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Entre o Bairro e a Prisão

Tráfico e trajectos

Manuela Ivone Cunha

DOI: 10.4000/books.etnograficapress.476
Editora: Etnográfica Press
Ano de edição: 2002
Online desde: 21 mars 2018
coleção: Etnográfica Books
ISBN eletrónico: 9791036511295

http://books.openedition.org

Edição impressa
ISBN: 9789727541812
Número de páginas 360

Refêrencia eletrónica
CUNHA, Manuela Ivone. Entre o Bairro e a Prisão : Tráfico e trajectos. Nouvelle édition [en ligne]. Lisboa :
Etnográfica Press, 2002 (généré le 17 septembre 2019). Disponible sur Internet : <http://
books.openedition.org/etnograficapress/476>. ISBN : 9791036511295. DOI : 10.4000/
books.etnograficapress.476.

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“Este livro é o resultado de um percurso de pesquisa com contornos raros entre nós. Há cerca de
uma década, Manuela Ivone Cunha iniciava o seu trabalho de campo no Estabelecimento Prisional
de Tires. Hoje apresenta-nos os resultados da investigação realizada durante o seu regresso
àquela instituição, num livro que é um ponto de viragem na antropologia portuguesa e no nosso
entendimento da criminalidade, do que poderíamos chamar o sistema da droga e. num âmbito
mais vasto, das estruturas de desigualdade na nossa sociedade.” Miguel Vale de Almeida.
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SUMÁRIO

Índice de figuras e quadros

Prefácio
Miguel Vale de Almeida

Introdução. Um tricot a duas agulhas

Capítulo 1. Trajectos de uma instituição: 1987-1997


Primeiro retrato: do rasto de uma reforma à des-ideologização da prisão
Preâmbulo a dois modelos de gestão: profissionalização, especialização, burocratização
O modelo «doméstico-autoritário»
O modelo «burocrático-legal» e a desfocagem da prisão goffmaniana
O contexto do contexto: os novos meandros da lei e o novo «alarme social»

Capítulo 2. Os dados do jogo, as reclusas e o antropólogo


Perfil sociológico e penal das reclusas: os eixos da mudança
Um regresso a Tires

Capítulo 3. Parentes, amigos e vizinhos – I: a lei e a ordem


As constelações das parentelas
O processo de colectivização – e a colectivização do processo
O bairro como alvo

Capítulo 4. Parentes, amigos e vizinhos – II: a economia da droga


Figurações elusivas do tráfico: o binómio «grande traficante»-«crime organizado»
Contra o paradigma familialista da mafia: os laços familiares e vicinais no tráfico
Um ethos hedonista?
A estrutura dos mercados retalhistas e o tráfico como oportunidade ilegal para as mulheres
Mulheres e tráfico: o caso português
O pré e o pós-tráfico: quadros de uma continuidade
Uma economia da droga semiperiférica

Capítulo 5. A erosão da fronteira prisional


À procura de parentes, amigos e vizinhos: dois campos bibliográficos
A incorporação da prisão pelo bairro
A incorporação do bairro pela prisão
O chibanço e a receptação
O tempo insuspenso

Capítulo 6. A integração na exclusão


As criminosas e as outras: a categoria por droga
Corpos solidários
Os corpos e os bairros
«Raça»/etnicidade e classe
O ghetto, a cité e o bairro
«Medir as distâncias»: a questão da orientação para o presente

Conclusão. Entre o bairro e a prisão

Epílogo. Uma janela partida

Referências bibliográficas

Agradecimentos
3

Índice de figuras e quadros

Figuras
1. Penas em execução no EPT em 1997 (em percentagem)
2. Crimes objecto da condenação/acusação em 1987 e 1997 (em percentagem)
3. Nacionalidade das reclusas em 1987 e 1997 (em percentagem)
4. Profissão das detidas/Condição perante o trabalho em 1987 e 1997 (em percentagem)
5. Níveis de escolaridade da população do EPT em 1987 e 1997 (em percentagem)
6. Estado civil das reclusas em 1997 (em percentagem)
7. Estrutura etária do universo recluso em Tires em 1987 e 1997 (em percentagem)

Quadro
1. Reclusas com filhos segundo o estado civil em 1997 (em percentagem)
4

Prefácio
Miguel Vale de Almeida

1 Este livro é o resultado de um percurso de pesquisa com contornos raros entre nós - e,
infelizmente, cada vez menos comuns na prática antropológica. Refiro-me à dedicação
prolongada e aprofundada a um objecto e temática de pesquisa. Há cerca de uma
década, Manuela Cunha iniciava o seu trabalho de campo no Estabelecimento Prisional
de Tires, do qual resultou a publicação «Malhas que a reclusão tece: questões de
identidade numa prisão feminina» (Lisboa, Cadernos do CEJ, 1994). Hoje apresenta-nos os
resultados da pesquisa realizada durante o seu regresso àquela instituição, num livro
que, mais do que uma excelente tese de doutoramento, é um ponto de viragem na
antropologia portuguesa e no nosso entendimento da criminalidade, do que
poderíamos chamar o sistema da droga e, num âmbito mais vasto, das estruturas de
desigualdade na nossa sociedade.
2 Ao contrário de muitos antropólogos, Manuela Cunha não se refugiava, há uma década -
nem o fez agora - no conforto da pesquisa estritamente bibliográfica e arquivística que
tem vindo a caracterizar práticas disciplinares confrontadas com a falta de tempo e
disponibilidade para o trabalho de campo com observação participante. Mas tão pouco
procurou a autora o ilusório idílio de uma estadia de um ou dois anos em local exótico e
aprazível. A prisão deve-lhe ter surgido como o exemplo acabado da alteridade no seio
da nossa sociedade. Afinal, que há de mais diferente - mais ainda do que códigos
culturais estranhos ou exóticos - do que a privação da liberdade, a ausência de convívio
com o sexo oposto, a imposição de uma disciplina sobre o quotidiano, a vigilância e o
controlo sobre e do corpo, ou o estigma da punição? Manuela Cunha enveredava, há
uma década atrás, por um percurso difícil e desafiador. Todavia, não o fazia motivada
por um qualquer espírito de missão, por dedicação militante a uma causa, ou por
vontade em demonstrar capacidade de sacrifício. Ela procurava - creio eu - a alteridade
na «mesmidade», isto é, compreender e dar a compreender como a vida de qualquer um
de nós pode ser radicalmente alterada, obrigando à reconstituição de códigos e hábitos.
3 Dez anos depois da primeira estadia no Estabelecimento Prisional de Tires, a
antropóloga decidiu enveredar pelo que parecia, à primeira vista, ser um re-study: a
verificação das alterações que o tempo e as circunstâncias geram no objecto de estudo.
Deparou-se, de certo modo, com o reverso: a prisão mostrou-lhe o que havia mudado no
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país. No microcosmo da prisão foi exposta ao concentrado social e cultural de uma


transformação que perpassou a sociedade portuguesa nos últimos anos: a instituição de
uma economia, ou mesmo de um sistema da droga. Ora, uma antropóloga menos atenta -
ou menos formada pela leitura minuciosa e crítica da literatura - limitar-se-ia a
constatar a reprodução, na prisão, de transformações da sociedade, não questionando a
natureza, o âmbito e a dinâmica destas transformações. No caso presente, pelo
contrário, a experiência da prisão como que desvelou a natureza, o âmbito e a dinâmica
dos processos em acção no seu exterior.
4 Desde logo porque as fronteiras entre exterior e interior se diluíram. E, depois, porque
a própria noção de uma economia da droga se vai revelando imprópria ou insuficiente.
O senso comum diria que, havendo mais droga, mais consumo, mais tráfico, haverá
naturalmente mais processos e prisões relacionadas com a droga. E ponto final. O
antropólogo, todavia, vai mais longe, questionando verdades feitas, colocando
perguntas que podem parecer ingénuas: se há tráfico de droga, porque só surgem nas
prisões certos tipos de pessoas relacionadas com ele e não outras? Porque surgem os
pequenos traficantes ou as pessoas para quem o tráfico complementa outras
actividades? Porque não são estas pessoas os estereotípicos membros de gangues e
mafias a que o cinema americano nos habituou? Onde estão os grandes traficantes, ou
as pessoas que, a coberto de actividades legais, participam no tráfico através das vias
indirectas da corrupção, da fuga fiscal ou da lavagem de dinheiro? Porque são as
reclusas oriundas dos mesmos bairros e, mais do que isso, de redes familiares e vicinais
facilmente delimitáveis pelo observador? Finalmente - e estas são apenas algumas entre
muitas perguntas que devemos colocar-nos - porque se transformou a prisão num
ponto de passagem, numa escala de um percurso de vida e de um percurso de colectivos
e não numa condenação definitiva, excludente, de alguns indivíduos?
5 A resposta a estas perguntas - que nos vão sendo colocadas de forma
extraordinariamente sedutora e aliciante - vai encontrar-se no entrosamento entre as
vidas das reclusas e a economia, as instituições, as leis, os preconceitos e as hipocrisias
da nossa sociedade. Ora aproximando o zoom, ora afastando-o, a autora conduz-nos
num vaivém permanente entre a prisão e o bairro, mediado pela intervenção da lei e
das autoridades, dos media e dos estudiosos. Nesse vaivém vamos percebendo o
processo de constituição de grupos humanos como que «definidos» para o
aprisionamento, num processo que vai garantido a continuação incólume da verdadeira
economia do tráfico. Os contornos sociais e culturais das práticas destas redes de
parentes e vizinhos vão, além disso, dando uma noção das especificidades portuguesas
quer do tráfico, quer da vida nos bairros que dele dependem, quer das prisões. Uma
especificidade em que as noções - vindas das ciências sociais ou das representações
mediáticas - sobre as características aos níveis do género, da «raça» e etnicidade ou da
classe social, são suspensas e alteradas. Em vez do estereotipo - ou mesmo do «tipo» -
somos confrontados com algo muito mais difícil de controlar pelos mecanismos da
volúpia securitária: somos confrontados com o real.
6 É por isso que este trabalho - rigoroso, laborioso, sedutor e de extrema importância
política - extravasa, à semelhança das redes das reclusas, a prisão, desmontando a nossa
sociedade como uma extensão dessa instituição, num processo de pesquisa, análise e
escrita que atinge a plenitude do que penso serem os três objectivos principais da
prática antropológica: oferecer uma boa descrição sistemática e teoricamente ancorada
do real, gerando, assim, a reformulação crítica de aparelhos teóricos das ciências sociais
6

que tendem para o enquistamento e, por fim, gerando o lúcido desvendamento que
acorda as consciências sociais e políticas do nosso viver colectivo.
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Introdução. Um tricot a duas agulhas

1 Quando voltei ao Estabelecimento Prisional de Tires, dez anos depois de um primeiro


trabalho de terreno nesta cadeia feminina, não esperava defrontar-me com as radicais
metamorfoses que entretanto alteraram a natureza desse universo social e o tornaram,
aos meus olhos, irreconhecível. Entre as que de imediato me interpelaram, dois factos
básicos: uma homogeneidade penal e social da população reclusa, sem paralelo na
história da instituição, e um inédito emaranhado de teias de parentesco, amizade e
vizinhança, nas quais essa população se articula. Desta proximidade, não só sociológica
e criminológica mas também feita de tangíveis laços pré-prisionais onde se intersectam
centenas de vidas – quando nas prisões vêm em regra, ao invés, acotovelar-se
arbitrariamente, combinadas ao acaso –, decorre uma miríade de questões que, de
momento, agregaria em duas: o que significa, neste quadro, viver na prisão? Qual é,
neste quadro, o estatuto teórico da prisão? Não a interrogo, por isso, para determinar
se ela é produtora de conformidade ou reprodutora de desvio, mas a montante desse
velho e inconcluído debate. Afinal, ele construiu-se nos termos das próprias noções
sociológicas habituais a partir das quais o objecto penitenciário tem sido pensado, e são
justamente essas noções que me proponho repensar à luz dos dados etnográficos
providenciados por esta cadeia. Tal constituiu, no entanto, uma interrogação ad hoc, já
que não antecipava a amplitude das transformações que eles acusam.
2 Previa, decerto, mudança – uma mudança que se insinuava já no final da minha
anterior estada. Foi essa, de resto, uma das razões que motivaram o meu regresso:
expondo-a breve e vagamente, comparar o passado e o presente, um re-study , se
quisermos. A outra ficaria pelo caminho. Pretendia desta feita comparar Tires – como de
ora em diante pontualmente lhe chamarei, tendo inadvertidamente adoptado o tique
metonímico que governa as designações locais do estabelecimento – com uma prisão de
características similares, cuja inauguração no norte do país se anunciava iminente. O
interesse da comparação residia no facto de a nova cadeia vir a proporcionar a
aproximação de muitas das reclusas às suas zonas de residência, atenuando assim o
deslassamento de relações e a ruptura com o exterior, nomeadamente através das
visitas de parentes, amigos e vizinhos. Tires, por outro lado, deixaria de ter uma
vocação nacional, que a faz absorver detidas de todo o País, para passar a assumir uma
vocação regional. A síndrome NIMBY (not in my backyard, «não no meu quintal») –
adiaria, porém, por largos anos a abertura desse estabelecimento (aliás, ainda não
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concretizada): infelizmente para as reclusas do Norte, município algum se dispunha a


receber uma prisão nas redondezas. Inviabilizado pelo acaso, o meu projecto inicial iria,
todavia, reformular-se pela necessidade. Chegada a Tires, rapidamente me apercebi que
de qualquer forma iria deixar cair esse propósito, ao fim e ao cabo gorado. Se quisesse
compreender sequer minimamente a natureza da profunda transformação ocorrida,
precisaria de muito mais tempo do que inicialmente me propusera aí passar. O cariz
dessa transformação levar-me-ia também a redefinir de alto a baixo as linhas de
pesquisa que traçara. A mudança não se produziu, como até então, num pano de fundo
de continuidade que me teria permitido prolongar a investigação anterior e conjugá-la
com esta numa espécie de estudo longitudinal, travejado numa comparação ponto a
ponto entre o passado e o presente. Nesse sentido este é, na verdade, outro estudo, não
um re-estudo. Não figurarão aqui, pois, algumas temáticas centrais abordadas há uma
década (cf. Cunha, 1994), quer porque não são já cruciais para entender o universo em
questão, quer porque nada acrescentam à compreensão da sua metamorfose. De resto,
João de Pina Cabral (2000b) discerne com justeza os problemas que desta sorte se
colocam no regresso ao terreno. Uma etnografia realiza-se sempre numa determinada
conjuntura. Alterando-se esta, uma nova etnografia terá muito provavelmente de
formular diferentes questões, e não apenas de alimentar com (diferentes) respostas as
mesmas perguntas, isto é, as que guiavam a precedente. Poder-se-á por conseguinte
distorcer a historicidade que se procura captar, reincidindo num terreno, se nos
espartilharmos inteiramente no rumo que outrora delineámos. Intersectar o passado e
o presente é um exercício comparativo com virtualidades analíticas e metodológicas (cf.
capítulo 2). Mas, reportando-me de novo a Pina Cabral, não há que suprimir o «presente
etnográfico» – a pretexto de que ele elide a história de quem descreve – desde que ele
evidencie a conjuntura de que a etnografia resulta e não se dê por eterno. Por mim, ao
referir-me ao volvido ano de 1997, o ano em que decorreu este trabalho de campo, faço
um uso abundante deste tempo verbal de convenção, não para estabelecer o carácter
atemporal – logo, definitivo – dos resultados, mas com o propósito de distinguir
claramente dois momentos de pesquisa: ou seja, precisamente para acomodar a
história.
3 Tal como este não é propriamente um re-estudo, também não é já um «estudo
prisional», ou é-o apenas parcialmente. Ontem como hoje tomo a prisão como unidade
de observação. Há uma década ela constituiu, além disso, a unidade privilegiada de
análise, embora não o seu horizonte. Este alargava-se para incluir os processos globais e
históricos que ajudavam a esclarecer as lógicas internas. Uma tal abordagem era então
relativamente adequada ao universo que estudava. As fronteiras materiais da prisão –
às quais correspondiam, de igual modo, vigorosas fronteiras simbólicas – delimitavam
«um quadro temporário de vida específico, dotado de uma relativa autonomia, e um
quadro de relações sociais com dinâmicas próprias» (cf. Cunha, 1994: 7), mesmo se os
elementos da sua interpretação não estavam inteiramente contidos intramuros. Hoje,
as implicações sociológicas destas fronteiras reduziram-se consideravelmente. Como se
verá ao longo deste trabalho, a continuidade entre o interior e o exterior é constitutiva
da prisão, a ponto de esta não poder mais ser pensada senão através de um constante
movimento de zapping entre ambos. Interior e exterior serão por isso colocados em
continuidade analítica, sem que o segundo se limite a ser um elemento mais ou menos
preliminar ou final de contextualização do primeiro. Definiria assim o texto que se
segue como um tricot a duas agulhas: o bairro e a prisão. Os fios com que se tece provêm
de várias meadas, entre as quais a que providencia o fio condutor, a do narcotráfico.
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Trata-se, com efeito, de um eixo estruturante do trabalho, uma vez que foi na sua órbita
que se geraram as principais metamorfoses da cadeia.
4 Dez anos atrás, o campo dos estudos prisionais apresentava-se-me como um recorte
bibliográfico pacífico, a partir do qual era aliás possível construir uma razoável grelha
de leitura de Tires. Era também nele que se situavam os quadros comparativos
pertinentes, esclarecendo aspectos locais quer por semelhança quer por contraste.
Novos elementos etnográficos que Tires fornecia permitiam por sua vez reformular
algumas asserções teóricas, mas dialogando sempre no interior deste campo, regendo-
se na maioria das vezes pelas suas balizas, e filiando-se nele. No presente, e tendo
procedido à necessária actualização da literatura, encontro nos estudos prisionais
pouco auxílio para compreender esta prisão e as suas mutações. Se certas mudanças da
mesma ordem ocorreram alhures, noutros contextos carcerais, é questão à qual tais
estudos não respondem ou, quando neles as entrevejo, não parecem constituir-se em
objecto de análise, marcados que estão pelo perímetro prisional (cf. capítulo 5). E assim
como fui levada, pela «mão» das reclusas, a sair deste perímetro e a descentrar-me da
prisão como instituição, também fui atirada para outros campos bibliográficos, que não
recensearei aqui mas à medida que os dados etnográficos os forem convocando. Do
mesmo modo, figurarão na estrita medida em que especificamente contribuem para
iluminar os dados em questão. Apesar desses campos bibliográficos desempenharem
um papel não acessório, mas organizador deste trabalho, a sua variedade (por exemplo,
o dos bairros urbanos, o do narcotráfico, o da pobreza e da exclusão, o da economia
informal e, evidentemente, o das prisões) e a sua vastidão respectiva fizeram-me
renunciar a traçar aqui o usual «estado da arte» para cada um deles, permanecendo
relegado nos bastidores. Caso contrário, arriscaria perturbar a economia do texto e a
tornar bem menos perceptível um fio condutor já de si difícil de disciplinar dadas as
características desta abordagem. Fui por outro lado conduzida a recortar, na
encruzilhada daqueles campos, quadros comparativos próprios. Estes variarão no
tempo, cotejando quer realidades contemporâneas entre si, quer realidades presentes e
passadas; no modo, quer procedendo a comparações directas, quer a desvios que
integram esclarecedoras realidades adjacentes; e, por fim, na escala, tendo-me
defrontado particularmente neste trabalho com essa necessidade – tão bem enunciada
por Christian Bromberger (1987, 1997) – de manejar quer a lupa, para aceder ao tantas
vezes decisivo detalhe, quer o telescópio, para apreender configurações que só se dão a
ver à distância, e onde tantas vezes outro detalhe ganhará sentido. A variação da lente,
o vai-vém entre escalas de análise, partindo do «pequeno» para o «grande», para
regressar ao «pequeno», contribui, de resto, para reduzir eventuais efeitos de escala
(não se vê a mesma coisa de perto e de longe: e. g. o debate entre Del Hymes e Lévi-
Strauss, referido a esta luz por Bromberger, 1997). Combinada com o comparativismo,
esta abordagem levou-me a discernir propriedades e contornos específicos nas
realidades portuguesas em que fui tropeçando na tentativa de compreender as novas
lógicas prisionais. Por vezes, ambas as aproximações metodológicas alertar-me-iam
para as modulações «nacionais» de categorias de representação e análise, como o seria
para o caso da «raça»/etnicidade quando procurei dar conta do modo como ela se
conjuga, no bairro e na prisão, com a classe, o género e o tráfico num jogo singular (cf.
capítulo 6). Essa é, porventura, uma vantagem dos antropólogos da periferia 1. Levados,
por força da sua situação periférica, a integrar a produção científica que emana de
diferentes «centros», não só beneficiarão, em muitos casos, de um maior manancial
comparativo (poderei assim, por exemplo, confrontar o tráfico em Portugal com as suas
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modalidades nos EUA, bairros desfavorecidos portugueses com as suas congéneres cités
francesas e os ghettos americanos), como ganham em distanciamento e se aperceberão
com menor dificuldade da contaminação das categorias de análise pelos respectivos
sensos comuns nacionais.
5 Estou ciente de que nestas viagens cruzadas corro vários riscos interpretativos,
necessários, porém, se não quiser entrincheirar-me na etnografia notarial, estritamente
descritiva, de que fala Olivier de Sardan (1996: 55), ou nas circunvoluções estilísticas
exclusivamente derivadas da palavra dos informantes. A esses riscos, por muito que
sejam empiricamente controlados e argumentados, de qualquer forma só se escapa
inteiramente se, à semelhança do rei imaginado por Borges, elaborarmos um mapa do
tamanho do reino, à escala de 1:1. Dou-me também conta de que a perspectiva que
orienta este trabalho, em lugar de revolucionária – como por vezes é sugerido nas
introduções – caiu largamente em desuso: a sistematização do corpo de dados, a
procura das lógicas subterrâneas, de padrões, tendências, armaduras, de «estruturas»,
se quisermos, para proferir um termo que nos dias de hoje se tem por vezes a sensação
de que raia a obscenidade académica («the s-word», como lhe chama Sahlins, 1999a:
406). Apesar de vários autores, entre os quais Anthony Giddens e Pierre Bourdieu,
terem há muito resolvido a aparente antinomia entre estrutura, por um lado, e
agencialidade e sujeito, por outro, o simples exame da primeira parece suscitar uma
reacção alérgica, como se em si próprio implicasse a opção teórica de negar os
segundos2. Entende-se que os excessos do passado, em favor de uma, tenham talvez
gerado anticorpos em excesso, derrapando-se para os excessos do presente, em favor de
ambos os outros. Mas, parafraseando de novo Bromberger (1997), não se imporá
conhecer a especificidade das regras do jogo, para adequadamente apreender a
diversidade das tácticas? Não são, afinal, aquelas regras que circunscrevem o campo
dos possíveis, o âmbito da plasticidade? Nesse sentido, a liberdade dos indivíduos é
sempre uma «liberdade condicional» (ibidem: 305), e acção não equivale a volição
(Maher, 1997). Aliás, como sustenta Sherry Ortner,
[A]ction itself has structure, as well as operating in, and in relation to, structure. (...]
The idea that actors are always pressing claims, pursuing goals, advancing
purposes, and the like may simply be an overly energetic (and overly political) view
of how and why people act (1984: 150-151)3.
6 Esta é uma abordagem enraizada na «localidade», contudo não encerrada nem tão-
pouco formatada nela – ou, nos termos de Bromberger (1987), «localizada», por
oposição a «local». Na tentativa de perceber as novas configurações prisionais, tive,
como referi, de abrir a análise ao exterior e entabular um diálogo com a figura do
bairro. Mas se o bairro aclara a prisão, a prisão aclara, em alguma medida, o bairro. Ela
constitui, na verdade, uma valiosa janela a partir da qual podemos entrever certas
regularidades, certas características comuns aos vários bairros de onde as reclusas
provêm, em vários pontos do país, bem como propriedades similares relativas ao tráfico
retalhista que se desenrola em diferentes paragens nacionais. Usufruí assim, de novo,
da vocação institucional centralizadora que Tires guarda (cf. capítulo 1), outrora
explícita na designação Cadeia Central de Mulheres, e que já há uma década me havia
levado a escolher este estabelecimento. Frise-se que hoje as detidas não desaguam
atomisticamente nele, mas em constelações de parentesco e vizinhança, fornecendo
ainda cada um dos bairros múltiplas destas redes. É certo que, em primeiro lugar, o que
se ganha em extensividade e em transversalidade perde-se em profundidade e
densidade, que só os estudos de bairro podem proporcionar – ainda que só para cada
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contexto. Mas o confronto com este tipo de estudos permite precisamente recuperar
alguma dessa espessura e aferir da verosimilhança das formas que se insinuam na
prisão. E se se deveria de preferência falar de certas formas comuns tal como elas se
insinuam na prisão, ou seja, em modo condicional e exploratório, esse mesmo
cruzamento atenua os eventuais efeitos deste grão de areia. Em segundo lugar, é de
levar em conta a velha asserção criminológica segundo a qual os estudos junto de
populações encarceradas não são fiáveis porque lidam com delinquentes «falhados»,
isto é, mal sucedidos e inábeis justamente porque foram detectados. Sim, mas...
depende. Depende, logo de início, do objecto de estudo: se se trata estritamente do
crime em geral, a prisão não será certamente a sede mais apropriada. Naquilo que me
ocupa, o crime que conduziu à cadeia entrosa-se com outras dimensões, e é convocado
na medida do que traz à sua compreensão. Ainda assim, estou em crer que as reclusas
de Tires veiculam uma imagem bastante aproximada do tráfico retalhista, pelo menos
na sua versão feminina. Na verdade, o policiamento pró-activo desta modalidade de
tráfico toma muitas vezes o bairro como alvo, o que, como se verá nos capítulos 3 e 4,
relativiza a distinção não só entre traficantes bem e mal sucedidos, como ainda entre
quem, de facto, delinquiu e não delinquiu. De resto, estudos no âmbito do tráfico a
retalho que se dão ao cuidado de constituir «amostras» extraprisionais não referem
qualquer diferença entre os participantes que já estiveram ou não presos 4.
7 Em todo o caso, e regressando a Tires, tomo os sentidos e as práticas que se produzem e
declinam neste contexto local como sujeitos de análise em si próprios, não como
estatisticamente representativos dos universos externo e interno que os enquadram.
Tal como refere Olivier de Sardan,
L’enquête de terrain parle le plus souvent des représentations ou des pratiques, pas
de la représentativité des représentations ou des pratiques. Elle permet de décrire
l’espace des représentations ou des pratiques courantes ou éminentes dans un
groupe social donné, sans possibilité d’assertion sur leur distribution statistique
[...]. Il ne faut pas dire à l’enquête de terrain plus qu’elle ne peut donner. [...]. Ainsi
permettra-t-elle de décrire l’espace des diverses logiques d’action ou des diverses
stratégies mises en œuvre dans un contexte donné, ni plus, ni moins (1995: 104).
8 Porém, se a abordagem etnográfica nada dirá quanto à representatividade quantificada
de sentidos, práticas e estratégias, pode explorar o potencial compreensivo que muitas
vezes encerram, e que os torna instrumentos de análise de realidades, processos e
categorias mais vastos. Com efeito, se a prisão de Tires é vista à luz dos últimos, ela
permite também vê-los de perto, nas suas rugosidades, nas suas transacções, no seu
jogo combinado e simultâneo. Ver de fora para dentro e de dentro para fora,
balançando entre os dois ângulos, abre atalhos para aceder à conexão desses domínios
ou categorias, bem como às suas modalidades de constituição mútua. E é ainda no modo
como operam localmente que nos apercebemos, em filigrana, de amplas e súbitas
transformações da sociedade portuguesa.
9 Os capítulos em que o texto se divide não entrelaçam temáticas relativamente
autónomas. Antes se encadeiam entre si de forma sequencial, o conteúdo de um
implicando o dos precedentes e frequentemente necessitando de antecipar o dos
seguintes através de remissões. Os elementos de uns e de outros vão sendo integrados
num percurso em espiral. Porque este trabalho nasceu das interrogações suscitadas por
uma metamorfose, na margem entre o fim de um ciclo e o início de um outro, os dois
primeiros capítulos fornecem as coordenadas dessa mudança. Contextualizando-a, são
já, contudo, capítulos analíticos. O primeiro centra-se, por um lado, nas transformações
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institucionais de Tires, onde se conjugaram vicissitudes domésticas e tendências


internacionais para «des-ideologizar» a prisão, e onde as actuais características
gestionárias que nela emergem lhe dissipam os clássicos contornos de «instituição
total». Por outro lado, focar-se-á as mutações políticas, legislativas e judiciárias que, à
escala nacional e supranacional interpretaram, ratificaram e reagiram a um novo
«alarme social», e desembocaram numa polarização da economia de repressão da
criminalidade. Assistir-se-á também a um outro tipo de bifurcação, na qual se afastam
entre si o direito penal geral e o direito penal da droga. No capítulo 2 serão patentes os
efeitos locais destas mutações. Nele se identifica o perfil sociográfico e penal da
população reclusa em Tires, e as linhas de contraste com o do passado. Identifica-se,
também, o antropólogo, não só para prestar contas dos seus passos no terreno mas
também para aferir as eventuais implicações da sua própria mudança na forma como
apreende a mudança do terreno. Este exercício, que envolve a comparação com o
passado, salda-se aliás em efeitos de controlo da perspectiva que informou ambas as
pesquisas. É todavia outro o motivo pelo qual procedi a uma tal identificação nesta
etapa do texto, uma etapa reflexiva que correspondeu, de resto, a um momento já
adiantado do trabalho de campo (no tempo, que não em resultados), quando me dei
conta da sua especial necessidade. De facto, interrogando-me acerca das razões pelas
quais a minha relação com as reclusas se entabulava em moldes bem diversos dos de há
uma década, percebi que hoje, tal como ontem, ela se subordinava ao regime das lógicas
locais – hoje tão diversas das de ontem. Como tal, além de essa relação dever ela própria
enxertar-se no objecto de estudo, contribuía, sobretudo, para desvelá-lo, ou seja, para
revelar essas mesmas lógicas, que nela se encontravam emboscadas.
10 Os dois capítulos seguintes examinam as razões da presença na prisão de malhas de
parentes, amigos e vizinhos – esse novo facto que hoje dá o tom ao estabelecimento
prisional de Tires –, bem como os seus contornos e características. Estes dois capítulos
relacionam-se como duas faces de uma mesma moeda: numa, o tráfico, noutra, o modo
como é posto em cena pelas instâncias da lei e da ordem; num dar-se-á conta da
construção de tais constelações de interconhecimento pelos campos judicial e policial,
que as constituem em «redes» criminais, noutro, do modo de formação dessas
coligações na economia da droga, não coincidindo (ou apenas se intersectando por
vezes) as redes que relevam dos primeiros e da segunda. Veremos assim, no capítulo 3,
como se desencadearam em torno do eixo criminal da droga determinados mecanismos
colectivizadores, decorrentes quer do processamento judicial dos arguidos, quer dos
enfoques policiais pró-activos no bairro. No capítulo 4 será questão do outro lado da
moeda, isto é, das modalidades da participação de parentes, amigos e vizinhos no
comércio retalhista de drogas. Da comparação com outros narcomercados emergirão as
linhas distintivas que ele assume em contextos portugueses, a partir das quais será
caracterizado como uma economia da droga híbrida, semiperiférica, marcada, de resto,
por traços estruturais da sociedade portuguesa e muito especialmente pelo carácter
particular de que aqui se reveste a pobreza. Emergirá também a feição específica da
intervenção das mulheres no tráfico e o modo como ele se veio inscrever social e
economicamente nas suas vidas.
11 Os dois últimos capítulos centram-se nas implicações dos laços de parentesco e
vizinhança na vivência do cárcere e na forma como eles alteraram profundamente a
natureza das relações prisionais. Através destas redes de interconhecimento pré-
constituídas a prisão situar-se-á, no capítulo 5, no prolongamento e não na ruptura com
o exterior. Ver-se-á a cadeia e o bairro numa relação de englobamento mútuo, as
13

consequências dos extensos vácuos que a primeira abre no segundo, e a «normalização»


da prisão que nele se opera. Conferi bastante relevo à relação das reclusas com o tempo
– que não surge neste capítulo como um tópico entre outros – já que ela manifesta com
especial clareza a erosão da fronteira prisional. O quadro carceral de Tires, que deixou
de ser, a todos os títulos, auto-referencial, levará não só a questionar por novas vias as
clássicas definições goffmanianas da prisão, como ainda a repensar o seu estatuto
teórico e os olhares usuais que presidem à sua abordagem. O último capítulo trata da
dissolução das diversas fronteiras internas que operavam no passado e da comunidade
de representações e práticas que se lhes sucedeu. O sentido de comunidade é também
dado no corpo, onde as ordens sensorial, cognitiva e social se cruzam para se
esclarecerem reciprocamente. Identifica-se as zonas de identidade e agencialidade
colectiva, o modo como os bairros figuram nelas e as razões pelas quais a «raça» e a
etnicidade não constituem categorias críticas de identidade e discurso. Finalmente, a
exotização da pobreza que resulta da mobilização por parte do staff de Tires de
temáticas esculpidas por vários saberes disciplinares levará a que elas sejam abordadas
neste capítulo sob o signo da política da representação do «outro» e da distância social.
12 Antecedido de uma conclusão de ordem recapitulativa, o epílogo solta-se do corpo do
trabalho ou, melhor dito, transporta-o para outras interrogações que, sem deixar de ser
teóricas, são ao mesmo tempo da ordem da cidadania e impuseram também uma
inflexão no registo em que esse final de texto evolui. Conduziu-me a elas a natureza –
afinal, intrinsecamente política, no sentido mais lato da palavra – das mudanças
repercutidas em Tires, mudanças essas que, a despeito da especificidade que aí
assumem, integram a seu modo algumas tendências mais vastas da modernidade tardia;
porventura, dada a crescente semelhança de temas e cenários, prenunciam ainda
algumas outras que foram já resolutamente trilhadas noutros contextos. Continuando
no epílogo a ser questão de certas figurações de um «outro» no seio das sociedades
ocidentais contemporâneas, figurações essas convocando volvidas imagens do século
que viu nascer a prisão, tratar-se-á igualmente de política – da política da diferença e
da política da indiferença (Comaroff, 1996).

NOTAS
1. Esta vantagem começa na verdade por ser uma desvantagem: como referem Akhil Gupta e
James Ferguson, o «centro» apenas contempla a antropologia praticada pelo «centro»:
Other national traditions are marginalized by the workings of geopolitical hegemony,
experienced as a naturalized common sense of academic «center» and «periphery».
Anthropologists working at the «center» learn quickly that they can ignore what is done in
peripheral sites at little or no professional cost, while any peripheral anthropologist who
similarly ignores the «center» puts his or her professional competence at issue (1997: 27).
2. Anoto de caminho que não pretendo subsumir – travestir seria a palavra – a individualidade
das reclusas nos nomes próprios que lhes atribuo (pseudónimos, evidentemente). O uso do nome
próprio não funciona aqui como artifício retórico dessa ordem, destinando-se antes a restituir a
cada prisioneira os diversos episódios e palavras que protagoniza em momentos diferentes do
14

texto, e a cruzá-los na esteira de um itinerário individual. A fim de cada um deles não se diluir
numa profusão de nomes, estes não são por vezes utilizados para reclusas que só figurarão uma
vez, a um propósito, e que situarei por outras vias. Com efeito, não recorri a informantes
privilegiadas – não no sentido de frequentar mais assiduamente umas detidas do que outras, o
que inevitavelmente fiz, mas no sentido de ancorar uma visão da cadeia exclusivamente em
algumas delas (cf. capítulo 2), uma opção, de resto, de todo em todo legítima noutras etnografias,
e consoante os objectos.
Em segundo lugar, ganhará um peso analítico no trabalho uma categoria de reclusas com um
peso demográfico extremamente reduzido. Trata-se, por um lado, de devidamente cobrir em toda
a sua extensão o espaço das representações e das práticas e, por outro, quer de iluminar pela
diferença a categoria maioritária no presente, quer de figurá-la como um contraste significativo
com o passado, onde era no quadro da categoria hoje minoritária que se produziam as
configurações dominantes.
3. (Itálicos no original.)
4. Ver, por exemplo, Jacobs e Miller, 1998, onde tal cuidado é mais do que justificado, uma vez
que se debruçam sobre as tácticas de evitamento da detecção policial (esta amostra incluiu ex-
reclusos. Dificilmente se poderá, contudo, falar de uma amostra clássica, uma vez que os
parâmetros estatísticos dos universos de ilegalidade, aos quais inere a clandestinidade, são
desconhecidos. Restou então aos autores o recurso a essa técnica, tão cara aos antropólogos, da
«bola de neve», em que um contacto leva a outro e a outro contacto). O mesmo se constatará em
Reuter et al (1990), que, recorrendo a métodos quantitativos, não pretenderam a
representatividade da sua amostra, alegando que ela apenas permitia conhecer a dimensão
mínima da população de traficantes do contexto em causa.
15

Capítulo 1. Trajectos de uma


instituição: 1987-1997

Primeiro retrato: do rasto de uma reforma à des-


ideologização da prisão
1 Uma espinha de três pavilhões imponentes, de volumetria compacta e traça austera,
destaca-se nos trinta e quatro hectares onde em 1954 se implantou, a 20 km a oeste de
Lisboa (mais exactamente na localidade de Tires, freguesia de S. Domingos de Rana), a
«cidadela» então designada de Cadeia Central de Mulheres. Uma rede de arruamentos,
árvores e relvados, jardins e hortas envolvem vários outros edifícios, de típica
arquitectura «Estado Novo», destinados a serviços: administrativos, culto, enfermaria,
creche, cozinha e lavandaria. Dissonantes, e indiciando outro tempo, figuram dois
pequenos pavilhões prisionais acrescentados recentemente ao complexo – a isso
obrigou a expansão da população reclusa. De materiais leves e estilo acolhedor e
ameno, sugerem as cottages há muito em voga na arquitectura penitenciária feminina
anglo-saxónica. Concentra-se aqui a maioria das reclusas em etapas avançadas do
cumprimento da pena e cuja trajectória prisional as fez aceder a regimes menos severos
e mais flexíveis1. Os restantes três pavilhões – os de origem – acolhem, também eles,
tipos diferenciados de reclusas: respectivamente, as condenadas a penas mais longas e
as que optaram por manter os filhos junto de si2; as condenadas a curtas penas e
algumas em regimes de confiança ou aberto para o interior (RAVI); e, por fim, as
sujeitas a prisão preventiva (aguardando julgamento ou decisão do recurso da
sentença), à excepção daquelas com crianças no estabelecimento ou com parentes
igualmente presos, transitando neste caso para outros pavilhões. É assim permitido o
agrupamento familiar, independentemente da situação jurídica.
2 Esta especialização pavilhonar (que pressupõe a triagem e a constituição da população
reclusa em tipos específicos), a diferenciação correspondente em regimes distintos e,
enfim, a ideia de progressividade no percurso penal (que os pavilhões de RAVI e RAVE
materializam), parecem retomar parcialmente a herança da reforma prisional de 1936 3.
Foram, aliás, os princípios programáticos desta reforma que estiveram na origem da
criação de vários estabelecimentos prisionais – entre os quais o de Tires – e que
16

constituíram em sistema o parque penitenciário nacional. Muito sucintamente, tais


princípios entroncavam na noção dos supostos efeitos criminogéneos da aglomeração
indiscriminada de diferentes tipos de delinquentes4. Por consequência, era preciso
classificá-los, separá-los, encaminhá-los para instituições especializadas e submetê-los
a tratamento diferenciado – com vista, evidentemente, à sua «reabilitação social». A
reforma modernizava assim, na altura entusiasticamente, as «tecnologias de correcção»
(Foucault, 1975) portuguesas5.
3 No caso masculino, alargar-se-ia de facto o leque de estabelecimentos, de acordo com a
racionalidade reformista. O universo recluso feminino era, porém, muito mais
reduzido, e o investimento recíproco não se justificava. Entre 1937 e 1941 (o período
que antecede a construção da Cadeia Central de Mulheres) o número de condenadas a
penas de prisão superiores a três meses, às quais este estabelecimento se destinava, era
de 934. O montante correspondente de condenados era de 11 538. Grande parte do
universo feminino foi assim concentrado num único estabelecimento (as cadeias
regionais absorveriam o restante: as reclusas preventivas e as condenadas a penas
inferiores a três meses). Desmultiplicá-lo em três pavilhões com a autonomia suficiente
para não misturar na rotina prisional os diferentes tipos de reclusas afectos a cada um
deles (o que implicava o respectivo refeitório, local de trabalho e instalações
recreativas) foi, se quisermos, a solução «três-em-um» que permitia o exercício dos
métodos da reforma.
4 Em 1987, quando iniciei o primeiro trabalho de campo no EPT (Estabelecimento
Prisional de Tires), esta lógica havia já sido inteiramente subvertida. Apenas um
pavilhão – sobrelotado – estava ocupado por reclusas. Os dois restantes destinavam-se
respectivamente à formação de guardas e a uma população de reclusos. Circunstâncias
anteriores levaram à desafectação progressiva destes edifícios da sua vocação original:
um deles fora já previamente disponibilizado para acolher refugiados das ex-colónias.
E, após 1980, na sequência do abandono do estabelecimento por parte das religiosas que
até aí asseguravam a sua gestão e vigilância, todas as reclusas transitaram para um só
edifício. A sobreocupação do pavilhão feminino acabou também por retirar sentido ao
sistema celular – uma reclusa, uma cela – que era suposto, à pequena escala, afinar o
propósito programático de minimizar os ditos contactos criminogéneos entre
prisioneiras (existiam à data 177 mulheres para 130 celas). Finalmente, este pavilhão
concentrava doravante não só todos os tipos de condenadas que antes se distribuíam
por três edifícios, como recebia agora as únicas categorias jurídicas que a vocação
original do estabelecimento excluía: as preventivas e as sujeitas a curtas penas de
prisão. Este agrupamento compósito de uma população de heterogeneidade máxima
reeditava assim a situação que a reforma de 1936 visava combater – e cuja filosofia,
aliás, a própria administração do estabelecimento continuava em 1987 a proclamar.
5 Dez anos depois, como referi, as práticas de distribuição da população reclusa feminina
(à qual foi entretanto devolvida a totalidade dos pavilhões) parecem traduzir um
regresso às directrizes originais. Trata-se, porém, de um regresso parcial e de conteúdo
algo diverso. A sobrelotação pereniza-se e as reclusas preventivas continuam, mais
abundantemente do que nunca, a afluir ao estabelecimento: em finais de Janeiro de
1997 existem 820 reclusas para uma lotação de 435, e o número de preventivas (356)
não se distancia muito do de condenadas (464). Esta situação de sobrelotação não é, de
resto, única no parque prisional português. O relatório da Direcção-Geral dos Serviços
Prisionais relativo ao mesmo ano aponta para uma taxa global de ocupação de 134%, a
17

mais alta da União Europeia. Para além destes montantes e tipos suplementares de
reclusas, que a cadeia de 1954 não recebia, internamente os critérios de repartição
pavilhonar procuram ainda centrar-se na situação jurídica das reclusas (preventivas/
condenadas e, dentro das últimas, tipo de pena e estádio do seu cumprimento). Tais
critérios, no entanto, entram agora em compromisso com outros, extrajurídicos: a
existência de filhos ou de parentes no estabelecimento, mediante a qual, recordo, as
reclusas podem transitar de pavilhão.
6 Na verdade, estes dez anos saldaram-se numa evolução duplamente paradoxal. Em
1987, o princípio da compartimentação da população enclausurada, radicando, em
última instância, no objectivo da sua reabilitação, era vivamente reafirmado a contrario
na retórica do pessoal penitenciário, quando lamentava os supostos efeitos desastrosos
da mistura de todo o tipo de presas. Totalmente negada nas práticas de ocupação do
estabelecimento, a repartição espacial dessa população teria sido, todavia,
especialmente coerente nessa época, sobretudo quando olhada retrospectivamente: a
heterogeneidade de algumas das categorias jurídico-penais que a ela presidiriam (tipo
de pena e, via este, tipo de crime) recobria também, ainda que grosso modo, uma relativa
heterogeneidade sociológica (de estratos sócio-profissionais, de estilos de vida, entre
outros traços).
7 Hoje (refiro-me a 1997, o ano deste «presente etnográfico»), que a letra da reforma,
impressa na classificação pavilhonar, foi recuperada – mesmo se imperfeitamente –, em
parte o seu espírito já não pode acompanhá-la. Se proporciona alguma racionalidade
gestionária, separando horários e rotinas (em alguns casos forçosamente diversos,
como os de preventivas e RAVE, noutros, limitando-se a serem distribuídos por
diferentes corpos do pessoal de vigilância), já não separa outras diferenças. Como se
esclarecerá nos capítulos seguintes, a população que agora desemboca no EPT é
caracterizada por uma inesperada homogeneidade penal e sociológica, maior ainda, de
resto, do que aquela que a actual repartição das etiquetas jurídicas deixa supôr. Que as
diferenças jurídicas são, em certa medida, formais (embora, como é óbvio, tenham um
enorme peso na vida prisional das reclusas), parece constatar-se no facto de não mais se
ouvir ao pessoal penitenciário o discurso, outrora tão recorrente, da nefasta «mistura»
de diversos tipos de delinquentes. Não porque o staff , entretanto renovado, tenha
deixado de crer nos seus efeitos criminogéneos, mas porque a «mistura» – uma noção
que por definição pressupõe a variedade daquilo que se congrega – deixou de facto de
ocorrer quando à partida é mais o que assemelha as reclusas do que aquilo que as
diferencia.
8 Por outro lado, embora na realidade o estabelecimento ofereça no presente mais
oportunidades de formação escolar e profissional do que no passado (em graus para a
primeira, em diversidade para a segunda), as ambições que o discurso institucional
veicula são mais modestas. Sem explicitamente enjeitar o legado reformador, caiu o
tom grandiloquente – ou pelo menos convicto – com que em 1987 circulava
prolixamente a expressão «reinserção social». Confrontado recorrentemente com ex-
reclusas que regressam, tornou-se mais prosaico e comedido. Ontem, como hoje, os
dados estatísticos locais sobre a reincidência são em absoluto não fiáveis. Entre outros
problemas, o seu preenchimento é irregular e uma mesma pessoa pode figurar sob
apelidos diferentes. O trabalho de campo, contudo, permitiu-me assistir a esses
regressos, e sobretudo aos inúmeros comentários que pontuam a rotina prisional
acerca de quem cá está outra vez (o trabalho anterior apenas me havia confrontado com
18

duas dessas situações). Os processos discursivos legitimadores da prisão centram-se


agora nas preocupações de equidade, legalidade e consistência das decisões
respeitantes às reclusas, e na melhoria das condições de detenção (cf. Sparks e Bottoms,
1995: 45-62, para outros contextos): além das próprias instalações físicas dos edifícios
de RAVI e RAVE testemunharem a melhoria das condições prisionais, foram também
introduzidos nos restantes pavilhões telefones públicos, construídos recintos
desportivos, remodelados bares e cantinas, e previa-se para breve a instalação de
sanitários nas celas; o sentido desta evolução não é, no entanto, unívoco (nos pavilhões
mais vetustos acumulam-se sinais de degradação, como humidade e fendas nas paredes,
a pintura descascada em grades e corrimões, o chão de betão irregularmente comido) e
para as detidas surge por vezes como contraditório (questionando, por exemplo, a
inovação que são os campos desportivos face ao mau funcionamento de chuveiros e
casas de banho comuns). No caso concreto do EPT esta mudança de ênfase ocorreu sem
que estas recentes práticas discursivas se reportem a uma nova filosofia da execução da
pena. De facto nenhuma veio, explicitamente, substituir a anterior – a qual aliás
subsiste em pano de fundo, como recurso prêt-à-porter que justifica perante o exterior a
missão da prisão. Mas esta mudança parece corresponder à deslocação, essa sim
assumida, de uma ideologia de tratamento e reabilitação para uma outra, mais neutra,
de humane containement e de positive custody (cf. Morgan, 1997: 1137-1151; Salas, 1995:
104-116; Faugeron e Le Boulaire, 1992: 3-32), que no mundo ocidental se observa desde
os anos 70. Trata-se apenas de humanizar a prisão, diminuindo a distância que a separa
do mundo exterior no que respeita à prestação de bens e serviços, e de minimizar os
seus aspectos destrutivos (embora seja ainda muito popular extramuros o princípio de
less eligibility, que defende precisamente o inverso: as diferenças entre o mundo livre e o
mundo carceral deveriam ser acentuadas para que o último permaneça devidamente
punitivo e dissuasor). A própria disciplina «des-ideologizou-se», e não parece mais
adequar-se ao modelo de Foucault (1975). Como sustenta Claude Faugeron:
«[S]i discipline il y a, elle n’a pas, à la différence de l’école notamment, un objectif
de modelage des corps et des esprits mais, beaucoup plus prosaïquement, un
objectif de maintien de l’ordre, c’est à dire dépourvu de contenu, ne pouvant
s’apprécier qu’avec des critères de pure opportunité et d’efficacité immédiate et
certainement pas en termes de changement des individus à moyen ou long terme»
(1996a: 31).
9 E se se mantém a disciplina apenas porque é necessária à gestão ordeira do quotidiano
da instituição, mantém-se o trabalho porque é necessário assegurar meios de consumo
aos prisioneiros, que, à semelhança dos cidadãos no exterior, se tornaram
«consumidores». Nesta perspectiva, mais do que um dever ou uma técnica disciplinar, o
trabalho transmuta-se num direito (perspectiva esta, aliás, que as reclusas de Tires
parecem hoje partilhar, em contraste com as do passado, como se verá no capítulo 5,
tanto mais que se são agora bastante mais pobres, expandiu-se por outro lado a
panóplia de produtos à venda no estabelecimento). É isto mesmo que nota Faugeron
num outro texto:
[T]he issue of penal work is evaluated more and more (...) in terms of the ability to
provide the inmates with an income, allowing them to buy consumer goods.
Because they have become consumers, the inmates today have a more complex
relationship to prison labour (...) Nowadays it is no longer a matter of disciplining
the body and the soul, but of ensuring that the inmates keep their means to
consume: a right to which every citizen is entitled (1996b: 133).
19

10 A prisão mudou, deste modo, de objectivos ou, melhor dizendo, não tem já objectivo
próprio, excepto o da manutenção da ordem interna – que é, aliás, cada vez mais árduo.
Dificilmente seria de outra forma quando é chamada, como será questão adiante, a
gerir penas cada vez mais longas, às quais são submetidas populações cada vez mais
desmunidas e afectadas por novos problemas. O «penitenciário», para retomar os
termos da formulação foucaultiana, deixou assim de se distinguir do «judiciário», ou de
lhe suceder numa outra empreitada, e esta é, em si mesma, uma inflexão de peso. A
prisão talvez nunca tenha existido de facto como Foucault a descreveu, como uma
perfeita instituição disciplinar; talvez nunca tenha fabricado «corpos dóceis» (veja-se a
questão da resistência dos encarcerados, abordada por Garland, 1990: 173);
seguramente que sempre foi longa a distância entre a teoria da punição que a fundou e
a sua tradução prática (a este respeito os críticos são particularmente abundantes: e. g.
Rothman, 1980: 11; Pisciotta, 1994: 75-80; para Cohen, 1985:29, a obra de Foucault
construiu-se somente com base em «stories, visions, plans»). Mas não foi menos real a
«visão» que mal ou bem a prisão pôs em cena, o tipo de racionalidade que ostentou e
pelo qual – muito imperfeitamente, é certo – se guiou6. É esse programa – e não apenas
a sua execução – que deixou de ter lugar.

Preâmbulo a dois modelos de gestão:


profissionalização, especialização, burocratização
11 Paralela a esta mudança ocorreu em Tires, ao longo destes dez anos, uma outra, que
evidencia modelos distintos de gestão. Os protagonistas destes modelos também já não
são os mesmos. Sucederam-se as directoras do estabelecimento, tal como se sucederam
os directores-gerais dos Serviços Prisionais, de quem respectivamente dependiam.
Antes de abordar estes tipos de gestão, é necessário porém referir alguns factos a que
não serão porventura alheios e com os quais fazem corpo.
12 A escala do universo humano da instituição mudou durante a década em questão. De
177 reclusas passou-se a 820; de menos de 50 guardas, ao seu triplo. E cresceu,
inevitavelmente, o pessoal técnico e administrativo. A mudança de escala acompanhou-
se também da profissionalização do staff. No caso do pessoal de vigilância, para além de
se terem elevado globalmente os níveis de instrução à entrada, ele não se faz mais na
tarimba, como antes acontecia com a maioria, mas passa pelo crivo prévio de um curso
de formação específica (em 1987 mais de metade das guardas não havia atingido o 12.º
ano de escolaridade ou equivalente. Eram de resto as guardas recém-entradas quem
possuía este grau, que na altura era já condição para admissão na profissão, via um
curso de formação de guardas prisionais). Uma situação análoga verifica-se com os
membros do pessoal técnico, entretanto quase totalmente renovado. À excepção de um
(o único que permanece do passado), todos são actualmente licenciados, apagando a
clivagem outrora existente entre os minoritários doutores, por um lado, e os então toes
(técnicos de orientação escolar e social), que invocavam a experiência como princípio
legitimador da sua função. A estruturação da profissão nesta área acompanhou-se,
aliás, da afirmação de um campo discursivo próprio que, agrupando saberes
especializados e académicos, se manifesta localmente na abundante circulação de
expressões como evolução psico-social, interiorização do sentido da pena (ou do desvalor do
acto), capacidade de resistência à frustração, orientação para o presente, entre outras
formulações pré-codificadas.
20

13 Ora, esta transformação do estatuto escolar e profissional do staff acompanhou-se, em


contraponto, de idêntica alteração na população reclusa – só que no sentido inverso. Se
a primeira representou um movimento no sentido ascendente, a segunda, como se
constatará, saldou-se numa desclassificação notável. Cavou-se, assim, um abismo
sociológico pela deslocação de ambos os pólos. Previsivelmente, este fosso não deixa de
ter consequências. Entre outras, que adiante abordarei, o pessoal técnico corporiza
perante as reclusas novas lógicas e exigências, de que entretanto lhe competiu fazer-se
portador, tantas vezes formuladas num opaco idioma burocrático. Veja-se o caso da
elaboração do «plano de readaptação», a que toda a reclusa condenada a uma pena
superior a cinco anos, e candidata à liberdade condicional, terá de proceder. Dados os
capitais escolares da esmagadora maioria das reclusas (cf. infra: 68-69), a execução de tal
projecto afigura-se-lhes à partida como uma intimidante prova, governada por
misteriosos códigos. «As reclusas não têm ideias», dizia-me, a este propósito, uma
técnica. Na verdade têm-nas, mas intraduzidas nos códigos discursivos apropriados e
não formatadas nas categorias institucionais disponíveis. O staff acaba por intervir,
sendo ele na verdade quem inicia, conduz e padroniza o processo, fazendo-o entrar nos
devidos canais burocráticos. Estes podem envolver, por exemplo, contactos com
autarquias (para questões de alojamento), serviços de emprego e instituições de
tratamento da toxicodependência.
14 A par da mudança de escala e da profissionalização, um outro aspecto marcaria esta
viragem ocorrida no estabelecimento: a especialização. Todos os serviços e
departamentos viram mais vincada e formalizada a distribuição de tarefas e
competências, quer entre si, quer no interior de cada um. O caso da área da reinserção
social é paradigmático. Os técnicos que em 1987 trabalhavam no EPT haviam já sido
recentemente transferidos da tutela administrativa dos Serviços Prisionais para a do
Instituto de Reinserção Social (IRS). Porém, na altura essa alteração era meramente
formal e não produziu outras consequências. Estes técnicos continuavam a ver-se e a
funcionar como «pessoal da cadeia». Nas palavras de um deles, existia uma cultura de
contacto com os restantes membros do estabelecimento, e em especial com a sua
directora. De facto, no discurso, nas rotinas e nas práticas de relacionamento apagava-
se a linha administrativa que separava uns e outros em diferentes pertenças
institucionais, e as próprias reclusas não os situavam como relevando de organismos
distintos.
15 Hoje é nítida a demarcação e a distância entre, por exemplo, o sector da educação (além
de competências várias relativas ao acompanhamento das reclusas, este sector
coordena e supervisiona as actividades de ensino e formação profissional, bem como de
animação cultural e desportiva) e o da reinserção social (os respectivos gabinetes
passaram, inclusive, a situar-se em edifícios separados), embora esta distância possa ser
quebrada episódica e individualmente. Acresce que enquanto o primeiro se encontra
adstrito à cadeia, o último autonomizou-se inteiramente e apenas se subordina às
directrizes e filosofia do IRS. Ou seja, passou a depender do exterior, sem qualquer
mediação interna. Aliás, os próprios relatórios que estes técnicos elaboram sobre os
pedidos de liberdade condicional seguem agora directamente para o tribunal de
execução de penas, sem passar pela directora do estabelecimento.
16 Por outro lado, a especialização progrediu não só entre sectores, mas no interior de
cada um deles. Ainda no que concerne ao serviço de reinserção social (mas tal mudança
tem paralelos noutros serviços), cada técnico deixou de acompanhar o percurso
21

individual de cada reclusa, da entrada à saída da instituição. Este percurso é agora


compartimentado, e os fragmentos são distribuídos pelos técnicos respectivos: uns
ocupar-se-ão de reclusas preventivas, e neste caso especializam-se na elaboração de
relatórios para o julgamento; outros acompanham as condenadas, centrando-se na
realização de relatórios para apreciação da liberdade condicional. Mas a «linha de
montagem» afina-se ainda mais7. Estes últimos já não se deslocam ao exterior para
avaliar no terreno as condições familiares e, em geral, de acolhimento das reclusas. Tal
avaliação fica agora a cargo de equipas externas do IRS a que cada círculo judicial
recorre. Quanto muito os membros sediados na cadeia contactam com as famílias das
reclusas no próprio estabelecimento, por altura das visitas, e um deles limitar-se-á a
sair para supervisionar o contexto de trabalho das reclusas em RAVE (não, portanto, no
quadro dos processos de liberdade condicional).
17 Esta acentuada repartição de tarefas parece de resto acompanhar-se de uma viragem na
própria forma como estes técnicos de reinserção social concebem as suas funções. Um
deles, referindo-se a um «mal-entendido» que se aplicava a desfazer, dizia-me: «as
reclusas pensam que nós somos as assistentes sociais delas: não somos, nós
assessoramos e damos apoio técnico ao tribunal de execução de penas» 8. Uma outra
técnica, esta relembrando nostálgica outros tempos e outros procedimentos, queixava-
se do seu actual trabalho de gabinete, em que quase já não vemos as reclusas. A brigada da
caneta seria aliás, segundo ela, o epíteto que resume hoje o estatuto e a reputação
burocrática dos membros deste serviço no estabelecimento. A outro propósito, referiria
também a distância e a rigidez que marcariam o relacionamento no interior do staff,
sendo a informalidade mal-vista e em que tudo tem de ser por escrito e através dos canais
hierárquicos. Na verdade, a burocratização é transversal aos aspectos acima
mencionados – mudança de escala, profissionalização, especialização – e vem fazer
corpo com eles para configurar um novo modelo de gestão.

O modelo «doméstico-autoritário»
18 Israel Barak-Glantz (1981) identificou quatro modelos de gestão das prisões (não
programáticos, mas históricos). Apesar de terem sido delineados a partir do contexto
americano – mas Jean-Hervé Syr (1996) não deixou de reconhecer a sua valia analítica
para a compreensão da evolução das prisões europeias –, dois dos modelos podem dar
conta de características centrais da organização do EPT ontem e hoje, ainda que um
deles, como se verá, muito parcialmente: são eles o modelo «autoritário» e o modelo
«burocrático-legal»9. O primeiro, na sua forma pura, é o que mais se aproxima do
estereótipo da Prisão, ou dos seus clichés cinematográficos, embora também descreva
adequadamente certas realidades históricas e empíricas. Corresponde a uma situação
em que o director da prisão concentra amplos poderes, que exerce de forma mais ou
menos discricionária quer sobre o staff, quer sobre os reclusos. A ordem é mantida não
só por esta via, mas ainda pela emergência de uma estrutura de autoridade paralela e
informal entre os detidos, cujos líderes, possuindo por definição um elevado potencial
de controlo e influência sobre os co-detidos, são por esta razão usados subsidiariamente
pelos poderes formais (director e guardas) na manutenção da ordem, quando não
favorecidos ou protegidos por estes.
19 Laivos deste modelo encontravam-se ainda em 1987. O poder da directora, apesar de já
consideravelmente limitado na letra da lei por instâncias exteriores de controlo (a
22

instância judiciária, por via do tribunal de execução de penas, e a administrativa,


através da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais), era bastante abrangente, com uma
vocação centralizadora e omnipresente que cobria, até, os detalhes da gestão rotineira
da prisão: era a directora quem procedia, por exemplo, à triagem das detidas que
autorizava a frequentar as aulas de ginástica. Recordado pelas actuais reclusas que
permanecem desse tempo, esse poder é retrospectivamente – e, por algumas delas,
saudosamente – qualificado de mão de ferro. Visto no passado pelas reclusas de então,
proliferavam as imputações de favoritismo e as denúncias acerca das queridinhas da
directora, acusações que hoje se fazem, comparativamente, muito mais raras. Tal terá
porventura menos a ver com os méritos e os deméritos dos respectivos estilos pessoais
de direcção do que com a complexificação, especialização e sobretudo codificação
crescente dos procedimentos e da organização penitenciária; mutatis mutandis, e ainda
que esta observação pareça quase desnecessária, o adjectivo «autoritário» com que
refiro o passado modelo de gestão qualifica menos as idiossincrasias do exercício do
poder do que o tipo de organização que o enquadra. Por fim, nesse passado e em
coerência com esse modelo, salientava-se a influência de duas líderes (ver Cunha,
1994:128-130), quer junto das co-reclusas, quer – et pour cause – junto da direcção,
perante quem eram interlocutoras, directa ou indirectamente (via as subchefes de
guardas com quem respectivamente se alinhavam). Precise-se que se tratava de
interlocutoras informais visto que não existiam então, como ainda não existem hoje,
estruturas formais locais de representação da população reclusa.
20 Todavia, certas características da instituição conferiam a esse modelo de gestão uma
tonalidade particular, levando-me a inflectir a designação proposta por Barak-Glantz e
a nomeá-lo antes de «doméstico-autoritário». Para além de aspectos a que já aludi,
como a pequena escala do universo humano, a fraca especialização e a relativa
informalidade das relações institucionais, a prisão assemelhava-se a uma quinta rural,
com uma gestão doméstica e quase-familiar. E penso a este propósito no membro do
staff que recordava nestes termos a directora de então: era uma mãe de braços abertos que
nos integrava a todos. Era, porém, mais «paternal» do que «maternal» o tom que regia
Tires, pois não só a matriz doméstica não dispensava a mão de ferro, como, por outro
lado, o adjectivo «paternalista» não está longe de qualificar adequadamente toda a
filosofia de tratamento penitenciário de mulheres que esteve na origem da própria
criação do estabelecimento. Não foi, aliás, um acaso que a condução de uma instituição
para delinquentes adultas tivesse sido entregue (desde o início e até 1980) à mesma
entidade que geria reformatórios juvenis: a Congregação da Nossa Senhora da Caridade
do Bom Pastor. O desvio feminino era associado, entre outras coisas, a uma ausência de
amparo e protecção, assim como a perturbações na esfera do lar (ver, por exemplo,
Pinto, 1969). E recuperar as desviantes significava reconduzi-las aos eixos da
construção ideológica que se fazia daquele género. Várias décadas depois, em 1987,
estas concepções cristalizavam ainda em disposições institucionais que investiam
sobretudo no desenvolvimento das competências maternais e domésticas das reclusas 10.
21 Conjugada com esta ambiência de domesticidade que envolvia em vários registos a
cadeia, a sua faceta de quinta rural permitia ao staff esboçar certas continuidades entre
o seu próprio espaço doméstico e o local de trabalho, ou propiciava a mistura das
ordens de que um e outro relevam11. Usufruindo de preços especiais na aquisição de
artigos manufacturados pelas reclusas (como os tapetes de Arraiolos), os funcionários
também se abasteciam mais ou menos informalmente de géneros e produtos da agro-
pecuária. Hoje, esses hábitos entram em conflito com novos modos de condução do
23

estabelecimento. Dizia-me um membro superior do pessoal – receando a impressão de


injustiça que tais hábitos causariam nas reclusas – que as maiores dificuldades que
enfrenta são as de fazer cumprir regras neste âmbito aos funcionários administrativos
(justamente o sector menos renovado em relação há dez anos atrás) e de gerir as
desavenças entre eles. Sem que eu alcançasse que tipo de desvios, problemas e conflitos
referia, percebi que, a existirem, mais facilmente me falaria de «desvios financeiros»,
disputas salariais e incompetência do que daquilo que visivelmente embaraçava um
gestor «moderno». De facto, a natureza dessas dificuldades e quezílias tem uma
ressonância inapelavelmente paroquial e doméstica. Acabaria assim por me falar da
inveja, porque uma levou mais dois ovos que a dúzia, ou outra um frango, uma perna de porco, e
até tomei conhecimento de restos de comida cozinhada e sopa que levam para casa.

O modelo «burocrático-legal» e a desfocagem da


prisão goffmaniana
22 O modelo de gestão que hoje se afirma no EPT é o modelo dominante das instituições
prisionais do pós-guerra, principalmente das europeias. Trata-se, para retomar a
terminologia de Barak-Glantz (1981), do modelo «burocrático-legal». Além de
enquadrar as características que anteriormente tratei (cf. 29-33), e que convergirão
noutras ainda, ele pressupõe a atomização da população reclusa pela aplicação estrita,
universal e equitativa de princípios e regras comuns. Aliás, no caso de Tires, o receio de
arbitrariedade é tal que anula por vezes a necessária flexibilidade para atender à
diversidade das situações individuais, nomeadamente em sede de apreciação de
concessões de liberdades condicionais e saídas precárias. Autolegitimando-se mais,
pode dizer-se, pelo modo neutral e imparcial como aplica princípios do que pelos
princípios que aplica, tende por isso a dispensar a colaboração e o compromisso com
lideranças informais para a manutenção da ordem, não sendo assim de estranhar que as
duas líderes da década anterior não tenham encontrado sucessoras de dimensão
equivalente – ou outras, tout court. Hoje, uma ex-líder lamentava justamente a perda da
capacidade de mobilização e de fazer frente, que ela e outras exerceram em épocas
passadas. Por esta razão a sua actual estada na prisão pautava-se por algum desnorte, já
que esta não correspondia mais ao quadro de referências que constituíra ao longo de
extensas e sucessivas penas.
23 Em segundo lugar, e correlativa a esta inflexão, a acção gestionária do director local
passa neste modelo a decorrer menos directamente da sua personalidade e estilo
pessoal, sendo a figura do «governador solitário» substituída pela do «administrador da
prisão» (Syr, 1996: 250-251). Enquanto a autoridade do primeiro assenta na maior
margem de manobra quanto à interpretação e aplicação da regulamentação
penitenciária, a do segundo está mais circunscrita por um corpo de directivas e normas
de procedimento superiormente estabelecido. A proporção de regras locais e
supralocais parece, até, inverter-se. No caso concreto do EPT, estes dez anos separaram
diferentes conteúdos e modos de produção da regulamentação interna. No passado,
esta expandia alguns princípios comuns da administração penitenciária central quer
num regulamento próprio, quer em inúmeras circulares e ordens de serviço que, por
sua vez, o desmultiplicavam casuisticamente em novas regras. Estas regras, de resto,
tinham uma vocação verdadeiramente telescópica, pronunciando-se por exemplo sobre
a existência ou inexistência de botões nas peças de vestuário que as reclusas
24

envergavam sob o uniforme. Hoje, para além das normas deste tipo se encontrarem na
sua maioria agrupadas num regulamento único e estável, o conteúdo deste limita-se a
transpor o estipulado pelo Ministério da Justiça, e por outro lado, vem apenas regular
os items que este expressamente delega nas competências locais (horários, regime de
visitas, etc.)12.
24 Em suma, uma boa parte das competências que na prática outrora relevavam da
direcção, encontram-se hoje desconcentradas para cima, para instâncias superiores e
autoridades centrais, sendo assim, de certa forma, hetero-determinadas e menos
autónomas. Aliás, esta hetero-determinação não se refere apenas à legislação e às
instituições nacionais, mas também a instâncias supra-nacionais. Veja-se o caso das
Regras Penitenciárias Europeias (in Temas Penitenciários, n.º 1, 1988), que formal e
detalhadamente orientam, desde 1987, as administrações penitenciárias dos países
membros do Conselho da Europa. Por outro lado, outras competências ainda acham-se
desconcentradas, como vimos, para baixo – para os escalões intermédios dos serviços
especializados.
25 Em acréscimo, a prisão tornou-se menos «autárcica». Certos sectores foram
inteiramente subtraídos ao seu quadro, como o caso já descrito do sector de reinserção
social13. Além disso, a sua mudança de escala e a sua complexificação tornaram
inevitável um maior recurso ao exterior para a prestação de bens e serviços (que o
modelo anterior procurava assegurar internamente): no sector da saúde, em que cresce
o apelo a especialistas e instituições externas (o Serviço Nacional de Saúde e as
Administrações Regionais de Saúde, de resto, constituíram-se como parceiros formais
dos serviços prisionais); no sector do trabalho, com a celebração de protocolos com
empresas e autarquias para empregar mão-de-obra reclusa quer no interior (por
exemplo, através da modalidade do trabalho pago à peça), quer no exterior (no caso dos
RAVE); no sector do ensino e formação profissional, colaborando com instituições
públicas; e, por fim, na hotelaria, com a malograda experiência de fornecimento das
refeições das reclusas por uma empresa privada14.
26 Mais controlada do exterior e dele estruturalmente dependente, menos fechada sobre si
própria, com fluxos de toda a ordem atravessando os seus limites materiais, a prisão
deveio, por consequência, menos «total». É sobretudo a propósito da multiplicação
deste tipo de trocas entre o interior e o exterior que a pertinência do modelo de Erving
Goffman (1968) para a leitura destas instituições tem vindo a ser questionada (ver, por
exemplo, Lemire, 1990, e Farrington, 1992). Porém, porosidades menos evidentes e de
outra ordem têm vindo a desenhar-se na cadeia de Tires, e é nelas que incidirá parte
deste trabalho. Debruçar-me-ei, pois, mais tarde sobre a proposta deste autor.
27 Por outro lado, disposições internas que outrora claramente tipificavam «a
mortificação do eu» (Goffman, 1986: 56-57), característica das instituições totais,
sofreram algumas alterações relevantes. A correspondência (expedida e recebida) e os
telefonemas são agora confidenciais, furtando-se assim a práticas censórias que antes
exerciam não só um controlo securitário como também moral (cf. Cunha, 1994: 41-43),
embora o princípio, rotineiramente aplicado, da confidencialidade possa ser suspenso
caso haja a suspeita de crime. A correspondência é ainda fiscalizada aleatoriamente,
mas na presença da reclusa e visando materiais ilegais, estando portanto excluída a
leitura do seu conteúdo por parte dos funcionários. O ensejo moralizador é também
menor quando já não se veta visitantes e correspondentes com o argumento de que
25

configurariam uma ligação «extraconjugal», ou ainda de que mais do que um [namorado]


não pode ser.
28 A autonomia individual, ainda que permaneça severamente restringida pelos
mecanismos próprios da reclusão, ganhou pequenas mas significativas margens: é
agora autorizada a televisão nas celas (e já não só na sala de convívio), permitindo deste
modo às reclusas não estarem tão dependentes da variável condescendência das
guardas como no passado, quando se lhes suplicava o adiamento da hora do fecho
nocturno para assistir ao fim do episódio da telenovela 15; efeitos menos infantilizantes
teve também a instalação de interruptores internos nas celas da maioria dos pavilhões
– quando anteriormente a sua iluminação era exclusivamente comandada do exterior,
pelo pessoal de vigilância. As prisioneiras podem assim dispor individualmente de
electricidade para lá da hora regulamentar do colectivo fecho das luzes e silêncio.
29 No campo da apresentação pessoal, apesar de se manter a obrigatoriedade do porte de
uniforme, que ainda assim exclui as reclusas preventivas, o modo como ele é usado
deixaria de ser regulamentado a um nível de detalhe que outrora visava a
estandardização máxima (cf. Cunha, 1994: 43-44). Para mais, além de normas e rotinas
se terem diversificado de acordo com as modalidades de reclusão a que são submetidos
diferentes tipos de reclusas, reduziu-se a arregimentação das actividades e
movimentações quotidianas respeitante a cada um destes tipos 16.O horário continua, é
certo, a escandir colectivamente a rotina prisional. Mas na sua aplicação ganhou-se em
certos casos alguma flexibilidade individual na execução das mini ou subsequências
desta rotina (como na ordem das tarefas de arranjo da cama, vestir, banhos, despejos,
etc. Neste último caso deixou mesmo de vigorar a regra horária em alguns pavilhões).
30 Enfim, essa correntíssima modalidade de «mortificação do eu» que no passado era a
aprendizagem da humildade e da deferência solícita extrema para com os superiores
tende hoje a dar lugar a relações mais «contratuais» e limitadas à exigência de respeito.
Por exemplo, a formulação dos pedidos escritos das reclusas aos serviços técnicos e à
direcção tornou-se mais breve e enxuta, comparada com o tom implorativo e
autodesqualificante dos intermináveis prólogos que antes caracterizavam a sua
redacção. Tal não obsta a que o mesmo pedido continue, como anteriormente, a ser
dirigido a múltiplos destinatários, encharcando os serviços e criando neles alguma
confusão: com efeito, a estratégia da redundância parece conferir às reclusas uma
garantia psicológica de que a solicitação que fizeram será atendida. A humildade
continua a ser apreciada, mas como qualidade que naturalmente se tem ou se não tem, e
não como requisito incontornável das relações internas e objecto de uma aprendizagem
que, ao mesmo tempo, seria indicador de um processo de «domesticação» e
componente de um projecto disciplinador.
31 Tudo isto não significa que não se reencontrem aspectos dessa «mortificação» típica
das instituições totais, conclusão passível de ser induzida por um efeito de contraste na
comparação que tenho vindo a fazer entre o passado e o presente. Essa e outras
continuidades existem. Subsistem contudo de forma atenuada, prendem-se, nas suas
manifestações mais características, com as idiossincrasias dos seus vários agentes (o
tratamento por «tu» das reclusas por algumas guardas é apenas um exemplo menor) e,
sobretudo, não configuram já um todo coerente e avalizado pelas disposições formais
do estabelecimento.
26

O contexto do contexto: os novos meandros da lei e o


novo «alarme social»
32 Sustentei acima que a prisão, na esteira da tendência contemporânea que afecta estas
instituições, se tornou mais hetero-determinada em vários aspectos gestionários e, por
outro lado, pareceu perder o ímpeto ideológico relativo a missões e objectivos próprios
que não sejam os da manutenção da ordem interna ou, como se verá, os da resposta a
um crescente apelo securitário externo. Mas mesmo conter populações é hoje uma
tarefa radicalmente diversa em comparação com o passado, e é também por esta razão
que as margens locais de manobra se estreitaram. De momento, basta mencionar dois
elementos caracterizadores da população aqui reclusa, que desenvolverei no capítulo
seguinte: a sua dimensão, que quadruplicou, e os períodos de reclusão a que está
sujeita, que se alongaram ostensivamente. Estas características, em especial a segunda,
exprimem em parte a repercussão que tiveram no estabelecimento inflexões globais de
monta que, também nestes dez anos, se produziram no contexto político, legislativo e
jurídico – nacional e supranacional. Aliás, é já por si só significativa a sucessão de
alterações, num curto espaço de tempo, no domínio da legislação penal, que por
vocação é relativamente estável. Entre as mais importantes contam-se as revisões do
Código Penal e do Código do Processo Penal e a publicação de uma nova lei da droga
(esta especialmente instável, uma vez que viria a ser de novo revista num curto lapso
de tempo).
33 Na viragem da política criminal que ocorreu nestes anos delineiam-se, grosso modo, duas
tendências, correspondentes a uma marcada polarização judiciária na abordagem da
«pequena» e «grande» criminalidade – e também aqui se insinua uma crescente
dicotomização discursiva. A primeira tendência é para um tratamento mais flexível e
aparentemente mais benevolente dos pequenos delinquentes, a quem se procura evitar
a aplicação da pena de prisão, substituindo-a por outras medidas. Assim, o novo Código
Penal17 visa reforçar o recurso a medidas alternativas às penas curtas de prisão como,
entre outras, o regime de prova e a multa. Esta, de resto, vê-lhe consagrada
expressamente – aqui como em legislação penal avulsa, no caso da nova lei da droga –
uma vocação substitutiva e não cumulativa às penas de prisão, como sucedia
anteriormente. Em certos casos, até, houve uma des-judiciarização de delitos como a
emissão de cheques sem provisão até cinco mil escudos 18.
34 Contudo, se é certo que esta tendência configura um outro modo de lidar com tipos
menores de criminalidade, este não redunda sempre e necessariamente em resultados
menos severos. Quando antes as práticas judiciárias optavam «sem mais» pela simples
suspensão da pena de prisão, elas são agora reencaminhadas para a aplicação de
sanções mais discerníveis e «concretas» para o transgressor. A pena de multa, aliás,
agravou-se, e o regime de prova passou a ser uma modalidade daquela suspensão,
implicando, diversamente da multa, mais controlo e vigilância. Este é apenas um dos
exemplos enquadráveis numa inflexão europeia relativa ao tratamento dos pequenos
delinquentes: menos penas de prisão mas, como referem a este propósito J. Sim, V.
Ruggiero e M. Ryan (1995: 4), «[a] more regulatory network of disciplinary power». Na
mesma linha, Thomas Blomberg (1995) descreve para os EUA um processo semelhante,
onde se teria alargado a rede deste tipo de controlo. Estas análises entroncam, em
parte, na clássica tese de Stanley Cohen (1985), que sustentara já encontrar-se em
extensão a rede do controlo penal. Contudo, Cohen não viu contido na expansão das
27

penas executadas no exterior um movimento de desencarceramento. Defendeu, muito


pelo contrário, que também o encarceramento aumentava, isto é, que ambos os sistemas
se expandiam. Se o movimento de desinstitucionalização ocorreu, isso sim, com doentes
mentais, não teria sido esse o caso com os delinquentes. Como reconheceu Andrew Scull
(1984), e diversamente do que previra na primeira edição da mesma obra, o tratamento
das duas figuras neste aspecto divergia, em vez de convergir.
35 Uma segunda tendência, paralela à que descrevi – a que procura desviar da cadeia os
pequenos delinquentes –, segue em sentido oposto: o do agravamento e endurecimento
das penas de prisão para transgressões definidas como graves ou, para utilizar uma
fórmula recorrente deste campo discursivo, que mais «alarme social» provocam 19. A
própria pena máxima passaria de 20 para 25 anos de prisão. O Código Penal de 1995
elevou consideravelmente as penas para os crimes contra as pessoas e o mesmo
aconteceria para a maioria dos crimes de tráfico de estupefacientes previstos na nova
lei da droga, de 199320: se é certo que nela baixaram em alguns casos os limites mínimos
das molduras penais, na generalidade aumentaram os máximos, podendo atingir, nas
modalidades agravadas, 20 anos de prisão. Mesmo a figura menor do traficante-
consumidor vê agora ser-lhe aplicável uma pena mais austera (passando de até 1 ano de
prisão para até 3, embora substituível por medida alternativa). Para uma noção mais
clara da aspereza de que na específica lei da droga é alvo esta esfera criminal, compare-
se a moldura penal do crime básico de tráfico (entre 4 a 12 anos) – sem considerar as
outras modalidades agravadas ou atenuadas – com a prevista no Código Penal para a
tentativa de homicídio (a pena compreender-se-á entre 1 ano e 8 meses, e 10 anos e 8
meses); a do tráfico agravado, essa, quase atinge a do homicídio consumado.
36 Os estrangeiros, residentes ou não em território nacional, são também tratados pela lei
com maior dureza, uma vez que a pena acessória de expulsão que lhes é aplicável
passou de 5 para 10 anos21. Saliento que a pena de expulsão, que se reveste de especial
dramatismo para quem tem família constituída em Portugal e podendo assim
assemelhar-se agora a um verdadeiro degredo, tem também efeitos subsidiários no
modo como a pena de prisão é cumprida: as saídas precárias são frequentemente
recusadas com o argumento de que representariam um risco agudo de fuga, motivada
menos pela tentativa de escapar à prisão do que à pena de expulsão.
37 Realço, ainda, a criação do crime específico de «associação criminosa» relativo ao tráfico,
ou seja, diferenciado do crime de mesma designação na lei penal geral: enquanto a
participação nas associações criminosas previstas no Código Penal é punível com penas
compreendidas entre 1 e 8 anos de prisão, o envolvimento nas mesmas, mas ligadas ao
tráfico (previstas em sede da lei da droga), incorre em penas entre 5 e 20 anos. Tal
crime no quadro do tráfico é, de resto, sancionado com penas mais duras do que as
destinadas, no Código Penal, às organizações terroristas (e, não resisto a acrescentar,
dada a sua sugestividade e valor simbólico, aos atentados contra o Presidente da
República). Esta referência é especialmente relevante já que uma inovação da recente
lei da droga é precisamente a completa equiparação, para efeitos processuais, de
situações de tráfico de droga a «casos de terrorismo, criminalidade violenta ou
altamente organizada» (n.º 1 do art. 51.º). Por outras palavras, aquelas situações ficam
abrangidas pelo «regime especial de dispensa de autorização judicial prévia para buscas
domiciliárias, revistas, apreensões e detenções fora do flagrante delito» (Lourenço
Martins, 1994: 252)22. É também esta equiparação que permite compreender a
28

introdução da figura do «arrependido», que, através da delação e da colaboração com os


investigadores, poderá beneficiar de uma atenuação ou dispensa da pena.
38 Por fim, esta lei inclui um artigo novo (54.º) que redunda, por duas vias, num maior
rigor na aplicação da prisão preventiva: em primeiro lugar, quando for imputado o
crime de tráfico de droga, por exemplo, o juiz deve justificar as razões da não aplicação
da prisão preventiva, invertendo assim implicitamente o princípio geral de que esta é
uma medida de coacção excepcional e de último recurso; em segundo lugar, para este e
outros crimes, e ainda quando o processo é complexo pelo número de arguidos
envolvidos, são aumentados os prazos máximos de duração da prisão preventiva.
39 Estes e outros aspectos, como a consagração do meio de obtenção de prova que é o
«homem de confiança» (o agente infiltrado ou o agente provocador, que podem aceitar
droga ou proceder à sua «entrega controlada») – medida esta relativamente polémica
por só subtilmente não colidir com princípios constitucionais – inscrevem-se em
tendências europeias e internacionais convergentes no endurecimento do combate à
criminalidade, especialmente a que releva da economia da droga. Aliás, esta nova lei
vem transpor para o contexto nacional muito do preconizado na Convenção das Nações
Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de
1988 – um texto que declara uma política de «guerra total» às drogas 23.
40 Mas são também estes novos aspectos legislativos que, reclamando-se de um objectivo
de eficácia e dando corpo na lei a um clima de «emergência» (um clima difuso, mas
tantas vezes epitomizado nas instâncias política e mediática), levam alguns autores
(ver, entre outros, Moccia, 1997; Ibanez, 1995; Copello, 1995) a concluir pelo regresso
dos sistemas penais a parâmetros pré-modernos. Para Portugal, Eduardo Maia Costa
identifica uma contradição fundamental entre a concepção do direito penal da droga –
que se pautaria pela «prevenção geral de intimidação» e pelo privilegiar «dos valores
da ordem e da segurança», e a concepção do direito penal geral, «assente na prevenção
geral positiva, que estabelece como limite à pena a culpa do agente,
independentemente das necessidades de prevenção do crime» (1998: 104).
41 Ainda segundo aqueles autores, este recuo histórico dos sistemas penais em
consequência destas inovações legislativas seria operado por uma espécie de
contaminação geral que se geraria a partir delas e que debilitaria princípios
garantísticos fundamentais dos estados de direito. Além disso, como mostrou Massimo
Pavarini (1994), um dos efeitos espúrios do alastramento e da exaltação repressiva seria
o de acabar por atingir outros alvos que não os visados pelas alterações legislativas (os
«grandes» traficantes, os «grandes» corruptos, os «grandes» mafiosos são os principais
exemplos das figuras que originalmente estavam na sua mira). Em suma, tais inovações
seriam em parte produtos e produtoras de um apelo social, cada vez mais estridente, à
prisão.
42 Entre a letra da lei e o seu exercício há, no entanto, um intervalo, onde figuram os
magistrados. Ora, a orientação global da jurisprudência não tende a suavizá-la. A
actuação dos tribunais é, ao invés, draconiana – aliás, as metáforas bélicas polvilham
recorrentemente os acórdãos proferidos. Examinando esta jurisprudência, Maia Costa
(1998) refere vários dos avatares do seu pendor intimidatório, desde a apreciação da
prova até à opção pela pena de prisão quando a lei possibilita uma pena alternativa,
passando por uma interpretação restritiva das formas atenuadas – o que levaria por
exemplo a remeter para o crime puro de tráfico a generalidade das situações. Por outro
lado, nela se assume a intenção de responder «às expectativas da sociedade» (cit. in
29

ibidem: 113), e de «participar no imperativo nacional [de combate à droga] que os


tribunais não podem nem devem ignorar» (cit. in ibidem: 112). A severidade crescente
com que em mais de uma frente é travado este combate ficou, aliás, bem patente no
episódio do perdão parcial de penas aprovado pela Assembleia da República em 1999.
Dele foram excluídos todos os condenados por crimes de tráfico (inclusive, portanto, os
traficantes-consumidores, perfazendo assim uma grande fatia do universo prisional),
quando cinco anos antes tais crimes não haviam ainda deixado de ser abrangidos por
idêntica medida de clemência, aprovada em mesma sede.
43 Dada a «cultura de emergência» que é a verdadeira tela em que se inscreve a viragem
da política criminal, as consequentes alterações legislativas e a jurisprudência, não é
assim surpreendente que, por todo o lado, à escala nacional e internacional, disparem
as estatísticas prisionais, sem que necessariamente correspondam a uma espiral de
criminalidade ou a uma maior eficácia policial na sua detecção 24.
44 Referi acima a dupla tendência que tem marcado a evolução recente do tratamento
legislativo da criminalidade, em Portugal como noutros países: a saber, por um lado a
redução do recurso às penas curtas de prisão, substituindo-as por medidas alternativas
(quando os tribunais cumprem essa intenção); e, por outro, o aumento e o agravamento
das longas penas. Esta tendência tem sido designada como «processo de bifurcação»
(Bottoms, 1983), ou caracterizada como uma «economia repressiva dual» (Godefroy,
1996; Tubex e Snaken, 1995). Poder-se-ia pensar que as duas faces deste processo se
compensariam mutuamente para resultar num equilíbrio nos índices de
encarceramento. Assim não aconteceu, dado o peso desproporcionado das
consequências da segunda, que gera um efeito cumulativo nos montantes das
populações reclusas: estas renovam-se menos, porque permanecem mais tempo na
prisão, prisão essa que por sua vez continua a acolher cada vez mais condenados a
penas longas. É de notar que Portugal ocupa, neste como noutros aspectos
demonstrativos do rigor penal, um lugar de destaque no quadro da Europa comunitária.
Assim, o relatório do Conselho da Europa sobre os sistemas penais europeus relativo ao
último trimestre de 1996 refere Portugal não só como recordista na sobrelotação
penitenciária e segundo na taxa de presos preventivos, como seria ainda o país da
União Europeia onde em média se cumprem penas mais elevadas.
45 Ora, a hipertrofia prisional seria ainda potenciada por um terceiro factor, decorrente
de uma última modificação legislativa. Não só as penas sentenciadas são mais longas,
como são, de facto, cumpridas mais extensamente. Assim, para os casos de penas
superiores a 5 anos, o Código Penal de 1995 veio alterar os pressupostos da concessão
da liberdade condicional, passando esta a poder ser atribuída apenas após o
cumprimento de dois terços da pena – quando antes esta exigência se limitava a metade
da pena. Então, depreende-se desta intenção programática, quanto mais curta a
sentença, menor o tempo cumprido; quanto mais longa, maior a estada, quer dada a
pena sentenciada, quer a pena efectivamente executada. Na verdade, a prática dos
tribunais de execução de penas, em especial o de Lisboa – que na cadeia de Tires, sob a
sua alçada, tem uma reputação rigorista –, parece corroborar apenas a segunda parte
desta asserção. Porventura pelo mesmo efeito de contágio a que já aludi, em que a
severidade punitiva se generaliza a partir do seu alvo ou objecto original, estes
tribunais são agora mais restritivos e parcimoniosos na concessão da liberdade
condicional à globalidade da população reclusa, quaisquer que sejam as penas
aplicadas.
30

