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14 de Fevereiro de 2021

Redescobrindo o Filósofo Brasileiro Mário Ferreira dos


Santos: Uma pontual abordagem criminológico - cultural

Mário Ferreira dos Santos (1907 – 1968) é um dos poucos estudiosos


no Brasil que podem realmente ser chamados de Filósofos e não de
meros professores de filosofia ou história da filosofia [1], isso porque
nunca se limitou a ruminar os pensamentos alheios (filosofia bovina),
mas foi capaz de construir uma linha própria coerente e sólida.

Infelizmente, em meio à barbárie que toma conta inclusive dos meios


considerados cultos ou acadêmicos, um pensador desse quilate
incrustado qual um diamante raro em nosso solo tupiniquim, passa por
um período de esquecimento no qual muitas pessoas sequer sabem de
quem se trata. É bem verdade que um movimento de redescoberta vem
se erigindo. Para esse movimento se pretende contribuir, ainda que
muito singelamente, trazendo neste texto uma abordagem pontual do
referido autor a respeito da visão social, cultural e, consequentemente,
jurídico - criminológica, do criminoso no Brasil e não só no Brasil, mas
também em outras paragens. Este é, aliás, um dos pontos em que se
pode aquilatar a grandeza da obra de Mário Ferreira dos Santos, pois
que, escrita em outros tempos, permanece atual, mais que isso, se
atualiza cada vez mais, o que é típico dos grandes pensadores, das
grandes obras, ou seja, sua perpétua atualidade, enquanto que os
medíocres só produzem o que é passageiro, modismos e maneirismos
mesmo no campo intelectual.

No que diz respeito à figura do criminoso e sua abordagem na


sociedade moderna, Mário Ferreira dos Santos chama a atenção para a
tendência de glamorização e super - proteção concomitante com a
/
humilhação e redução à condição de inferioridade do homem honesto.
Toma-se a liberdade de transcrever seu texto:

“Verifica-se no Ocidente, depois do que sucedeu em épocas passadas,


que voltamos, agora, principalmente, os olhos para o criminoso. A
lesão em si torna-se secundária, e o objeto da lesão também. Uma
benevolência crescente vai cercando o criminoso, e há tendência para
considerá-lo apenas um doente mental. Como a ideia de liberdade foi
falsificada, como os que falam nela, pouco dela entendem e menos
ainda entendem os que a combatem, como a confusão é reinante neste
setor, como se tende a transformar o homem apenas num feixe de
reflexos, numa coisa que reage a outras coisas, e não num ser que
dispõe de inteligência e de vontade, essas últimas, reduzidas até a
meros reflexos e nada mais, a benevolência quanto ao criminoso
cresceu além dos limites justos, porque, realmente, havia, em nossos
antepassados, uma visão exagerada em relação ao criminoso, a ponto
de as penas serem desproporcionadas à lesão do crime.

Ora, nem tanto à terra nem tanto ao mar. Se uma acentuada


benevolência, dentro de limites justos, se impunha, não havia
necessidade de cair de um excesso a outro excesso. Hoje há uma
tendência viciosa para tornar o criminoso mais numa vítima do que
num responsável. E isso só tem servido para estimular o crime. O crime
multiplicou-se e atingiu índices apavorantes. Já há quem pergunte se a
sociedade humana, dentro de alguns decênios, não contará só com
delinquentes e loucos, cujo número cresce em proporções
avassaladoras. O número dos que se salvam diminui
assustadoramente, apesar da repressão policial e de toda a propaganda
dos amigos dos criminosos, dos que postulam penas cada vez mais
suaves, se não terminarem alguns por pedir estátuas aos criminosos,
como já se tentou erguer a um criminoso, que habilmente abalou
muitas consciências.

Não se pense que defendemos excessos. Queremos sempre permanecer


no meio justo e bom, conforme a grande máxima pitagórica. E bom
aqui é o justo, o conveniente, visto com prudência e moderação, porque
deve haver até moderação na benevolência. A magnanimidade e a /
clemência pertencem à moderação, sim, mas exigem a justiça, a
prudência e a coragem, para que não se tornem viciosas. A
magnanimidade e a clemência têm de se manifestar contidas na justiça,
de modo a nunca ofendê-la.

