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02/10 → “A quinta história”: a mulher que escreve, infinitamente

+ Clarice colunista feminina

Clarice escreveu colunas femininas, primeiramente sob o pseudônimo de Tereza


Quadros em 1952 e, em 1960, como ghost writer para a atriz e modelo Ilka Soares, em uma
coluna intitulada “Só para Mulheres”. Há, também, indícios de que ela pode ter escrito ainda
sob outro pseudônimo, Helen Palmer, para o jornal Correio da Manhã, na coluna “Correio
Feminino — Feira de Utilidades”. Nádia Battella Gotlib, na biografia Clarice: uma vida que
se escreve, deixa em aberto essa possibilidade, sem concluir que se tratasse, de fato, de
Clarice. Já Aparecida Maria Nunes, especialista na produção jornalística de Clarice, conclui
que se trata, efetivamente, de outro pseudônimo da escritora, incluindo, inclusive, textos dessa
coluna na antologia Clarice na cabeceira: jornalismo. Ainda segundo Nunes, Clarice teria
escrito “cerca de 450 colunas na imprensa feminina, o que equivale a aproximadamente 5 mil
textos, distribuídos em fragmentos de ficção, crônicas, noticiário de moda, conselhos de
beleza, receitas de feminilidade, dicas de culinária, educação de filhos e comportamento.”
(NUNES, 2012, p.12).

+ ambiguidades e hesitações: crônica “Mulher demais” - 1968

Uma vez me ofereceram fazer uma crônica de comentários sobre acontecimentos, só que essa
crônica seria feita para mulheres e a estas dirigida. Terminou dando em nada a proposta,
felizmente. Digo felizmente porque desconfio de que a coluna ia era descambar para assuntos
estritamente femininos, na extensão em que feminino é geralmente tomado pelos homens e
mesmo pelas próprias humildes mulheres: como se mulher fizesse parte de uma comunidade
fechada, à parte, e de certo modo segregada. Mas minha desconfiança vinha de lembrar-me do
dia em que uma moça veio me entrevistar sobre literatura, e, juro que não sei como,
terminamos conversando sobre a melhor marca de delineador líquido para maquilagem dos
olhos. E parece que a culpa foi minha. Maquilagem dos olhos também é importante, mas eu
não pretendia invadir as seções especializadas, por melhor que seja conversar sobre modas e
sobre a nossa preciosa beleza fugaz. (LISPECTOR, 1999a, p.108-109)

+ entrevista concedida a Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant’Anna e João


Salgueiro, no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976

ARS: No Diário da Tarde você fazia todas as seções também?


Não. No Diário da Tarde eu fazia uma página feminina, assinando como Ilka Soares, a atriz.
Metade do dinheiro era para ela, metade era para mim. E ela bem que gostava: o nome dela
aparecia todos os dias e não tinha trabalho nenhum... Mas era divertido mesmo, a gente
consultava muita revista, via o modo de pintar o olho... (risos) (LISPECTOR, 2013, p.209)
+ a crítica de Álvaro Lins

Um romance, em si mesmo, deve ser visto como obra independente, esquecidas no momento
todas as circunstâncias. Ora, neste caso, acima do próprio romance, o que mais se destaca no
livro é a personalidade da sua autora. Um romance bem feminino, como se vê. Mas êste
caráter feminino não dispensa a obrigação que há, em todo autor, de transfigurar a sua
individualidade na obra independente e íntegra em si mesma. Parece-me que, neste sentido, a
Sra. Clarisse Lispector não atingiu todo o objetivo da criação literária. O leitor menos
experiente confundirá com a obra criada aquilo que é apenas o esplendor de uma micante
personalidade. Personalidade estranha, solitária e inadaptada, com uma visão particular e
inconfundível. (LINS, 1963, p.189)
+ “Meio cômico, mas eficaz” — texto publicado na coluna feminina que Clarice
assinava como Tereza Quadros, no jornal Comício

De que modo matar baratas? Deixe, todas as noites, nos lugares preferidos por esses bichinhos
nojentos, a seguinte receita: açúcar, farinha e gesso, misturados em partes iguais. Essa iguaria
atrai as baratas que a comerão radiantes. Passado algum tempo, insidiosamente o gesso
endurecerá dentro das mesmas, o que lhes causará morte certa. Na manhã seguinte, você
encontrará dezenas de baratinhas duras, transformadas em estátuas. Há ainda outros
processos. Ponha, por exemplo, terebintina nos lugares frequentados pelas baratas: elas
fugirão. Mas para onde? O melhor, como se vê, é mesmo engessá-las em inúmeros
monumentozinhos, pois “para onde” pode ser outro aposento da casa, o que não resolve o
problema. (LISPECTOR, 2012, p.76)