46 Deste modo, desapareceram em Tires as libertações condicionais a meio da pena, seja


esta superior ou inferior a 5 anos. Mas, em acréscimo, dificilmente são já concedidas aos
dois terços. No tom neutro de quem já não espera surpresas, as reclusas podem assim
dizer que ainda vou no primeiro corte [da liberdade condicional], ou já faltou mais, levei
agora o segundo corte, como quem fala de formalidades institucionais por que têm
forçosamente que passar. De facto, os cortes parecem constituir hoje novas etapas
ritualísticas que marcam a progressão da detenção, e muitas reclusas acabam por ser
libertadas condicionalmente aos cinco sextos da pena, mas agora por força da lei (ou
seja, tal como prevê o Código Penal) e não tanto em resultado de uma apreciação da sua
situação individual.
47 É também por esta via, como atrás apontei, que se estreitaram as margens de manobra
na gestão local do estabelecimento, tocando agora instrumentos básicos e clássicos da
manutenção da ordem prisional. Como me confidenciava um dos seus responsáveis,
como gerir a cadeia sem poder oferecer a liberdade condicional como incentivo para o bom
comportamento? Este seria a seu ver um dos grandes problemas que dificultariam a
gestão da disciplina. A estratégia alternativa encontrada é o investimento em saídas
precárias de curta duração, na oferta de RAVI e RAVE, medidas que,
independentemente do seu intrínseco valor «ressocializador», surgem assim como
sucedâneos ao serviço da ordem interna.
48 Esta severidade acrescida demonstrada na prática de agentes judiciais – neste caso do
tribunal de execução de penas – decorre do facto de também funcionarem como
intérpretes de um sentimento difuso de insegurança, muitas vezes vendo nele um apelo
repressivo ao qual deverão dar resposta25. Na memória estava ainda fresco o «caso do
gang do multibanco» (os seus protagonistas, entre os quais se contava um casal,
coagiam as suas vítimas a revelar os códigos dos cartões MB que lhes eram extorquidos,
tendo terminado pelo homicídio de uma sequestrada) e durante o trabalho de campo
ocorreria o do «incêndio da discoteca de Amarante» (cujas consequências mortíferas,
como aliás mais tarde se veio a verificar, ficaram em parte a dever-se mais ao
amadorismo dos seus perpetrantes do que ao carácter «organizado» da criminalidade
de que relevariam)26. Este episódio despoletou num juiz de execução de penas, em Tires,
a seguinte cadeia discursiva:
É bom que nos preparemos mentalmente para este tipo de criminalidade em
Portugal. Com a abertura de fronteiras, agora já não é uma coisa pequena, com a
prata da casa. É tráfico internacional, redes de prostituição, as mulheres a
participarem na criminalidade organizada, é uma nova criminalidade.
49 É sempre difícil, como será óbvio, diagnosticar a partir de casos esporádicos tendências
que só retrospectivamente se confirmarão. Por isso, a propósito desta presumida
tendência presente para a «organização» ou mutação da natureza da criminalidade,
ocorreu-me no momento dessa conversa o muito relativizador caso dos corrécios –
certamente lembrado pelos nortenhos, que ainda hoje empregam o termo como um
substantivo equivalente ao de terrorista, e o aplicam às crianças turbulentas. Tratava-se
de uma – essa sim – «organização» bastante estruturada, de criminalidade
multifacetada e violenta, que há cerca de três décadas e durante longos anos operou no
norte do país, encontrando-se agora extinta. Viria por acaso a encontrar em Tires a,
chamemos-lhe, Salomé, viúva de um dos cabeças do grupo, que dele me falaria nestes
termos:
Olhe, eu vim condenada por uma coisa que não fiz, mas cometi outros crimes bem
piores, que até mereciam uma condenação mais pesada. Até foi merecido, porque eu
31

ia mesmo acabar por vir parar à cadeia. Nos corrécios, se nos diziam para matar,
matávamos, se nos diziam para roubar, roubávamos [...]. [Quando fui presa], os
corrécios disseram que no dia seguinte me iam tirar de Felgueiras, mas eu não quis,
disse que me deixassem estar, mas que estivessem descansados que eu não ia
entregar ninguém. Ainda disseram que iam tratar do juiz, mas eu disse para não
fazerem mais mal a ninguém por minha causa. O tribunal já tinha apanhado o
número dois, mas quinze dias depois de estar preso pagaram a um advogado e
falsificaram um mandado de soltura [...], e ele saiu calmamente da prisão, a dizer
bom dia ao director. Depois da morte do meu marido os corrécios começaram a ir
abaixo. O número dois começou a ter filhos e quis desligar-se dessa vida. Os outros
começaram a traficar droga – e isso nós nunca quisemos fazer – e acabaram todos
por ser presos por tráfico.
50 Dois apontamentos breves: a Salomé e o seu envolvimento passado nos crimes a que
alude são em absoluto atípicos na população reclusa em Tires, como se verá; não deixa
de ser significativo que só se tenha conseguido pôr cobro à actividade dos corrécios a
partir do momento em que ela tocou a droga, ou seja, a rede só foi desmantelada
enquanto rede de droga.
51 Retomo as asserções do juiz de penas, que num outro momento acrescentaria, a
propósito da recusa de uma saída precária de longa duração a uma reclusa estrangeira –
um pedido que concitara o parecer favorável do conselho técnico, por oferecer um risco
mínimo:
É uma questão de prevenção e dissuasão. Não quero estrangeiros a cometer crimes
no meu país. O sistema prisional tem que ser duro e o nosso é brandíssimo. Os que
por cá passam não devem ficar com vontade de cá voltar.
52 Em suma, em todos estes comentários ressurgem de facto, e em amálgama, temas
paradigmáticos em que se capitaliza o novo «alarme social»: o tráfico de droga, a
criminalidade organizada, as suas supostas origens exógenas e a participação feminina
na grande criminalidade. Este último tema, de resto, ressoa com o tema da new female
criminal, em voga nos anos 70 e segundo o qual o feminismo teria também libertado as
mulheres para o crime – uma tese abundantemente rebatida e de momento enterrada
pela criminologia no que diz respeito à criminalidade feminina em geral 27. No entanto,
foi recentemente exumada – para se ver, de novo, contestada – a propósito da presença
de mulheres na economia da droga, como se constatará no capítulo 4.
53 Deste modo, tão rapidamente quanto a prisão se «des-ideologizou» e o «penitenciário»
deixou de reclamar para si um programa próprio, tão aceleradamente quanto se tornou
menos «total» e mais hetero-determinada, assim deviria no mesmo passo espessa a
atmosfera ideológica exterior, sintetizada no quadro de representações que acabo de
traçar. É este quadro de representações que, à escala nacional e supranacional, em
parte moldou – e foi moldado por – o campo político, mediático, legislativo e judiciário,
campos estes permeáveis e reagindo entre si. Vistas as figuras que concitadamente
visam e que suscitaram a álacre viragem nas formas do castigo, segue-se o encontro
com quem desagua, afinal, na prisão.
32

NOTAS
1. Regime de confiança, regime aberto virado para o interior (RAVI) e regime aberto virado para
o exterior (RAVE). Neste último as reclusas trabalham durante o dia fora do estabelecimento.
2. O estabelecimento prisional permite que as crianças aqui possam permanecer até aos 3 anos de
idade, dispondo para tal de uma creche com pessoal especializado e coadjuvado por auxiliares
reclusas. Recebe ela crianças a partir dos 6 meses, embora dê apoio às de idade inferior, que são
supostas permanecer com as mães nas celas. Tal como no exterior, as mães que trabalham
usufruem por sua vez de uma licença de parto de quatro meses, remunerada nos termos da
legislação geral.
3. Decreto-Lei n.º 26 643, de Maio de 1936: para o texto comentado da reforma ver Pinto e
Ferreira (1955). Trata-se, porém, de uma correspondência imperfeita: se todos os pavilhões
apresentam maiores ou menores variações quanto a regimes, regras e horários, elas são quase
nulas entre aqueles que se destinam respectivamente a penas curtas e longas. Exceptuam-se,
naturalmente, as inevitáveis diferenças resultantes da margem de manobra de que cada subchefe
de guardas dispõe na gestão do seu pavilhão.
4. Para um tratamento mais detalhado deste ponto ver M. Cunha (1994: 21-34).
5. Segundo Foucault (1975: 251), as tecnologias de correcção ou técnicas disciplinares teriam
configurado propriamente o domínio do «penitenciário», isto é, a margem suplementar pela qual
a prisão excede o domínio do «judiciário». Punindo, a cadeia deveria operar a transformação dos
indivíduos, o que implicava em primeiro lugar conhecê-los, classificá-los e fazer variar em
consequência a aplicação da pena. As tecnologias mediante as quais se agia sobre as disposições
dos prisioneiros relevariam essencialmente de três matrizes: a «político-moral», com os
princípios do isolamento e da hierarquia; a «económica», com o princípio do trabalho, ainda que
menos como actividade produtiva do que como indutor de ordem e de regularidade, da disciplina
do corpo e da alma; e a matriz de inspiração «terapêutica», com o princípio do tratamento e da
normalização.
6. Foucault (1980) responderia implicitamente a esta sorte de objecções dirigindo-se a um
historiador fictício e estereotipado com quem o haviam convidado a dialogar: «le grand témoin
du Réel», o que defende «les petits faits vrais contre les grandes idées vagues; la poussière défiant
le nuage» (ibidem: 29). Riposta o autor que o que pretendeu fazer foi a história da racionalidade
de uma prática, acrescentando a este propósito:
Il faut démystifier l’instance globale du réel comme totalité à restituer [...] Un type de rationalité,
une manière de penser, un programme, une technique, un ensemble d’efforts rationnels et
coordonnés, des objectifs définis et poursuivis, des instruments pour l’atteindre, etc., tout cela
c’est du réel, même si ça ne prétend pas être «la réalité» elle-même ni «la» société tout entière
[...] C’est ce que l’historien (...] n’entend pas, au sens strict du terme. Pour lui, il n’y a qu’une
réalité qui est à la fois «la» réalité et «la» société. [I]l croit faire une objection en disant: mais ces
programmes n’ont jamais fonctionné réellement, jamais ils n’ont atteint leurs buts. Comme si
jamais autre chose avait jamais été dit; [c]omme si l’histoire de la prison n’était pas justement
l’histoire de quelque chose qui n’a jamais marché, du moins si on considère ses fins affirmées.
Quand je parle de société «disciplinaire», il ne faut pas entendre «société disciplinée» (ibidem:
34-35, itálicos no original).
7. Utilizo esta metáfora apenas para evocar um modo específico de organização do trabalho e não
para veicular o julgamento de valor que lhe é associado. No caso em questão, esta organização do
trabalho não tem necessariamente, e por si mesma, efeitos desumanizantes.
8. Os tribunais de execução de penas decidem, depois de ouvidos os pareceres emitidos em
conselho técnico (pela directora, pelos serviços de educação e de reinserção social e pelos
33

representantes do pessoal de vigilância), da atribuição da liberdade condicional e das saídas


precárias de longa duração. Estas saídas podem ser concedidas semestralmente e têm uma
duração de 4 a 8 dias. As de curta duração, trimestrais e por períodos de 48 horas, apenas
dependem da autorização da directora – ou seja, a sua decisão é administrativa.
9. Da tipologia de Barak-Glanz constam ainda duas configurações: na dos «poderes partilhados»,
regida por uma lógica de democratização e marcada pela pressão exercida pelo pessoal
terapêutico face ao pessoal de segurança, é reconhecida aos prisioneiros voz activa na gestão da
vida prisional; no modelo do «controlo pelos detidos», como o nome indica, a prisão é
administrada de facto por grandes blocos de reclusos que, ao contrário da configuração anterior,
não precisam sequer de constituir uma frente comum de reivindicação perante o staff dirigente,
limitando-se a negociar entre si para aceder aos recursos da instituição.
10. Estes pontos encontram-se já tratados com maior pormenor em Cunha (1994: 61-80).
11. A localização original da cadeia num contexto rural – tornado agora quase suburbano –
decorria da intenção programática de afastá-la da cidade, representada como um meio
criminogéneo e de perdição. A desconfiança da cidade e o elogio da ruralidade faziam assim
convergir uma perspectiva de tratamento penitenciário e elementos ideológicos centrais do
Estado Novo (ver Cunha, 1994: 23-28).
12. Ver Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto.
13. Curiosamente, viria a circular uma proposta de nova lei orgânica do Ministério da Justiça,
segundo a qual o acompanhamento dos reclusos que é agora feito pelo IRS deveria regressar «à
casa» da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, ou seja, aos estabelecimentos na sua
dependência. Reacções de várias entidades judiciais e do IRS veiculadas pelo jornal Público, de 18
de Março de 2000, criticam o «retrocesso» que a proposta representa e o fechamento das prisões
sobre si próprias que ela acarretaria. Por outras palavras, lamentam o desaparecimento de
entidades externas ao sistema que informalmente o «fiscalizam» e lhe servem de «contra-peso».
14. Pouco antes de iniciar o presente trabalho de campo, os serviços que essa empresa prestara,
durante um ano, haviam já sido dispensados. Uma guarda recorda assim o episódio:
Havia uma boa higiene, as refeições até eram bem confeccionadas e bem embaladas. Só que era
poucochinho, e era uma complicação para repetir. reclusas queixavam-se de fome, sobretudo as que
trabalhavam no campo, que precisavam de comer bem. Protestaram, houve levantamento de rancho e tudo.
A empresa dizia que ficavam bem se comessem tudo, que não precisavam de mais, estava tudo
cientificamente controlado. Mas nós já estávamos com muita dificuldade em controlar as reclusas, havia
uma grande revolta. Conclusão, voltou tudo ao que era dantes.
15. A vulgarização do televisor nas celas, neste como noutros estabelecimentos, tem-se
constituído como o referente material predilecto do popular vitupério da «prisão-como-hotel»,
logo, insuficientemente punitiva. Sem entrar nas considerações que suscitaria o aqui implícito
princípio de less elligibility, e sem me parecer necessário elaborar sobre o facto de que o aparelho
deixou há muito de ser um artigo de luxo, apresso-me a adiantar que no caso de Tires as reclusas
dispõem dele a expensas suas. Quem não tem meios económicos para tal pode, se assim o quiser,
partilhar uma cela com quem o possua.
16. Os regimes que mais se diferenciam são os das reclusas preventivas, e em RAVI e RAVE,
nomeadamente na periodicidade ou nas condições em que podem receber visitas (ambas mais
favoráveis), e nos períodos de tempo em que se encontram fechadas nas celas (raros no caso das
primeiras reclusas e inexistentes para as segundas). Para as detidas em RAVI e RAVE, ainda,
apenas se prevêem horários de trabalho e refeições (sem se submeterem à contagem tri-diária,
vulgo conto).
17. Decreto-Lei n.º 48/95. Vem substituir o Código Penal de 1982.
18. Decreto-Lei n.º 454/91.
19. «Alarme social» é uma categoria bastante usada entre os agentes do campo judiciário para
indicar o modo como interpretam a conjuntura da sensibilidade pública face ao crime em geral
34

ou às suas modalidades particulares. Assim, se a lei, por tendência estável, reflecte esta
sensibilidade, mas de maneira mais distante, os magistrados escutam-na mais de perto, por vezes
nas flutuações que nela induz, por exemplo, a notícia de um determinado crime, e poderão levá-
la em conta nas decisões que tomam dentro da margem de arbítrio que lhes é concedida.
20. Decreto-Lei n.º 15/93. Vem revogar a lei da droga anterior (Decreto-Lei n.º 430/83).
21. Art. 34.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
22. Ênfase no original.
23. Esta convenção prevê, por exemplo, a inversão do ónus da prova quanto à origem lícita de
bens e produtos passíveis de apreensão e perda para o Estado (art. 5.º, n.º 7), um princípio que o
direito nacional não acolheu – ou ainda não acolheu, uma vez que este e outros novos
instrumentos de combate ao tráfico encontram-se, no momento em que finalizo a redacção do
trabalho, em discussão na Assembleia da República, tendo já o actual Ministro da Justiça
declarado ser esta uma medida de grande alcance neste combate (cf. jornal Público, 7 de Julho de
2001: 26).
24. Em Portugal, segundo as Estatísticas da Justiça de 1987 e de 1997, o número de reclusos
passaria respectivamente de 7 965 para 14 236. Para a evolução comentada destes índices noutros
países ver, por exemplo, para países europeus, todos os artigos contidos em Ruggiero, Ryan e Sim
(1995), Wacquant (2000); e, para os Estados Unidos da América, Rothman (1995), Blumstein (1995)
e, também, Wacquant (2000).
25. Por sentimento difuso de insegurança não pretendo sugerir que se trata de um medo sem
objecto ou sem conexão alguma com as realidades do risco. Porém, como sustenta Jock Young
(1999: 74-78), além de a percepção do(s) crime(s) e do risco de vitimização formarem um
continuum com a percepção de outros problemas sociais e com outras inquietações urbanas,
variam também segundo as categorias sociais e adquirem em cada uma um significado específico
(os receios dos idosos serão maiores, por exemplo, e as mulheres recearão especialmente a
violência). Por isso:
[B]ecause human behaviour is always a subject of evaluation and assessment there can be no one-
to-one relationship between [real] “risk” and “fear”: arguments which are based simply on the
level of correlation, for or against, are positivistic blind alleys which lead nowhere (ibidem: 74).
Assim, continua o autor, em vez do vão exercício de procurar averiguar até que ponto o
sentimento de insegurança é ou não desproporcionado, seria mais profícuo tentar captar o
sentido que adquire dentro das diversas categorias sociais. Por outro lado, alega ainda Young, há
que levar em conta o aumento da expectativa ou do nível da exigência social de segurança na
modernidade tardia:
To hinge the question on whether [“risk rates”] have actually risen and whether they are
phrased in an alarmist fashion fundamentally misses the point. In some instances they have
risen, in many cases they are exagerated, but what is important is that the base line of evaluation
has increased as has the demand for a higher quality of life [...]. It is not so much that modernity
has failed to keep its promise to provide a risk-free society as that late modernity has taken
seriously this promise, has demanded more and realized the greater difficulty of its
accomplishment (ibidem: 78; em itálico no original).
Para um confronto de perspectivas sobre esta questão em Portugal ver Eduardo V. Ferreira (1998)
e a crítica que lhe é dirigida por Pedro M. Ferreira (2001).
26. Ateado por três indivíduos ligados a um estabelecimento rival, o incêndio do Meia Culpa
começou pelo recheio da discoteca e tinha por objectivo desestabilizar a concorrência, mas
rapidamente fugiu ao controlo dos incendiários – um dos quais, de resto, ficou ferido. A operação
saldou-se em 13 mortos e 22 feridos, um resultado para o qual também teria contribuído uma
porta de emergência que não funcionou, impedindo a saída dos frequentadores.
27. Pela primeira vez sustentada por Freda Adler (1975) e Rita Simon (1975), esta tese foi
desmontada em múltiplas e variadas frentes – razão pela qual mesmo uma resenha de tal
35

controvérsia implicaria um alongamento indevido deste texto. Ficam, por conseguinte, apenas as
referências mais representativas: Carol Smart (1977, 1979), Jane Chapman (1980), Meda Chesney-
Lind (1986), Edna Erez (1988), Pat Carlen (1988), Darrell Steffensmeier (1980, 1996) e Sally
Simpson e Lori Ellis (1995).
36

Capítulo 2. Os dados do jogo, as


reclusas e o antropólogo

Perfil sociológico e penal das reclusas: os eixos da


mudança
1 Por caminhos vários, o capítulo anterior descreveu o que pode caracterizar-se como o
fim de um ciclo histórico da instituição e o início de um outro, ainda que, como em
todas as mudanças, por mais abruptas que sejam, se insinuassem retrospectivamente
no pretérito tendências futuras e se identifique no presente algum lastro do passado. O
mesmo sucede com a população que ela encerra, radicalmente diversa nas propriedades
estruturais que apresenta em 1987 e 1997. O levantamento estatístico desta população
implicou um sinuoso percurso de recolha. Os dados sociográficos e criminológicos
relevantes para esta investigação encontravam-se irregularmente preenchidos nos
registos de entrada, tornando-se necessário compará-los e colmatá-los com os
constantes de outras fontes, como fichas e processos individuais. Alguns dados ainda
assim em falta foram obtidos, sempre que possível, junto das próprias reclusas, com a
colaboração dos serviços de educação. Aliás, as fichas mais extensas e «qualitativas»
elaboradas pelas educadoras – e que estas amavelmente puseram à minha disposição –
fizeram-me tropeçar noutro tipo de elementos (abordados noutros capítulos) que não
faziam parte do meu programa inicial de recolha estatística. Muitos surgiriam
certamente mais tarde, no contacto com as reclusas, mas desta forma pude obter uma
noção bastante precisa do seu peso relativo no conjunto desta população.

Penas e crimes

2 As penas que as reclusas hoje cumprem são flagrantemente mais extensas do que em
1987. A mudança profunda e inopinada que ocorreu em dez anos nesta característica do
perfil penal da população prisional traduz bem a amplitude dos impactes concretos que
teve no estabelecimento a crispação da política criminal e as alterações das políticas e
práticas legislativas e jurisprudênciais enumeradas no capítulo anterior. São nítidos,
em particular, os efeitos do processo de bifurcação aí referido. Ou seja, em primeiro
37

lugar é menor o recurso a penas curtas de prisão. Assim se entende, por exemplo, que
agora em Tires o total de reclusas condenadas a penas até seis meses não perfaça 0,5%
(ver figura 1), quando em 19871 era precisamente neste intervalo que se situava a
percentagem mais elevada (27%), seguida dos 19% referentes às penas compreendidas
entre três e cinco anos, valor hoje em regressão (15%)2.

FIGURA 1 – Penas (%) 1997 n = 464

3 A outra face da política criminal dual é draconiana: investe-se nas penas longas que,
relembro, se ampliaram. Em 1987, o EPT registava montantes ínfimos de reclusas com
penas superiores a sete anos. Dez anos depois, 51% concentram-se nas penas entre
cinco e nove anos. De resto, se se assumir como ponto de referência as penas superiores
a cinco anos (um limiar importante, pois recordo que é a partir dele que a política
repressiva se acentua e se repercute ainda mais intra-muros, com a liberdade
condicional tornada inviável antes do cumprimento de ⅔ da pena), a proporção de
reclusas nessa condição totaliza os 69%. Esta ordem de valores não tem aliás precedente
na história da instituição, nem mesmo nos seus primórdios, nos anos 50, quando a
severidade penal também se fazia aí sentir (ver Cunha, 1994: 16). Com uma robusta
maioria aglutinada nas penas superiores a cinco anos, insinua-se assim um primeiro
elemento homogeneizador da população reclusa.
4 Se são mais longas as penas que expiam as condenadas de Tires, são-no também porque
os crimes que hoje aqui as trazem circunscrevem o alvo principal da severidade penal:
os crimes de tráfico. A julgar pelos dados relativos ao ano de 1997 fornecidos pelo
Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga (GPCCD), é de aventar
que o rigor penal que inflaciona o número de ocupantes das cadeias portuguesas não se
limita aos famigerados «grandes traficantes»: o número de apreensões (classificáveis de
acordo com o critério de quantidade de substância média apreendida) foi de 89%
situável no «pequeno tráfico», 7% no «médio tráfico» e 3% no «grande tráfico».
Também assim se compreende que tendo aumentado o número de apreensões, o mesmo
não tenha sucedido com a quantidade global da droga apreendida. 76% das reclusas do
EPT vêm condenadas ou acusadas (no caso das preventivas) por tráfico de
estupefacientes, crime este que dez anos antes, apesar de já registar cifras significativas
38

no estabelecimento, ficava a menos de metade deste valor (37%). Nas características


penais da população desta instituição, lideravam então os crimes contra o património
(48%), que hoje tombaram para 18%. A descriminalização parcial dos cheques sem
cobertura não é inteiramente responsável por esta descida (de 20% para 2% nesta
categoria específica) já que o total dos crimes contra a propriedade (furto, roubo e
burla) passou de 29% para 16%. Aliás, nos restantes crimes é também constatável esta
tendência descendente (ver figura 2)3.

FIGURA 2 – Crimes (%) 1987 n = 129 1997 n = 820

5 Quer isto dizer que a uniformização das penas se acompanha, em paralelo, da


homogeneização dos crimes, cujo vector é o tráfico de estupefacientes. Tires não é caso
único num quadro evolutivo em que, de acordo com as estatísticas do Ministério da
Justiça relativas ao período 1987-1996, os processos por tráfico aumentaram em média
16% ao ano e os detidos por crimes de droga (incluído agora o consumo) saltaram, neste
intervalo, de 2192 para 9054. É de resto também no montante de presos por este motivo
que Portugal sobe acima da média comunitária (ver o relatório do Conselho da Europa
referido em supra: 50).
6 Mas no EPT, se essa categoria centrípeta que é o tráfico apaga por si própria a relativa
diversidade penal de outrora, a homogeneidade acentua-se com uma outra
convergência. Pelo menos 63% das reclusas que aqui se encontram por crimes
patrimoniais (a única outra categoria com frequências assinaláveis: 18%, relembro)
surgem referidas como «toxicodependentes». Sendo assim, ao considerar-se a
totalidade dos crimes que envolvem alguma conexão com narcóticos e não apenas e
estritamente os chamados crimes de droga, já por si largamente maioritários, as
percentagens sobem para 88%. A droga parece surgir então como um denominador
comum no perfil penal desta população e o factor pelo qual a sua uniformização se
tornou quase absoluta.
7 Ao referir aqui a proporção dos crimes patrimoniais conectados com a droga, não
pretendi com isso sugerir que a última fosse a causa dos primeiros. Na verdade, a
natureza da relação entre droga e delinquência alimenta ainda um debate longo de três
décadas. Para além de um consenso quanto ao facto de as substâncias psicoactivas não
39

possuírem em si mesmas propriedades criminogéneas (um consenso apesar de tudo


precário, a avaliar pela frequência com que o tema regressa), os argumentos repartem-
se basicamente em dois modelos. O primeiro, e o mais popular nos meios policiais
(Brochu, 1993), sustenta existir uma relação causal entre a dependência de drogas duras
(heroína, cocaína) e a criminalidade «aquisitiva», na medida em que esta resultaria da
pressão económica gerada pela necessidade de manter um hábito dispendioso (Shur,
1969; Jarvis e Parker, 1989; Chaiken e Chaiken, 1990). No segundo modelo inverte-se, até
certo ponto, a sequência: a carreira criminal precederia o consumo, e o envolvimento
em «subculturas» ou «estilos de vida desviantes» tornariam mais provável e sedutor o
encontro com drogas; e/ou ambos os polos resultariam das mesmas causas e reforçar-
se-iam mutuamente (Preble e Casey, 1969; Mott e Taylor, 1974; Brochu, 1993).
8 Mas, nesta como noutras controvérsias, a acuidade das propostas varia com os
universos que visam, e o dos consumidores de drogas ilícitas está longe de ser
uniforme. Não me detenho para já no simples facto dos termos deste debate se terem
fixado com dados relativos ao mundo masculino e, em muitos casos, masculino juvenil.
Em todo o caso, grande parte do universo dos consumidores não só não está implicado
na delinquência, como existem segmentos que mantêm com as drogas uma relação
discreta e não conflituante com papéis e rotinas relativas, por exemplo, à inserção
social e profissional. Trata-se assim de segmentos refractários aos esteréotipos do
discurso dominante acerca do «mundo da droga» (Ehrenberg, 1996; Valentim, 2000) 4.
Porém, se as práticas ilícitas de consumo se distribuem por todas as camadas sociais,
não se expõem todas por igual aos riscos de penalização e marginalização (Kaminski,
1990:166-167).
9 Numa linha conexa Marie-Danielle Barré (1996) descreveu a enorme distância que
separa, em funil, a realidade destas práticas e a sua construção penal ao seguir o
encadeamento de decisões e a miríade de filtragens sucessivas que se interpõem entre a
simples interpelação policial (já de si selectiva dos consumidores mais visíveis e
vulneráveis) e o ingresso no processo judiciário. A mesma autora mostra também que
quanto mais se avança neste percurso mais são visados aqueles que, entre os que nele
restaram retidos, se encontram implicados noutros ilícitos. Desta forma, a análise da
relação entre droga e delinquência através da actividade policial seria afinal a «análise
de um círculo vicioso» porque se estaria a confundir estes consumidores bi-implicados
com o universo dos consumidores. Donde, a questão dessa famigerada relação não teria,
por aqui, resposta possível.
10 Vistas as coisas de outro lado, e reciprocamente, a proporção de consumidores de
drogas entre os delinquentes judiciarizados é maior do que na população em geral e
entre os delinquentes não judiciarizados, sendo este consumo um factor que contribui
precisamente para a sua judiciarização. Assim, se há muito se sabe que a própria
criminalidade é um fenómeno socialmente construído, a equação droga-crime, essa,
parece hiperconstruída5. Por consequência pode-se então indagar das razões que me
conduziram a focar especificamente a nítida correlação entre os crimes patrimoniais
das reclusas de Tires e a sua «toxicodependência» (sendo sempre de frisar que a noção
de correlação não implica uma relação de causa-efeito). De facto, embora não esteja
esgotado o debate acerca daquela equação genérica – cujas linhas esbocei acima – não
pretendi com isto participar nele. Circunscrever essa ligação para o contexto de Tires é
um exercício que releva de questões de ordem bem diversa. Ele estabelece na verdade
um dos cenários prévios necessários para compreender o conteúdo e o jogo de novas
40

categorias locais (ver, no capítulo 6, a importância da categoria por droga) que, por sua
vez, ajudarão a atravessar na direcção inversa os muros da prisão.
11 Os dados relativos a crimes e penas traduziram a homogeneização vincada em que se
saldou a evolução do perfil penal das reclusas na década em questão. Aliás, se abrirmos
a lente e inserirmos este período no tempo longo da instituição, desde o início do seu
funcionamento (ver Cunha, 1994), constata-se uma viragem brusca num percurso cujas
inflexões antes se insinuavam geralmente de maneira gradual e cumulativa. A diferença
dos valores atestados no intervalo de uma década é de tal ordem de grandeza que se
pode com propriedade falar de um salto qualitativo. Ora, neste mesmo período
produzir-se-ia também um processo de nivelamento no perfil sociológico desta
população.

«O que é nacional...»

12 Em plena euforia discursiva sobre a «globalização» e a circulação internacional de


pessoas, a população reclusa de Tires é hoje bastante mais portuguesa do que ontem. De
acordo com os dados locais relativos à nacionalidade (ver figura 3), passou de 71% em
1987 para 87% dez anos depois, uma subida muito significativa e que retoma valores
semelhantes aos de 1975 (Cunha, 1994). Face à descida da proporção de estrangeiras dos
países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) – de 16% para 7% –, poder-se-ia
aventar que aquela «lusitanização» descreveria menos uma realidade sociológica em
mutação do que um reflexo de uma mera mudança na situação administrativa, como
seria a eventual naturalização de pessoas oriundas desses países.
13 Tal não me parece ser, porém, a razão principal. Creio em vez disso que esta deve ser
situada, em primeiro lugar, no quadro do alargamento desmesurado dos crimes de
tráfico enquanto canais preponderantes através dos quais as reclusas desembocam em
Tires. Senão vejamos: das 37% das recluídas por tráfico em 1987, 11% eram estrangeiras:
volvida uma década, apenas uma diminuta fatia de 4% o são, num total de «traficantes»
que cresceu para 76%. Ou seja, tendo aumentado, o tráfico tornar-se-ia também pátrio,
de fabrico local. Esta hipótese, que aponta para uma realidade, de facto, nova, parece
ser apoiada lateralmente pela descida da percentagem de reclusas provenientes de
Espanha (de 6% para 2%) e de países sul-americanos (de 5% para 2%), hoje e ontem
implicadas por tráfico (menciono apenas estes países, pois as restantes nacionalidades
representam no EPT, no passado e no presente, valores irrisórios). Assim, o tráfico de
«trânsito», corporizado nessa figura outrora tão recorrente em Tires que era o «correio
de droga» detido nos aeroportos, parece ter dado lugar, enquanto produtor de reclusas,
ao tráfico doméstico. Impõe-se a este propósito relembrar o magistrado citado no
capítulo anterior (supra: 53), que justificava a sua parcimónia na concessão da liberdade
condicional com a necessidade de dissuadir as tentações delinquentes de estrangeiros e
de travar a progressão da criminalidade com origem exógena. Ora, e ao contrário do
que sugere, como acaba de se constatar nos reflexos que tem em Tires, é justamente
com a «prata da casa» – para usar dos seus termos – que essa criminalidade progride, e
sobretudo muito mais agora do que no passado. Abriram-se as fronteiras, é certo, mas
ela é «made in Portugal». A nível nacional, de resto, de acordo com os Sumários de
Informação Estatística do Gabinete de Planeamento e Coordenação do Combate à Droga,
totalizam 91% os condenados por diferentes crimes de tráfico com nacionalidade
portuguesa.
41

FIGURA 3 – Nacionalidade (%) 1987 n = 174 1997 n = 709

O «b-a ba» da classe

14 Os dados relativos às características sócio-profissionais (ver figura 4) apontam


igualmente para alterações de monta ocorridas neste período 6. Com efeito, a
uniformização do perfil sociográfico das reclusas fabricar-se-ia ainda por outras vias.
Em primeiro lugar, e genericamente, as trabalhadoras não qualificadas do comércio e
serviços perfaziam, em 1987, 22%. Dez anos depois seriam 53%, uma subida em flecha e
que por si só indicia, de maneira bastante eloquente, a desqualificação acentuada desta
população. Vejamos, em mais detalhe, os meandros desta mutação.

FIGURA 4 – Profissão/Condição perante o trabalho (%) 1987 n = 138 1997 n = 734


42

15 A rubrica «vendedoras», que se compõe quase exclusivamente, para utilizar as


designações com que as reclusas declaram a sua profissão, de vendedoras ambulantes e
feirantes, de vendedoras nos mercados e peixeiras mais ou menos itinerantes, regista
uma subida ligeira (de 17% para 20%) e continua, como no passado, a representar a
segunda percentagem mais importante. Uma transformação flagrante sucede porém
nos montantes das trabalhadoras não qualificadas dos serviços, ou seja, empregadas
domésticas e pessoal de limpeza em organismos e empresas. Aqui constata-se um salto
de 4% para 33% entre os dois anos em análise.
16 Ora, este salto de 29 pontos percentuais tem como contraponto um outro, de dimensão
análoga mas em sentido inverso: trata-se das «domésticas», que em 1987 constituíam de
longe a maior categoria (50%) e cuja proporção se reduziu hoje para 19%. Esta queda de
31 pontos percentuais só tenuamente repercute uma tendência nacional para a
diminuição do peso das domésticas (entre os censos de 1981 e 1991 passariam de 14,5%
para 10%) e, por outro lado, reveste-se no contexto prisional de significados específicos.
Esta categoria impõe por isso algumas considerações. Em primeiro lugar, ela é agora
bastante mais ambígua do que no passado. Do total de domésticas, 26% declararam-se
também como «prostitutas» – embora não o tenham declarado como «profissão».
Refiro a este propósito que a designação «doméstica» aparece por vezes combinada com
outras («peixeira», «costureira», «ajudante de cozinha», etc.), embora neste caso eu
tenha optado por reter não aquela condição perante o trabalho, mas a actividade
profissional.
17 Tive, aliás, que fazer outras opções para a contabilização dos dados sobre as profissões,
já que estas se multiplicavam para cada reclusa. Anotei então aquela que, pela ordem
em que figurava, me parecia ser a mais recente, uma opção que no decorrer do trabalho
de campo me veio a surgir como algo arbitrária e sociocêntrica. De facto, as actividades
profissionais ora se sucedem, revelando alguma instabilidade e precaridade laboral
(quando não se intervalam recorrentemente com períodos de desemprego), ora se
combinam em simultâneo, num desdobramento e numa polivalência que parcos
recursos e baixos salários tornam inevitável: uma ajudante de cozinha lança mão da
venda ambulante, uma empregada de limpeza da venda de peixe, ou de flores, ou de
hortaliça, uma «mulher a dias» é também «feirante», ou cozinheira, ou «manicure», ou
«empregada de café» – entre muitas combinações possíveis desta pluriactividade.
Regressarei no capítulo 4 a este ponto.
18 Voltando à categoria «doméstica», ela pode, em segundo lugar, ser utilizada para a
população reclusa como um indicador de estratificação social – ainda que remoto e
indirecto. Em 1987 a grande proporção de domésticas, apesar de apresentar deste ponto
de vista alguma diversidade interna, era situável – pelos contactos directos que o
trabalho de campo proporcionaria – numa zona próxima da pequena burguesia. Quer
dizer que economicamente era ainda viável cumprir um eventual ideal de
domesticidade associado ao género feminino – ver, a este propósito, Vale de Almeida
(1995: 33) –, que de resto podia cobrir situações de desemprego que não eram
reconhecidas como tal. Hoje, possivelmente, os 5% de desempregadas autodeclaradas
saltaram para fora dessa categoria de representação. Em todo o caso, como poderia
constatar mais tarde, a agora estreitada proporção de domésticas não provém já
maioritariamente dos mesmos estratos sociais, e para essa direcção apontam também
os 26% de reclusas nela contida que declaram ser a prostituição o seu meio de
sobrevivência.
43

19 Quanto à rubrica «outras» (profissões), os montantes também baixariam (de 22% para
18%), o que poderá de igual modo indiciar uma menor diversidade na gama de
ocupações profissionais. Mas, além disso, entre estes anos mudaram os conteúdos e a
repartição interna desta categoria. Enquanto em 1987 predominava o pessoal
administrativo e o sector dos serviços (repetindo-se as secretárias, empregadas de
escritório, cabeleireiras e esteticistas), em 1997 destaca-se antes o operariado não
qualificado – basicamente no sector dos têxteis, do calçado e na indústria conserveira.
20 Em suma, esta década parece saldar-se num maior ingresso pré-prisional desta
população no mercado de trabalho – ou nos seus interstícios – mas, nesta investida, o
universo recluso também aqui se homogeneizaria, num movimento de convergência
para uma mesma zona do espaço social estratificado. E o sentido dessa deslocação
conjunta é, notoriamente, descendente.
21 Um outro indicador associa-se estreitamente ao indicador sócio-profissional para nos
fornecer as coordenadas mais básicas de localização no espaço estrutural das relações
de classe. Dada esta transversalidade, não é assim por acaso que é similar à tendência
acima descrita aquela que os níveis de escolaridade revelam (ver figura 5). É certo que
em ambos os anos os recursos sócio-educacionais da globalidade das reclusas são parcos
e, para mais, inferiores aos da generalidade da população portuguesa. Por exemplo, o
censo de 1991 contabilizava 11% de analfabetos, quando esta fracção corresponde na
prisão a 19% em 1987 e a 21% dez anos depois (e o relatório de 1996 da Provedoria de
Justiça sobre o sistema prisional notaria que a discrepância em relação aos números
nacionais se acentua à medida que se progride nos escalões de escolaridade).

FIGURA 5 – Níveis de escolaridade (%) 1987 n = 138 1997 n = 734

22 No entanto, no intervalo de uma década os capitais escolares à entrada na prisão


tornar-se-iam ainda mais exíguos. Esta involução é tanto mais inesperada quanto a
tendência externa é naturalmente a inversa, com os níveis de escolaridade a subir à
medida que se renovam as gerações – estando as mais recentes sujeitas, em princípio,
pelo menos às metas da escolaridade obrigatória. Na prisão de Tires, de facto, não só
cresceu a população que nunca frequentou a escola como se constata um significativo
aumento de 9 pontos percentuais naquela que se ficou pela antiga quarta classe (a cifra
passada é de 28% e a actual de 37%). Se se alargou deste modo a base dos escalões mais
44

baixos, afunilar-se-ia necessariamente na direcção do topo. O mesmo é dizer que entre


1987 e 1997 todos os níveis acima do primeiro ciclo do ensino básico registam, sem
excepção, descidas sensíveis. Reunidos totalizam, respectivamente, 53% e 41%. Também
por esta via se nota, então, um maior nivelamento por baixo na composição social desta
população.
23 Estes números podem, aliás, ser lidos a partir de um ângulo complementar ao da
estratificação social. Como se viu, o indicador anterior delimitava uma vasta zona de
trabalho não qualificado. Mas, em acréscimo, trata-se sobretudo de segmentos de
emprego precário, instável e – mais importante ainda pelas potenciais implicações
analíticas, a que voltarei mais tarde – informal. Ora, se grande parte desta população se
move no sector informal da economia, por outro lado ela escapa, paralelamente, a um
modo típico de regulação institucional do Estado na medida em que os níveis de
instrução não só são baixos, como distantes dos mínimos da escolaridade obrigatória.
24 Aliás, num registo bem diverso, poder-se-ia também falar de informalidade no plano do
estado civil, dada a proporção das relações constituídas fora da alçada daquela
regulação (ver figura 6)7. Se nessa perspectiva juntarmos ao valor de reclusas que vivem
maritalmente o número de solteiras com filhos (ver quadro 1), obtemos uma fatia de
42%. Ainda quanto ao estado civil, saliento uma percentagem significativa de
separadas/divorciadas (17%). Outro dado quantitativo importante para contextualizar
aspectos abordados posteriormente é a percentagem de reclusas com filhos: no mínimo,
79%8.

FIGURA 6 – Estado civil (%) 1997 n = 794

QUADRO 1 – Reclusas com filhos por estado civil (%) 1997 n = 794

Estado civil Das quais com filhos

Solteiras 47,9

Vivem maritalmente 87,3


45

Casadas 91,1

Separadas (Divorciadas) 89,9

Viúvas 93,5

25 É também de referir que recorrentemente os filhos de uma reclusa resultam de


diferentes ligações que se sucedem no seu trajecto de vida, qualquer que seja o estado
civil que elas assumam (muitas reclusas casadas, por exemplo, foram-no mais de uma
vez). Faço aqui menção à questão da «instabilidade» e da «informalidade» das relações
conjugais para, sem me deter nela, indicar um aparente paradoxo nas representações
que a envolvem, paradoxo esse que não deixa de acusar a marca das inserções de classe.
Se um tipo de representações, na linha de Giddens (1997: 74-92) e podendo ser descritas
com o seu vocabulário analítico, discerne por detrás dessa conjugalidade atribulada a
afirmação de um projecto de individualidade e de auto-realização do self típico da
modernidade tardia, em que os laços pessoais próximos se emancipam de âncoras
externas – uma análise porventura a pensar principalmente nas classes médias –,
outras representações têm visto nela um signo de desestruturação social ou, sobretudo,
da ausência de estrutura que afectaria as classes pobres. Basta dizer que esta
informalidade e instabilidade constituíram um dos ingredientes-chave na definição
dessa categoria ambígua que dá pelo nome de «cultura da pobreza», e dessa mais actual
mas não menos ambígua figura baptizada de «underclass», cuja estigmatização nos EUA
e na Grã-Bretanha tem passado precisamente, entre outras coisas, pela existência de
mães solteiras, à qual se atribuiu em si mesma a maioria dos problemas de que tal classe
enfermaria – inclusive o do crime (e. g. Murray, 1990) 9. Voltarei adiante a ambas as
categorias.

A idade na prisão e o género da droga

26 Retomando os traços largos da caracterização sociográfica da população reclusa de


Tires, a queda nos recursos escolares pode, em parte, ser explicada pelo
envelhecimento desta. São na verdade flagrantes as mudanças que entre estes dez anos
ocorreram na idade registada à entrada no estabelecimento (ver figura 7). Em todos os
grupos de idade compreendidos entre os 16 e os 29 anos constatam-se descidas
(sobretudo no grupo 20-24, o mais numeroso em 1987) que, somadas, totalizam 23
pontos percentuais: nesta banda etária situava-se, em 1987, uma fatia de 58% das
reclusas e, uma década depois, reduzir-se-ia para 35%. Inversamente, a partir dos 30
anos e até aos 54 crescem os montantes em todos os grupos (especialmente nas faixas
dos 30-34 e 40-44). Concentram-se aqui 59% das idades – a maioria, portanto – enquanto
no passado a proporção se limitava a 36%.
46

FIGURA 7 – Grupos de idade (%) 1987 n = 172 1997 n = 789

27 Esta mutação vincada na estrutura etária da população reclusa pode ser compreendida
no contexto da subida em flecha das taxas locais de reclusão motivada pelos crimes de
tráfico de droga, em primeiro lugar, e, em conjugação com este factor, pela modulação
sexual destas cifras no contexto nacional. Vejamos, então, como intervém o factor
género. De acordo com as Estatísticas da Justiça de 1997, o número de condenações
masculinas continua a ser de longe superior ao das femininas, embora seja
comparativamente um número em regressão (entre 1987 e 1997 a população prisional
feminina passou de 6% para 10%). Porém, a sua repartição interna para cada sexo é
bastante diversa: os reclusos condenados neste ano por crimes contra o património
perfazem 46%, enquanto a percentagem dos crimes de droga é de 34%. No caso
converso das mulheres os números são, respectivamente, de 16% e de 69%. As mulheres
são assim proporcionalmente muito mais condenadas a penas de prisão por crimes de
narcóticos do que os homens. Mas, para além disso, se considerarmos a evolução
comparativa das condenações em ambos os sexos, e delas excluirmos os crimes de
consumo, verifica-se que no período de 1989-1997 a subida proporcional dos crimes de
tráfico foi, no caso feminino, superior ao dobro da registada no caso masculino 10.
Idêntica proporção foi, aliás, notada num outro contexto por Karen Leander (1995:
178-179), que explica a subida nos índices de encarceramento feminino não por uma
eventual mudança na atitude dos tribunais para com este género (de «cavalheiresca»,
por exemplo, para especialmente intransigente)11, mas pela actual centralidade dos
crimes de droga nas condenações de mulheres, isto é, aqueles que são duramente
sentenciados. É de acrescentar, na mesma linha, que no caso português os crimes de
tráfico são ainda os que apresentam maiores taxas de condenação.
28 Na verdade, embora ciente de que também aqui possam intervir as sucessivas filtragens
policiais e judiciais ao longo do processo que terminará na constituição das fileiras
prisionais, o tráfico não só parece abrir novas oportunidades económicas às mulheres,
mas, mais ainda, às mulheres menos jovens. Estas novas oportunidades decorrem de
certas características da economia ilegal da droga em Portugal. Em primeiro lugar, além
de nela existirem poucas barreiras ideológicas à participação feminina, entrosa-se bem
nas esferas sociais preferenciais deste género porque é, em parte, uma actividade
incluível na esfera doméstica: muitas das reclusas eram «comerciantes de casa». Em
seguida, não requer força nem exige particular destreza física – o exigiriam vários tipos
47

de roubo e furto – e nesse sentido é um campo susceptível de ser investido por


mulheres mais idosas (Chaves, 1996a: 214), um ponto que retomarei mais tarde.

A geografia dos bairros

29 Por fim, quanto à residência desenham-se também configurações homogéneas em duas


escalas. Omitindo as percentagens insignificantes, na geografia nacional da
proveniência das reclusas vêm à cabeça as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (55%
e 23%), seguidas longinquamente de, sobretudo, pequenas e médias cidades do norte
(12%) e centro (8%). Menciono estes dados apenas para traçar as linhas de um quadro
local de interacção e experiência onde eles se mostram, por vezes, relevantes (em
especial a divisão Norte-Sul ou Norte-Lisboa); não para a partir deles se deslizar para
uma geografia geral da criminalidade, que só em parte repercutem. Por um lado sabe-se
já que os crimes de droga (para referir os que mais «fabricam» reclusas) progridem
agora no resto do país, para lá das áreas metropolitanas do litoral (ver Guerreiro, 1996);
por outro, a cadeia de Tires recolhe apenas uma parte – a mais importante, é certo – das
reclusas, sendo a restante distribuída por outros estabelecimentos prisionais 12.
30 Em segundo lugar, a homogeneidade que a cifra de 78% de oriundas das grandes cidades
do litoral representa é redobrada – e reforçada – a uma micro-escala. De facto, as
reclusas das áreas metropolitanas não se distribuem ao acaso no seio de cada uma.
Antes provêm sistematicamente dos mesmos bairros – bairros de barracas, casas
abarracadas ou casas pré-fabricadas, bairros de realojamento ou bairros sociais
suburbanos – a ponto de eu, sem me dar conta ou precisar de contar, ter constituído
com grande facilidade a partir da prisão uma cartografia mental dos segmentos
espaciais mais fragilizados das cidades. Apesar de tudo, contei: 89% das reclusas da área
metropolitana de Lisboa repartem-se por tais bairros, sendo semelhante a proporção
referente à área metropolitana do Porto (86%)13. Mas uma miríade de regularidades e
redundâncias da mesma ordem reproduz-se, embora em menor proporção, para o
interior das pequenas e médias cidades – em especial do Norte – ou ainda na
recorrência toponímica com que figuram certas pequenas localidades com
acampamentos ciganos na sua órbita. Este padrão é também, afinal, o da espacialização
da pobreza.
31 Estes segmentos sócio-espaciais intersectam-se frequentemente com segmentos étnicos
– intersectam-se, friso, e não recobrem-se, um matiz que tende a desaparecer na
superfície plana de discursos hegemónicos, sobretudo quando envolvem a equação
bairro-crime. De facto, existem na cadeia fortes proporções de reclusas ciganas ou de
origem africana (sobretudo cabo-verdiana, angolana e guineense), embora seja difícil
determiná-las com precisão14. Em conjunto estão, em todo o caso, em minoria.
Desenvolverei esta questão sob diferentes ângulos nos capítulo 3 e 6.
32 Recapitulando as dimensões que em dois momentos estruturam o perfil da população
reclusa em Tires e balizam o contexto onde se desenrolam os processos e práticas,
locais e extralocais, de que os seus membros são protagonistas, temos, em suma: o perfil
penal sofreu uma transformação brusca em duas vertentes. Primeiro, as reclusas não só
são condenadas a penas muito mais longas, como as cumprem quase na totalidade.
Segundo, a diversidade criminal reduziu-se, quer pela esmagadora predominância dos
crimes de tráfico, quer por uma forte conexão dos crimes patrimoniais com a droga.
São de resto características do mercado ilegal de narcóticos que permitem
48

compreender o facto de a maioria das reclusas ser agora menos jovem do que no
passado.
33 Se a droga parece assim constituir um factor de uniformização do perfil penal desta
população, o perfil sociológico também se homogeneizou e, no mesmo movimento, se
desclassificou. Este nivelamento por baixo pode ser descrito, noutros termos, como uma
pauperização genérica e em cadeia, abrangendo capitais económicos, sociais, escolares
(e simbólicos, como se verá), e traduzir-se-á em trajectórias de vida com ressonâncias
quase dickensianas. A precariedade, a instabilidade e a informalidade são, em vários
registos, outros avatares desta convergência. Outro avatar ainda é a recorrente
proveniência dos mesmos bairros desqualificados, sobretudo concentrados nas grandes
áreas metropolitanas, embora um idêntico padrão se reproduza fora delas; e/ou de
minorias étnicas socialmente estigmatizadas por estas e outras intersecções. Neste
balanço recordo, por fim, que a polarização institucional entre o staff e a população
reclusa tem agora a corresponder-lhe uma polarização sociológica agudizada, em que se
alargou o fosso entre os respectivos capitais e inserções estruturais: qualificou-se um,
desqualificou-se outra. De resto, ao renovarem-se ambos nestes dez anos, o primeiro
rejuvenesceu, a segunda envelheceu.

Um regresso a Tires
O mapa social e o mapa subjectivo

34 Mudou a prisão, mudou a população reclusa e as suas características estruturais – e,


inevitavelmente, mudou a própria investigadora. Impõe-se por isso examinar deste
ângulo a questão do regresso ao terreno ou, por outras palavras, as implicações da
realização de um trabalho de campo num mesmo contexto em momentos diferentes.
Vista outrora em Tires como uma jovem estudante, solteira, sem filhos, encontrava-me
agora não só numa outra etapa do ciclo de vida, como também com um outro estatuto,
um outro capital social e simbólico. A sua marca mais imediata era sem dúvida o título
«doutora». Não foi com ele que me auto-apresentei, mas ele acabaria inescapavelmente
por circular: quer porque alguns membros do pessoal assim se me dirigiam, quer
porque declarei às reclusas que estava ali para «escrever um livro» (o classicíssimo e
sempre à mão cartão de apresentação dos antropólogos) sobre o que tinha mudado na
cadeia nestes dez anos; esse livro, acrescentava, seria para a universidade onde
trabalho – uma especificação destinada a dissociar-me não só do estabelecimento, mas
ainda de quaisquer outras inserções institucionais que pudessem conflituar com a
relação que eu desejava estabelecer com as reclusas.
35 Além desta, porém, outras marcas sociais mais subtis configuraram, possivelmente,
parte de um outro habitus, e incorporaram-se em gestos, posturas e maneiras de falar:
dez anos de ensino deixaram talvez o seu rasto, por exemplo, na modulação da minha
oralidade, resíduos na forma como articulava os meus enunciados nas conversas
quotidianas – e deles nunca estive (em vão, ou quase) tão consciente como agora, pelo
menos nos primeiros tempos do trabalho de campo. De facto, a distância sociológica
que me separava das reclusas era agora muito maior do que na primeira investigação.
Também aqui as posições de ambas as partes se deslocaram em sentidos opostos.
36 Mas não foi só a minha posição estrutural que se alterou. Mudei, também, enquanto
sujeito. Por inclinações tanto pessoais quanto metodológicas não é minha intenção
49

situar-me reflexivamente como tal aderindo ao tom e ao modo pletoricamente


confessional de muitas das narrativas etnográficas contemporâneas que se sucederam a
Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986) e que se afirmavam já em Rabinow (1977),
Crapanzano (1980) e Dwyer (1982)15. A exaltação da subjectividade do autor e a
extrovertida introspecção que subjugam a narrativa podem ficar-se por um exercício
estilístico algo inconsequente quando dificilmente se discerne o seu alcance quer na
compreensão do objecto, quer no exame dos caminhos que levam do «mesmo» ao
«outro» e afectam esse encontro – a não ser que desde o início o segundo não tivesse
passado de um pretexto para o primeiro. A convenção textual que doravante instituiu o
autor na primeira pessoa do singular não é, por si mesma, garante de muito, podendo
ser afinal tão retórica quanto a convenção positivista que o eliminava. Na verdade,
apesar da sua vocação «subversiva» dos cânones da autoridade académica, aquela
acabaria por consagrar-se como uma fórmula simétrica não menos autoritária na
fixação desses cânones.
37 Não pretendo com isto glosar a derrisão das ortodoxias pós-modernas que entretanto
também se foi fazendo popular e não deixou ainda de produzir, por vezes
injustificadamente, o seu «gáudio no pagode» dos antropólogos. Tal derrisão teve já há
muito a sua expressão mais elegante em Geertz (1989), e a mais corrosiva em Gellner
(1992). Quero sim colocar num outro plano – reconheço que mais chão e trivial, mas
nem por isso dispensável – a questão da subjectividade do investigador. Por outras
palavras, e de momento esquematicamente, tenciono começar por focá-la na estrita
medida dos eventuais efeitos do autor na abordagem do terreno – e não dos efeitos do
terreno no autor. Para isso, há ainda um ponto prévio a considerar. Em que modalidade
figura o «eu» nas etnografias «saturadas de autor» (Geertz, 1989: 97) que acima referi?
38 Que o autor se representa no texto como sujeito não há dúvidas. Mas, no saldo final, já
não surge tão claro que ele tenha de facto funcionado como tal durante o trabalho de
campo, na interacção com os outros, e não apenas na sua dialógica mise-en-scène textual,
que lhe é posterior16. Sendo esta relação um encontro intersubjectivo de duas partes,
assume-se o investigador realmente como sujeito? Nas práticas do terreno, tal como a
elas acedo através dessas obras, entrevejo menos a sua participação como actor do que
a sua presença como uma testemunha passiva e um observador hierático que não
marcaria a agenda do terreno mas antes se mostra voluptuosamente marcado por ele,
como uma caixa de ressonância das emoções que o «outro» lhe suscita. Se para efeitos
expositivos dissociarmos em duas personae o tempo do trabalho de campo e o tempo da
escrita, dir-se-ia que o «eu» do autor que aparece na exuberante descrição dos seus
estados de alma mascara de facto o seu prévio apagamento como investigador, afinal tão
objectivado como o das obras antropológicas clássicas. Aliás, se numa espécie de
«populismo metodológico» os outros são elevados a co-autores, o investigador não
parece ter descido à co-participação como sujeito no palco da investigação 17.
39 A percepção desta contradição começou a tornar-se-me clara quando acompanhei
numa visita de um dia o trabalho de campo que uma colega antropóloga «sénior»
realizava numa aldeia da serra do Gerês. A sua etnografia seria provavelmente
qualificada de «realista» pela crítica pós-moderna. Mas foi um sujeito tangível que
encontrei e que se assumia como tal quando discordava, contrapunha, negociava em
suma a sua condição de pessoa – exactamente como aqueles com quem se relacionava.
A mestria e o sentido dos limites tornavam profícuo um exercício que não deixa de ter
os seus riscos. De facto, para minha estupefacção, em vez de se produzir o retraimento
50

que a cada encontro eu receava, os habitantes da aldeia não só apreciavam o estilo


(porventura porque assim se deparavam com um interlocutor de carne e osso e por isso
mesmo mais transparente), como este me pareceu decisivo para a sua abertura e à-
vontade. Foi aqui que me deparei, de maneira legível, com um dos referentes da noção
de intersubjectividade – e não tanto nas suas versões restituídas ou textualizadas, onde
por vezes é de intra-subjectividade que na verdade se trata.
40 Por razões mais idiossincráticas do que estratégicas, o meu estilo de relacionamento
com as reclusas continuou a ser mais reservado e discreto. Todavia, se as reclusas eram
outras, eu também não era já a mesma. Para além das mudanças que atrás referi,
descobri-me menos flexível, menos adaptável às exigências do trabalho de campo.
Quando outrora, com uma juvenil militância, eu procurava suspender os julgamentos
pessoais e impedir que a minha subjectividade interviesse no rumo das escolhas que
fazia no terreno (evidentemente, na limitada medida em que uma e outra coisa acediam
ao nível da consciência), apercebia-me agora de que tal me era muito mais difícil. Por
exemplo, não estou segura se há dez anos teria procedido da mesma forma do que hoje,
ao decidir à partida não contactar duas reclusas cujo crime me era especialmente
repugnante. A selectividade, racionalizei, era de qualquer forma incontornável e, sendo
apenas duas, não pesariam significativamente nas conclusões – como no final creio que
de facto não pesaram. Mas isso eu não deveria estabelecer definitivamente desde o
início, sobretudo na medida em que estas reclusas caíram no esboço de amostra que eu
havia constituído com a preocupação de diversificar com alguma sistematicidade os
primeiros contactos pessoais, e cujos critérios eram, entre outros, o tipo de crime e a
experiência prisional (elas integravam a pequena porção da população encarcerada que
aqui se encontrava por crimes não conexos com a droga e estavam presas havia já
muitos anos).
41 Por outro lado, apercebi-me de que os meus limiares pessoais de tolerância haviam
baixado quando muito mais facilmente me exasperavam a postura agressiva, o ar
gingão e desafiador, os olhares provocatórios e a ruidosa fanfarronice com que me
confrontavam reclusas mais jovens. Se neles entendia o conforto expressivo de quem,
ao negociar a exclusão, constrói activamente em resposta e ostenta identidades e
sentidos positivos (a que voltarei adiante), em contrapartida autorizava-me a ser mais
poupada nos esforços de aproximação a estas reclusas do que àquelas que lhes resistiam
tanto ou mais eficazmente, mas através de uma subtil estratégia de distanciação apesar
de tudo mais consentânea com os meus próprios códigos sociais de relacionamento.
42 No entanto, havia um reverso que eu ajuizava positivo nesta evolução pessoal ocorrida
entre os dois trabalhos de campo realizados no estabelecimento prisional. Uma maior
paciência e serenidade quanto aos ritmos próprios de desbravamento de um terreno
afinaram, creio, o tour-de-main necessário à construção de contactos e relações num
contexto que lhes era agora, como se verá, menos propício; ou pelo menos impediram-
me de tomar atitudes precipitadas na ânsia de contornar certas vicissitudes ou de
desfazer equívocos quase inevitáveis neste tipo de investigação. Como, de resto, em
quaisquer outras relações interpessoais, os mal-entendidos que infestam as relações de
terreno não são intransponíveis ou irremediáveis. Que o percurso se faz de avanços e
recuos, que os seus ritmos são irregulares e imprevisíveis, já eu o sabia. Mas é
justamente porque ele não se joga todo no momento de um ou outro dos seus acidentes
que me pareceu preferível investir no longo prazo de um terreno delicado, do que
arriscar-me a reforçar nas reclusas os sentimentos de intrusão que a minha presença
51

manifestamente provocava, caso me mostrasse demasiado empenhada em dissipar cada


mal-entendido, ou demasiado apressada em vencer cada desconfiança individual.
Mostram-no alguns episódios iniciais relatados nos seguintes extractos do caderno de
campo:
Não poderia resultar mais desastrada a minha entrada num dos pavilhões, dando
um novo sentido à ideia de «antropologia de gabinete». Procurava contactar pela
primeira vez a Eduarda, de cujo paradeiro me informei primeiro junto de uma
guarda na portaria desse pavilhão (se ainda aí estava, número de cela, horário de
trabalho). Provavelmente para me poupar ao incómodo de transpor os sucessivos
gradões e subir as escadas, e sem que eu tivesse tempo de reagir, grita ao microfone
o nome da reclusa, ordenando-lhe, sem mais, que viesse cá abaixo, enquanto me
remetia a mim para um gabinete adjacente onde geralmente se recebem advogados,
membros do pessoal e ilustres visitantes. Fiquei paralisada na imagem do
antropólogo colonial a quem traziam os nativos à varanda da missão... A Eduarda,
acordada em sobressalto, aparece estremunhada e visivelmente aflita, antecipando
um grande sarilho. Precisou de um bom momento para se acalmar, e só ao fim de
algumas horas senti que verdadeiramente tinha aceitado as minhas explicações e
desculpas, apesar de também ser claro que, permanecendo distante, havia
apreciado a conversa. Dada a minha má consciência, preferi que não tivesse sido
fácil. Haverá ocasião para outras transacções. A conversa, aliás, foi bizarra, e teve de
seguir a fórmula da entrevista para se adequar à situação. De facto, não se arranca
daquela maneira brutal uma pessoa desconhecida às suas rotinas «para conversar»,
com todas as inerentes trivialidades iniciais.
Quando voltei ao bar do pessoal, depois da conversa com a directora, e no decorrer
da qual pediu por telefone à Ana que lhe trouxesse dois cafés ao gabinete, percebi
na Ana, que ali trabalha, o regresso à reticência com que encarou as minhas
primeiras tentativas de conversa. Nessa altura não haviam sido os meus méritos
conviviais que a fizeram abandonar essa frieza inicial. Foi a preciosa ajuda da Paula,
a professora externa de ginástica que as reclusas adoram, e que por iniciativa
própria lhes disse que se hoje a tinham a ela e à ginástica era a mim «que o deviam»
18
. [Devo dizer que «a ginástica» não foi para mim a porta de entrada no universo
recluso, pois era reduzida a porção que a frequentava, mas seria o meu passe junto
das reclusas mais novas, com quem estava a experimentar mais dificuldades de
aproximação]. Voltando à Ana, era óbvio o que pensara: que eu transmitia à
directora o que as reclusas me confiavam. Decidi não correr a desfazer o equívoco –
só mostraria a ansiedade de quem tem alguma coisa a esconder. Se ela não vier a
tocar no assunto, talvez pequenas dicas, aqui e ali, sejam maneiras mais credíveis de
o esclarecer. [De facto, no dia seguinte...] Pelo canto do olho, enquanto tomava café,
vi que a Ana estava à espera da primeira oportunidade para me sondar. E a
pergunta lá veio, sarcástica e cheia de subentendidos: Então, gostou de falar com a
senhora directora? Respondi que sim sem acusar o toque, que tinha entrado só para a
cumprimentar e que afinal tive a sorte de poder por fim conversar calmamente com
ela, o que era difícil dadas as suas ocupações. Não sobre-expliquei, para que a
justificação caísse com naturalidade, mas numa outra ocasião, a propósito de outro
assunto, fui esclarecendo que iria falar com toda a gente, guardas, reclusas,
directora, educadoras, etc., mas que não podia comentar as conversas de uns com os
outros.
43 Correndo o risco de retrospectivamente tacticizar em excesso modos de
relacionamento que na altura adoptava sem ter presente essa intenção, entendo que
foram investimentos eficazes múltiplos adiamentos: quando sugeria interromper uma
conversa profícua mas longa, perguntando à minha interlocutora se não quereria
descansar ou lanchar; quando deixava no momento permanecer como tal um tema mal
esclarecido mas delicado, esperando uma outra oportunidade – que talvez não se
apresentasse ou quando perante uma hesitação mais evasiva interpunha, «veja lá, se
52

calhar agora não lhe apetece estar a falar nisso...». Não penso que neste segundo
trabalho de campo se tratasse com isto de apenas projectar nas reclusas as minhas
próprias noções quanto aos ritmos apropriados de construção das relações pessoais –
como durante o trabalho anterior, em que aparentemente só eu (e não as reclusas) fazia
da abordagem de temas sexuais, por exemplo, uma questão vexatória 19. De facto,
deparava-me no presente com o recuo e o fechamento que mais de uma vez se
sucederam a extensas confidências, porventura no rescaldo de quem se arrependera de
ter ido longe de mais, neste caso não tanto num desvelamento da intimidade, mas de
detalhes e circunstâncias de ordem criminal, que de resto envolviam não só a reclusa
como outros.
44 A delicadeza que desde cedo intuíra neste novo terreno reclamava ainda outras
cautelas, que pouco a pouco se revelaram cruciais. Por exemplo, foi manifesto o agrado
e a confiança que gerou na Eduarda (a reclusa inopinadamente arrancada à sua cela) a
minha recusa em anotar a morada de uma ex-reclusa sua amiga – «muito interessante»,
nas suas palavras, e que segundo ela me poderia ajudar no meu trabalho. Agradeci-lhe a
intenção, mas sugeri que talvez a reclusa não apreciasse que eu a contactasse através de
um endereço que me fora transmitido na cadeia. Embora eu não atribua exclusivamente
a este episódio a viragem que se produziu nas minhas relações com a Eduarda, foi na
verdade a partir dele que esta viria a contar-se entre as reclusas que mais me
solicitavam.
45 Encarava assim com uma nova fleuma quer os equívocos – que desfazia aos poucos, em
vez de imediato –, quer os retardamentos na progressão das relações de campo – que
em muitos casos foram investimentos que as tornariam mais sólidas. Porque a longo
termo não considerava as dificuldades insuperáveis e porque é nesta escala que o
trabalho de campo se decide, também não me pareceu imprescindível, no seu decurso,
residir na prisão. O acesso às reclusas que a instituição me proporcionou foi irrestrito e
a experiência anterior mostrara-me que o seu acompanhamento não é inviabilizado
pelo facto de se residir fora dela – já o das guardas sim, e por isso no passado pernoitava
por vezes na sua camarata, de modo a poder seguir parte das suas rotinas de trabalho
(rondas e vigílias) e a aproveitar estes períodos de acalmia nos seus afazeres para
entabular conversas menos atribuladas. Contudo, as guardas não se inscreviam hoje nos
meus horizontes de pesquisa. Cheguei a ponderar para o presente trabalho a opção de
habitar no estabelecimento, mais por razões práticas do que por aí discernir algumas
virtualidades intrínsecas que me abririam outras vias de percepção da realidade
prisional20. No entanto, além de a prisão ser por definição um quadro de vida anómalo,
onde se ingressa coercivamente e por razões precisas – ou talvez precisamente por isso
mesmo – receava que o meu estatuto perante as reclusas crescesse exponencialmente
em ambiguidade, uma vez que estava fora de causa fazer-me passar por uma delas.
Anuladas as iniciais ambiguidades mais previsíveis, que me fariam circular, como
fizeram no passado, entre os papéis de assistente social, estagiária, inspectora dos
serviços prisionais e jornalista, papéis estes mais legíveis para as reclusas, o que
restaria? Se não vinha acusada de um crime, por que me submeteria à prisão?
Arriscaria assim ou potenciar normais suspeitas de infiltramento e espionagem ao
serviço de obscuros desígnios, ou configurar o que aos seus olhos poderia surgir como
um embuste, o embuste de quem pretende partilhar parte da experiência prisional sem
se sujeitar a todos os seus constrangimentos e consequências 21. Preferi, por isso, outra
53

via que me permitisse manter dentro de limites claros e mais controláveis a


identificação que de mim iam construindo as reclusas.
46 Na mesma linha, recupero a questão do «eu» do investigador para colocá-la num plano
igualmente diverso daquele onde a intersubjectividade se confunde com a comunhão
emocional com o outro, e onde esta última deixa definitivamente o (até aqui mais ou
menos intermitente) campo da experiência privada para passar a ser reivindicada como
método. Esquematicamente, conhecer esse outro passaria então por sentir o que ele
sente. Daqui à ilusão nativista que ciclicamente ressurge sob várias formas vai um
pequeno passo, que é agora resolutamente transposto em alguma criminologia:
«[C]riminological verstehen implies a certain emotional empathy, a notion that
pleasure, excitement, and fear can teach us as much about criminality as can
abstract analysis. It embodies a sense that adrenalin rushes and outlaw emotions
matter to criminals and criminologists alike, that our understanding of criminal
experiences may come to us as researchers as much in the pit of our stomachs, in
cold sweats and frightened shivers as in our heads» (Ferrell, 1998: 30) 22.
47 Donde, e é aqui que reside o principal problema,
«[S]tructural factors like alienation and inequality may well set the context for
crime and deviance; but it is the human taste for danger, pleasure and excitement
that fills that context with meaning. Accordingly, people are driven to crime and
deviance out of desperation less than they are enticed into it by the «sneaky
thrills», «adrenalin rushes» and «edgework» associated with the war on the streets,
by the sensual pleasures of everyday violence, and by the tantalizing allure of the
forbidden. These powerful, collective emotions can be seen swirling inside many of
today’s major social problems.» (Ferrell e Hamm, 1998: 254-255).
48 Embora, como se depreenderá ao longo deste trabalho, decididamente eu não subscreva
esta leitura da criminalidade no que diz respeito às reclusas de Tires, concedo que
alguns dos seus elementos estejam presentes sobretudo na delinquência juvenil
masculina – mas ainda assim não com a centralidade que aqui lhes é atribuída. As
minhas dúvidas prendem-se essencialmente com os caminhos escolhidos que
desembocaram nestas conclusões. Com efeito, é de aventar se estes académicos da
classe média não teriam feito das suas incursões no wild side uma titilante aventura, e
não teriam ingenuamente projectado nos sujeitos de estudo – com quem estão longe de
partilhar as estruturais circunstâncias de vida – os seus próprios «prazeres proibidos» e
(para si) aliciantes «descargas de adrenalina», ao participarem com eles, por vezes
activamente, nas transgressões da lei.

Da distância estrutural à distância intersubjectiva

49 Apesar destas armadilhas, a subjectividade pode porém ser mobilizada de outra forma e
contribuir para iluminar certos aspectos do terreno, ou sinalizar nele algumas
questões23. Mencionei acima a distância estrutural que hoje aumentara entre mim e as
reclusas. Mas dela não decorria linearmente a distância intersubjectiva. Na verdade,
esse abismo sociológico era como que curto-circuitado a um outro nível. Ao deparar-me
com as histórias de vida das reclusas e com as circunstâncias em que haviam sido
perpetrados os delitos que as conduziram à prisão, via-me constantemente
transportada para o seu lugar e perturbava-me uma interpelação omnipresente: a
noção de que nos seus contextos de vida eu poderia ter procedido da mesma forma. Dez
anos atrás, sendo a distância social menor, esta identificação era, em contrapartida,
rara e pontual. Retrospectivamente apercebo-me de que este tipo de limite
54

intersubjectivo me era mais claro e tangível, que os seus crimes eram escolhos de
percurso (uma representação aliás mais recorrente nas reclusas de ontem do que de
hoje), onde intervinha, contudo, uma maior margem de escolha. No presente, ao invés,
encontravam-se ligados muito mais directamente à marginalização estrutural das
mulheres de Tires, e a opção de a eles não sucumbir parecia-me implicar uma
resistência quase hercúlea. É certo que também aqui piso o movediço terreno das
projecções. Só que, desta feita, o que de outro modo seriam meras divagações pessoais
acabou por abrir pistas eficazes. De facto, esta modalidade de identificação com as
reclusas era também, pela primeira vez, manifesta no staff prisional, e permitir-me-ia
compreender algumas lógicas de funcionamento dos seus membros, bem como das
representações que eles constroem sobre as reclusas.
50 Este trabalho foi-me pessoalmente bastante mais penoso do que o anterior, e por isso a
minha estada na cadeia ao longo de um ano conheceu várias interrupções (geralmente
de uma semana, por vezes duas). Hoje como ontem, continuo a não vislumbrar uma
especial heroicidade em empreender uma investigação de campo em terrenos
«problemáticos» ou humanamente difíceis – mau grado o misto de admiração e
comiseração que invariavelmente suscita na entourage a informação de que realizo um
trabalho na prisão, porque tal cenário seria «lúgubre», «cinzento», «deprimente», etc.
Evidentemente, mesmo aí há lugar para o riso e a festa, que em vários momentos
suspendem a dureza do cárcere. Mas hoje – até porque a prisão já não é, em sentido
inverso, isolável de uma dureza que lhe é exterior, como se verá – mesmo o riso e a
festa têm muitas vezes um travo amargo, como o que se desprende do seguinte
episódio, entre vários outros exemplos possíveis:
Comemorámos no P. A a saída da Emília, que ainda não acredita que foi mesmo
desta que conseguiu a liberdade condicional. Vai realizar-se enfim o único desejo
que há muito alimenta: ir para casa antes que o filho morra com SIDA (com essa
doença, como é o nome?). Vai poder acompanhá-lo nos tratamentos e ajudá-lo nas idas
ao hospital (já tinha sido com esse fim que ela procurara coordenar o calendário da
sua anterior saída precária). A sua alegria era imensa e esfuziante – quase me
estrangulava com um abraço – e as outras reclusas seguiam-na num entusiasmo
desassombrado. Perante aquela morte anunciada, só eu não sabia, a princípio, como
reagir, dividida que estava entre a boa e a má notícia. Acabei por seguir o
movimento geral. [Caderno de campo.]

A cozinha etnográfica

51 Dificuldades de ordem prática, por outro lado, implicaram uma outra organização do
trabalho de campo. As minhas sedes privilegiadas de observação de outrora, onde se
proporcionavam os encontros e as conversas mais casuais, encontravam-se agora
reduzidas, no caso dos grandes pavilhões, ao recreio, átrios e corredores. A anterior
sala de convívio, transformada em bar, não tinha já televisão (uma vez que as celas
passaram a dispor do aparelho), e como tal atraía e fixava menos as reclusas. Para aí
convergiam sobretudo para um rápido café, a maioria das vezes tomado em pé, e o
corropio, o barulho, as filas e os empurrões compunham um ambiente tumultuoso nada
propício aos meus fins.
52 A boa vontade da instituição tornou possíveis as conversas durante o trabalho das
reclusas quando este era remunerado por um salário fixo, mas optei por concentrá-las
fora do horário laboral no caso de ser pago à peça (por exemplo, a aplicação ou
manufactura de etiquetas, envelopes, molas, com a excepção dos tapetes de Arraiolos
55

que, sendo pagos também ao metro quadrado, eram uma actividade mais pausada), para
não induzir distracções que fariam baixar os montantes auferidos.
53 Quanto às reclusas em RAVE (e algumas em RAVI), o seu contacto implicava o
conhecimento dos dias de folga de cada uma, embora o fim-de-semana proporcionasse
outra ocasião, e tivesse também almoçado, a seu convite, com elas e as suas famílias nos
dias de visita. Assim, a diversificação dos regimes e, a vários títulos, a menor
massificação institucional obrigaram-me a uma maior coordenação prévia de
actividades e contactos, e a recorrer mais às visitas às celas para conversas quer
individuais, quer em pequenos grupos.
54 Em todo o caso, não foram só as circunstâncias logísticas ou as da disponibilidade das
minhas interlocutoras que requereram um maior planeamento dos rumos do trabalho
de campo. Todo o percurso combinou doses de informalidade e disciplina. De um lado,
deambulava ao sabor dos contactos que se iam espontaneamente encadeando, uns
remetendo para outros, segundo uma progressão de tipo «bola de neve». Seguia assim o
fio das redes locais existentes, que entretanto se iam entrecruzando na minha rede
pessoal. Mas se este rumo, arborescente e improvisado, se adaptava às dinâmicas e aos
circuitos sociais reais, por outro lado ele não subverteu inteiramente um outro, que
mantive em paralelo.
55 De facto, procurei construir com alguma ordem e sistematicidade um outro fio de
contactos, seleccionando previamente uma amostra estratificada de reclusas de acordo
com vários critérios, alguns deles próximos dos que serviram para estabelecer o perfil
sócio-penal explanado no início deste capítulo, outros recuperando dados que se
encontravam irregularmente registados, como os referentes à etnicidade, por exemplo.
A preocupação que presidiu a este ordenamento era dupla. Em primeiro lugar tratava-
se de estabelecer uma base mínima e provisória que acautelasse a comparação com a
situação passada (por exemplo, o tipo de crime repercutia-se anteriormente nas
categorias de representação e nas lógicas relacionais internas). Em segundo lugar
procurava diversificar metodicamente o leque de interlocutoras, que desejava tão
variado quanto possível – não apenas porque perfilho o elementar e salutar princípio
da triangulação (ver Olivier de Sardan, 1995: 92-94), que entende integrar múltiplas
diferenças de pontos de vista, mas ainda por uma outra razão. Apesar de hoje se
verificar ex post em vários planos uma homogeneização de facto e sem precedentes do
universo recluso, ela não deve iludir um pressuposto de heterogeneidade, que é
inerente à própria noção de prisão. Muito esquematicamente, a prisão é um quadro de
vida «artificial» e anómalo, para onde convergem, em princípio, todas as categorias de
pessoas, que no meio livre e em circunstâncias normais não se conjugariam. Por
consequência, a estratégia de investigação deveria adequar-se, mesmo que
provisoriamente, a este ponto de partida. Palmilhar, numa relativa extensão, o espaço
das práticas e representações não se destinava, entenda-se, a assegurar-me da sua
representatividade – no sentido da sua distribuição estatística – mas sim das variações
significativas que permitem, também elas, aceder às lógicas correntes e às suas relações
internas.
56 A sistematicidade prevenia também outro risco, ou pelo menos contrabalançava-o.
Dada a enorme distância social agora interposta entre mim e a maioria das reclusas,
podia dar-se o caso de as afinidades electivas, as capacidades de comunicação e
verbalização – para mencionar alguns dos ingredientes com que se constroem no
trabalho de campo as relações preferenciais, ou que em parte induzem a escolha dos
56

chamados «informantes privilegiados» – me aproximassem sobretudo daquela ínfima


minoria cuja inserção estrutural se achava mais próxima da minha. O risco de
enviesamento era assim muito maior do que no passado. Para captar a textura do
universo recluso não poderia descrevê-lo a partir dos seus membros mais marginais.
57 Assim, sem abdicar da opção da imersão intensiva na vida das reclusas, procurei uma
maior extensividade que me desviasse da eventual concentração numa mão cheia de
parceiras de trabalho. Estas, aliás, variavam com o tempo e os temas que abordava.
Quando muito, seriam «informantes parcelares» – passe o rebarbativo da designação.
Adaptei deste modo as minhas escolhas metodológicas às propriedades do universo em
causa ao preferir não me centrar definitivamente nalguns interlocutores privilegiados.
Optar por eles será profícuo noutros contextos, embora me pareça que muitas das
etnografias «dialógicas» se apoiam excessivamente não só em alguns actores – ainda
que em contrapartida estes ganhem espessura na sua textura individual – como
sobretudo na sua palavra, na sua narrativa, em suma, no verbo, esquecendo as
virtualidades da observação para a apreensão de outras dimensões que não acedem a
esse registo.
58 A prática etnográfica combinou o fluir da observação directa – que abria ao imprevisto,
a algumas facetas rotineiras do não-dito e aos diálogos locais nos quais eu não era parte
activa, ou em que apenas participava de maneira periférica – com uma intervenção
mais indagadora pela qual acedia quer a discursos e representações, quer a fragmentos
da vida pré-prisional das reclusas. Durante os primeiros tempos, mas mesmo aí
irregularmente, esta indagação assumia a forma de entrevistas. Porém, ainda que
fossem pouco directivas, utilizei-as menos com o propósito de extrair informação do
que como pretextos para tactear terreno, «quebrar o gelo» e estrear interacções verbais
que pretendia encaminhar para o registo da conversa. Por muito genérico e flexível que
fosse, sempre acabei por me sentir espartilhada por um guião de entrevista que
percorresse de modo relativamente uniforme e estandardizado os diversos
interlocutores. Porque em várias experiências passadas o saldo deste exercício se me
revelou desapontante – apesar de me confortar poder mais facilmente contabilizar
entrevistas e apresentar «um número» –, preferi hoje, sempre que o intuía mais
produtivo ou pertinente, discutir diferentes tópicos com diferentes pessoas; ou, uma
vez que as temáticas mudam com o tempo e umas vão convocando outras de maneira
imprevisível, abordá-las em diferentes momentos com uma mesma pessoa.

Um lugar no jogo

59 De novo me apercebi que, num contexto sensível onde a ideia de segredo é


especialmente operante, quanto mais sabia mais me era dado a saber: também na
prática etnográfica é frequente «só se emprestar aos ricos»24. Mas ontem e hoje não fui
confrontada da mesma forma com a minha ignorância – ou «pobreza» – inicial. Por
razões que em nada se prendem com as acrescidas contrariedades de ordem logística
acima referidas, enfrentei agora uma inesperada relutância das reclusas perante as
minhas tentativas de aproximação. Aquando da minha primeira estada, o que me
intrigava de início, dadas as minhas expectativas de então, era precisamente o
contrário, ou seja, a facilidade e a rapidez com que as relações se construíam, sendo
para mais frequentemente encetadas por iniciativa daquelas. Comecei por atribuir as
minhas actuais dificuldades em estabelecer uma relação de proximidade ou confiança
ao fosso sociológico que entretanto se cavara profundamente entre mim e as reclusas.
57

Bem entendido, esta atribuição não explicava nada por si mesma. Se assim fosse, grande
parte do legado de investigação da antropologia não teria sido possível, dada a distância
social e cultural que na maioria das vezes separava os antropólogos das populações que
os acolhiam. Por outro lado, também não era o receio de eventuais represálias
institucionais que tolhia as reclusas. Onde se mostravam menos intimidadas era
justamente na denúncia de algumas deficiências do estabelecimento, que agora
pretendiam divulgar por canais que acompanharam, também eles, o ar dos tempos e se
actualizaram: em lugar de apregoarem, como outrora, que tencionavam escrever um
livro, anunciavam ir contar tudo à SIC.
60 Não foi senão mais tarde que tomaria consciência de que se mantinha válido o que
concluíra na minha primeira estada, a saber, que a minha relação com as reclusas se
achava inextricavelmente ligada à lógica das suas relações interpessoais, situava-se em
continuidade com elas e abria sobre alguns dos processos identitários locais (Cunha,
1994: 12-13). Quer o queira quer não, o investigador participa do mesmo jogo social que
os seus interlocutores e é um dos seus actores. Foi aliás neste sentido que já outros
autores de certo modo se «objectivaram», utilizando a sua própria presença como
revelador, ou como método (ver, por exemplo, Althabe, 1990, e Sélim, 1989). No
trabalho de campo anterior, a rápida proximidade que as reclusas estabeleceram
comigo traduzia, numa certa medida, a distância que existia entre elas próprias, ou
inscrevia-se precisamente nessa estratégia de distanciação. Esta distância manifestava-
se em sociabilidades atomizadas e nos seus esforços de desqualificação das co-detidas, a
propósito de quem reproduziam discursos muito estigmatizantes (retomarei adiante
esta questão). A relação comigo parecia permitir-lhes esconjurar a identidade desviante
que a reclusão lhes impunha – e que projectavam nas colegas – e recuperar a pertença a
uma ordem «legítima», em que não haviam deixado de se rever. Em todo o caso, a
minha exterioridade ao universo recluso era então uma vantagem. Hoje, ela tornar-se-
ia um obstáculo porque, como se verá, o que estava em causa era radicalmente diverso.
A profunda marginalização anteprisional que afecta estas mulheres, a sua marcada e
colectiva exclusão simbólica, da qual a reclusão já não é senão um dos momentos e uma
das figuras, tornou a prisão um palco irrelevante para o jogo da demarcação; acima de
tudo, tornou tal jogo irrisório; o vasto entrançado de parentes, amigos e vizinhos
trouxe consigo intimidade, proximidade, segredos, alguns cuja revelação comporta
pesados riscos. Criou, em suma, eloquentes «silêncios culturais», para usar a expressão
de Rabinow (1977). E criou também a convicção de uma «comunidade», à qual eu
chegava como uma intrusa. Mais do que por razões imputáveis a mim própria ou ao
meu percurso de investigação, as minhas presentes dificuldades pareciam assim ser em
boa parte função das características do objecto.

Questões de contingência e optometria

61 O que me leva, agora, a outra questão, que retoma o tema do regresso ao terreno. Faz já
parte do senso comum antropológico a noção de que uma etnografia não é «definitiva e
atemporal» mas, pelo contrário, «selectiva e contingente», nomeadamente a uma
relação interpessoal específica e a um momento histórico particular (Kenna, 1992;
Okely, 1992). Os retornos ao terreno dão-nos as dimensões dessa contingência,
permitindo justamente situar de forma mais nítida as etnografias precedentes nas
etapas de evolução de um contexto. Dei já conta de alguns dos traços que, em diferentes
planos, marcaram a evolução deste quadro prisional, e que neste sentido temporalizam
58

o trabalho anterior. Ora, progredindo depois nos contactos com as reclusas, acederia
ainda a outros aspectos novos e contrastantes, e desde cedo comecei a antecipar
conclusões muito discrepantes daquelas que retirara do primeiro trabalho de campo.
62 Como encarar esta divergência? Sê-lo-ia porque tive de facto a ocasião de assistir ao fim
de um ciclo e ao início de um outro, não só no que diz respeito à instituição, mas
também ao universo recluso? Ou seria que – para colocar muito esquematicamente a
questão – as tendências e os elementos centrais que agora podia discernir se
encontravam já presentes aquando da investigação anterior, não me tendo eu
apercebido deles? Por outras palavras, ter-se-ia dado o caso de me escaparem em razão
das escolhas metodológicas e das lentes teóricas de que ia munida – que podem orientar
o olhar numa direcção mas afastá-lo de outra? É indubitável que uma etnografia é
conduzida não apenas num momento específico do ciclo de vida do investigador, mas
igualmente numa etapa da sua maturação intelectual e do seu percurso teórico.
63 Tive porém a surpresa de constatar afinal numa franja minoritária de reclusas a
reiteração, no presente, dos mesmos discursos, representações, práticas e formas de
sociabilidade que há dez anos eram salientes na maioria da população prisional, uma
surpresa que não deixa de ser tranquilizadora mesmo para quem aprendera a aceitar o
carácter contingente dos resultados de um empreendimento etnográfico. Este actual
grupo reduzido de reclusas, que veio substituir as do passado, correspondia de muito
perto às descrições e análises que eu construíra para o quadro pretérito, e desta forma
quase que as cristalizava. O regresso ao terreno produziu assim um imprevisto efeito de
controlo retrospectivo da investigação passada, mas que se repercute também na
actual. Brevemente, se grosso modo vejo através das mesmas lentes, mas o que observo é
muito diferente, terão sido então principalmente transformações exteriores ao meu
próprio percurso pessoal que conduziram a conclusões divergentes. Assim, neste caso
concreto o retorno ao mesmo contexto acabou por funcionar como uma espécie de
triangulação no tempo, de algum modo validando para trás e para a frente parte dos
alicerces de uma etnografia segmentada em dois momentos.

NOTAS
1. Pela dificuldade de representação gráfica da diversidade de situações jurídicas que desde 1954
e até 1987 conduziam reclusas a Tires e se reflectiam no cômputo das penas e medidas de
segurança (muitas destas indeterminadas), não havia elaborado em Cunha (1994), para 1987 como
para os anos anteriores, um quadro que representasse de outra forma os valores que então me
limitei a referir no texto. Por esse motivo, hoje o quadro referente às penas atém-se ao ano de
1997.
2. Todos os números que aqui refiro para 1987 foram objecto de uma conversão relativamente
aos publicados em Cunha (1994). Por razões que se prendiam com a harmonização de
procedimentos necessária para o tratamento dos dados da evolução da população reclusa desde
1954, as proporções foram então achadas face ao total deste universo. Pelas mesmas razões, para
poder compará-las com as actuais, calculo-as agora tendo por referência o total de dados
conhecidos para cada variável.
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3. A classificação aqui usada (ver figura 2) sintetiza crimes previstos em legislação penal avulsa e
no Código Penal. Por outro lado é o resultado de um compromisso entre as classificações oficiais e
a inevitável agregação de algumas das suas múltiplas categorias, imposta pelos constrangimentos
da figuração dos dados. Por conseguinte, «burla», por exemplo, integra a “simples” e a
“agravada”; «homicídio» o “simples”, o “qualificado” e o “privilegiado”; «tráfico» inclui o de
“menor gravidade” e a situação de “tráfico-consumo”; etc.
4. No comum emprego do termo «toxicodependência» confunde-se não raro o registo do uso, do
abuso, e da dependência. Não é por isso que ele deixará, todavia, de figurar neste trabalho já que
toxicodependente, bem como consumidor/a, são também categorias emic, usadas indiferentemente
pelas reclusas e à revelia de definições clínicas.
5. A «construção social» da criminalidade é uma questão clássica da sociologia do crime. Além de
este ser em si mesmo uma categoria sócio-jurídica – serão crimes os actos que num dado contexto
histórico e cultural são classificados como tais –, as taxas da criminalidade não reproduzem
necessariamente a delinquência real. Poderão reflectir, por exemplo, a eficácia policial na sua
detecção, razão pela qual se procura contornar o problema das «cifras negras» recorrendo a
inquéritos de vitimação ou de delinquência auto-revelada. No contexto português, a propósito da
distância entre a criminalidade real e a conhecida, ver, entre outros, Lourenço e Lisboa (2000), e
entre a real e a processada pelo campo judicial, Sousa Santos et al (1996: 295-296; 384-385).
6. Para a análise dos dois anos em causa orientei-me pela Classificação Nacional das Profissões
(nas versões de 1980 e de 1994). Utilizei apenas algumas das suas categorias, uma vez que a
esmagadora maioria da população reclusa em Tires se concentra monotonamente na zona dos
trabalhadores não qualificados e em poucos sectores de actividade. Acrescentei à classificação
profissional a condição perante o trabalho para poder abarcar a situação da população prisional
«não activa».
7. Não constam aqui os dados de 1987. Nessa altura não eram contempladas nos registos locais as
situações de coabitação marital, sendo estas remetidas para a rubrica «solteiras» – o que torna
essa informação pouco útil para lá de uma perspectiva estritamente legalista do estado civil.
8. Este número é provavelmente bastante superior. De facto, sucede não serem mencionados nas
fichas os filhos adultos, já que são os menores que potencialmente mobilizarão um ou outro tipo
de intervenção por parte do pessoal do estabelecimento.
9. O contingente de críticos desta tese é muito vasto, pelo que enumero apenas alguns: Loïc
Wacquant (1996), que além disso escalpeliza a própria noção de «underclass», Joan Brown (1990),
que aponta os erros metodológicos de Charles Murray e, tal como Lydia Morris (1994), examina as
mediações estruturais escondidas em correlações deste tipo; Jock Young (1999: 148-158), que, de
resto, não prescinde da ironia da comparação com as famílias da «Mafia»:
Here we have it all: the dedicated father, the traditional mother, the extended family, the
children entering the family business, the close sense of community. [I]n the case of organized
crime, the strong family is almost a sine qua non of success (ibidem: 155).
10. 11 e 5 pontos percentuais, respectivamente: cálculos efectuados a partir dos dados constantes
nos Sumários de Informação Estatística do GPCCD (1997: 31).
11. Esta é uma outra extensa controvérsia da criminologia, desta feita justamente em torno do
perene diferencial entre os índices prisionais masculinos e femininos. Eficientes recensões desta
literatura encontram-se em Stenffensmeier et al (1993) e Heidensohn (1997).
12. Os Estabelecimentos Prisionais Regionais femininos de Felgueiras e de Odemira e os
Estabelecimentos Prisionais Centrais de Castelo Branco e de Custóias, que, além de outros,
também prevêem uma lotação para mulheres.
13. Refiro alguns dos mais salientes:
Para a área de Lisboa: Galinheiras, Curraleira, Cheias, Casal Ventoso, Musgueira (norte e sul),
Laranjeira, Bairro da Liberdade, Quinta do Monte Coxo (Olaias), Bairro Nascente do Cabo
(Vialonga), Bairro da Cruz Vermelha (Alcoitão), Bairro das Marianas (Carcavelos), Bairro do Fim
60

do Mundo (S. João do Estoril), Pedreira dos Húngaros (Algés), Alto da Cova da Moura (Buraca),
Bairro das Fontainhas (Damaia), Quinta do Mocho (Loures), Bairro Estrela de África, Azinhaga dos
Besouros (Amadora), Bairro da Bela Vista (Setúbal), entre outros.
Para a área do Porto: Bairro do Lagarteiro, Bairro de S. João de Deus, Bairro de Aldoar, Bairro do
Cerco, Bairro de Ramalde, Bairro do Aleixo, Bairro da Sé, entre outros.
14. Nos registos locais este tipo de dados são anotados irregularmente, como pude depois
constatar quando contactei directamente as reclusas. É possível que tal se prenda com a
legislação em vigor (Decreto-Lei n.º 28/94) que impede a recolha de dados que se reportem, entre
outras identificações, à origem étnica.
15. Apesar de tudo, o qualificativo «confessional» aplicável a estas etnografias é amplo e de
ordem metafórica. Já com ele descreveria mais literalmente outras de onde parece emanar uma
redenção paroxística e quase religiosa na confissão pública de certos pecados – que nem por isso
abdicam de uma aparente aura de glória. Veja-se, a título de exemplo, esse verdadeiro
confessionário sociológico e criminológico que é Ethnography at the Edge, editado por Ferrell e
Hamm (1998):
This chapter is my confessional of participating in illegalities, intentionally taking sides,
withholding information, deceiving, and lying to authorities, all while engaged in qualitative
research into the decision making of property offenders and in a lengthy case study of a specific
violent crime (Tunnell, 1998: 207).
16. Talvez porque tudo seja resumido a questões de representação textual, e não só de
representação tout court, Tyler suprime a diferença entre estes dois tempos:
[Etnography] is not a record of experience at all; it is the means of experience. That experience
became experience only in the writing of the ethnography. Before that it was only a disconnected
array of chance happenings. No experience preceded the ethnography. The experience was the
ethnography (1986: 138).
Também daqui se pode depreender que a monitorização auto-reflexiva do investigador é
inteiramente diferida para o momento da escrita, e não é exercível nem coeva ao momento do
trabalho de campo.
17. A expressão «populismo metodológico» é de C. Bromberger (1997: 303), que a utiliza para
descrever a simetria dos saberes (do autor e do «outro») que pareceria pressuposta na negação de
qualquer autoridade etnográfica.
18. Só em parte tal é verdade, na medida em que me limitei a estabelecer os contactos
necessários e a desencadear o processo aquando do primeiro trabalho de campo (ver Cunha,
1991).
19. Não só as reclusas tocavam nestas questões sem grande rebuço, como o faziam muitas vezes
por sua iniciativa (ver Cunha, 1994: 150).
20. Cito a este propósito o caso recente da experiência involuntária de uma reclusa antropóloga.
Tentando reflexivamente, e mau grado a própria, aproveitar o primeiro estatuto em prol do
segundo, não só notoriamente a crítica distância mínima entre ambos deixou de ser possível,
como confessadamente verificou que eram mais as portas que se fechavam do que aquelas que se
abriam (ver Spedding, 1999).
21. Meses depois de eu ter iniciado o trabalho de campo, duas estudantes optaram por instalar-se
num compartimento de um dos pavilhões e submeter-se às rotinas carcerárias (revistas, visitas,
refeições) para realizar um trabalho sociológico sobre a prisão. Devo dizer que o que receara para
mim, e me conduziu a renunciar a esta modalidade de inserção na cadeia, só em parte se
confirmou para elas. Na realidade, se várias reclusas se mostravam perplexas e chocadas com o
facto por razões próximas das que apontei, outras, mais jovens, não só o encaravam com relativa
naturalidade, como se mostravam até admirativas do que lhes parecia ser um acto de bravura
louvável. Porém, não estavam arredados os equívocos, embora desconheça se a leitura que dele
faziam as detidas era consentânea com os objectivos do trabalho em causa. De facto, esta
61

estratégia metodológica surgia-lhes como um meio eficaz para «descobrir os podres da cadeia»,
assimilando assim inteiramente a figura do investigador à do inspector, ou colando-lhe de igual
modo a ideia de espionagem – mas com um alvo invertido.
22. A noção weberiana encontra-se em itálico no original.
23. Para dar um exemplo relativamente anódino do que poderia ser, literalmente, um
conhecimento incorporado, foi na prisão que pela primeira vez os meus precoces cabelos brancos
me causaram desconforto e alguma inadequação. Estes sentimentos foram-se instalando à
medida que ia plasmando nalguns esquemas de percepção localmente importantes. Por dicas
indirectas ou sugestões directas – em todo o caso bem mais insistentes que as da minha
cabeleireira – várias reclusas e algumas guardas aplicaram-se a significar-me que esses cabelos
brancos seriam indignos de mim, porque traduziriam um desmazelo que neste contexto é agora
frequentemente interpretado à luz dos avatares da toxicodependência. «Andar arranjada», «não
se desmazelar», é, inversamente, um signo da regeneração física e moral das reclusas
toxicodependentes. Assim, aquilo que até aí era para mim uma questão basicamente estética, ou
de negociação do envelhecimento, passara a ter um alcance moral.
24. On ne prête qu’aux riches, uma expressão usada a este propósito por C. Bromberger
(comunicação oral).
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Capítulo 3. Parentes, amigos e


vizinhos – I: a lei e a ordem

As constelações das parentelas


1 Na sociografia da população reclusa traçada no capítulo precedente foi focada, entre
outros elementos que vieram hoje nivelar esta população e contrastá-la com a do
passado, a sua proveniência maciça e sistemática de um leque de bairros precarizados.
Ora, esta recorrência das origens residenciais que tornou monótona a geografia da
reclusão trouxe também consigo um dado novo, que se traduziria num outro quadro de
interacção prisional. Ela veio definir agora uma multitude de núcleos mais ou menos
alargados de reclusas que se conheciam já antes da prisão. De tal forma que apenas uma
escassa minoria de entre elas se verá, à entrada, numa situação de vazio social e na
circunstância de dever tecer ab initio uma tela de contactos, referências e relações
sociais, tela esta que seria ainda, por natureza, transitória e qualitativamente diversa:
em suma, poucas se acharão numa das circunstâncias paradigmáticas da prisão
goffmaniana – um modelo onde, como se explanará no capítulo 5, a instituição é
caracterizada pela ruptura com o exterior e como um hiato social.
2 Além de se conhecerem, porém, muitas destas reclusas estão ainda unidas por laços de
parentesco e/ou afinidade. Primas, irmãs, cunhadas, tias, sogras, mães, avós
encontram-se agora em Tires, combinando-se em constelações familiares de dimensão e
diversidade interna variáveis: uma reclusa vê consigo a cunhada, a irmã e a sobrinha:
outra a mãe, a tia e a irmã; outra ainda a nora e as filhas; uma acompanha-se «apenas»
de três primas, outra acrescenta a esta categoria de parentes a mãe, a sogra, duas irmãs
e uma cunhada – entre outras configurações possíveis da infinitude de parentelas que
hoje pululam na instituição. Não raro tropeça-se em quatro gerações de parentes
quando, sem contarmos as colaterais, à filha e à neta se vem acrescentar o/a bisneto/a,
entretanto nascido/a na prisão e que aí permanecerá até aos três anos de idade.
3 Estes núcleos são por sua vez articuláveis quer através dos múltiplos laços de
vizinhança que se transpõem do exterior para a prisão, quer por conexões de outra
ordem: uma reclusa pode ser co-arguida do marido de uma segunda; outra será mulher
do ex-marido de uma co-reclusa – quando não se dá o caso, mais frequente do que os
63

imperativos de ordem e paz interna recomendariam, de chegar à cadeia a namorada do


marido/companheiro de outrem, a qual também cumpre aqui a sua pena.
4 Numa estimativa prudente mas grosseira, que creio pecar largamente por defeito, pelo
menos metade das reclusas partilhavam o cárcere de Tires com parentes no momento da
recolha dos dados1. No entanto, em primeiro lugar, essa estimativa subiria muitíssimo
se nela incluíssemos aquelas que, nessa altura sós, aí se encontravam previamente
acompanhadas de familiares, entretanto libertadas ou transferidas – e, de facto,
recorrentemente me deparava com esta dinâmica marcante da rotina prisional, em que
se sucediam num verdadeiro corropio as reclusas aparentadas, saindo umas, entrando
outras. Em segundo lugar, as constelações de parentes que já se cruzaram em Tires
seriam muito maiores em dimensão. Por outro lado, quer se achem isoladas ou com
membros de família nesta instituição, muitas das reclusas têm também parentes
masculinos presos noutros estabelecimentos. Assim, na altura dessa avaliação o número
de familiares de uma prisioneira simultaneamente detidos nesta e noutras prisões podia
chegar a um total superior a dez. Mas, mais uma vez, muitas mais seriam as reclusas
que num momento ou outro, ou consecutivamente , viram parentes encarcerados
nalguma instituição.
5 Adiante debruçar-me-ei sobre alguns dos efeitos e implicações, intra e extramuros,
desta reclusão maciça de círculos variáveis de parentelas – não raro suficientemente
abrangentes para que se instalasse em membros do staff a convicção de que se trata de
«famílias inteiras» – e da convergência para a prisão de fragmentos amplos de redes de
vizinhos ou de co-residentes nos mesmos bairros. Aliás, há que salientar que estes
padrões de encarceramento se insinuavam já em 1987 para o universo das reclusas
ciganas. Hoje, porém, não só se definiram com mais nitidez para este grupo, como
generalizar-se-iam à quase totalidade da população prisional de Tires. Importa por isso
examinar as possíveis razões deste facto.

