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Concepções formadoras do

pensamento do Destino Manifesto

Repensando as
Américas
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993.

 Etnocentrismo – o espírito clássico


(p. 21) “A diversidade humana é infinita: se quero
observá-la, por onde começar? Digamos, para entrar
na matéria, que é preciso distinguir entre duas
perspectivas (conexas entre si). Na primeira, a
diversidade é a dos próprios seres humanos; aí o
que se quer saber é se formamos uma única ou
várias espécies ( no século XVIII o debate se
formulava em termos de ‘monogênese’ e
poligênese’); e, supondo uma só espécie, qual o
alcance das diferenças entre os grupos humanos.
(p. 21) (...) Quanto à segunda perspectiva,
ela desloca o centro da atenção para a
questão dos valores: existem valores
universais, e portanto uma possibilidade de
levar os julgamentos para além das
fronteiras, ou todos os valores são relativos
(a um lugar, a um momento da história, ou
mesmo à identidade dos indivíduos)?
(p. 21) (...) E caso se admita uma escala
universal de valores, qual a sua extensão, o
que engloba, o que exclui? O problema da
unidade e da diversidade se transforma
então no problema do universal e do
relativo;
(p. 21) A opção universalista pode se encarnar em
diversas figuras. O etnocentrismo merece ser posto
à frente, pois é a mais comum dentre elas. Na
acepção dada aqui a esse termo, consiste em, de
maneira indevida, erigir em valores universais os
valores próprios à sociedade a que pertenço. O
etnocentrismo é, por assim dizer, a caricatura
natural do universalista: este, em sua aspiração ao
universal, parte de um particular, que se empenha
em generalizar;
e tal particular deve forçosamente lhe ser
familiar, quer dizer, na prática, encontra-se
em sua cultura. A única diferença – mas,
evidentemente, decisiva – é que o
etnocêntrico segue a linha do menor esforço
e procede de maneira não crítica: crê que
seus valores são os valores e isso lhe basta;
nunca busca verdadeiramente prová-lo.
(p. 22) O etnocentrismo, portanto, tem duas facetas: a
pretensão universal, de um lado; o conteúdo particular (o mais
freqüentemente nacional), de outro. Os exemplos de
etnocentrismo são inumeráveis, tanto na história do
pensamento na França como em outros países, não obstante,
quando se busca a ilustração mais apropriada – e no momento
não se trata de nada além de uma ilustração que
simplesmente permita fixar as idéias – a escolha parece
claramente indicada: será o que Hyppolite Taine chamava, em
Les origines de la France contemporaine, de ‘espírito clássico’
o dos séculos XVII-XVIII e que às vezes é identificado (no
estrangeiro) como espírito francês.
(p. 22) É preciso dizer de início que a grande
corrente de pensamento dessa época se
dedica a representar o homem ‘em geral’,
para além de suas variantes; a própria língua
se quer universal, pois é língua da razão; e
de fato, é praticada fora das fronteiras
francesas”
A origem dos valores

(p. 24) “Quais são os argumentos de Pascal? Ele diz: ‘há três
meios de crer: a razão, o costume, a inspiração. A religião
cristã, única a possuir a razão...’ (245): mas isto nada mais é
do que uma petição do princípio. Ou ainda: ‘Falsidades das
outras religiões. – elas não possuem testemunhos’ (592).
‘Maomé, não anunciado; Jesus Cristo, anunciado’ (599). A
religião cristã ‘é a única que sempre foi’ (605):
(...) O raciocínio de Pascal é circular, e nisso é exemplar do
espírito etnocêntrico: de início definem-se os valores absolutos
a partir de seus próprios valores pessoais, e finge-se em
seguida julgar seu próprio mundo com a ajuda desse falso
absoluto.
‘Nenhuma religião, a não ser a nossa, ensinou que o
homem nasce em pecado, nenhuma seita de
filósofos disse isso: nenhuma, portanto, disse a
verdade’ (606). A ‘verdade’ é definida pelo ‘nossa’, o
que não impede que essa ‘verdade’ venha em
seguida reforçar o prestígio do ‘nossa’, enfeitando-a
com suas belas cores! O universalismo de Pascal é
da espécie mais banal: a que consiste em identificar,
de maneira não crítica, seus valores com os valores;
em outras palavras, o etnocentrismo.” (p. 24)
(p. 25) “La Bruyère, por sua vez, tem consciência da
diversidade dos costumes, e segue Montaigne na
acolhida favorável reservada às diferenças. Todos
os que não se parecem conosco, chamamos de
bárbaros, o que é um grande erro; ora, nada seria
mais desejável do que ver as pessoas
‘abandonarem esse preconceito em favor de seus
costumes e suas maneiras, que, sem qualquer
discussão, não apenas lhes fazem pensar que são
os melhores de todos, mas quase lhes fazem decidir
que tudo o que não lhes é conforme é
desprezível’(‘Discours sur Théophraste’, p. 11).
(p.25) E está pronto a condenar o etnocentrismo
estreito dos outros: ‘O preconceito do país, junto ao
orgulho da nação, fazem-nos esquecer que a razão
vive em todos os climas e pensar que ela é justa em
todos os lugares onde há homens: não gostaríamos
de ser tratados assim por aqueles que chamamos
de bárbaros; e se existe em nós alguma barbárie,
consiste em se espantar de ver outros povos
raciocinar como nós’ (‘Des jugements’, 22, p. 351).
(p. 25) Bárbaros são os que crêem que os outros, a
sua volta, são bárbaros. Todos os homens são
iguais, mas nem todos o sabem; alguns se crêem
superiores aos outros, e é precisamente nisso que
são inferiores; portanto, nem todos os homens são
iguais. Como se vê, essa definição não deixa de
colocar alguns problemas lógicos, já que o fato de
observar que certos povos se crêem superiores
quando, na verdade, são inferiores, leva-me a
enunciar um julgamento de gênero dos que
condeno:
(p. 25) Os outros são inferiores; seria preciso
que a constatação desse tipo de
inferioridade fosse explicitamente
distanciada dos comportamentos visados por
essa mesma constatação. A partir daí,não se
teria nada a comentar de tal programa, se
não fosse essa fórmula final, ‘raciocinar
como nós’.
O geral pelo particular

