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Pierre Clastres (1934-1977)

Ovídiode Abreu Filho*

A experiênciadireta do terreno,as monografiasdos


pesquisadorese as mais antigascrônicasnão deixam
nenhuma dúvida sobreisso:se existe alguma coisa
completamenteestranhaa um índio, é a ideia de dar U11
ordemou de ter de obedecer.

Clastres, 2003: 28.

Introdução
O nome de Pierre Clastres permanece ligado à ideia de "sociedade contra o I
tado". Ideia de origem etnológica, porque foi certamente determinada por problema:
conceitos desenvolvidos no campo da antropologia. Mas isto não impede que se imagi
que ela também tenha sido suscitada por questões filosóficas e, talvez, por inquietaçê
provenientes de experiências políticas exteriores ao domínio do pensamento propr
mente antropológico 1•
O jovem Clastres 2 não pode ter sido indiferente às duas grandes guerras mundi:
que dividiram e devastaram o continente europeu, nem às guerras coloniais, em particul
a Guerra da Argélia. Muito menos ainda ao nazismo e aos fascismos que expuseram,
âmbito mesmo da civilização ocidental, sua radical intolerância à diferença, desta ,
manifestada no holocausto dos judeus e na perseguição assassina de outras minori
como ciganos, homossexuais, doentes mentais etc. Como outros cientistas e filósofi
ele deve ter observado com atenção inquieta que a Segunda Guerra, vencida pelas for~
aliadas, racionais e democratas, concluiu-se com um genocídio atômico, com os bomb:
<leiosde Hiroshima e Nagasaki. Mas isto não é tudo, pois há algo ainda mais decisi,
uma decepção com a promessa comunista: a esperança aberta pela revolução soviética
possibilidade de um novo mundo - mundo comunista, sem classes e sem Estado - ,
cila com o stalinismo e com a violência do Estado soviético contra qualquer resistêrn

* Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Departamento
Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UF

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interna ao seu domínio. O movimento comunista divide-se em tendências divergentes,
o marxismo perde sua aura revolucionária e revela sua face de ideologia de partido e de
Estado. Uma enorme desconfiança incide sobre a dialética, o homem e a razão.
Foi o drama de 1956 (a invasão da Hungria e o anúncio oficial por Khrushchev
dos crimes de Stalin) que modificou o agenciamento político e existencial dos quatro
estudantes de filosofia, militantes comunistas da célula do PC da Sorbonne em torno
de François Châtelet (Pierre Clastres, Lucien Sebag, Michel Cartry e Alfred Adler), fa-
zendo-os passar da filosofia para a etnologia. Cartry e Adler orientaram suas pesquisas
para a África, com Marcel Griaule; Clastres e Sebag escolheram a América, com Alfred
Métraux e Claude Lévi-Strauss.

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Segundo uma ordenação retomada por Lévi-Strauss (cf. ensaio neste livro), a an-
tropologia comporta três dimensões. Ela começa como etnografia, observação e descri-
ção de uma sociedade ou grupo particular; ela continua como etnologia, pela aplicação
do método comparativo, que necessariamente mobiliza um conjunto de pesquisas etno-
gráficas, conquista uma primeira síntese, sempre parcial, que pode ser geográfica, histó-
rica ou sistemática; e finalmente, ampliando seu espectro comparativo, a antropologia
alcança a última etapa da síntese, com a conquista de universais culturais. Observe-se
que, neste esquema, a palavra antropologia aparece duas vezes: uma primeira vez desig-
nando uma extremidade da série, significando a síntese final - momento da deter-
minação de universais da Cultura - e uma outra vez como categoria que subsume
as três dimensões do conhecimento antropológico. Há aí a indicação de que, na
antropologia de Lévi-Strauss, as análises etnográficas e etnológicas são conectadas
no projeto de determinação de universais, fornecendo os elementos a serem inte-
grados numa nova função de universalização - função simbólica, que rechaça, além de
qualquer teleologia histórica, as essências inteligíveis e as instâncias subjetivas, sejam
elas metafísicas ou transcendentais.
Havia nessa atitude estruturalista mais do que a promessa de um novo pensamen-
to capaz de afirmar a alteridade como tal, pois, com efeito, as análises apresentadas por
Lévi-Strauss nas Estruturaselementaresdo parentesco(1949), no Totemismohoje (1962), no
Pensamentoselvagem (1962) e também nas Mitológicas (1944, 1967, 1968, 1971) revela-
vam, respectivamente, a universalidade da proibição do incesto, a regra por excelência
ie qualquer sociedade humana e, sobretudo, a universalidade de uma função simbóli-
;a como potência subjacente a qualquer sistema de classificação e a qualquer forma de
pensamento, inclusive do pensamento científico. As Mitológicas dissolvem a oposição
io logose do mito: demonstram não ser mais possível opor o mito ao real, como ficção;
rrem ao racional, como absurdo. Fulgurava o desembaraço de uma antropologia hábil

