Bocejei, cansado. Era madrugada, e a luz cinzenta da manhã começava a
penetrar pelas frestas da janela. Tinha passado a noite escrevendo. Agora, ao terminar, me sentia vazio e um pouco melancólico. Reli o início de minha poesia: Ver um mundo num grão de areia, E um céu numa flor do campo, Capturar o infinito na palma da mão E a eternidade numa hora. Nele, eu prometia aos leitores que conseguiria capturar a eternidade em poucas frases. Essa era minha ideia ao escrevê-la, mas logo tinha percebido que impusera a mim mesmo uma tarefa difícil, quase impossível. Como um poeta poderia capturar a eternidade? Resmunguei para mim mesmo, achando minhas frases simplórias, ridículas, indiferentes. Soavam frias, tão geladas como meu quarto, aquecido apenas pelas brasas de carvão na fornalha de metal que fumegava em um canto. O frio não me incomodara enquanto escrevia absorto em minha criação, acalorado pela inspiração como se essa fosse uma fonte de energia da qual eu bebia insaciavelmente. No entanto, agora sentia-me exausto e gelado até os ossos. Com outro bocejo, levantei-me, peguei uma manta sobre a cama e a joguei nos ombros. Fui até o aquecedor e coloquei mais alguns carvões lá dentro. As pedras estalaram e as brasas se reavivaram, liberando uma fumaça escura e um cheiro forte e acre. Tossindo e esfregando os olhos, abri a janela do quarto. Lá fora, uma fumaça negra também tingia a aurora no horizonte de Londres. Ela vinha das chaminés das recentes indústrias que prometiam levar a Inglaterra a um futuro melhor, cheio de belas coisas para se comprar e ter. Porém, a busca incansável pelo futuro trazia consequências, e uma delas era bem visível naquela manhã. A fumaça se misturava ao fog londrino, escurecendo os telhados das casas com uma poeira negra e densa. Alguns empregados destas novas fábricas passavam sob minha janela. Tinham as costas curvadas, os olhos vermelhos e expressões tristes. Pareciam sombras de seres humanos, quase como fantasmas. Por um breve momento, me senti feliz por não ser um deles, apesar de toda a minha miséria financeira e minhas dívidas. Eles trabalhavam por dias e noites como escravos, e todos sabiam que o salário deles era tão precário quanto meus ganhos, talvez até menor. Enquanto isso, nas ruas da cidade, novas lojas abriam as portas e o comércio fervilhava. Os ricos ficavam cada vez mais ricos, animando a cidade com festas e bailes intermináveis. Um novo deus começava a ser cultuado, o deus-dinheiro, e ele era tão poderoso quanto os deuses antigos. Toda noite e toda manhã Alguém para a miséria está a nascer. Em toda tarde e toda manhã linda Uns nascem para o doce gozo ainda, Outros nascem para uma noite infinda.
Lembrei-me da estrofe em minha poesia. A dor era parte da eternidade. Em
todas as eras do mundo alguns nasciam na miséria, outros na abundância. Pensar no deus-dinheiro me fez reavaliar minha própria situação. Eu nascera em uma família de classe média e tivera uma educação privilegiada ao conseguir uma bolsa na Academia Real de Artes. Mas o dinheiro herdado aos poucos havia acabado, e a falta de um meio de subsistência mais adequado do que a literatura me incomodava. Eventualmente, aceitava encomendas como gravurista, o ofício no qual havia sido treinado, mas muitas vezes esquecia-me dos prazos de entrega por estar ocupado escrevendo. Por que nasci diferente? Por que não sou como os outros? O pensamento voltou a me importunar. Meus amigos de infância tinham seguido os ofícios de suas famílias e prosperavam. Meu pai, se ainda estivesse vivo, iria me desprezar pela minha pobreza. Parte de mim queria esquecer as poesias e começar a escrever romances como pedia Joseph Johnson, meu atual editor. Recordei-me de nosso último encontro: — Romances são a nova moda dos salões londrinos — havia dito Johnson, depois de alertar-me de que minhas poesias não seriam lidas, e minha arte, as gravuras que eu desenhava, seriam desdenhadas como obras de um pintor sem técnica. — Escreva romances se quiser sobreviver — continuara, enquanto me entregava algumas poucas moedas, o pagamento das vendas de meu último livro. Eu havia enfiado as moedas no bolso com um olhar de gratidão, porque sabia que ele, com pena de minha situação precária, acrescentara algumas a mais. — Romances! — eu concordara. Uma ideia fervilhara em minha mente, e eu a descrevera para ele, animado. — Um duque encontra uma dama em um salão londrino. Ela é jovem, inexperiente. Ele, um libertino. Poderia insinuar algumas cenas eróticas? Um beijo talvez, uma leve carícia sobre os seios da dama... Ou seria ousado demais? — Excelente! Ouse o quanto quiser! — Os olhos do editor brilharam, certamente imaginando o escândalo na sociedade e o consequente lucro das vendas. — Quero o primeiro capítulo pronto amanhã à tarde! Eu tinha saído do encontro confiante e alegre. Inspirações para romances não me faltavam. Encontros sensuais em aposentos escuros nas mansões de campo... Uma tarde na floresta... Traições e intrigas palacianas entre noites intermináveis de sexo quente. Entretanto, quando me sentara para escrever no início da noite, somente poesias haviam surgido em minha alma, lutando para sair à luz. O romance sensual tinha se evaporado misteriosamente, e minha mão voltara a escrever em rimas. Frase tolas sobre anjos e demônios, sobre o céu, o inferno e poetas mortos. Sobre a infância e a velhice. As poesias eram minha maldição.