Impõe-se abandonar a demagogia com os criminosos. Eles precisam do


nosso auxílio, sem dúvida, mas o que é mister, do lado da sociedade, é
que não estimulemos a sua multiplicação. Que adiantaria lutar para
salvarmos os que sofrem de uma determinada doença, se nos
afanarmos ainda em propagá-la? Salvaremos ou melhoraremos os
indivíduos, mas prepararemos o terreno para que os criminosos não se
multipliquem”. [2]

Santos cita Pitágoras, mas podemos indicar outro sábio antigo,


Aristóteles, que vislumbrou o equilíbrio virtuoso da mediania:

“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a


escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a
mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional
próprio do homem dotado de sabedoria prática. É um meio – termo
entre dois vícios, um por excesso e outro por falta, pois nos vícios ou há
falta ou há excesso daquilo que é conveniente no que concerne às ações
e às paixões, ao passo que a virtude encontra e escolhe o meio – termo.
Portanto, acerca do que ela é, isto é, qual é a definição de sua essência,
a virtude é uma mediania, porém com referência ao sumo bem e ao
mais justo, ela é um extremo”. [3]

E não basta ter a noção de que é preciso buscar a mediania. Necessário


se faz saber que esta é uma busca relacional que se opera na interação
entre os diversos vícios e virtudes em busca do justo proporcional.
Como lembra Chesterton, “todo vício é uma virtude enlouquecida” e
elas enlouquecem “porque foram isoladas uma da outra e estão
circulando sozinhas”. [4]

/
Não é de hoje e não é somente em terras tupiniquins (embora por aqui
as coisas tendam a ganhar contornos intensos) que a glamorização do
criminoso, do rebelde e do violento é operada por intelectuais e pelo
mundo da arte. Dorothy e Thomas Hoobler expõem com maestria essa
prática tão comum na Europa da “belle epoque”, já nos fins do século
XIX quando anarquistas terroristas, ladrões, assassinos e
transgressores de toda espécie eram convertidos em herois ou estrelas
no mundo intelectual, artístico e jornalístico. [5]

Essa situação incentiva à proliferação do que se convencionou chamar


de “Síndrome ou Complexo de Heróstrato”. Heróstrato era um pastor
de Éfeso que incendiou o Templo de Artemisa, a fim de ganhar
notoriedade a qualquer preço, ainda que com sua própria destruição
pessoal. [6] Num mundo em que a fama é um valor inestimável e no
qual, como sempre foi, a grande massa de pessoas é incógnita, a
tentação de obter fama, mesmo que por meios vis, é muito grande,
ainda mais quando os espaços culturais e midiáticos estão postos à
disposição para satisfazer essas tendências patológicas.

Ora, ninguém pretende pregar um retorno ao Talião ou uma


organização social e jurídica paleorrepressiva. Mas, é preciso não
permitir que um movimento pendular de extremos se produza ou
prossiga. Agora vemos um extremo de benevolência e, pior que isso, de
glamorização, de valorização, de exposição midiática do criminoso
como se um astro fosse. Ao mesmo tempo vemos um desprezo pelo
homem trabalhador, por aquele que cumpre com seus deveres e que
obedece às leis. Essa mistura é explosiva, inclusive para a criação de
um clima propício para que o pêndulo se mova para o outro extremo
vicioso. É isso que visa a advertência prudente de Mário Ferreira dos
Santos quando clama por um equilíbrio virtuoso. A barbárie pode se
manifestar tanto na extrema tolerância com o vício, como na extrema
intolerância com este.

Referências
/
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. Ed. Trad. Pietro Nassetti. São
Paulo: Martin Claret, 2001.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo:


Mundo Cristão, 2008.

HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Os Crimes de Paris. Trad.


Maria José Silveira. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

PESSOA, Fernando. Heróstrato e a busca da imortalidade. Lisboa:


Assírio e Alvim, 2000.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São


Paulo: É Realizações, 2012.

[1] Isso quando são bons professores, porque há casos de professores


que odeiam classes (não sei se de aula ou somente as médias), de forma
a sequer apresentarem uma vida coerente com seu “pensamento” (sic).

[2] SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São
Paulo: É Realizações, 2012, p. 86 – 87.

[3] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª. Ed. Trad. Pietro Nassetti.


São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 49.

[4] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Almiro Pisetta. São Paulo:


Mundo Cristão, 2008, p. 52.

[5] HOOBLER, Dorothy; HOOBLER, Thomas. Os Crimes de Paris.


Trad. Maria José Silveira. São Paulo: Três Estrelas, 2013, “passim”.

Cf. PESSOA, Fernando. Heróstrato e a busca da imortalidade. Lisboa: Assírio e Alvim, 2000,
“passim”. Fernando Pessoa busca nesse livro empreender a compreensão da busca pela
imortalidade pelo homem através dos mais diversos meios, tomando como grande parábola
a narrativa da história de Heróstrato. Como é natural, o literato acaba se concentrando mais
/
nessa busca no campo das letras, mas reconhece a existência de outros caminhos, inclusive
tortuosos, nessa empreitada.

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em


Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e
Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia
e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós –
graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e
Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.

Disponível em: https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/148920109/redescobrindo-o-


filosofo-brasileiro-mario-ferreira-dos-santos-uma-pontual-abordagem-criminologico-cultural

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