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A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho,
dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o
escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em
canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá
fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
“Que suprema felicidade foi hoje a minha, querida desta alma! Como tu
estavas, linda, terna, amante, encantadora! Nunca te vi assim, nunca me
pareceste tão bela! Que deliciosa variedade há em ti, minha Rosa adorada!
Possuir-te é gozar de um tesouro infinito, em esgotável. Juro-te que já não
tenho mérito em te ser fiel, em te protestar e guardar esta lealdade exclusiva
que te hei-de consagrar até ao último instante da minha vida: não tenho
mérito algum nisso. Depois de ti, toda a mulher é impossível para mim, que
antes de ti não conheci nenhuma que me pudesse fixar. E o que eu te estimo
e aprecio além disso. A ternura de alma verdadeira que tenho por ti. Onde
estavam no meu coração estes afectos que nunca senti, que só tu despertaste
e que dão à minha alma um bem-estar tão suave? Realmente que te devo
muito, que me fizeste melhor, outro do que nunca fui.” Almeida Garret
“Diz a Madame de Stael que os primeiros amores não são os mais fortes
porque nascem simplesmente da necessidade de amar. Assim é comigo;
mas, além dessa, há uma razão capital, e é que tu não te pareces nada com as
mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como o teu são
prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa,
razão tão recta não são bens que a natureza espalhasse às mãos cheias (…).
Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar,
sentir, e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote
que realça os mais: sofreste. É minha ambição dizer à tua grande alma
desanimada: «levanta-te, crê e ama: aqui está uma alma que te compreende e
te ama também” Machado de Assis
(voz 1 ) – Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
(voz 2) – Durma na cama, mãe.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único
troféu de sua vida. Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se
volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava
pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus
pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu
rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
(voz 1) – Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em
surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o
chão da cozinha, ela dizia:
(voz 1) – Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o
tempo.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo
quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a
casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a
estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto
doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio
que tudo inundava.
(colocar na caixa de som a música “Onde nasci passa um rio”)