Com um suspiro, deixei a janela e voltei à mesa, sentando-me novamente diante
dela. Ao invés de romances, eu me ocupava com a eternidade. Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é: Infinito, escrevi em um papel a parte, guardando a ideia para mais tarde. — Infelizmente, William — murmurei para mim mesmo, desanimado, — a eternidade não paga as contas. Por um instante, pensei em amassar a poesia sobre a mesa e jogá-la ao fogo, mas uma batida leve na porta me distraiu. — Entre! — gritei, irritado. A batida na porta salvara a poesia de meu gesto impensado. Uma mulher entrou. Suas vestes eram simples e a pele clara parecia ainda mais pálida sob a luz fraca da manhã. Catherine, minha esposa. Ela era analfabeta quando a conhecera. Eu a ensinara a ler, e em troca ela se devotava a mim apaixonadamente, como se eu fosse mais um anjo do que um homem. Contudo, de anjo eu não tinha nada, pois a traia constantemente com várias amantes. Os desejos de meu corpo sempre haviam vencido minhas considerações moralistas. “O caminho do excesso leva as portas da sabedoria... Quem rejeita o desejo é porque o seu é fraco o suficiente para ser rejeitado.” Costumava aplacar minha culpa com frases de efeito. Catherine deixou um prato de sopa e um pão sobre a mesa. — Coma. — Ela sorriu e acariciou meus cabelos. — Passou a noite sem dormir de novo? Fiz que sim, sorrindo de volta. Éramos mais amigos do que amantes e, apesar de minhas traições, nos entendíamos bem. Enquanto eu comia, ela pegou meus escritos e leu: A verdade com mau intuito Supera a mentira de muito. É justo que assim deva ser: É do homem a dor e o prazer... — Gostou? — indaguei, esperando ouvir um não em resposta. — Sim — ela afirmou, como sempre. — Sua poesia é inspirada por seres de outro mundo. — Os arcanjos são meus fãs — ironizei. — Não sabem que são os demônios que vivem em meu coração quem me inspiram. Mas, quem quer saber sobre anjos e demônios nos dias de hoje? — Balancei a cabeça, desanimado. — Prometi um romance ao meu editor e jurei que levaria o primeiro capítulo até o fim da tarde. Tamborilei meus dedos sobre a mesa, me sentindo infeliz, enquanto rascunhava uma imagem para ilustrar a poesia em um papel já cheio de borrões e rascunhos. Ela deu de ombros. — Leve a poesia. Ele vai entender. Erguei-me com um pulo e grunhi uma resposta mal-humorada: — Chega de poesias! Sabe o que dizem de mim nos círculos literários? Que sou louco, que tenho visões! Peguei meus escritos, agora decidido a jogá-lo entre as brasas. Catherine adivinhou minhas intenções e barrou meu caminho, arrancando os papeis de minhas mãos. — Covarde! Eu mesmo levo, se quiser! — Ela franziu a testa com um olhar de reprovação. — Que importa o que os outros falam? Esses escritos não são seus, não tem o direito de destruí-los. — Não são meus? — Soltei uma risada sarcástica. No entanto, sabia que ela falava a verdade. De onde vinha a verdadeira inspiração? Um autor era um mero instrumento de algo misterioso, um simples transmissor de verdades ocultas que vinham de regiões sombrias, por onde nossa alma andava em devaneios noturnos. Muitas vezes, parecia que outro ser ditava as frases para mim, enquanto eu as transcrevia febrilmente. Personagens surgiam em minha mente, sem que eu tivesse planejado nada. E se, por algum motivo, me recusasse a escrever sobre eles, me perseguiam incansavelmente em sonhos. Felizmente, Catherine sabia que não adiantava discutir comigo. Em silêncio, somente enrolou os papéis com meus escritos, colocou-os debaixo do braço e saiu do quarto. Me joguei na cadeira, desta vez decidido a escrever o romance. Peguei a caneta tinteiro e molhei a ponta no frasco de tinta preta, puxando mais um papel da pilha que se encontrava sobre o canto da mesa. Comecei: Era o primeiro baile de Lucille. O brilho de sua pele azeitonada, herdada de uma avó africana, fazia os olhares dos homens desviarem-se para ela. O sobrenome dela, Carnagie, carregava o odor do escândalo desde que o tal avô, um conde e explorador de terras exóticas, abandonara a noiva da sociedade para casar-se com uma mulher de uma aldeia. Mas Lucille carregava