O processo de colectivização – e a colectivização do


processo
6 Algumas prender-se-ão, em primeiro lugar, com certas modalidades de funcionamento
do campo judiciário. Realço, a título de exemplo, uma situação frequente: quando, por
ocasião de uma busca policial, são apreendidos estupefacientes numa casa (ou nas suas
traseiras, ou à sua porta), sucede que todos os que aí se encontram presentes na altura –
e por vezes os residentes então ausentes – sejam detidos conjuntamente e colocados
posteriormente em prisão preventiva. Tal poderá ocorrer, por um lado, a despeito da
assunção da posse da droga por parte de um dos detidos e, por outro,
independentemente da acusação formulada mais tarde se vir a socorrer ou não em
acréscimo das figuras jurídicas de «bando» ou «associação criminosa». Em qualquer
caso os envolvidos são incluíveis no mesmo processo. Assim, mesmo que alguns não
venham a ser condenados em julgamento, muitos terão já sido alvo dessa medida de
coacção máxima que é a prisão preventiva, cujos prazos, recordo, poderão ser
especialmente longos nestes casos.
7 Selecciono a este propósito os exemplos da Maria e da Zulmira – ambas na casa dos
sessenta anos – por combinarem, cada um à sua maneira, elementos típicos das mais
variadas situações em que este padrão se manifesta. Da detenção escaparam dois dos
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residentes adultos na casa da Maria: o filho deficiente e o marido acamado,


incapacitado para o trabalho. Aliás, a Maria já só vinha a casa aos fins-de-semana, desde
que fechou a fábrica de camisas onde trabalhava, em Rio Maior. Encontrou depois
trabalho como ajudante de cozinha em Lisboa. Assistidos por um advogado oficioso (tal
como a maioria das reclusas de Tires), ela e dois filhos toxicodependentes acabariam
por ser condenados a prisão efectiva, juntamente com dois outros filhos a quem foi
aplicada uma pena suspensa, após ter sido encontrada droga na residência (dois sacos
pequenos). Segundo ela, que apesar de tudo teve uma pena de prisão inferior à dos
restantes:
Os sacos pertenciam [aos dois primeiros filhos], que compravam para vender e para
consumir (mas só a adultos, a crianças não vendiam). Eu sabia que [a droga] estava
lá em casa, mas não ia denunciar os meus filhos nem ia pô-los na rua, sabe-se lá o
que lhes podia acontecer. Eles disseram em tribunal que a mãe não tinha nada a ver
com aquilo, mas não adiantou. Até os irmãos apanharam uma pena suspensa. O meu
marido ficou muito revoltado. “Foi por causa de vocês que a vossa mãe foi presa”,
disse ele, e disse isto até para os inocentes. Eles saíram de casa e a minha casa ficou
desfeita. Só ficou o deficiente.
8 A Zulmira, do Bairro do Lagarteiro, do Porto, essa, confessadamente traficava, mas não
foi presa pelas circunstâncias que envolviam o seu próprio tráfico. Aliás, como muitas
outras reclusas habituadas às buscas e rusgas policiais que rotineiramente investem o
bairro, tinha a precaução elementar de não guardar droga em casa. Encontra-se na cela
com a filha; o marido cumpre pena noutro estabelecimento e um ou outro filho,
toxicodependente, conheceu já estadas na prisão:
O meu marido foi preso, só depois é que me vieram buscar a mim. Mas eu não tinha
droga. Até os 10 gramas [de heroína] que o meu marido tinha, eu é que me calei,
podia ter falado em tribunal. Mesmo os agentes [da polícia] não me acusaram de
nada, eles até eram uma jóia. Só tem um guarda que deve pedir perdão a Deus pelo
que disse perante um tribunal, que ouviu o meu apelido a um consumidor – mas a
gente temos todos o mesmo apelido... coitada da minha filha, ela trabalhava nas
firmas [de limpeza]. O meu marido tinha os 10 gramas que eram do filho no quarto
de banho. Ao tempo que ele vai no quarto de banho acho que viu aquilo. Mas eu não
sabia de nada, que não estava em casa. Saía de manhã e entrava à noite, que ando a
vender desde os 7 anos na porta [do mercado] do Bolhão.
Quando cheguei a casa é que disse: estão a fazer a minha casa... A menina veja o que
eles fizeram, vestidos de bombeiro a fazerem-me a minha casa... Foi quando
levaram o meu marido e essa minha Rosa, que não mexia na droga, e mais duas que
tiraram do processo e estão lá fora, e outra que levou 4 anos de pena suspensa como
a minha Rosa. A mim deram-me 5 anos e 3 meses, igual ao meu marido. Lá que
dessem ao meu marido, ele é que tinha de responder pelos actos dele. Tinha a
droga, tinha de ser castigado. Agora eu, que não fui apanhada com nada, eu quando
deixei a minha casa deixei-a limpa...
Ainda hoje estou para saber como se passaram as coisas lá, ele não explica nada de
jeito. Como é que ele vai dizer que era do filho, que era consumidor? O juiz botou
para o campo dele: pois, lá está, a droga é dos pais, o pai está a encobri-lo e era para
o filho consumir – deve ter sido isso que o juiz pensou. Vai fazer um ano que eu não
lhe escrevo nem ele a mim, porque entendi que ele não tinha nada que guardar
aquilo, se não fosse ele eu não estava presa numa cadeia. Aquilo era de certeza dele,
não era do filho, porque olha um ressacado, com 10 gramas – come tudo, quanto
mais aquilo era branca. Lá lhe pediram para guardar, e ele para não dizer de quem
era... botou para o campo do filho. Mas eu quando sair hei-de saber de quem era
aquela droga e quem é que lha deu. Nem lhe escrevo, estou muito sentida. Se ele
chegasse ao tribunal e dissesse: «Sr. Dr. juiz, a minha mulher não tem nada a ver»,
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nem falava do filho. Dissesse a verdade. E eu também dizia que é verdade, que não
era sabedora...
9 Vemos aqui que a própria Zulmira não se acha certa do verdadeiro responsável pela
posse do produto, entregando-se a uma série de conjecturas que a levam a pender –
como, aparentemente, o juiz – para o marido. Ora, vários membros do pessoal
penitenciário comunicaram-me ser sua convicção de que há procedimentos e prisões
duvidosos/as. Esta percepção de que haveria uma grande dose de roleta judicial e de
arbitrário no percurso que conduziu muitas reclusas e seus familiares à prisão, uma
percepção recorrente que outrora apenas se havia manifestado a propósito de um caso,
é tanto mais significativa quanto se trata de profissionais naturalmente rodados e
calejados perante reivindicações de inocência por parte da sua clientela. Além disso,
esta convicção radica nalgumas equações interpretativas muito comuns. Por exemplo,
alegam que há reclusas tão frustes que seria muito pouco provável inventarem histórias
tão pormenorizadas e complexas; ou que essas mesmas e outras detidas lhes confiaram,
sem cuidarem de se proteger, factos que as comprometeriam tanto ou mais do que
aqueles pelos quais foram condenadas ou presas preventivamente.
10 Mas, por outro lado, estes mesmos membros do staff reconhecem a dificuldade (com
que a própria Zulmira se debateu em particular) em estabelecer penalmente a real
cumplicidade ou encobrimento de quem se encontrava nas cercanias do local onde foi
encontrada droga (uma casa, um carro, um pátio), tanto mais que se trata de família,
amigos ou vizinhos:
Vêm presas preventivamente porque é difícil saber quem era cúmplice ou não, de
quem era a droga, quem traficava. Muitas vezes a ligação é pouca ou nenhuma. E vai
toda a gente da casa. Estas mulheres têm problemas e dão problemas, não
compreendem porque estão aqui, porque é que apanham penas tão pesadas.
11 Contudo, por vezes não é só por serem «da casa» que alguns parentes rumam a Tires,
embora a circunstância de se terem visto alguma vez envolvidos num destes processos
colectivos possa pesar numa decisão posterior de prisão efectiva, quando antes haviam
sido libertados. É o caso da filha da Zulmira, cujas conexões sociais a levaram a outra
zona «quente» e compactaram assim o risco de ter no seu agregado familiares
traficantes e consumidores. Na verdade, todas estas circunstâncias esclarecem talvez
um dos sentidos possíveis da expressão, abundante nos meios policiais e nos processos
judiciais, de «conotado/a com o tráfico». As declarações da mãe, que iliba uma filha já
condenada, são especialmente credíveis já que a Zulmira identificou-me sem rebuço
filhos traficantes que se encontram em liberdade.
A minha Rosa não vendia, nem tinha nada com ela, só foi a um barraco do [Bairro]
do Cerco, ela e o meu filho, que vinha de trabalhar e namora para uma mocinha do
Cerco. Ele também é daqui do Lagarteiro. Foram ao barraco da Quinhas por causa de
um passeio. Mas a minha filha andava nos carimbos 2 do tempo em que foi presa
comigo e o meu marido. Quando os agentes que fizeram a casa a essa tal Quinhas
viram lá os meus filhos a falar, meteram-nos no carro da polícia e levaram-nos para
Custóias. Sem droga nenhuma. Os agentes até diziam que não os conheciam de
vender droga. Defenderam os meus filhos, foram umas jóias, não posso estar contra
eles. O Ministério Público é que é um bocadinho torrão. Deram 30 anos para 7
pessoas. A Zira que tinha a droga apanhou 5 anos, a outra que era muito batida a
vender droga que era a Linda [também se encontra em Tires], que tem cá uma filha
chamada Cláudia, apanhou 5 – e a droga era da Zira e da Cláudia, não era da minha
filha – um ressacado, coitadinho, 4, outra desgraçada ressacada que está ali no outro
pavilhão apanhou 4 anos. Não tem pés nem cabeça, o Ministério Público não deve
estar bom para dar assim uma condenação.
66

Para a Rosa já meti os papéis para ir para [o estabelecimento prisional de] Castelo
Branco3. A filha dela, a minha neta, está com outra minha filha de 18 anos, que anda
de bebé e já tem dois filhos. Mas o marido dessa é um vagabundo, que anda a vender
droga na casa da mãe dele, que é do bloco [x] do Bairro Novo, e não dá o sustento à
minha filha. Por isso estou a ver que a minha neta tem que vir para aqui. Ela está
bem estimadinha, mas é uma grande canseira para a rapariga que anda de bebé.
12 Assinalo nesta narrativa a menção a três bairros, o que nos permite alargar o âmbito
das redes de interconhecimento possíveis em Tires, que assim não se limitam ao estrito
círculo de parentes e vizinhos. De facto, reecontram-se aqui muitas reclusas que,
residindo em bairros distintos, já então entreteciam relações em registos não limitados
à instrumentalidade das ligações da economia ilegal. É o caso das portuenses Aurora, do
Bairro do Cerco, e Ermelinda, do Bairro da Sé, ambas na mesma cela e de resto já
inseridas em fragmentos das respectivas redes de vizinhas que convergiram para a
cadeia. A primeira tem a sogra, um filho, um cunhado e um sobrinho presos; a segunda,
a mãe, a irmã, uma cunhada e três irmãos. É certo que a Ermelinda era fornecedora do
marido da Aurora, toxicodependente. Mas o circuito da droga não era responsável pela
proximidade entre a sua mãe e a sogra da Aurora, que há vários anos se davam muito
uma com a outra. Ambas estão também em Tires. Por fim, e para apenas referir reclusas
aqui mencionadas, do leque de conhecimentos prévios da Aurora constavam ainda a
Zulmira e a Eulália, do Bairro do Lagarteiro, e a Tina, de que falarei adiante, do Bairro
do Cerco. Aliás, a mãe da Tina, já falecida, andou durante muitos anos na venda de salsa
e morangos com a Zulmira. Criou-se por isso entre as duas reclusas uma estreita relação
de entreajuda na prisão:
A Tina é boa moça, boa mãe, gosto muito dela. Coitada, não teve sorte com o homem
dela, é como o meu. As de Lisboa dão-me muita coisa, queijo, bolo, fruta... Mas como
ela não tem nada, reparto com ela. Ainda hoje me deram um bocadinho de peru, eu
levei à cela dela. Ela está sozinha [quer dizer, não tem família em Tires], não tem
nada nem tem visitas. As de Lisboa são muito minhas amigas, dão-me roupa e tudo,
e eu dou-lhe também. Ela não tem chinelos e eu vou ver se peço a uma de Lisboa –
também deram à minha filha. Vou dizer que é para mim.
13 Esta trança de relações que articulava já geografias mais ou menos distantes é
especialmente notória entre as reclusas ciganas, cujas parentes e afins que se
reencontram neste estabelecimento prisional se distribuíam por várias vilas e cidades,
principalmente do Norte e Centro do país.
14 Mas o relato da condenação à reclusão da filha da Zulmira mostra também que nem
sempre os familiares desembocam em simultâneo na prisão, podendo em vez disso
entrar por via de processos consecutivos e independentes entre si; e, por outro lado,
que um mesmo processo judicial pode abranger muitas outras pessoas não aparentadas.
Na verdade, pode abranger pessoas sem conexão alguma. Veja-se em suplemento, a este
propósito, a Tina, que se iniciara quinze dias antes no tráfico, em regime free-lance,
quando foi detida:
Apareceu uma rusga e havia muita gente que costumava vender à minha porta. E eu
vim também, mas não estava a vender, estava em casa. Perguntaram-me se eu os
conhecia e eu disse que não-menti. A juíza do TIC [Tribunal de Instrução Criminal]
disse-me: “Então a senhora entrava e saía, via-os ali à porta e não os conhecia?”.
Pois eu assim conhecer, conhecia, são lá do bairro, mas não tinha nada a ver com
eles. Na altura da rusga eu não tinha nada em casa, nunca guardava droga em casa.
Só havia os plásticos para embalar. Eles cá fora apanharam doze sacos e disseram
que foi lá em casa. Mas eu só tinha plásticos. Não sei como é que eles se enganaram,
não sei como é que fizeram aquilo... Somos treze no mesmo processo. Arranjaram-
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me um advogado oficioso, mas eu disse que não queria aquele. Era o mesmo dos
outros todos e eu não queria, porque queria contar o meu caso. Mas depois aqui vim
a saber que afinal era o mesmo.4
15 Esta conexão poderá, por outro lado, revelar-se parcial e definir apenas pequenos
núcleos, no sentido em que A era cúmplice de B num evento 1, e B, por sua vez, de C e
de D num evento 2. Mas embora A não tivesse participado no evento 2 e porventura
nem conhecesse C e D – e reciprocamente – todos acabarão incluídos num mesmo
processo por intermédio do comum personagem B. Foi assim que a Zara, que era paga
para transportar «encomendas» entre dois indivíduos (um deles indetectado pela
justiça), se viu num julgamento com cinco outros, cuja existência desconhecia.
16 Ora, esta colectivização processual que tipifica muitas das fornadas de reclusas
chegadas a Tires rasura a individualidade reivindicada pela Zara e especialmente pela
Tina, que tentou em vão resistir à sua diluição como sujeito do seu próprio crime. De
resto, o seu caso não é único, já que uma das expressões frequentemente ouvidas entre
as presas preventivas resume a mesma batalha: tirar do processo, ou separar do processo.
Individualizá-lo, porém, é um empreendimento menos acessível às que dispõem de
advogados oficiosos do que àquelas que se puderam prover de advogados próprios.
Deparamo-nos assim com um outro efeito de homogeneização, produzido no interior do
campo judicial e desta feita apagando o sujeito.
17 Tais trâmites assemelham-se de algum modo aos procedimentos descritos por D.
Kaminski (1990), embora estes caracterizassem sobretudo a gestão penal da
toxicomania – uma gestão que, aliás, não teria paralelo com outras formas habituais de
processamento da criminalidade. Segundo o autor, o investimento repressivo atulhou
os tribunais em processos relativos a questões de drogas. O inevitável entupimento da
máquina judiciária que se lhe seguiu foi temporariamente reduzido pelos reenvios
colectivos aos tribunais, através de um esquema análogo de junção de processos.
Porém,
[L]es voies de constitution des “groupes” de toxicomanes sont purement
institutionnelles, l’existence de ces groupes étant confinée à la phase du jugement;
ils n’ont en effet aucune consistance sociologique antérieure et la peine prononcée
au terme du procès fait l’objet d’une exécution individuelle. [...] Les dossiers sont
joints selon des liens de connexité dont le seul signifiant «toxicomanie» assure la
légitimité (ibidem: 188).
18 Ora, ainda de acordo com este autor, sucede que são muitas vezes fluidas as condições
que permitem criar estas conexões entre os factos, sendo assim os processos
coordenados e retrabalhados na base de elos relativamente ténues (ibidem: 188-189).
Por outro lado, e em acréscimo ao que vimos desenhar-se, mutatis mutandis, no plano do
tráfico, a determinação jurídica dos próprios factos pode caracterizar-se pela mesma
fluidez. Referindo-se à jurisprudência relativa aos casos de tráfico, Maia Costa sustenta
serem recebidos
[...] como “factos” descrições tão indeterminadas e abstractas que não têm
realmente qualquer suporte fáctico, referido ao espaço, tempo, e outras
circunstâncias que individualizam os factos [...]. Na verdade, é muito frequente,
para não dizer normal nos crimes de tráfico, atribuir-se ao acusado a venda de
estupefacientes por período não determinado a indivíduos desconhecidos , em
quantidades indeterminadas e por preços também não determinados (1998: 113) 5.
19 Regressando à recorrente colectivização processual por via da qual uma pluralidade de
arguidas foram reunidas, numa ou noutra fase do percurso judiciário, num processo
conjunto, ela pode vir a consubstanciar-se numa acusação de associação criminosa (cuja
68

gravidade das implicações, quer em termos de moldura penal, quer em termos de


regime processual, foi já referida no primeiro capítulo), adicional e autónoma
relativamente a um crime de tráfico; ou numa imputação de «bando», que figura como
circunstância agravante daquele. A figura do bando é uma inovação da nova lei da
droga (no art. 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93, consta na alínea j) que é circunstância
agravante «O agente actuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos
crimes previstos nos arts. 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro
do bando»). «Bando» caracteriza uma forma de co-participação que, de acordo com a
jurisprudência sobre a matéria, é de gravidade inferior à da associação criminosa e
superior à da co-autoria (ver por exemplo, a jurisprudência que consta em Lourenço
Martins, 1994: 141-145; e em Decisões de Tribunais de 1 a Instância, editado pelo GPCCD,
1995: 45-47; 252-257).
Para a existência do bando [...] não é necessária a “transpersonalidade”, a procura
de fins comuns mediante a subordinação ao todo, bastando tão-somente a
existência de uma rede, porventura agregada em redor de um líder, a cuja vontade o
agente se submete, e a durabilidade, pelo menos em certo grau 6.
O bando é menos que uma associação organizada. É apenas um bando. Uma revoada.
Que nem as andorinhas se associam para voar. Simplesmente voam, às vezes sós, às
vezes em bando (in Decisões... ibidem: 242).
20 Estas duas interpretações do conceito de bando, entre o Supremo Tribunal de Justiça e
um tribunal de 1.a instância, dissociam-no claramente da estrutura organizativa que é
suposta caracterizar a associação criminosa. Ora, com frequência muitos dos processos
colectivos vêm marcados por uma acusação deste último crime, além da de tráfico, o
que por si só pode implicar a dilatação dos prazos de prisão preventiva. Mas esta
acusação é apesar de tudo mais difícil de provar em sede de julgamento, a crer pelo
número de reclusas dela absolvidas, do que a imputação de membro de bando. É por
isso de aventar, e a despeito das eventuais intenções do legislador, que a figura do
bando se constitua de facto como um sucedâneo da de associação criminosa na
asseveração das condenações que rodeiam o tráfico. Esclareço porém que não é tanto
por este motivo que as reclusas se procuram furtar, a maioria das vezes sem sucesso,
aos processos colectivos e aos riscos que eles acarretam. Os seus rudimentos jurídicos
circunscrevem-se à fase da apreensão e detenção, e limitam-se a permitir-lhes
especular sobre a correcção dos procedimentos policiais com que foram levadas a cabo.
Trata-se sim, como acima sugeri, de abrir um espaço mínimo necessário onde caiba a
sua narrativa individual e onde não se dissolvam enquanto sujeito penal.
21 Em todo o caso, todas as reclusas incorporaram já nos seus esquemas de percepção e
nas suas orientações práticas estas rotinas colectivizadoras com que amiúde se
deparam, e que se estreiam desde logo com as famigeradas rusgas, em que vem tudo a
monte, ou vai tudo a eito. São esses mesmos esquemas que transportam para a prisão e
que passam agora a integrar o habitus carceral. Também aí se mostram receosas de
apanhar por tabela, como me diria, entre outras reclusas, a Salomé. Tendo entrado em
regime de confiança, esta transitara já há algum tempo de um grande pavilhão para o P.
A, um dos pequenos recintos materialmente mais acolhedores e confortáveis, onde
vigora um regime mais favorável e oferecendo mais regalias. Contudo a transição, que é
suposta representar uma «promoção», desagradara-lhe, mas tal não se devia tanto ao
facto de também a privacidade diminuir quando se deixa uma pequena cela dividida
com uma ou duas colegas para passar a partilhar um quarto maior com mais reclusas,
69

uma razão que outras detidas, numa situação idêntica, me apontaram. Os motivos da
Salomé eram outros:
Preferia a minha cela. Havia mais segurança do que aqui. Aqui há uma que passa
droga. Tenho muito medo que se houver uma rusga e essa tiver droga desconfiem e
castiguem toda a gente. Eu sinto-me menos protegida, há menos segurança. Isto
assim torna-se muito mais pesado.
22 A expressão apanhar por tabela, que numa outra ocasião a Salomé empregaria a este
mesmo propósito, ingressou aliás igualmente no léxico do pessoal penitenciário e
condensa para este, como se verá mais tarde, um corpo de representações que é
construído na cadeia mas cujas implicações se situam sobretudo na sua vida exterior e
extra-profissional. Ou seja, no trânsito intra-extra muros essas representações
percorrerão o mesmo caminho, mas em sentido inverso ao das reclusas.

O bairro como alvo


23 Por agora prosseguirei com a trama de circunstâncias que fazem com que a cadência e
os fluxos de entrada em Tires se organizem hoje, simultânea ou sucessivamente, em
feixes de reclusas já enredadas em laços pré-prisionais, sejam eles de parentesco,
vizinhança, amizade ou simples interconhecimento, que, de resto, podem articular
extensamente quer redes de relações intrabairro, quer interbairros. O primeiro
conjunto de circunstâncias, acima equacionado, prende-se com certos mecanismos
judiciários cujos efeitos colectivizantes produzem por si mesmos séries de braçadas de
reclusas, tanto na modalidade preventiva como condenada, embora mais enfaticamente
na primeira. Ora, a segunda ordem de razões é também dissociável, quer analítica quer
empiricamente, dos reais meandros dos múltiplos circuitos particulares do tráfico.
Trata-se de razões relativas aos enfoques próprios do aparelho policial, que por outro
lado nos levam a alargar a lente e a passar a considerar o bairro de origem como um
todo. Assim, se recuperarmos a metáfora da rede nas suas conotações «piscatórias», a
questão que agora se considera é mais atinente às redes de vigilância e controlo
lançadas sobre uma área – e a quem nelas é colhido – do que às redes de tráfico
propriamente ditas.
24 De facto, as forças policiais tendem a revelar-se mais pró-activas em relação a certas
categorias sócio-espaciais e étnicas, e por conseguinte a probabilidade de detenção é
mais elevada para os membros dessas categorias. A este propósito, aliás, vários autores
referiram já que a taxa de detenção de membros de algumas minorias étnicas é menor
para crimes cuja investigação é despoletada pela queixa de vítimas desconhecedoras da
inserção étnica do perpetrante; será em contrapartida maior para crimes cuja detecção
repousa antes na discricionaridade e na investigação pro-activa da polícia – como é
precisamente o caso dos crimes de droga. Neste caso a taxa de detenção é
especialmente elevada, em parte porque seria corrente as forças policiais elegerem
certos sectores da população como alvos preferenciais (ver, por exemplo, Smith, 1997;
Wilbanks, 1987).
25 Assim, reportando-se às tendências evolutivas da distribuição genérica de crimes entre
brancos e negros americanos desde 1965, Robert Sampson e Janet Lauritsen (1997:
325-327) referem especificamente que as disparidades «raciais» nas taxas de detenção
foram diminuindo nas décadas seguintes. Porém, a grande excepção a esta tendência
registou-se nos crimes de droga. Aqui, ao invés, as discrepâncias acentuaram-se,
70

passando a probabilidade de os negros se verem detidos a ser cinco vezes superior à dos
brancos, quando anteriormente se mantinha estável no dobro. Porém, acrescentam,
It is highly unlikely that these race differences represent general substance abuse
patterns since drug arrests grew at a time when national self-report data showed
that drug use was declining among both blacks and whites. Rather, these
differences reflect the governments targeting and enforcement of specific types of
drug use and trafficking (ibidem: 327).
26 Julian Roberts e Anthony Doob (1997) fazem para o caso do Canadá uma observação
convergente. O momento onde os mecanismos discriminatórios se revelavam
genericamente mais salientes era o encontro com agentes policiais. Porém, na etapa
seguinte, quando os suspeitos compareciam perante um juiz, desapareciam as
diferenças já que os índices de libertação de brancos e negros se equilibravam. Mas
também aqui se registava uma excepção notória, respeitante aos acusados de crimes de
droga, onde o enviesamento persistia. Aliás, depois de relevar este mesmo
enviesamento ligado a esta categoria de crimes, Norval Morris dirá que se a população
dos EUA é etnicamente tão desequilibrada, tal dever-se-ia ainda ao facto de as minorias
serem sobretudo visadas pelos crimes que mais inflamam a opinião pública e que mais
atraem a prisão (entre eles os de droga):
Another possible cause of this racial skewing is that whereas blacks and Hispanics
disproportionately commit what might be called “imprisonable” crimes, white
offenders express their criminality, disproportionately higher than do blacks and
Hispanics, in frauds, embezzlements, and white-collar offenses, which do not so
inflame public opinion and do not so readily attract imprisonment as a punishment
(1995: 241).
27 Para chegar à questão dos bairros como alvo colectivo de controlo, importa primeiro
proceder a um relativo desvio que recenseie estas relações entre etnicidade e o
processamento repressivo da criminalidade. Na vasta bibliografia que as examina,
especialmente sob o ângulo dos eventuais mecanismos discriminatórios que
produziriam o encarceramento desproporcionado de minorias, parecem hoje desenhar-
se algumas linhas de consenso. Na verdade, quer se reportem aos EUA, quer a diversos
países europeus, vários autores convergem na conclusão de que não se verificaria no
saldo deste processamento criminal um enviesamento étnico-«racial» sistemático,
directo e generalizado que permitisse dar inteiramente conta das discrepâncias
proporcionais minorias-maioria constatadas em fim de linha (Tonry 1997a; Tonry et al,
1997b; Smith, 1997; Sampson e Lauritsen, 1997). Discernir-se-ia sim, por um lado,
alguma discriminação, em algumas etapas do processo; e, por outro, a aplicação
universalística e imparcial de certos critérios legais aparentemente neutros, mas que
acabam por resultar de facto, e indirectamente, em detrimento dessas minorias. A
título de exemplo, os tribunais optariam mais facilmente pela prisão preventiva
daqueles com vidas menos estáveis (em termos de residência, trabalho e família),
situação em que incorreriam, via uma precaridade genérica, muitos membros de
minorias; e, nos sistemas em que a declaração de culpa por parte do arguido lhe é
favorável, esses mesmos tribunais decidiriam por penas mais longas quando a culpa é
negada – o que tenderia a suceder no seio daqueles grupos dada a desconfiança em
relação ao sistema legal e as suspeitas de parcialidade que lhe votam.
28 Em todo o caso, onde esse enviesamento se parece insinuar com alguma nitidez é nos
momentos iniciais do percurso, ou seja, nos encontros com a polícia e nas interpelações
a que procede no exercício dos seus poderes discricionários. Elas traduzem-se, por
exemplo, em operações stop (acompanhadas ou não de revistas a viaturas e pessoas)
71

levadas a cabo quer no quadro rodoviário quer pedonal. Este policiamento pode visar
desde delitos de trânsito até furto e crimes de droga. É neste tipo de encontros que
certas minorias se encontram, em vários contextos, sobre-representadas. Para além
disso, Norris et al (1992), por exemplo, mostraram que os negros britânicos são mais
susceptíveis de se verem interpelados com base em suspeitas genéricas do que em
indícios específicos, enquanto as abordagens de brancos se fundamentam em razões
menos especulativas. E Wesley Skogan (cit. por David Smith, 1997) referiu que, uma vez
abordadas, essas mesmas pessoas incorrem num risco muito superior de serem
revistadas.
29 No entanto, investigações de outros autores inflectiram um pouco o sentido destas
conclusões, conduzindo à hipótese de que talvez a «raça» e a etnicidade não
constituíssem per se uma influência decisiva na selecção dos alvos das práticas policiais.
Assim, Tony Jefferson (1993) verificou na Grã-Bretanha que os estilos de policiamento
variavam consoante as áreas onde as incursões eram levadas a cabo. Com efeito, a
frequência das interpelações era muito superior em zonas urbanas desqualificadas,
quaisquer que fossem. Mas era nestas zonas que tendia a ser maior a concentração de
britânicos de origem afrocaribenha. Deste modo, a acção policial atingia mais esta
minoria via esse catalizador que era a composição sócio-residencial de uma
determinada área. Na mesma linha Douglas Smith (1986), por seu turno, mostrou para
os EUA que o que pesava nas decisões policiais de detenção era sobretudo o contexto
residencial dos possíveis suspeitos. É certo que a probabilidade do uso das várias
modalidades da autoridade coerciva era maior em bairros de minorias ou etnicamente
mais mistos. Porém, dentro destas zonas os referentes étnico-«raciais» deixavam de
constituir um indicador possível do comportamento policial. Em acréscimo, os
suspeitos negros eram alvo de menor severidade residindo em bairros «brancos» do
que em bairros de minorias. Depreende-se, por conseguinte, que esta actuação tenha
sido menos influenciada pelas características individuais dos visados do que pelo
estatuto étnico e sócio-económico do bairro de residência considerado como um todo.
Este mesmo padrão foi também observado por outros autores a propósito de
intervenções ou crimes específicos: por exemplo, Ronald Flowers (1988) refere que em
casos de incidentes relacionados com disputas inter-individuais a decisão policial de
nelas intervir e as modalidades de intervenção adoptadas variavam com a posição
sócio-económica do bairro onde ocorriam; e Richard Hollinger (1984) notou a mesma
parcialidade a propósito da condução alcoolizada, sendo os signos de classe mais
cruciais do que os «raciais»/étnicos.
30 Assim, neste como noutros patamares do processamento da criminalidade, a «raça»/
etnicidade poderá operar indirectamente através de outros factores ou em interacção
com eles. Em parte por isto se assiste cada vez mais a uma opção por análises mais
contextuais, que convocam questões relativas ao espaço recuperando e desenvolvendo
noutros moldes algumas das possibilidades teóricas já equacionadas por Clifford Shaw e
Henry McKay, em 1942, cuja focagem incidia na comunidade e nas condições sócio-
ecológicas que podem mediar a relação etnicidade-crime (cf., entre outros, Peebles e
Loeber, 1994) ou etnicidade-criminalização (Chiricos e Crawford, 1995). São análises
incidindo nos processos que a nível local modulam factores globais de ordem histórica,
social e política, e que nesse sentido aliam de certo modo as perspectivas clássicas da
Escola de Chicago, centradas na «comunidade», a perspectivas relevando, por exemplo,
da economia política. É o caso igualmente dos «neo-chicagoanos» William Julius Wilson
(1987) e Robert Bursik e Harold Crasmick (1993), para referir os mais destacados. Não se
72

trata, pois, de apenas acoplar a «classe» à «raça», dado que a uma mesma posição
estrutural no espaço das classes podem corresponder inserções contextuais em meios
diversos, cada um declinando uma conjunção particular de várias características (entre
as quais se podem contar a concentração da pobreza, o desemprego, a segregação racial,
etc.). Como sustentam Sampson e Lauritsen,
[The] differential ecological distributions by race lead to the systematic
confounding of correlations between community contexts and crime with
correlations between race and crime. Analogous to research on urban poverty,
simple comparisons between poor whites and poor blacks are confounded with the
finding that poor whites reside in areas which are ecologically and economically
very different from those of poor blacks. [...] Hence, observed relations between
race and crime are likely to reflect unmeasured advantages in the ecological niches
that poor whites occupy (1997: 338).
31 Porém, se esta observação é justa, ela é-o sobretudo para contextos norte-americanos,
onde estes complexos topográficos se encontram mais nitidamente delimitados
segundo linhas étnico-«raciais». Aí esta segregação urbana de minorias
subproletarizadas parece revelar-se internamente mais homogénea do que em
coordenadas europeias, onde a penúria tende, ao invés, a congregar residencialmente –
e não a separar – populações etnicamente mais diversificadas (cf. Wacquant 1993; 1995).
Este ponto será especialmente relevante quando entrevirmos alguns bairros
portugueses a partir da prisão, bairros esses que em acréscimo parecem apresentar
algumas propriedades específicas em relação a outros contextos europeus similares na
sua inserção estrutural global, a examinar adiante.
32 Ora, sucede ainda que no caso dos EUA a real espacialização étnica da pobreza veio a ser
compactada pela «racialização» de certas drogas, como o crack , que passou a ser
associado nas representações dominantes à população negra de baixos estratos sociais.
E recordo que foi justamente no quadro dos crimes de droga que mais emergiram nas
práticas policiais e judiciais tendências discriminatórias de acordo com o alinhamento
racial dos suspeitos, crimes estes que hoje se encontram na base da desproporção
crescente entre as taxas de encarceramento de brancos e negros americanos. Assim,
como referem para este contexto Sampson e Lauritsen,
By the 1990’s, race, class and drugs became intertwined; it is difficult if not
impossible to disentangle the various elements of the problem (1997: 400).
33 Como veremos, uma perspectiva comparativa permitirá relativizar esta asserção para
outras geografias. Mais uma vez, esta tripla sobreposição será aí menos conforme e
sistemática, desenhando-se antes cruzamentos parciais. No caso que me ocupa, estas
intersecções vão aliás coser-se ao nível do bairro, onde pessoas de diversas inserções
étnicas/«raciais» emparceiram, ao mesmo título, na participação na economia legal e
ilegal. Mesmo a minoria cigana tende a deixar de constituir uma excepção à medida que
se vai integrando em bairros de habitação social ou bairros de barracas já etnicamente
mistos, muito embora certos segmentos permaneçam residencialmente segregados, por
exemplo, em acampamentos na órbita de várias localidades.
34 Regressemos, pois, ao bairro, tendo em mente os factos em que desembocou o desvio
pelas questões da «raça» e etnicidade, designadamente o da selectividade na actuação
pro-activa das forças policiais se poder pautar afinal menos pelas marcas individuais
dos suspeitos (i. e. étnicas) do que pelo estatuto colectivo das zonas onde estes habitam
– ou transitam. Deste modo é, antes de mais, o bairro que será suspeito, tratando-se
assim de um alvo generalizado. Certos locais passariam a ser associados a crime e
73

droga, atraindo por isso uma atenção policial intensa. A intensificação da acção destas
forças pode de resto não se limitar estritamente a prevenir e a elucidar crimes
concretos, revestindo-se muitas vezes de um aspecto mais demonstrativo do poder
policial, que se destina sobretudo a transmitir para o exterior o sinal de que se controla
esses bairros. Em Portugal pode também tratar-se de responder às acusações que
intermitentemente surgem nos media na sequência de incidentes ocorridos, por
exemplo, em bairros de Lisboa e do Porto, segundo as quais a polícia já não conseguiria
aí entrar. Nesta linha, um comissário policial britânico citado por Nigel Dorn et al (1992:
103) referia-se a este tipo de locais tornados sinónimos de criminalidade como «symbolic
locations for policing», e um quadro superior da PSP dizia-me que em certos bairros do
Porto os agentes deste corpo aí se deslocam em pelotão, nunca vão sozinhos ou em par, vão
aí uns dez ou vinte para mostrar força, seja para restabelecer a ordem ou para simples
rondas. Por outro lado, as Brigadas Anti-Crime (BAC) da PSP que intervêm na apreensão
de drogas dispõem de coletes antibala com letras reflectorizantes, tendo sido
provavelmente estas forças que revistaram a casa da Alzira (supra: 101), uma vez que
esta as assimilou a bombeiros; mas poderia também ter-se defrontado com os piquetes
da 4.a divisão da PSP-Porto, frequentemente confundidos nos bairros sociais com o
Corpo de Intervenção, dado usarem, à sua semelhança, capacetes, viseiras e matracas.
Ambas as forças são aliás aí conhecidas pelo mesmo nome: Ninjas. Já em França o
uniforme das BAC, com competências idênticas às das suas homónimas em Portugal,
tornou-se similar ao da polícia de choque (e o mesmo equipamento vem referido
também em Dorn et al, 1992: 99 para uma rusga no contexto britânico). Nessa
indumentária investem regularmente as cités ou os bairros problemáticos, tal como as
suas congéneres portuguesas, o que provoca com frequência queixas dos seus
residentes quanto à ambiência «estado de sítio» e de intimidação que por si mesma cria,
quando não acicata reacções de confronto por parte das camadas juvenis. Em todo o
caso, o complexo-droga que em diversos contextos nacionais associa certas áreas às
substâncias ilegais veio propiciar a acentuação da componente demonstrativa das
incursões policiais, cuja afirmação de poder e autoridade pode ser lida como um dos
termos de uma confrontação simbólica.
35 Este aspecto expressivo torna-se particularmente indissociado da componente
investigativa nessa modalidade de acção policial que são as rusgas. Trata-se de
interpelações generalizadas acompanhadas frequentemente de revistas e detenções
para identificação e interrogação. Estas incursões tipo blitzkrieg , relativamente
rotineiras nos bairros conotados com o tráfico e consumo de narcóticos, podem com
efeito produzir um grande número de detenções (eventualmente seguidas de uma
acusação ou resultando em referências para uma futura vigilância), embora o número e
a ordem de grandeza das apreensões de substâncias proibidas ou de bens suspeitos de
provirem de ganhos ilícitos nem sempre corresponda à envergadura da operação.
Quanto aos últimos, para uma noção do tipo de bens confiscáveis aquando destas
buscas, menciono alguns dos que figuram na relação de apreensões constantes num
processo colectivo envolvendo várias reclusas de Tires. O processo abarcava vinte e um
arguidos e estas reclusas encontravam-se em prisão preventiva, vindo posteriormente a
ser absolvidas (em caso de condenação e de prova de que resultam de ganhos ilegais, os
bens revertem a favor do Estado). Entre outros artigos de maior ou menor valor
contam-se:
[...] 1 par de brincos de criança em ouro, no valor de 2000$00; 1 argola sem valor; 1
brinco com pedras de imitação sem valor; 1 botão de punho sem valor; 1 par de
74

brincos fantasia sem valor; uma caixa de lençóis brancos com bordado e uma caixa
de lençóis igualmente brancos; uma caixa de toalhas de banho de cor branca marca
[...] e uma caixa de toalhas de banho cor laranja marca [...]; uma fruteira em metal,
uma fruteira de barro castanho/cinza c/asa, uma saladeira com flores pintadas [e
outras, sendo o total valor pericial atribuído (VPA) 3000$00]; uma travessa com
frutos pintados, duas travessas em vidro rectangulares, duas travessas em vidro
redondas, uma terrina cerâmica com asas e sem tampa [VPA 2000$00]; uma tigela de
sobremesa, um recipiente para molho em cerâmica, duas taças para sobremesa, um
saleiro em vidro/cristal, um saleiro de plástico, dois baldes em vidro/cristal, para
gelo [VPA 3000$00]; seis bases/copos, em metal branco/prateados, uma base em
ferro amarelo para ovos cozidos, três cálices de vidro, uma jarra em vidro de cor
castanha, oito canecas de vários tamanhos/formato e cor [VPA 3000$00]; [...] três
canivetes de lâminas cada, possuindo dois saca-rolhas, com cerca de 6 cm de lâmina,
um porta-chaves com o emblema do F.C. do Porto, com seis chaves de veículo
automóvel, três isqueiros BIC, PROF e DENIN, um comando TV, um cinzeiro, uma
carteira de homem e uma carteira de senhora com alguns documentos pessoais
[VPA 2000$00); [...]; 10 moedas de 100$00 cada; [...]; uma balança de mão em metal/
ferro amarelo sem prato, um quadro de CRISTO [VPA 200S00]; um par de cabos de
bateria, dois caixilhos em barro para fotografias [VPA 1 500$00]; [...] oito garrafas de
vinho branco marca [...], duas garrafas de vinho do Porto, uma garrafa de vinho
tinto sem marca, uma garrafa de espumante [...]; seis escovas de dentes, quatro
pacotes de leite em pó, com os dizeres «venda proibida», um rolo em papel de prata,
aos quais não foi atribuído qualquer valor pericial [...].
36 E esta extensa e monótona listagem que aqui usei como documento etnográfico
prossegue ainda por várias páginas de igual minúcia, que decerto implicaram longas e
pacientes horas de redacção e de avaliação pericial.
37 Quanto às substâncias apreendidas, bastará uma atenção regular à imprensa escrita
para nos apercebermos de que o volume de narcóticos detectados nestas incursões é
geralmente de ordem irrisória, quando comparado com operações que envolvem uma
maior selectividade, vigilância e investigação prévia – porventura uma das razões pelas
quais nessa imprensa aqueles raids figuram normalmente nas rubricas de fait-divers. De
resto, alguns autores notaram também para outros contextos as quantidades limitadas
de estupefacientes que estas rusgas divisam. Por isso Dorn et al sustentam para o quadro
britânico que:
The main intention of such raids is to demonstrate police “control” of a problem
and an area. The type and amount of seizures are secondary criteria, although they
certainly have had the potential to embarrass the police (1992: 98).
38 ... embora por outro lado aleguem adiante que operações semelhantes são «[...] designed
to disrupt localised markets simply by increasing the difficulty for sellers and buyers to make the
deal» (ibidem: 100). Esta parece ser uma perspectiva igualmente endossada por forças
portuguesas quando um oficial superior da GNR declara, na sequência de uma rusga
levada a cabo em dois bairros de uma cidade nortenha no quadro do combate ao
tráfico/consumo (nesta acção foram no total apreendidas 66 doses individuais de
heroína e levantados 44 autos de contra-ordenação no âmbito do código da estrada):
É preciso transmitir confiança aos moradores honestos daqueles bairros e, além
disso, criar um clima de instabilidade no seio de traficantes e consumidores de
droga7.
39 Num outro contexto ainda, um comando policial americano citado por Mike Davies
corrobora por seu turno esta estratégia ao afirmar:
75

I think people believe that the only strategy we have is to put a lot of police officers
on the street and harass people and make arrests for inconsequential kinds of
things. Well, that’s part of the strategy, no doubt about it (1990: 284).
40 Aliás, o próprio autor descreve aí o processo da institucionalização das rusgas (sweeps)
como «[...] semi-permanent community occupations, “narcotic enforcement zones”, acting as
the urban equivalent of strategic hamlets» (ibidem: 277).
41 Ora, tal como os bens colhidos nas malhas destas buscas podem ser objecto de um
arresto relativamente indiscriminado – como o atesta, entre outras insólitas
minudências extraídas do rol atrás destacado, o pormenor das seis escovas de dentes –,
também as pessoas interpeladas nas rusgas parecem ser visadas de um modo pouco
selectivo. Como sugestivamente referem Dorn et al (1992: 100), subscrevendo o que
outros já haviam caricaturado, «everything that moves on two feet, and some on four, is
arrested». Já sabemos, porém, que é uma determinada área que é instituída como alvo
colectivo. Por outro lado, é também via a suspeição genérica impendendo sobre ela que
torna aí regulares outras modalidades de intervenção policial mais direccionadas para
indivíduos específicos, designadamente através da utilização de informadores e agentes
encobertos. Não é por isso surpreendente que as populações dessas áreas desenvolvam
o «imaginário persecutório» e evoluam na «atmosfera de tensão generalizada» de que
nos fala Chaves (2000: 234-236) a propósito do Casal Ventoso, e que a velha injunção não
chibar (não denunciar) tenha ganho, como veremos, novos contornos na cadeia.
42 Assim, quer se trate dessas investidas maciças que são as rusgas, quer de repetidas
intervenções mais individualizadas, ou de uma combinação de ambas como sucede com
algumas buscas, a acção policial intensa desenvolvida em certos segmentos sócio-
espaciais aumenta a probabilidade de detenção dos seus residentes e, por conseguinte,
constituirá um dos factores pelos quais se reencontram na prisão não só parentes, mas
vizinhos, amigos e conhecidos. É de resto o eixo criminal da droga (em torno do qual se
agregam crimes conexos como a receptação de artigos furtados) que, induzindo nas
agências policiais uma actuação de tipo pró-activo, desencadeia hoje um processo de
colectivização de certos bairros que atrás vimos compactar-se subsequentemente a
níveis mais finos por via de alguns mecanismos de processamento judicial. É este
processo da constituição «em rede» das fileiras de arguidos pelas lógicas dos campos da
lei e da ordem que Dominique Duprez e Michel Kokoreff constataram também em
França:
[D]ans bien d[es] jugements récents, c’est la simultanéité des arrestations policières
sur un secteur géographique qui permet de présenter une trentaine de prévenus au
tribunal. S’ils habitent et/ou commercent sur un même quartier, il s’agit de micro-
réseaux de quelques personnes qui travaillent chacune pour leur compte. Beaucoup
d’affaires jugées dans les [tribunaux] sont présentées comme de “grosses affaires”
et le démantèlement de “gros réseaux” alors que ce sont simplement les opérations
policières qui les constituent comme telles (2000: 234-235).
43 Mas as redes entrelaçando os parentes, vizinhos, amigos e conhecidos que convergem
para a prisão constituem-se também através de processos extrajudiciais/policiais,
processos esses que se prendem com o próprio funcionamento da economia da droga. É
deles que constará o próximo capítulo.
76

NOTAS
1. Para ter uma noção prévia do peso global dos familiares de reclusas no estabelecimento, uma
presença com que me confrontava sistematicamente, consultei as fichas das educadoras. Porém,
eram escassos os dados relativos às preventivas, mesmo os estritamente sociográficos, já que
tendo estas entrado mais recentemente no estabelecimento não houvera ainda tempo suficiente
da parte das técnicas para constituir o seu dossier, como é de regra. Contactando depois estas
detidas pude, todavia, constatar que o seu perfil sociológico em nada diferia do das condenadas,
inclusive na trama de relações parentais em que se encontram envolvidas.
2. Andar nos carimbos ou levar um x tempo de carimbos é a expressão com que as reclusas designam
quer o período de pena suspensa, quer o período de liberdade condicional.
3. Na altura o Tribunal de Execução de Penas da área desse estabelecimento era suposto ser mais
generoso na concessão de liberdades condicionais, pelo que muitas reclusas solicitavam para aí
transferência.
4. Numa ocasião diversa uma outra reclusa, bem inteirada dos meandros de alguns destes
circuitos, corroboraria a sua história:
Tenho muita pena da Tina, que é uma jóia de rapariga. O problema dela é que disse que vendeu droga, que
vendeu quinze dias. Se não até podia ter ido para a rua. Assim vai ser condenada, e com a malta que aí
está... É muita gente. Ela não tem nada a ver, porque a droga que foi apanhada foi atrás das janelas dela.
Olha ela disse logo que vendeu! Ela nunca havia de assumir, porque essa droga não era dela, era da
Almerinda, que é uma grande traficante – o irmão dela é outro grande. E vai a desgraçada apanhar uma
data de anos e os filhinhos num colégio, que precisam da mãe...
5. (Itálicos no original.)
6. Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Abril de 1994, in Decisões...; ênfase minha.
7. Citado no jornal Público, de 28 de Julho de 2001.
77

Capítulo 4. Parentes, amigos e


vizinhos – II: a economia da droga

Figurações elusivas do tráfico: o binómio «grande


traficante»-«crime organizado»
1 No capítulo anterior examinou-se a construção das redes do tráfico por parte do campo
judicial e do campo policial, uma construção cuja lógica é relativamente autónoma
daquela que no interior do bairro organiza a constituição das redes ilegais. Os
contornos das redes que resultam de uma e de outra não se justapõem, antes se
intersectam. Alguns autores constataram, porém, que as formas assumidas pelas redes
ilegais e o tipo de controlo policial que sobre elas se exerce interagem, sendo em parte
o segundo que molda as primeiras. Assim, como observam Dorn et al (1992), os
mercados adaptar-se-iam à crescente pressão repressiva e organizar-se-iam em
conformidade, adoptando uma panóplia de estratégias que visam iludi-la, entre as quais
se contam as figuras cuja função é a de assegurar a vigilância da área e sinalizar a
presença da polícia (em bairros de Lisboa elas darão pelo nome de vigias, e no Porto de
aguadeiros). A pressão policial, em segundo lugar, tenderia inadvertidamente a eliminar
do mercado os intervenientes inexperientes e «irregulares» e a abrir caminho a
«especialistas do retalho» mais «profissionais», além de outros efeitos espúrios
registados em diversos contextos. Lisa Maher (1997: 26), por exemplo, refere o aumento
de violência que se seguiu às detenções maciças num bairro nova-iorquino. A
subsequente escassez no mercado da droga da mão-de-obra «de confiança» que antes se
recrutava em redes sociais e de parentesco, redes estas que exerciam uma influência
mediadora em caso de dissensões, obrigou ao recurso a funcionários instáveis e
relativamente desconhecidos. Os atritos multiplicaram-se e, desaparecidos os
anteriores mecanismos de contenção, a violência propagou-se.
2 Ora, embora os níveis retalhistas do tráfico tenham desde sempre atraído acções
repressivas, elas parecem ter-se intensificado na década de 1990, como se depreende da
leitura de Dorn et al (1992) para contextos anglo-saxónicos. Tal dever-se-ia, por um
lado, a uma política de «redução da procura» (ibidem: 96) através da perturbação do
interface venda-consumo; mas, por outro lado, a maior incidência policial nos mais
78

baixos patamares do tráfico não seria alheia ao desencanto resultante dos insucessos da
estratégia inversa: a detecção dos «grandes» traficantes, ou a supressão em cascata do
narcotráfico pelo desmantelamento das poucas «grandes» organizações que
supostamente o controlam, entendidas desta forma como entidades confinadas e
finitas. Esta estratégia ascendente corresponderia a uma visão deste mercado ilegal
como organizado e hierarquizado em grande escala – uma visão, se quisermos, em
organigrama – que de algum modo espelha a própria estruturação dos corpos policiais
ou legitima opções organizacionais centralizadoras:
Terms such as organised crime are significant not just as descriptions of criminality
but, rather more, as ways of legitimising particular aspects of law enforcement. If
crime is described as organised on a regional, national, or even international level,
then it seems to follow that enforcement agencies should be organised accordingly
(Dorn et al 1992: 203)1.
3 Contudo, e contrariamente a uma noção corrente segundo a qual o volume de droga
transaccionado/apreendido iria de par com a magnitude da organização envolvida (ou
seja, grandes quantidades pressuporiam grandes organizações), mesmo as operações de
tráfico aos níveis médio e alto deste mercado são antes empreendidas na sua maioria
por uma multiplicidade de indivíduos e pequenos grupos independentes entre si e
funcionando de maneira flexível. Aliás, como mostrou Patricia Adler (1993), a sua
posição nos patamares do mercado não é fixa, podendo cada um dos intervenientes,
segundo as circunstâncias, negociar ao nível dos quilos ou dos gramas, ou constituir-se
num momento como comprador e noutro como fornecedor. Na sua etnografia sobre os
– geralmente grossistas – traficantes californianos, Adler detalha assim os termos desta
inconsistência:
Drug entrepreneurs would rarely be consistent in the same quantity and divide that
amount into smaller segments to be sold in fixed units. Rather they wheeled and
dealed, as they flexibly varied quantity and style of operation depending on their
mood. They thus often handled different amounts from one deal to the next,
“stooping” on one deal and “reaching” on another, selling pounds one time, ounces
the next, and buying grams in a third. They also bought and sold back and forth
among dealers on their same level, acting as the supplier in one deal and the
customer in the next. Dealers, then, trafficked in circles of associates rather than in
fixed quantities, their drug world relationships having greater importance than any
customary level of operation» (1993: 62).
4 Duprez e Kokoreff fizeram uma constatação semelhante em mercados franceses:
Les trois niveaux généralement distingués (« grossistes », « détaillants »,
« consommateurs ») se retrouvent certes, ici, mais ces catégories se révèlent
relativement flottantes : au moins deux des trois « grossistes » revendent en gros et
en détail [et] les « détaillants » sont aussi pour d’autres des « semi-grossistes »
(2000: 241).
5 Ao encarar o processo de distribuição de drogas como alojado menos numa
«organização» do que em redes lassas e não necessariamente duradouras de relações de
patrocinato/clientelismo, também Joseph Albini (1992: 92-93) refere a constante
mutação das posições hierárquicas, podendo um «patrono» numa situação tornar-se
mais tarde num «cliente» do seu original subordinado.
6 Assim, ainda que uma determinada operação de tráfico possa decerto envolver um
quantitativo substancial de droga, quem nela participa nem sempre opera
invariavelmente à grande escala. A figura do «grande traficante» parece por isso bem
mais evanescente do que supõem as comuns elaborações discursivas que dele se fazem.
79

De resto, as próprias tipologias sociológicas dos narco-mercados, onde este personagem


aparece subsumido noutras designações, contêm também – como todas as tipologias –
algum potencial reificante, apesar de tecnicamente tal não decorrer desta definição de
ideal-tipos. Por isso, sempre que me referir aos patamares alto/grossista e baixo/
retalhista do mercado de drogas, tais noções situam simplesmente uma escala de
negócios e não os personagens do tráfico – que, como vimos, podem transitar entre
escalas; em segundo lugar, esses patamares não se reportam nem a um grau de
organização, nem à dimensão das organizações (o mercado grossista pode envolver
organizações pequenas e pouco estruturadas, assim como o mercado retalhista pode
operar através de organizações de maior dimensão e mais estruturadas, como se
constatará adiante); por fim, um e outro patamar não estão forçosamente articulados
numa mesma organização, integrada hierarquicamente e distinta de outras. Antes
operam de maneira relativamente autónoma, intersectando-se através de
intervenientes (indivíduos ou pequenas coligações) flutuantes, instáveis e variáveis (um
retalhista negociará com diferentes grossistas e vice-versa, podendo cada uma destas
alianças ser pontual e independente das outras). É assim possível dizer, com Peter
Reuter, que por exemplo:
Heroin importers, selling to heroin wholesalers, constitue one market. Heroin
retailers, selling to final consumers, constitute another market [...] Heroin
distribution enterprises involve armslength transactions between different levels
rather than integration of importing, wholesale and retailing components (1985: 8;
12)2.
7 Talvez por esta razão – isto é, a fraca integração dos dois níveis que leva Reuter a falar
mesmo de mercados distintos – as forças da lei raramente chegam ao «peixe graúdo»
através do «peixe miúdo». Mais serão a ele levados através de outro «peixe graúdo».
8 Em suma, entender-se-á por conseguinte que Dorn et al contraponham a fluidez, a
mutabilidade e a desconcentração dos narco-mercados – «drug markets are messy» (1992:
58) – às apelativas porque simples imagens onde eles são representados como uma
estrutura piramidal rígida e monopolística. É nesse sentido que afirmam:
[I]ndividual traffickers and the small groups that tipically make up trafficker
enterprises are organised in the sense that they are pursuing strategies designed to
make a profit and keep as clear of enforcement agencies as possible. But there is no
person, no mafia, no cartel organising the market overall (ibidem: 203).
9 Aliás, quer Reuter (1985) quer Pierre Kopp (1996), procedendo a uma análise económica
deste tipo de mercado ilícito, concluiriam que, ao contrário de outros mercados
igualmente ilegais, as situações de monopólio não seriam sustentáveis e seriam mesmo
inviáveis.

Contra o paradigma familialista da mafia: os laços


familiares e vicinais no tráfico
10 A instabilidade e a fragmentação genérica configuram, assim, a economia da droga
como uma «economia da desordem» (Kopp; 1996: 163). Mas se esta perspectiva é válida
quando globalmente e em abstracto se procura fazer sentido do mercado da droga
como um todo, ela não dispensa o exame da variação das características que os diversos
mercados particulares assumem, quer se considere as suas diferentes inserções
históricas e geográficas, quer a escala ou o patamar em que funcionam. Este exercício
80

comparativo permitirá discernir as propriedades específicas do comércio retalhista de


drogas em contextos portugueses – aquele onde é recrutado o grosso das reclusas de
Tires – propriedades essas que, por sua vez, enquadram as tranças de relações de
parentesco, vizinhança e interconhecimento pelas quais se articulam vivências na
prisão.
11 Como se referiu, as representações mais correntes do tráfico situam-no como uma
modalidade do crime organizado, atribuindo-se a este uma estruturação interna
pesada, centralizadora, com uma orgânica estática e burocrática, hierarquias formais e
uma vocação monopolística. Tal imagem do crime organizado, que absorveu a do
narcotráfico, modelou-se sobretudo a partir do paradigma da mafia – quando não se dá
o caso de a mafia ser ela mesma tida como a mão oculta que manobra este mercado 3. No
entanto, a própria ideia da mafia como uma organização criminal formal octopusiana
que se teria transplantado para contextos extra-sicilianos foi ela própria sujeita a
desmontagens sucessivas. Joseph Albini (1992), por exemplo, descreveu os processos
discursivos que nos EUA assim a «coisificaram», quando se tratava antes de um método,
dificilmente exportável porque indissociável dos valores e das estruturas sociais de uma
parte da ilha onde se engendrou – como de resto o expôs detalhadamente um
antropólogo como Anton Blok (1974). Henner Hess (1973), por seu turno, adiantou que
no contexto original o termo mafia designava mais um processo genérico do que uma
organização, e Eric Hobsbawm (1966) que ele se referia sobretudo a códigos culturais
difusos.
12 Francis Ianni e Elizabeth Reuss-Ianni (1972) procederam justamente a uma etnografia
de algumas famílias criminais ítalo-americanas supostamente filiadas na mafia, tendo
concluído pela inexistência de um organismo de cúpula à qual se subordinariam, ou de
uma presumida liga em que se encontrariam como que confederadas. Além disso, a
participação de cada uma na economia ilegal reger-se-ia pelo parentesco e pelos
direitos e deveres a ele associados e, ao contrário de organizações formais como as
empresas, «are structured by action rather than by a series of statuses and [...] have no
structure apart from their functioning» (ibidem: 153). No entanto, se o seu desenho como
unidades económicas não se decalca de tais organizações, a rede de relações familiares
que as cimenta parece bastante estruturada, nomeadamente na rígida repartição
hierárquica de poder e autoridade. Nesta extensa rede em que papéis empresariais e
papéis familiares se confundem, não só as posições de liderança nos diversos estratos
são atribuídas do topo para a base a partir do parentesco, como elas serão tanto mais
elevadas quanto mais próximo for o elo familiar – sendo esta estrutura
disciplinadamente encimada por um patriarca que é simultaneamente o incontestado
líder dos negócios, a quem todo o respeito e deferência são devidos. Por outro lado, o
secretismo, que segundo os autores havia sido repertoriado como um elemento do
código criminal da mafia, aparece afinal intimamente ligado a vigorosos valores (que os
Ianni «italianizam») de lealdade familiar, na medida em que o segredo encobre perante
não-membros não só as actividades ilícitas, como se estende aos negócios legais e a
todos os comportamentos e áreas de vida, públicas e privadas, do grupo parental: ou
seja, questões de família não se discutem fora dela. O grupo em causa é definido pelos
autores (ibidem: 139-141) como uma família extensa que, apesar de residencialmente
segmentada (mas mesmo assim fisicamente próxima), constitui uma unidade
económica integrada que é ao mesmo tempo socialmente auto-suficiente no sentido em
que são escassos os laços sociais extrafamiliares. É aqui que não apenas se delimitam os
81

contornos da lealdade, como esta se sobrepõe à que é votada às famílias conjugais


constituintes. De resto, é àquela unidade que os indivíduos e as suas aspirações se
submetem, não existindo senão enquanto parte dela. O perfil deste grupo familiar
apresenta aliás vários traços semelhantes às famílias da élite lisboeta estudadas por
Antónia Pedroso de Lima (1999), ao mesmo tempo grupos de parentesco (muito coesos e
com um forte sentido dinástico) e grupos económicos (legais), onde família e empresa
se sobrepõem:
[C]onstituem uma rede de relações fechada, na qual uma pessoa de fora teria
dificuldade em ser aceite. [Estas] famílias regem-se por valores de organização
familiar [tais como]: a autoridade patriarcal, a senioridade, a ordem de nascimento,
a pertença de género (ibidem: 90). [N]este contexto social as mulheres não são
supostas trabalhar ao mesmo nível que os homens. O seu trabalho é manter a
família saudável, tanto a sua família nuclear como o universo mais alargado de
parentes. [...] Os negócios, a vida das empresas, são para elas assuntos de homens,
fazem parte de um mundo do qual elas estão arredadas [...] (ibidem: 100-101).
13 São muito diferentes dos Lupollo – a abastada e bem sucedida família de origem
siciliana retratada pelos Ianni – as redes familiares cujo rasto encontramos na prisão de
Tires. De resto, estes mesmos autores reconhecem que os Lupollo tiveram os meios para
realizar aquilo que no sul de Itália não passava para muitos de um ideal inatingível:
uma família extensa social e economicamente integrada. Na verdade, esta opção não
estava ao alcance dos que se localizavam em estratos mais baixos. Aqueles que
emigraram e integraram o proletariado urbano no país de acolhimento apenas
puderam, quanto muito, reeditar-se em famílias nucleares que, embora se
encontrassem interligadas por laços de parentesco reactivados em contextos
cerimoniais e de entreajuda, continuavam a viver e a trabalhar como unidades distintas
e independentes entre si. Poder-se-lhes-ia aplicar o mesmo tropo que Karin Wall (1998)
usou a propósito de estratos rurais pobres do Baixo Minho, cuja forma familiar
predominante, diversamente do que sucedia em níveis sociais mais elevados, era a
família simples. Estes núcleos familiares «iam à vida», empurrados para ela apenas com
o apoio de uma solidariedade parental construída de modo mais aleatório (ibidem: 60) e
convocando aliás a solidariedade vicinal com uma maior abrangência do que a
verificada noutras classes4.
14 Ao contrário, os Lupollo «seguravam a vida» dos seus, promovendo aos círculos
superiores dos seus negócios parentes próximos e afastados, e assegurando aos menos
dotados um emprego (Ianni e Ianni 1972: 55). A menor margem de manobra e os
contextos de precaridade em que na generalidade evoluem as famílias das reclusas de
Tires veda-lhes uma possibilidade familialista da mesma ordem. Também elas «vão à
vida». Os laços parentais permanecem importantes e mesmo fulcrais, embora mais
numa lógica de sobrevivência do que propriamente numa estratégia de mobilidade
social. Mas não se compõem com a mesma extensão e sistematicidade na organização
conjunta da vida, o que se reflectirá nas variáveis e pontuais alianças que cada pessoa
pode casualmente estabelecer, ora com um, ora com outro parente, nas iniciativas do
tráfico. Assim, também à escala familiar o leque alargado de reclusas aparentadas que
encontramos em Tires – e que muitas vezes convergem para a cadeia em momentos
diferentes – não deve induzir à conclusão de que uma rede complexa de parentes
participava colectiva e simultaneamente numa mesma iniciativa. Num cenário
frequente sucede ao invés que cada qual, individualmente ou associado em pequenos
fragmentos da parentela, terá investido por si na estrutura de oportunidades que o
tráfico abriu, de uma forma ou de outra, a todos, e à qual se encontram de resto
82

expostos, de igual modo, vizinhos e conhecidos num mesmo contexto sócio-espacial.


Por outro lado, as alianças familiares constatadas na prisão não prevaleciam com uma
contrastante distância sobre as alianças vicinais. Dir-se-ia mesmo que as primeiras
quase se diluem nas segundas quando indiferentemente se recorre aos préstimos de um
parente ou de um vizinho. Aliás, as coligações no tráfico acabam por reflectir a
multivalência das relações pessoais nos bairros de onde as reclusas provêm, onde as
relações de parentesco, vizinhança, amizade e trabalho parecem cruzar-se
constantemente e são muitas vezes inextricáveis. Tal recorda a caracterização que dela
fez há muito Elliot Liebow a propósito de um bairro americano:
In general, close friendships end to develop out of associations with those who are
already in one’s network of personal relationships: relatives, men and women who
live in the area and spend much of their time on the street or in public places, and
co-workers. The result is that the streetcorner men, perhaps more than others in
our society, tends to use the same individuals over and over again: he may make a
friend, neighbor and co-worker of his kinsman, or a friend, co-worker and kinsman
of his neighbor. A look at some of the personal relationships can illustrate [...] the
bi-directional character of friendship on the one hand, and kinship, neighbor, co-
worker and other relationships on the other (1967: 164-165).
15 Diversamente dos Lupollo, então, a família não é uma unidade autocontida, quer do
ponto de vista da sociabilidade, quer das incursões que os seus membros realizam na
economia legal e ilegal. Tãopouco a lealdade segue necessariamente os seus contornos,
ou se atém aos seus limites. E assim como são parcos os recursos (económicos, de poder
e de influência) de que o agregado familiar dispõe para «organizar a vida» dos que o
compõem, também menor é a coincidência de interesses e a capacidade para
subordinar o indivíduo ao todo. Em todo o caso, esta maior fluidez vai de par com a
ausência de uma estrutura vertical de autoridade – e, menos ainda, de tipo patriarcal –
como a que os Lupollo ilustram. Se esta família acabava desta forma por editar, a nível
micro, a imputada rigorosa organização piramidal que afinal parecia faltar à
globalidade do universo criminal que integrava, são bem diversas as modalidades de
participação familiar na economia da droga reflectidas em Tires.
16 O caso da Zulmira ilustra bem quão atomística se pode revelar a participação de
constelações de parentes nesta economia, e essa atomização torna-se tanto mais
saliente quanto este caso se circunscreve aos limites do agregado doméstico, isto é, aos
familiares co-residentes. Com seis dos seus dez membros envolvidos de uma forma ou
de outra no tráfico e/ou consumo, não só nenhum deles compôs qualquer coligação
intrafamiliar, como cada um pôde permanecer por muito tempo relativamente alheado
das actividades congéneres dos outros. Alheado e esquivo, mas não indiferente.
Cruzam-se assim suspeitas e ambivalências acerca deste envolvimento, geram-se
tensões e conflitos.
Eu por dentro já andava a desconfiar do meu filho, que ele andava a vender. Não é o
que foi preso em Braga, é o outro, que andava de trolha. Eu tinha lá um bilhete do
penhorista e cheguei ao Bloco [x], à mãe de um rapaz, chamado Bentinho, e disse
assim: «Ó Anabela, fica-me com este bilhete porque eu quero dar de comer aos meus
filhos e não tenho. Eu vendo-to por 10 contos». O filho dela, que esteve preso (mas
tiveram sorte, vieram todos para a rua), o filho dela vira-se para mim e diz: «Ó
Mirinha, então você quer dez contos e ainda agora o seu Luís levou 10 contos
daqui?» – «10 contos? Porquê?» – «Então ele esteve a vender droga para mim!» Ó
menina, foi uma coisa que me deu.... Porque ele trabalhava de trolha e aos fins-de-
semana dizia-me que ia para as discotecas, e ia mas é para a Rua Escura vender
droga. E eu disse: «Ah! Não me digas que ele anda a vender droga!» – «Sim. Aos
83

meses que ele anda a vender...» Não disse nada, cheguei a casa e disse assim: «Então
tu vês-me a pegar no bilhete para arranjar para vos dar de comer e tu andas-me a
vender droga? Pois tá descansado que eu vou denunciar-te à polícia». – «Ai o
Bentinho não tinha nada que lhe dizer, o Bentinho é um porco», diz ele. Eu dei-lhe
um estalo, ele saiu e eu sempre atrás dele. Isto foi uma coisa que eu nem sei... [...]
Isto do Bentinho passou-se. Uma vez vou atrás do meu filho e vejo ele ir pela rampa
de Azevedo para a casa de uma chamada Lidinha. Ele e o filho de uma Mena, que
mora lá no bairro. E o irmão do Bentinho também ia. E eu deixei-os entrar. O que é
que eles iam fazer? Iam fazer o consumo deles, da droga. Ó, eu insultei-os, dei
porrada no meu, foi o fim do mundo... Ele andava a consumir droga sem eu saber há
muito tempo...
17 Numa outra ocasião, quando a Zulmira me descrevia o seu próprio ingresso no tráfico,
acrescentava a este propósito:
Ai menina, aqueles dois ou três meses que eu vendi... Parece que ao mesmo tempo
tinha Deus: «Deixa-me isso, deixa-me essa porcaria...». Eu tocava no meu coração e
era o Diabo. E depois o meu filho era assim [de nariz no ar]: «O que é que tá aqui?
Ah, droguinha» E digo eu para mim: «Ai meu Deus, o meu filho anda a consumir e
eu a vender. Tem calma, eu vou parar». Aí fizeram o barraco a uma Idália e a uma
Carmelinda e eu parei imediatamente.
– E quando vendia o que é que o seu marido dizia?
Ele não sabia, mas depois via-me a comprar as coisas e começou a perceber. E ele
era assim: «Aqui há droga...» – «Há droga aonde?», dizia eu – que eu tenho muito
respeito aos meus filhos. Entrava-me por ali um deles, que eu tenho-lhe muito
respeito, e dizia-me: «Mãe, você veja o que anda aí a fazer, não mexa em nada». «Eu
não», dizia eu, só para me dar ao respeito, compreende? O meu marido deixou de
trabalhar, só gostava da pinga. E aí eu disse ao meu marido: «Ai é? Não te
aperguntas donde vêm as coisas, se vêm daqui, se dacolá, era a tua obrigação.
Aperguntavas: donde vem esta mesa? donde vem esta cadeira? Tu vês dois dos teus
filhos a trabalhar, que não dá para nada, nem água, nem luz [Um aparte para mim:
tive que ligar a água lá fora sem a Câmara saber. Assim que tive dinheiro paguei
logo a água e a luz, pus logo tudo direitinho, tudo legal]. E disse-lhe mais: Porque se
tu trabalhasses, se tu fosses um bom homem, eu nunca tinha mexido na droga». E
então eu comecei a mandar vir com ele, fiz vergonhas acabadas, tanto que ainda
hoje, vai fazer um ano que eu não recebia uma carta dele.
18 Relembre-se que quando a Zulmira foi presa pela detecção de estupefacientes na sua
casa (ainda que não fosse, nessa ocasião, responsável por eles e desconhecesse a sua
origem), ela chegou a cogitar na hipótese de o próprio marido ter realizado uma
incursão no tráfico. Mas se o inicial desconhecimento mútuo do envolvimento com
drogas por parte dos membros do agregado foi aqui generalizado, trata-se de um caso
que, embora não raro, não deixa de representar uma modalidade extrema. De resto, é
de supor que as acima narradas revelações do Bentinho se devessem mais a um deslize
do que a uma intenção de denúncia, deslize esse provocado pela sua surpresa perante a
ignorância da Zulmira acerca das actividades do filho. Tendo ainda em conta que esta
conversa decorreu na presença da própria mãe do Bentinho, essa surpresa poderá
indicar que para ele tal seria uma situação inusitada, ou porventura que a sua
experiência prévia lhe mostrara o contrário.
19 Mas que parentes ou membros de um agregado estejam ao corrente destas actividades
no seu círculo não significa, em primeiro lugar, que as levem a cabo conjuntamente,
como o atestam os numerosos casos de mulheres que se lançaram no tráfico em
circuitos paralelos e independentes daqueles em que se movem filhos ou maridos
toxicodependentes, umas e outros aí desembocando respectivamente por razões, por
vezes, bem diversas: os últimos para directamente financiarem o consumo, as
84

primeiras, não consumidoras, para assegurarem a retaguarda logística e doméstica 5. A


Aurora, por exemplo, cujo circuito de transacções, aliás, só muito tenuemente se
intersectava com aquele onde operava a sogra, o cunhado e o sobrinho (também presos
por via de um diferente processo judicial), chegou ao tráfico autonomamente, embora
equipada do savoir-faire e do capital de contactos que o marido, traficante-consumidor,
constituíra. Este – de resto desaparecido em circunstâncias não esclarecidas 6 – há muito
que deixara de contribuir com quaisquer recursos para o agregado:
Eu meti-me nisto para ajudar as crianças e o meu marido. Eu sei bem que não havia
de ter feito o que fiz. Mas olhe, foi a miséria, passava fome, o dinheiro já nem
chegava para comer, ele não trabalhava e meti-me nisto. Fiz mal, vim parar à
cadeia. Mas se eu fiz, outros também fizeram ao meu marido, e o mundo roda
assim...
20 Em segundo lugar, ainda que parentes ou membros de um agregado possam participar
no tráfico em cumplicidade, tal não faz necessariamente dele um empreendimento
familiar abrangente e concertado, à maneira dos Lupollo. Trata-se antes de pequenas
conjunções ou parcerias, de que muitas vezes as mulheres tomam a iniciativa. É certo
que a nítida maioria das que usam drogas, entre as quais se contam sobretudo as mais
jovens, entraram no tráfico por via dos maridos ou companheiros, que as iniciaram no
consumo7; mas muitas das mais velhas, não consumidoras, são ao invés as iniciadoras
da entrada neste mercado.
21 A Iolanda, uma imigrante cabo-verdiana com quatro filhos residente em Portugal desde
1975, é uma daquelas raras reclusas que, à partida menos desmunidas materialmente do
que as restantes, chegaram ao tráfico não tanto por lógicas quase imediatistas de
sobrevivência, de quem procura colmatar um hiato premente – por vezes bem mais
premente do que o «longínquo» hiato do fim do mês –, mas através de uma trajectória
que já se projectava de maneira tangível no futuro. Este investimento no futuro passou
pela compra de uma tasca que antes alugava, tasca essa que não só deveria constituir em
si mesma um capital económico a legar aos filhos, como se previa reconverter no
capital escolar destes:
Pedi três mil contos de empréstimo para pagar a tasca, que custava seis mil, porque
queria deixar alguma coisa aos meus filhos, porque emigrei para eles não passarem
o que eu passei, para que eles pudessem estudar e não tivessem que trabalhar ao
mesmo tempo. Queria que eles tivessem uma boa formação.
22 É certo que este projecto emigrante que apostou na reconversão de capitais não
arrancou a partir do tráfico. Mas o tráfico interveio para permitir prossegui-lo quando
parecia falhar, pela pressão de uma conjuntura em que o pagamento do empréstimo
ficou em causa:
Começou a ser difícil pagar. Eu já trabalhava todo o dia, das seis às duas da manhã,
na tasca e nas limpezas. Os juros cada vez mais pesados, foi um desespero. Fui ter
com várias pessoas, nada, até que uma moça me disse que a droga dava muito
dinheiro, que 100 gr de heroína dava mil contos. O meu marido a princípio não
queria, não queria, mas olhe, como é que a gente havia de fazer? Lá o consegui levar
a meter-se no negócio [...] Três meses depois fui apanhada. Veio preso também o
meu marido, o meu enteado e o meu irmão – que esse não tinha nada a ver, andava
nas obras, e depois acabaram por o libertar. Levei 11 anos, como um homicídio.
23 Resta dizer que o projecto da Iolanda se desmoronou em dominó, e esta acabou por
ingressar no ciclo de pauperização de que o tráfico é, para a maioria das reclusas, afinal
produto e produtor em simultâneo (cf. infra: 210-211). A Iolanda viu-se forçada a vender
a casa onde habitava e a transferir a residência dos seus para o estabelecimento que
85

tentara adquirir (mas entretanto vê-se a braços com a oposição das autoridades
sanitárias a esta mudança); o dinheiro reservado para o pagamento do empréstimo foi
apreendido e a pensão holandesa de invalidez auferida pelo marido foi suspensa: uma
vez preso, em primeiro lugar não havia feito prova de vida; depois, ficou
impossibilitado de se deslocar à Holanda para frequentar um curso a que agora o
obrigavam alterações legislativas nesse país relativas à concessão destas prestações
sociais. Por último, ao ser representada como desonra, a prisão debilitou capitais
familiares. O pai da Iolanda cortou relações com ela e recusa-se a visitá-la – «A educação
que eu lhe dei não foi para isto.» E a Iolanda apresenta-se ela própria desqualificada, não
só nos papéis parentais e na esfera familiar, como até na sua inserção étnica:
Eu é que tenho que dar educação aos meus filhos e eu é que vim presa. Não queria
nada ser este exemplo. [...] O que me custou na cadeia foi a minha família saber que
eu vim presa. É uma família muito respeitada em Cabo Verde. E depois eu sou cabo-
verdiana, represento Cabo Verde e não queria que houvesse delinquência no meu
país. Não represento bem o meu país.
24 A Iolanda mobilizou assim uma pequena parcela do agregado doméstico (o marido e o
enteado) para o tráfico. Outras reclusas viram-se antes envolvidas numa participação
acessória e menos activa nas transacções empreendidas por familiares masculinos, que
ora se caracterizavam como venda, ora como compra para consumo próprio, ou ambas.
Numa cadeia de operações onde vigora por precaução toda uma série de práticas de
segmentação, como a de primeiro se estabelecer com um cliente os termos do negócio
antes de se transportar os estupefacientes, estas reclusas funcionaram como breves
depositárias do produto no decurso de uma transacção, levada a cabo por outros. A
Maria Emília, uma cigana idosa que cumpre uma pena de três anos e meio, foi apanhada
numa rusga com várias doses de heroína que perfaziam sensivelmente 1 gr:
Não me lembrei de deitar fora, nem de fugir. Também não estava a fazer nada de
mal, não estava a vender... A droga era para uma pessoa, diz em voz baixa [Mais
tarde diria que era para o enteado, toxicodependente e entretanto hospitalizado
com SIDA e Hepatite B]. Disse ao juiz que era para mim, para o meu consumo [Um
coro de risos, meus e de duas outras reclusas participantes na conversa, ao qual a
Maria Emília se juntou: fosse qual fosse o estereótipo do consumidor de drogas que
em cada uma se evocou no momento, a Maria Emília estaria sempre nos seus
antípodas. E perante o juiz, pelos vistos, não foi mais convincente]. Primeiro,
sustentou-nos que foi para proteger o enteado: Escolhi vir presa em vez dele.
Depois, o aparente altruísmo de uma escolha revelava-se afinal medo por parte de
um agente menos autónomo, que falaria num outro momento de uma lei cigana: Um
cigano não pode descobrir outro senão matam-no. Ou então é a família dele que se
vinga mais tarde nos filhos, nos sobrinhos, e continua muito tempo assim 8.
[Caderno de campo.]
25 Com um genro também preso por tráfico, a Lavínia encontra-se por sua vez a cumprir
uma pena de seis anos de prisão por ter desempenhado, em parceria com o filho, um
papel semelhante ao da Maria Emília:
Estava numa carrinha com 5 gr de heroína enquanto o meu filho ia ter com uma
pessoa por causa da droga. Ele também era viciado. A droga era dele, mas eu
também estava a ajudar. Vim presa e depois o meu filho foi entregar-se, ele disse
que a droga era dele. Mas viemos os dois presos com a mesma pena. Ele foi para
Alcoentre, mas morreu há dois anos em Caxias, por causa da droga. A minha família
está muito revoltada com a droga, por causa do meu filho e da minha filha.
86

26 Esta cigana alentejana, há muito residente no bairro lisboeta da Musgueira, vê-se assim
regressada na sua velhice a Tires, dado que este estabelecimento figurara já como uma
das etapas que marcaram o seu percurso juvenil.
A minha mãe deixou-me a mim e aos meus irmãos quando éramos pequenos.
Puseram-me no Santo Condestável, e depois até trabalhei lá com farda, a fazer
recados. O meu pai, que Deus tem, depois foi-me lá buscar e viemos para Lisboa. Eu
andava a pedir, que era proibido, e não tinha cédula. Fui parar à Mitra. Também
tínhamos que usar uniforme, como aqui, só que era aos quadradinhos azul e branco.
E também tínhamos que usar um boné branco. Um dia eu não tinha posto o boné,
passou o guarda e fui seis meses de castigo para Tires. Foi no tempo das freiras. Vim
para cá com a minha filha bebé. A madre, até está ali na igreja uma fotografia dela,
era muito velhaca, havia muitos castigos. Estava cá aquela guarda, a D. Raquel,
agora é a filha dela que é guarda9.
27 Numa irónica simetria, a Lavínia encontra-se acompanhada neste regresso a Tires por
uma filha adulta, que então trouxera consigo quando esta ainda era bebé, e por uma
neta que, não fora achar-se aqui também na qualidade de condenada, acabaria por
reeditar uma díade da mesma ordem uma geração mais tarde. No entanto, apesar da
filha e da neta estarem envolvidas com drogas – pelo menos no seu consumo – foram
presas através de diferentes processos judiciais, em diferentes momentos e por
diferentes motivos. Mais uma vez, as redes familiares que se delineiam na prisão não
configuram necessariamente as redes familiares do tráfico, ou reproduzem
forçosamente os seus contornos:
A minha filha também foi viciada. Ia às Taipas, a tratamento, não conseguia. Depois
queria mesmo largar, mas não a atendiam em lado nenhum, tinha que esperar. Até
que ela queria mesmo sair daquilo e partiu um vidro de uma montra para vir presa,
para se vir tratar. Veio para cá porque pensavam que ela queria roubar a loja. Tem
que fazer três anos e meio, já cá eu estava nos RAVI, e assim não ficámos juntas. Ela
depois atirou-se do terceiro piso do P1 e foi a tratamento para Caxias. Agora
trabalha no jardim e conseguiu largar a droga. Os filhos dela estão com uma ama e a
Santa Casa ajuda a pagar. Outros dois estão no colégio da Santa Casa. A minha neta
também está metida na droga. Veio para cá com uma pena de um mês e meio,
porque não tinha a senha do autocarro e não tinha dinheiro para pagar a multa.
28 Se a Maria Emília e a Lavínia assessoraram, mais ou menos fortuitamente, as
actividades de tráfico dos respectivos filhos, outras reclusas assumiram também um
papel instrumental, mas desta vez no consumo de drogas por parte de familiares. A
pedido de companheiros ou filhos toxicodependentes, levaram-lhes as doses que eles
não se puderam proporcionar, impossibilitados que estavam de se reabastecerem por
circunstâncias várias, entre as quais se conta a de se encontrarem presos ou
hospitalizados. Assim, apesar de muitas destas mulheres terem sido condenadas na
categoria de «tráfico» (noutros casos a imputação foi a de «introdução de
estupefacientes em meio prisional»), esta constitui uma modalidade de evolução
conjugal ou parental nos narco-circuitos que se situa num plano relativamente distinto
das restantes.
29 Será já por demais evidente que, por muito numerosos que possam ser os parentes ou
os membros de um agregado que se movimentam nestes circuitos, raramente o tráfico
congrega todas essas pessoas numa operação concertada e num projecto colectivo, à
maneira de uma empresa familiar. Poder-se-ia mesmo transpor para a micro-escala
destes círculos de parentesco a sugestiva fórmula com que Reuter (1983) descreveu o
funcionamento de outros mercados ilegais, a saber, a de «crime desorganizado». Se os
87

laços de parentesco representam uma importante base de recrutamento de associados


no tráfico, o desenho destas associações é de geometria muito variável e não segue de
maneira estável os contornos de estruturas familiares pré-existentes, nem se
dimensiona à sua escala. Por esta razão as pequenas constelações de parentes que, por
vezes não mais do que episodicamente, se mobilizam para o tráfico são de uma
natureza distinta das famílias ou seitas que na década de oitenta dominavam de forma
quase monopolística os narco-circuitos do Casal Ventoso. Segundo Miguel Chaves
(1999a: 185), tratava-se de «organizações baseadas em concepções alargadas de família»
e «centradas em fortes lideranças masculinas», que desde os anos quarenta levavam a
cabo toda uma série de actividades ilegais – das quais o tráfico foi apenas um avatar
tardio. Estas organizações eram na verdade «redes muito complexas de parentes que
desenvolviam no seu interior sistemas de obrigações» (ibidem: 185), redes estas que
articulavam vários agregados domésticos «entre os quais se mantinham
relacionamentos intensos, prioritários e relativamente fechados» (ibidem: 188). As
evidentes ressonâncias lupollianas destas características tornam-se ainda mais nítidas
pela notável estabilidade da família-seita que, também de acordo com Chaves, podia
manter-se «intergeracionalmente como uma espécie de micro-estrutura de
oportunidades ilegais» (ibidem: 193).
30 A ascendência destas famílias sobre o tráfico no Casal Ventoso entraria, porém, em
declínio no final dos anos oitenta, para praticamente desaparecer nos anos noventa.
Este rápido eclipse, ocorrido apenas na dobra da década, é tanto mais assinalável
quanto as actividades ilegais destas organizações parentais perduraram, sem grandes
descontinuidades, ao longo de quarenta anos. O inopinado fim das famílias e as
subsequentes alterações no perfil do tráfico parecem, à partida, ter-se devido a razões
circunstanciais, que configuraram como que a sua causa próxima. Chaves (ibidem: 202)
refere assim a mega-operação policial que então conduziu à detenção de numerosos
membros, dizimando as fileiras destas organizações e, deste modo, incapacitando-as.
Certamente que esta rusga constituiu um factor preponderante – assim Chaves o
qualifica – para o crepúsculo das famílias e para aquilo a que abriu caminho: a
transformação da natureza do tráfico, que passou a desenvolver-se em circuitos mais
flexíveis e através de grupos de dimensão reduzida. Mas é também possível que o marco
histórico que esse grande evento repressivo representou apenas tenha precipitado uma
mudança inexorável e mais subterrânea na estrutura do mercado de drogas, que já não
acomodava vocações monopolísticas como as das famílias-seitas. Assim o sugere o facto
de uma das mais nítidas convergências discerníveis na grande variedade de outros
mercados portugueses – que pude entrever de maneira extensiva a partir da prisão –
ser a sua semelhança com o do Casal Ventoso pós-famílias. Comungando deste modo das
suas características sem que ao mesmo tempo tais mercados tivessem partilhado a
história específica deste bairro, é pois de aventar que a flexibilidade, a fluidez e o perfil
atomístico que o mercado do Casal Ventoso assumiu após o episódio da mega-rusga e da
consequente supressão das famílias constituísse, afinal, uma tendência inevitável e
bastante mais generalizada. As pretensões monopolísticas e o travejamento interno
pesado e centralizador de tais organizações talvez não fosse já, de qualquer modo,
viável quando o tráfico representa, como de resto sustenta aquele autor, uma estrutura
de oportunidades «extensiva» e de «larga escala», na qual puderam investir pessoas
sem qualquer curriculum na esfera ilegal:
[O tráfico] faculta oportunidades de adesão que são bastante mais alargadas que as
oportunidades de adesão a outras actividades ilegais (214). [A]deriram ao tráfico um
88

número de pessoas e de agregados muito superior ao que anteriormente tinha


estado associado a outras actividades ilegais. Pessoas e agregados esses que, na sua
maioria, nunca tinham estado associados a qualquer actividade ilegal. Por sua vez,
este vasto conjunto de intervenientes consiste numa população muito mais
heterogénea em termos de estilos de vida, de idades e de género do que a que estava
envolvida nas formas de ilegalidade anteriores (Chaves, 1999a: 197).
31 Mas o facto de o tráfico se não encontrar – ou de se não encontrar já, no caso do Casal
Ventoso – cativo de organizações familiares como as que foram referidas não significa
que os laços de parentesco deixem de ser relevantes nesta actividade. São-no na exacta
medida que tem vindo a ser descrita. Por outras palavras, não enquanto blocos pré-
constituídos que se transferem monoliticamente para o tráfico e aí enxertam uma
estrutura organizacional, mas enquanto uma base de recrutamento disponível que é
variavelmente mobilizável, por pequenos segmentos e em pequenas alianças. Do
mesmo modo, mais do que instaurarem um amplo sistema de obrigações que a todos
vincula, como o referido por Chaves a propósito das famílias, os laços de parentesco
limitam-se a proporcionar um mínimo de confiança e de lealdade necessárias a
qualquer transacção arriscada, e por isso eles são cruciais. Mas se garantem esses
requisitos, ou pelo menos confortam à partida essa expectativa, cumprem-nos em
diferentes graus no interior da parentela, assim como esta contemplará no seu seio
relações preferenciais, mais electivas. E é neste terreno, que se presta à variabilidade
das alianças, que se gerarão muitas das parcerias no tráfico.
32 O perfil destas coligações de parentes ou membros de um agregado é, nesta medida,
muito mais semelhante ao que Patricia Adler (1993: 66-67) traçou de coligações da
mesma natureza – mas desta feita num mercado californiano de topo – do que às
famílias-seitas do bairro precarizado do Casal Ventoso. Também aquela élite de
traficantes com frequência entrosava em círculos flexíveis e de dimensão reduzida
laços familiares e associações de negócios. Também neste caso, tal como em mercados
portugueses, estas associações apenas se intersectavam com o universo parental e não
estavam imperativamente encerradas nele, sendo antes unidades mais fluidas e
igualmente abertas ao recrutamento de amigos e conhecidos.
33 Os dois contextos não se assemelham, contudo, no tipo de redes sociais extrafamiliares
onde são geradas as conexões e as alianças do tráfico. Os grossistas e importadores
estudados por Adler entraram directamente neste patamar do mercado através da
imersão em círculos boémios e em redes de sociabilidade com um forte eixo recreativo
– uma sociabilidade, aliás, essencialmente noctívaga e marcada por um abundante
consumo de drogas. As redes sociais mobilizadas pelas reclusas de Tires, que evoluíam
quase na sua totalidade no mercado retalhista, são, em contraste, principalmente redes
de vizinhança. Estas redes entrelaçam-se assim nas redes de parentesco, sem que estas,
além disso, prevaleçam forçosamente sobre as primeiras em sociabilidade, confiança e
solidariedade. Muitas destas mulheres iniciaram-se no tráfico recorrendo aos préstimos
de vizinhas que, em momentos difíceis, lhes «fiam três palhinhas» para revenda (como
me contou, en passant, uma reclusa que se vira «numa aflição» financeira), tal como
noutra ocasião lhes cederam «três ovos» ou «uma chávena de sal». A Marília, uma cabo-
verdiana que trabalhava em limpezas e cujo marido não estava envolvido no tráfico,
procurou este tipo de auxílio quando foi diagnosticada a uma filha uma paralisia
cerebral, o que veio a multiplicar os encargos que já suportava:
Quando a minha filha ficou doente, aos seis meses, os tratamentos tiravam-me
muito tempo para trabalhar e não tinha dinheiro para a tratar. E eu também tinha
89

que comprar fraldas para a minha mãe que estava doente de cama. Andava tão aflita
que fui ter com uma vizinha que traficava, a ver se me podia valer com algumas
gramas. Só que agora fiquei pior, agora já não posso ajudar os meus filhos nem a
minha mãe. Tenho a minha filha comigo e os outros dois num colégio. O meu
marido trabalha longe, não pode ficar com eles [...] Aqui dentro, quando entrei, as
outras do meu bairro ajudaram-me muito, e as minhas patrícias também.
34 À Tina ocorreu-lhe uma via semelhante para ultrapassar a situação difícil que previa ser
o Natal que se aproximava, por razões expostas mais adiante:
Falei com uma amiga lá do bairro. Estava a desabafar com ela, isto tudo do Natal. Eu
sabia que os filhos dela vendiam, e pensei: «se eu vendesse três graminhas, cinco
graminhas, só até ao Natal...» Ela falou com os filhos, e foi assim. Eu só vendi quinze
dias, porque depois apareceu aquela rusga...
35 Quanto à Zulmira, começou antes por ser sondada por uma vizinha com quem não
tinha, de resto, um contacto de especial proximidade. E uma primeira relação de tráfico
que, a concretizar-se, teria sido de ordem mais «contratual», acabou, também ela, por
dar lugar a um empréstimo informal que permitiria à Zulmira lançar-se como free-
lancer:
Uma vez uma lá do bairro pediu-me para eu guardar cinco gramas. Eu peguei, e diz
ela, «Olha, toma, eu dou-te dois contos». Eu peguei naqueles cinco gramas e disse:
«Ó fulana, leva isso que eu não quero guardar» – porque eu era contra a droga. Elas
lá no bairro até tinham medo de falar comigo porque diziam que eu mandava vir a
autoridade [A Zulmira entretanto expôs-me as circunstâncias que a fizeram mudar
de ideia, relato esse que referirei abaixo]. Passaram-se uns dias, não via nada, e fui
ter com ela. E disse: «Olha, já vejo que confias em mim para guardar. Fia-me cinco
gramas.» E diz ela: «Ó mulher, fio!» E foi a castanha. Foi aí que eu comecei.
36 Estas reclusas recorreram assim a redes vicinais femininas, quer para aceder
directamente ao produto a transaccionar, quer utilizando-as como brokers para chegar
aos traficantes masculinos, como no caso da Tina. Por outro lado, que estas redes são,
com alguma autonomia, declináveis segundo o género, parece atestá-lo o pronome
usado no feminino pela Zulmira: «Elas lá no bairro até tinham medo de falar comigo...».