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em determinar ordens simbólicas inconscientes irredutíveis ao primado da identidade
sobre a diferença e às oposições entre o eu e o outro, a natureza e a cultura, o sensível e o
inteligível, a razão e o desatino, a humanidade e a vida.
A radicalidade do pensamento de Lévi-Strauss foi plenamente percebida e sauda-
da na definição da originalidade da antropologia assim formulada pelo filósofo Maurice
Merleau-Ponty: ''A etnologia não é uma especialidade definida por um objeto particular,
as sociedades primitivas: é uma maneira de pensar, aquela que se impõe quando o objeto
é o 'outro' e exige de nós que nos transformemos" (2010: 1.451).Neste ponto extremo, o
pensamento de Lévi-Strauss tocou profundamente Clastres, que ao seu modo também
almeja uma nova antropologia capaz de estabelecer um diálogo entre a civilização oci-
dental e as civilizações primitivas. Não qualquer etnologia, não a etnologia clássica, que
repete no seu exercício a partilha estabelecida pela razão ocidental entre razão e desati-
no, que, ao ignorar a linguagem própria das civilizações primitivas, extingue qualquer
possibilidade de diálogo. Não a antropologia evolucionista, mas, como disse Clastres a
propósito da antropologia de Lévi-Strauss, "uma outra etnologia, à qual seu saber permi-
tisse forjar uma nova linguagem infinitamente mais rica; uma etnologia que, superando
a oposição tão central em torno da qual se edificou e se afirmou nossa civilização, se
transformaria ela mesma num novo pensamento" (CLASTRES, 1968: 90).
Contudo, nem marxista, nem estruturalista, não é para o domínio das universali-
dades que se encaminham as pesquisas de Clastres. Seu pensamento se orienta por uma
outra questão que determina que comece por um questionamento político-epistemológi-
co da partilha imposta pela razão ocidental. A antropologia de Clastres tem o sentido de
redefinir os termos e de questionar o valor dos valores que avaliam as sociedades primiti-
vas pelo padrão da civilização ocidental, que dispõe toda alteridade no campo da desrazão.
Diante desta partilha, teórica e prática, infamante, Clastres emite um grito que
não cessará de ressoar ao longo de sua obra: "é preciso levar a sério as sociedades pri-
mitivas". A este grito corresponde um novo conceito de sociedade primitiva. Na sua
formulação mais concisa, este conceito pode ser assim enunciado: as sociedades pri-
mitivas são sociedades sem Estado e as sociedades sem Estado são sociedades contra o
Estado. Evidentemente, a este novo conceito corresponde uma outra perspectiva, que
altera o sentido dominante relacionado à ideia de etnologia. Desde essa nova orientação,
a palavra etnologia não designa mais uma primeira síntese, delimitada exteriormente
por um balizamento geográfico ou histórico, à espera de uma outra mais verdadeira por-
que mais universal. A antropologia política de Clastres é sobretudo uma etnologia. Não
porque seja parcial, no sentido de apenas circunscrever um subconjunto da experiência
humana, mas porque é sob uma nova orientação etnológica que se pode contemplar uma
diferença radical que introduz uma rachadura incontornável no conjunto das sociedades
humanas entre o "antes da liberdade" e o "depois da servidão". No lugar da partilha da
razão ocidental, que opõe primitivos e civilizados, sociedades sem Estado e sociedades

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com Estado, Clastres declara uma outra diferença etnológica entre "Sociedades contra o
Estado" e "Sociedades de Estado".
Esta afirmação envolve uma dimensão genealógica, um questionamento do sen-
tido e do valor da Razão ocidental, que prejulga e desqualifica qualquer outra forma de
pensamento e de vida. Que forças se exprimem e que vontade se manifesta na panilha
da razão?

Uma genealogia do Ocidente


Conforme sua narrativa dominante, a metafísica ocidental, desde Platão, tem como
projeto alcançar a ciência, dizer as coisas tal como elas são; tem como prática elaborar
um discurso capaz de legitimar-se de modo imanente; tem como objeto o Ser, como
instrumento, a razão, e, como objetivo, reduzir a violência e mostrar que ela é insensatez.
Em decorrência desse projeto, porque nunca deixou de ostentar esse ideal, a civilização
ocidental se concede uma posição transcendente com respeito às demais culturas.
Contudo, o colonialismo europeu, o genocídio e o etnocídio persistentes como po-
lítica contra os indígenas das Américas exibem, segundo a análise atenta de Clastres, a
violência como elemento imanente ao humanismo e à civilização ocidental. E, contra-
riando a promessa da metafísica e a presunção ocidental, o que se constata é a estranha
vizinhança entre violência e razão, na qual a primeira aparece como condição e meio da
segunda. Ou seja, segundo esta análise, a violência não é o negativo da razão; muito ao
contrário, de fato, a razão necessita da violência para desdobrar-se, como, de direito, se
deve apontar para uma violência imanente à própria razão ocidental, à sua atitude de depre-
ciar e de segregar toda alteridade e toda diferença remetendo-as ao campo do desatino.
O fato é que a civilização ocidental não se inclui no cenário das demais experiên-
cias humanas, seu desdobramento é sempre contra o outro, jogando qualquer alteridade
no campo da desrazão. Essa atitude foi relacionada na antropologia a um elemento gené-
tico, imanente à essência da cultura em geral, a um princípio que estaria na base de uma
tendência universal de depreciar a alteridade. O etnocentrismo seria esse princípio que
constrange toda cultura a avaliar as demais pelo seu próprio padrão. Contudo, um pen-
samento que problematiza os fundamentos mesmos da ideia que opõe o Ocidente como
razão e o resto como desatino não pode se contentar com uma compreensão abstrata do
etnocentrismo. Não é porque toda cultura se configura como ponto de vista determinado
por um sistema complexo de referências, composto de julgamentos de valor, motivações
conscientes e inconscientes, que conforma a percepção de outras culturas, que se deve
concluir que todos os pontos de vista sobre o outro se equivalem.
Avaliada desde o horizonte dessa nova diferenciação, que distingue dois tipos
fundamentais de sociedades, a ideia de etnocentrismo deve ser dramatizada. Quando
referido ao novo sentido da partilha, à diferença irredutível entre sociedades de Estado e

