a proveniência variada das
amigas a cujo grupo me juntei); um vago sentido de «comunidade» (exalado aqui pela
ruidosa congratulação maciça pela libertação de uma reclusa, uma expressiva
manifestação colectiva que nunca havia presenciado durante o meu primeiro trabalho
de campo em Tires).
dos mesmos contextos nacionais abre uma maior margem de dúvida. Para enumerar
alguns de uma longa e (no aspecto que agora trato) redundante lista, Sommers, Baskin e
Fagan (1996: 980), por exemplo, traçando o perfil da população que estudaram em dois
bairros nova-iorquinos, indicam que 60% destas mulheres tinham um familiar preso;
Maher (1997: 30), numa caracterização de mesmo teor, regista por seu turno que 40%
das pessoas do universo em causa informaram ter irmãos a braços com a justiça penal e
¼ reportou familiares detidos num ou noutro momento; fugindo ao registo sociográfico,
Mike Davies descreve, para bairros de Los Angeles, a história da criminalização
sucessiva de camadas de uma comunidade e conclui, recorrendo com ironia ao
crescente termo-fétiche «gang»:
[...] «gang members», then «gang parents», followed by whole «gang families»,
«gang neighborhoods», and perhaps even a «gang generation» (1990: 284);
18 talvez por isso sejam mais do que «coincidências» factos que polvilham etnografias
realizadas nas inner-cities americanas, como o apontado por Bourgois quando relatava a
trajectória de vida de um dos seus personagens:
He spent a year and a half in prison, where by coincidence he served time [...] with
his uncle [...] (1995: 332).
19 Deixando a bibliografia anglo-saxónica sobre estes universos intra e extramuros, e
percorrendo a francesa, onde existe já um conjunto substancial de estudos prisionais,
não encontrei rasto de tais redes de parentesco e vizinhança, pelo que elas serão, muito
possivelmente, insignificantes. E, no entanto, pelo lado dos bairros precarizados, é
também em França que Duprez e Kokoreff (2000: 77) nos informam da crescente
repressão sobre eles exercida e sobre a territorialização da acção policial que contribui
para produzir, tal como em bairros portugueses, braçadas de arguidos articulados em
redes locais de interconhecimento (ver capítulo 3).
20 Para o português Casal Ventoso, Chaves assinala, a este propósito:
Ir de cana e ficar de cana foram já experiências vivenciadas por muitos habitantes e
que não se encontram afastadas do horizonte de possibilidades que se apresentam a
muitos outros. No momento em que esta pesquisa se desenrolava, por exemplo,
centenas de pessoas do Bairro encontravam-se detidas em estabelecimentos
prisionais (1999a: 122).4
21 Ora, assim como Chaves analisa em detalhe o modo como a repressão policial se tornou
constitutiva das dinâmicas de construção da comunidade (veja-se o caso,
luminosamente etnografado, do dar à fuga , uma prática colectiva de evitamento e
ludíbrio da acção das forças da ordem), poder-se-ia também examinar, mutatis mutandis,
o modo como a própria cana (e não só a focalização das polícias no bairro) se integra,
por sua vez, nessas dinâmicas. Um tal modo insinuar-se-á, de resto, num pequeno
apontamento de campo na mesma obra, que deixa antever, por exemplo, a intervenção
da prisão na reprodução e engendramento da trama de relações no bairro:
Um outro participante chegou e comentou: A Marcia estava branca, agora já tá boa, foi
lá a mãe buscá-la. Todos pareciam saber porque a Marcia estava branca. Resolvi
perguntar e disseram-me que o adolescente capturado, quando a mãe fora presa,
tinha estado uns meses em casa dela e era como se fossem irmãos (ibidem: 253).
22 Aventei acima duas possíveis ordens de razões para a relativa invisibilidade das redes
pré-prisionais nos estudos de prisões. Quanto à prisão, apesar dos crescentes indícios
em contrário que surgem na literatura sobre universos extracarcerais, não é
inteiramente de arredar a hipótese de a dimensão de tais redes não ter atingido, de
facto, um limiar crítico, suficiente para captar a atenção dos investigadores. É possível,
121
por um lado, que elas sejam ainda demasiado recentes, uma vez que parece ter sido
principalmente a partir do eixo criminal da droga que se organizaram os fenómenos de
repressão colectiva, dos quais, em parte, aquelas decorrem. Tanto assim é que dez anos
atrás, em Tires, eram salientes apenas numa fracção da população reclusa. Por outro
lado, não é de excluir que o seu peso seja menor noutros contextos prisionais do que o
assumido em contextos portugueses dada uma diferente intervenção das solidariedades
de proximidade, nomeadamente dos laços familiares, na economia da droga.
23 É porém de considerar igualmente uma segunda ordem de razões, sobretudo tendo em
conta que a repressão maciça dos crimes de droga, bem como os seus espúrios
dispositivos colectivizantes recuam, noutras paragens, pelo menos ao início da década
de 80. Trata-se dos enfoques habitualmente adoptados, que parecem impedir que a
análise da prisão e dos bairros comuniquem, surgindo uma e outros, aliás, praticamente
como categorias pré-recortadas. Nas bibliografias respectivamente produzidas sobre
estes dois terrenos, menciona-se, de forma lateral, uma mesma coisa: a existência de
parentes, vizinhos e amigos presos. Mas esta constatação permanece confinada às
margens de cada uma, prosseguindo ambas percursos paralelos, sem que examinem as
implicações analíticas para os respectivos campos deste facto convergente.
24 No caso dos estudos prisionais, apesar de há muito terem recolocado a prisão nos vastos
contextos que a englobam e moldam enquanto objecto, continuam todavia a não
questionar a aparente evidência dos seus contornos enquanto quadro de interacção
social, contornos estes que parecem dados à partida e de uma vez por todas. Vejamos,
muito breve e esquematicamente, as linhas de força desta evolução 5. Pode dizer-se que
a questão subjacente aos primeiros grandes debates teóricos sobre a prisão foi a de
saber se esta era produtora de conformidade ou reprodutora de desvio – um avatar, se
quisermos, do tema «prisão-escola do crime». É sob esta perspectiva que nos anos
quarenta começam a ganhar expressão as noções de «cultura prisional» e «sociedade
prisional» ou «sistema social recluso». É assim que Donald Clemmer (1940) começa por
colocar a «cultura penitenciária» em exérguo ao explanar o conceito de
«prisionização», um processo aculturativo que estabelece a proporcionalidade inversa
entre a adaptação à prisão e a readaptação ao exterior: quanto mais prolongado e
exclusivo for o contacto com os valores locais, valores esses entendidos como
criminogéneos, menor será a conformidade a normas e valores convencionais 6.
25 Subscrevendo esta teoria, Gresham Sykes e Sheldom Messinger (1960) tentarão, porém,
dar conta da própria existência de uma «cultura» e de uma «sociedade prisional», isto
é, da recorrência em várias populações reclusas de um mesmo código de valores («não
denunciar», «não fraquejar», «não perder a cabeça», «não roubar os colegas», ser-lhes
«leal», entre outros) e de um sistema social onde figura uma galeria de papéis definidos
em função da observância ou do afastamento desse código (o «fixe», o «gorila», o
«menina», o «certinho», etc.), algo já esboçado por Sykes (1958). À boa maneira
funcionalista, esta totalidade integrada que seria a «cultura prisional» e o sistema social
que ela regula ter-se-ia gerado na prisão em resposta a um leque de privações impostas
pela reclusão7. Tal subcultura teria assim uma origem endógena. Mas se desempenhava
uma função adaptativa na cadeia, ao promover vínculos ao grupo recluso alimentaria
da mesma feita valores criminogéneos e obstaria à reintegração social.
26 Um artigo de John Irwin e Donald Cressey (1962) viria a operar uma viragem nos
estudos prisionais. Segundo os autores, o sistema sócio-cultural dos prisioneiros não é
apenas um produto de condições internas e uma resposta a elas. Seria sobretudo
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segmentos entrançavam-se por sua vez com outros universos sociais, parte dos quais se
encontram, também, presos. Assim, estas redes de conhecimento pré-constituídas
começam por situar a prisão na continuidade e não na ruptura com o exterior. Mas a
prisão tornou-se um prolongamento do bairro na medida ainda em que o estigma que
outrora ela representava institui-se agora bem antes, a montante da reclusão. Ela vem
apenas condensar a estigmatização que se instalara já pela pertença a bairros e grupos
conotados com a droga e o tráfico. No passado, a inscrição espacial do estigma na prisão
– quem está preso delinquiu – assinalava uma marginalização pontual. Circunscrevia-
se, de certa forma, aos limites materiais e temporais da detenção e era possível ocultá-
lo após a libertação. Tratando-se de uma marginalização pontual, era também possível
resistir à identidade negativa que a reclusão impunha (ao atestar de uma condição
desviante e ao reduzir as prisioneiras a essa condição uniforme), sendo justamente um
tal ensejo que organizava as percepções e discursos sobre as co-reclusas.
31 De facto, a rejeição de uma identidade desviante ia de par com a desqualificação
daquelas, sobre as quais projectavam o seu próprio estigma. Todos os registos da vida
prisional eram apropriáveis para comunicar o distanciamento em relação às co-detidas,
desde as representações sobre os crimes, em que os alheios emanariam de uma
natureza delinquente e confirmá-la-iam, enquanto os próprios mais não revelariam do
que um acidente de percurso (um ponto a desenvolver no capítulo seguinte), até às
representações sobre a homossexualidade, hiperbolizada pelas constantes imputações
deprecatórias que então se entrecruzavam (ver Cunha, 1994: 144-146). Veja-se ainda,
entre outras, as representações sobre o pessoal prisional, onde a reprovação do seu
desempenho não traduzia a antológica oposição staff-prisioneiros, mas antes veiculava
a reprovação das co-reclusas, sendo mesmo indissociável desta: ou seja, o staff era
depreciado não por ser staff , mas por se prestar a atender presas intrinsecamente
viciosas e manipuladoras, desordeiras e não-merecedoras ou, como resumia uma
reclusa, esse tipo de gente (ibidem: 106-112). Percorra-se, enfim, as representações sobre a
amizade, a partir das quais se produziu um véu discursivo que ocultava as práticas de
solidariedade e de entreajuda, de apoio afectivo, de partilha de bens e confidências que
caracterizavam as díades de relações preferenciais. No léxico usado na prisão não
constavam, porém, os vocábulos «amiga» e «amizade». Para descrever tais relações
recorria-se a expressões como sou muito unida com, dou-me com, simpatizo com. Daí que a
invariável resposta negativa que obtinha com a genérica pergunta «Tem amigas?» fosse
dissonante da precisa nomeação a que procediam quando eu inquiria, mais
especificamente, «Quantas amigas tem?»13. Quando uma reclusa então me afirmava que
«Aqui não há amigas, há é boas companheiras. As amigas é lá fora», exprimia
eloquentemente a oposição intra/extramuros em que se ancorava esta representação
das relações na cadeia. Na verdade, esta distinção terminológica entre amigas e boas
companheiras parecia comunicar menos diferentes graus de proximidade, envolvimento
e identificação pessoal do que o facto de as «verdadeiras» relações serem situáveis
apenas fora do contexto prisional, já que, como as reclusas insistiam em apontar, a
prisão é um intervalo na vida; É um tempo perdido; ou, não é o mundo real. Por outro lado, o
velar da amizade era também coerente com as dinâmicas de autodemarcação face ao
conjunto abstracto das co-internadas, dinâmicas essas que levavam à proliferação de
fronteiras entre as reclusas. Hoje, o vocábulo amiga circula sem freios em Tires, não só
porque o dispositivo estigmatizante deixou de operar nos mesmos termos no interior
da própria categoria reclusa, como muitas amigas vêm também, de facto, lá de fora –
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assim como a prisão deixaria de ser, de certa forma, um intervalo na vida para passar a
ser uma das suas etapas.
32 Referi no capítulo 2 a inesperada facilidade com que se iniciara o contacto com as
reclusas no meu primeiro trabalho de campo. Com efeito, esta proximidade construiu-
se na razão inversa do distanciamento entre estas, do mesmo modo que a minha
exterioridade ao universo prisional resultava numa posição vantajosa. Depositária de
uma legitimidade que a prisão viera, no seu caso, pôr em causa, eu representava o elo
possível para a recuperação e certificação de uma identidade positiva periclitante, uma
recuperação que implicava, no mesmo movimento, a disjunção da categoria das co-
detidas. No presente, além de se ter cavado uma enorme distância sociológica entre
mim e a generalidade das reclusas, a sua estigmatização é bem mais profunda e menos
reversível. É possível que me vissem agora demasiado distante e fizessem prova de
realismo ao não aspirarem a uma relegitimação identitária através da aproximação a
mim. De facto, o estigma tem também hoje uma inscrição espacial, mas deixou de se
confinar aos muros da prisão para remontar ao bairro. A marginalização que ele
assinala é assim mais estrutural do que circunstancial. Talvez por isso a cadeia não seja
mais o palco que foi outrora das lutas simbólicas onde se encenava aquela resistência.
Em suma, se quisermos numa palavra caracterizar o passado e o presente, dir-se-ia que
correspondem respectivamente aos dois sentidos em que Goffman (1975) desdobrou a
noção de estigma: o que situa os indivíduos «desacreditáveis», cujo estigma é
dissimulável, manobrável e não imediatamente apreensível por outros, e aquele que
designa a condição dos «desacreditados», onde a diferença é já conhecida, atestada, e
quase inelutável.
33 Se a estigmatização é pré-carceral, por outro lado a prisão «banalizou-se» no horizonte
social imediato destas mulheres. Sabemos já que a maior parte tem vizinhos ou
familiares que estão ou estiveram presos, pelo que as reclusas se mostram cientes de
que à saída não se depararão com uma especial reprovação ou sobranceria. Rarefez-se
por conseguinte a preocupação em ocultar a detenção, que uma década atrás tanto
ensombrava a antevisão da libertação: cada uma fantasmava acerca da possibilidade,
então aliás assaz remota, de se cruzar no exterior com uma ex-detida e assim arriscar a
exposição do seu passado. Hoje, posto que muitas reclusas provêm dos mesmos bairros,
uma tal ocultação não seria mais exequível, mesmo que fosse tentada. Em segundo
lugar, os visitantes deslocam-se agora a Tires em conjunto, usufruindo da boleia de um
ou outro vizinho que vem visitar uma parente – e aproveita para visitar, da mesma
feita, uma vizinha presa. A administração do EPT procurou por isso disciplinar o regime
de visitas, reservando, por exemplo, os fins-de-semana para os familiares mais
próximos, mas teve de salvaguardar alguma flexibilidade na aplicação da regra aos
visitantes que vêm de longe todos juntos.
34 Mais do que banalizada, a prisão «normalizou-se». Quando ao fotografá-las procurava
evitar os seus rostos (para que, evidentemente, não fossem posteriormente
identificadas e porque me recordava das costas que se voltavam e das caras que se
cobriam quando algumas equipas de reportagem se deslocaram no passado a este
estabelecimento prisional), com frequência as detidas insistiam, ao contrário, para que
eu as captasse de frente, aprontando para o efeito a pose e o devido sorriso. Uma que
ainda não conhecia pediu-me um retrato, dizendo que já tinha fotografias em todas as
prisões, onde tinha estado enquanto presa ou enquanto visitante, e a esta colecção
faltava a de Tires. Uma colega que ouvira o pedido acercou-se por sua vez:
126
Ai tem fotos da cadeia? Eu também já tenho muitas. Doutras cadeias. Tenho uma
que gosto muito, que é com o meu irmão em Coimbra. Mas de Tires ainda não tenho
nenhuma...
35 As posições neste circuito prisional que aqui entrevemos são, aliás, deslizantes, e os
estatutos de preso e visitante revelam-se muitas vezes intermutáveis. Foi assim que
uma conversa com duas portuenses dos bairros do Cerco e do Lagarteiro, unidas por
parentes em comum, foi interrompida pela saudação efusiva de uma delas a uma
reclusa lisboeta: haviam travado conhecimento no Hospital Prisional de Caxias, onde
uma visitara a mãe e a outra, a irmã; tiveram depois ocasião de renovar esse contacto,
já não na qualidade de visitantes mas na de presas preventivas, na cadeia de Custóias; e,
enfim, encontravam-se de novo, como condenadas, em Tires. É também a
«normalidade» da cadeia que um membro do staff pretendia significar quando
comentava a ambiência das visitas e especialmente a descontracção das crianças:
Os miúdos crescem no meio das rusgas, da polícia, têm muita gente da família presa.
Estão habituados às visitas às cadeias. Quando vêm é uma romaria, é uma festa. Não
estão nem por sombras inibidos.
36 Não foi assim com o filho da Palmira, uma cigana que habitava nos arredores de Lisboa.
Para ele a cadeia não era ainda, neste sentido, «normal». O trabalho de normalização
seria levado a cabo na própria prisão pela mãe, com a colaboração de uma guarda:
O meu filho tinha oito anos quando assistiu a uma rusga que o impressionou muito.
Era ele aos berros, aos berros... Há pouco tempo escreveu-me uma carta com um
sobrescrito lá dentro para a subchefe, que até chorou. «Quando é que a minha mãe
vem de precária?» Ele tinha visto um filme na televisão em que as presas estavam
acorrentadas nos pés. Pensou que a mãe também estava assim e fartava-se de
chorar na visita. Então uma guarda veio trazê-lo à cela para lhe mostrar que não era
assim. Eu disse-lhe que nós não podíamos sair daqui, mas no resto é tudo igual a lá
fora. «A cadeia é como lá fora, meu filho». Sabe, é que ao domingo há aí uns guardas
que tratam mal as visitas e o meu filho pensava que tratavam assim a mãe, que
também eram maus para mim. Eu depois disse-lhe que não, que aqui são só guardas
mulheres. Os outros só vêm trazer as visitas [da portaria] ao pavilhão.
37 A normalização da cadeia inicia-se assim bastante cedo, dentro e fora dela. Em todo o
caso, para os adultos a prisão é, como vimos, uma realidade muito presente a montante
da detenção e encontra-se já incorporada no quotidiano pré-prisional. Assim
banalizada e normalizada, a prisão viu erodir-se a fronteira simbólica que outrora
representava.
desta noção), que as torna menos visíveis na disputa pelos recursos carcerais, ou de um
excesso de visibilidade resultante de uma estridência exaltada e agressiva. Uma técnica
do EPT contrastou-me, por um lado, homicidas e grandes traficantes (esta última categoria
assaz relativa em Tires) e, por outro lado, consumidoras, uma oposição que na verdade
recobria uma divisão parcelar entre reclusas mais e menos desmunidas, e uma outra
entre mais velhas e mais novas, delimitando várias zonas de intersecção:
[As primeiras – que esta psicóloga denomina, também, de psicopatas] 14 são mais
frias afectivamente. São as que têm melhor comportamento, não arranjam
problemas. São elas que conseguem os melhores trabalhos: trabalham na messe das
guardas, fazem-lhes a comida, os recados... São as que têm melhores informações
para precárias e condicionais. São estratégicas, sabem cultivar bons
relacionamentos. As consumidoras nunca conseguem condicionais. São as de quem
as guardas mais se queixam. São muito emocionais, muito respondonas, fazem
distúrbios, partem vidros, são malcriadas. Também são muito mais punidas. São
muito problemáticas. E é claro que nunca conseguem bons trabalhos.
42 Segundo Marchetti, a total ausência de capitais faria do pobre o recluso «ideal-típico»,
o «objecto perfeito» da instituição total:
[I]l est d’une part dépouillé à l’extrême de son identité antérieur (il ne sera plus, par
exemple, qu’un « délit sexuel » lá où d’autres seront encore identifiés à leur ex-
profession) et d’autre part privé de tous les objets, peut-être superflus mais par
ailleurs individualisants et valorisants, qu’on peut acheter intra-muros. Entre
l’ordre rigoureux de la discipline pénitentiaire et sa personne, rien ne vient
s’interposer (1997: 193).
43 Só que, se a pobreza das reclusas de Tires converge no plano económico – e circum-
económico, se atendermos a que os capitais escolares são nele reconvertíveis – com a
daqueles reclusos franceses, diverge dela num aspecto fundamental. Entre a ordem
penitenciária e a pessoa interpõe-se todo um filtro, feito de parentes, amigos e vizinhos
que continuam a escorar a identidade anterior. Além disso, a extensão e as
concomitantes implicações das redes de interconhecimento na vivência prisional fazem
mais do que tornar estas detidas em «objectos imperfeitos» da instituição total. Convida
a repensar o próprio estatuto da prisão enquanto «instituição total» – o que se tentará
fazer adiante. Por outro lado, a questão que agora se examina entrelaça-se de igual
modo com a do pauperismo, mas por uma via diversa da que é avançada, a um dado
momento, por Marchetti:
Le détenu déjà très défavorisé en amont de la prison sera d’autant plus démuni face
au dénuement des premiers mois de détention qu’il était déjà désinséré socialement
(et familialement) et qu’il ne « bénéficiera » pas de solidarité familiale (1997: 198).
44 Como vimos, a vida durante a reclusão torna-se materialmente mais austera não porque
parentes, amigos e vizinhos se encontravam já afastados no exterior, mas porque se
encontram, também eles, no interior.
45 Em segundo lugar, a reclusão pode, directa ou indirectamente, ser ela própria
pauperizante por processos que não os referidos por Marchetti (na sua maioria
intracarcerais). A Augusta e a filha, enquanto detidas em Tires, viram as respectivas
barracas demolidas pela câmara municipal e, ao invés de outras pessoas do bairro, não
foram contempladas no plano de realojamento. Procederam a partir do EPT a inúmeros
pedidos e exposições, todos eles infrutíferos. Dizia uma técnica do estabelecimento que:
Estão sem nada. [...]. A Câmara não alegou de maneira explícita que fosse por esta
razão, mas é mais que provável que seja porque estão acusadas de tráfico. Há muitos
casos assim com várias câmaras.
129
[...] E agora os meus filhos vão sair de cabeça virada. E depois? Toda a vida se viveu
sem droga. E agora foi esta maldita droga... Eu não digo que não vendi. Vendi,
menina, 2 ou 3 meses vendi. A droga é uma ilusão. Ganha-se o dinheiro, mas o Diabo
leva logo. Cá está, é ganhado pelo Diabo, não é ganhado por Deus. Porque o dinheiro
vem, vai logo. O dinheiro da droga é dinheiro do Diabo, o Diabo o ganha, o Diabo o
leva. Eu estou a voltar aos tempos antigos. E toda a gente do Lagarteiro que está
aqui presa sabe que eu fui sempre contra a droga.
49 A Zulmira, recorde-se, internara o filho toxicodependente numa clínica com os
proventos do tráfico. Depois de ser presa este recaíra, pelo que, vendo-se sem fundos, a
Zulmira pondera agora a hipótese de denunciá-lo por tráfico e furto para que este se
recupere na prisão (ver infra : 229-2331). Também a Rosário, com dois filhos
consumidores que estão a ficar limpos, me assegurava:
Se o meu filho não fosse preso, ele tinha morrido. Bem dizia a minha mãe: «Deixa
que o teu filho vá preso, senão vais chorar a morte dele.» Pois olhe que é verdade. E
ele era tão sequinho, não comia nada.
50 Outras reclusas, aliás, indignando-se com o que consideraram ser uma insuficiente
produção de prova contra si em tribunal, indagam-se se não teriam sido condenadas
para a cura. Foi o caso da Aurora, que assim se manifestou na sequência de uma outra
perplexidade:
Cortaram-me a precária. Toda a gente lá em baixo está parva, até as guardas. A
subchefe, que é subchefe, também não percebe: «Ó Aurora, não esperava isto». Eu
não quis ir para [a cadeia de] Felgueiras porque lá não há trabalho, mas agora estou
arrependida. As de Lisboa vão a casa. Eu tenho bom comportamento e não vou a
casa por ser do Norte? Não vou fugir, quero é ir ver os meus filhos e tratar do caso
do meu marido. Também não percebo porque é que vim presa. Não tinha nada
comigo, mandei tudo pr’ó telhado. Sempre neguei que a droga era minha. Não sei
por que é que me puseram aqui. P’rá cura não foi, porque eu não tava metida na
droga. Eu tenho um filho que consumia, mas foi preso e já se curou. Agora eu, não
sou toxicodependente.
51 Esta noção de que a prisão se destinaria ao processamento da toxicodependência
entronca, de facto, com o contraste social relevado por Artur Valentim entre dois
dispositivos de controlo da droga: o policial-judiciário, que absorve essencialmente
estratos mais baixos, e o dispositivo médico-psicológico, manejado ao invés por utentes
de um leque mais variado de estratos sociais:
[Os] dados sobre a desqualificação social da população que se relaciona com a Droga
(nomeadamente a classificada como consumidora) apanhada nas malhas da justiça
não se confirmam no dispositivo médico [...]. Este contraste social entre o
dispositivo policial-judiciário e o dispositivo médico do sistema de controlo da
Droga não pode deixar de interrogar os processos sociais que conduzem a que o
primeiro se dirija às classes baixas e o segundo seja apropriado por um conjunto
socialmente mais diversificado (1997: 89-90).