(p. 29) “No entanto, a crítica ao etnocentrismo é uma


coisa bem corrente no século XVIII; Fontenelle,
Mostequieu a isso habituaram os leitores. A crer em
Helvétius, trata-se de um defeito de que nenhum
país se pode dizer livre. ‘Se eu percorrer todas as
nações, encontrarei em todos os lugares usos
diferentes, e cada povo, em particular, crer-se-á
necessariamente de posse do melhor uso’ (De
l’espirit, II, 9, t. I, p. 245).
(p. 29) ‘Cada nação, convencida de que
apenas ela possui a sabedoria, toma todas
as outras por loucas, e parece bastante com
o indígena que, persuadido de que sua
língua era a única do universo, concluiu daí
que os outros homens não sabiam falar’ (II,
2l, t. I, p. 374).”
Cientificismo

 Natureza contra moral


(p. 32) “Diderot aborda a questão do universal e do
relativo em seu Suplèment au voyage de
Bougainville, onde, sob o disfarce de discussões
exóticas e diálogos um tanto maliciosos, ataca um
problema grave: o do fundamento da ética face à
pluralidade das civilizações, e portanto, afinal de
contas, o das normas morais. Já que as diferentes
sociedades não partilham dos mesmos valores,
como podemos apreciá-las e julgá-las?”
A liberdade

(p. 41) “Assiste-se aqui à formulação de uma


oposição decisiva, que prefigura grandes conflitos
nos dois séculos seguintes. Diderot e Rousseau
estão, ambos, decididamente do lado da
modernidade, por um conhecimento racional
liberado da tutela da religião. Mas Diderot acredita
no determinismo integral e praticamente não
concede espaço à liberdade humana; com isso a
ciência, que é a mais apta a nos revelar o
funcionamento desse determinismo, toma o lugar da
ética e se encarrega de formular os objetivos do
homem e da sociedade.
(p. 41) Já Rosseau, sem negar a existência de um
determinismo, físico ou social, reconhece que a seu
lado está a liberdade; e mais, seguindo
Montesquieu, faz dela o traço distintivo da
humanidade. Ora, se disponho de uma certa
liberdade, posso agir em função de minha vontade e
escolher meus atos: assumo a responsabilidade por
eles e com isso aceito que sejam julgados bons ou
maus.
(p. 41) Com isso, a ética é reconhecida em sua
autonomia, irredutível à ciência, exercendo sobre
esta não uma tutela, à maneira da religião, mas um
direito de olhar, que permite julgar se os resultados
obtidos são úteis ou ameaçadores. Segue-se que,
se Diderot e Rousseau pertencem, tanto um como o
outro, à filosofia do Iluminismo no sentido amplo,
apenas Rousseau é representante do humanismo.”
O Estado universal