Um ethos hedonista?
37 Se, como vimos, a estrutura interna do mercado descrito por Adler (1993), bem como a
dimensão e o modo de composição dos seus núcleos, o aproximam destes mercados
retalhistas, um e outro afastam-se no tipo de redes extrafamiliares e, em segundo lugar,
nas condições sociais, estilos de vida e disposições dominantes que respectivamente os
enquadram. Perante a desadequação de teorias criminológicas clássicas aos traficantes
de classe média que estudou – como é o caso da proposta mertoniana de Cloward e
Ohlin (1960) e Cloward (1969), que sustenta a relação entre o ingresso no crime e o
bloqueamento da estrutura de oportunidades legais –, Adler defende, em alternativa,
uma «perspectiva existencial» (1993: 143-155) onde o gosto do risco, o prazer, a
gratificação imediata, em suma, um ethos hedonista, figuram quer como as motivações-
chave, quer como os princípios analíticos para a compreensão dessa «subcultura
desviante»:
Drug dealers and smugglers were above all motivated by hedonistic materialism.
They were commited to living the fast life. Primary to the fast life was abundant
drug consumption, generating intense pleasures. They wanted these pleasures now
and for all time, not ten years from now when their investments or pension plans
90

matured. Drug traffickers were Dionysian, disdaining the sober responsabilities of


the workaday world. They wanted the freedom to live intensely and spontaneously,
following any whim. They wanted to experience lustful and passionate sex,
unbridled by the normative bonds of marital fidelity. They wanted to feel the
excitement associated with gambling on the unexpected. [...] Profit was for
pleasure, permitting them to surround themselves with fancy clothes, jewels and
sports cars. But the huge profits also became an intense pleasure in themselves:
greed fulfilled instantaneously. [T]he dealers life was one of peak experiences,
following their emotions, indulging their impulses [...] (ibidem: 150).
38 Adler qualifica ainda a entrada neste mundo desviante como a recusa de uma sociedade
hierática e o triunfo de um núcleo de emoções basilares (o nosso «brute being», nas suas
palavras) que esta reprimiria:
[C]onventional society repressed their pleasure-seeking and routinized their
existence through its bureaucratization and impersonality, thereby fostering their
disenchantment, alienation, and inner conflict (ibidem: 155).
39 No raciocínio que aqui desemboca, a autora parece assim, por um lado, ver os «brute
beings» e as emoções que os comandam como entidades psicológicas estritamente pré-
culturais e, por outro lado, opõe de um modo igualmente excessivo hedonismo e
sociedade convencional, como se o primeiro não só não fosse atendível pela segunda, ou
como, até, não fosse uma parte constituinte que a dimensiona. Mas não se impõe,
sequer, uma discussão da perspectiva analítica adoptada por Adler para constatar quão
longínquo deste quadro é o das condições e experiências que situavam as reclusas de
Tires, tal é o fosso sociológico que desde logo os separa. O teor deste fosso pode ser
evocado pela seguinte narrativa de Maria Emília, onde aliás se afere a óbvia relatividade
das noções de riqueza e pobreza:
Agora estou numa barraca em S. Domingos. Pedimos uns restos de tijoleira com
defeito numa fábrica e um amigo do meu marido foi lá pô-la aos fins-de-semana. A
gente em troca dava almoço e jantar. É a única que tem número e está registada na
Câmara. Quando mandarem as outras abaixo não podem mandar a minha. A minha
família [refere-se aos pais e irmãos] não me vem ver, diz que eu desonrei a família.
Não querem ter nada a ver com droga, fogem logo. A minha família é rica. Eu era
rica. Têm cheques e tudo, vão ao Norte vender roupa a outros ciganos. Têm três
postos de venda, com cartão, em Carcavelos, Tires e Cascais. Mas se há ciganos com
mau ar a vender perto deles, vão-se embora e não vendem. Eu abalei nova com o
meu marido. Ele não tinha nada. Não era tigela nem meia tigela, não tinha nada. O
cigano agora quer ser rico. No pavilhão andava uma que deixou os filhos lá fora a
traficar. Ela dantes é que vendia. E eu via sacos a entrar, sacos e sacos, com boa
melancia, boa pêra, boa banana, boa carne, até frango assado, e pensava: «só a
vender roupa não conseguia.» Eu, se vendo uma camisola a 2 contos, ganho 500$00.
Mas não é tudo para comer, porque tenho de comprar mais roupa. Aquela, mesmo
que quisesse esconder a riqueza não conseguia, com aqueles sacos todos a entrar
pela visita. A gente não consegue esconder o dinheiro. Eles agora querem móveis,
candeeiros... Eu sou pobre mas não apanho [não aceito] nada de ninguém. Se tiver
uma cebola, corto metade e faço refogado mesmo. Com a outra metade faço sopa. Se
tiver coentros, também faço uma refeição. Mas a gente aqui tem que comprar, ir ao
supermercado e comprar, e se não tiver dinheiro paga na outra semana. Os ciganos
do Norte vão às quintas, apanham fruta e pegam. Aqui é no supermercado.
40 A medida de descapitalização de um universo sociológico análogo pode ser ainda dada
por um pequeno episódio protagonizado por uma outra reclusa condenada por tráfico,
para quem atender o telefone quase se revelou um ansiogénico choque cultural. Daqui
se pode ainda evidentemente inferir que as operações de tráfico que terá levado a cabo
não seriam muito sofisticadas:
91

Conversava com um grupo de reclusas em redor de uma mesa, enquanto dobravam


envelopes. De súbito toca o telefone e uma guarda manda uma das reclusas atender.
Primeiro paralisada, irrompe, depois, muito corada, num riso nervoso. Que não, que
nunca tinha atendido o telefone na vida. A guarda insistia, o telefone tocava, ela
levava as mãos à cabeça, todas se riam – não dela, mas com ela –, uma comoção.
Ofegante, lá atendeu. Era para a guarda. Enquanto todas a felicitavam, levava a mão
ao peito e repetia: «Ai meu Deus, que aflição!». [Caderno de campo.]
41 «Viver intensa e espontaneamente», condimentando tal hedonismo com a radicalidade
dos prazeres do risco, não parece constar do programa de vida da Zulmira, nem das
aspirações que de mais perto balizaram o seu trajecto em direcção ao tráfico. Por outro
lado, é menos provável que este se lhe tenha perfilado como uma via de saída de uma
«existência rotinizada» do que, precisamente, uma entrada nela. Tal como sucede com
muitas outras reclusas, os sobressaltos que pontuam uma existência vivida no curto
prazo do cumprimento da sobrevivência estão longe de fazer dela uma experiência
monótona e, nesse sentido, «alienante». Antes de tudo, o tráfico inscreve-se justamente
na tentativa – afinal, quase sempre inglória – de estabilizá-la e de consolidar alguns
alicerces materiais.
O meu Zé [de 16 anos] já fugiu outra vez da tutoria e não quer trabalhar. Tenho
outra lá em casa que ainda não trabalha e anda com a cabeça no ar. Os outros
andam nuns biscates de trolha. É só a minha filha que trabalha num restaurante. 52
contos para um mar de gente, não dá para nada. O meu marido [agora preso] está
muito acabado. Ele também só quer saber da pinga. Era um homem de vinho.
Trabalhava numa boîte da Ribeira. Ganhava o dia às gorjetas, de abrir e fechar os
carros. Tinha dias que nem ao trabalho aparecia, estava p’ra lá perdido de bêbedo. E
eu tinha aqueles filhos todos, era muita gente a comer. E tudo solteirão, ainda lá
dentro às costas. Eu queria gás, já tinha que ir buscar àquelas máquinas de petróleo.
Eles queriam comer, isto era a maior miséria do mundo. Virava-me para o lado, não
tinha dinheiro para nada. «Não há pão? Eu vou buscar, tende calma». Passavam-se
horas nisto. Isto era assim. Eu tinha um filho preso [por furto] em Braga. Queria ir à
visita duas vezes por semana e era muito caro. Menina, do Porto a Braga... Vendi
tudo o que podia vender da minha casa, que não prestava para nada.
42 Foi nesta conjuntura que a Zulmira decidiu utilizar o contacto de uma outra traficante
que já antes a abordara sem sucesso. A carreira no tráfico limitou-se a dois meses, após
os quais foi presa. Parte substancial dos lucros foi aplicada no tratamento de um filho
heroinómano. Os restantes escoaram-se nalgumas melhorias na casa, mas não
catapultaram a Zulmira para uma ordem de consumo qualitativamente diversa. Tanto
assim é que as aquisições feitas se circunscreveram ao mercado de artigos em segunda
mão, subordinando-se portanto a estratégias de poupança e inserindo-se, em toda a
continuidade, em anteriores hábitos de consumo. Ressalva-se uma «extravagância»
que, apesar de também ela adquirida nos circuitos de usados, confere a este quadro
uma vaga reverberação «hedonista»;
A primeira coisa que fiz com o dinheiro foi tratar o meu filho. Pego nele e meto-o
numa clínica. Tratei-o. 120 contos menina. Estava gordo, bonito... Depois com o que
sobrou comprei uma mobília de sala em segunda mão. Era de S. Vicente de Paulo,
destas coisas para os pobres. Comprei por 6 contos. E comprei duas camas de abrir e
fechar, chamam-se divãs, não sei se sabe, para o quarto dos meus filhos. Pus uma
em cada quarto. As minhas camas estavam metidas com uma coisa de pedra a
segurar. E comprei uma mesa e três cadeiras para a cozinha porque tinha uma que
já estava amarrada com umas cordas e nem me podia sentar. Ai meu Deus, parece
que tinha o diabo dentro de mim. [...] Eu com o lucro da droga ainda fiquei a dever
dinheiro ao Palácio da Justiça. Fizeram-me uma penhora e levaram-me o aparelho.
– O aparelho?
92

– Destes de pôr as cassetes. Comprei-o na feira da Vandôma por 3 contos. Tocava


bem...
43 A entrada da Tina no tráfico inseriu-se de igual modo na continuidade do seu estilo de
vida, permitindo primeiro que tudo reproduzi-lo quando alguns imponderáveis o
puseram em causa. Esses imponderáveis traduziram, de resto, a instabilidade das
condições de existência (neste caso, a precaridade do trabalho). Mais uma vez não se
trata, portanto, de renegar a estabilidade e a rotina e de vislumbrar no tráfico a porta
de acesso a um estilo de vida alternativo, como Adler concluiu para o seu contexto
etnográfico:
It is precisely the rationalism of conventional society that has driven upper-level
dealers and smugglers away from it, toward the hedonism and irrationality of their
deviant sub-culture. [...] The dealing sub-culture is not a mirror of society, but a
radically different alternative which serves as an escape from routinization and
repression (ibidem: 155).
44 A Tina, além disso, não desdenhou as suas «sóbrias responsabilidades» – para utilizar a
formulação de Adler –, não só no trabalho, mas principalmente familiares e domésticas,
sendo justamente no quadro destas responsabilidades que ela inscreve a sua iniciação
no tráfico. Tais responsabilidades ganham aliás aos seus olhos um outro peso, já que ela
projecta nos filhos o seu próprio passado. Ironicamente, é este mesmo passado que a
reclusão de Tina acaba, de algum modo, por reeditar:
Ainda à espera de julgamento, a Tina está há dezoito meses sem ver os filhos. Os
mais velhos (10 e 8 anos) ficaram com uma vizinha e depois foram para um
«colégio» (uma instituição de solidariedade social). O de 4 anos tinha ficado à
guarda de uma cunhada, mas esta ainda não sabia que seria por muito tempo e
entregou-o à assistente social da área, que, por sua vez, o encaminhou para uma
família de acolhimento. A técnica da cadeia ainda não localizou esta família. A Tina
vive atormentada por não conseguir contactar com os filhos. Cada vez que a vejo,
são os filhos que vêm à baila, e cada vez que toca no assunto, a voz embarga-se e os
olhos marejam-se de lágrimas. Hoje, abriu-se. [Caderno de campo.]
O meu marido diz que os meus filhos estão bem, mas não sei. Sou filha de pai incógnito, a
minha mãe abandonou-me. Estive com uma avó até aos 6 anos e depois fui para um colégio.
Sofri muito, levei muita porrada, e jurei que os meus filhos nunca iam passar aquilo que eu
passei. E agora... Por isso é que me dizem que eles estão bem, mas eu sei o que é, e não
acredito. Eu fiz tudo para nunca os deixar. Nunca me separei deles. Trabalhava a vender
hortaliças, mas depois queria ficar mais perto deles e fui trabalhar para um restaurante lá
perto. Trabalhei lá muito tempo e queria ter a Caixa. Então fui ter com o patrão a pedir os
meus direitos. Ele mandou-me embora e nem me pagou o ordenado. Eu ainda queria pô-lo em
tribunal, mas disseram-me que ainda me ia custar mais dinheiro e desisti. O meu marido
ganha o ordenado mínimo. É motorista de supermercado. Mas só recebe o ordenado no mês a
seguir, entre o dia 7 e o dia 12. O Natal estava a chegar, eu estava desempregada, e o meu
marido disse-me que não ia ter o 13.º mês. Eu queria fazer o Natal como deve ser e não tinha
dinheiro. Era para o Natal. Queria comprar roupa para a canalha, o de 8 anos ia para a
escola e não tinha nada que lhe servisse. Queria dar um Natal aos meus filhos... [Relembro
que a carreira ilegal da Tina foi curta, uma vez que foi detida quinze dias depois de
se estrear nela].
45 Em balanço, vemos assim que as condições estruturais, disposições e experiências
destas traficantes em Tires as situam nos antípodas dos seus homólogos californianos,
enquanto a organização dos respectivos mercados se afigura, em contrapartida,
convergente.
93

A estrutura dos mercados retalhistas e o tráfico como


oportunidade ilegal para as mulheres
46 Prosseguindo o percurso comparativo que permite discernir algumas propriedades
específicas destes contextos de tráfico portugueses, há que confrontá-los agora com
outros que se situam, como eles, nos baixos patamares do mercado. Como já o indica a
extrema fluidez, desconcentração e fraca hierarquização que caracterizavam o mercado
médio-alto descrito por Adler, o grau de organização dos mercados de drogas não
depende do nível em que operam.
47 Na abundante literatura que dá conta da diversidade de modalidades de organização
dos níveis retalhistas norte-americanos encontram-se vários exemplos de mercados
com uma estrutura bastante mais rígida. Johnson, Hamid e Sanabria (1992) delinearam
aquela que se tornaria uma tipologia de referência neste campo de estudos. Nela
figuram dois grandes modelos de distribuição de crack: o free-lance e o empresarial (
«business model»). No primeiro, que favorece a variação de preços no mercado, os
intervenientes no tráfico aliam-se episodicamente para uma determinada operação,
sem que haja a expectativa de uma cooperação a longo prazo. Um mesmo traficante
pode ir colaborando com diferentes parceiros, negociando a cada momento os termos
da transacção. Nestas parcerias, que poderão envolver os papéis intermutáveis de
revendedor e pequeno fornecedor, não há, assim, nítidas relações patrão-empregado
(ibidem: 60-62). Embora neste modelo sejam também recrutados, na mesma base
casuística, assistentes no tráfico como vigias, guarda-costas, solicitadores de clientes,
mensageiros e depositários de droga/dinheiro, tais papéis são mais correntes no
modelo empresarial. Sobretudo, todos estes personagens encontram-se agora reunidos
organicamente em largas equipas fixas, internamente hierarquizadas e com um forte
dispositivo de supervisão e controlo, do qual fazem parte, por exemplo, gerentes e
«capatazes». Aos membros da equipa são explicitadas regras de conduta, distribuídas
tarefas, turnos, áreas de venda, e está-lhes vedada qualquer discricionaridade na
fixação dos preços de venda ao público (ibidem: 62-63). Ansley Hamid (1998)
proporciona uma ilustração detalhada destes modelos de distribuição de crack em
bairros nova-iorquinos na década de 80, bem como dos seus efeitos respectivos. O
instável, pouco regulado e competitivo mercado free-lance prestava-se à violência. Num
outro bairro, com um mercado de tipo «empresarial», ela era porém bem mais
sistemática, sendo usada como método para assegurar a disciplina interna por parte de
cada uma das quatro equipas que aí controlavam o mercado. Note-se, contudo, que a
existência de um número reduzido de equipas não faz de cada uma delas mega-
organizações e muito menos organizações monopolistas, uma vez que operam, em
competição, num mesmo terreno. Assim, neste aspecto a perspectiva de Reuter (1985)
sobre os mercados ilegais permanece válida; mas o mesmo não se poderá dizer da
completa ausência de estrutura que parece decorrer da sua perspectiva sobre um
mercado de droga onde apenas figuram traficantes independentes e solitários (Reuter,
1990).
48 Quando Johnson et al (1992) elaboraram aquela tipologia, que se referia a modalidades
de tráfico contemporâneas entre si, notavam já que o modelo empresarial parecia em
expansão nos bairros urbanos. Mais tarde, este prognóstico confirmar-se-ia. No virar da
década de 80 para a de 90, o sistema de distribuição de crack formatava-se, de facto, por
esta modalidade mais estruturada – um facto que Maher (1997: 85) atribui à
94

estabilização da procura e ao aumento da competição. Este sistema passaria, desta


forma, a convergir com a organização dos mercados de heroína, desde sempre
dominados, nos EUA, pelo modelo empresarial (ver Fagan e Chin, 1989; Hamid, 1990;
Mieczkowski, 1986). Note-se que, antes desta maior uniformização da estrutura dos
mercados em detrimento do modelo free-lance , Adler (1993) aproximara as
características organizacionais do tráfico de topo das que recenseara no baixo patamar,
vendo em ambos uma fluidez semelhante. Todavia, mesmo referindo-se em exclusivo à
versão menos estruturada do tráfico retalhista – então dominante – concluíra que na
comparação este lhe surgira «ligeiramente mais organizado» do que o tráfico grossista
por si estudado (ibidem: 192). Os dois modelos desta tipologia parecem corresponder aos
dois tipos de narco-mercado que Ruggiero e South destrinçaram no contexto europeu,
designando-os respectivamente por «crime em associação» e «crime em organização»:
We define the former model as implying a horizontal structure, characterized by
individual and group entrepreneuriality in a nonhierarchical market. [T]he division
of labour is here «technical». «Crime in organization» on the other hand, is
characterized by a vertical structure; its industrial and corporate style of
conducting business implies the exchange of «criminal labour» for payment (in
money or drugs) – a wage relationship is created. [T]his division of labour is of a
social nature (1995: 195).
49 Ora, ainda que um e outro modelo coexistam, também estes autores notariam, em
mercados europeus, uma mutação da mesma ordem daquela que referi para os EUA –
mutação essa que corresponderia de igual modo à passagem dos anos 80 para os anos 90
(ibidem: 195-198) –, pela qual uma criminalidade basicamente difusa e oportunista
tenderia a assumir formas mais estruturadas e com um carácter organizacional, embora
globalmente não monopolista (ibidem: 10).
50 Numa etnografia recente, Maher (1997) traça precisamente o perfil de um mercado de
feição empresarial, a feição que, relembro, se tornou também dominante na década de
90 em contextos americanos. Ancorado num bairro degradado nova-iorquino, este
mercado está longe de constituir no seu seio uma estrutura de oportunidades equitativa
e portanto uniformemente apropriável pelos baixos segmentos sociais aí residentes. Na
verdade, trata-se de um mercado altamente estratificado, não tanto em função de
categorias de classe – neste aspecto o bairro é internamente pouco diferenciado – mas
em função de categorias de «raça»/etnicidade e de género. E esta forte estratificação
terá por sua vez implicações no tipo de redes de parentesco e vizinhança mobilizadas,
como em contextos portugueses, na economia da droga.
51 Quanto à composição étnica, o bairro em questão congrega na maioria latino-
americanos, sendo, deste ponto de vista, relativamente homogéneo. Quem controla o
sistema local de distribuição de crack são, todavia, os latinos de ascendência
dominicana, sucessores dos porto-riquenhos, que ocupavam em décadas anteriores as
posições dominantes. Nas equipas do tráfico estes passaram a ser relegados para as
tarefas mais mal pagas e arriscadas, mas ainda assim representam, neste escalão
hierárquico, uma força de trabalho menos preterida face a não-latinos, cujas
oportunidades de recrutamento e ascensão são menores (ibidem: 179). Ora, a
importância dos laços familiares e vicinais na economia da droga acaba por repercutir
esta estratificação étnica. De facto, as redes que se articulam para o tráfico a partir
destes laços serão mais proeminentes entre dominicanos, que o controlam, embora
possam secundariamente integrar membros de outras categorias, seguindo grosso modo
o alinhamento étnico que referi.
95

52 Mas as redes parentais de tráfico são não só, antes de tudo, de forte componente
dominicana como são, em segundo lugar, masculinas. Se as latinas, e principalmente as
dominicanas, estariam à partida melhor posicionadas para beneficiar do recorte étnico
desta estrutura de oportunidades do que as mulheres de outras categorias «raciais»/
étnicas que frequentam o bairro, também elas se vêem excluídas, por duas ordens de
razões. A primeira diz respeito à violência endémica que enquadra estes mercados de
crack, já exemplarmente descrita por Philippe Bourgois (1995) que, a seu propósito, fala
de uma «cultura de terror». Para além de ser usada como meio de punição de
prevaricadores, a violência é regularmente demonstrada como meio de construir e
manter uma reputação dissuasiva de eventuais prevaricações. Ora, por muito que as
mulheres envolvidas na esfera ilegal adoptem posturas e retóricas agressivas – uma
estratégica persona de rua que, de resto, crêem melhor protegê-las da vitimização –,
esta performance não é suficiente para persuadir os empregadores desta economia, para
quem as necessárias capacidades de «dureza» física e mental são atributos
intrinsecamente masculinos (ver também, a este propósito, Waterston, 1993). Se os
requisitos exigidos na economia da droga contribuem assim para reproduzir a
masculinidade hegemónica e actualizar o «sexismo do submundo» – para utilizar a
expressão de Steffensmeier e Terry (1986) –, por outro lado as definições culturais
locais dos papéis de género confinam com maior rigor as latinas à tradicional esfera
doméstica e aos papéis de mãe, esposa ou filha (Maher, 1997: 180-181). Por isso, o
mesmo nepotismo que promove, no caso dos homens (latinos), o ingresso e a ascensão
no tráfico funciona, ao invés, para as mulheres (latinas e não latinas) como uma
barreira à entrada.
53 Dada a organização simultaneamente sexuada e etnicizada do tráfico, as mulheres
acantonam-se na sua periferia. Na limitada medida em que nele podem participar
(nomeadamente enquanto exército de reserva usado quando a mão-de-obra masculina
escasseia ou na iminência do risco de uma intervenção policial), assumem funções
marginais como publicitação de drogas, aluguer ou venda de parafernália acessória ao
consumo (seringas, cachimbos), assistência na administração de drogas a terceiros,
prestação de serviços variados nas casas de crack (ver ainda Maher e Daly, 1996). Deste
modo criam nesta economia nichos que correspondem a novos papéis, especificamente
femininos, e que não se encontravam inventariados em anteriores tipologias (ver
Dunlap, Johnson e Maher, 1997). As mulheres que aí ingressam na esfera ilegal são na
quase totalidade consumidoras de drogas – como aliás sucede, em geral, com
praticamente todos os intervenientes nos mercados retalhistas americanos (Fagan,
1994; Fagan e Chin, 1989). Mas, ao contrário do que sucede com os seus homólogos
masculinos, é apenas nos interstícios da economia da droga que elas geram
rendimentos para financiarem o consumo – à excepção da prostitutição, uma fonte de
rendimento precarizada pelo aumento da competição no mercado sexual, saturado por
noviças toxicodependentes (Maher, 1997).
54 Estes dados conduziram assim a uma reavaliação, mais fina, do tráfico enquanto
estrutura de oportunidades ilegais em contextos americanos. Foi com o advento do
crack, na década de 80, que estas oportunidades se expandiram de forma inaudita ao
nível retalhista, já que as redes pré-existentes, centradas principalmente no mercado
de heroína, não estavam aptas a dar resposta ao aumento exponencial da procura da
nova substância. Esta mudança coincidiu, aliás, com um período de aguda precarização
de certos bairros urbanos predominantemente habitados por minorias étnicas (Fagan,
96

1994), para quem esta nova modalidade da economia da droga passava a representar
um acesso mais democratizado ao «emprego» (Williams, 1992). Deste ponto de vista,
Bourgois (1989: 630) descreve mesmo esta economia como a estrutura de emprego onde
vigoraria por excelência a «igualdade de oportunidades».
55 Muitos autores viram também nela incluídas, enfim, as mulheres. Na anterior economia
da heroína, de dominação masculina, de pequena amplitude e mais estável, as incursões
das mulheres no tráfico eram limitadas, mediadas por homens – de quem eram meras
adjuntas e, além disso, no quadro de parcerias amorosas –, e por isso era sobretudo a
prostituição que gerava os rendimentos ilegais com os quais muitas toxicodependentes
financiavam o consumo (Rosenbaum, 1981). A efervescente e proliferante economia do
crack parecia proporcionar agora às mulheres novas formas de participação nos
mercados ilegais, mais autónomas e não modeladas pelos papéis de género, como
sustenta Fagan (1994), criando ao mesmo tempo opções económicas que lhes
permitiriam evitar o recurso a outros tipos de actividades ilegais, como a prostituição
(Sommers, Baskin e Fagan, 1996; Taylor, 1993). Para além da expansão vertiginosa do
mercado de droga, outras razões foram apontadas para o suposto aumento da
participação feminina no tráfico: o declínio da ascendência masculina, dada a
diminuição da dimensão das anteriores redes, de onde muitos homens foram evacuados
pela repressão policial (Baskin, Sommers e Fagan, 1993; Mieczkowski, 1994); uma
genérica emancipação feminina, que se reflectiria também nestes contextos, tese
defendida por Bourgois e Dunlap (1993) e Bourgois (1989) – embora este mesmo autor a
relativize substancialmente mais tarde (1995); outros autores (e. g. Wilson, 1993), vendo
também promover-se no tráfico a igualdade de oportunidades, explicam ao invés a
maior participação das mulheres nesta economia pela sua própria domesticidade e
pelas responsabilidades maternais que lhes restringem a mobilidade (em suma, pelos
clássicos padrões de género que, outrora, as teriam mantido arredadas da esfera
criminal): uma casa, um telefone proporcionariam uma retaguarda especialmente
adequada para a condução dos negócios por parte dos voláteis traficantes masculinos, a
quem, assim, elas seriam mais facilmente associáveis nos empreendimentos ilegais.
56 Todavia, se parece ser consensual que se abriram oportunidades ilegais e que passou a
haver uma maior presença de mulheres no tráfico, as posições divergem quanto à
natureza dessas oportunidades. Como argumenta Maher (1997: 18), «actividade» não
pode ser tomada por «igualdade», do mesmo modo que «presença» não é sinónimo de
«participação»10. Por exemplo, a tese segundo a qual a «feminina» esfera doméstica se
prestaria à sua absorção pela economia ilegal não permite atestar, a partir daí, da
existência de associações paritárias – como é amplamente constatável nas etnografias
de Fleisher (1995) e de Bourgois (1995), onde a casa das parceiras afectivas aparece
como meramente instrumental a negócios masculinos (quando não se resume a
providenciar o «repouso do guerreiro»), mais do que a sede de um empreendimento
conjunto. De facto, em primeiro lugar a maioria das oportunidades para as mulheres
surgiu nos patamares mais baixos, precários e arriscados do mercado retalhista, onde
prevaleceu uma hegemonia masculina que impermeabilizava as organizações do tráfico
a quaisquer veleidades «emancipatórias». Como o documentou o acima referido
trabalho de Maher (1997; ver também Maher e Curtis, 1994, e Maher e Daly, 1996), o
muito estruturado mercado de crack apresentava uma vincada estratificação por
género, bem como por «raça»/etnicidade, além do que as redes parentais masculinas
que o dominavam fecharam as brechas por onde antes, no mercado de heroína,
entravam incidentalmente amigas e namoradas dos pequenos distribuidores. Donde,
97

onde uns autores viram mudança na participação feminina no tráfico, outros viram
continuidade.
57 Porém, e em segundo lugar, esta divergência analítica pode não dever-se apenas ao
facto de uns terem podido tomar a nuvem por Juno, mas decorrer também da própria
divergência entre os respectivos materiais empíricos, que envolvem diferentes
estruturas de mercado. Assim, alguns autores inventariaram, de facto, um leque mais
amplo de papéis femininos no patamar retalhista da economia da droga, entre os quais
se discernem posições bem menos subordinadas e experiências bem mais sucedidas e
lucrativas do que as reportadas por Maher (1997). É o que relatam, por exemplo, Bruce
Jacobs e Jody Miller (1998) para um mercado de crack em St. Louis, Missouri, e Patricia
Morgan e Jaren Joe (1997) para dois mercados californianos e um hawaiano de
metanfetaminas. Sucede que todos estes mercados são de feição free-lance, ou seja,
fluidos, descentralizados, com pouca ou nenhuma interdependência hierárquica e fraca
divisão funcional do trabalho. E mesmo que possam, também eles, pautar-se por uma
forte dominação masculina e pelo aparato de um ethos agressivo que, à partida, os
configura como arenas desfavoráveis às mulheres (como é o caso do contexto de St.
Louis), a própria estrutura free-lance destes mercados faz com que as barreiras à entrada
destas no que seria uma coutada masculina sejam mais frágeis, ineficientes e, portanto,
mais permeáveis. Há, assim, maior latitude para as investidas das mulheres no tráfico,
bem como maior autonomia nas decisões que tomam sobre «onde, quando e como
vender» (Jacobs e Miller, 1998: 563).

Mulheres e tráfico: o caso português


58 Ora, enquanto nos EUA o modelo free-lance dos mercados retalhistas tende, desde os
anos 90, a ceder lugar ao modelo empresarial, em contrapartida é o modelo mais
flexível (free-lance) que prevalece nos mercados portugueses – quando não se dá o caso
de ter ocorrido precisamente a evolução inversa, como parece ter sucedido na história
do tráfico no Casal Ventoso. Muitas das reclusas de Tires, provenientes de vários
mercados, em diversos pontos do país, puderam, com uma relativa facilidade, lançar-se
autonomamente no tráfico enquanto free-lancers, com frequência obtendo drogas em
regime de empréstimo ou à consignação através de redes de vizinhança, e preparando
elas próprias o produto para venda (desdobrando-o com substâncias inertes e/ou
pesando-o, dividindo-o em doses individuais e embalando-o). Outras reclusas, como
vimos, assessoraram episodicamente familiares masculinos, não enquanto assalariadas
de uma rígida organização que estes chefiariam, mas enquanto um dos elos das
múltiplas coligações informais que eles próprios podem, também, estabelecer na
modalidade free-lance.
59 Se é difícil determinar, a partir da prisão, até que ponto estamos perante uma estrutura
de oportunidades «igualitária», ela é certamente menos estratificada em função do
género (tal como em função da «raça»/etnicidade, um ponto a tratar num outro
capítulo) e mais inclusiva das mulheres do que em contextos americanos. Assim sucede
não só dada a estrutura dos mercados nos EUA mas também ao ethos sexuado que os
enforma. Comparativamente menos violentos, os mercados portugueses não parecem
exigir aos aspirantes a traficantes os especiais atributos viris e as conspícuas paradas de
agressividade que, além de constituirem condições sine qua non de ingresso para os
candidatos americanos, acarretam aí uma maior exposição das mulheres à violência. É
98

certo que várias reclusas mais novas não adoptam já a discrição das suas mães e
cultivam uma persona dura, desafiadora e fanfarrona. Mas esta postura destina-se
menos a anunciar o potencial de violência perante congéneres e suas ameaças do que a
exibir uma valentia genérica, uma «fibra moral» à prova do confronto com a lei e
perante não-«desviantes» – por exemplo, alardeando a resistência à delação – o que,
evidentemente, não deixa de enviar ao mundo do tráfico a devida mensagem de
coragem. Por outro lado, se muitas das reclusas foram regularmente brutalizadas por
homens ao longo da sua vida, foram vitimizadas no espaço doméstico, no contexto das
relações conjugais e parentais; não enquanto participantes no espaço público, e muito
menos no contexto das relações «profissionais» da economia ilegal. Não se trata assim
de escamotear aqui as estruturas de dominação que as afectam, mas apenas de sugerir
que estas se modulam segundo os contextos, pelo que não basta enunciá-las
genericamente, como por vezes ocorre com alguma literatura criminológica feminista 11.
60 Segue-se que estas reclusas estão longe de se verem confinadas, quer prática, quer
ideologicamente, à esfera familiar e doméstica. Recorde-se, a este propósito, a queda de
31 pontos percentuais na categoria «doméstica» que ocorreu na população do
estabelecimento no intervalo de uma década, uma queda que reflectiria, aliás, o
nivelamento por baixo da condição social desta população, cujas origens eram outrora
mais diversas e absorviam ainda, nessa altura, áreas próximas da pequena burguesia
(supra: 64-67). Como outras mulheres de baixos estratos sociais, as actuais reclusas
sempre investiram na esfera do trabalho, não enquanto opção «emancipatória» ou
«resistência contra-hegemónica», mas como condição e estratégia de sobrevivência.
Nas classes populares as definições culturais dos papéis de género também remetem
para as mulheres as responsabilidades familiares e domésticas 12. Contudo, não lhes
vedam o papel extradoméstico de providenciadora de recursos, nem este é
necessariamente representado como um desvio ao script feminino ou como um fracasso
masculino, diversamente do que sucede nos contextos americanos atrás descritos 13.
Veja-se a «cultura social do trabalho» referida por Joan Pujadas para meios populares
urbanos portugueses, marcada pela «ideia da permanente disponibilidade para o
trabalho por parte de todos os membros do grupo doméstico» (1994: 15-17). E veja-se
ainda a este propósito a construção cultural das mulheres em Vila Chã como
trabalhadeiras, onde a capacidade feminina para o trabalho é positivamente valorada na
ideologia de género desta comunidade piscatória e onde vigora mesmo um ideal
paritário na reprodução económica do agregado doméstico (Cole, 1991: 77-107). Diga-se
que este ideal paritário é encarado por Sally Cole como um elemento cultural de
«resistência contra-hegemónica» e, por conseguinte, como uma estratégia positiva de
demarcação dos valores de género dominantes. No entanto, ainda que, como defende
James Scott (1985), a noção de resistência possa ser entendida de outra forma que não
acção colectiva e formalmente organizada, partilho inteiramente da crítica avançada
por João de Pina Cabral à perspectiva daquela autora:
O facto de existirem recorrências nas formas de autojustificação que estas mulheres
estigmatizadas produzem não pode ser concebido na mesma linha das
reivindicações dos movimentos feministas politizados que fizeram um corte crítico
com o discurso hegemónico. Pelo contrário, a existência de formas recorrentes de
autojustificação, tanto quanto as práticas sociais que estão ligadas à gestão da vida
familiar num contexto de matrifocalidade resultante da incapacidade por parte dos
homens de estabelecerem a sua autoridade doméstica, devem ser vistas como
estratégias negativas – formas de responder ao discurso hegemónico num contexto
99

sócio-cultural em que se torna impossível realizar as expectativas criadas pelos


valores hegemónicos (2000: 888).
61 Lateralmente tal sugere-me também, e mutatis mutandis, uma reflexão de Judith Okely a
propósito de um outro contexto:
A focus, thought necessary at the time, on women as active subjects rather than as
passive objects conflates lack of subservience with absence of subordination, a
conflation that is still apparent in some recent anthropological discussions of
gender relations [...]. The danger is that the Western observer, imbued with an
ideology which associates the feminine with passivity, is so astonished at finding
individual women elsewhere to be self-possessed that she or he confuses individual
agency with Western notions of freedom and equality (1996: 211).
62 Voltando a Vila Chã, já no caso dos agricultores vizinhos a intersecção das variáveis
género e classe pode configurar um hiato entre relações de género reais e ideais: o
papel de dona de casa, só acessível às mulheres mais abastadas, vai de par com um alto
estatuto, pelo que o trabalho feminino é apenas signo de uma baixa condição
económica (Cole, 1991). Um outro hiato, desta feita no registo do poder e da autoridade,
foi de resto referido por João de Pina Cabral a propósito de camponeses do Alto Minho,
onde é manifesta a tensão entre o papel masculino de cabeça de casal e o poder que as
mulheres, de facto, demonstram (1989: 114-115); este mesmo hiato entre um «poder
doado» (reconhecido nos homens) e um «poder da prática» (exercido pelas mulheres)
seria constatado nestes termos em classes populares urbanas por Ana Nunes de
Almeida (1985; 1986). Chaves menciona por seu turno a instabilidade de rendimentos
que afecta muitos homens do Casal Ventoso, considerando que:
[A] privação do papel do homem do interior do agregado, dado não assegurar os
três níveis de participação (orçamental, organizacional e relacional) é, porventura,
a principal causa para se registar uma tendência para a matrifocalidade no interior
do Casal Ventoso (1999a: 160).
63 É de salientar que esta contribuição feminina para o orçamento familiar tem lugar,
aliás, num país em que as diferenças entre a força de trabalho masculina e feminina são
das mais ténues entre as registadas noutros países da União Europeia, quer no que diz
respeito às taxas de actividade económica, quer quanto aos índices de segregação
sexual na estrutura de emprego (Ferreira, 1993: 233-257; ver também Estanque e
Mendes, 1997: 76-79)14. Uma global debilidade económica, a pluriactividade e a
multiplicidade das fontes de rendimento – concorrendo as duas últimas para «a
impureza dos mecanismos de formação de rendimentos e das classes sociais» (Ferreira,
1993: 247) – são algumas das condições estruturais da sociedade portuguesa que
contribuem para uma maior flexibilidade da divisão sexual do trabalho, bem como:
A incerteza ligada à própria existência, que força os agregados familiares a serem
extremamente flexíveis em ordem à sobrevivência; o sistema de produção do
agregado familiar, no qual os membros colaboram para desempenharem tarefas,
adaptando a sua oferta de trabalho às múltiplas necessidades económicas e às
oportunidades disponíveis do mercado (ibidem: 247).
64 Assim, continuando na escala nacional, independentemente de nas representações
hegemónicas poder ser masculino o papel de «provedor da subsistência da família», a
autora conclui:
[A]s condições materiais impõem soluções que não estão em plena consonância com
este modelo e com as quais as pessoas convivem com maior ou menor conflito,
consoante o contexto social em que se insiram e o grau de desvio que elas nele
representem (ibidem: 248).
100

65 Ora, a extracção social e os contextos de onde provêm as reclusas de Tires configuram,


por maioria de razão, um quadro em que o mundo do trabalho remunerado não é, para
as mulheres, uma anomalia. Tal como o não é, na esfera ilegal, a sua participação no
tráfico. De facto, o tráfico parece representar uma real estrutura de oportunidades
ilegais para as mulheres, quer por força da organização predominantemente free-lance
do mercado retalhista, quer pela virtual ausência das barreiras ideológicas ao ingresso
feminino que estratificaram fortemente, segundo o género, mercados americanos
homólogos15. Como vimos, estas barreiras decorriam não só das noções de género que
remetiam as mulheres para a esfera doméstica, como daquelas que atribuíam apenas
aos homens as capacidades de violência localmente estimadas necessárias para aceder
ao mundo do tráfico. Ora, também estes requisitos «masculinos» com que aí se
compunha a persona pública do traficante parecem ser menos cruciais nos mercados
portugueses. Referindo-se ao facto de ter sido com o tráfico que ganharam expressão
«situações em que as actividades ilegais se estabelecem numa base matrifocal», Chaves
alega que «tal se deve ao facto desta actividade [o tráfico] se centrar muito no foro
doméstico e em relações comerciais estratégicas e não tanto na construção de uma
fachada na rua» (1999a: 198). Pelo percurso que empreendemos por outros mercados,
onde a «fachada de rua» é capital, há na verdade que relativizar esta afirmação do
autor, menos válida para o tráfico em absoluto – cujas características não são
essencializáveis e dadas fora dos contextos históricos e geográficos em que se
desenvolve – do que para as suas versões nacionais. O mesmo se aplica à asserção
seguinte, que, uma vez devidamente limitada ao contexto português, permitirá por
outro lado esclarecer as razões do marcado envelhecimento registado na estrutura
etária das populações prisionais de Tires entre 1987 e 1997, um envelhecimento
intrinsecamente ligado às transformações do seu perfil criminal, hoje maciçamente
uniformizado pelo tráfico (ver supra: 71-73):
Enquanto estrutura de oportunidades, o tráfico é extensivo, ou seja, ele faculta
oportunidades de adesão que são bastante mais alargadas que as oportunidades de
adesão a outras actividades ilegais. Tal acontece, em primeiro lugar, porque se trata
de uma actividade doméstica e, em segundo lugar, porque não envolve riscos tão
constantes nem solicita tanta força física como, por exemplo, o roubo. Nesse sentido
pode ser desenvolvida por pessoas que habitualmente não desenvolviam outras
actividades ilegais como, por exemplo, as mulheres e os idosos (Chaves, 1999a: 214).
66 Deparei-me, de facto, com várias reclusas que se iniciaram no tráfico em idades
maduras. A mais bem sucedida de entre elas é a Mirita, uma afagadora reformada que
negociava a níveis mais altos do mercado retalhista e que conseguiu permanecer quatro
meses nesta nova actividade antes de ser detectada (um record, tendo em conta que as
co-reclusas raramente ultrapassavam os três meses). Para além disso, beneficiou dos
serviços de um advogado próprio, pago pelo seu fornecedor, no que se revela também
atípica. Foi, de resto, seguindo os conselhos deste advogado que a filha da Mirita
decidiu assumir perante a lei o tráfico praticado pela mãe, apostando na menor idade
como factor atenuante16. A táctica não surtiu o efeito esperado e encontram-se ambas
presas, bem como um irmão e uma cunhada (cujo filho, aliás, também tentou ilibar os
pais, assumindo a posse da droga encontrada na residência; desta vez, conta a tia, ele era
o verdadeiro responsável). Por fim, a Mirita sabe movimentar-se na cadeia e põe a uso
os seus recursos – entre os quais um discurso seguro, articulado e cordial – para
amenizar a reclusão. Desta forma, a sua posição na prisão acaba também por espelhar
uma menor descapitalização pré-prisional:
101

Acabei de pedir à subchefe para ir trabalhar para a portaria. Estou a ver se consigo
sair do pavilhão. Fechadas no pavilhão não se consegue nada. Podendo circular
consegue-se mais coisas: encontra-se a educadora, vai-se dar uma palavrinha à
[reclusa] que trabalha no dentista – foi assim que eu consegui uma consulta mais
cedo –, põem-me à frente. Encontra-se este, encontra-se aquele... Senão, está-se
muito tempo à espera e não se consegue nada.
67 Esta reformada é muito provavelmente uma daquelas reclusas que um membro do staff
teria em mente, quando, referindo-se aos problemas de gestão e disciplina colocados
por um novo tipo de população prisional, me asseverou:
Há apenas uma minoria, as do tráfico organizado, que sabem muito bem o que
fizeram e onde se iam meter. E essas, são presas exemplares. Não massacram os
serviços, resistem bem, não dão problemas.

O pré e o pós-tráfico: quadros de uma continuidade


68 Tendo-se, pois, o tráfico revelado uma efectiva oportunidade ilegal para as mulheres,
como se veio ela inscrever na vida das reclusas de Tires? No que respeita a estudantes e
reformadas, como a Mirita, que não se incluem na população activa, não se coloca a
questão do lugar tomado pelo tráfico face a fontes de rendimento tais como o trabalho.
Para as restantes reclusas, terá o tráfico representado uma mudança nos eixos de
inserção na actividade económica e na esfera laboral? Implicaria essa mudança, por sua
vez, um rompimento com anteriores modos de vida? Ou, ainda, terá a economia da
droga correspondido a inserções sociais alternativas? Vimos já que os lucros obtidos
nesta economia, embora proporcionem avulsas melhorias em condições materiais de
existência e permitam fazer face a alguns imponderáveis, não produzem
necessariamente saltos na escala de consumo, nem transformações radicais nos padrões
aquisitivos, tal como nos mostrou o tipo de investimentos realizados pela Zulmira. Mas
são, também, discerníveis continuidades de outra ordem.
69 A maioria das reclusas encontrava-se activa no mercado de trabalho, e assim
permaneceu depois de iniciada a actividade no tráfico. Por outras palavras, a carreira
de traficante não se substituiu às carreiras ocupacionais anteriores. Poder-se-ia supor
que os lucros rápidos a que o tráfico se presta seriam dissuasores da persistência na
geração de rendimentos mais esforçados e conduziriam, portanto, ao abandono dos
últimos. Convém, de resto, referir que da rapidez dos lucros não se pode directamente
inferir uma maior acumulação de capital. Como nos mostraram Reuter et al (1990) numa
análise económica de um mercado retalhista de crack, uma hora de trabalho no tráfico
é, de facto, muito mais lucrativa do que uma hora dispendida no mercado legal de
emprego, sobretudo tendo em conta que só os segmentos mais baixos do universo dos
empregos legais são apropriáveis por uma população pouco qualificada. Todavia, uma
comparação nestes termos induz a contabilizações enganadoras. Primeiro porque, no
tráfico, a relação tempo de trabalho/rendimentos não é fixa: as vendas só serão
compensadoras algumas horas por dia e alguns dias por semana (os fins-de-semana,
principalmente), ou seja, nos momentos em que os compradores-consumidores estão
activos no mercado. Significa isto que se os vendedores aumentarem o número de horas
de trabalho verão descer consideravelmente os lucros (ibidem: IIX-IX). Em segundo lugar,
quanto mais tempo trabalharem, maior é a duração da sua exposição e por conseguinte
maiores serão os riscos incorridos. Para além dos riscos físicos inerentes a contextos
violentos, os autores estimaram em 50% ao ano a probabilidade de um traficante
102

regular (aquele que realiza mais do que uma operação de venda por semana)
comparecer perante a justiça, sendo essa probabilidade de um terço para os vendedores
ocasionais (activos uma vez por semana ou menos, ibidem: 92). É assim que, à la longue, o
capital acumulado poderá ser bem mais frugal do que o supõem percepções comuns
sobre a economia da droga – e do que o supõem, por vezes, os próprios traficantes.
Veja-se a este propósito o contraste entre as formulações discursivas dos traficantes de
El Barrio apresentados por Bourgois (1995) e as suas reais carreiras materiais; e, ainda, a
discrepância apontada por Viscusi (1986) entre os rendimentos ilegais esperados e os
efectivamente consumados, sendo os primeiros pelo menos cinco vezes superiores aos
segundos. É também de notar que a variação da estrutura dos mercados retalhistas não
parece modular significativamente os níveis de rendimento. O mercado da cidade de
Washington estudado por Reuter et al (1990), que apresenta os traços distintivos das
estruturas free-lance, não diverge, neste aspecto, de mercados mais organizados (onde
vários tipos de tarefas são remuneradas por um salário), a propósito dos quais são
invariavelmente referidos, para patamares inferiores, níveis de rendimento abaixo do
salário mínimo.
70 Ignoro a que cálculos e estimativas se terão livrado as reclusas de Tires, se é que alguma
vez os empreenderam desta forma, tão evocativa da razão fria do homo economicus. Em
todo o caso, a entrada no narcomercado raramente teve por efeito a saída do mercado
de trabalho. Quando uma tal sucessão cronológica ocorre, o tráfico não está
forçosamente na origem do abandono das ocupações legais; por vezes sucederá o
inverso, como a circunstância do desemprego da Tina, que, conjugada com outros
eventos, contribuiu para a conduzir à economia ilícita. É certo que os períodos em que
estas mulheres lograram permanecer no tráfico se revelaram, em média,
invariavelmente curtos e demasiado breves para que se possa testar com consistência a
hipótese da ausência de uma tal deriva, onde o trabalho ilegal acabaria por destronar o
legal. Porém, é para essa hipótese que igualmente apontam muitas das reclusas que já
antes tinham estado presas. De facto, se reincidiram no tráfico, reincidiram, também,
em ocupações legítimas. Poder-se-ia ainda dar o caso de estas representarem apenas
uma conveniente fachada, acessória da actividade criminal. Mas o patamar retalhista
em que o grosso das reclusas se movia e as pequenas quantidades aí transaccionadas
não parecem requerer semelhantes expedientes branqueadores. Diversamente do que
atrás sugeria a Maria Emília (a gente não consegue esconder o dinheiro [...], mesmo que
quisesse esconder a riqueza não conseguia), a riqueza que esta reclusa concebia e cujos
signos eram, para ela, coisas como fruta e frango assado (mas podemos aqui recordar
ainda os móveis usados adquiridos pela Zulmira), não será provavelmente de ordem a
alertar as forças da lei, por muito conspícua que ela se possa revelar entre iguais.
71 Na verdade, muitas das reclusas combinaram os rendimentos do tráfico com os
rendimentos não criminais, não raro numa lógica meramente supletiva. Neste aspecto
aproximam-se dos pequenos traficantes estudados por Reuter et al (1990), cujas
actividades ilegais figuravam como complemento a um emprego legal e regular. Note-
se, porém, que estes evoluíam num típico mercado americano free-lance dos anos 80,
mercado este que deixava uma maior margem para as incursões relativamente
esporádicas do que a versão empresarial que viria a predominar na década seguinte.
Com efeito, nos EUA não só parece terem-se tornado menos recorrentes as constantes
travessias das pontes entre o trabalho legal e ilegal, como parece inclusive que tais
pontes se rarefizeram – até pela própria natureza do dominante modelo empresarial do
tráfico retalhista, pautado, ele próprio, pela especialização e pela divisão funcional de
103

tarefas que se assemelham a verdadeiros «empregos» e exigem, por conseguinte, uma


outra disponibilidade. Do trabalho de Maher (1997) emerge uma realidade ainda mais
extrema. Na esteira dos contingentes femininos (bem como «raciais»/étnicos)
especialmente afectados pela desindustrialização, a população que estudou encontrava-
se em absoluto arredada do mercado laboral, mesmo antes de se ter iniciado num
intenso consumo de drogas: nenhuma mulher trabalhava no sector formal de emprego
no período em que decorreu a investigação de campo e apenas menos de metade
tinham nele tido uma qualquer experiência prévia, ao contrário das respectivas mães,
cuja proporção de análogas inserções passadas na economia formal havia atingido os
3/4 (ibidem: 72-73); mas esta exclusão estendia-se ainda ao sector informal do trabalho,
onde uma escassíssima minoria só lograva desempenhar, ocasionalmente, tarefas como
baby-sitting e serviços domésticos. Ou seja, viriam a tornar-se escassas mesmo as
oportunidades na economia informal, já de si limitadas, neste caso, ao ghetto laboral de
«colarinho cor-de-rosa». A esta rarefacção não eram alheias as atitudes de suspeição
face a toxicodependentes (a quem menos facilmente se entrega as chaves de casa), bem
como o facto de a maioria destas mulheres não possuir residência fixa (onde pudessem
prestar, por exemplo, serviços de ama), [ibidem: 113-114].
72 Ora, à excepção de algumas reclusas mais jovens, consumidoras de drogas, que
financiavam o consumo essencialmente através da prostituição, a esmagadora maioria
das mulheres de Tires não apresentava uma semelhante desinserção da esfera do
trabalho, nem, como referi, uma desafecção subsequente ao início do tráfico. É porém
crucial caracterizar esta inserção laboral. Vimos já, no capítulo 2, que esta população se
distribuía uniformemente pelos patamares mais baixos, mal pagos e não qualificados do
mercado de trabalho. Além disso, reflectindo a segmentação deste mercado (Gazier,
1991), concentrava-se claramente no mercado secundário, isto é, flutuante, precário,
não protegido, em suma, sem segurança no emprego (Doeringer e Piore, 1971), pelo
que, não raro, as ocupações se sucediam e o desemprego era intermitente. Situando-se
esta população, portanto, no limiar do sistema de emprego, por outro lado este limiar
confina com várias frentes do sector informal da economia. E é nesta zona que as
fronteiras se revelam pouco nítidas, e os deslizes, sucessivos.
73 Em primeiro lugar, enquanto assalariadas, muitas das reclusas integravam as fileiras do
trabalho não declarado por parte de empregadores da economia legal, uma hetero-
ocultação, por assim dizer, que configura uma das zonas-sombra dessa economia,
juntamente com a evasão fiscal e a fuga ao pagamento de contribuições para a
segurança social17. É assim que a Tina se viu sumariamente despedida quando foi pedir os
[s]eus direitos (ver supra: 148)18. E é neste sentido que também podemos ler a asserção de
Manuel Castells e Alejandro Portes (1989: 12), segundo a qual «a economia informal não
é um eufemismo para a pobreza». Mas se «os processos económicos informais são
transversais a toda a estrutura» social, os próprios autores sustentam, por outro lado,
que são na maioria pobres as pessoas envolvidas em actividades do sector informal
(ibidem: 12).
74 Em segundo lugar, enquanto trabalhadoras por conta própria, as reclusas cobriam uma
outra zona de ambiguidade. Uma mesma actividade podia ser exercida no registo
formal ou informal. Sucedia assim com as «vendedoras», quase todas feirantes,
vendedoras ambulantes e/ou nos mercados. Cada uma destas variantes do pequeno
comércio era levada a cabo tanto por profissionais «encartadas» como por outras
reclusas que não dispunham das devidas licenças para o seu exercício. Mas, mais
104

importante ainda, cada reclusa podia ter exercido a mesma ocupação na modalidade
legal e clandestina, quer em diferentes momentos da sua vida, quer simultaneamente,
em locais diversos e, por vezes, comercializando diferentes produtos.
75 Por fim, a complexificar este quadro, outras reclusas ainda eram ao mesmo tempo
trabalhadoras por conta própria e por conta de outrem, uma e outra situação
ocorrendo tanto em regime formal como informal. Por exemplo, as empregadas de
limpeza ou na restauração, declaradas ou não, enveredavam também pela venda
ambulante de vestuário, peixe, ou produtos hortícolas. Embora em alguns casos esta
ocupação estivesse legalmente registada, abundam em contrapartida os relatos de
reclusas acerca da sua modalidade irregular e semioculta, nomeadamente sobre a maior
ou menor repressão policial que haviam enfrentado e sobre as manobras esquivas e a
esgotante mobilidade a que ela obrigava19. Nesta inserção pluriactiva no trabalho
descortina-se, deste modo, a mesma continuidade entre o sector formal e o informal 20.
De resto, este entrosamento é ainda ampliado pela frequente combinação entre os
pluri-rendimentos assim gerados e outros elementos estratégicos para a sobrevivência
económica, como o recurso à penhora e ao fiado. E utilizo deliberadamente o termo
fiado, não só porque corresponde à designação emic, mas porque sublinha a distinção
entre formas de aquisição e empréstimo ancoradas no interconhecimento e nas redes
de vizinhança, e formas impessoais que requerem outra ordem de garantias, como será
o caso do crédito. Aliás, uma forte implicação das redes de vizinhança e parentesco nos
processos económicos tem sido genericamente apontada como uma das características
importantes da economia informal (cf. Portes e Borocz, 1988, e ainda Duprez e Kokoreff,
2000: 258, que a designam como uma «économie de la débrouillardise»). Vimos já, por
outro lado, que o fiado se revelou um dispositivo-chave de acesso ao tráfico por parte
das reclusas. Uma vez que se iniciaram nele não como assalariadas mas como free-
lancers, apenas as práticas do fiado lhes teriam permitido lançarem-se assim por conta
própria, já que não dispunham do capital económico necessário para dar o primeiro
passo, ou seja, efectuar a primeira compra de drogas para posterior revenda. Tais
práticas, engendradas nos meandros das redes de vizinhança, foram também
identificadas por Vicenzo Ruggiero, que caracterizou da seguinte forma a economia
retalhista da droga num bairro londrino:
[L’]économie de la drogue [...] est une économie domestique, petite, de gagne-petit.
Dans un sens, cette économie informelle reflète l’échange régulier de choses et de
petites sommes d’argent qui a lieu dans certains logements sociaux. De petites
quantités de drogue sont parfois échangées, prêtées ou vendues, de la même
manière que des sommes inférieures à 10 [livres] sont quelques fois prêtées aux
voisins (1993: 374).
76 Ora, o tráfico vem precisamente inscrever-se na zona estrutural de confluência entre o
sector formal e informal, que delimitava já o espaço de geração de rendimentos e,
sobretudo, o espaço de inserção laboral da maioria das reclusas. Na medida em que
constitui mais um dos «biscates» e expedientes que atravessam essa zona de margem
(no duplo sentido de periferia e de liminaridade «transitiva»), o tráfico representa um
dos avatares ou desdobramentos desta ambiguidade e, ao mesmo tempo, prolonga-a. De
resto, as práticas discursivas locais, onde a palavra venda equivale, também, a «tráfico»,
reflectem em parte tal ambiguidade, e o contexto do seu uso foi muitas vezes para mim
fonte de confusão ao longo do trabalho de campo: a expressão andar na venda , por
exemplo, podia designar indiferentemente tanto as ocupações legais ou semilegais,
como as ilegais, sem curar, pois, do estatuto dos produtos vendidos ou da licitude das
105

transacções. Daí haja que conservar em mente que o tráfico é, antes de tudo, uma
categoria jurídica e policial.
77 Importa aqui determo-nos brevemente no âmbito da noção de economia informal. Se é
consensual o critério da ausência da regulação do Estado para estipular a
«informalidade» dos processos geradores de bens, serviços e rendimentos – por outras
palavras, aqueles que escapam à alçada da intervenção do Estado –, alguns autores
divergem quanto à esfera legal que deverá ser tomada por referência para delimitar o
sector informal. Assim, uns reservam esta designação apenas para a produção ou venda
ilegal (querendo com isto significar não-regulada) de bens e serviços lícitos, ou seja, os
que de qualquer forma podem já ser produzidos e vendidos no sector formal, desde que
obtidas as devidas licenças (Castells e Portes, 1989: 15). Não é por isso contemplada a
economia subterrânea criminal em torno de produtos ilícitos, como é o caso do tráfico.
Uma outra perspectiva adopta uma definição mais lata e abrangente do sector informal,
onde não figura esta distinção (ver Gaughan e Ferman, 1987). Alguns autores, entre os
quais Maher, alegam que uma tal separação obscurece mesmo a compreensão dos
fenómenos sociais:
[F]rom the perspective of the people involved, the idea that law or legal regulation
provides a major demarcation of social life and cultural practice is false [...]; in
practice the boundaries between criminal and other forms of unlawful commerce
are blurred, and are historically and culturally variable. The institution of a
primary division creates, at best, an unnecessary separation and, at worst, a false
dichotomy (1997: 59-60).
78 Esta perspectiva permite, com efeito, melhor dar conta da experiência das reclusas e
enquadrar os seus sucessivos trânsitos pelas múltiplas facetas da economia informal. Na
verdade, se a demarcação entre ocupações ilegais e criminais não é inteiramente
arbitrária (ela pode representar, por exemplo, a distância entre a simples multa e a
prisão), ela revela-se apenas uma entre muitas outras fronteiras de tal forma porosas
no espaço estrutural em que as reclusas se movem (como se continuará a esclarecer nos
capítulos seguintes), que perde valor analítico. Ruggiero e South registaram por seu
turno o mesmo continuum entre mercados irregulares e criminais em contextos urbanos
britânicos, bem como o movimento pendular entre legalidade e ilegalidade. A
«mobilidade lateral» que assim caracteriza estes fluxos é descrita como
[U]n mouvement intermitent allant d’emplois mal payés à la petite criminalité
contre les biens, d’une forme d’allocation de chômage à la petite distribution de
dope et d’autres marchandises, et ainsi de suite. Cette sorte de mobilité s’applique
aux toxicomanes, aux petits délinquants contre les biens et à d’autres qui
commettent une « délinquance à la sauvette », à temps partiel, aucun d’eux
n’estimant [...] pouvoir être décrit comme des «scélérats à temps plein» ou comme
« délinquants de carrière » (1996: 318).
79 E é neste sentido que os autores criticam o simplismo da definição sócio-espacial de
«zonas de delinquência» por parte da sociologia urbana da escola de Chicago, onde se
delimitam com precisão e quais blocos monolíticos os comportamentos delinquentes, e
lhe preferem a metáfora do «bazar» para dar conta da mistura, da coexistência e da
mobilidade de limites entre a legalidade e as diversas formas de ilegalidade (ibidem:
323-324).
80 Ora, esta coexistência complexa e estes entrosamentos prefiguravam, como referi, o
quadro que situava as reclusas muito antes do tráfico e onde as suas novas actividades
retalhistas se vieram enxertar. Num espaço de margem onde já então deslizavam entre
106

o trabalho informal e os segmentos periféricos do trabalho formal, o tráfico constituiu


o gradiente mais recente desta mistura, sem, de resto, a alterar substancialmente, posto
que a maioria das reclusas não prescindiu de uma ou outra forma de trabalho. Assim,
até pela modalidade free-lancer em que é exercido, o tráfico não representou
propriamente uma mudança de eixo quanto à inserção na vida económica e na esfera
laboral, ao contrário do que atrás se registou para outros contextos.
81 Em segundo lugar, não correspondeu tão-pouco a inserções sociais alternativas, uma
vez que no tráfico se mobilizam precisamente as mesmas redes sociais que escoravam
os anteriores modos de vida. E assim como a exclusão das reclusas face ao trabalho era
incomparavelmente menor do que a vivida pelas mulheres da etnografia de Maher
(1997), também o era a sua exclusão social. Tais mulheres nova-iorquinas,
consumidoras de estupefacientes (absorvendo esse consumo a maior parte dos
rendimentos obtidos nas escassas actividades ilegais a que tinham acesso), sem
residência fixa e cujos filhos menores não coabitavam com elas, amparavam-se,
também, em redes sociais de entreajuda. Mas estas redes congregavam sobretudo
mulheres igualmente excluídas, sendo tecidas na vida de rua e criadas pelas exigências
da rua: colegas na prostituição, protegiam-se entre si contra a violência, partilhavam
abrigo e assistiam-se mutuamente no consumo de drogas (ibidem: 33-54). Voltando às
reclusas de Tires, embora tenha conhecido várias traficantes-consumidoras que
reproduziam parcialmente este padrão (mas raras eram as sem-abrigo), a maioria das
traficantes, não-consumidoras, dirigia os rendimentos do tráfico para a casa e para a
reprodução económica do agregado doméstico, residia com familiares e encontrava-se
plenamente integrada no bairro e em malhas largas de vizinhos e parentes.

Uma economia da droga semiperiférica


82 A noção de exclusão tem sido justamente criticada enquanto conceito-bordão que evoca
de maneira inespecífica um estado genérico de ruptura e sob o qual se podem acolher
situações muito diversas (e. g. Castel, 1991; Paugam, 1996 a). Por isso Robert Castel
(1991), entendendo a exclusão como o resultado de um processo, prefere designá-la por
«desafiliação», que pressupõe uma trajectória e implica a definição das áreas por
relação às quais se é excluído – como sejam o trabalho, as redes sociais e familiares.
Sendo assim, a noção de exclusão pode escamotear toda uma gama de situações
possíveis que vão da integração à desafiliação. Sucede também que a expressão
«exclusão social» é ainda, não raro, utilizada como sinónimo de pobreza. Mas também a
pobreza se desdobra em realidades múltiplas segundo os modos como se articula com a
sociedade e o Estado, pelo que nem sempre uma tal justaposição sumária é legítima 21.
83 Se em Portugal é elevado o número de pobres22, são muitos os que entre estes
configurarão situações de pobreza «integrada». Vejamos algumas das características do
universo nacional da pobreza. Alfredo Bruto da Costa (1998: 40-41) refere que em finais
da década de 80 os desempregados representam nele apenas uma pequena fracção (6%),
sendo assim esmagadoramente constituído por pensionistas e empregados. Nesta
última categoria é de notar o peso dos trabalhadores por conta própria (33%), que em
1993 vem a representar o dobro do dos trabalhadores por conta de outrem, um facto
que poderá reflectir, entre outros factores, transformações no modelo produtivo e uma
global precarização e flexibilização da relação salarial. De resto, Boaventura de Sousa
Santos (1993: 39) havia já registado uma tendência genérica para o aumento do trabalho
107

por conta própria antes dessa data e viu nela uma das razões para a taxa de
proletarização em Portugal ser a mais baixa da Europa. Mas esta tendência agudizar-se-
ia entre 1992 e 1996, com a eliminação de muitos postos de trabalho por conta de
outrem, o aumento dos contratos com vínculo não permanente e dos trabalhadores
independentes «isolados», ou seja, sem pessoal ao serviço (Capucha, 1998: 223-224).
84 Por outro lado compare-se, a título de exemplo, o perfil dos beneficiários do
Rendimento Mínimo Garantido (RMG) português com o daqueles que em França
usufruem de uma prestação social equivalente e atribuída de acordo com critérios
semelhantes – o Revenu Minimum d’Insertion (RMI) –, pessoas aí designadas
popularmente de RMIstes , um termo que aliás carrega a conotação pejorativa de
«falhados da vida»23. Setenta e cinco por cento dos beneficiários franceses eram
«pessoas isoladas», a maioria encontrava-se desempregada ou inactiva e não possuía
morada própria (cf. Dubar, 1996: 114); no caso dos portugueses a quem foi atribuído o
RMG, metade vivia de rendimentos do trabalho e ⅓ de pensões (rendimentos estes
evidentemente muito baixos); além disso, quase todos integravam agregados familiares:
apenas 1/5 eram pessoas sozinhas (Instituto de Desenvolvimento Social, 1998). Como
sustenta Dubar (1996), em França a pobreza recobre uma dupla desafiliação, isto é, a do
trabalho e a sócio-familiar. E, com efeito, registou-se neste e noutros países
desenvolvidos uma forte correlação entre, de um lado, a fragilidade face ao emprego e
fracos recursos económicos (ver Paugam, 1996b) e, de outro, a fragilidade da
sociabilidade familiar e das redes privadas de entreajuda. Por outras palavras, quanto
maior é o afastamento em relação ao emprego estável, maior é não só a pobreza
económica como a pobreza relacional (ibidem: 401).
85 Mas François Merrien questiona, com outros autores, a universalidade deste tipo de
processos de exclusão nas sociedades contemporâneas (o autor circunscreve-se, na
verdade, às sociedades ocidentais). Referindo-se às elevadas taxas de pobreza nos países
do sul da Europa, observa a este propósito que
[I]l n’en demeure pas moins que la pauvreté massive dans ces pays ne s’accompagne
pas du processus de précarisation sociale ou de double désaffiliation que l’on
constate plus particulièrement dans certains pays riches comme la France, le
Royaume-Uni ou les États-Unis. Dans les pays du Sud, la pauvreté demeure une
pauvreté monétaire, une pauvreté absolue typique des sociétés préindustrielles,
mais la famille et les réseaux de solidarité de voisinage autorisent des stratégies de
survie (travail au noir, travail à domicile, sous-traitance, travail informel...) et
limitent les processus de désinsertion sociale (1996: 422).
86 Nesta mesma linha de abordagem, Serge Paugam (1996b) discerne três equações entre
pobreza e exclusão, modalidades essas que correspondem, ainda que imperfeitamente e
de forma não linear, a diferentes etapas do desenvolvimento das sociedades industriais
e/ou a diferentes contextos nacionais. A primeira modalidade – a «pobreza integrada» –
caracterizaria as sociedades mediterrânicas europeias subindustrializadas, onde a
sociedade salarial é pouco organizada e onde coexistem sistemas contraditórios de
produção e troca. Em parte porque numerosas, as pessoas de fracos recursos
económicos não seriam especialmente estigmatizadas e encontram-se inseridas em
redes sociais assentes em laços de parentesco e vizinhança. Quando tocadas pelo
desemprego, este não acarreta por si mesmo uma especial desvalorização de estatuto e
é atenuado por recursos da economia paralela, cujas actividades, aliás, podem
contribuir para cimentar relações sociais (ibidem: 394).
108

87 Ao contrário da «pobreza integrada», a «pobreza marginal» relevaria tanto das


questões mais clássicas do pauperismo como da exclusão social. Característica de
sociedades industriais avançadas como a Alemanha e os países escandinavos,
corresponderia a pequenas franjas da população que permaneceram à margem do
progresso económico e são amplamente protegidas por um Estado-providência forte
(que tende, de resto, a substituir-se às solidariedades de proximidade), mas cujo
estatuto se degrada em razão mesmo da assistência que recebem (ibidem: 396-399).
88 Por fim, se tal pobreza é representada nesses contextos como um resíduo do passado,
uma outra modalidade é antes percepcionada como uma ameaça crescente que toca
cada vez mais pessoas e propaga a angústia de se vir a cair «na exclusão» (um termo
aliás já incorporado nas práticas discursivas comuns). A «pobreza desqualificante» não
releva tanto da miséria estável quanto de inflexões mais ou menos bruscas na vida de
pessoas que podem até nem ter conhecido situações de pobreza na infância. Trata-se de
um dos avatares relativamente recentes de sociedades industriais – poder-se-ia mesmo
dizer pós-industriais – que conheceram um forte aumento da taxa de desemprego,
como a França e a Grã-Bretanha, e onde a economia paralela é demasiado controlada
pelo Estado para poder constituir uma alternativa económica viável para os mais
desmunidos. Daí que estes dependam sobretudo dos mecanismos assistenciais públicos,
também eles desqualificantes, uma vez que o papel das solidariedades familiares se
atenuou e acaba mesmo por reproduzir e compactar as desigualdades (ibidem: 399-403).
89 Em Portugal constata-se também a presença de categorias totalmente excluídas da
esfera do trabalho (como poderá suceder, por exemplo, com desempregados de longa
duração) e/ou da esfera sócio-familiar (o caso de grande parte dos sem-abrigo),
categorias essas que se conterão naquilo a que hoje é comum chamar de «nova
pobreza» (e. g. Perista e Pimenta, 1994: 49). Mas a situação dominante entre os mais
desfavorecidos configura claramente a «pobreza integrada» tal como Paugam (1996b) a
tipificou. B. de Sousa Santos (1993; 1994) tem caracterizado Portugal como uma
sociedade de desenvolvimento intermédio, onde todo um conjunto de indicadores
sociais desenha quadros híbridos e ora a aproximam de sociedades centrais, ora de
sociedades periféricas (também designadas, respectivamente, de primeiro e terceiro
mundo, embora esta classificação não decorra exactamente dos mesmos critérios
analíticos). A heterogeneidade seria o cunho desta sociedade semiperiférica,
impregnando processos sociais, económicos, políticos e culturais. Embora ela atravesse
várias áreas estruturais, realço, em primeiro lugar, a coexistência na estrutura
económica de lógicas de produção e de troca capitalistas e não capitalistas (Santos,
1993: 37; 1994: 115); em segundo lugar, a coexistência de um Estado-providência fraco
com uma «sociedade-providência» forte. O autor entende por sociedade-providência
[...] as redes de relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de
entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança, através dos quais
pequenos grupos sociais trocam bens e serviços numa base não mercantil e com
uma lógica de reciprocidade [...] (idem: 1993: 46).
90 A existência de tais redes, constatada quer em meios rurais, quer em meios urbanos,
funcionaria como uma almofada que atenuaria as insuficiências do Estado na protecção
social. É assim que, por exemplo, uma grande maioria de desempregados pôde declarar
ser a família a sua principal fonte de rendimento e subsistência (ibidem: 47). Por isso
este mesmo autor sustenta que
[...] a sociedade civil portuguesa só é fraca e pouco autónoma se, seguindo o modelo
das sociedades centrais, a identificarmos com o espaço da produção ou com o
109

espaço da cidadania. Se, ao contrário, atentarmos no espaço doméstico, verificamos


que a sociedade civil portuguesa é muito forte, autónoma e auto-regulada ou, em
todo o caso, é mais forte autónoma e auto-regulada que as sociedades civis centrais.
Aliás, é essa autonomia e auto-regulação que torna possível que o espaço doméstico
preencha algumas das lacunas da providência estatal e assim se constitua em
sociedade-providência (1994: 114)24.
91 A maioria da população reclusa de Tires partilha, como vimos, de muitos dos traços
essenciais que caracterizam o universo da pobreza em Portugal e nesse sentido
corresponderá ao perfil da «pobreza integrada». No entanto, neste universo da pobreza
tal população releva simultaneamente de uma categoria específica que, a partir de uma
outra perspectiva, poderíamos qualificar, essa sim, de «excluída». Com efeito, a pobreza
«integrada», «marginal» e «desqualificante» enumeradas por Paugam (1996b) são
figuras ideal-típicas que se reportam à situação de indivíduos e aos processos de
ruptura em que incorrem. Nesta medida, os pobres/excluídos emergem neste tipo de
análise mais como um agregado estatístico de indivíduos do que propriamente uma
categoria social, ao invés do que sucede na tradição de abordagem anglo-saxónica (cf.
Strobel, 1996: 208-219). Veja-se, por exemplo, a centralidade que aí assumiu a noção
profusamente debatida de underclass , desenvolvida por W. J. Wilson (1987) para
caracterizar o subproletariado dos ghettos urbanos americanos afectados pela
desindustrialização e pelo desemprego, pelo estilhaçamento das estruturas familiares e
principalmente pelo isolamento social. Nesta noção são sublinhados quer os aspectos
colectivos da exclusão social e simbólica a que o ghetto é votado como um todo, quer, na
esteira de Oscar Lewis (1966), os aspectos culturais da organização da sobrevivência que
nele emergem como reacção a essa exclusão.
92 Ora, embora o leque de bairros de onde hoje provém o grosso da população reclusa não
seja de todo em todo assimilável a tais ghettos, como se analisará adiante, também sobre
eles impendem processos de forte estigmatização25. Tal população é à partida
estigmatizada não por ser pobre, desempregada ou assistida, mas porque habita bairros
conotados com patologias diversas como «a droga», «a insegurança», «os gangs», «a
criminalidade», etc., etc. – segundo as fórmulas político-mediáticas de momento que
dominam esta névoa e às quais se veio acrescentar recentemente «a tuberculose», por
sua vez trazendo por arrasto a questão da imigração clandestina 26. E é justamente por
via desta inscrição espacial da pobreza (de ordem muito diversa da dimensão territorial
da pobreza no país, ligada às assimetrias regionais) que as reclusas de Tires são
reportáveis a uma categoria híbrida de pobreza, entre «integrada» e «excluída». Ou
seja, por um lado incorrem na exclusão simbólica que marca o estatuto periférico do
bairro – e que pode ter efeitos bem menos simbólicos, como sejam a intensificação do
cerco repressivo e dificuldades acrescidas no mercado de trabalho em razão desta
estigmatização (ver capítulo 3 e Chaves, 1999a). É aliás de confrontar tal estatuto com
aquele que é atribuído a outros bairros populares com uma composição social e quadros
de interacção semelhantes, assentes em redes densas e multivalentes de parentesco e
vizinhança, como é o caso de Alfama. Através da noção de «sociedade de bairro»,
António Firmino da Costa refere-se-lhe como
[U]m tipo específico de configuração social, no qual o bairro aparece não só como
unidade territorial urbana mas também como um quadro social denso e
multifacetado e, ainda, como categoria simbólica de referência social identitária,
muito em especial para a população local, mas também para o exterior [...] (1999:
492).
110

93 Não obstante as representações exógenas denotarem alguma ambivalência quanto a


Alfama (os turistas serão assim instruídos a acautelarem os bens que transportam
quando aí deambulam), elas constituem este bairro principalmente como um quadro
urbano dotado de valor histórico, patrimonial, socioetnográfico (logo, como etapa
incontornável num roteiro turístico), bem como uma das âncoras da identidade lisboeta
e mesmo nacional, na medida em que é um cenário «típico» das festas populares e do
fado (ibidem: 61; 111; ver ainda Cordeiro, 1997 para o Bairro da Bica). Nesse sentido pode
dizer-se que o Bairro de Alfama usufrui de uma inclusão – e, até, de uma centralidade –
simbólica. Mas se as reclusas participam da exclusão que a este nível marca os seus
bairros de origem, por outro lado encontram-se inseridas, como vimos, quer na esfera
sócio-familiar e na malha larga das solidariedades de proximidade, quer na esfera
laboral, ainda que apenas na sua orla. Nesta medida, na linha da proposta teórica de
Pina Cabral (2000a) sobre as categorias de centro e periferia (entendidas pelo autor
como categorias aproximativas e não absolutas), trata-se em suma de uma participação
social globalmente semiperiférica e semilegitimada (ibidem: 883-884).
94 É esta mesma hibridez que ressurge, refractada, na economia retalhista da droga. Não
só a molda, imprimindo-lhe um cunho particular, como se intersecta com outras
características dos narcomercados portugueses marcadas, elas próprias, pela hibridez e
que por sua vez reflectem parcialmente a especificidade da pobreza que enquadra
muitos dos pequenos traficantes. É nesse sentido que se poderia falar de uma economia
da droga semiperiférica. O termo «semiperiferia» recobre aqui, deliberadamente, várias
acepções. Comparando-a com mercados retalhistas dos países centrais – num eixo
horizontal, se quisermos – qualifica a natureza intermédia de uma economia ilegal que
participa das características de um país semiperiférico; ou, num eixo vertical, a
natureza intermédia das suas propriedades estruturais quando comparadas com os
segmentos alto e baixo de outros narco-contextos (não se referindo, portanto, a um
patamar ou a um volume «médio» de negócios)27.
95 Ora, e recapitulando, as propriedades específicas que emergiram deste percurso
comparativo convergem na saliência conjunta das redes de parentesco e vizinhança na
economia da droga, bem como no facto de estas não se constituírem só no masculino,
mas se mostrarem inclusivas das mulheres (ao invés de contextos americanos, onde a
actual prevalência do modelo empresarial no mercado retalhista se conjuga com noções
de género para vedar o tráfico à participação feminina); de resto, repercutindo
tendências nacionais que se acentuam em estratos desfavorecidos, trata-se de mulheres
que nunca se encontraram excluídas da esfera laboral, formal ou informal. Muito
embora uma vincada descapitalização genérica as afaste do quadro de disposições
dominantes que balizam o tráfico grossista estudado por Adler, as redes familiares
deste tráfico retalhista configuram-se à semelhança das que operam naquele em
dimensão, fluidez e flexibilidade. Tal convergência prende-se, em parte, com a
estrutura free-lance partilhada por ambos os mercados. No entanto, se em ambos os
contextos os laços de parentesco não representam uma base de recrutamento exclusiva
nem as redes familiares se demarcam com clareza das extrafamiliares, mas antes se
entrelaçam com elas, no mercado de élite as últimas provêm de círculos diversos e
variados, sejam eles profissionais ou recreativos, enquanto no nível retalhista umas e
outras tecem-se principalmente no bairro. Ou seja, redes vicinais e parentais relevam
de uma mesma teia de solidariedades de proximidade.
111

96 É também por esta razão que os laços familiares nestes empreendimentos ilegais não
são remissíveis ao paradigma familialista da mafia, que impregnou e formatou algum
crime organizado. Aí, tais laços recortam unidades mais vastas, relativamente fechadas,
social e economicamente integradas, cujos contornos delimitam a um tempo a esfera
dos negócios e da sociabilidade. Em contrapartida, aqui as solidariedades constroem-se
de modo mais aleatório, entre o universo dos parentes e o dos vizinhos, dado até que o
primeiro não se concerta numa estrutura vertical de autoridade nem dispõe dos
recursos para, por inteiro, «organizar a vida» dos seus. Tal universo não é assim
mobilizável à grande escala e num projecto colectivo, mas por pequenos segmentos, em
alianças variáveis e, por conseguinte, em incursões mais atomísticas. Poder-se-á por
isso revelar enganador o grande número de parentes que desfilam perante os tribunais
e desembocam na prisão – muitas vezes, relembro, em diferentes momentos, por
diferentes vias e por diferentes motivos. Esse leque alargado de parentelas não traduz
necessariamente a participação conjunta numa mesma iniciativa. Dito de outro modo,
se se trata sim de uma rede de parentes, não se trata inevitavelmente de uma rede de
tráfico. Sucede que cada um terá investido por si, ou em pequenas coligações, numa
estrutura de oportunidades que o tráfico realmente abriu a todos e à qual os vizinhos
estão, de igual modo, expostos.
97 Parentes e vizinhos encontravam-se já articulados em redes de suporte e de entreajuda.
E assim como estas redes participam da forte «sociedade-providência» de que fala B. de
Sousa Santos, também protagonizam algumas das facetas de uma economia informal
igualmente forte à escala nacional e que se erige na continuidade e em entrosamento
com o sector formal. É nesse continuum que essas redes se dispõem, tendo o tráfico
vindo prolongá-lo e deslocar-lhe os limites da ilegalidade. Noutras paragens, quer por
via de um controlo estatal menos incipiente (que estreita as margens do sector
informal), quer por via do declínio dos mercados free-lance (que encerravam menos os
indivíduos na esfera criminal do que a modalidade que lhes sucederia), as várias zonas
deste continuum parecem ter-se tornado menos ambíguas e mais sincopadas. Sendo
assim, são mais difíceis as travessias nos dois sentidos do percurso compreendido entre
a legalidade e a ilegalidade. Tais tendências, aí intersectadas com perfis de pobreza
excluída (muitas vezes compactada por toxicodependências) e aos quais não serão,
porventura, totalmente alheias, permitem-nos enquadrar o advento no mundo do
tráfico daquilo a que Ruggiero e South (1995: 126-127) chamaram de «“mass” criminal»:
Such contributors to the drug economy are found across the globe: they ensure the
success and reproduction of drug markets despite all enforcement efforts and
triumphs. They are interchangeable, replaceable, powerless, moveable, dependent.
The work of «mass criminals» implies a routinization of tasks, a specific set of roles,
a fixed place in the division of labour and a virtually stagnant career (ibidem: 127).
98 Algumas jovens reclusas, muitas vezes exteriores ao bairro onde se abasteciam e sem
outros laços nele, poderiam virtualmente figurar neste vasto e flutuante exército de
mão-de-obra toxicodependente, precária e de quem não se requer iniciativa, exército
esse que os autores constataram em vários contextos europeus – mas não tão
nitidamente no mercado italiano (ibidem: 182). Não quero com isto significar que tais
reclusas correspondessem ao perfil escapista e inteiramente alheado que Merton (1957)
e depois Cloward e Ohlin (1960) traçaram dos toxicodependentes através do conceito
de «retreatism»: o primeiro autor vendo-os arredados e inanes por relação a ideais de
sucesso e aos meios legítimos para os atingir; os segundos vendo-os duplamente
arredados e inanes, ou seja, quer nas carreiras legais quer ilegais, falhando como
112

«conformistas» e como «inovadores» (delinquentes). Seriam, deste modo, «double


failures». É de referir a este respeito que a etnografia de Preble e Casey (1969)
assinalaria uma mudança de perspectiva. Encarando a cena da droga por um prisma
ocupacional e retratando-a como envolvendo, plenamente, «um trabalho», puseram em
causa aquele perfil patético que até então se atribuía aos toxicodependentes:
Heroin use today by lower class, primarily minority group, persons does not
provide for them a euphoric escape from the psychological and social problems
which derive from ghetto life. On the contrary, it provides a motivation and
rationale for the pursuit of a meaningful life, albeit a socially deviant one. The
activities these individuals engage in and the relationships they have in the course
of their quest for heroin are far more important than the minimal analgesic and
euphoric effects of the small amount of heroin available to them. If they can be said
to be addicted, it is not so much to heroin as to the entire career of a heroin user
(ibidem: 23).
99 Porém, o trabalho do «“mass” criminal» a que aludem Ruggiero e South (1995) deixaria
de ser tão criativo, excitante e pleno de sentido como o descrito por Preble e Casey,
assemelhando-se antes ao trabalho massificado, repetitivo e alienante da era fordista.
Se, como adiantei, algumas jovens detidas seriam caracterizáveis pela designação de «
“mass” criminal», todavia a maioria das pequenas traficantes em Tires está longe de
espelhar esse anónimo lumpen criminal. Não porque sejam, em abstracto,
insubstituíveis no sistema do tráfico em virtude de especiais qualificações criminais,
mas porque os mercados onde evoluem não só lhes permitem iniciativas
independentes, como se cimentam no estreito interconhecimento e muito
especialmente nas solidariedades familiares e vicinais. É justamente nestas redes de
entreajuda, através das quais há muito se organiza a sobrevivência nos meios
populares, que o tráfico se veio enxertar. Recorde-se, por exemplo, o dispositivo do
fiado e o modo como acomodou a economia da droga e foi incorporado por ela.
100 Daí que não possa concluir, como Adler:
Becoming a drug trafficker was a gradual process, where individuals progressively
shifted perspective as they became increasingly involved in the social networks of
dealers and smugglers. [J]oining these social networks required a commitment to
the drug world’s norms, values and lifestyle, and limited the degree of involvement
individuals subsequently had with nondeviant groups (1993: 123) 28.
101 E daí também que o exame desta economia ilegal semiperiférica nos conduza à
relativização de algumas noções correntes – ou mesmo à inversão dos termos do
discurso que originam – sobre os universos da droga. Nelas tais universos surgem quase
invariavelmente associados à crise dos valores, à crise da família e à desagregação
social a que teriam aportado os fenómenos de urbanização. Quanto às primeiras, será já
claro que é precisamente nos ditos «valores familiares» e nas redes tradicionais que o
tráfico assenta. Quanto àquela atomização urbana, bastará de momento introduzir-lhe
um granum salis mencionando algumas das recorrentes fórmulas que a cada dia ouvia na
prisão: «Fui à Fulana do Bloco x [do bairro]; Falei com a Sicrana do Bloco y; o filho da Fulana
do Bloco z...» Retomarei este ponto noutro capítulo.
113