52 Ora, tal como a prisão foi apropriada para preencher funções que, no caso de segmentos
sociais mais altos, são desempenhadas por outras instâncias, viria também a incorporar
papéis sociais extraprisionais. Percorremos já alguns dos efeitos da detenção conjunta
de parentes, amigos e vizinhos durante o período da reclusão. No início desta, os vácuos
criados pela prisão no bairro poder-se-ão repercutir no julgamento. Como não deixam
ninguém lá fora para testemunhar em seu favor, as reclusas preventivas começam a
arrolar o próprio staff do EPT para que leve a cabo essa função. É assim que, para além
de solicitarem o médico para atestar de uma eventual toxicodependência a alegar como
atenuante da pena, indicam guardas e técnicos como testemunhas abonatórias (por
131
exemplo, para atestar do seu bom comportamento). Por isso, alguns dos membros do
pessoal penitenciário manifestaram-me a sua apreensão quanto à possibilidade de um
tal papel, ao qual não se puderam furtar uma vez convocados pelo tribunal, vir a
conflituar com o que terão de desempenhar depois, na cadeia, com as mesmas reclusas.
Deste modo, a prisão não só integra fisicamente séries de segmentos do bairro, como
passou a incorporar papéis que claramente incumbiam – e por definição incumbem – ao
mundo exterior, gerando-se assim nela uma insólita ambiguidade. De resto, é mais uma
vez a fronteira intra/extramuros que se transpõe para o próprio interior da cadeia e se
recapitula nele quando muitos dos visitantes que cumprem os horários de visita não
rumam já do mundo exterior. Trata-se das reclusas que vão visitar parentes e vizinhas
cumprindo pena no EPT, mas em outros pavilhões que não o seu, e com quem não têm
outras ocasiões de estarem juntas. Na maioria dos casos tal sucede porque, embora cada
pavilhão reúna sempre familiares e amigas, as malhas de interconhecimento são
demasiado complexas para serem integralmente acomodáveis por qualquer
distribuição logística. Daí que os domingos, por exemplo, misturem visitantes de fora e
de dentro da prisão, e que as novidades circulem com especial extensão e rapidez.
53 Por último, em etapas finais da reclusão, a rarefacção da retaguarda externa atinge as
reclusas por uma outra via. Por exemplo, um dos critérios para a concessão da
liberdade condicional é o da existência de apoio exterior, nomeadamente familiar.
Encarceradas fileiras sucessivas de parentes, poucos restarão para figurar, nesta
função, nos relatórios do Instituto de Reinserção Social (IRS) que contribui com um
parecer para aquela decisão. É justamente a este propósito que guardas e reclusas
comentaram, em várias ocasiões, que às vezes era melhor estar sozinho/a [ i. e., sem
familiares na cadeia].
54 Um outro vácuo produzido pelos processos de encarceramento colectivo repercute-se
na guarda das crianças que ficaram no exterior. Há uma década, raras eram aquelas que
eram encaminhadas para as instituições estatais de acolhimento de menores ou para as
Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) quando as mães eram presas.
Ficavam normalmente à guarda de parentes, amigos ou vizinhos. Estes mecanismos da
sociedade-providência não se dissolveram e permanecem operantes. Mas, precisamente
porque são hoje mais solicitados do que nunca, a sobrecarga que agora os afecta faz
com que o Estado e as IPSS sejam chamados a intervir de maneira muito mais frequente
e sistemática. Assim o é pela conjugação dos efeitos do alongamento das penas
cumpridas pelas actuais reclusas (um alongamento que estende a duração daquele
acolhimento por parte dos próximos no exterior) com os efeitos da detenção de muitas
das pessoas disponíveis para assegurar essa tutela provisória. Desta forma, uma avó
poderá ver-se a braços, simultânea ou cumulativamente, com vários netos, à medida
que filhos, genros e noras são ou vão sendo encarcerados; uma tia com vários sobrinhos
e afilhados, que se acrescentam aos seus próprios filhos; e uma vizinha com uma, duas,
e às vezes três filhos de amigas do bairro, entre alguns dos arranjos constatados. Em
consequência, as crianças entram num instável e imprevisível circuito: além de os
irmãos serem separados e distribuídos pela parentela e vizinhança, vão transitando
sucessivamente de tios para avós, para madrinhas, para vizinhos – e para o acolhimento
institucional, sendo várias as combinações possíveis deste circuito –, quando outras
crianças ainda vão chegando ou quando os encargos que implicam se tornam difíceis de
suportar15. Muitas delas acabarão, de facto, por desembocar em instituições. Quer dizer
que, a despeito dos incipientes remendos com que o staff procura colmatar tais brechas,
132
com a mão [levanta a mão] e eu pensava que ela me estava a levantar o braço... Ó:
até ferrei-a toda, dei-lhe uma tareia que ela ainda hoje fala nisso. Respeito, gosto
das coisas muito direitas, porque eu também respeito. Eles todos me escrevem: «Ó
minha santa mãe, não chore» [Entretanto a filha, também presa, chega à cela.
Apresento-me e a mãe diz-lhe de imediato: Anda Rosa, cumprimenta a menina.
Depois comenta para mim, na presença da filha:] Desculpe, hoje só querem é
brincadeira, mas ela tem-me respeito. Lá por estar presa não me havia de ter
respeito? Eu cá digo-lhe «Menina, então, como é?» Ela agora está de castigo
[administrativo] porque tirou uma cadeira do refeitório. As outras brincaram com
ela: «Rosa, como é? Agora está aqui a tua mãe, vê lá. Olhó respeitinho». Deram-lhe o
castigo de não ir ao refeitório, mas não está bem. Há aí outras que partem vidros e
ela só tirou a cadeira. Eu sou muito dura. Trabalho no café e não gosto de pessoas
porcas, digo o que tenho a dizer. E se eu vejo que estão a dizer mal da menina e
passado um bocado já estão agarradas a ela, não gosto. Tenho o meu feitio. [Mostra-
me em seguida a fotografia de uma criança:] O tribunal deu-ma a mim para a criar
porque a mãe faltou ao respeito ao marido – o meu filho. Quando foi do divórcio
deles o tribunal deu-ma a mim para criar, é porque eu tinha bom comportamento,
vê?
57 Por outro lado, a desqualificação das co-reclusas deixou de decorrer de lutas simbólicas
cujas armas eram internas, feitas de materiais prisionais (a homossexualidade, o crime
porque se foi condenado), para passar a assentar em critérios exógenos. Entre outros, o
respeito, o modo como os filhos tratam os pais, e como os pais tratam os filhos. Donde
comentários depreciativos como o da Alda, uma reclusa condenada por tráfico, que
numa outra ocasião já se me mostrara chocada pelo facto de uma das arguidas do
processo colectivo em que se incluía, sua cunhada, não ter ilibado a própria mãe.
Comentava agora uma situação semelhante:
Olá avó! [cumprimenta uma senhora idosa que passa, sem se deter. Não é, na
verdade, sua avó, mas uma reclusa que a Alda conhecera em Custóias. Depois, para
mim:] As filhas foram umas vacas para ela. Não assumiram o crime. Já viu? A senhora com
63 anos e não assumem por uma mãe? Não lhe têm respeito nenhum. Não é por estarem na
cadeia que lhe deviam perder o respeito. Também tem cá o neto, coitada. A avó é que lhe vale
porque a mãe é uma cabra para a criança. Está sempre a bater-lhe. A avó é que interfere,
ainda bem.
58 A crónica maledicente passa também pela critica ao despudor da exposição pública de
questiúnculas que deveriam ser resolvidas em privado. Tal crítica é especialmente
acerada da parte da minoria de reclusas que não têm parentes consigo e que não
provêm do universo dos bairros:
Faz-me cá uma confusão ver as pessoas de família lavarem a roupa suja à frente de
toda a gente... Aquela privacidade das coisas de família, aquele conceito de família
que eu tenho, às vezes parece que não existe. É cada zaragata... As filhas não têm
respeito às mães. As mães bem tentam controlar as relações das filhas com as outras
presas, mas às vezes não têm autoridade.
É só cenas. Fartam-se de lavar aqui a roupa suja. Vem tudo ao de cima. Coisas
íntimas da família, coisas desde a infância... Parece que já não há respeito.
59 Na verdade não é inteiramente assim. A vívida noção de que as tensões e conflitos
familiares relevam da ordem privada foi precisamente uma das razões das minhas
iniciais dificuldades de aproximação às reclusas. Ao contrário do que sucedia no
passado, esta esfera privada não permanece mais no mundo exterior. Permeia agora a
vida prisional e por isso ver-se-á inevitavelmente exposta num universo colectivo onde,
por definição, a privacidade é mínima. Mas se as querelas familiares se desvelam, por
vezes sem rebuço, perante conhecidos e vizinhos, cuidar-se-á de que sejam mantidas
opacas face a um estranho, neste caso eu. Dadas as intrincadas redes de
134
precárias e a condicional cortadas do que encontrar-[se] lá com uma vizinha e uma cunhada que
não suport[a].
62 Mas a recente emergência de um vasto entrançado de relações de parentesco e
vizinhança modificou profundamente a própria vivência do cárcere. Não só as
solidariedades, as tensões e os conflitos se constroem agora numa outra base, como o
mundo exterior participa extensiva e permanentemente nesta construção. Veja-se a
natureza de um tipo recorrente de conflitos. Duas reclusas haviam sido colocadas, a seu
pedido, numa cela comum, uma vez que eram anteriormente vizinhas de bairro. Nesse
mesmo bairro, a irmã de uma delas começa a viver maritalmente com o marido da
outra, de quem acaba por gerar um filho. A coabitação entre elas torna-se tão
problemática que se impõe a sua separação em diferentes celas. Casos como este, em
que parentes em liberdade iniciam relacionamentos amorosos com maridos ou
companheiros de amigas e vizinhas, pontuam o quotidiano prisional e fornecem
inesgotáveis temas de conversa. O estrépito é porém maior quando a nova companheira
do marido é por sua vez presa e desagua, também, na prisão. Nesse caso, a prudência
aprendida pelas guardas recomenda-lhes que as duas antagonistas sejam alojadas não
só em celas separadas, como em diferentes pavilhões. Como cada uma tem parentes no
estabelecimento e como, para mais, as respectivas famílias se conhecem entre si
extramuros, pode-se de novo entrever a delicadeza necessária para abordar nas minhas
conversas iniciais com as reclusas qualquer assunto que envolvesse directa ou
indirectamente as relações internas – e principalmente a questão, a princípio bastante
intrigante, das constantes transferências de cela ou de pavilhão. Como atrás referi, a
«roupa da casa», isto é, o que releva da ordem privada, pode ainda lavar-se na presença
de vizinhos, mas não perante um desconhecido, alguém que vem de fora. Todavia, nem
sempre estas transferências internas, quer a elas se proceda ad hoc ou preventivamente,
são suficientes para apaziguar o ambiente. Por exemplo, um temerário marido de uma
reclusa pode empreender visitar a sua actual ligação paralela, recluída num outro
pavilhão, e a prima dessa sucessora, recém-chegada ao pavilhão da «legítima» e estando
portanto mais a jeito, torna-se no objecto da ira desta última 16. Ocorre também que as
partes em contenda, permanecendo vigilantes, procurem através das respectivas redes
manter-se inteiradas acerca da correspondência recebida/enviada pela rival, não vá
nela contar-se uma carta de/para o parceiro disputado. De resto, além de se manterem
assim a par de tais eventos, não é particularmente difícil aceder ao próprio conteúdo da
correspondência. Dada a iliteracia que afecta a população prisional, recorre-se com
frequência a co-reclusas para a redacção ou leitura de uma carta, logo é menor o sigilo
que a envolve e maior a probabilidade da sua divulgação (aliás, casos houve entre as
reclusas mais jovens em que as «escrivãs» passaram elas mesmas a escrever por sua
conta aos correspondentes das colegas, o que gerou alguns atritos).
63 Muitas das tensões carcerais encontram-se assim incluídas a priori na esfera privada e
têm uma origem extraprisional. Por vezes, elas vão entrelaçar-se com tensões relativas
ao processo judicial e são por elas compactadas – quando não se reforçam mutuamente.
Em todo o caso, a prisão é sobretudo a caixa de ressonância de eventos e tramas que se
produzem alhures, antes e para lá dela:
A Rosário está no P2 com a cunhada. Tem a sogra no P3 e a irmã no P1. Um dos seus
filhos está preso em Braga, os mais novos ficaram com a mãe. Fala baixo e vai
lançando olhares em redor, não vá a cunhada aparecer no bar, onde conversamos.
As relações com a família do marido vão, de facto, de mal a pior. Haviam começado
a degradar-se quando a Rosário, já presa, soube que o marido a tinha deixado e se
136
estabelecera com outra. Ele viria, aliás, a morrer às mãos do companheiro desta,
que não suportou a afronta. Mas a revolta da Rosário acicatar-se-ia e generalizar-se-
ia aos familiares por aliança quando a sua irmã se viu envolvida num processo
colectivo que, julga ela, teria aqueles por objecto principal, e entre os quais se conta
a sogra. Assim, segundo a Rosário, a irmã teria vindo parar a Tires por arrastamento
e, embora a sua sorte não esteja ainda decidida, arrisca-se a ser condenada à conta
da sogra. A Rosário, essa, foi já condenada ao abrigo de um outro processo. [Caderno
de campo.]
64 Eis um extracto da uma das primeiras conversas que tivera, tempos antes, com a
Rosário, quando eu ainda pensava que o facto de ter acabado de me encontrar com uma
familiar sua, num outro pavilhão, seria um bom cartão de visita:
– [...] Falei há bocado com uma pessoa que tem o mesmo apelido da Rosário, a
Ludovina Faria. Por acaso não é sua parente?
– Não, não me é nada a mim. O meu homem era filho dela, mas como morreu já não quero
nada com ela.
– Ah, então era sua sogra...
– Era, agora já não é.
– Estou a perceber. Então não se vêem muito cá dentro. Quer dizer, ela também está
noutro pavilhão...
– Pois. Eu não quero nada com ela porque a primeira vez que eu vim presa, o meu homem
estava lá fora com os meninos e ele abandonou tudo, abandonou os filhos e fugiu com uma
amante. E o homem dessa cigana foi o que matou o meu, com um tiro de caçadeira. Um
homem novo, tinha 33 anos. Vai fazer agora um ano.
– Mas a sua sogra também deve ter ficado muito abalada...
– [silêncio]
– E ela também não tinha nada a ver...
– Não. [mal-entendido:] E ela é de outro processo, não é do meu. Foi tudo dentro. A minha
irmã também foi assim. Foi na rusga dos Farias que a minha irmã veio dentro. Sinto-me
muito chocada com a minha irmã vir presa. Ela agora no julgamento tem de dizer de quem
era aquilo [a droga]...
– Então se calhar dá-se mais com a sua cunhada, que está aqui.
– Dou.
– Pelo menos tem a sua cunhada do seu lado...
– Está. Do meu lado não está nada. Está do lado dela. O meu homem podia deixar-me lá fora.
Agora presa e abandonar-me e aos meus filhos, não. Não sou mais amiga dela do que doutra.
Também não estou ressentida com ela porque, pronto, sempre é minha cunhada. Ela tem o
processo dela. Eu tive o meu. O meu homem consumia. E ia comprar para o consumo dele.
Um dia foi, veio uma rusga e viram umas pistolas. Eu disse que eram dele, e eram, mas como
ele andava fugido vim eu. [Esta última frase é proferida sem ponta de ironia, antes
com a naturalidade de quem comenta o óbvio. Desconheço as exactas causas desta
detenção, mas a leitura que a Rosário faz delas denota uma interiorização aguda – e
portanto uma «normalização» – dos dispositivos colectivizantes da justiça. Nesse
sentido, restou-lhe resignar-se ao que seria, tão-só, má sorte].
O chibanço e a receptação
65 Vimos já que é à luz da actual proximidade entre as reclusas – não apenas de ordem
sociológica, penal e simbólica, mas ainda a muito tangível proximidade feita de redes de
interconhecimento e sobretudo de relações de parentesco – que poderão ser entendidas
muitas das minhas dificuldades de aproximação ao universo carceral, contrastantes,
neste aspecto, com a rápida inserção que se me havia proporcionado dez anos antes. E
se a discrição é de rigor em íntimas questões de família, o silêncio é vital num outro
registo. Trata-se das paradas jogadas no domínio penal, também ele pré ou
137
extraprisional. Ora, a mesma proximidade entre as reclusas que definirá novos sentidos
e valores na cadeia, como o sentido de comunidade e o valor da solidariedade (a tratar
no capítulo seguinte), comporta no reverso um considerável potencial de tensão e
conflito. Daí decorrem assim, de igual modo, novas clivagens e dissensões, que vieram
por outras vias – exteriores à prisão – substituir-se às fronteiras internas vigorando no
passado. Dizem elas respeito, hoje, a crimes como a receptação e a comportamentos
como a delação.
66 Para ter uma noção, a contrario, do peso que a injunção não chibar (não denunciar) tem
no presente, bastaria referir que há dois tipos de reclusas que suscitam uma tal
animosidade entre as colegas que têm de ser objecto de uma protecção especial por
parte do pessoal de vigilância: são as condenadas por crimes que envolvem crianças
(maus-tratos e infanticídio), e as que colaboraram nas investigações policiais (as
informadoras). São comuns as concitações entre irmãos, cunhados, primos (i. e., num
círculo familiar que poderá ser bastante largo), ou mesmo vizinhos, de maneira a que
um deles assuma a responsabilidade pelo crime e os restantes acusados possam sair
(quando presos preventivamente) ou permanecer em liberdade. À parte a real
responsabilidade de cada um dos envolvidos num mesmo processo judicial, entram em
linha de conta as possíveis atenuantes de uma muito provável condenação. Muitas
vezes os (auto) sacrificados são por conseguinte aqueles que se encontram na posição
mais vantajosa para beneficiar de uma eventual pena de prisão mais reduzida ou, até,
de uma pena suspensa, como toxicodependentes, jovens e «delinquentes primários»
(sem antecedentes criminais)17. Parte dessas negociações circulam quotidianamente na
prisão. É imperativo, então, que uma detida mantenha o silêncio durante as várias
etapas do processo. Nem sempre tal acontece, nomeadamente quando não se vê
suficientemente apoiada por visitas, cartas e encomendas. «Deixaram-me cair» ou «Estão-
me a deixar cair» é, por conseguinte, um anúncio que veicula em simultâneo uma queixa
e uma ameaça, deixado para os devidos efeitos pairar nos canais do falatório que
rapidamente o farão chegar aos destinatários através das redes de interconhecimento
que ligam a cadeia ao exterior.
67 No entanto, o imperativo da não-delação é hoje muito mais veemente do que há uma
década. Nessa altura, o conteúdo da noção de chiba (um termo, de resto, que então
muitas detidas desconheciam antes da reclusão) era lato e ambíguo, podendo designar
desde a denúncia de actividades ilícitas desenvolvidas na cadeia ou de factos cuja
revelação ao staff era susceptível de causar dano, até à simples inconfidência de
assuntos de natureza pessoal respeitantes às co-reclusas – vulgo, o mexerico e a
bisbilhotice. Por outro lado, um comportamento que constituía objectivamente uma
denúncia nem sempre era qualificado como tal: por exemplo, uma líder não chibava, ia
dizer18. Em suma, o seu uso era tão banal, circunstancial e ambíguo que perdia a sua
força coerciva. E, com efeito, o staff facilmente se inteirava sobre «quem», «como» e
«quando» participava nas ilegalidades prisionais, e talvez por isso nunca lhe tivesse
ouvido as actuais queixas recorrentes acerca da dificuldade em proceder a um
apuramento dessa ordem. No presente, guardas e técnicos referir-se-ão à forte cultura da
droga para explicar, por exemplo, a opção de uma reclusa por uma dura punição em vez
de denunciar quem providenciou uma determinada entrada de narcóticos no
estabelecimento, ou quem lhe comprou uns brincos de ouro – mas já poderá contar,
com naturalidade, que roubou um fio a outra para comprar droga.
138
sabe quem são os traficantes, por que não os denuncia?», um dos homens que mais
se assume frontalmente contra o tráfico, estabelecendo por vezes conflitos verbais
com traficantes, respondeu simplesmente, parecendo ter ficado espantado com a
questão: «Mas acha-me com cara de chibo?» (ibidem: 273).
71 Assim, a execração do chibanço não emana de um qualquer «código desviante», mas de
códigos vicinais de solidariedade. E também desta forma, o imperativo da não delação
impõe-se na prisão não só pela negativa – pelo medo, pelo receio de eventuais
retaliações –, mas também pela positiva, na medida em que é um valor prezado,
prestigiando-se quem a ele se mantém conforme. No caso de reclusas mais jovens, ele é
até cultivado por si mesmo, independentemente de quem, em concreto, encobre, e
ostentarão orgulhosas a coragem demonstrada ao não terem chibado ninguém, resistindo
a todas as pressões, mesmo que sofram agora as consequências dessa bravura – ou dessa
bravata – com uma pena de prisão, ou com uma pena de prisão mais longa.
72 Contudo, dados os elos de parentesco que unem as reclusas e definem, na cadeia, uma
multiplicidade de constelações familiares, geram-se complexas situações de
ambivalência face aos valores de solidariedade e não delação. Quando se encontram
envolvidos, de igual modo, parentes próximos, tais valores entram inevitavelmente
numa relação de tensão posto que se circunscrevem ambos no mesmo círculo familiar.
É assim que uma reclusa, cuja filha e sogra acabavam de cumprir a pena e de abandonar
Tires, se mostrava dividida entre o orgulho que manifestamente sentia pelo facto de a
filha não ter denunciado a verdadeira responsável pela posse da droga, e um larvar
ressentimento para com a irmã, que a não assumiu e assim estivera na origem da
detenção da rapariga:
A minha filha foi apanhada com 54 palhinhas que não eram dela, eram da minha
irmã. A minha irmã chegou, viu a polícia e pensou que a polícia tava à espera dela.
Então deu à miúda para trazer depois, mas a miúda foi apanhada. A miúda tem
fibra, não se chibou, nunca disse de quem era aquilo. Só que também vir de cana à
conta da minha irmã... Eu compreendo que ela não sabia que a miúda ia ser
apanhada. Mas tou chateada, não sei, ela podia ter assumido quando viu o que
aconteceu. Ou pensou que a miúda se calhar se safava... não sei, ela podia ter dito.
Acho que ela devia dizer que aquilo era dela.
73 Além de se disporem em permanente tensão e ambivalência, a protecção dos próximos
e a condenação do chibanço são com frequência valores claramente conflituantes. Como
tal, são constantemente objecto de reavaliações contextuais e reaferições casuísticas,
tanto mais que o que se encontra em jogo é decisivo, podendo levar a inflexões de peso
na vida de cada um e dos seus familiares, dentro ou fora da cadeia. Aliás, quando
comparadas à actual natureza destas paradas, pareceriam hoje inócuas as prevaricações
do passado em torno do chibanço prisional. Por isso, mais do que em qualquer outra
arena social onde, na verdade, representações e valores são indissociáveis da acção e se
constroem e reconstroem na prática, as equações a que se procede em Tires configuram
cenários de grande indeterminação. Dada a magnitude das consequências de cada
ponderação, não são, assim, surpreendentes – serão antes consubstanciais àquela
indeterminação – os conflitos que pontuam a rotina prisional e cuja natureza tanto
choca a minoria de reclusas que se situa fora do eixo criminal da droga. Eis um deles:
74 A Inocência tem uma filha no exterior que trafica. Esta filha acaba também, mais tarde,
por ser presa preventivamente, porém em companhia de uma tia, a Paulina, que por seu
turno, como me atestaram duas reclusas do seu bairro, nunca vendeu um grama. É mesmo
uma resistente militante que sempre havia manifestado o seu asco ao tráfico, tendo
140
casa e a vendê-las em troca de uma coisa que eu nunca fiz. Coisa que eu fui sempre
contra, que eu nunca fiz, é comprar coisas aos desgraçados, que há gente no
Lagarteiro que estão cheias e fartas à custa disso. Compraram tudo em troca da
droga. Eu nunca, isso não me pesa na consciência.
[...] Eu aqui não me dou com as vizinhas do Lagarteiro, são umas traiçoeiras. Uma do
P1, que foi condenada a 4 anos, foi ela que fez o meu mal. Ela diz que é mentira, mas
eu sei que foi ela porque a polícia sabe as coisas é à custa das chibadelas. Porque
essa tal Carmelinda é que fez o meu mal e dos meus filhos. Estavam lá dois agentes
no barraco do homem dela e da Quinhas, a ver as outras a vender. Aí eles viram a
minha filha a falar pr’a elas e pensaram que ela estava com o vício da droga. E é à
custa dessas chibadelas que fazem o nosso mal, o Ministério Público havia de ver
isto. São umas traiçoeiras. Querem as coisas da minha casa a troco de dois tostões?
