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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

DANIEL BRAGA LOURENÇO

DIREITO, ALTERIDADE E ESPECISMO

Área de Concentração: “Direito, Estado e Cidadania”

Dissertação de Mestrado

Rio de Janeiro - 2005


UNIVERSIDADE GAMA FILHO - UGF

DANIEL BRAGA LOURENÇO

DIREITO, ALTERIDADE E ESPECISMO

Dissertação de Mestrado apresentada na


Universidade Gama Filho – UGF como
parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor RICARDO LOBO


TORRES
O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama
Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as
determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formato(s)

( X ) Fotocópia ( X ) Meio digital

Assinatura do autor: _________________________________________________


Dedico esta obra à encantadora EVIE (1991-
2005) que sempre nos iluminou e nos trouxe
infinita alegria. Com o amor incondicional a
mim proporcionado, permitiu que meu
coração partilhasse verdadeiramente o ser de
outrem. Enquanto ela crescia, nós
crescíamos juntos. Dividiu comigo as minhas
angústias sempre me estimulando a sorrir.
Os olhos azuis da idade, o focinho ficando
cinzento e o rabinho sempre a nos saudar...
Com tintas indeléveis, pintei seu retrato no
meu coração, EVIE. Muito obrigado por toda
a alegria, por todo o amor e por todo o
aprendizado. Sempre estaremos caminhando
juntos.

II
AGRADECIMENTOS

Esta obra nasceu dentro do curso de mestrado da Universidade


Gama Filho – UGF/RJ, na área de concentração de “Direito, Estado e Cidadania”.
Por essa razão, agradeço a todos os professores, colegas e funcionários que me
estimularam a dar continuidade ao projeto desta tese, em especial ao ilustre
professor Ricardo Lobo Torres, grande humanista que, com seu brilho e
dedicação, pacientemente me orientou por todo esse período. Não poderia deixar
de citar a inestimável colaboração do amigo e igualmente brilhante professor
Francisco Mauro Dias, que também sempre me trouxe valiosos conselhos e
sugestões. Todavia, essa não é uma obra meramente acadêmica, é uma obra
que expressa minhas convicções pessoais acerca de um tema polêmico, qual
seja a condição ética e jurídica dos animais não-humanos. A esse respeito, recebi
particular estímulo dos trabalhos pioneiros de Peter Singer, Tom Regan, Steven
Wise, Gary Francione e Keith Thomas, bem como me vali imensamente da
excelente obra filosófica de Danilo Marcondes e de tantas outras. Devo a maior
parte do que sei a todos esses valorosos autores que, bravamente, já tiveram a
oportunidade de explorar o palpitante assunto. Sua luta incessante e seu
comprometimento com a causa dos animais não-humanos permitiram que
conseguíssemos espaço para um debate menos preconceituoso e, ao mesmo
tempo, mais criterioso. Gostaria também de agradecer a toda a minha família por
ter continuamente fornecido os alicerces éticos e intelectuais que me permitiram
alargar os meus horizontes morais para abraçar toda uma enorme gama de seres
que são injustificavelmente negligenciados pela maior parte das pessoas. Além
disso, fico grato a meus familiares por todo o suporte que deram a este projeto –
uma tarefa que deve ter parecido um tanto quanto arriscada. Meus pais e meu
irmão, eternos companheiros, amigos e brilhantes advogados, sempre me
ajudaram muito nas pesquisas e nas revisões do texto. Em particular, beneficiei-
me grandemente das sempre construtivas sugestões de minha mãe que,
incansavelmente, abdicando de boa parte de seu tempo, ajudou-me prestando-
me um auxílio inestimável. À linda Ana Paula, que me apoiou de forma incessante

III
e me incentivou carinhosamente em todos os momentos, gostaria de manifestar
um agradecimento todo especial. Finalmente, como não poderia deixar de ser,
gostaria de deixar expressa toda minha gratidão para com todos os animais não-
humanos com os quais tive e tenho a maravilhosa oportunidade de conviver (a
minha família não-humana - EVIE, CHEIDE, CHILA, MIGUELITA, LOIRINHA,
ELVIS, CHAYLA, LARA e FREDDO – mostrou-me que animais podem pensar,
sentir, sofrer e interagir conosco em níveis muito profundos) e a todos os demais
que, continuamente, fazem da minha vida um eterno aprendizado de amor,
sinceridade, admiração, lealdade e respeito.

IV
“Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a
adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não
ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro
da pele não é motivo para que um ser humano seja
irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É
possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a
vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões
igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao
mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A
faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um
cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e
comunicativos do que um bebê de um dia, uma semana, ou até
mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim,
que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de
raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são
capazes de sofrer?’”

JEREMY BENTHAM (1748-1832) 1

1
BENTHAM, The Principles of Morals and Legislation, apud SINGER, Peter. Libertação Animal.
Tradução por Marly Winckler. Porto Alegre, São Paulo: Lugano, 2004. p. 8-9. Jeremy Bentham
nasceu em Londres, em 15 de fevereiro de 1748. Estudou em Oxford, no Queen´s College.
Começou o estudo do Direito em 1763, em Londres, tendo, mais tarde, se integrado ao King´s
Bench, uma divisão da Corte Suprema Britânica. A obra supracitada foi originalmente publicada
em 1789, época em que, embora grandes mudanças começassem a surgir, os escravos das
possessões inglesas e demais colônias ainda eram tratados quase do mesmo modo como hoje
tratamos os animais.

V
RESUMO

O presente trabalho aborda o tema dos direitos dos animais não-


humanos. Fui despertado para o debate ainda quando bastante jovem quando,
pela primeira vez, me deparei com a obra de Peter Singer, Libertação Animal. O
objetivo central da dissertação consiste na demonstração de que o tratamento
ético e jurídico dispensado aos animais não-humanos está baseado em
premissas absolutamente equivocadas. O esquema dialético fundado na idéia de
um centro “humano” de mundo e de uma periferia “natural” (antropocentrismo)
encontra-se em crise e está se esgotando rapidamente, cedendo espaço para a
consolidação de um paradigma “biocêntrico” em cujo centro está a vida como um
todo. Neste cenário, o ser humano constitui apenas mais uma dentre as inúmeras
manifestações das formas de vida, e não deve ser tido como o único a merecer
tratamento respeitoso e digno. Tampouco deve deter a exclusividade da garantia
de direitos. No primeiro capítulo, apresenta-se uma abordagem histórica em que
se pretende demonstrar as raízes culturais do fenômeno do “especismo” que, no
plano do direito, influenciou, de maneira decisiva, a identificação entre os
conceitos de ser humano, pessoa e sujeito de direito. Concluo que os paralelos
entre o especismo, o sexismo e o racismo têm ficado cada vez mais claros com o
passar do tempo. No segundo capítulo, trato de questões éticas. São
apresentadas alternativas à visão de que os animais nada mais seriam que meros
objetos, subdivididas didaticamente em teorias indiretas e diretas. No capítulo
três, aborda-se a insuficiência do discurso ético desvinculado de uma realização
pragmática, na qual o direito tem papel fundamental como estrutura legitimadora,
onde os animais devem ser encarados como sujeitos de direito. Nas
considerações finais, aponto algumas conclusões a que cheguei, sendo também
abordados questionamentos comumente endereçados à teoria dos direitos dos
animais.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Ambiental, Meio Ambiente, Fauna, Animais:


Tratamento, Direito dos Animais Não-Humanos, Especismo, Bem-Estar Animal,
Ética Animal.

VI
ABSTRACT

This work is about non-human animal rights. This issue was brought
up while I was young when, for the first time, I came across Peter Singer’s work,
Animal Liberation. The main goal is to demonstrate that both ethical and lawful
treatment of non-human animals are based upon completely misled premises. The
dialectic approach based on the idea of a world with a “human” center and a
“natural” periphery (anthropocentrism) is on crisis and rapidly fading away, giving
space to the consolidation of a “biocentric” paradigm, in which life, as a whole, is
at the center of all concerns. As a consequence, human life, being only one of the
numerous forms of life manifestation, shall not be the only one to deserve a worthy
and respectful treatment. Moreover, it shall not have the exclusivity of bearing the
guarantee of rights. In the first chapter I sketch the history of speciesism, which, in
the legal system, has influenced, decisively, the fusion between the concepts of
human being, person and right-holders. I conclude that the parallels between
speciesism, sexism and racism have become clearer over the years. In the second
chapter, I deal with the ethical response to the questions that were raised. Direct
and indirect theories are presented as alternatives to the conception that animals
are mere things. The work’s third chapter addresses the insufficiency of the ethical
discourse detached of a pragmatic realization. The law has a fundamental role as
a legitimacy structure, at which the animals shall be entitled as subjects of rights.
Finally, in the fourth chapter, I state the conclusions I have drawn, as well as
frequent questions addressed to the animal rights theory.

KEYWORDS: Environmental Law, Environment, Fauna, Animal Treatment, Non-


Human Animal Rights, Speciesism, Animal Welfare, Animal Ethics.

VII
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... X

CAPÍTULO I – O HOMEM E O MUNDO NATURAL: AS PREMISSAS


1
CULTURAIS DO ESPECISMO................................................................

1.1. O Paradoxo da Humanidade....................................... 4


1.2. Mundo Helênico........................................................... 8
1.2.1. Pré-Socráticos...................................................... 8

1.2.2. Sócrates............................................................... 24

1.2.3. Pensamento Platônico.......................................... 25

1.2.4. A Hierarquia Aristotélica....................................... 29


1.2.5. Antropocentrismo Teleológico e a “Grande
35
Cadeia do Ser”...............................................................
1.2.6. Fase Pós-Aristotélica............................................ 39

1.2.7. O Legado Grego................................................... 44

1.3. Os Romanos................................................................. 47
1.3.1. A Dicotomia “Pessoa/Coisa”................................. 49
1.3.2. Servidão Humana: O Status Jurídico dos
50
Escravos.........................................................................
1.3.3. Servidão Não-Humana: O Status Jurídico dos
52
Animais...........................................................................
1.3.4. Direito Natural....................................................... 54

1.4. Religiões de Salvação: o Cristianismo e outros


58
“ismos”................................................................................
1.4.1. As Religiões Ancestrais........................................ 58

1.4.2. A Concepção Bíblica............................................ 65

1.4.3. O Caso do “Boi que Marra”.................................. 70

1.4.4. Prescrições Dietéticas.......................................... 75


1.4.5. Questões de Alma: O Advento da Pregação
83
Cristã..............................................................................
1.4.6. A Doutrina Agostiniana......................................... 89

VIII
1.5. Idade Média e Tempos Coloniais............................... 97
1.5.1. O Poder Eclesiástico............................................ 98

1.5.2. A Filosofia Tomista............................................... 103

1.5.3. A Reforma Protestante......................................... 108

1.5.4. Em “Berço Esplêndido”......................................... 110

1.6. Modernidade, racionalismo e outros “bichos”......... 114


1.6.1. Rupturas com o “Antigo Regime”......................... 115

1.6.2. Renascença e Revolução Científica..................... 116


1.6.3. Responsabilidade Animal: A Roupagem
121
Legalista dos Julgamentos de Animais..........................
1.6.4. A “Navalha de Occam” e o Mecanicismo............. 126

1.6.5. Objetos de Ódio.................................................... 144

1.6.6. Despersonalização............................................... 150

1.7. Os Contratualistas e Iluministas................................ 163


1.7.1. Hobbes................................................................. 164

1.7.2. Locke.................................................................... 166

1.7.3. Rousseau e Voltaire............................................. 169

1.8. Pensamento Kantiano................................................. 174


1.9. Era Vitoriana e a Revolução de Darwin...................... 177
1.9.1. “Coisificação” Como Status Quo.......................... 177
1.9.2. Novas Sensibilidades........................................... 181

1.9.3. Idéias Embrionárias.............................................. 189

1.9.4. Tímido Alargamento Moral................................... 191


1.9.5. Primeiras Manifestações Legislativas.................. 203

1.9.6. A Ancestralidade Comum: Darwin Triunfante...... 212

CAPÍTULO II – ENTRE O FORMALISMO E A REALIDADE ÉTICA ...... 223

2.1. Teoria da Opressão e a Estratégia de Inferiorização 223


2.2. Teoria dos “Deveres Indiretos”, “Transbordamento
233
Moral” e “Casos Marginais”...............................................
2.2.1. Teorias Indiretas - Breve Recapitulação:
238
Aristóteles e a Posição Religiosa...................................

IX
2.2.2. Teorias Indiretas – Contratualismo: Clássicos e
240
Naverson........................................................................
2.2.3. Teorias Indiretas – Contratualismo: Rawls e o
244
“Véu da Ignorância”........................................................
2.2.4. Teorias Indiretas - Kant e o “Imperativo
250
Categórico”.....................................................................
2.2.5. Teorias Indiretas - Estatutos Protetivos e “Legal
260
Welfarism”......................................................................
2.3. Teorias Diretas............................................................. 269
2.3.1. Teorias Diretas: “Crueldade-Compaixão””............ 269
2.3.2. Teorias Diretas: A Defesa Ética dos Animais por
276
Humphry Primatt e seus Herdeiros................................
2.3.3. Teorias Diretas: O Utilitarismo Clássico e o
283
“Princípio da Maior Felicidade Possível”........................
2.3.4. Teorias Diretas: O Utilitarismo de Singer e o
288
“Princípio da Igual Consideração de Interesses”............

CAPÍTULO III – A LINGUAGEM DOS DIREITOS..................................... 315

3.1. Richard Ryder e o critério da “dorência”.................. 330


3.2. Regan e a “Questão dos Direitos dos Animais”....... 335
3.3. As linhas de Wise......................................................... 353
3.4. Francione: “Chuva sem trovoada”............................. 361

CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................ 391

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................... 403

X
INTRODUÇÃO

“Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que
outros.” 2

GEORGE ORWELL

A triste e real constatação de ORWELL feita na sua conhecida obra


A Revolução dos Bichos (“Animal Farm”) é uma metáfora que inicialmente
pretendia traduzir os mecanismos de degeneração do igualitarismo na
humanidade por meio da alusão à vida dos animais em uma fazenda. No entanto,
a obra vai além de uma primeira análise que poderia se traduzir como um ataque
às políticas totalitaristas. Ela é impiedosamente maior que isso. A sua atualidade
consiste exatamente na precisa exposição das monstruosidades a que o exercício
do poder pode conduzir. Nesse sentido, pode e deve ser interpretada à luz da luta
contra a opressão e toda sorte de dominação. Na fazenda de ORWELL, os
animais domésticos se insurgem contra o jugo desmedido do homem. Nesta obra,
o personagem encarnado por um suíno chamado Major assim se manifestou:
“Pouco mais tenho a dizer. Repito apenas: lembrai-vos sempre do vosso dever de
inimizade para com o Homem e todos os seus desígnios. O que quer que ande
sobre duas pernas é inimigo, o que quer que ande sobre quatro pernas, ou tenha
asas, é amigo. Lembrai-vos também que na luta contra o Homem não devemos
ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios. [...] Todos
os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá
tiranizar outros animais. Fortes ou fracos, espertos ou simplórios, somos todos
irmãos. Todos os animais são iguais.” 3 4

2
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Tradução por Heitor Aquino Ferreira. Rio de
Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. p. 92.
3
Ibid., p. 10.
4
Neste sentido, foram elaborados os sete princípios do animalismo, quais sejam: “Qualquer coisa
que ande sobre duas pernas é inimigo. O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupa. Nenhum animal dormirá em cama. Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal. Todos os animais são iguais” (Ibid., p. 19).

XI
Será realmente que “todos os animais são iguais”? A humanidade
vem sofrendo sucessivos “descentramentos” ao longo da sua história. O primeiro
deles se deu com COPÉRNICO, que logrou retirar do imaginário popular a Terra
como centro do universo5. A segunda “virada” veio com DARWIN por meio da
demonstração científica da natureza animal do homem, pela qual as diferenças
entre ele e os outros animais são apenas de grau e não de categoria. Assim
sendo, não ocuparíamos lugar privilegiado ou especial na “ordem da criação”. O
terceiro “abalo” ao antropocentrismo veio com o questionamento da crença
iluminista do “poder absoluto da razão”, realizado por MARX e FREUD nos
séculos XIX e XX, respectivamente. MARX, por meio da teoria do “materialismo
histórico”, explicitou que as nossas crenças (morais, religiosas, filosóficas e
políticas) são diretamente relacionadas à posição social ocupada pelo indivíduo e
às relações de trabalho e produção. A razão, sob esta ótica, não é inteiramente
fruto da liberdade individual, mas, sim, dos valores subliminarmente incorporados
pelas pessoas no jogo do processo produtivo (poder da “ideologia”). FREUD, por
sua vez, afirma que o homem não é senhor absoluto sequer de sua vontade, de
seus desejos e instintos (poder do “inconsciente”)6. O quarto “descentramento” é o
objeto do presente trabalho, que consiste justamente na ampliação, para além da
fronteira humana, do rol dos seres vivos agraciados com a personalidade jurídica.
Pretende-se examinar criticamente como se construiu, ao longo do tempo, a
identificação dos conceitos de “pessoa” com o de “humanidade”, perfilhando e
consolidando uma proposição radicalmente antropocêntrica dentro do sistema do
Direito. Após tal exame, que tem como objetivo deixar evidenciado que a
apropriação humana do mundo natural não é um fato incontroverso e tampouco
incontestável, será demonstrado que a mudança do paradigma, do

5
A teoria “heliocêntrica” de COPÉRNICO foi apresentada oficialmente com a publicação de sua
obra As Revoluções dos Orbes Celestes em 1543, em substituição à teoria geocêntrica de
PTOLOMEU. Foi posteriormente complementada pela teoria do “universo infinito” de GIORDANO
BRUNO que, entre outras coisas, postulava pela “pluralidade de mundos habitados” (teoria
originalmente sustentada por NICOLAU DE CUSA em 1440).
6
“Mas a megalomania humana terá sofrido o seu terceiro e mais contundente golpe da parte da
pesquisa psicológica atual, que procura provar ao ego que nem mesmo em sua própria casa é ele
quem dá as ordens, mas que deve contentar-se com as escassas informações do que se passa
inconscientemente em sua mente” (FREUD, Sigmund. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin
Claret, 2005. p. 59).

XII
antropocentrismo para o biocentrismo7, conduz a uma necessária ampliação de
nossos horizontes morais. Esta ampliação deve ser seguida de uma também
imprescindível extensão de direitos fundamentais para não-humanos, na
qualidade de sujeitos de direito, não havendo argumentos sólidos para que
continuemos a relegá-los à categoria meramente instrumental de coisa ou objeto8.

Consoante bem observou o filósofo e economista inglês JOHN


STUART MILL em meados do século XIX, todo movimento social pode ser
caracterizado por possuir basicamente três estágios: o ridículo, o debate e, por
fim, a aceitação (ou a rejeição). Nesta linha, historicamente, o movimento dos
denominados Animal Rights (“Direitos dos Animais”) pode ser identificado como
consectário dos movimentos civis pelo reconhecimento de direitos das minorias e
grupos oprimidos. O mais clássico desses movimentos talvez possa ser
identificado como sendo o movimento negro, que, incessantemente, luta contra o
preconceito e a discriminação baseados na “raça”, fatores estes que, infelizmente,

7
LIDIANE ELUIZETE CARVALHO esclarece que: "O antropocentrismo se contrapõe ao
biocentrismo pelo qual, ao invés do homem, é a própria natureza que está no centro das
preocupações com o meio ambiente, inclusive na esfera jurídica. Em face desta idéia radical de
superação do antropocentrismo clássico por uma visão biocêntrica de meio ambiente, defendem
alguns autores um caminho do meio, ou seja, a superação da idéia do homem senhor absoluto e
utilizador e destruidor dos recursos naturais pelo reconhecimento do valor intrínseco do meio
ambiente e a conseqüente inclusão de valores bioéticos na sua proteção jurídica, tornando-se uma
espécie de antropocentrismo alargado (JOSÉ RUBENS MORATO LEITE, PAULO DE BESSA
ANTUNES, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, entre outros)" (CARVALHO, Lidiane Eluizete.
Direito Ambiental Constitucional: Meio Ambiente na Constituição da República de 1988. Rio de
Janeiro: FGV, 2005. p. 6). No entanto, conforme bem observa DANIELLE DE ANDRADE
MOREIRA, a visão tradicional de meio ambiente, antropocêntrica mostrou-se incapaz de garantir
uma proteção ambiental adequada. "A visão estritamente utilitarista do meio ambiente,
caracterizada pela ótica antropocêntrica, cede lugar, então, ao biocentrismo, que, por sua vez,
privilegia a vida em todas as suas formas. Retirando o foco exclusivamente dos interesses do ser
humano, busca-se, por meio da visão biocêntrica, proteger tudo o que seja expressão da vida,
com o objetivo final de manter a harmonia e equilíbrio nas inter-relações do sistema ambiental -
promovendo-se, dessa forma, também o melhor atendimento das necessidades do próprio ser
humano, que integra a natureza, assim como os demais seres vivos. À luz de uma ótica
biocêntrica, torna-se viável a proteção completa do meio ambiente, uma vez que reconhecido -
além dos valores econômicos por ele e por seus elementos representados - o seu valor intrínseco,
entendido como inerente ao reconhecimento do meio ambiente como macrobem, sendo de
natureza, portanto, essencialmente imaterial." (MOREIRA, Danielle de Andrade. Dano Ambiental
Extrapatrimonial. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, área de concentração “Direito da Cidade”, jan. 2003. p. 186).
8
A respeito dos três primeiros “abalos” teóricos sobre a humanidade verificar o excelente artigo de
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos de Um Novo Direito Constitucional
Brasileiro: Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador,
CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 6, setembro, 2001.
Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 29 set. 2005.

XIII
ainda hoje, acabam por, na maior parte das vezes, contribuir significativamente
para negligenciar os negros à condição de cidadãos de “segunda classe”. O
impacto desse movimento serviu de modelo para diversos outros tais como o
movimento dos grupos hispânicos nos EUA, das populações indígenas e nativas,
dos homossexuais, entre tantos outros. No entanto, segundo bem observa o
filósofo PETER SINGER9, quando um grupo, desta vez majoritário, as mulheres,
começaram a sua campanha “emancipadora/abolicionista”, alguns pensaram que
tínhamos chegado ao final da batalha contra a opressão. A discriminação com
base no “sexo”, dizia-se, seria a última fronteira discriminatória a ser
definitivamente rompida e banida de nosso meio. Todavia, como se pretende
demonstrar, essa proposição não é totalmente verdadeira, pois, tal como adverte
SINGER, é sempre bastante arriscado falar-se em “a última forma de
discriminação.”10

De fato, todos os movimentos de libertação caracterizam-se por


demandarem uma expansão de nossos horizontes morais. Por esse motivo, pode-
se dizer que estão intimamente interligados. Interessante notar que a própria
noção de “direitos dos animais” já foi usada anteriormente para ridicularizar e
parodiar o próprio movimento feminista. De fato, quando MARY
WOLLSTONECRAFT (1759-1797) publicou “A Vindication of the Rights of
Women”11 em 1792, suas idéias foram tidas como totalmente descabidas e
absurdas, sendo satirizadas por meio de uma outra publicação anônima da época
intitulada “A Vindication of the Rights of Brutes”12. Posteriormente, se soube que o
autor da crítica era ninguém menos que THOMAS TAYLOR (1758-1835),
renomado filósofo de Cambridge. Pretendia ele ridicularizar as pretensões de

9
REGAN, Tom; SINGER, Peter. Animal Rights and Human Obligations. New Jersey: Prentice-Hall,
1989. p. 148.
10
“Quando as mulheres começaram a reivindicar o direito ao voto ou à igualdade genérica de
direitos, não faziam idéia ao certo onde é que as suas reivindicações nos conduziriam. Não sabem
ainda; nem eu o sei. Mas estou confiante de que se trata de uma mudança para melhor, mesmo
que muitas implicações particulares das alterações verificadas só venham a tornar-se claras com o
tempo. O mesmo pode dizer-se do nosso tratamento dos animais” (LA FOLLETE, Hugh; SHANKS,
Niall. “The Origin of Speciesism”, Philosophy, n. 71, 1996).
11
WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of the Rights of Women. New York: Dover
Publications, 1996 (primeira edição pela London: J.Johnson, 1792).
12
TAYLOR, Thomas. A Vindication of the Rights of the Brutes. Sequim, WA (USA): Holmes
Publishing Group LLC, 2001.

XIV
emancipação feministas de WOLLSTONECRAFT afirmando que se as
tomássemos como válidas, não haveria razão para que não as estendêssemos
também aos animais. O princípio da igualdade de tratamento também deveria
desdobrar-se para ser aplicado a cães, gatos, cavalos e outros animais13.

Apesar de os animais não-humanos14 interagirem com os seres


humanos desde os primórdios da humanidade, ainda possuímos uma atitude
ambivalente a seu respeito. Há uma flagrante disparidade entre o que falamos a
seu respeito e nossas atitudes para com eles. Pesquisas indicam que cerca de
dois terços dos norte-americanos concordaram com a assertiva de que “o direito
de uma animal viver livre de sofrimento deveria ser tão importante quanto o de um
ser humano”. Mais de cinqüenta por cento deles condena veementemente o abate
de animais para servir à indústria da moda e para práticas “esportivas. A maior
parte da população concorda que os animais são equivalentes aos seres
humanos em todos os aspectos relevantes e boa parte delas possui animais de
estimação que são tidos como verdadeiros “membros da família”15. Ao mesmo
tempo, sujeitamos anualmente bilhões de animais a enormes quantidades de
sofrimento. De acordo com o Departamento de Agricultura Norte-Americano, só
nos EUA são mortos mais de 8 bilhões de animais ao ano na indústria alimentícia
entre vacas (37 milhões), porcos (102 milhões), cabras (4 milhões), galinhas (7,9
bilhões), perus (290 milhões), patos (22 milhões) e cavalos (100 mil). Em um

13
A retórica de TAYLOR fundamenta-se na adoção incondicional da doutrina a que denomina de
“igualdade perfeita” (“doctrine of perfect equality”), justificada nas seguintes bases: “Mas tudo isso,
no entanto, é somente uma aproximação da grande verdade, a que este ensaio se destina a
promulgar e provar, a de que não há tal coisa no universo, como a superioridade inata, e que tudo,
quando minuciosamente e acuradamente examinado, por mais vil ou abjeto que possa falsamente
parecer, é, em realidade, de inestimável valor e intrinsecamente igual a uma coisa tida como de
grande magnitude e valor” (TAYLOR, op.cit., p. 5, tradução nossa).
14
Participo da tese de que a utilização do vocábulo “animais” em contraposição a “seres humanos”
é perniciosa na medida em que sugere, subliminarmente, uma separação puramente artificial da
vida e o caráter supostamente incomparável da espécie humana. A dicotomia “animais
humanos/animais não-humanos” é, pois, preferível, haja vista a comunhão da característica da
animalidade por ambas as categorias. Essa é a razão porque se preferiu, ao longo do presente
trabalho, adotar a nomenclatura de “animais não-humanos” (“nonhuman animals”) para designar
os animais que não os seres humanos. Muito embora a pureza terminológica devesse ser
preservada, nota-se que, em diversos momentos, propositadamente, foi adotado somente o termo
“animal”, pagando-se tributo à convenção lingüística e à realização de uma comunicação mais
eficiente.
15
Todos os dados são relativos a pesquisas feitas pela Associated Press e encontram-se no livro
de FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or The Dog? Philadelphia:
Temple University Press, 2000. p. xix.

XV
rápido exercício matemático, somente nos EUA, são abatidos cerca de 23 milhões
de animais por dia para alimentação, ou cerca de 260 a cada segundo16.
Caçadores matam aproximadamente 200 milhões de animais, também nos EUA
(números que não incluem uma enorme quantidade de animais que sobrevive
mas com lesões permanentes e desabilitantes), e outro tanto é utilizado em
experimentos científicos e na indústria do “entretenimento” como zoológicos,
circos, corridas, shows, rodeios, touradas, etc... Nem se fale da indústria da moda
que, ainda hoje, abate cerca de 40 milhões de animais/ano para a confecção de
peças de vestuário. A esmagadora maioria destes animais vive vidas miseráveis,
povoadas de intensa agonia psíquica e sofrimento físico.

O domínio incondicional dos homens sobre o reino animal passou ao


longo da história por diversas etapas que solidificaram essa arcaica visão de
mundo, vindo consolidada desde a filosofia helênica, passando pela gênese
bíblica e chegando praticamente intocada até os dias de hoje.

Ainda que a preocupação ecológica seja crescente, o debate acerca


da condição dos animais não-humanos permaneceu, de certa forma, periférico até
meados da década de setenta, quando uma série de estudos, artigos acadêmicos
e livros reacendeu as discussões sobre o assunto, até então latentes.

De fato, o déficit teórico no tema dos direitos dos animais não-


humanos só começou a ser suprido a partir de então. Diferentes teses, surgidas
principalmente na Europa e nos EUA, sob os mais diversos fundamentos,
começaram a lançar os alicerces para a construção teórica sobre a matéria. O
psicólogo britânico RICHARD RYDER, bem como o já mencionado filósofo
australiano PETER SINGER, com o seu candente Animal Liberation17, foram

16
“Há no mundo 1,35 bilhão de bois e vacas. Criamos 930 milhões de porcos. 1,7 bilhão de
ovelhas e cabras. 1,4 bilhão de patos, gansos e perus, 170 milhões de búfalos. Some todos eles e
teremos uma população de animais quase equivalente à humana dedicando sua vida a nos
alimentar – involuntariamente, é claro. Isso sem incluir 14,85 bilhões de frangos e galinhas. No
Brasil existem 172 milhões de cabeças de gado bovino, uma para cada cabeça humana. Nosso
rebanho bovino só é menor do que o da Índia, onde é proibido matar vacas. Somos o quarto país
do mundo onde mais se come carne bovina. Um brasileiro médio consome também 32 quilos de
frango e 11 quilos de porco todo ano” (BURGIERMAN, Denis Russo. Deveríamos parar de comer
carne? Revista Superinteressante, São Paulo: Abril, n. 175, 2002. p. 43).
17
SINGER, Peter. Animal Liberation. New York: Haper Collins, 2002 (primeira edição em 1975). A
obra foi publicada recentemente no Brasil sob o título de Libertação Animal (Tradução por Marly
Winckler. Porto Alegre: Lugano, 2004).

XVI
alguns dos principais responsáveis pelo abalo à inércia acadêmica sustentando
teses baseadas na “igual consideração de interesses”, (“equal consideration”)
caracterizando e configurando o “especismo”18 como manifestação social análoga

18
O termo “speciescism” (equivalente em português a “especismo” ou “especiesismo”) foi
originariamente cunhado por RICHARD D. RYDER, psicólogo e professor da Universidade de
Oxford, em um artigo intitulado “Experiments on Animals”, datado de 1970, e posteriormente
publicado como parte do livro Animals Men and Morals (Godlovitch, Godlovitch and Harris, 1971).
Posteriormente, consolidou a utilização do termo no livro “Victims of Science: the Use of Animals in
Research” (1975). O referido autor utilizou o neologismo para designar uma forma de injustiça que
significa tratamento diferenciado para aqueles que não integram a mesma espécie. RYDER
procurava, então, traçar um paralelo de nossas atitudes perante as demais espécies e as atitudes
racistas e sexistas. Segundo o autor, todas essas formas de discriminação são fundamentalmente
baseadas em características arbitrárias sendo, por tal motivo, insustentáveis: o “especismo se
presta “[...] para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras
espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de
preconceito que se baseiam em aparências −se o outro indivíduo tem um aspecto diferente deixa
de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas
inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também
para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até
mesmo sexismo) não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e
aqueles contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam um desprezo
egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento” (RYDER apud FELIPE, Sônia T. Crítica
ao especismo na Ética Contemporânea; a Proposta do Princípio da Igual Consideração de
Interesses. Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 08 nov. 2005).
Posteriormente, RYDER publicou outras obras tais como Animal Revolution: Changing Attitudes
Towards Speciescism, (Oxford: Basil Blackwell, 1989) e The Political Animal: The Conquest of
Speciescism, (Jefferson-USA: McFarland & Company Inc., 1998). Outros brilhantes autores
começaram, a partir daí a fazer uso desta nomenclatura para designar o fenômeno de colocação
do ser humano como “o ápice da cadeia evolutiva” em detrimento dos outros seres vivos. O
próprio PETER SINGER, em sua obra Animal Liberation (1975), ressalta que deve a utilização do
termo “especismo” a RYDER. Também em 1975, o renomado psicológo inglês STUART
SUTHERLAND (1927-1998), também professor da Universidade de Oxford, optou por designar
como “espécie-centrismo” a atitude de arrogância e egoísmo inatos que faz com que atribuamos
consciência e autopercepção unicamente à nossa espécie. (cf. The Times Literary Supplement –
TLS de 26 de dezembro de 1975). FERNANDO ARAÚJO, autor da obra portuguesa A Hora dos
Direitos dos Animais (Almedina, 2003) utiliza o termo “especismo”. O termo encontra-se
dicionarizado no THE OXFORD ENGLISH DICTIONARY (2ª edição, Oxford: Clarendon Press,
1989), assim como no WEBSTER ENCYCLOPEDIC UNABRIDGED DICTIONARY (New York:
Random House Value Publishing Inc., 1996). Entre nós, temos a sua presença no DICIONÁRIO
HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). Em tal obra, optou-se por
“especiesismo”, que tem por significado: “s.m. (1973) 1. preconceito ou discriminação com base na
espécie <e. contra os lobos>; 2. pressuposto da superioridade humana no qual se baseia o
especiesismo (acp.1). ETM ing. speciecism (1973) ‘id., der. de species, ver espec-“ (HOUAISS,
op.cit., p. 1226). A tradução da obra de RICHARD DAWKINS, O Capelão do Diabo, feita por
Rejane Rubino, corrobora a utilização do vocábulo “especiesismo” (São Paulo: Cia das Letras,
2005, p. 44), muito embora HERON JOSÉ DE SANTANA prefira “especismo” (SANTANA, Heron
José de. Abolicionismo Animal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo – RT, 2004, n. 36, p. 85-
109). De minha parte, acho mais razoável a opção da forma “especismo” para designar o referido
fenômeno. A formação do vocábulo se dá pelo encontro (formação por derivação sufixal) entre o
substantivo “espécie” e o sufixo “ismo”. “Espécie”, por sua vez, vem do latim specie que, da
mesma forma, origina-se do elemento compositivo antepostivo “spec” ou “spic” (por apofonia).
Assim, a meu juízo, não haveria problemas na adoção de “especismo”, ao invés de
“especiesismo”, preferível a este por questões de facilidade de pronúncia, preservados que
estariam o radical e o sufixo. A adoção de uma nomenclatura apropriada para designar o

XVII
ao racismo e ao sexismo. As atitudes discriminatórias em relação a membros de
outras espécies seriam, pois, uma forma de preconceito não menos objetável que
o preconceito racial ou sexual. Outros estudiosos começaram a questionar os
critérios sobre os quais se assentam as éticas tradicionais, chegando a
conclusões similares partindo de argumentos filosóficos diversos, consolidando a
premente necessidade de revisão do tratamento que dispensamos aos animais
não-humanos. Em se tratando de animais, a disparidade entre o que falamos e
aquilo que fazemos é enorme.

Todo esse arsenal acadêmico, de bases éticas, científicas e


filosóficas, começou a ser apropriado e utilizado pelo direito para alicerçar os
pilares dos denominados “legal rights for animals”, também conhecidos por
“animal rights”. Atualmente, reverenciando a profundidade e a seriedade do tema,
todas as mais respeitáveis instituições universitárias norte-americanas já contam
com cadeiras específicas de “Animal Law” nas suas faculdades de Direito. Desde
a primavera de 2000 a Harvard Law School realiza seu curso de “Animal Rights
Law”, inaugurado pelo ilustre professor STEVEN WISE. Seguiram-se à iniciativa
de Harvard cursos de “Direitos dos Animais” nas igualmente importantes
universidades de Duke e Georgetown19.

Nesta mesma linha, juristas de escol e intelectuais de vanguarda já


se debruçaram sobre a matéria, tais como CESARE GORETTI, JOHN RAWLS,
RONALD DWORKIN, ROBERT NOZICK, SUNSTEIN CASS, ALASDAIR
MACINTYRE, SANTIAGO NINO, PECES-BARBA, TOM REGAN, STEVEN WISE,
GARY FRANCIONE, PETER SINGER, WILL KYMLICKA, CANOTILHO,
BERTRAND RUSSEL, J.M. COETZEE, EDGAR MORIN, HENRY SPIRA, KEITH
THOMAS, RICHARD RYDER entre tantos outros20. O respeito ético e jurídico

fenômeno é importante, pois a sua não existência contribui para a naturalização irrefletida das
condutas por ele abrangidas.
19
Atualmente a National Association for Biomedical Research – NABR
(<http://www.nabr.org/AnimalLaw/LawSchools/AnimalLawCourses.htm>), elenca as principais
universidades norte-americanas que oferecem cursos de Animal Law, valendo destacar além das
já citadas,Yalel, Stanford, New York University, University of Washington, UCLA,, Michigan State,
Columbia, Lewis & Clark, Rutgers, De Paul e Case Western, entre outras tantas.
20
A grande quantidade de referências bibliográficas servirá como demonstrativo da amplitude e
seriedade com que o assunto vem sendo tratado. No Brasil a literatura ainda é incipiente, mas
temos sido agraciados com excelentes trabalhos de PAULA BRÜGGER, EDNA CARDOZO DIAS,
LAERTE FERNANDO LEVAI, HELITA BARREIRA CUSTÓDIO, HERÓN SANTANA, VÂNIA

XVIII
pelos interesses dos animais tem adquirido foros de irreversibilidade em muitos
meios, sendo praticalmente impensável que um filósofo moral apele à sua
instrumentalização, defendendo uma ética puramente antropocêntrica.

Desta feita, fazendo uma analogia à teoria sistêmica, tal qual


proposta por NIKLAS LUHMANN, o início da mudança desse paradigma pode ser
identificado a partir do momento em que o “ambiente” passou a “irritar” o sistema
do direito para uma questão da qual ele, propositadamente, não cuidava. Para
LUHMANN não existe o indiferente jurídico. A exclusão de tratamento de um tema
pelo sistema implica numa decisão consciente desse mesmo sistema de não
categorizar tal tema dentro de seu próprio âmbito.

É extremamente relevante que se perceba, pois, que a decisão de


manter os animais não-humanos categorizados como objetos e não como sujeitos
de direito obedece a uma perversa lógica de dominação, na medida em que a
história das sucessivas e generosas gerações de direitos passa a ser identificada
como uma forma de inclusão social da própria espécie humana e tão somente
dela. Artificialmente construiu-se a idéia de que a categoria “humano” é a única
fundante e coincidente com a noção de “direito”. Entretanto, como se afirmou
anteriormente, e como se pretende demonstrar ao longo do presente trabalho,
esse processo de auto-identificação do direito com o ser humano é também uma
triste história de exclusão, a exclusão de tudo aquilo que não se enquadre nessa
categoria de “humanidade”. Como se verá, a recorrente aceitação da teoria da
“Grande Cadeia do Ser” (“Great Chain of Being”), como que em uma autêntica
“escada evolutiva”, classificando hierarquicamente os seres vivos, não serve a
outro propósito que o de, por meio da dicotomia “superior/inferior”, justificar a
radical disparidade de poderes e direitos existente entre eles. A principal premissa

TUGLIO, DANIELLE TETÜ RODRIGUES, RENATA FREITAS MARTINS, MARLY WINCKLER,


SÔNIA T. FELIPE, DIOMAR ACKEL FILHO, ALEXANDRE GAETA, ANTONIO JUNQUEIRA
AZEVEDO, etc. Recentemente, em 4 e 5 de novembro de 2005, foi realizado o primeiro
“Seminário dos Direitos dos Animais”, em Florianópolis-SC, em uma parceria entre o Instituto É o
Bicho e a Ordem Dos Advogados do Brasil - seccional de Santa Catarina, contando com a
presença de professores de filosofia, advogados, membros do ministério público, do terceiro setor
e da sociedade civil. A Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC possui núcleo específico
de “Ética Animal” dentro do setor de bioética e há também notícia de que a Universidade Federal
da Bahia lançará a Revista “Animal Legal”, destinada à discussão de matérias relacionadas à
proteção animal e Direito, nos moldes da renomada “Animal Law” da NorthWestern School of Law
of Lewis & Clark College.

XIX
do especismo é bastante simples e, ao mesmo tempo, por incrível que pareça,
extremamente eficaz: os humanos são humanos e os animais, animais. Há um
abismo insondável entre eles, de sorte que praticamente uma única vida humana
possui valor intrinsecamente superior à vida de todas as outras espécies, em
qualquer caso e em qualquer condição. A aposição da “etiqueta” Homo sapiens
tem um peso poderoso e é tida como legitimadora de um tratamento infinitamente
diferenciado.