NOTAS
1. (Itálicos no original.)
2. Ênfase minha.
3. Curiosamente, a investigação empreendida pelo juiz Falcone (cit. por Ruggiero e South (1995:
86-87) concluiria que quer as decisões relativas ao envolvimento da mafia no tráfico, quer os
fundos que aí eram investidos, tiveram origem não num qualquer corpo central, mas decorreram
de iniciativas pessoais de indivíduos e grupos.
4. O mesmo carácter aleatório foi constatado por Kellerhals et al (1986) em meios populares
urbanos, contrastando com o tipo de solidariedade familiar em camadas sociais mais favorecidas.
Mais organizada, esta teria além disso por eixo uma forte intervenção financeira, enquanto a
ajuda naqueles meios seria sobretudo de ordem pessoal e assente na prestação de serviços.
5. Membros do staff que no decurso da sua carreira trabalharam em estabelecimentos prisionais
masculinos e femininos comentaram repetidamente, em termos que parcialmente se cruzam com
estes, diferenças ligadas ao género. O seguinte comentário reflecte uma apreciação recorrente:
Os homens perdem a cabeça com mais facilidade, são mais violentos. Mas também dá-se um murro na mesa
e recuam, o assunto morre ali. As mulheres não. São mais chatas, mais problemáticas. Dão muito mais
trabalho porque não desistem, voltam à carga. É os filhos, a casa, as finanças, organizar tudo dá-lhes muitas
angústias cá dentro. Têm mais responsabilidades. Os homens têm menos tentáculos lá fora. Têm
preocupações diferentes. Só têm é receio de serem traídos ou abandonados pelas companheiras. O resto não
ligam. Se os filhos ficam com a família, ficam descansados, é raro falarem neles.
6. O assunto foi abundamente comentado no pavilhão e outras reclusas informaram-me
posteriormente que havia sido objecto de debate no programa televisivo «Casos de Polícia».
Ainda na posse de escassas informações, a Aurora narrava assim as suas suspeitas:
Ele tinha saído dois meses antes da cadeia e andava a roubar para o vício dele. A polícia levou-o a 1 de Maio
de 1996 e nunca mais o vi, nem eu nem ninguém. Ninguém sabe dele. Não aparece o registo na esquadra em
como entrou, mas as vizinhas viram. Uma ouviu um agente a dizer-lhe que ele ia, mas que tão depressa não
voltava, que se iam ver livres dele. E ninguém mais o viu. Se deram cabo dele, a lei manda prender, não
manda matar. O povo diz que ele deve estar num centro de recuperação em Espanha, que não pode
comunicar com a família. Eu só queria ir à esquadra. Os meus filhos, eu já não consigo telefonar, é a
menina, a que está com a vizinha, sempre a perguntar quando é que eu vou dormir com ela, eu e o pai. O
meu filho noutro dia disse-me: «A polícia levou o pai, se eu tivesse uma pistola dava à polícia». Já viu a
conversa da criança?
7. Recenseando a vasta bibliografia sobre a iniciação das mulheres nas drogas, Ansley Hamid
(1998) indica alguns estudos que reportam serem elas iniciadas neste consumo tanto por homens
como por mulheres. No entanto, salienta nessa literatura a predominância do tema da mulher
«desviada» pelo namorado ou marido, tornando-se em acréscimo dependente deste parceiro para
a obtenção de drogas (ibidem: 202-205). Se as reclusas em questão foram de facto assim iniciadas –
o que não significa que fossem vítimas indefesas às mãos dos parceiros masculinos –, elas
próprias investiram nos círculos do tráfico daqueles e financiavam o consumo de maneira
autónoma.
8. Na verdade, ao contrário do que daqui parece decorrer, quer o medo das consequências da
delação, quer o poder coercivo da interdição do chibanço estão longe de serem na cadeia
especificamente «ciganos». Este é, porém, assunto de um outro capítulo. Ainda a propósito deste
extracto, refiro um dado indicado por J. S. Moreira (1999: 71-73), referente a meados de 1998: se o
tráfico é de longe o principal motivo de reclusão da população cigana feminina, só uma ínfima
fracção deste universo consumia estupefacientes, divergindo bastante neste aspecto da
população reclusa cigana masculina.
114

9. Na sua trajectória institucional, a Lavínia integrou assim os contingentes de menores


convergindo para o universo compósito da Mitra, estudado por Susana Pereira Bastos (1997) e
nela Tires figura já como um dos lugares de execução de castigos que se articulavam em sistema
com aquele albergue (ibidem: 238).
10. A este mesmo propósito Maher acrescenta:
Rather than providing proof of equality, such readings may serve to submerge, and divert
atention from, issues of structure, power, and domination (1997: 18).
11. A mesma enunciação genérica reflecte-se, de resto, na sumária e mecânica equação
vitimização-criminalização, segundo a qual a delinquência feminina se explica pelos abusos
sofridos no passado. Convenhamos, todavia, que se interpõe entre os dois termos da equação todo
um espaço de incógnita, a que Kathleen Daly (1998: 136-137) chamaria, ironicamente, uma «caixa
negra». É ainda de notar que o tema da vitimização tem constituído um dos problemas de
representação com que se debate esta literatura, tocando, no limite, a representação das
mulheres como destituídas de agencialidade – representação que justamente pretende criticar – e
quase as essencializando como vítimas (eternas) de opressores (variáveis): cf. Daly (1998); Daly e
Maher (1998); Maher (1997).
12. A noção de «classes populares» é aqui empregue à laia de noção de repérage , que, como
sustenta Augusto Santos Silva (1994), adquire sentido sobretudo à escala macro, erodindo-se e
perdendo legitimidade à medida que se desce para níveis menos gerais de abordagem. À grande
escala, portanto, e de acordo com a proposta do autor, designa uma nebulosa de grupos sociais
que possuem baixos capitais, partilham uma posição de dominados (e. g. operários, camponeses,
empregados manuais, pequenos produtores independentes), e alguns traços comuns, entre os
quais um quadro de interacção marcado como espaço social de vizinhança, a bifuncionalidade
feminina, quadros gerais de sentido e conduta onde surgem formas de percepção, avaliação e
acção perante o mundo que são de algum modo transversais a estes grupos (ibidem: 130-144).
13. Esta representação do fracasso masculino quanto ao papel de providenciador dos recursos do
agregado parece, aliás, aí remontar muito atrás no tempo e ter subsistido com uma relativa
constância em estratos desfavorecidos. Consulte-se, por exemplo, a etnografia de Liebow (1967)
sobre um bairro degradado de Washington.
14. Nesta comparação Virgínia Ferreira refere-se, na verdade, aos índices de segregação
horizontal, ou seja, as diferenças na estrutura sectorial e profissional do emprego,
independentemente dos níveis de qualificação e remuneração. Como a autora tem o cuidado de
ressalvar, em muitos aspectos a inserção das mulheres portuguesas no mercado de trabalho é
claramente desfavorável quando comparada à masculina (1993: 234). No que diz respeito à
penetração das mulheres na esfera laboral, ela começou por ocorrer maciçamente na década de
60, quer no sector industrial, quer agrícola, quer no dos serviços (cf. Barreto, 1996: 37; Machado e
Firmino da Costa, 1998: 28-30; Almeida et al, 1998: 47-51).
15. Reconhecendo que este será um indicador imperfeito, relembro que em Portugal, entre 1989 e
1997, a subida proporcional de condenações de mulheres por crimes de tráfico foi superior ao
dobro da correspondente às condenações masculinas (ver supra: 72-73).
16. Assumir é um verbo muito conjugado nas conversas prisionais, onde se discorre longamente
sobre as estratégias ou de chamamento a si da responsabilidade pelo crime, ou da sua
transferência para outros, o que normalmente ocorre com o acordo destes.
17. Segundo o economista Johannes Kepler, a economia paralela portuguesa teria em 1998
representado 16,9% do Produto Interno Bruto (citado no semanário O Independente , 10 de
Setembro de 1999).
18. Os trabalhadores informais por conta de outrem encontram-se desta forma em desvantagem
perante os seus homólogos com contrato, enquanto que para os empregadores informais/formais
a situação inverte-se, em desfavor dos segundos. Acresce que no caso dos trabalhadores
115

informais, quer dependentes quer independentes, tal desregulação pode redundar numa
desprotecção crítica em caso de desemprego, doença e velhice (ver Capucha, 1998: 227).
19. É também de ver a este respeito o notável registo etnográfico efectuado por Kesha Fikes
(1998) das permanentes confrontações das peixeiras de origem cabo-verdiana com as forças
policiais.
20. A continuidade entre a economia formal e informal foi já assinalada por Manuel Villaverde
Cabral (1983) noutros contextos portugueses.
21. A pobreza pode além disso ser avaliada a partir de várias perspectivas: por referência a um
limiar de sobrevivência (pobreza absoluta); por referência às condições de vida «médias» de uma
dada sociedade (pobreza relativa), seja de ordem unidimensional, limitando-se às condições
materiais de existência, seja de ordem multidimensional, abrangendo também as privações de
ordem social e relacional; enfim, por referência à leitura que os próprios actores fazem da
situação em que se encontram (pobreza subjectiva) – ver Strobel (1996) e Townsend (1993). Os
dados oficiais decorrem normalmente de uma das duas primeiras perspectivas e restringem-se ao
plano material da pobreza.
22. Dados do Eurostat (ver relatório de 1998) relativos ao ano de 1995 apontavam Portugal como
o país da União Europeia com maior percentagem de pobres (24% dos portugueses viviam abaixo
do limiar de pobreza) e com maiores disparidades na distribuição de rendimentos. É também
significativo um outro dado, que traduz bem a fraqueza do Estado-providência no atenuamento
destas assimetrias através de esquemas de protecção social: em média, enquanto na Dinamarca
16% do rendimento resulta de transferências sociais, estas apenas representam 5% no
rendimento de um português.
23. O RMG não se encontrava ainda em vigor quando iniciei o trabalho de campo, pelo que não
pude apreciar os seus impactes nos rendimentos da população em estudo nem as suas possíveis
relações com a economia da droga.
24. Não se veja porém na sociedade-providência o cumprimento informal das ideias de cidadania
vigentes nos estados democráticos modernos – justamente as que também organizam os
mecanismos redistributivos do Estado-providência. Senão vejamos:
[A] sociedade-providência é avessa à igualdade ou, pelo menos, não distingue tão bem quanto o
Estado-providência entre desigualdades legítimas e ilegítimas; [...] é hostil à cidadania e aos
direitos porque as relações sociais de bem-estar são concretas, multiformes e assentes na
reciprocidade complexa de sequências de actos unilaterais de boa vontade; [...] cria dependências
e formas de controlo social que, podendo ser mais flexíveis e negociáveis, são porém mais
flagrantes; [...] tem tendência a criar rigidez espacial; [...] e os custos do bem-estar social que
proporciona recaem nas mulheres [...] (Santos: 1994: 48-49).
25. Ver em concreto Chaves (1999b) para os processos de estigmatização dos habitantes do Casal
Ventoso e ainda Fernandes (1998), Fernandes e Agra (1991) para zonas residenciais no Norte de
Portugal.
26. A clandestinidade dos imigrantes indocumentados torná-los-ia inacessíveis ao rastreio e
tratamento da tuberculose e como tal constitui-los-ia em veículos de propagação da doença,
especialmente nos bairros onde residem.
27. Por cair fora do âmbito deste trabalho, a ideia de semiperiferia não contempla, contudo, o
sentido suplementar de «intermediação» que B. de Sousa Santos (1993) lhe atribui para situar o
lugar de Portugal nos fluxos e trocas que atravessam o sistema mundial. Transpondo esta noção
para os fluxos ilegais; poder-se-ia considerar a economia da droga à escala mundial como um
sistema, hoje complexificado pelo esbatimento de anteriores clivagens entre países produtores e
países consumidores: os primeiros não só registam consumos crescentes, como os padrões deste
consumo se alteraram pela incorporação nas substâncias tradicionais da farmacopeia ocidental;
os segundos, com o advento de drogas sintéticas e a menor dependência daquelas matérias-
primas, tornam-se, cada vez mais, produtores (ver, por exemplo, Labrousse, 2000, e Grimal, 2000).
116

Neste sistema Portugal é também, de algum modo, semiperiférico – justamente no sentido de


«intermediário» – uma vez que parece ser, como a Espanha, uma plataforma de trânsito em
algumas rotas de exportação Norte-Sul e uma das portas de entrada privilegiadas no espaço
Schengen (cf. Observatório Geopolítico das Drogas, 2000).
28. É de confrontar abordagens como a de Adler (que têm, de resto, uma longa tradição na
criminologia americana e supõem o abandono por inteiro de um mundo de valores para integrar
um outro, como se um e outro se constituíssem monoliticamente e independentemente dos
actores) com a perspectiva crítica e incomparavelmente mais fina de Chaves (1999a: 271-345;
2000). Não me deterei naquela criminologia, à qual tive já ocasião de me referir num outro lugar,
a propósito da noção de «cultura/sociedade prisional» (Cunha, 1994: 99-136).
117

Capítulo 5. A erosão da fronteira


prisional

1 Desci ao recreio, no P3. Enfim, uma manhã ensolarada. No recinto desportivo, as


reclusas descobriam-se tanto quanto podiam, arregaçando saias, camisolas, mangas,
para apanhar sol. Hoje a guarda de serviço é condescendente e não mandou as
modestas strip-teasers para dentro, como já aconteceu. À boleia da mesma
condescendência, algumas aproveitaram para improvisar um estendal e pôr roupa a
secar, o que também nem sempre é permitido no recinto desportivo. Juntei-me a um
bem disposto grupo de jovens reclusas da Musgueira Norte, do Casal Ventoso e das
Galinheiras, sentado no chão a um canto. Perguntam-me, rindo:
2 – Então, já escreveu que isto não tem condições? Já escreveu sobre o médico e o dentista, o tempo
que a gente tem que esperar? A comida nem para os cães serve (mais risos). Os chuveiros do 2.º e
do 3.º piso não funcionam, no 1.º corre um fio de água a escaldar. Já foi às casas de banho? Este
campo de jogos é um luxo, mas é só fachada.
3 – Vou escrevendo. Mas olhem que eu não sou da inspecção, é melhor não esperarem
grande coisa... Agora quero é apanhar sol. Posso?
4 – (Coro de risos) É cá das nossas. Sente aí.
5 – Estávamos a cortar nas do Norte. Que nível, já viu? É palavrão acima, palavrão abaixo. (E,
muito alto, num tom galhofeiro, atira para o ar.) Por que é que não vão lá para cima, para a
terra delas?
6 Veio lesta a resposta. Ao longe lança uma, de um grupo do Porto, no mesmo tom:
7 – Olha, olha p’ra ela! Foda-se, bem queríamos. Pois isso é que a gente queria, que julgas?
(Gargalhada geral).
8 De repente, no meio do recreio alguém grita, a plenos pulmões: «É BOLA! É BOLA!» E
irrompem aplausos por todo o recinto, longos e entusiásticos. Uma reclusa preventiva
havia sido absolvida em julgamento, ia sair em liberdade.
Passado um pouco, alguém se junta a nós, trazendo notícias de um outro
julgamento. Abrevio-as no comentário com que concluiu:
– Iiiiih!... Aquilo há lá mais chibos do que réus!
Uma reclusa, ao fundo, faz-me um sinal. Queria falar comigo. Preparava-me
preguiçosamente para me levantar, quando chegam mais gritos, agora pela janela
118

de uma cela. Salta de imediato uma do meu grupo e sai a correr chamar a guarda.
– O que é que terá acontecido?
– É aquelas duas outras vez. São duas irmãs que estão sempre a discutir por causa do
processo. Uma vez até já andaram à pancada. Tem de se ir lá antes que aconteça alguma
coisa. [Na sequência deste incidente as irmãs foram finalmente separadas, deixando
de partilhar a cela onde até então coabitavam.] [Caderno de campo.]
9 O tom desta vinheta de uma agitada manhã de Primavera no EPT ecoa algumas das
temáticas a desenvolver nos capítulos que se seguem. Nela insinuam-se, em uníssono,
as vicissitudes das relações de parentesco que atravessam o cárcere; as novas balizas
das práticas discursivas sobre a delação (o chibanço); uma aparente clivagem (Norte/Sul)
e a ausência de outras (neste caso, entre bairros, dada a proveniência variada das
amigas a cujo grupo me juntei); um vago sentido de «comunidade» (exalado aqui pela
ruidosa congratulação maciça pela libertação de uma reclusa, uma expressiva
manifestação colectiva que nunca havia presenciado durante o meu primeiro trabalho
de campo em Tires).

À procura de parentes, amigos e vizinhos: dois


campos bibliográficos
10 Sabemos já como e porque as reclusas, na sua globalidade, se encontrarão na prisão
com parentes, amigos e vizinhos. Se uma década antes era constatável a presença
destas redes pré-prisionais de interconhecimento, ela confinava-se, então, ao universo
das reclusas ciganas (ver Cunha, 1994: 122-127). Hoje, atravessa e permeia todo o EPT.
Ora, percorrendo as linhagens bibliográficas sobre prisões um tal fenómeno surge, à
partida, como relativamente inédito. Sê-lo-á porque tais redes inexistem, de facto,
noutros contextos carcerais, ou porque o enfoque adoptado nos estudos prisionais as
tem deixado na sombra, não lhes dando, deste modo, existência? Para fases mais
recuadas desse percurso, a destrinça é difícil. Por um lado, a saliência da temática das
«pseudo-famílias», que durante muito tempo marcou a bibliografia sobre as prisões
femininas, leva a crer na ausência de reais laços familiares, dos quais aquelas seriam,
precisamente, um sucedâneo1. Por outro lado, contudo, os trabalhos da escola de
Chicago sobre bairros urbanos desqualificados assinalavam na altura fenómenos de
delinquência endémica que os constituíam, assim, como fornecedores privilegiados de
contingentes de reclusos. Nesse sentido, é de aventar que pelo menos alguns laços de
interconhecimento prévio se cruzassem em prisões americanas. Anos mais tarde,
embora não referisse essa coexistência na cadeia feminina que estudou, Esther
Heffernan escreveria, ao descrever os regulamentos respeitantes a visitas e
correspondência com o exterior:
Communication with former inmates is ordinarily not permited, but when almost
all of the immediate family or the husband have criminal records, exceptions are
made. One such request pleaded, “Everyone I know is an ex-inmate”, and the record
verified the statement – mother, common-law husband, two brothers, sister and
young son (1972: 59).
11 Numa leva mais recente de abordagens de contextos prisionais assiste-se, neste
aspecto, a uma espécie de paradoxo. Muito menos marcadas do que as anteriores por
um paradigma funcionalista – que fechava a análise nos muros da prisão e fazia existir
este universo como que num vácuo, abstraindo-o da sociedade envolvente (ver infra:
195) –, tais elos pré-prisionais ou o encarceramento enquanto elemento biográfico de
119

parentes e de conhecidos são aqui e ali mencionados, mas apenas episodicamente, en


passant, e numa mera relação de ancilaridade com outros tópicos temáticos. Vejamos
alguns dos raros casos em que tal menção é, sequer, feita.
12 Em Diulio (1994), aparece subsumida numa caracterização do perfil da população
prisional:
Most prisoners come from single-parent families, over one-quarter have parents
who abused drugs or alcohol, and nearly one-third have a brother with a jail or
prison record (ibidem: 25).
13 Mark Fleisher (1995), que conjugou numa mesma obra investigações de terreno dentro
e fora da cadeia, levar-nos-á a registar as relações de vizinhança intramuros a coberto
dos termos emic «road dog» e «homeboy», referindo-se a estas noções a propósito da
constituição de «gangs» e de «sets» (uma unidade mais fluida de acção colectiva, ibidem:
124-125). Mais adiante, é de novo em contrabando, ou seja, unicamente através das
palavras dos seus informantes, que nos inteiramos da existência de relações de
parentesco na prisão. Assim sucede quando um deles, recém-chegado, lhe comunica
exultante que deixara de se sentir assustado pois acabara de encontrar na cadeia um
primo e um par de conhecidos lá de fora (ibidem: 163). De resto, as referências aos «
homeboys» ou «homeys» continuarão a reemergir esparsamente neste contexto, mas sem
suscitarem a Fleisher uma análise específica2.
14 Examinando a trajectória na pobreza de algumas mulheres que haviam sido presas (e
não propriamente a prisão), Pat Carlen dá-nos a conhecer, entre estas, as que contam
terem vivido o encarceramento de familiares ou terem sido detidas, em simultâneo,
com vários deles. Carlen escreve que:
[Some] women claimed to me that, in the areas they were presently living in,
everyone was so poor that everyone was on some kind of fiddle to get by [...]. “No one
points at you, because they know why you do it, they’re all in the same boat”.
Additionally [...], the women’s terms of imprisonment or other institutionalization
had [...] resulted in having numerous connections with people for whom law
breaking was a normal way of living (1988: 113)3.
15 Finalmente, estudando a prisão enquanto instituição (des)socializadora no campo
político, bem como a exportação para comunidades exteriores das atitudes e valores
nela engendrados, Thomas Stewart, num momento inicial em que caracteriza a
população reclusa, refere que «the vast majority reported having an immediate family
member or close friend in prison» (1994: 13). O autor manifesta-se surpreso perante o
facto, qualificando-o de «startling fact», mas fica-se por esta constatação qualificada,
sem prosseguir no exame das suas eventuais implicações dentro e fora da cadeia – e
nomeadamente para a própria construção do objecto em questão.
16 Em suma, portanto, eis como acedemos nestes estudos às redes pré-prisionais de
interconhecimento: ou inferimo-las nós, isto é, somente a partir das palavras dos
próprios prisioneiros; ou são apresentadas como breves e inconsequentes elementos
sociográficos; ou, ainda, surgem de forma meramente alusiva, nos interstícios do
tratamento de um outro tema, e ao qual permanecem, de resto, alheias. Em qualquer
caso, não são reconhecidas como tal, não lhes é dada relevância analítica nem são, por
conseguinte, objecto de questionamento por si mesmas.
17 À excepção de Stewart (1994), é de conceder que poderão ter passado despercebidas em
virtude de uma porventura igual insignificância do seu peso nas prisões. Porém, o
cruzamento desta bibliografia com estudos contemporâneos em bairros estigmatizados
120

dos mesmos contextos nacionais abre uma maior margem de dúvida. Para enumerar
alguns de uma longa e (no aspecto que agora trato) redundante lista, Sommers, Baskin e
Fagan (1996: 980), por exemplo, traçando o perfil da população que estudaram em dois
bairros nova-iorquinos, indicam que 60% destas mulheres tinham um familiar preso;
Maher (1997: 30), numa caracterização de mesmo teor, regista por seu turno que 40%
das pessoas do universo em causa informaram ter irmãos a braços com a justiça penal e
¼ reportou familiares detidos num ou noutro momento; fugindo ao registo sociográfico,
Mike Davies descreve, para bairros de Los Angeles, a história da criminalização
sucessiva de camadas de uma comunidade e conclui, recorrendo com ironia ao
crescente termo-fétiche «gang»:
[...] «gang members», then «gang parents», followed by whole «gang families»,
«gang neighborhoods», and perhaps even a «gang generation» (1990: 284);
18 talvez por isso sejam mais do que «coincidências» factos que polvilham etnografias
realizadas nas inner-cities americanas, como o apontado por Bourgois quando relatava a
trajectória de vida de um dos seus personagens:
He spent a year and a half in prison, where by coincidence he served time [...] with
his uncle [...] (1995: 332).
19 Deixando a bibliografia anglo-saxónica sobre estes universos intra e extramuros, e
percorrendo a francesa, onde existe já um conjunto substancial de estudos prisionais,
não encontrei rasto de tais redes de parentesco e vizinhança, pelo que elas serão, muito
possivelmente, insignificantes. E, no entanto, pelo lado dos bairros precarizados, é
também em França que Duprez e Kokoreff (2000: 77) nos informam da crescente
repressão sobre eles exercida e sobre a territorialização da acção policial que contribui
para produzir, tal como em bairros portugueses, braçadas de arguidos articulados em
redes locais de interconhecimento (ver capítulo 3).
20 Para o português Casal Ventoso, Chaves assinala, a este propósito:
Ir de cana e ficar de cana foram já experiências vivenciadas por muitos habitantes e
que não se encontram afastadas do horizonte de possibilidades que se apresentam a
muitos outros. No momento em que esta pesquisa se desenrolava, por exemplo,
centenas de pessoas do Bairro encontravam-se detidas em estabelecimentos
prisionais (1999a: 122).4
21 Ora, assim como Chaves analisa em detalhe o modo como a repressão policial se tornou
constitutiva das dinâmicas de construção da comunidade (veja-se o caso,
luminosamente etnografado, do dar à fuga , uma prática colectiva de evitamento e
ludíbrio da acção das forças da ordem), poder-se-ia também examinar, mutatis mutandis,
o modo como a própria cana (e não só a focalização das polícias no bairro) se integra,
por sua vez, nessas dinâmicas. Um tal modo insinuar-se-á, de resto, num pequeno
apontamento de campo na mesma obra, que deixa antever, por exemplo, a intervenção
da prisão na reprodução e engendramento da trama de relações no bairro:
Um outro participante chegou e comentou: A Marcia estava branca, agora já tá boa, foi
lá a mãe buscá-la. Todos pareciam saber porque a Marcia estava branca. Resolvi
perguntar e disseram-me que o adolescente capturado, quando a mãe fora presa,
tinha estado uns meses em casa dela e era como se fossem irmãos (ibidem: 253).
22 Aventei acima duas possíveis ordens de razões para a relativa invisibilidade das redes
pré-prisionais nos estudos de prisões. Quanto à prisão, apesar dos crescentes indícios
em contrário que surgem na literatura sobre universos extracarcerais, não é
inteiramente de arredar a hipótese de a dimensão de tais redes não ter atingido, de
facto, um limiar crítico, suficiente para captar a atenção dos investigadores. É possível,
121

por um lado, que elas sejam ainda demasiado recentes, uma vez que parece ter sido
principalmente a partir do eixo criminal da droga que se organizaram os fenómenos de
repressão colectiva, dos quais, em parte, aquelas decorrem. Tanto assim é que dez anos
atrás, em Tires, eram salientes apenas numa fracção da população reclusa. Por outro
lado, não é de excluir que o seu peso seja menor noutros contextos prisionais do que o
assumido em contextos portugueses dada uma diferente intervenção das solidariedades
de proximidade, nomeadamente dos laços familiares, na economia da droga.
23 É porém de considerar igualmente uma segunda ordem de razões, sobretudo tendo em
conta que a repressão maciça dos crimes de droga, bem como os seus espúrios
dispositivos colectivizantes recuam, noutras paragens, pelo menos ao início da década
de 80. Trata-se dos enfoques habitualmente adoptados, que parecem impedir que a
análise da prisão e dos bairros comuniquem, surgindo uma e outros, aliás, praticamente
como categorias pré-recortadas. Nas bibliografias respectivamente produzidas sobre
estes dois terrenos, menciona-se, de forma lateral, uma mesma coisa: a existência de
parentes, vizinhos e amigos presos. Mas esta constatação permanece confinada às
margens de cada uma, prosseguindo ambas percursos paralelos, sem que examinem as
implicações analíticas para os respectivos campos deste facto convergente.
24 No caso dos estudos prisionais, apesar de há muito terem recolocado a prisão nos vastos
contextos que a englobam e moldam enquanto objecto, continuam todavia a não
questionar a aparente evidência dos seus contornos enquanto quadro de interacção
social, contornos estes que parecem dados à partida e de uma vez por todas. Vejamos,
muito breve e esquematicamente, as linhas de força desta evolução 5. Pode dizer-se que
a questão subjacente aos primeiros grandes debates teóricos sobre a prisão foi a de
saber se esta era produtora de conformidade ou reprodutora de desvio – um avatar, se
quisermos, do tema «prisão-escola do crime». É sob esta perspectiva que nos anos
quarenta começam a ganhar expressão as noções de «cultura prisional» e «sociedade
prisional» ou «sistema social recluso». É assim que Donald Clemmer (1940) começa por
colocar a «cultura penitenciária» em exérguo ao explanar o conceito de
«prisionização», um processo aculturativo que estabelece a proporcionalidade inversa
entre a adaptação à prisão e a readaptação ao exterior: quanto mais prolongado e
exclusivo for o contacto com os valores locais, valores esses entendidos como
criminogéneos, menor será a conformidade a normas e valores convencionais 6.
25 Subscrevendo esta teoria, Gresham Sykes e Sheldom Messinger (1960) tentarão, porém,
dar conta da própria existência de uma «cultura» e de uma «sociedade prisional», isto
é, da recorrência em várias populações reclusas de um mesmo código de valores («não
denunciar», «não fraquejar», «não perder a cabeça», «não roubar os colegas», ser-lhes
«leal», entre outros) e de um sistema social onde figura uma galeria de papéis definidos
em função da observância ou do afastamento desse código (o «fixe», o «gorila», o
«menina», o «certinho», etc.), algo já esboçado por Sykes (1958). À boa maneira
funcionalista, esta totalidade integrada que seria a «cultura prisional» e o sistema social
que ela regula ter-se-ia gerado na prisão em resposta a um leque de privações impostas
pela reclusão7. Tal subcultura teria assim uma origem endógena. Mas se desempenhava
uma função adaptativa na cadeia, ao promover vínculos ao grupo recluso alimentaria
da mesma feita valores criminogéneos e obstaria à reintegração social.
26 Um artigo de John Irwin e Donald Cressey (1962) viria a operar uma viragem nos
estudos prisionais. Segundo os autores, o sistema sócio-cultural dos prisioneiros não é
apenas um produto de condições internas e uma resposta a elas. Seria sobretudo
122

tributário de subculturas desviantes exteriores ou anteriores a ele 8. O «código de


valores recluso» é parte, por um lado, de um «código criminal» externo («thief sub-
culture») – o que seria mais tarde corroborado por vários autores, entre os quais realço
Wellford (1967) – e, por outro, de um conjunto de padrões interiorizados ao longo de
uma prévia e espessa carreira institucional, onde as instituições de reeducação e as
prisões se sucedem («convict sub-culture»). Com o tempo, estas duas subculturas
desviantes tenderiam a fundir-se na cadeia, pelo que o código recluso consistiria afinal
numa coalescência, num melting-pot de ambas. Note-se assim que, apesar da
controvérsia entre o «modelo da privação» e o «modelo da importação» quanto às
origens (endógenas ou exógenas, respectivamente) do sistema sóciocultural
penitenciário, não foi posta em causa a própria categoria de «cultura prisional» – e de
«sociedade prisional» –, mas apenas a natureza do seu conteúdo, continuando esta
designação, de resto, a operar nos dois lados do debate 9.
27 Os velhos equilíbrios carcerais que o código recluso era suposto assegurar e sustentar,
equilíbrios estes sublinhados por ambos os modelos, ver-se-iam profundamente
perturbados mais tarde. A homeostase e coesão do sistema social que eram tidas por
decorrentes de uma ética onde as ideias de liderança, prestígio e autoridade
assentavam na conquista do respeito da globalidade dos co-reclusos daria lugar à
entropia e instabilidade de um sistema doravante dilacerado pelo conflito desregulado,
pelo confronto imprevisível, pela retaliação desproporcionada – numa palavra, por um
generalizado «desrespeito» entre os detidos. É assim que, anos depois, o mesmo John
Irwin (1980) anuncia o fim do código recluso que antes (re)caracterizara e ao qual
reconhecera o efeito unificador (Irwin, 1970), e a sua substituição por outros, mais
frágeis e parcelares. Descreverá então a (des)organização social da prisão, dividida em
facções violentas e atravessada por ataques extemporâneos, por roubos e pela predação
inter-reclusos. A fragmentação deste universo dar-se-ia também pela delimitação de
grupos étnico-«raciais» e/ou gangs (ver ainda Carroll, 1974; Jacobs, 1977) e pela
violência associada à economia da droga dentro – e fora, como vimos no capítulo
anterior a propósito dos EUA – da cadeia (Fleisher, 1989; Colvin, 1992). Mais do que
nunca se impunha, portanto, a consideração dos factores estruturais externos que
moldavam a prisão.
28 Intersectando-se com esta tendência, delineia-se uma outra, que se afirmará cada vez
mais10. As questões tornam-se particularmente precisas, dando lugar a problemáticas
muito específicas que deixam de envolver a prisão como um todo. Esta deixa de
constituir um problema em si mesma para passar a constituir um contexto – particular,
é certo – para o estudo de temáticas parcelares11. Esta inflexão no sentido da
especialização dos estudos prisionais (cf. Rostaing, 1997) parece com efeito ter vindo a
apagar uma tendência, até então especialmente notória nas abordagens relevando das
ciências sociais, para a quase coincidência entre «terreno» e «objecto» de estudo
(Cunha, 2001). Todavia, a prisão continua a configurar uma unidade de análise
privilegiada, mesmo se, por outro lado, o horizonte desta se alargou para incluir os
processos externos e históricos que iluminam o objecto em questão. E permanece como
centro da análise em parte porque a prisão é ainda encarada como um quadro de
interacção social cujos contornos seriam óbvios e dados à partida – tal como eu a
entendia há dez anos atrás, embora ressalvasse, neste aspecto, o caso das reclusas
ciganas (a ver adiante). Ou seja, por muito que tal quadro seja entendido como
tributário da bagagem sócio-cultural que os reclusos são supostos transportar para a
cadeia, tal como a prisão-instituição o é de várias forças externas, os inequívocos
123

limites materiais destes estabelecimentos delimitariam também inequivocamente um


mundo de relações sociais temporariamente autónomo e cortado do exterior. É assim
possível que os fios relacionais que durante a reclusão articulam os contextos intra e
extramuros tenham passado igualmente para um segundo plano analítico. Por outras
palavras, e para concluir o percurso cruzado pelas bibliografias sobre bairros e prisões
onde são detectáveis indícios crescentes da existência de redes pré-prisionais de
interconhecimento, é possível que tais redes não tenham sido reconhecidas como tal,
surgindo antes diluídas numa trama de relações que seriam, por definição, «prisionais».

A incorporação da prisão pelo bairro


29 Ora hoje, em Tires, a extensão dos laços de parentesco e de vizinhança teceu uma teia
de relações prisionais de outra natureza. Há que dizer, antes de tudo, que o momento
de passagem da fronteira intra/extra-muros – e portanto a ruptura simbólica que ele
assinala – se tornou menos dramatizado devido a transformações institucionais. Há dez
anos, à entrada no estabelecimento as reclusas eram submetidas ao período de
observação, a primeira etapa do sistema progressivo 12. Durante esta etapa inicial, que
precedia um regime de vida em comum durante o dia e de isolamento celular nocturno,
as detidas eram supostas permanecer em isolamento contínuo. Na origem, a medida
destinava-se a permitir o exame da recém-chegada por diversos profissionais e a afectá-
la, em consequência, à secção penitenciária mais adequada. Mas em 1987 esta função
encontrava-se já inflectida pela escassez do pessoal prisional e este acompanhamento
resumia-se, na verdade, a uma entrevista com um técnico de educação ou de reinserção
social, pelo que se salientavam, sobretudo, os efeitos intimidatórios do isolamento.
Actualmente este deixou de ser observado, bem como passaria a ser permitido às
reclusas preventivas o uso de vestuário civil. Atenuaram-se assim as «técnicas de
mortificação do Eu» (Goffman, 1968: 56-66) ou as «cerimónias de degradação»
(Garfinkel, 1956) que configuravam como que um rito de passagem marcando a entrada
no mundo carceral e sublinhando a ruptura com o exterior. Mas se a eliminação do
isolamento e a suavização do despojamento de equipamentos de suporte à identidade
pessoal esbateu pela via institucional uma tal fronteira, esta ver-se-á criticamente
subvertida por via das redes de interconhecimento. Uma neófita chegará na maioria
das vezes à prisão acompanhada de parentes, amigos e vizinhos, ou reencontrá-los-á no
estabelecimento. A iniciação na vida carceral far-se-á portanto com eles ou por eles, o
que de alguma forma dissipará a hostilidade inerente a um universo estranho e,
simultaneamente, permitirá em parte sustentar não só a identidade pessoal, como
também a identidade social num mundo que, em princípio, a suspende – quando não a
tritura. Em todo o caso, estas reclusas muito provavelmente já não se reconheceriam,
ao invés das detidas do passado, nas interrogações avançadas por Léonore Le Caisne a
propósito de uma prisão francesa:
Cette perte du sentiment de cohérence et de continuité conduit alors tout
naturellement les détenus à s’interroger sur 1’existence de l’unité de leur personne,
et du même coup sur leur « vérité ». Ils postulent l’existence d’un moi unifié, mais
que personne, en prison tout au moins, ne serait capable de connaître – « Jamais ils
ne sauront qui je suis ici », soutiennent la plupart. Que disent-ils de leur moi ? Ou se
trouve-t-il ? En Prison ? À l’extérieur ? (2000: 87).
30 Ao ser presa, por conseguinte, uma pessoa não é mais inteiramente extirpada do seu
universo social. Segmentos importantes deste universo são deslocados com ela. Estes
124

segmentos entrançavam-se por sua vez com outros universos sociais, parte dos quais se
encontram, também, presos. Assim, estas redes de conhecimento pré-constituídas
começam por situar a prisão na continuidade e não na ruptura com o exterior. Mas a
prisão tornou-se um prolongamento do bairro na medida ainda em que o estigma que
outrora ela representava institui-se agora bem antes, a montante da reclusão. Ela vem
apenas condensar a estigmatização que se instalara já pela pertença a bairros e grupos
conotados com a droga e o tráfico. No passado, a inscrição espacial do estigma na prisão
– quem está preso delinquiu – assinalava uma marginalização pontual. Circunscrevia-
se, de certa forma, aos limites materiais e temporais da detenção e era possível ocultá-
lo após a libertação. Tratando-se de uma marginalização pontual, era também possível
resistir à identidade negativa que a reclusão impunha (ao atestar de uma condição
desviante e ao reduzir as prisioneiras a essa condição uniforme), sendo justamente um
tal ensejo que organizava as percepções e discursos sobre as co-reclusas.
31 De facto, a rejeição de uma identidade desviante ia de par com a desqualificação
daquelas, sobre as quais projectavam o seu próprio estigma. Todos os registos da vida
prisional eram apropriáveis para comunicar o distanciamento em relação às co-detidas,
desde as representações sobre os crimes, em que os alheios emanariam de uma
natureza delinquente e confirmá-la-iam, enquanto os próprios mais não revelariam do
que um acidente de percurso (um ponto a desenvolver no capítulo seguinte), até às
representações sobre a homossexualidade, hiperbolizada pelas constantes imputações
deprecatórias que então se entrecruzavam (ver Cunha, 1994: 144-146). Veja-se ainda,
entre outras, as representações sobre o pessoal prisional, onde a reprovação do seu
desempenho não traduzia a antológica oposição staff-prisioneiros, mas antes veiculava
a reprovação das co-reclusas, sendo mesmo indissociável desta: ou seja, o staff era
depreciado não por ser staff , mas por se prestar a atender presas intrinsecamente
viciosas e manipuladoras, desordeiras e não-merecedoras ou, como resumia uma
reclusa, esse tipo de gente (ibidem: 106-112). Percorra-se, enfim, as representações sobre a
amizade, a partir das quais se produziu um véu discursivo que ocultava as práticas de
solidariedade e de entreajuda, de apoio afectivo, de partilha de bens e confidências que
caracterizavam as díades de relações preferenciais. No léxico usado na prisão não
constavam, porém, os vocábulos «amiga» e «amizade». Para descrever tais relações
recorria-se a expressões como sou muito unida com, dou-me com, simpatizo com. Daí que a
invariável resposta negativa que obtinha com a genérica pergunta «Tem amigas?» fosse
dissonante da precisa nomeação a que procediam quando eu inquiria, mais
especificamente, «Quantas amigas tem?»13. Quando uma reclusa então me afirmava que
«Aqui não há amigas, há é boas companheiras. As amigas é lá fora», exprimia
eloquentemente a oposição intra/extramuros em que se ancorava esta representação
das relações na cadeia. Na verdade, esta distinção terminológica entre amigas e boas
companheiras parecia comunicar menos diferentes graus de proximidade, envolvimento
e identificação pessoal do que o facto de as «verdadeiras» relações serem situáveis
apenas fora do contexto prisional, já que, como as reclusas insistiam em apontar, a
prisão é um intervalo na vida; É um tempo perdido; ou, não é o mundo real. Por outro lado, o
velar da amizade era também coerente com as dinâmicas de autodemarcação face ao
conjunto abstracto das co-internadas, dinâmicas essas que levavam à proliferação de
fronteiras entre as reclusas. Hoje, o vocábulo amiga circula sem freios em Tires, não só
porque o dispositivo estigmatizante deixou de operar nos mesmos termos no interior
da própria categoria reclusa, como muitas amigas vêm também, de facto, lá de fora –
125

assim como a prisão deixaria de ser, de certa forma, um intervalo na vida para passar a
ser uma das suas etapas.
32 Referi no capítulo 2 a inesperada facilidade com que se iniciara o contacto com as
reclusas no meu primeiro trabalho de campo. Com efeito, esta proximidade construiu-
se na razão inversa do distanciamento entre estas, do mesmo modo que a minha
exterioridade ao universo prisional resultava numa posição vantajosa. Depositária de
uma legitimidade que a prisão viera, no seu caso, pôr em causa, eu representava o elo
possível para a recuperação e certificação de uma identidade positiva periclitante, uma
recuperação que implicava, no mesmo movimento, a disjunção da categoria das co-
detidas. No presente, além de se ter cavado uma enorme distância sociológica entre
mim e a generalidade das reclusas, a sua estigmatização é bem mais profunda e menos
reversível. É possível que me vissem agora demasiado distante e fizessem prova de
realismo ao não aspirarem a uma relegitimação identitária através da aproximação a
mim. De facto, o estigma tem também hoje uma inscrição espacial, mas deixou de se
confinar aos muros da prisão para remontar ao bairro. A marginalização que ele
assinala é assim mais estrutural do que circunstancial. Talvez por isso a cadeia não seja
mais o palco que foi outrora das lutas simbólicas onde se encenava aquela resistência.
Em suma, se quisermos numa palavra caracterizar o passado e o presente, dir-se-ia que
correspondem respectivamente aos dois sentidos em que Goffman (1975) desdobrou a
noção de estigma: o que situa os indivíduos «desacreditáveis», cujo estigma é
dissimulável, manobrável e não imediatamente apreensível por outros, e aquele que
designa a condição dos «desacreditados», onde a diferença é já conhecida, atestada, e
quase inelutável.
33 Se a estigmatização é pré-carceral, por outro lado a prisão «banalizou-se» no horizonte
social imediato destas mulheres. Sabemos já que a maior parte tem vizinhos ou
familiares que estão ou estiveram presos, pelo que as reclusas se mostram cientes de
que à saída não se depararão com uma especial reprovação ou sobranceria. Rarefez-se
por conseguinte a preocupação em ocultar a detenção, que uma década atrás tanto
ensombrava a antevisão da libertação: cada uma fantasmava acerca da possibilidade,
então aliás assaz remota, de se cruzar no exterior com uma ex-detida e assim arriscar a
exposição do seu passado. Hoje, posto que muitas reclusas provêm dos mesmos bairros,
uma tal ocultação não seria mais exequível, mesmo que fosse tentada. Em segundo
lugar, os visitantes deslocam-se agora a Tires em conjunto, usufruindo da boleia de um
ou outro vizinho que vem visitar uma parente – e aproveita para visitar, da mesma
feita, uma vizinha presa. A administração do EPT procurou por isso disciplinar o regime
de visitas, reservando, por exemplo, os fins-de-semana para os familiares mais
próximos, mas teve de salvaguardar alguma flexibilidade na aplicação da regra aos
visitantes que vêm de longe todos juntos.
34 Mais do que banalizada, a prisão «normalizou-se». Quando ao fotografá-las procurava
evitar os seus rostos (para que, evidentemente, não fossem posteriormente
identificadas e porque me recordava das costas que se voltavam e das caras que se
cobriam quando algumas equipas de reportagem se deslocaram no passado a este
estabelecimento prisional), com frequência as detidas insistiam, ao contrário, para que
eu as captasse de frente, aprontando para o efeito a pose e o devido sorriso. Uma que
ainda não conhecia pediu-me um retrato, dizendo que já tinha fotografias em todas as
prisões, onde tinha estado enquanto presa ou enquanto visitante, e a esta colecção
faltava a de Tires. Uma colega que ouvira o pedido acercou-se por sua vez:
126

Ai tem fotos da cadeia? Eu também já tenho muitas. Doutras cadeias. Tenho uma
que gosto muito, que é com o meu irmão em Coimbra. Mas de Tires ainda não tenho
nenhuma...
35 As posições neste circuito prisional que aqui entrevemos são, aliás, deslizantes, e os
estatutos de preso e visitante revelam-se muitas vezes intermutáveis. Foi assim que
uma conversa com duas portuenses dos bairros do Cerco e do Lagarteiro, unidas por
parentes em comum, foi interrompida pela saudação efusiva de uma delas a uma
reclusa lisboeta: haviam travado conhecimento no Hospital Prisional de Caxias, onde
uma visitara a mãe e a outra, a irmã; tiveram depois ocasião de renovar esse contacto,
já não na qualidade de visitantes mas na de presas preventivas, na cadeia de Custóias; e,
enfim, encontravam-se de novo, como condenadas, em Tires. É também a
«normalidade» da cadeia que um membro do staff pretendia significar quando
comentava a ambiência das visitas e especialmente a descontracção das crianças:
Os miúdos crescem no meio das rusgas, da polícia, têm muita gente da família presa.
Estão habituados às visitas às cadeias. Quando vêm é uma romaria, é uma festa. Não
estão nem por sombras inibidos.
36 Não foi assim com o filho da Palmira, uma cigana que habitava nos arredores de Lisboa.
Para ele a cadeia não era ainda, neste sentido, «normal». O trabalho de normalização
seria levado a cabo na própria prisão pela mãe, com a colaboração de uma guarda:
O meu filho tinha oito anos quando assistiu a uma rusga que o impressionou muito.
Era ele aos berros, aos berros... Há pouco tempo escreveu-me uma carta com um
sobrescrito lá dentro para a subchefe, que até chorou. «Quando é que a minha mãe
vem de precária?» Ele tinha visto um filme na televisão em que as presas estavam
acorrentadas nos pés. Pensou que a mãe também estava assim e fartava-se de
chorar na visita. Então uma guarda veio trazê-lo à cela para lhe mostrar que não era
assim. Eu disse-lhe que nós não podíamos sair daqui, mas no resto é tudo igual a lá
fora. «A cadeia é como lá fora, meu filho». Sabe, é que ao domingo há aí uns guardas
que tratam mal as visitas e o meu filho pensava que tratavam assim a mãe, que
também eram maus para mim. Eu depois disse-lhe que não, que aqui são só guardas
mulheres. Os outros só vêm trazer as visitas [da portaria] ao pavilhão.
37 A normalização da cadeia inicia-se assim bastante cedo, dentro e fora dela. Em todo o
caso, para os adultos a prisão é, como vimos, uma realidade muito presente a montante
da detenção e encontra-se já incorporada no quotidiano pré-prisional. Assim
banalizada e normalizada, a prisão viu erodir-se a fronteira simbólica que outrora
representava.

A incorporação do bairro pela prisão


38 Mas se o bairro incorporou a prisão, pode dizer-se que, de certo modo, a prisão
incorporou o bairro. Por vezes sucede que o encarceramento abrange um leque de tal
modo vasto de parentes, amigos e vizinhos que a prisão acaba por absorver quase
integralmente o círculo dos próximos de uma reclusa. Desta forma, é toda uma
retaguarda de apoio no exterior que se vê desguarnecida, suporte esse que
normalmente desempenha um papel crucial em várias frentes e etapas da reclusão.
39 Assim, durante a detenção, as reclusas afectadas pelo esboroamento desta retaguarda
encontrar-se-ão privadas dos habituais suplementos que amenizam o cárcere: entre os
mais comuns, toda a sorte de encomendas, alimentos, envelopes e selos, cartões de
telefone, dinheiro para os «alfinetes» (tabaco e café). Tais fluxos podem estar
127

totalmente ausentes desde o início ou serem interrompidos no decurso da reclusão por


dois motivos: ou porque os expedidores exteriores foram entretanto presos; ou porque
se lhes tornou difícil atender a todos os próximos a partir do momento em que estes são
transferidos de Tires e dispersos por diversos estabelecimentos prisionais – quando
previamente, por questões de economia, os bens eram enviados conjuntamente para
uma só pessoa, que depois os distribuía pelos diferentes destinatários na mesma cadeia.
Ora, estes extras são agora tanto mais preciosos quanto o desemprego atingiu já,
também, a cadeia. No passado a oferta de trabalho remunerado era maior do que a
procura e, embora ele não fosse obrigatório, havia uma forte pressão para aceitar as
ocupações atribuídas, caso contrário perder-se-iam alguns privilégios e informações
favoráveis à liberdade condicional – pelo que a sua recusa devia ser justificada por
motivos de força maior. Hoje, com efeito, nem sempre há trabalho disponível para toda
a gente e as reclusas poderão ter de aguardar uma colocação. De resto, na generalidade
bastante mais desmunida do que ontem, a população actual fez disparar a procura do
emprego prisional, sendo então que o problema que se lhe coloca não é já o de como
recusá-lo, mas sim o de como obtê-lo. Daí que à velha economia penitenciária
subterrânea, assente no contrabando e nos negócios ilícitos (como por exemplo o
tráfico de drogas ilegais e de medicamentos) se tenha vindo a acrescentar uma nova
economia informal, assente no trabalho. Na verdade, ela desenvolve-se nos mesmos
moldes da exterior, onde muitas reclusas evoluíam, e reedita a posição pré-carceral
destas num eixo hierárquico que vai agora articulá-las a uma minoria de detidas mais
abastadas e alheias ao universo do tráfico/consumo. Assim, vão-lhes lavando ou
passando a ferro umas pecinhas de roupa aqui e acolá – como me dizia uma presa com
vários parentes detidos, inclusive a filha que a acompanhava em Tires e beneficiava
igualmente destes «biscates» – a troco do que recebem 100 ou 200 escudos, e/ou vão
prestando variados serviços de limpeza a um novo tipo de «patroas». Uma destas, aliás,
reconhecia-se plenamente neste papel quando me confessava:
Tenho uma empregadita, uma miúda cigana, que me trata das coisas domésticas:
arrumar, lavar, tratar da roupa, essas coisas. É uma miúda muito leal. Já não podia
passar sem os serviços dela.
40 E uma destas «empregadas» comunicou-me que uma reclusa a quem tratava das coisas
apreciava tanto o seu trabalho que já lhe dissera que a queria empregar lá em casa
quando saísse. É constatável, desta forma, uma continuidade estrutural entre o interior
e o exterior da prisão.
41 De resto, Anne-Marie Marchetti (1997) dissecara já um conjunto de processos de
reprodução da pobreza no meio penitenciário. Para a autora, a prisão foi desde sempre
uma instituição pobre (em parte porque tendencialmente direccionada para os pobres)
e pauperizante, mas não o é de maneira igualitária: os pobres entrariam nela mais
facilmente, sofreriam uma detenção mais severa e sairiam daquela com maior
dificuldade. A pobreza é entendida por Marchetti lato sensu, como uma ausência de
capital económico, escolar, corporal (maiores problemas de saúde e menores
possibilidades de debelá-los) e relacional (lembre-se a associação da pobreza em França
à exclusão face às solidariedades de proximidade): em suma, como uma conjugação da
falta de poder, de ter e de saber. Nesta última inclui-se também a falta do savoir-faire, do
saber-escrever, do tom «justo» que tornaria a sua manifestação mais eficaz. No caso de
Tires, além de escaparem a estas reclusas os códigos discursivos apropriados para a
elaboração do já mencionado «plano de readaptação» (ver capítulo 1), esta ineficácia
decorre por vezes ou da sua extrema docilidade (humildade será o termo emic na órbita
128

desta noção), que as torna menos visíveis na disputa pelos recursos carcerais, ou de um
excesso de visibilidade resultante de uma estridência exaltada e agressiva. Uma técnica
do EPT contrastou-me, por um lado, homicidas e grandes traficantes (esta última categoria
assaz relativa em Tires) e, por outro lado, consumidoras, uma oposição que na verdade
recobria uma divisão parcelar entre reclusas mais e menos desmunidas, e uma outra
entre mais velhas e mais novas, delimitando várias zonas de intersecção:
[As primeiras – que esta psicóloga denomina, também, de psicopatas] 14 são mais
frias afectivamente. São as que têm melhor comportamento, não arranjam
problemas. São elas que conseguem os melhores trabalhos: trabalham na messe das
guardas, fazem-lhes a comida, os recados... São as que têm melhores informações
para precárias e condicionais. São estratégicas, sabem cultivar bons
relacionamentos. As consumidoras nunca conseguem condicionais. São as de quem
as guardas mais se queixam. São muito emocionais, muito respondonas, fazem
distúrbios, partem vidros, são malcriadas. Também são muito mais punidas. São
muito problemáticas. E é claro que nunca conseguem bons trabalhos.
42 Segundo Marchetti, a total ausência de capitais faria do pobre o recluso «ideal-típico»,
o «objecto perfeito» da instituição total:
[I]l est d’une part dépouillé à l’extrême de son identité antérieur (il ne sera plus, par
exemple, qu’un « délit sexuel » lá où d’autres seront encore identifiés à leur ex-
profession) et d’autre part privé de tous les objets, peut-être superflus mais par
ailleurs individualisants et valorisants, qu’on peut acheter intra-muros. Entre
l’ordre rigoureux de la discipline pénitentiaire et sa personne, rien ne vient
s’interposer (1997: 193).
43 Só que, se a pobreza das reclusas de Tires converge no plano económico – e circum-
económico, se atendermos a que os capitais escolares são nele reconvertíveis – com a
daqueles reclusos franceses, diverge dela num aspecto fundamental. Entre a ordem
penitenciária e a pessoa interpõe-se todo um filtro, feito de parentes, amigos e vizinhos
que continuam a escorar a identidade anterior. Além disso, a extensão e as
concomitantes implicações das redes de interconhecimento na vivência prisional fazem
mais do que tornar estas detidas em «objectos imperfeitos» da instituição total. Convida
a repensar o próprio estatuto da prisão enquanto «instituição total» – o que se tentará
fazer adiante. Por outro lado, a questão que agora se examina entrelaça-se de igual
modo com a do pauperismo, mas por uma via diversa da que é avançada, a um dado
momento, por Marchetti:
Le détenu déjà très défavorisé en amont de la prison sera d’autant plus démuni face
au dénuement des premiers mois de détention qu’il était déjà désinséré socialement
(et familialement) et qu’il ne « bénéficiera » pas de solidarité familiale (1997: 198).
44 Como vimos, a vida durante a reclusão torna-se materialmente mais austera não porque
parentes, amigos e vizinhos se encontravam já afastados no exterior, mas porque se
encontram, também eles, no interior.
45 Em segundo lugar, a reclusão pode, directa ou indirectamente, ser ela própria
pauperizante por processos que não os referidos por Marchetti (na sua maioria
intracarcerais). A Augusta e a filha, enquanto detidas em Tires, viram as respectivas
barracas demolidas pela câmara municipal e, ao invés de outras pessoas do bairro, não
foram contempladas no plano de realojamento. Procederam a partir do EPT a inúmeros
pedidos e exposições, todos eles infrutíferos. Dizia uma técnica do estabelecimento que:
Estão sem nada. [...]. A Câmara não alegou de maneira explícita que fosse por esta
razão, mas é mais que provável que seja porque estão acusadas de tráfico. Há muitos
casos assim com várias câmaras.
129

46 Acontece que, na ausência da Augusta, o filho já lhe havia desguarnecido


paulatinamente a barraca, tendo vendido praticamente todo o seu recheio para
financiar o consumo de drogas. Assim, a reclusão implicou para a Augusta uma posição
duplamente vulnerável no exterior: quer porque evidenciou – e compactou – os
estigmas ligados ao tráfico, quer porque se lhe tornou mais difícil, in absaentia , a
salvaguarda dos bens perante parentes toxicodependentes e igualmente pobres. Este
último processo pauperizante é um tema recorrente das conversas prisionais:
• Por duas vezes fui encontrar a Palmira e a Lavínia a discorrer sobre o infortúnio comum que
as havia atingido durante a detenção. A primeira debruçava-se sobre as várias hipóteses
quanto à autoria do assalto a sua casa (todas elas incluídas num círculo de familiares, ainda
que bastante largo) e a segunda procurava confortá-la reiterando que a sua barraca havia
sido vítima de uma investida semelhante por parte do seu próprio filho, o que seria ainda
pior. Unia-as assim uma nova afinidade, que se vinha a acrescentar a outras ligações
extraprisionais: eram companheiras da venda ambulante e a nora da Palmira é casada com o
sobrinho da Lavínia;
• Um dos dois filhos toxicodependentes da Maria do Amparo (que tem, ao todo, cinco filhos)
esvaziara-lhe a casa que guarnecera em parte por via de um segundo casamento,
materialmente mais proventoso do que o primeiro. Mas em contrapartida, e por acréscimo,
o enteado falsificara entretanto a assinatura do pai num livro de cheques e delapidara-lhe a
conta;
• Quanto à Mina, regressou em estado de choque da «precária» que lhe proporcionou deparar-
se com uma casa vazia: os cunhados – um casal de consumidores que lhe havia pedido para
ocupá-la durante a reclusão da Mina e do marido – foram vendendo a quase totalidade do
seu conteúdo, desde os móveis ao fogão, passando pelo frigorífico, de modo que à Mina
restou-lhe cozinhar na casa de uma vizinha e deitar num colchão os filhos que fora buscar a
casa da sogra para passarem consigo a precária.
47 As extensas ausências – em tempo de ausência e em número de ausentes – que a
reclusão deixa no exterior ocasionam, em segundo lugar, outros efeitos. Várias reclusas
aludiram à intenção alimentada de regressar ao tráfico (quando algumas delas já a
haviam antes enjeitado) a partir do momento em que se inteiravam de que filhos
adolescentes e pré-adolescentes ingressaram, por sua vez, no mesmo comércio: quer
porque, depauperados, procuraram eles próprios os fornecedores dos pais, quer por
proposta destes fornecedores, cujo propósito nem sempre se resume à cúpida
perspectiva de usufruir de mão-de-obra mais barata, como ajuizaram algumas detidas.
Outras mães alegaram, em contrapartida, que a intenção daqueles teria sido a de ajudar
os seus filhos. Porém, dizia uma delas, «Não quero que o meu filho fique a vender [droga] no
lugar dos pais. Quando sair, tenho que voltar a vender para o tirar daquilo. Ao menos por um
tempo, enquanto não arranjo outra coisa.»
48 Este último processo integra aquilo a que se poderia chamar o «círculo vicioso do
narcotráfico», cujos termos mais frequentes se agregam na tríade prisão-tráfico-
consumo. Vimos já que o tráfico retalhista raramente gera uma grande acumulação de
capital ou consumos sumptuários de vulto, em parte porque as carreiras traficantes são
precocemente interrompidas pela prisão. Além disso, sucede que uma porção
substancial dos capitais resultantes seja dispendida no apoio a familiares presos
(encomendas, dinheiro, deslocações a estabelecimentos prisionais que, não raro, se
situam a uma distância considerável do local de residência) e no internamento
terapêutico de filhos consumidores. Talvez por isso a Zulmira concluísse:
130

[...] E agora os meus filhos vão sair de cabeça virada. E depois? Toda a vida se viveu
sem droga. E agora foi esta maldita droga... Eu não digo que não vendi. Vendi,
menina, 2 ou 3 meses vendi. A droga é uma ilusão. Ganha-se o dinheiro, mas o Diabo
leva logo. Cá está, é ganhado pelo Diabo, não é ganhado por Deus. Porque o dinheiro
vem, vai logo. O dinheiro da droga é dinheiro do Diabo, o Diabo o ganha, o Diabo o
leva. Eu estou a voltar aos tempos antigos. E toda a gente do Lagarteiro que está
aqui presa sabe que eu fui sempre contra a droga.
49 A Zulmira, recorde-se, internara o filho toxicodependente numa clínica com os
proventos do tráfico. Depois de ser presa este recaíra, pelo que, vendo-se sem fundos, a
Zulmira pondera agora a hipótese de denunciá-lo por tráfico e furto para que este se
recupere na prisão (ver infra : 229-2331). Também a Rosário, com dois filhos
consumidores que estão a ficar limpos, me assegurava:
Se o meu filho não fosse preso, ele tinha morrido. Bem dizia a minha mãe: «Deixa
que o teu filho vá preso, senão vais chorar a morte dele.» Pois olhe que é verdade. E
ele era tão sequinho, não comia nada.
50 Outras reclusas, aliás, indignando-se com o que consideraram ser uma insuficiente
produção de prova contra si em tribunal, indagam-se se não teriam sido condenadas
para a cura. Foi o caso da Aurora, que assim se manifestou na sequência de uma outra
perplexidade:
Cortaram-me a precária. Toda a gente lá em baixo está parva, até as guardas. A
subchefe, que é subchefe, também não percebe: «Ó Aurora, não esperava isto». Eu
não quis ir para [a cadeia de] Felgueiras porque lá não há trabalho, mas agora estou
arrependida. As de Lisboa vão a casa. Eu tenho bom comportamento e não vou a
casa por ser do Norte? Não vou fugir, quero é ir ver os meus filhos e tratar do caso
do meu marido. Também não percebo porque é que vim presa. Não tinha nada
comigo, mandei tudo pr’ó telhado. Sempre neguei que a droga era minha. Não sei
por que é que me puseram aqui. P’rá cura não foi, porque eu não tava metida na
droga. Eu tenho um filho que consumia, mas foi preso e já se curou. Agora eu, não
sou toxicodependente.
51 Esta noção de que a prisão se destinaria ao processamento da toxicodependência
entronca, de facto, com o contraste social relevado por Artur Valentim entre dois
dispositivos de controlo da droga: o policial-judiciário, que absorve essencialmente
estratos mais baixos, e o dispositivo médico-psicológico, manejado ao invés por utentes
de um leque mais variado de estratos sociais:
[Os] dados sobre a desqualificação social da população que se relaciona com a Droga
(nomeadamente a classificada como consumidora) apanhada nas malhas da justiça
não se confirmam no dispositivo médico [...]. Este contraste social entre o
dispositivo policial-judiciário e o dispositivo médico do sistema de controlo da
Droga não pode deixar de interrogar os processos sociais que conduzem a que o
primeiro se dirija às classes baixas e o segundo seja apropriado por um conjunto
socialmente mais diversificado (1997: 89-90).
52 Ora, tal como a prisão foi apropriada para preencher funções que, no caso de segmentos
sociais mais altos, são desempenhadas por outras instâncias, viria também a incorporar
papéis sociais extraprisionais. Percorremos já alguns dos efeitos da detenção conjunta
de parentes, amigos e vizinhos durante o período da reclusão. No início desta, os vácuos
criados pela prisão no bairro poder-se-ão repercutir no julgamento. Como não deixam
ninguém lá fora para testemunhar em seu favor, as reclusas preventivas começam a
arrolar o próprio staff do EPT para que leve a cabo essa função. É assim que, para além
de solicitarem o médico para atestar de uma eventual toxicodependência a alegar como
atenuante da pena, indicam guardas e técnicos como testemunhas abonatórias (por
131

exemplo, para atestar do seu bom comportamento). Por isso, alguns dos membros do
pessoal penitenciário manifestaram-me a sua apreensão quanto à possibilidade de um
tal papel, ao qual não se puderam furtar uma vez convocados pelo tribunal, vir a
conflituar com o que terão de desempenhar depois, na cadeia, com as mesmas reclusas.
Deste modo, a prisão não só integra fisicamente séries de segmentos do bairro, como
passou a incorporar papéis que claramente incumbiam – e por definição incumbem – ao
mundo exterior, gerando-se assim nela uma insólita ambiguidade. De resto, é mais uma
vez a fronteira intra/extramuros que se transpõe para o próprio interior da cadeia e se
recapitula nele quando muitos dos visitantes que cumprem os horários de visita não
rumam já do mundo exterior. Trata-se das reclusas que vão visitar parentes e vizinhas
cumprindo pena no EPT, mas em outros pavilhões que não o seu, e com quem não têm
outras ocasiões de estarem juntas. Na maioria dos casos tal sucede porque, embora cada
pavilhão reúna sempre familiares e amigas, as malhas de interconhecimento são
demasiado complexas para serem integralmente acomodáveis por qualquer
distribuição logística. Daí que os domingos, por exemplo, misturem visitantes de fora e
de dentro da prisão, e que as novidades circulem com especial extensão e rapidez.
53 Por último, em etapas finais da reclusão, a rarefacção da retaguarda externa atinge as
reclusas por uma outra via. Por exemplo, um dos critérios para a concessão da
liberdade condicional é o da existência de apoio exterior, nomeadamente familiar.
Encarceradas fileiras sucessivas de parentes, poucos restarão para figurar, nesta
função, nos relatórios do Instituto de Reinserção Social (IRS) que contribui com um
parecer para aquela decisão. É justamente a este propósito que guardas e reclusas
comentaram, em várias ocasiões, que às vezes era melhor estar sozinho/a [ i. e., sem
familiares na cadeia].
54 Um outro vácuo produzido pelos processos de encarceramento colectivo repercute-se
na guarda das crianças que ficaram no exterior. Há uma década, raras eram aquelas que
eram encaminhadas para as instituições estatais de acolhimento de menores ou para as
Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) quando as mães eram presas.
Ficavam normalmente à guarda de parentes, amigos ou vizinhos. Estes mecanismos da
sociedade-providência não se dissolveram e permanecem operantes. Mas, precisamente
porque são hoje mais solicitados do que nunca, a sobrecarga que agora os afecta faz
com que o Estado e as IPSS sejam chamados a intervir de maneira muito mais frequente
e sistemática. Assim o é pela conjugação dos efeitos do alongamento das penas
cumpridas pelas actuais reclusas (um alongamento que estende a duração daquele
acolhimento por parte dos próximos no exterior) com os efeitos da detenção de muitas
das pessoas disponíveis para assegurar essa tutela provisória. Desta forma, uma avó
poderá ver-se a braços, simultânea ou cumulativamente, com vários netos, à medida
que filhos, genros e noras são ou vão sendo encarcerados; uma tia com vários sobrinhos
e afilhados, que se acrescentam aos seus próprios filhos; e uma vizinha com uma, duas,
e às vezes três filhos de amigas do bairro, entre alguns dos arranjos constatados. Em
consequência, as crianças entram num instável e imprevisível circuito: além de os
irmãos serem separados e distribuídos pela parentela e vizinhança, vão transitando
sucessivamente de tios para avós, para madrinhas, para vizinhos – e para o acolhimento
institucional, sendo várias as combinações possíveis deste circuito –, quando outras
crianças ainda vão chegando ou quando os encargos que implicam se tornam difíceis de
suportar15. Muitas delas acabarão, de facto, por desembocar em instituições. Quer dizer
que, a despeito dos incipientes remendos com que o staff procura colmatar tais brechas,
132

as recentes modalidades colectivas da reclusão induzem um curto-circuito nos


mecanismos da sociedade-providência – precisamente aqueles que se interpunham
entre a pobreza e a exclusão, travando o resvalar da primeira para a segunda (ver
capítulo anterior).
55 Ora, estes mecanismos vão ser – numa ínfima parte, é certo – recuperados e reeditados
de dentro para fora da prisão. Quando vão de precária, muitas reclusas vão buscar às
instituições os filhos de parentes, amigas e vizinhas presas, levando-os a passear por
entre os vários afazeres e assuntos a tratar que entretanto se avolumaram lá fora, e
acolhem-nos em sua casa durante o período destas saídas temporárias. As mães
retribuirão da mesma sorte, nas respectivas precárias, e sucede que uma mesma criança
usufrua de várias saídas através da intervenção de mais do que uma benemérita. Por
vezes, são as reclusas que se tornaram madrinhas na cadeia (não conhecendo até então
as futuras comadres) que de tal se encarregam quando as crianças atingem a idade de
abandonar o EPT. A Iolanda, uma cabo-verdiana que mencionei no anterior capítulo,
comadre de uma cigana em Tires, falou-me do seu afilhado nascido na prisão enquanto
se preparava para sair de precária:
Vou buscar o meu ciganito [...]. Sou madrinha dele porque me dava muito com a
mãe dele, uma cigana daqui. Quando vou de precária fica sempre comigo. A família
dele está toda presa e quando ele saiu teve que ir para um lar. Mas aquilo não tem
condições. Já o apanhei com piolhos e tudo... Foi um drama quando ele saiu daqui. É.
Os meninos já chegaram a ficar aqui até aos cinco, seis anos, porque as mães não os
querem entregar aos lares e às famílias de acolhimento. É um drama quando têm
que se ir embora. Houve um caso aqui há uns anos, toda a gente se lembra, do filho
de uma que quando saiu daqui foi para uma dessa famílias de acolhimento que lhe
arranjaram, que ninguém conhecia. A criança foi maltratada e morreu. A mulher
veio presa para Tires, com uma pena de cinco anos. Tiveram que a pôr bem longe da
mãe do menino. Mas depois teve que ser transferida à mesma para Castelo Branco
porque as presas diziam que a matavam.
56 Temos vindo a percorrer alguns dos múltiplos modos pelos quais a cadeia incorporou o
bairro, modos estes que constituem, afinal, os avatares da absorção pela prisão de um
largo espectro de parentes, amigos e vizinhos. Ora, a transposição maciça deste tipo de
redes para o contexto carceral acompanhou-se também, por relação ao passado, de uma
inflexão nas noções a partir das quais as reclusas se entreavaliam. Estas noções são
indissociáveis da transformação da natureza das redes prisionais, já não um heteróclito
conglomerado de indivíduos que contactam pela primeira vez na prisão e aí urdirão
relações ab initio, mas um conjunto de teias pré-urdidas que aí desembocam. Daí que a
sociabilidade interna continue a orientar-se por critérios e noções anteriores e
exteriores à trama prisional. Uma delas é a noção de respeito. Não o «respeito» tal como
foi caracterizado por Bourgois (1995), em certa medida uma categoria da
masculinidade, um sentido de dignidade pessoal construído pelos homens nas ruas de
Harlem contra as afrontas a que se viam estruturalmente submetidos. Trata-se antes de
uma noção de respeito embebida nas representações sobre os valores e as condutas
familiares, sobre o que deverá reger as relações entre pais e filhos, avós e netos, sobre a
apropriada intimidade e solidariedade que deverá preservar o cenário da família. Dizia-
me, a este propósito, a Zulmira:
Criei os meus filhos honradamente, sempre lhes dei o pão, nunca os abandonei,
nunca os pus num colégio. Fui sempre boa mãe, nunca tive um homem que me
ajudasse. O respeito era eu que o dava. Eles todos me tinham respeito. Marcava-lhes
as horinhas, ali. Eu é que não estou lá fora, senão andavam todos aninhadinhos, os
que ficaram lá fora. Esta que está aqui comigo, já em grande um dia fez-me assim
133

com a mão [levanta a mão] e eu pensava que ela me estava a levantar o braço... Ó:
até ferrei-a toda, dei-lhe uma tareia que ela ainda hoje fala nisso. Respeito, gosto
das coisas muito direitas, porque eu também respeito. Eles todos me escrevem: «Ó
minha santa mãe, não chore» [Entretanto a filha, também presa, chega à cela.
Apresento-me e a mãe diz-lhe de imediato: Anda Rosa, cumprimenta a menina.
Depois comenta para mim, na presença da filha:] Desculpe, hoje só querem é
brincadeira, mas ela tem-me respeito. Lá por estar presa não me havia de ter
respeito? Eu cá digo-lhe «Menina, então, como é?» Ela agora está de castigo
[administrativo] porque tirou uma cadeira do refeitório. As outras brincaram com
ela: «Rosa, como é? Agora está aqui a tua mãe, vê lá. Olhó respeitinho». Deram-lhe o
castigo de não ir ao refeitório, mas não está bem. Há aí outras que partem vidros e
ela só tirou a cadeira. Eu sou muito dura. Trabalho no café e não gosto de pessoas
porcas, digo o que tenho a dizer. E se eu vejo que estão a dizer mal da menina e
passado um bocado já estão agarradas a ela, não gosto. Tenho o meu feitio. [Mostra-
me em seguida a fotografia de uma criança:] O tribunal deu-ma a mim para a criar
porque a mãe faltou ao respeito ao marido – o meu filho. Quando foi do divórcio
deles o tribunal deu-ma a mim para criar, é porque eu tinha bom comportamento,
vê?
57 Por outro lado, a desqualificação das co-reclusas deixou de decorrer de lutas simbólicas
cujas armas eram internas, feitas de materiais prisionais (a homossexualidade, o crime
porque se foi condenado), para passar a assentar em critérios exógenos. Entre outros, o
respeito, o modo como os filhos tratam os pais, e como os pais tratam os filhos. Donde
comentários depreciativos como o da Alda, uma reclusa condenada por tráfico, que
numa outra ocasião já se me mostrara chocada pelo facto de uma das arguidas do
processo colectivo em que se incluía, sua cunhada, não ter ilibado a própria mãe.
Comentava agora uma situação semelhante:
Olá avó! [cumprimenta uma senhora idosa que passa, sem se deter. Não é, na
verdade, sua avó, mas uma reclusa que a Alda conhecera em Custóias. Depois, para
mim:] As filhas foram umas vacas para ela. Não assumiram o crime. Já viu? A senhora com
63 anos e não assumem por uma mãe? Não lhe têm respeito nenhum. Não é por estarem na
cadeia que lhe deviam perder o respeito. Também tem cá o neto, coitada. A avó é que lhe vale
porque a mãe é uma cabra para a criança. Está sempre a bater-lhe. A avó é que interfere,
ainda bem.
58 A crónica maledicente passa também pela critica ao despudor da exposição pública de
questiúnculas que deveriam ser resolvidas em privado. Tal crítica é especialmente
acerada da parte da minoria de reclusas que não têm parentes consigo e que não
provêm do universo dos bairros:
Faz-me cá uma confusão ver as pessoas de família lavarem a roupa suja à frente de
toda a gente... Aquela privacidade das coisas de família, aquele conceito de família
que eu tenho, às vezes parece que não existe. É cada zaragata... As filhas não têm
respeito às mães. As mães bem tentam controlar as relações das filhas com as outras
presas, mas às vezes não têm autoridade.
É só cenas. Fartam-se de lavar aqui a roupa suja. Vem tudo ao de cima. Coisas
íntimas da família, coisas desde a infância... Parece que já não há respeito.
59 Na verdade não é inteiramente assim. A vívida noção de que as tensões e conflitos
familiares relevam da ordem privada foi precisamente uma das razões das minhas
iniciais dificuldades de aproximação às reclusas. Ao contrário do que sucedia no
passado, esta esfera privada não permanece mais no mundo exterior. Permeia agora a
vida prisional e por isso ver-se-á inevitavelmente exposta num universo colectivo onde,
por definição, a privacidade é mínima. Mas se as querelas familiares se desvelam, por
vezes sem rebuço, perante conhecidos e vizinhos, cuidar-se-á de que sejam mantidas
opacas face a um estranho, neste caso eu. Dadas as intrincadas redes de
134

interconhecimento pré-constituídas que se cruzam na prisão, qualquer questão


atinente às relações internas, «prisionais» digamos, arrisca-se a atingir
inadvertidamente rugosidades privadas e reveste-se, portanto, de uma susceptibilidade
acrescida. Por outras palavras, meter o nariz nos assuntos prisionais equivalia assim, na
prática, a meter o nariz em assuntos íntimos – para onde definitivamente não era
chamado – uma vez que uns e outros quase coincidem. Logo, o silêncio era de rigor.
Alguns exemplos prolongarão, adiante, este ponto.
60 É certo que o eixo hierárquico do respeito é perturbado pela reclusão, que reduz filhas,
mães e avós a uma condição comum. Mais do que uma vez ouvi tiradas do género «A
senhora é tão presa como eu; Agora somos as duas presas, quem manda em mim são as guardas»,
pronunciadas mais ou menos desabridamente por filhas exasperadas pelo controlo
exercido pelas ascendentes sobre os seus passos, comportamentos e interacções na
cadeia, ou quando as mães procuravam impor decisões relativas ao processo judicial. A
igualização pela condição reclusa, nivelando-as, pode, com efeito, minar esta
autoridade e talvez por isso a noção de respeito precise de ser constantemente
reafirmada e reiterada no discurso intramuros. Todavia, ela não deixa de organizar, de
facto, a sociabilidade e o quotidiano prisional – como muito bem o perceberam as
guardas, que por vezes retiram deste idioma do respeito preciosos auxiliares do seu
trabalho. Na sequência de um comentário sobre os desentendimentos familiares acerca
dos processos, uma delas adiantava-me, por outro lado:
As mães controlam muito e facilitam o trabalho das guardas. Há aí uma presa que
quando a mãe não está é impossível. Tem mau comportamento, não se atura.
Quando a mãe vem, tem-lhe respeito e porta-se bem. Fica logo calminha. Eu
também às vezes dou uma palavrinha às pessoas de família quando vejo as coisas a
sair dos eixos. Têm muita influência. As pessoas de família lá se desentendem, mas
são muito unidas. Se há um problema com uma presa vêm logo as da família
defender, mesmo que não tenha razão. Mas às vezes também lhe ralham.
61 Os ritmos e as carreiras prisionais passaram também a ser modulados pela intervenção
dos laços de parentesco e de interconhecimento. Por vezes, as tão ambicionadas saídas
precárias são recusadas por reclusas que optam por aguardar a precária de uma
familiar para saírem juntas; ou preferem que a sua apreciação em Conselho Técnico seja
protelada por motivos semelhantes. E a ainda mais almejada liberdade condicional, cuja
concessão é especialmente difícil em Tires, é objecto de ponderações da mesma ordem.
Assim, uma reclusa acabou por declinar este privilégio porque soube, no mesmo dia em
que recebeu a notícia da sua atribuição, que havia sido detectado um tumor à mãe,
igualmente presa. O facto de a irmã se encontrar também em Tires não a demoveu da
sua decisão. Antes contribuiu para a reforçar: assim estariam todas juntas. Num outro
caso, o staff empenhou-se em conseguir a transferência de uma detida muito jovem
para um outro estabelecimento prisional, onde o tribunal de execução de penas era
supostamente mais pródigo e onde a liberdade condicional lhe seria praticamente
garantida – um estratagema muito usado para contornar a avareza do Tribunal de
Execução de Penas de Lisboa. A reclusa rejeitou esta proposta, plenamente consciente
das suas consequências, porque não queria separar-se da mãe e das amigas, em Tires.
Mas a recusa destas transferências estratégicas pode decorrer de uma razão simétrica:
por exemplo, a Alda recusou ir para uma outra cadeia que, além de ter a reputação de
proporcionar uma libertação mais rápida, apresentava a vantagem adicional de se
situar próximo da sua zona de residência. Porém, confiou-me que preferia ver as
135

precárias e a condicional cortadas do que encontrar-[se] lá com uma vizinha e uma cunhada que
não suport[a].
62 Mas a recente emergência de um vasto entrançado de relações de parentesco e
vizinhança modificou profundamente a própria vivência do cárcere. Não só as
solidariedades, as tensões e os conflitos se constroem agora numa outra base, como o
mundo exterior participa extensiva e permanentemente nesta construção. Veja-se a
natureza de um tipo recorrente de conflitos. Duas reclusas haviam sido colocadas, a seu
pedido, numa cela comum, uma vez que eram anteriormente vizinhas de bairro. Nesse
mesmo bairro, a irmã de uma delas começa a viver maritalmente com o marido da
outra, de quem acaba por gerar um filho. A coabitação entre elas torna-se tão
problemática que se impõe a sua separação em diferentes celas. Casos como este, em
que parentes em liberdade iniciam relacionamentos amorosos com maridos ou
companheiros de amigas e vizinhas, pontuam o quotidiano prisional e fornecem
inesgotáveis temas de conversa. O estrépito é porém maior quando a nova companheira
do marido é por sua vez presa e desagua, também, na prisão. Nesse caso, a prudência
aprendida pelas guardas recomenda-lhes que as duas antagonistas sejam alojadas não
só em celas separadas, como em diferentes pavilhões. Como cada uma tem parentes no
estabelecimento e como, para mais, as respectivas famílias se conhecem entre si
extramuros, pode-se de novo entrever a delicadeza necessária para abordar nas minhas
conversas iniciais com as reclusas qualquer assunto que envolvesse directa ou
indirectamente as relações internas – e principalmente a questão, a princípio bastante
intrigante, das constantes transferências de cela ou de pavilhão. Como atrás referi, a
«roupa da casa», isto é, o que releva da ordem privada, pode ainda lavar-se na presença
de vizinhos, mas não perante um desconhecido, alguém que vem de fora. Todavia, nem
sempre estas transferências internas, quer a elas se proceda ad hoc ou preventivamente,
são suficientes para apaziguar o ambiente. Por exemplo, um temerário marido de uma
reclusa pode empreender visitar a sua actual ligação paralela, recluída num outro
pavilhão, e a prima dessa sucessora, recém-chegada ao pavilhão da «legítima» e estando
portanto mais a jeito, torna-se no objecto da ira desta última 16. Ocorre também que as
partes em contenda, permanecendo vigilantes, procurem através das respectivas redes
manter-se inteiradas acerca da correspondência recebida/enviada pela rival, não vá
nela contar-se uma carta de/para o parceiro disputado. De resto, além de se manterem
assim a par de tais eventos, não é particularmente difícil aceder ao próprio conteúdo da
correspondência. Dada a iliteracia que afecta a população prisional, recorre-se com
frequência a co-reclusas para a redacção ou leitura de uma carta, logo é menor o sigilo
que a envolve e maior a probabilidade da sua divulgação (aliás, casos houve entre as
reclusas mais jovens em que as «escrivãs» passaram elas mesmas a escrever por sua
conta aos correspondentes das colegas, o que gerou alguns atritos).
63 Muitas das tensões carcerais encontram-se assim incluídas a priori na esfera privada e
têm uma origem extraprisional. Por vezes, elas vão entrelaçar-se com tensões relativas
ao processo judicial e são por elas compactadas – quando não se reforçam mutuamente.
Em todo o caso, a prisão é sobretudo a caixa de ressonância de eventos e tramas que se
produzem alhures, antes e para lá dela:
A Rosário está no P2 com a cunhada. Tem a sogra no P3 e a irmã no P1. Um dos seus
filhos está preso em Braga, os mais novos ficaram com a mãe. Fala baixo e vai
lançando olhares em redor, não vá a cunhada aparecer no bar, onde conversamos.
As relações com a família do marido vão, de facto, de mal a pior. Haviam começado
a degradar-se quando a Rosário, já presa, soube que o marido a tinha deixado e se
136

estabelecera com outra. Ele viria, aliás, a morrer às mãos do companheiro desta,
que não suportou a afronta. Mas a revolta da Rosário acicatar-se-ia e generalizar-se-
ia aos familiares por aliança quando a sua irmã se viu envolvida num processo
colectivo que, julga ela, teria aqueles por objecto principal, e entre os quais se conta
a sogra. Assim, segundo a Rosário, a irmã teria vindo parar a Tires por arrastamento
e, embora a sua sorte não esteja ainda decidida, arrisca-se a ser condenada à conta
da sogra. A Rosário, essa, foi já condenada ao abrigo de um outro processo. [Caderno
de campo.]
64 Eis um extracto da uma das primeiras conversas que tivera, tempos antes, com a
Rosário, quando eu ainda pensava que o facto de ter acabado de me encontrar com uma
familiar sua, num outro pavilhão, seria um bom cartão de visita:
– [...] Falei há bocado com uma pessoa que tem o mesmo apelido da Rosário, a
Ludovina Faria. Por acaso não é sua parente?
– Não, não me é nada a mim. O meu homem era filho dela, mas como morreu já não quero
nada com ela.
– Ah, então era sua sogra...
– Era, agora já não é.
– Estou a perceber. Então não se vêem muito cá dentro. Quer dizer, ela também está
noutro pavilhão...
– Pois. Eu não quero nada com ela porque a primeira vez que eu vim presa, o meu homem
estava lá fora com os meninos e ele abandonou tudo, abandonou os filhos e fugiu com uma
amante. E o homem dessa cigana foi o que matou o meu, com um tiro de caçadeira. Um
homem novo, tinha 33 anos. Vai fazer agora um ano.
– Mas a sua sogra também deve ter ficado muito abalada...
– [silêncio]
– E ela também não tinha nada a ver...
– Não. [mal-entendido:] E ela é de outro processo, não é do meu. Foi tudo dentro. A minha
irmã também foi assim. Foi na rusga dos Farias que a minha irmã veio dentro. Sinto-me
muito chocada com a minha irmã vir presa. Ela agora no julgamento tem de dizer de quem
era aquilo [a droga]...
– Então se calhar dá-se mais com a sua cunhada, que está aqui.
– Dou.
– Pelo menos tem a sua cunhada do seu lado...
– Está. Do meu lado não está nada. Está do lado dela. O meu homem podia deixar-me lá fora.
Agora presa e abandonar-me e aos meus filhos, não. Não sou mais amiga dela do que doutra.
Também não estou ressentida com ela porque, pronto, sempre é minha cunhada. Ela tem o
processo dela. Eu tive o meu. O meu homem consumia. E ia comprar para o consumo dele.
Um dia foi, veio uma rusga e viram umas pistolas. Eu disse que eram dele, e eram, mas como
ele andava fugido vim eu. [Esta última frase é proferida sem ponta de ironia, antes
com a naturalidade de quem comenta o óbvio. Desconheço as exactas causas desta
detenção, mas a leitura que a Rosário faz delas denota uma interiorização aguda – e
portanto uma «normalização» – dos dispositivos colectivizantes da justiça. Nesse
sentido, restou-lhe resignar-se ao que seria, tão-só, má sorte].