Olhe, elas vendiam droga forte e feio. Umas já estão condenadas, outras estão p’ra
ser. maiores era a Zeza e a São. Apanharam 7 anos. Uma Ondina, que vendia noite e
dia, apanhou 6 anos. A Carmelinda, que apanharam com droga, com balança, com
aparelhos e dinheiro apanhou 4 anos porque colaborou com eles. É por isso que o
comissário disse que a Carmelinda era muito boa. Eu é que estou presa, eu havia de
ir à polícia, que os juízes não vêem. E a droga nunca vai parar. Olhe, para mim e
para os meus parou. E eu que sonhe que filho meu anda na droga, vou logo
denunciá-lo, acredite, a minha casa vai levar uma limpeza que nem calcula... Se eu
for a casa, vou ver se arranjo o consumidor, o Dino, ir para um hospital e pô-lo lá,
nem que seja na cadeia, ao menos vai curá-lo. E eu ao de 16 anos, o Zé, vou ver se o
ponho outra vez na tutoria, ou vou à polícia. Antes quero que vão presos do que
andarem aí a fazerem asneiras. O Dino, a roubar tudo em casa e vender por um
pacote? Ó menina, eu sei onde é que as coisas estão. Vão ver... É isso que eu vou
dizer aos agentes: «Senhor agente, faça o favor de ir a casa destas pessoas que estão
ali na droga forte e feio, que são grandes traficantes, estão a comprar tudo ao meu
filho».
Aquele que esteve preso em Braga, levava-lhe a roupinha lavada, dava-lhe dinheiro
para um café, levava-lhe umas coisinhas. Para isso o que eu passei, e hoje não me
escreve uma carta, porque anda enrolado com uma filha da Carmelinda, agora tem
um filho dela, e abandonou a mulher. Vendeu-lhe a máquina de lavar e dá maus
tratos à mulher. A menina não vê? É isso que eu vou fazer queixa à polícia. Ele
vendeu a máquina à Carmelinda por 10 contos e a mulher lava a roupa à mão. Eu
vou fazer queixa à polícia porque anda na vida que anda, porque anda a vender as
coisas em casa e dá maus tratos à mulher. E a Carmelinda, sabendo que ele tem
mulher... Ela é nossa vizinha! Vai ser tudo preso. Vou fazer queixa deste, do Dino e
do Zé. O Zé fugiu da tutoria e anda a vender droga, nem vai para casa. Comprou uma
mota, a polícia já a apreendeu. Eu sou de bico amarelo, não tenho medo. Vou
denunciar o Lagarteiro. Andaram a comprar as minhas coisas de casa, as coisas
roubadas dos vizinhos que são como eles, não têm nada. Elas comigo já sabem. Têm
que largar as minhas coisas. Andaram a meter o meu filho, um desgraçado de um
menor, a vender droga pr’a elas? Ele vai trabalhar, que tem bom físico. A vender
droga pr’a quê? Pr’a andar de mota, pr’a andar nos comes e bebes e depois nem
manda uma carta à mãe? Nem vão ver o pai que está preso ali tão pertinho, em
Custóias? Andaram a desgraçar os meus filhos? Antes quero ver os filhos na cadeia.
Por essas e por outras é que eu levei 5 anos dentro. Devem pensar, «ah, andam a
vender droga, andam a ajudar a mãe». Eu tenho que livrar a minha culpa. De mota,
o chiço? Podia ajudar a irmã com 18 anos, que anda de bebé e tem duas crianças. Ou
então diziam, «deixa-me ajudar os meus pais que estão presos, porque foram bons
pais, a minha mãe não comia para nos dar». Toda a gente sabe a mãe que eu fui. Eu
era capaz de vender tudo da minha casa, cheguei a ficar só com as paredes, pr’a dar
aos meus filhos. Cheguei a ter uma panela de sopa sem nada. A minha filha antes de
vir para cá esteve um mês em Custóias. Só foram vê-la uma vez, com uma saca de
fruta. Foi ela que ma mandou para cima, umas bananas já todas pisadas. O meu
catraio de 16 anos anda a vender, anda na vadiagem. Qualquer dia está metido na
142
O tempo insuspenso
77 Temos vindo a percorrer os vários registos da permeabilização da fronteira intra/
extramuros operada pela multiplicação das redes pré-prisionais de interconhecimento
existentes no EPT. Há uma década, uma porosidade semelhante insinuava-se na
vivência carceral das reclusas ciganas, um pequeno contingente de detidas que havia
chegado à instituição por via de processos judiciais colectivos referentes a duas redes
de tráfico. Apesar das clivagens que se desenhavam no seio deste grupo de reclusas, não
deixavam de configurar um todo distinto face à restante população prisional. Tal
demarcação era constatável, por exemplo, na sua visível segregação espacial nos
espaços de convívio e recreio, onde ocupavam conjuntamente uma mesma área, bem
como nos termos por que figuravam nos comentários das outras detidas, que não se
lhes referiam no plural sem glosar, de várias formas e com laivos de admiração, o tema
da união entre as ciganas (talvez porque esta se tornava saliente por contraste com a
atomização que prevalecia, como vimos, no universo recluso não cigano). Na verdade, a
esta união não eram alheios dois factos: o conhecimento mútuo que ligava tais reclusas
antes da reclusão e os laços de parentesco que uniam várias delas. E eram justamente
estas conexões prévias que não só atenuavam a ruptura com o exterior à entrada na
prisão, como por sua vez ampliavam a relação com o mundo extramuros durante a
reclusão. Com efeito, a vivência social externa e interna interpenetravam-se,
englobavam-se, e os eventos de uma tinham amplas repercussões na outra. Por vezes
progrediam à maneira de uma bola de neve, precipitando conflitos que se alimentavam
reciprocamente e abrangiam círculos cada vez mais inclusivos da população cigana,
dentro e fora do estabelecimento. Disputas internas alastravam rapidamente ao
exterior por via dos elos de parentesco na prisão, induzindo antagonismos entre as
respectivas famílias das reclusas em confronto, e incidentes externos geravam ou
reforçavam dissensões internas (ver Cunha, 1994: 122-126), produzindo-se, assim,
influências nos dois sentidos. Deste modo, as linhas com que se teciam a solidariedade e
o conflito na prisão prendiam-se, directa ou indirectamente, com o facto de a rede de
relações se ter constituído antes da reclusão (o que por si só contribuía para uma maior
proximidade entre estas detidas e para uma concomitante demarcação conjunta
perante as restantes) e de essa mesma rede articular colectivamente as reclusas ciganas
a uma larga malha exterior comum de amigos e parentes.
78 Todavia, tratava-se de uma ínfima fracção do universo então recluso em Tires, universo
este cuja experiência penitenciária se pautava por linhas bem diversas – e cujo quadro
discursivo atrás se examinou. Aí, a ruptura com o exterior era sublinhada de várias
formas, entre as quais se conta a relação com o tempo e o modo como ela era vivida e
representada20. Considerando o intervalo de tempo que representa a totalidade da pena,
as reclusas avaliavam-no menos no seu sentido de «duração limitada» do que no
sentido de «interrupção» – interrupção de um percurso de vida –, significando assim
uma descontinuidade por relação ao presente e ao futuro. Como se de um parêntesis se
tratasse, a duração da pena era percebida como um tempo à parte. Esta formulação era
aliás intersubstituível com uma outra, tão corrente como ela no discurso prisional: um
mundo à parte. As «dimensões gémeas» que são o tempo e o espaço (Szamosi, 1986)
encontravam-se assim praticamente indissociadas, levando ao extremo uma relação de
homologia que Shirley Ardener (1993: 6-8) apontara como forma cultural comum a
vários contextos etnográficos. Como se, por ocasião de uma mudança de lugar, o tempo
144
«não-mudança» contribuísse para tornar menos saliente a passagem do tempo, não era
unicamente a natureza repetitiva da temporalidade carceral que alimentava as
representações locais de um tempo cristalizado. Também se observam, decerto,
existências rotineiras no mundo livre, onde quer o tempo de trabalho, quer o tempo de
lazer podem pautar-se pela mesma monotonia. No entanto, em liberdade estes tempos
relevam de ordens distintas entre si e têm um sentido que os seus sucedâneos prisionais
estavam, então, longe de reproduzir, como de resto o notara Goffman (1968: 47-54) a
propósito das instituições totais. Em Tires, a diferença qualitativa entre o período de
trabalho e o período de lazer atenuava-se, sendo ambos incluídos numa mesma lógica
punitiva. Era aliás com uma relativa indiferença que era acolhido o toque de campainha
assinalando o fim de um e o início de outro. Recorde-se, por exemplo, que o trabalho
tinha menos um sentido económico do que moralizador e a motivação para trabalhar
residia essencialmente no receio de punições indirectas. Hoje, como vimos, a
pauperização generalizada das reclusas levou a que readquirisse um sentido
relativamente convergente com o do trabalho exterior: não só é mais activamente
procurado do que imposto, como destina-se acima de tudo a financiar consumos
essenciais. E é justamente por contraste com o actual conteúdo do trabalho prisional
que os períodos de lazer readquiriram também agora, por seu turno, um conteúdo mais
vivo de recreação e repouso, tão almejados em Tires como o são em liberdade. Significa
isto que as lógicas e o cenário estrutural característicos das instituições totais não
induzem por si só uma determinada relação com o lazer e o trabalho, que lhes seria
inerente e específica, antes interagem com outros factores. É por isso relativizável a
asserção de Goffman segundo a qual
Les institutions totales sont [...] incompatibles avec cette structure de base de notre
société qu’est le rapport travail-salaire (1968: 53).
81 Em segundo lugar, a extrema regularidade dos dias continua a ser escandida por um
horário regulamentar levado ao pormenor. Contudo, a monotonia dos ritmos
minuciosos parece ter deixado de orientar as representações da temporalidade carceral
que outrora a configuravam como um presente suspenso, vazio e insípido, ou seja, uma
temporalidade também ela goffmaniana (ver Goffman, 1968: 112-115). Com efeito, o
sentido do quotidiano prisional constrói-se agora no prolongamento do quotidiano pré-
prisional, não em oposição a ele. A regularidade dos ritmos institucionais é relegada
para segundo plano pelas irregularidades normais de um dia-a-dia centrado nos
próximos (parentes e vizinhos), nos acontecimentos que os aproximam ou separam
deles, e que simultaneamente entrosam este dia-a-dia com o exterior.
82 Há uma década, as peripécias da sociabilidade não subvertiam aquelas percepções de
uma temporalidade lisa e vácua, uma vez que as relações com as co-reclusas eram elas
próprias vistas como temporárias, circunscritas à reclusão e, como atrás referi,
destituídas de significado. Além disso, as relações sociais locais podiam também elas ser
subordinadas à mensuração do tempo. Assim, a extensão da pena de cada detida era
ponderada enquanto pró ou contra na decisão de encetar uma relação de camaradagem
com uma co-reclusa ou no ensejo de nela investir afectivamente: alguém condenado a
uma pena de dez anos evitaria tanto quanto possível, e por princípio, tomar-se de
amizade por uma pessoa cumprindo uma pena breve. Desempenhando um papel nos
modos de constituição da sociabilidade o tempo era, desta forma, reificado ao extremo,
passando de dimensão a recurso e valor. Na prisão, de facto, o calendário não era senão
sistema de medida, notação de uma duração que apenas se contabilizava para estimar o
tempo perdido, que ninguém dá de volta, ou aquele que falta cumprir até à libertação. Tais
146
formulações, bem como ainda Aqui o tempo não falta, Há tempo a mais, decorrem, aliás, de
um tipo de caracterização do tempo que surgia com uma especial nitidez no contexto
prisional. Trata-se, mais uma vez, de uma reificação discursiva, designando um regime
temporal mais objectivado do que vivido. Referindo-se justamente a este tipo de
reificação, corrente, inclusive, nas ciências sociais, Gell desmonta-a da seguinte forma:
Time by itself, and without the participation of things, is not a resource which can
be economized on or diverted from one use to another, as though it were some
ethereal natural resource like sunlight. Not being an economizable entity, it has no
value (1992: 212).
83 O calendário é, em qualquer contexto, um instrumento de medida do tempo. Porém,
fora da prisão, cada indivíduo marcá-lo-á diferentemente, modula-o com um sentido
pessoal que é, em boa parte, partilhado pelos seus próximos. Mas no contexto
penitenciário de Tires os dias sucediam-se, indistintos, o 1 de Julho como o 30 de
Novembro, mesmo se um deles era um dia de aniversário. Não havia «dias pessoais».
Tratava-se de um tempo desencarnado, não apropriado, ou seja, o tempo homogéneo do
calendário. Como era, então, periodizado o tempo? Passaremos a ver em seguida que
esta periodização, diversamente do que agora sucede, era engendrada essencialmente
por processos prisionais e, nessa medida, era específica à prisão.
84 Nos clichés que circulam sobre o universo carceral, os dias traduzem-se por traços não
datados desenhados na parede da cela, à maneira do calendário de Robinson Crusoé.
Ora, em Tires não era comum este modo de inscrição do tempo, nem nas paredes nem
tãopouco nas agendas. Se os dias permaneciam unidades calendáricas importantes em
si mesmas, a sua sucessão não era anotada de forma sequencial, um após outro, traço
após traço – «Dava em maluca se contasse todos os dias, era da maneira que eu via todos os dias
o tempo que ainda tenho que aguentar... Deixo passar, assim não noto tanto.» Em matéria de
notação e de contabilização da progressão temporal, os meses e, em menor medida, os
anos deixavam de representar unidades de periodização salientes. A totalidade da pena
não era decomposta em tais períodos, mas em quartos, em metades, em terços. Estas
fracções correspondiam aos momentos a partir dos quais as detidas estavam habilitadas
a solicitar uma saída precária, o acesso a um regime penitenciário mais aberto, a
liberdade condicional. As semanas ou, melhor dito, os fins-de-semana continuavam a
ser na prisão marcadores importantes do curso da existência. No entanto, não
conservavam esta qualidade enquanto unidades «dadas» de medida do tempo e da sua
progressão, mas porque constituíam os únicos momentos periódicos individualizados
ou personalizados. Os fins-de-semana eram, com efeito, o momento habitual das visitas
previsto pelo regulamento. Para as reclusas que não as recebiam, a ilusão de um tempo à
parte, de um eterno presente, pesava-lhes ainda mais. Para as mais afortunadas, o
contacto semanal com família e amigos ritmava, de certa forma, esta duração. Além
disso, o impacte destes eventos na escansão do tempo não se limitava aos momentos da
sua ocorrência. Eram antes os pontos culminantes de uma progressão que se
desenrolava ao longo de toda a semana precedente, para decrescer ao longo da semana
seguinte: nos dias anteriores as detidas concentravam-se na sua antecipação,
preparando-se para o seu advento (o que se iria dizer, como se iriam arranjar, o que
pediriam para ser trazido na visita seguinte); nos dias posteriores a visita ecoava ainda,
sendo comentada, revista, recordada. As visitas produziam deste modo na
temporalidade o «efeito acordeão» mencionado, entre outros, por Cohen e Taylor (1974:
99). Note-se, por conseguinte, que os únicos momentos periódicos que entrecortavam
de maneira marcante para as reclusas a homogeneidade do regime temporal da prisão
147
mesmas vir a ser recluídas em Tires e aí receber as visitas dos maridos daquelas,
fazendo com que a gestão dessa ruptura por parte das reclusas que a sofreram não seja
de ordem radicalmente diversa da que levariam a cabo no exterior: enfrentam in loco as
sombras dos companheiros e das rivais, o falatório da vizinhança, que conhece os
vértices destes triângulos amorosos, e amparam-se em amigas de longa data, também aí
presentes; a instabilidade laboral e o desemprego intermitente que já afectava a
maioria das detidas antes da reclusão (uma e outro muito mais vincados agora do que
no passado) fazem da ruptura prisional ligada ao trabalho mais uma entre tantas
outras, reproduzindo-se de resto neste intervalo penitenciário relações e sentidos
laborais similares aos pré-carcerais.
90 No entanto, e a despeito destas rupturas, assim como a presença de parentes, amigos e
vizinhos instila directa ou indirectamente o sentido da diacronia na vivência da prisão,
parece também, por outro lado, sincronizar a temporalidade carceral com a
extramuros. É através destas redes pré-prisionais que as noções da progressão interna e
externa convergem, tal como passaram a convergir dois mundos outrora paralelos e
localmente entendidos como, respectivamente, «estático» e «dinâmico». Não
representando mais um tempo à parte, a reclusão deixa de ser vista como uma suspensão
da trajectória pessoal e os acontecimentos que têm lugar no seu decurso não possuem,
neste aspecto, um estatuto diverso dos acontecimentos exteriores. São, como eles,
«cronologizáveis» e acumuláveis na autobiografia. Do mesmo modo, relações externas,
pré-carcerais, não se interrompem com a detenção e relações «internas» não cessarão
com ela. Assim sendo, tais relações progridem, por assim dizer, no cárcere, conhecendo
desenvolvimentos que prolongam o passado e se repercutirão no futuro. Além disso,
elas não são já extirpadas da biografia, como o eram há uma década em razão da sua
associação estigmatizante à prisão. Não são, sequer, extirpáveis dado que são pré-
constituídas e, em segundo lugar, o estigma que as envolve é bem anterior à detenção.
A propósito da noção de um «tempo perdido», recorrente nas instituições totais,
Goffman defende:
Quelle que soit la rigueur des conditions de vie dans les institutions [totales], elle ne
suffit pas à rendre compte de ce sentiment de vie gâchée. Il nous faut plutôt en
chercher la raison dans le hiatus social imposé par l’entrée à l’institution et dans
l’impossibilité fréquente d’y acquérir des avantages susceptibles d’être transférés à
l’extérieur (1968: 113)23.
91 Será óbvio que o tempo da reclusão é, para muitos efeitos, um tempo «arrancado à
vida» (ibidem: 112) e é certo que serão poucos os instrumentos de investimento no
futuro (ainda que em Tires, embora os pecúlios acumulados possam ser magros, seja
hoje substancial e diversificada a oferta de formação profissional e escolar,
nomeadamente por via de protocolos celebrados entre a DGSP e o Ministério da
Educação ou o Instituto de Emprego e Formação Profissional). Porém, tudo o resto é
transferível para o exterior, precisamente porque a prisão deixou de ser um «hiato
social». Quando Goffman (1968) tipificou as instituições totais, apontou-lhes uma
característica distintiva fundamental: o facto de nelas se encontrarem removidas as
barreiras separadoras das várias esferas de vida do indivíduo, que grosso modo recortam,
no mundo exterior, domínios relativamente dissociados de relações, diferentes
pertenças e, também, diferentes identidades. Tais esferas de vida passariam a ser
submetidas a uma gestão comum e maciça. À luz deste critério pareceria, portanto, que
a prisão de Tires se tornou hipertotal. À superfície, assim o é. Não só a esfera da
residência, do trabalho e do lazer se encontram congregadas espacialmente, como a
150
NOTAS
1. Trata-se de famílias fictícias que foram apontadas como um dos eixos da «cultura/sociedade
prisional» na versão feminina (sendo o outro as díades homossexuais). Nestes núcleos, que nunca
constatei em Tires, quer no passado, quer no presente, as reclusas reproduziriam inúmeros
papéis familiares (enumerou-se os de irmã(o), prima(o), tio(a), filho(a), avô, avó, mãe, pai), e as
interacções entre eles, bem como as respectivas funções, seriam similares às que vigorariam nas
relações de parentesco no exterior. Referidas pela primeira vez por Selling (1931), foram
subsequentemente objecto de abundantes estudos. Ver, por exemplo, Kosofski e Ellis (1958),
Giallombardo (1966), Heffernan (1972), Foster (1975), Mitchell (1975), Propper (1981). Para um
tratamento mais detalhado desta literatura ver Cunha (1994: 99-104; 137-139).
2. «Homeboys» são também brevemente referidos por John Irwin (1980: 58-59) no quadro dos tipos
de redes e cliques prisionais com que se deparou, assim como o são, no mesmo quadro, as «
homegirls» por Juanita Días Cotto (1996: 297-298) e os «Street partners» por Leo Carroll (1974:
100-101); esta última figura inclui ainda, segundo o autor, «one’s actual biological relations».
3. (Em itálico no original.)
4. Chaves cita aliás, no mesmo âmbito, uma incisiva observação de Moita Flores:
Se atendêssemos às posições mais radicais sobre a situação social daquela malha urbana valia a
pena murar, deixar-lhe sentinelas pelos cantos e definitivamente integrá-lo no parque prisional
português (ibidem: 122).
5. Para um percurso de pormenor ver Cunha (1994: 99-136).
6. Vários autores criticariam posteriormente a tese da prisionização: ou porque este processo não
seria directamente proporcional à duração da pena, conhecendo flutuações contraditórias ao
longo das várias etapas da reclusão (e. g. Wheeler, 1961; Glaser, 1964); ou porque ele variaria
consoante as características organizacionais das instituições e a orientação que adoptam, sendo
os efeitos da prisionização mais pronunciados naquelas que enfatizam a segurança e a disciplina,
e mais suaves nas que se regem pela ideia de tratamento (e. g. Street, 1965).
7. Seriam de cinco tipos as «pains of imprisonment» (ibidem: 14-15): privação de liberdade e
sentimento de rejeição pela comunidade, privação material (bens e serviços), privação sexual (de
contactos heterossexuais), privação de autonomia (e a correlativa degradação estatutária) e, por
fim, privação da segurança pessoal (dada a exposição a delinquentes de vária ordem).
8. Outros autores haviam já insinuado que a «cultura» e a «sociedade penitenciária» também se
relacionavam com factores externos, como o background e a socialização pré-prisional dos
reclusos, que contribuiria para a diversidade dos papéis internos, mas esta observação
permanecia submersa numa prevalecente abordagem funcionalista (e. g. Schrag, 1961).
152
9. Para uma discussão crítica destas categorias no contexto de Tires, quer da sua ambiguidade
teórica, quer do modo como eram reificadas e reflexivamente manipuladas pelas próprias
reclusas, ver Cunha (1994: 131-136). Hoje, esta reificação e apropriação reflexiva (no exacto
sentido referido por Giddens, 1992: 28-29) não se verifica, talvez porque a prisão deixasse de
surgir às detidas como uma realidade estranha, como uma alteridade que interpela e faz pensar.
10. Não incluo no âmbito deste percurso a magna obra de Michel Foucault (1975), uma vez que
escamotearia o seu escopo inseri-la nesta rubrica de «estudos prisionais». Na verdade, ela
concerne menos à prisão do que às tecnologias de poder e dominação que definiriam uma
«sociedade disciplinar»:
[C]es techniques ne font que renvoyer les individus d’une instance à l’autre, et elles reproduisent,
sous une forme concentrée ou formalisée, le schéma de pouvoir-savoir propre à toute discipline.
(...) Quoi d’étonnant que la prison ressemble aux usines, aux écoles, aux hôpitaux, qui tous
ressemblent aux prisons? (ibidem: 228-229).
11. Veja-se avulsamente, sob a forma de tópicos, algumas das temáticas tratadas no universo
penitenciário: a agressão (Mandaraka-Sheppard, 1986), os guardas (e. g. Jacobs e Retsky, 1975;
Crouch e Alpert, 1980; Chauvenet e Benguigui, 1994; Lhuilier e Aymard, 1997); as crianças (e. g.
Tomasevski, 1986); a distribuição do poder entre o staff ( e. g. Combessie, 1996); a pobreza
(Marchetti, 1997); a leitura (Fabiani, 1995); o suicídio (e. g. Bourgoin, 1994). Já Le Caisne (2000)
situa-se de algum modo ao arrepio desta trajectória ao cobrir de maneira lata os processos
discursivos pelos quais os reclusos negoceiam a sua identidade individual.
12. Tratava-se de um regime repartido em três fases que flexibilizava gradualmente a execução
da pena, regime este criado pela Reforma Prisional de 1936. A noção de flexibilização progressiva
perdura, mas é levada a cabo em termos ligeiramente diversos e é objecto de um faseamento
menos rígido.
13. Para véus, estratégias e dissonâncias semelhantes num contexto andaluz, ver Uhl (1991).
14. Ver R. Gonçalves (2000) a propósito da caracterização dos psicopatas na prisão.
15. Dada a precária situação económica destes agregados, os técnicos do IRS começaram a
procurar-lhes apoios junto do próprio Instituto, da Segurança Social, das paróquias e
misericórdias, tentando por outro lado atribuir-lhes o estatuto de «família de acolhimento» em
ordem a poderem beneficiar de subsídios. Os centros sociais são também contactados para
aligeirar uma parte do dia destes tutores, sobretudo o das avós.
16. Ao contrário do que as entrelinhas acima possam eventualmente sugerir, estas ligações não
denotam forçosamente uma fragilidade ou uma volatilidade extremas. No caso concreto que
acabei de referir, a união marital durava há vinte anos e a paralela há quatro.
17. Na verdade, a julgar pelos casos que diariamente chegam a Tires, em que todos os
intervenientes abrangidos por um mesmo processo acabam, afinal, condenados, a eficácia desta
estratégia é duvidosa e remota.
18. As reclusas não tinham para com as líderes uma atitude de especial respeito e deferência, e
não se coibiam de condenar abertamente alguns dos seus comportamentos. Mas jamais
empregavam o termo chiba a seu respeito, enquanto condutas idênticas por parte de qualquer
outra detida o induziam de imediato. Uma líder ia dizer ou arranjava um caldinho: quando
proclamava denunciar um motim se persistissem em levá-lo avante; quando comunicava ao
pessoal prisional o envolvimento de uma colega em negócios e esquemas ilegais; quando
transmitia àquele o expediente fraudulento utilizado por uma reclusa para receber visitas não
autorizadas, entre outras denúncias (ver Cunha 1994: 129-135).