Fato é que o mundo contemporâneo tende a apelar cada vez mais


para a inclusão generalizada dos homens na sociedade e, nesse sentido, no
próprio direito, entendido como sistema dessa mesma sociedade. Todavia, o
mecanismo utilizado para tanto se socorre do ambíguo conceito de “humanidade”,
que pode ser tomado estrutural e semanticamente sob as mais diversas óticas.
Serviu, justamente por isso, em diferentes momentos históricos, para legitimar a
funesta “indiferença jurídica” com relação ao próprio homem (gregos e bárbaros,
senhores e escravos, fiéis e hereges, nobres e servos, soberano e súditos, negros
e brancos, judeus e não-judeus, ricos e pobres, etc.). Paralelamente, continua, até
os dias de hoje, a serviço da exclusão dos animais não-humanos como autênticos
sujeitos de direito, conduzindo a uma equivocada polarização e diferenciação
entre humanos e não-humanos.

Os flagrantes e desnecessários abusos e crueldades diuturnamente


cometidos contra os animais não-humanos, seja por meio das fazendas
industriais, pela indústria alimentícia, farmacêutica e de cosméticos, pelo tráfico
internacional, pela caça, pelas exposições e espetáculos, zoológicos e cativeiros,
pela experimentação científica e mesmo pelo abuso doméstico, permitem,
reflexamente, que o movimento ganhe força e credibilidade, fazendo com que o
público tome conhecimento dessas práticas abomináveis e se conscientize, cada
vez mais, acerca das questões éticas, filosóficas e jurídicas a eles relacionadas.

A luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais não-humanos


não implica nem sugere que os problemas humanos sejam de menor importância
ou mesmo que já tenham sido resolvidos. Aliás, diga-se que os dois temas estão
umbilicalmente interligados. A escravidão, a opressão, a exploração e a
desumanização nascem no bojo das relações entre os homens e destes com o

XX
mundo. O empreendimento prometéico de conquista e sujeição do mundo diz
respeito ao poder e à dominação, seja do homem para com a natureza, seja do
homem para com o próprio homem (“homo homini lupus”)21. HORKHEIMER, a
esse respeito, assinala que:

No domínio da natureza está incluído o domínio sobre o homem. [...] A


natureza é objeto de uma exploração total. [...] a sede de poder do
homem é insaciável. O domínio da raça humana sobre a terra não
encontra paralelos naquelas épocas da história natural em que outras
espécies animais representavam as mais altas formas de vida, já que os
apetites daquelas raças animais eram limitados pela necessidade de sua
existência física. O desejo insaciável do homem de estender o seu poder
para dois infinitos, o microcosmo e o Universo, não tem raízes na sua
natureza, mas na estrutura da sociedade [...] A luta contínua do homem
contra o homem explica a insaciabilidade da espécie, as atitudes práticas
que são sua conseqüência e também as categorias e os métodos do
saber científico.22

Realmente, na atualidade, no que se refere ao homem, talvez esteja


em curso a mais perversa forma de exclusão social, que é a baseada na
dicotomia, não mais formalmente do sistema do direito, mas do econômico, que é
a do proprietário e não-proprietário, a do “ter” e do “’não-ter”. Torna-se imperativo
reconhecer, pois, que os problemas humanos estão longe de qualquer solução,
mas nem por isso devemos permanecer cegos à preservação de uma diferença

21
“Em Asinaria de Plauto o mercador afirma que não pode dar dinheiro a um desconhecido
porque, quando desconhecido, Lupus est homo homini non homo, ‘o homem é lobo, e não
homem, para outro homem’. Portanto, nesse contexto, a expressão tem acepção limitada, ao
passo que hoje tem fama como símbolo da concorrência feroz e da luta pela vida no
relacionamento humano: esse tipo de comportamento dos seres humanos já era difundido entre os
antigos, expresso às vezes com o politptoto homo e, com mais freqüência, de modo diferente;
muitas vezes também se põe em evidência a diferença entre os animais, que não fazem mal aos
da mesma espécie, e os homens, que agem de modo diametralmente oposto. Essa frase está
registrada como proverbial em todas as línguas européias, mas também ficou conhecida por ter
sido usada por Thomas Hobbes como símbolo das cruéis relações humanas no estado de
natureza, antes da intervenção de uma organização estatal; retorna num epigrama de John Owen,
que faz um paralelo entre ela e uma expressão diametralmente oposta de Cecílio (Homom homini
deus) [...]” (TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. São Paulo: Martins Fontes,
1996. p. 538.)
22
ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos. São Paulo: Unesp, 1992. p. 15.

XXI
insustentável com relação a seres que também sentem e, sobretudo, que também
sofrem. Essa luta só tem sentido, é certo, e só poderá ser feita, em um contexto
que promova o reconhecimento dos interesses do animal humano também,
inclusive como titular do direito de conviver em um ambiente ecologicamente
equilibrado conjuntamente com a biota e demais recursos naturais. O
redimensionamento das relações entre animais humanos e não-humanos, com a
conseqüente defesa da inclusão animal como sujeito-de-direito não significa,
portanto, fazer pouco caso da humanidade. Pelo contrário, significa fornecer
fundamentação teórica para o estatuto moral do próprio homem, na medida em
que, como se verá, “é no mesmo tecido moral que se costuram o direito de
ambos”.23 Em última análise, tal como afirma SINGER, “a Libertação Animal é
uma Libertação Humana”.24

O desafio de construir uma moralidade que preze pela preservação


incondicional da dignidade e inocência de todas as pessoas, humanas ou não, só
pode ser vencido com a informação e a educação. É dentro desta perspectiva que
se insere essa obra, que pretende repensar o sistema jurídico e delinear
fundamentos para ajudar a promover a quebra da falaciosa barreira que
artificialmente nos separa do mundo natural e nos isola, cada vez mais, dentro de
nós mesmos. A humanidade anseia por uma nova ética, um novo compromisso,
no qual a crueldade contra seres indefesos não é mais aceitável, onde o
tratamento inadequado, e porque não “não-humanitário”, dos seres vivos fere não
só a integridade da vítima como também a nossa própria humanidade.

Qual seria, portanto, o estatuto moral dos animais? Ainda que


assumamos que não sejam agentes morais livres, não podendo assumir deveres
e, tampouco, contrair obrigações, por tal motivo deveriam realmente ser alijados
de quaisquer direitos? Os recém-nascidos e os absolutamente incapazes, por
esse prisma, não são agentes morais livres e, no entanto, são sujeitos de direito.
O que legitima e justifica esta brutal diferenciação? A presente tese pretende
demonstrar o equívoco deste posicionamento, pois apesar de não serem agentes

23
STERBA, James P. Earth Ethics: Introductory Readings On Animal Righst And Environmental
Ethics. New Jersey: Prentice Hall, 2000. p. 72.
24
SINGER, op.cit., p. 24.

XXII
morais livres, os animais são sujeitos morais. Nossos deveres para com eles não
são apenas de solidariedade, mas de justiça. A indiferença em relação à sua
causa revela uma escolha voluntária de relegá-los à margem do direito e de
qualquer ordem de consideração moral.

Como nos lembra MARILENA CHAUÍ em seu Convite à Filosofia25, o


poeta JOSÉ PAULO PAES (1926-1998) sabiamente já nos advertia que:

a torneira seca
(mas pior: a falta de sede)
a luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)
a porta fechada
(mas pior: a chave por dentro)

A inércia do sujeito (a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por


dentro) diante da adversidade (a falta de água, a falta de luz, a falta de abertura),
implica em uma renúncia ao enfrentamento do problema, tornando-o cúmplice
dele. Os elementos externos (a secura, a escuridão e a prisão) deixam de ser
elementos exteriores ao homem para se tornarem parte dele. Não
permaneçamos, pois, alheios à realidade da vida, da liberdade e do sofrimento
dos seres que nos rodeiam. Não há motivos suficientes para que os
negligenciemos a condição de meras coisas.

Talvez a supramencionada descrição da evolução dos movimentos


sociais elaborada por MILL esteja, de fato, correta. Espera-se que o debate
acerca dos direitos dos animais não-humanos já tenha logrado ultrapassar o
estágio do ridículo26. Se assim o for, chega-se à fase do debate sério e criterioso
sobre o tema.

25
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003. p. 331.
26
TOM REGAN lembra que até recentemente, há menos de um século, o neurologista norte-
americano CHARLIS LOOMIS DANA levantava a tese de que os partidários da causa animal
sofriam de um suposto distúrbio mental denominado de “psicose zoofílica” (zoophil-psychosis)
(REGAN, Tom. Defending Animal Rights. Chicago: University of Illinois, 2001. p. 1). Muito embora
pessoas de boa fé possam discordar sobre as questões relativas à moralidade do uso dos animais

XXIII
Parafraseando o brilhante RICHARD DAWKINS27, embora
reconheça a presença ocasional de lampejos de irritação (a meu sentir,
inteiramente justificáveis) no decorrer do texto, gosto de pensar que a maior parte
da obra é livre de preconceitos. Onde sou passional, é porque há boas razões
para a paixão estar presente. Onde há raiva, espero que seja uma raiva
controlada. Onde há tristeza, meu desejo é que ela não transborde para o
desespero, mas, ao contrário, mantenha a esperança no futuro. Os seres vivos
são, para mim, uma fonte contínua de alegria e aprendizado, e espero que essas
páginas transmitam isso. Termino este intróito com as sempre sábias palavras do
gaúcho ÉRICO VERÍSSIMO:

[...] tem me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor
pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é
acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo,
evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos
assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea
e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso
toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente,
como um sinal de que não desertamos nosso posto28.

para os mais diversos propósitos, praticamente todos concordam que não se pode mais negar que
sejam questões éticas inescapáveis.
27
DAWKINS, Richard. O Capelão do Diabo. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005. p. 11.
28
VERÍSSIMO, Érico. Solo de Clarineta – Memórias. Rio de Janeiro: Globo, 1994, vol. I. p. 58.

XXIV
CAPÍTULO I - O HOMEM E O MUNDO NATURAL: AS
PREMISSAS CULTURAIS DO ESPECISMO

“Aqueles que não relembram o passado estão condenados a repeti-lo.”29

GEORGE SANTAYANA (1863-1952)

“A primeira coisa a se fazer, em qualquer tipo de mudança, é reconhecer


as formas de opressão que existem.” 30

NOAM CHOMSKY (1928 - )

O presente capítulo tem um propósito eminentemente histórico,


muito embora pretenda, modestamente, também possuir uma perspectiva
filosófica e não meramente historiográfica. Tentará demonstrar, em diferentes
épocas e ambientes, a relação do homem com o mundo natural e, em especial, a
sua atitude para com os animais não-humanos. O desvelamento das práticas que
conduzem à opressão animal passa, necessariamente pela análise de como se
construiu a idéia de que seriam hierarquicamente inferiores aos seres humanos e
de como esta falsa idéia legitima condutas insidiosas e hábitos cruéis.

A existência de referências à matéria por parte de inúmeras figuras


centrais do pensamento ocidental revela a respeitabilidade com que o tema
merece ser tratado. De acordo com uma perspectiva de longo prazo, o assunto
não é novo. Pensadores de todas as épocas estiveram preocupados com a
necessidade de justificar o nosso uso dos animais.

Há que se observar, no entanto, que o modo de pensar da maior


parte das sociedades humanas está intimamente relacionado à nossa herança
cultural. Neste sentido, muitas vezes, as nossas crenças mais arraigadas
possuem origens bastante remotas a que conferimos, na maior parte das vezes,

29
SANTAYANA, George. Life of Reason. New York: Prometheus Books, 1905. p. 284, tradução
nossa.
30
CHOMSKY, Noam. Robbing People Blind: The US Economic System. Entrevista (áudio)
concedida a David Barsamian no MIT, em 31 de outubro e 3 de novembro de 1995. (Boulder,
Colo.: Alternative Radio, P.O. Box 551, 80306), tradução nossa.

-1-
um caráter inviolável, quase sagrado. Comumente tornam-se verdades
inquestionáveis para nós, verdadeiros dogmas. A revelação das raízes históricas
de algumas dessas crenças tem o propósito de tentar desmistificar esses
dogmas, tornando-os passíveis de análise crítica e questionamento.

O que pensamos sobre o mundo reflete fielmente nossos valores e,


em última análise, aquilo que somos e representamos. Em razão disto, segundo
afirma o brilhante professor de história de Oxford, KEITH THOMAS:

[...] o predomínio do homem sobre o mundo animal e vegetal foi e é,


afinal de contas, uma precondição básica da história humana. A forma
como ele racionalizou e questionou tal predomínio constitui um tema
vasto e inquietante, que nos últimos anos recebeu bastante atenção por
parte de filósofos, teólogos, geógrafos e críticos literários. O assunto tem
igualmente muito a oferecer aos historiadores, pois é impossível
desemaranhar o que as pessoas pensavam no passado sobre as plantas
e animais daquilo que elas pensavam sobre si próprias.”31

De fato, o ato de confrontar o estranhamento do encontro e da


convivência com o diverso, com o “outro”, nos permite ver e entender a nós
mesmos. Podemos chegar a uma melhor compreensão de nossa própria natureza
por meio do reflexo do que é, superficialmente, diferente de nós.

Os pressupostos nos quais se sustentam as atitudes de nossos


antepassados para com os animais não-humanos são majoritariamente fundados
em preceitos de ordem religiosa, moral ou metafísica. Em certo sentido,
permaneceram vivos e servem de instrumento para a concretização de um
processo de autêntica “camuflagem ideológica”, onde as práticas que nos são
convenientes para concretizar nosso domínio sobre o restante dos animais são
fácil e habilmente implementadas.

Pretende-se, pois, colocar na balança, as justificativas dessas


práticas que habitualmente tomamos como justas e naturais, e que vêm sendo
perpetuadas de forma automática e inquestionada pela maior parte das pessoas.

31
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia Das Letras, 1996. p. 19.

-2-
O mesmo se pode afirmar com relação ao Direito. Neste sentido, a
abordagem histórica é particularmente produtiva, pois nos habilita a compreender
o real valor e alcance de diversos institutos e princípios que alimentam o sistema
jurídico como um todo. Conforme já lecionava o insigne OLIVER WENDELL
HOLMES (1841-1935)32, o estudo racional do direito necessita de se alimentar
constantemente de elementos históricos a fim de que se possa enriquecer o real
valor das normas, pois:

[...] é absolutamente revoltante não existir melhor razão para se


obedecer a determinado mandamento contido em uma norma que o fato
de ter sido ela regularmente posta ao tempo de Henrique IV. Tal fato
torna-se ainda mais revoltante quando as bases e os pressupostos
sobre os quais a norma foi elaborada já cessaram de existir há muito, e a
norma simplesmente continua a ser aplicada por mera imitação do
passado.33

32
HOLMES tornou-se magistrado da Suprema Corte Norte-Americana em 1902 e é célebre pela
frase “The life of the law has not been logic, but experience". Exerceu notada influência no âmbito
da filosofia jurídica, principalmente por ter moldado o que se convencionou denominar de
Realismo Americano. Foi o editor da American Law Review e autor da renomada obra The
Common Law (1882).
33
HOLMES, Oliver Wendell. “The Path of The Law”. Harvard Law Review n. 457, 1897, p. 469.

-3-
1.1. O Paradoxo da Humanidade

“We have, it seems, never ceased to be apes; yet we aspire to be angels.


How far have we really got along the evolutionary road? How far have we
got to go, before we have genuinely included the whole human
community, and reached a viable frontier between humans and others?
Perhaps the quest is doomed to be interminable as every scientific blurs
formerly convincing distinctions.” 34

FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO (1950 - )

Há um paradoxo evidente na questão do que entendemos constituir


a humanidade. Para FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO35, nos últimos trinta ou
quarenta anos investimos uma enorme quantidade de pensamento, emoção e luta
na defesa da dignidade humana e dos direitos humanos. No mesmo período, no
entanto, silenciosa e sorrateiramente, a ciência (por meio da biologia, da pesquisa
genética e da paleoantropologia) e a filosofia se uniram para minar a nosso
conceito tradicional de humanidade36. Como conseqüência, a própria coerência
do que entendemos ser humano encontra-se em questão. “A humanidade está
em perigo, não por uma ameaça de armas de destruição em massa ou desastres
ecológicos, mas por uma ameaça conceitual.”37

34
“Ao que parece, nunca deixamos de ser macacos, e ainda assim, aspiramos ser anjos. Quão
longe realmente fomos no caminho evolucionário? Quão longe termos de ir antes que,
genuinamente, incluamos toda a comunidade humana, e alcancemos uma fronteira viável entre
humanos e outros? Talvez essa busca seja destinada a ser interminável posto que as descobertas
científicas tendem a apagar as nossas crenças pré-existentes” (FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe.
So You Think You´re Human? Oxford University Press, 2004. p. 8, tradução nossa).
35
FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO é um historiador britânico autor de diversos livros populares
de história. Atualmente é professor titular da cadeira de Global Enviromental History na
Universidade de Londres e membro da Faculdade de História Moderna da Universidade de
Oxford.
36
De acordo com o ilustre ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, professor de direito da
Universidade de São Paulo – USP, “Em pelo menos três áreas o avanço do conhecimento
científico pôs abaixo a visão insular da pessoa. Essas áreas são: a biologia, com a explicação da
evolução das espécies; a etologia – estudo do comportamento dos animais na natureza -,
especialmente a primatologia, com o aprimoramento das observações; e as ciências cognitivas,
com as descobertas sobre o cérebro humano” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e
Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva: 2004. p. 8).
37
ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 1, tradução nossa.

-4-
Conforme já mencionado, o propósito deste capítulo é
eminentemente histórico, possuindo especial enfoque na questão da relação do
ser humano com a natureza, e, correlatamente, nas concepções a que
denominamos “visões de mundo”, referentes às noções de “humanidade” e de
“pessoa”. Pretende demonstrar que os limites do nosso entendimento do que vem
a ser humanidade nunca foram e sequer são tão óbvios ou mesmo universais.

Antes mesmo que a idéia de “humano” coincidisse com a noção de


“direito”, “o apelo à noção de humanidade do homem serviu para estabelecer
critérios de inclusão e, portanto, também de exclusão social”.38 Nesse “jogo de
diferenças que produzem diferenças a todo instante”39, o homem foi afirmando
sua identidade em relação ao ambiente, diferenciando-se e colocando-se como
entidade autônoma e superior em relação a ele, fazendo com que o mundo dos
homens e o mundo das “coisas” se tornassem realidades ontologicamente
distintas.

Essas visões de mundo, encaradas como modos de pensar


predominantes em um dado momento histórico, tomando por base os diversos
sentidos que foram condensados em torno do conceito de humanidade, refletiram
mecanismos de inclusão e exclusão social e jurídica. Justificaram, por essa razão,
em diversos momentos, a existência de uma pretensa distinção entre gregos e
bárbaros, entre senhores e escravos, fiéis e infiéis, nobres e servos, soberano e
súditos, ricos e pobres e, porque não, talvez a mais fundamental delas, entre
humanos e não-humanos. A exclusão tem sido, ao longo dos tempos, o
mecanismo mais eficiente para a garantia e manutenção da identidade dos
grupos sociais.

Segundo bem observa a professora JULIANA


NEUENSCHWANDER:

38
NEUNSCHWANDER, Juliana Magalhães. Estrutura e Semântica dos Direitos Humanos. 2004.
Tese (doutorado em Direito) “Universitá degli Studi Lecce – Centro di Studi sul Rischio” de Lecce,
Itália, orientada por RAFFAELE DE GIORGI.
39
Ibid.

-5-
[...] o termo ‘humanidade’ foi utilizado originariamente no sentido de
‘condição humana’ e de ‘caridade’ (Menschlichkeit) e, entre o século XVII
e o século XVIII, passou a ser utilizado também para apontar não mais
apenas o aspecto qualitativo de ‘natureza humana’ do homem, mas sim
como um substantivo de quantidade, no sentido de ‘totalidade dos
homens’ (Menschheit)40. Hodiernamente, a expressão é utilizada nesses
dois diferentes sentidos que, como veremos, na verdade acabaram por
consistir, ambos, em componentes da noção de humanidade. Se o
sentido qualitativo de ‘humanidade’ afirmou-se mediante a distinção da
natureza humana daquilo que, por não ser ‘humana’, é indicado como
diverso – a animalidade (Tierheit) ou a natureza divina (Gottheit), o
aspecto quantitativo do termo passou a ocupar maior espaço,
exatamente, quando o apelo à noção de ‘natureza’ já não produzia
consenso e, portanto, sentido. Também no sentido de ‘natureza
humana’, o conceito de ‘humanidade’ apresentou dois significados. O
primeiro sentido é aquele que se construiu em contraposição à natureza
dos animais ou de Deus, de onde à ‘humanidade’ do homem
corresponde a certeza de que estes, enquanto homens, podem se
diferenciar tanto dos animais quanto de Deus. Por outro lado e ao
mesmo tempo, ‘humanidade’ foi indicada como um ideal ético, para o
qual os homens se auto-determinam. Nesse caso, a evolução da noção
de ‘humanidade’ veio traduzir as transformações na compreensão que os
próprios homens têm do significado de sua humanidade, ou seja, da
idealidade de sua condição humana. Assim que o termo acabou por
adquirir, neste segundo percurso semântico, uma dimensão
propriamente normativa que, posteriormente, estaria presente na
41
associação desse ideal com o conteúdo dos direitos .

Como se percebe, o delineamento das categorias do que seja


“homem” e “pessoa”, até mesmo dentro da categoria “humanidade”, é
extremamente complexa e fluida, tendo passado por diversas etapas de
consolidação. Procuraremos identificar e verificar os problemas a ele anteriores
relativos à fronteira do homem com o mundo natural, em especial no que se

40
BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK, Reinhardt. Geschichtliche Grundbergriffe.
Historisches Lexikum zur politisch-sozial Sprache in Deutschland. Stuttgart: Keelt-Cotta, Band 4,
1979. p. 1063, nota da autora.
41
Ibid.

-6-
refere à auto-afirmação da categoria do “humano” e do que não seria abarcado
por essa proposição.

-7-
Nas palavras do ilustre STEVEN WISE42:

[...] há cerca de quatro mil anos, uma densa e impenetrável muralha


legal foi edificada para separar humanos dos animais não-humanos. De
um lado, até mesmo os interesses mais triviais de uma espécie – a
nossa – são cuidadosamente assegurados. Nos auto-proclamamos,
dentre as milhões de espécies animais, “sujeitos de direito”. Do outro
lado dessa muralha encontra-se a indiferença legal para um reino inteiro,
não somente chimpanzés e bonobos, mas gorilas, orangotangos,
macacos, cães, elefantes, golfinhos entre outros seres vivos. Eles são
meros “objetos de direito”. Os seus interesses mais básicos e
fundamentais – a sua integridade, a sua vida, a sua liberdade – são
intencionalmente ignorados, freqüentemente maliciosamente
esmagados, e rotineiramente abusados. Antigos filósofos afirmaram que
estes animais não-humanos foram criados e colocados na terra para o
único propósito de servir aos homens. Juristas de outrora, por sua vez,
declararam que as leis foram criadas unicamente para os seres
humanos. Muito embora a filosofia e a ciência há muito tenham
abandonado essa concepção, o mesmo não se pode dizer do Direito.”43

42
STEVEN M. WISE é um renomado advogado norte-americano que leciona “Animal Protection
Law” há mais de 20 anos na Harvard Law School, Vermont Law School, John Marshall Law School
e no Mestrado em Animals and Public Policy na Tufts University School of Veterinary Medicine. É
ainda presidente do Animal Legal Defense Fund – ALDF e fundador do Center of Expansion of
Fundamental Rights. Escreveu inúmeros artigos acadêmicos sobre animal rights e é autor de dois
livros de referência na matéria, Rattling The Cage (Perseus Books, 2000) e Drawing the Line
(Perseus Books, 2002).
43
WISE, Steven. Rattling the Cage. Cambridge: Perseus Books, 2000. p. 4, tradução nossa.

-8-
1.2. Mundo Helênico44

“Pergunte a qualquer um na massa de gente obscura: qual o propósito


da existência das coisas? A resposta geral é que todas as coisas foram
criadas para nosso auxílio e uso prático! [...] Em resumo, todo o cenário
magnífico das coisas é diária e confiantemente visto como destinado, em
última instância, à conveniência peculiar do gênero humano. Dessa
forma, o grosso da espécie humana arrogantemente se eleva acima das
inumeráveis existências que o cercam.”

HENRY TOULMIN (1745-1817) 45

1.2.1. Pré-Socráticos

“Tudo nos incita a por fim à visão de uma natureza não-humana e de um


homem não-natural.”46

SERGE MOSCOVI

A relação homem-animal possui raízes bastante remotas,


confundindo-se com a própria origem do ser humano. Os historiadores
geralmente estipulam que o período “coletor/caçador” das sociedades humanas
tenha se iniciado por volta de 500.000 anos e tenha persistido até 11.000 anos
atrás. Tal período representa nosso passado “pré-agricultura” e nele os animais
44
Advirta-se que, tecnicamente, a expressão “Mundo Helênico” é imprecisa para designar todos
os períodos do pensamento filosófico grego. Segundo DANILO MARCONDES, “o termo
‘helenismo’ é derivado da obra do historiador alemão J.G. Droysen, Hellenismus (1836-43), e
designa a influência da cultura grega em toda região do Mediterrâneo oriental e do Oriente
Próximo desde as conquistas de Alexandre (332 a.C.) por seus sucessores (sobretudo Ptolomeu
no Egito e Seleuco na Síria e Mesopotâmia) – até a conquista romana do Egito em 30 a.C., que
passa a marcar a influência de Roma nessa mesma região. [...] Do ponto de vista filosófico, a
periodização é talvez menos precisa, podendo ser estendida do império alexandrino até o início da
filosofia medieval com Santo Agostinho (340-453) e Boécio (480-524). Isso porque a influência da
filosofia grega e das escolas filosóficas fundadas no início do helenismo permaneceu durante o
Império Romano” (MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 8ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 84).
45
TOULMIN, Henry. The Antiquity and Durantion of the World, 1780, p. 51, apud THOMAS, op.cit.,
p. 21.
46
MOSCOVI apud MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975. p.
18.

-9-
eram percebidos como seres sencientes, inteligentes, com corpos dotados de
uma alma incorpórea. É geralmente aceito o fato de que o Homo sapiens já
caçava animais selvagens há cerca de 100.000 anos. O Homo habilis ou o seu
antecessor, Homo erectus, provavelmente também já o faziam por volta de 2,5
milhões de anos atrás. Pelo simples fato de ser pré-história, a ausência de
registros escritos não permite que precisemos com clareza o período em que
ocorreu o início da agricultura e da criação animal. Tem-se estimado que tal fase
provavelmente ocorreu há cerca de 11.000 anos, produzindo uma grande ruptura
no balanço de poderes entre os seres humanos e destes para com os animais47.
O registro de domesticação mais antigo de que se tem notícia é o do cão, e data
de aproximadamente 12.000 anos, enquanto que por volta de 9.000 anos atrás as
ovelhas, porcos e o gado também já viviam em regime de domesticação na região
mediterrânea.

É, no entanto, comumente associado aos primeiros pensadores e


filósofos a construção da idéia de “elevação simbólica do homem”, de afirmação
da alteridade entre homem e meio, colocando-o em uma posição de destaque e
privilégio sobre o restante da criação.

Os mais diversos povos da Antiguidade possuíam visões de mundo


bastante peculiares, influenciadas pelas particularidades de suas culturas e pelas
especificidades de suas interações com os processos e fenômenos naturais.
Neste cenário, coube aos gregos papel de especial relevo, visto que procuraram
sistematizar cientificamente o conhecimento adquirido. Outras civilizações e
povos, como os egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios, entre outros,
deixaram legado cultural importantíssimo e influenciaram e enriqueceram em
muitos aspectos a cultura grega48, mas não chegaram a desenvolver o
pensamento filosófico49 em sentido estrito50.

47
Cf. SERPELL, J.A.; MANNING, A. Animals and Human Society: Changing Perspectives.
London: Routledge, 1994. p. 36.
48
Há também os que defendem a tese da origem oriental da filosofia grega e aqueles que
defendem que teria surgido na Grécia sem que nada anterior a preparasse.
49
Filosofia vem do grego philo (aquele que tem um sentimento amigável – derivado de philía que
significa “amor fraterno”) e sophía (“sabedoria” que vem de sophós que quer dizer “sábio”).
Conectando os vocábulos teríamos um sentido de “amizade ou amor à sabedoria”. Atribui-se a
PITÁGORAS a invenção da palavra, fazendo uma analogia com os Jogos Olímpicos em que havia
basicamente três tipos de pessoas, as que comerciavam (movidas pela cobiça), as que competiam

- 10 -
Anteriormente a esse processo de sistematização do conhecimento,
os gregos viviam em um universo integrado, regido por uma ordem governada
pelo divino. A religião e o misticismo faziam parte do entendimento da realidade
mundana, e a interação do sobrenatural com o profano, do religioso com o
natural, era uma constante. Segundo o poeta SIMÔNIDES DE AMORGO (séc. VII
a.C.), “Zeus controla a realização de tudo que existe e decide sobre tudo de
acordo com sua vontade. A previsão não pertence aos homens; vivemos como
bestas, sempre à mercê daquilo que o dia trará, sem nada saber dos resultados
daquilo que Deus imporá sobre nossos atos.”51

Essa fase é caracterizada pela predominância do que se denomina


pensamento mítico. Ele consiste em uma forma peculiar de compreensão do
mundo, pela qual o povo explica a realidade em que vive por meio do recurso à
figura do mito. O mito52, por sua vez, pode ser delineado como fruto de uma
tradição cultural e folclórica e, não, de um pensamento individual. Pressupõe a
adesão sem questionamento por parte de quem integra essa mesma cultura53.
Segundo DANILO MARCONDES:

[...] um dos elementos centrais do pensamento mítico e de sua forma de


explicar a realidade é o apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado, à

e as que somente assistiam e julgavam o valor dos atletas. Essa terceira categoria de pessoas
seria como os filósofos, pois não são movidas pela cobiça nem pelo desejo de competir, mas
antes pelo puro desejo de contemplar.
50
Segundo BERTRAND RUSSEL, “Tanto o Egito quanto a Babilônia legaram certos
conhecimentos, mais tarde aproveitados pelos gregos. Mas nenhum desenvolveu ciência nem
filosofia. Não cabe aqui questionarmos se isso se deveu à falta de gênio nativo ou às condições
sociais, ainda que esses fatores tenham contribuído. O significativo é que a função da religião não
conduziu ao exercício da aventura intelectual” (RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento
Ocidental: A Aventura dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 13).
51
AMORGO, Simônides de apud PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2004. p. 59.
52
O vocábulo grego mythos significa um discurso imaginário ou fictício, que pode chegar à
fronteira da “mentira”.
53
As principias fontes de conhecimento dos mitos gregos são os poemas épicos da Ilíada e da
Odisséia de HOMERO (séc. IX a.C.) e da Teogonia e da Erga de HESÍODO (séc. VIII a.C.).
Segundo HOMERO, na Ilíada, no momento em que Agamenon e Aquiles começaram a lutar, “a
vontade de Zeus estava satisfeita”. A breve passagem denota o forte determinismo pelo qual nada
acontecia por acidente ou pelas forças do acaso, muito embora os historiadores já identifiquem
nessas obras não somente a contraposição do sagrado e do profano, como também o embrião da
tensão entre o mythos e o logos.

- 11 -
magia. As causas dos fenômenos naturais, aquilo que acontece aos
homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano
e natural, superior, misteriosa, divina, a qual só os sacerdotes, magos,
os iniciados, são capazes de interpretar, ainda que apenas parcialmente.
São os deuses, os espíritos, o destino que governam a natureza, o
homem, a própria sociedade. Os sacerdotes, os rituais religiosos, os
oráculos servem como intermediários, pontes entre o mundo humano e o
mundo divino. Os cultos e sacrifícios religiosos encontrados nessas
sociedades são, assim, formas de se tentar alcançar os favores divinos,
de se agradecer a esses favores ou de se aplacar a ira dos deuses.54

O homem permanece, de certa forma, atado às forças divinas,


interagindo com elas mediante a sua conduta moral, de sorte que o bem-estar e a
fartura são frutos de sua dedicação para com o sobrenatural, enquanto que o azar
e a desventura estão intimamente relacionados à sua falta de zelo. O pensamento
mítico é, pois, paradoxal, na medida em que a explicação para a realidade é feita
com a utilização de categorias místicas, que são, por natureza, insondáveis à
compreensão dos mortais (explicação com o inexplicável).

Da mesma forma, a interação de homens e “coisas” se dá por meio


da relação dicotômica entre simpatia e antipatia. Os objetos sensíveis constituem
projeções do sagrado ou do profano e, como tais, revelam a vontade do mundo
transcendental.

HESÍODO (séc. VIII a.C.), contemporâneo de HOMERO (séc. IX


a.C.), afirmava que os animais devoravam-se a si próprios porque a eles não fora
dado o senso do que fosse certo ou errado. O senso de justiça teria sido atribuído
por Zeus somente aos homens. Não há como não notar que já há nesta assertiva
uma clara separação entre os entes dotados de razão e outros que
pretensamente não a possuíam. Entre os seres racionais prevalece a justiça;
entre os irracionais prevalece a necessidade. Segundo EDNA CARDOSO DIAS,
“[...] aos homens é concedido o direito – Dike - ,ao qual devem obediência (os

54
MARCONDES, op.cit., p. 20.

- 12 -
homens), e que, ao mesmo tempo, é o maior dos bens. Assim, há uma ordem
para os homens e outra para os animais irracionais”55 .

Coube, no entanto, aos pré-sócráticos56, mais especificamente aos


primeiros filósofos da escola jônica57 (séc. VI a.C.), tecer as primeiras
investigações “científicas” e mais laicizadas acerca da origem do universo, sobre
a natureza e sobre o próprio homem. Por terem como objeto de investigação a
natureza (physis)58, buscando explicações dos fenômenos naturais no próprio
mundo natural, eram denominado de físicos, ou physikoi.59

Segundo JONATHAN BARNES:

[...] a distinção entre o natural e o artificial (em grego, entre physis e


techne) não esgota o significado do conceito de natureza. Em um
determinado sentido, o termo “natureza” designa a soma de objetos
naturais e eventos naturais; nesse sentido, discorrer “sobre a natureza”
significa abordar o mundo natural em sua totalidade – physis e Kosmos
passam a ser exatamente a mesma coisa. Em outro sentido, porém, e
mais importante, o termo se presta para denotar algo existente em cada
objeto natural: no primeiro fragmento de HERÁCLITO, o termo physis

55
DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 18.
56
O critério para a definição dos pré-socráticos é, de fato, puramente cronológico. Entende-se que
são aqueles que precederam SÓCRATES (470-399 a.C.). Todavia, o marco é puramente
conceitual dado que muitos dos filósofos tidos como pré-socráticos foram contemporâneos a ele.
As fontes para o conhecimento do pensamento deste período são basicamente a doxografia
(comentários a respeito deles feitos por autores de períodos posteriores) e os alguns fragmentos
de textos originais tais como o Poema de PARMÊNIDES e Da Natureza de HERÁCLITO.
57
O pensamento filosófico não surgiu originariamente nas cidades do continente grego e sim nas
colônias gregas no Mediterrâneo oriental, no mar Jônico, onde hoje fica a Península da Anatólia
na Turquia. Daí o nome Escola Jônica para designar os pensadores da região entre os quais se
destaca TALES DE MILETO (fl.c. 585 a.C) e seus discípulos, ANAXIMANDRO (610-547 a.C.) e
ANAXÍMENES (585-528 a.C.), XENÓFANES DE CÓLOFON (580-480 a.C.) e HERÁCLITO DE
ÉFESO (500 a.C.).
58
O conceito de physis, ou “natureza” deriva-se de um verbo com significado de “crescer”. Servirá
para distinguir o mundo natural do artificial, entre o que se desenvolve autonomamente e o que foi
produzido pelas mãos do homem.
59
Pode-se dizer que o pensamento mítico foi mudando de papel. Foi, gradativamente, deixando
de servir como explicação para os fenômenos naturais, abrindo espaço para o pensamento
científico-filosófico. Uma das explicações para a transformação do modo de pensar grego foi a
mudança de uma economia agrária para uma baseada nas atividades mercantis, deixando pouco
espaço para o campo do místico, passando-se a valorizar a realidade concreta da participação
política e das transações comerciais. No entanto, o mito sobrevive ainda hoje como uma tradição
cultural, mas já não mais como forma básica de entendimento da realidade.

- 13 -
designa não o cosmos como um todo, mas, antes, um princípio existente
em cada parte natural do cosmos. Quando os pré-socráticos
investigavam a ‘natureza’, estavam investigando a ‘natureza das coisas’.
60

O traço distintivo do pensamento filosófico é o apelo à causalidade


natural, pela qual um fenômeno é sempre efeito de uma causa (natural) que o
antecede, enquanto que o pensamento mítico enxergava somente causas
sobrenaturais61 para os acontecimentos mundanos. Nesse sentido, a explicação
causal natural tem um caráter intrinsecamente regressivo, ocorrendo sempre a
possibilidade de se perquirir a causa das causas, em um processo ad infinitum.
Os jônicos então, tentando evitar essa regressão inacabável, postularam a
existência de um elemento primordial (arche) que seria o marco zero para todo o
processo. TALES DE MILETO (fl.c. 585 a.C.), tido como o primeiro filósofo62,
elegeu a água (hydor) como elemento primordial, enquanto seus discípulos
ANAXIMANDRO (610-547 a.C.)63 e ANAXÍMENES (585-528 a.C)64 escolheram o
apeíron (conceito abstrato significando algo indeterminado ou ilimitado presente
em toda a Natureza) e o ar, respectivamente.

A idéia de arqué (“elemento primordial” ou “princípio originário”) está


intimamente relacionada ao conceito de Kosmos, que servia para designar o
universo – tudo, o mundo todo. O substantivo Kosmos deriva de um verbo que
significa “ordenar”, “comandar”, “reger”, e já era utilizado por HOMERO nas suas
referências às batalhas. Um Kosmos é, pois, um “todo ordenado” e harmônico.
Segundo DANILO MARCONDES,

60
BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 21-2.
61
Na Ilíada, na narrativa da Guerra de Tróia, os deuses auxiliam abertamente os gregos e troianos
e transformam os acontecimentos, demonstrando que a realidade e, em última análise o próprio
destino, é fruto de sua vontade.
62
O marco tradicional da origem da filosofia grega baseia-se no eclipse solar supostamente
previsto por TALES DE MILETO, que os astrônomos modernos situam em 28 de maio de 585 a.C.
63
ANAXIMANDRO elaborou estudos nas áreas da biologia (origens da humanidade) e na
astronomia (engendrando uma complexa teoria dos corpos celestes e especulando que a Terra se
mantém fixa, no centro do universo, sem nada a sustentá-la).
64
ANAXÍMENES sustentava que por meio da rarefação e da condensação poder-se-iam criar
todas as coisas conhecidas do mundo.

- 14 -
A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma
ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se
constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O
cosmo, assim entendido, opõe-se ao caos, que seria precisamente a
falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização 65.

A ordem do kosmos é, pois, uma ordem racional, com leis e


princípios regedores da realidade. O logos66, por sua vez, é o discurso racional
com referência expressa à causalidade natural. Difere do mito, narrativa que,
como vimos, sempre recorre ao sobrenatural para descrever a realidade.

Para TALES DE MILETO67, todas as coisas dotadas de movimento


possuem “almas” ou são “cheias de deuses”. Segundo TALES, “eis aqui uma
pedra – o que poderia parecer mais desprovido de vida? Todavia, o ímã tem o
poder de mover outras coisas: atrai as limalhas de ferro, que se deslocam em
direção a ele sem a intervenção de nenhum puxão ou empurrão externo. Ora, é
68
um traço perceptível das coisas vivas serem capazes de produzir movimento” .
Baseado em tais observações TALES conclui que o ímã, a despeito de sua
aparência inanimada, possui, de fato, uma “alma”. Segundo JOHN PASSMORE,
“o que, exatamente, queria TALES convir quando disse que ‘todas as coisas são
cheias de deuses’ é agora praticamente impossível determinar. Mas disso parece
derivar, pelo menos, a seguinte conclusão: podem ser divinas as coisas que não
sejam de modo algum semelhantes aos seres humanos, que não sejam ‘da
mesma raça que o homem’; podem ser divinas no sentido de que constituem
poderes supremos, responsáveis ulteriormente pelo porquê de as coisas
acontecerem.”69

65
MARCONDES, op.cit., p. 26.
66
O termo é cognato do verbo legein, que usualmente é empregado para designar “afirmar”,
“descrever” ou “enunciar”, de onde posteriormente surgiu o termo logike para designar a “lógica”.
67
Além do famoso eclipse solar que teria sido previsto por ele, TALES também é o suposto autor
de formulações teóricas na área da geometria. É atribuído a ele o conhecido Teorema de Tales
pelo qual “se um feixe de paralelas é interceptado por duas retas transversais então os segmentos
determinados pela paralelas sobre as transversais são proporcionais.”
68
TALES apud BARNES, Jonathan, op. cit., p. 25.
69
PASSMORE, op.cit., p. 60.

