Você está na página 1de 3

Quando com a aurora surge o dia, a casa

Estende no terreno a sombra informe


Que pouco a pouco diminui, conforme
Sobe e caminha no alto o sol em brasa.

Ao meio-dia, quando o espaço dorme,


A sombra é nula na parede rasa;
Depois, até que o sol no poente jaza,
Vai crescendo e estendendo a cauda enorme.

E avançando de rastros pela alfombra


Penetra aos poucos o negror profundo
Da noite, e vaga, vil, desaparece.

Sombra na terra, sombra n’alma – mundo


De sombras… Tudo, nesta vida, é sombra
Que cresce, que decresce, que recresce.

Mário de Andrade – Sombra

Epitáfio de Adrenna Dimontes, que nas sombras viveu e vive muitas vidas:

Foram feitos para a noite os seres que nela vagam, era o que meu falecido pai sempre me
dizia. Foi ele mesmo quem escolheu meu nome. Adrenna, que em élfico era entendido como A
Portadora da Escuridão. Como se, de fato, nomes moldavam nosso destino. Mal sabia eu que
estava fadada a conviver com as sombras tão próximas a mim.
Foi em minha primeira primavera que havia me tornado uma mulher que minha mãe me
comprou um belo vestido, e como esperado, eu detestei. Queria, como os meus irmãos, vestir as
armaduras e brandir as espadas, mas o nome Dimontes me fizera uma escrava de um sistema onde
as mulheres eram bocas silenciosas e mentes obedientes.
A família Dimontes, entretanto, fora e ainda é um nome conhecido. Os famigerados
caçadores de monstros, colecionadores de cabeças decepadas de lobisomens, guardadores de
presas de carniçais, degoladores de mortos vivos, queimadores de bruxas, assassinos de criaturas
das trevas... Eu também acreditei nisso.
Eu era fruto do sistema, pertencia a ele e inerente a vida, restava-me a lamúria. Em meu
quarto, rodeada de lençóis de linho, alvos como a neve invernal, observei o soar dos sinos. A
grande mansão Dimontes, com seus vinte e sete quartos, salões cheios de armas e tantos livros
que se poderia perder nos corredores da biblioteca. Toda ela ardia em chamas.
Os guardas e meus irmãos foram ao ataque, mas eram seres da noite que invadiam nosso
bastião. Os caçadores de meu sangue cederam as forças das trevas, e logo era chegado a nossa
vez. Meu pai, em um último esforço, morreu para que eu e minha mãe tivéssemos chance.
Haveríamos de ter, se, do contrário, ao invés de vestidos e como se portar a corte, eu pudesse
açoitar os inimigos com o aço. Uma espada em minha mão faria tanto estrago quanto uma agulha
na mão de um gigante da tempestade.
O findar da vida de meu pai foi em batalha, mas sua lâmina vibrou e levou alguns inimigos
com ele. Eram seres humanoides e sedentos, mas eu não assisti muito daquilo. Com olhos
fechados, segurei o frio cabo da espada de meu pai. O último presente de alguém que morto jazia.
A lâmina brilhava. A prata refletia o luar, e meus olhos deleitavam-se em lágrimas
profanas. Minha mãe tremia. Empregados e sobreviventes corriam na escuridão, mas os seres das
trevas nos alcançavam. Minha mãe morreu logo depois. Ela caiu e foi devorada, com voracidade
e brutalidade. Observei o sangue jorrar. E então chegou a minha vez. Eu me entreguei. Fechei os
olhos para a morte, e apertei a nobre espada de prata. Era meu derradeiro fim.
Então a luz brilhou. Irrompeu por dentre eles um velho caçador que nunca havia visto por
ali. Ele carregava o fogo em suas mãos, e em jorros poderosos, minava os números dos inimigos,
que fugiam de forma desesperada. Lembro-me de ve-lo vindo até mim. Ele sussurrou algo que
não ouvi. Mas logo me tirou dali. Eu estava viva. A última Dimontes, a última de uma nobre
família de caçadores de monstros.
Eu morri para a minha vida passada e renasci para a nova. O velho caçador me mostrou
um antro esotérico e fúnebre, onde haviam lápides dos anteriores a mim. Eles eram caçadores que
haviam encontrado a luz, e eu entendi o caminho. Estava frente a um velho mestre, que sabia
ensinar. E eu queria aprender, pois tudo que outrora me pertenceu fora-me tirado. Restava-me
apenas servir ao meu mais latente desejo, que soava em meus lábios rubros como uma serpente
que sibila para a presa: Vingança.
Amargo foram minhas primaveras posteriores ao dia que minha família morreu. Em cada