19. A propósito do Zé, ele reproduz parcialmente a trajectória juvenil da própria Zulmira, tal
como o percurso da Lavínia se reeditara, de alguma forma, na filha e na neta (ver supra: 137-138):
Estive na tutoria quando era catraia. Fui responder porque andava descalça. Respondi a primeira vez, a
segunda vez, a terceira vez e o juiz meteu-me lá. Também era por causa do ambiente da minha mãe, que era
uma da prostituição – coitadinha, agora está acamadinha numa cama, está ceguinha. Fui criada com a
153
minha avó, sabe. Estive um ano na tutoria, mas como tinha bom comportamento mandaram-me para
Lisboa, para o lar de S. Domingos [um instituto de reeducação de menores]. Fiquei lá dos 14 aos 21 anos.
Depois aos 21 anos arranjaram-me uma casa para servir e eu fui servir para o Porto. Deram-me um enxoval,
ajeitei o meu marido, até hoje. Depois fui para o cemitério lavar campas e fui vender outra vez para o
Bolhão. Eu já vendia no Bolhão aos 7 anos, menina.
É de referir que aspectos da biografia da Zulmira convergem caracteristicamente com os
registados em Lopes e Carmo (2001) para os internados na Tutoria do Porto, uma instituição que,
como outras congéneres, funcionava no caso feminino como um reservatório de criadas de servir.
20. Esclareça-se desde já que a análise a que procedo da temporalidade carceral examina apenas a
forma como tal relação é localmente entendida no âmbito da duração da pena; não sugere a
existência, na prisão, de conceitos específicos de tempo, pelo que não comporta qualquer
implicação de tipo cognitivo. Como sustenta Alfred Gell, «[T]ime is always one and the same, [but
it is in] manifold ways that time becomes salient in human affairs» (1992: 315).
Para uma análise mais detalhada e compreensiva do discurso prisional do passado sobre o tempo
ver Cunha (1997), um texto aqui parcialmente recuperado e adaptado para fins comparativos.
21. Estas fracções temporais exprimem-se agora de forma ligeiramente diferente. Repercutindo
uma política de execução de penas mais restritiva, o acesso a determinados direitos que essas
unidades de tempo sinalizariam é agora verbalizado na negativa, mas continua a periodizar o
tempo:
Acabei o primeiro corte [da liberdade condicional], agora estou a cumprir o segundo. Quero ver se o juíz
me manda embora com sete meses de carimbos [ o tempo de carimbos corresponde à duração da
liberdade condicional]; ou O juíz deu-me um corte de um ano. Pode ser que depois me mande embora com
2 meses de carimbos; ou ainda O meu corte acaba em Outubro.
22. Com a expressão calendário «objectivo» relevo o sentido estrito de «alheio à pessoa» e não,
como é evidente, o sentido de «não-arbitrário», uma vez que todos os calendários comportam
uma relativa arbitrariedade.
23. Ênfase minha.
24. Agradeço um eloquente comentário a Albertino Gonçalves (publicado em anexo a Cunha,
2000: 103).
154
presas] não estiverem vestidas para o conto e não tiverem a cama feita, não se
importam. Como as guardas mais velhas não querem saber, as mais novas também
seguem o exemplo. E depois dão-lhes muita confiança. Contam-lhes coisas da vida
delas e tudo, e depois não têm autoridade quando é preciso dar-se ao respeito. Devia
haver mais distância. Isto é do pior. Eu faço a minha vida sozinha, não dou
confiança a esta gente. No princípio era muito ingénua, tinha pena de uma que não
tinha nada e dava-lhe coisas da visita. Mas depois percebi que isto é tudo por
interesse. Amigas, só lá fora. Aqui não há amizade nenhuma, as pessoas são cínicas,
mentirosas, contam tudo.
– Caramba, deve ser muito duro não ter nenhuma amiga cá dentro...
– Bem, tenho a Estrela, com quem me dou muito bem, nessa eu posso confiar. Fora
isso não.
O que me mais me custou na cadeia foram as pessoas. São umas intriguistas. Eu era
muito idealista, muito sensível aos problemas das pessoas. Agora não. Muita coisa
aqui é fita, é manipulação. Dizem que não têm nada, mas é para terem as coisas das
outras [...]. Eu não sou delinquente. Cometi um crime, é tudo, não foi por apetência,
por carreira. A maioria aqui é por isso.
6 Este discurso da demarcação recorre também ao tipo de crime, embora limitando-se
agora a um conjunto subsumido numa nova categoria local, a saber: por droga. Mas
qualquer que seja o crime que assim indicam, não é por via do acto desviante em si
mesmo que desclassificam as co-reclusas. É pelo que lhe associam, ou seja, a
proveniência social ou étnica de quem o cometeu. Essa gente dos bairros (por vezes
seguida da referência a pretas e ciganada) é, com efeito, a fórmula standard pela qual
estas detidas me referiam as colegas. Uma delas, de resto, pediu para mudar de pavilhão
por causa do ambiente:
Isto é tudo bairro, não dá para aguentar. As de Lisboa queixam-se das do Norte, mas
elas também é tudo bairro, ainda é pior a linguagem.
7 E uma reclusa veterana, gestora da biblioteca de um dos pavilhões e cuja carreira
prisional se iniciara já antes do meu primeiro trabalho de campo, deplorava nos
seguintes termos o fosso de literacia que entretanto se cavara entre ela e as colegas:
A população hoje não tem nada a ver com antigamente. Hoje não encontra aqui um
grupo de pessoas com ligações culturais. Eu sinto um enorme vazio porque já não
tenho com quem conversar. Não lêem. Dantes ainda liam literatura de cordel – a
Branca, romances cor-de-rosa – agora nem isso. Vêem as telenovelas. Mandei vir
jornais, até aqueles mais populares, mas ninguém lê. Agora é só a traficante do
bairro de lata, que não sabe ler nem escrever: põe o dedo [para assinar].
8 Conversamente, esclareciam-me duas detidas dos bairros (uma pretendendo responder
por toda a população prisional, outra por quase toda): «Estamos aqui todas por droga;
Estamos todas juntas com as criminosas» – entendendo por criminosas as condenadas por
homicídio. O homicídio sobrevive, de facto, como fronteira no que respeita às
representações do crime, mas perdeu importância discursiva na sociabilidade
quotidiana. Quase se apagou dada, até, a reduzida fracção de mulheres que aqui
cumprem pena por este motivo. Uma delas, co-autora de um mediático homicídio,
confiava-me:
Sabe, [as colegas] fazem-me sentir o crime. Estou sempre a ouvir bocas: «Então,
achas isso bem?»; «Olha lá, menina, sabes o que tu fizeste? O que tu fizeste é um
crime»; «És uma criminosa, isso não se faz». Eu fiz mal, claro que eu fiz mal, e estou
mais que arrependida de me ter deixado levar pelo meu marido. Mas então elas
também não estão aqui pelos crimes delas? Até parece que não fizeram nada!
9 Em todo o caso, o homicídio constitui um dos poucos referentes descritivos do que, em
abstracto, significa um crime, ou o tipo de crimes a que a prisão se destina e dos quais
157
seria como que o significante para o exterior, veiculado, por exemplo, pelo uniforme
carceral. O tráfico por que a Maria Emília foi condenada não parece ser um deles:
No RAVI já vamos ao hospital sem bata e só somos levadas por guardas até à porta.
Às vezes até somos nós que telefonamos para nos virem buscar. Ainda bem, dantes
com eles ao lado eu até parecia uma criminosa.
10 Em suma, se há uma década as diferentes categorias criminais eram omnipresentes nas
conversas prisionais e organizavam as representações sobre o universo das co-reclusas,
hoje muitas delas diluíram-se nessa nova macro-categoria emic designada de droga ou
por droga, uma designação operando quer dentro, quer fora dela. Será já evidente que
ela engloba não só os crimes de tráfico, como todos os outros cometidos por
toxicodependentes. Dela se auto-exclui, porém, a esparsíssima franja de detidas que
traficava e consumia drogas sintéticas, como o ecstasy. Por um lado, trata-se de pessoas
que não provêm dos mesmos segmentos sócio-espaciais: não só integram camadas
sociais mais afluentes como os circuitos desse tráfico não são os dos bairros
desfavorecidos, mas os dos bares, discotecas e festas rave ; por outro lado, se estas
reclusas se assumem como consumidoras – querendo com isto significar um consumo
recreativo e ocasional – não se consideram, como outras, toxicodependentes. Uma destas
jovens, dizendo-se chocada quando à entrada em Tires lhe foi receitada medicação para a
ressaca, alegava:
Eu não sou toxicodependente. O ecstasy não cria dependência. É cá uma
ignorância... O ecstasy não é bem uma droga, é uma cena de fim-de-semana, de
estar com os amigos, é curtir o prazer da dança, da música. Não se anda aí caído,
temos uma vida normalíssima. Toxicodependente é a minha mãe, que não passa
sem os calmantes.
11 À semelhança destas reclusas, aliás, a minoria alheia ao eixo da droga exprime as
mesmas noções quanto às práticas de prescrição medicamentosa na cadeia, receando
ver-se assimilada por esta via à generalidade da população recluída. De modo indirecto,
o nivelamento criminal desta população suporta nestas detidas a percepção de que
todos os medicamentos são, por um lado, potenciais sucedâneos da droga e que, por
outro, mais não seriam do que um obscuro colete de forças químico destinado a mantê-
la controlada:
Quem não souber ler [a bula] anda drunfado. Se tem dor de estômago, vem
comprimido. Se tem dor de cabeça, vem o mesmo comprimido. É tudo igual para
toda a gente. Andamos todas a tomar comprimidos para as drogadas.
Quando entrei tinha um problema no fígado. O médico diagnosticou-me uma
cefaleia nervosa e receitou-me nove comprimidos de manhã, cinco ao meio do dia e
seis à noite. Quando tomei tudo ia caindo para o lado. Aí pedi para falar com a
psiquiatra, que me perguntou há quanto tempo eu consumia. Eu disse que nunca
tinha tido nada a ver com droga. Tá a ver? Ela deu-me a entender que aquilo era
medicação para ressacadas. Nunca mais tomei nada. O médico põe tudo a
comprimidos para elas ficarem sossegadas.
12 Exceptuando então este pequeno grupo e as jovens consumidoras de ecstasy (que
preferem, de resto, o convívio com reclusas bastante mais velhas mas de mesma
extracção social), muitas das distinções entre crimes, outrora muito vincadas,
apagaram-se. Por exemplo, a linha divisória entre traficantes e traficantes-
consumidoras. Vistas de fora, por elementos exteriores à categoria por droga , estas
tornar-se-iam equivalentes através da equiparação do tráfico – e já não só do consumo
– a um vício:
158
Têm que ir à droga. O tráfico é um vício maior do que a droga. É mais fácil recuperar
toxicodependentes do que traficantes. É um vício, aquele dinheiro fácil. Mesmo que
tenham uma profissão, é muito difícil resistir àquilo.
13 Esta representação do tráfico como vício, por vezes visto como um comportamento mais
adictivo do que o consumo de droga, é aliás comum nalguns membros do pessoal
penitenciário: O tráfico é um vício. Depois de traficar ninguém vai viver da venda ambulante.
Ainda quanto ao staff, é de referir que se membros do pessoal terapêutico, relevando de
um saber técnico, especializado, padronizam as consumidoras, atribuindo-lhes
características de personalidade e traços comportamentais específicos (a manipulação,
por exemplo, não seria um traço idiossincrático ou circunstancial de um indivíduo, mas
uma propriedade imanente a toda uma classe), o pessoal leigo, sobretudo as guardas,
tende menos a uniformizar as toxicodependentes e, por conseguinte, não as contrasta
com as restantes prisioneiras1. Duas guardas seniores defendiam:
As toxicodependentes é como o resto, é igual. São muito diferentes umas das outras.
Cá da minha experiência é assim. [Os técnicos em geral], por elas terem aquele
rótulo, «toxicodependentes», cortam-lhes logo [o acesso a] certos trabalhos. Eu não
acho bem. Acho que a partir de certa altura temos de lhes dar um voto de confiança.
Temos de lhes dar mais responsabilidade, elas são capazes. Havia uma muito
revoltada, partia tudo, só causava distúrbios. Aos bocadinhos fui-a pondo em coisas
de mais responsabilidade – ela até ficava muito admirada por eu confiar nela. Eu
dizia-lhe assim: «Vamos fazer uma experiência. Ficas aqui, continuas assim,
devagarinho. Vais-te portando bem, e depois a gente vê». Eu vi que estava a correr
bem e depois fui fazer pressão na direcção para ela ser supervisora. Pensavam que
eu estava doida. Mas lá consegui. E olhe, foi um sucesso.
Eu sou liberal com elas na maneira de falar. Brinco com elas, entro no jogo delas e
elas confiam em mim porque sentem que eu as apoio. As toxicodependentes são
normais. Para [alguns técnicos] é como se fossem diferentes, até parece que são um
bicho de sete cabeças. Mudou muito a minha maneira de pensar, estar com estas
presas. Até em casa, com os meus filhos, falo mais abertamente. Há muitas que
conseguem sair disto, vê-se que têm força de vontade. Chegam aqui todas
desmazeladas, com piolhos, a fazer chichi na cama. Depois andam melhor. Já
encontrei umas lá fora, todas arranjadas. Outras dão-me notícias. Como vê, isto da
toxicodependência nas cadeias não é assim tão mau como pintam. Há esperança: há
aí umas 10% que se curam. Eu mostro que tenho confiança nelas, e elas ficam muito
espantadas por encontrar alguém que lhes dá uma oportunidade. Elas dizem-me
isso, dizem-me que isso as faz sentir bem.
14 Regressando à destrinça do passado entre traficantes e traficantes-consumidoras (que
corresponde, de resto, a uma destrinça penal, uma vez que umas e outras configuram
categorias jurídicas distintas), deixaria também de ser actuante no interior da categoria
por droga. Na dinâmica de oposições recíprocas vigente em 1987, tal fronteira
alimentava-se de recorrentes polarizações discursivas em torno do tráfico e do
consumo. Nesta representação dicotómica, o consumidor surge como figura doente,
carecendo de tratamento, frágil e à mercê da figura complementar – o perverso, todo-
poderoso e implacável traficante, carecendo de (cada vez mais) cadeia. Assim o
notaram, de igual modo, Dorn et al analisando as metamorfoses que se insinuaram a
partir dos anos 70, e se fixaram na década seguinte, na percepção pública das duas
realidades:
Drug users became described as weak personalities, typically trapped in deprived
environments, who had been led astray by misguided peers and unscrupulous drug
pushers. They were sick or immature, and required treatment, counselling, or
simply a safe space to grow as people. Drug dealers, on the other hand, come to be
159
Corpos solidários
18 Ora, esta conjunção pré-carceral de categorias prisionais é também homóloga e
coerente com a que se verifica num outro domínio da vida penitenciária. Em absoluto, a
situação de reclusão é em si própria propícia à exacerbação do receio de contrair
doenças transmissíveis várias, ao implicar a coabitação forçada dos internados, a
participação conjunta nas actividades quotidianas e a utilização comum das mesmas
instalações e utensílios, sendo difícil furtar-se a uma e a outra, ao que se poderá
adicionar os eventuais efeitos psicológicos do huit-clos . Há uma década, porém, o
enfático temor do contágio, sobretudo relativo a síndromes e doenças como a sida e a
hepatite B, era em acréscimo especialmente apropriado para exprimir física e
metaforicamente a distância e a não identificação entre as reclusas. A tensão entre a
dissolução dos limites interpessoais operada todos os dias pelo dispositivo prisional
(pense-se na ausência de privacidade) e o ensejo de reposição de fronteiras identitárias
e simbólicas parecia encontrar aqui um campo de explicitação particularmente
adequado. A pronunciada demarcação higiénica, declinada, por exemplo, quer nas
manifestações privadas quer na ostentação pública do receio de sentar-se nas cadeiras
utilizadas pelas co-detidas, decorria da noção de uma ameaça difusa e omnipresente –
que estas representariam. O mal, como me dizia uma reclusa, pode vir de qualquer lado.
Este mal era, por assim dizer, de largo espectro uma vez que não se limitava à referência
microbiana, mas comportava, também, uma dimensão moral. De facto, circulava o
medo da contaminação deliberada, provocada intencionalmente. Por isso, mesmo as
reclusas que defendiam para o mundo exterior o princípio da não segregação de
pessoas afectadas por problemas infecto-contagiosos solicitavam em contrapartida a
criação, na prisão, de unidades separadas para uma variedade de afecções, desde as
doenças venéreas à sida. No caso do HIV, desenvolvia-se uma suspeição generalizada
entre as detidas, que empreendiam então um processo de identificação das
seropositivas através da interpretação de vários sinais: uma reclusa que obtinha uma
libertação considerada demasiado fácil dada a sua situação jurídica; certas outras que
sofriam uma revista pessoal quotidiana mais ligeira (ou que numa determinada ocasião
não haviam sido de todo revistadas); cuja cela era objecto de inspecções menos
rigorosas por parte do pessoal de vigilância; outras ainda que eram pouco
importunadas pelas guardas no dia-a-dia prisional (porque teria sido, decerto, a doença
que lhes inspirara sentimentos de compaixão, Cunha, 1996: 81).
19 Hoje, assim não acontece. Tal é tanto mais significativo quanto a prevalência das
doenças que as reclusas mais receavam terá aumentado substancialmente. Um membro
do staff informou-me que a percentagem de detidas infectadas, por exemplo, com o HIV
se situava acima dos 20%3 – enquanto esta seroprevalência em Tires não era, há dez
anos, superior à da população em geral; em segundo lugar, se há uma década a
automutilação era uma realidade ausente de Tires, actualmente pontua o seu
quotidiano4. Poder-se-ia supor, por isso, ampliadas as inquietações do passado face a
estas usuais incisões nas pernas, braços e antebraços a que procedem as co-reclusas.
Aliás, a frequência de tais práticas acabou por impacientar o pessoal penitenciário, que,
de resto, as desvaloriza:
161
Corta-se na medicação – elas cortam-se; os amores não vão bem – cortam-se; a chefe
não lhe deu atenção – corta-se; até uma, que não conseguiu fazer um telefonema
porque já estava na hora do fecho: «Não posso telefonar? Então corto-me»! Isto
devia ser assim: cortam-se, pagam o tratamento. [Na verdade as reclusas
submetem-se muitas vezes a uma espera interminável, amontoadas junto ao gradão,
para poderem telefonar. O particular telefonema de que fala esta guarda era, além
disso, de uma importância fulcral para a detida em causa.]
20 Num quadro da direcção a exasperação não era menor:
Isto é por ciclos e por imitação. Começa uma e seguem-se as outras. É mais para
chamar a atenção. Também muitas têm problemas de desordem mental. Agora a
política é não estar com mais contemplações. Castiga-se e fecha-se, pronto 5.
21 Sucede então que em vez de se avivarem num terreno que os potenciaria, os espectros
do contágio atenuaram-se. Diversamente do passado, além disso, as precauções
tomadas – quando são tomadas – são de ordem estritamente sanitária e não se
desdobram em quaisquer reverberações morais. Assim, nunca me deparei com a mise-
en-scène distanciadora, fosse através de palavras ou de comportamentos. Constata-se
mesmo uma preocupação de sentido inverso: não contaminar (com uma constipação,
uma gripe, uma micose, por exemplo) uma reclusa seropositiva ou com sida, com o
sistema imunitário fragilizado. Mais uma vez, trata-se de uma realidade muitas vezes
próxima antes da prisão: um primo, um irmão, um filho com o HIV. Por outro lado, no
que respeita às consumidoras, várias comunicaram-me terem partilhado drogas e
seringas com parentes, amigos e vizinhos, embora conhecessem os factos básicos sobre
as vias de transmissão do HIV, pelo que a questão do contágio não se lhes punha de
maneira premente já antes da reclusão (para este tipo de partilha entre os próximos ver
também Viadro e Earp, 1991: 15). Mas mesmo que não se dêem ambos os casos, restam
proximidades de outra ordem e, de qualquer modo, a distanciação deixou de operar em
sistema. Uma detida do Casal Ventoso, ex-toxicodependente, deu-me conta do único
episódio de discriminação que testemunhara na cadeia, procedendo a um inesperado
desvio explicativo pelas populares virtudes «desinfectantes» da água fria:
As seropositivas aprenderam muito com esta vida. Foram elas que me deram os
melhores conselhos: «Não tomes calmantes, olha para mim. Tu tens filhos, não te
metas na droga. A mim o bicho está cá dentro a roer-me toda. Não é por ti, é pelos
teus filhos. Eles é que choram com a tua morte». A gente tem muito respeito por
elas, e elas têm cuidado connosco. Só uma vez é que houve aí uma discussão de uma
presa com uma. Havia um problema com a água – há muitas vezes falta de água, só
para os jardins é que nunca falta – e só estava um duche a funcionar. A água vinha a
escaldar. Estava uma a lavar-se e a seropositiva começou a ter hemorragias. A outra
ficou com medo e começou a discutir. Mas também era porque a água estava muito
quente. Se fosse água fria, o bicho só vivia uns segundos. Mas como era quente, o
bicho ficava mais activo.
22 Por sua vez, uma bem impressionada guarda, já contemporânea do meu primeiro
trabalho de campo, contava-me da sua relativa surpresa pela ausência de resistência
que encontrou o seu cuidado de integração das reclusas seropositivas, um acolhimento
de onde diz, de resto, ter colhido um exemplo6:
Eu tenho cuidado para elas não estarem à parte, integro-as sempre com as outras.
Pensava que ia ser difícil, mas não. Há uma grande solidariedade das presas, não as
põem de parte. Bebem água do mesmo copo, não se põem com coisas com a louça...
Para mim foi uma lição. É uma lição para toda a gente. Olhe que também as
seropositivas merecem. São pessoas muito lutadoras, querem fazer tudo como as
outras, até mesmo em fase terminal. Às vezes ficam muito cansadas, têm que se
sentar, mas tentam trabalhar como as outras até ao fim. Querem mostrar que são
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capazes. Havia uma já muito doente, que foi para o hospital e gostava muito de
mim. Não tinha família, parece que tinha muita gente presa. Passei muito tempo
com ela. Os médicos e os enfermeiros usavam luvas, mas eu não, dava-lhe água e
tudo sem luvas. Via que isso lhe fazia bem. Quando eu me vim embora, não falou
com mais ninguém de tristeza, até morrer.
23 Lembrando, todavia, as disposições do passado resta a pequena minoria de reclusas
extrabairros, não abrangida na local transversalidade sócio-criminal da droga. Agora a
uma escala residual, são essencialmente estas detidas quem traz ao presente, no mesmo
registo, os anteriores regimes de percepção e discurso neste domínio:
Eu para o banho levo sempre uma bacia e uns chinelos. O meu maior medo até nem
é da sida, é da hepatite B, que contagia mais facilmente. As outras não ligam, não
querem saber. Parece que não têm consciência do perigo. Digo-lhe, uma pessoa até
fica parva. A princípio fiquei intrigada, achava um bocado estranho, porque as
pessoas assim mais do povo assustam-se muito com esta coisa da sida porque estão
menos informadas. E então pensei, isto até é gente esclarecida. Mas não. Com a
hepatite e as doenças que se pegam com facilidade é a mesma coisa. Não ligam.
Quase nem falam nisso. Ou é por inconsciência ou é por ignorância. Só pode.
24 Esta e outras reclusas do mesmo estrato social preferem, aliás, utilizar o balde sanitário
do que recorrer aos WC comuns – quando no passado o balde era considerado
degradante e reservava-se apenas para uso nocturno, durante o período em que as celas
se encontravam encerradas:
– Olá Ziza, não esperava encontrá-la aqui a esta hora!
– É. Eu tenho mais tempo livre, não trabalho. Estou à espera que me encontrem um
trabalho de acordo com as minhas habilitações. Mas eu entretenho-me: leio,
escrevo, faço crochet. Agora ia ali fazer umas arrumações e desinfectar umas
coisas...
– Desinfectar? Há algum problema?
– Não, não. É o balde. Antes quero usar o balde do que a casa de banho. Não é que
não seja limpa, mas nem sempre é desinfectada. Eu prefiro o balde. Despejo,
desinfecto com creolina, é mais seguro. Aqui há muitas doenças contagiosas:
hepatite, sida... A sida ainda é o menos, mas acho incrível porem pessoas dessas na
copa e na cozinha. Essas pessoas não deviam estar aqui, deviam ir para um sítio
onde sejam mais bem tratadas. Aqui são as colegas que tratam delas. Estava aí uma
que já não se levantava, cheia de feridas... Eram as colegas que tratavam dela.
Depois insistimos para a levarem para o hospital e no dia seguinte morreu. Isto aqui
com esta gente nunca se sabe, é preciso ter muito cuidado. Eu e mais umas usamos o
nosso balde, a nossa louça, usamos chinelos no banho – temos que nos proteger.
25 Por seu turno, uma detida do círculo da Ziza, a quem havia sido destinada a coabitação
com uma jovem seropositiva, logrou trocar de cela com uma outra reclusa,
pretextuando que, sendo esta do mesmo meio , poderia cuidar daquela e que,
seguramente, se entenderiam melhor:
A miúda era seropositiva. Era muito arriscado porque era muito instável. Estava
deprimida, fazia estragos... Pedi à Natália para trocar comigo porque ela também é
do Casal Ventoso. Acho que já se conheciam lá de fora. São do mesmo meio, assim
pode tratar dela. Fica muito melhor do que comigo.