- 15 -
Não menos interessantes são as especulações de seu discípulo
ANAXIMANDRO sobre a origem dos animais e dos homens. Segundo
PLUTARCO, “diz Anaximandro que os primeiros animais nasceram na umidade,
envoltos em cascas espinhosas. À medida que cresciam, avançavam para partes
mais secas, rompia-se a casca e, por um breve período de tempo, viviam uma
espécie diferente de vida”70. Ainda segundo PLUTARCO, “[...] assim Anaximandro
tendo declarado serem os peixes a um só tempo pais e mães dos homens, clama
para que não nos alimentemos deles”.71

XENÓFANES DE CÓLOFON destacou-se pelo espírito crítico e pelo


ceticismo por meio dos quais analisava o antropomorfismo e a moralidade das
divindades gregas, tendo asseverado que:

[...] existe um deus, maior entre os deuses e os homens, e que não se


assemelha aos mortais nem na forma nem em pensamento. [...] Os
mortais, no entanto, imaginam que os deuses passam pelo nascimento,
e que possuem as vestes, a fala e as formas como as deles. [...] Mas se
as vacas, os cavalos e os leões tivessem mãos ou conseguissem
desenhar com suas mãos e fazer as coisas que os homens podem fazer,
os cavalos desenhariam seus deuses com formas eqüinas, as vacas
com formas bovinas, e dariam a seus corpos formas semelhantes às
suas próprias72.

Por meio destes versos, percebe-se a insatisfação do poeta com a


prática humana de representar as divindades à sua própria imagem e
semelhança, prática esta que, conforme se verá, teve sua continuidade em outras
religiões, marcadamente no cristianismo.

PITÁGORAS DE SAMOS (fl.c. 530 a.C), representa a transição da


Escola Jônica para a Escola Italiana73. Seu foco não é mais a gênese das coisas

70
PLUTARCO. Sobre as Idéias Científicas dos Filósofos, 908, D, apud BARNES, op.cit., p. 86.
71
PLUTARCO. Questão de Convivas, 730, DF, apud BARNES, op.cit., p. 86.
72
XENÓFANES, Miscelâneas VII, IV 22.1: B 16, apud BARNES, op.cit., p. 112.
73
A Escola Italiana caracteriza-se por uma maior abstração em relação aos jônios, prenunciando o
surgimento da lógica e da metafísica. Além de PITÁGORAS, integram essa escola ALCMEON DE
CROTONA (séc. V a.C.), FILOLAU DE CROTONA (séc. V a.C.), PARMÊNIDES DE ELÉIA (fl.c.

- 16 -
e sim o seu devir. O número74 passa a ser o elemento primordial que explica a
realidade e, portanto, suas contribuições matemáticas são inegáveis, em um
universo onde as proporções numéricas harmonizam todo o cosmo, garantindo
seu equilíbrio.75

É relevante notar que PITÁGORAS defende a concepção de


imortalidade das almas e na possibilidade da sua transmigração, também
denominada de metempsicose76. Constitui ela a doutrina “filosófica/religiosa” que
sustenta ser possível que uma mesma alma, depois de um período no império
dos mortos, volte a animar outros corpos de seres humanos ou de animais até
que transcorra o tempo de sua purificação. Como se percebe claramente, há a
crença de que uma alma humana possa voltar a animar o corpo de um ser
biológico que não o da espécie humana. Abstraindo-se do aspecto religioso, a
cosmogonia pitagórica inova ao colocar em pé de igualdade, ao menos no plano
espiritual, todos os seres vivos, em um dinâmico processo de intercâmbio entre

500 a.C.) e a Escola Eleática: ZENÃO DE ELÉIA (fl. c. 464 a.C.) e MELISSO DE SAMOS (fl.c. 444
a.C).
74
De acordo com FREDERICO GUILHERME BANDEIRA DE ARAÚJO, “Na cosmogonia
pitagórica, os números não são representações quantitativas simbólicas (como se tornaram
posteriormente), mas a expressão qualitativa comum da diversidade; mais do que isso, são
concebidos como entes reais, constituídos de unidades compostas por mínimos corpóreos
indivisíveis, separados por intervalos (espaços resultantes da “respiração” do mundo, plenos de ar
infinito, como o pneumo apeiron de Anaxímenes.” (ARAÚJO, Frederico Guilherme. Saber Sobre os
Homens, Saber Sobre as Coisas: História e Tempo, Geografia e Espaço, Ecologia e Natureza. Rio
de Janeiro: DP&A, 2003. p. 58).
75
Segundo EDOUARD SHURÉ, “Pitágoras, ao pregar aos jovens o amor à família, comparava a
mãe à natureza generosa e benfazeja. Ele dizia que ‘a Cibele celeste produz os astros; Démeter,
os frutos e as flores da terra. Assim também, como a mãe alimenta o filho de todas as alegrias.’
Aqui se percebe que ele via a Terra como uma grande mãe. E para ele essa Natureza viva,
eterna, essa grande Esposa de Deus, não é somente a natureza terrestre, mas também a
natureza invisível aos nossos olhos da carne – a Alma do Mundo, a Luz primordial,
alternadamente Maia, Ísis ou Cibele, que, sendo a primeira a vibrar sob a impulsão divina, encerra
as essências de todas as almas, os tipos espirituais de todos os seres. É, em seguida, Demeter, a
terra viva e todas as terras, com os corpos que contêm, em que suas almas vem encarnar: depois
é mulher, companheira do homem.” (SHURÉ, Edouard. Os grandes iniciados. São Paulo: Martin
Claret, 1986, p. 68 apud DIAS, op.cit., p. 20).
76
Do grego metempsychosis, meta (mudança) e psukê (alma). A metempsicose tem origem
debatida, mas é certo que o hinduísmo, nas suas principais vertentes (o Jainismo, o Budismo e o
Vishnuismo entre outras) a adotam, bem como os antigos egípcios. Assim é que se especula ter
sido levada do Egito e Índia para a Grécia por meio da filosofia pitagórica, muito embora já se
admita que essas crenças já fossem também encontradas na Trácia, norte da Grécia, antes
mesmo de Pitágoras. Os druidas, também adotavam a teoria da transmigração. Há um tradicional
poema gaulês, de autoria desconhecida, onde se afirma: “fui um salmão azul, fui um cão, um
cervo, um veado, um tronco [...].”

- 17 -
eles77. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (fl.c. 450 a.C.) abraçando a doutrina
pitagórica, afirma que a melhor mudança para um humano é tornar-se um leão, se
acaso a morte vier a transformá-lo em um animal, e um loureiro, caso seja
transformado em planta. Segundo o mesmo pensador, “[...] no passado já fui
menino e menina, e um arbusto, um pássaro e um silente peixe marinho.”78

Segundo JONATHAN BARNES79, “a teoria da metempsicose sugeria


que todas as criaturas são fundamentalmente a mesma em espécie, porquanto
são hospedeiras das mesmas almas: Pitágoras provavelmente fez disso o
fundamento de determinadas recomendações dietéticas.” De fato, ao que consta,
coerentemente com a sua teoria, PITÁGORAS teria sido um vegetariano convicto.
Nas palavras do poeta CALÍMACO (310-235 a.C), ele “foi o primeiro a traçar
triângulos e polígonos, a bisseccionar o círculo – e a ensinar os homens a
abstinência das coisas vivas”80. Ainda segundo DIODORO (séc. IV a.C.),
“Pitágoras acreditava na metempsicose e considerava a ingestão de carne algo
abominável, afirmando que as almas de todos os animais instalam-se em
diferentes animais após a morte”.81

Ainda de acordo com o professor JONATHAN BARNES:

Pitágoras, Empédocles e o restante dos italianos afirmam que


guardamos um laço de parentesco não apenas uns com os outros e com
os deuses, mas também com os animais irracionais, pois existe um
espírito único que permeia o mundo todo como uma espécie de alma e
que ele nos une. Eis porque, se lhes tiramos a vida e ingerimos sua
carne, cometemos uma injustiça e um ato impiedoso, porquanto estamos
tirando a vida de um nosso aparentado82. Assim, esses filósofos

77
DIÓGENES LAÉRCIO acrescenta que certa feita, o velho mestre passando por um cão sendo
açoitado se apiedou do animal e pronunciou as seguintes palavras “Porém, não lhe batam; porque
é a alma de um estimado amigo – Eu o reconheci ao ouvir o seu ladrido.” (DIÓGENES, Vida dos
Filósofos, VIII, p. 36, apud BARNES, op.cit., p. 96).
78
AGRIGENTO apud BARNES, op.cit., p. 228.
79
Op.cit., p. 42.
80
CALÍMACO, Iambos, Fragmento 191.60-62, apud BARNES, op.cit., p. 100.
81
DIODORO, História Universal X, VI 1-3, apud BARNES, op.cit., p. 103.
82
A doutrina ascética dos pitagóricos não deixou de ser alvo de escárnio retratado em comédias
do século IV, tal como em As Pitágoras de ALEXIS em que o autor afirma que “Os pitagóricos, ao

- 18 -
exortavam-nos à abstenção da carne... Escreve Empédocles algures:
‘Não detereis o assassínio de torpe ressonância? Não percebeis que vos
dilacerais uns aos outros na insensatez de vosso entendimento? Um pai
toma nos braços o filho cuja forma se modificou (para um animal) e o
mata em meio a preces, o insensato, enquanto a vítima dirige súplicas
de compaixão a seu algoz. Mas eis que este, surdo a seus clamores,
mata-o em casa e prepara um abominável banquete. Assim também um
filho se apodera do pai, e as crianças de sua mãe: privam-nos da vida e
ingerem sua própria carne.83

Ao comentar sobre o sacrifício de touros84, EMPÉDOCLES também


é enfático ao afirmar que “[...] não tirar a vida de criaturas animadas: não se trata
de algo que para alguns seja justo e para outros injusto, mas uma lei válida para
todos, que se estende pela vastidão do ar e pela ilimitada luz. [...] Porém seus
altares não eram banhados com o infame assassínio de touros, sendo esta a mais
grave transgressão entre os homens: privar-lhes da vida e ingerir seus nobres
membros. [...]”85

Todavia, dentro da própria Escola Italiana, havia quem sustentasse a


necessidade de diferenciação entre o homem e os demais seres vivos. Veja-se o
caso de ALCMEON, natural de Crotona, contemporâneo de PITÁGORAS que, ao
pretender distinguir o pensamento da percepção, afirmou que a referida distinção
baseia-se no fato de que somente ao homem é dado possuir a verdadeira

menos é o que se conta, não se alimentam de carne nem de coisa alguma que tenha vida;
também são os únicos que não bebem vinho. Mas Epicárides come cães, e é um pitagórico. Ah,
mas primeiro ele os mata e, portanto, não têm mais vida.” Em O Pitagórico, ARISTÓFANO diz:
“Quanto a passar fome e não comer nada, imagine que está diante de Tímalo ou Filípede. Por
beberem água eles são rãs; por gostarem de tomilho e vegetais, são lagartas; por não se
banharem, urinóis; por permanecerem ao relento por todo o inverno; melros; por suportarem o
calor e matraquearem ao meio-dia, cigarras; por não deitarem vistas sobre o óleo de oliva, nuvens
de poeira; por perambularem ao amanhecer sem sapatos, grous; por jamais dormirem, morcegos.
(ALEXIS; ARISTÓFANO, apud BARNES, op.cit., p. 241-2)
83
EMPÉDOCLES apud BARNES, op.cit., p. 232-3.
84
A idéia de sacrifício sempre foi relacionado à necessidade de entrega aos deuses de uma parte
daquilo que se retirava da natureza. Segundo ARMESTO, “Os presentes são um meio de
estabelecer reciprocidade e cimentar as relações entre os indivíduos e os grupos humanos: por
extensão, o presente também serve para vincular os deuses ou os espíritos aos doadores
humanos, conectando as divindades ao mundo profano e alertando-as para as necessidades e
preocupações deste” (ARMESTO, Felipe Fernández. Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 62).
85
Ibid., p. 231-2.

- 19 -
compreensão, enquanto que às outras criaturas é possível apenas perceber, mas
não compreender ou pensar.

Outros filósofos pré-socráticos continuam a especular sobre a


natureza e sobre os elementos primordiais como origem de todas as coisas86. A
Escola Atomística87 representava o auge da elaboração científica pré-socrática,
apresentando a teoria de que o elemento primordial seria o átomo. Os fenômenos
naturais seriam fruto, pois, das forças de atração e repulsão ocorrentes entre
estas partículas. Com relação ao mundo natural, DEMÓCRITO DE ABDERA
postula em seus ensinamentos que: “[...] A boa natureza dos animais é a força do
corpo; a dos homens, a excelência do caráter. Talvez sejamos ridículos quando
nos vangloriamos de ensinar os animais. Deles somos discípulos nas coisas mais
importantes – da aranha no tecer e remendar, da andorinha no construir casas,
das aves canoras, cisne e rouxinol no cantar, por meio da imitação.”88

O pensamento eleático89 rompe com a noção de elemento primordial


e transfere a discussão para o binômio “verdade/aparência”, ou
“realidade/aparência”. De acordo com ele, a realidade percebida pelos nossos
sentidos é somente aparente, superficial. Se formos além de nossa experiência
sensível descobriremos uma realidade única, eterna, imutável, ideal.90 Nesse
sentido, PARMÊNIDES DE ELÉIA afirma que “o ser é, o não ser não é”, como
que em uma lei de identidade em que “é o mesmo o ser e o pensar”. Assim
sendo, a razão humana permite que o homem, trilhando o “caminho da Verdade”
(da razão), afaste-se do mundo sensível que, em última análise é mutável e
impreciso.

86
HERÁCLITO (c. 500 a.C.) toma o fogo (pyr) como elemento primordial. Já EMPÉDOCLES DE
AGRIGENTO (c. 450 a.C.), por sua vez, cria a doutrina dos quatro elementos (fogo, água, terra e
ar), sintetizando as doutrinas antecedentes dos elemento primordiais. Esses elementos
combinados seriam a raiz de todas as coisas (rizómata). Esse pensamento influenciou fortemente
toda a Antiguidade, chegando até a Idade Média por meio dos alquimistas.
87
A Escola Atomística é tida por muitos como a mãe da física e da química moderna. Seus
maiores expoentes são LEUCIPO DE ABDERA e DEMÓCRITO DE ABDERA (460-370 a.C.).
88
DEMÓCRITO apud DIAS, op.cit., p. 21-2.
89
A denominada Escola Eleática é formada por pensadores como PARMÊNIDES DE ELÉIA (fl.c.
500 a.C.), ZENÃO DE ELÉIA (fl.c. 464 a.C.) e MELISSO DE SAMOS (fl. c. 444 a.C.).
90
Essa concepção da Escola Eleática é denominada de monismo (realidade é única) em
contraposição aos mobilistas, filósofos que entendem que a realidade natural se caracteriza pelo
movimento como que em um fluxo contínuo (HERÁCLITO DE ÉFESO – fl.c. 500 a.C.).

- 20 -
Como se pode perceber, todo o arsenal teórico desenvolvido pelos
pré-socráticos está intimamente relacionado à explicação da realidade tomando
como ponto de partida o mundo natural, em um claro movimento de rompimento
com o pensamento mítico. Muito embora aos nossos olhos as suas idéias possam
soar um tanto quanto primitivas, principalmente se comparadas às complexas
teorias científicas da modernidade, é de se louvar que tenham se dedicado à
tentativa de compreensão dos acontecimentos naturalísticos por meio de uma
fundamentação teórica e crítica. Aliás, não são outras as bases do pensamento
filosófico. Segundo MARILENA CHAUÍ:

Como fundamentação teórica e crítica, a Filosofia ocupa-se com os


princípios, as causas e condições do conhecimento que pretenda ser
racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores
éticos, políticos, religiosos, artísticos e culturais; com a compreensão das
causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e
coletivo; com os princípios, as causas e condições das transformações
históricas dos conceitos, das idéias, dos valores e das práticas
humanas.91

Observamos que é lugar comum entre a maioria dos pensadores


pré-socráticos a adoção da teoria do elemento primordial que se prestava a
explicar toda a sorte de coisas e fenômenos. Assim, recapitulando, tem-se que
TALES alegava ser a água o princípio original de todas as coisas.
ANAXIMANDRO considerava ser o ilimitado, enquanto que ANAXÍMENES
entendia ser o ar. PITÁGORAS julgava ser o número e HERÁCLITO o fogo.
EMPÉDOCLES asseverou serem quatro raízes (úmido, seco, quente e frio) e
ANAXÁGORAS as sementes. LEUCIPO e DEMÓCRITO construíram a idéia de
que seriam os átomos. O elemento primordial, presta-se, pois, a explicar o mundo
natural, e é utilizado inclusive para explicar a origem da racionalidade. Exemplo
bastante ilustrativo é o que se colhe nas lições de DIÓGENES DE APOLÔNIA
(c.490- 428 a.C.) que, tendo eleito o ar como princípio originário, afirma que “[...]
os humanos e os outros animais, porquanto respirem, vivem do ar. E este é para
91
CHAUÍ, op.cit., p. 23.

- 21 -
eles tanto alma como inteligência, como terá sido claramente demonstrado no
presente tratado; e caso estes lhe falte, perecem eles e sua inteligência se
perde.”92

De fato, ao comentar o pensamento de DIÓGENES, TEOFRASTO


(c. 372-288 a.C.) assinala que “encontramos um indício de que a umidade destrói
a mente no fato de os outros animais possuírem intelectos mais fracos; pois
respiram o ar da terra e o alimento que consomem é úmido. Os pássaros
respiram ar puro, porém sua natureza se assemelha à dos peixes, pois sua carne
é rija e a respiração não lhes penetra o corpo todo, detendo-se no abdômen. Por
conseguinte, digerem seu alimento rapidamente, mas são desprovidos de
inteligência. Além do alimento, seus bicos e línguas concorrem para tal, pois são
incapazes de compreender uns aos outros. As plantas, porquanto não são ocas e
não absorvem o ar, são totalmente incapazes de raciocinar. A mesma causa
explica a tolice das crianças. Pois contém elas grande quantidade de umidade,
resultando em que o ar não pode percorrer o corpo todo, mantendo-se recluso no
peito. Por isso se mostram elas obtusas e tolas. Inclinadas à ira, em geral são
impetuosas e volúveis, porque o ar é deslocado em quantidades maiores dos
corpos pequenos.”93

Esta concepção de elemento primordial foi, de certa maneira,


apropriada pelos pesquisadores do século XIX, proponentes da teoria da geração
espontânea. Acreditavam que certos meios físicos - o ar, a água ou até um
simples caldo de carne frio - eram dotados de uma "qualidade vital" que permitia o
aparecimento de seres vivos. A analogia é inevitável. Muito embora ambas não
resistam a uma análise mais criteriosa, trazem em seu bojo a noção de uma
“origem comum” que serve de elo entre os homens e demais seres vivos.

Além deste traço compartilhado por vários pensadores, o


rompimento do pensamento mítico permitiu aos pré-socráticos enxergarem o ser
humano como parte do universo, imerso na totalidade do cosmo, sujeito às leis
físicas que o regiam. No entanto, como se teve oportunidade de verificar, apesar

92
DIÓGENES apud BARNES, op.cit., p. 341.
93
TEOFRASTO apud BARNES, op.cit., p. 345.

- 22 -
deste “jusnaturalismo cosmológico”94 já são marcantes as distinções traçadas
para distinguir a criatura humana das demais. A idéia de ordem natural necessária
e universal, ínsita à origem do pensamento filosófico, ainda que de maneira
incipiente, começa a legitimar, de uma forma ou de outra, a construção de uma
hierarquia entre os seres vivos, atribuindo ao homem às virtudes do caráter e da
razão95 e aos animais a força e o vigor corporal. Em outras palavras, por sermos
racionais, seríamos os únicos capazes de concatenar o pensamento coerente e,
por conseguinte, conhecer a realidade, que, por sua vez, segue as leis
necessárias e universais da natureza. Esse tipo de construção é o pilar central da
legitimação da apropriação dos animais pelos homens. A propósito, veja-se o
seguinte trecho de PLUTARCO (c. 45-120 d.C.), que é bastante elucidativo a esse
respeito:

[...] sob todos os demais aspectos somos mais desafortunados do que os


animais. Porém, através da experiência, da memória, da sabedoria e do
engenho, segundo Anaxágoras, utilizamo-nos dos animais, tomando-lhes
o leite e o mel, agrupando-os em rebanhos e fazendo deles o que bem
entendemos, de modo que nada depende aqui da sorte, mas tudo do
planejamento e da presciência.96

Entre os séculos VI-IV a.C. a filosofia consolida-se como gênero


cultural autônomo. Podem ser elencados diversos fatores que contribuíram para
esse fato, tal como a estabilização da sociedade grega com o incremento das
atividades mercantis, o apogeu das cidades-estado (organização da sociedade
ateniense), entre outros. O fato é que a sociedade, pelo crescimento do aspecto
comercial, sente a necessidade de criar uma base institucional para conciliar os
mais diversos interesses dos cidadãos. Há uma transição do sistema oligárquico
para o democrático, favorecendo a possibilidade de entendimento por meio do

94
A expressão é utilizada por EDNA CARDOZO DIAS, op.cit, p. 22.
95
Segundo DEMÓCRITO, “A natureza e o menino são semelhantes, acrescentando de maneira
sucinta a razão: pois o ensino transforma o homem, e é transformando que atua a natureza.” Ou
ainda segundo o mesmo autor, ”Para os animais, uma boa formação consiste em vigor corporal:
para os homens, no viço do caráter.” (DEMÓCRITO apud BARNES, op.cit., p. 301 e 329, passim).
96
PLUTARCO apud BARNES,op.cit., p. 279.

- 23 -
consenso nas assembléias populares. A razão sobrepõe-se à utilização da força e
o diálogo pressupõe a apresentação de justificativas e fundamentos para os
argumentos apresentados. O exercício do poder passa a ser controlado pela
atuação da figura política do cidadão.

É neste cenário que surgem os sofistas97, mestres da oratória e


retórica, que disseminavam seus ensinamentos (arte da persuasão) com a
finalidade de facilitar a participação e conseqüente inserção dos cidadãos na vida
política. As fontes para o conhecimento de suas principais idéias é escassa e
somente é conseguida por meio de pensadores posteriores. Exemplo disso são
trechos a respeito dos sofistas encontrados nas obras de PLATÃO e
ARISTÓTELES, seus principais adversários. Isso faz com que tenhamos uma
visão distorcida a respeito do que efetivamente pregavam.

Apesar desta ressalva, pode-se afirmar que PROTÁGORAS DE


ABDERA (c. 490-421 a.C.), um dos principais sofistas, formulou a perigosa idéia
do “homem-medida”98. Em sua obra sobre a verdade, PROTÁGORAS teria
afirmado que “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e
das que não são como não são.”99 Conforme salienta DANILO MARCONDES:

Esse fragmento de certa forma sintetiza duas das idéias centrais


associadas as sofistas, o humanismo e o relativismo. [...] Isto é, as
coisas são como nos parecem ser, como se mostram à nossa percepção
sensorial, e não temos nenhum outro critério para decidir essa questão.
Portanto, nosso conhecimento depende sempre das circunstâncias em

97
Os principais sofistas foram PROTÁGORAS DE ABDERA (c. 490-421 a.C.), GÓRGIAS DE
LEONTINOS (c.487-380 a.C.), HÍPIAS DE ELIS (c. 433 a.C.), LICOFRON, PRÓDICOS (c.470
a.C.) e TRASÍMACO (c. 459-c.400 a.C.).
98
Por incrível que pareça, até os dias de hoje, há aqueles que fazem reverberar explicitamente a
idéia do “homem-medida”. PAULO DE BESSA ANTUNES, neste sentido, afirma que: “A relação
com os demais animais deve ser vista de uma forma caridosa e tolerante, sem que se admita a
crueldade, o sofrimento desnecessário e a exploração interesseira de animais e plantas. Mas,
evidentemente, não se pode perder de vista o fato de que o homem é a medida de todas as
coisas, como já mencionavam os gregos” (ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 26). A noção do homem como medida é perturbadora não só
porque não reconhece valor intrínseco aos demais seres vivos, como também instala a discussão
acerca dos limites objetivos do que vem a ser humano ou não. Lembro que há pouco tempo atrás,
seres humanos eram mantidos oficialmente como escravos possuindo status de coisa. A idéia me
parece um tanto quanto perigosa.
99
PLATÃO, Teeteto, 152a, apud MARCONDES, op.cit., p. 43.

- 24 -
que nos encontramos e pode, por isso mesmo, variar de acordo com a
situação. Protágoras aproxima-se assim bastante dos mobilistas, de
quem pode ter sofrido influência, e afasta-se da visão eleática de uma
verdade única.”100 Fruto deste relativismo, em que cada homem tem uma
opinião que é, por si, verdadeira, temos a constatação atribuída a
TRASÍMACO (c. 459-c.400 a.C.) segundo a qual ‘a justiça é sempre a
vantagem do mais forte’.

1.2.2. Sócrates

“Os macacos preferem as árvores: portanto, qual habitat há de ser


absolutamente certo? Os corvos gostam de camundongos, os peixes
fogem espavoridos ao ver uma mulher, que os homens acham
adoráveis. Qual é o gosto absolutamente certo?”101

MESTRE CHANG (290 a. C.)

SÓCRATES (c.470-399 a.C.)102 opõe-se ao “mobilismo” dos


sofistas103, propugnando pela existência e pela busca de uma verdade única
sobre a natureza das coisas. O método desenvolvido por ele é o método da
análise conceitual104, por meio do qual se busca o autoconhecimento (“conhece-te
a ti mesmo”), razão pela qual se afirma que o período socrático é um período
eminentemente antropológico. Há um deslocamento na investigação sobre a
essência das coisas. Ela deixa de ser a busca por um princípio originário para ser
uma procura pelos conceitos e idéias em um mundo incorpóreo e intemporal.

A posição socrática é fortemente marcada pelo antropocentrismo, na


medida em que as leis morais se originam unicamente do homem,
desempenhando a razão o papel de condutor da verdade e da unidade. Segundo
100
MARCONDES, op.cit. p. 43.
101
CHANG apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 119.
102
SÓCRATES não deixou legado por escrito. Seu pensamento está exposto em obras de seus
discípulos, principalmente PLATÃO.
103
Ao contrário dos sofistas, SÓCRATES acredita que as percepções sensoriais são comumente
fonte de erro e formas imperfeitas do conhecimento.
104
SÓCRATES caracterizou seu método como maiêutica que significa a arte de fazer o parto.

- 25 -
consta de trecho da obra Memorabilia105 de XENOFONTE (c.431-350 a.C),
soldado e historiador grego, SÓCRATES acreditava que o propósito dos animais
era o de servir aos homens. Pode-se dizer que tal afirmação constitui a primeira
manifestação formal do “antropocentrismo teleológico” que, conforme se verá
mais adiante em ARISTÓTELES, constitui a idéia de que tudo na natureza tem
um único propósito, o de servir ao homem.

1.2.3. Pensamento Platônico

“Se um homem [...] não admitir que toda coisa individual tem uma forma
determinada que é sempre um e o mesmo [...] ele destruirá o poder do
raciocínio.”106

PLATÃO

No desdobramento do ideário socrático, PLATÃO (428-347 a.C),


alinhando-se com o antigo mestre, tenta demonstrar que a prática filosófica dá
preferência às idéias em detrimento do mundo sensível. Por meio do diálogo, no
método dialético, PLATÃO analisa a decadência da democracia ateniense
tematizando questões sobre o significado dos regimes políticos, das virtudes, do
valor da arte, entre outras, sempre ancorado na compreensão do homem como
ser político.

Em PLATÃO, a superação das divergências de opinião torna-se uma


busca pela universalidade, culminando com a formulação da “teoria das formas”
ou “teoria das idéias”107, notadamente influenciada por PARMÊNIDES.

105
Edição brasileira da Memorabilia (“Memoráveis”) é encontrada na coleção Os Pensadores, São
Paulo: Abril Cultural, 1975.
106
PLATÃO apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 114.
107
Há várias versões da teoria das idéias de PLATÃO, mas a mais tradicional é a encontrada na
exposição do Mito da Caverna em sua obra A República (VII, 514a-517d). Segundo MARILENA
CHAUÍ, “nesse mito ou alegoria, PLATÃO estabelece uma distinção decisiva para toda a história
da filosofia e das ciências, qual seja, a diferença entre o sensível e o inteligível. O sensível são as
coisas materiais ou corpóreas cujo conhecimento nos é dado por meio de nosso corpo na
experiência sensorial ou dos órgãos dos sentidos e pela linguagem baseada nesses dados. O
sensível nos dá imagens de coisas tais como nos aparecem e nos parecem, sem alcançar a

- 26 -
Em sua dimensão ético-política, o pensamento platônico, defende o
inatismo da razão, pelo qual a concepção da justiça está ligada ao fato de que um
indivíduo é justo quando consegue que seu intelecto domine seus impulsos
irracionais. A razão é a parte superior do espírito e deve controlar a inferior, ligada
aos desejos. Em um raciocínio analógico, politicamente, uma sociedade será,
pois, justa, quando as classes inferiores forem dominadas pelas superiores. Por
meio da dicotomia racional/irracional é criada uma estrutura hierárquica na qual
as classes pretensamente inferiores podem e devem ser controladas pelas
camadas superiores em uma ordem seqüencial. Desta forma, os militares devem
ser controlados pela classe política, enquanto que esta deve ser regulada pelos
“sábios”.

Tal concepção guarda um paralelismo inevitável com o sistema de


“castas” indiano. A estratificação social fundada na política, na ordem econômica
ou religiosa é uma forma de exclusão e impõe a aceitação da existência de
diferenças inatas entre pessoas de uma mesma comunidade. A sociedade
estamental na Europa feudal e a própria sociedade moderna capitalista com suas
classes sociais não deixam de traduzir a mesma idéia.

Em sua obra A República, seguindo esta linha de hierarquização das


classes sociais, PLATÃO atribui a cada homem uma atividade. “Cada indivíduo
deveria ocupar-se com uma atividade na cidade para a qual sua natureza está
mais bem dotada, cada qual desempenhando uma atividade.”108 Segundo JOHN
PASSMORE, fazendo referência à “teoria das idéias”, “não há dúvida de que para
ele há uma ‘imagem’ da justiça – da perfeição moral -, ‘o princípio de que aquele
que a natureza concebeu para ser sapateiro deveria fazer sapatos e nada
mais.’”109 Na mesma linha, o apuro filosófico através do pensamento racional não
estava ao alcance de todos os homens, afinal, “a multidão não pode ser

realidade ou a essência verdadeira delas. As imagens sensíveis formam a mera opinião – a dóxa -
, variável de pessoa para pessoa e variável numa mesma pessoa, dependendo das
circunstâncias. O inteligível é o conhecimento verdadeiro que alcançamos exclusivamente pelo
pensamento. São as idéias imateriais e incorpóreas de todos os seres ou as essências reais e
verdadeiras das coisas. Para PLATÃO, a Filosofia é o esforço do pensamento para abandonar o
sensível e passar ao inteligível.” (CHAUÍ, op.cit., p. 43).
108
PLATÃO apud PASSMORE, op.cit., p. 20.
109
Ibid., p. 21.

- 27 -
filosófica”. A maior parte dos homens não pode alcançar o que PLATÃO
denomina de “bondade filosófica”110. O máximo que podem atingir é a “bondade
cívica” pela obediência às leis, e a companhia dos deuses estaria reservada a
poucos afortunados.

Como se percebe, a ruptura da filosofia platônica com o pensamento


mítico não é total, na medida em que especula sobre a natureza da alma no
Fedro, tendo identificado neste diálogo três espécies de “almas”111. Até mesmo
aqui a idéia de hierarquia também aqui se faz presente. Os animais não-
humanos, os escravos, e as plantas possuiriam como que uma “alma” primitiva,
mortal, localizada em sua região torácica. Era tida como uma “alma” irracional,
ainda que permitisse aos animais não-humanos a habilidade de compreender
determinados comandos básicos. A “alma” imortal, racional, no entanto, residiria
somente na cabeça dos humanos. Seria a sede da razão e a nossa conexão com
o divino. De acordo com PLATÃO, “no divino não há sombra de incorreção”112,
pelo que um homem se aperfeiçoa moralmente por se aproximar da retidão
divina. A perfeição moral está, pois, no ser “à semelhança de Deus”. Mas nem
todos os humanos a possuíam. Crianças não a teriam. Escravos não a teriam.
Certamente os animais não-humanos também. Alguns adultos recebê-la-iam
somente mais tarde, enquanto que outros, nunca. A alguns humanos, portanto,
tocava o privilégio de possuir esta “alma” racional, capaz de conferir o dom de
pensar, escutar a voz da razão e acreditar.113

Para ele, o Demiurgo, ou o construtor do mundo, fez um mundo no


qual “todas as coisas deveriam chegar o mais próximas possível de serem como
ele mesmo.”114 O próximo passo no raciocínio platônico foi o de dotar o homem
de um elemento divino, ou em suas palavras, de um “gênio guiador”. O

110
PLATÃO in A República, op.cit., Livro IX, 494A
111
De fato, PLATÃO afirmou na República que a alma era composta de três partes. Já no Timeu
tal como no Fedro, ele as distingue como constituindo três formas distintas de almas.
112
Passagem extraída do Teeteto, 176-b-c, apud PASSMORE, op.cit., p. 45.
113
O papel da razão é marcante até mesmo no campo místico. Para PLATÃO, a alma se libera do
corpo pela aquisição de conhecimento, pela apreensão das relações entre as formas e idéias.
Assim escreve ele no Fédon que “A alma compreende melhor as razões quando se encontra
principalmente só e à parte, indiferente do corpo” (PLATÃO, Fédon, 65C, apud
PASSMORE,op.cit., p. 80).
114
PLATÃO, Timeu, 29D, apud PASSMORE, op.cit., p. 88.

- 28 -
compartilhamento deste elemento divino faz com que o homem, e somente ele,
pudesse se tornar semelhante aos deuses. Nesta linha de identificação do
homem com a divindade, os outros seres viventes tornam-se inferiores em todos
os sentidos, inclusive estéticos: “não percebeis a verdade da observação de
Heráclito de que o mais belo dos símios é feio quando comparado à espécie
humana?”115

Como visto, para PLATÃO, as criaturas vivas são dotadas de um


corpo perecível, habitado por almas imortais que transmigram ao longo dos
processos de vida e morte. Somente o homem possuiria a denominada “alma
racional”. Neste sentido, propugnava pela possibilidade do rebaixamento ou
elevação das almas dentro da sua escala dos seres vivos. Isso torna bastante
plausível a alegação de que seria adepto do orfismo, aceitando a tese da
metempsicose e admitindo a transmigração de almas entre membros de espécies
distintas, como se pode observar do seguinte trecho, denominado como o mito de
Er, retirado de sua clássica obra A República:

Er dizia ter visto a alma que foi um dia a de Orfeu escolher a vida de um
cisne, porque, por ódio ao sexo que lhe dera a morte, não queria nascer
de uma mulher. Tinha visto a alma de Tâmiras escolher a vida de um
rouxinol, um cisne trocar a sua condição pela alma do homem e outros
animais canoros fazerem o mesmo. A alma chamada em vigésimo lugar
a escolher optou pela vida de um leão: era a de Ájax, filho de Téleamon,
que não queria voltar a nascer no estado de homem, pois não tinha
esquecido o julgamento das armas. A seguinte era a alma de Agamenon.
Tendo também aversão pelo gênero humano, por causa das desgraças
passadas, trocou a sua condição pela de uma águia [...] a do bobo
Tersites revestir-se da forma de um macaco [...] De igual modo os
animais passavam à condição humana ou à de outros animais, os
injustos nas espécies ferozes, os justos nas espécies domesticadas;
faziam-se assim cruzamentos de todas as espécies.116 117

115
PLATÃO, Hípias Maior, 289AB, apud BARNES, op.cit., p. 135.
116
PLATÃO, A República, apud DIAS, op.cit., p. 24-5.
117
No Fédon, PLATÃO sugere que os homens ordeiros, que vivem vidas civicamente de acordo
com o bem, poderiam retornar à terra em vidas futuras como “abelhas ou formigas”.

- 29 -
1.2.4. A Hierarquia Aristotélica

“Como se Deus fizesse os seres só para alimento,


Não para outro fim lhes desse vida e sentimento; [...]
E as criaturas todas só para o bem humano
Fossem feitas, aos desígnios do tirano.”118

MARGARET CAVENDISH

ARISTÓTELES (384-322 a.C), discípulo de PLATÃO é a principal


fonte da idéia de que existiria uma hierarquia natural entre os objetos inanimados,
os seres vivos e o homem, como que em uma “escada” da vida. Rejeitando a
teoria de EMPÉDOCLES de que a natureza, incluindo os animais e o homem, era
obra do mero acaso, argumentava que nada teria sido feito em vão. Na sua obra
Physis, concebeu que tudo na natureza foi criado para servir a um propósito
específico, uma causa final119.

118
CAVENDISH apud THOMAS, op.cit., p. 348.
119
“We must explain [...] why Nature belongs to the class of causes which act for the sake of
something […] A difficulty presents itself: why should not nature work, not for the sake of
something, nor because it is better so, but just as the sky rains, not in order to make the corn grow,
but of necessity? What is drawn up must cool, and what has been cooled must become water and
descend, the result of this being that the corn grows. Similarly if a man’s crop is spoiled on the
threshing floor, the rain did not fall for the sake of this – in order that the crop be spoiled – but that
result just followed. Why then should it not be the same with the parts in nature, e.g. that our teeth
should come up of necessity – the front teeth sharp , fitted for tearing, the molars broad and useful
for grinding down the food – since the do not arise for this end, but it was merely a coincident result
; and so with all parts in which we suppose that there is purpose? Wherever the all the parts came
about just what they would have been if they had come to be for an end, such things survived,
being organized spontaneously in a fitting way; whereas those which grew otherwise perished and
continue to perish, as Empedocles says his ‘man-faced oxprogeny’ did. Such are the arguments
(and others of the kind) which may cause difficulty on this point. Yet it is impossible that this should
be true view. For teeth and all other natural things either invariably or for the most part come about
in a given way; but of not one of the results of chance or spontaneity is this true. We do not ascribe
to chance or mere coincidence the frequency of rain in winter, but frequent rain in summer we do;
nor heat in the summer, but only if we have it in winter. If then, it is agreed that things are either the
result of coincidence or spontaneity, it follows that they must be for the sake of something; and that
such things are all due to nature even the champions of the theory which is before us would agree.
Therefore action for an end is present in things which come to be and are by nature […]”
(ARISTÓTELES apud WISE, Stephen. “How Nonhuman Animals Were Trapped In A Nonexistent
Universe”. Animal Law Journal, 1995. p. 21-2).

- 30 -
Para se entender o pensamento aristotélico120, é necessário
perceber que foi o principal crítico de seu antigo mestre PLATÃO. Conforme
ressalta BANDEIRA DE ARAÚJO, “o ponto de partida aristotélico privilegia a
diversidade, incorporando das filosofias originárias a idéia de convivência, todavia
não simbiótica, entre deuses, homens e coisas. Contrapondo-se a Platão,
Aristóteles faz do sensível seu objeto por excelência: sua escola torna-se um
centro de investigações empíricas, inclusive com forte acento biologista.”121
ARISTÓTELES pretendendo dar corpo a uma corrente filosófica autônoma,
desenvolve, suas idéias em contraposição crítica à filosofia pré-socrática e
platônica122.

É necessário perceber que há também alguns pontos de contato


entre a teoria aristotélica e a platônica. Um deles diz respeito à noção de
divindade do ser humano, entendida esta como a diferenciação advinda da
possibilidade de uma vida especulativa e, não, meramente sensorial. A atividade
especulativa está intimamente ligada à elaboração intelectual e à razão. Em sua
obra Ética a Nicômaco, ARISTÓTELES afirma que:

[...] a vida parece ser comum até às próprias plantas, mas estamos
agora buscando saber o que é peculiar ao homem. Excluamos, pois, as
atividades de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de
percepção, mas dessa também parecem participar o cavalo, o boi e
todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do
homem [...]123

120
O hábito ambulatório do filósofo, que apreciava expor suas idéias em caminhadas, originou o
nome de “escola peripatética” (de “peripatos”, caminho).
121
ARAÚJO, op.cit., p. 72.
122
A sua obra Metafísica é o fruto do seu esforço de elaborar um entendimento próprio da
realidade que não se misturava com o de seus antecessores. Sua crítica principal em relação a
PLATÃO se dá no campo da teoria das idéias. Para ARISTÓTELES, não haveria elementos
comuns entre o mundo das idéias e o mundo sensível. O dualismo platônico é expurgado.
DANILO MARCONDES observa que no pensamento aristotélico “não existem formas ou idéias
puras como no mundo platônico. É o intelecto humano que, pela abstração separa matéria de
forma no processo de conhecimento da realidade, relacionando os objetos que possuem a mesma
forma e fazendo abstração de sua matéria, de suas características particulares. [...] A idéia de
homem é apenas uma natureza comum a todos os homens, não pode existir isoladamente”
(MARCONDES, op.cit., p. 72).
123
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 27 (Livro 1, 1098a).

- 31 -
O filósofo não nega a natureza animal do homem, chegando a defini-
lo como um “animal racional”. Todavia, a comunhão da característica comum
animal, por si, não é suficiente para gerar igualdade de tratamento. De acordo
com ele, por meio da contemplação, o homem é o único a tornar-se semelhante a
Deus. A razão, mais uma vez, desempenha papel fundamental para a elevação
da categoria do humano e, conseqüentemente, para o rebaixamento do que lhe é
distinto, do alter.

A concepção Aristotélica consolida, pois, os critérios que procuram


hierarquizar os indivíduos e os seres vivos em categorias estanques. Buscando
novamente apoio em PLATÃO, o filósofo pregava a divisão tripartite das almas,
uma de ordem vegetativa, outra sensitiva e uma racional124.