ano, o caçador me treinava, e uma caçadora eu havia me tornado. Eu era quem eu havia de ter
sido antes, assim como meus ancestrais. Uma caçadora. E assim começou minha caçada.
Por seis anos, servi aos contratos. Sim, contratos. Eram trabalhos rápidos e limpos, nos
quais eu executava meus alvos, fossem eles feras sedentas ou monstros velozes. Meu nome, eu
mantive. Havia perdido força e notoriedade, mas eu adorava ouvir o nome Dimontes sendo
proferido, e ainda observava os olhares atônitos quando a última caçadora ainda vivia. Eu era a
ruína de mim mesma, meu início e meu fim. Mas meu destino ainda não havia se selado. Como
meu pai prometera, faltava-me enfrentar o maior de meus fados, o mais tenebroso de meus medos
e o maior anseio de meu potente coração. As sombras que me perseguiam.
Um dia antes da caçada que me colocaria a prova de minhas crenças pessoais, sentei-me
com meu mestre. Ele era, além de caçador, um escultor, e finalizava uma boneca em tamanho
natural, a qual ele atribuiria magia e sonhos e a tornaria um fragmento de sua história. Ali, ao lado
da fogueira, meu mestre pegou uma pedra de amolar ferramentas e colocou próximo as chamas.
Olhou pra mim e para o fogo, e as sombras que a pedra projetou do outro lado da flamula
luminosa. Depois, ele aproximou a pedra ainda mais, e assim as chamas sobre ela arderam, mas
as sombras se arrastaram ainda mais, maiores e mais sinistras. Ele então disse:
— Percebes? Quanto mais perto da luz, maiores são as sombras que a perseguem. Não
pode fugir daquilo que o destino lhe trará. Mas pode encara-lo.
Eu começava a compreender. Então minha última caçada começou. Eu esperava um alvo
poderoso, mas quando compreendi, percebi que deveria derrotar a mim mesma. Morrer, de fato,
para ressurgir mais forte, porem maculada por uma não vida. Surpresa, neguei. Havia então
entendido o significado dos bonecos de madeira. Eram fantoches de meu mestre. Eu não iria me
tornar uma arma dele. Eu tomaria minhas decisões e encararia meu destino, e não ele.
Ele disse que havia tomado a escolha errada. Todos antes de mim escolheram a luz e se
tornaram verdadeiros servos de meu mestre. Eu, entretanto, escolhi as trevas. Minha
desobediência teria um custo, e dessa forma, ele tentou me matar. Eu ainda não poderia derrota-
lo. Precisei fugir, e fraca, estava ferida, por meu mestre, e beirava a morte.
O Mestre das Marionetes, era como ele se chamava. Um vilanesco lorde que imbuia almas
em bonecos e criava armas para servir a alguém. Eu sabia que algumas dessas armas iriam me
perseguir, e eu não suportaria. Não mesmo... Até que achei alguém. Ele dizia ser um viajante de
terras longínquas, e me contou sobre um lorde e uma terra amaldiçoada, que precisava de
caçadores de monstros como eu. Então, eu pensei em me esconder lá. Ele disse que me levaria
para tal lugar, e curou minhas feridas, mas em troca pediu que eu fizesse algo para ele. Algo
simples. Usar um colar de uma única joia, tão escura quanto ébano. Zircônio puro, preso em uma
corrente prateada. Eu não entendi, mas quando coloquei o penduricalho, senti minha alma
fragmentar-se. Dor, medo e raiva se apossaram de mim. Eu havia sido enganada, havia sido feita
de cobaia. Mas ele, ao que parecia, estava feliz. Eu havia suportado algo que deveria me matar.
Ele sorriu, e eu senti algo sair de mim. Era como eu, porém um esboço escurecido e apagado, de
feições fúnebres e obscuras. Era uma sombra, um eco de meus desejos vis e profanos. Eu então
entendi o destino. Adrenna, A Portadora da Escuridão. Assim, as brumas me engolfaram, e meu
destino havia me dado um novo começo. Para mim e para mim. Para nos duas, e na dualidade,
éramos a luz e a sombra, uma contra a outra, se ajudando, cedendo a própria sanidade, encurralada
pelo medo absoluto, em detrimento de minha paz, aqui jaz, Adrenna Dimontes, que em vil sombra
esconde-se da angústia de seu sombrio coração. Aqui jaz a caçadora de monstros, que precisava
se tornar mestre de si própria para derrotar o antigo mestre. Aqui jaz minha maior inimiga, o eco
de mim mesma. Aqui jaz eu, e mais ninguém...

Você também pode gostar