(p.44) “Saint-Simon passa rapidamente pelas


relações entre esse Estado europeu e o resto do
mundo; mas é claro que a unificação final não lhe
coloca problemas de consciência. ‘Povoar o globo
com a raça européia, que é superior a todas as
outras raças de homens; torná-lo viajável e habitável
como a Europa, eis a tarefa através da qual o
parlamento europeu deverá continuamente exercer
a atividade da Europa, e mantê-la sempre (II, 5, p.
293).
(p. 44) Nada se sabe da maneira pela qual as
raças inferiores ‘despovoarão’ o resto do
mundo; adivinha-se, no entanto, que esse
Estado universal será modelado à imagem
da Europa”.
(p. 45) Trata-se, primeiro, da vida industrial e
portanto de uma certa organização do trabalho;
segundo, de uma homogeneização dos gostos
estéticos; terceiro, do acordo internacional sobre o
conteúdo e os métodos da ciência. A isso se
acrescenta, em quarto ligar, a preferência por uma
forma política, a república democrática; e, em quinto,
uma moral que não se funda mais em uma teologia
qualquer, mas na ‘religião da humanidade’
recomendada por Comte.
(p. 45) Cento e cinqüenta anos depois da
formulação dessas profecias, estamos em
situação de reconhecer que Comte viu
corretamente: mesmo que os domínios
assim distinguidos não evoluam todos à
mesma velocidade, a humanidade é hoje em
dia incontestavelmente mais homogênea, em
todos esses aspectos, do que à época em
que ele escrevia.
(p. 45) Comte destaca um segundo fator de
unificação: o papel desempenhado pelo
passado, ou melhor, por sua melhor
memorização. A presença da lembrança
diminui as possibilidades que a todo instante
se abrem diante de nós: o passado
‘regulariza silenciosamente o porvir’
(trabalho. II, p. 465).
(p. 45) Não obstante, não se deve confiar
demais na marcha natural da história; deve-
se ajudá-la a seguir reta para o fim que é o
seu. As observações de Comte desdobram-
se assim em um programa de ação,
destinado, em suma, a facilitar e acelerar a
marcha da história.”
A raça e o racismo

 Racismo e racionalismo
(p. 108) “A doutrina racialista, que nos
preocupará aqui em primeiro lugar, pode ser
apresentada como um conjunto coerente de
proposições, que se encontram todas no ‘tipo
ideal’ ou versão clássica da doutrina, podendo
algumas estar ausentes em certas versões
marginais ou ‘revisionistas’. Essas proposições
podem ser reduzidas a cinco”
 1 – A existência das raças;
 2 – A continuidade entre físico e moral;
 3 – A ação do grupo sobre o indivíduo;
 4 – Hierarquia universal dos valores;
 5 – A política baseada no saber:
(p. 110) “As proposições de 1 a 4, enumeradas até
aqui, apresentam-se como uma descrição do
mundo, como constatações de fato. Aí se funda uma
conclusão, que forma a quinta e última proposição
de doutrina, a saber, que se deve desenvolver uma
política que ponha o mundo em harmonia com a
descrição precedente.
(p. 110) Tendo estabelecido os ‘fatos’, o
racialista tira deles um julgamento moral e
um ideal político. Assim, a submissão das
raças inferiores, ou mesmo sua eliminação,
pode ser justificada pelo saber acumulado a
respeito das raças. É aqui que o racialismo
junta-se ao racismo: a teoria dá lugar a uma
prática.”
(p. 111) “Diversos traços em comum
indicam que a família espiritual do racialismo
é o cientificismo.”
Formulação do racialismo

(p. 115) “Racionalidade e sociabilidade,


comuns a todos os homens e solidárias entre
si, estão, portanto, mais ou menos
presentes, o que permite a Buffon opor a
‘civilização’, ou a ‘polidez’, à ‘barbárie’ e à
‘selvageria’. Mais exatamente, todo uma
série de estados intermediários conduzem
do cume à base.
(p. 115) ‘Vai-se por degraus imperceptíveis das
nações mais esclarecidas, mais polidas, aos povos
menos industriosos, destes outros mais grosseiros,
porém ainda submetidos a reis e a leis; destes
homens grosseiros, aos selvagens’ (p. 91). Toda a
exposição de Buffon sobre as ‘Variedades na
espécie humana’ (é o título do capítulo), se articula
sobre essa hierarquização: no cume se encontram
as nações da Europa Setentrional, logo abaixo os
outros europeus, depois vêm as populações da Ásia
e da África, e, na parte mais baixa da escala, os
selvagens americanos.”
Determinismo Científico