26 Este pedido de troca foi atendido sem a menor reserva pela Natália, que passou, com
efeito, a «tratar» da colega, inclusive lavando-a e alimentando-a. Este tipo de
assistência é, aliás, frequente, prestando-se também a toxicodependentes que entram
na cadeia em síndrome de abstinência. São então ajudadas por algumas guardas
experientes, mas sobretudo por colegas, entre as quais aquelas que passaram pelo
163
mesmo, e reproduzirão mais tarde, por sua vez, estes gestos, oferecendo a ajuda que
receberam a outras recém-entradas.
Entrei aqui a ressacar, não me aguentava em pé. Eram as colegas que me obrigavam
a comer, que me limpavam, tiveram que me levar em braços para me lavar. Se não
fossem elas... Ajudaram-me muito. Vinham ver como é que eu estava, davam-me
tabaco, diziam-me o que é que eu devia fazer. Eu também faço isso porque temos
que ser umas para as outras não é?
Eu soube que estava grávida na cadeia. Não dei por nada porque já não tinha
menstruação há um ano, por causa da droga. Comecei a sentir uma coisa a mexer na
barriga e disse à guarda. Ela pensava que era da medicação e disse-me «Oh, isso é
cirrose!» – eu já estava de quatro meses. Depois uma colega foi-me dar banho para
ir a julgamento e quando me estava a ensaboar a barriga disse-me «Ai aqui há
pezinhos...» Comecei a ter muita fome. As colegas davam-me comida e começaram a
desconfiar que eu estava grávida. E não é que estava?
27 De resto, a entreajuda que vigora é de ordem mais genérica, por um lado, e, quando
comparada ao passado, mais generalizada, fazendo com que a noção de amizade venha
a ser localmente formulada pela primeira vez em modo directo, plural e abstracto, e
não apenas indirectamente, a partir de uma relação individual e concreta (lembre-se
que outrora ainda se admitia fazer corresponder uma determinada reclusa à noção de
«amiga», para mais uma noção em certa medida sugerida por mim, mas o conceito de
amizade carceral era definitivamente uma «tradução» do investigador):
Também não [me] foi difícil sobreviver aqui. Tive muito apoio das colegas. Eu não
tenho visitas, mas elas repartem tudo comigo. Se não tenho tabaco dão-me, ou pago
depois. Há muita ajuda aqui. Conheci aqui uma coisa que não conhecia lá fora, sabe?
A amizade. As colegas são cinco estrelas.
28 Dez anos atrás, este tipo de interajuda confinava-se aos pares de amigas preferenciais
ou aos dois microgrupos de locatárias que cumpriam pena na enfermaria e no campo –
assim eram designadas duas pequenas secções prisionais separadas do pavilhão,
adaptadas para alojamento. É certo que na altura eu atribuí principalmente a afinidades
sociológicas e penais a maior solidariedade no seio destas secções: numa, diziam-me as
próprias reclusas, Temos níveis de vida e níveis intelectuais não muito diferentes; noutra,
tratava-se de internadas de meios rurais, condenadas, na sua maioria, por homicídio.
Mas ocorreu-me também, numa espécie de ingénuo determinismo ecológico, que a
menor dimensão espacial destas unidades não seria alheia a uma tal proximidade.
Embora equivalentes em escala àquelas secções, os actuais edifícios de RAVI congregam
agora uma maior diversidade sócio-penal de detidas do que os maciços pavilhões
principais – e o espaço reduzido vem precisamente evidenciar e realçar essas
diferenças, que nas grandes unidades se diluem, por minoritárias. É assim que a Mina,
transferida para RAVI, apesar de ter consigo uma amiga do bairro comunicava-me uma
percepção bem contrastante com a que trouxera do pavilhão:
Isto aqui é mais luxuoso, mas havia muito mais união no pavilhão [a amiga assente
enfaticamente]. As pessoas ajudavam-se muito, repartiam umas com as outras. Aqui
não repartem, até bons restos deitam fora. Há para aí umas cheias de manias, mas
estão sempre a controlar, a meter-se na vida da gente. No pavilhão nunca me faltou
um bolo, um café. Desde que vim para aqui nem uma bolacha!
29 Talvez estas razões ajudem a esclarecer a renitência das detidas em aceitar transitar
dos pavilhões centrais para estas unidades, uma transferência muitas vezes necessária
para descongestionar os primeiros, já repletos. A Direcção queixa-se da resistência ao
que até seria uma promoção nas condições de alojamento, vendo nela apenas o receio
de uma perda de privacidade, e pressiona à transferência informando que só ela
164
permitirá aceder a um regime de execução da pena mais aberto. Nos pavilhões deparei-
me, além disso, com manifestações de solidariedade organizada e à grande escala:
cotizações inter-reclusas a favor de colegas particularmente desmunidas na iminência
de sair, cujo magro fundo de reserva não lhes permitiria fazer face aos primeiros
tempos de liberdade: abaixo-assinados intercedendo por detidas alvo de castigos
considerados injustos ou excessivos. Num pavilhão, dois deles foram assinados por 250
reclusas (num total de 298). Um dizia respeito a uma altercação entre duas internadas,
da qual resultou uma agressão: a punição inicialmente decretada foi suavizada em
duração e no regime (do manco ou cela disciplinar passou-se a encerramento em cela de
habitação); outro objectava à acusação de insulto a uma guarda, acabando a detida
acusada por ser absolvida. Refira-se, de passagem, que há dez anos apenas testemunhei
duas acções concertadas de amplitude análoga. A primeira mobilizou as prisioneiras na
subscrição colectiva de um texto dirigido a várias instâncias, onde se exigia a
divulgação dos resultados dos rastreios efectuados na prisão e o isolamento das co-
reclusas afectadas por qualquer doença transmissível: a segunda, de menor escala,
envolveu as estrangeiras num protesto contra as condições específicas a que eram
sujeitas em razão da sua nacionalidade.
30 Actualmente, a mais popular organizadora destas e de outras iniciativas é a Violeta. De
resto, a biblioteca que gere regista todos os dias um verdadeiro corrupio – em torno da
sua pessoa, que não dos livros – ao contrário das bibliotecas dos restantes pavilhões,
invariavelmente desertas. Sucede que além de popular, a Violeta provém de classes
populares, possuindo contudo um capital escolar (9.º ano) superior ao da maioria de
reclusas de mesma extracção, pelo que também se presta a redigir-lhes pedidos e
cartas. No pavilhão ao lado não têm idêntico sucesso as iniciativas empreendidas pela
Maria Luísa, uma outra «bibliotecária» de igual militância cívica e empenhamento
solidário – e envolvida ainda no associativismo recluso interprisional. Esta ex-líder, que
situaria abreviadamente na classe média, deplorava agora o aparente facto de ninguém
[querer] arriscar e recordava profusa e nostalgicamente os volvidos tempos gloriosos
em que o seu activismo teria mobilizado as massas locais 7. Descreveu-me uma destas
acções de protesto, ocorrida, segundo ela, pouco depois de eu ter terminado o meu
primeiro trabalho de campo. É de notar, porém, o grão de areia desta coesão, uma
coesão de superfície que rapidamente degenerou na confusão e no caos:
Foi uma altura muito problemática. Houve uma série de suicídios, faziam falta
psicólogos e psiquiatras, começavam a chegar as drogadas sem assistência
nenhuma, que precisavam de uma assistência profissional... No dia em que se
suicidou uma argentina, estávamos no refeitório e eu disse que nós não jantávamos
enquanto a senhora, directora não viesse falar connosco. Só que há uma cigana que
olha para o subchefe e diz «Tenho fome...» E ele disse: «Então venha buscar o
prato». Eu, muito democraticamente, acho que se as pessoas não querem aderir não
faz mal. Mas uma que não gramava a cigana – já tinha tido uma pega com ela – foi
buscar o termos e quando vem agarra no prato e dá com ele na cara da cigana. Aí o
chefe vai para bater nela, ela vai com o termos para bater no chefe... Bom, só lhe
digo uma coisa: foi um charivari tão grande naquele refeitório que andavam panelas
pelo ar. E eu calma e tranquila. Às tantas chamam as outras guardas todas e uma
chega ao pé de mim e diz assim: «Ó Maria Luísa, contenha-me estas mulheres». –
«Ai eu é que tenho de conter estas mulheres?» E eu disse: «Ó meninas, elas não
querem exercer violência sobre vocês. Já fizemos o protesto, vamos para a cela».
31 É verdade que as actuais reclusas permanecem alheadas das iniciativas da Maria Luísa –
tanto quanto se investem, em contrapartida, nas da Violeta. A diferença parece residir
quer nos objectos de protesto escolhidos por uma e por outra, quer no espaço social de
165
inserção das respectivas proponentes. A Violeta propõe uma solidariedade para com
um nome e um rosto que, em acréscimo, é frequentemente uma de nós – definindo esta
expressão uma zona de identificação elástica, mas excluindo uma parcela minoritária
da população prisional, quase sempre as reclusas extrabairros; a Maria Luísa propõe
uma causa que envolve menos pessoas do que as condições permanentes que as
afectam, ou categorias de pessoas com as quais a identificação é muito remota (por
exemplo, as estrangeiras que solicitam a transferência para o Funchal, onde é mais fácil
à família visitá-las dado a cidade se encontrar mais bem servida de voos directos e
económicos a partir dos seus países de origem). Em segundo lugar, ao contrário da
Maria Luísa, a Violeta é considerada uma entre iguais, susceptível de sofrer o mesmo
tipo de consequências, de as medir e de as enfrentar, oferecendo, nesse sentido, maior
confiança. Veja-se o perfil da Maria Luísa, corrosivamente traçado por uma detida do
Casal Ventoso:
É a revolucionária. A gente chama-lhe a Doutora. Está sempre a querer fazer
revoluções, abaixo-assinados, mas se for preciso na hora de rebentar a bomba
encolhe-se, não dá a cara, são as outras coitadas que têm represálias. Sobra sempre
para nós, a maralha. Eu já lhe disse que tenho muita pena, mas dali não assino nada.
Tenho uma pena muito longa, tenho de pensar nos meus filhos.
32 A minoria de detidas extrabairros, não por droga, é normalmente excluída deste círculo
de práticas e percepções de solidariedade alargada, mas ela própria se exclui desse
todo, em relação ao qual se demarca e vinca distâncias. Referi já aquelas que se
exprimem através do temor do contágio físico relativo a afecções de colegas, ou seja, a
doenças que são, em si mesmas, pegadiças . Mas a utilização de toda a sorte de
recipientes próprios não decorre apenas desse receio. São estas reclusas que se munem
de tupperwares com os quais vão buscar comida ao refeitório, tomando depois a refeição
na cela, ou que, não dispondo deles, para lá convergem mais tarde, quando não há tanta
mistura de gente. Quando perguntei a um destes grupos-tupperware se era costume que
pratos e marmitas fossem mal lavados, a resposta foi unânime: que não, mas tinham nojo
de servir-se da louça usada por toda a gente 8. Além disso, acrescentaram, nem assim se
sentiam menos humilhadas já que tinham de pedir comida às presas da copa. Por outro
lado, são ainda estas detidas que quotidianamente se manifestam incomodadas – dir-se-
ia, com mais propriedade, acossadas – pelos barulhos da prisão: os do movimento de
portas, gradões e ferrolhos, e sobretudo os das vozes; não de quaisquer vozes, mas de
uma altissonante vozearia popular, que a acústica carceral amplia (São pessoas
habituadas a falar assim, está-lhes no sangue. Não conseguem falar baixo). Principalmente
dizem-se perseguidas pelos cheiros. Mais uma vez, porém, não qualquer cheiro. Se as
minhas narinas se sentiam particularmente perturbadas pelos penetrantes odores do
estrume da quinta prisional, dos restos de comida das marmitas vazias, da
omnipresente lixívia e quejandos desinfectantes generosamente derramados por todos
os recintos (partilhando pelo menos as duas últimas incomodidades olfactivas com a
maioria das reclusas, que também as referem), as detidas da minoria queixam-se acima
de tudo dos odores das outras, mais propriamente do odor do «outro»: É este cheiro a
suor, a catinga, as drogadas que vomitam... É um cheiro que se entranha na cadeia, entranha-se
na gente9. A partir da asserção desta reclusa pode-se falar, então, de «osmologia» (osmos,
de odor, osmé, de infiltração, pese o artifício homofónico, que não a etimologia). Na
verdade, o olfacto põe em jogo categorias e seus limites10. Os odores possuem
precisamente essa qualidade de se desprender dos corpos e de atravessar fronteiras.
São por isso especialmente apropriados para exprimir a ideia de contágio ou de acção à
166
distância. Assim o notou David Howes (1991) a propósito do papel que eles
desempenham nos ritos de passagem e da recorrente conexão cultural entre odores e
configurações liminares, um ponto igualmente observado por Gell (1977), para quem o
olfacto seria mesmo o sentido por excelência da liminaridade 11. Por outro lado, aliás,
não terá sido por acaso que as prisões, como avançou Alain Corbin (1986), se assumiram
no século XVIII como laboratórios de experimentação da ventilação, da desodorização e
de outras técnicas sanitárias que, de seguida, se generalizaram às habitações familiares:
a ambição higienista encontrava-se então declaradamente cometida a uma preocupação
moralizadora e ao ensejo de evitar o contágio criminogéneo. Às reclusas de que falei
preocupa-as, como há uma década, um outro contágio, um outro nivelamento: aquele
que dissolve as fronteiras entre os corpos, que esgaça os limites entre pessoas e
categorias de pessoas12. Onde se queria distância, impermeabilidade e diferença, o odor
homogeneíza e sincroniza (Howes, 1991: 5).
33 Sabemos já que no passado a vida na prisão se traduzia, em grande parte, num exercício
de delimitação de fronteiras, exercício esse agora quase imperceptível e limitado a uma
discreta minoria de detidas. Nesse sentido, assim como a globalidade da população
reclusa deixou de se pautar pelo obsidiante pavor da contaminação microbiana e de o
subsumir no mais amplo receio da insalubridade natural das co-prisioneiras (que, por
na verdade se tratar de uma poluição simbólica, se propagaria às coisas e resistiria a
qualquer lavagem ordinária), também não se vê ontologicamente afectada por certos
barulhos e certos odores. Quando muito, a incomodidade que provocam será da mesma
natureza da induzida pelos restantes. Não se lhes atribui, como algumas internadas,
uma propriedade distinta por emanarem de uma categoria particular de pessoas que os
tornaria especialmente intoleráveis. Emanam genericamente, como todos os outros, do
ambiente físico e humano da prisão. Assim, apesar de se partilhar uma exposição
sonora e olfactiva comum, não se fala do mesmo modo o idioma dos ruídos e dos
cheiros. No que toca à maioria da população reclusa, alijado da sua sobrecarga de
sentido, ele deixaria, acima de tudo, de ser falado. Hoje como ontem, por conseguinte,
as ordens sensorial, cognitiva e social esclarecem-se reciprocamente, sendo no corpo e
pelo corpo que elas se intersectam.
34 Começámos por ver que o sentido da experiência corporal é mediado pelas práticas e
relações sociais. Ora, o corpo constitui com efeito uma importante cena performativa
dos jogos identitários da prisão. Terence Turner (1994) aludiu ao estatuto do corpo no
Ocidente, onde é a base de enraizamento e de produção da noção de pessoa. Sucede que
no contexto ocidental a noção de pessoa é marcadamente individuada, e o corpo é o
suporte e a expressão desta individuação. Diga-se que o conteúdo destas definições não
é universal. O próprio T. Turner (1995) mostraria como entre os Kayapo da Amazónia o
conceito de sujeito não delimita uma entidade íntegra (de algum modo é também neste
sentido que Marylin Strathern, 1988, contraporá aos «indivíduos» ocidentais os
«divíduos» melanésios, ou seja, o sujeito é localmente entendido como consubstancial
às relações sociais), tal como o conceito de corpo não recorta uma entidade unitária.
Aliás, ainda quanto aos Kayapo, o corpo não seria em si mesmo um objecto de
representação. Sê-lo-iam sim os diversos aspectos da corporalidade, pelos quais se
manifesta. E Thomas Csordas (1994) refere ainda o exemplo dos Canacas da nova
Caledónia estudados por Maurice Leenhardt, onde pessoas e coisas se subsumiam numa
ordem sociomítica global. A ideia de individuação ter-se-ia desenvolvido no contacto
com os europeus e, significativamente, acompanhou-se da explicitação da noção de
167
corpo como totalidade física discreta. No caso das reclusas de Tires, dado o sistema de
oposições recíprocas e a dinâmica da distanciação que no passado – e residualmente no
presente – estruturavam a identidade na prisão, por maioria de razão se manifestava de
modo mais enfático essa matriz cultural ocidental, tornando-se particularmente nítido
o elo entre o sentido individuado do eu e o corpo. Tal equivale a dizer que se reificavam
ainda mais os contornos justapostos de um e de outro. De resto, não é por acaso que
estas instituições atingem o primeiro através de uma acção sobre o segundo (pense-se
no nivelamento dos corpos e da aparência pelo porte de amplos e informes uniformes
prisionais); tal como não é acidental que a resistência à prisão tivesse passado há uma
década por um sobreinvestimento na aparência (por relação à vida antecarceral) e por
uma extrema focalização no corpo (ver Cunha 1996). Como defendeu Drew Leder, (1990:
90-91), um corpo mudo e ausente no dia-a-dia reimpõe-se à consciência aquando das
suas disfunções ou de anomalias que o implicam. Neste caso, a consciência aguda da
corporalidade ia de par com a sua alienação por via de um controlo exercido do
exterior. E numa situação de clausura está-se permanentemente à escuta dos sinais do
corpo já que a resolução de um eventual problema de saúde não depende apenas da
iniciativa das reclusas e da disponibilidade do médico. Entre ambos interpõe-se um
processo burocrático extramédico cujo desenlace, do ponto de vista daquelas, é incerto.
Daí que, hoje como outrora, d(ec)upliquem os pedidos para a marcação da mesma
consulta e que o staff as encare como irredutíveis hipocondríacas. Mas ontem, em
acréscimo, a consciência exacerbada do corpo era também a consciência do esboroar
das barreiras entre corpos e entre indivíduos, pelo que se procurava preservar as
fronteiras do sujeito através da protecção de uma impermeabilidade corpórea.
35 Não era apenas o acotovelamento constante com as co-detidas que era vivido como
invasivo da esfera individual: trata-se aqui de um efeito da sobrelotação sobre esse
para-sentido que é a proxémia – quer dizer, a relação social, culturalmente definida,
com o espaço (Hall, 196913). A exposição permanente ao olhar de outrem resultava
particularmente intrusiva na esfera privada. Várias reclusas sofriam de problemas
metabólicos (obstipação, cálculos renais) em consequência de inibições decorrentes da
coabitação celular, dado o forte sentimento de pudor e opróbrio face às manifestações e
excreções corporais. Na senda de Norbert Elias (1973: 193-204), que situa estes
sentimentos na História (ou mais precisamente em etapas de um particular «processo
civilizacional»), David Le Breton vê-os como um avatar de uma não muito longínqua
«privatização do corpo», que iria «encerrar as funções corporais no estrito domínio da
intimidade» (1991: 115). No presente, todavia, é frequente que as colegas de cela se
encontrem precisamente no círculo dos íntimos, ou dos próximos. Parentes, amigas e
vizinhas não atentam criticamente contra esta integridade pessoal – assim o parece
quando este aspecto deixou, sequer, de constar como tema local. Em contrapartida
mostram-se mais vulneráveis as reclusas da minoria. Uma delas, depois de me dizer não
frequentar o recreio por lhe fazer confusão ver as presas demasiado à vontade (meio
desnudadas) em banhos de sol e por recear ficar com má-fama junto do staff, que a poderia
associar à malta dos bairros e da droga, contava-me ainda que:
Para me despir na cela ponho uma cadeira e uma toalha à frente e peço [à colega]
para se virar. Quando preciso de ir ao balde, a mesma coisa. Isso é que custa.
Quando vou tomar banho, só ao entrar no duche é que tiro o roupão e a toalha. Um
dia ouvi bocas, porque quando ia a começar entraram duas presas, e eu saí logo.
Puseram-se: «Ai que esquisita!» E eu disse que não era obrigada a ver as outras e
que entrava depois.
168
Os corpos e os bairros
41 Vimos que no que toca à quase totalidade da população de Tires se diluíram as
fronteiras entre crimes e entre corpos, uns e outros tornados fungíveis em boa parte
em razão dos vários avatares da erosão da fronteira prisional. Não é o menor deles o
facto de a prisão não ser mais o que claramente desencadeia, inaugura e assinala às
reclusas o seu estigma. Como tal, os crimes e os corpos deixaram localmente de ser bons
para manobrá-lo e combatê-lo, permitindo multiplicar as barricadas internas. Se findou
170
o combate individual que se iniciava com e por causa da prisão, como actuam
formulações da identidade anteriores e alheias a ela, como as que se radicam no bairro,
na «raça» ou na etnicidade? Tal questão é tanto mais pertinente quanto, ao contrário
do que acontece com os crimes, é a co-presença na diversidade que impera. Gerará tal
diversidade alinhamentos sociais e representações da diferença?
42 Falemos previamente da repartição Norte-Sul (o Sul é emic amente traduzido pelas
nortenhas em Lisboa, apesar de muitas das colegas aqui incluídas provirem de distritos
bem mais meridionais). A julgar pela sua recorrência discursiva, um olhar apressado
poderia ver na dicotomia Norte-Lisboa uma clivagem maior da vida prisional – além do
que a proveniência geográfica da população reclusa se reparte maioritariamente, com
efeito, nestas duas grandes categorias. Todavia, para as do Sul as do Norte apenas
existem como tal quando delas troçam e as arreliam a propósito do sotaque e do uso
liberal que dão às obscenidades linguísticas. É certo que algumas – as «lisboetas»
extrabairros – dizem-se chocadas com o que se lhes afigura uma repugnante
manifestação do popular. Mas a maioria limita-se a ver naquele vernáculo um pitoresco
motivo de divertimento e a tomar os profusos palavrões por aquilo que são: não um
insulto, mas um bordão de linguagem. Quanto às do Norte , apenas assim se dizem
quando esta distante origem residencial as une na maior dificuldade que enfrentam
para receber visitas e para usufruir plenamente das precárias, dispendendo grande
parte do tempo e dinheiro em viagens. Por contraposição, é na medida do seu privilégio
neste âmbito que ganham existência as de Lisboa, uma categoria que não é mais do que
uma referência comparativa usada pelas nortenhas para sublinhar a terceiros a
desvantagem em que se encontram, sem que isso veicule qualquer implícita
depreciação das colegas. Trata-se tão-só de condenar o sistema prisional. A tal se
resume o recorte Norte-Lisboa, não se repercutindo em nenhuma outra área da vida
carceral, e muito menos na convivialidade local, onde as detidas de ambos os lados se
entrosam.
43 O bairro, esse sim, é um referente identitário importante e é investido como lugar de
pertença. Esta pertença pode ser codificada por uma tatuagem específica. Assim mo
assegurou uma detida, que me explicou serem os pontos que marcara na face a
assinatura do seu bairro (É porque sou da Musgueira). Porém, outras reclusas, de outros
bairros, ostentam o mesmo sinal: um ponto ao cimo de uma face e um outro na face
oposta, no canto inferior da boca. Usa-se assim, ou Agora vê-se muito, foi o que, por sua
vez, me informaram. A sua valência parece ser, por conseguinte, essencialmente
decorativa. Gadget simbólico ou não – ou, como muitos símbolos, plurívoco –, pode
ostentar para algumas uma pertença, mas não pretende delimitar uma fronteira já que,
sendo amplamente emprestado e partilhado por muitas, não tem um carácter distintivo
e portanto não terá, nesse sentido, eficácia. Não se trata então, como as tatuagens de
uma prisão americana estudadas por Margo Demello (1993), de traçar limites e
significar diferenças (de bairro, de gang ou étnicas) entre categorias de pessoas. O
mesmo se passa com outros ícones que, à semelhança do que sustenta Demello,
poderiam exprimir de igual modo em Tires o estatuto recluso. Contam-se entre eles a
quina de pontos entre o indicador e o polegar (dizendo, segundo algumas detidas, o
cerco das grades ou da cela) e o trevo, os vértices de um triângulo numa mão. O trevo é
um voto de que a carreira prisional se interrompa a breve trecho (É para cortar a cadeia
às que já levam muitos anos disto), mas também o signo de que essa carreira é longa, de
acordo com a Rosário (Já sou castarola). Adoptado nesta acepção, o trevo limita-se a
171
inscrever no corpo uma história, uma história para evidentemente ser lida, por si e por
outros, mas que não confere um especial prestígio, por exemplo promovendo as
veteranas e distanciando-as das novatas. Era aliás com displicência, e não com orgulho,
que a Rosário acedia a mostrar de perto o seu trevo às colegas que por vezes queriam
comparar técnicas e tamanhos. Quanto à quina, não se reveste de um particular valor
iniciático assinalando a entrada na cadeia. Várias reclusas já a traziam desenhada
previamente, inspiradas, segundo contam, nas tatuagens de parentes, amigos e vizinhos
que enfrentaram a detenção antes delas. É certo, por outro lado, que este símbolo é
usado por uma grande variedade de pessoas no mundo livre e não se esgota na valência
do cárcere (conheço quem lhe chame, simplesmente, «o solitário»), tal como o trevo
será, para muitos, o signo da felicidade. No contexto destes bairros, contudo, um e
outro situam-se, de facto, na órbita da prisão, estreitando-lhes o sentido e vergando-o a
ela. Também aqui se trata, mais uma vez, da incorporação da prisão no bairro,
literalmente inscrita, agora, na pele. É ainda uma história e uma pertença que se redige
no corpo – de novo, não uma fronteira – quando nele se faz figurar o nome do
companheiro e dos filhos, antecedido de um coração ou de Amor de ..., embora o
companheiro não venha a ser, afinal, eterno e essa história se queira rasurada,
utilizando-se então um produto abrasivo ou uma colher incandescida no fogo.