+ “A quinta história”, publicado em A legião estrangeira, em 1964

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O


Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias,
verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se
mil e uma noites me dessem.
A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma
senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes
iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o
de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.
A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim:
queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o
assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas
eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora
de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei
a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me
tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal
secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali
estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa
morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria
gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a
gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas
espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza.
De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de
serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em
sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha.No chão da área lá estavam
elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um
galo cantou.
A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me
queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de
madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área
na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo,
distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas
que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de
um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a
primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no
escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas,
com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da
noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de
inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo
próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! —
essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que,
usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam.Enquanto aquela ali, a de antena
marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não
ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de
mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente e olho a derrocada
de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da
história anterior canta o galo.
A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de
baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para
os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana.
Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de
um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao
encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela
vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que
rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava
eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma.
Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi
dedetizada”.
A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”.
Começa assim: queixei-me de baratas. (LISPECTOR, 1999b, p.74-76)

Affonso Romano de Sant’Anna vê nesse conto uma poética clariciana: “a estrutura desse
conto tem muito a ver com a estrutura concêntrica e também espiralada da narrativa de
Clarice.” (SANT’ANNA, 2013, p.124). Espirais: outras formas para o abismo. E é de abismo
que se trata, aqui: as narrativas são encaixadas, cada uma surgindo do detalhe da outra.
(VIANNA, 2023, p.116)
+ “As metamorfoses do mal em Clarice Lispector”, Yudith Rosenbaum

A moldura do conto nos remete à infinitude das narrativas e o teor do enredo, ao contrário,
nos envia à morte – o que instaura o primeiro campo tensional do texto. (ROSENBAUM,
1999, p.201)

A pacata dona de casa se descobre uma assassina em potencial. Seu amor pela perversão, bem
como a evidente excitação do mal, parecem ser seu próprio mal secreto, do qual, a partir de
agora, a narradora será incapaz de se livrar. Legitimada pela necessidade higiênica de eliminar
as baratas — que encarnam esse “mal secreto que roía casa tão tranqüila” — a narradora
transforma seu crime em gozo sádico, estético e sexual, confundindo perfidamente o leitor.
(ROSENBAUM, 1999, p.202)

O fio da história interrompe-se antes de seu desenvolvimento, restando um vazio de sentidos


não simbolizados pela escrita. Aliás, está aí uma outra e fundamental marca da escrita
clariciana: a impossibilidade de narrar. O que se narra, no limite, é uma impotência de
representar a totalidade; narra-se quase uma mudez, uma paralisação do pensamento. O
caminho do emudecimento como desistência da narrativa acena para o alerta de Walter
Benjamin, que anteviu a extinção da arte de narrar. Clarice também: “A vida não é relatável”,
diz a autora em sua busca do mínimo a dizer, como se as palavras antes encobrissem do que
revelassem a realidade. (ROSENBAUM, 1999, p.203)
+ “Fios de seda”

Quase não li Henry James, que parece que é maravilhoso, segundo um amigo meu.
Ele, Henry James, é hermético e claro. Citando James estarei me tornando hermética para os
meus leitores? Lamento muito. Eu tenho que dizer as coisas, e as coisas não são fáceis. Leiam
e releiam a citação. Aí está ela, traduzida por mim do inglês:
“Que espécie de experiência é necessária, e onde ela começa e acaba? A experiência
nunca é limitada e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, uma espécie de enorme teia
de aranha, feita dos fios mais delicados de seda suspensos na câmara do consciente, e que
apanha no seu tecido cada partícula trazida pelo ar. É a própria atmosfera da mente; e quando
a mente é imaginativa – muito mais quando se trata da de um homem de gênio – ela apanha
para si as mais leves sugestões, abriga os próprios pulsos do ar em revelações.”
Sem nem de longe ser de gênio, quantas revelações. Quantos pulsos apanhados no fino
ar. Os delicados fios suspensos na câmara do consciente. E no inconsciente a própria enorme
aranha. Ah, a vida é maravilhosa com suas teias captantes.
Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência. Mas sou
objetiva também. Tanto que consigo tornar o subjetivo dos fios de aranha em palavras
objetivas. Qualquer palavra, aliás, é objeto, é objetiva. Além do mais, fiquem certos, não é
preciso ser inteligente: a aranha não é, e as palavras, as palavras não se podem evitar. Vocês
estão entendendo? Nem precisam. Recebam apenas, como eu estou dando. Recebam-me com
fios de seda. (LISPECTOR, 1999a, p.194)
REFERÊNCIAS

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2013.

LINS, Álvaro. Experiências Várias: a Transbordante, a Incompleta e a Falhada. In: Os mortos


de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.

LISPECTOR, Clarice. Entrevista de Clarice Lispector por Marina Colasanti, Affonso Romano
de Sant’Anna e João Salgueiro realizada no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976. In:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Com Clarice. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

LISPECTOR, Clarice. Meio cômico, mas eficaz. In: NUNES, Aparecida Maria. (org.) Clarice
na cabeceira: jornalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

ROSENBAUM, Yudith. As metamorfoses do mal em Clarice Lispector. In: REVISTA USP ,


São Paulo, n.41, p. 198-206, março/maio 1999.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: Com Clarice. São Paulo:
Editora Unesp, 2013.

VIANNA, Rafaela Faria. Fazer, na escrita, o abismo dela: a mulher que escreve em Um sopro
de vida e Emily L. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2023.
Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/59035

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