A “alma racional”, ou ao menos parte dela, era usada para o


pensamento abstrato. De fato, como já se mencionou, o autor também pensava e
admitia abertamente que nem todos os homens eram iguais. Assim, com a união
dessas duas vertentes, os gregos, que possuíam a “alma racional” e a usavam
em sua plenitude, ocupariam o topo da pirâmide social. As mulheres gregas eram
tidas como não tão perfeitas e, eventualmente, não conceberiam o senso do que
era justo ou não. Deste modo, estariam fadadas a ocupar um degrau abaixo na
hierarquia Aristotélica. As crianças, por sua vez, possuíam a “alma racional”, mas
não conseguiam raciocinar tão bem quanto suas mães. Os escravos (geralmente
não-gregos), não tinham capacidade plena de raciocínio, somente sendo-lhes
possível apreciar o pensamento de seus senhores, constituindo-se em meros
“instrumentos vivos” da vontade daqueles. Escravo é alguém que, “embora
permaneça um ser humano, também é um artigo de propriedade”125.

É tido como sendo proferido por ARISTÓTELES o conselho ao seu


dileto aluno, ALEXANDRE MAGNO: “Seja um líder hegemônico com relação aos
gregos e um déspota com relação aos bárbaros, veja os primeiros como amigos e

124
“A primeira (alma vegetativa) pertence a todos os seres vivos, todos têm um metabolismo, por
assim dizer. A sensibilidade pertence aos animais e aos homens, mas não às plantas, enquanto a
razão é peculiar à espécie humana. A ética só intervém no nível racional. As plantas meramente
vegetam e os animais meramente vivem como animais. A alma, dando unidade ao corpo, é forma
para a sua matéria. Não sobrevive à morte no sentido pessoal embora a razão seja imortal”
(RUSSEL, op.cit., p. 128).
125
ARISTÓTELES. Politics. Londres: J.M. Dent & Sons, 1959. p. 10, tradução nossa.

- 32 -
próximos, e trate os últimos como bestas e plantas”126. Ainda segundo
ARISTÓTELES, em sua visão que encara o não-grego como bárbaro, estes
estariam reduzidos, de fato, a uma condição muito próxima a do animal não-
humano, servindo apenas como “ferramentas animadas”: “A slave is an animate
tool, and a tool is an inanimate slave”127.

No campo das sensações, para o citado filósofo, “parece que cada


animal tem seu próprio prazer [...] São diferentes os prazeres de cavalos, cães e
homens – por isso afirma Heráclito que os asnos prefeririam o lixo ao ouro”.128
Além da distinção entre os prazeres, também se enumeram impedimentos
segundos os quais os animais não poderiam participar das atividades ligadas à
virtude tal como a felicidade.129 Mais grave ainda a afirmação do autor no sentido
de que: “a bestialidade é um mal menor do que o vício, embora mais assustador,
pois não é a melhor parte que se perverte, como no homem: os animais
simplesmente não têm uma parte melhor”130 131
. Afinal, parafraseando

126
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, op.cit., p. 187-8 (Livro 8.11, 1161a-1161b).
127
Ibid., p. 187 (1161a). “Um escravo é uma ferramenta animada e uma ferramenta é um escravo
inanimado” (tradução nossa).
128
Ibid., p. 226 (1176a, 5).
129
“A resposta à questão que estamos levantando fica evidente pela nossa definição de felicidade,
pois dissemos que ela é uma certa atividade da alma conforme à virtude. [...] É natural, pois, que
não chamemos feliz nem o boi, nem o cavalo, nem qualquer outro animal, uma vez que nenhum
deles pode participar de tal atividade. Pela mesma razão as crianças tampouco são felizes, pois
não são ainda capazes de praticar aquelas atividades, por causa da pouca idade; e quando se diz
que as crianças são felizes, trata-se apenas de um bom augúrio pelas esperanças que nelas
depositamos. Porque, como dissemos, para a felicidade é preciso não apenas virtude completa,
mas vida completa, visto que muitas mudanças e vicissitudes de toda sorte ocorrem no decorrer
da vida, e o mais próspero poder ser vítima de grandes infortúnios na velhice [...]” [Ibid., p. 31-2
(Livro 1, 1100 a)].
130
Ibid., p. 157 (1150 a).
131
“Por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, nuns, da sensação
não se gera a memória, e noutros, gera-se. Por isso, estes são mais inteligentes e mais aptos para
aprender do que os que são incapazes de recordar. Inteligentes, pois, mas sem possibilidade de
aprender, são todos os que não podem captar os sons, como as abelhas, e qualquer outra espécie
parecida de animais. Pelo contrário, têm faculdade de aprender todos os seres que, além da
memória, são providos também deste sentido. Os outros vivem, portanto, de imagens e
recordações, e de experiência pouco possuem. Mas a espécie humana vive também de arte e de
raciocínios. É da memória que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da
mesma coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se parece com a
ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da
experiência, porque a experiência, como afirma Pólos, e bem, criou a arte, e a inexperiência, o
acaso” Ibid., p. 226 (1176a, 15).

- 33 -
PROTÁGORAS, “a virtude e o homem bom enquanto tais são a medida de todas
as coisas [...]”.

Segundo destaca a professora JULIANA NEUENSCHWANDER


apesar de o povo grego ter convivido com diferentes realidades, helenos e
bárbaros, senhores e escravos, cidadãos e estrangeiros, não chegaram a
assinalar os respectivos lados “positivos” de tais distinções (helenos, senhores,
cidadãos). O vocábulo “grego”, no entanto, servia como fazia o papel desta
referência na medida em que correspondia a um ideal de homem culto, que
posteriormente foi identificado pelos romanos com a palavra humanitas. A noção
de “grego” equivalia, desta forma, apenas a uma parcela dos seres humanos, o
que, implicava, em contrapartida, que os não-gregos não eram homens. A referida
autora afirma com precisão que:

A afirmação dos gregos como lado positivo tornava possível a seleção


dos bárbaros como aqueles que ocupavam a periferia da sociedade.
Nessa direção, o traço negativo do conceito de barbarum se deixava
revelar não apenas no fato de que estes eram indicados como não-
gregos, estrangeiros, mas também naquelas negativas referências: se a
princípio bárbaro era aquele que balbuciava, não podia falar ou
compreender a língua grega, depois esses passaram a ser descritos
como também covardes, cruéis, grosseiros e glutões, de forma que o
conceito de bárbaro, inicialmente colocado como negativo, arrastava
consigo outros traços negativos... Isso reforçava a auto-representação
dos gregos, por sua vez, como um povo educado, com seu idioma e sua
arte, sua ciência e sua vida política. 132

NEUENSCHWANDER lembra ainda que, para ARISTÓTELES, a


diferenciação entre os homens e animais também se dava no plano da natureza
política da agregação dos primeiros. O homem era visto como animal político, o
zoo politikon133. Em última análise a natureza política deriva da prévia titularidade

132
NEUENSCHWANDER, op.cit.
133
Em passagem significativa, o filósofo justifica a primazia humana com base na racionalidade,
na política, na linguagem e no senso de justiça: “O homem é um animal político em um aspecto
em que uma abelha não o é, tampouco qualquer outra criatura gregária tal como o gado. Já que a

- 34 -
da “alma racional”, que lhe conferia primazia na Polis sobre os não-homens:
bárbaros, mulheres, crianças, escravos e animais.

BERTRAND RUSSEL esclarece que para o pensamento aristotélico,


o caráter necessariamente gregário do homem conjugado com o inafastável
dualismo do superior e do inferior, provocava a legitimação da dominação de uns
sobre os outros: “Em tais circunstâncias, é preferível para ambas as partes haver
governantes e governados. Os gregos são naturalmente superiores aos bárbaros
e, portanto, está na ordem das coisas que os estrangeiros sejam escravos, mas
não os gregos.”134

O homem grego afirmou a sua alteridade na razão, no logos,


construindo sua identidade sobre os que lhe eram distintos. Perceba-se que logos
significa não somente razão, mas discurso e palavra também. Em grego antigo,
dizer que uma criatura possui logos significa afirmar que ela possui razão e
linguagem. ARISTÓTELES via no homem a capacidade da razão, da linguagem e
da distinção do bem e do mal, capacidades estas que nos tornariam seres morais,
únicos, em toda a criação.

O que se pode dizer, de forma genérica, é que o mundo, de acordo


com essa concepção, obedece a uma lógica segundo a qual os menos “perfeitos”,
situados na periferia da hierarquia social, são feitos para servirem aos propósitos
dos mais “perfeitos”. Essa ótica traz consigo forte sentido teleológico. Veja-se o
caso da chuva. Ela não ocorre sem propósito. A chuva cai para o “bem” das
plantações. Estas, por sua vez, seriam destinadas aos animais não-humanos,
que, por seu turno, se prestariam à exploração pelo homem. Realmente, para o
pensador, era claro o domínio da “alma” sobre o corpo, assim como o domínio do
elemento racional sobre as “paixões”. Afirma ainda ele que, sob esta ótica, ainda
que os animais domesticados tivessem natureza melhor que os selvagens,

natureza não produz nada em vão, somente o homem possui a linguagem. A linguagem é algo
diferente da voz, que é possuída por outros animais e também usada por eles para expressar dor
e prazer; já que a sua natureza lhes permite ter sensações de dor e prazer e transmitir essas
sensações para outros. Mas a linguagem, por sua vez, serve para indicar o que é útil para nós e o
que é danoso, como também serve para indicar o que é justo ou injusto. Nesse particular, o
homem difere de todos os outros animais, pois somente ele possui a percepção do certo e do
errado, do justo e do injusto [...]” (ARISTÓTELES. Politics, op.cit., Livro 7-17, 1253a, tradução
nossa).
134
RUSSEL, op.cit., p. 131.

- 35 -
estariam melhor se governados pelo homem, porque só então seriam
preservados (noção de “escravo por natureza”). De fato:

As plantas existem em benefício dos animais, e as bestas brutas em


benefício do homem – os animais domésticos para seu uso e
alimentação, os selvagens (ou, de qualquer maneira, a maioria deles)
para servir de alimento e outras necessidades da vida, tais como roupas
e vários instrumentos. Como a natureza nada faz sem propósito ou em
vão, é indubitavelmente verdade que ela fez todos os animais em
benefício do homem. 135

1.2.5. Antropocentrismo Teleológico e a “Grande Cadeia do Ser”

“As concepções teleológica e hierárquica da natureza e das relações


sociais já levaram, ao longo da história – e desgraçadamente levam
ainda -, a diversas afirmações que não se confinam ao estatuto dos não-
humanos, e que hoje se revelam patentemente absurdas: a ‘ilusão
finalista’ de que as marés existem para propiciar a entrada e saída dos
navios dos portos, de que os papagaios e os touros só existem para
nosso entretenimento, de que as árvores só existem para nos
proporcionar sombra e frutos, de que os suínos só existem para nossa
alimentação e os cavalos para nosso transporte, de que algumas raças
humanas são inferiores e estão predispostas ao serviço das outras, de
que as mulheres existem para servir os homens ou para agradar-lhes.
Proposições teleologistas que não se distinguem das classificações
propostas por Aristóteles, as quais, ao admitirem uma escala de
participação na ‘alma racional’ a partir de uma base de teleologismo
antropocêntrico e androcêntrico, subalternizavam a condição das
mulheres e tornavam concebível a condição de ‘escravo natural’, de
alguém naturalmente predisposto à servidão, dentro da própria espécie
humana.”136

FERNANDO ARAÚJO

135
ARISTÓTELES apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 215.
136
ARAÚJO, op.cit., p. 53.

- 36 -
Para o brilhante STEVEN WISE, isto era o que podemos chamar de
“antropocentrismo teleológico”. O “teleológico” implica em aceitar que tudo na
natureza era imbuído com um propósito específico, com um destino pré-
determinado. O “antropocentrismo”, como é consabido, significa assumir a
postura de que o mundo e tudo que nele habita foi criado para o uso e benefício
do ser humano.

O referido autor, utilizando-se da expressão originalmente cunhada


por LOVEJOY137, denomina de “The Great Chain of Being” (“Cadeia Evolucionária
da Vida” ou “Grande Cadeia do Ser”) o conceito segundo o qual se prescreve um
universo estático no qual cada forma ocupa um espaço e um lugar apropriado,
necessário e permanente, que fora designado previamente para ela dentro de
uma hierarquia naturalística. STEPHEN JAY GOULD, eminente paleontologista
de Harvard, afirma que a noção da “Great Chain of Being” é, em realidade, uma
idéia “explicitamente e veementemente antievolucionária” onde não há espaço
para mudanças significativas ou alterações de “nível/degrau” 138. De fato, percebe-
se que essa noção traduz uma idéia de tempo sucessivo, linear, contínuo, não-
homogêneo, progressivo e irreversível. Nas palavras do próprio LOVEJOY, esta
idéia “é uma das seis pressuposições mais vigorosas e persistentes do
pensamento ocidental. Até um século atrás era, provavelmente, a concepção
predominante do esquema geral das coisas, da própria essência da constituição
do universo e de seus elementos.”139

Neste sentido, a matéria inanimada (pedras, terra, água, etc.) estaria


no primeiro degrau enquanto que as plantas colocar-se-iam em seguida, em um
degrau acima, pois possuem vida. Só então viriam os animais que, além da vida,
possuiriam os sentidos fundamentais. No ápice desta cadeia evolutiva estariam os
seres humanos, abençoados com a racionalidade. Nesta pirâmide existencial,

137
A doutrina que “encadeia” os seres vivos dos mais complexos aos mais elementares foi
estudada por ARTHUR LOVEJOY na década de 30, tendo sido alvo de um trabalho clássico
denominado The Great Chain of Being. Para LOVEJOY, tal teoria consiste em “um dos mais
curiosos monumentos da imbecilidade humana” (LOVEJOY, Arthur. The Great Chain of Being.
Cambridge: Mass, 1936).
138
GOULD, Stephen Jay. O Sorriso do Flamingo. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 261.
139
LOVEJOY, op.cit., p. 242.

- 37 -
acima do homem só haveria Deus, como entidade onipotente, que seria a
encarnação da razão pura.

Sir THOMAS BROWNE, na sua Religio Medici (1642), salienta os


degraus existentes na “Grande Cadeia do Ser”, afirmando que:

Existe neste Universo uma Escada, ou Escala manifesta de criaturas,


que não ascende desordenadamente, mas com um método conveniente
e proporcional. Entre criaturas com mera existência e coisas com vida,
existe uma grande desproporção de natureza, entre plantas e animais,
ou criaturas de sentidos, uma diferença ainda maior; entre eles e o
Homem, uma bem maior: se a proporção persistir, entre o Homem e os
Anjos deve existir uma ainda maior140.

Para ARISTÓTELES, conforme verificado, mesmo entre os próprios


seres humanos haveria uma hierarquia de precedência a ser observada. Os
homens eram, por essência, superiores às mulheres141, assim como os escravos
deveriam viver para satisfazerem os seus senhores142. Assim é que as vidas de
cada categoria de pessoas podem ser subdivididas:

Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a
vida que acabamos de mencionar (vida sensorial), a vida política e a vida
contemplativa. A grande maioria dos homens se assemelha a escravos,
preferindo uma vida comparável a dos animais, contudo encontram certa

140
BROWNE apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 244.
141
“[...] Again, the male is by nature superior, and the female inferior; and the one rules, and the
other is ruled; this principle, of necessity, extends to all mankind. Where then there is such a
difference as that between soul and body, or between men and animals, (as in the case of those
whose business is to use their body, and who can do nothing better), the lower sort are by nature
slaves, and it is better for them as for all inferiors that they should be under the rule of a master.
For he who can be, and therefore is, another’s and he who participates in rational principle enough
to apprehend, but not to have, such a principle, is a slave by nature” (ARISTÓTELES, Politics,
op.cit., Livro I, cap. 5).
142
ARISTÓTELES apud BARNES, Jonathan. The Complete Works of Aristotle, Princeton:
Princeton University Press, 1984. p. 2.

- 38 -
justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente
colocadas compartilharem os gostos de Sardanapalo 143 144.

Segundo o referido filósofo, os animais não-humanos não tinham


consciência daquilo que percebiam sensorialmente. Assim, enquanto humanos e
não-humanos poderiam perceber a lua como pequena, somente os primeiros
poderiam perceber que ela é, em realidade, grande. Ao assim proceder negava-
se aos animais não-humanos a capacidade de raciocinar, de possuir intelecto,
pensamento e crença. Por não possuírem essas habilidades, não seriam capazes
de desenvolver emoções, mesmo que eventualmente parecessem experimentá-
las. Eram, pois, cegos à justiça e à injustiça, ao conceito de bem e mal, e até
mesmo em relação ao seu próprio bem-estar. Segundo o filósofo, tanto os
escravos como os animais não-humanos poderiam ser caçados em uma “guerra
justa”145.

Utilizando a estrutura dos silogismos146, cuja criação é comumente


atribuída ao próprio ARISTÓTELES, podemos construir a assertiva segundo a
qual: “Os homens gregos ocupam o topo da pirâmide na “Grande Cadeia do Ser”
(“Great Chain of Being”); eu sou um homem grego; logo ocupo o topo da cadeia
evolucionária”. O resultado de estrutura silogística acima apresentada passou a
representar uma constante para se determinar aqueles que são efetivamente
sujeitos de direito e, em sentido lato, detentores do poder. Tornou-se um

143
Segundo consta Sardanapalo teria sido um rei da Assíria que em seu epitáfio mandou gravar:
“Eu Sardanapalo, filho de Anacindaraxes, construiu Anquial e Tarso em um dia. Comi, bebi, vivi
em orgias. Todo o resto não vale isso.”
144
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, op.cit., p.20-1 (Livro 1, 1094a).
145
Sobre o tema escreveu que: “A arte da guerra é a arte natural da apropriação, dado que a arte
da apropriação inclui a caça, uma arte que devemos praticar contra os animais selvagens, e contra
os homens que, apesar de serem naturalmente feitos para serem governados, se rebelam; uma
guerra deste tipo é naturalmente justa” (ARISTÓTELES em Politics, op.cit., Book 1.8, 1256b,
tradução nossa).
146
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, “silogismo é uma dedução formal tal que, postas duas
proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada,
chamada de conclusão [...]” (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 1300).

- 39 -
axioma147 (Axioma Aristotélico), e é tido como tal pois seu autor jamais o utilizaria
senão para assinalar um lugar na hierarquia de direitos que não fosse o topo.

Sintetizando o exposto, podemos identificar três elementos básicos


para a construção da idéia do “antropocentrismo teleológico” na doutrina de
ARISTÓTELES, quais sejam, o elemento teleológico, o da estabilidade e o
relacionado à continuidade. O fator teleológico deriva do fato de que todos os
seus processos deveriam necessariamente conduzir a um determinado objetivo
ou fim. A estabilidade, por sua vez, era o princípio segundo o qual o mundo era
povoado por espécies de seres vivos que, uma vez criados, nunca se
modificariam. Neste sentido, a biodiversidade grega seria idêntica ao que sempre
fora e assim permaneceria para toda a eternidade. A idéia de continuidade, como
terceiro elemento, que incluía a noção de continuidade dos organismos
biológicos, traz em si a concepção de que haveria uma linha evolutiva partindo da
matéria inanimada até chegar à matéria animada, tendo como vértice supremo da
perfeição o ser humano. A idéia de continuidade implica em se aceitar a
polarização “superior/inferior”, ou seja, os seres vivos, e mesmo o homem, variam
em níveis de perfeição distintos entre si.

1.2.6. Fase Pós-Aristotélica

“Tenha certeza de que ninguém deseja de modo mais sincero do que eu


ver a completa refutação das dúvidas que eu próprio nutri e expressei
acerca do grau de inteligência que lhes foi conferido pela natureza e
chegar à conclusão que estão no mesmo nível que nós [...] porém, o
grau de seu talento, seja qual for, não se constitui na medida de seus
direitos. O fato de Isaac Newton ter sido superior a outros indivíduos, em
termos de inteligência, não o tornou senhor das propriedades, nem das
pessoas deles.”148

THOMAS JEFFERSON

147
Segundo o Dicionário Aurélio,: “axioma é a premissa imediatamente evidente que se admite
como universalmente verdadeira sem exigência de uma demonstração [...]” (BUARQUE DE
HOLANDA, op. cit., p. 168).
148
JEFFERSON apud SINGER, op.cit., p. 07.

- 40 -
O período que sucedeu ARISTÓTELES é marcado pela perda da
hegemonia política de Atenas e a derrocada do sistema das cidades-estado
gregas. Apesar disso, a “união” e aproximação com o Egito, além de parte do
Oriente e da Índia, levada a cabo por ALEXANDRE MAGNO, logrou construir uma
“comunidade internacional” com acentuado sincretismo cultural onde o
pensamento grego exerceu papel de destaque.

Os filósofos do período continuaram a investigar os problemas


levantados pelos seus antecessores, principalmente por SÓCRATES, PLATÃO e
ARISTÓTELES149. As cinco principais correntes filosóficas deste período
subseqüente podem ser enumeradas como sendo o Cinismo150, o Ceticismo151, o
Epicurismo152, o Estoicismo e o Neoplatonismo153. Conforme salienta DANILO
MARCONDES, é no contexto do helenismo, período de transição entre a

149
Os comentários dos “helenistas” são de extrema importância, pois é através deles que o
pensamento clássico tornou-se acessível, com a reprodução e interpretação dos textos dos
antigos mestres.
150
A essência da doutrina cínica era o desapego dos bens mundanos, livre das convenções e do
estado organizado. O cínico mais importante foi DIÓGENES (404-323 a.C). Conta-se que vivia
dentro de um barril e que certa feita, quando estava tomando sol ao lado de sua morada,
ALEXANDRE MAGNO foi visita-lo. Aproximou-se do sábio e lhe perguntou se tinha algum desejo
e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. DIÓGENES então
respondeu, “Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol” demonstrando, com isso, ser mais
rico e feliz que o próprio conquistador. A origem do termo “cínico” é também um tanto quanto
curiosa. Por levarem uma vida tão primitiva quanto a de um cão, ganharam o apelido de “cínicos”,
que significa não outra coisa que “caninos”. O problema dos cínicos é que seu desprendimento
também se dava com relação à saúde e ao sofrimento alheio, razão pela qual o termo ganhou o
sentido negativo que até hoje carrega.
151
PIRRO de ELIS (360-270 a.C) é tido como sendo o fundador do ceticismo. Para as correntes
céticas, nem os sentidos nem a razão possibilitam o conhecimento acerca da natureza das coisas.
Diante da impossibilidade de decidir sobre a natureza das coisas, deve-se suspender o juízo,
evitando-se especular sobre o tema. O distanciamento produzido leva à imperturbabilidade e à
felicidade.
152
EPICURO (341-271 a.C) pregava que o principal bem era o prazer, do corpo e da mente. A
felicidade humana é destacada como objetivo a ser perseguido, trazendo o prazer tranqüilo,
evitando a dor e o prejuízo a quem quer que seja. O homem que está em paz não se sente movido
a causar dano a outro homem ou qualquer outra criatura.
153
PLOTINO (205-270 d.C), principal representante da filosofia neoplatônica, desenvolveu uma
metafísica em que dividia o real em três hipóstases: o Uno (transcendente), o Intelecto (nous, que
se caracteriza pela contemplação do Uno, como que em uma analogia ao “mundo das idéias”), e a
Alma do Mundo (psyche, originada do Intelecto). Para PLOTINO, a contemplação, objetivo
primeiro do Intelecto, é uma finalidade não somente humana, mas de todas as coisas. “Todas as
coisas se esforçam pela Contemplação, procurando a Visão como sua única finalidade, não
meramente todos os seres animados, mas até mesmo os animais irracionais, o princípio que
governa as coisas que crescem e a Terra que as produz. Decerto que nem todos eles alcançam a
contemplação da mesma forma e no mesmo grau, mas cada qual tenta possuí-la de sua própria
maneira e em seu próprio grau (...)” (PLOTINO apud PASSMORE, op.cit., p. 131).

- 41 -
chamada Antiguidade Clássica e a Idade Média Cristã, que se dá o encontro entre
o mundo greco-romano e a cultura judaico-cristã, consolidando uma tradição
cultural de que somos herdeiros154.

O mais influente desses movimentos filosóficos foi, sem dúvida, o


estoicismo. O fundador do movimento é tido como sendo o cipriota ZENÃO (344-
262 a.C) e o seu primeiro sistematizador, CRÍSIPO (281-205 a.C). Pode-se dizer
que a filosofia estóica tomou o primeiro pequeno passo rumo à igualdade ao
pretender alargar os elos da cadeia evolucionária. Uma igualdade natural entre os
humanos existiria, e, segundo uma lei natural, os senhores não seriam superiores
aos escravos, nem os maridos às suas mulheres155.

Consoante destaca EDNA CARDOZO DIAS, em um primeiro


momento:

[...] encontramos nos estóicos a idéia de que o direito natural é comum a


homens e animais. Essa idéia de que todos os seres vivos estão sujeitos
a uma lei, bem como a um Deus – logos, ratio ou pneuma - , é um dos
princípios fundamentais do estoicismo. Os seres vivos participam da ratio
universal. Para eles a razão universal rege todas as coisas e está
presente em cada homem sem distinções. Enquanto parte da natureza
cósmica, o homem é racional, donde se infere a existência de um direito
natural baseado na razão. Mas este direito não se confunde com o
direito positivo instituído pelo Estado. Em um dos fragmentos de ZENÃO
encontra-se a tese de que a lei natural é uma lei divina, a qual, portanto,
tem o poder de regular o justo e o injusto.156

154
MARCONDES, op.cit., p. 87.
155
EDELSTEIN, Ludwig. The Meaning of Stoicism. Cambridge: Harvard University Press, 1966. p.
73-4.
156
DIAS, op.cit., p. 28.

- 42 -
Todavia, certas diferenças eram mantidas. JULIANA
NEUENSCHWANDER salienta que:

O pensamento estóico bateu-se contra a concepção aristotélica da


diferença entre gregos e bárbaros, afirmando ser esta uma
contraposição antinatural, mas manteve a diferença naquilo que servia
para sua própria auto-identificação. Ao mesmo tempo em que rechaçava
os costumes ou o idioma como critérios contingentes de diferenciação,
PLUTARCO definia as virtudes como gregas e a perversidade como
bárbara. A nova unidade foi representada, pelo estoicismo, como
‘cosmos’. Na cosmópolis estavam incluídos tanto gregos quanto
bárbaros, tanto homens livres quanto escravos. Os dualismos, neste
quadro, adquiriram uma função diversa, pois não se tratava de
antagonismo ou contraposição, mas de conceitos complementares,
conforme se pode observar, já no contexto romano, sob a influência do
pensamento de STOA: Marco Aurélio tinha, enquanto ‘Antonino’, por
pátria Roma; enquanto homem, sua pátria era o cosmos157.

Apesar desse inicial alargamento dos horizontes morais, a noção de


direito natural estava alicerçada sobre o pilar da razão. No que tange ao
misticismo, os estóicos também partilhavam a crença de que o universo obedecia
a um plano superior, divino, em que alguns eram criados para o benefício de
outros, por exemplo, “plants for the support of animals, animals for the support
and service of man, the world for the benefit of gods and men”.158

Neste mesmo plano do divino, acreditam na perfeição deiforme,


centrada em Deus. Os homens possuem a potencialidade de atingirem essa
perfeição por meio da razão. SÊNECA (4 a.C.-55 d.C) afirma que “a razão (...) é
um atributo comum tanto dos deuses quanto dos homens – neles já está perfeita,

157
NEUENSCHWANDER, op.cit.
158
ZELLER, Eduard. The Stoics, Epicureans and Sceptics. Russel & Russel, 1962. p. 185.

- 43 -
em nós é capaz de ser aperfeiçoada.”159 Deuses e homens eram constituídos da
“mesma substância”.160

Infelizmente, como se pôde verificar, o avanço estóico deixou os


animais fora dessa expansão moral. De fato, CRÍSIPO chegou a afirmar que os
cavalos e o gado existiam para que trabalhassem para nós e que, com relação ao
porco, fora criado para o propósito único e especial de nos servir de alimento.
Propôs também que, levando-se em conta que nenhum humano era escravo por
natureza, os animais irracionais deveriam ocupar o lugar destes últimos161 162:

Desta forma, marcando continuidade com o pensamento Aristotélico,


para os estóicos os animais não-humanos não eram dotados de razão e, portanto,
eram coisas postas a serviço do homem. SÊNECA (2-65 d.C) chegou a afirmar
que os animais viviam sob o auspício da sensitividade e do impulso, não tendo
memória do passado, nem qualquer perspectiva acerca do futuro.163 A
continuidade, a esse respeito, com o universo hierarquizado de ARISTÓTELES é
flagrante. CÍCERO, por meio de um de seus personagens, deixa clara a posição
estóica na seguinte passagem:

Nenhum direito existe entre um homem e uma besta. Como Chrysippus


bem assinalou, todas as coisas foram criadas para o usufruto do homem

159
SÊNECA. Epistulae Morales, 92, apud PASSMORE, op.cit., p. 103-4.
160
Segundo assinala PASSMORE, “os homens diferem de Deus, na visão dos estóicos, apenas
na medida em que um evento natural particular difere da natureza como um todo; o homem, para
usar uma das metáforas favoritas dos estóicos, é ‘uma partícula de Deus’. Já que Deus é um
espírito ardente, o homem é uma ‘partícula ardente’, e já que ele é uma partícula de Deus, a
perfeição encontra-se ao alcance do homem.” (PASSMORE, op.cit., p. 108).
161
CRÍSIPO apud SORABJI, Richard. Animal Minds and Human Morals. New York: Cornell
University Press, 1993. p. 134-5.
162
Comentando CRÍSIPO, CÍCERO (106-43 a.C) declarou que: “[…] as Chrysippus cleverly put it,
just as a shield-case is made for the sake of a shield and a sheat for the sake of a sword, so
everything else except the world was created for the sake of some other thing; thus the corn and
fruits produced by the earth were created for the sake of animals, and animals for the sake of man:
for example the horse for riding, the ox for ploughing, the dog for hunting and keeping guard”
(CÍCERO. De Naturum Deorum. London: William Heineman Ltd., 1933. p. 277).
163
“The dumb animal grasps what it presents by its sense. It is reminded of the past when it
encounters something that alerts its senses. Thus the horse is reminded of the road when it is
brought to where it starts. But in stable, it has no memory of it, however often it has been trodden.
As for the third time, the future, that does not concern dumb animals”. In: SORABJI, op. cit. p. 40.

- 44 -
e dos deuses [...] assim os homens podem fazer uso delas para seu
satisfazer seus propósitos sem causar qualquer injustiça164.

1.2.7. O Legado Grego

“Quem quer que tenha se acostumado a desvalorizar qualquer forma de


vida, corre o risco de considerar que vidas humanas também não têm
importância.”

ALBERT SCHWEITZER

O legado grego é marcado pelo progressivo distanciamento do


homem em relação ao mundo natural. Com algumas honrosas exceções, toda a
retórica que conduziu à concepção antropocêntrica é marcada pelos seguintes
pontos centrais: (a) a ordem do cosmos, em oposição ao caos, é racional; (b)
biologicamente o homem é um ser racional e virtuoso, enquanto que o restante da
criação é irracional e não possui senso de justiça capaz de distinguir o bem do
mal, o certo do errado; (c) a verdadeira elevação se dá com a atividade
contemplativa e não sensitiva, somente sendo permitido ao homem conhecer as
virtudes e a felicidade; (d) ainda que todos os seres sejam dotados de almas,
somente o homem carrega uma “alma racional”. Os demais vivem em um mundo
meramente sensorial; (e) o homem é, pois, a medida de todas as coisas, podendo
atingir a perfeição por meio da razão; (f) somente o ser humano é um animal
político e a participação na vida da polis é essencial na atribuição de direitos e
deveres; (g) homem possui a “centelha divina”, sendo feito à imagem e
semelhança dos deuses e divindades; (h) a natureza não faz nada em vão e tudo
tem um propósito específico. Desta forma o propósito de todos os animais não-
humanos é o de servir ao homem; (i) os animais não-humanos não participam das
relações jurídicas e tampouco são abraçados pelo “direito natural”; (j) o homem
representa o ápice da cadeia evolutiva das espécies e as relações sociais e inter-
espécies são marcadas pela hierarquia baseada na dicotomia “superior/inferior”.

164
CÍCERO. De Finibus Bonorum et Malorum. London: Williams Heineman Ltd., 1967. p. 287.

- 45 -
A propósito, o cineasta MEL BROOKS já dizia: “It´s great to be the
King!165”

Na prática, o estabelecimento de uma hierarquia pode ser obtido


basicamente de duas formas. (a) um determinado grupo pressiona, pela força ou
ameaça, outro grupo para baixo; ou (b) persuade este outro grupo a aceitar que
efetivamente seus membros pertencem a escalas inferiores. O problema
relacionado aos animais não-humanos é que não podem lutar ou se manifestar
contra essa dominação. Como conseqüência, sua perspectiva de melhoria ou
mudança torna-se bastante restrita.

Esta suposta hierarquia universal e as crenças correlatas sobre o


propósito dos animais não-humanos, dos escravos, das mulheres, e de outros
seres vivos, fundamentadas em um universo estático, podem parecer desconexas
e já ultrapassadas, mas, infelizmente, não o são. Essa concepção polarizada de
mundo foi grandemente absorvida pelas gerações posteriores, servindo como
pano de fundo para as mais diversas formas de discriminação e opressão. De
fato, foi dito no ano de 1582 que os macacos e papagaios foram colocados no
mundo somente para nos fazer rir. Uma década antes da Guerra Civil Americana,
a Suprema Corte da Califórnia barrou as testemunhas chinesas de testemunhar
contra brancos por serem “uma raça cuja natureza marcou como inferior e que
são incapazes de progresso ou desenvolvimento intelectual além de certo ponto
[...]”166 167
. Dois anos depois, a Suprema Corte Americana, no famigerado Dred
Scott Case168, estatuiu que os negros, na escala da evolução, eram posicionados
em lugar tão inferior ao reservado aos brancos que não poderiam nunca ter os
mesmos direitos. Durante a 2ª Guerra Mundial construiu-se a odiosa teoria racial
propalada pelo nazismo segundo a qual se sustentava a superioridade da raça
ariana sobre todas as demais. Em 1965, um juiz da Virgínia julgou válido um
estatuto que proibia o casamento entre as diferentes raças porque “Deus-Todo-

165
THE History of the World: Part I. Direção de Mel Brooks. EUA: Twentieh Century Fox, 1981.
DVD (92 min.).
166
BOWLER, Peter. Evolution: The History of an Idea. Berkeley: University of California Press,
1989. p. 53.
167
No Brasil, o nosso Código de Processo Criminal de 1841 trazia norma similar (art. 75),
prevendo a impossibilidade do escravo testemunhar em juízo contra seu senhor.
168
Dred Scott v. Sanford, US (19 how) 393, 403, 1856.

- 46 -
poderoso criou as raças como brancas, negras, amarelas, vermelhas e as colocou
em continentes separados [...] O fato de que Ele as tenha separado demonstra o
seu intento de não permitir sua mistura”.169

Como se pode facilmente perceber, o racismo, entendido como


diferenciação de tratamento com base na raça, o sexismo, tratamento desigual
em função do sexo, e o “especismo”, desigualdade em razão da espécie, são
todas faces de uma mesma moeda.

Os gregos ao longo do tempo consolidaram, pois, um longo reinado


para a noção de um universo hierarquizado, tendo no topo da pirâmide o ser
humano, como único detentor de direitos subjetivos. Esse pensamento foi
determinante para a civilização ocidental sendo amplamente disseminado,
passando pelos romanos, pelo cristianismo, pelos filósofos medievais até chegar,
praticamente incólume, até os dias de hoje.

169
Loving v. Virginia, 388 U.S. 1, 3 (1967).

- 47 -
1.3. Os Romanos

“Hominum causa omne jus constitutum est”170

HERMOGENIANO

“Que prazer pode um homem civilizado retirar do espetáculo de um fraco


ser humano a ser dilacerado por um animal poderoso, ou de um
esplêndido animal a ser trespassado por uma lança?”171

MARCO TÚLIO CÍCERO

Na atualidade, o direito ocidental está basicamente172 polarizado


entre os países de tradição romano-germânica e os adeptos da common law. Em
ambos os casos, o direito sofreu fortíssima influência da moral cristã e das
doutrinas filosóficas em voga.

A família romano-germânica possui uma longa história


umbilicalmente ligada ao direito romano propriamente dito, que, tradicionalmente,
vai das origens de Roma à morte de Justiniano (565 d.C)173, abarcando mais de
12 séculos de construção normativa e jurisprudencial.

Durante os séculos XII e XIII, com a criação das grandes


universidades, o direito romano experimenta uma fase de renascimento e de

170
Frase atribuída ao jurista romano HERMOGENIANO. “Todas as leis foram elaboradas pelos
homens e para os homens” (D.1.5.2, tradução nossa). Frase similar consiste em: “O homem é
coisa sagrada para o homem” (Homo sacra res homini - Sen. Ep. 95, 33) apud LLORENTE, Victor-
José. Diccionario de Expressiones Y Frases Latinas. Madrid: Gredos, 1980. p. 105).
171
“sed quae potest homini esse polito delectatio, cum aut homo imbecillus a valentissima bestia
laniatur aut praeclara bestia venabulo transverbertarur?” (M. Tvlli Ciceronis Epistvlarvm Ad
Familiares Liber Septimvs, 1, M. Cícero).
172
RENÉ DAVID enumera ainda as categorias de “família dos direitos socialistas” e de outros
direitos “mistos” como os da Escócia , Israel, Filipinas, etc., além dos direitos muçulmano, hindu e
judaico, entre outros (DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p.19-20).
173
Alguns autores subdividem a história de Roma de acordo com as formas de governo, havendo
o período real (origens de Roma até a queda da realeza em 510 a.C.); período republicano (de
510 a 27 a.C., quando há a investidura de Otaviano pelo Senado como princeps); período do
principado (de 27 a.C. a 285 d.C., com o início do dominato por Diocleciano); período do dominato
(de 285 a 565 d.C., data da morte de Justiniano).

- 48 -
grande prestígio e, com tal fortalecimento, logrou constituir-se a base de diversos
sistemas jurídicos contemporâneos.

Como observa RENÉ DAVID, “o renascimento dos estudos de direito


romano teve por conseqüência, antes de mais nada, restabelecer na Europa o
sentimento do direito, da sua dignidade, da sua importância para assegurar a
ordem e permitir o progresso na sociedade. Este sentimento não existe
necessariamente e havia-se perdido na Europa após a decadência do Império
Romano: como no Extremo Oriente e nas sociedades primitivas, confiava-se
muito mais na conciliação, na procura de uma solução de paz e de compromisso,
na equidade do que no direito. As universidades valorizam a missão do direito;
sublinham a função insubstituível que ele deve desempenhar na sociedade. Aqui
está um primeiro ponto, independente do direito romano e da sua recepção: o
renascimento dos estudos de direito romano é, em primeiro lugar e antes de mais
nada, o renascimento de uma concepção que vê no direito o próprio fundamento
de uma ordem civil.

O renascimento dos estudos de direito romano tem um segundo


significado: que o vocabulário do direito, as categorias em que as regras serão
ordenadas, os conceitos de que se utilizarão, serão o vocabulário, as categorias,
os conceitos da ciência dos romanistas. Divisão do direito público e do direito
privado, classificação dos direitos em reais e pessoais, noções de usufruto, de
servidão, de dolo, de prescrição, de mandato, de contrato de trabalho, tornam-se
as divisões e noções sobre as quais os juristas raciocinam, visto que são
formados pela escola do direito romano.”174

Como se verá, apesar da enorme importância e influência do direito


romano sobre o direito em geral, e, em especial os países da dita “família romano-
germânica”, a concepção romana acerca da natureza jurídica e do status moral
dos animais representa nítida continuidade com o pensamento clássico,
reproduzindo a sua estrutura básica segundo a qual eles seriam coisas, situadas
no âmbito do direito de propriedade.