44 Mas se não é assim que se afirmam diferenças, é assim que se constata uma distância.
Quando é questão de decorar o corpo, recorre-se a uma gama iconográfica variada,
desde rosas e morangos a sereias, passando pelos motivos dos signos do Zodíaco e do
yin-yang. No entanto, num mesmo motivo decifraremos coisas diversas, nomeadamente
a enorme disparidade social entre a minoria de detidas extra-droga (nela incluídas as do
tráfico/consumo de ecstasy ) e a maioria das reclusas dos bairros. De um lado, por
exemplo, vemos uma sofisticada rosa colorida, de traço fino e discretamente disposta
no ombro; do outro, uma rudimentar rosa monocromática, de traço grosso e impreciso,
desenhada em grande formato numa zona mais pública (o braço ou a perna). Esta
diferença estilística parece decorrer, porém, menos do gosto do que de
constrangimentos técnicos, que resultam, por sua vez, de discrepâncias sócio-
económicas. O recurso a um tatuador profissional permite aceder a uma outra
qualidade que não a das tatuagens artesanais, feitas com molas de roupa, agulhas de
coser e tinta-da-china. Realizadas pela própria (ainda que nalguns casos ajudada pelas
colegas), dispõem-se em locais mais acessíveis – e expostos; realizadas à mão, e não à
máquina, o traço é inevitavelmente tosco e o processo especialmente doloroso (a agulha
terá de passar repetidamente na pele). Além de grosseiras tropeça-se, por isso, em
tatuagens incompletas, pedaços de figuras e de nomes que não se teve a coragem e o
afinco de levar até ao fim (Queria pôr o nome do meu marido, mas doía muito. Só consegui
fazer duas letras). Deste modo, se já não vinham marcar fronteiras entre bairros, as
tatuagens reúnem-nos numa mesma imperfeição, ao mesmo tempo que
reconhecivelmente os separam da minoria de reclusas mais afluentes. O fosso social
cavou-se, também ele, à superfície do corpo. De resto, esta distância cruza-se com uma
divergência nas representações e práticas de género. Uma destas últimas detidas
(significativamente uma dona-de-casa, algo a que, recordo, a maioria das reclusas não
acede, ou não pode aceder) falava-me não só de corpos demasiado legíveis e demasiado
marcados, mas ainda de corpos que se situariam nos antípodas das suas noções de
feminilidade:
Meu Deus, aquilo é tão feio. Ainda p’ra mais numa mulher. Numa mulher já acho
mal, mas há umas [tatuagens] bonitinhas, não estão assim TÃO à mostra. Agora
172
aquilo tudo torto, tudo mal feito... Dá cá um mau aspecto... Depois, já viu, querem
arranjar emprego e têm aquilo nos braços, mais as cicatrizes dos cortes [das auto-
mutilações]. Depois essa gente dos bairros admira-se de não sair da cepa torta!
45 Ora, assim como uma tatuagem poderá inicialmente sublinhar, quanto muito, o apego
ao lugar de origem (mas rapidamente, como vimos, ela se generaliza), é também nos
primeiros tempos da reclusão que a pertença comum a um bairro se revela um
importante instrumento de integração. Uma recém-chegada é imediatamente
amparada e iniciada pela vizinhança nas regras formais e informais de funcionamento
da instituição, independentemente de se conhecerem ou não antes da prisão – num
entendimento lato, portanto, da noção de vizinhança. Uma reclusa da Pedreira dos
Húngaros, traficante, não consumidora, recordava a sua chegada a Tires:
Quando cheguei senti-me tão desorientada que nem queria ir p’ró pé das outras. Só
queria ficar sozinha. Mas depois vieram aqui ter comigo uma data de pessoas do
meu bairro. Umas eu já conhecia lá de fora. Disseram-me o que é que eu podia fazer,
o que é que é proibido, o que não é, as pessoas que não interessava falar: «Olha,
aquela é esquisita, é assim e assado». Eu dizia bom-dia a uma que não conhecia, elas
aconselhavam-me: «Olha que aquela não vale a pena, é toda não-me-toques, tem a
mania que é mais que as outras [...]» Também me davam cigarros e assim, lá isso é
verdade, não me deixaram faltar nada. Noutro dia entrou aí uma do meu bairro a
curar a frio e eu também a apoiei muito. Dou-lhe fruta, comida, obrigo-a a comer.
Só estou a fazer o mesmo, não é por ser nenhuma otária [refere-se aos comentários
de duas reclusas extra-droga, segundo os quais ela se deixaria explorar pelas
colegas].
46 Tomadas sem contexto, as palavras desta detida induzir-nos-iam a pensar que o bairro
opera quer uma filtragem na sociabilidade, fornecendo o mapa das pessoas que não
interessa falar, quer um alinhamento da solidariedade. O mesmo se poderia concluir da
apreciação de uma outra prisioneira extrabairros: Não deixam passar fome às do bairro. O
bairro é tudo. Todavia, se a primeira reclusa vê de demasiado perto (por um lado
reportando-se a um momento específico e por outro ao seu próprio acto de
reciprocidade para com o bairro, na forma da ajuda que prestou a uma vizinha), a
segunda vê de demasiado longe: não frequentando os círculos populares da
sociabilidade dada a distância social que a separa deles, resume-os no princípio da
solidariedade de bairro. Nas práticas sociais locais este princípio, de facto, funciona,
mas actua sobretudo no início da reclusão e, principalmente, como bússola, como
princípio de repérage. O alinhamento social por bairros rapidamente se esbaterá, não
porque a solidariedade intrabairro se desvalorize, mas porque entretanto ganhou valor
a solidariedade alargada (pense-se nas suas manifestações colectivas que atrás referi,
bem como na que se vota a toxicodependentes recém-chegadas, muitas vezes
independentemente da proveniência destas). Os grupos passarão então a constituir-se
segundo uma lógica que leva menos em conta tal categoria de inserção. De resto, os
círculos interbairros desenham-se não raro logo à entrada, por via do
interconhecimento prévio.
47 Na verdade, e saindo de novo da prisão para o exterior através dos trajectos narrados
pelas reclusas, estes bairros peri-urbanos não são ghettos sociais e identitários. Existe
entre eles uma forte circulação de pessoas, não para sulcar apenas os circuitos da
economia ilegal, mas antes de tudo para percorrer os do parentesco, da amizade e do
trabalho. Parcelas de parentes, amigos e vizinhos são deslocadas em processos de
realojamento para outros lugares, passando de bairros de barracas para bairros de
habitação social – que em breve, aliás, verão improvisar-se acampamentos e por vezes
173
novas barracas em seu redor, não só de alguns dos parentes, amigos e ex-vizinhos que
haviam ficado para trás, como também de parentes e amigos provenientes de outros
bairros ainda. Quanto ao trabalho, promove, em primeiro lugar, o interconhecimento
através dos circuitos da venda, comuns a vários bairros, sejam eles os das feiras ou dos
mercados; em segundo lugar activa, em consequência da criação desses laços, a
circulação entre bairros, procurando-se por exemplo contactos ou uma palavrinha para
um emprego nas limpezas, numa casa particular ou numa empresa onde uma conhecida
haja trabalhado. Além disso, dá-se até o caso de coincidirem laços laborais e familiares,
que assim unem diversas áreas residenciais. Pode-se por isso falar de bairros
articulados em rede16. Mas são também os mesmos bairros que se encontram, não o
esqueçamos, conjuntamente nivelados numa comum exclusão. De resto, a transferência
para um bairro de realojamento não a altera, nem traduz necessariamente um
movimento inverso, mesmo que possa representar uma melhoria nas condições de
habitabilidade. Como o notaram Cardoso e Perista (1994: 102-103; 108-110), a lógica
urbanística que preside à criação de zonas residenciais destinadas a absorver as
populações dos bairros de barracas prolonga e acentua a expressão espacial da
segregação social face ao contexto urbano envolvente. E são ainda todos estes bairros
que se encontram conjuntamente nivelados numa comum repressão, que os vem
igualmente articular em rede na prisão. Assim uma reclusa cigana, quando se me
queixava da actuação incorrecta de um agente policial, deparou-se com o assentimento
solidário e indignado de uma colega não cigana ali perto que ela não conhecia, também
residente num bairro do distrito de Lisboa, mas distando bastante do seu: Aposto que foi
o Sidónio, não foi? – Foi ele, foi... – Pois é, só podia ser ele! Partiriam depois as duas numa
conversa animada. Regressaremos, em breve, ao bairro.
«Raça»/etnicidade e classe
48 Se o bairro não produz na prisão recortes simbólicos nítidos e perenes nem
alinhamentos sociais monolíticos, vejamos como jogam outros possíveis referentes
identitários, como os étnico-«raciais». Aparentemente, o glossário local vem
contemplá-los em termos como branca, preta, africana, cabo-verdiana, angolana, cigana e
corrilha (as não-ciganas). No entanto, a saliência quotidiana destas categorias
discursivas é praticamente nula, ao invés do que sucedia há uma década, quando eram
constantemente activadas. Tratava-se então de denegrir colectivamente um conjunto
de reclusas, manobrando-se neste processo essencialmente dois termos: ciganas e cabo-
verdianas. A categoria cabo-verdianas era alvo de uma definição particularmente elástica
por parte das detidas não africanas, para quem pareciam ser irrelevantes para o efeito
os factos da nacionalidade, origem ou naturalidade. A cor da pele era critério suficiente
para uma tal delimitação, sendo por conseguinte remetidas para a «cabo-verdianidade»
a maioria das reclusas provenientes de países africanos. Porquê esta subsunção da cor
na categoria cabo-verdianas, quando seria mais previsível a relação de englobamento
inversa, ou seja, que angolanas, guineenses, são-tomenses, etc. – e cabo-verdianas –
fossem designadas, por exemplo, por negras ou pretas? Porque, creio, a noção de cabo-
verdiano era na altura boa para estigmatizar, ou, em todo o caso, melhor do que as que
codificavam a cor da pele. A atribuição que tornava aquela categoria especialmente
centrípeta e inclusiva não era certamente alheia às representações hegemónicas que à
época isolavam a comunidade cabo-verdiana em Portugal como «problema» e lhe
colavam a propensão para a violência, a delinquência e o desvio (cf. Rodrigues, 1990: 63;
174
«vitimados» em modalidades não muito divergentes das que se abatem sobre aquelas
mulheres (e penso nomeadamente nos parentes, amigos e vizinhos masculinos das
reclusas de Tires, encarcerados ou não). E se é certo que um «projecto patriarcal» terá
coarctado oportunidades económicas a mulheres desfavorecidas nos EUA, terá sido bem
menos sucedido nas camadas femininas pobres em Portugal (cf supra: 158-162). Por
conseguinte, há que preservar a priori uma descontinuidade conceptual entre género,
«raça»/etnicidade e classe (e só depois conjugá-los à prova do empírico) de modo a
poder captar as propriedades específicas que o seu jogo assume em diferentes
contextos. Para tentar delineá-las para a realidade portuguesa que estudo, sou levada
de volta a outras paragens. Tendo já noutro capítulo abordado comparativamente a
intervenção do género, centro-me agora na equação restante, mas acrescentando-lhe
porém o bairro.
classe média baixa, tal intervenção assenta na ideia (já desmentida por Jean-Claude
Chamboredon e Madeleine Lemaire, 1970) de que a proximidade espacial absorve a
distância social. Porém, esta minuciosa engenharia de gabinete, chamemos-lhe assim,
trava por outro lado mecanismos «espontâneos» de agrupamento, quando não
fragmenta redes sociais informais de entreajuda que frequentemente são o único
capital de que dispõem populações pauperizadas. Vários urbanistas criticariam por
conseguinte a violência desta assimilação forçada, que não leva em conta as
sedimentadas comunidades de vizinhança e conduz não raro a uma atomização social
(e. g. Genestier, 1992; P. Simon, 1992):
[L]es politiques de « recomposition sociale » et de « mixité de peuplement » des
grands ensembles ont de grandes chances d’aboutir au résultat inverse de celui
attendu. Si l’on suit le raisonnement du législateur, la construction d’immeubles de
catégories différentes dans un même espace [...] devrait permettre une plus grande
intégration des uns et des autres par contacts. Cela revient à dire que la
connaissance de l’autre par proximité facilite les rapports sociaux. [...] Au contraire,
ce type de rapprochement artificiel conduit souvent à radicaliser les
comportements d’évitement et par la suite d’hostilité réciproque. [I]l se produit une
sorte de compétition pour la définition symbolique de l’espace (Simon, 1992: 60-61).
60 Patrick Simon contrapõe às cités da cintura urbana o exemplo da sociabilidade densa e
da coabitação sem dificuldades de maior num bairro parisiense pobre, tanto mais
assinalável, segundo o autor, quanto avizinha comunidades judaicas sefarditas e
muçulmanas magrebinas. Trata-se aqui de uma agregação espacial «natural» ou,
melhor dito, de um «bairro social de facto», característico de zonas degradadas de
velhos centros urbanos em processo de reabilitação ou demolição. Acrescente-se que a
composição social do bairro é relativamente uniforme (ibidem: 62-63). Porém este tipo
sociológico de habitat tende a desaparecer para dar lugar a outras constelações
residenciais, marcadas pela tensão. Ecoando aparentemente Chamboredon e Lemaire,
Bourdieu sustenta que:
Si 1’habitat contribue à faire l’habitus, l’habitus contribue aussi à faire l’habitat, à
travers les usages sociaux, plus ou moins adéquats, qu’il incline à en faire. On est
ainsi conduit à mettre en doute la croyance que le rapprochement spatial d’agents
très éloignés dans l’espace social peut, par soi, avoir un effet de rapprochement
social: en fait, rien n’est plus intolérable que la proximité physique (vécue comme
prosmicuité) de gens socialement éloignés (1993: 166).
61 Ora, acontece que apesar de globalmente precarizados, os habitantes destas cités
periféricas ou aglomerados HLM (Habitations à Loyer Modéré) não o são todos da
mesma maneira – ou pensam que o não são da mesma maneira. A tensão nascerá da
coabitação entre fracções nacionais de classes médias baixas ou operárias em declínio e
famílias imigradas, manifestando-se frequentemente em atitudes xenófobas por parte
de uns e de revolta por parte de outros. Como defende Wacquant (1994, 1995), portanto,
enquanto o ghetto sofre da segregação (ou seja, da distância social entre um
subproletariado «étnico-racial» e o resto da população, branca e não-branca), a cité
sofre da agregação forçada. Uma abundante bibliografia francesa documenta
precisamente as infra-hierarquias – ou as estratificações entre pobres – que
obsessivamente se vincam nas cités. Não se trata apenas da competição por recursos
colectivos (equipamentos, serviços, espaços). Trata-se também de uma competição
simbólica ligada à crise estatutária de pequenos funcionários e colarinhos azuis, que
vêem na proximidade espacial com imigrantes um dos signos de despromoção social – e
sabemos já quanto o espectro da «queda» e o tema da «exclusão» se tornaram angústias
179
difusas em França (cf. supra: 177) –, ou um obstáculo à promoção social. É assim que
confusamente lhes atribuirão a marca infamante que pesa sobre o bairro, perante o
qual, de resto, se colocarão como testemunhas críticas de primeira linha. Além disso, as
famílias imigradas são fixadas a um «pólo negativo de substituição» (Althabe, 1993:
37-42; Sélim, 1993) que ao mesmo tempo proporciona aos desclassificados a derradeira
garantia simbólica contra a expulsão total do campo social: a última fronteira, se
quisermos, contra o descrédito é aqui etno-nacional dado que os autóctones pelo menos
não correm o risco de se tornarem estrangeiros.
62 Simplesmente, a devolução do estigma não se limita a focar-se nos habitantes de
origem estrangeira. Ela dirige-se de igual forma às famílias nacionais «assistidas» e aos
«casos sociais» alvo da atenção directa do Estado, ambos signo de inferioridade e
objecto de inferiorização interna. Ou seja, não é exclusivamente na diferença étnica que
assenta o modo de comunicação antagónico e a ausência de identificação com o bairro
de residência que dão o tom a estes territórios. Como sugere Louis Gruel (1985), em
contextos populares franceses de outrora tal diferença não obstou a sentimentos de
pertença e de identidade colectiva. Tal como na prisão de Tires há dez anos, a
pluralidade étnico-«racial» não engendra por si mesma a economia da estigmatização
mútua. Vem apenas tomar parte nela, quer dizer, combinar-se em algo que, em lógica,
lhe pré-existe:
[L]a démarcation éthnique est un niveau ou moment de la négociation du statut
personnel. [...] A vrai dire, il semble bien que si les distances ethniques
s’incorporent, parfois violemment, à l’économie de « détournement » qui régit les
cités de transit, c’est parce que cette économie est toujours déjà présente, comme
en attente urgente de différences à exploiter (ibidem: 1985: 448).
63 Gruel oporá justamente as formas de representação colectiva deste tipo de
aglomerados (cités de transit) às das cités d’urgence, bairros fortemente marcados pela
insolvência e pela penúria, e socialmente homogéneos. Há que salientar, porém, que se
os primeiros se encontram em expansão, os segundos estão francamente em recuo,
sendo hoje bastantes raros. Independentemente da real densidade e extensão das redes
de convivialidade e dos cachos de afinidade que emergirão numa e noutra, enquanto na
cité de transit prevalece a distanciação ideológica, o discurso entrecruzado da traição à
norma, na cité d’urgence vigora a simbólica da reciprocidade, a retórica da integração e
da solidariedade comunitária, do enraizamento protector no bairro. A crer noutros
estudos, esta oposição entre ordens de representações parece ter, aliás, alguma
correspondência com as respectivas ordens de práticas. Monique Sélim destacará
assim, para um habitat do último tipo, a sociabilidade e a solidariedade alargadas, as
redes de troca e entreajuda de que se faz a economia da sobrevivência. É de resto de
referir a representação que os seus habitantes faziam da sua condição comum:
[U]ne pauvreté extrême leur semble être leur lot « normal » et détermine un mode
de vie dont ils affirment avec force la valeur intrinsèque sans en éprouver de
ressentiment ni exprimer de revendication. [...] Une même misère, référence quasi
positive autant que sort pénalisant, unit les uns et les autres, et les pousse à
défendre ceux qui par leurs actes ont fait porter sur le quartier un blâme général
(1989: 78).
64 Mas do lado das cités periféricas infra-estratificadas, onde «L’enjeu est de convaincre, et
d’abord de se convaincre, que l’on n’est pas ‘pareil que ces gens-lá’» (ver também a este
propósito Pétonnet, 1982) e onde se trata de evitar as relações «degradantes» com os
vizinhos, Agnès Villechaise (1997) destacará, por um lado, a solidão, a desconfiança e o
180
(Comaroff in Wilmsen, 1996: 4), a identidade étnica surge por seu turno «quando – e se –
se intersectam [dois] processos», isto é, a consciência étnica e a classe (Wilmsen, 1996:
6). A «integração na exclusão» de que falei não é decerto alheia à especificidade do
modo de intervenção da «raça»/etnicidade na prisão – e é válida, de resto, para
entender a diluição de outras fronteiras intraprisionais que não as étnicas. «Raça» e
etnicidade não se apresentam localmente como categorias críticas de representação e
discurso, nem com o potencial suficiente para organizar relações sociais. Dadas as
balizas do percurso comparativo atrás detalhado tal deve-se, creio, às formas
particulares que em contextos portugueses assume o jogo cruzado entre a «raça»/
etnicidade e a classe, mediado por condições ecológicas tais como o bairro e pela
economia ilegal dos mercados retalhistas de droga.
social e cultura. Convocadas pelo staff, etnia e cultura tornam-se também pré-noções
que elidem os meandros individuais das motivações das reclusas e os termos do que
comunicam: uma enumeração das razões de um pedido de saída precária foi recebida
com o comentário «Está bem que é de etnia cigana, gostam de fazer o choradinho, mas oferece-
me alguma confiança» (o pedido seria no entanto indeferido em Conselho Técnico, uma
vez que a detida em causa não revelara ter interiorizado o sentido da pena).
76 Se a etnicidade constitui assim uma via pela qual membros do pessoal penitenciário
amplificam a distância social que o separa das reclusas, a exotização da pobreza é uma
outra. À pobreza corresponderia, de novo, uma cultura muito própria – que entre outras
coisas explicaria que se trouxesse droga a um irmão, a um filho, a um companheiro
toxicodependente – ou uma mentalidade específica e enigmática, uma noção que se
exprime, por exemplo, através da recorrente questão Como é que se pode traficar droga
quando se tem um filho toxicodependente? Segundo estes membros do staff, tais detidas não
poderiam compreender porque se acham na prisão, porque foram condenadas a penas
tão pesadas, e dificilmente alcançariam, pois, o sentido da pena. No caso das
toxicómanas, não lhes seria mesmo possível atingir o sentido dos castigos de que são
objecto na cadeia, continuando estes a ser infligidos apenas para gerir imparcialmente
a disciplina, ou seja, para que outras reclusas, punidas por motivos semelhantes, não os
entendam como injustos. A distância de que falei é então representada como
incomensurabilidade. De quando em quando, porém, procura-se penetrar e traduzir
esta suposta obscura mentalidade dos pobres, polvilhando um discurso sobre a miséria
moral e mental com a atribuição de traços psicosociais (que de resto teriam lavrado o
terreno ao seu crime) como a baixa resistência à frustração, a necessidade da gratificação
imediata e a correlativa incapacidade de diferir o prazer (vulgo, o dinheiro fácil), enfim, a
orientação para o presente. Eis-nos portanto perante o que poderia ser uma das
destilações da «cultura da pobreza», posto que «a orientação para o presente» figura
precisamente como um dos componentes proeminentes da caracterização que dela fez
Oscar Lewis (1979 [1961]: 27). Um conjunto particular de comportamentos, valores e
ideias ter-se-ia inicialmente gerado, segundo Lewis, como resposta adaptativa à
marginalidade económica mas, uma vez constituída, uma tal cultura perpetuar-se-ia de
forma auto-sustentada, imune à mudança e encerrando por si mesma os pobres na
miséria, reproduzindo-a. A despeito das intenções de Lewis, a «cultura da pobreza»
abriu caminho à exclusiva responsabilização dos pobres pela sua subalternidade (e em
nome da existência de comportamentos e valores «contraproducentes», por assim
dizer, chegou-se a julgar inútil qualquer intervenção no sentido de melhorar a sua
condição, eliminando-se, por exemplo, programas sociais), tornando-se porventura no
paradigma da já extensa galeria de conceitos-golem26. Bourgois (1998) aponta, aliás, a
enorme polarização ideológica em torno dos estudos sobre a pobreza nos EUA. Mas
apesar desta apropriação transvia, é verdade que o desenho da noção de «cultura da
pobreza» encerrava problemas analíticos fundamentais, entre os quais o de acabar por
desconectar por completo os processos culturais dos processos económicos e políticos,
e o de não levar em conta as influências constitutivas de valores sociais envolventes-
emanando, se quisermos, do «centro». Seguir-se-ia, pois, uma opulenta bateria de
críticas. Algumas (e. g. Valentine, 1961; Leeds, 1971; Perlman, 1976) cairiam no extremo
simétrico, parecendo encarar a reprodução das relações de classe apenas como o efeito
mecânico, directo e sobredeterminado das estruturas de desigualdade (quando as
etnografias de Howe, 1990, 1998, sobre os desempregados, e de Willis, 1977, sobre os
jovens de classes trabalhadoras, são um claro exemplo de que o não é). E quer Ulf
186
Hannerz (1969), quer Leo Howe (1998) apontaram que a distinção analítica entre
«cultura» e «resposta situacional», introduzida pelos críticos de Lewis para explicar
comportamentos ligados à pobreza (com quem, de resto, os autores concordam
parcialmente27), cria uma falsa dicotomia uma vez que a cultura não deve ser entendida
como um arcano núcleo duro de valores, sendo também ela em grande medida
«situacional»; ou seja, transmitida sim, mas processual, usada especificamente pelos
actores, (re)criada continuamente na prática, tecida através de várias mediações –
escusado é discorrer mais sobre uma perspectiva da cultura que há já muito faz parte
do abecedário da antropologia. Dito isto, nem todos os gatos são pardos e a ideia de
cultura, operando em múltiplas arenas públicas, carrega um potencial reificante, como
aquele com que o discurso de membros do staff de Tires me confrontou. Por isso, tal
como o tema da orientação para o presente, deve ser tratada com pinças. Somos pois
reconduzidos ao domínio da política da representação do «outro».
