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Uma vez me ofereceram fazer uma crônica de comentários sobre acontecimentos, só que essa
crônica seria feita para mulheres e a estas dirigida. Terminou dando em nada a proposta,
felizmente. Digo felizmente porque desconfio de que a coluna ia era descambar para assuntos
estritamente femininos, na extensão em que feminino é geralmente tomado pelos homens e
mesmo pelas próprias humildes mulheres: como se mulher fizesse parte de uma comunidade
fechada, à parte, e de certo modo segregada. Mas minha desconfiança vinha de lembrar-me do
dia em que uma moça veio me entrevistar sobre literatura, e, juro que não sei como,
terminamos conversando sobre a melhor marca de delineador líquido para maquilagem dos
olhos. E parece que a culpa foi minha. Maquilagem dos olhos também é importante, mas eu
não pretendia invadir as seções especializadas, por melhor que seja conversar sobre modas e
sobre a nossa preciosa beleza fugaz. (LISPECTOR, 1999a, p.108-109)
Um romance, em si mesmo, deve ser visto como obra independente, esquecidas no momento
todas as circunstâncias. Ora, neste caso, acima do próprio romance, o que mais se destaca no
livro é a personalidade da sua autora. Um romance bem feminino, como se vê. Mas êste
caráter feminino não dispensa a obrigação que há, em todo autor, de transfigurar a sua
individualidade na obra independente e íntegra em si mesma. Parece-me que, neste sentido, a
Sra. Clarisse Lispector não atingiu todo o objetivo da criação literária. O leitor menos
experiente confundirá com a obra criada aquilo que é apenas o esplendor de uma micante
personalidade. Personalidade estranha, solitária e inadaptada, com uma visão particular e
inconfundível. (LINS, 1963, p.189)
+ “Meio cômico, mas eficaz” — texto publicado na coluna feminina que Clarice
assinava como Tereza Quadros, no jornal Comício
De que modo matar baratas? Deixe, todas as noites, nos lugares preferidos por esses bichinhos
nojentos, a seguinte receita: açúcar, farinha e gesso, misturados em partes iguais. Essa iguaria
atrai as baratas que a comerão radiantes. Passado algum tempo, insidiosamente o gesso
endurecerá dentro das mesmas, o que lhes causará morte certa. Na manhã seguinte, você
encontrará dezenas de baratinhas duras, transformadas em estátuas. Há ainda outros
processos. Ponha, por exemplo, terebintina nos lugares frequentados pelas baratas: elas
fugirão. Mas para onde? O melhor, como se vê, é mesmo engessá-las em inúmeros
monumentozinhos, pois “para onde” pode ser outro aposento da casa, o que não resolve o
problema. (LISPECTOR, 2012, p.76)
Affonso Romano de Sant’Anna vê nesse conto uma poética clariciana: “a estrutura desse
conto tem muito a ver com a estrutura concêntrica e também espiralada da narrativa de
Clarice.” (SANT’ANNA, 2013, p.124). Espirais: outras formas para o abismo. E é de abismo
que se trata, aqui: as narrativas são encaixadas, cada uma surgindo do detalhe da outra.
(VIANNA, 2023, p.116)
+ “As metamorfoses do mal em Clarice Lispector”, Yudith Rosenbaum
A moldura do conto nos remete à infinitude das narrativas e o teor do enredo, ao contrário,
nos envia à morte – o que instaura o primeiro campo tensional do texto. (ROSENBAUM,
1999, p.201)
A pacata dona de casa se descobre uma assassina em potencial. Seu amor pela perversão, bem
como a evidente excitação do mal, parecem ser seu próprio mal secreto, do qual, a partir de
agora, a narradora será incapaz de se livrar. Legitimada pela necessidade higiênica de eliminar
as baratas — que encarnam esse “mal secreto que roía casa tão tranqüila” — a narradora
transforma seu crime em gozo sádico, estético e sexual, confundindo perfidamente o leitor.
(ROSENBAUM, 1999, p.202)
Quase não li Henry James, que parece que é maravilhoso, segundo um amigo meu.
Ele, Henry James, é hermético e claro. Citando James estarei me tornando hermética para os
meus leitores? Lamento muito. Eu tenho que dizer as coisas, e as coisas não são fáceis. Leiam
e releiam a citação. Aí está ela, traduzida por mim do inglês:
“Que espécie de experiência é necessária, e onde ela começa e acaba? A experiência
nunca é limitada e nunca é completa; é uma imensa sensibilidade, uma espécie de enorme teia
de aranha, feita dos fios mais delicados de seda suspensos na câmara do consciente, e que
apanha no seu tecido cada partícula trazida pelo ar. É a própria atmosfera da mente; e quando
a mente é imaginativa – muito mais quando se trata da de um homem de gênio – ela apanha
para si as mais leves sugestões, abriga os próprios pulsos do ar em revelações.”
Sem nem de longe ser de gênio, quantas revelações. Quantos pulsos apanhados no fino
ar. Os delicados fios suspensos na câmara do consciente. E no inconsciente a própria enorme
aranha. Ah, a vida é maravilhosa com suas teias captantes.
Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais. É minha tendência. Mas sou
objetiva também. Tanto que consigo tornar o subjetivo dos fios de aranha em palavras
objetivas. Qualquer palavra, aliás, é objeto, é objetiva. Além do mais, fiquem certos, não é
preciso ser inteligente: a aranha não é, e as palavras, as palavras não se podem evitar. Vocês
estão entendendo? Nem precisam. Recebam apenas, como eu estou dando. Recebam-me com
fios de seda. (LISPECTOR, 1999a, p.194)
REFERÊNCIAS
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2013.
LISPECTOR, Clarice. Entrevista de Clarice Lispector por Marina Colasanti, Affonso Romano
de Sant’Anna e João Salgueiro realizada no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976. In:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Com Clarice. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
LISPECTOR, Clarice. Meio cômico, mas eficaz. In: NUNES, Aparecida Maria. (org.) Clarice
na cabeceira: jornalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O ritual epifânico do texto. In: Com Clarice. São Paulo:
Editora Unesp, 2013.
VIANNA, Rafaela Faria. Fazer, na escrita, o abismo dela: a mulher que escreve em Um sopro
de vida e Emily L. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2023.
Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/59035