174
DAVID, op.cit., p. 40-1.

- 49 -
1.3.1. A Dicotomia “Pessoa/Coisa”

“A idéia de coisa como algo de totalmente submetido à vontade humana


deve ser abandonada. [...] Parece de resto claro que a idéia de coisa
está moldada sobre a de objeto inanimado, sendo, por isso, distorcida
quando aplicável aos animais. [...] A tutela dos animais integra, pois,
plenamente, a cláusula dos bons costumes e, por essa veia, o coração
do Direito Civil.”175

ANTÔNIO MENEZES CORDEIRO

A dicotomia “pessoa/coisa” possuía grande relevância na vida


romana. É atribuído a GAIO176, jurisconsulto romano do século II, a formalização
da divisão do sistema jurídico entre as categorias de pessoas, coisas e ações
judiciais correspondentes aos direitos materiais violados.177

De fato, os animais eram, como ainda são, classificados como


“coisas”. O conceito jurídico tradicional de coisa abraça tudo aquilo que pode ser
objeto de um direito subjetivo patrimonial. Em conseqüência, tudo o que pudesse
ser apropriado por uma pessoa, constituindo uma realidade econômica autônoma,
era juridicamente uma coisa. Para GAIO, uma “pessoa” era um ente capaz de
portar direitos subjetivos, enquanto uma “coisa” era tão somente um ente
subordinado aos direitos subjetivos de alguém. Mulheres, crianças, deficientes
mentais, escravos e animais foram, em um dado momento, ou por todo o tempo,
rotulados sob esta última categoria. Segundo observação de SANTANA, “decerto

175
CORDEIRO apud ARAÚJO, op.cit., p. 303.
176
“Sabe-se muito pouco da vida de Gaio. Nasceu provavelmente sob o império de Trajano e
morreu pouco depois de 178 d.C. Não ocupava nenhuma atividade política, como era de costume
entre os grandes juristas, mas ocupou-se somente do ensino do direito. O fato de Gaio ser
conhecido por um simples prenome fez surgir a hipótese de que talvez tivesse vivido em uma
província que, como era comum, tivesse adotado um prenome romano. O seu estilo de escrita,
com emprego de formas gregas, e algumas referências suas a normas provinciais de origem
oriental presentes na sua obra, fazem supor que tenha vivido em uma província helenística. De tal
fato, contudo, não se tem prova alguma. As institutiones gaianas foram tomadas por Justiniano
como modelo para as suas instituições, sendo que o dote maior de Gaio é a sua simplicidade,
alcançada através de uma exposição sistemática e plana.” (BRUTTI, M. I Giuristi del II e del II
secolo d.C .In VVAA, Lineamenti di Storia del Diritto Romano, sob a direção de M. Talamanca, 2ª.
ed., Milano, 1989. p. 447 et seq.).
177
Dig. 1, 5, 3 (GAIUS, Institutas, Livro I).

- 50 -
que no decorrer da história, escravos e animais foram submetidos a violências
muito semelhantes, mas salvo entre alguns povos primitivos, o homem ocidental
não costuma se alimentar da carne de seus prisioneiros.”178

Dentro da categoria de coisas, JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES


ensina que para os romanos:

As coisas móveis são as que se podem deslocar de um lugar para outro


sem alteração na sua substância ou na sua forma. As imóveis, o
contrário. Assim, como exemplo de coisas móveis, temos: um livro, uma
roupa. Dizem-se semoventes179 (que se movem por si) as coisas móveis
que se deslocam por força orgânica própria: os animais, e, em Roma
também os escravos.”180

1.3.2. Servidão Humana: O Status Jurídico dos Escravos

“Alguns homens são escravos por natureza, e outros são livres por
natureza. E é justo [...] e adequado que um seja senhor e o outro
escravo, pois o atributo da superioridade também é inerente ao senhor
natural.”181

JOHN MAIR (1513)

Determinados seres humanos, geralmente prisioneiros de guerra,


filhos de escravos ou pessoas livres tornadas escravas por determinação legal182,

178
SANTANA, op.cit., p. 86.
179
Às coisas semoventes alude uma constituição de JUSTINIANO (C, 7, 37, 3, 1, d) , do ano de
531 d.C.
180
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1992. Vol. I. p. 170.
181
MAIR apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 150.
182
Costuma-se enumerar como causas de perda da condição de homem livre para a de escravo a
negativa de prestar informações ao recenseamento (incensus); a negativa de prestar serviço
militar (infrequens); o desertor; o extraditado; o ladrão apanhado em flagrante delito; o devedor
insolvente e o filho-família vendido pelo pai. Para produzir a escravidão, estas pessoas eram
vendidas fora do território romano. Posteriormente, estas causas foram desaparecendo e surgindo
outras, como os condenados à morte ou a trabalhos forçados nas minas (in metallum) os quais
eram chamados de servi poenae por serem escravos da própria pena; a mulher livre que tinha
relações com escravo alheio e era notificada e, apesar disto, não cessava a sua prática, tornava-

- 51 -
possuíam natureza jurídica de coisa, de objeto de direito, sendo, pois, destituídos
de personalidade. Ainda assim, o regime jurídico aplicável aos escravos não era
exatamente idêntico ao dos animais não-humanos. De acordo com os
ensinamentos de JOSÉ CARLOS DE MATOS PEIXOTO:

[...] a condição jurídica do escravo é dominada pelo princípio de que o


escravo é uma coisa (res), um animal de que o proprietário pode dispor à
vontade, tendo sobre ele o poder de vida e morte (vitae necisque
potestas). Sendo apenas uma coisa, um animal, o escravo não tem
personalidade: servus nullum caput habet (I.1, 16, de capitis minutione,
4). Em conseqüência, o escravo não podia ter família e a união entre
escravos ou de escravo ou escrava com pessoa livre de outro sexo era
fato puramente material (contubérnio). Não podia tampouco ter
patrimônio, não lhe sendo, pois, lícito ser proprietário, credor ou devedor,
nem deixar herança. Não podia igualmente ser parte em juízo, porque o
processo somente era acessível aos homens livres. Se alguém causava
ao escravo uma lesão corpórea, ele não tinha o direito de queixar-se à
autoridade: este direito competia ao senhor, como se tratasse de animal
ferido ou de objeto danificado. Como as outras coisas, o escravo podia
ser objeto de propriedade exclusiva ou de co-propriedade; e, se era
abandonado, nem por isso ficava livre: tornava-se então uma coisa sem
dono (servus sine domino), de que qualquer um podia se apropriar. Mas
o escravo era, como diz SCIALOJA, uma coisa que era um homem e a
pressão dessa realidade irrefragável trouxe ao princípio da
impersonalidade do escravo inúmeras atenuações, das quais umas são
do direito antigo, outras apareceram no direito clássico e outras no direito
pós-clássico 183 184.

se escrava; os maiores de vinte anos que, fingindo-se escravos deixavam-se vender como tais a
comprador de boa-fé para participarem do preço, tornavam-se escravos do adquirente, etc.
183
PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Haddad Editores,
1955. p. 255.
184
Em matéria religiosa, a eles era permitido participar de cultos domésticos e mesmo públicos;
considerava-se res religiosa a sua sepultura; em certos casos poderia inclusive ser membro de
certas corporações religiosas e nelas exercer cargos. No setor doméstico, era protegido contra as
arbitrariedades da autoridade do seu senhor, que podiam provocar contra este a intervenção do
censor. Poderia ser representante de seu senhor em transações comerciais sendo que tudo o
quanto adquirisse era adquirido para o seu senhor (quadcumque per servum adquiritur, id domino
adquiritur). Poderia também ser encarregado de administrar uma massa de bens (pecúlio). Das
convenções que celebrassem resultavam obrigações naturais. A lei Junia Petrônea (19 d.C.)
vedava a entrega de escravos, salvo justo motivo, ao circo para combater. Havia também ações

- 52 -
Importante frisar que a dicotomia “pessoa/coisa” tornou-se
naturalmente tão arraigada na mentalidade romana que era sempre assumida
como normal e nunca justificada.

1.3.3. Servidão Não-Humana: O Status Jurídico dos Animais

“Vós tudo podeis fazer. Mas não devais nem desejais fazer.”

Discurso no Parlamento de Paris ao rei Francisco I (1515-1547)

A condição dos animais não-humanos é, pois, mantida sob o manto


da coisificação e da impersonalidade. Exemplo disso eram os chamados “jogos”
que, em Roma, eram realizados no Coliseu185. Todos aqueles que se situassem
fora do círculo de consideração moral dos romanos poderiam ser objeto de
entretenimento. Como não poderia deixar de ser, criminosos, escravos e animais
eram alvo de imposição de intenso sofrimento.

relativas à liberdade, chamadas de causa liberalis, por meio das quais poderia ser reivindicada a
liberdade para uma pessoa escrava (vindicatio in libertatem) e o seu contrário também (vindicatio
in servitutem). Segundo MATOS PEIXOTO, “como o escravo não tinha personalidade, não podia
pleitear em juízo; tão rigoroso era esse princípio que bastava ser contestada a liberdade do
indivíduo, para que ele não pudesse defender-se pessoalmente. Permitia-se-lhe, porém, ser
representado por um terceiro, um adsertor libertatis, o que constituiu notável exceção à regra de
que ninguém podia agir por outrem em juízo (nemo alieno nomine agere potest). Era o adsertor
que depositava a importância do sacramentum ou a garantia por meio de fiadores (praedes litis)“
(PEIXOTO, op.cit., p. 262).
185
O Coliseu servia como um enorme instrumento de propaganda e difusão da filosofia de toda
uma civilização. Variadas são as interpretações para explicar o fascínio dos romanos pelo
espetáculo. Citam-se a oportunidade de se ver o imperador pessoalmente, o castigo aos
criminosos, a ostentação do poderio romano (com o jugo das feras e escravos) e a política do “pão
e circo”. Esta última sustenta que a promoção dos jogos consistia em um meio eficaz de manter os
plebeus afastados das questões políticas e sociais. De fato, o Império Romano foi construído com
guerras de conquista e esse espírito marcial não deixava espaço para sentimentos de piedade
para com os não-romanos. A morte de seres humanos e animais era assistida como fonte
absolutamente normal de entretenimento. Cabe observar que com a conversão do império ao
cristianismo foram proibidos os jogos com mortes humanas (a partir do ano de 404 d.C.). Por outro
lado, matar ou torturar animais, mesmo com o advento do cristianismo, continuava legítimo. Desta
feita, permitiu-se a continuidade dos jogos com animais, que eram chamados de Venationes
(plural de venatio, que significava caça, ou caçada). Esses cruéis combates ainda podem ser
vistos na atualidade sob a roupagem da caça “esportiva”, de rinhas, touradas, vaquejadas,
rodeios, circos, entre tantas outras.

- 53 -
O historiador W.E.H LECKY traça um relato sobre o que
provavelmente consistia o “espetáculo” dos jogos:

O simples combate tornou-se, por fim, insípido, e todo o tipo de


atrocidade era concebido para despertar o interesse que diminuía. Certa
feita, um urso e um touro acorrentados juntos, rolaram nas areias num
combate feroz; outra vez, criminosos vestidos com peles de feras
selvagens foram lançados aos touros, que eram atiçados com ferros em
brasa ou com dardos dotados de pontas em chamas. Quatrocentos
ursos foram mortos num único dia nos dias de Calígula [...]. Com Nero,
quatrocentos tigres lutaram com touros e elefantes. Em um único dia, na
inauguração do Coliseu por Tito, quinhentos animais foram mortos. Com
Trajano, os jogos chegaram a durar cento e vinte e três dias
consecutivos. Leões, tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos,
girafas, touros, cervos, e até crocodilos e serpentes eram utilizados para
dar um toque de novidade ao espetáculo. Também não faltava nenhuma
foram de sofrimento humano. Dez mil homens lutaram nos jogos de
Trajano. Nero iluminava seus jardins, à noite, com cristãos a cujas
túnicas ateavam fogo. Com Domiciano, um exército de frágeis anões foi
obrigado a combater [...]. Tão intensa era a sede de sangue, que um
príncipe se tornava menos impopular se descuidasse da distribuição de
milho do que se deixasse de organizar os jogos.186

186
LECKY apud SINGER, op.cit., p. 216.

- 54 -
1.3.4. Direito Natural

“A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um


homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa
substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos
deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos
os tempos: ninguém sabe quando apareceram.”187

SÓFOCLES

A única construção romana que chegou a contemplar os animais


como entes morais foi, em certa medida, o Direito Natural (ius naturale). De
acordo com a fórmula de ULPIANO:

O direito natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais,


pois não é peculiar do gênero humano, senão comum a todos os
animais, que nascem na terra e no mar, e, também, às aves. Desse
direito, procede à conjunção a que chamamos matrimônio, daqui a
procriação dos filhos, daqui a educação; pois vemos que os demais
animais, mesmo as feras, se governam, pelo conhecimento desse
direito.188

Nesta acepção, o direito natural abarcaria não só o gênero humano,


mas todo o universo animal. O núcleo essencial desta passagem é a comunhão
de direito entre o homem e os animais não-humanos. CÍCERO (106 – 43 a.C), no
seu De Republica, recorda que PITÁGORAS e EMPÉDOCLES assumiam como
única a condição de todos os seres viventes: “unam omnium animantium
condicionem iuris esse denuntiant”, e reputavam como delituosa todas as ações
que acarretassem danos aos animais não-humanos.

187
SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 25.
188
(D. 1,1,1,3 Ulpianus. 1 inst.). Tradução de: “Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit:
nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium animalium, quae in terrae, quae in mari
nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit mairs atque feminae conjuntio, quam nos
matrimonium apellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio: videmus etenim cetera quoque
animália, feras etiam istius iuris peritia censeri.”

- 55 -
Desta forma, de acordo com o ius naturale, homens e animais
nasciam livres e a escravidão era abominada, sendo somente permitida no âmbito
do ius gentium, que era a lei posta pelo homem por meio do uso da razão. O
ilustre professor de história de Yale DAVID BRION DAVIS, reconhece que “a
instituição da escravidão foi sempre alvo de uma contradição conceitual que
emergiu da impossibilidade consistente na transformação de um ser consciente
em um ser totalmente dependente e desprovido de consciência, um ser que, em
essência, estaría fadado a constituir mero instrumento e prolongamento da
vontade de seu senhor.”189

Havia, pois, uma tensão entre o direito natural, que se colocava


como contrário a qualquer tipo de sujeição desmedida e o direito comum, o ius
gentium, que frequentemente corroborava tal prática. A correlação entre a
escravidão humana e a condição dos animais é evidente. A similitude da condição
entre eles fez com que a própria legislação tratasse de maneira idêntica os casos
de morte de um escravo ou de um animal. De fato, o título 2 do livro 9 do Digesto
cuida da sofisticada casuística tratada pela lex Aquilia, e um fragmento de GAIO
(7 ad ed. Prov., D. 9, 2, 2, pr.) comenta o disposto no capítulo primeiro dessa lei:
“Lege Aquilia capite primo cavetur ut qui servum servamve alienum alienamve
qudrupedemve pecudem iniura occiderit, quanti id in eo anno plurimi fuit, tantum
aes dare domino damnas esto.” (No primeiro capítulo da lei Aquilia se prevê que
quem matar injustamente um escravo ou escrava alheios ou um quadrúpede ou
res, seja condenado a dar ao dono o valor do máximo que alcançou naquele ano).

O assassino de um escravo ou de um animal compreendido como


parte do gado doméstico (pecus) era, pois, obrigado a pagar ao proprietário o
mais alto preço que tivesse alcançado durante o último ano. O mesmo ocorria
para qualquer outro tipo de dano. O capítulo três da lex Aquilia estabelecia que o
autor de qualquer outro dano (o ferimento de servos ou de animais, morte ou
ferimento de outros animais, destruição ou deterioramento de coisas inanimadas)
fosse obrigado a pagar o mais alto preço atingido pela coisa no último mês.190

189
DAVIS, David Brion. Slavery and Human Progress. Oxford: Oxford University Press, 1984. p.
20.
190
Os filhos tanto dos escravos quanto dos animais eram adquiridos mediante o instituto da
“acessão” pelo qual a propriedade do senhor aumentava pelo nascimento.

- 56 -
No mesmo sentido, corroborando o igual tratamento dispensado a
escravos e animais, temos o exemplo advindo da noção de materialidade do ato
danoso. ARANGIO RUIZ191, partindo desta noção, nos ensina que a sanção da lei
não encontrava lugar quando o dano não derivava de uma conduta positiva do
agente, ou seja, os atos omissivos, próprios ou impróprios192, não eram puníveis.
Desta feita, se o gado era deixado dentro de um celeiro, sem alimentação, para
fazê-lo morrer de inanição, ou acaso se persuadisse um escravo a subir em uma
árvore extremamente alta e de escalada perigosa, causando-lhe a queda e a
morte, não se aplicava a lei Aquilia (Gai. 3, 219)193.

Mas, se a negativa de liberdade aos animais humanos e não


humanos violava o ius naturale, aplicável a ambos, a manutenção da escravidão,
em ambos os casos, não deveria ter sido eliminada? PIETRO PAOLO ONIDA
parece possuir a resposta para tal indagação: “o direito romano atribuiu à noção
ulpianéia um valor exclusivamente metajurídico. A doutrina romana sempre
demonstrou um certo ceticismo com relação à relevância jurídica da noção de ius
naturale, em particular à ulpianéia, reconduzindo-a ao campo da sociologia ou da
etologia.”194 Deste modo, apesar de a concepção de justiça de ULPIANO ter

191
ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Istituzioni di Diritto Romano. 14ª ed., Napoli: Jovene, 1978. p. 375.
192
O conceito moderno de omissão é o de abstenção de um comportamento exigido que o
indivíduo tinha a possibilidade de concretizar. A omissão, em regra, só é relevante quando o
sujeito, tendo o dever jurídico de agir, abstém-se do comportamento. Nos crimes omissivos
próprios (ou puros), a omissão está descrita no tipo penal, tal qual nos arts. 135, 236, 244 e 246
do Código Penal. Nos crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão), a conduta
descrita no tipo é comissiva, de fazer (matar, por exemplo), mas o resultado ocorre por não tê-lo
impedido o sujeito ativo. Há a necessidade da configuração do dever de agir, ou seja, o dever de
impedir o resultado.
193
“Decidiu-se, além disso, que só se pode exercitar a ação fundada nesta lei, quando alguém
causar o dano com seu próprio corpo; dão-se, portanto, ações úteis pelo dano causado de outro
modo, como no caso de alguém prender um escravo ou um rebanho alheios e matá-los à fome, ou
carregar um animal de carga de modo a vir ele a morrer. O remédio é o mesmo contra quem
persuadir um escravo alheio a subir numa árvore ou descer num poço e o escravo cair, subindo ou
descendo, resultando-lhe da queda a morte ou um ferimento em qualquer parte do corpo; mas
quem lançar ao rio um escravo alheio, empurrando-o da ponte ou da margem, e o escravo se
afogar, não é difícil compreender que tal pessoa, pelo fato de empurrar, causa um dano com o
próprio corpo”.
194
ONIDA, Pietro Paolo. Studi sulla condizione degli animali non umani nel sistema giuridico
romano. Disponível em: <www.dirittoestoria.it/dirittoromano/Onida-Animali-parteI-capIII.htm>.
Acesso em: 18 jan. 2005.

- 57 -
entrado para a história195, infelizmente não se pode dizer o mesmo sobre a sua
proposição acerca do direito natural que abraçaria todas as criaturas sensíveis.

ALAN WATSON, professor de direito romano da University of


Georgia School of Law, também aponta o fato de que os textos justinianos, de
grande peso, não viam como imoral a escravidão, o que deveria levar os juristas
romanos a não encontrar estas contradições ou mesmo não a considerarem
sequer relevantes para o debate196. O ius naturale tornava-se, via de regra,
subalterno ao ius gentium. Conforme destaca FERNANDO ARAÚJO:

Uma subalternidade escrita na ‘ordem das coisas’, no ‘cosmos bem-


ordenado’, pois, conquanto não uma escravidão irrestrita, ou uma
justificação para o espezinhamento ou para o uso da violência contra as
demais espécies pela espécie colocada no apex do Direito natural –
reconhecendo-se que, tal como sucedia com os escravos, os não-
humanos gozavam de uma ‘liberdade natural’ que só era restringida
pelas normas convencionais e discriminatórias do ius gentium, gerando-
se, por isso, uma tensão similar àquela que se registrou entre o direito
natural que, em nome da ‘liberdade natural’, proscrevia a escravatura, e
o direito das nações que, em nome de uma prática civilizacional
expressiva de interesses, a admitia; uma tensão que durou quase dois
mil anos, até ao triunfo abolicionista do direito natural.197

De fato, o que se pode perceber é que a noção do ius naturale,


apesar de não ter sido completamente incorporada pelos romanos, logrou
subsistir, tornando-se importante ferramenta e subsídio para a idéia moderna de
direito natural que, por sua vez, é um dos mais sólidos fundamentos dos
chamados “direitos humanos”. Segundo observa STEVEN WISE, o ius naturale

195
Diz ULPIANO no Digesto, I, 1, 10 (ou no 1 reg., ou Inst. I, 1, pr. e 3, 1): “A Justiça é a vontade
constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. Os preceitos do Direito são os seguintes: viver
honestamente, não prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu. A Jurisprudência é o
conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do injusto.”
196
WATSON, Alan. The Law of Property in the Later Roman Republic. Oxford: Oxford University
Press, 1968. p. 215-16.
197
ARAÚJO, op.cit., p. 50.

- 58 -
“ironicamente, tornou-se uma força poderosa para a liberdade humana e para a
manutenção da escravidão animal.”198

1.4. Religiões de Salvação: o Cristianismo e outros “ismos”199

“Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.”200

“Quanto aos homens penso assim: Deus os põe à prova para mostrar-
lhes que são animais. Pois a sorte do homem e a do animal é idêntica:
como morre um, assim morre o outro, e ambos têm o mesmo alento; o
homem não leva vantagem sobre o animal, porque tudo é vaidade.Tudo
caminha para um mesmo lugar: tudo vem do pó e tudo volta ao pó.
Quem sabe se o alento do homem sobe para o alto e se o alento do
animal desce para baixo, para a terra?” (Ecl 3, 18-21)

1.4.1. As Religiões Ancestrais

“Todas essas moralidades [...] o que são senão [...] receitas contra as
paixões?”201

FRIEDERICH NIETZSCHE

“Que quimera será, então, o homem? Que novidade, que monstro, que
caos, que tema de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas,
imbecil minhoca; depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro;
glória e refugo do universo.”202

PASCAL

198
WISE, op.cit., p. 34.
199
O título do presente capítulo foi parcialmente inspirado no título da obra Monoteísmos e
Dualismos: As Religiões de Salvação de FILORAMO, Giovanni. São Paulo: Hedra, 2005.
200
“Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.”
201
NIETZSCHE apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 312.
202
PASCAL apud MORIN, op.cit., p. 138.

- 59 -
Os animais sempre tiveram seu lugar na jornada da fé. Conforme
salienta MARIANA IWAKURA, “do carneiro ao elefante, do peixe à pomba,
animais de todo o tipo estão presentes nas várias religiões do mundo para
relembrar o ser humano de que ele não está sozinho em sua jornada pela
vida.”203

As mais variadas religiões, entendidas como sistemas de crença,


prática e organização que conformam uma ética peculiar baseada no
sobrenatural204, trazem, de fato, de maneira conjugada, o fascínio pelos seres
vivos e o mistério pelo transcendental. Nos primórdios, muito provavelmente
devido à relação simbiótica entre caça e presa, os seres humanos nutriam uma
espécie de encantamento pelas criaturas indômitas e selvagens. Os animais tidos
como “inimigos” eram tratados com um misto de medo e respeito, enquanto que
os “aliados” eram venerados com verdadeira admiração205. As capacidades
específicas e as características físicas, tais como a força, a agilidade, o tamanho
e a destreza, conferiam aos animais um caráter quase mágico. Tal fato é
facilmente verificável nas pinturas rupestres, onde o animal é sempre destacado
como motivo e protagonista.

Neste cenário surge o totemismo, processo no qual os animais


tornam-se entidades sobrenaturais influenciando diretamente a vida dos
indivíduos e da comunidade. Os animais e humanos estão no mesmo patamar e o

203
IWAKURA, Mariana. Santa Bicharada, Revista das Religiões, n.º 16. Disponível em:
<http://super.abril.com.br/religioes/edicoes/16/especial/conteudo_religioes-54892.shtml>. Acesso
em 02 mar. 2005.
204
De acordo com o Dicionário das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, “o termo
religião e, de modo quase geral, relacionado com o verbo latino religere: cumprimento
consciencioso do dever, respeito a poderes superiores, profunda reflexão. O substantivo religio,
relacionado ao verbo, refere-se tanto ao objeto dessa preocupação interior quanto ao objetivo da
atividade a ela relacionada. Outro verbo latino posterior é citado como fonte do termo, religare, que
implica um relacionamento íntimo e duradouro com o sobrenatural. As escrituras das várias
religiões raramente contêm termos gerais para a religião. A etimologia do termo não é fortuita: a
complexidade e a diversidade das religiões humanas, bem como os sentimentos profundos e
ambivalentes que provocam, produziram um corpo heterogêneo de definições científicas do
fenômeno [...]” (SILVA, Benedicto; NETTO, Antonio Miranda (Coord.). Dicionário das Ciências
Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 1058.).
205
Por meio de escavações, os antropólogos já determinaram que os caçadores mesolíticos, em
Stakeholm, no Báltico, aceitavam seus cães como verdadeiros membros da sociedade,
enterrando-os com toda a cerimônia e, em determinados casos, com mais sinais de nobreza que
os dos próprios homens. A respeito, verificar ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p.
38.

- 60 -
intercâmbio entre eles é intenso. Nesse tipo de manifestação, a relação a um
dado animal tem importância central, pois define o grupo ao qual pertence
determinada pessoa. O totem torna-se um autêntico mecanismo de
“inclusão/exclusão” social gerando um ritual comum. Os indivíduos que se
classificam de acordo com afiliações totêmicas geralmente partilham ritos de
veneração para com um animal específico e observam tabus particulares a seu
respeito206, como a proibição dentro do grupo de não caçá-lo e de sequer
pronunciar seu nome em vão. São verdadeiros símbolos sagrados207 208. CLAUDE
LÉVI-STRAUSS, a respeito do tema afirmava com propriedade que: “Os outros
sistemas de classificação são concebidos ou praticados [...] O totemismo é vivido
[...] vincula-se a grupos reais e a seres reais.”209

A mitologia ancestral é também marcada pela presença constante


de divindades com formas híbridas que absorviam as características dos animais
206
De acordo com a mitologia de determinadas tribos norte-americanas, os humanos teriam, de
fato, ancestrais animais. Os índios brasileiros também manifestam rituais totêmicos. Há rituais em
que um macaco adulto, que constituiria a reencarnação de um homem da tribo inimiga, é morto e
seu filhote é imediatamente adotado pelo grupo e tratado com um filho e membro da tribo,
mamando no peito das índias tal como as demais crianças.
207
O mesmo senso de “comunidade” entre humanos e criaturas não humanas pode ser visto no
xamanismo. Os xamãs iniciam a sua jornada de êxtase e de comunicação com os espíritos
utilizando-se de vários métodos indutivos tais como drogas e elementos psicoativos, a exemplo da
música, da dança, etc. A mediação para a concretização da elevação espiritual do xamã é feita por
meio de uma fantasia em que são incorporadas características animais. Disfarçando-se de um
animal “poderoso”, o xamã se apropria de seus poderes. O historiador das religiões MIRCEA
ELIADE relata em sua obra Xamanismo e as Técnicas Arcaicas de Êxtase que, ao verificar uma
pintura de cerca de 20.000 anos na caverna de Lês Trois Frères, nos Pirineus, retratando um ser
humano fantasiado de antílope, concluiu pela teoria de que o xamanismo seria umas das primeiras
religiões universais. (ELIADE apud ARMESTO, op.cit., p. 41). O xamanismo é, de fato, fonte
comum de todos os ritos e práticas espirituais, sendo observado em todas as regiões do globo. O
componente animal é um dos elemento identificadores mais relevantes na prática xamânica.
Consoante esclarece JOSÉ AUGUSTO LEMOS, “A maioria dos espíritos que o orientam e
protegem tem forma de animal. Roupas e adereços xamânicos são feitos de peles de animais ou
penas de pássaros para incorporar dons – como o poder de voar. Acredita-se, inclusive, que o
xamã pode se transformar em animal – onça na Amazônia, tigre na Malásia, lobo ou urso na
Sibério e em todo o Ártico, águia ou corvo na Ásia e na América, entre outras tantas
metamorfoses. Estudiosos concordam que esta simbiose homem-animal era uma característica
dominante na cultura de nossos antepassados que saíram da África para povoar o resto do
planeta há 100 mil anos” (LEMOS, José Augusto. Vôos da Alma. Revista Superinteressante, São
Paulo: Abril, n. 215, jul. 2005, p. 62). Há, no entanto, métodos de auto-transformação que vão
muito além do simples disfarce. As evidências antropológicas sugerem que a modificação corporal
é, em última análise, intimamente ligada à imitação de características de outras espécies. A
tatuagem, a raspagem de dentes, e a própria maquiagem são, em grande parte, verdadeiros
tributo à beleza animal.
208
É bastante usual que as nações escolham um animal para incorporar a sua identidade. Assim
se deu, por exemplo, com a águia de cabeça branca americana e com o bulldog inglês.
209
LÉVI-STRAUS apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 53.

- 61 -
aos quais eram associadas. Os egípcios cultuavam uma miríade de deuses e
divindades caracterizadas por um zoomorfismo evidente, prática esta denominada
de teriomorfia. O deus Rá, criador da vida na Terra, é ligado à figura do gato,
animal que era notadamente admirado por proteger a lavoura e os grãos. De fato,
percebe-se como característica predominante das deidades egípcias, a fantástica
miscigenação entre humanos e os mais variados animais, tais como pássaros,
répteis, mamíferos, insetos, entre outros210. A esse respeito, PAOLO SCARPI
destaca que:

Hórus é o deus falcão, mas por vezes é representado por um sol alado,
destinado a tornar-se a encarnação da realeza; Hathor, cujo nome
significa ‘a casa de Hórus’, é representada pela vaca; Anúbis, divindade
responsável por cuidar dos mortos, tem um aspecto canino; Apis, o
touro; Bastet, interpretada pelos gregos como Afrodite, é deusa primeiro
leoa e depois gata; Sobek é o crocodilo, Thot, o deus da sabedoria e
senhor da escrita, tem o aspecto de um íbis. A esse complexo grupo de
seres que temos o hábito de chamar de divindades estão associados
animais correspondentes, que se tornavam destinatários de um culto,
dando lugar a uma verdadeira zoolatria, bastante difundida. É possível
que os animais exprimissem uma qualidade específica do deus a quem
eram associados: Anúbis, por exemplo, divindade funerária dos
cemitérios, era ‘como’ um chacal. Essa teoria do ‘como se’ parece
possível apenas quando em um determinado contexto cultural tenha se
desenvolvido uma consciência difundida que dissocia a qualidade
transcendente do ser divino de sua representação e, por isso, pode ter
se produzido apenas em época recente, o que, no entanto, para ser
contestado pela distribuição regional do culto atribuído a algumas

210
O panteão egípcio é riquíssimo em divindades híbridas. A deusa Hathor possuía orelhas e
chifres bovinos. Os deus Thot, da sabedoria, tinha cabeça de pássaro, enquanto que Hórus, deus
do céu e da realeza, era representado por um corpo humano em cabeça de falcão, assim como
Rá, o deus-Sol. Sekhmet era uma mulher com cabeça de leoa, análoga a Maahes, homem com
cabeça de leão. Harmakhis, por sua vez, caracterizava-se pelo contrário, corpo de leão e cabeça
de homem (figura popular da esfinge). Bastet, mulher com cabeça de gato, era tida como
encarnação de Osíris e Rá. A própria Cleópatra teria sido a encarnação da deusa Bastet.
Hibridismo total encontra-se em Ammut, divindade fruto da combinação de cabeça de crocodilo
com corpo metade leão e metade hipopótamo (sua função era a de devorar a alma dos
condenados). Geb, representado por um ganso, era marido de Nut, representada por uma mulher
com asas de pássaro, tal como Nekhbet, deusa com traços de um abutre branco. Sobek era um
homem com cabeça de crocodilo, enquanto que Anúbis, deus das necrópoles, era um ser humano
com cabeça de chacal ou de cão. Até mesmo os insetos eram representados como divindades,
como é o caso de Khepna, homem com cabeça de escaravelho, protetor de Rá.

- 62 -
espécies de animais e divindades correspondentes, ligada ao caráter
evidentemente arcaico da prática e da tradição – que remonta pelo
menos ao Pré-Dinástico, no qual está provada a existência de um rei
Escorpião -, leva a pensar na persistência de figuras de seres sobre-
humanos afins ao antepassado mítico (morte, antepassado, xamã), que
em muitos casos tem conotações animais.211

Neste contexto, o reconhecimento do animal como ente sagrado era


conseqüência da veneração de sua força, destreza e poderes especiais. Quando
o deus Khnum (deus carneiro do Egito Meridional) participou da criação do
homem, dividiu-o em três partes “espirituais” além do corpo: o Ka (representa uma
“cópia” espiritual da pessoa e contendo o “sopro da vida”), o Ba (tido como a
consciência, o conhecimento individual ou ainda a psique é o que mais se
aproxima do nosso conceito atual de “alma”. Podia vagar pelo mundo físico e
retornava à tumba) e o Akh (era a parte espiritual encarregada de viajar pelo
mundo sobrenatural passando pelo julgamento final e entrando na vida eterna). O
corpo desempenhava, pois, papel essencial na jornada para o além, derivando
daí a principal razão para o processo de mumificação.

Para os egípcios, todos os seres vivos eram igualmente agraciados


com todos esses componentes e, deveriam ser, pois, mumificados tal qual os
humanos. Observa-se que tal prática realmente se deu em larga escala. O
egiptólogo BRIAN EMERY, ao escavar o Sakkara212, descobriu uma verdadeira
galeria subterrânea de pássaros contendo ao total cerca de um milhão e meio de
múmias de íbis213. Posteriormente, em Tuna el-Gebel, cidade próxima de
Hermópolis, os egiptólogos descobriram uma enorme necrópole, um verdadeiro
cemitério de animais, contendo milhões de animais mumificados entre falcões,
corvos, gralhas, íbis, flamingos, cães, gatos, serpentes, peixes, babuínos, touros,
crocodilos entre outras inúmeras espécies.

211
SCARPI, Paolo. Politeísmos: As Religiões do Mundo Antigo. São Paulo: Hedra, 2004. p. 67.
212
Sakkara é uma localidade situada ao sul de Cairo, muito conhecida e admirada por sua riqueza
arqueológica.
213
SMITH, H.S. A Visit to Ancient Egypt: Life at Memphis & Saqqara. London:Aries & Phillips,
1974.

- 63 -
DIODORO DA SICÍLIA (c. 475 a.C.), escrevendo a respeito da
prática da mumificação animal, ressaltou a ligação quase que mística do povo
egípcio para com os animais. Segundo ele, “essa fantástica adoração de animais
dos egípcios, que supera todas as crenças, deixa em apuros qualquer um que
indague as causas de tais coisas. A opinião que os sacerdotes têm a respeito,
como já foi dito quando tratamos da crença em seus deuses, deve ser mantida
em segredo; o povo egípcio, no entanto, dá as três seguintes razões, sendo que a
primeira é totalmente lendária e correspondente apenas à ingenuidade dos
tempos antigos. Eles dizem que os deuses primordiais, que devido a seu pouco
número, foram dominados pela quantidade e atrevimento das pessoas nascidas
na Terra, teriam assumido a forma de determinados animais, conseguindo assim
escapar da crueza e brutalidade dos homens. Quando então mais tarde
alcançaram o domínio sobre todos os seres que vivem nele, provaram ser
agradecidos àqueles que foram a causa de sua salvação, e declararam sagradas
as espécies animais. Eles dão como segunda causa o seguinte: antes da época
antiga, dizem, os egípcios teriam perdido muitas batalhas devido à
desorganização de suas hordas, e por isso tiveram a idéia de dar um emblema a
cada bando. Então teriam feito imagens dos animais que agora adoram,
espetando-as em lanças e entregando-as aos principais para levá-las, e dessa
maneira cada um sabia a que secção pertencia [...]. Como terceira razão
esclarecedora, mencionam a utilidade que cada um desses animais tem para a
sociedade humana e o indivíduo [...].”214

Percebe-se que a adoração egípcia pelos animais fez com que


privilegiassem, na maior parte das vezes, os sacrifícios e ofertas ditas
“incruentas”, ou seja, oferendas que não necessitavam da morte de um ser vivo.
Os animais eram usualmente substituídos por simulacros ou por pão, vinho,
cerveja, leite, flores, perfumes, etc.215

214
DIODORO apud DANIKEN, Erich Von. Os Olhos da Esfinge. São Paulo: Melhoramentos, 1991,
p. 43.
215
Apesar de justificativas religiosas, alguns sacrifícios tinham nítido caráter econômico, como o
do antílope (oryx), que havia arrancado o olho de Osíris e cuja pela era requisitada para a
confecção de vestimentas, ou o da tartaruga, que era abatida para que a barca do sol não
encalhasse nas suas costas, e cujo casco era bastante utilizado para a produção de escudos e
ferramentas.

- 64 -
A teriomorfia, no entanto, não é um privilégio egípcio. A simbologia
divina dos animais está presente, por exemplo, na cosmogonia hindu, por meio do
Deus Ganesh (corpo humano e cabeça de elefante) e em Narisima (leão-homem),
avatar de Vishnu, entre outros216. A vaca, associada à fertilidade, o cavalo, citado
nos Vedas, o urso e o macaco, personagens do épico Ramayana, são venerados
na índia até os dias de hoje. No final do texto sagrado Mahabharata, por exemplo,
o deus Krishna encarna em um cão a fim de ajudar um príncipe que permaneceu
fiel ao hinduísmo.

A própria mitologia grega está impregnada de elementos animais.


Os bovinos estão representados por meio da figura do minotauro, ser metade
homem, metade touro, que habitava os labirintos de Creta. O cavalo se faz
presente no centauro, ente com o corpo eqüino e tronco humano. Outras
divindades do Olimpo também possuem relação estreita com os animais. Veja-se
o caso de Atena, deusa da sabedoria, que quase sempre está acompanhada de
uma coruja. Zeus, símbolo maior dentre as deidades gregas, usualmente toma a
forma de diversos animais (touro, ganso, etc.) para conseguir se aproximar dos
humanos e com eles interagir.

216
Matsia, o peixe de chifres que representa a intercessão de Vishnu num tempo de dilúvio
universal. O peixe avisou Manu (que é o Noé hindu) e salvou-o num barco preso ao seu
chifre.Curma, a tartaruga. O segundo avatar de Vishnu que apareceu na Terra depois do dilúvio
para recuperar tesouros. Varaa, o Javali. Originalmente o porco sagrado de um culto primitivo que
se tornou um avatar de Vishnu depois de um segundo dilúvio. Cavando sob a água com as
presas, fez subir a terra e restabeleceu a terra firme.Hanuman, o rei dos macacos que emprestou
sua agilidade, a sua velocidade e a sua força a Rama para ajudar a salvar Sita de Ravana. Pediu
em troca que pudesse viver enquanto os homens se lembrassem de Rama. Assim Hanuman
tornou-se imortal. Garuda, a montada de Vishnu, é uma ave mítica de cara branca, de cabeça e
asas de águia e corpo e membros de homem. Transportando o deus no seu cintilante dorso
dourado, era às vezes, confundida com o deus do fogo, Ágni. Nandi, o touro sagrado para o povo
do Indo como um símbolo de fertilidade. Foi absorvido no hinduísmo como o companheiro
constante de Shiva , de quem é montada, camarista e músico. Informações disponíveis em:
<http://www.geocities.com/Athens/2506/dhindu.html. Acesso em 05 mar. 2005.

- 65 -
1.4.2. A Concepção Bíblica

“Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa


semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do
céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que
rastejam sobre a terra.’”

(Gn 1, 26-28)217

A visão bíblica contida no Antigo Testamento consagra uma


concepção bastante marcante da relação do homem com o restante da criação218.
A idéia de diáspora do homem com o mundo natural é flagrante e está presente já
no primeiro capítulo do Gênesis, de onde se colhe a significativa passagem acima
transcrita.

Nesta passagem central diagnosticam-se dois dos traços mais


marcantes do antropocentrismo, quais sejam, a elevação do homem como ser
especial, distinto, superior e destacado do restante da criação219 sendo feito à
imagem e semelhança do criador, e, simultaneamente, a legitimação pela
divindade do “domínio” incondicional dos homens sobre todos os seres vivos 220.

217
BÍBLIA SAGRADA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 32.
218
Tanto a Bíblia hebraica (composta de 39 livros divididos em três partes, a saber, (a) a lei – em
hebraico Torá, “ensinamento” – que compreende a parte normativa mais relevante consistente no
Pentateuco – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; (b) Profetas que são divididos
em livros históricos, posteriores e os doze menores; e (c) Escritos), que contém um cânon de
livros específicos (só se aceitam os livros em hebraico, excluídos os escritos em grego), quanto a
Bíblia grega (que já incorpora alguns livros que não pertencem à Bíblia hebraica) e, por fim, a
Bíblia cristã (composta pelo Antigo Testamento – Pentateuco, Livros Históricos, Livros Poéticos e
Sapienciais e Livros Proféticos – e pelo Novo Testamento – Evangelhos de Mateus, Marcos,
Lucas e João, Atos dos Apóstolos, Epístolas de São Paulo, Epístolas Católicas e Apocalipse),
contém o relato da criação nos mesmos moldes.
219
A interpretação ortodoxa chega a afirmar que seria clara a intenção da bíblia em proclamar a
humanidade como a criação mais perfeita de Deus. Isto se derivaria do fato de que a criação da
luz, da terra, da vegetação e dos animais são precedidas somente pela frase “E Deus disse: Faça-
se [...]”, enquanto que no caso do ser humano, o Criador teria parado e ponderado acerca da
tarefa a ser realizada.
220
Outras passagens do Antigo Testamento consolidam essa posição de domínio incondicional do
homem sobre todas as criaturas. Veja-se a respeito: “Iahweh Deus modelou então, do solo, todas
as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as
chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os
animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou auxiliar
que lhe correspondesse.” (Gn 2, 19-20); ou “E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o

- 66 -
Corroborando o texto anterior, o primeiro comando de Deus dirigido
aos homens é:

[...] Deus os abençoou e lhe disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos,


enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do
céu e todos os animais que rastejam sobre a terra’. Deus disse: ‘Eu vos
dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície
da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será
vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo que
rasteja sobre a terra e que é animado de vida eu dou como alimento toda
a verdura das plantas’ e assim se fez. Deus viu o que tinha feito: e era
muito bom.