o sobrenome com orgulho. Ela tinha o sangue do avô aventureiro e se sentia uma mulher livre, mesmo que tivesse que seguir todas as regras da implacável sociedade londrina naquela noite. O baile estava cheio de danças e risos. Lucille sorria para todos, e ainda mais para os lordes que continuavam a devorá-la com os olhos. Pelo bem de sua família falida financeiramente, um daqueles homens logo seria seu marido. E quando o Duque de Brighton se apresentou, ela decidiu que seria ele. E não protestou quando o poderoso lorde a conduziu para o interior da mansão, através de corredores solitários, até uma sala vazia. E não protestou também quando ele trancou a porta. — O que está fazendo? — Lucille ofegou quando o duque a tomou nos braços. — Jamais entregarei meu coração ou o corpo a um libertino. — Jamais é um tempo muto longo — respondeu o lorde, apertando-a contra si. Lábios quentes tocaram os de Lucille e mãos fortes resvalaram delicadamente sobre o tecido fino que cobria seus seios. — Não, Não! — ela implorou, enquanto o abraçava com força, contradizendo- se. — Você será minha, Lucille! Hoje! Lucille o beijou sofregamente. Entretanto, de repente, percebeu que os olhos negros de Brighton se tornavam azuis claros, e os cabelos densos e escuros clareavam para uma tonalidade quase gelo, enquanto asas cresciam nas costas sobre o fraque. Asas nas costas? — Não! — gritei, virando-me para trás. Um anjo alto e de cabelos loiros quase brancos inclinava-se sobre meu ombro, lendo minhas palavras. Vestia um fraque preto e camisas brancas de gola bordada, como um dos personagens do baile. Asas negras pairavam no ar, saindo de seus ombros. — Deixe-me em paz, Lúcifer! — rosnei, irado. — Estão me acusando de loucura por causa destas visões. Em outra época, eu já teria sido queimado em uma fogueira. O anjo-demônio sorriu. Estendendo a mão, pegou meu escrito. — Certamente, este romance seria um sucesso absoluto! — Com uma gargalhada, jogou-o sobre as brasas dos carvões. — Merda... — murmurei o palavrão, observando a folha queimar. Lágrimas quase saíram de meus olhos, quando me lembrei de minhas dívidas e meus credores. Lúcifer puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado. Seu perfume, semelhante às rosas antigas, invadiu meu nariz, seduzindo-me e impedindo mais protestos. — Escreve aí... — ordenou ele. Suspirei, empunhando novamente a caneta. — O Homem não tem um corpo distinto de sua alma — começou o anjo —, pois o que chamamos de corpo é uma parte da alma discernida pelos cinco sentidos, os principais acessos da alma. Parei de escrever e estreitei os olhos para ele. — Por Deus... Quem é que se preocupa com isso? Ninguém vai ler essa merda! — Modos, William! — O anjo não se abalou com minha crítica. — Continue! Energia é a única vida e provém do corpo. Tudo no Universo é energia. Grunhi uma exclamação de dúvida e voltei a olhar para ele. — Tem certeza disso? — Franzi a testa, indeciso. — Daqui a duzentos anos, os cientistas provarão o que estou dizendo. — Ele bateu um dedo na mesa, impaciente. — Se você diz... — murmurei, meio contrariado, molhando novamente a ponta da caneta no pote de tinta.
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William Blake (1757- 1827)
William Blake era um homem de muitos talentos: um ilustrador, poeta, escritor, pintor e místico. Embora seu trabalho tenha capturado a imaginação de muitos e inspirado inúmeros autores, ele foi desvalorizado em sua própria vida. Afirmava ter visões e conversas com anjos, demônios e poetas mortos, que o inspiravam a escrever. Muitos de seus livros tem imagens gravadas semelhante às iluminuras medievais. William Blake criou obras icônicas tanto nos meios literários quanto artísticos e foi muito influenciado pelas mudanças sociais e pelo contexto político de sua época, entre elas a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Original, experimental e místico, seu trabalho continua a entreter e desafiar os leitores, séculos depois. As estrofes do texto foram retiradas da poesia Augúrios da Inocência.1
1 Disponível em inglês em Auguries of Innocence by William Blake | Poetry Foundation