(p. 128) “ A doutrina racialista, como se viu,


esta ligada desde seu início ao
estabelecimento, das ciências, ou mais
exatamente, ao cientificismo, quer dizer, a
utilização da ciência para fundar uma
ideologia. A presença concomitante de
Buffon e Diderot na Encyclopédie não é por
acaso.
(p. 129) Reencontraremos essas duas
doutrinas ainda mais estreitamente
entrelaçadas no segundo período,
culminante, do pensamento racialista a
segunda metade do sec. XIX. É portanto
necessário examinar as premissas científicas
da doutrina das raças naqueles que serão
seus pregadores mais zelosos: Taine,
Renan, Goubineau.
(p. 129) O cientificismo repousa essencialmente, já
se viu, em dois postulados: o determinismo integral
e a submissão da ética à ciência. O grande profeta
do determinismo na segunda metade do sec. XIX é
também um dos racialistas mais influentes:
Hyppolite Taine. A se acreditar nele, nenhum
acontecimento ocorre sem causa; nossas próprias
maneiras de pensar e de sentir, sem falar em
nossos atos, não são ditadas por causas
perfeitamente identificáveis e extraordinariamente
estáveis.
(p. 129) Esse determinismo é integral;
primeiro, ao sentido de que toca os menores
elementos de cada fenômeno: ‘há aqui,
como em todas as partes, apenas um
problema de mecânica: o efeito total é um
composto, determinado por inteiro pela
grandeza e direção das forças que o
produzem’ (Histoire de la littératur anglaise,
p.XXIX).
(p. 129) Mas é igualmente integral no que se refere
a qualquer forma de atividade: ‘Ocorre o mesmo
para cada espécie de produção humana, a literatura,
a música, as artes do desenho, a filosofia, a
ciências, o Estado, a industria e o resto. Cada uma
delas tem por causa uma disposição moral, ou um
concurso de disposições morais: dada esta causa,
ela aparece; retirada esta causa, ela desaparece”
( P.XXXVIII).
(p. 129) À ciência cabe revelar-nos o funcionamento
exato desse determinismo ‘aqui [na psicologia],
como em outras partes, a procura das causas deve
vir após a reunião dos fatos. Que os fatos sejam
físicos ou morais, não importa, têm sempre causas;
o mesmo para ambição, a coragem, a veracidade,
assim como para a digestão, para o movimento
muscular, para o calor animal. O vício e a virtude
são produtos como o vitríolo e o açúcar, e todo o
dado complexo nasce do encontro de outros dados
mais simples dos quais depende’ (p.XV)
(p. 138) “As qualidades morais do indivíduo são inteiramente
determinadas por suas disposições físicas; é vã, portanto,
qualquer esperança nos efeitos da educação. Nisto, ainda,
Gobineau será seguido por Taine. Este gosta de contar a
seguinte anedota: um negrinho filipino, com três anos de idade,
foi adotado nos Estados Unidos, educado nas melhores
escolas; na aparência; nada o distingue dos outros
americanos. Mas um dia os acasos da viagem levam-no a
Manilha; ali ele desaparece misteriosamente até que, alguns
anos mais tarde, um naturalista o descobre, outra vez um
negrinho da floresta.
(p.138) ‘O instinto primitivo, em vão coberto
por nosso verniz, irrompeu’ (Derniers essais,
p.106). Já os europeus são civilizados de
antemão, e neles a razão decorre do inato,
não do adquirido. Taine, como Gobineau,
opõe-se aqui aos Enciclopedistas que
acreditavam nas virtudes da educação, nos
progressos possíveis tanto do indivíduo
como da espécie.”
As treze colônias americanas
New York Times, 07 de fevereiro de
1903.

 “O imbróglio venezuelano demonstra que as


nações latinas são decadentes (...) Se elas
desejam serem preservadas, elas devem,
como os aborígenes, aceitar a tutela da
grande nação criada por Deus”.
New York Times, 01 de janeiro de 1903.

 “Há um sentimento crescente não apenas na


Europa, mas também neste país [EUA] de que a
política que fomos forçados a adotar sob o nome de
Doutrina Monroe vai, ao final, envolver uma
responsabilidade que até agora não foi reconhecida.
Exatamente qual será a natureza ou a extensão
dessa responsabilidade ou de que maneira será
imposta ou dispensada é ainda cedo para dizer. (...)
Caso deixemos os países sul-americanos a sua
própria sorte, a disputa pela América do Sul
começará do dia para a noite e não seria menos
sangrenta que a partilha da África”.
 "A pintura (cerca de 1872) de John Gast, chamada
Progresso Americano, é uma representação
alegórica da modernização do novo Oeste. Nela,
Columbia, compreendida como personificação dos
Estados Unidos, leva a civilização rumo a oeste,
junto com colonos americanos, instalando cabos
telefônicos pelo caminho; ela segura um livro
escolar. As diferentes atividades econômicas dos
pioneiros são enfatizadas e, em especial, as formas
de transporte em evolução. Os nativos americanos e
os animais selvagens fogem."

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