O chibanço e a receptação
65 Vimos já que é à luz da actual proximidade entre as reclusas – não apenas de ordem
sociológica, penal e simbólica, mas ainda a muito tangível proximidade feita de redes de
interconhecimento e sobretudo de relações de parentesco – que poderão ser entendidas
muitas das minhas dificuldades de aproximação ao universo carceral, contrastantes,
neste aspecto, com a rápida inserção que se me havia proporcionado dez anos antes. E
se a discrição é de rigor em íntimas questões de família, o silêncio é vital num outro
registo. Trata-se das paradas jogadas no domínio penal, também ele pré ou
137

extraprisional. Ora, a mesma proximidade entre as reclusas que definirá novos sentidos
e valores na cadeia, como o sentido de comunidade e o valor da solidariedade (a tratar
no capítulo seguinte), comporta no reverso um considerável potencial de tensão e
conflito. Daí decorrem assim, de igual modo, novas clivagens e dissensões, que vieram
por outras vias – exteriores à prisão – substituir-se às fronteiras internas vigorando no
passado. Dizem elas respeito, hoje, a crimes como a receptação e a comportamentos
como a delação.
66 Para ter uma noção, a contrario, do peso que a injunção não chibar (não denunciar) tem
no presente, bastaria referir que há dois tipos de reclusas que suscitam uma tal
animosidade entre as colegas que têm de ser objecto de uma protecção especial por
parte do pessoal de vigilância: são as condenadas por crimes que envolvem crianças
(maus-tratos e infanticídio), e as que colaboraram nas investigações policiais (as
informadoras). São comuns as concitações entre irmãos, cunhados, primos (i. e., num
círculo familiar que poderá ser bastante largo), ou mesmo vizinhos, de maneira a que
um deles assuma a responsabilidade pelo crime e os restantes acusados possam sair
(quando presos preventivamente) ou permanecer em liberdade. À parte a real
responsabilidade de cada um dos envolvidos num mesmo processo judicial, entram em
linha de conta as possíveis atenuantes de uma muito provável condenação. Muitas
vezes os (auto) sacrificados são por conseguinte aqueles que se encontram na posição
mais vantajosa para beneficiar de uma eventual pena de prisão mais reduzida ou, até,
de uma pena suspensa, como toxicodependentes, jovens e «delinquentes primários»
(sem antecedentes criminais)17. Parte dessas negociações circulam quotidianamente na
prisão. É imperativo, então, que uma detida mantenha o silêncio durante as várias
etapas do processo. Nem sempre tal acontece, nomeadamente quando não se vê
suficientemente apoiada por visitas, cartas e encomendas. «Deixaram-me cair» ou «Estão-
me a deixar cair» é, por conseguinte, um anúncio que veicula em simultâneo uma queixa
e uma ameaça, deixado para os devidos efeitos pairar nos canais do falatório que
rapidamente o farão chegar aos destinatários através das redes de interconhecimento
que ligam a cadeia ao exterior.
67 No entanto, o imperativo da não-delação é hoje muito mais veemente do que há uma
década. Nessa altura, o conteúdo da noção de chiba (um termo, de resto, que então
muitas detidas desconheciam antes da reclusão) era lato e ambíguo, podendo designar
desde a denúncia de actividades ilícitas desenvolvidas na cadeia ou de factos cuja
revelação ao staff era susceptível de causar dano, até à simples inconfidência de
assuntos de natureza pessoal respeitantes às co-reclusas – vulgo, o mexerico e a
bisbilhotice. Por outro lado, um comportamento que constituía objectivamente uma
denúncia nem sempre era qualificado como tal: por exemplo, uma líder não chibava, ia
dizer18. Em suma, o seu uso era tão banal, circunstancial e ambíguo que perdia a sua
força coerciva. E, com efeito, o staff facilmente se inteirava sobre «quem», «como» e
«quando» participava nas ilegalidades prisionais, e talvez por isso nunca lhe tivesse
ouvido as actuais queixas recorrentes acerca da dificuldade em proceder a um
apuramento dessa ordem. No presente, guardas e técnicos referir-se-ão à forte cultura da
droga para explicar, por exemplo, a opção de uma reclusa por uma dura punição em vez
de denunciar quem providenciou uma determinada entrada de narcóticos no
estabelecimento, ou quem lhe comprou uns brincos de ouro – mas já poderá contar,
com naturalidade, que roubou um fio a outra para comprar droga.
138

68 Todavia, esta injunção concerne hoje menos às actividades clandestinas na cadeia do


que ao processo-crime, a montante da prisão. Nesse sentido, será ainda maior a sua
observância no que respeita aos canais externos, procurando-se que nada transpire
para as instâncias exteriores da lei e da ordem, do que nos canais internos, onde é
coada a comunicação com o pessoal prisional. Uma reclusa relatou-me, a este propósito,
as razões que terão conduzido ao severo ostracismo a que fora votada:
Durante muito tempo passei um mau bocado. Tinha fama de chiba. Ninguém me
dirigia uma palavra. Eu falava para alguém, nada. Eu chegava, e silêncio. As pessoas
calavam-se. Às vezes mandavam-me bocas. Até fazia medo. Depois descobri porque
era. Era porque a Judiciária, em vez de mandar um fax, vinha-me buscar na
carrinha. Não sei porquê, se calhar era porque eu tinha uns tios na Judiciária. Tive
que pedir para não fazerem isso, pedi que mandassem um fax, que fizessem como
para as outras. Lá expliquei às colegas a história e depois elas foram vendo que
realmente daqui não vinha perigo. Mas ainda demorou um bocado.
69 Em primeiro lugar, as consequências do ilícito penal são bem mais pesadas do que os
castigos prisionais, uma vez que é a pena que está em jogo, a própria ou a de outros. Em
seguida, a interdição do chibanço deveio mais persuasiva porque protege agora não
meras co-detidas, mas os próximos: parentes, amigos e vizinhos. Protege os próximos e
protege dos próximos porque se está, em razão desta proximidade, mais vulnerável a
eventuais represálias, presentes e futuras, por parte de vizinhos ou dos seus familiares.
Várias foram as reclusas, sobretudo as menos jovens, que me comunicaram receios
desta natureza. Como diz a Tina, é para o bairro que se volta quando a prisão acaba:
Está aqui uma vizinha do meu processo. Eu estava a dizer que tinha de contar a
verdade, por causa dos meus filhos, mas ela disse-me que nem pensasse nisso. Disse-
me que eu era uma chiba. Eu comecei a tremer e vim para dentro da cela. Não
conseguia mexer as pernas. Depois comecei a andar para trás e para a frente, a ver
se conseguia arranjar coragem para fazer o mesmo que a outra e atirar-me do
terceiro piso. Aí veio uma colega e disse-me: «O que é que tens?» Eu ia a atirar-me, e
ela agarrou-me a tempo. Mas eu também tenho medo de falar. Tenho medo que me
aconteça alguma coisa. Se eu falar e se sabem que foi por causa de mim que os
outros entraram... É aqui dentro e lá fora. É que quando a prisão acabar, tenho que
voltar para o bairro e tenho que me haver com as pessoas.
70 Por fim, a injunção de não chibar é agora essencialmente pré-prisional, ou seja, é um
valor já cultivado no contexto das redes de solidariedade vicinal e familiar. E se
enquanto valor operante na prisão não corresponde, como não correspondia no
passado (ver Cunha, 1994: 131-133), ao que integrava o «código recluso» identificado
por Sykes e Messinger (1961), enquanto valor pré-prisional não decorre de um «código
criminal» – ao invés do que foi sustentado por Irwin e Cressey (1962). A este propósito,
Chaves (1999a: 273-279) refere justamente a centralidade que esta injunção adquiriu no
bairro do Casal Ventoso, encontrando-se aí bastante difundida, e onde a acusação de
chibo constitui uma invectiva particularmente grave e ofensiva. Ora, a eficácia simbólica
deste imperativo residiria precisamente na sua vinculação à noção de filhos do Bairro,
uma vez que ele é menos operante na protecção de pessoas estranhas ao Casal Ventoso.
Proteger um filho do Bairro, o que implica, nomeadamente, não o chibar, é uma obrigação
generalizada que surge no topo da hierarquia dos valores e nesse sentido mesmo os
residentes que não participam no tráfico e se insurgem contra esta actividade não
denunciarão um traficante local:
A centralidade [do valor não chibar] é legível no facto de as próprias pessoas que
condenam o tráfico se referirem frequentemente ao facto de não serem chibos e,
portanto, de não denunciarem ninguém. Por exemplo, ao responder à questão «se
139

sabe quem são os traficantes, por que não os denuncia?», um dos homens que mais
se assume frontalmente contra o tráfico, estabelecendo por vezes conflitos verbais
com traficantes, respondeu simplesmente, parecendo ter ficado espantado com a
questão: «Mas acha-me com cara de chibo?» (ibidem: 273).
71 Assim, a execração do chibanço não emana de um qualquer «código desviante», mas de
códigos vicinais de solidariedade. E também desta forma, o imperativo da não delação
impõe-se na prisão não só pela negativa – pelo medo, pelo receio de eventuais
retaliações –, mas também pela positiva, na medida em que é um valor prezado,
prestigiando-se quem a ele se mantém conforme. No caso de reclusas mais jovens, ele é
até cultivado por si mesmo, independentemente de quem, em concreto, encobre, e
ostentarão orgulhosas a coragem demonstrada ao não terem chibado ninguém, resistindo
a todas as pressões, mesmo que sofram agora as consequências dessa bravura – ou dessa
bravata – com uma pena de prisão, ou com uma pena de prisão mais longa.
72 Contudo, dados os elos de parentesco que unem as reclusas e definem, na cadeia, uma
multiplicidade de constelações familiares, geram-se complexas situações de
ambivalência face aos valores de solidariedade e não delação. Quando se encontram
envolvidos, de igual modo, parentes próximos, tais valores entram inevitavelmente
numa relação de tensão posto que se circunscrevem ambos no mesmo círculo familiar.
É assim que uma reclusa, cuja filha e sogra acabavam de cumprir a pena e de abandonar
Tires, se mostrava dividida entre o orgulho que manifestamente sentia pelo facto de a
filha não ter denunciado a verdadeira responsável pela posse da droga, e um larvar
ressentimento para com a irmã, que a não assumiu e assim estivera na origem da
detenção da rapariga:
A minha filha foi apanhada com 54 palhinhas que não eram dela, eram da minha
irmã. A minha irmã chegou, viu a polícia e pensou que a polícia tava à espera dela.
Então deu à miúda para trazer depois, mas a miúda foi apanhada. A miúda tem
fibra, não se chibou, nunca disse de quem era aquilo. Só que também vir de cana à
conta da minha irmã... Eu compreendo que ela não sabia que a miúda ia ser
apanhada. Mas tou chateada, não sei, ela podia ter assumido quando viu o que
aconteceu. Ou pensou que a miúda se calhar se safava... não sei, ela podia ter dito.
Acho que ela devia dizer que aquilo era dela.
73 Além de se disporem em permanente tensão e ambivalência, a protecção dos próximos
e a condenação do chibanço são com frequência valores claramente conflituantes. Como
tal, são constantemente objecto de reavaliações contextuais e reaferições casuísticas,
tanto mais que o que se encontra em jogo é decisivo, podendo levar a inflexões de peso
na vida de cada um e dos seus familiares, dentro ou fora da cadeia. Aliás, quando
comparadas à actual natureza destas paradas, pareceriam hoje inócuas as prevaricações
do passado em torno do chibanço prisional. Por isso, mais do que em qualquer outra
arena social onde, na verdade, representações e valores são indissociáveis da acção e se
constroem e reconstroem na prática, as equações a que se procede em Tires configuram
cenários de grande indeterminação. Dada a magnitude das consequências de cada
ponderação, não são, assim, surpreendentes – serão antes consubstanciais àquela
indeterminação – os conflitos que pontuam a rotina prisional e cuja natureza tanto
choca a minoria de reclusas que se situa fora do eixo criminal da droga. Eis um deles:
74 A Inocência tem uma filha no exterior que trafica. Esta filha acaba também, mais tarde,
por ser presa preventivamente, porém em companhia de uma tia, a Paulina, que por seu
turno, como me atestaram duas reclusas do seu bairro, nunca vendeu um grama. É mesmo
uma resistente militante que sempre havia manifestado o seu asco ao tráfico, tendo
140

além disso procurado um segundo emprego, à noite, para ajudar o filho


toxicodependente e evitar que este fosse conduzido a roubar, ou a traficar. Para
proteger a sobrinha, cala-se. Mas a Severina, irmã da Paulina e igualmente presa em
Tires, não acha justo que a sua irmã, inocente, arrisque uma condenação e entra em
guerra aberta com a Inocência, mãe da reclusa assim encoberta pelo silêncio de sua tia.
Não que a Severina desdenhe o valor de não chibar. Bem pelo contrário, regeu-se por ele
no primeiro julgamento de dois processos interligados, ilibando o irmão, a cunhada e
vários outros arguidos. No outro julgamento, contudo, não contaria exactamente uma
versão coincidente com a primeira, pelo que aqueles familiares se vêem agora em risco
de prisão. E desta feita a irmã da cunhada da Severina, também no EPT, insurge-se
contra ela, uma insurreição que, de resto, acabou por alastrar aos respectivos parentes
intra e extramuros e culminaria numa sessão de pugilato por altura de uma visita, onde
uns e outros se encontraram. No exterior, tinham já começado a evitar-se. A Severina
pretende assim que a Paulina, sua irmã, faça o que ela própria se recusou a fazer uma
vez, e passou por fazer numa outra ocasião – chibar –, tendo ocupado portanto ambas as
posições e experimentado os diferentes dissabores que uma e outra acarretam, a si e
aos seus.
75 As mesmas ambivalências e contradições práticas envolvendo o reordenamento
contextual de valores ressurgem num outro caso, particularmente complexo porque
nele se cruzam diferentes campos de tensão. De um lado, a transgressão de certos
valores familiares quer no eixo da filiação, quer no eixo da aliança, como a
solidariedade e a reciprocidade entre pais e filhos, e a fidelidade marital; intervem, por
outro lado, a receptação, um delito que figura pela primeira vez no discurso recluso e
que veio subverter as hierarquizações morais empreendidas no passado pelas detidas
acerca do desvalor dos crimes repertoriados em Tires. Diga-se porém que a receptação,
um crime veementemente condenado não em si mesmo mas quando cometido em
determinadas circunstâncias, figura agora neste discurso a um título muito diverso.
Com efeito, ele deixará de ser subordinado às anteriores lógicas internas de
distanciamento simbólico entre as reclusas (como o eram outros crimes no passado),
levado a cabo por estas enquanto reclusas, para passar a ser por elas causticado
enquanto vizinhas e membros do bairro. Ou seja, a importância da receptação no
discurso e nas representações locais decorre inteiramente, mais uma vez, de razões
extraprisionais, e só nessa medida poderá ser entendida. A Zulmira, que conhece
bastante bem as redes do seu bairro, tem um filho toxicodependente que furtou coisas
de sua casa e foi vendê-las a uma vizinha, a Carmelinda, com conexões ao tráfico e
também presa em Tires. Essa vizinha sabia o que aceitava, e a quem pertencia. Um
segundo filho, menor de idade, havia começado a vender droga através dessa e de
outras vizinhas; e um terceiro filho, casado, que recentemente cumprira uma pena de
prisão, envolvera-se com a filha da mesma Carmelinda:
Agora até escrevi para as Antas, lá para o agente que me foi buscar, com respeito a
uma pessoa lá do bairro e de um filho meu, que de repente posso ir a casa e ficar
cortada [nas saídas precárias e na liberdade condicional]. Porque aquele rapaz que
está lá em casa, aquele filho meu... Quero livrar a minha responsabilidade. Ele
consome e roubou-me tudo para ir vender a pessoas de lá. É isso que eu vou dizer
aos agentes. Atão eles vão ficar a saber mais. Não é para fazer queixa, mas é para
livrar a minha responsabilidade. Tenho que olhar pela minha vida, tenho 56 anos,
não sou nenhum bebé. [...] Com o dinheiro daqueles meses que eu vendi, tratei o
meu filho, comprei umas coisinhas e passado três meses fui presa. E o meu filho
mete-se outra vez na droga, anda-me lá a cair no bairro. A roubar-me as coisas em
141

casa e a vendê-las em troca de uma coisa que eu nunca fiz. Coisa que eu fui sempre
contra, que eu nunca fiz, é comprar coisas aos desgraçados, que há gente no
Lagarteiro que estão cheias e fartas à custa disso. Compraram tudo em troca da
droga. Eu nunca, isso não me pesa na consciência.
[...] Eu aqui não me dou com as vizinhas do Lagarteiro, são umas traiçoeiras. Uma do
P1, que foi condenada a 4 anos, foi ela que fez o meu mal. Ela diz que é mentira, mas
eu sei que foi ela porque a polícia sabe as coisas é à custa das chibadelas. Porque
essa tal Carmelinda é que fez o meu mal e dos meus filhos. Estavam lá dois agentes
no barraco do homem dela e da Quinhas, a ver as outras a vender. Aí eles viram a
minha filha a falar pr’a elas e pensaram que ela estava com o vício da droga. E é à
custa dessas chibadelas que fazem o nosso mal, o Ministério Público havia de ver
isto. São umas traiçoeiras. Querem as coisas da minha casa a troco de dois tostões?
Olhe, elas vendiam droga forte e feio. Umas já estão condenadas, outras estão p’ra
ser. maiores era a Zeza e a São. Apanharam 7 anos. Uma Ondina, que vendia noite e
dia, apanhou 6 anos. A Carmelinda, que apanharam com droga, com balança, com
aparelhos e dinheiro apanhou 4 anos porque colaborou com eles. É por isso que o
comissário disse que a Carmelinda era muito boa. Eu é que estou presa, eu havia de
ir à polícia, que os juízes não vêem. E a droga nunca vai parar. Olhe, para mim e
para os meus parou. E eu que sonhe que filho meu anda na droga, vou logo
denunciá-lo, acredite, a minha casa vai levar uma limpeza que nem calcula... Se eu
for a casa, vou ver se arranjo o consumidor, o Dino, ir para um hospital e pô-lo lá,
nem que seja na cadeia, ao menos vai curá-lo. E eu ao de 16 anos, o Zé, vou ver se o
ponho outra vez na tutoria, ou vou à polícia. Antes quero que vão presos do que
andarem aí a fazerem asneiras. O Dino, a roubar tudo em casa e vender por um
pacote? Ó menina, eu sei onde é que as coisas estão. Vão ver... É isso que eu vou
dizer aos agentes: «Senhor agente, faça o favor de ir a casa destas pessoas que estão
ali na droga forte e feio, que são grandes traficantes, estão a comprar tudo ao meu
filho».
Aquele que esteve preso em Braga, levava-lhe a roupinha lavada, dava-lhe dinheiro
para um café, levava-lhe umas coisinhas. Para isso o que eu passei, e hoje não me
escreve uma carta, porque anda enrolado com uma filha da Carmelinda, agora tem
um filho dela, e abandonou a mulher. Vendeu-lhe a máquina de lavar e dá maus
tratos à mulher. A menina não vê? É isso que eu vou fazer queixa à polícia. Ele
vendeu a máquina à Carmelinda por 10 contos e a mulher lava a roupa à mão. Eu
vou fazer queixa à polícia porque anda na vida que anda, porque anda a vender as
coisas em casa e dá maus tratos à mulher. E a Carmelinda, sabendo que ele tem
mulher... Ela é nossa vizinha! Vai ser tudo preso. Vou fazer queixa deste, do Dino e
do Zé. O Zé fugiu da tutoria e anda a vender droga, nem vai para casa. Comprou uma
mota, a polícia já a apreendeu. Eu sou de bico amarelo, não tenho medo. Vou
denunciar o Lagarteiro. Andaram a comprar as minhas coisas de casa, as coisas
roubadas dos vizinhos que são como eles, não têm nada. Elas comigo já sabem. Têm
que largar as minhas coisas. Andaram a meter o meu filho, um desgraçado de um
menor, a vender droga pr’a elas? Ele vai trabalhar, que tem bom físico. A vender
droga pr’a quê? Pr’a andar de mota, pr’a andar nos comes e bebes e depois nem
manda uma carta à mãe? Nem vão ver o pai que está preso ali tão pertinho, em
Custóias? Andaram a desgraçar os meus filhos? Antes quero ver os filhos na cadeia.
Por essas e por outras é que eu levei 5 anos dentro. Devem pensar, «ah, andam a
vender droga, andam a ajudar a mãe». Eu tenho que livrar a minha culpa. De mota,
o chiço? Podia ajudar a irmã com 18 anos, que anda de bebé e tem duas crianças. Ou
então diziam, «deixa-me ajudar os meus pais que estão presos, porque foram bons
pais, a minha mãe não comia para nos dar». Toda a gente sabe a mãe que eu fui. Eu
era capaz de vender tudo da minha casa, cheguei a ficar só com as paredes, pr’a dar
aos meus filhos. Cheguei a ter uma panela de sopa sem nada. A minha filha antes de
vir para cá esteve um mês em Custóias. Só foram vê-la uma vez, com uma saca de
fruta. Foi ela que ma mandou para cima, umas bananas já todas pisadas. O meu
catraio de 16 anos anda a vender, anda na vadiagem. Qualquer dia está metido na
142

droga [no consumo]. Eu quero livrar a minha responsabilidade. O outro, o Dino,


também está lá em casa e mora lá pegado um agente da Judiciária... 19
76 Tomadas isoladamente, possivelmente uma ou outra das razões que acima enumerei
não levaria, por si só, às congeminações da Zulmira, onde o chibanço se anuncia. Porém,
a sua conjugação numa mesma zona de relações parentais e vicinais parece ter gerado
uma espiral em que retroagem e se alimentam mutuamente. Uma vez despoletadas, as
intenções de denúncia visam tudo e todos e desdobram-se, conversamente, em
múltiplas valências: focalizadas nos filhos, traduzem um ensejo de recondução à ordem,
uma ordem que se desvanecera por entre os furtos em casa, as prisões sucessivas de
membros do agregado e o esquivamento às obrigações de solidariedade familiar,
especialmente para com os pais presos. A denúncia surge então como medida
preventiva (para evitar asneiras futuras e para livrar a responsabilidade da Zulmira), como
medida curativa (a prisão «curaria» o filho toxicodependente) e como medida punitiva
(castigaria não só os roubos perpetrados no âmbito da família, como as prevaricações
adúlteras com a filha da vizinha receptadora). Mas se a delação parece ser aqui
apropriada pela Zulmira enquanto dispositivo «educativo», integrável no eixo da
autoridade parental – sendo as forças da lei vistas, neste caso, como aliadas e como
instrumentos auxiliares nessa tarefa educativa –, o chibanço surgirá, por outro lado,
como medida retaliadora à altura do agravo que a receptação representa. Aliás, a
gravidade do chibanço é para a Zulmira tão óbvia que se indigna com o facto de o
Ministério Público e os juízes não reconhecerem a sua intrínseca malevolência: [São] as
chibadelas que fazem o nosso mal, o Ministério Público havia de ver isto; Os juízes não vêem. É
certo que a Zulmira também insinua que terá sido vítima das chibadelas da Carmelinda.
Mas trata-se de uma vaga e breve suspeita, que não desenvolve e que nunca havia
enunciado noutras ocasiões, nomeadamente quando examinou em retrospectiva os
cenários da sua própria detenção (ver infra: 101); além disso, mostrara-se ciente de que
as rusgas são rotineiras e não necessariamente accionadas por denúncias específicas. Na
verdade, a suspeita é, em parte, retórica. A Carmelinda parece tornar-se no seu alvo
pela mesma via porque passa a culpada directa de outras malfeitorias, a que apenas
pode ser associada indirecta e metonimicamente: foi a partir da casa do marido dela
que a polícia avistou a filha da Zulmira; não é a filha da Carmelinda que é acusada no
desvio matrimonial do filho, mas a própria Carmelinda (E a Carmelinda sabendo que ele
tem mulher... Ela é nossa vizinha!). E assim como é só a partir do momento em que a
vizinhança é vista na disposição de aceitar bens roubados à Zulmira (e à sua nora) que
será por esta invectivada por ter proporcionado a iniciação de um dos filhos no tráfico,
também o epicentro do mal irradiado pela Carmelinda parece ser a receptação – em
torno da qual, de resto, circula toda esta narrativa. Com efeito, quando praticada no
mesmo bairro e na medida em que respeita a bens de pessoas desse bairro, a receptação
é particularmente condenada porque desestabiliza de forma crítica a expectativa de
solidariedade entre vizinhos – do mesmo modo que o chibanço a põe em causa. Em
acréscimo, a receptação é vivamente repudiada como delito cometido não só entre
conhecidos, mas entre iguais. Como diz a Zulmira, «Andaram a comprar as minhas coisas
de casa, as coisas roubadas dos vizinhos que são como eles, não têm nada. [C]oisa que eu fui
sempre contra, que eu nunca fiz, é comprar coisas aos desgraçados [...]. Eu nunca, isso não me
pesa na consciência.»
143

O tempo insuspenso
77 Temos vindo a percorrer os vários registos da permeabilização da fronteira intra/
extramuros operada pela multiplicação das redes pré-prisionais de interconhecimento
existentes no EPT. Há uma década, uma porosidade semelhante insinuava-se na
vivência carceral das reclusas ciganas, um pequeno contingente de detidas que havia
chegado à instituição por via de processos judiciais colectivos referentes a duas redes
de tráfico. Apesar das clivagens que se desenhavam no seio deste grupo de reclusas, não
deixavam de configurar um todo distinto face à restante população prisional. Tal
demarcação era constatável, por exemplo, na sua visível segregação espacial nos
espaços de convívio e recreio, onde ocupavam conjuntamente uma mesma área, bem
como nos termos por que figuravam nos comentários das outras detidas, que não se
lhes referiam no plural sem glosar, de várias formas e com laivos de admiração, o tema
da união entre as ciganas (talvez porque esta se tornava saliente por contraste com a
atomização que prevalecia, como vimos, no universo recluso não cigano). Na verdade, a
esta união não eram alheios dois factos: o conhecimento mútuo que ligava tais reclusas
antes da reclusão e os laços de parentesco que uniam várias delas. E eram justamente
estas conexões prévias que não só atenuavam a ruptura com o exterior à entrada na
prisão, como por sua vez ampliavam a relação com o mundo extramuros durante a
reclusão. Com efeito, a vivência social externa e interna interpenetravam-se,
englobavam-se, e os eventos de uma tinham amplas repercussões na outra. Por vezes
progrediam à maneira de uma bola de neve, precipitando conflitos que se alimentavam
reciprocamente e abrangiam círculos cada vez mais inclusivos da população cigana,
dentro e fora do estabelecimento. Disputas internas alastravam rapidamente ao
exterior por via dos elos de parentesco na prisão, induzindo antagonismos entre as
respectivas famílias das reclusas em confronto, e incidentes externos geravam ou
reforçavam dissensões internas (ver Cunha, 1994: 122-126), produzindo-se, assim,
influências nos dois sentidos. Deste modo, as linhas com que se teciam a solidariedade e
o conflito na prisão prendiam-se, directa ou indirectamente, com o facto de a rede de
relações se ter constituído antes da reclusão (o que por si só contribuía para uma maior
proximidade entre estas detidas e para uma concomitante demarcação conjunta
perante as restantes) e de essa mesma rede articular colectivamente as reclusas ciganas
a uma larga malha exterior comum de amigos e parentes.
78 Todavia, tratava-se de uma ínfima fracção do universo então recluso em Tires, universo
este cuja experiência penitenciária se pautava por linhas bem diversas – e cujo quadro
discursivo atrás se examinou. Aí, a ruptura com o exterior era sublinhada de várias
formas, entre as quais se conta a relação com o tempo e o modo como ela era vivida e
representada20. Considerando o intervalo de tempo que representa a totalidade da pena,
as reclusas avaliavam-no menos no seu sentido de «duração limitada» do que no
sentido de «interrupção» – interrupção de um percurso de vida –, significando assim
uma descontinuidade por relação ao presente e ao futuro. Como se de um parêntesis se
tratasse, a duração da pena era percebida como um tempo à parte. Esta formulação era
aliás intersubstituível com uma outra, tão corrente como ela no discurso prisional: um
mundo à parte. As «dimensões gémeas» que são o tempo e o espaço (Szamosi, 1986)
encontravam-se assim praticamente indissociadas, levando ao extremo uma relação de
homologia que Shirley Ardener (1993: 6-8) apontara como forma cultural comum a
vários contextos etnográficos. Como se, por ocasião de uma mudança de lugar, o tempo
144

se imobilizasse. Do mesmo modo, passado e futuro tornavam-se realidades


temporalmente bem delimitadas. Por passado e futuro as reclusas referiam-se sempre,
respectivamente, aos períodos anterior e posterior à reclusão. Jamais tais termos eram
empregues para situar acontecimentos ocorridos ou a ocorrer durante a detenção,
reportando-se apenas a eventos extraprisionais. A pena de prisão adquiria assim o
sentido de um presente imóvel, um tempo suspenso na longa duração. Este tempo à parte
encontrava-se cortado do passado e do futuro tal como os muros da prisão a cortavam
do espaço exterior. Se invertêssemos os termos de uma definição de Husserl (1966),
poder-se-ia dizer que no presente representado pelas reclusas não existiam nem
resíduos do passado, nem elementos emergentes do futuro.
79 Hoje, uma minoria de reclusas de perfil prisional clássico, não enredadas na cadeia em
laços de parentesco e vizinhança, continua a exprimir noções de índole similar, tais
como Nós aqui estamos ilhadas [um termo derivado de «ilha»], o tempo parece que chegou
aqui e parou. As ideias de interrupção e separação foram, porém, expurgadas do discurso
recluso que predomina, a não ser na medida em que veiculam, muito concretamente, o
obstáculo que a reclusão representa para a resolução de determinados problemas no
exterior, seja porque protela essa resolução, seja porque aí cria novos problemas. Mas a
separação espacial deixaria de gerar a percepção de um tempo à parte , pelo que as
representações da temporalidade não se vinculam, como outrora, à espacialidade. Por
outro lado, o «passado» não equivale mais a «exterior» e passou por isso a ser uma
realidade temporal incluída na duração da pena. Quanto ao futuro imaginado na cadeia,
não é mais o domínio de «irrealidade» que há dez anos abrigava as fantasias mais
improváveis, e que por essa mesma razão tanto confortava quanto inquietava as
reclusas, suscitando os bruscos sobressaltos de quem ocasionalmente acorda da rêverie,
sobretudo quando a libertação se aproximava. É agora ao invés antevisto como um
conjunto de possibilidades plausíveis ancoradas no presente, talvez porque os
referentes do futuro, tal como os do passado, se encontram, em parte, incorporados na
prisão. De facto, a relação com parentes, amigos e vizinhos é anterior à reclusão e
prolongar-se-á para além dela, imprimindo-lhe constantemente um sentido de
«realidade» que não permite evasões prolongadas. Os planos que com ou sem eles se
fazem – quando se fazem – são concretos, modestos, comedidos e destinados a reparar
os estragos que a reclusão entretanto terá provocado. Ou seja, a vida não vai mudar
para melhor por um hipotético volte-face pós-prisional. Espera-se, apenas, que não
mude para muito pior. Assim, a mesma continuidade assente nas redes pré-prisionais
de interconhecimento que atenua a fronteira interior-exterior é também aquela que
induz uma continuidade entre o passado, o presente e o futuro durante a reclusão.
80 Há uma década, a duração da pena configurava um presente espesso, não progressivo.
Nenhuma reclusa duvidava da passagem do tempo e esta certeza, como será óbvio, era-
lhes imprescindível. Contudo, os diversos processos que se desenvolviam no lapso de
tempo da reclusão não eram integrados na duração pessoal de cada uma. Por um lado,
porque não eram investidos de sentido – de onde decorria a reiteração da noção de um
tempo perdido para todo e qualquer efeito. Os acontecimentos que tinham lugar no
decurso da detenção não possuíam um estatuto cumulativo na autobiografia das
reclusas, pelo que não eram, como são hoje, objecto de uma organização cronológica,
parecendo então dissolver-se, indistintos, no horizonte temporal da reclusão. Por outro
lado, a ilusão de um eterno presente era reforçada pelo desenrolar indiferenciado da
duração prisional, feita de sequências repetitivas de factos e acções – aquilo a que
Alfred Gell (1992: 25) chamaria de «não-mudança diacrónica». Todavia, embora esta
145

«não-mudança» contribuísse para tornar menos saliente a passagem do tempo, não era
unicamente a natureza repetitiva da temporalidade carceral que alimentava as
representações locais de um tempo cristalizado. Também se observam, decerto,
existências rotineiras no mundo livre, onde quer o tempo de trabalho, quer o tempo de
lazer podem pautar-se pela mesma monotonia. No entanto, em liberdade estes tempos
relevam de ordens distintas entre si e têm um sentido que os seus sucedâneos prisionais
estavam, então, longe de reproduzir, como de resto o notara Goffman (1968: 47-54) a
propósito das instituições totais. Em Tires, a diferença qualitativa entre o período de
trabalho e o período de lazer atenuava-se, sendo ambos incluídos numa mesma lógica
punitiva. Era aliás com uma relativa indiferença que era acolhido o toque de campainha
assinalando o fim de um e o início de outro. Recorde-se, por exemplo, que o trabalho
tinha menos um sentido económico do que moralizador e a motivação para trabalhar
residia essencialmente no receio de punições indirectas. Hoje, como vimos, a
pauperização generalizada das reclusas levou a que readquirisse um sentido
relativamente convergente com o do trabalho exterior: não só é mais activamente
procurado do que imposto, como destina-se acima de tudo a financiar consumos
essenciais. E é justamente por contraste com o actual conteúdo do trabalho prisional
que os períodos de lazer readquiriram também agora, por seu turno, um conteúdo mais
vivo de recreação e repouso, tão almejados em Tires como o são em liberdade. Significa
isto que as lógicas e o cenário estrutural característicos das instituições totais não
induzem por si só uma determinada relação com o lazer e o trabalho, que lhes seria
inerente e específica, antes interagem com outros factores. É por isso relativizável a
asserção de Goffman segundo a qual
Les institutions totales sont [...] incompatibles avec cette structure de base de notre
société qu’est le rapport travail-salaire (1968: 53).
81 Em segundo lugar, a extrema regularidade dos dias continua a ser escandida por um
horário regulamentar levado ao pormenor. Contudo, a monotonia dos ritmos
minuciosos parece ter deixado de orientar as representações da temporalidade carceral
que outrora a configuravam como um presente suspenso, vazio e insípido, ou seja, uma
temporalidade também ela goffmaniana (ver Goffman, 1968: 112-115). Com efeito, o
sentido do quotidiano prisional constrói-se agora no prolongamento do quotidiano pré-
prisional, não em oposição a ele. A regularidade dos ritmos institucionais é relegada
para segundo plano pelas irregularidades normais de um dia-a-dia centrado nos
próximos (parentes e vizinhos), nos acontecimentos que os aproximam ou separam
deles, e que simultaneamente entrosam este dia-a-dia com o exterior.
82 Há uma década, as peripécias da sociabilidade não subvertiam aquelas percepções de
uma temporalidade lisa e vácua, uma vez que as relações com as co-reclusas eram elas
próprias vistas como temporárias, circunscritas à reclusão e, como atrás referi,
destituídas de significado. Além disso, as relações sociais locais podiam também elas ser
subordinadas à mensuração do tempo. Assim, a extensão da pena de cada detida era
ponderada enquanto pró ou contra na decisão de encetar uma relação de camaradagem
com uma co-reclusa ou no ensejo de nela investir afectivamente: alguém condenado a
uma pena de dez anos evitaria tanto quanto possível, e por princípio, tomar-se de
amizade por uma pessoa cumprindo uma pena breve. Desempenhando um papel nos
modos de constituição da sociabilidade o tempo era, desta forma, reificado ao extremo,
passando de dimensão a recurso e valor. Na prisão, de facto, o calendário não era senão
sistema de medida, notação de uma duração que apenas se contabilizava para estimar o
tempo perdido, que ninguém dá de volta, ou aquele que falta cumprir até à libertação. Tais
146

formulações, bem como ainda Aqui o tempo não falta, Há tempo a mais, decorrem, aliás, de
um tipo de caracterização do tempo que surgia com uma especial nitidez no contexto
prisional. Trata-se, mais uma vez, de uma reificação discursiva, designando um regime
temporal mais objectivado do que vivido. Referindo-se justamente a este tipo de
reificação, corrente, inclusive, nas ciências sociais, Gell desmonta-a da seguinte forma:
Time by itself, and without the participation of things, is not a resource which can
be economized on or diverted from one use to another, as though it were some
ethereal natural resource like sunlight. Not being an economizable entity, it has no
value (1992: 212).
83 O calendário é, em qualquer contexto, um instrumento de medida do tempo. Porém,
fora da prisão, cada indivíduo marcá-lo-á diferentemente, modula-o com um sentido
pessoal que é, em boa parte, partilhado pelos seus próximos. Mas no contexto
penitenciário de Tires os dias sucediam-se, indistintos, o 1 de Julho como o 30 de
Novembro, mesmo se um deles era um dia de aniversário. Não havia «dias pessoais».
Tratava-se de um tempo desencarnado, não apropriado, ou seja, o tempo homogéneo do
calendário. Como era, então, periodizado o tempo? Passaremos a ver em seguida que
esta periodização, diversamente do que agora sucede, era engendrada essencialmente
por processos prisionais e, nessa medida, era específica à prisão.
84 Nos clichés que circulam sobre o universo carceral, os dias traduzem-se por traços não
datados desenhados na parede da cela, à maneira do calendário de Robinson Crusoé.
Ora, em Tires não era comum este modo de inscrição do tempo, nem nas paredes nem
tãopouco nas agendas. Se os dias permaneciam unidades calendáricas importantes em
si mesmas, a sua sucessão não era anotada de forma sequencial, um após outro, traço
após traço – «Dava em maluca se contasse todos os dias, era da maneira que eu via todos os dias
o tempo que ainda tenho que aguentar... Deixo passar, assim não noto tanto.» Em matéria de
notação e de contabilização da progressão temporal, os meses e, em menor medida, os
anos deixavam de representar unidades de periodização salientes. A totalidade da pena
não era decomposta em tais períodos, mas em quartos, em metades, em terços. Estas
fracções correspondiam aos momentos a partir dos quais as detidas estavam habilitadas
a solicitar uma saída precária, o acesso a um regime penitenciário mais aberto, a
liberdade condicional. As semanas ou, melhor dito, os fins-de-semana continuavam a
ser na prisão marcadores importantes do curso da existência. No entanto, não
conservavam esta qualidade enquanto unidades «dadas» de medida do tempo e da sua
progressão, mas porque constituíam os únicos momentos periódicos individualizados
ou personalizados. Os fins-de-semana eram, com efeito, o momento habitual das visitas
previsto pelo regulamento. Para as reclusas que não as recebiam, a ilusão de um tempo à
parte, de um eterno presente, pesava-lhes ainda mais. Para as mais afortunadas, o
contacto semanal com família e amigos ritmava, de certa forma, esta duração. Além
disso, o impacte destes eventos na escansão do tempo não se limitava aos momentos da
sua ocorrência. Eram antes os pontos culminantes de uma progressão que se
desenrolava ao longo de toda a semana precedente, para decrescer ao longo da semana
seguinte: nos dias anteriores as detidas concentravam-se na sua antecipação,
preparando-se para o seu advento (o que se iria dizer, como se iriam arranjar, o que
pediriam para ser trazido na visita seguinte); nos dias posteriores a visita ecoava ainda,
sendo comentada, revista, recordada. As visitas produziam deste modo na
temporalidade o «efeito acordeão» mencionado, entre outros, por Cohen e Taylor (1974:
99). Note-se, por conseguinte, que os únicos momentos periódicos que entrecortavam
de maneira marcante para as reclusas a homogeneidade do regime temporal da prisão
147

eram precisamente os pontos calendáricos articulados ao mundo exterior e ancorados


nele. Assim, era por via da repetição das visitas, e não em si mesma, enquanto unidade
de tempo do calendário, que a semana vinha a constituir uma periodização pertinente
da vida na prisão. Inversamente, nenhum evento escandia o ritmo mensal: o mês não
ressaltava, ou apenas figurava muito tenuemente, como segmento temporal. Outros
acontecimentos recorrentes, como as festas de Natal, tinham um efeito semelhante ao
das visitas. Da mesma maneira que estas, as festas anuais que assinalavam no
estabelecimento prisional ocasiões celebradas fora dele traziam fragmentos do mundo
exterior à prisão, nomeadamente graças aos artistas convidados que aí vinham actuar.
Além do mais, às detidas eram numa certa medida autorizados nessas ocasiões
comportamentos reservados à vida livre: o consumo de bebidas alcoólicas; relações com
o staff isentas dos marcadores habituais da hierarquia; um contacto directo com o
pessoal dirigente do estabelecimento, ou mesmo com altos representantes do sistema
judiciário e penitenciário ocasionalmente presentes nas comemorações, podendo por
isso furtar pedidos e solicitações ao inevitável filtro do longo processo burocrático a
que se subordinavam habitualmente. As festas e as visitas introduziam assim uma
descontinuidade na duração carceral, que, nesses momentos, constituía menos um
tempo à parte.
85 Hoje, festas e visitas continuam a representar ocasiões importantes, mas são-no
principalmente do mesmo modo que ocasiões especiais deste tipo são apreciadas no
exterior. Por outras palavras, se permanecem cruciais na vivência carceral, perderam a
centralidade de outrora no que diz respeito à marcação do tempo e à sua periodização.
Se a sua centralidade neste âmbito lhes advinha do facto de constituírem as únicas
pontes significativas com o mundo extramuros, no presente, e em primeiro lugar, a
transposição das fronteiras da prisão realiza-se permanentemente de múltiplas formas.
Como vimos, a vivência intramuros deixou de ser auto-referencial para se reportar
constantemente ao exterior. Em segundo lugar, a vida na prisão prolonga, de algum
modo, a vida pré-prisional uma vez que se mantêm no interior – e não apenas,
portanto, através de cartas e visitas – relações com parentes, amigos e vizinhos. Ora, é
justamente nesta continuidade relacional que parece também alicerçar-se uma
continuidade com os modos pré-carcerais de percepção e periodização do tempo. Por
isso, as reclusas que não usufruem de visitas mas têm próximos detidos em Tires
manifestam-se, decerto, sobre as agruras da extensão da pena, porém não quanto ao
eterno presente que a sua duração configuraria; se quisermos, esse «presente» poderá
parecer «eterno» porque extenso, não porque não-progressivo. Além disso, caso todas
as parentes e conhecidas presas não se encontrem no mesmo pavilhão, visitá-las-ão nos
dias próprios noutros recintos do estabelecimento, pelo que em absoluto as visitas não
se desenham já univocamente como pontes com o exterior. A presença de parentes,
amigos e vizinhos parece ter assim introduzido na temporalidade carceral um sentido
de diacronia – ou de «mudança diacrónica». Ele é, em todo o caso, bem mais manifesto
do que no passado, tal como os usos e leituras do calendário passaram a convergir com
os extraprisionais. De facto, paralelamente ao recorte da pena em quartos, metades e
terços21, uma segmentação que se manteve em Tires, todas as unidades calendáricas
permanecem tão relevantes como extramuros, diversamente do que sucedia há dez
anos. Dias, semanas, meses e anos figuram agora correntemente no vocabulário
utilizado na cadeia. Os dias são unidades de tempo cuja sucessão não só é registada,
como a sua sequenciação passou a reportar-se ao mês em que se situam. Diz-se assim
que Hoje é 29 de Maio, do mesmo modo que se pergunta, como lá fora, Que dia [do mês] é
148

hoje?. E tal como se transporta do exterior o calendário «objectivo», que continuará


actuante na prisão, também ele preservará as modulações «subjectivas» que cada
detida lhe imprimira antes da reclusão22. Por exemplo, os aniversários que fazem os
dias «pessoais» são partilhados com e festejados por parentes, amigos e vizinhos sem
que precisem de lhes ser anunciados como tal, ao contrário de quaisquer co-reclusas, a
quem tais datas teriam de ser comunicadas por não estarem delas inteiradas. Em suma,
as calendarizações prisionais não obnubilaram nem o calendário nem as
calendarizações extraprisionais, antes coexistem com estas.
86 Ontem como hoje, o tempo é representado como um problema central da vida carceral.
Todavia, esta centralidade impõe-se por razões não inteiramente coincidentes. A óbvia
zona de intersecção que faz dele um problema comum ao passado e ao presente reside
no facto de o tempo ser invariavelmente avaliado não como escasso, mas como
excessivo (ao invés, portanto, de percepções externas que o dão tantas vezes por um
bem sempre insuficiente e fugidio). Mas no passado, além disso, o tempo na prisão
parecia intrinsecamente problemático porque surgia às reclusas desfasado em relação à
temporalidade do mundo exterior. Para Gell, em geral,
The relevant distinction does not lie between different “concepts of time”, but
different conceptions of the world and its workings. [...] But it is equally essential,
both to the belief that “the world goes on and on being the same”, and to the
contrary belief that “the world goes on and on becoming different” that one
believes that the world goes on and on (1992: 36).
87 Se todas as sociedades sabem com efeito que o mundo gira, algumas (outrora
qualificadas por Lévi-Strauss, 1962; 1973 de «sociedades frias» ou de «tempo cíclico»,
uma classificação depois criticada, entre outros, pelo próprio Gell) crêem que o mundo,
girando, permanece o mesmo, enquanto outras crêem que não cessa de mudar (as
«sociedades quentes» ou de «tempo histórico»). Mutatis mutandis , no caso das
prisioneiras do passado, o problema é que viviam de algum modo nestes dois regimes
de percepção em simultâneo. O tempo parecia-lhes cristalizado porque os processos
que se desenrolavam na prisão se repetiam inapelavelmente. Mas sabiam que, na cadeia
como lá fora, o mundo gira e que no exterior o mundo muda à medida que o tempo
passa. Como iria ser o reencontro com os familiares, os amigos, o trabalho? Para além
das rupturas que a ausência das reclusas poderia ela própria induzir (uma separação,
um abandono, a perda de um emprego, caso em que esse reencontro não viria, sequer, a
ter lugar), não era sem consequências que se vivia – ou pensava viver – «estático» num
mundo «dinâmico»:
Já não sei como se fala às pessoas, como ter uma relação normal com as pessoas. As
coisas fazem-me medo, sei lá, sair, ir ao cinema – até fico a suar – e já não tenho
aquele sentido de humor. Toda a gente lá fora me diz que eu estou um bocado
estranha, e então isso ainda me põe mais assustada.
88 Estes dois mundos paralelos e cujos ritmos eram diferentes, embora se desenvolvessem
numa mesma duração, encontravam-se ligados na consciência das reclusas. Porém, o
desfasamento entre ambos fazia com que para elas o tempo surtisse, em si mesmo,
como uma ameaça, ou pelo menos como uma ameaça mais aguda e tangível do que no
mundo livre.
89 Hoje, o afastamento físico do exterior pode evidentemente gerar, de igual modo, alguns
deslassamentos relacionais e laborais, embora mesmo estes configurem com menor
nitidez o redobramento simbólico da fronteira interior-exterior. Assim, por exemplo, as
parceiras por quem os cônjuges terão traído ou abandonado as mulheres poderão elas
149

mesmas vir a ser recluídas em Tires e aí receber as visitas dos maridos daquelas,
fazendo com que a gestão dessa ruptura por parte das reclusas que a sofreram não seja
de ordem radicalmente diversa da que levariam a cabo no exterior: enfrentam in loco as
sombras dos companheiros e das rivais, o falatório da vizinhança, que conhece os
vértices destes triângulos amorosos, e amparam-se em amigas de longa data, também aí
presentes; a instabilidade laboral e o desemprego intermitente que já afectava a
maioria das detidas antes da reclusão (uma e outro muito mais vincados agora do que
no passado) fazem da ruptura prisional ligada ao trabalho mais uma entre tantas
outras, reproduzindo-se de resto neste intervalo penitenciário relações e sentidos
laborais similares aos pré-carcerais.
90 No entanto, e a despeito destas rupturas, assim como a presença de parentes, amigos e
vizinhos instila directa ou indirectamente o sentido da diacronia na vivência da prisão,
parece também, por outro lado, sincronizar a temporalidade carceral com a
extramuros. É através destas redes pré-prisionais que as noções da progressão interna e
externa convergem, tal como passaram a convergir dois mundos outrora paralelos e
localmente entendidos como, respectivamente, «estático» e «dinâmico». Não
representando mais um tempo à parte, a reclusão deixa de ser vista como uma suspensão
da trajectória pessoal e os acontecimentos que têm lugar no seu decurso não possuem,
neste aspecto, um estatuto diverso dos acontecimentos exteriores. São, como eles,
«cronologizáveis» e acumuláveis na autobiografia. Do mesmo modo, relações externas,
pré-carcerais, não se interrompem com a detenção e relações «internas» não cessarão
com ela. Assim sendo, tais relações progridem, por assim dizer, no cárcere, conhecendo
desenvolvimentos que prolongam o passado e se repercutirão no futuro. Além disso,
elas não são já extirpadas da biografia, como o eram há uma década em razão da sua
associação estigmatizante à prisão. Não são, sequer, extirpáveis dado que são pré-
constituídas e, em segundo lugar, o estigma que as envolve é bem anterior à detenção.
A propósito da noção de um «tempo perdido», recorrente nas instituições totais,
Goffman defende:
Quelle que soit la rigueur des conditions de vie dans les institutions [totales], elle ne
suffit pas à rendre compte de ce sentiment de vie gâchée. Il nous faut plutôt en
chercher la raison dans le hiatus social imposé par l’entrée à l’institution et dans
l’impossibilité fréquente d’y acquérir des avantages susceptibles d’être transférés à
l’extérieur (1968: 113)23.
91 Será óbvio que o tempo da reclusão é, para muitos efeitos, um tempo «arrancado à
vida» (ibidem: 112) e é certo que serão poucos os instrumentos de investimento no
futuro (ainda que em Tires, embora os pecúlios acumulados possam ser magros, seja
hoje substancial e diversificada a oferta de formação profissional e escolar,
nomeadamente por via de protocolos celebrados entre a DGSP e o Ministério da
Educação ou o Instituto de Emprego e Formação Profissional). Porém, tudo o resto é
transferível para o exterior, precisamente porque a prisão deixou de ser um «hiato
social». Quando Goffman (1968) tipificou as instituições totais, apontou-lhes uma
característica distintiva fundamental: o facto de nelas se encontrarem removidas as
barreiras separadoras das várias esferas de vida do indivíduo, que grosso modo recortam,
no mundo exterior, domínios relativamente dissociados de relações, diferentes
pertenças e, também, diferentes identidades. Tais esferas de vida passariam a ser
submetidas a uma gestão comum e maciça. À luz deste critério pareceria, portanto, que
a prisão de Tires se tornou hipertotal. À superfície, assim o é. Não só a esfera da
residência, do trabalho e do lazer se encontram congregadas espacialmente, como a
150

prisão incorporou o bairro fisicamente (na forma de largos segmentos familiares e


vicinais) e simbolicamente. Mais ainda: as reclusas emprestaram-lhe incumbências
inerentes a registos e instâncias extraprisionais (o papel testemunhal no tribunal, que
em lógica a precede; a cura da toxicodependência como razão da pena e função da
prisão), bem como viria, até, a incluir inéditos trajectos (as visitas em circuito fechado,
do interior para o interior da cadeia).
92 No entanto, e paradoxalmente, é justamente porque incorpora o mundo exterior que a
prisão vê esbater-se um traço essencial das instituições totais, um elemento que é
consubstancial a todas as outras características destes universos e cuja importância
analítica é, por conseguinte, crucial: a ruptura intra/extramuros. Este elemento é como
que o eixo central que agrega todas essas características num todo teórico coerente e a
partir do qual se define o sentido de cada uma. Com efeito, os campos de vida recriados
nas instituições totais não anulam os exteriores, que permanecem como referentes in
absaentia para os internados. E é exactamente esta tensão entre o interior e o exterior
que, no edifício goffmaniano, esclarece as vivências internas e mediante a qual estas
adquirem o seu carácter «típico». Ora, ao longo deste capítulo percorremos as múltiplas
modalidades do atenuamento dessa ruptura e da subversão da fronteira entre estes dois
mundos. No capítulo 1 havia sido referida a permeabilização desta fronteira por via de
mutações organizacionais que se vinham afirmando um pouco por toda a parte desde o
pós-guerra, transformações essas que tornaram as prisões menos autárcicas e as
abriram a fluxos de toda o tipo. E foi a constatação desta abertura institucional que
levou alguns autores a contestar a pertinência do modelo de Goffman e a considerá-lo,
de certo modo, datado. Porém, Tires revela porosidades de ordem bem mais profunda e
subterrânea. No que respeita às reclusas, o encarceramento de parentes, amigos e
vizinhos fez com que a prisão já não configurasse um parêntesis, um anónimo «hiato
social». As largas malhas de interconhecimento prévio colocam-na em continuidade
com o mundo exterior antes, durante e depois da reclusão e transformaram a natureza
das relações prisionais. Estas não só se orientam por noções extracarcerais, como a
vivência externa e interna interpenetram-se, englobam-se ora num, ora noutro sentido,
repercutem-se dia-a-dia uma na outra. Dada esta constante «intrusão mútua», o
quotidiano prisional deixa de ser auto-referencial24.
93 Assim, do mesmo modo que uma tal continuidade furta esta instituição ao cerne das
definições goffmanianas, também desafia ideias correntes sobre a prisão como um
universo à parte, outrora retraduzidas academicamente nas categorias «cultura
prisional» e «sociedade penitenciária». Neste caso, supunha-se que este «mundo à
parte» era decerto o lugar de uma cultura, restando apenas formular o seu conteúdo –
ainda que fosse formulado de maneira variável. Recentemente, o estatuto teórico da
prisão deixou de suscitar as grandes interrogações do passado, talvez porque ela não
constitua mais um objecto em si mesma. Em todo o caso, sobre tais questões recaiu a
poeira própria das coisas esquecidas. Mas de alguma forma a fronteira prisional
continuaria ainda a delimitar uma unidade de análise, na medida em que forneceria,
senão o texto, pelo menos o contexto das relações sociais locais. Nesta limitada acepção,
tal fronteira parece não ser entendida como problemática. Porém, as continuidades
relacionais que hoje definem Tires vieram, também, a dilui-la neste sentido, pelo que o
terreno teórico não se encontra menos armadilhado pelos muros da prisão. Por
conseguinte, não se trata apenas de reinserir a instituição no quadro global das forças
extracarcerais (jurídicas, políticas, económicas, históricas) que a moldam. Um tal ponto
151

está, há muito, assente. Para compreender as interacções, experiências e percepções


reclusas há que deslocar o enfoque para o interface entre o mundo interno e o mundo
externo, ou mover a lente entre ambos de forma a captar as redes de sentido que os
ligam em permanência. As constelações carcerais de parentes, amigos e vizinhos
convidam-nos mais do que nunca a uma profiláctica prova do olhar, levando-nos a
colocar o exterior e o interior, o bairro e a prisão, em continuidade analítica. Só assim
se poderá dar conta da intrínseca translocalidade da trama prisional.

NOTAS
1. Trata-se de famílias fictícias que foram apontadas como um dos eixos da «cultura/sociedade
prisional» na versão feminina (sendo o outro as díades homossexuais). Nestes núcleos, que nunca
constatei em Tires, quer no passado, quer no presente, as reclusas reproduziriam inúmeros
papéis familiares (enumerou-se os de irmã(o), prima(o), tio(a), filho(a), avô, avó, mãe, pai), e as
interacções entre eles, bem como as respectivas funções, seriam similares às que vigorariam nas
relações de parentesco no exterior. Referidas pela primeira vez por Selling (1931), foram
subsequentemente objecto de abundantes estudos. Ver, por exemplo, Kosofski e Ellis (1958),
Giallombardo (1966), Heffernan (1972), Foster (1975), Mitchell (1975), Propper (1981). Para um
tratamento mais detalhado desta literatura ver Cunha (1994: 99-104; 137-139).
2. «Homeboys» são também brevemente referidos por John Irwin (1980: 58-59) no quadro dos tipos
de redes e cliques prisionais com que se deparou, assim como o são, no mesmo quadro, as «
homegirls» por Juanita Días Cotto (1996: 297-298) e os «Street partners» por Leo Carroll (1974:
100-101); esta última figura inclui ainda, segundo o autor, «one’s actual biological relations».
3. (Em itálico no original.)
4. Chaves cita aliás, no mesmo âmbito, uma incisiva observação de Moita Flores:
Se atendêssemos às posições mais radicais sobre a situação social daquela malha urbana valia a
pena murar, deixar-lhe sentinelas pelos cantos e definitivamente integrá-lo no parque prisional
português (ibidem: 122).
5. Para um percurso de pormenor ver Cunha (1994: 99-136).
6. Vários autores criticariam posteriormente a tese da prisionização: ou porque este processo não
seria directamente proporcional à duração da pena, conhecendo flutuações contraditórias ao
longo das várias etapas da reclusão (e. g. Wheeler, 1961; Glaser, 1964); ou porque ele variaria
consoante as características organizacionais das instituições e a orientação que adoptam, sendo
os efeitos da prisionização mais pronunciados naquelas que enfatizam a segurança e a disciplina,
e mais suaves nas que se regem pela ideia de tratamento (e. g. Street, 1965).
7. Seriam de cinco tipos as «pains of imprisonment» (ibidem: 14-15): privação de liberdade e
sentimento de rejeição pela comunidade, privação material (bens e serviços), privação sexual (de
contactos heterossexuais), privação de autonomia (e a correlativa degradação estatutária) e, por
fim, privação da segurança pessoal (dada a exposição a delinquentes de vária ordem).
8. Outros autores haviam já insinuado que a «cultura» e a «sociedade penitenciária» também se
relacionavam com factores externos, como o background e a socialização pré-prisional dos
reclusos, que contribuiria para a diversidade dos papéis internos, mas esta observação
permanecia submersa numa prevalecente abordagem funcionalista (e. g. Schrag, 1961).
152

9. Para uma discussão crítica destas categorias no contexto de Tires, quer da sua ambiguidade
teórica, quer do modo como eram reificadas e reflexivamente manipuladas pelas próprias
reclusas, ver Cunha (1994: 131-136). Hoje, esta reificação e apropriação reflexiva (no exacto
sentido referido por Giddens, 1992: 28-29) não se verifica, talvez porque a prisão deixasse de
surgir às detidas como uma realidade estranha, como uma alteridade que interpela e faz pensar.
10. Não incluo no âmbito deste percurso a magna obra de Michel Foucault (1975), uma vez que
escamotearia o seu escopo inseri-la nesta rubrica de «estudos prisionais». Na verdade, ela
concerne menos à prisão do que às tecnologias de poder e dominação que definiriam uma
«sociedade disciplinar»:
[C]es techniques ne font que renvoyer les individus d’une instance à l’autre, et elles reproduisent,
sous une forme concentrée ou formalisée, le schéma de pouvoir-savoir propre à toute discipline.
(...) Quoi d’étonnant que la prison ressemble aux usines, aux écoles, aux hôpitaux, qui tous
ressemblent aux prisons? (ibidem: 228-229).
11. Veja-se avulsamente, sob a forma de tópicos, algumas das temáticas tratadas no universo
penitenciário: a agressão (Mandaraka-Sheppard, 1986), os guardas (e. g. Jacobs e Retsky, 1975;
Crouch e Alpert, 1980; Chauvenet e Benguigui, 1994; Lhuilier e Aymard, 1997); as crianças (e. g.
Tomasevski, 1986); a distribuição do poder entre o staff ( e. g. Combessie, 1996); a pobreza
(Marchetti, 1997); a leitura (Fabiani, 1995); o suicídio (e. g. Bourgoin, 1994). Já Le Caisne (2000)
situa-se de algum modo ao arrepio desta trajectória ao cobrir de maneira lata os processos
discursivos pelos quais os reclusos negoceiam a sua identidade individual.
12. Tratava-se de um regime repartido em três fases que flexibilizava gradualmente a execução
da pena, regime este criado pela Reforma Prisional de 1936. A noção de flexibilização progressiva
perdura, mas é levada a cabo em termos ligeiramente diversos e é objecto de um faseamento
menos rígido.
13. Para véus, estratégias e dissonâncias semelhantes num contexto andaluz, ver Uhl (1991).
14. Ver R. Gonçalves (2000) a propósito da caracterização dos psicopatas na prisão.
15. Dada a precária situação económica destes agregados, os técnicos do IRS começaram a
procurar-lhes apoios junto do próprio Instituto, da Segurança Social, das paróquias e
misericórdias, tentando por outro lado atribuir-lhes o estatuto de «família de acolhimento» em
ordem a poderem beneficiar de subsídios. Os centros sociais são também contactados para
aligeirar uma parte do dia destes tutores, sobretudo o das avós.
16. Ao contrário do que as entrelinhas acima possam eventualmente sugerir, estas ligações não
denotam forçosamente uma fragilidade ou uma volatilidade extremas. No caso concreto que
acabei de referir, a união marital durava há vinte anos e a paralela há quatro.
17. Na verdade, a julgar pelos casos que diariamente chegam a Tires, em que todos os
intervenientes abrangidos por um mesmo processo acabam, afinal, condenados, a eficácia desta
estratégia é duvidosa e remota.
18. As reclusas não tinham para com as líderes uma atitude de especial respeito e deferência, e
não se coibiam de condenar abertamente alguns dos seus comportamentos. Mas jamais
empregavam o termo chiba a seu respeito, enquanto condutas idênticas por parte de qualquer
outra detida o induziam de imediato. Uma líder ia dizer ou arranjava um caldinho: quando
proclamava denunciar um motim se persistissem em levá-lo avante; quando comunicava ao
pessoal prisional o envolvimento de uma colega em negócios e esquemas ilegais; quando
transmitia àquele o expediente fraudulento utilizado por uma reclusa para receber visitas não
autorizadas, entre outras denúncias (ver Cunha 1994: 129-135).
19. A propósito do Zé, ele reproduz parcialmente a trajectória juvenil da própria Zulmira, tal
como o percurso da Lavínia se reeditara, de alguma forma, na filha e na neta (ver supra: 137-138):
Estive na tutoria quando era catraia. Fui responder porque andava descalça. Respondi a primeira vez, a
segunda vez, a terceira vez e o juiz meteu-me lá. Também era por causa do ambiente da minha mãe, que era
uma da prostituição – coitadinha, agora está acamadinha numa cama, está ceguinha. Fui criada com a
153

minha avó, sabe. Estive um ano na tutoria, mas como tinha bom comportamento mandaram-me para
Lisboa, para o lar de S. Domingos [um instituto de reeducação de menores]. Fiquei lá dos 14 aos 21 anos.
Depois aos 21 anos arranjaram-me uma casa para servir e eu fui servir para o Porto. Deram-me um enxoval,
ajeitei o meu marido, até hoje. Depois fui para o cemitério lavar campas e fui vender outra vez para o
Bolhão. Eu já vendia no Bolhão aos 7 anos, menina.
É de referir que aspectos da biografia da Zulmira convergem caracteristicamente com os
registados em Lopes e Carmo (2001) para os internados na Tutoria do Porto, uma instituição que,
como outras congéneres, funcionava no caso feminino como um reservatório de criadas de servir.
20. Esclareça-se desde já que a análise a que procedo da temporalidade carceral examina apenas a
forma como tal relação é localmente entendida no âmbito da duração da pena; não sugere a
existência, na prisão, de conceitos específicos de tempo, pelo que não comporta qualquer
implicação de tipo cognitivo. Como sustenta Alfred Gell, «[T]ime is always one and the same, [but
it is in] manifold ways that time becomes salient in human affairs» (1992: 315).
Para uma análise mais detalhada e compreensiva do discurso prisional do passado sobre o tempo
ver Cunha (1997), um texto aqui parcialmente recuperado e adaptado para fins comparativos.
21. Estas fracções temporais exprimem-se agora de forma ligeiramente diferente. Repercutindo
uma política de execução de penas mais restritiva, o acesso a determinados direitos que essas
unidades de tempo sinalizariam é agora verbalizado na negativa, mas continua a periodizar o
tempo:
Acabei o primeiro corte [da liberdade condicional], agora estou a cumprir o segundo. Quero ver se o juíz
me manda embora com sete meses de carimbos [ o tempo de carimbos corresponde à duração da
liberdade condicional]; ou O juíz deu-me um corte de um ano. Pode ser que depois me mande embora com
2 meses de carimbos; ou ainda O meu corte acaba em Outubro.
22. Com a expressão calendário «objectivo» relevo o sentido estrito de «alheio à pessoa» e não,
como é evidente, o sentido de «não-arbitrário», uma vez que todos os calendários comportam
uma relativa arbitrariedade.
23. Ênfase minha.
24. Agradeço um eloquente comentário a Albertino Gonçalves (publicado em anexo a Cunha,
2000: 103).
154

Capítulo 6. A integração na exclusão

As criminosas e as outras: a categoria por droga


1 No capítulo precedente focou-se a erosão da fronteira prisional. Examinada de perto,
esta fronteira revelou-se, afinal, uma membrana porosa onde se desvaneceu o sentido
de ruptura entre o interior e o exterior: não só a prisão se situa no prolongamento do
bairro, como uma e outro se constituem mutuamente. Ora, a dissolução desta linha
simbólica acompanhar-se-ia de uma diluição das fronteiras internas que atravessavam
Tires no passado, linha essa da qual eram, em boa parte, tributárias: veja-se, a contrario,
o caso das reclusas ciganas, a cuja união não eram alheios os laços de parentesco e de
interconhecimento que as ligavam antes da reclusão. Para a maioria das reclusas de
então, referi já alguns dos processos de diferenciação e de oposição recíproca pelos
quais se procurava, como que num jogo de espelhos, esconjurar o estigma.
2 Um dos domínios de representação onde esta dinâmica do contraste se manifestava
mais vivaz e crispada era o crime na origem da detenção. Se cada reclusa se
pronunciava sobre o seu próprio crime como um percalço na vida, um episódio isolado
e justificável, no caso dos perpetrados pelas co-reclusas ele descreveria, porém, a
pessoa e emanaria de uma natureza delinquente (São delinquentes por tendência; Têm más
vísceras), ainda que esta representação genérica de uma essência criminosa pudesse ser
pontualmente revista quando se estabelecia uma relação de amizade. O crime da amiga,
de uma reclusa concreta, era então humanizado, ganhava uma história e um contexto,
mas o mesmo acto permanecia vituperado nas restantes, não ocorrendo uma
reformulação semelhante. Por outro lado, é certo que a reprovação mútua era
modulada pela gravidade do tipo de crime. Todavia, e salvo o infanticídio, que ainda
hoje continua a concitar o repúdio geral, a hierarquização do desvalor dos crimes
variava consoante o ponto de vista de quem os avaliava. E esta perspectiva encontrava-
se vinculada ao crime que cada uma havia cometido, pelo que os modos de
escalonamento eram múltiplos e não coincidentes com o da ordenação jurídico-penal.
Assim, as traficantes-consumidoras desculpabilizavam-se com a dependência que
diziam compelidas, uma «atenuante» de que não usufruiriam, por conseguinte, as
traficantes não-consumidoras. Por sua vez, estas consideravam-se redimidas e,
sobretudo, redimíveis, uma possibilidade de reabilitação que negavam às primeiras,
155

supostamente condenadas ad eternum a delinquir por via da sua compulsão. Ambas


condenavam as homicidas, face a quem se diziam infinitamente menos recrimináveis,
para verem retorquir-lhes pelas visadas que não viviam do crime, como aquelas:
alegavam ter agido não por avidez (por ganância), mas por desespero (a maioria dos
crimes de homicídio havia vitimado maridos, de quem as reclusas haviam sofrido maus
tratos prolongados) e, de qualquer forma, as traficantes matariam mais pessoas, só que
mais devagar. Por fim, se as recluídas por burla e furto entendiam inofensivo o seu
próprio delito no panorama geral, eram em contrapartida invectivadas
respectivamente de trafulhas ou aldrabonas e de ladras , e era-lhes atribuída uma
propensão intrínseca para delinquir (uma espécie de «mentalidade criminal») que não
se deteria na cadeia. Representariam por isso, em acréscimo, um risco quotidiano na
vida prisional (sobre elas impendiam, de facto, frequentes suspeitas e acusações de
roubo por parte das co-reclusas).
3 Hoje reduziu-se drasticamente, em proporção, a variedade dos crimes que figuram em
Tires. Como referi no capítulo 2, mais de ¾ respeitam ao tráfico, e a maioria dos crimes
cometidos contra o património correlaciona-se com o consumo de estupefacientes. A
droga homogeneizou, assim, o perfil criminal desta população. Aliás, a chegada de uma
reclusa não consumidora ou não condenada/acusada por tráfico suscita
invariavelmente no pessoal penitenciário a curiosidade devida a uma avis rara. Olha,
uma que não vem por droga... Quem será ela? – indagava-se um grupo de guardas; e em
ocasiões diferentes dois técnicos asseguravam-me:
Quando chega uma que não é do tráfico, a gente vai logo ver quem é.
As reclusas estão um bocado cansadas de gente de fora que vem cá fazer trabalhos.
São estagiárias ou jornalistas que querem fazer trabalhos que são sempre sobre os
mesmos crimes: homicídios, infanticídios, crimes passionais. Então nós temos que ir
espiolhar nas fichas [das reclusas] a ver se encontramos alguém para lhes indicar.
As presas por esses crimes são tão poucas, quase não há. Por isso é que são sempre
as mesmas, coitadas, estão cansadas de contar muitas vezes a sua história.
4 Por seu turno, referindo-se a uma população uniformizada, maciçamente ligada à droga
e, por outro lado, intuindo a marginalização estrutural de que ela releva, uma guarda
sénior, que eu já conhecera há uma década, comentava a radicalidade da mudança que
testemunhara:
Meu Deus, isto antes não era assim. Isto está a atingir proporções que até assusta. E
não vai parar. Não se vai resolver. Às vezes é a vida, é a miséria que as leva a isto... E
há mulheres inteligentes, que podiam ser alguém na vida... Que pena. Que
desperdício...
5 Com algumas excepções, são justamente aquelas avis raras – a minoria não ligada ao
tráfico/consumo, proveniente de estratos sociais menos desfavorecidos ou, pelo menos,
não estigmatizados – quem reproduz sobre as co-reclusas o discurso distanciador e
desqualificante tão saliente no passado. As mesmas noções formulam-se, por vezes, nas
mesmas palavras, em fraseados que vim reencontrar, quase intactos, dez anos depois:
Queixam-se, mas se calhar vivem melhor aqui que lá fora. Queixam-se da comida,
mas lá fora comiam pior. Aqui têm assistência médica, são tratadas com
medicamentos caros, lá fora nem sequer tinham hipótese. Isto aqui é gente tão
baixa, tão baixa, que eu nem queria acreditar quando cá cheguei. É uma linguagem
ordinária, as conversas são ordinárias. São sempre as mesmas conversas: os
namoricos, a vida dos outros, estão sempre à coca a querer saber o que se passa.
Está tudo metido ao barulhinho, a meter-se, para ir contar tudo a toda a gente. Não
há privacidade nenhuma, não se pode escapar. Há roubos, e depois não se passa
nada, não são castigadas. As guardas são muito desleixadas na disciplina. Se [as
156

presas] não estiverem vestidas para o conto e não tiverem a cama feita, não se
importam. Como as guardas mais velhas não querem saber, as mais novas também
seguem o exemplo. E depois dão-lhes muita confiança. Contam-lhes coisas da vida
delas e tudo, e depois não têm autoridade quando é preciso dar-se ao respeito. Devia
haver mais distância. Isto é do pior. Eu faço a minha vida sozinha, não dou
confiança a esta gente. No princípio era muito ingénua, tinha pena de uma que não
tinha nada e dava-lhe coisas da visita. Mas depois percebi que isto é tudo por
interesse. Amigas, só lá fora. Aqui não há amizade nenhuma, as pessoas são cínicas,
mentirosas, contam tudo.
– Caramba, deve ser muito duro não ter nenhuma amiga cá dentro...
– Bem, tenho a Estrela, com quem me dou muito bem, nessa eu posso confiar. Fora
isso não.
O que me mais me custou na cadeia foram as pessoas. São umas intriguistas. Eu era
muito idealista, muito sensível aos problemas das pessoas. Agora não. Muita coisa
aqui é fita, é manipulação. Dizem que não têm nada, mas é para terem as coisas das
outras [...]. Eu não sou delinquente. Cometi um crime, é tudo, não foi por apetência,
por carreira. A maioria aqui é por isso.
6 Este discurso da demarcação recorre também ao tipo de crime, embora limitando-se
agora a um conjunto subsumido numa nova categoria local, a saber: por droga. Mas
qualquer que seja o crime que assim indicam, não é por via do acto desviante em si
mesmo que desclassificam as co-reclusas. É pelo que lhe associam, ou seja, a
proveniência social ou étnica de quem o cometeu. Essa gente dos bairros (por vezes
seguida da referência a pretas e ciganada) é, com efeito, a fórmula standard pela qual
estas detidas me referiam as colegas. Uma delas, de resto, pediu para mudar de pavilhão
por causa do ambiente:
Isto é tudo bairro, não dá para aguentar. As de Lisboa queixam-se das do Norte, mas
elas também é tudo bairro, ainda é pior a linguagem.
7 E uma reclusa veterana, gestora da biblioteca de um dos pavilhões e cuja carreira
prisional se iniciara já antes do meu primeiro trabalho de campo, deplorava nos
seguintes termos o fosso de literacia que entretanto se cavara entre ela e as colegas:
A população hoje não tem nada a ver com antigamente. Hoje não encontra aqui um
grupo de pessoas com ligações culturais. Eu sinto um enorme vazio porque já não
tenho com quem conversar. Não lêem. Dantes ainda liam literatura de cordel – a
Branca, romances cor-de-rosa – agora nem isso. Vêem as telenovelas. Mandei vir
jornais, até aqueles mais populares, mas ninguém lê. Agora é só a traficante do
bairro de lata, que não sabe ler nem escrever: põe o dedo [para assinar].
8 Conversamente, esclareciam-me duas detidas dos bairros (uma pretendendo responder
por toda a população prisional, outra por quase toda): «Estamos aqui todas por droga;
Estamos todas juntas com as criminosas» – entendendo por criminosas as condenadas por
homicídio. O homicídio sobrevive, de facto, como fronteira no que respeita às
representações do crime, mas perdeu importância discursiva na sociabilidade
quotidiana. Quase se apagou dada, até, a reduzida fracção de mulheres que aqui
cumprem pena por este motivo. Uma delas, co-autora de um mediático homicídio,
confiava-me:
Sabe, [as colegas] fazem-me sentir o crime. Estou sempre a ouvir bocas: «Então,
achas isso bem?»; «Olha lá, menina, sabes o que tu fizeste? O que tu fizeste é um
crime»; «És uma criminosa, isso não se faz». Eu fiz mal, claro que eu fiz mal, e estou
mais que arrependida de me ter deixado levar pelo meu marido. Mas então elas
também não estão aqui pelos crimes delas? Até parece que não fizeram nada!
9 Em todo o caso, o homicídio constitui um dos poucos referentes descritivos do que, em
abstracto, significa um crime, ou o tipo de crimes a que a prisão se destina e dos quais
157

seria como que o significante para o exterior, veiculado, por exemplo, pelo uniforme
carceral. O tráfico por que a Maria Emília foi condenada não parece ser um deles:
No RAVI já vamos ao hospital sem bata e só somos levadas por guardas até à porta.
Às vezes até somos nós que telefonamos para nos virem buscar. Ainda bem, dantes
com eles ao lado eu até parecia uma criminosa.
10 Em suma, se há uma década as diferentes categorias criminais eram omnipresentes nas
conversas prisionais e organizavam as representações sobre o universo das co-reclusas,
hoje muitas delas diluíram-se nessa nova macro-categoria emic designada de droga ou
por droga, uma designação operando quer dentro, quer fora dela. Será já evidente que
ela engloba não só os crimes de tráfico, como todos os outros cometidos por
toxicodependentes. Dela se auto-exclui, porém, a esparsíssima franja de detidas que
traficava e consumia drogas sintéticas, como o ecstasy. Por um lado, trata-se de pessoas
que não provêm dos mesmos segmentos sócio-espaciais: não só integram camadas
sociais mais afluentes como os circuitos desse tráfico não são os dos bairros
desfavorecidos, mas os dos bares, discotecas e festas rave ; por outro lado, se estas
reclusas se assumem como consumidoras – querendo com isto significar um consumo
recreativo e ocasional – não se consideram, como outras, toxicodependentes. Uma destas
jovens, dizendo-se chocada quando à entrada em Tires lhe foi receitada medicação para a
ressaca, alegava:
Eu não sou toxicodependente. O ecstasy não cria dependência. É cá uma
ignorância... O ecstasy não é bem uma droga, é uma cena de fim-de-semana, de
estar com os amigos, é curtir o prazer da dança, da música. Não se anda aí caído,
temos uma vida normalíssima. Toxicodependente é a minha mãe, que não passa
sem os calmantes.
11 À semelhança destas reclusas, aliás, a minoria alheia ao eixo da droga exprime as
mesmas noções quanto às práticas de prescrição medicamentosa na cadeia, receando
ver-se assimilada por esta via à generalidade da população recluída. De modo indirecto,
o nivelamento criminal desta população suporta nestas detidas a percepção de que
todos os medicamentos são, por um lado, potenciais sucedâneos da droga e que, por
outro, mais não seriam do que um obscuro colete de forças químico destinado a mantê-
la controlada:
Quem não souber ler [a bula] anda drunfado. Se tem dor de estômago, vem
comprimido. Se tem dor de cabeça, vem o mesmo comprimido. É tudo igual para
toda a gente. Andamos todas a tomar comprimidos para as drogadas.
Quando entrei tinha um problema no fígado. O médico diagnosticou-me uma
cefaleia nervosa e receitou-me nove comprimidos de manhã, cinco ao meio do dia e
seis à noite. Quando tomei tudo ia caindo para o lado. Aí pedi para falar com a
psiquiatra, que me perguntou há quanto tempo eu consumia. Eu disse que nunca
tinha tido nada a ver com droga. Tá a ver? Ela deu-me a entender que aquilo era
medicação para ressacadas. Nunca mais tomei nada. O médico põe tudo a
comprimidos para elas ficarem sossegadas.
12 Exceptuando então este pequeno grupo e as jovens consumidoras de ecstasy (que
preferem, de resto, o convívio com reclusas bastante mais velhas mas de mesma
extracção social), muitas das distinções entre crimes, outrora muito vincadas,
apagaram-se. Por exemplo, a linha divisória entre traficantes e traficantes-
consumidoras. Vistas de fora, por elementos exteriores à categoria por droga , estas
tornar-se-iam equivalentes através da equiparação do tráfico – e já não só do consumo
– a um vício:
158

Têm que ir à droga. O tráfico é um vício maior do que a droga. É mais fácil recuperar
toxicodependentes do que traficantes. É um vício, aquele dinheiro fácil. Mesmo que
tenham uma profissão, é muito difícil resistir àquilo.
13 Esta representação do tráfico como vício, por vezes visto como um comportamento mais
adictivo do que o consumo de droga, é aliás comum nalguns membros do pessoal
penitenciário: O tráfico é um vício. Depois de traficar ninguém vai viver da venda ambulante.
Ainda quanto ao staff, é de referir que se membros do pessoal terapêutico, relevando de
um saber técnico, especializado, padronizam as consumidoras, atribuindo-lhes
características de personalidade e traços comportamentais específicos (a manipulação,
por exemplo, não seria um traço idiossincrático ou circunstancial de um indivíduo, mas
uma propriedade imanente a toda uma classe), o pessoal leigo, sobretudo as guardas,
tende menos a uniformizar as toxicodependentes e, por conseguinte, não as contrasta
com as restantes prisioneiras1. Duas guardas seniores defendiam:
As toxicodependentes é como o resto, é igual. São muito diferentes umas das outras.
Cá da minha experiência é assim. [Os técnicos em geral], por elas terem aquele
rótulo, «toxicodependentes», cortam-lhes logo [o acesso a] certos trabalhos. Eu não
acho bem. Acho que a partir de certa altura temos de lhes dar um voto de confiança.
Temos de lhes dar mais responsabilidade, elas são capazes. Havia uma muito
revoltada, partia tudo, só causava distúrbios. Aos bocadinhos fui-a pondo em coisas
de mais responsabilidade – ela até ficava muito admirada por eu confiar nela. Eu
dizia-lhe assim: «Vamos fazer uma experiência. Ficas aqui, continuas assim,
devagarinho. Vais-te portando bem, e depois a gente vê». Eu vi que estava a correr
bem e depois fui fazer pressão na direcção para ela ser supervisora. Pensavam que
eu estava doida. Mas lá consegui. E olhe, foi um sucesso.
Eu sou liberal com elas na maneira de falar. Brinco com elas, entro no jogo delas e
elas confiam em mim porque sentem que eu as apoio. As toxicodependentes são
normais. Para [alguns técnicos] é como se fossem diferentes, até parece que são um
bicho de sete cabeças. Mudou muito a minha maneira de pensar, estar com estas
presas. Até em casa, com os meus filhos, falo mais abertamente. Há muitas que
conseguem sair disto, vê-se que têm força de vontade. Chegam aqui todas
desmazeladas, com piolhos, a fazer chichi na cama. Depois andam melhor. Já
encontrei umas lá fora, todas arranjadas. Outras dão-me notícias. Como vê, isto da
toxicodependência nas cadeias não é assim tão mau como pintam. Há esperança: há
aí umas 10% que se curam. Eu mostro que tenho confiança nelas, e elas ficam muito
espantadas por encontrar alguém que lhes dá uma oportunidade. Elas dizem-me
isso, dizem-me que isso as faz sentir bem.
14 Regressando à destrinça do passado entre traficantes e traficantes-consumidoras (que
corresponde, de resto, a uma destrinça penal, uma vez que umas e outras configuram
categorias jurídicas distintas), deixaria também de ser actuante no interior da categoria
por droga. Na dinâmica de oposições recíprocas vigente em 1987, tal fronteira
alimentava-se de recorrentes polarizações discursivas em torno do tráfico e do
consumo. Nesta representação dicotómica, o consumidor surge como figura doente,
carecendo de tratamento, frágil e à mercê da figura complementar – o perverso, todo-
poderoso e implacável traficante, carecendo de (cada vez mais) cadeia. Assim o
notaram, de igual modo, Dorn et al analisando as metamorfoses que se insinuaram a
partir dos anos 70, e se fixaram na década seguinte, na percepção pública das duas
realidades:
Drug users became described as weak personalities, typically trapped in deprived
environments, who had been led astray by misguided peers and unscrupulous drug
pushers. They were sick or immature, and required treatment, counselling, or
simply a safe space to grow as people. Drug dealers, on the other hand, come to be
159

perceived as belonging to a quite different category. One word suffices to describe


them: “bad” and, as reaction hardened, “evil” (1992: 178) 2.
15 Ora, Valentim (1997: 88-89) referiu, para Portugal, não só a circulação de papéis entre
tráfico e consumo, ou a sobreposição de estatutos nas populações alvo do aparelho
policial, como ainda, a partir da década de 90, a homogeneização do perfil sociográfico
de traficantes, traficantes-consumidores e consumidores, todos eles igualmente
desqualificados. Esta similaridade ou justaposição sociológica não é, porém, suficiente
para compreender como, do ponto de vista emic, se esbateram as fronteiras entre tais
categorias na prisão, deixando de fazer sentido para as reclusas. Afinal, apesar de no
passado aqueles papéis se revelarem menos intermutáveis e de muitas traficantes
serem estrangeiras e correios internacionais, as discrepâncias sociológicas entre
aquelas categorias de representação não eram de grande relevo. Chaves (1999a:
289-295) proporciona-nos alguns dados etnográficos esclarecedores a propósito da
clivagem representacional entre tráfico e consumo no interior do Casal Ventoso.
Segundo o autor, se os consumidores não autóctones que frequentam ou se
transferiram para o bairro são inferiorizados e estigmatizados pelos seus habitantes, o
mesmo não se verifica com os consumidores autóctones, que usufruem de um estatuto
semelhante ao de qualquer outro filho do Bairro. Na verdade, a subalternidade e
dominação interna dos primeiros parece decorrer principalmente do facto de serem
representados como fonte de insegurança e como propagando má-fama ao conjunto dos
residentes. Não se colocando tal problema em Tires, os laços de parentesco, amizade e
vizinhança que unem reclusas traficantes e traficantes-consumidoras tornaram
irrelevante o jogo da distinção ancorado na dicotomia tráfico/consumo, uma
irrelevância que, por extensão, é transversal a todo o universo prisional, ainda que por
diferentes razões: o círculo dos próximos tornou íntimas, familiares estas categorias de
representação, desestigmatizando-as reciprocamente antes e durante a prisão; e a
proximidade sociológica e interpessoal entre elas é por sua vez bem perceptível aos
olhos das detidas extrabairros, levadas também elas a diluí-las quer na categoria por
droga, quer ainda na noção de vício.
16 Por um processo similar, esboroaram-se outras barreiras criminais e simbólicas que não
apenas aquelas que se erigiam a partir da dicotomia tráfico/consumo. Recapitulemos as
razões pelas quais perdeu localmente pertinência a maior parte das distinções entre
crimes que vigorava no passado. Em primeiro lugar, uma razão de número e escala: a
esmagadora maioria da população de Tires encontra-se presa por tráfico e, nesta classe,
as reclusas deixaram, sequer, de se arrumar respectivamente em traficantes e
traficantes-consumidoras. Em seguida, há uma convergência entre tipos de crime que
têm como denominador comum uma conexão à droga, levando a que sejam incluídas na
macro-categoria por droga mesmo a maior parte das condenadas por crimes como furto,
roubo e cheques sem provisão. De resto, assegurava-me uma natural do Casal Ventoso,
No geral é tudo igual, damo-nos todas bem. Antigamente acho que faziam as
diferenças, eu cheguei a ouvir isso lá fora. Eu cheguei aqui, não dei por nada. Tanto
se junta a que vendia [droga], a que passou cheques, a que roubava para consumir...
Cada qual tem o seu defeito.
17 Uma terceira ordem de razões, por fim, parece ter conduzido à reformulação de todas
estas fronteiras entre as reclusas, diluindo-as. Com efeito, na sua vida pré-prisional tais
categorias encontravam-se já misturadas – para começar, logo no contexto da família
ou do agregado doméstico. Assim, e para citar um dos cenários combinatórios mais
frequentes, uma traficante não consumidora terá um marido consumidor (ou
160

traficante-consumidor) e um filho heroinómano que furtou valores e objectos de casa


para vendê-los alhures.