(Gn 1, 28-31)

Segundo os relatos bíblicos, após o período diluviano, modificando


parte do comando anterior, pelo qual alguns interpretam que aos homens era
proibido o abate de outras criaturas para servir de alimento221, Deus abençoou
Noé e lhe disse:

de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste: ovelhas
e bois, todos eles, e as feras do campo também; a ave do céu e os peixes do oceano que
percorrem as sendas dos mares.” (Sl 8, 6-9);ou “Concluirei com elas uma aliança de paz e
extirparei da terra as feras de modo que habitem no deserto em segurança e durmam nos seus
bosques.” (Ez 34,25); ou “Se pelo caminho encontras um ninho de pássaros – numa árvore ou no
chão – com filhotes ou ovos e a mãe sobre os filhotes ou sobre os ovos, não tomarás a mãe que
está sobre os filhotes; deves primeiro deixar a mãe partir em liberdade, depois pegarás os filhotes,
para que tudo corra bem a ti e prolongue os teus dias.” (Dt 22, 6-7). Em contraposição, contra a
crueldade para com os animais não-humanos há algumas poucas passagens: “Se vês o asno ou o
boi do teu irmão caídos no caminho, não fiques indiferente: ajuda-o a pó-los em pé” (Dt. 22, 4); ou
“Não amordaçarás o boi que debulha o grão.” (Dt. 25, 4); ou “Iahweh mandou o profeta Natan falar
com Davi. Ele entrou e lhe disse: ‘Havia dois homens na mesma cidade, um rico e o outro pobre.
O rico possuía ovelhas e vacas em grande número. O pobre nada tinha senão uma ovelha, só
uma pequena ovelha que ele tinha comprado. Ele a criara e ela cresceu com ele e com os seus
filhos, comeu do seu pão, bebeu no seu copo, dormindo no seu colo: era como sua filha.” (2 Sm.
1-3).
221
Para a maior parte da doutrina religiosa, o comando contido Gênesis 1 é, de fato, diverso do
contido no comando esculpido em Gênesis 9. A questão, a meu juízo, vai um pouco além dessa
aparente contradição. Com relação ao disposto no Gn 1, como pessoas que não eram
vegetarianas, e tampouco pacifistas, imaginam e relatam na bíblia um “começo dos tempos” onde
não era permitida a ingestão de carne nem a matança de animais? A resposta parece ser a de que
estavam intimamente convencidas de que a violência entre humanos e animais, e mesmo entre as
próprias espécies animais, não era o intento original da divindade. A ambígua permissão contida
em Gn 9 deve ser examinada com cautela. A leitura dos versículos 4 e 5 nos faz perceber que tal
passagem, em realidade, não concede um pretenso “direito” de matar. Deus o permite, é verdade,

- 67 -
Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. Sede o medo e o pavor de
todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que
se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas
vossas mãos. Tudo o que se move e possui vida vos servirá de alimento,
tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas. Mas não
comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue222

A superioridade da criatura humana é expressamente exaltada nos


Salmos 8, 6-9, onde se lê o seguinte cântico:

E o fizeste pouco menos que um deus, coroando-o de glória e beleza,


para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste:
ovelhas e bois, todos eles, e as feras dos campos também; a ave do céu
e os peixes do oceano que percorrem as sendas dos mares.

Consoante ressalta o padre dominicano ROLAND DE VAUX, “o


homem é de novo abençoado e consagrado rei da criação, como nas origens,
mas não é mais um reinado pacífico. A nova época conhecerá a luta dos animais
com o homem e dos homens entre si. A paz paradisíaca só reflorescerá nos
últimos tempos (cf. Is 11, 6-9223)224.”

De fato, tais afirmações bíblicas trazem em seu bojo um postulado


bastante radical. Ao mesmo tempo em que transformam os humanos numa
verdadeira elite da natureza, colocam-nos, e somente eles, em comunhão

mas em caráter claramente excepcional tendo em vista e pressupondo a escassez de recursos no


período pós-diluviano. Tanto é assim que em Is 11, 1-2, descrevendo um vindouro período
messiânico, temos novamente a restauração de uma fase de paz entre as criaturas, ficando
vedada qualquer forma de violência. À luz do exposto, não acredito ser possível àqueles que se
alimentam de carne apelar e invocar as escrituras de forma absoluta procurando a justificação
para suas condutas contidas em Gn. 9.
222
Gn 9, 1-4.
223
“Então o lobo morará com o cordeiro,e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o
leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso
pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi. A
criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da
víbora. Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte, porque a terra
ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas enchem o mar.”
224
Bíblia de Jerusalém, op.cit., p. 42.+

- 68 -
permanente com o divino. Há uma legitimação do ser humano como fazendo
parte de uma categoria supranatural, semi-divina, que tem o poder e o dever de
subjugar as demais criaturas.

No entanto, ao contrário do que uma interpretação puramente literal


pudesse conduzir, parece-nos mais razoável admitir que os homens é que
constroem a figura divina à sua imagem e semelhança. A doutrina da Imago Dei
(imagem de Deus) é, pois, a resposta bíblica para a questão da singularidade
humana225. SINGER, de forma absolutamente precisa, coloca a questão nos
seguintes termos: “A Bíblia nos diz que Deus fez o homem à Sua própria imagem.
Poderíamos entender isso como se o homem também fizesse Deus à sua própria
imagem.”226 A fábula de Esopo do “Homem e o Leão Viajando Juntos” ilustra com
perfeição a hipótese. Segundo se extrai de seu texto, certa vez um leão viajava
em companhia de um homem. E cada um deles se vangloriava com arrazoados.
Ora, havia na estrada uma estela com a figura de um homem estrangulando um
leão. Então o homem, apontando-a ao leão, disse: ‘Repara como nós somos mais
fortes do que vós.’ E o leão respondeu, sorrindo com malícia: ‘Se os leões
soubessem esculpir, tu verias muitos homens sob as patas de leões227.
Remetendo-nos ao já citado XENÓFANES DE CÓLOFON, cuja passagem é de
flagrante afinidade com o tema aqui versado:

Se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões, e se pudessem com


as mãos pintar ou produzir obras de arte, como se homens fossem,
então cavalos pintariam, semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes

225
A inexorabilidade de tal contastação nos é relatada por HERMES EGÍPCIO, de alcunha
TRISMEGISTO, figura lendária que supostamente teria vivido por volta de 2.270 a.C., que já se
pronunciava no mesmo sentido, asseverando que: “Porque tratamos dos laços de sociedade e
aliança formados entre os homens e os deuses, aprende a conhecer ó Asclépio, os privilégios e o
poder do homem. Assim como o Senhor, ou o Pai, ou o que é supremo, Deus, em suma, é o autor
dos deuses celestes, assim o homem é o autor dos deuses que se encontram nos templos,
contentes da proximidade dos homens. [...] Causam menos maravilha, embora maravilhosas, as
coisas ditas sobre o homem. Supera a admiração de todas as maravilhas o haver o homem podido
inventar a divindade e fazê-la” (TRISMEGISTO apud AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Bragança
Paulista: São Francisco, 2003. p. 329-31).
226
SINGER, op.cit., p. 212.
227
AVELEZA, Manoel. Interpretando Algumas Fábulas de Esopo. Rio de Janeiro: Thex, 2003. p. 7.

- 69 -
a bois, as figuras dos deuses, e esculpiriam os corpos deles, cada um
em conformidade com o próprio aspecto.228

O Antigo Testamento é obra bastante antiga. Os livros que o


compõem, diversificados em conteúdo e gênero literário, foram escritos em
hebraico e aramaico na Palestina, Babilônia e Egito por variados autores de
diferentes formações e classes sociais, entre os séculos XI e I a.C. Para se ter
uma idéia, reputa-se que DAVID, a quem se atribui a autoria de algumas
passagens, viveu por volta do ano 1.000 a.C. Neste período, o monoteísmo
israelita229 florescia num ambiente, como verificado anteriormente, marcado pelo
politeísmo e pelo culto a variadas divindades representadas por formas animais.

Conforme bem destaca MARIANA IWAKURA, “as três religiões


monoteístas ocidentais – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – têm a mesma
origem: os povos nômades da região da atual Palestina. Entre eles, adoravam-se
tanto os astros quanto alguns animais, como o touro, a que o deus fenício Baal
era associado. A idéia de um Deus único só começou a tomar forma depois da
passagem do povo hebreu pelo Egito, por volta de 1.100 a.C., e consolidou-se
com o exílio dos sacerdotes na Babilônia, em 500 a.C. Assim, somente Javé
permaneceria como adorado. Conforme o monoteísmo se fortalecia, os animais
passavam a ser vistos de forma depreciativa. A serpente, por exemplo, antes
símbolo da fertilidade e da saúde, ganhou a alcunha de traiçoeira.”230

É bastante provável que a reação judaica à teriomorfia e ao


politeísmo como um todo231 tenha suas raízes no fato de que o povo israelita

228
XENÓFANES apud SOUZA, Eudoro. Filosofia Grega. Brasília: Universidade de Brasília, 1978.
p. 10.
229
Segundo GIOVANNI FILORAMO, “o termo judaísmo não aparece na Bíblia hebraica; lê surge
pela primeira vez, em grego, num texto (Judaísmos: II Macabeus 2,21) que entrou no cânone da
Bíblia católica. Nos textos bíblicos, o povo em seu conjunto é chamado pelo nome de ‘Israel’,
enquanto ‘Judá’ é o nome de uma tribo e do homônimo reino meridional. Depois do exílio
babilônico, a denominação ‘povo de Judá’ foi estendida a todo o povo hebraico e surge também o
adjetivo ‘judaico’; como conseqüência, a rigor se deveria falar em ‘Israel’, em ‘israelitas’’ e em
‘religião de Israel’ para a época bíblica mais antiga e em ‘judeus’ e ‘judaísmo’ para o período
posterior ao exílio babilônico.” (FILORAMO, op.cit., p. 41.)
230
IWAKURA, op.cit.
231
Um exemplo bastante significativo de repúdio aos cultos de divindades animais se faz presente
no Livro do Êxodo, constante do Velho Testamento. Após chegar ao Sinai, no momento em que
Moisés retorna do cimo da montanha com o decálogo, se depara com o povo cultuando um

- 70 -
sofreu sucessivas dominações por longos períodos232. Tais episódios possuem
inúmeras implicações. Uma delas, de ordem psicológica, é a da rejeição e
aversão a qualquer das práticas levadas a cabo pelos antigos senhores,
principalmente as de ordem ritualística e religiosa. O monoteísmo (do grego
monos, “único”, e théos, “deus”) ético judaico traz consigo uma concepção
particular da sua própria história, com a exclusão categórica de qualquer outro
deus.

1.4.3. O Caso do “Boi que Marra”

“The animal scrutinises [Man] across a narrow abyss of non-


comprehension. […] The man too is looking across a similar, but not
identical, abyss of non-comprehension. And this is so wherever he looks.
He is always looking across ignorance and fear.”233

BERGER (1980)

A similitude física e espiritual do homem com a divindade é, pois,


determinante para a separação deste para com o restante da criação, na medida

bezerro de ouro. “Quando se aproximou do acampamento e viu o bezerro e as danças, Moisés


acendeu-se em ira; lançou das mãos as tábuas e quebrou-as no sopé da montanha. Pegou o
bezerro que haviam feito, queimou-o e triturou-o até reduzi-lo a pó miúdo, que espalhou na água e
fez os filhos de Israel beberem. Moisés disse a Aarão: “Que fez este povo para atrair sobre si um
pecado tão grave?” Aarão respondeu:”Que não se acenda a cólera do meu senhor, tu sabes
quanto este povo é inclinado para o mal. Eles me disseram: “Faze-nos um deus que marche à
nossa frente, porque a esse Moisés, o homem que nos fez subir do país do Egito, não sabemos o
que lhe aconteceu. Eu disse: “Quem tiver ouro, tire-o.” eles mo deram; eu o lancei no fogo e saiu
esse bezerro” (Ex 32, 19-24).
232
Haveria um sentimento de indignidade frente ao tratamento a que, como escravos, eram
submetidos, muito pior do que a condição de determinados animais? Essa é uma questão a ser
explorada pelos antropólogos e sociólogos. Além da escravidão no Egito, o povo israelita sofreu
também o problema do “cativeiro babilônico”. Israel conservou sua autonomia até 721 a.C quando
foi conquistado pelos assírios. Posteriormente, por volta de 586 a.C., o reino de Judá sucumbiu
com a tomada de Jerusalém pelo babilônico Nabucodonossor. O rei e a classe dominante foram
deportados para a Babilônia. Com a queda de Judá findou a autonomia política do povo judeu que
passa a sofrer sucessivas dominações estrangeiras, passando pelo domínio dos ptolomeus do
Egito (325-198 a.C.) e depois pelos selêucidas da Síria (198-142 a.C.). Após tais períodos temos
ainda a invasão romana de Jerusalém em 70 d.C, transformando a Iudaea em Palestina e
iniciando um momento de crescente diáspora.
233
BERGER apud PHILO, Chris; WILBERT, Chris, (orgs.). Animal Spaces, Beastly Places: New
Geographies of Human-Animal Relations. London: Routledge, 2000. p. 292.

- 71 -
em que somente os homens são dotados de inteligência, vontade e poder,
participando da natureza pela graça. Há a construção de um dogma de fé no qual
o homem se coloca à frente das demais criaturas em sua relação com o divino.

Esse dogma de fé transpõe-se rapidamente para a relação mundana


do homem com a natureza. Prova disso é o célebre caso do “boi que marra”
(“case of the ox that gored”)234, que ilustra à perfeição a concepção do status das
criaturas não-humanas no âmbito do tratamento da responsabilidade civil pelos
atos causados pelos animais. De acordo com o disposto no chamado “Código da
Aliança”235, mais especificamente no capítulo 21, versículo 28 e seguintes do
Livro do Êxodo temos que:

Se algum boi chifrar homem ou mulher e causar sua morte, o boi será
apedrejado e não comerão a sua carne; mas o dono do boi será
absolvido. Se o boi, porém, já antes marrava e o dono foi avisado, e não
o guardou, o boi será apedrejado e o seu dono será morto. Se lhe for
exigido resgate, dará então como resgate da sua vida tudo o que lhe for
exigido. Que tenha chifrado um filho, que tenha chifrado uma filha, esse
julgamento lhe será aplicado. Se o boi ferir um escravo ou uma serva,
dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor destes e o boi será
apedrejado.”

Se alguém deixar aberto um buraco, ou se alguém cavar um buraco e


não o tapar, e nele cair um boi ou um jumento, o dono do buraco o
pagará, pagará em dinheiro ao seu dono, mas o animal morto será seu.
Se o boi de alguém ferir o boi de um outro, e o boi ferido morrer,
venderão o boi vivo e repartirão o seu valor; e dividirão entre si o boi

234
De acordo com o Dicionário Aurélio, marrar significa “arremeter com a cornada (animal
cornígero) [...]” Daí o adjetivo “marrão” que serve para qualificar a rês bravia (BUARQUE DE
HOLANDA, op.cit.)
235
Segundo comentadores bíblicos, o “Código da Aliança” é uma coletânea de leis e costumes
dos primeiros tempos da instalação da comunidade hebraica no Canaã. “Por aplicar o espírito dos
mandamentos do Decálogo, foi considerado a carta magna da Aliança do Sinai, e por essa razão
inserido aqui, na seqüência do Decálogo. Os seus contatos com o Código de Hamurabi, o Código
Hitita e o Decreto de Remheb não atestam uma derivação direta e sim uma fonte comum: um
antigo direito costumeiro que se diferenciou segundo os ambientes e os povos. Pode-se distribuir
as prescrições do Código, segundo o conteúdo, em três capítulos: o direito civil e penal (21,1-
22,20); regras para o culto (20,22-26; 22,28-31; 23,10-19); moral social (22,21-27; 23,1-9). De
acordo com a sua forma literária, estas prescrições dividem-se em duas categorias: “casuística” ou
condicional, no gênero dos códigos mesopotâmicos, “apodítica” ou imperativa, no estilo do
Decálogo e dos textos da sabedoria egípcia.” (Bíblia de Jerusalém, op.cit., p. 136).

- 72 -
morto. Se, porém, o dono sabia que o boi marrava já há algum tempo e
não o guardou, pagará boi por boi; mas o boi morto será seu. (grifos
nossos)

As seções do referido “Código da Aliança” que tratam do tema da


rês bravia não são encontradas no campo da propriedade ou da responsabilidade
civil, e, sim, dos crimes havidos entre seres humanos. MICHAEL WALZER236, a
esse respeito, observa que o código israelita, de forma bastante peculiar e rígida,
prescrevia a pena capital para o homicídio e não apenas a compensação
pecuniária. De fato, não havia distinção entre a responsabilidade civil e penal, já
que a idéia hodierna de culpa ainda não estava consolidada, prevalecendo a
intenção de vingança sobre a efetiva reparação do dano. A natureza da
responsabilidade era punitiva e não reparatória/compensatória.

Apesar de também tratar os animais como propriedade, povos


contemporâneos dos israelitas como os mesopotâmicos, solucionavam de
maneira diversa a questão dos danos causados por animais, refletindo um modo
também diverso de encarar o mundo. Os códigos cuneiformes tratavam o mesmo
caso da rês bravia como uma típica hipótese de responsabilidade civil em que a
pena prescrita ao proprietário negligente era sempre de ordem compensatória,
pecuniária, nunca punitiva. O animal era também poupado de ser sacrificado. As
Leis de Eshunna, por exemplo, criadas por volta do ano 1.920 a.C., em sua seção
54, determinavam que se uma rês infligia dano a um ser humano, vindo a causar
a sua morte, e acaso provado que o animal era sabidamente bravio e que o dono
já fora avisado anteriormente sobre tal condição, deveria ele pagar à família da
vítima o equivalente a aproximadamente 80 siclos237. Se o boi matava um
escravo, a pena diminuía consideravelmente para cerca de 15 siclos. Mesmo o
Código de Hamurabi (c. 1.728 a.C), tido como rígido e cruel pela adoção da

236
WALZER, Michael. “The Legal Codes of Ancient Israel”. Yale Journal of Law and The
Humanities, n. 4, 1992. p. 335.
237
Um “siclo” (sheqel) era o equivalente a 11,4 gramas de material valioso, como ouro ou prata.

- 73 -
política retributiva do “olho por olho, dente por dente”, aplicava tão somente penas
pecuniárias a casos como este238.

Apesar de estar longe da laicização, a pedra de toque da legislação


mesopotâmica é a economia e, não, a religião239. Sua preocupação predominante
é a de proteger a propriedade privada e de indenizar efetivamente os danos que
ela eventualmente viesse a sofrer. Paralelamente, cabe ressaltar que a cultura
mesopotâmica não via os homens como totalmente apartados do restante da
natureza. Longe disso, acreditavam que a natureza já estava completa antes
mesmo da chegada do ser humano. Teríamos sido criados com o tão só propósito
de ajudar os deuses a administrar os conflitos terrenos.

O Gênesis, em oposição, traz, conforme já verificado, a concepção


de que ocuparíamos uma posição central na ordem da Criação. Neste sentido,
por termos sido feitos à imagem e semelhança da própria divindade, a morte de
um ser humano por um animal demandava a aplicação imediata da pena capital
ao “criminoso”, pelo fato de representar uma verdadeira subversão da “ordem
natural” do mundo. A natureza da sanção a ser aplicada ao proprietário (pena
capital) e, pior, ao animal (pena capital por apedrejamento), era, pois, bastante
diversa da verificada no mundo mesopotâmico. A concepção israelita postula que
apesar de os animais serem incapazes de realizar escolhas morais, deveriam ser
punidos por transgredirem a “ordem natural” imposta por Deus. A qualificação do
método de aplicação da pena (por apedrejamento) deixa claro que não se tratava
apenas de punir o proprietário com a perda de sua propriedade240.

238
O artigo 251 do Código de Hamurabi afirma que: “Se o boi de alguém dá chifradas e se tem
denunciado seu vício de dar chifradas, e, não obstante, não se tem cortado os chifres e prendido o
boi, e o boi investe contra um homem e o mata, seu dono deverá pagar uma meia mina de prata”.
O artigo subseqüente, 252, determina que, na mesma hipótese, se a vítima fosse um escravo, o
pagamento será o de um terço de uma mina de prata. Uma “mina” é o equivalente a
aproximadamente 571 gramas de metal precioso.
239
É curioso notar que no panteão das deidades mesopotâmicas há lugar para deuses com
formas animais. Um deles é Oannes, metade homem, metade peixe, responsável pela introdução
do homem no mundo da cultura.
240
O gado era de importância visceral para a economia israelita. Eram usados de todas as formas
e para os mais diversos propósitos, tais como para a colheita, abate, e para alimentar os
sacrifícios religiosos. O preço de uma cabeça de gado era equivalente a de um escravo. Por que
razão se puniria com tal severidade o ato de um animal destemperado? A morte por
apedrejamento, de acordo com a tradição bíblica, era reservada para crimes especiais, tidos como
uma frontal ofensa aos valores maiores da comunidade, tais como a adulação de deuses
estrangeiros, o sacrifício de crianças, magia, blasfêmia, entre outros. A aplicação de tal pena aos

- 74 -
Segundo FINKELSTEIN, professor de teoria política da Universidade
De Paul em Chicago, “o verdadeiro crime do boi é que, por matar um ser humano,
– seja de forma voluntária ou involuntária – cometeu uma insurreição contra a
hierarquia estabelecida pela Criação segundo a qual o Homem foi criado por
Deus para submeter e dominar todos “os peixes do mar, as aves do céu e todos
os animais que rastejam sobre a terra.” Não era somente que o dano causado à
pessoa fosse de maior gravidade quando comparado com o cometido contra a
propriedade, mas que as duas realidades pertenciam a concepções
completamente distintas. Diferentes escalas são usadas para medir os dois tipos
de delito, e a medida correlativa prescrita são de diferentes qualidades.”241

A noção de legitimação da dominação contida na gênese bíblica traz


em si fortemente delineada a idéia da hierarquia dos seres, que, em última
análise, está também relacionada à noção igualmente hierárquica de “povo
escolhido” adotada pelo judaísmo em seus primórdios. O povo judeu era um
organismo mais complexo e heterogêneo do que se imagina. Criou-se então o
vínculo que asseguraria a unidade dos filhos de Israel por meio da idéia comum
de que eram eleitos como o “povo de Deus”. De fato, quando YAHWEH anuncia a
ABRAÃO a grandeza futura do povo de Israel, promete-lhe uma incontável
posteridade, que se confunde com o próprio povo israelita: “Quanto a mim, será
contigo a minha aliança; serás pai de numerosas nações, e reis procederão de ti.”
(Gn 17, 4-6). Tal promessa foi repetida com freqüência aos chefes do “povo
eleito”, unidos pelo vínculo da ancestralidade comum com a divindade: “Deveras
te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência, como as estrelas
dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade
dos seus inimigos (Gn 22,17). Tal como descreve GIOVANNI FILORAMO, “Deus
é concebido como onipotente, criador do universo e com poder de intervir tanto na
natureza como na história. Sua ação no mundo é orientada por um desígnio
salvífico: a eleição de Israel, do povo eleito, para que sirva de exemplo para toda
a humanidade.”242

bois corrobora a assertiva de que a morte de um ser humano por um animal era tida como
violadora da “ordem cósmica”, até mesmo no caso do boi matar um escravo.
241
FINKELSTEIN, J.J. “The Ox That Gored”. American Philosophy Society, n. 71, 1981, p.17.
242
FILORAMO, op.cit., p. 38.

- 75 -
A aceitação irrefletida da posição de dominação humana sobre toda
a natureza e os animais deve ser rechaçada. Qualquer um que fundamente a
utilização de animais como coisas baseando-se, para tanto, em argumentos
puramente bíblicos, deveria ser chamado a se explicar por que razão outras
formas de discriminação que também são encontradas nos textos “sagrados” são
claramente rejeitadas pela sociedade contemporânea. Inúmeras passagens do
Antigo Testamento suportam a escravidão como instituição legítima243, e nem por
isso a aceitamos. Outras passagens fundamentam uma sociedade fortemente
patriarcal, o que, felizmente, também é amplamente contestado244. Deste modo, o
argumento bíblico puro e simples não oferece bases suficientes para justificar a
dominação humana sobre os animais, ou do contrário, baseados também em uma
interpretação literal, deveríamos ser forçados a defender ferrenhamente a
escravidão e o sexismo. As interpretações literais são sempre perigosas e
normalmente se prestam a justificar toda sorte de prática. Não é por acaso que o
Cristianismo já foi utilizado como instrumento para legitimar a pena de morte, as
guerras, a condenação ao homossexualismo e à prostituição, e até mesmo
sistemas econômicos.

1.4.4. Prescrições Dietéticas

“Todo animal que tem o casco fendido, partido em duas unhas, e que
rumina [...] todos os animais de quatro patas que caminham sobre a
planta dos pés [...] todo réptil que anda de rasto sobre a terra [...] não vos
contamineis com eles.”

Levítico 11, 3-43

As evidências antropológicas sugerem que as mais antigas


regulamentações sociais fossem de duas ordens: “tabus” alimentares e a

243
Cf. Ex., 21; Gn 9, 25, entre outras.
244
Cf. Gn. 3, 16. A própria escolha por JESUS de onze discípulos homens, em princípio serve
para justificar, até os dias de hoje, a exclusão das mulheres aos cargos eclesiásticos.

- 76 -
proibição do incesto. Os alimentos nutrem a identidade da maioria das
sociedades.

Em seu cotidiano, a vida do povo israelita é regulada por um


minucioso preceituário que contém inúmeras normas. Algumas delas são de
ordem positiva (“ensinar e estudar a Torá”) enquanto outros são de ordem
negativa (“se abster de”). Entre os de ordem negativa, um sobressai com especial
destaque no que se refere ao tratamento dispensado aos animais, que é o
consistente na proibição de se comerem os denominados “alimentos impuros”.

FILORAMO sintetiza bem esta questão. Segundo o referido autor,


“entre outras coisas, a observância das regras, impostas no Levítico 11245 e no
Deuteronômio 14, 3-21246, teve uma função fundamental de identificação:
obrigados a diferenciar uma comida de outra, os judeus devem sempre ter
presente a obrigação de diferenciar-se dos outros povos. Sendo considerados
animais puros, são permitidos os quadrúpedes que são ruminantes e têm as
patas divididas em dois e os cascos fendidos (por exemplo, bovinos, ovinos,
cervos, caprinos), enquanto são proibidos, por serem considerados impuros,
aqueles que têm apenas uma dessas condições (porcos, camelos) ou nenhuma
(cavalos, gatos). São puros todos os animais que podem voar salvo vinte e quatro
espécies nem sempre identificáveis de maneira precisa. Como é proibido
alimentar-se do sangue dos quadrúpedes e das aves – o sangue é considerado a

245
As “regras referentes ao puro e ao impuro” contidas no Levítico são bastante extensas (todo o
capítulo 11), embora simultaneamente, bastante inexatas sob o ponto de vista biológico (o coelho
é considerado um ruminante e os insetos alados são designados como quadrúpedes para serem
distinguidos dos pássaros) e mesmo incertas quanto à identificação de muitos dos animais lá
elencados. Os animais puros são aqueles que podem ser oferecidos a Deus (Gn 7,2) enquanto
que os impuros são aqueles que os pagãos consideram como sagrados ou que possuem
aparência repugnante ou má para o homem e, portanto, seriam “desagradáveis” a Deus. O contato
com os ditos “impuros” acarretaria na contaminação da sua impureza. “Contraireis impurezas
deles; todo aquele que tocar o seu cadáver ficará impuro até a tarde. Todo aquele que transportar
o seu cadáver deverá lavar as suas vestes e ficará impuro até a tarde. Quanto aos animais que
têm casco, porém não dividido, e que não ruminam, considerá-los-eis impuros; todo aquele que os
tocar ficará impuro. Todos os animais de quatro patas que caminham sobre a planta dos pés serão
para vós impuros; todo aquele que tocar o seu cadáver ficará impuro até a tarde, e todo aquele
que transportar o seu cadáver deverá lavar as suas vestes e ficará impuro até à tarde. Eles serão
impuros para vós.” (Lv 11, 24-28).
246
Outras referências bíblicas às restrições dietéticas podem ser encontradas em Êxodo, 22, 31;
23, 19 e Deuteronômio, 12, 21-25. Na primeira parte do Talmude – “estudo da lei” (contém vasta
coleção de material jurídico, ritualístico e discussões sobre a interpretação da Torá) – denominada
Mishná, também há normas específicas sobre a pureza e impureza de pessoas e “coisas”
(animais).

- 77 -
morada da vida -, esses animais devem ser abatidos exclusivamente segundo
regras determinadas que impõem, entre outras coisas, o corte completo do
esôfago e da traquéia por meio de uma faca afiadíssima, de maneira que seja
derramado, rapidamente, o máximo possível do sangue.”247

ROBERTO DE OLIVEIRA ROÇA, doutor em engenharia de


alimentos pela Universidade de Campinas – UNICAMP, médico veterinário e
professor da Universidade do Estado de São Paulo, em sua tese de livre-docência
sobre a matéria248, condena veementemente a perpetuação do abate kosher em
razão da ausência de insensibilização ou atordoamento do animal249. Em razão

247
FILORAMO, op.cit., p. 57.
248
ROÇA, Roberto de Oliveira. Abate Humanitário: o ritual Kasher e os métodos de
insensibilização de bovino – tese de livre-docência apresentada à Faculdade de Ciências Agro-
Econômicas da Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 1999. Disponível em:
<http://www.suino.com.br>. Acesso em: 06 fev. 2004.
249
O médico-veterinário esclarece no mesmo artigo que “o atordoamento consiste em colocar o
animal em um estado de inconsciência, que perdure até o fim da sangria, não causando
sofrimento desnecessário e promovendo uma sangria tão completa quanto possível (Gil & Durão,
1985) [...]. Após a insensibilização, o animal desliza sobre a grade tubular da área de vômito e é
suspenso ao trilho aéreo por um membro posterior, com o auxílio de um gancho e uma roldana.
Neste momento, pode ocorrer regurgitação, devendo o local ter água em abundância para
lavagem (Mucciolo, 1985). Na canaleta de sangria deve ser observada a eficiência da
insensibilização. Os sinais de uma insensibilização deficiente são: vocalizações, reflexos oculares
presentes, movimentos oculares, contração dos membros dianteiros. Grandin (2000) adota o
seguinte critério para análise do processo de insensibilização em bovinos:
- Excelente: menos que 1 por 1.000 de animais insensibilizados parcialmente.
- Aceitável: menos que 1 por 500 de animais insensibilizados parcialmente.
Os únicos processos de atordoamento de animais previstos na Convenção Européia sobre
Proteção dos Animais são: a) meios mecânicos com a utilização de instrumentos com percussão
ou perfuração do cérebro; b) eletronarcose; c) anestesia por gás. Foram abolidas as técnicas da
choupa, do prego ou estilete, do martelo de cavilha, máscara de cavilha e armas de fogo. São
exceções o abate segundo rituais religiosos e o abate de emergência (Gil & Durão, 1985). A
concussão cerebral é permitida na Bélgica, França e Luxemburgo, porém proibida desde 1920 na
Holanda (Lambooy et al., 1981; Leach, 1985). No Estado de São Paulo, foi aprovado na
Assembléia Legislativa, o Projeto de Lei número 297, de 1990 (São Paulo, 1990), e na Câmara
dos Deputados tramitou o Projeto de Lei número 3929 de 1989 (Brasil, 1989), que dispõem sobre
os métodos de abate de animais destinados ao consumo. Por eles, é permitido somente a
utilização de métodos mecânicos através de pistolas de penetração ou pistolas de concussão,
eletronarcose e métodos químicos com o emprego do dióxido de carbono, proibindo o uso da
marreta ou choupa. O Projeto de Lei n.º 297 foi sancionado pelo Governador do Estado e
publicado como Lei número 7705 (São Paulo, 1992) de 19 de fevereiro de 1992, regulamentado
através do Decreto nº. 39.972 de 17 de fevereiro de 1995 (São Paulo, 1995), e o Projeto de Lei
número 3929 foi vetado na Comissão de Agricultura da Câmara Federal, em 29 de outubro de
1991. Em 1999, a Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura (Brasil, 1999),
apresentou a Instrução Normativa nº. 17, de 16 de julho de 1999, sobre Regulamento técnico de
métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue, estabelecendo o
prazo de 90 dias para sugestões ou críticas sobre a proposta apresentada. Após as sugestões
realizadas pela comunidade científica, houve uma reunião onde foi definido o Regulamento, sendo
publicado em janeiro de 2000 (Brasil, 2000)” (ROÇA, op.cit.)

- 78 -
disso, tal método de abate é denominado pelos veterinários de “jugulação” ou
“degola cruenta”. O ritual Kosher, compreende, em realidade, várias etapas. Tal
como elucida ROÇA:

Para a realização da degola, o animal é encaminhado ao boxe que é


utilizado para atordoamento do abate não destinado à produção de carne
kosher, expõe uma das patas traseiras em um espaço de abertura, a
qual é presa por uma corrente com roldana, o boxe é aberto, permitindo
a saída do animal enquanto a corrente é suspensa por um guincho. O
animal é baixado até seu dorso tocar o solo, mantendo seu posterior
suspenso250. Um gancho, na forma de "V" é colocado sobre a mandíbula
e o pescoço é tencionado. O shochet apóia uma das mãos sobre o
pescoço do animal e, através de um movimento realizado com a chalaf,
corta entre o primeiro e segundo anel da traquéia, a pele, veias
jugulares, artérias carótidas, esôfago e traquéia, não podendo encostar o
fio da faca nas vértebras cervicais. A incisão deve ser executada sem
interrupção, sem movimentos bruscos, sem perfuração, sem
dilacerações e nem sobre a laringe. Após a incisão, o animal é suspenso
ao trilho, seguindo para o término da sangria e esfola (Picchi, 1996;
Picchi & Ajzental, 1993). O grande problema do ritual judaico de abate de
bovinos no Brasil é o sistema de contenção dos animais, que é
ineficiente e não considera que o gado abatido é principalmente zebuíno,
mais agitado que o gado taurino. A contenção e a degola cruenta
provocam sérios efeitos estressantes nos animais abatidos pelo método
kosher. Nos momentos após a degola e suspensão, os animais abatidos
por este ritual apresentam flexão dos membros anteriores e contração
dos músculos da face, sinais evidentes de dor.”251

Conforme destaca FERNANDO LAERTE LEVAI, ilustre membro do


Ministério Público do Estado de São Paulo, “os animais submetidos à jugulação
cruenta, da mesma forma que aqueles conduzidos mediante choques elétricos,

250
A suspensão de um animal de grande peso, por si só, já acarreta normalmente o rompimento
de sua musculatura traseira, o que, indubitavelmente, acarreta terrível sofrimento. A literatura
veterinária sobre o tema acresce ainda que o gado costuma também resistir fortemente à
inversão, movimentando freneticamente a cabeça para cima na tentativa de realinhamento,
favorecendo o aumento significativo do estresse no animal.
251
ROÇA, op.cit.

- 79 -
vivenciam intenso processo de sofrimento que se traduz, em última instância, em
crueldade.”252 Para a professora e bióloga FERNANDA MALAGUTTI TOMÉ,
“quanto à degola cruenta253, sem prévia insensibilização – muito freqüente no
abate ritual – acarreta intenso sofrimento físico e psíquico aos animais”.254

O contraponto de ordem religiosa de muitos dos judeus é o de que,


contrariando o que demonstram largamente os laudos técnicos,

[...] já que o animal perde a consciência rapidamente, geralmente antes


da percepção da dor oriunda do profundo corte realizado, pode-se dizer
que trata-se de um processo relativamente humanitário [...] O judaísmo
não reconhece a crueldade para com animais como um valor absoluto. A
vida humana é consistentemente valorada acima da vida animal [...]”255

Em verdade, pode-se perceber que a dieta kosher256 (“apropriada”),


com a proibição da ingestão de sangue com a conseqüente ordenação do abate
sem a prévia insensibilização do animal e mesmo da vedação do consumo de
determinados animais ditos “impuros”, está diretamente relacionada à “santidade”

252
LEVAI, Laerte Fernando; IBARRECHE, Vanessa.Frigorífico. Abate por meio de extrema
crueldade. Necessidade de que a empresa se submeta a aprimoramento técnico e profissional, de
modo a minimizar o sofrimento dos animais, Revista de Direito Ambiental, n. 28.
253
Mesmo o abate não-ritualístico, revela-se de grade sofrimento para os animais. Segundo
LAERTE FERNANDE LEVAI, “[...] o médico veterinário AIRTON MORAIS DA SILVA, conclui que
os animais ali submetidos ao abate vivenciam processo de sofrimento mental, não apenas pela
condução operada mediante estímulos elétricos, mas acima de tudo, pela antecipação da morte
do animal manejado em grupo, seja no boxe de contenção, para os bovinos, seja na sala de
choques para os suínos. É significativa – afirma ele – a possibilidade de que a vocalização de
outros animais e o odor de sangue impregnado no ambiente aterrorizem s bois desde o corredor
para o abate, conforme se pode observar da fotografia que mostra a fila indiana de bovinos em
que o primeiro animal tenta, a todo custo, retornar em sua forçada marcha. As pupilas dilatadas,
nesse contexto, representam aquilo que se denomina Síndrome de Emergência de Cânon,
característica da sensação de pânico no animal aterrorizado, gerando assim um processo de
midríase ocular que, em síntese, é fator indicativo de sofrimento [...]” (Ibid., p. 28).
254
TOMÉ apud LEVAI; IBARRECHE, op.cit., p. 29.
255
SOLOMON, Norman, Judaism, apud ARMSTRONG; BOTZLER, op.cit., p. 222-3 (grifos
nossos).
256
Casher (em hebraico) e Kosher (em Yidish) significam o mesmo: produto apropriado para ao
consumo. Kashrute é o conjunto das leis dietéticas outorgadas por Deus ao povo israelita,
enquanto que o método de abate é denominado de Shehitah.

- 80 -
e à necessidade de diferenciação e de auto-identificação257 do povo israelita.
Conforme consta do Levítico 11, 43-46:

Não vos torneis, vós mesmos, imundos, com todos estes répteis que
andam de rasto, não vos contamineis com eles e não sejais
contaminados por eles. Pois sou eu, Iahweh, o vosso Deus. Fostes
santificados e vos tornastes santos, pois que eu sou santo; não vos
torneis, portanto, impuros com todos esses répteis que rastejam sobre a
terra. Sou eu, Iahweh, que vos fiz subir da terra do Egito para ser o
vosso Deus: sereis santos, porque eu sou santo.

Os muçulmanos possuem uma dieta que observa um regime similar


à Kashrut israelita. De fato, as regras islâmicas tradicionais referentes ao abate de
animais para o consumo são bastante semelhantes às judaicas, refletindo a
mesma matriz ideológica. Elas declaram determinadas coisas permissíveis (halal)
e outras perigosas ou proibidas (haram). Neste sentido, em regra, é vedado o
consumo de carne de animais já mortos, de sangue, de carne suína e de carne
sobre a qual não foi pronunciado o nome de Deus.

O islamismo proclama uma fé religiosa que prescreve determinados


rituais, relativos à regras de etiqueta, de alimentação, de vestuário e até mesmo
de higiene pessoal. O Alcorão - do árabe al quran, “recitar”, “ler em voz alta” –
constitui o texto sagrado e principal fonte do Islã. Contém a revelação feita por
Deus a MAOMÉ (c. 570-632) por meio do anjo Gabriel. Muito embora existam
trechos sagrados que condenam a crueldade para com os animais, a teologia
islâmica também abraça a noção de hierarquia dos seres onde cada criatura tem
um status jurídico e moral preciso. Os anjos comuns (que não Gabriel e outros
como ele) estão um degrau abaixo do muçulmano pio, mas acima do pecador e

257
O conceito de que "a alimentação molda o caráter" ou "o homem é o que come” serve,
comumente, como justificativa para a prescrição de comida kosher, que teria como objetivo
plasmar nossa personalidade. Na realidade, menos do que preocupações de ordem terapêutica ou
de cunho moral, as prescrições judaicas estão muito mais associadas à necessidade sociológica
de diferenciação pela via da adoção de práticas ritualísticas peculiares, separando-os do ambiente
gentio. A antropóloga inglesa MARY DOUGLAS e o estruturalista francês JEAN SOLER defendem
que as proibições dietéticas são uma espécie de linguagem simbólica destinada a transmitir um
“sendo de realidade”, refletindo o conceito de santidade de Deus que Israel tem de compartilhar.