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sociedades contra o Estado, o etnocentrismo não pode mais ser pensado como uma pro-
priedade universal da vida cultural em geral. O conceito de etnocentrismo é diferenciado
e admite a determinação de tipos de etnocentrismo. Como diz Clastres, se toda cultura é
etnocêntrica, somente a cultura ocidental é etnocida (2004: 81), ou seja, se toda cultura
tende a depreciar o outro, somente algumas conduzem essa depreciação a uma política
de aniquilamento dos outros modos de vida.
O que distingue efetivamente a cultura ocidental? O que faz com que a cultura
ocidental seja necessariamente etnocida? Eis a questão que, segundo Clastres, permite
ultrapassar uma compreensão abstrata do etnocentrismo, que desconsidera suas diferen-
ças concretas. A esse respeito, Clastres associa a cultura ocidental a duas circunscrições
fundamentais: o Estado e o capitalismo.
O conceito de etnocídio - diferentemente do conceito de genocídio, que remete
à ideia de raça e à vontade de extermínio de uma minoria étnica - refere-se à ideia de
cultura e à vontade de destruição de outros modos de vida e de pensamento. Em ambos
os casos, trata-se da negação da alteridade, ora dirigida ao corpo, ora à alma do outro.
Morte, sempre morte da alteridade. Mas se o genocídio exprime, no dizer de Clastres,
um desejo de absoluta supressão física do outro, o etnocídio exprime o princípio de apli-
cação de um projeto de redução espiritual do Outro ao Mesmo.
Resta ainda um ponto fundamental anotado por Clastres: a civilização ocidental
é etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma. O Estado nacional, por exemplo,
deve tudo homogeneizar: impor uma língua oficial, uma religião oficial, uma adminis-
tração unificada contra todas as particularidades locais etc. Esta observação permite que
Clastres vá ainda mais longe na elucidação das relações entre o etnocídio e o Estado: o
primeiro não é um simples componente do segundo, há um vínculo mais profundo entre
o desejo etnocida e o desejo de Estado. O etnocídio, argumenta Clastres, é uma prática
logicamente conforme à essência do Estado, uma vez que ambos correspondem ao exer-
cício de forças centrípetas que conduzem à dissolução do múltiplo no Um. Nesse nível
formal, Clastres constata
[...] que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma ma-
neira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização oci-
dental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferen-
ça e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um (CLASTRES,
2004: 83).
A reflexão de Clastres sobre os vínculos do etnocídio com as culturas ocidentais
não se restringe a apontar essa sua conformidade com o Estado. Sua análise pondera as
diferenças concretas entre tipos de Estado e afirma que a diferença pertinente entre os
estados "bárbaros" (Império Inca, antigo Egito, despotismos orientais etc.) e os estados
"civilizados" (democracias, totalitarismos e ditaduras diversas), aquela que torna o etno-
cídio sem limites, está, para ele, no seu regime de produção, no capitalismo:

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[...] a sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por
isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indi-
víduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve
ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade elevada ao
seu limite máximo de intensidade (CLASTRES, 1980: 86).
Fica então elucidado por Clastres que a escolha deixada pelo Ocidente (civilização
de Estado e sociedade capitalista) às demais sociedades humanas era um dilema: "ou
ceder à produção ou desaparecer; ou etnocídio ou genocídio" (CLASTRES, 2004: 86).
Diante disto, como não desconfiar que a intolerância obstinada do humanismo
não exprima uma impossibilidade estrutural da cultura ocidental de entrar em diálogo
com outras culturas? E como deixar de prolongar essa desconfiança até a própria antro-
pologia? Como poderia ela ficar totalmente imune a essa intolerância constitutiva da
cultural ocidental?

A ideia de sociedade contra o Estado


A antropologia política de Clastres assumiu o desafio de pensar o que se ofereceu
como inconcebível para o pensamento europeu: a sociedade primitiva, percebida como
lugar de uma diferença absoluta,
[...] como espaço estranho e impensável da ausência - ausência de tudo
o que constitui o universo sociocultural dos observadores: mundo sem
hierarquia, homens que não obedecem a ninguém, sociedade indiferente
à posse e à riqueza, chefes que não mandam, culturas sem moral porque
ignoram o pecado, sociedades sem classes, sociedades sem Estado etc.
(CLASTRES, 2004: 234).
Essa percepção dos conquistadores e dos primeiros viajantes delineou a visão de
povos sem fé, sem lei e sem rei, que reaparece na antropologia clássica não mais como
espanto primeiro, mas domesticada em discursos com pretensão científica. Visões evolu-
cionistas, naturalistas, economicistas, marxistas etc. compartilham uma imagem domi-
nante, imagem dogmática do pensamento antropológico, que reveste de incompletude as
sociedades primitivas: estas são sociedades mutiladas, sociedades sem Estado, socieda-
des sem escrita, sociedades sem história, sociedades sem desenvolvimento tecnológico,
sociedades de economia de subsistência, sem mercado etc.
Clastres respondeu a esse desafio com a ideia de "sociedade contra o Estado". Essa
ideia contém dois movimentos e desdobra-se em dois tempos. Ela envolve inicialmente
uma concordância, mas essa aquiescência, diabólica em sua aparente inocência, se pro-
longa numa afirmação que questiona a imagem dogmática do pensamento antropológi-
co. Sim, de fato, as sociedades primitivas são sociedades sem Estado; mas há um outro
sim, uma outra afirmação, que exprime uma reviravolta profunda e decisiva: de direito,
as sociedades sem Estado são sociedades contra o Estado. O que se passa com essa redu-
plicação da afirmação?
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A ideia de sociedade contra o Estado, ao envolver nela essa dupla afirmação, in-
troduz a dimensão do desejo no conceito mesmo de sociedade primitiva. A segunda
afirmação revela um outro desejo, o desejo dos selvagens, irredutível à falta de algo que
não se possui e que se almeja. Um desejo afirmador, imanente, positivo, constituinte
de uma maneira de viver. A ideia de sociedade contra o Estado traz à tona um desejo
produtivo, o desejo selvagem do múltiplo que constitui a sociedade primitiva como so-
ciedade indivisa que, avessa a qualquer vontade de comandar ou de obedecer, recusa na
sua essência mesma a possibilidade de sua divisão. Esse desejo afirmativo e criador, ima-
nente ao exercício e ao ser da sociedade primitiva, envolve no seu funcionamento, por
assim dizer, molecular uma potência de antecipação e de evitação de todo movimento
que possa vir a favorecer o nascimento de uma vontade de comandar e de obedecer, que
possa vir a ameaçar a integridade da sua organização indivisa, que possa vir a ocasionar a
emergência do poder coercitivo, ou seja, do Estado. Conduzir a análise até essa dimensão
talvez seja condição para que se possa "levar a sério os selvagens". Pois, o que se vê nessa
dimensão não é mais o vazio de uma ausência presumida pela fórmula "sociedades sem
Estado", mas antes a vitalidade do pensamento dos selvagens e a consistência sociopolí-
tica das sociedades primitivas.
Há ainda um outro aspecto importante. A distinção entre dois tipos de sociedade
absolutamente irredutíveis um ao outro - sociedades sem Estado e sociedades contra o
Estado - recoloca, para Clastres, o problema da passagem de um tipo ao outro. Com o
abandono de qualquer explicação apoiada em pressupostos evolucionistas, continuístas,
teleológicos, o aparecimento do Estado torna-se enigmático. Neste ponto, revela-sera-
dical o afastamento entre o pensamento de Clastres e o marxismo, pois Clastres recusa o
encadeamento mecânico disposto na seguinte série causal: o desenvolvimento das forças
produtivas determina o aparecimento das classes sociais e do seu regime de exploração
que, por sua vez, requer e condiciona, como modificação superestrutura}, o surgimento
do Estado. Posto fora de todo encadeamento mecânico de causas, o Estado perde sua
necessidade histórica, e sua emergência ou existência desponta e persiste como aconte-
cimento não elucidado.
Com efeito, a ideia de sociedade contra o Estado subverte a lógica que subordina
a compreensão das sociedades primitivas ao modelo do Estado; com ela, Clastres afirma
a universalidade do poder político e o caráter apenas regional da concepção ocidental do
poder. Quando a questão da origem do Estado deixa de se encadear com a questão do
surgimento do estado de sociedade, é o Estado, como problema, que se põe a girar em
torno das sociedades contra o Estado. Não se trata mais de estimar as sociedades sem
Estado do ponto de vista das sociedades contra o Estado. Assim, a ideia de sociedades
contra o Estado remete as sociedades sem Estado às sociedades com Estado, não como ao
seu destino ou como objetivo final da humanidade, mas sob a forma de problema: Qual
é a origem do Estado?