Corpos solidários
18 Ora, esta conjunção pré-carceral de categorias prisionais é também homóloga e
coerente com a que se verifica num outro domínio da vida penitenciária. Em absoluto, a
situação de reclusão é em si própria propícia à exacerbação do receio de contrair
doenças transmissíveis várias, ao implicar a coabitação forçada dos internados, a
participação conjunta nas actividades quotidianas e a utilização comum das mesmas
instalações e utensílios, sendo difícil furtar-se a uma e a outra, ao que se poderá
adicionar os eventuais efeitos psicológicos do huit-clos . Há uma década, porém, o
enfático temor do contágio, sobretudo relativo a síndromes e doenças como a sida e a
hepatite B, era em acréscimo especialmente apropriado para exprimir física e
metaforicamente a distância e a não identificação entre as reclusas. A tensão entre a
dissolução dos limites interpessoais operada todos os dias pelo dispositivo prisional
(pense-se na ausência de privacidade) e o ensejo de reposição de fronteiras identitárias
e simbólicas parecia encontrar aqui um campo de explicitação particularmente
adequado. A pronunciada demarcação higiénica, declinada, por exemplo, quer nas
manifestações privadas quer na ostentação pública do receio de sentar-se nas cadeiras
utilizadas pelas co-detidas, decorria da noção de uma ameaça difusa e omnipresente –
que estas representariam. O mal, como me dizia uma reclusa, pode vir de qualquer lado.
Este mal era, por assim dizer, de largo espectro uma vez que não se limitava à referência
microbiana, mas comportava, também, uma dimensão moral. De facto, circulava o
medo da contaminação deliberada, provocada intencionalmente. Por isso, mesmo as
reclusas que defendiam para o mundo exterior o princípio da não segregação de
pessoas afectadas por problemas infecto-contagiosos solicitavam em contrapartida a
criação, na prisão, de unidades separadas para uma variedade de afecções, desde as
doenças venéreas à sida. No caso do HIV, desenvolvia-se uma suspeição generalizada
entre as detidas, que empreendiam então um processo de identificação das
seropositivas através da interpretação de vários sinais: uma reclusa que obtinha uma
libertação considerada demasiado fácil dada a sua situação jurídica; certas outras que
sofriam uma revista pessoal quotidiana mais ligeira (ou que numa determinada ocasião
não haviam sido de todo revistadas); cuja cela era objecto de inspecções menos
rigorosas por parte do pessoal de vigilância; outras ainda que eram pouco
importunadas pelas guardas no dia-a-dia prisional (porque teria sido, decerto, a doença
que lhes inspirara sentimentos de compaixão, Cunha, 1996: 81).
19 Hoje, assim não acontece. Tal é tanto mais significativo quanto a prevalência das
doenças que as reclusas mais receavam terá aumentado substancialmente. Um membro
do staff informou-me que a percentagem de detidas infectadas, por exemplo, com o HIV
se situava acima dos 20%3 – enquanto esta seroprevalência em Tires não era, há dez
anos, superior à da população em geral; em segundo lugar, se há uma década a
automutilação era uma realidade ausente de Tires, actualmente pontua o seu
quotidiano4. Poder-se-ia supor, por isso, ampliadas as inquietações do passado face a
estas usuais incisões nas pernas, braços e antebraços a que procedem as co-reclusas.
Aliás, a frequência de tais práticas acabou por impacientar o pessoal penitenciário, que,
de resto, as desvaloriza:
161

Corta-se na medicação – elas cortam-se; os amores não vão bem – cortam-se; a chefe
não lhe deu atenção – corta-se; até uma, que não conseguiu fazer um telefonema
porque já estava na hora do fecho: «Não posso telefonar? Então corto-me»! Isto
devia ser assim: cortam-se, pagam o tratamento. [Na verdade as reclusas
submetem-se muitas vezes a uma espera interminável, amontoadas junto ao gradão,
para poderem telefonar. O particular telefonema de que fala esta guarda era, além
disso, de uma importância fulcral para a detida em causa.]
20 Num quadro da direcção a exasperação não era menor:
Isto é por ciclos e por imitação. Começa uma e seguem-se as outras. É mais para
chamar a atenção. Também muitas têm problemas de desordem mental. Agora a
política é não estar com mais contemplações. Castiga-se e fecha-se, pronto 5.
21 Sucede então que em vez de se avivarem num terreno que os potenciaria, os espectros
do contágio atenuaram-se. Diversamente do passado, além disso, as precauções
tomadas – quando são tomadas – são de ordem estritamente sanitária e não se
desdobram em quaisquer reverberações morais. Assim, nunca me deparei com a mise-
en-scène distanciadora, fosse através de palavras ou de comportamentos. Constata-se
mesmo uma preocupação de sentido inverso: não contaminar (com uma constipação,
uma gripe, uma micose, por exemplo) uma reclusa seropositiva ou com sida, com o
sistema imunitário fragilizado. Mais uma vez, trata-se de uma realidade muitas vezes
próxima antes da prisão: um primo, um irmão, um filho com o HIV. Por outro lado, no
que respeita às consumidoras, várias comunicaram-me terem partilhado drogas e
seringas com parentes, amigos e vizinhos, embora conhecessem os factos básicos sobre
as vias de transmissão do HIV, pelo que a questão do contágio não se lhes punha de
maneira premente já antes da reclusão (para este tipo de partilha entre os próximos ver
também Viadro e Earp, 1991: 15). Mas mesmo que não se dêem ambos os casos, restam
proximidades de outra ordem e, de qualquer modo, a distanciação deixou de operar em
sistema. Uma detida do Casal Ventoso, ex-toxicodependente, deu-me conta do único
episódio de discriminação que testemunhara na cadeia, procedendo a um inesperado
desvio explicativo pelas populares virtudes «desinfectantes» da água fria:
As seropositivas aprenderam muito com esta vida. Foram elas que me deram os
melhores conselhos: «Não tomes calmantes, olha para mim. Tu tens filhos, não te
metas na droga. A mim o bicho está cá dentro a roer-me toda. Não é por ti, é pelos
teus filhos. Eles é que choram com a tua morte». A gente tem muito respeito por
elas, e elas têm cuidado connosco. Só uma vez é que houve aí uma discussão de uma
presa com uma. Havia um problema com a água – há muitas vezes falta de água, só
para os jardins é que nunca falta – e só estava um duche a funcionar. A água vinha a
escaldar. Estava uma a lavar-se e a seropositiva começou a ter hemorragias. A outra
ficou com medo e começou a discutir. Mas também era porque a água estava muito
quente. Se fosse água fria, o bicho só vivia uns segundos. Mas como era quente, o
bicho ficava mais activo.
22 Por sua vez, uma bem impressionada guarda, já contemporânea do meu primeiro
trabalho de campo, contava-me da sua relativa surpresa pela ausência de resistência
que encontrou o seu cuidado de integração das reclusas seropositivas, um acolhimento
de onde diz, de resto, ter colhido um exemplo6:
Eu tenho cuidado para elas não estarem à parte, integro-as sempre com as outras.
Pensava que ia ser difícil, mas não. Há uma grande solidariedade das presas, não as
põem de parte. Bebem água do mesmo copo, não se põem com coisas com a louça...
Para mim foi uma lição. É uma lição para toda a gente. Olhe que também as
seropositivas merecem. São pessoas muito lutadoras, querem fazer tudo como as
outras, até mesmo em fase terminal. Às vezes ficam muito cansadas, têm que se
sentar, mas tentam trabalhar como as outras até ao fim. Querem mostrar que são
162

capazes. Havia uma já muito doente, que foi para o hospital e gostava muito de
mim. Não tinha família, parece que tinha muita gente presa. Passei muito tempo
com ela. Os médicos e os enfermeiros usavam luvas, mas eu não, dava-lhe água e
tudo sem luvas. Via que isso lhe fazia bem. Quando eu me vim embora, não falou
com mais ninguém de tristeza, até morrer.
23 Lembrando, todavia, as disposições do passado resta a pequena minoria de reclusas
extrabairros, não abrangida na local transversalidade sócio-criminal da droga. Agora a
uma escala residual, são essencialmente estas detidas quem traz ao presente, no mesmo
registo, os anteriores regimes de percepção e discurso neste domínio:
Eu para o banho levo sempre uma bacia e uns chinelos. O meu maior medo até nem
é da sida, é da hepatite B, que contagia mais facilmente. As outras não ligam, não
querem saber. Parece que não têm consciência do perigo. Digo-lhe, uma pessoa até
fica parva. A princípio fiquei intrigada, achava um bocado estranho, porque as
pessoas assim mais do povo assustam-se muito com esta coisa da sida porque estão
menos informadas. E então pensei, isto até é gente esclarecida. Mas não. Com a
hepatite e as doenças que se pegam com facilidade é a mesma coisa. Não ligam.
Quase nem falam nisso. Ou é por inconsciência ou é por ignorância. Só pode.
24 Esta e outras reclusas do mesmo estrato social preferem, aliás, utilizar o balde sanitário
do que recorrer aos WC comuns – quando no passado o balde era considerado
degradante e reservava-se apenas para uso nocturno, durante o período em que as celas
se encontravam encerradas:
– Olá Ziza, não esperava encontrá-la aqui a esta hora!
– É. Eu tenho mais tempo livre, não trabalho. Estou à espera que me encontrem um
trabalho de acordo com as minhas habilitações. Mas eu entretenho-me: leio,
escrevo, faço crochet. Agora ia ali fazer umas arrumações e desinfectar umas
coisas...
– Desinfectar? Há algum problema?
– Não, não. É o balde. Antes quero usar o balde do que a casa de banho. Não é que
não seja limpa, mas nem sempre é desinfectada. Eu prefiro o balde. Despejo,
desinfecto com creolina, é mais seguro. Aqui há muitas doenças contagiosas:
hepatite, sida... A sida ainda é o menos, mas acho incrível porem pessoas dessas na
copa e na cozinha. Essas pessoas não deviam estar aqui, deviam ir para um sítio
onde sejam mais bem tratadas. Aqui são as colegas que tratam delas. Estava aí uma
que já não se levantava, cheia de feridas... Eram as colegas que tratavam dela.
Depois insistimos para a levarem para o hospital e no dia seguinte morreu. Isto aqui
com esta gente nunca se sabe, é preciso ter muito cuidado. Eu e mais umas usamos o
nosso balde, a nossa louça, usamos chinelos no banho – temos que nos proteger.
25 Por seu turno, uma detida do círculo da Ziza, a quem havia sido destinada a coabitação
com uma jovem seropositiva, logrou trocar de cela com uma outra reclusa,
pretextuando que, sendo esta do mesmo meio , poderia cuidar daquela e que,
seguramente, se entenderiam melhor:
A miúda era seropositiva. Era muito arriscado porque era muito instável. Estava
deprimida, fazia estragos... Pedi à Natália para trocar comigo porque ela também é
do Casal Ventoso. Acho que já se conheciam lá de fora. São do mesmo meio, assim
pode tratar dela. Fica muito melhor do que comigo.
26 Este pedido de troca foi atendido sem a menor reserva pela Natália, que passou, com
efeito, a «tratar» da colega, inclusive lavando-a e alimentando-a. Este tipo de
assistência é, aliás, frequente, prestando-se também a toxicodependentes que entram
na cadeia em síndrome de abstinência. São então ajudadas por algumas guardas
experientes, mas sobretudo por colegas, entre as quais aquelas que passaram pelo
163

mesmo, e reproduzirão mais tarde, por sua vez, estes gestos, oferecendo a ajuda que
receberam a outras recém-entradas.
Entrei aqui a ressacar, não me aguentava em pé. Eram as colegas que me obrigavam
a comer, que me limpavam, tiveram que me levar em braços para me lavar. Se não
fossem elas... Ajudaram-me muito. Vinham ver como é que eu estava, davam-me
tabaco, diziam-me o que é que eu devia fazer. Eu também faço isso porque temos
que ser umas para as outras não é?
Eu soube que estava grávida na cadeia. Não dei por nada porque já não tinha
menstruação há um ano, por causa da droga. Comecei a sentir uma coisa a mexer na
barriga e disse à guarda. Ela pensava que era da medicação e disse-me «Oh, isso é
cirrose!» – eu já estava de quatro meses. Depois uma colega foi-me dar banho para
ir a julgamento e quando me estava a ensaboar a barriga disse-me «Ai aqui há
pezinhos...» Comecei a ter muita fome. As colegas davam-me comida e começaram a
desconfiar que eu estava grávida. E não é que estava?
27 De resto, a entreajuda que vigora é de ordem mais genérica, por um lado, e, quando
comparada ao passado, mais generalizada, fazendo com que a noção de amizade venha
a ser localmente formulada pela primeira vez em modo directo, plural e abstracto, e
não apenas indirectamente, a partir de uma relação individual e concreta (lembre-se
que outrora ainda se admitia fazer corresponder uma determinada reclusa à noção de
«amiga», para mais uma noção em certa medida sugerida por mim, mas o conceito de
amizade carceral era definitivamente uma «tradução» do investigador):
Também não [me] foi difícil sobreviver aqui. Tive muito apoio das colegas. Eu não
tenho visitas, mas elas repartem tudo comigo. Se não tenho tabaco dão-me, ou pago
depois. Há muita ajuda aqui. Conheci aqui uma coisa que não conhecia lá fora, sabe?
A amizade. As colegas são cinco estrelas.
28 Dez anos atrás, este tipo de interajuda confinava-se aos pares de amigas preferenciais
ou aos dois microgrupos de locatárias que cumpriam pena na enfermaria e no campo –
assim eram designadas duas pequenas secções prisionais separadas do pavilhão,
adaptadas para alojamento. É certo que na altura eu atribuí principalmente a afinidades
sociológicas e penais a maior solidariedade no seio destas secções: numa, diziam-me as
próprias reclusas, Temos níveis de vida e níveis intelectuais não muito diferentes; noutra,
tratava-se de internadas de meios rurais, condenadas, na sua maioria, por homicídio.
Mas ocorreu-me também, numa espécie de ingénuo determinismo ecológico, que a
menor dimensão espacial destas unidades não seria alheia a uma tal proximidade.
Embora equivalentes em escala àquelas secções, os actuais edifícios de RAVI congregam
agora uma maior diversidade sócio-penal de detidas do que os maciços pavilhões
principais – e o espaço reduzido vem precisamente evidenciar e realçar essas
diferenças, que nas grandes unidades se diluem, por minoritárias. É assim que a Mina,
transferida para RAVI, apesar de ter consigo uma amiga do bairro comunicava-me uma
percepção bem contrastante com a que trouxera do pavilhão:
Isto aqui é mais luxuoso, mas havia muito mais união no pavilhão [a amiga assente
enfaticamente]. As pessoas ajudavam-se muito, repartiam umas com as outras. Aqui
não repartem, até bons restos deitam fora. Há para aí umas cheias de manias, mas
estão sempre a controlar, a meter-se na vida da gente. No pavilhão nunca me faltou
um bolo, um café. Desde que vim para aqui nem uma bolacha!
29 Talvez estas razões ajudem a esclarecer a renitência das detidas em aceitar transitar
dos pavilhões centrais para estas unidades, uma transferência muitas vezes necessária
para descongestionar os primeiros, já repletos. A Direcção queixa-se da resistência ao
que até seria uma promoção nas condições de alojamento, vendo nela apenas o receio
de uma perda de privacidade, e pressiona à transferência informando que só ela
164

permitirá aceder a um regime de execução da pena mais aberto. Nos pavilhões deparei-
me, além disso, com manifestações de solidariedade organizada e à grande escala:
cotizações inter-reclusas a favor de colegas particularmente desmunidas na iminência
de sair, cujo magro fundo de reserva não lhes permitiria fazer face aos primeiros
tempos de liberdade: abaixo-assinados intercedendo por detidas alvo de castigos
considerados injustos ou excessivos. Num pavilhão, dois deles foram assinados por 250
reclusas (num total de 298). Um dizia respeito a uma altercação entre duas internadas,
da qual resultou uma agressão: a punição inicialmente decretada foi suavizada em
duração e no regime (do manco ou cela disciplinar passou-se a encerramento em cela de
habitação); outro objectava à acusação de insulto a uma guarda, acabando a detida
acusada por ser absolvida. Refira-se, de passagem, que há dez anos apenas testemunhei
duas acções concertadas de amplitude análoga. A primeira mobilizou as prisioneiras na
subscrição colectiva de um texto dirigido a várias instâncias, onde se exigia a
divulgação dos resultados dos rastreios efectuados na prisão e o isolamento das co-
reclusas afectadas por qualquer doença transmissível: a segunda, de menor escala,
envolveu as estrangeiras num protesto contra as condições específicas a que eram
sujeitas em razão da sua nacionalidade.
30 Actualmente, a mais popular organizadora destas e de outras iniciativas é a Violeta. De
resto, a biblioteca que gere regista todos os dias um verdadeiro corrupio – em torno da
sua pessoa, que não dos livros – ao contrário das bibliotecas dos restantes pavilhões,
invariavelmente desertas. Sucede que além de popular, a Violeta provém de classes
populares, possuindo contudo um capital escolar (9.º ano) superior ao da maioria de
reclusas de mesma extracção, pelo que também se presta a redigir-lhes pedidos e
cartas. No pavilhão ao lado não têm idêntico sucesso as iniciativas empreendidas pela
Maria Luísa, uma outra «bibliotecária» de igual militância cívica e empenhamento
solidário – e envolvida ainda no associativismo recluso interprisional. Esta ex-líder, que
situaria abreviadamente na classe média, deplorava agora o aparente facto de ninguém
[querer] arriscar e recordava profusa e nostalgicamente os volvidos tempos gloriosos
em que o seu activismo teria mobilizado as massas locais 7. Descreveu-me uma destas
acções de protesto, ocorrida, segundo ela, pouco depois de eu ter terminado o meu
primeiro trabalho de campo. É de notar, porém, o grão de areia desta coesão, uma
coesão de superfície que rapidamente degenerou na confusão e no caos:
Foi uma altura muito problemática. Houve uma série de suicídios, faziam falta
psicólogos e psiquiatras, começavam a chegar as drogadas sem assistência
nenhuma, que precisavam de uma assistência profissional... No dia em que se
suicidou uma argentina, estávamos no refeitório e eu disse que nós não jantávamos
enquanto a senhora, directora não viesse falar connosco. Só que há uma cigana que
olha para o subchefe e diz «Tenho fome...» E ele disse: «Então venha buscar o
prato». Eu, muito democraticamente, acho que se as pessoas não querem aderir não
faz mal. Mas uma que não gramava a cigana – já tinha tido uma pega com ela – foi
buscar o termos e quando vem agarra no prato e dá com ele na cara da cigana. Aí o
chefe vai para bater nela, ela vai com o termos para bater no chefe... Bom, só lhe
digo uma coisa: foi um charivari tão grande naquele refeitório que andavam panelas
pelo ar. E eu calma e tranquila. Às tantas chamam as outras guardas todas e uma
chega ao pé de mim e diz assim: «Ó Maria Luísa, contenha-me estas mulheres». –
«Ai eu é que tenho de conter estas mulheres?» E eu disse: «Ó meninas, elas não
querem exercer violência sobre vocês. Já fizemos o protesto, vamos para a cela».
31 É verdade que as actuais reclusas permanecem alheadas das iniciativas da Maria Luísa –
tanto quanto se investem, em contrapartida, nas da Violeta. A diferença parece residir
quer nos objectos de protesto escolhidos por uma e por outra, quer no espaço social de
165

inserção das respectivas proponentes. A Violeta propõe uma solidariedade para com
um nome e um rosto que, em acréscimo, é frequentemente uma de nós – definindo esta
expressão uma zona de identificação elástica, mas excluindo uma parcela minoritária
da população prisional, quase sempre as reclusas extrabairros; a Maria Luísa propõe
uma causa que envolve menos pessoas do que as condições permanentes que as
afectam, ou categorias de pessoas com as quais a identificação é muito remota (por
exemplo, as estrangeiras que solicitam a transferência para o Funchal, onde é mais fácil
à família visitá-las dado a cidade se encontrar mais bem servida de voos directos e
económicos a partir dos seus países de origem). Em segundo lugar, ao contrário da
Maria Luísa, a Violeta é considerada uma entre iguais, susceptível de sofrer o mesmo
tipo de consequências, de as medir e de as enfrentar, oferecendo, nesse sentido, maior
confiança. Veja-se o perfil da Maria Luísa, corrosivamente traçado por uma detida do
Casal Ventoso:
É a revolucionária. A gente chama-lhe a Doutora. Está sempre a querer fazer
revoluções, abaixo-assinados, mas se for preciso na hora de rebentar a bomba
encolhe-se, não dá a cara, são as outras coitadas que têm represálias. Sobra sempre
para nós, a maralha. Eu já lhe disse que tenho muita pena, mas dali não assino nada.
Tenho uma pena muito longa, tenho de pensar nos meus filhos.
32 A minoria de detidas extrabairros, não por droga, é normalmente excluída deste círculo
de práticas e percepções de solidariedade alargada, mas ela própria se exclui desse
todo, em relação ao qual se demarca e vinca distâncias. Referi já aquelas que se
exprimem através do temor do contágio físico relativo a afecções de colegas, ou seja, a
doenças que são, em si mesmas, pegadiças . Mas a utilização de toda a sorte de
recipientes próprios não decorre apenas desse receio. São estas reclusas que se munem
de tupperwares com os quais vão buscar comida ao refeitório, tomando depois a refeição
na cela, ou que, não dispondo deles, para lá convergem mais tarde, quando não há tanta
mistura de gente. Quando perguntei a um destes grupos-tupperware se era costume que
pratos e marmitas fossem mal lavados, a resposta foi unânime: que não, mas tinham nojo
de servir-se da louça usada por toda a gente 8. Além disso, acrescentaram, nem assim se
sentiam menos humilhadas já que tinham de pedir comida às presas da copa. Por outro
lado, são ainda estas detidas que quotidianamente se manifestam incomodadas – dir-se-
ia, com mais propriedade, acossadas – pelos barulhos da prisão: os do movimento de
portas, gradões e ferrolhos, e sobretudo os das vozes; não de quaisquer vozes, mas de
uma altissonante vozearia popular, que a acústica carceral amplia (São pessoas
habituadas a falar assim, está-lhes no sangue. Não conseguem falar baixo). Principalmente
dizem-se perseguidas pelos cheiros. Mais uma vez, porém, não qualquer cheiro. Se as
minhas narinas se sentiam particularmente perturbadas pelos penetrantes odores do
estrume da quinta prisional, dos restos de comida das marmitas vazias, da
omnipresente lixívia e quejandos desinfectantes generosamente derramados por todos
os recintos (partilhando pelo menos as duas últimas incomodidades olfactivas com a
maioria das reclusas, que também as referem), as detidas da minoria queixam-se acima
de tudo dos odores das outras, mais propriamente do odor do «outro»: É este cheiro a
suor, a catinga, as drogadas que vomitam... É um cheiro que se entranha na cadeia, entranha-se
na gente9. A partir da asserção desta reclusa pode-se falar, então, de «osmologia» (osmos,
de odor, osmé, de infiltração, pese o artifício homofónico, que não a etimologia). Na
verdade, o olfacto põe em jogo categorias e seus limites10. Os odores possuem
precisamente essa qualidade de se desprender dos corpos e de atravessar fronteiras.
São por isso especialmente apropriados para exprimir a ideia de contágio ou de acção à
166

distância. Assim o notou David Howes (1991) a propósito do papel que eles
desempenham nos ritos de passagem e da recorrente conexão cultural entre odores e
configurações liminares, um ponto igualmente observado por Gell (1977), para quem o
olfacto seria mesmo o sentido por excelência da liminaridade 11. Por outro lado, aliás,
não terá sido por acaso que as prisões, como avançou Alain Corbin (1986), se assumiram
no século XVIII como laboratórios de experimentação da ventilação, da desodorização e
de outras técnicas sanitárias que, de seguida, se generalizaram às habitações familiares:
a ambição higienista encontrava-se então declaradamente cometida a uma preocupação
moralizadora e ao ensejo de evitar o contágio criminogéneo. Às reclusas de que falei
preocupa-as, como há uma década, um outro contágio, um outro nivelamento: aquele
que dissolve as fronteiras entre os corpos, que esgaça os limites entre pessoas e
categorias de pessoas12. Onde se queria distância, impermeabilidade e diferença, o odor
homogeneíza e sincroniza (Howes, 1991: 5).
33 Sabemos já que no passado a vida na prisão se traduzia, em grande parte, num exercício
de delimitação de fronteiras, exercício esse agora quase imperceptível e limitado a uma
discreta minoria de detidas. Nesse sentido, assim como a globalidade da população
reclusa deixou de se pautar pelo obsidiante pavor da contaminação microbiana e de o
subsumir no mais amplo receio da insalubridade natural das co-prisioneiras (que, por
na verdade se tratar de uma poluição simbólica, se propagaria às coisas e resistiria a
qualquer lavagem ordinária), também não se vê ontologicamente afectada por certos
barulhos e certos odores. Quando muito, a incomodidade que provocam será da mesma
natureza da induzida pelos restantes. Não se lhes atribui, como algumas internadas,
uma propriedade distinta por emanarem de uma categoria particular de pessoas que os
tornaria especialmente intoleráveis. Emanam genericamente, como todos os outros, do
ambiente físico e humano da prisão. Assim, apesar de se partilhar uma exposição
sonora e olfactiva comum, não se fala do mesmo modo o idioma dos ruídos e dos
cheiros. No que toca à maioria da população reclusa, alijado da sua sobrecarga de
sentido, ele deixaria, acima de tudo, de ser falado. Hoje como ontem, por conseguinte,
as ordens sensorial, cognitiva e social esclarecem-se reciprocamente, sendo no corpo e
pelo corpo que elas se intersectam.
34 Começámos por ver que o sentido da experiência corporal é mediado pelas práticas e
relações sociais. Ora, o corpo constitui com efeito uma importante cena performativa
dos jogos identitários da prisão. Terence Turner (1994) aludiu ao estatuto do corpo no
Ocidente, onde é a base de enraizamento e de produção da noção de pessoa. Sucede que
no contexto ocidental a noção de pessoa é marcadamente individuada, e o corpo é o
suporte e a expressão desta individuação. Diga-se que o conteúdo destas definições não
é universal. O próprio T. Turner (1995) mostraria como entre os Kayapo da Amazónia o
conceito de sujeito não delimita uma entidade íntegra (de algum modo é também neste
sentido que Marylin Strathern, 1988, contraporá aos «indivíduos» ocidentais os
«divíduos» melanésios, ou seja, o sujeito é localmente entendido como consubstancial
às relações sociais), tal como o conceito de corpo não recorta uma entidade unitária.
Aliás, ainda quanto aos Kayapo, o corpo não seria em si mesmo um objecto de
representação. Sê-lo-iam sim os diversos aspectos da corporalidade, pelos quais se
manifesta. E Thomas Csordas (1994) refere ainda o exemplo dos Canacas da nova
Caledónia estudados por Maurice Leenhardt, onde pessoas e coisas se subsumiam numa
ordem sociomítica global. A ideia de individuação ter-se-ia desenvolvido no contacto
com os europeus e, significativamente, acompanhou-se da explicitação da noção de
167

corpo como totalidade física discreta. No caso das reclusas de Tires, dado o sistema de
oposições recíprocas e a dinâmica da distanciação que no passado – e residualmente no
presente – estruturavam a identidade na prisão, por maioria de razão se manifestava de
modo mais enfático essa matriz cultural ocidental, tornando-se particularmente nítido
o elo entre o sentido individuado do eu e o corpo. Tal equivale a dizer que se reificavam
ainda mais os contornos justapostos de um e de outro. De resto, não é por acaso que
estas instituições atingem o primeiro através de uma acção sobre o segundo (pense-se
no nivelamento dos corpos e da aparência pelo porte de amplos e informes uniformes
prisionais); tal como não é acidental que a resistência à prisão tivesse passado há uma
década por um sobreinvestimento na aparência (por relação à vida antecarceral) e por
uma extrema focalização no corpo (ver Cunha 1996). Como defendeu Drew Leder, (1990:
90-91), um corpo mudo e ausente no dia-a-dia reimpõe-se à consciência aquando das
suas disfunções ou de anomalias que o implicam. Neste caso, a consciência aguda da
corporalidade ia de par com a sua alienação por via de um controlo exercido do
exterior. E numa situação de clausura está-se permanentemente à escuta dos sinais do
corpo já que a resolução de um eventual problema de saúde não depende apenas da
iniciativa das reclusas e da disponibilidade do médico. Entre ambos interpõe-se um
processo burocrático extramédico cujo desenlace, do ponto de vista daquelas, é incerto.
Daí que, hoje como outrora, d(ec)upliquem os pedidos para a marcação da mesma
consulta e que o staff as encare como irredutíveis hipocondríacas. Mas ontem, em
acréscimo, a consciência exacerbada do corpo era também a consciência do esboroar
das barreiras entre corpos e entre indivíduos, pelo que se procurava preservar as
fronteiras do sujeito através da protecção de uma impermeabilidade corpórea.
35 Não era apenas o acotovelamento constante com as co-detidas que era vivido como
invasivo da esfera individual: trata-se aqui de um efeito da sobrelotação sobre esse
para-sentido que é a proxémia – quer dizer, a relação social, culturalmente definida,
com o espaço (Hall, 196913). A exposição permanente ao olhar de outrem resultava
particularmente intrusiva na esfera privada. Várias reclusas sofriam de problemas
metabólicos (obstipação, cálculos renais) em consequência de inibições decorrentes da
coabitação celular, dado o forte sentimento de pudor e opróbrio face às manifestações e
excreções corporais. Na senda de Norbert Elias (1973: 193-204), que situa estes
sentimentos na História (ou mais precisamente em etapas de um particular «processo
civilizacional»), David Le Breton vê-os como um avatar de uma não muito longínqua
«privatização do corpo», que iria «encerrar as funções corporais no estrito domínio da
intimidade» (1991: 115). No presente, todavia, é frequente que as colegas de cela se
encontrem precisamente no círculo dos íntimos, ou dos próximos. Parentes, amigas e
vizinhas não atentam criticamente contra esta integridade pessoal – assim o parece
quando este aspecto deixou, sequer, de constar como tema local. Em contrapartida
mostram-se mais vulneráveis as reclusas da minoria. Uma delas, depois de me dizer não
frequentar o recreio por lhe fazer confusão ver as presas demasiado à vontade (meio
desnudadas) em banhos de sol e por recear ficar com má-fama junto do staff, que a poderia
associar à malta dos bairros e da droga, contava-me ainda que:
Para me despir na cela ponho uma cadeira e uma toalha à frente e peço [à colega]
para se virar. Quando preciso de ir ao balde, a mesma coisa. Isso é que custa.
Quando vou tomar banho, só ao entrar no duche é que tiro o roupão e a toalha. Um
dia ouvi bocas, porque quando ia a começar entraram duas presas, e eu saí logo.
Puseram-se: «Ai que esquisita!» E eu disse que não era obrigada a ver as outras e
que entrava depois.
168

36 Ora, várias vezes me deparei com o qualificativo de esquisita , invariavelmente


invectivante, e em todas elas se tratava de causticar o comportamento distanciador (ou
entendido como introduzindo uma distância) por parte de alguém, reconduzindo esse
alguém à condição do comum dos mortais – neste caso, do comum das prisioneiras, cuja
comunidade se traduz, já o sabemos, na categoria por droga. É bom de ver que as visadas
são quase sempre as reclusas extrabairros, sobretudo no início, quando ainda não estão
claramente identificadas como tal e a sua conduta é considerada intrigante.
37 Não se punha nesses termos a questão com a Mina, uma cabo-verdiana condenada por
tráfico. Mas, justamente por ser vista como uma igual, a sua atitude tornou-se mais
conspícua e foi considerada ainda mais ofensiva. O que acentua o carácter revelador dos
seguintes episódios é que a única falta da Mina foi a de não pedir, sendo certo que,
dentro da categoria por droga, a oferta não é geralmente nem agonística nem caridosa,
exercendo-se antes como uma simples partilha. Vejamos um entendimento
verdadeiramente maussiano da dádiva:
Estão-me sempre a acusar que eu sou esquisita, porque eu não peço nada a
ninguém, mesmo se não tenho. «Não pede, é esquisita»; «Ai, é esquisita, pensa que
somos menos que ela». Não imagina o que é... Estou a ficar com os nervos em pé por
causa disto. Não é por mal, é que eu não quero ficar a dever favores. Quem dá, fica
por cima dos outros e eu não quero ficar por baixo.
38 Num momento bem posterior, a Mina produziria o entusiástico relato atrás
mencionado (supra: 266) sobre a solidariedade do pavilhão, uma solidariedade que
acabou por abraçar e aceitar sem reservas. Quer dizer que, onde ontem o
desvinculamento ostentatório era a norma, hoje é desvio; onde o que perturbava eram
os signos e processos de homogeneização, no presente são os signos e processos de
distinção; onde se tentava conservar a diferença, procura-se agora preservar a
semelhança. Acontece que no passado a interposição de fronteiras era situável
basicamente no plano interpessoal, tratando-se de enjeitar o nivelamento
estigmatizante pela condição reclusa. Hoje, porém, a demarcação que subsiste de
maneira muito limitada e quase imperceptível no quadro geral comporta ainda uma
acentuada dimensão de classe. As prisioneiras da minoria não se distanciam tão
somente das co-prisioneiras. Distanciam-se, também, da malta dos bairros e da droga. De
facto, a clivagem social é demasiado cavada para ser mascarada por quaisquer outras
hierarquias intraprisionais, quando há uma década estas pouco repercutiam a
estratificação pré-carceral. Exercidas no interior da categoria por droga , as raras
veleidades distanciadoras são sistemática e vivamente censuradas e, como vimos a
propósito da Mina, consideradas ilegítimas: não se vendo como menos que ela, as colegas
escarneceram das pretensões que lhe atribuíram e rapidamente a reabsorveram numa
comunidade através da dádiva. E ao contrário do que a Mina vaticinava, a dádiva não a
inferiorizou, apenas a realinhou pelos iguais.
39 A categoria por droga parece, na verdade, definir na prisão uma zona de identidade e
agencialidade colectiva bem menos circunstancial do que as que pontualmente se
geravam no passado, de resto então virtualmente inexistentes. Ela constrói-se, é certo,
contra as reclusas fora dela, mas também por via do parentesco, da amizade e da
vizinhança, por um lado, e, por outro, por via da classe e dos comuns estigmas pré-
prisionais. Relevo nesta identidade quer a acepção processual de «identificação», quer a
acepção mais depurada do termo, relativa a «idêntico». É nesse sentido que se poderá
ainda falar de uma «comunidade», comunidade esta que tem, aliás, uma tradução tanto
169

nas práticas (tome-se como exemplo as várias formas de solidariedade e entreajuda


atrás referidas) quanto nas representações. É assim que, enquanto outrora as co-
reclusas não eram dignas, sequer, de serem designadas por colegas (uma designação que
só ouviria pela primeira vez em Tires no segundo trabalho de campo), são agora
constantes as reiterações do género Estamos todas no mesmo barco . Há, de facto, um
sentimento de comunhão e pertença que não existia no passado. A comunidade é
produzida e afirmada espontaneamente, não imposta pelo dispositivo penitenciário e
vivida como uma ameaça pelas detidas. Por isso deixou de se enaltecer e, por assim
dizer, patrulhar com o mesmo vigor a fronteira corporal como forma de salvaguardar a
integridade individual. E se era com e pelo corpo que se lutava pela individualidade,
também é com e pelo corpo que hoje se exprime a comunidade.
40 É neste âmbito que podemos pensar algumas das versões actuais dos ataques, atribuídas
pelas reclusas aos nervos. Trata-se de episódios de prostração ou paralisia parcial pelos
quais uma internada tomba inerte no chão. Desmaiando ou sem verdadeiramente
desfalecer, queda-se imóvel, podendo queixar-se de não sentir as pernas ou de ficar
descaída, sendo então necessário arrastá-la14. Pontuando o quotidiano prisional, tais
episódios ocorriam no passado na sequência, por exemplo, de altercações e tensões com
outras presas ou com membros do pessoal. Apesar da sua espectacularidade, eram
acolhidos por guardas e detidas com uma relativa fleuma e apenas suscitavam um leve
burburinho. O staff subsumia-os na expedita noção de histeria e as co-reclusas tendiam a
desdenhá-los como tentativas de protagonismo (É para chamar a atenção). Embora estes
fenómenos continuem hoje a veicular infortúnios privados ou a comunicar problemas
que afectam individualmente uma determinada detida, assumem também de tempos a
tempos uma dimensão expressiva para-colectiva. Assim, registam-se por vezes ataques
simultâneos, uma sintonia dos corpos demonstrativa – e (per)formativa – da sintonia
das almas15. Um grave problema de uma é vivido como um problema de todas. É, mais
uma vez, um sentido de comunidade que deste modo se exprime, sendo irrelevante
destrinçar o sentimento de solidariedade para com a colega da percepção de que a
infelicidade que a atingiu poderá vir a ser a infelicidade de cada uma. Foi esse o caso
com a Encarnação:
A Encarnação está de regresso a Tires. Tem dois filhos. O de 5 anos estava com uma
irmã. Agora a irmã veio presa e o miúdo foi transferido para a cunhada, com quem a
Encarnação não queria em absoluto que ficasse. Mas não é esse o maior dos seus
problemas. Desta vez apanhou uma pena de 20 anos (por tráfico) e dificilmente
acederá à liberdade condicional. Tem 34 anos. Foi esta notícia que pôs todo o
pavilhão em alvoroço. Mal as reclusas souberam, foi um clamor geral. Umas
exclamavam com a mão no peito, outras gritavam, várias tombaram ou
desmaiaram. Até as guardas ficaram estupefactas. Deve ser por isso que a deixaram
em paz e não a repreenderam quando foi de pijama para o convívio, o que é
proibidíssimo. [Caderno de campo.]

Os corpos e os bairros
41 Vimos que no que toca à quase totalidade da população de Tires se diluíram as
fronteiras entre crimes e entre corpos, uns e outros tornados fungíveis em boa parte
em razão dos vários avatares da erosão da fronteira prisional. Não é o menor deles o
facto de a prisão não ser mais o que claramente desencadeia, inaugura e assinala às
reclusas o seu estigma. Como tal, os crimes e os corpos deixaram localmente de ser bons
para manobrá-lo e combatê-lo, permitindo multiplicar as barricadas internas. Se findou
170

o combate individual que se iniciava com e por causa da prisão, como actuam
formulações da identidade anteriores e alheias a ela, como as que se radicam no bairro,
na «raça» ou na etnicidade? Tal questão é tanto mais pertinente quanto, ao contrário
do que acontece com os crimes, é a co-presença na diversidade que impera. Gerará tal
diversidade alinhamentos sociais e representações da diferença?
42 Falemos previamente da repartição Norte-Sul (o Sul é emic amente traduzido pelas
nortenhas em Lisboa, apesar de muitas das colegas aqui incluídas provirem de distritos
bem mais meridionais). A julgar pela sua recorrência discursiva, um olhar apressado
poderia ver na dicotomia Norte-Lisboa uma clivagem maior da vida prisional – além do
que a proveniência geográfica da população reclusa se reparte maioritariamente, com
efeito, nestas duas grandes categorias. Todavia, para as do Sul as do Norte apenas
existem como tal quando delas troçam e as arreliam a propósito do sotaque e do uso
liberal que dão às obscenidades linguísticas. É certo que algumas – as «lisboetas»
extrabairros – dizem-se chocadas com o que se lhes afigura uma repugnante
manifestação do popular. Mas a maioria limita-se a ver naquele vernáculo um pitoresco
motivo de divertimento e a tomar os profusos palavrões por aquilo que são: não um
insulto, mas um bordão de linguagem. Quanto às do Norte , apenas assim se dizem
quando esta distante origem residencial as une na maior dificuldade que enfrentam
para receber visitas e para usufruir plenamente das precárias, dispendendo grande
parte do tempo e dinheiro em viagens. Por contraposição, é na medida do seu privilégio
neste âmbito que ganham existência as de Lisboa, uma categoria que não é mais do que
uma referência comparativa usada pelas nortenhas para sublinhar a terceiros a
desvantagem em que se encontram, sem que isso veicule qualquer implícita
depreciação das colegas. Trata-se tão-só de condenar o sistema prisional. A tal se
resume o recorte Norte-Lisboa, não se repercutindo em nenhuma outra área da vida
carceral, e muito menos na convivialidade local, onde as detidas de ambos os lados se
entrosam.
43 O bairro, esse sim, é um referente identitário importante e é investido como lugar de
pertença. Esta pertença pode ser codificada por uma tatuagem específica. Assim mo
assegurou uma detida, que me explicou serem os pontos que marcara na face a
assinatura do seu bairro (É porque sou da Musgueira). Porém, outras reclusas, de outros
bairros, ostentam o mesmo sinal: um ponto ao cimo de uma face e um outro na face
oposta, no canto inferior da boca. Usa-se assim, ou Agora vê-se muito, foi o que, por sua
vez, me informaram. A sua valência parece ser, por conseguinte, essencialmente
decorativa. Gadget simbólico ou não – ou, como muitos símbolos, plurívoco –, pode
ostentar para algumas uma pertença, mas não pretende delimitar uma fronteira já que,
sendo amplamente emprestado e partilhado por muitas, não tem um carácter distintivo
e portanto não terá, nesse sentido, eficácia. Não se trata então, como as tatuagens de
uma prisão americana estudadas por Margo Demello (1993), de traçar limites e
significar diferenças (de bairro, de gang ou étnicas) entre categorias de pessoas. O
mesmo se passa com outros ícones que, à semelhança do que sustenta Demello,
poderiam exprimir de igual modo em Tires o estatuto recluso. Contam-se entre eles a
quina de pontos entre o indicador e o polegar (dizendo, segundo algumas detidas, o
cerco das grades ou da cela) e o trevo, os vértices de um triângulo numa mão. O trevo é
um voto de que a carreira prisional se interrompa a breve trecho (É para cortar a cadeia
às que já levam muitos anos disto), mas também o signo de que essa carreira é longa, de
acordo com a Rosário (Já sou castarola). Adoptado nesta acepção, o trevo limita-se a
171

inscrever no corpo uma história, uma história para evidentemente ser lida, por si e por
outros, mas que não confere um especial prestígio, por exemplo promovendo as
veteranas e distanciando-as das novatas. Era aliás com displicência, e não com orgulho,
que a Rosário acedia a mostrar de perto o seu trevo às colegas que por vezes queriam
comparar técnicas e tamanhos. Quanto à quina, não se reveste de um particular valor
iniciático assinalando a entrada na cadeia. Várias reclusas já a traziam desenhada
previamente, inspiradas, segundo contam, nas tatuagens de parentes, amigos e vizinhos
que enfrentaram a detenção antes delas. É certo, por outro lado, que este símbolo é
usado por uma grande variedade de pessoas no mundo livre e não se esgota na valência
do cárcere (conheço quem lhe chame, simplesmente, «o solitário»), tal como o trevo
será, para muitos, o signo da felicidade. No contexto destes bairros, contudo, um e
outro situam-se, de facto, na órbita da prisão, estreitando-lhes o sentido e vergando-o a
ela. Também aqui se trata, mais uma vez, da incorporação da prisão no bairro,
literalmente inscrita, agora, na pele. É ainda uma história e uma pertença que se redige
no corpo – de novo, não uma fronteira – quando nele se faz figurar o nome do
companheiro e dos filhos, antecedido de um coração ou de Amor de ..., embora o
companheiro não venha a ser, afinal, eterno e essa história se queira rasurada,
utilizando-se então um produto abrasivo ou uma colher incandescida no fogo.
44 Mas se não é assim que se afirmam diferenças, é assim que se constata uma distância.
Quando é questão de decorar o corpo, recorre-se a uma gama iconográfica variada,
desde rosas e morangos a sereias, passando pelos motivos dos signos do Zodíaco e do
yin-yang. No entanto, num mesmo motivo decifraremos coisas diversas, nomeadamente
a enorme disparidade social entre a minoria de detidas extra-droga (nela incluídas as do
tráfico/consumo de ecstasy ) e a maioria das reclusas dos bairros. De um lado, por
exemplo, vemos uma sofisticada rosa colorida, de traço fino e discretamente disposta
no ombro; do outro, uma rudimentar rosa monocromática, de traço grosso e impreciso,
desenhada em grande formato numa zona mais pública (o braço ou a perna). Esta
diferença estilística parece decorrer, porém, menos do gosto do que de
constrangimentos técnicos, que resultam, por sua vez, de discrepâncias sócio-
económicas. O recurso a um tatuador profissional permite aceder a uma outra
qualidade que não a das tatuagens artesanais, feitas com molas de roupa, agulhas de
coser e tinta-da-china. Realizadas pela própria (ainda que nalguns casos ajudada pelas
colegas), dispõem-se em locais mais acessíveis – e expostos; realizadas à mão, e não à
máquina, o traço é inevitavelmente tosco e o processo especialmente doloroso (a agulha
terá de passar repetidamente na pele). Além de grosseiras tropeça-se, por isso, em
tatuagens incompletas, pedaços de figuras e de nomes que não se teve a coragem e o
afinco de levar até ao fim (Queria pôr o nome do meu marido, mas doía muito. Só consegui
fazer duas letras). Deste modo, se já não vinham marcar fronteiras entre bairros, as
tatuagens reúnem-nos numa mesma imperfeição, ao mesmo tempo que
reconhecivelmente os separam da minoria de reclusas mais afluentes. O fosso social
cavou-se, também ele, à superfície do corpo. De resto, esta distância cruza-se com uma
divergência nas representações e práticas de género. Uma destas últimas detidas
(significativamente uma dona-de-casa, algo a que, recordo, a maioria das reclusas não
acede, ou não pode aceder) falava-me não só de corpos demasiado legíveis e demasiado
marcados, mas ainda de corpos que se situariam nos antípodas das suas noções de
feminilidade:
Meu Deus, aquilo é tão feio. Ainda p’ra mais numa mulher. Numa mulher já acho
mal, mas há umas [tatuagens] bonitinhas, não estão assim TÃO à mostra. Agora
172

aquilo tudo torto, tudo mal feito... Dá cá um mau aspecto... Depois, já viu, querem
arranjar emprego e têm aquilo nos braços, mais as cicatrizes dos cortes [das auto-
mutilações]. Depois essa gente dos bairros admira-se de não sair da cepa torta!
45 Ora, assim como uma tatuagem poderá inicialmente sublinhar, quanto muito, o apego
ao lugar de origem (mas rapidamente, como vimos, ela se generaliza), é também nos
primeiros tempos da reclusão que a pertença comum a um bairro se revela um
importante instrumento de integração. Uma recém-chegada é imediatamente
amparada e iniciada pela vizinhança nas regras formais e informais de funcionamento
da instituição, independentemente de se conhecerem ou não antes da prisão – num
entendimento lato, portanto, da noção de vizinhança. Uma reclusa da Pedreira dos
Húngaros, traficante, não consumidora, recordava a sua chegada a Tires:
Quando cheguei senti-me tão desorientada que nem queria ir p’ró pé das outras. Só
queria ficar sozinha. Mas depois vieram aqui ter comigo uma data de pessoas do
meu bairro. Umas eu já conhecia lá de fora. Disseram-me o que é que eu podia fazer,
o que é que é proibido, o que não é, as pessoas que não interessava falar: «Olha,
aquela é esquisita, é assim e assado». Eu dizia bom-dia a uma que não conhecia, elas
aconselhavam-me: «Olha que aquela não vale a pena, é toda não-me-toques, tem a
mania que é mais que as outras [...]» Também me davam cigarros e assim, lá isso é
verdade, não me deixaram faltar nada. Noutro dia entrou aí uma do meu bairro a
curar a frio e eu também a apoiei muito. Dou-lhe fruta, comida, obrigo-a a comer.
Só estou a fazer o mesmo, não é por ser nenhuma otária [refere-se aos comentários
de duas reclusas extra-droga, segundo os quais ela se deixaria explorar pelas
colegas].
46 Tomadas sem contexto, as palavras desta detida induzir-nos-iam a pensar que o bairro
opera quer uma filtragem na sociabilidade, fornecendo o mapa das pessoas que não
interessa falar, quer um alinhamento da solidariedade. O mesmo se poderia concluir da
apreciação de uma outra prisioneira extrabairros: Não deixam passar fome às do bairro. O
bairro é tudo. Todavia, se a primeira reclusa vê de demasiado perto (por um lado
reportando-se a um momento específico e por outro ao seu próprio acto de
reciprocidade para com o bairro, na forma da ajuda que prestou a uma vizinha), a
segunda vê de demasiado longe: não frequentando os círculos populares da
sociabilidade dada a distância social que a separa deles, resume-os no princípio da
solidariedade de bairro. Nas práticas sociais locais este princípio, de facto, funciona,
mas actua sobretudo no início da reclusão e, principalmente, como bússola, como
princípio de repérage. O alinhamento social por bairros rapidamente se esbaterá, não
porque a solidariedade intrabairro se desvalorize, mas porque entretanto ganhou valor
a solidariedade alargada (pense-se nas suas manifestações colectivas que atrás referi,
bem como na que se vota a toxicodependentes recém-chegadas, muitas vezes
independentemente da proveniência destas). Os grupos passarão então a constituir-se
segundo uma lógica que leva menos em conta tal categoria de inserção. De resto, os
círculos interbairros desenham-se não raro logo à entrada, por via do
interconhecimento prévio.
47 Na verdade, e saindo de novo da prisão para o exterior através dos trajectos narrados
pelas reclusas, estes bairros peri-urbanos não são ghettos sociais e identitários. Existe
entre eles uma forte circulação de pessoas, não para sulcar apenas os circuitos da
economia ilegal, mas antes de tudo para percorrer os do parentesco, da amizade e do
trabalho. Parcelas de parentes, amigos e vizinhos são deslocadas em processos de
realojamento para outros lugares, passando de bairros de barracas para bairros de
habitação social – que em breve, aliás, verão improvisar-se acampamentos e por vezes
173

novas barracas em seu redor, não só de alguns dos parentes, amigos e ex-vizinhos que
haviam ficado para trás, como também de parentes e amigos provenientes de outros
bairros ainda. Quanto ao trabalho, promove, em primeiro lugar, o interconhecimento
através dos circuitos da venda, comuns a vários bairros, sejam eles os das feiras ou dos
mercados; em segundo lugar activa, em consequência da criação desses laços, a
circulação entre bairros, procurando-se por exemplo contactos ou uma palavrinha para
um emprego nas limpezas, numa casa particular ou numa empresa onde uma conhecida
haja trabalhado. Além disso, dá-se até o caso de coincidirem laços laborais e familiares,
que assim unem diversas áreas residenciais. Pode-se por isso falar de bairros
articulados em rede16. Mas são também os mesmos bairros que se encontram, não o
esqueçamos, conjuntamente nivelados numa comum exclusão. De resto, a transferência
para um bairro de realojamento não a altera, nem traduz necessariamente um
movimento inverso, mesmo que possa representar uma melhoria nas condições de
habitabilidade. Como o notaram Cardoso e Perista (1994: 102-103; 108-110), a lógica
urbanística que preside à criação de zonas residenciais destinadas a absorver as
populações dos bairros de barracas prolonga e acentua a expressão espacial da
segregação social face ao contexto urbano envolvente. E são ainda todos estes bairros
que se encontram conjuntamente nivelados numa comum repressão, que os vem
igualmente articular em rede na prisão. Assim uma reclusa cigana, quando se me
queixava da actuação incorrecta de um agente policial, deparou-se com o assentimento
solidário e indignado de uma colega não cigana ali perto que ela não conhecia, também
residente num bairro do distrito de Lisboa, mas distando bastante do seu: Aposto que foi
o Sidónio, não foi? – Foi ele, foi... – Pois é, só podia ser ele! Partiriam depois as duas numa
conversa animada. Regressaremos, em breve, ao bairro.

«Raça»/etnicidade e classe
48 Se o bairro não produz na prisão recortes simbólicos nítidos e perenes nem
alinhamentos sociais monolíticos, vejamos como jogam outros possíveis referentes
identitários, como os étnico-«raciais». Aparentemente, o glossário local vem
contemplá-los em termos como branca, preta, africana, cabo-verdiana, angolana, cigana e
corrilha (as não-ciganas). No entanto, a saliência quotidiana destas categorias
discursivas é praticamente nula, ao invés do que sucedia há uma década, quando eram
constantemente activadas. Tratava-se então de denegrir colectivamente um conjunto
de reclusas, manobrando-se neste processo essencialmente dois termos: ciganas e cabo-
verdianas. A categoria cabo-verdianas era alvo de uma definição particularmente elástica
por parte das detidas não africanas, para quem pareciam ser irrelevantes para o efeito
os factos da nacionalidade, origem ou naturalidade. A cor da pele era critério suficiente
para uma tal delimitação, sendo por conseguinte remetidas para a «cabo-verdianidade»
a maioria das reclusas provenientes de países africanos. Porquê esta subsunção da cor
na categoria cabo-verdianas, quando seria mais previsível a relação de englobamento
inversa, ou seja, que angolanas, guineenses, são-tomenses, etc. – e cabo-verdianas –
fossem designadas, por exemplo, por negras ou pretas? Porque, creio, a noção de cabo-
verdiano era na altura boa para estigmatizar, ou, em todo o caso, melhor do que as que
codificavam a cor da pele. A atribuição que tornava aquela categoria especialmente
centrípeta e inclusiva não era certamente alheia às representações hegemónicas que à
época isolavam a comunidade cabo-verdiana em Portugal como «problema» e lhe
colavam a propensão para a violência, a delinquência e o desvio (cf. Rodrigues, 1990: 63;
174

Saint-Maurice, 1997: XII). Tendo em conta as lógicas intramuros então prevalecentes, o


termo cabo-verdianas prestava-se a reforçar as estratégias locais de demarcação e foi
prontamente integrado nelas já que carregava em si mesmo um epíteto. É possível,
aliás, destrinçar nestas construções discursivas alguns pontos de contacto com os
processos de criminalização analisados na Grã-Bretanha por Michael Keith (1993)
enquanto discursos racializadores. Nestes processos o termo black não se reporta de
maneira exclusiva e invariável a uma parcela concreta da população, que seria assim,
«apenas», objecto de racismo. Tratar-se-ia também, em parte, de um sujeito flutuante
criado pelo discurso da criminalização. As formações raciais que daqui resultam seriam
extremamente mutáveis e contextuais e, por outro lado, coexistiriam com as que
decorrem de outros campos discursivos, interagindo com eles. Keith distancia-se por
isso das clássicas teorias da etiquetagem e do desvio (e. g. Becker, 1963; Goffman, 1975;
Schur, 1971):
[I]t is important to differentiate between the notion of criminalization advanced
here and standard labelling theory. A demographic fraction of society is not picked
out and victimized. It is not so straightforward. A construction of criminality which
draws on the glossary of racial difference is applied to define the varying subject
positions of black communities at particular times and places (Keith, 1993: 196) 17.
49 Mas assim como no passado os/as cabo-verdianos/as emergiram, fora e dentro da
cadeia, como sujeito discursivo destacado e distinto, assim eles/elas imergiriam depois,
dissolvendo-se. Fora, hoje, são outras as «classes perigosas» – para tomar de
empréstimo uma expressão de Louis Chevalier (1984) – e não se ouve mais falar em
«criminalidade cabo-verdiana». Dentro, hoje, os referentes étnico-«raciais» são
manejados no modo desqualificante pelas esparsas detidas da pequena burguesia
branca e cujo crime não tem conexão alguma com a droga. São estas que, convocando
representações emergentes no exterior, procedem a uma categorização que amalgama
pretos (entre os quais, os cabo-verdianos), ciganos, droga, degradação e bairro-ghetto. A
globalidade das reclusas, porém, não só não os repercute nas práticas de sociabilidade
(uma categoria étnica ou «racial» não gera associações preferenciais, a não ser por via
dos laços de parentesco ou de interconhecimento prévio), como deixou de manipulá-los
enquanto instrumento de combate identitário. Tais referentes têm uma pregnância
reduzida e a sua espessura resume-se a um valor indicativo que parece ser localmente
entendido como relativamente neutro. Aliás, os únicos contextos em que esta valência
indicativa entrava em acção eram aqueles em que eu tomava parte como interlocutora
– se quisermos, numa situação de «entrevista» e não de observação – e a meu propósito.
Falando de uma colega ou amiga poderiam então, a dada altura, referir que É branca
como você ou É da sua raça . À excepção deste contexto de interacção com alguém
exterior a um universo misturado (continuo a excluir dele, evidentemente, as reclusas
extrabairros), registei apenas um episódio onde se avançou um referente étnico. Uma
detida da Musgueira interpelou de longe uma colega deste modo: Ó cigana, chamas-me aí
a subchefe? Ao que esta respondeu, desafiadora, ainda que meio rindo: Cigana? Ouve lá, eu
tenho nome! Não sabendo o nome da segunda, a primeira designou-a pelo que aqui surge
como um seu sucedâneo. À superfície, a reacção da outra prisioneira comunica que ela
terá vislumbrado na designação escolhida (cigana) um lastro, um subtexto que não
apreciou, ou algo mais do que um indicativo. Todavia, respostas análogas (Eu cá tenho
nome!) serão amiúde dadas, no mesmo tom, a interpelações semelhantes (Ó tu ou Ó tu aí
de puxo, passa-me a tesoura!), pelo que todas elas podem ser reenviadas a um quadro
interpretativo comum que prescinda de implicações identitárias mais vastas.
175

50 Ao invés do que sucedia em Tires no passado, e do que sucede noutras paragens


prisionais, «raça» e etnicidade não são assim categorias fortes de identidade e
discurso18. Antes de procurar discernir porquê, importa frisar que há dez anos eram-no
ao mesmo título que várias outras – ou seja, um dos múltiplos materiais disponíveis
com os quais era possível erigir fronteiras –, tal como hoje deixaram de o ser na exacta
medida em que se desvaneceram outras ainda. Procedamos de novo a um exercício
comparativo, começando por desminar algum terreno tentando ver até que ponto a
«raça» e a etnicidade enquanto etno-teorias poderão ter moldado as perspectivas de
análise de temáticas nesta órbita. Referindo-se às categorias nacionais de pensamento
dos investigadores, Loïc Wacquant alegava, a propósito da sua dupla filiação biográfica
nos dois lados do Atlântico:
Les sociologues américains ont le plus grand mal à concevoir comment l’identité
sociale peut s’établir sans référence « ethnique », tandis que leurs collègues
européens ne perçoivent pas la force et les significations multiples des catégories
« raciales » dans la vie sociale étasunienne (in Vaugrand, 1996: 215).
51 Por outro lado, num artigo sugestivamente subtitulado «The hidden life of class»,
Shirley Ortner (1998) debruça-se sobre a organização semântica e ideológica das
categorias culturais através das quais é pensada a diferença no discurso «americano» –
leigo, principalmente, mas também académico. Segundo a autora, existiria uma
tendência para traduzir a condição de classe na «raça» e na etnicidade, categorias
discursivas aí dominantes e que nos EUA têm uma enorme saliência. Ao nível do que
para o efeito chama de «pensamento cultural americano», portanto,
[T]here is no class in America that is not always already racialized and ethnicized,
or to turn the point around, racial and ethnic categories are already class categories
(ibidem: 10).
52 Esta subsunção de uma na outra tem consequências. De ordem identitária, em primeiro
lugar, resultando a favor de uns grupos e em desfavor de outros na medida em que
ambos implicam a sua identidade de classe na identidade étnico-«racial» e pensam-na
em função dela:
If to be Jewish is to be, in deepest essence, middle class (whether one is “in reality”
or not), then to be [...] African-American is to be seen/felt to be, in deepest essence
— and whether one is in reality or not — lower class. African-Americaness carries a
more or less automatic lower class identity in the eyes of others; this much we
know. But it also apparently carries a lower-class identity in terms of self-image
(ibidem: 13).
53 Em segundo lugar, o escamoteamento genérico da classe faz com que esta seja «o
último factor introduzido como explicação quer do privilégio e do poder, quer da
pobreza e da impotência social» (ibidem: 13).
54 Ora, como iremos ver, esta percepção não deixa de ter importantes zonas de contacto
com certas realidades americanas em que classe e «raça»/etnicidade, de facto,
coincidem, podendo a primeira passar despercebida face à pregnância da segunda.
Outros problemas surgem quando estas categorias nacionais de pensamento são
transportadas para a análise de outros contextos, dimensionando ângulos de leitura. O
trabalho – de resto admirável – de Kesha Fikes (1998) sobre as cabo-verdianas em
Portugal é em alguns aspectos um exemplo, creio, desse problema de perspectiva.
55 Defende Fikes que o Estado e a sociedade cooperam na vigilância e na canalização das
cabo-verdianas para o trabalho de limpeza (em casas particulares ou em empresas),
decorrendo esse constrangimento activo de noções portuguesas sobre o que devem ser
176

as mulheres negras e participando esse ensejo disciplinador de um projecto nacional –


ou de uma ideia de nação. Só nessa condição «domesticizada» seriam elas admitidas
nesse projecto, o que pressupõe a eliminação de «formas de expressão cultural
alternativas» que desafiam o discurso público acerca dessas mulheres, como seria o
caso da venda ambulante de peixe. A ideologia subscrita pelo Estado que assim
racializaria o trabalho doméstico assalariado consolidar-se-ia através das imagens de
subservientes criadas negras nas telenovelas (mas, questionaria eu, não figuram nelas
criadas brancas, tantas vezes caricaturadas por um cerrado sotaque nortenho ou
alentejano?); nos anúncios publicitando café e açúcar (mas não certificarão eles a
«genuinidade» exótica destes produtos, tanto quanto atestam daquela subserviência?);
e da visibilidade pública das mulheres negras nos uniformes da limpeza (mas não
vestirão eles também empregadas brancas, empregadas estas que não são todas
superiores hierárquicas das negras, ocupando de igual modo as posições de base mais
subordinadas?). Dando de barato que existe um discurso nacional prêt-à-porter
organizado específica e autonomamente em torno de polaridades «raciais» (branco/
negro) tout court – e não estou segura de que assim seja, ou existirá porventura em
termos bem mais nebulosos do que, justamente, nos EUA –, pergunto-me se as
categorias analíticas de «raça»/etnicidade utilizadas por Fikes não estarão imbuídas de
uma excessiva voltagem que acaba por curto-circuitar as dimensões de classe. Não será
antes através das últimas, e não de um desígnio ideológico nacional, que se procede à
canalização das mulheres negras para a limpeza? Talvez esta ocupação seja, em boa
verdade, a única via que se lhes abre. Todavia, é muitas vezes também a única via
aberta a mulheres brancas pobres. Deste modo, as mulheres negras são seguramente
«domesticizadas», mas a limpeza não é racializada. Quando muito, aventarei, haverá
uma etnicização da venda ambulante de peixe dado o estereótipo lisboeta que assimila
as cabo-verdianas às peixeiras, e tal poderá contribuir para a repressão desta actividade
informal. E no entanto, quantas reclusas (brancas) se queixaram da mesma repressão,
exercida sobre esta e outras actividades não licenciadas (cf. supra: 169)... Aliás, Fikes faz
dois apontamentos etnográficos que revelam uma solidariedade de portuguesas
brancas pobres (clientes e vendedoras de fruta, flores ou doces na mesma área) para
com as cabo-verdianas, condenando colectivamente a agressividade policial para com
elas. Num deles (ibidem: 12-13), foi este mesmo público quem, depois de aplaudir com
gritos de Bem feita, bem feita! o gesto da filha de uma peixeira (que resolveu lançar ao
chão o peixe para levar a polícia que o vinha confiscar a sujar as mãos), provocou uma
tal comoção quando um agente finalmente agarrou a rapariga que este, furiosamente
invectivado pela pequena multidão, acabou por libertá-la e afastou-se a praguejar.
Creio que a autora não explora todas as potencialidades destes episódios, que apenas
lhe suscitam muito adiante um breve e único comentário, diluído numa análise de um
projecto disciplinador nacional onde este parece visar, exclusivamente e segundo uma
lógica particular, as mulheres negras:
If poor Portuguese women have not been included in the project of surveillance,
and more importantly, if they do not feel inclined to do so, they become the victims
of a national project whose patriarchal overtones deem them «useless» (ibidem: 14).
56 Exit, pois, ao quadro interpretativo cujo eixo é a «raça»/etnicidade, possivelmente
porque terá sido perturbado pela atitude das portuguesas brancas e pobres, para dar
entrada ao género, através do projecto de cariz patriarcal de que estas seriam vítimas.
A autora não especifica os termos desse projecto, mas não creio que ele venha resolver
analiticamente o que a «raça»/etnicidade não resolveu. Afinal, haverá homens
177

«vitimados» em modalidades não muito divergentes das que se abatem sobre aquelas
mulheres (e penso nomeadamente nos parentes, amigos e vizinhos masculinos das
reclusas de Tires, encarcerados ou não). E se é certo que um «projecto patriarcal» terá
coarctado oportunidades económicas a mulheres desfavorecidas nos EUA, terá sido bem
menos sucedido nas camadas femininas pobres em Portugal (cf supra: 158-162). Por
conseguinte, há que preservar a priori uma descontinuidade conceptual entre género,
«raça»/etnicidade e classe (e só depois conjugá-los à prova do empírico) de modo a
poder captar as propriedades específicas que o seu jogo assume em diferentes
contextos. Para tentar delineá-las para a realidade portuguesa que estudo, sou levada
de volta a outras paragens. Tendo já noutro capítulo abordado comparativamente a
intervenção do género, centro-me agora na equação restante, mas acrescentando-lhe
porém o bairro.

O ghetto, a cité e o bairro


57 Sucede que nos EUA se constatam sobreposições sistemáticas entre bairro, «raça»/
etnicidade e classe. Trata-se do complexo topográfico do ghetto , que se traduz na
homogeneidade social e étnica/«racial» dos bairros pobres das inner-cities , zonas
urbanas economicamente devastadas pela desindustrialização e desertadas pelas
instituições públicas e pelo Estado (excepto na sua vertente repressiva) 19. É por isso de
relembrar a este propósito Sampson e Lauritsen (cf. supra: 114):
[S]ingle comparisons between poor whites and poor blacks are confounded with the
finding that poor whites reside in areas which are ecologically and economically
very different from those of poor blacks.
58 O bairro-ghetto compacta assim uma desclassificação que já opera através da
justaposição entre clivagens económicas e étnicas (cf. Short, 1997: 120-122). Foi esta
justaposição, aliás, que levou Giddens (1973) a cunhar há muito a noção de underclass.
Em coordenadas europeias a situação é globalmente diversa, ressalvando-se porventura
o caso de certos centros urbanos do Reino Unido. Também neste país, de acordo com
Marco Oberti, se registam recortes étnicos que dividem residencialmente populações
desfavorecidas:
On assiste à une différentiation entre les cités populaires de logements sociaux pour
une classe ouvrière «nationale» largement touchée par le chômage, et les centres-
villes où se concentrent les habitants originaires des pays du Commonwealth (1996:
245)20.
59 Ora, com esta possível excepção, portanto, noutros países europeus a pobreza tende a
aglutinar nas mesmas zonas residenciais populações etnicamente heterogéneas. No
caso da França, por exemplo, tal deve-se não apenas ao puro jogo do mercado
imobiliário – que atira conjuntamente para as periferias famílias de baixos recursos,
sejam elas nacionais ou imigradas –, mas também a políticas urbanísticas do Estado, que
investe ideologicamente nesta integração administrativa receando precisamente o
fantasma do ghetto (Wacquant, 1993) 21. Esta política, que se reclama de valores
republicanos universalistas identificados com a unidade nacional, gere
pormenorizadamente a mistura através da atribuição do alojamento social, dispersando
e repartindo as famílias pobres de origem estrangeira (magrebina sobretudo) não só
por diferentes bairros, mas ainda por diferentes prédios dentro de cada bairro.
Salpicando quer de inquilinos imigrantes, quer de famílias francesas ditas
«problemáticas» bairros cuja composição social de origem é nacional e operária ou
178

classe média baixa, tal intervenção assenta na ideia (já desmentida por Jean-Claude
Chamboredon e Madeleine Lemaire, 1970) de que a proximidade espacial absorve a
distância social. Porém, esta minuciosa engenharia de gabinete, chamemos-lhe assim,
trava por outro lado mecanismos «espontâneos» de agrupamento, quando não
fragmenta redes sociais informais de entreajuda que frequentemente são o único
capital de que dispõem populações pauperizadas. Vários urbanistas criticariam por
conseguinte a violência desta assimilação forçada, que não leva em conta as
sedimentadas comunidades de vizinhança e conduz não raro a uma atomização social
(e. g. Genestier, 1992; P. Simon, 1992):
[L]es politiques de « recomposition sociale » et de « mixité de peuplement » des
grands ensembles ont de grandes chances d’aboutir au résultat inverse de celui
attendu. Si l’on suit le raisonnement du législateur, la construction d’immeubles de
catégories différentes dans un même espace [...] devrait permettre une plus grande
intégration des uns et des autres par contacts. Cela revient à dire que la
connaissance de l’autre par proximité facilite les rapports sociaux. [...] Au contraire,
ce type de rapprochement artificiel conduit souvent à radicaliser les
comportements d’évitement et par la suite d’hostilité réciproque. [I]l se produit une
sorte de compétition pour la définition symbolique de l’espace (Simon, 1992: 60-61).
60 Patrick Simon contrapõe às cités da cintura urbana o exemplo da sociabilidade densa e
da coabitação sem dificuldades de maior num bairro parisiense pobre, tanto mais
assinalável, segundo o autor, quanto avizinha comunidades judaicas sefarditas e
muçulmanas magrebinas. Trata-se aqui de uma agregação espacial «natural» ou,
melhor dito, de um «bairro social de facto», característico de zonas degradadas de
velhos centros urbanos em processo de reabilitação ou demolição. Acrescente-se que a
composição social do bairro é relativamente uniforme (ibidem: 62-63). Porém este tipo
sociológico de habitat tende a desaparecer para dar lugar a outras constelações
residenciais, marcadas pela tensão. Ecoando aparentemente Chamboredon e Lemaire,
Bourdieu sustenta que:
Si 1’habitat contribue à faire l’habitus, l’habitus contribue aussi à faire l’habitat, à
travers les usages sociaux, plus ou moins adéquats, qu’il incline à en faire. On est
ainsi conduit à mettre en doute la croyance que le rapprochement spatial d’agents
très éloignés dans l’espace social peut, par soi, avoir un effet de rapprochement
social: en fait, rien n’est plus intolérable que la proximité physique (vécue comme
prosmicuité) de gens socialement éloignés (1993: 166).
61 Ora, acontece que apesar de globalmente precarizados, os habitantes destas cités
periféricas ou aglomerados HLM (Habitations à Loyer Modéré) não o são todos da
mesma maneira – ou pensam que o não são da mesma maneira. A tensão nascerá da
coabitação entre fracções nacionais de classes médias baixas ou operárias em declínio e
famílias imigradas, manifestando-se frequentemente em atitudes xenófobas por parte
de uns e de revolta por parte de outros. Como defende Wacquant (1994, 1995), portanto,
enquanto o ghetto sofre da segregação (ou seja, da distância social entre um
subproletariado «étnico-racial» e o resto da população, branca e não-branca), a cité
sofre da agregação forçada. Uma abundante bibliografia francesa documenta
precisamente as infra-hierarquias – ou as estratificações entre pobres – que
obsessivamente se vincam nas cités. Não se trata apenas da competição por recursos
colectivos (equipamentos, serviços, espaços). Trata-se também de uma competição
simbólica ligada à crise estatutária de pequenos funcionários e colarinhos azuis, que
vêem na proximidade espacial com imigrantes um dos signos de despromoção social – e
sabemos já quanto o espectro da «queda» e o tema da «exclusão» se tornaram angústias
179

difusas em França (cf. supra: 177) –, ou um obstáculo à promoção social. É assim que
confusamente lhes atribuirão a marca infamante que pesa sobre o bairro, perante o
qual, de resto, se colocarão como testemunhas críticas de primeira linha. Além disso, as
famílias imigradas são fixadas a um «pólo negativo de substituição» (Althabe, 1993:
37-42; Sélim, 1993) que ao mesmo tempo proporciona aos desclassificados a derradeira
garantia simbólica contra a expulsão total do campo social: a última fronteira, se
quisermos, contra o descrédito é aqui etno-nacional dado que os autóctones pelo menos
não correm o risco de se tornarem estrangeiros.
62 Simplesmente, a devolução do estigma não se limita a focar-se nos habitantes de
origem estrangeira. Ela dirige-se de igual forma às famílias nacionais «assistidas» e aos
«casos sociais» alvo da atenção directa do Estado, ambos signo de inferioridade e
objecto de inferiorização interna. Ou seja, não é exclusivamente na diferença étnica que
assenta o modo de comunicação antagónico e a ausência de identificação com o bairro
de residência que dão o tom a estes territórios. Como sugere Louis Gruel (1985), em
contextos populares franceses de outrora tal diferença não obstou a sentimentos de
pertença e de identidade colectiva. Tal como na prisão de Tires há dez anos, a
pluralidade étnico-«racial» não engendra por si mesma a economia da estigmatização
mútua. Vem apenas tomar parte nela, quer dizer, combinar-se em algo que, em lógica,
lhe pré-existe:
[L]a démarcation éthnique est un niveau ou moment de la négociation du statut
personnel. [...] A vrai dire, il semble bien que si les distances ethniques
s’incorporent, parfois violemment, à l’économie de « détournement » qui régit les
cités de transit, c’est parce que cette économie est toujours déjà présente, comme
en attente urgente de différences à exploiter (ibidem: 1985: 448).
63 Gruel oporá justamente as formas de representação colectiva deste tipo de
aglomerados (cités de transit) às das cités d’urgence, bairros fortemente marcados pela
insolvência e pela penúria, e socialmente homogéneos. Há que salientar, porém, que se
os primeiros se encontram em expansão, os segundos estão francamente em recuo,
sendo hoje bastantes raros. Independentemente da real densidade e extensão das redes
de convivialidade e dos cachos de afinidade que emergirão numa e noutra, enquanto na
cité de transit prevalece a distanciação ideológica, o discurso entrecruzado da traição à
norma, na cité d’urgence vigora a simbólica da reciprocidade, a retórica da integração e
da solidariedade comunitária, do enraizamento protector no bairro. A crer noutros
estudos, esta oposição entre ordens de representações parece ter, aliás, alguma
correspondência com as respectivas ordens de práticas. Monique Sélim destacará
assim, para um habitat do último tipo, a sociabilidade e a solidariedade alargadas, as
redes de troca e entreajuda de que se faz a economia da sobrevivência. É de resto de
referir a representação que os seus habitantes faziam da sua condição comum:
[U]ne pauvreté extrême leur semble être leur lot « normal » et détermine un mode
de vie dont ils affirment avec force la valeur intrinsèque sans en éprouver de
ressentiment ni exprimer de revendication. [...] Une même misère, référence quasi
positive autant que sort pénalisant, unit les uns et les autres, et les pousse à
défendre ceux qui par leurs actes ont fait porter sur le quartier un blâme général
(1989: 78).
64 Mas do lado das cités periféricas infra-estratificadas, onde «L’enjeu est de convaincre, et
d’abord de se convaincre, que l’on n’est pas ‘pareil que ces gens-lá’» (ver também a este
propósito Pétonnet, 1982) e onde se trata de evitar as relações «degradantes» com os
vizinhos, Agnès Villechaise (1997) destacará, por um lado, a solidão, a desconfiança e o
180

entrincheiramento defensivo no espaço privado – uma versão de cocooning bem diversa,


portanto, da das classes médias, onde se apresenta como uma modalidade de lazer – e,
por outro, a hostilidade de «petits blancs» contra os imigrantes que faz das cités um
espaço de recrutamento privilegiado de votantes no partido de extrema-direita Front
National (ver ainda Dubet e Lapeyronnie, 1992; Sayad, 1993; Champagne, 1993a, 1993b).
Perante o contraste entre estes dois tipos de territórios, é em alguma medida
pertinente o que sustenta Paugam:
En réalité, l’émergence de liens communautaires et le besoin d’appartenir à un
milieu financièrement démuni ne sont observables que lorsque plusieurs conditions
sont réunies, notamment l’homogénéité sociale du groupe, l’appropriation
symbolique d’un espace doté d’une histoire et d’une mémoire et le renoncement, au
moins à court terme, à l’élaboration d’une stratégie d’ascension sociale (1991: 204).
65 Ora, é precisamente a heterogeneidade social dos residentes que ressalta no estudo de
Paugam e dos outros autores sobre as cités da cintura urbana, bem como as trajectórias
de declínio de fracções nacionais do operariado e da pequena burguesia ou os projectos
de ascensão social de que esses bairros são o cenário. Por isso as diferenças sociais
objectivas entre os seus habitantes, mesmo quando se dá o caso de serem pequenas, são
subjectivamente sublinhadas e ampliadas pela dinâmica da distinção. Por isso, também,
as políticas estatais de recomposição social através da estratégia das «micro-quotas»
são localmente mal vividas.
66 À homogeneidade social e étnica do ghetto americano contrapõe-se, portanto, a
heterogeneidade social e étnica da cité francesa; nesta, as distâncias sociais e etno-
nacionais conjugam-se, num jogo hierarquizador que produz micro-segregações e
clivagens internas. Grosso modo, os bairros estigmatizados das periferias e semiperiferias
urbanas portuguesas parecem apresentar em relação a estas duas ordens de
constelações sócio-espaciais propriedades específicas, constituindo, por assim dizer,
uma terceira variante: em termos igualmente esquemáticos, a heterogeneidade étnica
entrelaça-se com a homogeneidade social. Saliente-se previamente uma especificidade
estrutural da sociedade portuguesa. Segundo Fernando Machado, uma das principais
razões pelas quais a etnicidade não atingiu em Portugal o mesmo relevo do que noutros
contextos europeus radica na reduzida amplitude das dimensões de contraste social
entre as «minorias» e a população portuguesa:
Comparativamente com [outros países europeus], os contrastes sociais entre as
minorias imigrantes oriundas do «terceiro mundo» e a população nacional são
menores, não tanto pela homogeneidade da composição de classe das minorias,
homogeneidade que nas minorias fixadas naqueles países também não existe, mas,
sobretudo, por em Portugal ser menor o peso das minorias étnicas no conjunto das
categorias sociais que têm uma condição social desprivilegiada. As pesadas
insuficiências do desenvolvimento da própria estrutura social portuguesa e as
assimetrias sociais marcantes que elas têm gerado, remetem uma parte significativa
da população portuguesa para uma condição social que pouco a distingue dos
membros mais desfavorecidos das minorias étnicas, e que, pelo contrário, até
estabelece um contraste, mas agora para baixo, com o subconjunto dos membros
dessas minorias que detêm uma posição privilegiada (1992: 128-129).
67 Quer quanto a níveis de pobreza, quer quanto à relação com o mercado de trabalho
(uma posição semimarginal e instabilizada no sistema de emprego), quer ainda no que
diz respeito à localização residencial, os segmentos mais desfavorecidos destas
«minorias» partilham com largos sectores da população de origem autóctone uma
similar situação de precaridade (ibidem: 128-131)22.
181

68 No caso do habitat , ocupam zonas de habitação degradada juntamente com


contingentes nacionais pobres, muitas vezes «migrantes rurais mal sucedidos» na sua
inserção urbana. Os bairros de barracas ou de alvenaria abarracada que nos anos 50 e 60
eram habitados sobretudo por portugueses tornam-se deste modo pluri-étnicos, ainda
que os mais recentes e periféricos registem uma maior concentração de imigrantes
(Cardoso e Perista: 1994: 103). Quanto à forte apropriação do espaço, à intensidade da
vida comunitária e à densidade das redes locais de sociabilidade, Machado (1992:
129-130) não as encara, mais uma vez, como traços distintivos das «minorias» e
elementos de contraste face à «maioria», já que um semelhante centramento no bairro
caracterizaria também segmentos significativos da população autóctone. Tal parece ser,
com efeito, corroborado por vários estudos em bairros desqualificados, todos eles não
deixando de referir a homogeneidade social dos seus habitantes. Assim, para os bairros
degradados da zona de Lisboa, Cardoso e Perista (1994: 106-111) relevam que mau grado
a extrema precaridade das condições de alojamento, a maioria dos residentes
inquiridos, nacionais e imigrantes, afirma gostar de morar no seu bairro, alegando
apreciar o «bom ambiente» e o facto de aí «ter amigos»; as autoras realçam ainda a
solidez das redes de solidariedade familiar e vicinal: elevadas percentagens tanto de
nacionais quanto de imigrantes declararam poder contar incondicionalmente ou em
certas situações com a ajuda dos vizinhos. O mesmo detalha Maria João Freitas (1990)
para a Musgueira (ver também Soczka et al , 1988) e o Bairro do Relógio, onde os
vizinhos representam uma importante estrutura de apoio, a par da família 23. Sem tal
estrutura, de resto, o trabalho feminino mediante o qual se equilibram os orçamentos
familiares não poderia ter a expressão que localmente tem. A entreajuda exerce-se no
bairro, já que o recurso a colegas de trabalho ou amigos exteriores é insignificante. Por
outro lado, é especialmente pertinente falar-se em «unidade de vizinhança», dados os
altos níveis de interacção entre os seus habitantes. Ao contrário do fechamento no
espaço privado, na casa para onde se recua, e da sociabilidade contratual, por assim
dizer, do «bom dia-boa tarde» apontados por Villechaise (1997) para a cité, a rua é aqui
um espaço privilegiado de um relacionamento intenso, sendo um lugar fundamental
das dinâmicas sociais do bairro.
69 Neste contexto relacional marcado, como frisei, pela homogeneidade social, a fronteira
étnico-«racial» não parece ser, de facto, decisiva ou criticamente manipulada. É assim
que Ana de Saint-Maurice (1997), ao contrário do que sugerira Walter Rodrigues (1990),
mostra como a proximidade espacial e social entre os cabo-verdianos e os portugueses
que habitam nos mesmos bairros degradados se repercute positivamente nas relações
de vizinhança. Como a autora cuida de precisar, a interacção regular entre ambos ao
nível do bairro não decorre de «uma integração mais bem conseguida» daqueles
caboverdianos no espaço nacional, mas sim «das próprias características dos bairros»
(ibidem: 106). Neste sentido uma informante sua assegurava, Morar junto com branco ou
preto é igual. Se precisar de açúcar, vou buscar ao vizinho preto ou ao branco, tal como me
dizia a Iolanda (uma cabo-verdiana do Alto da Damaia condenada por tráfico), na
sequência de um comentário sobre o tom racista usado por uma guarda: Quando fui de
precária, pensei que as vizinhas brancas não [me] iam aceitar. Mas aceitaram, fizeram-me uma
festa, disseram-me que sentiram a minha falta. Se esta foi uma atitude de vizinhas
portuguesas igualmente pobres, Saint-Maurice situa por referência à condição de classe
as atitudes e representações de diferentes estratos de cabo-verdianos em Portugal,
indicando que as mais «universalistas» e «tolerantes em relação ao ‘outro’» provinham
daqueles com menores recursos económicos e escolares (ibidem: 155).
182

70 Na prisão é significativa a ausência de clivagens práticas entre categorias


étnico-«raciais», não entrando estas categorias em linha de conta, por exemplo, no
recrutamento de comadres (o parentesco ritual é frequentemente interétnico) e na
formação de grupos ou de amizades24. Mas tão ou mais significativo é essa ausência ser
afirmada e declarada. A propósito das ciganas, porventura uma das categorias
actualmente mais estigmatizadas da sociedade portuguesa (mas ver justamente um
exemplo contrário numa coabitação de bairro em A. Castro, 1995), sustentava uma
reclusa, «branca», do Casal Ventoso, presa por droga:
As ciganas são fixes e elas até gostam muito das corrilhas [as não ciganas]. Damo-
nos todas bem, as ciganas, as pretas... Há uma ou outra que é mais imperialista. Isso
é como tudo, é ou não é? É cada qual! (Para uma similar representação prisional da
relação ciganas-não-ciganas ver D. Rodrigues et al, 2000: 125; 133).
71 Antes se assiste de quando em quando a formas de estigmatização interna e, no sentido
gramsciano, verdadeiramente hegemónica, isto é, à participação activa e convergente
dos dominados nas representações dominantes, que assim acabam por moldar as
representações que constroem sobre si próprios. Talvez porque integram uma categoria
ainda mais causticada no exterior do que as restantes, são precisamente as reclusas
ciganas quem reproduz face aos ciganos em geral ideias e estereótipos como Os ciganos
não têm civilização, ou Os ciganos não são de confiança. Na verdade, tais noções são a maior
parte das vezes usadas para comentar diferenças geracionais ou de modo de vida
(nómada/sedentário). Veja-se a Maria Emília, uma cigana lisboeta que me disse ter
pedido para mudar de quarto porque estava lá uma cigana (nómada):
É gente esquisita, é dessas dos acampamentos, que andam de campo em campo. Não
me dou muito com ciganos. A minha irmã mais nova que saiu há pouco de Tires
morreu da droga [de overdose]. Também sabem que a minha mãe morreu, e não me
dão aquele carinho... Já não há aquela tradição do cigano. Agora estas novas é só
cantar, pintar-se, vestir-se... Não, eu se quero desabafar é com portuguesas. O
cigano ouve aqui e vai logo contar acolá. Grita muito, discute, sai tudo boca fora.
Quando vim presa, uns ciganos alentejanos que tinham a família presa puseram-se
lá no nosso bocadinho de terreno pegado à barraca. O meu marido ainda foi à
polícia, mas a polícia convenceu-o a deixá-los ficar lá uns tempos: «Veja lá, não têm
para onde ir...». Só que eu quando vou de precária não falo assim muito com eles. É
mais com os vizinhos portugueses e uns ciganos de lá.
72 Lembre-se que a Maria Emília, agudamente pobre em parte por via da escolha marital
que fez no passado, provém de uma família, segundo ela, rica e experimentou portanto
uma trajectória descendente (cf. supra: 145). Mas a generalidade das reclusas sempre se
manteve estável na pobreza, por um lado, e, por outro, não se inscreve objectiva ou
subjectivamente numa trajectória social ascendente – ao contrário, por conseguinte, de
muitos dos habitantes da cité. Em segundo lugar, a pobreza que as afecta é aqui muito
mais severa (a maioria das famílias dos bairros degradados de Lisboa, por exemplo,
apresenta níveis de despesa abaixo do limiar da pobreza absoluta: Cardoso e Perista,
1994: 108) e com frequência toca de maneira igualmente extrema as diferentes
categorias étnicas habitando nos mesmos bairros. De certa forma, nivela-as. E se estes
bairros se distanciam do ghetto pela diversidade étnica e «racial», distanciam-se dele
num outro aspecto ainda. Recordo que nos EUA a espacialização etnicizada/racializada
da pobreza foi depois compactada pela racialização de drogas como o crack, que proveio
a ser associado a populações de minorias nos baixos estratos sociais (cf. supra: 114-115).
Por isso Pern Buck (1994: 336-341) aponta ainda a racialização das populações prisionais
subsequente à intensificação da repressão dos crimes de droga. Se esta repressão não se
183

tivesse focalizado essencialmente no ghetto, a uniformização étnico-«racial» das prisões


não teria ocorrido. E chamo de novo a asserção de Sampson e Lauritsen, segundo quem
nos anos 90 «raça», classe e drogas passaram a justapor-se sistematicamente, sendo
«difícil, senão impossível, destrinçar os vários elementos do problema» (1997: 400). Em
lugar desta tripla sobreposição, em Portugal delineiam-se cruzamentos parciais. De
resto, estas intersecções que se cosem ao nível do bairro desenham mais uma vez uma
configuração específica, não só em relação aos EUA, mas também a outros países
europeus. Sabemos já que em contextos americanos se verifica uma vincada
estratificação étnica dos narcomercados retalhistas (cf. supra: 151-152). Ruggiero e
South (1995, 1996) referirão por seu turno, para um bairro desfavorecido londrino, uma
economia da droga marcada por «uma divisão do trabalho claramente racial» (idem:
1996: 325) e, para vários contextos europeus, o preenchimento crescente da figura do «
mass criminal» (cf. supra: 184) por imigrantes que operam nessa economia (idem, 1995:
200). Se é possível que também em Portugal os lugares de topo das cadeias de
distribuição de droga sejam vedados a membros de minorias étnicas/«raciais», os
segmentos retalhistas mais baixos são indistintamente ocupados por populações pobres
da «maioria» e das «minorias». Na base do mercado, portanto, o tráfico tornou-se um
dos avatares – e talvez até um vector – do nivelamento étnico. O mesmo se pode dizer,
em certa medida, do consumo, ou mais precisamente das vias da sua cura. Geoffrey
Pearson e Kamlesh Patel (1998) observaram na Grã-Bretanha que os padrões de
narcoconsumo de brancos e asiáticos são similares (apesar das respectivas «subculturas
da droga» se manterem separadas quer quanto à localização territorial, quer quanto às
redes de tráfico). Todavia, o Estado e correntes percepções britânicas presumem que a
«epidemia de consumo de heroína» é «branca». Tal decorre do facto de os
heroinómanos de minorias étnicas verem as estruturas de recuperação de
toxicodependentes como remotas e inacessíveis. É assim branca, mesmo quando pobre,
a clientela dos serviços de saúde – assim como é asiática a clientela dos serviços
judiciários:
Health service contacts with drug users and police arrests for drug offences were,
thus, starkly divided along racial lines (ibidem: 229).
73 Ora, vimos atrás (cf. supra: 211-212) que em Portugal o contraste entre os dispositivos
institucionais de controlo da droga não é étnico, mas social. Por outras palavras, o
policial-judiciário dirige-se às classes baixas enquanto o médico-psicológico é
interpelado por um leque socialmente variado de consumidores. Que a prisão se
destinaria à cura é uma noção igualmente corroborada pelas reclusas, porém todas as
inserções étnicas confundidas.
74 Antes da reclusão, detidas de diferentes categorias étnicas/«raciais», «minorias» e
«maioria» – mas, como sublinhei, comummente pobres – partilhavam trajectórias e
modos de vida semelhantes; ocupavam posições similares na economia formal e
informal, desempenhavam papéis análogos na economia criminal; viviam nos mesmos
bairros e frequentemente enfileiravam nas mesmas redes de vizinhança. Como se
viessem, enfim, integradas numa mesma exclusão25. Resolutamente subscrevendo a
linha teórica segundo a qual a «raça» e a etnicidade são categorias culturais de
identidade e experiência com alguma autonomia e relevo próprio, não podendo por
conseguinte ser inteiramente reduzidas à classe seja por que via for (cf. Vale de
Almeida, 2000: 44-46 e Ortner, 1998 para um balanço), elas comunicam sempre com a
estrutura social, da qual são, aliás, uma das dimensões. Se «a consciência étnica é um
produto de contradições incorporadas em relações de desigualdade estruturada»
184

(Comaroff in Wilmsen, 1996: 4), a identidade étnica surge por seu turno «quando – e se –
se intersectam [dois] processos», isto é, a consciência étnica e a classe (Wilmsen, 1996:
6). A «integração na exclusão» de que falei não é decerto alheia à especificidade do
modo de intervenção da «raça»/etnicidade na prisão – e é válida, de resto, para
entender a diluição de outras fronteiras intraprisionais que não as étnicas. «Raça» e
etnicidade não se apresentam localmente como categorias críticas de representação e
discurso, nem com o potencial suficiente para organizar relações sociais. Dadas as
balizas do percurso comparativo atrás detalhado tal deve-se, creio, às formas
particulares que em contextos portugueses assume o jogo cruzado entre a «raça»/
etnicidade e a classe, mediado por condições ecológicas tais como o bairro e pela
economia ilegal dos mercados retalhistas de droga.

«Medir as distâncias»: a questão da orientação para o


presente
75 A etnicidade será sim crítica no que respeita a outros níveis sociais na cadeia, como que
confirmando a contrario estas disposições. Do passado ao presente cavou-se uma
clivagem social entre as reclusas, separando a quase totalidade da população
encarcerada de um contingente residual de detidas brancas de classe média e média-
baixa; e entre as reclusas e o staff, principalmente o pessoal técnico, inteiramente
renovado, profissionalizado e com graus de licenciatura (cf. supra: 30). Estas duas
grandes clivagens internas reflectem em parte o fosso social que entretanto se cavou,
também, no exterior. Como indica Luís Capucha (1998), entre 1980 e 1995 aprofundou-
se significativamente uma desigualdade genérica entre as camadas mais desmunidas da
população e as mais favorecidas, quer porque estas se tornaram mais abastadas, quer
porque a pobreza daquelas aumentou em extensão (é maior a proporção de pessoas que
ela toca) e em intensidade (é maior a escassez de recursos dos que já eram pobres).
Quanto à primeira clivagem prisional, vimos já que é o pequeno número de reclusas
extra-droga que manipula discursivamente os referentes étnico-«raciais» através da
amálgama desqualificante pretos-ciganos-bairro-droga . A etnicidade figurará de outro
modo, mas não menos crucial, na segunda clivagem. Socialmente muito mais distante
da globalidade das reclusas do que no passado, o pessoal penitenciário, e em particular
o staff técnico, tende a procurar fazer sentido desta diferença social – uma vez que tal
fosso manifestamente o interpela – subsumindo-a numa diferença étnica, ou
transformando-a numa diferença cultural. Assim, uma técnica, evocando a simpatia que
sentia pelas detidas ciganas, testemunhava-me em simultâneo da sua perplexidade,
perguntando-se «Por que é que eles – os ciganos – vivem sempre em barracas?» Intrigada
por se obstinarem a habitar deste modo, concluiu que, seguramente, Deve ser cultural.
Assiste-se aqui por conseguinte a uma leitura essencializadora da «diferença»,
subtraindo-se-lhe os factores sócio-económicos que afunilam as opções e
aparentemente atribuindo um estatuto distinto e particular a uma «escolha» que é
igualmente imposta a muitas reclusas não-ciganas. Poder-se-ia pois falar a este
propósito da edificação de «novas classes culturais», transpondo para este quadro de
leitura uma expressão que T. Fradique (1998: 123) e Vale de Almeida (2000: 198-199),
que a cita, utilizaram para outros contextos e com outros fins analíticos, relativos às
políticas de representação cultural. Trata-se de categorias contemporâneas de
representação construídas a partir de uma ambígua mistura de etnia, desigualdade
185

social e cultura. Convocadas pelo staff, etnia e cultura tornam-se também pré-noções
que elidem os meandros individuais das motivações das reclusas e os termos do que
comunicam: uma enumeração das razões de um pedido de saída precária foi recebida
com o comentário «Está bem que é de etnia cigana, gostam de fazer o choradinho, mas oferece-
me alguma confiança» (o pedido seria no entanto indeferido em Conselho Técnico, uma
vez que a detida em causa não revelara ter interiorizado o sentido da pena).
76 Se a etnicidade constitui assim uma via pela qual membros do pessoal penitenciário
amplificam a distância social que o separa das reclusas, a exotização da pobreza é uma
outra. À pobreza corresponderia, de novo, uma cultura muito própria – que entre outras
coisas explicaria que se trouxesse droga a um irmão, a um filho, a um companheiro
toxicodependente – ou uma mentalidade específica e enigmática, uma noção que se
exprime, por exemplo, através da recorrente questão Como é que se pode traficar droga
quando se tem um filho toxicodependente? Segundo estes membros do staff, tais detidas não
poderiam compreender porque se acham na prisão, porque foram condenadas a penas
tão pesadas, e dificilmente alcançariam, pois, o sentido da pena. No caso das
toxicómanas, não lhes seria mesmo possível atingir o sentido dos castigos de que são
objecto na cadeia, continuando estes a ser infligidos apenas para gerir imparcialmente
a disciplina, ou seja, para que outras reclusas, punidas por motivos semelhantes, não os
entendam como injustos. A distância de que falei é então representada como
incomensurabilidade. De quando em quando, porém, procura-se penetrar e traduzir
esta suposta obscura mentalidade dos pobres, polvilhando um discurso sobre a miséria
moral e mental com a atribuição de traços psicosociais (que de resto teriam lavrado o
terreno ao seu crime) como a baixa resistência à frustração, a necessidade da gratificação
imediata e a correlativa incapacidade de diferir o prazer (vulgo, o dinheiro fácil), enfim, a
orientação para o presente. Eis-nos portanto perante o que poderia ser uma das
destilações da «cultura da pobreza», posto que «a orientação para o presente» figura
precisamente como um dos componentes proeminentes da caracterização que dela fez
Oscar Lewis (1979 [1961]: 27). Um conjunto particular de comportamentos, valores e
ideias ter-se-ia inicialmente gerado, segundo Lewis, como resposta adaptativa à
marginalidade económica mas, uma vez constituída, uma tal cultura perpetuar-se-ia de
forma auto-sustentada, imune à mudança e encerrando por si mesma os pobres na
miséria, reproduzindo-a. A despeito das intenções de Lewis, a «cultura da pobreza»
abriu caminho à exclusiva responsabilização dos pobres pela sua subalternidade (e em
nome da existência de comportamentos e valores «contraproducentes», por assim
dizer, chegou-se a julgar inútil qualquer intervenção no sentido de melhorar a sua
condição, eliminando-se, por exemplo, programas sociais), tornando-se porventura no
paradigma da já extensa galeria de conceitos-golem26. Bourgois (1998) aponta, aliás, a
enorme polarização ideológica em torno dos estudos sobre a pobreza nos EUA. Mas
apesar desta apropriação transvia, é verdade que o desenho da noção de «cultura da
pobreza» encerrava problemas analíticos fundamentais, entre os quais o de acabar por
desconectar por completo os processos culturais dos processos económicos e políticos,
e o de não levar em conta as influências constitutivas de valores sociais envolventes-
emanando, se quisermos, do «centro». Seguir-se-ia, pois, uma opulenta bateria de
críticas. Algumas (e. g. Valentine, 1961; Leeds, 1971; Perlman, 1976) cairiam no extremo
simétrico, parecendo encarar a reprodução das relações de classe apenas como o efeito
mecânico, directo e sobredeterminado das estruturas de desigualdade (quando as
etnografias de Howe, 1990, 1998, sobre os desempregados, e de Willis, 1977, sobre os
jovens de classes trabalhadoras, são um claro exemplo de que o não é). E quer Ulf
186

Hannerz (1969), quer Leo Howe (1998) apontaram que a distinção analítica entre
«cultura» e «resposta situacional», introduzida pelos críticos de Lewis para explicar
comportamentos ligados à pobreza (com quem, de resto, os autores concordam
parcialmente27), cria uma falsa dicotomia uma vez que a cultura não deve ser entendida
como um arcano núcleo duro de valores, sendo também ela em grande medida
«situacional»; ou seja, transmitida sim, mas processual, usada especificamente pelos
actores, (re)criada continuamente na prática, tecida através de várias mediações –
escusado é discorrer mais sobre uma perspectiva da cultura que há já muito faz parte
do abecedário da antropologia. Dito isto, nem todos os gatos são pardos e a ideia de
cultura, operando em múltiplas arenas públicas, carrega um potencial reificante, como
aquele com que o discurso de membros do staff de Tires me confrontou. Por isso, tal
como o tema da orientação para o presente, deve ser tratada com pinças. Somos pois
reconduzidos ao domínio da política da representação do «outro».
77 Uma das mais recentes – e brilhantes – elaborações em torno da «orientação para o
presente» é o volume colectivo Lilies of the field. Marginal people who live for the moment
(Day, Papataxiarchis, Stewart, 1999). Prostitutas londrinas, camponeses gregos, ciganos
húngaros, assalariados japoneses – e outros – seriam neste aspecto como que as versões
modernas dos caçadores-recolectores tanzanianos estudados por Woodburn, uma
referência central na introdução da obra: uni-los-ia uma comum aposta cultural activa
no curto prazo, um resoluto e celebrado engajamento «antieconómico» no presente,
que, em última instância, constituiria um poderoso instrumento de resistência a grupos
vizinhos e instituições, e uma eficaz crítica cultural e política (ibidem: 3; 4). Opõem-se do
seguinte modo duas ordens de representação ou dois modelos de comportamento que,
adiante (ibidem: 11), serão apresentados como contraditórios:
[I]nstead of adopting mainstream notions of work, productivity, and long-term
economic planning, [these people] appear to take a «natural» abundance for
granted and to forage for their subsistence [...] In these cases foraging depends
upon an idea of plenty; it is taken for granted that whatever you need is available
more or less whenever you want it – there is no need to store, or to do without so as
to hoard for the future (ibidem: 1).
78 Os autores partilham das críticas dirigidas a Lewis e convocam o quadro económico da
marginalidade – mas contra-objectando à posição igualmente veiculada por algumas
delas de que não existiria uma «cultura distinta» entre as camadas pobres. Pretendem,
na verdade, realçar o conteúdo positivo desse modo de vida, não o vendo como uma
mera resposta passiva a constrangimentos estruturais:
One of the sharpest critiques made of the «culture of poverty» literature was that it
blamed the poor for their situation. In response to this criticism ethnographers
might be tempted to invert conventional rhetoric and attribute «marginality»
exclusively to global processes. But this perspective would suffer the same
problems as the one it attacks, since it makes it difficult to acknowledge that the
way of life of Aegean Greeks, day laborers or prostitutes may exacerbate a
structurally imposed marginality. In some situations, marginal people may
celebrate their «feckless», «irresponsible», or «spendthrift» behavior for the very
real freedom it confers. For much of the time, a present orientation works, in the
sense that it is more enjoyable, pleasurable, and sociable (productive of happiness)
than life in the long term (ibidem: 118).
79 Subsidiária e pontualmente referirão que a orientação para o presente é um aspecto da
vida das pessoas, e S. Day (ibidem: 154), já no final do seu artigo, reporta-se aos riscos de
reificação em que esta abordagem incorre, dizendo que nas ideologias sobre o trabalho
187

as prostitutas londrinas «mudam de uma orientação para outra e frequentemente


ocupam uma posição apenas transitoriamente»: afinal, como os próprios dados
etnográficos avançados por Day indicam, elas também economizam e fazem planos para
o futuro, embora os seus investimentos saiam não raro gorados. Talvez porque me
tivesse deparado em Tires com as derivas da fórmula orientação para o presente e com a
desconcertante facilidade com que ela é usada para resumir a conduta das reclusas e as
definir como indivíduos, ocorre-me perguntar porquê então subsumir nela pessoas e
modos de vida – dos quais é pois um aspecto oscilante e tanto mais quanto são avulsos
os contextos contemplados –, e elevar a epitome comparativa a ideia de «gratificação
imediata»? Porque também os autores não parecem presumir que ela paira no vácuo
através do planeta, a pobreza e a posição de marginalidade permanecerão decerto
circunstâncias fundamentais para compreendê-la, designadamente mediante a extrema
instabilidade do futuro que desenham, mesmo que tais pobres possam fazer da
necessidade virtude. As modulações de sentido que produzem poderão por isso ser
alternativamente entendidas no quadro que há várias décadas nos propôs Elliot Liebow,
justificando-se citá-lo extensivamente:
The man appears to treat the job in a cavalier fashion [...], as if all that matters is
the immediate satisfaction of his present appetites, the surrender to present
moods, and the indulgence of whims with no thought for the cost, the
consequences, the future. To the middle-class observer, this behavior reflects a
«present-time orientation» – an «inability to defer gratification» [...] But from the
inside looking out, what appears [as such] is, to the man experiencing it, as much a
future orientation as that of his middle-class counterpart. The difference between
the two men lies not so much in their different orientations to time as in their
different orientations to future time or, more specifically, to their different futures.
The future orientation of the middle-class person presumes a surplus of resources
to be invested in the future and a belief that the future will be sufficiently stable
both to justify his investment and to permit its consumption at a time, place and
manner of his own choosing [...]. Living on the edge of both economic and
psychological subsistence, the streetcorner man is obliged to expend all his
resources on maintaining himself from moment to moment. And if he does
sometimes have more money than he chooses to spend or more food than he wants
to eat, he is pressed to spend it and eat it anyway since his friends, neighbors,
kinsmen, or acquaintances will beg or borrow whatever surplus he has [...] Thus, it
is not because, like an animal or a child, he is «present-time oriented», unaware of
or unconcerned with his future. He does so precisely because he is aware of the
future and the hopelessness of it all. [...] There is no mystically intrinsic connexion
between «present-time» orientation and lower-class persons. Whenever people of
whatever class have been uncertain, skeptical or downright pessimistic about the
future this is one characteristic response. It is the streetcorner man orientation to
the future — but to a future loaded with «trouble»-which contributes [...] to the
general transient quality of daily life (1967: 63-69).
80 As reclusas de Tires vivem também no curto prazo mas, tal como Liebow, creio que o
fazem menos por opção – ao invés do que parece implícito no leit-motiv «commitment to
the present» empregue por Day, Papataxiarchis e Stewart – do que pela dificuldade de
projectar a vida para o futuro, não raro um projecto vão. E onde os autores entrevêem
no consumo imediato de bens e recursos a noção cultural quer de um futuro garantido
quer, correlativamente, de um meio abundante, bastando «colher» dele, para o
contexto que estudo eu entreveria nessa atitude carpe diem precisamente o contrário: a
representação de um futuro demasiado incerto e incontrolável para se tentar, sequer,
«assegurá-lo» (uma veleidade que de resto implicaria recursos suficientes para pôr de
188

lado, o que nem sempre acontece caso se viva no limiar da sobrevivência) e de um meio
demasiado escasso para arriscar deixar fugir as migalhas que providencia. As reclusas
de Tires não parecem fazer gala da liberdade de viver no imediato, e provavelmente de
bom grado prescindiriam dela, embora reconheça que alguma liberdade existirá no
desprendimento que revelam ao partilharem o pouco que têm – uma partilha que,
conforme perspicazmente sugerem os autores, se localiza por vezes para lá de códigos
de reciprocidade. No que respeita às detidas, em todo o caso não situaria
adequadamente estas formas culturais se as descrevesse como lógicas de resistência e
protesto, ou comentários de «crítica cultural». Certo é que estas mulheres não se
quedam apáticas, passivas e exânimes perante a adversidade e cilindradas por
estruturas de dominação múltipla. Na impossibilidade de «segurar a vida», para usar
mais uma vez do feliz tropo de K. Wall, «vão à vida», com tenacidade e criatividade 28.
Mas em vez de «resistência», falaria antes de «resiliência», quer por me parecer
caracterizar de maneira mais aproximada a sua agencialidade – quanto muito, a
resistência seria um subproduto desta agencialidade, não a sua forma (cf. Ortner, 1995:
185) –, quer para não exaurir ainda mais um conceito cuja valia analítica tem vindo a
ser diluída por um uso arbitrário e ideológico. Como recentemente sugeriu Marshall
Sahlins, o par dominação-resistência tornou-se (como outrora o conceito de identidade,
cf. Bromberger, 1993) uma encantatória chave que abre qualquer porta, « a no-lose
strategy since the two characterizations, dominance and resistence, are contradictory and in
some combination will cover any and every historical eventuality», além do que cauciona pela
via moral qualquer argumento: imputando-se resistência ao «outro», «the true and the
good become one» (1999b: V). Sahlins adverte que este tipo de abordagem por vezes
conduz a utilizar outras sociedades como álibis para o que nos perturba, como se os
seus membros tivessem construído as suas vidas em função das nossas preocupações.
Assim, continua o autor no mesmo tom vitriólico, quaisquer que sejam as formas
culturais em questão,
[They] are accounted for [...] by their moral-political implications. It is enough to
show that they are effects of or reactions to [...] domination, as if their supposed
hegemonic or counterhegemonic functions could specify their cultural contents. An
acid bath of instrumentality, the procedure dissolves worlds of cultural diversity
into the one indeterminate meaning [...] So nowadays all culture is power. It used to
be that everything maintained the social solidarity. Then for a while everything was
economic or adaptively advantageous. We seem to be on a great spiritual quest for
the purpose of cultural things (ibidem: VI)29.
81 Levou-nos à política da representação a fronteira cultural que o staff traça entre si e as
reclusas, mediante a qual exprime e simultaneamente amplia a distância social que o
separa delas. Mas se a distância social é assim convertida em distância cultural e
inteiramente retraduzida no seu idioma, uma tendência oposta coexiste com esta,
embora na verdade se trate de duas indissociáveis faces de uma mesma moeda, do verso
e do reverso de uma mesma lógica. Se com efeito a fronteira cultural é constantemente
reafirmada, tal não será porventura alheio ao facto de se intuir em risco de colapso
outras fronteiras, nomeadamente as que implicam a identidade profissional. O fosso
estrutural que separa o staff das detidas é em muitos momentos transcendido pelo que
ao primeiro surge como uma perturbadora identificação com as segundas, mais
precisamente por uma projecção do tipo Se eu estivesse no seu lugar... Comparando o
pessoal penitenciário actual com o de outrora esta projecção é inédita, sobretudo nas
proporções que atinge entre os seus membros. Muitos, com filhos ou idosos a seu cargo,
imaginam-se de súbito transportados para a situação de profunda pobreza e
189

marginalização das reclusas e perguntam-se se não vacilariam perante as


oportunidades oferecidas por uma economia ilegal tão omnipresente e de tão fácil
acesso. No entanto, esta identificação não se repercute no desempenho profissional, em
particular no do pessoal técnico, designadamente quando se trata de emitir pareceres
sobre pedidos relativos a saídas precárias ou à liberdade condicional. Não colherá então
o papel de vítima, a revolta, a desculpabilização ou o exercício de justificação do crime,
todos eles bastante desfavoráveis às detidas. E é precisamente aqui que entram em cena
os temas da baixa tolerância à frustração, a gratificação imediata, a orientação para o presente,
etc., através dos quais as reclusas são colectiva e peremptoriamente responsabilizadas
pela situação em que se encontram. A dissonância entre as duas disposições referidas é
tanto mais flagrante quanto ambas, ao contrário do que sucedia no passado, são
salientes e emanam dos mesmos actores. Um tal desdobramento é possível fazendo
accionar a fronteira cultural, que impede que a projecção na posição estrutural das
reclusas contamine o exercício e a identidade profissional. Uma outra projecção, não
menos perturbadora, terá sim repercussões, mas de ordem pessoal e privada. É desta
feita do tipo Pode-me calhar a mim, e prende-se com os dispositivos policiais e judiciários
de colectivização examinados no capítulo 3 – dos quais, lembro, resultam em parte as
fileiras de parentes, amigos e vizinhos que convergem para a prisão. Confrontados
diariamente com os seus efeitos, membros do staff exprimem de quando em vez o receio
de Apanhar por tabela: quando, por exemplo, um vizinho é alvo de investigações policiais
(foi o caso de uma técnica que assim manifestou o seu temor), mas principalmente
quando estão em causa os filhos. O controlo apertado que sobre eles dizem exercer
decorre menos do difuso pânico contemporâneo de que venham a drogar-se, do que de
um outro, que o supera: o de que frequentem companhias em resultado das quais
possam vir a Apanhar por tabela, isto é, a ser presos. Escapa porém a estes elementos do
staff que a massificação repressiva que intuem, e acerca da qual fantasmam, não se
distribui social e espacialmente ao acaso. O lugar dela é o bairro – um certo tipo de
bairros – um lugar ao qual, seguramente (em todos os sentidos do advérbio), não
pertencem.
82 Vimos neste capítulo de que modo se dissolveram as fronteiras internas entre as
detidas, uma dissolução que ocorreu em paralelo à erosão da fronteira prisional e da
qual é tributária. Apagaram-se categorias que outrora organizavam as representações
sobre o universo das co-reclusas, para emergir em seu lugar uma noção de comunidade.
Tal infunde, aliás, conteúdos diversos a algumas configurações práticas aparentemente
semelhantes às de há uma década. De facto, se no passado como no presente não se
constatam recortes grupais nítidos, as razões subjacentes são opostas: ontem operavam
lógicas de atomização, centrífugas, se quisermos, hoje actuam lógicas de comunidade –
comunidade de sentido, de origem, de destino. E se os seus efeitos centrípetos
certamente iluminam o aparecimento de formas de solidariedade incomparavelmente
mais alargadas, de vocação colectiva e não apenas interindividual, neles relevaria
sobretudo o comprazimento no discurso comunitário, o de que Estamos todas juntas,
Estamos no mesmo barco. A solidariedade, a partilha, a entreajuda não se acantonam
meramente na ordem afectiva e electiva. São em boa medida encenações tanto práticas
quanto retóricas deste discurso, onde ele se enaltece e reconfirma. O discurso
comunitário camufla, de resto, a existência de núcleos de sociabilidade afastados entre
si e de placas descontínuas de solidariedade, para os dar a ambos num continuum que
uniria todas as reclusas (ou quase todas, posto que dele se encontram excluídas as
detidas extrabairros). Como terá ficado patente no capítulo anterior, as tensões e os
190

conflitos abundam, e são até mais agudos no que no passado. Mas geram-se entre
parentes, amigos e vizinhos, e porque se trata de parentes, amigos e vizinhos. Todavia,
a mesma malha de relações de proximidade que tece o conflito é também aquela por via
da qual se desarrumaram todas as categorias e fronteiras de outrora. Se existem,
portanto, lutas, não existem mais lutas simbólicas. A «integração na exclusão» que
configurava já no exterior o quadro social de inserção das reclusas consuma-se deste
modo na prisão, onde vem, também, fortalecer um quadro comum de sentido.