- 81 -
os animais ocupam um elo destacado na “ordem cósmica”. De fato, segundo
afirmam MARTIN FORWARD e MOHAMED ALAM:

Os seres humanos são criaturas distintas dos demais animais por sua
capacidade de realizar julgamentos morais. Somente eles, dentre todas
as espécies, podem escolher entre obedecer ou desobedecer a Deus, e
consequentemente, ganhar o paraíso ou o inferno. O Islamismo não é
uma religião sentimental. Por meio da permissão divina, os seres
humanos detêm o poder sobre os animais, assim como sobre toda a
criação, que poderão ser utilizados para vários propósitos.258 259

Segundo proclama o Corão:

Alá criou para vós animais de carga, outros para o abate. Comei, pois,
de outro com que Alá vos agraciou e não sigais os passos de Satanás,
porque é vosso inimigo declarado (6ª surata, versículo 142)

Estão-vos vedados: a carniça, o sangue, a carne de suíno e tudo o que


tenha sido sacrificado com a invocação de outro nome que não seja o de
Alá; os animais estrangulados, os vitimados a golpe, os mortos por
causa de uma queda, os chifrados, os abatidos por feras, salvo se
conseguirdes sacrificá-los ritualmente; o animal que tenha sido
sacrificado nos altares (5ª surata, versículo 14)

Será que realmente estaria sendo promovida a valorização da vida


ao se permitir o abate kosher ou halal sem a insensibilização prévia? Até que
ponto tal prática deve ser tolerada e permitida? Examinado sob o aspecto
científico, me parece que a constitucionalidade da prática do abate ritualístico é
bastante questionável tendo em vista o que dispõe o art. 225, § 1º, VII da
Constituição Federal (que preconiza a proibição da crueldade e maus-tratos para
258
FORWARD, Martin; ALAM, Mohamed, Islam, apud ARMSTRONG; BOTZLER, op.cit., p. 235.
259
“ […] Nowadays, the ritual killing of animals is condemned by many non-Muslim individuals and
groups. The bottom line for Muslims is that it is commanded by God, and this order counts for more
than the opinion of others. Muslims are not mawkish about such matters. […] Most Muslims today
live in relatively poor countries, where survival counts for more than middle-class values, which can
seem excessively indulgent.” (Ibid., p. 237)

- 82 -
com animais). Além disso, encontraria barreira insuperável no art. 32 da Lei n.
9.605/98 (artigo da lei dos crimes ambientais que também veda as práticas de
maus-tratos) e, também, no Regulamento de Inspeção Industrial de Produtos de
Origem Animal, aprovado pelo Dec. 30.691/52, alterado pelo Dec. 1.255/62 e,
posteriormente, pelo Dec. 2.244/77, e pela adesão ao Mercosul, que estabelece
em seu art. 135 como requisito para o abate, sem quaisquer exceções, a prévia
insensibilização do animal.

Os alimentos Kosher260, no entanto, representam um mercado anual


de cerca de nove bilhões de dólares. Os números parecem adquirir voz própria e
o poder do mercado parece, mais uma vez, prevalecer sobre o valor da vida.261

260
Adiante-se que as críticas apresentadas aos abates rituais estendem-se, em sua grande parte,
ao abate também não ritual. Não se pretende, de modo algum, desmerecer ou fazer qualquer
apologia contrária a esta ou aquela crença ou religião. Acredito, contudo, que o direito à liberdade
de culto não é absoluto, possuindo um âmbito de incidência restrito em relação à correlata
liberdade de crença que, esta sim, em princípio, é ilimitada. Por essa razão, pelo princípio da
dicotomia crença-ação (“belief-action”), adotado pela Constituição Federal, um indivíduo pode,
efetivamente, acreditar em tudo aquilo que deseja, sendo-lhe facultado adotar, no plano
metafísico, todas as formas de crença a que a fé o conduzir. Todavia, quando esta liberdade
transmuda-se para o plano fático, físico - agora já estamos tratando da liberdade de culto
propriamente dita - o Estado pode sobre ela ter ingerência, limitando a sua expressão com vistas a
resguardar outras liberdades e valores que com ela entram em conflito. As liberdades individuais,
entendidas sob o prisma principiológico, podem ser ponderadas em casos concretos. Assim é que
um indivíduo pode pautar-se no plano espiritual por seguir quaisquer orientações por mais
absurdas que possam parecer à maioria de nós, mas não poderia, em nome delas, por exemplo,
cometer crimes (não poderia sustentar validamente, em nome da liberdade de crença, que ela
exija a prática da matança ritual de crianças ou de “mulheres castas”). A liberdade de culto não
pode servir de manto escusatório para a manutenção de práticas desconformes a outros princípios
e valores que o ordenamento jurídico tem como igualmente relevantes como por exemplo, o direito
à vida e à intangibilidade e integridade física. Este assunto é abordado com maior clareza e
profundidade em artigo de minha autoria intitulado “Liberdade de Culto e o Direito dos Animais
Não-Humanos” (Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, n. 51, p. 295-318) onde analiso um julgado da Suprema Corte Norte-Americana –
Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah, 508 U.S. 520 (1993) – que trata justamente do problema
dos sacrifícios ritualísticos havido por religiões de matriz africana.
261
Também se adianta que o Brasil, segundo dados fornecidos pela Confederação da Agricultura
e Pecuária do Brasil – CNA, é o maior exportador mundial de carne bovina pelo segundo ano
consecutivo, consolidando a posição alcançada em 2003. De janeiro a outubro de 2004, as
exportações de carne bovina alcançaram 1,504 milhão de toneladas em equivalente carcaça,
apresentando crescimento de 42% em relação ao resultado do mesmo período de 2003, que foi de
1,06 milhão de toneladas. Em receitas, as vendas externas somaram US$ 2,02 bilhões, com
aumento de 69,3% sobre os 10 primeiros meses de 2003, quando atingiram US$ 1,194 bilhão.
Estes resultados já superam as expectativas iniciais para todo o ano de 2004, quando se previa
exportações de 1,5 milhão de toneladas e receitas de US$ 2 bilhões.

- 83 -
1.4.5. Questões de Alma: O Advento da Pregação Cristã

“Vai pelos caminhos e trilhas e obriga todos a entrarem.”

Lucas 14, 23

“De todas as criaturas – não somente as superiores, mas também as


inferiores, em conformidade com o que cada uma recebeu em si mesma
de Deus – se eleva uma voz em testemunho daquilo que Deus é; cada
uma à sua maneira exalta Deus, dado que Deus nelas habita.”262

SÃO JOÃO DA CRUZ

Não houve mudanças significativas da relação do homem para com


os animais não-humanos com o advento da pregação cristã no Novo
Testamento263. O pacto havido entre Deus e o povo hebreu no Antigo Testamento
é agora substituído por um novo, entre Deus e o Novo Israel - a comunidade
cristã - pacto este que abraçaria “todos os homens de boa vontade”. O
fundamento do novo pacto não estava mais alicerçado sob a observância da Lei,
mas no evangelho do fundador, difundido por seus discípulos. Neste sentido,
GIOVANNI FILORAMO destaca que:

Há a superação das leis da pureza. O judaísmo no tempo de Jesus,


também em suas correntes mais sectárias, respeitava profundamente as
normas de pureza e as concepções correlatas de sagrado/profano e de

262
SÃO JOÃO apud ARAÚJO, op.cit., p. 58.
263
O cristianismo, em sentido amplo, pode ser entendido como o conjunto de comunidades, seitas
e grupos que comungam dos preceitos e ensinamentos das palavras de JESUS DE NAZARÉ (o
cânone do Novo Testamento abriga os quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, os
Atos dos Apóstolos, treze cartas de Paulo, a carta aos hebreus, a carta de Tiago, as duas de
Pedro, as três de João, a de Judas e por fim o Apocalipse em um total de 27 escritos). Costuma-
se dizer que é uma religião historicamente fundada, pois sua origem está conectada à ação de um
fundador e a um momento histórico determinado, em que a comunidade judaica estava sob o jugo
do Império Romano. Segundo FILORAMO, “a afirmação da presença no fundador de uma
natureza divina e também de uma natureza humana (razão pela qual o homem Jesus tem
condições de ressurgir, enquanto o Cristo divino se encarna na natureza humana), mesmo dando
origem a complexas controvérsias teológicas e cristológicas, marca uma forte guinada em relação
às esperas messiânicas do judaísmo no tempo de Jesus [...]” (FILORAMO, op.cit., p. 63).

- 84 -
puro/impuro, que estavam na base do respeito às Leis. Por outro lado,
quando Jesus ensina que ‘nada há, fora do homem, que, entrando nele,
o possa contaminar’ (Mc 7, 15; e Mt 15) e que são as coisas que saem
do homem que o contaminam, declarando com isso a pureza de todos os
alimentos, ele tocava na raiz de um dos princípios do sistema cultual
legislativo judaico.264

Muito embora tenha havido o rompimento do paradigma da


“impureza” de determinadas espécies animais, o tratamento a eles dispensado
não foi substancialmente alterado. Pelo contrário, o baixo status moral dos
animais continuava reforçado com a concepção, agora cristã, da singularidade da
espécie humana. A crença na imortalidade da alma tornou a vida do homem
sagrada (“sacralidade da vida humana”), diferentemente das dos demais animais.

O Novo Testamento não traz, portanto, qualquer melhoria ou


proteção ideológica contra a crueldade para com animais. O próprio JESUS é
visto atuando com aparente indiferença com relação a eles, ao matar dois mil
porcos no episódio do “endemoniado geraseno”, constante do Evangelho
segundo São Marcos (Mc 5, 1-20).265 266

Uma das razões para tal postura é que o cristianismo absorveu as


idéias gregas e as concepções judaicas que lhe eram anteriores com referência
ao tratamento dos animais, mantendo a sua posição marcadamente inferior na
hierarquia dos seres vivos. A suposta superioridade do homem foi, consoante
consta do Evangelho segundo São Mateus, afirmada enfaticamente por JESUS
na passagem alusiva à cura de um homem com a mão atrofiada quando afirma:

264
Ibid., p. 64.
265
O episódio relata o caso de JESUS que, ao encontrar um homem “possuído por espíritos
impuros”, expulsou-os e os enviou para uma manada de porcos que ali pastava tranqüilamente: “E
os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos e a manada – cerca de dois mil – se arrojou no
mar, precipício abaixo, e eles se afogavam no mar” (Bíblia de Jerusalém, op.cit., p. 1904).
Ressalte-se que, de acordo com outras passagens bíblicas, JESUS teria o dom do exorcismo sem
que, todavia, fosse necessário “transferir” o mal a outras criaturas, ou mesmo de matá-las.
266
Discute-se, a meu sentir, frivolamente, acerca do fato de ser JESUS vegetariano ou não. Não
há, de fato, nenhuma passagem nos evangelhos fazendo alusão expressa à ingestão de carne.
Há, todavia, passagens em que se depreende que ele teria consumido peixe. Aspectos de tal
ordem pessoal da vida de um JESUS historicizado são quase impossíveis de serem afirmados
com precisão com as fontes atualmente disponíveis.

- 85 -
“Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha!” (Mt 12, 12)267. Os animais,
por serem irracionais e, pois, incapazes de exercer a fé, seriam naturalmente
condenados ao aprisionamento e à morte injustificada, tal como assevera Pedro:
“[...] estes, porém, como animais irracionais, destinados por natureza à prisão e à
morte, injuriando aquilo que ignoram, perecerão da mesma morte, sofrendo
injustiça como salário da sua injustiça268”. As Epístolas de São Tiago, em Tg 3, 7,
trazem à baila a dura constatação do domínio humano: “Com efeito, toda espécie
de fera, de aves, de répteis e de animais marinhos é domada e tem sido domada
pela espécie humana.”

As repercussões dessas idéias na mentalidade ocidental foram,


infelizmente, enormes. Conforme se verá, SANTO AGOSTINHO, referindo-se ao
episódio do “endemoniado geraseno”, e a um outro em que JESUS amaldiçoa
uma figueira, afirma que:

O próprio Cristo mostra que é o cúmulo da superstição refrear-se de


matar animais e destruir plantas, pois julgando que não há direitos
comuns entre nós, os animais e as árvores, ele lança os demônios a
uma vara de porcos e, com uma maldição, seca uma árvore em que não
encontrou frutos [...]. Certamente nem os porcos nem as árvores
pecaram.269

De fato, há a clara noção de que as leis eram feitas pelo homem e


para o homem apenas. Os animais não eram alvo de consideração moral. Nas
raríssimas passagens alusivas à proibição de maus tratos, o que resta é que
Deus ao proibi-los não estaria levando em consideração os interesses dos

267
Em Lucas 12, 7 também se colhe “ensinamento” sobre a pretensa superioridade humana sobre
os animais: “Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo;
pois valeis mais do que muitos pardais [...].” Há no entanto, quem defenda uma proximidade de
JESUS com os animais nas passagens alusivas ao seu nascimento em um estábulo (Mc 1, 13);
sua entrada em Jerusalém montado em um asno (Mt 21, 4-5); suas prescrições de fazer o bem
durante o sabbath, o que incluía o resgate de animais caídos (Mt 12:10-12); e a lembrança de que
até mesmo os pardais não seriam esquecidos perante Deus (Lc 12, 6).
268
Cf. 2 Pe 2, 9-12.
269
AGOSTINHO, apud SINGER, Peter, Libertação Animal, op.cit., p. 217.

- 86 -
animais em si, mas sim o dos seres humanos. A esse respeito, é límpida a lição
antropocêntrica que se colhe na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios:

Digo isto, baseado apenas em considerações humanas? Ou a Lei não


diz também a mesma coisa? Com efeito, na Lei de Moisés está escrito:
Não amordaçarás o boi que tritura o grão. Acaso Deus se preocupa com
os bois? Não é, sem dúvida, por causa de nós que ele assim fala? Sim;
por causa de nós é que isso foi escrito, pois aquele que trabalha deve
trabalhar com esperança e aquele que pisa o grão deve ter a esperança
de receber a sua parte (1 Cor 9, 8-10).

É atribuído, no entanto, justamente a PAULO, a introdução da


concepção estóica de “direito natural” no âmago do cristianismo270. Tal concepção
não foi a única idéia estóica absorvida pela cristandade ocidental. Uma parte em
especial da doutrina do estoicismo foi fortemente aceita pela teologia cristã, qual
seja a de que haveria uma providência divina ordenando tudo em favor dos seres
humanos. Há, realmente, uma harmonia ideológica entre a tradição contida no
Gênesis de que o homem teria domínio sobre toda a natureza, no sentido de que
teria direito a dela se valer, e a concepção estóica de que a natureza existiria tão
somente para satisfazer os interesses humanos. O casamento é, se o tópico
assim permite afirmar, “diabolicamente” perfeito para a justificação e legitimação
do domínio humano. Os animais estavam, como de resto sempre estiveram, fora
do âmbito da compaixão e de qualquer consideração moral.

No século II, o Papa CLEMENTE, utilizou a teoria do


antropocentrismo teleológico, comumente denominada de teoria da “Great Chain
of Being” para explicar as origens do próprio mal. Em sua opinião, quanto mais
inferiorizado um ser era dentro da “Cadeia do Ser”, menos real, pior, menos

270
O episódio comumente citado para corroborar a assertiva é o constante de Rm 2, 12-16:
“Portanto, todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e todos aqueles que pecaram
com Lei, pela Lei serão julgados. Porque não são os que ouvem a Lei que são justos perante
Deus, mas os que cumprem a Lei é que serão justificados. Quando então os gentios, não tendo
Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei;
eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e
seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem... no dia em que Deus – segundo
o meu evangelho – julgará, por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens.”

- 87 -
espiritual, mais despido de ser, e, conseqüentemente, mais malévolo ele era.271
Paralelamente, neste período, percebe-se o início da polarização entre a
ortodoxia e a heresia272. A utilização destas categorias implica em um juízo de
valor, refletindo o modo de pensar de um determinado grupo ou comunidade que,
sendo mais poderoso, considerar-se-á ortodoxo e seus adversários hereges.

SANTO IRINEU273, nascido em Esmirna, por volta de 126 d.C.,


afirmou que a alma possuía duas principais faculdades, o intelecto e o livre-
arbítrio. Afirmou também que somente um ser inteligente poderia ser livre. Neste
sentido o homem, feito à imagem e semelhança de Deus é o único habilitado a
entender as ordens divinas e se aproximar da divindade.

A cultura européia ocidental foi largamente moldada pelo


cristianismo, que, por sua vez, bebeu na fonte da antiguidade clássica,
incorporando parte do legado dos pensadores gregos. É precisamente do
encontro entre o judaísmo, o cristianismo e a cultura grega que se originam as
raízes do pensamento ocidental das quais somos herdeiros.

A relação entre o cristianismo e a filosofia grega pode soar, em um


primeiro instante, um tanto quanto inusitada já que a natureza do pensamento
filosófico, por si, trazia o rompimento com o pensamento mítico como seu objetivo
primeiro. Todavia o helenismo serviu de mediador para a aproximação da cultura
274
judaica com a filosofia grega , na medida em que o ambiente político era de

271
CLEMENTE apud RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan – The Early Christian Tradition. Cornell
University Press, 1981. p. 110.
272
Ortodoxia deriva do grego orthos, “correto ou justo”, e doxa, “opinião ou doutrina”, enquanto
que heresia também vem do grego háiresis, significando “escolha”. A partir da metade do século II,
com a crise gnóstica, surge uma enorme literatura anti-herege.
273
O pensamento de IRINEU é exposto principalmente no seu tratado Adversus Haereses.
274
Consta que em Alexandria, no séc. I a.C., conviviam a cultura grega, a cultura romana e a
judaica em um ambiente de acentuado sincretismo. Exemplo da convivência entre as diversas
culturas é a Septuaginta, tradução do hebraico para o grego do Pentateuco (cinco livros iniciais do
Antigo Testamento). Para corroborar a tese da união do cristianismo com a cultura grega nada
melhor que verificar que os primeiros filósofos cristãos, tais como CLEMENTE DE ALEXANDRIA
(c.150-215) e ORÍGENES (c.184-254), pertencem à denominada Escola Neoplatônica Cristã de
Alexandria. ORÍGENES, no capítulo XIII de sua obra Philocalia, argumenta em favor da utilização
da filosofia grega pelos cristãos. Segundo o filósofo, “eu teria desejado que tomasses da filosofia
dos gregos tudo aquilo que pode servir como propedêutica para introduzir ao cristianismo [...] e
tudo o que será útil para a interpretação das Escrituras. E, assim, tudo o que os filósofos dizem da
geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares, nós o
aplicaremos também à própria filosofia em relação ao cristianismo.” (ORÍGENES apud
MARCONDES, Danilo, op.cit., p. 108). Apesar dos dogmas religiosos arrefecerem o espírito crítico

- 88 -
acentuado sincretismo. Prova disso se dá com FÍLON DE ALEXANDRIA (25 a.C.-
50 d.C.) que elaborou comentários ao Pentateuco, fazendo uma ponte entre a
cosmologia platônica no Timeu e a criação do mundo no Gênesis, abrindo espaço
para o sincretismo entre o cristianismo e a filosofia grega. Para DANILO
MARCONDES, “Fílon retoma o conceito grego de logos, interpretando-o como um
princípio divino a partir do qual Deus opera no mundo. Essa visão influenciará
fortemente o desenvolvimento da filosofia cristã e se encontra na abertura do
quarto evangelho (de São João), escrito ao final do séc. I, em Éfeso, em que se
lê: “No princípio era o Verbo (logos)”275. Aliás, FÍLON sustentará que, sendo os
animais desprovidos de razão e de capacidade de auto-reflexão, ocupariam uma
posição inferior face aos interesses dos seres racionais.

O projeto de universalização da religião cristã, iniciado por SÃO


PAULO276, contemporâneo de JESUS, só foi viável pois o seu pano de fundo, o
helenismo, possuía os instrumentos que possibilitaram essa abertura, quais
sejam: uma língua comum e uma cultura hegemônica. Tal fato não escapa à
brilhante argumentação do autor supracitado que afirma que “pode-se dizer então
que a concepção de uma religião universal corresponde no plano espiritual e
religioso à concepção de império no plano político-militar. A difusão do
cristianismo é um processo paulatino que se desenvolve ao longo de alguns
séculos até sua consolidação com o imperador Constantino (batizado em 337
d.C.) e sua institucionalização como religião oficial do estado277 no Império
Romano (391 d.C.).”278

Como tratado em tópico anterior, a perfectibilidade do homem,


criado à imagem e semelhança de Deus está intimamente ligada às idéias

filosófico, os mais importantes concílios, como o de Nicéia (325), o de Constantinopla (381) e o de


Calcedônia (451), defenderam a aplicação e o recurso da filosofia grega para a construção da
ortodoxia, entendida em seu sentido literal como a “doutrina correta”.
275
MARCONDES, op.cit., p. 106.
276
Nos Atos dos Apóstolos 15, 1-34, há o episódio em que Paulo insiste na tese de que o
cristianismo deveria ser levado a todos, pois todos foram criados à imagem e semelhança de
Deus. A universalização é um caráter distintivo da religião cristã com relação a outras religiões,
como o judaísmo, que estavam intimamente ligadas a um povo ou uma cultura específica.
277
A transformação do cristianismo em religião de Estado é fruto do engajamento entre a Igreja
Católica e o poder político e teve seu início com os editos teodosianos, promulgados entre 380 e
392.
278
MARCONDES, op.cit., p. 107.

- 89 -
platônicas sobre a perfeição. Segundo PLATÃO, os homens teriam uma alma
imortal, ao contrário dos animais. Para o referido autor, a alma imortal seria a
sede da razão e a nossa conexão com o divino. Nele, “não há sombra de
incorreção”279 e um homem se aperfeiçoa moralmente por se aproximar da retidão
divina. A perfeição moral reside, pois, no ser “à semelhança de Deus”.

1.4.6. A Doutrina Agostiniana

“Como todas as pessoas do mundo são humanas, e a definição de


homem, coletiva ou isoladamente, é uma só: é um ser racional [...] Toda
a humanidade é uma, e todos os homens são iguais no tocante a sua
criação.”

BARTOLOMEU DE LAS CASAS (1551)280

Estavam, pois, lançadas as bases do desenvolvimento da filosofia


cristã no período medieval. Coube, no entanto, a SANTO AGOSTINHO (354-430
d.C.), bispo de Hipona no norte da África, renomado teólogo do século IV,
consolidar, em definitivo, a agregação das idéias platônicas, aristotélicas e
estóicas ao cristianismo. No clássico “Cidade de Deus”, em inúmeras passagens
o autor deixa clara a sua posição eminentemente antropocêntrica.

Ao discursar acerca da proibição da prática do suicídio pelos


cristãos, explica AGOSTINHO a razão pela qual o quinto mandamento, “não
matarás”, não deve ser ampliado para abarcar os animais. O teólogo entende que
a razão constituiria o elemento-chave que legitimaria a concessão aos homens do
direito de não ser morto por outrem, enquanto que, correlatamente, a suposta
falta dela impediria os animais de também possuí-lo281. Aduz ainda que a

279
PLATÃO, Teeteto, 176-b-c, apud PASSMORE, op.cit., p. 45.
280
DE LAS CASAS apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 235.
281
“Não é sem motivo que em parte alguma, nos livros sagrados e canônicos, se poderia
encontrar que, mesmo em relação à imortalidade, para prevenir ou conjurar algum mal, tenha
Deus ordenado ou permitido que alguém se matasse. Proibição, isso sim, devemos ler na lei que
nos diz: Não matarás, sem acrescentar: o próximo, como acontece com a proibição de falso
testemunho: Não levantarás falso testemunho contra o próximo. Entretanto, o falso testemunho

- 90 -
ausência da razão representaria verdadeiro óbice a qualquer tipo de “conexão”
entre homens e animais/coisas (“nem aos animais faltos de inteligência, aos quais
a carência da razão interdiz qualquer sociedade conosco.”), e as suas vidas estão
em nossas mãos por puro “desígnio da Providência”. Não há como deixar de
traçar um imediato paralelo com a noção estóica de que tudo na natureza fora
criado para servir à humanidade.

Tal posicionamento leva a que se estabeleça uma nítida concepção


de superioridade baseada na racionalidade. Tomando como norte este “divisor de
águas”, outra não poderia ser a posição de AGOSTINHO senão a de abraçar
expressamente o ideário aristotélico de hierarquia dos seres vivos. Para tanto, o
referido autor lança mão das categorias de almas. Já de início estabelece a
distinção entre as denominadas “almas racionais” (que se subdividiriam em três
gêneros: celeste nos deuses, aéreas nos demônios e terrestres nos homens282)
das demais.

A compulsão classificatória de categorias subjetivas em posições


hierarquicamente decrescentes, percebida em ARISTÓTELES, também pode ser
facilmente visualizada na construção Agostiniana sob o ilusório manto da
chamada “apreciação moral dos seres vivos”283. Na categoria das ditas “almas

contra si mesmo deveremos acreditá-lo isento de crime, se o amor ao próximo está contido na
regra do amor a si mesmo? Com efeito, está escrito: Amarás o próximo como a ti mesmo. Se, por
conseguinte, ninguém é menos culpado por falso testemunho contra si mesmo do que contra o
irmão, embora a lei , por falar apenas no próximo, pareça não estender a proibição ao falso
testemunho levantado a si mesmo, razão muito mais forte existe para pensar que ao homem não é
permitido matar, pois a injunção absoluta: Não matarás não excetua pessoa alguma, mesmo quem
a recebe. Assim, vários procuram compreender no mandamento os próprios animais. E porque
não as plantas e tudo quanto, preso á terra, através de raízes recebe alimento? Apesar de
privados de sensibilidade, de tais seres não se diz que vivem? Então, é possível dizer-se que
morrem e, se morrem por violência, são assassinados? Por isso diz o Apóstolo, falando de
sementes: Nada do que semeais poderia viver, se antes não morresse. E lemos no salmo: Matou-
lhes os vinhedos por meio do granizo. Quer dizer que a palavra da lei: Não matarás transforma em
crime para nós o arrancarmos qualquer arbusto? E seremos insensatos ao extremo de perfilhar o
erro de Mani 281? Se, por conseguinte, rejeitando semelhantes devaneios, não aplicamos o
preceito às plantas desprovidas de sensibilidade, nem aos animais faltos de inteligência, aos quais
a carência da razão interdiz qualquer sociedade conosco (donde se segue que justo desígnio da
Providência pôs a vida e a morte deles à disposição de nossas necessidades), já não teremos de
entender senão do homem a palavra da lei: Não matarás pessoa alguma nem mesmo a ti. Com
efeito, quem se mata não é matador de homem?” (AGOSTINHO, A Cidade de Deus, op.cit., p. 50-
1).
282
“Os animais, nos quais existe alma racional, dizem, dividem-se em três classes: deuses,
homens e demônios.” (Ibid., p. 317)
283
Ibid., p. 320.

- 91 -
racionais”, insiste-se que “os deuses ocupam a região mais elevada; os homens,
a mais humilde; os demônios a do meio. Com efeito, a mansão dos deuses é o
céu; a dos homens, a terra; a dos demônios, o ar. Como é diferente a dignidade
dos lugares, assim o é a das naturezas. Por isso, os deuses são melhores que os
homens e os demônios; os homens são inferiores aos deuses e aos demônios.
Segundo a ordem de elementos, assim a diferença de méritos.”284

A “alma irracional”, compartilhada por todos os seres vivos, fonte de


poderes tais como percepção, memória, movimento, instinto e apetite, era
colocada, propositadamente, em degrau inferior às anteriores285.

A natureza é feita para a contemplação do homem, pois seríamos os


únicos capazes de nos elevarmos gradualmente às realidades imperecíveis e
permanentes: poder este ausente nas demais criaturas: “os animais irracionais
vivem e sentem. Do mesmo modo é aceito ser superior a eles a alma humana.
Não pelo fato de ela perceber o sensível, mas pelo poder que ela tem de julgar.”
286
A hierarquia das almas traduz, portanto, uma hierarquia da própria vida na
medida em que o homem é colocado com entidade superior às demais. A
anteposição do ser humano como criatura superior e como o ápice da cadeia
evolutiva é claramente visualizada em outras passagens da obra do autor:

Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor,
os viventes são superiores aos não viventes, como os que têm força
generativa ou apetitiva aos que carecem de tal faculdade. E, entre os
viventes, os sencientes são superiores aos não sencientes, como às

284
Ibid., p. 317.
285
Para AGOSTINHO, o fato de os animais possuírem “vantagens corporais” não os torna
melhores que os humanos, pelo contrário: “[...] Fora assim e teria de pospor-se a muitos outros
animais que se nos avantajam na viveza dos sentidos, em movimento mais leve e fácil, em força
muscular e na robusta firmeza do corpo. Que homem igualará, na vista, às águias e aos abutres?
Quem, no olfato, aos cães? Quem, na velocidade, às lebres, aos cervos e a todas as aves? Quem,
na força, aos leões e aos elefantes? Quem, na longevidade, às serpentes, que, ao mudarem o
couro, dizem que depõem a velhice e tornam à juventude? Mas, assim como, pelo entendimento e
pela razão, somos superiores a todos os animais [...] Por isso a providência divina deu aos
animais, a que somos, sem dúvida, superiores, certas vantagens corporais ensinando-nos, assim,
a cultivar, de preferência ao corpo, a parte de nós mesmos que nos torna superiores aos animais e
a desprezar, pela perfeição moral que nos torna superiores aos demônios, a perfeição corporal
que os demônios possuem” (Ibid., p. 319).
286
AGOSTINHO apud ATTIÉ, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade,
Diversidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 103.

- 92 -
árvores os animais. Entre os sencientes, os que têm inteligência são
superiores aos que não a têm, como aos animais os homens. E, ainda,
entre os que têm inteligência, os imortais são superiores aos mortais,
como aos homens os anjos. Tal gradação parte da ordem de natureza
287
.

A radicalização do argumento agostiniano chega às raias do absurdo


quando o autor afirma categoricamente que determinadas coisas sem vida, tais
como o dinheiro e a comida, possuiriam valor inerente maior do que certos seres
sencientes, pelo que seriam pospostos a estas “comodidades” na ordem da
“natureza das coisas”. Aliás, o rebaixamento de categorias nada teria de absurdo
pois segundo o teólogo, todos aceitam que um cavalo custe mais caro que um
escravo e que uma gema preciosa valha mais que uma escrava288. A respeito
veja-se:

Existe outro modo de hierarquizar; parte do uso ou estimação de cada


ser. Segundo tal modo, a alguns sencientes antepomos alguns seres
carecedores de sentido, de tal maneira que, se pudéssemos os
apartaríamos da natureza das coisas, quer ignorando o lugar que têm
entre elas, quer, embora o saibamos, pospondo-os a nossas
comodidades. Quem a ter ratos em casa não prefere ter pão e ter pulgas
não prefere ter dinheiro? Que tem isso, porém, de particular, se na
estimação dos homens, apesar de serem de natureza tão nobre, com
freqüência se compra mais caro um cavalo que um escravo, mais caro
uma pedra preciosa que uma escrava? 289 (grifos nossos)

287
AGOSTINHO. , op. cit., 35 e 36.
288
A obsessão classificatória coloca o teólogo em apuros quando confronta as teorias
classificatórias clássicas com aquelas por ele propostas, criando conflitos aparentemente
insolúveis. Veja-se: “A própria ordem e harmonia que Platão estabelece nos quatro elementos,
inserindo entre os dois extremos (a atividade do fogo e a inércia da terra) os dois meios (o ar e a
água), para que, quanto o ar fica acima da água e o fogo acima do ar, tanto fique a água acima da
terra, ensina-nos, na apreciação moral dos seres vivos, a não seguir a hierarquia dos elementos.
O próprio Apuleio, como os demais platônicos, antepõe o homem, animal terrestre, aos animais
aquáticos, apesar de Platão preferir a água à terra. Evidentemente, quando se trata de julgar o
valor dos seres animados, convém a gente não apoiar-se na escala graduada dos corpos, pois
alma superior pode habitar corpo inferior e corpo superior pode ser habitado por alma inferior.”
(Ibid., op.cit., p. 320).
289
Ibid., p. 36.

- 93 -
Seguindo cegamente os estóicos, AGOSTINHO priva os animais
não-humanos do campo das emoções, e, conseqüentemente, de qualquer
capacidade de raciocínio. A adaptação dos dogmas aristotélicos e estóicos para o
pensamento cristão mais uma vez excluiu os animais da possibilidade de
integrarem uma comunidade de direitos e os polariza em uma relação de nítida
inferioridade290.

Todavia, não estavam somente fora do círculo de justiça aplicável


aos seres humanos, como também, de acordo com essa corrente ideológica,
poderiam ser objeto das chamadas “guerras justas” (“just wars”). Para
ARISTÓTELES, “a arte da guerra é uma arte natural da apropriação, pelo que
esta apropriação inclui a caça, uma arte a ser praticada contra as bestas, e contra
os homens que, ainda que naturalmente forjados para a submissão, sejam
revoltosos, pelo que uma guerra nestes termos é naturalmente justa.”291

Mais tarde SANTO AGOSTINHO ilustrou esta exclusão fazendo


alusão à passagem bíblica do Evangelho de São Marcos na qual JESUS dirige os
espíritos malignos de um homem para uma manada de porcos, fazendo-os morrer
por afogamento. JESUS, a esse respeito, na visão agostiniana incorporaria
integralmente o pensamento estóico. Para AGOSTINHO, “o próprio Cristo
demonstrou que a recusa de se matar animais e de destruir as plantas é o
extremo da superstição, pois partindo do pressuposto de que não há direitos entre

290
Em outros momentos AGOSTINHO também explicita a noção de dominação e de
superioridade do homem frente às demais criaturas: “Assim, a criação do Sol, da Lua e das
estrelas e a criação da água, dos animais, aves, peixes e cetáceos; assim, a dos animais que se
arrastam e rastejam na terra e a do homem, que supera todos os seres da terra.” (Ibid., p. 51;
grifos nossos); “Quanto ao mais, é ridículo pensar serem condenáveis os defeitos dos animais
irracionais, árvores e outros seres mutáveis e mortais privados de entendimento, sentido, ou vida,
defeitos que fazem com que sua natureza dissolúvel esteja sujeita à corrupção. [...] Quando,
perecendo alguns seres, nascem outros, para ocupar os lugares que correspondiam àqueles, e os
inferiores sucumbem ante os superiores e os vencidos se transformam em qualidades dos
vencedores, então se dá a ordem dos seres transitórios.” (Ibid. p. 65; grifos nossos); “Se digo que
existiram sempre as criaturas para dominá-las quem é sempre senhor e nunca deixou de
sê-lo, mas umas agora e depois outras, a intervalos, com o propósito de não admitir criatura
alguma coeterna com o Criador [...]” (Ibid., p. 78; grifos nossos); “Quanto ao homem, chamado,
por criação, natural, a ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus criou apenas um.”
(Ibid., p. 88; grifos nossos); “Deus fez o homem à sua imagem e deu-lhe alma, dotada de razão e
inteligência, que o tornava superior a todos os restantes de animais terrestres, nadadores e
voadores, destituídos de mente.” (Ibid., p. 89, grifos nossos);
291
ARISTÓTELES, Politics, op.cit., p. 1994.

- 94 -
nós e as bestas e árvores, Ele mandou os demônios para um manada de porcos
e amaldiçoou uma árvore que não dava frutos.”292

BANDEIRA DE ARAÚJO sintetiza com esmero a posição


agostiniana. Afirma o autor que:

A visão filosófica decorrente deste intento de racionalização da


dogmática tem a alma como sujeito voltado a si mesmo. O homem, como
síntese da graça e natureza, contém em si próprio o paradoxo dos
caminhos de ascese a Deus/idéias, e de degradação e morte. Ele
continua, como na tradição grega, parte do todo, mas, então, trata-se de
uma parte singular, central. Aos sensíveis é suposta uma natureza –
superiormente determinada em Deus -, ainda que sua existência dê-se
em função do homem e para ele. O homem cristão está no centro e,
sobre esse ponto, Santo Agostinho293 opera uma transposição-chave no
pensamento platônico. A centralidade cósmica, assentada no princípio
do equilíbrio harmônico, fixa-se num geocentrismo que não deixa de
colocar o homem em certa posição privilegiada, apesar do sentido
“baixo” atribuída à terra. A racionalização agostiniana leva ao limite essa
centralidade, cristalizando-a especificamente no homem e fazendo dele
muito mais que figura em posição ímpar no Cosmo, mas referente
interno e externo da própria natureza.294

A concepção bíblica do homem como centro do mundo e como ser


superior a todos os demais tem imbricações com as teorias clássicas sobre a
perfectibilidade do homem em Platão, Aristóteles e nos próprios estóicos. Ao
longo do tempo, o amálgama dessas doutrinas engendrou-se de forma
consistente na doutrina monoteísta.

A importância do pensamento agostiniano é grande na medida em


que SANTO AGOSTINHO é tido como uma autêntica ponte entre o pensamento

292
Conforme verificado anteriormente, o episódio dos porcos encontra-se relatado em Mc 5, 2-13
e o da árvore em Mt 21, 19 e também em Mc 11, 13-14.
293
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Bragança Paulista: São Francisco, 2003.
294
BANDEIRA DE ARAÚJO, op.cit., p. 132.

- 95 -
antigo e o medieval295. A sua obra e a sua doutrina influenciam de maneira
decisiva a filosofia vindoura.

GREGÓRIO DE NISSA (c. 335-394), por exemplo, instruído e


influenciado por seu irmão mais jovem, SÃO BASÍLIO (330-379)296 deixou claro
em suas obras297 o posicionamento da superioridade do homem frente à criação.
Segundo o autor, o universo se divide em duas partes, uma do mundo visível e
outra do mundo invisível. O homem pertence ao mundo visível por seu corpo e ao
mundo invisível por sua alma. Desta feita, é o único ser capaz de trazer em si
essa ligação entre os dois mundos. Em virtude desta característica, ele ocupa o
cimo do mundo visível, pois é dotado de razão. Tal como nos relata ETTIENE, de
acordo com GREGÓRIO DE NISSA:

295
BOÉCIO (470-525) também não pode ser olvidado como importante para esta transição entre o
mundo antigo e o medieval. São suas as mais antigas traduções latinas dos escritos aristotélicos.
296
Interessante perceber que justamente SÃO BASÍLIO destaca-se como um dos poucos filósofos
cristãos a se preocupar com a condição dos animais. Uma oração escrita por ele incentiva o
comprometimento com os animais: “The Earth is the Lord´s and the fullness thereof. O God,
enlarge within us the sense of fellowship with all living things, our brothers the animals to whom
thou has given the earth as their home in common with us. We remember with shame that in the
past we have exercised the high dominion of man with ruthless cruelty, so that the voice of the
earth, which should have gone up to Thee in song, has been a groan of travail. May we realize that
they live, not for us alone, but for themselves and for Thee, and that they love the sweetness of life”
(BASÍLIO apud RYDER, op.cit., p. 12). A visão usual de que SÃO FRANCISCO DE ASSIS (1182-
1226) inicia uma “tradição” de compaixão para com toda a criação é equivocada. Ele é importante,
mas um dos últimos a se debruçar sobre o tema. Antes dele, SANTO ISAAC, o Sírio, respondendo
à questão do que seria um coração misericordioso, afirma que: “It is a heart which is burning with
love for the whole creation, for men, for the birds, for the beasts [...] for all creatures. He who has
such a heart cannot see or call to mind a creature without his eyes being filled with tears by reason
of the immense compassion which seizes his heart; a heart which is softened and can no long bear
to see or learn from others of any suffering, even the smallest pain being inflicted upon a creature.
That is why such a man never ceases to pray for the animals […] He is moved by the infinite pity
which reigns in the hearts of those who are becoming united with God” (apud RYDER, Richard,
op.cit., p. 11). A SÃO CRISÓSTOMO (347-407) é atribuída a passagem: “The Saints are
exceedingly loving and gentle to mankind and even to brute and beasts […] Surely we ought to
show them great kindness and gentleness for many reasons, but above all, because they are the
same origin as ourselves” (CRISÓSTOMO apud RYDER, op.cit, p. 12). SÃO FRANCISO DE
ASSIS de fato, também pleiteava a extensão da compaixão para com todas as criaturas. Segundo
afirma: “Se ao menos eu pudesse ser apresentado ao imperador, rogaria, pelo amor de Deus, e
por mim, que emitisse um edital proibindo a todos de pegar ou prender minhas irmãs, as cotovias,
e ordenando a todos os que possuem um boi ou burro que os alimentassem particularmente bem
no Natal” (ASSIS apud SINGER, op.cit., p. 223). O seu deleite com os animais não o impedia,
contudo, de abraçar o antropocentrismo na medida em que afirma que “Toda criatura proclama:
‘Deus fez-me para te servir, ó homem.” (Ibid., p. 223). Neste sentido, talvez seja por isso que o seu
amor pelos bichos não parece tê-lo impedido de comê-los quando elaborou as normas de conduta
para os frades na ordem que fundou.
297
As suas principais obras são o tratado Sobre a Formação do Homem, conhecido na Idade
Média sob o título De hominis opficio; o Comentário sobre o Cântico dos Cânticos e sobre as oito
Beatitudes, e o Diálogo com Macrina sobre a Alma e a Imortalidade.

- 96 -
[...] abaixo dele (do homem) escalonam-se os animais, que possuem
apenas a sensibilidade, o movimento e a vida; depois, os vegetais, que
não possuem uma alma perfeita, pois só podem crescer e nutrir-se;
enfim, os corpos inanimados, desprovidos de força vital [...] O homem
contém em si todos os graus da vida: ele vegeta como as plantas, move-
se e percebe como os animais, e raciocina porque é homem.298

GREGÓRIO também adota, pois, o postulado aristotélico e estóico


da hierarquia dos seres. Chega a condenar expressamente a doutrina da
transmigração das almas, que seria, a seu ver, inaceitável para um cristão, pois é
contrária à “manifesta distinção das espécies animais”. Ainda segundo o teólogo,
“admitir que qualquer alma possa animar qualquer corpo equivale a dizer que
todos os seres – homens, plantas e animais –são da mesma natureza.”299
Sustentava ainda que a evangelização a “toda criatura”, expressa em Marcos 16,
15300, designava tão somente os homens como destinatários e nunca os demais
seres vivos.