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A ideia de sociedade contra o Estado desdobra-se, portanto, em dois problemas
distintos e relacionados: "Como fazem as sociedades primitivas para não ter Estado?", e
"de onde provém o Estado?" A articulação desses problemas eleva, diz Clastres, a etnolo-
gia à dimensão de uma teoria geral (a construir) da sociedade e da história. É importante
sublinhar o "a construir". Em todo caso, Clastres imagina essa teoria como uma antropo-
logia política geral, que se delineia em duas grandes interrogações: "l) O que é o poder
político? Isto é: O que é a sociedade? e 2) Como se passa do poder político não coercitivo
ao poder político coercitivo? Isto é: O que é a história?" (CLASTRES, 2003: 39). Se a
ideia de sociedade contra o Estado comporta no seu horizonte estes dois problemas, a
obra de Clastres não pode perdê-los de vista, mesmo que ela não ofereça a eles uma res-
posta direta. Por que então Clastres conserva essas interrogações, que ele reconhece não
ser ainda capaz de responder?
A ausência de respostas a esses problemas talvez tenha o sentido de ressaltar o
"Acontecimento inominável" 3 que racha a humanidade entre um antes e um depois da
"servidão voluntária", entre um antes e um depois do Estado, mantendo sob suspeita
toda tentativa de suturar essa rachadura, toda resposta continuísta e toda integração hu-
manista, etnocida.
De todo modo, além desse sentido, o reconhecimento da incapacidade de res-
ponder a essas interrogações reorienta o olhar de Clastres: "se parece ainda impossí-
vel determinar as condições de aparecimento do Estado, podemos em troca precisar as
condições de seu não aparecimento" (CLASTRES, 2003: 222). Essa reconversão é mais
profunda, pois com ela o problema da origem do Estado muda de estatuto: deixa de ser
um problema de antropologia geral e torna-se um problema etnográfico recolado pela
pesquisa etnográfica e pela análise etnológica da filosofia e das instituições políticas dos
selvagens. O mais relevante passa a ser investigar se e como esse problema concerne às
sociedades primitivas. Talvez por isso, a partir dessa nova perspectiva, as instituições pri-
mitivas apareçam, para Clastres, como objetos multifacetados, agendamentos complexos
de forças e movimentos divergentes.

O paradoxo da chefia indígena


Um ano antes de sua partida para os Guayaki do Paraguai4, Pierre Clastres escreve
"Troca e poder: filosofia da chefia indígena", seu primeiro ensaio de etnologia, que con-
tém, como que contraído, o programa de sua pesquisa futura. Se é possível, como foi dito,
compreender a obra de Clastres como um rigoroso desdobramento da ideia de "socie-
dade contra o Estado", deve-se considerar que essa ideia aparece pela primeira vez, com
caráter de esboço, neste seu artigo, cujo problema é entender o sentido e o funcionamen-
to de uma estranha instituição presente na grande maioria das sociedades americanas, a
instituição de uma chefia destituída de poder de comando.