77 Uma das mais recentes – e brilhantes – elaborações em torno da «orientação para o
presente» é o volume colectivo Lilies of the field. Marginal people who live for the moment
(Day, Papataxiarchis, Stewart, 1999). Prostitutas londrinas, camponeses gregos, ciganos
húngaros, assalariados japoneses – e outros – seriam neste aspecto como que as versões
modernas dos caçadores-recolectores tanzanianos estudados por Woodburn, uma
referência central na introdução da obra: uni-los-ia uma comum aposta cultural activa
no curto prazo, um resoluto e celebrado engajamento «antieconómico» no presente,
que, em última instância, constituiria um poderoso instrumento de resistência a grupos
vizinhos e instituições, e uma eficaz crítica cultural e política (ibidem: 3; 4). Opõem-se do
seguinte modo duas ordens de representação ou dois modelos de comportamento que,
adiante (ibidem: 11), serão apresentados como contraditórios:
[I]nstead of adopting mainstream notions of work, productivity, and long-term
economic planning, [these people] appear to take a «natural» abundance for
granted and to forage for their subsistence [...] In these cases foraging depends
upon an idea of plenty; it is taken for granted that whatever you need is available
more or less whenever you want it – there is no need to store, or to do without so as
to hoard for the future (ibidem: 1).
78 Os autores partilham das críticas dirigidas a Lewis e convocam o quadro económico da
marginalidade – mas contra-objectando à posição igualmente veiculada por algumas
delas de que não existiria uma «cultura distinta» entre as camadas pobres. Pretendem,
na verdade, realçar o conteúdo positivo desse modo de vida, não o vendo como uma
mera resposta passiva a constrangimentos estruturais:
One of the sharpest critiques made of the «culture of poverty» literature was that it
blamed the poor for their situation. In response to this criticism ethnographers
might be tempted to invert conventional rhetoric and attribute «marginality»
exclusively to global processes. But this perspective would suffer the same
problems as the one it attacks, since it makes it difficult to acknowledge that the
way of life of Aegean Greeks, day laborers or prostitutes may exacerbate a
structurally imposed marginality. In some situations, marginal people may
celebrate their «feckless», «irresponsible», or «spendthrift» behavior for the very
real freedom it confers. For much of the time, a present orientation works, in the
sense that it is more enjoyable, pleasurable, and sociable (productive of happiness)
than life in the long term (ibidem: 118).
79 Subsidiária e pontualmente referirão que a orientação para o presente é um aspecto da
vida das pessoas, e S. Day (ibidem: 154), já no final do seu artigo, reporta-se aos riscos de
reificação em que esta abordagem incorre, dizendo que nas ideologias sobre o trabalho
187
lado, o que nem sempre acontece caso se viva no limiar da sobrevivência) e de um meio
demasiado escasso para arriscar deixar fugir as migalhas que providencia. As reclusas
de Tires não parecem fazer gala da liberdade de viver no imediato, e provavelmente de
bom grado prescindiriam dela, embora reconheça que alguma liberdade existirá no
desprendimento que revelam ao partilharem o pouco que têm – uma partilha que,
conforme perspicazmente sugerem os autores, se localiza por vezes para lá de códigos
de reciprocidade. No que respeita às detidas, em todo o caso não situaria
adequadamente estas formas culturais se as descrevesse como lógicas de resistência e
protesto, ou comentários de «crítica cultural». Certo é que estas mulheres não se
quedam apáticas, passivas e exânimes perante a adversidade e cilindradas por
estruturas de dominação múltipla. Na impossibilidade de «segurar a vida», para usar
mais uma vez do feliz tropo de K. Wall, «vão à vida», com tenacidade e criatividade 28.
Mas em vez de «resistência», falaria antes de «resiliência», quer por me parecer
caracterizar de maneira mais aproximada a sua agencialidade – quanto muito, a
resistência seria um subproduto desta agencialidade, não a sua forma (cf. Ortner, 1995:
185) –, quer para não exaurir ainda mais um conceito cuja valia analítica tem vindo a
ser diluída por um uso arbitrário e ideológico. Como recentemente sugeriu Marshall
Sahlins, o par dominação-resistência tornou-se (como outrora o conceito de identidade,
cf. Bromberger, 1993) uma encantatória chave que abre qualquer porta, « a no-lose
strategy since the two characterizations, dominance and resistence, are contradictory and in
some combination will cover any and every historical eventuality», além do que cauciona pela
via moral qualquer argumento: imputando-se resistência ao «outro», «the true and the
good become one» (1999b: V). Sahlins adverte que este tipo de abordagem por vezes
conduz a utilizar outras sociedades como álibis para o que nos perturba, como se os
seus membros tivessem construído as suas vidas em função das nossas preocupações.
Assim, continua o autor no mesmo tom vitriólico, quaisquer que sejam as formas
culturais em questão,
[They] are accounted for [...] by their moral-political implications. It is enough to
show that they are effects of or reactions to [...] domination, as if their supposed
hegemonic or counterhegemonic functions could specify their cultural contents. An
acid bath of instrumentality, the procedure dissolves worlds of cultural diversity
into the one indeterminate meaning [...] So nowadays all culture is power. It used to
be that everything maintained the social solidarity. Then for a while everything was
economic or adaptively advantageous. We seem to be on a great spiritual quest for
the purpose of cultural things (ibidem: VI)29.
81 Levou-nos à política da representação a fronteira cultural que o staff traça entre si e as
reclusas, mediante a qual exprime e simultaneamente amplia a distância social que o
separa delas. Mas se a distância social é assim convertida em distância cultural e
inteiramente retraduzida no seu idioma, uma tendência oposta coexiste com esta,
embora na verdade se trate de duas indissociáveis faces de uma mesma moeda, do verso
e do reverso de uma mesma lógica. Se com efeito a fronteira cultural é constantemente
reafirmada, tal não será porventura alheio ao facto de se intuir em risco de colapso
outras fronteiras, nomeadamente as que implicam a identidade profissional. O fosso
estrutural que separa o staff das detidas é em muitos momentos transcendido pelo que
ao primeiro surge como uma perturbadora identificação com as segundas, mais
precisamente por uma projecção do tipo Se eu estivesse no seu lugar... Comparando o
pessoal penitenciário actual com o de outrora esta projecção é inédita, sobretudo nas
proporções que atinge entre os seus membros. Muitos, com filhos ou idosos a seu cargo,
imaginam-se de súbito transportados para a situação de profunda pobreza e
189
conflitos abundam, e são até mais agudos no que no passado. Mas geram-se entre
parentes, amigos e vizinhos, e porque se trata de parentes, amigos e vizinhos. Todavia,
a mesma malha de relações de proximidade que tece o conflito é também aquela por via
da qual se desarrumaram todas as categorias e fronteiras de outrora. Se existem,
portanto, lutas, não existem mais lutas simbólicas. A «integração na exclusão» que
configurava já no exterior o quadro social de inserção das reclusas consuma-se deste
modo na prisão, onde vem, também, fortalecer um quadro comum de sentido.
NOTAS
1. Esta dissonância de representações entre diversos estratos do staff não deixa de me sugerir, em
parte, um paralelo com o que pude constatar numa investigação de terreno no hospital
psiquiátrico Júlio de Matos (Cunha, 1988: 471). Grosso modo, quanto mais elevado ou especializado
era o estrato profissional do pessoal, maior era o poder centrípeto e objectivizante das etiquetas
patológicas na definição do sujeito internado. Deste modo, toda a sua conduta se constituía num
comportamento clínico: qualquer altercação, qualquer episódio entre doentes era subtraído à
dinâmica e ao contexto relacional em que se inseria para ser de imediato reinscrito como
sintoma. No caso das heroinómanas de Tires, os especialistas reenviam a sua conduta à
toxicodependência, que lhes teria inculcado uma personalidade própria – «típica», se quisermos.
2. (Em itálico no original.) Esta polarização em torno das duas figuras ganhou recentemente em
Portugal uma nova tradução na lei com a descriminalização do consumo de drogas, entrada em
vigor em 2001. Consoante as modalidades do consumo, este passa a ser penalizado com coimas ou
com uma variedade de sanções não pecuniárias. No caso dos toxicodependentes, a sanção poderá
ser suspensa caso se submetam voluntariamente a tratamento.
3. Este dado é consentâneo com os avançados pela DGSP no ano de 1997 para a totalidade do
universo prisional português (17,3%). Quanto às hepatites B e C, afectariam mais de metade desta
população.
4. Os danos físicos auto-infligidos não se constatavam no passado em Tires, mas eram nessa
altura correntes em prisões masculinas (e. g. Moreira, 1994: 149-155). Tal contradiz a afirmação de
Lucia Zedner (1995: 360) segundo a qual a tendência para a automutilação seria quase que
endémica nas prisões femininas, sem que se verificasse um equivalente autodestrutivo na versão
masculina.
5. É justamente contra estes diagnósticos comuns que se coloca Alison Liebling (1994: 5-7),
adiantando também que, embora tais práticas configurem uma «síndrome» específica e não
correspondam a impulsos suicidas, representariam a transposição de um limiar de
vulnerabilidade e, nesse sentido, uma maior probabilidade de suicídio:
[W]omen injuring themselves repeatedly attract pseudo-psychiatric diagnosis such as
“sociopathic disorder”, “personality disorder”, hysterical, attention-seeking behaviour”. These
labels are unhelpful [...] and they contribute to a dangerous and false assumption that the
behaviour is irrational, meaningless, and unrelated to suicide [...]. In fact, the behaviour may
have a very clear meaning (ibidem: 5).
Este sentido seria menos o de um «grito por ajuda» do que um «grito de dor» (ibidem: 8). E se a
automutilação exprimiria esta dor, constituiria uma forma algo paradoxal de a controlar: a dor
exterior, física, seria mais facilmente controlável do que a dor interior, emocional. Por outras
191
palavras, a interposição deste ecrã faria destas práticas um meio de aliviar a dor e a revolta em
situações críticas de stress (ver ainda Wilkins e Coid, 1991; Coid, Wilkins e Everitt, 1992).
6. Diga-se, na verdade, que se trata de uma das guardas mais queridas pelas detidas, quer no
passado, quer no presente, o que poderá ter também contribuído para a boa recepção dos seus
esforços.
7. A Maria Luísa reivindica ter estado na origem do encerramento da cadeia das Mónicas em
Lisboa (após uma sua tumultuosa greve de fome contra as condições carcerais, que teria atraído a
atenção de alguns deputados) e do fim da gestão do EPT por parte das religiosas da Ordem do
Bom Pastor, que remontava a 1954:
Fui eu que corri com elas. A madre – não tinha um metro de altura, era uma minhotazinha – olhou para
mim e achou que eu era perigosa. Então fechou-me na cela, isto foi no mês de Julho, e eu só saí para ir à
Missa do Galo, na noite de Natal. E nessa noite eu entro e é a primeira vez que tenho contacto com as
minhas companheiras, que eram as tais prostitutas. Pois eu senti vontade de dar qualquer coisa àquelas
mulheres e pedi à madre directora para ler dois poemas. Um da Alda Lara... «À prostituta mais jovem do
bairro frio e escuro deixo os meus brincos talhados no cristal mais límpido e puro»... A madre mais razão
tem para achar que eu era perigosa e fecha-me até à preparação para a Páscoa. E veio o padre falar
connosco, a dizer que era preciso solidariedade. «Olhe senhor padre, isso é muito bonito, só que a madre não
deixa pôr em prática». Eu tinha pedido à madre para olhar por uma companheira minha que andava com
muitos problemas. E ela: «Sempre preocupada com os outros, olhe mas é por si e pela sua filha». E eu disse-
lhe: «A senhora não é digna da cruz que traz ao peito. E não vou à missa porque quando a vir comungar
ainda grito ‘sacrilégio’». As minhas companheiras vinham ter comigo a chorar – «Ó Sr. a D. Maria Luísa, o
meu azeiteiro [o proxeneta] não me escreve!» E a madre, sabe o que é que ela fazia? Juntava as cartas,
escondia e mandava-as queimar. Era aquela maldade. Havia uma freira que era muito boazinha, a
desgraçada andava sempre com úlceras no estômago de ver as maldades que a outra fazia, mas não podia
fazer nada. «Cristo não passou do portão da cadeia» – dizia-lhe eu. Aí escrevi um artigo para o jornal a
denunciar o que se passava aqui. E o Sr. Cardeal Patriarca deve ter dito «Isto há aqui qualquer coisa que
não está bem» – e elas foram obrigadas a ir embora. Saíram primeiro elas que eu!
8. Ao escrever esta passagem percorreu-me uma vaga sensação de embaraço, que porvim a
localizar na memória. Numa deslocação de campo a uma aldeia terei insultado a hospitalidade
local quando, no final de um longo circuito de visitas, um estômago já pletórico me levou a
recusar, polida mas firmemente, a oferta de mais um lanche, de mais um copo. Coma, que é
limpinho, ou Pode beber, o copo é limpinho: urbana e de classe média eu pensaria assim que os
aldeões, «pobres» e «do campo», seriam gente suja. Imediatamente fiz lugar para mais um gole e
umas bolachas, mas desde então nunca mais deixou de me ocorrer tirar da manga a velha
«úlcera» para justificar satisfatoriamente a recusa.
9. Não pretendi colocar a minha experiência sensorial no mesmo plano da das prisioneiras, tanto
mais que, como o mostrou a psicologia ambiental, o limiar de tolerância face a uma agressão dos
sentidos eleva-se quando aumenta a capacidade de intervenção por parte dos indivíduos: no meu
caso, passava pela possibilidade de me furtar a ela, abandonando o local. A minha sensorialidade
também não foi aqui chamada em nome de um qualquer subjectivismo radical, a partir do qual
projectaria as experiências do «outro». Diz Vale de Almeida (1996:11) que «nunca se percepciona
de ‘nenhures’, percepciona-se sempre de algum lado» e, como escreve Martin de la Soudière:
Soit l’expérience du froid. Prétendre par postulat être à même d’éprouver soit-même ce
qu’éprouve autrui est un leurre. Toute sensation est éminemment individualisée. [...] En
comparant ma réaction au froid à la leur, je suis à même de voir en quoi elle diffère de la mienne,
ce qu’elle a de spécifique culturellement et psychologiquement. Le froid se partage, mais jusqu’à
un certain point, et c’est ce certain point qui constitue l’intérêt d’une telle enquête, les zones de
recouvrement et de différenciation entre expériences d’un même phénomène (1988: 101-102; em
itálico no original).
10. Abordado em mais detalhe em Cunha e Durand (1999).
192
11. Howes recupera e transpõe o célebre artigo de Needham (1967) sobre a utilização quase
universal de percussões nos rituais de transição, e remete-nos ainda para a associação dos odores
aos processos de comunicação entre realidades de diversa ordem.
12. Georg Simmel (1986: 237) apontara já a relação sociológica entre odor e intimidade e Corbin
(1986: 6), por sua vez, a relação histórica entre os limiares de tolerância olfactiva e as noções de
pessoa.
13. É também nesta acepção que o autor utiliza as noções de espaço olfactivo, visual, auditivo e
táctil, entendendo-os como universos culturalmente definidos e estreitamente ligados ao sentido
do self (Hall, 1969: 41-63).
14. Nervos e ataques como os referidos têm sido abundantemente analisados como performances
culturais e subjectivas corporizando uma fragmentação do sentido do eu (Low, 1994), mas
também formas de resistência e protesto por parte de seres socialmente vulneráveis (e. g. Ong,
1988; Lock, 1993).
15. A propósito de sintonia das almas – porém, de uma outra ordem – é de citar os desmaios
colectivos nas celebrações locais da Igreja Maná, o que estaria na origem, segundo uma guarda,
das reservas e dos obstáculos levantados pelo pessoal aos seus oficiantes: Era um grande
espalhafato, causavam muita instabilidade. Agora não vêm mais. AIURD é mais calminha. É mais cantar em
grupo no refeitório. É assinalável, de resto, o sucesso junto das reclusas de uma grande variedade de
igrejas evangélicas e pentecostais (IURD, Logos Comunhão Cristã, Centro Cristão Vida Abundante,
Testemunhas de Jeová, bem como estruturas a elas ligadas de apoio a jovens e de recuperação de
toxicodependentes, como o Desafio Jovem). Saliente-se que é também no domínio religioso que se
desenha uma clivagem sociológica com as detidas da minoria. Dizia-me uma delas, acólita do
sacerdote e organizadora da missa católica (missas estas que são frequentadas por 20
prisioneiras, entre as quais se contam sobretudo sul-americanas e algumas portuguesas mais
idosas):
As ciganas não frequentam muito. Eu tentei explicar que não sendo baptizadas não podiam comungar.
Depois havia um problema com as presas, mas está resolvido: a maioria vive em união de facto, e portanto
não podiam comungar. Mas como estão presas, estão equiparadas a uma situação de celibato, logo podem.
É de crer que as outras Igrejas sejam menos rigorosas nos preceitos e requisitos que exigem aos
fiéis e se encontrem mais próximas das preocupações das detidas. Por outro lado, as modalidades
de culto parecem ajustar-se à estreita sociabilidade vigente na prisão e contribuir para reforçá-la.
Alega a Maria, uma cabo-verdiana fiel da IURD:
O que me ajuda é a minha Bíblia e o meu Deus. Antes de vir era católica. Agora vim para a Igreja Universal
[do Reino de Deus] porque nos fazem muito bem. As ciganas, as cabo-verdianas e as consumidoras
andavam para aí perdidas e agora estão muito calmas. Dizem para nos portarmos bem, para tratarmos bem
as guardas e não fazermos asneiras. Esta fé dá muito resultado. Eu já vi que dá, houve pessoas que
conseguiram a condicional e já saíram da cadeia. Dá-nos muita força. Lemos a Bíblia umas com as outras,
cantamos, ficamos muito unidas. Agora é a semana de Jericó, quem quiser faz jejum das 6 da tarde às 6 da
manhã. Nós fazemos, damos força umas às outras.
A Iolanda, da mesma congregação, queixava-se de intoleráveis dores de cabeça que lhe toldavam
a visão. Exames médicos indicaram a necessidade de uma intervenção cirúrgica, que recusou:
«Mandei vir um óleo, um elixir da Igreja do Reino de Deus, passei na vista e nunca mais tive nada. Eu sou
muito religiosa, leio a Bíblia com as minhas colegas.» Por sua vez a Lavínia, uma outra seguidora da
IURD, informava-me: «São muito bonzinhos, trazem sacos para as que não têm visitas... Eu tive muitos
sacos assim, gosto muito deles.»
16. O mesmo se discerne, ainda, nas formas de apropriação do espaço (sub)urbano e nas
trajectórias juvenis referidas por Teresa Fradique no âmbito da cultura hip-hop:
Esta experiência não significa apenas uma relação com o local físico onde se habita, mas também,
e sobretudo, uma forma de organização quotidiana e mapeamento das relações pessoais e de
grupo que se baseia na criação de um mapa alternativo da cidade e dos seus arredores. Este mapa
193
22. A localização residencial é aqui referida ao nível do bairro, uma vez que os padrões de
distribuição espacial da imigração no país apontam para um forte desequilíbrio entre, por um
lado, a área metropolitana de Lisboa e o Algarve (onde a heterogeneidade étnica e «racial» é
grande) e, por outro, o resto do país (desse ponto de vista mais uniforme), como o autor indica
noutro lugar (Machado, 1999). Acrescentará por isso a este propósito que, assim como Portugal
não é um país de imigração, mas sim um país com regiões de imigração, também não se poderá
considerar a sociedade portuguesa como multicultural (ibidem: 60).
23. Estas redes seriam igualmente densas em ambos os contextos, mas de menor extensão no
bairro do Relógio. A particular morfologia deste espaço faria também com que a identificação
com o bairro como um todo fosse menor (Freitas, 1990: 33-36). A vizinhança é contudo muito
valorizada, tendo os inquiridos manifestado a sua inquietação quanto ao processo de
realojamento, na medida em que poder-se-ia não vir a reproduzir ama ambiência relacional que
prezam. Nesse sentido, manifestariam de igual modo o desejo de vir a ter por futuros vizinhos os
actuais. Este capital social pode de facto vir a ser amputado por processos estatais de
realojamento mal conduzidos. Como referem Cardoso e Perista (1994: 110), enquanto nos bairros
de habitat espontâneo, que crescem por via das relações de parentesco e amizade, prevalece a
noção de se ter «escolhido» o local de residência, nos bairros de realojamento ela encontra-se
mais diluída, dando lugar à percepção de uma mera imposição económica.
24. Estas amizades podem ser bastante estreitas e profundas, como a que une a Rosário a uma
detida não cigana:
– A Rosário hoje parece que está um bocado em baixo. Costuma estar sempre tão bem disposta...
– É. Não, eu estou triste porque eu tenho uma colega, que é da vossa raça, ela foi ontem p’ró Porto a
julgamento e essa rapariga dá-me muito apoio. Hoje foi um castigo p’ra dormir, a pensar se ia correr tudo
bem... Sinto muito a falta dela. Tenho mais amigas, falo com elas, mas não é tanto como essa aí do Porto. As
da minha cela são umas velhotas, eu não me achego muito a elas. A última vez que ela foi ao Porto por
causa de outro processo foi quatro meses, eu nem comia nem nada. É por isso que eu tou assim, é por causa
dela. Tou desejando que venha ela porque eu não gosto de estar assim. Ela foi segunda-feira e disse-me que
na quinta-feira tava aqui...
25. Para que a noção de integração não se entenda aqui na sua conotação funcionalista, sublinho
que me refiro com ela a um quadro de inserção social, não à mecânica de sustentação de um
sistema.
26. Tomo de empréstimo uma expressão de Christian Bromberger e Jean-Yves Durand (2001) que
cunha a atribulada vida própria ganha por conceitos que escapam assim aos desígnios dos seus
criadores.
27. É deste modo que Howe (1998: 69) defende que a teoria de Lewis é largamente uma elaboração
académica de uma perspectiva ideológica sobre os desmunidos que tem uma longa tradição na
classe média.
28. Não pretendo com isto sublinhar especificamente o tráfico. Este é apenas o último expediente
de sobrevivência entre os múltiplos nichos que inventivamente cavaram nos interstícios de uma
economia de margem e que combinam entre si numa lógica de pluriactividade.
29. Esta é uma crítica que não dirigiria a Day et al, cujas etnografias são densas e nos fazem
penetrar noutros mundos, não enfermando de um óbice também apontado por Ortner (1995) a
etnografias onde se tematiza a questão da resistência.
195
1 Passado e presente são tempos separados neste trabalho por uma década apenas.
Separa-os sobretudo uma profunda mutação, tanto mais assinalável quanto se mostra
compreendida num tão curto intervalo cronológico. Encará-la ad hoc como uma
transição entre ciclos, vendo em certas configurações marginais no presente formas
remanescentes do passado, em configurações dominantes num, desenvolvimentos
inusitados do que afinal eram formas emergentes noutro, foi o modo que se me
proporcionou de lhe divisar plausibilidade. Nem por isso a transição deixa de ser
radical nem, de tão brusca, cessa de surpreender. Segue-se uma sinopse recapitulativa
das grandes linhas de uma mudança onde Tires perderia a todos os títulos contornos
paradigmáticos do campo prisional que fizeram nascer uma extensa linhagem de
estudos.
2 Em primeiro lugar, e seguindo no encalço de tendências internacionais, o
«penitenciário» recuou no seu escopo, relevando menos da razão ortopédica do que da
razão gestionária, menos da transformação dos indivíduos do que da sua contenção.
Melhor dizendo, não reivindica já um projecto próprio. Trata-se acima de tudo de
administrar legal e tanto quanto possível humanamente a ordem interna. Em segundo
lugar, assim como o penitenciário deixou de delimitar um espaço próprio, também a
instituição-prisão se tornou menos autárcica. Deveio quer mais hetero-determinada por
instâncias exteriores, quer mais dependente delas para a prestação de bens e serviços.
Tendo crescido o universo humano a ponto de se poder falar de uma mudança de
escala, complexificou-se também o quadro organizacional, marcado doravante por uma
ampla codificação de procedimentos, pela burocratização, pela especialização e pela
profissionalização do seu pessoal. Na mudança de um modelo de gestão «doméstico-
autoritário» para um modelo «burocrático-legal», estreitaram-se igualmente as
margens de manobra locais para a manutenção da ordem, que passaram a repousar
menos na discricionaridade da figura do director e na co-optação informal de
lideranças reclusas. Institucionalmente mais permeável ao exterior, torna-se menos
nítida a faceta «totalizante» da prisão, uma faceta que se desvanecerá ainda através de
um terceiro elemento novo: as redes de parentesco, amizade e vizinhança que cosem
dia-a-dia o bairro e a prisão.
3 Mas se internamente o campo prisional perdeu pregnância ideológica em favor da
pragmática administrativa, em contrapartida seria cada vez mais solicitado no apelo
196
relações sociais anteriores. E mesmo quando este pressuposto não implica que os
reclusos hajam deixado o seu background cultural fora de portas, a teia de relações
intramuros seria à partida prisional, tecida ab initio num hiato social e constituída
segundo os cânones das instituições totais.