NOTAS
1. Esta dissonância de representações entre diversos estratos do staff não deixa de me sugerir, em
parte, um paralelo com o que pude constatar numa investigação de terreno no hospital
psiquiátrico Júlio de Matos (Cunha, 1988: 471). Grosso modo, quanto mais elevado ou especializado
era o estrato profissional do pessoal, maior era o poder centrípeto e objectivizante das etiquetas
patológicas na definição do sujeito internado. Deste modo, toda a sua conduta se constituía num
comportamento clínico: qualquer altercação, qualquer episódio entre doentes era subtraído à
dinâmica e ao contexto relacional em que se inseria para ser de imediato reinscrito como
sintoma. No caso das heroinómanas de Tires, os especialistas reenviam a sua conduta à
toxicodependência, que lhes teria inculcado uma personalidade própria – «típica», se quisermos.
2. (Em itálico no original.) Esta polarização em torno das duas figuras ganhou recentemente em
Portugal uma nova tradução na lei com a descriminalização do consumo de drogas, entrada em
vigor em 2001. Consoante as modalidades do consumo, este passa a ser penalizado com coimas ou
com uma variedade de sanções não pecuniárias. No caso dos toxicodependentes, a sanção poderá
ser suspensa caso se submetam voluntariamente a tratamento.
3. Este dado é consentâneo com os avançados pela DGSP no ano de 1997 para a totalidade do
universo prisional português (17,3%). Quanto às hepatites B e C, afectariam mais de metade desta
população.
4. Os danos físicos auto-infligidos não se constatavam no passado em Tires, mas eram nessa
altura correntes em prisões masculinas (e. g. Moreira, 1994: 149-155). Tal contradiz a afirmação de
Lucia Zedner (1995: 360) segundo a qual a tendência para a automutilação seria quase que
endémica nas prisões femininas, sem que se verificasse um equivalente autodestrutivo na versão
masculina.
5. É justamente contra estes diagnósticos comuns que se coloca Alison Liebling (1994: 5-7),
adiantando também que, embora tais práticas configurem uma «síndrome» específica e não
correspondam a impulsos suicidas, representariam a transposição de um limiar de
vulnerabilidade e, nesse sentido, uma maior probabilidade de suicídio:
[W]omen injuring themselves repeatedly attract pseudo-psychiatric diagnosis such as
“sociopathic disorder”, “personality disorder”, hysterical, attention-seeking behaviour”. These
labels are unhelpful [...] and they contribute to a dangerous and false assumption that the
behaviour is irrational, meaningless, and unrelated to suicide [...]. In fact, the behaviour may
have a very clear meaning (ibidem: 5).
Este sentido seria menos o de um «grito por ajuda» do que um «grito de dor» (ibidem: 8). E se a
automutilação exprimiria esta dor, constituiria uma forma algo paradoxal de a controlar: a dor
exterior, física, seria mais facilmente controlável do que a dor interior, emocional. Por outras
191

palavras, a interposição deste ecrã faria destas práticas um meio de aliviar a dor e a revolta em
situações críticas de stress (ver ainda Wilkins e Coid, 1991; Coid, Wilkins e Everitt, 1992).
6. Diga-se, na verdade, que se trata de uma das guardas mais queridas pelas detidas, quer no
passado, quer no presente, o que poderá ter também contribuído para a boa recepção dos seus
esforços.
7. A Maria Luísa reivindica ter estado na origem do encerramento da cadeia das Mónicas em
Lisboa (após uma sua tumultuosa greve de fome contra as condições carcerais, que teria atraído a
atenção de alguns deputados) e do fim da gestão do EPT por parte das religiosas da Ordem do
Bom Pastor, que remontava a 1954:
Fui eu que corri com elas. A madre – não tinha um metro de altura, era uma minhotazinha – olhou para
mim e achou que eu era perigosa. Então fechou-me na cela, isto foi no mês de Julho, e eu só saí para ir à
Missa do Galo, na noite de Natal. E nessa noite eu entro e é a primeira vez que tenho contacto com as
minhas companheiras, que eram as tais prostitutas. Pois eu senti vontade de dar qualquer coisa àquelas
mulheres e pedi à madre directora para ler dois poemas. Um da Alda Lara... «À prostituta mais jovem do
bairro frio e escuro deixo os meus brincos talhados no cristal mais límpido e puro»... A madre mais razão
tem para achar que eu era perigosa e fecha-me até à preparação para a Páscoa. E veio o padre falar
connosco, a dizer que era preciso solidariedade. «Olhe senhor padre, isso é muito bonito, só que a madre não
deixa pôr em prática». Eu tinha pedido à madre para olhar por uma companheira minha que andava com
muitos problemas. E ela: «Sempre preocupada com os outros, olhe mas é por si e pela sua filha». E eu disse-
lhe: «A senhora não é digna da cruz que traz ao peito. E não vou à missa porque quando a vir comungar
ainda grito ‘sacrilégio’». As minhas companheiras vinham ter comigo a chorar – «Ó Sr. a D. Maria Luísa, o
meu azeiteiro [o proxeneta] não me escreve!» E a madre, sabe o que é que ela fazia? Juntava as cartas,
escondia e mandava-as queimar. Era aquela maldade. Havia uma freira que era muito boazinha, a
desgraçada andava sempre com úlceras no estômago de ver as maldades que a outra fazia, mas não podia
fazer nada. «Cristo não passou do portão da cadeia» – dizia-lhe eu. Aí escrevi um artigo para o jornal a
denunciar o que se passava aqui. E o Sr. Cardeal Patriarca deve ter dito «Isto há aqui qualquer coisa que
não está bem» – e elas foram obrigadas a ir embora. Saíram primeiro elas que eu!
8. Ao escrever esta passagem percorreu-me uma vaga sensação de embaraço, que porvim a
localizar na memória. Numa deslocação de campo a uma aldeia terei insultado a hospitalidade
local quando, no final de um longo circuito de visitas, um estômago já pletórico me levou a
recusar, polida mas firmemente, a oferta de mais um lanche, de mais um copo. Coma, que é
limpinho, ou Pode beber, o copo é limpinho: urbana e de classe média eu pensaria assim que os
aldeões, «pobres» e «do campo», seriam gente suja. Imediatamente fiz lugar para mais um gole e
umas bolachas, mas desde então nunca mais deixou de me ocorrer tirar da manga a velha
«úlcera» para justificar satisfatoriamente a recusa.
9. Não pretendi colocar a minha experiência sensorial no mesmo plano da das prisioneiras, tanto
mais que, como o mostrou a psicologia ambiental, o limiar de tolerância face a uma agressão dos
sentidos eleva-se quando aumenta a capacidade de intervenção por parte dos indivíduos: no meu
caso, passava pela possibilidade de me furtar a ela, abandonando o local. A minha sensorialidade
também não foi aqui chamada em nome de um qualquer subjectivismo radical, a partir do qual
projectaria as experiências do «outro». Diz Vale de Almeida (1996:11) que «nunca se percepciona
de ‘nenhures’, percepciona-se sempre de algum lado» e, como escreve Martin de la Soudière:
Soit l’expérience du froid. Prétendre par postulat être à même d’éprouver soit-même ce
qu’éprouve autrui est un leurre. Toute sensation est éminemment individualisée. [...] En
comparant ma réaction au froid à la leur, je suis à même de voir en quoi elle diffère de la mienne,
ce qu’elle a de spécifique culturellement et psychologiquement. Le froid se partage, mais jusqu’à
un certain point, et c’est ce certain point qui constitue l’intérêt d’une telle enquête, les zones de
recouvrement et de différenciation entre expériences d’un même phénomène (1988: 101-102; em
itálico no original).
10. Abordado em mais detalhe em Cunha e Durand (1999).
192

11. Howes recupera e transpõe o célebre artigo de Needham (1967) sobre a utilização quase
universal de percussões nos rituais de transição, e remete-nos ainda para a associação dos odores
aos processos de comunicação entre realidades de diversa ordem.
12. Georg Simmel (1986: 237) apontara já a relação sociológica entre odor e intimidade e Corbin
(1986: 6), por sua vez, a relação histórica entre os limiares de tolerância olfactiva e as noções de
pessoa.
13. É também nesta acepção que o autor utiliza as noções de espaço olfactivo, visual, auditivo e
táctil, entendendo-os como universos culturalmente definidos e estreitamente ligados ao sentido
do self (Hall, 1969: 41-63).
14. Nervos e ataques como os referidos têm sido abundantemente analisados como performances
culturais e subjectivas corporizando uma fragmentação do sentido do eu (Low, 1994), mas
também formas de resistência e protesto por parte de seres socialmente vulneráveis (e. g. Ong,
1988; Lock, 1993).
15. A propósito de sintonia das almas – porém, de uma outra ordem – é de citar os desmaios
colectivos nas celebrações locais da Igreja Maná, o que estaria na origem, segundo uma guarda,
das reservas e dos obstáculos levantados pelo pessoal aos seus oficiantes: Era um grande
espalhafato, causavam muita instabilidade. Agora não vêm mais. AIURD é mais calminha. É mais cantar em
grupo no refeitório. É assinalável, de resto, o sucesso junto das reclusas de uma grande variedade de
igrejas evangélicas e pentecostais (IURD, Logos Comunhão Cristã, Centro Cristão Vida Abundante,
Testemunhas de Jeová, bem como estruturas a elas ligadas de apoio a jovens e de recuperação de
toxicodependentes, como o Desafio Jovem). Saliente-se que é também no domínio religioso que se
desenha uma clivagem sociológica com as detidas da minoria. Dizia-me uma delas, acólita do
sacerdote e organizadora da missa católica (missas estas que são frequentadas por 20
prisioneiras, entre as quais se contam sobretudo sul-americanas e algumas portuguesas mais
idosas):
As ciganas não frequentam muito. Eu tentei explicar que não sendo baptizadas não podiam comungar.
Depois havia um problema com as presas, mas está resolvido: a maioria vive em união de facto, e portanto
não podiam comungar. Mas como estão presas, estão equiparadas a uma situação de celibato, logo podem.
É de crer que as outras Igrejas sejam menos rigorosas nos preceitos e requisitos que exigem aos
fiéis e se encontrem mais próximas das preocupações das detidas. Por outro lado, as modalidades
de culto parecem ajustar-se à estreita sociabilidade vigente na prisão e contribuir para reforçá-la.
Alega a Maria, uma cabo-verdiana fiel da IURD:
O que me ajuda é a minha Bíblia e o meu Deus. Antes de vir era católica. Agora vim para a Igreja Universal
[do Reino de Deus] porque nos fazem muito bem. As ciganas, as cabo-verdianas e as consumidoras
andavam para aí perdidas e agora estão muito calmas. Dizem para nos portarmos bem, para tratarmos bem
as guardas e não fazermos asneiras. Esta fé dá muito resultado. Eu já vi que dá, houve pessoas que
conseguiram a condicional e já saíram da cadeia. Dá-nos muita força. Lemos a Bíblia umas com as outras,
cantamos, ficamos muito unidas. Agora é a semana de Jericó, quem quiser faz jejum das 6 da tarde às 6 da
manhã. Nós fazemos, damos força umas às outras.
A Iolanda, da mesma congregação, queixava-se de intoleráveis dores de cabeça que lhe toldavam
a visão. Exames médicos indicaram a necessidade de uma intervenção cirúrgica, que recusou:
«Mandei vir um óleo, um elixir da Igreja do Reino de Deus, passei na vista e nunca mais tive nada. Eu sou
muito religiosa, leio a Bíblia com as minhas colegas.» Por sua vez a Lavínia, uma outra seguidora da
IURD, informava-me: «São muito bonzinhos, trazem sacos para as que não têm visitas... Eu tive muitos
sacos assim, gosto muito deles.»
16. O mesmo se discerne, ainda, nas formas de apropriação do espaço (sub)urbano e nas
trajectórias juvenis referidas por Teresa Fradique no âmbito da cultura hip-hop:
Esta experiência não significa apenas uma relação com o local físico onde se habita, mas também,
e sobretudo, uma forma de organização quotidiana e mapeamento das relações pessoais e de
grupo que se baseia na criação de um mapa alternativo da cidade e dos seus arredores. Este mapa
193

serve para re-orientar fluxos que contrariam as direcções convencionais – periferia-centro-


periferia – traçadas pelas administrações do território urbano e cumpridas por grande parte dos
citadinos (trabalhadores/adultos). A circulação da cultura hip-hop percorre bairro a bairro, numa
espécie de expedição que reserva o centro para ocasiões especiais (1999: 124; [itálicos no original]).
17. As teorias da etiquetagem a que o autor alude descreviam o desvio não como uma
propriedade inerente a um acto ou comportamento, mas como uma consequência da aplicação
das regras que o definem enquanto tal a uma pessoa ou categoria de pessoas. Assim, o mesmo
acto ou comportamento pode ou não ser qualificado de desviante, tal como «desviantes» são
apenas os indivíduos a quem o rótulo foi aplicado com sucesso. Ora, é certo que Keith
complexifica estas perspectivas ao introduzir os processos de racialização e ao analisar as
categorias como sujeitos de discurso e não só como objectos de reacção social. Porém, faça-se
justiça aos interaccionistas, a contingência e a variabilidade que o autor releva haviam sido há
muito sublinhadas. Veja-se, por exemplo, Edwin Lemert (1951: cap. 4) e, em especial, John Kitsuse
(1969):
A sociological theory of deviance must focus specifically upon the interactions which not only
define behaviors as deviant but also organize and activate the applications of sanctions by
individuals, groups, or agencies. For in modern society, the socially significant differentiation of
deviants from the non-deviant population is increasingly contingent upon circumstances of
situation, place, social and personal biography, and the bureaucratically organized activities of
agencies of control (Kitsuse, 1969:602).
18. Estes recortes intervêm de forma decisiva em prisões americanas, como adiantei no capítulo
anterior, embora a extensão das tensões que engendram pareça variar segundo o género. Nas
prisões femininas estas clivagens são nítidas, mas a violência inter-«racial»/étnica é menor (cf.
Kruttschnitt, 1983; Díaz-Cotto, 1996).
19. O termo ghetto não parece, na verdade, desajustado quando os índices de segregação
étnico-«racial» destas constelações sócio-espaciais se aproximam por vezes da separação
absoluta: Wacquant (1993: 271) refere para bairros de Chigago índices de segregação de 92%.
Adiante-se no entanto que nalguns contextos urbanos certas inner-cities começaram
recentemente a passar por um processo de «gentrificação», que diversifica um pouco mais a sua
composição: devido aos elevados preços em vigor no mercado imobiliário, alguns membros da
classe média branca optam por instalar-se nessas zonas: ver por exemplo J. Abu-Lughod, 1994,
para o nova-iorquino Lower East Side; é também situável neste âmbito o recente fait-divers
(noticiado pela imprensa em 2001) da instalação do escritório do ex-presidente Bill Clinton no
igualmente nova-iorquino Harlem, depois de ter renunciado à dispendiosíssima renda que lhe era
exigida numa zona nobre da cidade. A decisão foi contraditoriamente acolhida pelos habitantes
de Harlem: uns viram nela um sinal da ressurreição do bairro, outros uma ameaça de expulsão.
Com efeito, logo que a decisão foi conhecida, vários senhorios restauraram prédios, as rendas
quadruplicaram e sucedeu-se um movimento de despejo de famílias mais pobres.
20. Esta particularidade da Grã-Bretanha face a países do continente dever-se-ia segundo o autor
a modalidades divergentes de industrialização e de urbanização, por um lado (que explicariam
por seu turno que a precaridade tenha aqui atingido os centros urbanos enquanto noutros
contextos afecta sobretudo as periferias), e por outro, a diferentes modos de intervenção do
Estado-providência.
21. É verdade que a concentração de minorias étnicas no parque periférico de alojamento
aumentou (Lepoutre, 1997: 25); contudo, como notou Wacquant (ibidem: 271-272), salvo atípicos
casos pontuais, o recrutamento etno-nacional e social destas zonas residenciais continua a ser
extremamente diversificado (o autor fala mesmo de uma «surpreendente diversidade»), pelo que
seria apenas superficial e aparente qualquer semelhança com o ghetto, uma realidade de natureza
ecológica, estrutural e sócio-histórica distinta.
194

22. A localização residencial é aqui referida ao nível do bairro, uma vez que os padrões de
distribuição espacial da imigração no país apontam para um forte desequilíbrio entre, por um
lado, a área metropolitana de Lisboa e o Algarve (onde a heterogeneidade étnica e «racial» é
grande) e, por outro, o resto do país (desse ponto de vista mais uniforme), como o autor indica
noutro lugar (Machado, 1999). Acrescentará por isso a este propósito que, assim como Portugal
não é um país de imigração, mas sim um país com regiões de imigração, também não se poderá
considerar a sociedade portuguesa como multicultural (ibidem: 60).
23. Estas redes seriam igualmente densas em ambos os contextos, mas de menor extensão no
bairro do Relógio. A particular morfologia deste espaço faria também com que a identificação
com o bairro como um todo fosse menor (Freitas, 1990: 33-36). A vizinhança é contudo muito
valorizada, tendo os inquiridos manifestado a sua inquietação quanto ao processo de
realojamento, na medida em que poder-se-ia não vir a reproduzir ama ambiência relacional que
prezam. Nesse sentido, manifestariam de igual modo o desejo de vir a ter por futuros vizinhos os
actuais. Este capital social pode de facto vir a ser amputado por processos estatais de
realojamento mal conduzidos. Como referem Cardoso e Perista (1994: 110), enquanto nos bairros
de habitat espontâneo, que crescem por via das relações de parentesco e amizade, prevalece a
noção de se ter «escolhido» o local de residência, nos bairros de realojamento ela encontra-se
mais diluída, dando lugar à percepção de uma mera imposição económica.
24. Estas amizades podem ser bastante estreitas e profundas, como a que une a Rosário a uma
detida não cigana:
– A Rosário hoje parece que está um bocado em baixo. Costuma estar sempre tão bem disposta...
– É. Não, eu estou triste porque eu tenho uma colega, que é da vossa raça, ela foi ontem p’ró Porto a
julgamento e essa rapariga dá-me muito apoio. Hoje foi um castigo p’ra dormir, a pensar se ia correr tudo
bem... Sinto muito a falta dela. Tenho mais amigas, falo com elas, mas não é tanto como essa aí do Porto. As
da minha cela são umas velhotas, eu não me achego muito a elas. A última vez que ela foi ao Porto por
causa de outro processo foi quatro meses, eu nem comia nem nada. É por isso que eu tou assim, é por causa
dela. Tou desejando que venha ela porque eu não gosto de estar assim. Ela foi segunda-feira e disse-me que
na quinta-feira tava aqui...
25. Para que a noção de integração não se entenda aqui na sua conotação funcionalista, sublinho
que me refiro com ela a um quadro de inserção social, não à mecânica de sustentação de um
sistema.
26. Tomo de empréstimo uma expressão de Christian Bromberger e Jean-Yves Durand (2001) que
cunha a atribulada vida própria ganha por conceitos que escapam assim aos desígnios dos seus
criadores.
27. É deste modo que Howe (1998: 69) defende que a teoria de Lewis é largamente uma elaboração
académica de uma perspectiva ideológica sobre os desmunidos que tem uma longa tradição na
classe média.
28. Não pretendo com isto sublinhar especificamente o tráfico. Este é apenas o último expediente
de sobrevivência entre os múltiplos nichos que inventivamente cavaram nos interstícios de uma
economia de margem e que combinam entre si numa lógica de pluriactividade.
29. Esta é uma crítica que não dirigiria a Day et al, cujas etnografias são densas e nos fazem
penetrar noutros mundos, não enfermando de um óbice também apontado por Ortner (1995) a
etnografias onde se tematiza a questão da resistência.
195

Conclusão. Entre o bairro e a prisão

1 Passado e presente são tempos separados neste trabalho por uma década apenas.
Separa-os sobretudo uma profunda mutação, tanto mais assinalável quanto se mostra
compreendida num tão curto intervalo cronológico. Encará-la ad hoc como uma
transição entre ciclos, vendo em certas configurações marginais no presente formas
remanescentes do passado, em configurações dominantes num, desenvolvimentos
inusitados do que afinal eram formas emergentes noutro, foi o modo que se me
proporcionou de lhe divisar plausibilidade. Nem por isso a transição deixa de ser
radical nem, de tão brusca, cessa de surpreender. Segue-se uma sinopse recapitulativa
das grandes linhas de uma mudança onde Tires perderia a todos os títulos contornos
paradigmáticos do campo prisional que fizeram nascer uma extensa linhagem de
estudos.
2 Em primeiro lugar, e seguindo no encalço de tendências internacionais, o
«penitenciário» recuou no seu escopo, relevando menos da razão ortopédica do que da
razão gestionária, menos da transformação dos indivíduos do que da sua contenção.
Melhor dizendo, não reivindica já um projecto próprio. Trata-se acima de tudo de
administrar legal e tanto quanto possível humanamente a ordem interna. Em segundo
lugar, assim como o penitenciário deixou de delimitar um espaço próprio, também a
instituição-prisão se tornou menos autárcica. Deveio quer mais hetero-determinada por
instâncias exteriores, quer mais dependente delas para a prestação de bens e serviços.
Tendo crescido o universo humano a ponto de se poder falar de uma mudança de
escala, complexificou-se também o quadro organizacional, marcado doravante por uma
ampla codificação de procedimentos, pela burocratização, pela especialização e pela
profissionalização do seu pessoal. Na mudança de um modelo de gestão «doméstico-
autoritário» para um modelo «burocrático-legal», estreitaram-se igualmente as
margens de manobra locais para a manutenção da ordem, que passaram a repousar
menos na discricionaridade da figura do director e na co-optação informal de
lideranças reclusas. Institucionalmente mais permeável ao exterior, torna-se menos
nítida a faceta «totalizante» da prisão, uma faceta que se desvanecerá ainda através de
um terceiro elemento novo: as redes de parentesco, amizade e vizinhança que cosem
dia-a-dia o bairro e a prisão.
3 Mas se internamente o campo prisional perdeu pregnância ideológica em favor da
pragmática administrativa, em contrapartida seria cada vez mais solicitado no apelo
196

punitivo que entretanto veio a caracterizar a atmosfera ideológica externa. Várias


alterações legislativas vieram consubstanciar a viragem na política criminal que se
operou em resposta a este apelo e que desenhou uma economia repressiva dual: uma
aparente benevolência para com as pequenas transgressões e um endurecimento na
punição das transgressões mais graves. Os efeitos do último ultrapassaram porém
largamente os efeitos da primeira, além do que os tribunais tenderam a trilhar
sobretudo no sentido da severidade os caminhos abertos pela lei. Tal severidade no
processamento da criminalidade fez-se especialmente sentir no domínio do tráfico. Foi
apontada a este propósito a divergência entre as concepções de que respectivamente
relevam a lei penal geral e a lei da droga, mesmo tendo em conta todos os
agravamentos conhecidos pela primeira: uma assente na «prevenção geral positiva»,
outra na «prevenção geral de intimidação». Exemplos particulares desta divergência
vão desde lógicas de aplicação da prisão preventiva até a regimes processuais, passando
pelo modo como são punidas figuras semelhantes, como é o caso da associação
criminosa.
4 Esta mudança de cenário repercutir-se-á em Tires, onde é grande o peso das reclusões
preventivas, e onde não só são extensas as penas aí em cumprimento, como são de facto
cumpridas mais extensamente. De resto, sem que a sua vocação no parque
penitenciário português se tivesse alterado, nunca esta instituição havia antes acolhido
populações condenadas a penas tão longas. A razão reside em parte na drástica redução
da diversidade dos crimes que aqui trazem a população actual, homogeneamente
concentrados no duramente sancionado tráfico, e mais homogeneamente ainda girando
na órbita da droga dada a forte correlação que com ela apresenta a maioria dos crimes
patrimoniais cometidos pelas reclusas. O acelerado alisamento do seu perfil penal
acompanhou-se de um não menos súbito nivelamento do seu perfil sociográfico, um
nivelamento por baixo constatado numa pauperização múltipla e na sistemática
proveniência de bairros precarizados.
5 Provindo dos mesmos bairros, as reclusas chegam à prisão articuladas em teias de
interconhecimento combinando laços de parentesco, amizade e vizinhança. A presença
maciça e por isso inédita destas redes pré-prisionais é em parte um produto de algumas
lógicas de funcionamento dos campos policial e judicial. Além de parentes, amigos e
vizinhos poderem ser detidos conjunta e preventivamente dada a dificuldade em
deslindar as responsabilidades individuais pela droga encontrada num determinado
local – mesmo que um deles a assuma por inteiro –, vários núcleos de pessoas
descontínuos entre si podem ser justapostos num mesmo processo judicial, ou um feixe
de arguidos com conexões parciais ver-se constituído em rede mediante a sua inclusão
colectiva num processo comum. No âmbito destes processos alargados em torno do
tráfico incorrem ainda no risco de uma acusação de bando ou de associação criminosa,
e portanto no de uma condenação especialmente pesada. Mas o receio por parte das
reclusas de neles se verem incluídas obedece antes de tudo à aspiração a um processo
individual onde caiba a narrativa do seu próprio crime, onde não se dissolvam
enquanto sujeito penal.
6 Os efeitos colectivizantes destes mecanismos judiciários apenas refinam, porém,
aqueles que se produzem a montante, sendo certo que nem todas as constelações
parentais e vicinais surgem em Tires por via de processos judiciais colectivos. De facto,
os elementos de cada uma poderão aí desembocar tanto simultânea quanto
consecutivamente, um após outro. Ao contrário de crimes cuja sinalização repousa na
197

queixa da vítima, a detecção dos crimes de droga assenta na investigação pró-activa da


polícia. É no quadro da selectividade desse enfoque pró-activo que certas categorias
sócio-espaciais atraem uma atenção policial tenaz e, por conseguinte, a probabilidade
de detenção será maior no seio dessas categorias. Neste andaime da construção da
suspeição o estatuto individual, quer sócio-económico, quer étnico-«racial», importa
menos do que o estatuto do bairro considerado como um todo. Contextos residenciais
de certo tipo constituir-se-ão assim em alvos colectivos e rotineiros da acção policial,
uma acção de índole não só preventiva e investigativa, mas também demonstrativa (de
controlo e autoridade sobre uma área), da qual as expressivas rusgas são um exemplo.
Pessoas e bens poderão nelas ser objecto de um arresto relativamente indiferenciado,
mesmo que mais tarde muito do que foi colhido nessa malha larga recorrentemente
lançada sobre o bairro venha a ser libertado. É deste modo que, traduzindo uma aguda
intimidade com dispositivos colectivizantes da lei e da ordem, vem a figurar no léxico
prisional a expressão apanhar por tabela , onde se veicula o temor do castigo por
interposta falta alheia: as reclusas trazem-na para a cadeia, continuando aí a orientar-
se por ela; sucede que o staff a leve para a sua vida pessoal, olhando o mundo exterior
com outros olhos.
7 Mas se as teias prisionais de parentes, amigos e vizinhos se fabricam pela via policial e
judicial, constituem-se também por via da economia da droga. Uma e outra avenida
relevam todavia de lógicas distintas, sem que a primeira se limite a reflectir
linearmente a segunda, e desenham em consequência configurações diversas. É assim
que os contornos das redes prisionais de interconhecimento não reproduzem
necessariamente os das redes de tráfico, da mesma maneira que a amplitude que as
constelações familiares adquirem no cárcere não traduz a dimensão daquelas que
operam no comércio retalhista de drogas. De facto, em lugar de uma participação
concitada colectivamente e correspondendo ao projecto de uma empresa familiar, a
participação dos parentes no tráfico é atomística, casuística e não delimita um universo
de alianças próprio, demarcado de amigos e vizinhos. Se desta forma se distancia das
modalidades familialistas do crime organizado, tal prende-se com a desigual capacidade
de intervenção das estruturas familiares na «organização da vida» dos indivíduos. Nos
estratos sócio-económicos mais baixos elas intervêm antes na organização da
sobrevivência – mais limitadamente, portanto – e a sobrevivência organiza-se também
com a intervenção das solidariedades vicinais. Cada um «irá à vida» – legal e ilegal – por
si, apoiando-se aqui e ali numa retaguarda integrando indistintamente segmentos da
parentela e da vizinhança. É neste continuum de parentes, amigos e vizinhos que se
recrutam flexivelmente alianças e parcerias no tráfico.
8 Assim como estes pequenos, fluidos e variáveis narcocírculos não estão encerrados no
universo parental, também não se acantonam no universo masculino. As mulheres
tomam parte neles, por vezes participando acessória e fortuitamente nas transacções
de outrem – porém como associadas e enquanto parentes, amigas e vizinhas, não como
mão-de-obra de reserva e enquanto assalariadas de uma organização fixa –, outras
vezes tomando a sua iniciativa, mobilizando para o efeito redes vicinais femininas que
lhes proporcionam quer o próprio produto através do dispositivo do fiado , quer, à
maneira de brokers, o acesso a traficantes masculinos que o detenham. Mais do que por
características absolutas da actividade em si, o tráfico é aqui uma arena aberta às
mulheres pela conjunção de determinadas noções de género com a estrutura dos
mercados retalhistas portugueses. Neste mesmo patamar, a evolução noutros contextos
de uma estrutura de mercado free-lance para uma estrutura «empresarial» tornou
198

cerradas toda a sorte de barreiras ideológicas à entrada, outrora mais ineficientes, e


redundou numa organização sexuada e racializada do trabalho ilegal. Além de
estratificados segundo a «raça»/etnicidade, introduzindo por conseguinte recortes nas
redes de interconhecimento elegíveis, tais mercados estratificam-se segundo o género
ao regerem-se por uma visão domesticizada das mulheres e ao negarem-lhes a
capacidade de intimidação, masculinamente definida, entendida como necessária para
vingar numa economia violenta da droga. Em contextos portugueses, não só sucedeu
que a feição do mercado tivesse evoluído na direcção oposta, como prevalece
actualmente o modelo free-lance, que já de si configura uma estrutura de oportunidades
mais aberta. Esta vê-se ainda alargada por uma genérica debilidade dos obstáculos
ideológicos à participação feminina no mundo do trabalho remunerado e no orçamento
familiar, debilidade esta especialmente acentuada nas classes populares; quanto ao
narcotrabalho, sendo em Portugal menos violento perde também em ethos viril, pelo
que é menos operante a filtragem dos candidatos por género.
9 Realidades criminais e não criminais estão em acréscimo, no caso do tráfico, entrosadas
num mesmo eixo económico, embebidas nas mesmas redes sociais, imersas num espaço
comum. Exercido na modalidade free-lance , o tráfico é a dobradiça que as une,
permitindo a combinação e o vaivém entre ocupações e rendimentos legais e ilegais. De
facto, esta actividade não representou alterações de monta nas formas de inserção
económica, laboral e social das detidas, do mesmo modo que começou por inscrever-se,
por um lado, na zona de continuidade entre o sector formal e informal, onde as reclusas
já se moviam antes do seu advento, e, por outro, nas redes tradicionais de entreajuda
que compõem a sociedade-providência. Em parte porque se alimenta e participa de
características de uma sociedade semiperiférica (uma economia informal pouco
controlada, uma sociedade-providência robusta, ambas amparando uma pobreza cujo
perfil dominante, por sua vez, é o de uma «pobreza integrada», mas marcada pela
exclusão simbólica quando espacializada em certos bairros), a economia da droga
parece assumir em Portugal um carácter híbrido que a distingue a vários títulos de
outros mercados, noutros contextos nacionais. Distingue-se, em particular, pela fraca
expressão que nela tem o mass criminal, ou o lumpen criminal massificado, multiexcluído
e multialienado que alhures emergiu maciçamente nos patamares mais baixos do
narcotráfico. Neste aspecto, o mercado retalhista português mostra-se mais próximo da
(des)organização de mercados grossistas de outras geografias, mas conservando-se bem
distante deles noutros aspectos ainda, como sejam o tipo de redes que mobiliza e o
quadro de disposições que o informa.
10 As constelações de parentes, amigos e vizinhos tão salientes em Tires permanecem
relativamente invisíveis nos estudos prisionais. Ora, mesmo que este tipo de laços não
protagonize nos mesmos moldes e no mesmo grau a economia retalhista da droga
noutros países, também aí ela motivou uma pronunciada territorialização da acção
policial, cada vez mais focalizada em certos segmentos sócioespaciais, e também aí dela
sairiam grandes contingentes de reclusos. Na verdade, os indícios e as referências
pontuais que constam na literatura sobre prisões permitem entrever a presença dessas
redes de interconhecimento prévio, mas não são questionadas enquanto tal nem lhes é
atribuído relevo teórico. Independentemente do peso empírico que assumam em cada
contexto – e a ser exíguo daí não decorre que seja escasso o seu potencial analítico –, é
possível que a sua invisibilidade se prenda com lentes de abordagem configuradas pela
definição da prisão como um quadro de interacção social cortado do exterior, uma
definição que carrega em simultâneo o pressuposto de que estaria também cortado de
199

relações sociais anteriores. E mesmo quando este pressuposto não implica que os
reclusos hajam deixado o seu background cultural fora de portas, a teia de relações
intramuros seria à partida prisional, tecida ab initio num hiato social e constituída
segundo os cânones das instituições totais.
11 Mas quando essas relações são pré-constituídas e se trata de parentes, amigos e
vizinhos a sua natureza altera-se, a vivência prisional é diversa, a identidade pessoal e
social não é afectada da mesma forma pela reclusão. Interior e exterior não se dispõem
entre si do mesmo modo. No caso de Tires, os trajectos colectivos entre o bairro e a
prisão instauraram uma continuidade entre esses dois topoi demarcados pela fronteira
prisional. Em primeiro lugar, a omnipresença da prisão no bairro e o estigma do
próprio bairro tornaram a transposição dessa fronteira uma marca simbólica
redundante. A prisão apenas consuma a profunda estigmatização que se instituiu a
montante. Não representando mais a cadeia uma marginalização circunstancial mas
uma figura da marginalização estrutural do bairro, o estigma que antes assinalava
deixou de ser negociável (e depois ocultável), tendo-se assim praticamente extinguido
as lutas simbólicas internas, as dinâmicas de autodistanciação face às co-reclusas – e de
aproximação face ao investigador. Entranhada no quotidiano do bairro, a prisão
tornou-se «normal» e o circuito prisional, banal, percorrido que é com parentes, amigos
e vizinhos ou em visita a parentes, amigos e vizinhos. Em segundo lugar, se o bairro
vive com a prisão, a prisão vive, em múltiplos registos, do bairro. Só não se dirá, a
propósito de um desses registos, que ela o parasita porque ao absorver um leque mais
ou menos largo de próximos a cadeia tem efeitos pauperizantes tanto no exterior como
no interior. De facto, a vida prisional não é já materialmente amenizável quando se
rarefaz a retaguarda externa de apoio. Aliás, a sobrecarga da que resta induz ao colapso
de certos mecanismos da sociedade-providência, mecanismos esses que ironicamente
passam até a actuar, na pequena medida possível, de dentro para fora da prisão – o que
a «normaliza» ainda mais no bairro. A pauperização externa também alimenta o círculo
vicioso do tráfico, onde a cadeia vem tomar parte quando filhos menores se iniciam na
venda na sequência da detenção dos pais, que por sua vez poderão reincidir no tráfico
para dele retirar os filhos. Mas a prisão integra ainda subsidiariamente esse círculo
quando os capitais gerados por uma curta – porque cedo interrompida pela cadeia –
carreira ilegal são dispendidos no apoio a familiares presos ou no tratamento de filhos
toxicodependentes; ou, quando os capitais se esgotam, é vista como recurso para a sua
cura.
12 Num outro registo, a prisão vive do bairro na medida em que a sociabilidade interna
deixa de ser essencialmente auto-referencial para passar a reger-se por critérios
extraprisionais ligados a valores familiares e vicinais, como a noção de respeito ou
aqueles que vieram transformar o sentido e o alcance das figuras do chibanço e da
receptação. E não só a solidariedade, as tensões e os conflitos mudaram de natureza,
como se desenham em cenários de grande indeterminação e ambivalência dadas as
frequentes implicações contraditórias daqueles valores no âmbito de um mesmo círculo
de laços de proximidade. Além disso, se a face da sociabilidade se alterou pelo facto de a
rede de relações carcerais se ter prefigurado antes da reclusão, isto é, pelo facto de ela
ser eminentemente pré-prisional, essa ampla rede de interconhecimento que articula
as reclusas entre si articula-as também a uma malha exterior comum de parentes,
amigos e vizinhos, estreitando-se através dela a relação com o mundo extramuros.
Deste modo, a prisão vive ainda do bairro quando o seu quotidiano é modulado pelos
eventos que nele se produzem – assim como o curso do quotidiano externo é afectado
200

pelos incidentes que nela têm lugar. Um e outro interpenetram-se, afectam-se


mutuamente. Assente in loco em teias de parentes, amigos e vizinhos, pautando-se por
noções extracarcerais, entrelaçando-se com a vivência externa, a vida interna deixa de
ser configurada pela fronteira prisional. É neste sentido que tal fronteira se dilui. Com
efeito, ao perímetro material da prisão deixou de corresponder tanto uma ruptura
social e simbólica como uma ruptura temporal pela qual a reclusão fixava o presente
(representado como estático enquanto coevo da pena, por isso desfasado da
temporalidade do mundo livre) e o descosia do passado e do futuro. Da mesma maneira
que parentes, amigos e vizinhos fizeram convergir o bairro e a prisão, trouxeram o
sentido da diacronia à progressão interna e sincronizaram-na com a progressão
externa.
13 Além de continuar a congregar no mesmo espaço, tal uma clássica instituição total,
residência, trabalho e lazer a prisão torna-se na aparência hipertotal ao incorporar
física e simbolicamente o bairro. É todavia porque o incorpora, porque não é mais um
hiato social e temporal, que Tires escapa a modelos teóricos como o goffmaniano, cujo
eixo lógico é precisamente a ruptura intra/extramuros. E uma trama prisional
intrinsecamente translocal será de igual modo arredia a um olhar que procure ou o seu
texto ou o seu contexto na cadeia, quer dizer, um olhar que a priori aceita que os muros
da prisão delimitam invariavelmente uma unidade de análise, tal como outrora se
supunha que deles decorria inevitavelmente uma cultura. De algum modo Tires ensina
que a descontinuidade que materializam não deverá ser um ponto de partida analítico
mas, desde logo, uma questão empírica.
14 Erodida a fronteira prisional, erodiram-se também as fronteiras internas através das
quais se negociava o estigma a ela associado, uma negociação que se traduzia na recusa
do nivelamento por uma condição comum e na dinâmica de oposições recíprocas pela
qual qualquer diferença servia a distanciação inter-reclusas e se transformava em
contraste. Há no presente, é certo, menos diferenças a explorar quando a diversidade
das categorias criminais do passado deu lugar à grande uniformização que o tráfico,
actualmente o principal motivo da reclusão, veio originar. Mas se a anterior economia
interna da estigmatização provinha a criar dicotomias no seio de uma mesma categoria
(neste caso, entre traficantes e traficantes-consumidoras), as lógicas que hoje
prevalecem não só não operam tais desdobramentos como apagam várias diferenças
penais ainda. É assim que emerge a categoria prisional por droga, uma configuração
centrípeta que além de incluir os crimes de tráfico absorve também toda a sorte de
crimes cometidos por consumidoras. Porém, muito embora a droga seja dada nesta
designação emic como o denominador comum dessa configuração, o envolvimento no
tráfico ou no consumo não delimita por si só a vasta zona de identidade e agencialidade
colectiva que ela recobre, e da qual não fazem parte, de resto, as traficantes ou
consumidoras de drogas sintéticas. Na verdade, ela constitui-se igualmente por via da
classe e dos comuns estigmas pré-prisionais, bem como através dos laços de parentesco,
amizade e vizinhança. Estes laços vieram, com efeito, tornar possível a conjunção de
várias categorias de representação, fazendo-as convergir numa só, dado que se
encontravam já conjugadas no mesmo círculo de relações de proximidade antes da
reclusão.
15 Tendo subvertido as fronteiras internas, este e outros entrosamentos prévios puseram
também fim ao sobreinvestimento nas fronteiras entre corpos. Reduziu-se o lastro
simbólico da ideia de contágio (e reduziu-se o próprio receio do contágio num contexto
201

que lhe seria agora mais propício), de sons e de odores (que eram intoleráveis não por si
próprios ou pela sua intensidade, mas por emanarem de um «outro» e sinalizarem a
permeabilidade a ele), da exposição ao olhar de outrem (as barreiras da privacidade
entendem-se menos violadas quando outrem não é mais um estranho mas uma parente,
uma amiga ou uma vizinha). De facto, deixou de se vincar com o mesmo vigor a
fronteira corporal com que outrora se protegia uma integridade do «eu» ou uma
individualidade ameaçadas pela prisão. Todavia, a maioria das reclusas não assaca já à
cadeia ameaças desse teor, nem a reclusão vem perturbar substancialmente a
identidade pessoal dada a continuidade que entretanto se instaurou entre a prisão e o
exterior. Ao invés, vinca-se no interior um sentido de comunidade que se exprime,
inclusive, pelo corpo quando os ataques adquirem uma dimensão expressiva para-
colectiva. Tanto ontem como hoje as ordens sensorial, cognitiva e social desenham
quadros coerentes, onde o que está respectivamente em causa é cavar a distância e
anulá-la.
16 A lógica de comunidade que se sucedeu à lógica atomística do passado manifesta-se em
práticas de solidariedade de vocação colectiva, em que a entreajuda e a partilha deixam
de se exercer somente a nível interindividual e ao sabor dos rumos da afectividade, e
em que a dádiva preserva o alinhamento pelos iguais. Se tais práticas são constitutivas
da comunidade, são também componentes retóricas de um discurso pronto a sublinhá-
las, que se apraz na sua ênfase – da mesma maneira que a retórica prisional do passado
ocultava categoricamente a amizade. O discurso comunitário vive porém para além
delas, alimentando-se da constância da sua própria reiteração, afirmando a convicção
de um destino comum.
17 A integração na exclusão que este discurso veicula encetara-se no entanto bem antes da
reclusão. O bairro de origem fornece na prisão uma primeira coordenada de integração.
É com efeito apenas a primeira, pois a categoria local por droga, transversal a vários
bairros, cedo tomará parte nessa tarefa. Marcando uma pertença comum que abrange
algumas reclusas, o bairro não marca contudo uma fronteira com outras, de outros
bairros. Isto é, inclui, mas não exclui, pelo que os grupos acabam por se compor à
revelia do lugar de origem. Os círculos interbairros geram-se também logo de início,
por via do interconhecimento prévio, dado que no exterior tais territórios articulam-se
entre si pelos circuitos do parentesco, da amizade e do trabalho. Cada bairro, por sua
vez, integrará diferentes categorias étnicas/«raciais», aí niveladas por uma mesma
pobreza e por uma mesma estabilidade na pobreza, por uma inserção semelhante na
economia formal e informal, e por uma participação similar na economia criminal
quando se dá o caso de ingressarem nela, uma vez que nos narcomercados retalhistas
locais não vigora a estratificação ou a divisão étnica/«racial» do trabalho. Ao
protagonizar um jogo sui generis entre classe, «raça»/etnicidade, ao qual se acrescenta
uma declinação particular da economia da droga, o bairro distancia-se assim de outros
complexos topográficos excluídos, como a cité e o ghetto . Diversamente destes
territórios, a fronteira étnico/«racial» é aqui menos crítica – e continuará a sê-lo na
prisão, diversamente de outros contextos prisionais. Além disso, se no passado era em
Tires mais nítida do que no presente, era-o ao mesmo título que outras fronteiras, hoje
também elas diluídas, e emergia no pano de fundo de uma população cuja composição
social era diversa.
18 Noções de etnicidade, bem como a noção de «orientação para o presente», serão todavia
mobilizadas por membros do pessoal penitenciário para traduzir e fixar em modo
202

cultural uma distância que se abriu em modo social, configurando assim


definitivamente um «outro». Exotizando a pobreza, o staff repõe uma distância que é de
quando em quando transcendida pela projecção pessoal na posição estrutural das
reclusas, e evita que essa projecção interfira no seu desempenho profissional e
destabilize os códigos que o governam. A fronteira entre o staff e as detidas começa
então por se cimentar a partir de vários saberes disciplinares que deram, nolens volens,
forma e caução a essa exotização.
19 Mas o fosso que desde logo aparta estes dois estratos institucionais não é senão um
avatar daquele que no exterior veio a separar dois mundos sociais e interpôs entre eles
uma linha de exclusão simbólica. Circunscreve ela o bairro, já de si relegado para as
margens por mecanismos estruturais. Externamente excluído e internamente
integrado, o bairro continua a tecer-se nestes moldes na cadeia, que faz já parte da sua
trama e onde por sua vez se acentua quer a dimensão de inclusão, quer a dimensão de
exclusão. Vimos ao longo deste trabalho que a prisão se abriu ao exterior em vários
planos. Além de no plano ideológico o próprio campo penitenciário ter perdido
conteúdo, vindo apenas situar-se no prolongamento de instâncias que o precedem, no
plano institucional a cadeia é mais do que nunca atravessada por fluxos e hetero-
controlos de todo o tipo, que a articulam a outras organizações e a subordinam a outras
instituições. No plano estrutural e simbólico, contudo, a prisão abriu-se ao exterior de
maneira diversa. Na verdade, em vez de abertura poder-se-ia falar de dilatação, pois o
seu perímetro parece agora vocacionado para abranger, em massa, o bairro. Ou, posto
de outro modo, o bairro distendeu-se até à cadeia e esta nova via de exclusão colectiva
não deixará de compactar outras fronteiras que o separam – ou o fecham – do exterior.
203

Epílogo. Uma janela partida

1 Há uns anos, John Comaroff (1996: 164) dizia que se o inquietava a política da diferença,
não o inquietava menos a política da indiferença1. É um pouco essa política da
indiferença, entendida no sentido mais lato, a que Tires nos devolve, como que num
eco. Optei por extravasar de algum modo os limites em que este trabalho evoluiu para
tentar captar esse eco, mudando de registo nessa tentativa porque é justamente de ecos
– de vários ecos – que aqui se trata. A indiferença de que falo a bem dizer constrói-se
sobre ideias de diferença, ou sobre a exasperação dos fantasmas acerca dela, e pode ser
vista como um dos avatares dessas ideias. A actual crispação penal e a voracidade da
prisão fazem as despesas do que o ar dos tempos entende de novo como uma diferença
ameaçadora. De novo, porque na verdade estes enunciados contemporâneos trazem à
memória aqueles que marcaram o século passado – precisamente o século que inventou
a prisão moderna.
2 É certo que a narrativa fundadora da prisão, à qual durante muito tempo se continuaria
recorrentemente a reportar a raison-d’être desta instituição, remonta aos projectos
humanistas e filantrópicos de redenção, regeneração e reintegração (e que passavam
também pela morigeração da própria figura do castigo). Mas, como mostraram
historiadores como Patricia O’Brien (1988: 315), a diferença fundamental da prisão
oitocentista em relação às instituições que a precederam (por exemplo hospícios e
asilos) residiu mais nas suas promessas do que nas suas práticas, que apenas
prolongaram anteriores dispositivos de enclausuramento; e, segundo Faugeron e Le
Boulaire (1992), residiu na judiciarização de um encarceramento que antes decorria
essencialmente de decisões administrativas: ou seja, surge uma modalidade de
encarceramento legalizada através da pena, e a pena é por sua vez legitimada através da
ideia de regeneração e correcção. Ainda que doravante reconvertida na ordem moral,
será porém mantida a vocação básica que institui a prisão como pilar da ordem pública
– a vocação de segurança, continuando o dispositivo carceral a visar conter populações
flutuantes cada vez mais receadas: os mendigos, os indigentes, os errantes, os operários
desempregados, os trabalhadores intermitentes que a industrialização fizera proliferar
nas cidades ou que arrancara aos campos, ali vindo procurar trabalho.
[L]e maintien du dispositif carcéral permettant de contenir des populations
estimées dangereuses se fait en deux temps : d’un côté la prison est instituée
comme lieu d’exécution de la peine, de l’autre certains comportements sont
204

pénalisés ou surpénalisés. La rupture est purement symbolique car, grâce à


l’invention de la peine de prison, la prison conserve – élargit ? – sa fonction
pratique d’enfermement de sureté. [L]e discours sur les origines de la prison pour
peine est nécéssaire [...] à la reconstruction dans l’ordre moral d’une préoccupation
socio-politique. Le recours au symbole permet la transformation d’un lieu de súreté
em instrument bénéfique (ibidem: 27).
3 Além disso, o fulgor da era filantrópica da prisão, anterior à exacerbação do pavor
social do crescimento da criminalidade, seria em todo caso breve. Com efeito, por volta
de meados do século XIX grassa um pouco por toda a Europa e nos EUA o grande temor
das «classes perigosas», que porá fim à ascendência dos filantropos sobre as prisões
(Duprat, 1980). Chevalier (1958) mostrou vividamente como as «classes laboriosas»
acabaram por ser assimiladas às «classes perigosas», como umas e outras passaram a
ser adjectivadas da mesma forma e incluídas nas mesmas formulações discursivas,
como, em suma, se procedeu à vilificação dos pobres. Cresce o desassossego das classes
médias e das élites face às hordas de desvalidos e, mais do que nunca, a noção de que
precisam de ser enquadrados e disciplinados. O instrumento penal será mobilizado
nesse enquadramento e nessa disciplina. O século XIX torna-se assim o século por
excelência da criminalização da pobreza, um fenómeno apontado por vários autores:
além de Faugeron e Le Boulaire (1992), para França, ver por exemplo Ignatieff (1978)
para Inglaterra e Rothman (1971) para os EUA. Em Portugal, João Fatela (2000) analisou
a criminalização do vadio, personagem que se tornaria no «arquétipo» de «estados
perigosos», a drástica «lei de excepção» que lhe foi aplicada – e a propósito da qual
Salgado Zenha (citado por Fatela, ibidem : 161) falaria de uma «desigualdade penal
verdadeiramente chocante» –, o sentimento de insegurança que se polarizou em torno
dele e que conduziu a imprensa a clamar por «medidas enérgicas» contra a vadiagem, a
repressão que alastrou aos mendigos desde o momento em que eram vistos como
figuras conexas do vadio2. Fatela (ibidem: 152) adianta aliás um sugestivo dado: entre
1890 e 1910, a população reclusa nas cadeias de Lisboa por crime de vadiagem somava
77% no caso masculino e 78% no feminino. Maria João Vaz (1998) refere por seu turno
as representações que tinham os desempregados e aqueles que apenas dispunham de
trabalho casual por potenciais criminosos, as noções que instituíram as camadas
populares, principalmente as urbanas, em alvo privilegiado das suspeitas da polícia e,
num outro lugar (Vaz, 2000), as «teses catastrofistas» sobre a progressão incontrolável
do crime que galvanizaram a economia repressiva do fim do século e a centraram nos
estratos sociais mais baixos da população3. Não admira, pois, que as cadeias deles se
compusessem, de uma forma marcadamente homogénea (e. g. Santos, 1999: 116-121). E
não admira também que elas acabassem por encerrar indivíduos bem longe de
corresponderem aos perfis de perigosidade com que se havia justificado o enérgico
accionar da máquina penal, como o revelam as elucidativas vinhetas fornecidas por
Fatela (2000: 165-166). David Rothman (1971) mostrou que nesta época o recurso
extensivo à prisão não era uma simples e automática resposta ao crime, e que a
constituição das populações prisionais nos EUA vinha reflectir o clima ideológico de
então. Notando que na segunda metade do século XIX «the state prison population became
to a marked degree lower-class and immigrant» (ibidem: 255), enquanto as distinções entre
as classes aumentavam, observou também que a transformação da composição carceral
se acompanhou da mutação da função da prisão. Esta torna-se sobretudo um método
para controlar populações dependentes vistas como ameaçadoras, uma função muito
diferente da que lhe haviam atribuído os filantropos. É nesta altura que a tónica se
205

desloca da ideia de regeneração para a ideia de incapacitação (ibidem: 255-261) ou


mesmo de expiação (Duprat, 1980).
4 Mas é também neste momento que, num movimento paralelo a este, entra em cena a
ciência, através da criminologia positivista, inaugurando o paradigma do «tratamento».
É certo que esta tendência, apesar de se dizer em contracorrente face ao legado
penológico das Luzes, que considerava arcaico e não científico, retomava-lhe na
verdade a lógica e de certa maneira levava-a ao extremo. Porém, o ideal de reabilitação
singrava agora por outras vias, configurando uma nova racionalidade que David
Garland (1995: 186-188) caracterizou por «modernismo penal». Mais do que uma
questão moral, o crime será olhado como uma questão técnica, como assunto de
especialistas. Encarado agora como sintoma de patologias individuais e sociais, o seu
controlo deveria passar por uma intervenção aprofundada, fosse ela definida através do
estudo psicológico e do tratamento comportamental do delinquente, fosse através de
políticas de regulação social. Este projecto modernista estender-se-ia pelo século
seguinte, que longamente lhe conservaria as grandes balizas. Como sustenta Garland
(ibidem: 188-189), um tal programa foi frequentemente subvertido no curso da sua
execução, algumas das suas aplicações foram benignas e produtivas, outras
desumanizadoras e minuciosamente intrusivas; mas o escopo deste projecto entrosava-
se bem num quadro ideológico mais genérico que enfatizava as noções de
universalização da cidadania e de integração social – pense-se por exemplo no
investimento na expansão do Estado-providência.
5 Por volta dos anos 70 entram todavia em declínio os ideais de reabilitação cometidos à
prisão (cf. Allen, 1981). A cadeia afinal reformava menos do que prometera, e é na
medida deste desencanto que ela se des-ideologizará, zelando quando muito pela
dignidade das condições de detenção e orientando-se para pragmáticas mais neutras (cf.
supra: 26-29). Procura-se substituir as penas curtas de prisão por medidas alternativas,
a serem executadas em meio aberto (o que começará a resultar no processo de
bifurcação referido no capítulo 1), aspira-se a um uso parcimonioso e excepcional da
cadeia e haverá mesmo quem lhe anuncie um curto futuro. Só na aparência, portanto,
se recua aos momentos pessimistas de oitocentos, já que a descrença quanto às
capacidades recuperadoras do método-prisão evoluía lado a lado com um optimismo
penal que acreditava caminhar para a redução do seu emprego. O que sucedeu em
breve, já o sabemos, foi precisamente o inverso. A maioria dos países ocidentais
conheceu não o desencarceramento, mas uma expansão verdadeiramente vertiginosa
do universo carceral. E o exemplo dos EUA, onde a população prisional viria a triplicar
num período em que a criminalidade se mantinha globalmente estável (cf. Wacquant,
2000: 76), aconselha-nos de novo a daí não inferir única e inevitavelmente um disparo
nos índices de delinquência. Havia crescido, em contrapartida, o apelo repressivo. O
alongamento da duração das penas (a outra via que compõe o processo de bifurcação, e
um dos factores que inflaciona a demografia carceral) é uma das respostas a este apelo,
continuando ao mesmo tempo a dar aparente guarida à ideia de que a cadeia se reserva
para os delinquentes perigosos, violentos, ou para a grande criminalidade. Na verdade,
assim não é. As reclusas que Tires alberga constituem uma das múltiplas ilustrações do
tipo de populações que as prisões vieram a encerrar neste fim de século: traficantes de
baixo patamar, toxicómanos, pequenos delinquentes contra a propriedade ou versões
contemporâneas dos «pilha-galinhas», sem deixar de incluir, em muitos casos, banais
perturbações da ordem pública. Vários autores assinalam, especialmente para os anos
206

90, não só a dilatação pletórica dos montantes das populações de reclusos e os irrisórios
perfis criminais da maior fatia, mas ainda uma viragem acentuada no seu perfil
sociológico, uniformizado pela presença maciça de pobres, imigrados, minorias
étnicas/«raciais» (e. g. Salas, 1995; Godefroy, 1996; Moccia, 1997; Wacquant, 2000).
Wacquant (2000: 95) vê por isso na prisão actual um lugar central no governo da
miséria e é precisamente a este propósito que invocará, por analogia, a prisão de
meados do século XIX4; Faugeron (1996: 122; 124) alude a um paralelo da mesma ordem,
reportando aspectos da presente dinâmica de encarceramento às formas de regulação
da vadiagem no século passado:
As the crisis in the labour market intensifies the prison is increasingly being used to
deal with and absorb the growing social tensions in many western countries. In
many respects the present situation is reminiscent of the regulation of vagrancy in
the last century. [...] As in the nineteenth century the penal sanction lent legitimacy
to the use of confinement for problem populations.5
6 Trata-se aqui de uma conjuntura, não de uma conjura, embora nesta conjuntura haja
que relevar a consistência de um padrão repressivo que não se produz no vazio, mas
num clima discursivo particular a que os diversos intervenientes nos sistemas de justiça
não deixam de ser sensíveis, por vezes mau grado eles próprios. Como bem o colocou
Dario Melossi,
While it may be that higher imprisonment rates are influenced by the unintended
consequences of a set of micro decisions [...] it is also true that these micro
decisions (not only by court personnel but also by police officers, lawmakers, moral
entrepreneurs, etc.) are not made in a vacuum. They have to be accounted for, on
both legal and moral grounds, within a hegemonic discourse, a discourse toward
which those who administer the criminal and penal justice systems feel particularly
responsible (whether or not they share the wisdom of the contingent political
arrangements of those systems). The concept of a changing hegemonic «vocabulary
of punitive motives» may help us explain the consistent character of all these micro
decisions avoiding at the same time the assumption of conspiratorial intentionality
assigned to those who are entrusted with making these decisions (1993: 273-274) 6.
7 O eixo criminal da droga em boa medida protagoniza esta conjuntura ao dar forma às
ansiedades do fim de século e ao federar muitos dos seus medos, sendo um operador-
chave na cadeia discursiva onde se desliza de difusos sentimentos de insegurança e de
crise moral para demandas punitivas bem mais focalizadas. Sobretudo, a julgar pelos
dispositivos legislativos de excepção (cf. supra: 46-49) e pelo tipo de práticas repressivas
de que o tráfico é objecto, a figura do traficante parece ter-se constituído no protótipo
das ameaças sociais e dos estados perigosos – à maneira do vadio oitocentista, de quem
se tornou como que o equivalente simbólico. Interrogado sobre a actual pertinência das
teses que viram na fundação dos instrumentos penais um meio de gestão da pobreza e
de contenção das «massas laboriosas», o penalista Robert Roth discordava através do
seguinte raciocínio:
Les cibles privilégiées de la répression sont-elles les masses laborieuses? Je ne le
crois pas, car les cibles privilégiées du projet répressif, sur lesquelles on sent
aujourd’hui peser un véritable acharnement, sont plutôt les individus concernés
par le trafic de stupéfiants (in Porret e Winiger, 1994: 192).
8 Sucede porém que em lugar da disjunção e do deslocamento sugerido por Roth, os dois
alvos privilegiados de que fala – um do passado, outro do presente, um de ordem social,
outro de ordem penal, se quisermos – justapõem-se novamente e, sobretudo,
maciçamente. O exame das populações prisionais indica-nos que tal «encarniçamento»
não se exerce propriamente sobre «traficantes» tout court, mas concretamente sobre os
207

traficantes das ditas «massas laboriosas». Na verdade, o dispositivo penitenciário


instalado no século XIX não as encerrava directamente enquanto tais, mas por via de
infracções como a vadiagem e a mendicidade. A justaposição dos dois alvos traduziu-se
então na homogeneidade dos universos carcerais, uma homogeneidade quase perfeita
que se reeditaria um século mais tarde, quando um e outro voltaram a resultar
conjugados numa idêntica sintonia. É assim que vários autores referem o carácter
estratificado de uma «guerra contra a droga» que não é combatida socialmente ao
acaso, tendo as suas baterias sido essencialmente assestadas contra populações julgadas
ameaçadoras, ou seja, aquelas onde a pobreza se concentra (e. g. Goode e Ben-Yehuda,
1994; Tonry, 1995). Sampson e Laub (1993), por exemplo, mostraram que as
circunscrições americanas onde se verifica maior desigualdade racial e uma maior
concentração da chamada underclass são à partida encaradas como contendo
populações perigosas, e em consequência enfrentam quer um controlo superior, quer
uma maior punitividade no processamento judicial. Quer isto dizer que mesmo que as
discriminações a nível individual possam ser insignificantes, um outro padrão emerge
quando elas são aferidas à grande escala das populações e dos seus territórios. É
também ao nível macro que Wacquant (2000: 97-100) disseca nos EUA os mecanismos de
controlo da miséria que passam pela actual «simbiose estrutural e funcional entre o
gueto e a prisão»:
As duas instituições conjugam-se e completam-se pelo facto de servirem cada uma à
sua maneira para assegurarem o pôr de parte (segregare) de uma categoria
indesejável que é percebida como fazendo pesar sobre a cidade uma dupla ameaça,
inseparavelmente física e moral (ibidem: 98).
9 Os capítulos 5 e 6 evidenciaram uma outra ordem de continuidades entre o interior e o
exterior, a das vivências quotidianas e a dos sentidos locais, e também aqui vimos que,
em apenas dez anos, a prisão se tornou inteiramente uma instanciação do bairro. Sob
este prisma, a longa controvérsia acerca dos eventuais efeitos criminogéneos da cadeia,
bem como o não menos longo debate em torno do cardápio ortopédico mais apropriado,
parecem agora deslocados, e os seus termos, de certo modo, caducos. A prisão já não se
recorta do mundo exterior como outrora. Antes se inclui num recorte mais vasto que
em simultâneo separa do tecido social os bairros depauperados com os quais ela veio a
fundir-se. Por isso, antes de exprimir um desvio – os crimes individuais daqueles que
encerra –, ela exprime acima de tudo, com uma crua clareza porventura só
reconhecível nos seus primórdios, uma ampla brecha social; antes de por hipótese
reproduzir o desvio, a cadeia renova e consolida uma distância. É agora, em suma,
produto e produtor de uma fractura colectiva e talvez o sinal de que as mediações de
fundo deixaram de ser tentadas, ou imaginadas.
10 Foi principalmente pela via do tráfico que tiveram lugar os trajectos em massa entre o
bairro e a prisão, em boa parte em razão das rotinas colectivizadoras pelas quais se
exerce a sua repressão e se delimita assim espacialmente o perímetro das «classes
perigosas», consubstanciadas de novo com as fracções mais precarizadas das «classes
laboriosas». Aqui como noutras paragens o eixo da droga destaca-se num apelo
securitário que tem menos por objecto indivíduos do que populações, e num clima de
emergência que já levou a inflexões legislativas no sentido do que alguns autores
consideram uma regressão histórica na filosofia dos sistemas penais (cf. supra:47-48).
Mas ao mesmo tempo ele não é senão um dos componentes de um «alarme social» que
não cessa de conhecer novos avatares, sem todavia mudar de alvo: antes pelo contrário,
salientando-o. Vem isto a propósito de uma recente tendência internacional nas
208

políticas repressivas que, desta feita, ganha corpo a partir de opções explícitas e
centralizadas. Inicialmente circunscrita à cidade de Nova Iorque e a princípio
comentada em inner-circles europeus como uma excentricidade longínqua, cedo porém
atravessaria continentes e receberia o assentimento de um largo espectro de
responsáveis políticos e governamentais do lado de cá do Atlântico, cujas declarações
em matéria de crime e de insegurança parecem afinar crescentemente pelo mesmo
diapasão 7. A estratégia, nos termos em que foi exportada de origem, radica na tese das
«janelas partidas», sustentada por James Wilson e George Kelling (1982), segundo a qual
signos de desordem tais como graffitti, lixo, etc. – e janelas partidas – criam por si
próprias insegurança e além disso um contexto de incentivo à criminalidade mais
grave. A polícia deveria por isso reconsiderar as suas prioridades e deixar de
negligenciar as infracções menores ou de concentrar os seus esforços nas maiores, já
que o combate intransigente às primeiras, sendo um fim em si mesmo, é também um
meio de dissuadir as segundas8. O desenvolvimento prático destas ideias em Nova
Iorque traduziu-se num policiamento fero e intensivo (o que implicou um crescimento
exponencial dos recursos e dos contingentes policiais) perseguindo não só os pequenos
crimes, mas ainda a embriaguez de rua, os pedintes, os «arrumadores» informais de
carros, os que procuram a mesma gorjeta com a lavagem de para-brisas, entre outros de
mesma monta. Tais comportamentos passaram a ser explicitamente caracterizados, por
autoridades públicas e especialistas, como «associados aos sem-abrigo» ou, mais
desassombradamente ainda, «underclass behavior», isto é, como uma exsudação directa
de determinadas populações (na Europa, apesar do endurecimento do discurso público
para com a pequena criminalidade e as «incivilidades», também aqui cada vez mais
enunciadas como um problema capital, ainda se constata uma genérica cautela em
empregar iguais atalhos descritivos9).
11 Estas noções não relevam apenas da espuma demagógica inevitavelmente produzida
nas vagas das democracias contemporâneas e das disputas eleitorais. Reflectem
também uma tendência criminológica de fundo, por vezes integrando directamente o
corpo de ideias que foi apelidado de pós-modernismo penal, por vezes embrechando-se
involuntária mas coerentemente nas suas dobras. O alvo último da penologia
modernista era o indivíduo delinquente, fosse como objecto de tratamento, fosse como
objecto de punição – sempre, porém, como objecto de conhecimento. A «nova
penologia», segundo Jonathan Simon e Malcom Feeley (1995: 165-167), parte ao invés do
pressuposto que existe uma «subpopulação perigosa» representando «um risco
permanente»: a «underclass», ou seja, «um grupo de pessoas mergulhadas na pobreza e
na marginalidade social». Por outras palavras,
[T]here is an entire class that is no longer capable of maintaining basic order among
its members, and needs police and other agents of the state to intervene not just to
deal with crime, but to maintain order (ibidem: 166).
12 Uma tal população convidará então a uma «resposta agregada». De que natureza deverá
ser essa resposta? A ideia não é tratar, ou punir mais severamente (punir sim, mas
«inteligentemente», o que significa, no novo entendimento criminológico, com o menor
custo económico possível para quem pune), nem tão-pouco conhecer, no sentido de
explicar ou compreender. Visa-se antes estabelecer o que os autores chamam de «
managerial control over disorderly populations», ou «coherent risk management strategies»
dirigidas a essas populações (ibidem: 166). Com efeito, a questão do controlo do crime é
inteiramente reformulada em termos de mero cálculo e gestão de riscos, seguindo de
certo modo a lógica empresarial das companhias de seguros, razão pela qual Simon
209

(1988) fala em «actuarial practices». Abandona-se por um lado o projecto de conhecer os


personagens do desvio na sua espessura biográfica, psicológica e social, as causas da
delinquência ou as condições em que se produz, às quais a nova penologia é indiferente;
e, por outro, o projecto «normalizador» que pretendia transformar os indivíduos, o
qual considera dispendioso e difícil. A tarefa a que se propõe é bem mais simples:
Disciplinary practices focus on the distribution of behavior within a limited
population. [...] This distribution is around a norm, and power operates with the
goal of closing the gap, narrowing the deviation, and moving subjects towards
uniformity [...].
Actuarial practices seek instead to maximize the efficiency of the population as it
stands. Rather than seeking to change people an actuarial regime seeks to manage
them in place (Simon, 1988: 773).
13 As estratégias criminológicas actuais são essencialmente de cariz defensivo e de
prevenção situacional, centrando-se no apuramento dos dispositivos de segurança, em
técnicas de evitamento da vitimização, na diminuição da vulnerabilidade de pessoas,
coisas, edifícios e áreas a incidentes criminais, em aumentar os obstáculos e os riscos
para os delinquentes ou em reduzir concreta e localizadamente as oportunidades para
delinquir10 – o que, mesmo que não baixe a prevalência geral do crime, sempre vai
obtendo a sua transferência para outras zonas (cf. Taylor, 1997: 294). E assim como se
desloca para a superfície a questão do controlo, através da assumida indiferença teórica
acima referida, é também à superfície que se mede a eficiência económica dos sistemas
de controlo, calculando por exemplo os custos-benefícios da expansão do aparelho
policial e carceral contra os custos do crime, ambos definidos de maneira restrita e
alheia à orientação ideológica subjacente às próprias formas de computação utilizadas,
tão estruturadas pela desigualdade como o é o modo de operar desses mesmos
sistemas11.
14 Contra os abusos do projecto normalizador modernista, a nova penologia apresenta-se
como ideologicamente neutra e amoral. Como o coloca Garland,
[T]he critique of the treatment model has made in-depth approaches problematic in
principle as well as in practice. In these perspectives, the category of the criminal
shifts from deep subject to shallow opportunist, from psychological man to
situational actor, from a specific individual with a history that has to be explored to
a universalized decision-maker whose behavior can be statistically predicted. [...]
Using the penal process to impose values upon inmates and clients is now viewed as
morally suspect. The moral authority of the system is contested and uncertain. The
idea of a mainstream moral community into which offenders must be integrated
appears dangerously outmoded in the age of multiculturalism, moral
disestablishment, and the deification of «difference» (1995: 194-195).
15 Na mesma linha, a punição constitui um fim em si, realçando-se o seu valor expressivo,
e vem a assentar não na ideia de «reforma», mas nas de dissuasão, incapacitação e
retribuição. Simplesmente, a despeito das intenções iniciais da nova penologia, das
quais não constava punir forçosamente mais, esta concepção casa-se bastante bem com
a injunção repressiva que dilatou extraordinariamente o universo carceral. Citando de
novo Garland,
[A]lthough much of this retributive theorizing emerged as a liberal reaction to the
excesses of the therapeutic state, the new respectability it has led to punishment
would seem to have encouraged more punitive government discourses and policies.
What was originally intended as a liberal critique of modernist reasoning [...] has
been taken up by a more punitive anti-modernism, which emphasizes the
210

importance of punishment as a symbol of sovereign power and social authority


(ibidem: 192).
16 De modo semelhante, a ênfase na desordem – nas pequenas desordens –, onde a janela
partida surge como indício e metáfora do caos, em lugar de o prevenir da maneira mais
económica acicata o desejo de ordem, afinal bem perdulário, como o exemplificou a
experiência do «estado policial» nova-iorquino; apontar populações e designá-las, a
priori e colectivamente, de desordeiras e perigosas cauciona a estigmatização de que já
são objecto e legitima a sua perseguição indiferenciada, por muito que a intenção se
limite a «gerir estrategicamente» o «risco permanente» que supostamente
representam. Por isso, porque se casa bem com o populismo penal – e têm razão Simon
e Feeley (1995: 169) ao alegar que os discursos nacionais sobre o crime são hoje
populistas, exclusivos e centrados no medo, enquanto os da era modernista eram
inclusivos e reflectiam sobretudo os medos e as aspirações das élites –, a nova penologia
teve de facto sucesso no discurso público e impacte nas políticas institucionais, ao invés
do que os mesmos autores sustentam12. Neste quadro penológico a indiferença teórica
de que falei redobra-se aliás de uma indiferença cívica, casando-se bem, por fim, com
vulgares pressupostos de uma diferença fundamental e inultrapassável entre
populações, e sublinhando as linhas divisórias, reais e imaginadas, que as separam. Nas
sugestivas palavras de, mais uma vez, Simon e Feeley:
In the early twentieth century, the problem of crime constituted a powerful reason
to expand the role of government in fostering welfare in order to integrate
marginal members of society into the mainstream. But by the end of the century it
has become the opposite. The new penology divorces crime policy from concern
with social welfare. Increasingly, crime policy is conceived of as a process for
classification and management of populations ranked by risk; in need of
segregation, not integration. Indeed this new direction may reflect [...] «the decline
of a politics of remedy» (ibidem: 168),
17 ... e o advento de uma política da indiferença, poder-se-ia acrescentar, apenas sensível
aos signos da ordem e da desordem. Estes, de resto, transformaram-se na medida em
que o limiar entre ambas não só se deslocou, recuando para «janelas partidas» – e, ao
deslocar-se, foi simultaneamente traçado com clareza –, como ganharia um rosto,
indicado com igual precisão: o rosto da pobreza, da underclass; ou do ghetto, da cité, dos
bairros deserdados. A despeito de todas as diferenças nacionais e das respectivas
modulações políticas e repressivas (e tais diferenças ainda são grandes), elas não
deixam de acusar uma atmosfera comum, chamando por sua vez à memória aquela que
envolveu os finais do século passado. Certos aspectos, em todo o caso, assemelham-se:
além de as cadeias serem de novo basicamente um lugar de segurança e de
acantonamento de «classes perigosas» – é de facto mais de «classes» do que de
«indivíduos» que se trata –, hoje como outrora é menos incisiva a fronteira entre os que
se acham presos e os que estão em liberdade do que entre as populações que têm a
prisão no horizonte e as que a não têm13. Para lá da sua complexidade e com todas as
suas especificidades, Tires e as reclusas que encerra são disso um sinal e um exemplo.
211

NOTAS
1. (Itálicos no original.) Referia-se concretamente, no primeiro caso, a modos de representação
implicados na etnicidade e no nacionalismo e, no segundo, aos que deixam na sombra a pobreza e
as materialidades do poder.
2. Susana Pereira Bastos (1997) mostrou como ambas as figuras, que desempenhavam funções
rituais importantes junto das classes populares, foram por esta altura «dessacralizadas» pelas
élites. Mesmo assim, quando mais tarde, por altura dos anos 30, estes personagens voltam a ser
causticados com redobrado vigor atribuindo-se-lhes um potencial contaminador, tais classes
continuaram pouco permeáveis às representações dominantes de então.
3. Note-se de passagem que assim como nesta economia repressiva se manifesta em vários
contextos diluída a distinção entre «classes perigosas» e «classes laboriosas», é também nela que
por esta altura se mostra especialmente periclitante a velha destrinça entre pobres merecedores
e não-merecedores, entre inaptos para o trabalho e ociosos – uma destrinça moral já de si
alheada das condições laborais instáveis que então a relativizavam (Castel, 1991; Morris, 1994).
4. Para o autor, em boa medida a prisão gere hoje os segmentos inferiores do mercado de
trabalho mais afectados pelas mutações da sociedade industrial e da relação salarial. Assim é a
vários níveis, começando pelo nível micro quando, para infracção igual, tendem a ser mais
severamente sancionados pelos tribunais os indivíduos sem trabalho ou com trabalho precário e
irregular (ibidem: 108-110). No caso dos EUA, a desmesura do encarceramento teria feito baixar
em dois pontos percentuais a taxa de desemprego. Sem esta compressão artificial, que subtrai
milhões de pessoas a esse mercado, os níveis de desemprego americanos em quase todo o período
1974-1994 foram afinal superiores aos da União Europeia (uma vez estatisticamente controlado
nos mesmos termos o efeito carceral), ao contrário do que correntemente se supôs (ibidem: 96).
Em contrapartida, o boom do sector carceral e a correlativa necessidade de recrutar pessoal
penitenciário – como guardas, por exemplo – tornaram-no no terceiro maior empregador
daquele país (ibidem: 83).
5. É de precisar, não divergindo mas antes convergindo ao fim e ao cabo com as asserções de
Wacquant e de Faugeron, que a relação entre níveis de desemprego e de encarceramento não é
linear – ao invés do que parece decorrer do argumento há muito desenvolvido por Georg Rusche
e Otto Kirchheimer (1939), segundo quem a prisão participaria directamente no controlo do
mercado de trabalho, enchendo-se para responder ao excesso de mão-de-obra e esvaziando-se
quando ela é escassa, razão pela qual os índices prisionais e de desemprego variam no mesmo
sentido. Se variam conjuntamente, contrapõem outros autores (e. g. Box e Hale, 1982), é por
interposta atmosfera ideológica, que tende a mudar em ciclos económicos onde se verifica um
alargamento substancial das populações economicamente marginais. Essa resposta é assim
ideologicamente motivada pelo receio de um disparo da delinquência face a essa expansão
(ibidem: 22).
6. (Itálicos no original.)
7. Baptizada de «tolerância zero» pelo presidente de câmara nova-iorquino Rudolph Giuliani,
seria aliás directamente difundida nas capitais europeias (Lisboa incluída, sendo raras as teorias
que usufruem de cobertura televisiva em prime-time , como então sucedeu) pelos seus
coadjuvantes policiais entretanto tornados consultores internacionais num bem sucedido
circuito descrito em detalhe por Wacquant (2000: 18-67). As razões deste sucesso derivam do
facto de à doutrina assim intitulada se ter imputado o mérito da descida dos índices de
criminalidade em Nova Iorque – uma atribuição apressada já que tal descida se havia iniciado
antes da sua aplicação; foi igualmente abrupta em contextos que a não conheceram (ibidem: 17)
ou mesmo naqueles onde baixou o número de agentes policiais (Young, 1999: 125); e foi ainda
212

mais significativa numa cidade como S. Francisco, que enveredou por uma via nos antípodas
daquela, tendo para mais reduzido, em lugar de aumentado, o recurso à prisão – uma excepção,
portanto, no panorama geral (cf. Austin, 1999). Terão sido factores estruturais vários, e não
formas leoninas de policiamento, os principais responsáveis pela queda daqueles índices, factores
aos quais Hamid (1998: 133-134; 173-184) acrescenta um dado tanto mais inesperado quanto é
precisamente para Nova Iorque que é referido: a subterrânea reconversão interna de gangs que, a
par de instituições religiosas e outras instâncias, se empenharam na revitalização das
comunidades locais a que pertenciam, desenvolvendo acções cívicas e programas de cariz
comunitário. Assim, resume Hamid,
[Mayor Rudolph Giuliani and his police commissioners] claimed that their unrelenting
prosecution of “quality of life” misdemeanors such as panhandling on the subway or drinking a
beer in public have deterred more serious offending. But gangs may have helped more than the
police to produce this outcome (ibidem: 181-182).
8. A medida da difusão da tese das «janelas partidas» pode ser apreciada, a título de exemplo, nas
declarações de um candidato à Câmara Municipal do Porto em visita a um bairro degradado da
cidade, declarações essas onde a teoria parece ser subscrita. Depois de sustentar que «o principal
problema do [Bairro do] Aleixo é a droga», terminava defendendo que «os vidros partidos trazem
droga». Na mesma visita asseverara ainda que «[t]amanha degradação é má não só para quem
vive nos bairros mas também para o resto da população, porque cria focos de insegurança que se
alastram para toda a cidade» (in jornal Público, 16 de Maio de 2001).
9. Tal não impede contudo que os atalhos se manifestem nas medidas tomadas: veja-se por
exemplo o recentíssimo recolher obrigatório para menores de treze anos decretado por câmaras
municipais francesas para alguns bairros das respectivas circunscrições, uma decisão justificada
tanto com a intenção de proteger os menores como dos menores. A medida entrou em vigor após
uma breve celeuma suscitada pelo facto de se destinar a ser aplicada não de acordo com
princípios universalistas e a indivíduos, mas selectivamente e a populações.
10. Este é o denominador comum de várias teorias, conhecidas pelas designações de «escolha
racional» (Cornish e Clarke, 1986), «controlo situacional», «actividades de rotina» (Clarke e
Felson, 1993) e «espaço defensável» (Coleman, 1985).
11. Além de mostrar o enviesamento dessas usuais contabilizações, em última instância em
detrimento de populações desmunidas ao deixarem de lado variáveis e comparações relevantes,
Ian Taylor (1997: 295-297) refere trabalhos que evidenciam, num outro âmbito, um exercício
amplamente estratificado do controlo e uma repressão diferencial: apertada, eficiente e
draconiana para as fraudes no domínio das prestações sociais (de que aquelas populações
usufruem); lassa, ineficiente e de resultado magnânime para as fraudes e evasões fiscais, cujos
«custos» são infinitamente superiores.
12. Simon e Feeley afirmam que mau-grado ter vindo instilar racionalidade na administração dos
recursos e o sucesso que obteve junto dos profissionais da justiça e na comunidade académica, a
nova penologia não logrou penetrar na retórica pública e emergir como estratégia hegemónica
na política criminal (apesar de os próprios autores providenciarem abundantes exemplos do
contrário, muito embora lamentem a sua incorporação, que penso não ser surpreendente, na
deriva punitiva). Todo o artigo tem por objecto este problema, isto é, as razões pelas quais a
mensagem não passou. E de acordo com Simon e Feeley não teria passado porque a penologia
pós-moderna não tem para oferecer ao público uma narrativa cultural satisfatória acerca da
delinquência, os seus porquês, uma «verdade acerca do crime» (ibidem: 150), na qual
deliberadamente não está interessada. Creio que a mensagem passou, com algumas distorções é
certo, mas com uma rapidez fulgurante, porventura porque também o público não estará já
interessado na «verdade acerca do crime», mas tão-só em mantê-lo à distância. Creio sobretudo,
tal como Young, que a tendência punitiva não é uma anomalia face ao desenvolvimento da
tendência «actuarial»; mas diversamente deste autor não o atribuo apenas a uma mera co-
213

existência das duas, em que uma e outra como que se afirmariam autonomamente e de costas
voltadas entre si. A definição de alvos colectivos parece-me constituir uma matriz comum
decisiva para permitir toda a sorte de pontes que se têm estabelecido entre ambas:
From an actuarial point of view the management of the underclass is clearly a problem of hiving
them off, creating gates and barriers which keep them in their own reserves, causing problems
for themselves and minimizing problems for others. From the point of view of essentialism and
the demonization of the underclass, however, it is necessary that the forces of law and order
enter their territory and hand out justice often in a draconian and indiscriminate fashion. Both
of these tendencies occur in late modern societies (1999: 119).
13. Agradeço a este propósito um comentário de Cristiana Bastos.
214

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Agradecimentos

1 Agradeço ao meu orientador, Miguel Vale de Almeida, o ser a referência concreta do


meu ideal de supervisor académico; aos meus colegas, Manuela Palmeirim e Luís Cunha,
a inesgotável boa vontade; a Moisés Martins, Carolina Leite e Albertino Gonçalves, a
atenção de aceitar mais uma tarefa, a paciência de uma leitura minuciosa; ao meu
irmão António Cunha, a garantia de um pronto-socorro técnico; a José J. Semedo
Moreira, o permanecer um prestável insider da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais; a
Michael Herzfeld, a gentileza com que proporcionou pontes e propôs contactos; ao staff
da prisão, a rédea livre consentida e a disponibilidade manifestada; acima de tudo às
reclusas de Tires, a quem devo este trabalho.
2 Atrás da cortina estão, indefectíveis, os amigos e o Jean-Yves, que acompanharam a tese
passo a passo. Agradeço-lhes terem suportado entretanto a minha monomania.
3 Sou ainda devedora de instituições: da Wenner-Gren Foundation for Anthropological
Research (Gr. 6099), do Centro de Ciências Históricas e Sociais (Universidade do Minho)
e do Institut d’Ethnologie Méditerranéenne et Comparative (Université de Provence/
CNRS).

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