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Clastres se recusa a ver nisso, nessa ausência de poder de comando do chefe indí-
gena, a evidência de uma falta, a prova de que as sociedades primitivas carecem de uma
efetiva organização política. Por isso, recusando as interpretações vigentes na literatura,
visando lançar um novo olhar sobre os materiais diversos, compilados no Handbook oj
SouthAmerican Indians, Clastres aborda a chefia indígena não como um elemento exótico
destituído de sentido, mas como um elemento que solicita o seguinte problema: Como
pensar essa disjunção entre a chefia e o poder?
Arrancada do enquadramento evolucionista, que situa as sociedades primitivas
numa linha evolutiva, num estágio de evolução pré-político, a instituição da chefia indí-
gena força o antropólogo a interrogar o sentido da "estranha persistência de um 'poder'
quase impotente, de uma chefia sem autoridade, de uma instituição que funciona sem
conteúdo" (CLASTRES, 2003: 47). Desta forma, Clastres retoma a caracterização mera-
mente descritiva proposta por Robert Lowie para interrogar sistematicamente o sentido
da chefia indígena. Segundo essa descrição, o chefe deve exercer uma função moderado-
ra visando cuidar da unidade do grupo, ser um bom orador e generoso com seus bens,
tendo o privilégio da poliginia.
Clastres introduz uma ordem nesta lista. Primeiro, distingue o exercício da chefia
dos elementos associados ao chefe. O exercício efetivo da chefia exibe a face positiva
do chefe como apaziguador e como organizador das atividades econômicas e das ce-
rimônias. A análise dos elementos associados ao chefe (dom oratório, generosidade e
poliginia) revela que esses elementos são os mesmos cuja troca constitui a sociedade
como tal, e que sancionam a passagem da natureza para a cultura. Clastres assinala uma
diferença de nível entre esses dois conjuntos de elementos e considera que não se deve
confundir o nível empírico da instituição, que diz respeito ao exercício efetivo da chefiai
com o nível transcendental da instituição, que diz respeito ao conjunto das prestações
e das contraprestações que organizam as relações entre a estrutura social e a instituição
política da chefia.
O que se observa no primeiro nível é a aparente falta de sentido da instituição, que
exibe um chefe prestigioso, mas submetido à vontade do grupo e sem qualquer poder
decisório. A observação do segundo nível mostra que as condições de possibilidade da
chefia indígena concernem aos três níveis fundamentais da troca: de bens, de mulheres
e de palavras. Contudo, uma análise atenta evidencia que a chefia indígena, nesses três
níveis fundamentais, rompe com o princípio da reciprocidade - o chefe recebe mais mu-
lheres do que retribui, doa mais bens do que recebe e monopoliza o exercício do discurso
sem interlocutores. Assim, paradoxalmente, no nível transcendental da instituição, no
qual o poder se relaciona com os três níveis estruturais da sociedade, o chefe transgride
o princípio da reciprocidade que condiciona a instauração da ordem cultural.
Perspicácia da análise de Clastres em ter evidenciado a ruptura da chefia com o
princípio de reciprocidade. Agudeza de espírito em ter decifrado o sentido paradoxal

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de tão grande dissonância entre a ordem política e a ordem cultural. Nessa dimensão
de contestação da cultura, a chefia não pode se configurar como uma instituição com
sentido unívoco, em conformidade absoluta com a ordem cultural. E, ainda menos, o
chefe pode ter um sentido não ambíguo, pois é um personagem prestigioso, mas tam-
bém perigoso. Ambivalência da chefia, ambivalência do chefe. Positividade da política
primitiva, pois se a chefia é o lugar no qual a reciprocidade cessa de regular a circulação
das mulheres, dos bens e da linguagem, a esfera política deve aparecer como exterior e
como antagônica à estrutura do grupo: "é na relação negativa mantida com o grupo que
se enraíza a impotência da função política; a rejeição desta para o exterior da sociedade é
o próprio meio de reduzi-la à impotência" (CLASTRES, 2003: 59). Esta proposição ace-
na para outra mais decisiva, que relaciona o sentido da chefia a uma "intencionalidade
sociológica" inconsciente:
[...] a relação do poder com a troca, por ser negativa, não deixa de nos
mostrar que é ao nível mais profundo da estrutura social, lugar da
constituição inconsciente de suas dimensões, de onde advém e onde
se encerra a problemática desse poder. Em outros termos, é a própria
cultura, como diferença maior com a natureza, que se investe na recusa
desse poder (CLASTRES, 2003: 60-61).
E, nessa dimensão, desvela-se uma identificação essencial do poder coercitivo e
da natureza.
As sociedades primitivas colocam assim em seus próprios termos a questão do
poder: o poder coercitivo, transcendente, aparece como contestação da própria cultura.
Há aí um pensamento distinto das filosofias políticas ocidentais, especialmente a de
Hobbes: o Estado é remetido não à origem do estado de sociedade, à cultura, mas ao des-
regramento da natureza. Com efeito, Clastres relaciona a constituição da esfera política
primitiva a uma intuição de
[...] que o poder é, em sua essência, coerção; que a atividade unificadora
da função política se exerceria não a partir da estrutura da sociedade e
conforme a ela, mas a partir de um mais além incontrolável e contra ela;
que o poder em sua natureza não é senão um álibi furtivo da natureza em
seu poder (CLASTRES, 2003: 61).
Clastres vê na intuição dessa ameaça o pressentimento de que a transcendência de
um poder encerra um risco mortal para o grupo. Ao considerar essa intuição e esse pressen-
timento, ele propõe a hipótese de que as sociedades primitivas instituem sua esfera política
como um verdadeiro mecanismo de defesa contra a emergência de um poder transcenden-
te, pois, no domínio da política primitiva, a chefia é apenas lugar aparente do poder - o
lugar real é o próprio corpo social, que o detém e o exerce como unidade indivisa.
As sociedades primitivas instituem a chefia para mostrar o poder como negativida-
de a ser controlada. Nelas, o chefe permanece sempre numa relação de dependência real
com o grupo, sempre na posição de devedor em relação ao grupo, sempre numa relação de
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subordinação com respeito ao grupo. O chefe é aquele que está obrigado a falar e a ser gene-
roso, sob pena de ser abandonado pelo grupo. Sobretudo o privilégio da poliginia mantém
o chefe endividado e aprisionado ao grupo.
A filosofia da chefia indígena, diferentemente da filosofia de Hobbes, associa o po-
der coercitivo, a virtualidade do Estado, ao ressurgimento caótico da natureza, ou seja, à
destruição da cultura. A análise de Clastres cessa quando discerne no âmago da chefia in-
dígena o desejo das sociedades selvagens de perseverarem na indivisão, essa vontade de
estabelecer instituições que funcionem corno maneiras de evitar a aparição de um poder
separado, fundado sobre a coerção. Sutileza da política primitiva que determina a chefia
corno instituição contra o Estado - instância de antecipação e conjuração da emergência
do poder coercitivo, o verdadeiro negativo da sociedade primitiva.

Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas


Clastres procede nos seus últimos escritos, reunidos postumamente no livro Ar-
queologia da violência: pesquisas de antropologia política, publicado em 1980, do mesmo
modo que procedeu no seu primeiro texto e em todos os outros que escreveu. Corno
já foi dito, ele começa por extrair o "fato etnográfico" dos clichês que o recobrem.
Após esse trabalho de desbastamento, o "fato" ressurge corno objeto problemático e
corno instituição positiva que incita o pensamento a questionar as imagens existentes
sobre as sociedades primitivas. Assim, de caso em caso, considerando a chefia, o riso
indígena, a iniciação, o profetismo tupi-guarani, a guerra etc., Clastres estende e
aprofunda o seu pensamento sobre o ser da sociedade primitiva.
No ensa10 ''Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas", ao in-
terrogar a guerra em sua positividade, Clastres apresenta a sua mais rica descrição do
funcionamento sociopolítico da sociedade primitiva enquanto sociedade contra o Estado.
Neste caso, o fato incontornável é a paixão dos primitivos pela guerra, amplamen-
te noticiada por exploradores, missionários, mercadores ou viajantes nas mais diversas
regiões do planeta. Considerando essa massa de documentos, Clastres não hesita em afir-
mar que a guerra apresenta nas sociedades sem Estado urna dimensão de universalidade:
as sociedades primitivas são sociedades guerreiras, são sociedades voltadas para a guerra.
E não deixa de assinalar que essa primeira imagem das sociedades primitivas ressoa na
filosofia política de Thomas Hobbes corno confirmação empírica de sua especulação fi-
losófica que opõe ao estado de sociedade, que é para ele sociedade do Estado, um estado
de natureza, que se distingue pela "guerra de todos contra todos".
Clastres assinala o inesperado desaparecimento da guerra no discurso da etnologia
recente que, segundo ele, se explica pelo fato de que as sociedades primitivas, quando se
tornam objeto de estudo, já estão desfiguradas, a caminho da morte, instaladas num paci-
fismo forçado pelos estados nacionais. Mas ele acrescenta ainda urna outra razão, interna

292
à história da disciplina: trata-se da produção e da difusão de um conjunto de discursos
que tendem a excluir a guerra do domínio das relações sociais.
Clastres destaca, inicialmente, a concepção naturalista de Leroi-Gourhan, que
apresenta a guerra como um comportamento de agressão inscrito na realidade biológica
do homem. Inerente ao homem como ser natural, a agressividade encontra sua finalida-
de na subsistência. Codificada socialmente, a agressão manifesta-se na caça e na guerra,
pensada como um análogo da caça. Os caçadores tornam-se guerreiros e os guerreiros,
detentores da força armada, dominam o restante da comunidade. O social é reduzido ao
natural, ao biológico.
O cortejo reducionista prossegue com um discurso economicista que qualifica a
economia primitiva como economia de subsistência, economia que seria incapaz, em
decorrência de seu subdesenvolvimento tecnológico, de responder aos desafios de um
meio natural que ela não consegue dominar. Sociedade da miséria: sobre esse fundo, sob
a ação da concorrência vital, prosperaria o fenômeno da guerra. Clastres observa que esse
discurso, enunciado "científico" do postulado popular, ajusta-se perfeitamente à antro-
pologia marxista e ao marxismo propriamente dito que,
[...] como teoria da história fundada na tendência das forças produtivas
ao desenvolvimento, deve atribuir-se, como po~to de apoio, uma espécie
de grau zero das forças produtivas: é exatamente a economia primitiva,
pensada desde então como economia da miséria, como economia que,
querendo sair da miséria, tenderá a desenvolver suas forças produtivas
(CLASTRES, 2004: 226).
Clastres ataca esses discursos economicistas, logicamente tão bem-arranjados,
com uma pergunta muito simples: É a economia primitiva, sim ou não, uma economia
da miséria?
E responde que as pesquisas mais escrupulosas da antropologia econômica de-
monstram que a economia dos selvagens permite uma satisfação total das necessidades
materiais da sociedade, ao preço de um tempo reduzido de atividade de produção e de
uma baixa intensidade dessa atividade: a sociedade primitiva, seletiva na determinação
de suas necessidades, em vez de consumir-se na luta pela sobrevivência, são, segundo a
fórmula de Marshall Sahlins (1972) (cf. ensaio neste livro), as primeiras sociedades de
abundância. E, acrescenta ainda, considerando o pequeno tempo dedicado à produção, as
sociedades primitivas são verdadeiras sociedades de lazer. Isto posto, a explicação econo-
mista da guerra perde seu ponto de apoio e o econômico não pode mais explicar a guerra.
Há ainda o discurso estruturalista. Este situa a guerra no âmbito das relações so-
ciais, mas não é capaz de pensar a guerra em si mesma. A lógica da reciprocidade subor-
dina a guerra à troca: as guerras são trocas malsucedidas e a troca são guerras potenciais
pacificamente resolvidas. Neste discurso, que equaciona o ser da sociedade primitiva
como um ser-para-a-troca, a guerra não possui em si mesma nenhuma positividade e