11 Mas quando essas relações são pré-constituídas e se trata de parentes, amigos e
vizinhos a sua natureza altera-se, a vivência prisional é diversa, a identidade pessoal e
social não é afectada da mesma forma pela reclusão. Interior e exterior não se dispõem
entre si do mesmo modo. No caso de Tires, os trajectos colectivos entre o bairro e a
prisão instauraram uma continuidade entre esses dois topoi demarcados pela fronteira
prisional. Em primeiro lugar, a omnipresença da prisão no bairro e o estigma do
próprio bairro tornaram a transposição dessa fronteira uma marca simbólica
redundante. A prisão apenas consuma a profunda estigmatização que se instituiu a
montante. Não representando mais a cadeia uma marginalização circunstancial mas
uma figura da marginalização estrutural do bairro, o estigma que antes assinalava
deixou de ser negociável (e depois ocultável), tendo-se assim praticamente extinguido
as lutas simbólicas internas, as dinâmicas de autodistanciação face às co-reclusas – e de
aproximação face ao investigador. Entranhada no quotidiano do bairro, a prisão
tornou-se «normal» e o circuito prisional, banal, percorrido que é com parentes, amigos
e vizinhos ou em visita a parentes, amigos e vizinhos. Em segundo lugar, se o bairro
vive com a prisão, a prisão vive, em múltiplos registos, do bairro. Só não se dirá, a
propósito de um desses registos, que ela o parasita porque ao absorver um leque mais
ou menos largo de próximos a cadeia tem efeitos pauperizantes tanto no exterior como
no interior. De facto, a vida prisional não é já materialmente amenizável quando se
rarefaz a retaguarda externa de apoio. Aliás, a sobrecarga da que resta induz ao colapso
de certos mecanismos da sociedade-providência, mecanismos esses que ironicamente
passam até a actuar, na pequena medida possível, de dentro para fora da prisão – o que
a «normaliza» ainda mais no bairro. A pauperização externa também alimenta o círculo
vicioso do tráfico, onde a cadeia vem tomar parte quando filhos menores se iniciam na
venda na sequência da detenção dos pais, que por sua vez poderão reincidir no tráfico
para dele retirar os filhos. Mas a prisão integra ainda subsidiariamente esse círculo
quando os capitais gerados por uma curta – porque cedo interrompida pela cadeia –
carreira ilegal são dispendidos no apoio a familiares presos ou no tratamento de filhos
toxicodependentes; ou, quando os capitais se esgotam, é vista como recurso para a sua
cura.
12 Num outro registo, a prisão vive do bairro na medida em que a sociabilidade interna
deixa de ser essencialmente auto-referencial para passar a reger-se por critérios
extraprisionais ligados a valores familiares e vicinais, como a noção de respeito ou
aqueles que vieram transformar o sentido e o alcance das figuras do chibanço e da
receptação. E não só a solidariedade, as tensões e os conflitos mudaram de natureza,
como se desenham em cenários de grande indeterminação e ambivalência dadas as
frequentes implicações contraditórias daqueles valores no âmbito de um mesmo círculo
de laços de proximidade. Além disso, se a face da sociabilidade se alterou pelo facto de a
rede de relações carcerais se ter prefigurado antes da reclusão, isto é, pelo facto de ela
ser eminentemente pré-prisional, essa ampla rede de interconhecimento que articula
as reclusas entre si articula-as também a uma malha exterior comum de parentes,
amigos e vizinhos, estreitando-se através dela a relação com o mundo extramuros.
Deste modo, a prisão vive ainda do bairro quando o seu quotidiano é modulado pelos
eventos que nele se produzem – assim como o curso do quotidiano externo é afectado
200
que lhe seria agora mais propício), de sons e de odores (que eram intoleráveis não por si
próprios ou pela sua intensidade, mas por emanarem de um «outro» e sinalizarem a
permeabilidade a ele), da exposição ao olhar de outrem (as barreiras da privacidade
entendem-se menos violadas quando outrem não é mais um estranho mas uma parente,
uma amiga ou uma vizinha). De facto, deixou de se vincar com o mesmo vigor a
fronteira corporal com que outrora se protegia uma integridade do «eu» ou uma
individualidade ameaçadas pela prisão. Todavia, a maioria das reclusas não assaca já à
cadeia ameaças desse teor, nem a reclusão vem perturbar substancialmente a
identidade pessoal dada a continuidade que entretanto se instaurou entre a prisão e o
exterior. Ao invés, vinca-se no interior um sentido de comunidade que se exprime,
inclusive, pelo corpo quando os ataques adquirem uma dimensão expressiva para-
colectiva. Tanto ontem como hoje as ordens sensorial, cognitiva e social desenham
quadros coerentes, onde o que está respectivamente em causa é cavar a distância e
anulá-la.
16 A lógica de comunidade que se sucedeu à lógica atomística do passado manifesta-se em
práticas de solidariedade de vocação colectiva, em que a entreajuda e a partilha deixam
de se exercer somente a nível interindividual e ao sabor dos rumos da afectividade, e
em que a dádiva preserva o alinhamento pelos iguais. Se tais práticas são constitutivas
da comunidade, são também componentes retóricas de um discurso pronto a sublinhá-
las, que se apraz na sua ênfase – da mesma maneira que a retórica prisional do passado
ocultava categoricamente a amizade. O discurso comunitário vive porém para além
delas, alimentando-se da constância da sua própria reiteração, afirmando a convicção
de um destino comum.
17 A integração na exclusão que este discurso veicula encetara-se no entanto bem antes da
reclusão. O bairro de origem fornece na prisão uma primeira coordenada de integração.
É com efeito apenas a primeira, pois a categoria local por droga, transversal a vários
bairros, cedo tomará parte nessa tarefa. Marcando uma pertença comum que abrange
algumas reclusas, o bairro não marca contudo uma fronteira com outras, de outros
bairros. Isto é, inclui, mas não exclui, pelo que os grupos acabam por se compor à
revelia do lugar de origem. Os círculos interbairros geram-se também logo de início,
por via do interconhecimento prévio, dado que no exterior tais territórios articulam-se
entre si pelos circuitos do parentesco, da amizade e do trabalho. Cada bairro, por sua
vez, integrará diferentes categorias étnicas/«raciais», aí niveladas por uma mesma
pobreza e por uma mesma estabilidade na pobreza, por uma inserção semelhante na
economia formal e informal, e por uma participação similar na economia criminal
quando se dá o caso de ingressarem nela, uma vez que nos narcomercados retalhistas
locais não vigora a estratificação ou a divisão étnica/«racial» do trabalho. Ao
protagonizar um jogo sui generis entre classe, «raça»/etnicidade, ao qual se acrescenta
uma declinação particular da economia da droga, o bairro distancia-se assim de outros
complexos topográficos excluídos, como a cité e o ghetto . Diversamente destes
territórios, a fronteira étnico/«racial» é aqui menos crítica – e continuará a sê-lo na
prisão, diversamente de outros contextos prisionais. Além disso, se no passado era em
Tires mais nítida do que no presente, era-o ao mesmo título que outras fronteiras, hoje
também elas diluídas, e emergia no pano de fundo de uma população cuja composição
social era diversa.
18 Noções de etnicidade, bem como a noção de «orientação para o presente», serão todavia
mobilizadas por membros do pessoal penitenciário para traduzir e fixar em modo
202
1 Há uns anos, John Comaroff (1996: 164) dizia que se o inquietava a política da diferença,
não o inquietava menos a política da indiferença1. É um pouco essa política da
indiferença, entendida no sentido mais lato, a que Tires nos devolve, como que num
eco. Optei por extravasar de algum modo os limites em que este trabalho evoluiu para
tentar captar esse eco, mudando de registo nessa tentativa porque é justamente de ecos
– de vários ecos – que aqui se trata. A indiferença de que falo a bem dizer constrói-se
sobre ideias de diferença, ou sobre a exasperação dos fantasmas acerca dela, e pode ser
vista como um dos avatares dessas ideias. A actual crispação penal e a voracidade da
prisão fazem as despesas do que o ar dos tempos entende de novo como uma diferença
ameaçadora. De novo, porque na verdade estes enunciados contemporâneos trazem à
memória aqueles que marcaram o século passado – precisamente o século que inventou
a prisão moderna.
2 É certo que a narrativa fundadora da prisão, à qual durante muito tempo se continuaria
recorrentemente a reportar a raison-d’être desta instituição, remonta aos projectos
humanistas e filantrópicos de redenção, regeneração e reintegração (e que passavam
também pela morigeração da própria figura do castigo). Mas, como mostraram
historiadores como Patricia O’Brien (1988: 315), a diferença fundamental da prisão
oitocentista em relação às instituições que a precederam (por exemplo hospícios e
asilos) residiu mais nas suas promessas do que nas suas práticas, que apenas
prolongaram anteriores dispositivos de enclausuramento; e, segundo Faugeron e Le
Boulaire (1992), residiu na judiciarização de um encarceramento que antes decorria
essencialmente de decisões administrativas: ou seja, surge uma modalidade de
encarceramento legalizada através da pena, e a pena é por sua vez legitimada através da
ideia de regeneração e correcção. Ainda que doravante reconvertida na ordem moral,
será porém mantida a vocação básica que institui a prisão como pilar da ordem pública
– a vocação de segurança, continuando o dispositivo carceral a visar conter populações
flutuantes cada vez mais receadas: os mendigos, os indigentes, os errantes, os operários
desempregados, os trabalhadores intermitentes que a industrialização fizera proliferar
nas cidades ou que arrancara aos campos, ali vindo procurar trabalho.
[L]e maintien du dispositif carcéral permettant de contenir des populations
estimées dangereuses se fait en deux temps : d’un côté la prison est instituée
comme lieu d’exécution de la peine, de l’autre certains comportements sont
204
90, não só a dilatação pletórica dos montantes das populações de reclusos e os irrisórios
perfis criminais da maior fatia, mas ainda uma viragem acentuada no seu perfil
sociológico, uniformizado pela presença maciça de pobres, imigrados, minorias
étnicas/«raciais» (e. g. Salas, 1995; Godefroy, 1996; Moccia, 1997; Wacquant, 2000).
Wacquant (2000: 95) vê por isso na prisão actual um lugar central no governo da
miséria e é precisamente a este propósito que invocará, por analogia, a prisão de
meados do século XIX4; Faugeron (1996: 122; 124) alude a um paralelo da mesma ordem,
reportando aspectos da presente dinâmica de encarceramento às formas de regulação
da vadiagem no século passado:
As the crisis in the labour market intensifies the prison is increasingly being used to
deal with and absorb the growing social tensions in many western countries. In
many respects the present situation is reminiscent of the regulation of vagrancy in
the last century. [...] As in the nineteenth century the penal sanction lent legitimacy
to the use of confinement for problem populations.5
6 Trata-se aqui de uma conjuntura, não de uma conjura, embora nesta conjuntura haja
que relevar a consistência de um padrão repressivo que não se produz no vazio, mas
num clima discursivo particular a que os diversos intervenientes nos sistemas de justiça
não deixam de ser sensíveis, por vezes mau grado eles próprios. Como bem o colocou
Dario Melossi,
While it may be that higher imprisonment rates are influenced by the unintended
consequences of a set of micro decisions [...] it is also true that these micro
decisions (not only by court personnel but also by police officers, lawmakers, moral
entrepreneurs, etc.) are not made in a vacuum. They have to be accounted for, on
both legal and moral grounds, within a hegemonic discourse, a discourse toward
which those who administer the criminal and penal justice systems feel particularly
responsible (whether or not they share the wisdom of the contingent political
arrangements of those systems). The concept of a changing hegemonic «vocabulary
of punitive motives» may help us explain the consistent character of all these micro
decisions avoiding at the same time the assumption of conspiratorial intentionality
assigned to those who are entrusted with making these decisions (1993: 273-274) 6.
7 O eixo criminal da droga em boa medida protagoniza esta conjuntura ao dar forma às
ansiedades do fim de século e ao federar muitos dos seus medos, sendo um operador-
chave na cadeia discursiva onde se desliza de difusos sentimentos de insegurança e de
crise moral para demandas punitivas bem mais focalizadas. Sobretudo, a julgar pelos
dispositivos legislativos de excepção (cf. supra: 46-49) e pelo tipo de práticas repressivas
de que o tráfico é objecto, a figura do traficante parece ter-se constituído no protótipo
das ameaças sociais e dos estados perigosos – à maneira do vadio oitocentista, de quem
se tornou como que o equivalente simbólico. Interrogado sobre a actual pertinência das
teses que viram na fundação dos instrumentos penais um meio de gestão da pobreza e
de contenção das «massas laboriosas», o penalista Robert Roth discordava através do
seguinte raciocínio:
Les cibles privilégiées de la répression sont-elles les masses laborieuses? Je ne le
crois pas, car les cibles privilégiées du projet répressif, sur lesquelles on sent
aujourd’hui peser un véritable acharnement, sont plutôt les individus concernés
par le trafic de stupéfiants (in Porret e Winiger, 1994: 192).
8 Sucede porém que em lugar da disjunção e do deslocamento sugerido por Roth, os dois
alvos privilegiados de que fala – um do passado, outro do presente, um de ordem social,
outro de ordem penal, se quisermos – justapõem-se novamente e, sobretudo,
maciçamente. O exame das populações prisionais indica-nos que tal «encarniçamento»
não se exerce propriamente sobre «traficantes» tout court, mas concretamente sobre os
207
políticas repressivas que, desta feita, ganha corpo a partir de opções explícitas e
centralizadas. Inicialmente circunscrita à cidade de Nova Iorque e a princípio
comentada em inner-circles europeus como uma excentricidade longínqua, cedo porém
atravessaria continentes e receberia o assentimento de um largo espectro de
responsáveis políticos e governamentais do lado de cá do Atlântico, cujas declarações
em matéria de crime e de insegurança parecem afinar crescentemente pelo mesmo
diapasão 7. A estratégia, nos termos em que foi exportada de origem, radica na tese das
«janelas partidas», sustentada por James Wilson e George Kelling (1982), segundo a qual
signos de desordem tais como graffitti, lixo, etc. – e janelas partidas – criam por si
próprias insegurança e além disso um contexto de incentivo à criminalidade mais
grave. A polícia deveria por isso reconsiderar as suas prioridades e deixar de
negligenciar as infracções menores ou de concentrar os seus esforços nas maiores, já
que o combate intransigente às primeiras, sendo um fim em si mesmo, é também um
meio de dissuadir as segundas8. O desenvolvimento prático destas ideias em Nova
Iorque traduziu-se num policiamento fero e intensivo (o que implicou um crescimento
exponencial dos recursos e dos contingentes policiais) perseguindo não só os pequenos
crimes, mas ainda a embriaguez de rua, os pedintes, os «arrumadores» informais de
carros, os que procuram a mesma gorjeta com a lavagem de para-brisas, entre outros de
mesma monta. Tais comportamentos passaram a ser explicitamente caracterizados, por
autoridades públicas e especialistas, como «associados aos sem-abrigo» ou, mais
desassombradamente ainda, «underclass behavior», isto é, como uma exsudação directa
de determinadas populações (na Europa, apesar do endurecimento do discurso público
para com a pequena criminalidade e as «incivilidades», também aqui cada vez mais
enunciadas como um problema capital, ainda se constata uma genérica cautela em
empregar iguais atalhos descritivos9).
11 Estas noções não relevam apenas da espuma demagógica inevitavelmente produzida
nas vagas das democracias contemporâneas e das disputas eleitorais. Reflectem
também uma tendência criminológica de fundo, por vezes integrando directamente o
corpo de ideias que foi apelidado de pós-modernismo penal, por vezes embrechando-se
involuntária mas coerentemente nas suas dobras. O alvo último da penologia
modernista era o indivíduo delinquente, fosse como objecto de tratamento, fosse como
objecto de punição – sempre, porém, como objecto de conhecimento. A «nova
penologia», segundo Jonathan Simon e Malcom Feeley (1995: 165-167), parte ao invés do
pressuposto que existe uma «subpopulação perigosa» representando «um risco
permanente»: a «underclass», ou seja, «um grupo de pessoas mergulhadas na pobreza e
na marginalidade social». Por outras palavras,
[T]here is an entire class that is no longer capable of maintaining basic order among
its members, and needs police and other agents of the state to intervene not just to
deal with crime, but to maintain order (ibidem: 166).
12 Uma tal população convidará então a uma «resposta agregada». De que natureza deverá
ser essa resposta? A ideia não é tratar, ou punir mais severamente (punir sim, mas
«inteligentemente», o que significa, no novo entendimento criminológico, com o menor
custo económico possível para quem pune), nem tão-pouco conhecer, no sentido de
explicar ou compreender. Visa-se antes estabelecer o que os autores chamam de «
managerial control over disorderly populations», ou «coherent risk management strategies»
dirigidas a essas populações (ibidem: 166). Com efeito, a questão do controlo do crime é
inteiramente reformulada em termos de mero cálculo e gestão de riscos, seguindo de
certo modo a lógica empresarial das companhias de seguros, razão pela qual Simon
209
NOTAS
1. (Itálicos no original.) Referia-se concretamente, no primeiro caso, a modos de representação
implicados na etnicidade e no nacionalismo e, no segundo, aos que deixam na sombra a pobreza e
as materialidades do poder.
2. Susana Pereira Bastos (1997) mostrou como ambas as figuras, que desempenhavam funções
rituais importantes junto das classes populares, foram por esta altura «dessacralizadas» pelas
élites. Mesmo assim, quando mais tarde, por altura dos anos 30, estes personagens voltam a ser
causticados com redobrado vigor atribuindo-se-lhes um potencial contaminador, tais classes
continuaram pouco permeáveis às representações dominantes de então.
3. Note-se de passagem que assim como nesta economia repressiva se manifesta em vários
contextos diluída a distinção entre «classes perigosas» e «classes laboriosas», é também nela que
por esta altura se mostra especialmente periclitante a velha destrinça entre pobres merecedores
e não-merecedores, entre inaptos para o trabalho e ociosos – uma destrinça moral já de si
alheada das condições laborais instáveis que então a relativizavam (Castel, 1991; Morris, 1994).
4. Para o autor, em boa medida a prisão gere hoje os segmentos inferiores do mercado de
trabalho mais afectados pelas mutações da sociedade industrial e da relação salarial. Assim é a
vários níveis, começando pelo nível micro quando, para infracção igual, tendem a ser mais
severamente sancionados pelos tribunais os indivíduos sem trabalho ou com trabalho precário e
irregular (ibidem: 108-110). No caso dos EUA, a desmesura do encarceramento teria feito baixar
em dois pontos percentuais a taxa de desemprego. Sem esta compressão artificial, que subtrai
milhões de pessoas a esse mercado, os níveis de desemprego americanos em quase todo o período
1974-1994 foram afinal superiores aos da União Europeia (uma vez estatisticamente controlado
nos mesmos termos o efeito carceral), ao contrário do que correntemente se supôs (ibidem: 96).
Em contrapartida, o boom do sector carceral e a correlativa necessidade de recrutar pessoal
penitenciário – como guardas, por exemplo – tornaram-no no terceiro maior empregador
daquele país (ibidem: 83).
5. É de precisar, não divergindo mas antes convergindo ao fim e ao cabo com as asserções de
Wacquant e de Faugeron, que a relação entre níveis de desemprego e de encarceramento não é
linear – ao invés do que parece decorrer do argumento há muito desenvolvido por Georg Rusche
e Otto Kirchheimer (1939), segundo quem a prisão participaria directamente no controlo do
mercado de trabalho, enchendo-se para responder ao excesso de mão-de-obra e esvaziando-se
quando ela é escassa, razão pela qual os índices prisionais e de desemprego variam no mesmo
sentido. Se variam conjuntamente, contrapõem outros autores (e. g. Box e Hale, 1982), é por
interposta atmosfera ideológica, que tende a mudar em ciclos económicos onde se verifica um
alargamento substancial das populações economicamente marginais. Essa resposta é assim
ideologicamente motivada pelo receio de um disparo da delinquência face a essa expansão
(ibidem: 22).
6. (Itálicos no original.)
7. Baptizada de «tolerância zero» pelo presidente de câmara nova-iorquino Rudolph Giuliani,
seria aliás directamente difundida nas capitais europeias (Lisboa incluída, sendo raras as teorias
que usufruem de cobertura televisiva em prime-time , como então sucedeu) pelos seus
coadjuvantes policiais entretanto tornados consultores internacionais num bem sucedido
circuito descrito em detalhe por Wacquant (2000: 18-67). As razões deste sucesso derivam do
facto de à doutrina assim intitulada se ter imputado o mérito da descida dos índices de
criminalidade em Nova Iorque – uma atribuição apressada já que tal descida se havia iniciado
antes da sua aplicação; foi igualmente abrupta em contextos que a não conheceram (ibidem: 17)
ou mesmo naqueles onde baixou o número de agentes policiais (Young, 1999: 125); e foi ainda
212
mais significativa numa cidade como S. Francisco, que enveredou por uma via nos antípodas
daquela, tendo para mais reduzido, em lugar de aumentado, o recurso à prisão – uma excepção,
portanto, no panorama geral (cf. Austin, 1999). Terão sido factores estruturais vários, e não
formas leoninas de policiamento, os principais responsáveis pela queda daqueles índices, factores
aos quais Hamid (1998: 133-134; 173-184) acrescenta um dado tanto mais inesperado quanto é
precisamente para Nova Iorque que é referido: a subterrânea reconversão interna de gangs que, a
par de instituições religiosas e outras instâncias, se empenharam na revitalização das
comunidades locais a que pertenciam, desenvolvendo acções cívicas e programas de cariz
comunitário. Assim, resume Hamid,
[Mayor Rudolph Giuliani and his police commissioners] claimed that their unrelenting
prosecution of “quality of life” misdemeanors such as panhandling on the subway or drinking a
beer in public have deterred more serious offending. But gangs may have helped more than the
police to produce this outcome (ibidem: 181-182).
8. A medida da difusão da tese das «janelas partidas» pode ser apreciada, a título de exemplo, nas
declarações de um candidato à Câmara Municipal do Porto em visita a um bairro degradado da
cidade, declarações essas onde a teoria parece ser subscrita. Depois de sustentar que «o principal
problema do [Bairro do] Aleixo é a droga», terminava defendendo que «os vidros partidos trazem
droga». Na mesma visita asseverara ainda que «[t]amanha degradação é má não só para quem
vive nos bairros mas também para o resto da população, porque cria focos de insegurança que se
alastram para toda a cidade» (in jornal Público, 16 de Maio de 2001).
9. Tal não impede contudo que os atalhos se manifestem nas medidas tomadas: veja-se por
exemplo o recentíssimo recolher obrigatório para menores de treze anos decretado por câmaras
municipais francesas para alguns bairros das respectivas circunscrições, uma decisão justificada
tanto com a intenção de proteger os menores como dos menores. A medida entrou em vigor após
uma breve celeuma suscitada pelo facto de se destinar a ser aplicada não de acordo com
princípios universalistas e a indivíduos, mas selectivamente e a populações.
10. Este é o denominador comum de várias teorias, conhecidas pelas designações de «escolha
racional» (Cornish e Clarke, 1986), «controlo situacional», «actividades de rotina» (Clarke e
Felson, 1993) e «espaço defensável» (Coleman, 1985).
11. Além de mostrar o enviesamento dessas usuais contabilizações, em última instância em
detrimento de populações desmunidas ao deixarem de lado variáveis e comparações relevantes,
Ian Taylor (1997: 295-297) refere trabalhos que evidenciam, num outro âmbito, um exercício
amplamente estratificado do controlo e uma repressão diferencial: apertada, eficiente e
draconiana para as fraudes no domínio das prestações sociais (de que aquelas populações
usufruem); lassa, ineficiente e de resultado magnânime para as fraudes e evasões fiscais, cujos
«custos» são infinitamente superiores.
12. Simon e Feeley afirmam que mau-grado ter vindo instilar racionalidade na administração dos
recursos e o sucesso que obteve junto dos profissionais da justiça e na comunidade académica, a
nova penologia não logrou penetrar na retórica pública e emergir como estratégia hegemónica
na política criminal (apesar de os próprios autores providenciarem abundantes exemplos do
contrário, muito embora lamentem a sua incorporação, que penso não ser surpreendente, na
deriva punitiva). Todo o artigo tem por objecto este problema, isto é, as razões pelas quais a
mensagem não passou. E de acordo com Simon e Feeley não teria passado porque a penologia
pós-moderna não tem para oferecer ao público uma narrativa cultural satisfatória acerca da
delinquência, os seus porquês, uma «verdade acerca do crime» (ibidem: 150), na qual
deliberadamente não está interessada. Creio que a mensagem passou, com algumas distorções é
certo, mas com uma rapidez fulgurante, porventura porque também o público não estará já
interessado na «verdade acerca do crime», mas tão-só em mantê-lo à distância. Creio sobretudo,
tal como Young, que a tendência punitiva não é uma anomalia face ao desenvolvimento da
tendência «actuarial»; mas diversamente deste autor não o atribuo apenas a uma mera co-
213
existência das duas, em que uma e outra como que se afirmariam autonomamente e de costas
voltadas entre si. A definição de alvos colectivos parece-me constituir uma matriz comum
decisiva para permitir toda a sorte de pontes que se têm estabelecido entre ambas:
From an actuarial point of view the management of the underclass is clearly a problem of hiving
them off, creating gates and barriers which keep them in their own reserves, causing problems
for themselves and minimizing problems for others. From the point of view of essentialism and
the demonization of the underclass, however, it is necessary that the forces of law and order
enter their territory and hand out justice often in a draconian and indiscriminate fashion. Both
of these tendencies occur in late modern societies (1999: 119).
13. Agradeço a este propósito um comentário de Cristiana Bastos.
214
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