293
não apresenta consistência institucional alguma. Tudo estaria muito bem, diz Clastres,
se não fosse a inadequação desse discurso à realidade etnográfica, à quase universalidade
do fenômeno da guerra primitiva.
Clastres contrapõe a posição de Hobbes - a sociedade primitiva como guerra de
todos contra todos - e a de Lévi-Strauss - a sociedade primitiva é a troca de todos com
todos-, e recusa as duas: "A sociedade primitiva é o espaço da troca e é também o lu-
gar da violência: a guerra, tanto quanto a troca, pertence ao ser social primitivo. Não se
pode, e é o que é preciso estabelecer, pensar a sociedade primitiva sem pensar a guerra"
(CLASTRES, 2004: 231). Não há, nessa proposição, conciliação nem com Hobbes nem
com Lévi-Strauss. E, sobretudo, o erro de Lévi-Strauss está na confusão dos planos em
que se situam a troca e a guerra na sociedade primitiva.
Ao recusar a hipótese do continuísmo econômico que apresenta a pretensa miséria
primitiva como causa de uma suposta concorrência vital entre os grupos primitivos, e
ao questionar o continuísmo lógico que faz da guerra um acidente que vem conturbar
o funcionamento da lógica da reciprocidade, Clastres isola o fato da guerra, prepara o
terreno para afirmar a guerra como instituição política. Esse isolamento da guerra como
instituição politicamente consistente e plenamente social força novamente o pensamento
a examinar o ser da sociedade primitiva.
A sociedade primitiva é indivisa: não conhece a separação entre senhores e sú-
ditos, nem a distinção entre proprietários e não proprietários, e funciona de maneira a
impedir a desigualdade, a exploração e a divisão. A sociedade primitiva é uma multipli-
cidade de comunidades locais, que estendem sua codificação sobre um território com-
preendido como espaço exclusivo de exercício dos direitos comunitários. Todas orienta-
das por um ideal de autarquia econômica e de independência política. Esse ideal implica
um movimento de exclusão, pois é contra as outras comunidades que cada sociedade
afirma seu direito privilegiado sobre um território determinado. Com efeito, os ideais
de autarquia econômica e de independência política mostram que as relações de cada
comunidade com os grupos vizinhos é, sobretudo, imanente à ordem política, irredutível
a uma determinação de ordem econômica. A sociedade primitiva é, segundo a análise de
Clastres, ao mesmo tempo totalidade e unidade.
Cada comunidade, enquanto indivisa, pode se pensar como um Nós. Esse
Nós, por sua vez, se pensa como totalidade na relação igual que mantém
com os Nós equivalentes que constituem as outras aldeias, tribos, bandos
etc. A comunidade primitiva pode se afirmar como totalidade porque se
institui como unidade: ela é um todo finito porque é um Nós indiviso
(CLASTRES, 2004: 237-238).
Contudo, esses ideais não isolam as comunidades locais; ao contrário, eles supõem
e mobilizam um sistema dinâmico de relações que está necessariamente em movimen-
to perpétuo. A comunidade primitiva, ao invés de permanecer fechada em si mesma,

294
abre-se para as outras na intensidade extrema da nolên.:u gucrei.-.a. C,2<,-~ e~:.=-
conduzido aos seguintes problemas: Como pensar ao mesmo tem~ .::,~:.s:- • e .i ~~~:
A guerra é um simples acidente, ou é uma condição estruturante d.a s._...,7~.ie ;-=--=--
tiva? Eis que Clastres se vê, nesse ponto, obrigado a voltar às ideias de Hoi'.'t--ese .i.::
Lévi-Strauss para recusar esses dois modelos e escapar da cilada que se monta quando
se orienta essa contraposição para constranger o pensamento da sociedade primiti,-a à
seguinte alternativa: "a guerra de todos contra todos", ou "a troca de todos com todos".
A hipótese de Lévi-Strauss, segundo a compreensão de Clastres, é uma lógica da
identificação; ela entra em contradição com a lógica da sociedade primitiva: a comuni-
dade primitiva recusa identificar-se com as outras, perder sua diferença e a capacidade
de se pensar como autônoma. Essa recusa da lógica da identificação manifesta uma
lógica centrífuga, imanente à sociedade primitiva, que mantém as comunidades lo-
cais na dispersão que lhes é própria. Trata-se de uma lógica sociológica:
Há, imanente à sociedade primitiva, uma lógica centrífuga da atomiza-
ção, da dispersão, da cisão, de modo que cada comunidade tem necessi-
dade, para se pensar como tal (como totalidade una), da figura oposta do
estrangeiro ou do inimigo, e assim a possibilidade da violência está ins-
crita de antemão no ser social primitivo; a guerraé uma estruturauniversal
da sociedadeprimitiva e não o fracasso acidental de uma troca malsucedida
(CLASTRES, 2004: 239).
Nesse sentido, Clastres pode considerar a guerra primitiva como uma instituição
plenamente política, social e não natural, uma política do múltiplo orientada contra o
surgimento do Um, uma política constitutiva não do estado de sociedade em geral, mas
do dinamismo das sociedades sem Estado, das sociedades contra o Estado.
Clastres pondera que se a sociedade primitiva não pode consistir na paz universal,
que alienaria a sua liberdade, ela também não pode se entregar à guerra total, que aboli-
ria a sua igualdade. Com efeito, diz ele:
O ser social tem portanto, simultaneamente, necessidade da troca e da
guerra para poder a uma só vez conjugar o ponto de honra autonomista
e a recusa da divisão. É com essa dupla exigência que se relacionam o es-
tatuto e a função da troca e da guerra, que se desdobramem planos diferentes
(CLASTRES, 2004: 240).

Esta posição não significa o reconhecimento de uma continuidade que asseguraria


a passagem da guerra à troca ou vice-versa. A novidade da análise de Clastres está em
mostrar que a guerra e a troca dizem respeito a duas estruturas diferentes e a funções es-
pecíficas. Além disso, Clastres considera fundamental dizer que nas sociedades primitivas
a guerra como estrutura subordina a troca como função.
Assim, para ele, a guerra opera uma imediata classificação do povo em amigos
e inimigos. Portanto, se a comunidade primitiva tem necessidade de aliados, é porque
ela tem inimigos. De todo modo, o fundamental é que o dispositivo da guerra divide os
295
Outros em aliados e inimigos. Desta forma, entre o Eu e o Outro como inimigo, há o
aliado político.
O aliado político demonstra a prevalência da guerra sobre a troca, pois ele revela
que é a guerra, como estratégia das comunidades para se preservarem autônomas e para
se conservarem indivisas, que determina a aliança como tática. A aliança política não
pode aparecer no texto de Clastres como o oposto da guerra, pois, na prática efetiva, ela é
requerida pela guerra real. E essa subordinação se confirma quando Clastres mostra que
o princípio da reciprocidade, nas sociedades primitivas, articula grupos reunidos nas
redes de aliança políticas, e só impera nessas redes.
Clastres critica Lévi-Strauss por ele não ter diferenciado o nível propriamente
antropológico - a troca exogâmica de mulheres, requerida pela proibição do incesto que
instaura a cultura - do nível político - os regimes de troca entre os grupos humanos
como viventes políticos. Em outros termos, Lévi-Strauss confundiria a reciprocidade
fundadora da cultura com a troca como modo de relação entre grupos sociais. Clastres,
que não fala do horizonte da humanidade, insiste na originalidade da sociedade primi-
tiva que, ao desenvolver uma estratégia destinada a reduzir ao máximo possível a neces-
sidade da troca, "não é em absoluto a sociedade para a troca, mas antes, pelo contrário,
sociedade contra a troca" (CLASTRES, 2004: 243).
Clastres desvenda uma relação sistemática entre a guerra como política externa da
sociedade primitiva e o respeito à lei ancestral como garantia de sua política interna em
favor da indivisão social. De um lado, diz ele,
[...] a sociedade primitiva quer perseverar em seu ser, manter sua indi-
visão. Tal é, tanto no plano econômico (impossibilidade de acumular
riquezas) quanto no plano da relação de poder (o chefe existe, mas não
manda), a política interna da sociedade primitiva: conservar-se corno
Nós indiviso, corno totalidade una (CLASTRES, 2004: 246).
De outro lado, ele mostra que o desejo das comunidades locais de assegurarem
sua indivisão implica a hostilidade, a guerra entre as comunidades indivisas. Portanto,
nas sociedades primitivas, "a indivisão interna e a oposição externa se conjugam, uma é
condição da outra. A guerra é seu fundamento, a própria vida de seu ser, sua finalidade:
a sociedade primitiva é sociedade para a guerra, ela é, por essência, guerreira" (CLAS-
TRES, 2004: 247). E ela é essencialmente guerreira porque a guerra primitiva é a mani-
festação de uma lógica centrífuga, uma lógica do múltiplo. Enquanto expressão de uma
força centrífuga e de uma lógica do múltiplo, a guerra primitiva resiste à força centrípeta,
à lógica da unificação, à lógica do Um, ou seja, ao Estado.
Mais uma vez a análise de Clastres termina quando ela relaciona a descrição da
complexidade de uma instituição, no caso a guerra como estrutura da sociedade primi-
ti\·a, com um nível mais profundo relativo ao desejo coletivo que anima a vida da socie-
dade primitiva. Clastres termina quando conecta a guerra primitiva com o desejo das

2%
sociedades selvagens de perseverarem na indivisão. Estabelecida esta conexão, a guerra
primitiva aparece como mais um dispositivo que exprime o desejo que constitui a socie-
dade primitiva como sociedade contra o Estado.
E assim, diante da presunção etnocida da civilização ocidental, a obra de Clastres
renova a cada livro e a cada ensaio o desejo de dar o testemunho etnológico da existência
e consistência milenar das sociedades contra o Estado.

Notas
1 Não se pode deixar de mencionar, embora não seja o tema deste ensaio, a importância da obra de Clastres
para a antropologia brasileira. Confira-se a esse respeito o ensaio de Tânia Stolze Lima e Mareio Goldman,
publicado como prefácio da edição brasileira do livro A sociedade contra o Estado, e o posfácio da edição
brasileira do livro Arqueologia da violência, intitulado "Intempestivo, ainda", de Eduardo Viveiros de Castro.
2 Pierre Clastres nasce em Paris em 1934. Faz seus estudos de filosofia na Sorbonne, formando-se em 1957.

Acompanha os cursos de Lévi-Strauss no Collége de France a partir de 1960. Foi diretor de pesquisa no Centre
National de la Recherche Scientifique (CNRS) e membro do Laboratoire Anthropologie Sociale do Collége de Fran-
ce. Morre, aos 43 anos, em um acidente de carro em uma estrada de Cévennes.
3 Sobre este ponto, cf. o ensaio "Liberdade, mal encontro, inominável", publicado no livro Arqueologia da

violência (2004 ).
• Pierre Clastres foi um pesquisador de campo. Fez investigação etnográfica com os índios Guayaki do Para-
guai 0aneiro de 1963 a janeiro de 1964 ), com os Guarani do Paraguai (1965), com os Chulupi do Paraguai
(1966 e 1968), com os Yanomami da Venezuela (quatro meses entre 1970 e 1971) e com os Guarani do
Estado de São Paulo (1974).

Obras selecionadas de Pierre Clastres

Arqueologiada violência- Pesquisas de Antropologia Política (1977). São Paulo: Cosac &
N aify, 2004.
A sociedadecontrao Estado (1974). São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
Crônicadosíndios Guayaki - O que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai ( 1972).
São Paulo: Ed. 34, 1995.
A fala sagrada - Mitos e cantos dos índios Guarani (1974). Campinas: Papirus, 1990
[Trad. de Nícia A. Bonati].

Referências

CLASTRES, P.Arqueologiada violência- Pesquisas de Antropologia Política. São Paulo:


Cosac & N aify, 2004 .

--- . A sociedadecontrao Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

--- . Crônicados índios Guayaki - O que sabem os Aché caçadores nômades do Para-
guai. São Paulo: Ed. 34, 1995.
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--- . A fala sagrada - Mitos e cantos dos índios Guarani. Campinas: Papirus, 1990
[Trad. de N.A. Bonati].

--- . "Entre silêncio e diálogo". ln: LÉVI-STRAUSS, C. EArc documentos.São Paulo:


Documentos, 1968.
CLASTRES, P.; GUACHET, M.; AD LER, A. & LIZOT, J. Guerra,religiãoe poder. Lis-
boa: Ed. 70, 1980 [GRP].

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