As religiões, de modo geral, especialmente as de tradição judaico-


cristã, representam uma faceta nitidamente conservadora e reacionária com
relação ao reconhecimento de valor intrínseco à Natureza e aos animais não-
humanos. Apesar disso, é de se notar que grandes ambigüidades podem ser
também percebidas301:

298
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 68.
299
Ibid., p. 68.
300
“E disse-lhes: ‘Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e
for batizado será salvo; o que não crer será condenado’”.
301
Neste sentido, podemos encontrar no texto bíblico algumas passagens que ilustram a
concessão de caráter moral a seres não-humanos, como consagrado no episódio da “jumenta de
Balaão”, encontrado em Números 22, 22-35, do qual se lê: “A sua partida excitou a ira de Iahweh e
o Anjo de Iahweh se colocou na estrada, para barrar-lhe a passagem. Ele montava a sua jumenta,
e os seus dois servos o acompanhavam. A jumenta viu o Anjo de Iahweh parado na estrada, com
a sua espada desembainhada na mão; desviou-se da estrada, em direção ao campo. Balaão,
contudo, espancou a jumenta para fazê-la voltar à estrada. O Anjo de Iahweh se pôs então em um
caminho estreito, no meio das vinhas, com um muro à direita e outro muro à esquerda. A jumenta
viu o Anjo de Iahweh e encostou-se ao muro, apertando neste o pé de Balaão. Ele tornou a
espancá-la outra vez. O Anjo de Iahweh mudou de lugar e se colocou em uma passagem
apertada, onde não havia espaço para passar nem à direita nem à esquerda. Quando a jumenta
viu o Anjo de Iahweh, caiu debaixo de Balaão. Balaão ficou enfurecido e espancou a jumenta a
golpes de bordão. Então Iahweh abriu a boca da jumenta e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, pare
me teres espancado já por três vezes?’ Balaão respondeu à jumenta: ‘É porque zombaste de mim!

- 97 -
[...] no caráter parcelar e incompleto do esforço iconoclástico contra os
‘ídolos pagãos’, que deixou ainda a iconografia cristã repleta de animais
nos mais diversos degraus da hierarquia teológica – num culto que
abomina o ‘Bezerro de Ouro’ mas venera o Messias como ‘Cordeiro de
Deus’, que deixa o leão simbolizar São Marcos, a águia o apóstolo São
João, que se coenvolve em infinitas ‘nuances’ animistas e panteístas, até
o sabor de ritos locais, que transforma athleta Dei São Cristóvão, um
gigante cinocéfalo e antropófago, que adota a fábula de Androcles e do
leão como episódio da vida de São Jerônimo, que admite que São
Roque tenha sido alimentado por um cão, que multiplica exemplos de
‘patronos de animais’ na sua hagiografia.

1.5. Idade Média302 e Tempos Coloniais

“Presunção é nossa doença natural e original […] É pela mesma vaidade


de imaginação que [o homem] se iguala a Deus, atribuindo-se
qualidades divinas, e afasta-se e separa-se da multidão de outras
criaturas.”

MICHEL DE MONTAIGNE 303

Se eu tivesse uma espada na mão já te haveria matado.’ Disse a jumenta a Balaão: ‘Não sou eu a
tua jumenta, que te serve de montaria toda a vida e até o dia de hoje? Tenho o costume de agir
assim contigo?’ Respondeu ele: ‘Não’. Então Iahweh abriu os olhos de Balaão. E viu o Anjo de
Iahweh parado na estrada, tendo a sua espada desembainhada na mão. Inclinou-se e se prostou
com a face em terra. Disse-lhe o Anjo de Iahweh: ‘Por que espancaste assim a tua jumenta, já por
três vezes? Sou eu quem vim barrar-lhe a passagem; pois com a minha presença o caminho não
pode prosseguir. A jumenta me viu e, devido à minha presença ela se desviou por três vezes. Foi
bom para ti que ela se desviasse, pois senão já te haveria matado. A ela, contudo, teria deixado
com vida.”
302
O termo Idade Média é tido como originariamente cunhado por FRANCESCO PETRARCA
(1304-1374), que introduziu o vocábulo medium aevum para designar o período histórico de
transição entre a Antiguidade Clássica e os novos tempos. De acordo com DANILO
MARCONDES, “podemos dividir o período medieval em duas fases totalmente distintas do ponto
de vista filosófico e cultural. A primeira corresponde ao período que se segue à queda do Império
Romano (séc. V) praticamente até os sécs. IX-X, quando a situação política e econômica começa
a se estabilizar. A fase final (sécs. IX-XV) equivale ao desenvolvimento da escolástica e à grande
produção filosófica que se dá com a criação das universidades (séc. XIII, até a crise do
pensamento escolástico e o surgimento do humanismo renascentista (sécs. XV-XVI)” (op.cit., p.
103). É, pois, normalmente associada ao fim do Império Romano do Ocidente (século V) até à
ascensão das monarquias nacionais e o início do repovoamento demográfico e reestruturação
económica após a Peste Negra, os Descobrimentos Marítimos e o ressurgimento da cultura
clássica conhecido precisamente como Renascimento, por volta do século XV, bem como a
Reforma Protestante, ocorrida em 1517. Alguns historiadores mencionam a tomada de
Constantinopla pelos turcos (1453 d.C.) como marco de fim deste período.

- 98 -
1.5.1. O Poder Eclesiástico

“I do not like animals. Of any sort. I don’t even like the idea of animals.
Animals are no friends of mine. They are not welcome in my house. They
occupy no space in my heart. Animals are off my list [...]”304

FRAN LEBOWITZ (1986)

Com a queda do Império Romano, no século V d.C., a cultura


clássica entrou em uma fase de estagnação. Coube ao mundo árabe a
restauração deste conhecimento, mais tarde reintroduzido na Europa por meio
das traduções do árabe para o latim.305

Pode-se dizer que, até o século XII, é reduzido o número de obras


culturais no mundo ocidental. O período que se estende do ano 600 ao 1.000 d.C.
é comumente denominado de “Idade das Trevas”. De fato, com a dissolução
definitiva do Império Romano e as sucessivas invasões bárbaras, percebe-se uma
queda da produção intelectual, refletindo certa estagnação cultural geral na
Europa.

A Igreja, durante este período (séculos VI-XII), foi consolidando a


sua posição de detentora e baluarte da educação e da cultura no mundo
ocidental, única instituição a lograr êxito na preservação das obras antigas306.

Tal como a sociedade atual, a sociedade medieval era ambivalente


em sua relação com os animais. Ao mesmo tempo em que a cultura clerical
procurava, a todo custo, distanciar o homem do mundo sensível/profano, como
forma de valorização do sobrenatural e, por via transversa, promovendo a Igreja
como instituição, a cultura laica atribuía aos animais sentimento e virtudes até
então privativas do ser humano. Alguns animais eram criados como membros das
303
MONTAIGNE apud SINGER, op.cit., p. 225.
304
LEBOWITZ apud PHILO, Chris; WILBERT Chris, op.cit. p. 6.
305
No campo científico destaca-se a figura do cientista AL-YAHIZ, que no século IX elaborou um
dos principais tratados de zoologia, o denominado Livro dos Animais.
306
As ordens monásticas, por meio dos monges copistas, exerceram, neste aspecto, papel de
extrema relevância, pois, com o seu trabalho, permitiram, ainda que limitadamente, o acesso e
difusão de manuscritos e obras importantes.

- 99 -
famílias e possuíam personalidade própria. Como se verá mais adiante, eram até
mesmo eventualmente processados e condenados em nome próprio pela prática
de crimes.

Uma das fontes mais relevantes para o pensamento medieval como


um todo é a doutrina agostiniana. Como se verificou, ela constitui uma verdadeira
ponte mediadora entre a filosofia antiga e a filosofia cristã medieval. Portanto, a
idéia da hierarquia dos seres permanece viva, contando com contínuas
reproduções sob as mais diversas roupagens.

A compulsão pela classificação e pela hierarquização das mais


diversas categorias continua e pode ser percebida no conjunto de escritos
denominados de Corpus areopagificum, compreendendo as obras: Da Hierarquia
Celeste, Da Hierarquia Eclesiástica, Dos Nomes Divinos, Teologia Mística e
Cartas, todas supostamente de autoria de DIONÍSIO e que apareceram por volta
do ano de 532. De acordo com eles, todas as criaturas são participações no “bem
supremo”, mas cada qual se faz representar em seu grau e em seu nível
hierárquico.

A alta Idade Média traz os comentários de MÁXIMO DE


CRISÓPOLIS (580-662), costumeiramente chamado de MÁXIMO, o Confessor,
às obras de DIONÍSIO. De acordo com suas observações, pela efusão da
bondade divina, a Trinidade erradia expressões de si que são as criaturas 307.

A distinção entre o homem e os outros animais, com a correlata


associação da superioridade ao primeiro, parece dominar o foco dos pensadores
medievais. BOÉCIO (c. 470-525) configura como erro “pensar como conjuntas
coisas que não o são na realidade: um busto de homem e a anca de um cavalo,
por exemplo.”308

Posteriormente, no ano 800, o papa Leão III sagrou Carlos Magno


imperador do Sacro Império Romano Germânico, em uma nítida tentativa de

307
“Por isso, vemo-las aparecerem numa espécie de hierarquia, cada uma no lugar que sua
perfeição própria lhe atribui [...]. Entre os seres assim produzidos, a maioria não tem outra história
além daquela que sua essência lhe atribui. Eles só podem ser o que são e como são. Outros, ao
contrário, são capazes de determinar em certa medida a posição que ocuparão na hierarquia dos
seres. Isso também é eternamente previsto e querido” (MÁXIMO apud GILSON, op.cit., p. 92).
308
BOÉCIO apud GILSON, op.cit., p. 165.

- 100 -
submeter o poder político e secular do imperador ao poder religioso e de
recuperar a unidade territorial e política do Império Romano. A vinculação à
Antiguidade greco-romana e ao papel e influência da Igreja são marcantes no
período.309 A partir dos séculos XI e XII, a filosofia medieval passou a ser
designada por escolástica310. A difusão da filosofia ocorre graças aos mosteiros
que mantinham escolas para formação do clero, sendo utilizada basicamente
como forma de legitimar e de justificar questões religiosas e teológicas311.

JOÃO ESCOTO ERÍGENA, nascido na Irlanda por volta de 800, um


dos mais influentes filósofos da era carolíngea, traduziu as obras de DIONÍSIO e
o Corpus areopagiticum do grego para o latim. A fé, para ele, é condição da
inteligência: Nisi credideritis, nos intelligetis (Is 7,9). O primado da razão ocupa
lugar de destaque em sua obra principal De divisione naturae e o método que a
razão emprega para atingir a inteligência da crença é a dialética (divisão e
análise). Na sua divisão da natureza cria quatro categorias essenciais. Deus é
colocado com criador da primeira categoria e como fim na quarta, estando todas
as criaturas compreendidas nesse interregno numa ordem hierarquicamente
encabeçada pelo homem: “a iluminação assim concebida segue uma ordem
hierárquica, proporcionando cada vez menos luz e ser, dos anjos ao homem, do
homem ao corpo. A natureza dessa hierarquia é mal compreendida, enquanto se
considera o nível de um ser como um apêndice da sua substância. A ordem das
coisas não é uma disposição segundo a qual Deus as arranjaria depois de tê-las
criado; seu nível é seu próprio ser. A Hierarquia é, pois, uma realidade sagrada,
como seu nome indica; é a participação ordenada de todos os seres em Deus.”312

309
O monge ALCUÍNO DE YORK (730-804) e o teólogo JOÃO ESCOTO ERÍGENA (810-870) são
figuras proeminentes nesta época.
310
Escolástica no sentido de vinculação a determinada escola de pensamento.
311
Exemplo disso é a construção do argumento ontológico por SANTO ANSELMO, monge
beneditino que propunha provar a existência de Deus por meio da passagem do campo lógico-
semântico para o campo ontológico, ou seja, entendido o conceito não se poderia deixar de aceitar
a existência desse ente supremo. Há uma nítida tentativa de conciliação entre razão e fé, típica do
pensamento escolástico.
312
ERÍGENA apud GILSON, op.cit., p. 258.

- 101 -
Não se pode deixar de observar o caráter neoplatônico de um
universo em que os seres vivos são valorados de acordo com as formas de que
cada um deles participa.313

ANSELMO DE CANTUÁRIA (1033-1109), é autor de importantes


obras no período, tais como o Monologium, o Proslogium e o De veritate. Entre as
suas construções teóricas encontra-se a velha idéia da superioridade humana
pela qual constata que os seres que constituem o universo variam em graus de
perfectibilidade. Para o autor, esta é uma constatação:

[...] a qual ninguém pode recusar. Para por em dúvida que o cavalo é
superior à árvore, ou que o homem o é ao cavalo, seria preciso não ser
um homem. Ora, se não se pode negar que as naturezas sejam
superiores umas às outras, há de se admitir ou que existe uma infinidade
de seres e que nunca se encontra um ser tão perfeito que não haja outro
ainda mais perfeito, ou que há um número finito de seres e, por
conseguinte, um ser mais perfeito que todo o resto. Ora, não se afirmará
que existe uma infinidade de seres, pois é absurdo, e só alguém
demasiado absurdo poderia sustentar tal coisa. Portanto, existe
necessariamente uma natureza que é superior às outras sem ser inferior
a nenhuma. Resta, é verdade, a hipótese de várias naturezas iguais
situadas no ápice da hierarquia universal. Mas, se elas são iguais, elas o
são pelo que têm em comum, e se o que têm em comum é sua essência,
na realidade são uma só natureza, superior a elas, e que, por sua vez, é
mais perfeita que todas.314

313
De acordo com a interpretação cosmogônica de SALOMÃO GABIROL (1021-1058), “o que
distingue um corpo particular de outro corpo particular é uma ou várias formas complementares,
em virtude das quais ele é determinado como simples mineral, como planta, animal, ou homem.
Portanto, há em todo ser composto, como se dirá mais tarde, ‘pluralidade das formas’, todos os
seres criados se encaixando, por assim dizer, uns nos outros de acordo com o grau de
generalidade das formas que os determinam. Podem-se distinguir nove graus principais nessa
ordem segundo a qual os seres subsistem uns nos outros. Em primeiro lugar, todos residem e
subsistem na ciência de Deus; em segundo lugar, as substâncias simples umas nas outras; em
quarto lugar, os acidentes simples nas substâncias simples; em quinto lugar, a quantidade na
substância ; em sexto, as superfícies nos sólidos, as linhas nas superfícies e os pontos nas linhas;
em sétimo, as cores e as figuras nas superfícies; em oitavo, as partes dos corpos homogêneos
uns nos outros; em nono, todos os corpos uns nos outros, e é esse seu modo comum de
existência que se conhece sob o nome de lugar” (GABIROL apud GILSON, op.cit., p. 456-57).
314
CANTUÁRIA apud GILSON, op.cit., p. 296.

- 102 -
No mesmo sentido, temos o posicionamento de PEDRO
ABELARDO315 (1079-1142), JOÃO DE SALISBURY316 (1110-1180), e ALBERTO
DE BOLLSTADT317 (1206-1280). A Europa dos séculos XI a XIII começa a sofrer
intensas e significativas transformações. Surgem núcleos urbanos importantes
devido à migração do campo em razão da crise agrícola. As futuras cidades-
estado italianas como Florença, Bolonha, Milão, entre outras, já começam a se
desenhar, em um movimento de ruptura com o “Antigo Regime”. A atividade
artesanal e comercial permite a acumulação de riqueza, ao contrário do que
ocorria no regime feudal, no qual a estagnação social era imperativa. Os artesãos
começam a se organizar nas corporações do ofício, antecipando as profundas
transformações nos séculos vindouros. A criação das ordens religiosas
(franciscanos e dominicanos) e o surgimento das universidades surgem em um
movimento concatenado. De fato, as universidades têm suas raízes no
desenvolvimento das escolas das abadias e catedrais. A demanda por educação
aumenta justamente em conseqüência do crescimento destes núcleos urbanos318.

315
“[...] o que a experiência atesta é que as espécies são realmente distintas umas das outras;
ora, elas não poderiam sê-lo se possuíssem em comum o mesmo gênero. Se o mesmo universal,
‘animal’, existe realmente e por inteiro na espécie ‘homem’ e na espécie ‘cavalo’, o mesmo animal
que é racional na espécie homem é não-racional na espécie cavalo. Assim, uma só coisa é, ao
mesmo tempo, ela mesma e seu contrário, o que é impossível” (ABELARDO apud GILSON,
op.cit., p. 345).
316
“os animais dão prova de certa inteligência, ora, o homem é mais inteligente que o animal, logo,
é falso que sejamos incapazes de conhecer o que quer que seja. Na realidade, podemos haurir
conhecimentos certos de três fontes diferentes: os sentidos, a razão e a fé. Quem não tem um
mínimo de confiança em seus sentidos é inferior aos animais [...]” (SALISBURY apud GILSON,
op.cit., p. 335).
317
“a vida normal de um ser verdadeiramente humano é atualizar assim seu intelecto possível,
elevando-se progressivamente do sensível aos conhecimentos inteligíveis mais elevados [...]. Os
que não se preocupam em conhecer, mas passam a vida como simples intelectos possíveis, não
vivem como homens, vivem como porcos” (BOLLSTADT apud GILSON, op.cit., p. 638).
318
No final do século XII já havia surgido a Universidade de Bolonha (1088) e a de Salerno (1050).
Em 1214 surgiu a Universidade de Paris, seguindo-se a de Oxford, Toulouse, Cambridge, etc.

- 103 -
1.5.2. A Filosofia Tomista

“[...] uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os


dentes, e arqueou-se, num ímpeto. Desgraçadamente, não podia nada.
O senhor homem sabia bem quando e como as fazia. Mas por que razão
o espetava daquela maneira?”319

MIGUEL TORGA

O beneditino, e posteriormente dominicano, TOMÁS DE AQUINO


(1224-1274) surge neste contexto e toma ARISTÓTELES como ponto de partida
para suas construções filosóficas. O pensamento aristotélico encontrava-se
novamente em voga em virtude de sua preocupação científica e empírica, voltada
para a realidade natural. TOMÁS DE AQUINO, resgatando-o e reafirmando a sua
análise sobre a perfeição, afirma que tudo aquilo que se move por natureza
própria em direção a uma condição particular, faz com que essa condição seja a
“perfeição” de cada coisa. Para JAN AERSTEN, a noção tomista de que “toda e
qualquer coisa almeja naturalmente por sua perfeição (perfectio) baseia-se no fato
de que:

[...] algo está pleno quando suas possibilidades naturais estiverem


realizadas. O que isso quer dizer para o ser humano? Sua capacidade
peculiar, que inclusive o diferencia do animal, é a razão. Por meio de sua
capacidade intelectual o ser humano dispõe de uma abertura para o
mundo, ainda que apenas de acordo com a possibilidade. Ele não possui
nenhum conhecimento inato, mas lhe cabe apropriar-se do mundo
através do espírito.320

A perfeição humana está, pois, diferentemente dos demais seres,


incluída na visão de Deus, na própria “Essência Divina”321. Deste modo, AQUINO

319
TORGA apud ARAÚJO, op.cit., p. 116.
320
AERSTEN, Jan. Filósofos da Idade Média. São Leopoldo: Unisinos, 2000. p. 251-52.
321
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, Pt. II, i, c.3, a.8.

- 104 -
ressalta que a perfeição de todas as coisas reside na sua proximidade e em sua
semelhança com Deus. Nesse particular, o homem seria a criatura que estaria
mais próxima a essa alegada condição de perfectibilidade deiforme.

Para o filósofo, o distanciamento entre homem e não-homem


integrava uma ordem divina:

[...] na realidade, a criação comporta desde o seu primeiro momento uma


distância infinita entre Deus e as coisas; a assimilação do mundo a Deus
é inevitavelmente deficiente e nenhuma criatura recebe a plenitude total
da perfeição divina porque as perfeições só passam de Deus à criatura
efetuando uma espécie de descida. A ordem segundo a qual essa
descida se efetua é a própria lei que rege a constituição íntima do
universo: todas as criaturas se dispõem segundo uma ordem hierárquica
de perfeição, indo das mais perfeitas, que são os anjos, às menos
perfeitas, que são os corpos, e de tal maneira que o grau mais baixo de
cada espécie superior confina com o grau mais elevado de cada espécie
inferior.322

Aqueles que resistem à ordem divina disso retiram sua


condenação323. A dominação humana sobre os demais seres seria, portanto, fruto
dessa “ordem hierárquica de perfectibilidade”, pela qual:

Todos os animais são naturalmente sujeitos ao homem. Essa assertiva


pode ser provada por três modos. Primeiro, pela ordem observada na
própria natureza; já que, em geral, percebe-se que há uma ordem de
predecessão do perfeito ao imperfeito (a matéria é feita para dar forma
às coisas e as coisas imperfeitas para servir às perfeitas), pelo que há
uma ordem no uso das coisas, já que as imperfeitas são destinadas ao
uso das perfeitas; as plantas fazem uso do solo para sua sobrevivência,
e os animais fazem uso das plantas, e o homem faz uso de plantas e
animais. É justamente para manter a ordem natural das coisas que o
homem deve ser o senhor sobre todos os animais. O próprio filósofo

322
AQUINO apud GILSON, op.cit., p. 666.
323
Cf. Bíblia de Jerusalém, Rm 13,2.

- 105 -
(ARISTÓTELES) afirma que a caça de animais selvagens é justa e
natural, porque o homem ao assim fazê-lo, exerce um direito natural. Em
segundo lugar, é provado pela ordem da divina providência que as
coisas inferiores são governadas pelas superiores. Na qualidade de
homens, feitos à imagem de Deus, somos superiores a eles, que estão
justamente submetidos a nosso jugo 324.

De acordo com o exposto, segundo a interpretação tomista, como


não poderia deixar de ser, o mandamento “não matarás” não se aplicaria aos
animais. Em seu Tratado da Justiça, estabelece o autor que ninguém peca por
utilizar uma coisa de acordo com o fim para a qual foi criada. Desta forma
assevera que:

Não há pecado em usar algo para o fim a que se destina. Ora, a ordem
das coisas é tal que o imperfeito é feito para o perfeito [...] Assim, coisas
como plantas, que meramente têm vida, são para os animais, e todos os
animais são para o homem. Portanto, não é proibido aos homens utilizar
plantas para o bem de animais, e animais para o bem do homem, como
afirma o Filósofo325 (Política, I, 3).

Ora, um uso mais necessário parece consistir no fato de que animais


usam plantas e homens usam animais para alimentar-se, e isso não
pode ser feito a não ser que esses sejam privados da vida , sendo,
portanto, legal tanto tirar a vida de plantas para uso de animais quanto
de animais para o uso dos homens. De fato, isso está de acordo com o
mandamento do próprio Deus (Gênesis 1, 29-30 e Gênesis 9, 3)326.

Para SÃO TOMÁS, a questão não se situa no fato de que seria


justificável matar por alimento (e nem se discutirá aqui o mérito da questão de que
é possível viver sem matar animais por tal razão), mas, sim, no de que somente

324
AQUINO, Tomás. The Summa Theologiae of St. Thomas Aquinas. Translated by Fathers of the
English Dominican Providence. London: Barnes, Oates and Washbourne, 1922, 7a, Question 96.
Tradução nossa.
325
SÃO TOMÁS considerava ARISTÓTELES tão relevante que a ele simplesmente se referia
como “o Filósofo”.
326
AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 220.

- 106 -
os seres “mais perfeitos” (homens) poderiam fazê-lo por consistir tal fato em ato
de justiça. Todavia, o inverso não é verdadeiro, ou seja, os seres humanos,
porque dotados de razão, podem matar para se alimentarem, mas os animais, ao
fazê-lo cometem ato de “selvageria” e “brutalidade”:

A selvageria e a brutalidade recebem seus nomes da semelhança com


bestas selvagens. Animais desse tipo atacam o homem para alimentar
seu corpo e não por algum motivo de justiça, cuja consideração pertence
somente à razão.

Como se percebe, repetindo o finalismo estóico, afirma que as


plantas vivem para servir de alimento para os animais e estes, para o bem-estar
do homem. O pensamento de TOMÁS foi interpretado como o ponto culminante
do aristotelismo cristão. Não é por outra razão que, referindo-se a
ARISTÓTELES, afirma que esta ordem de utilização não gera pecado. “Por
justíssima ordenação do Criador, a vida e morte das plantas e dos animais estão
subordinadas ao homem.”327

Nem mesmo a caridade abarcaria as ditas “criaturas irracionais”,


pois não há “contas a prestar” entre homens e animais328:

Não importa como o homem se comporta com relação aos animais,


porque Deus sujeitou todas as coisas ao poder do homem e é nesse
sentido que o Apóstolo diz que Deus não se importa com os bois, pois
Deus não pede ao homem para prestar contas do que faz com os bois
ou com outros animais 329.

327
AQUINO, Tomás. Tratado da Justiça. Portugal: Coleção Resjurídica, p. 104, apud DIAS, op.cit.
p. 31-2.
328
A única concessão que TOMÁS de AQUINO faz com relação aos animais é a de que
deveríamos evitar a crueldade para com eles, pois ela pode levar à crueldade com seres
humanos: “Ora é evidente que se um homem sente afeição piedosa pelos animais, estará mais
inclinado a sentir piedade por seus semelhantes, razão pela qual está escrito: ‘O justo olha pela
vida de seus animais.’ (Provérbios 12, 10)” (AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 221).
329
AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 221.

- 107 -
Conforme assinala FERNANDO ARAÚJO, também na Summa
Contra Gentiles São Tomás de Aquino, retomando um entendimento já
consagrado em Orígenes e em Santo Agostinho, se afadiga na demonstração que
a Providência Divina deu preferência às criaturas racionais sobre as demais, dado
que aquelas sobressaem na “perfeição da sua natureza” e na “excelência dos
seus fins”. As criaturas racionais são causa sui, as demais são geradas como
escravas das criaturas livres, como se demonstraria através das dotações
naturais com que são providas pelo Criador. E daí a ilação de que seria de refutar
a opinião daqueles que julgavam ser pecado matar animais irracionais330.

A assimilação e perpetuação da teoria da “Grande Cadeia do Ser”


era uma constante. Pior, a influência do pensamento tomista foi longeva.
Conforme nos alerta SINGER:

Em meados do século XIX, o Papa Pio IX não permitiu que a Sociedade


para a Preservação da Crueldade com Animais se estabelecesse em
Roma, com o argumento de que isso implicaria que os seres humanos
teriam deveres para com os animais. Encontramos essa descrição na
segunda metade do século XX, sem modificações significativas na
posição oficial da Igreja Católica Romana. A seguinte passagem de um
texto católico romano americano faz uma instrutiva comparação com a
passagem escrita setecentos anos antes, citada acima (cfr. nota de
rodapé n.º 275), de São Tomás: ‘Na ordem da natureza, o imperfeito
existe para servir o perfeito, o irracional para servir o racional. Ao
homem, como animal racional, é permitido usar as coisas abaixo dele
nesta ordem da natureza para suas necessidades. Ele precisa comer
plantas e animais para sua vida e vigor. Para comer plantas e animais
ele precisa matá-los. Portanto, matar não é, em si, um ato imoral ou
injusto.’331 332

330
ARAÚJO, op.cit., p. 55.
331
SINGER, op.cit., p. 222.
332
Foi apenas em 1988 que surge uma afirmação piedosa para com os animais no âmbito do
catolicismo. Na encíclica Solicitudo Rei Socialis (Sobre a Solicitude Social), João Paulo II prega o
“respeito pelos seres que fazem parte do mundo natural”, afirmando que: “O domínio conferido ao
homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem pode alguém falar de uma liberdade para ‘usar
e abusar’ ou dispor das coisas como lhe aprouver [...] Quando se trata do mundo natural, estamos
sujeitos não apenas a leis biológicas, mas também a leis morais, que não podem ser
transgredidas impunemente.”

- 108 -
1.5.3. A Reforma Protestante

“We know less of what that other world is like than this little girl knows of
the empires or powers of this world. But of this we are sure, the world to
come will be no empty, lifeless waste […] God will make new heavens
and a new earth. All poisonous and malicious and hurtful creatures will be
banished there, all that our sin has ruined. All creatures will not only be
harmless, but lovely and joyful, so that we might play with them. The
suckling child play on the hole of the asp and the weaned child shall put
his hand on the cockatrice´s den. Why, then, should there not be little
dogs in the new earth, whose skin might be as fair as gold, and their hair
as bright as precious stones.”333

MARTINHO LUTERO

Mesmo no âmbito da chamada Reforma Protestante334, a


hierarquização também se faz presente. De acordo com as palavras do monge
agostiniano MARTINHO LUTERO (1483-1546):

[...] ninguém está desprovido de alguma missão ou vocação. [...] Tal


significa que um criado, uma empregada, um filho, um homem, uma
mulher, um senhor, súdito ou quem quer que seja pode pertencer a uma
estação designada por Deus, desde que cumpra sua missão, e será tão
belo e glorioso aos olhos de Deus quanto a uma noiva adornada para o
casamento.”335 Ou ainda: “[...] Se os pássaros e animais pudessem falar,
diriam, observada a autoridade secular entre os homens: ‘Estimados
humanos, comparados conosco, vocês são deuses, não homens. Como
vocês vivem seguros e têm todas as suas coisas em segurança! Nós
estamos sob constante ameaça de outros no que diz respeito a tudo:
vida, moradia e sustento. Ái de vocês por serem tão mal agradecidos,

333
LUTERO apud PRICE, Rod (ed.). Awe For The Tiger, Love For The Lamb: A Chronicle of
Sensibility to Animals. London: Routledge, 2002. p. 95.
334
A Reforma Protestante é caracterizada por constituir um movimento de renovação evangélica
surgido na Alemanha no século XVI, insurgindo-se contra o papado e a igreja de seu tempo. Duas
são as bases da doutrina luterana: (a) as pessoa se medem por sua fé e são salvas não por seus
atos, mas pela graça divina; (b) a autoridade da Bíblia é superior à autoridade do papa, pois ela é
a fonte originária da palavra de Deus.
335
LUTERO apud PASSMORE, op.cit., p. 22.

- 109 -
por não verem a vida maravilhosa que Deus deu a vocês comparada à
nossa 336.

Em realidade, a doutrina cristã, especialmente a pré-darwiniana,


reforça as crenças aristotélicas de que o homem é o único ser possuidor de
razão, linguagem e capacidade de distinção entre o bem e o mal, acrescendo
mais duas características fundamentais para a diferenciação: a posse de uma
alma imortal e a relação de semelhança com a divindade.

A esse respeito, conforme bem observa SCHOPENHAUER (1788-


1860):

[...] outro erro fundamental do cristianismo, absolutamente inexplicável e


que manifesta diariamente suas terríveis conseqüências, é o fato de ele,
contra a natureza, ter arrancado o homem do mundo animal ao qual
pertence em essência e ter dado valor apenas a ele, considerando os
animais até mesmo como coisas [...]. O referido erro fundamental, é,
porém, a conseqüência da criação que parte do nada, segundo a qual o
criador (cap. 1 e 9 da Gênese) entrega ao homem todos os animais –
como se estes fossem coisas e sem nenhuma recomendação de bons
tratos, como faz o vendedor de cães quando se separa dos seus filhotes
– para que ele os domine, ou seja, faça com eles o que bem entender;
em seguida, no segundo capítulo, o criador eleva o homem ao grau de
primeiro professor de zoologia, encarregando-o de escolher os nomes
que os animais teriam de carregar para sempre, o que novamente
constitui apenas um símbolo de sua total dependência do homem, em
outras palavras, a privação de seus direitos [...].337

SCHOPENHAUER denuncia ainda a tese segundo a qual os


homens não teriam obrigações para com os animais como “uma das vulgaridades
revoltantes, um traço bárbaro do Ocidente, cuja fonte está no judaísmo.”338

336
LUTERO. Disponível em: <http://www.lutero.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
337
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Insultar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 41-2.
338
SCHOPENHAUER, Arthur. The Basis of Morality. Dover Publications, 2005, p. 118.

- 110 -
Não foi somente o filósofo alemão a perceber a pesada influência da
religião sobre a maneira com que tratamos os animais. Em 1900, WILFRID
SCAWEN BLUNT (1840-1922) também imputou ao cristianismo a culpa “pela
cruel teoria de que animais e pássaros foram feitos exclusivamente para uso e
prazer do homem, e de que este não tinha deveres diante daqueles.”339 Na
mesma linha, o teólogo de Oxford HASTINGS RASHDALL (1858-1924) também
atribuía a indiferença dos filósofos com relação ao tratamento cruel dos animais a
“preconceitos de origem teológica”.340

1.5.4. Em “Berço Esplêndido”

“Vida Animal, mistério sombrio! Mundo imenso de pensamentos e mudos


sofrimentos. Toda a natureza protesta contra o barbarismo do homem,
que compreende mal, que humilha, que tortura seus irmãos inferiores.
Vida, morte! O assassinato diário implícito na ingestão de animais –
difíceis e amargos problemas implacavelmente colocados perante minha
mente. Miserável contradição. Esperemos que possa haver outra esfera
na qual sejamos poupados do destino indigno e cruel desta.”341

MICHELET

No curso destas considerações sobre o período medieval, vale


destacar que não obstante não se possa afirmar que tenha havido um período
medieval propriamente dito no Brasil, certo é que a fase do Brasil-colônia é a que
mais se aproxima dele. Segundo SYLVIO ROMERO, “se a época dos aborígines,
o tempo pré-cabralino, é no Brasil o que se pode chamar de nossa obscura

339
BLUNT, Wilfrid Scawen. My Diaries, 1932, p. 343, apud THOMAS, op.cit., p. 28.
340
RASHDALL, Hastings. The Theory of Good and Evil, 1924, p. 214, apud THOMAS, op.cit., p.
28.
341
MICHELET apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 236.

- 111 -
antiguidade, o primeiro século, o século feudal da colonização é nossa indecisa
idade média” 342.

Com o “descobrimento”, inicia-se uma fase de exploração


desmedida de nossos recursos naturais343. A ganância exploradora fez com que
fosse comum as naus retornarem para a metrópole carregadas de papagaios,
bugios, sagüis, jaguatiricas e muitas outras espécies animais. LEVAI nos traz o
registro feito pelo historiador ROBERTO C. SIMONSEN segundo o qual, “Na
mesma época (século XVI) interceptou-se em águas européias uma caravela
francesa pirata – a nau Pelerine – carregada de produtos aqui contrabandeados:
5000 toras de pau-brasil, 3000 peles de felinos, 600 aves e 300 macacos.”344

Segundo a precisa análise de MARTINS JUNIOR:

O português entrou para o Brasil, pela porta do tratado de Tordesilhas,


na qualidade de senhor, de dono, de proprietário. Instalando-se em sua
nova possessão e tendo de realizar vis-à-vis do selvagem o processo de
luta social a que NOVICOW chama de eliminação biológica, ele trouxe à
terra descoberta, e para seu uso, toda sua bagagem legislativa, como
trouxe os seus costumes, os seus escravos, as suas roupas e jóias.
Transportava-se para cá um pedaço da nacionalidade portuguesa; era
natural que viessem com ele as leis respectivas, como parte que eram
do patrimônio moral da metrópole. Assim, o Direito que ia vigorar na
colônia não tinha que nascer do choque de interesses das populações
postas em contato; era um direito que estava feito e que precisava
simplesmente ser aplicado, depois de importado. 345

342
ROMERO, Sylvio. A Historia do Brazil ensinada pela biographia dos seus heroes, p. 19, apud
JUNIOR, Martins. História do Direito Nacional. Pernambuco: Cooperativa Editora e de Cultura
Intelectual de Pernambuco, 1941, 2ª edição (edição original de 1895). p. 147.
343
A famosa carta de PERO VAZ DE CAMINHA ao el-Rey Dom Manuel já prenunciava os
objetivos exploratórios dos colonizadores: “Esta terra, Senhor, me parece tamanha, toda cheia de
grandes arvoredos. Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma
cousa de metal, nem de ferro, nem lho vimos. A terra, porém, em sim, é de muitos bons ares.
Águas são muitas, infindas. Mas o melhor fruto que nele se pode fazer me parece que será salvar
esta gente.”
344
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais: o Direito deles e o nosso Direito sobre eles.
Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 1998. p. 37.
345
MARTINS JUNIOR, op. cit., p. 144.

- 112 -
Pisando, pois, em solo pátrio, na qualidade de colônia portuguesa, o
Brasil viu transplantados para sua realidade a legislação e os institutos então
vigentes na metrópole. Em um primeiro momento, aplicaram-se as Ordenações
Manoelinas346 e, a partir de 1603, até o início do séc. XIX, estiveram em vigor as
Ordenações Filipinas.

Ao se examinar o Livro V das Ordenações Filipinas347, tem-se a


noção do Direito Penal aplicado na época colonial. Nota-se a exorbitância das
penas corroborando a idéia da imposição da obediência através do temor e do
castigo, a desigualdade de tratamento entre os agentes do delito e a visão
integrada do Direito com a Moral e com a Religião. Apesar de todas as críticas
que se possam fazer tomando por base o nosso sistema liberal constitucional,
pode-se perceber, já nesta legislação, embora muito timidamente, a gênese de
normas e princípios que traduzem a mentalidade vigente a respeito da condição
dos animais e do meio ambiente.

A este respeito, destacam-se, entre outros, os Títulos IV, XIII, LXII,


LXXV, LXXVIII, LXXXVIII do Livro V, que tratam respectivamente “Dos que
benzem cães ou bichos sem autoridade Del-Rey ou dos prelados”348, “Dos que
cometem pecado de sodomia e com alimárias”349, “Da pena que haverão os que
acham escravos, aves ou outras coisas e as não entregam a seus donos nem as

346
O Direito português, ultrapassando a sua fase dos períodos foraleiro e das denominadas Leis
Gerais, entra em sua fase orgânica, consubstanciada na tríplice codificação Affonsina, Manoelina
e Filipina. Sinteticamente, podemos dizer que as Ordenações Affonsinas vigoraram de 1446 a
1490, enquanto que as Manoelinas vigeram desta última data até 1603, quando, sob o domínio
espanhol (1580-1640) foram editadas as Ordenações Philippinas
347
As “Ordenações e Leis do Reino de Portugal, recopiladas pelo mandado do mui alto, católico e
poderoso rei Dom Philipe, o primeiro” foram promulgadas, como o próprio título sugere, pelo
monarca espanhol e constituíram um verdadeiro código legal para Portugal e, por transplante,
para o Brasil, até o início do século XIX. O Livro V das Ordenações destina-se a compilar a
legislação penal e processual penal da época.
348
“Título IV – Dos que benzem cães ou bichos sem autoridade Del-Rey ou dos prelados.
Defendemos que pessoa alguma não benza cães ou bichos nem outras alimárias, nem use disso
sem primeiro haver nossa autoridade ou dos prelados para o poder fazer. E que o contrário fizer,
seja publicamente açoitado se for peão; e pague mil réis para quem o acusar. E se for escudeiro
ou daí para cima, seja degredado por um ano para a África e pague dois mil réis para quem o
acusar. E sendo mulher será degredada por dois anos para Castro-Marim e pagará os ditos dois
mil réis.”
349
“Título XIII – Dos que cometem pecado de sodomia e com alimárias.
[...] 2. Outrossim qualquer homem ou mulher que carnalmente tiver ajuntamento com alguma
alimária, seja queimado e feito em pó.”

- 113 -
apregoam”350, “Dos que cortam árvores de fruto ou sovereiros ao longo do
Tejo”351, “Dos que compram colméias para matar abelhas e dos que matam
bestas”352 e “Das caças e pescarias defesas”353.

350
“Título LXII – Da pena que haverão os que acham escravos,aves ou outras coisas e as
não entregam a seus donos nem as apregoam.
[...] 3. E todo aquele que achar ave alheia ou outra qualquer coisa, tanto que souber cuja é, lhe
entregue logo, posto que requerido não seja. E não a entregando e usando dela sem vontade de
seu dono, seja constrangido que lhe torne e mais seja punido como se a princípio lha furtara. E
não sabendo cuja é, a mandará apregoar por espaço de trinta dias em lugares públicos e
costumados. E não mandando apregoar e usando dela depois do dito tempo, seu dono lha poderá
demandar, e lhe será julgada; e será outrossim punido de furto. E vindo seu dono a demandar
essa coisa achada, no caso, onde o achador não cometeu furto, pagará primeiro ao achador todas
as custas e despesas que fez por achar e guardar essa coisa que achou. E mais, se for caçador,
pagar-lhe-á achadego, convém a saber do açor prima cem réis e, pelo açor terçó e falcão prima
cinqüenta réis, e por gavião prima vinte réis.
[...] 5. E se algum achar lobo ou ave caçador que leve preso algum cordeiro ou outra coisa
alguma, e lha tolher com seus cães ou por outro qualquer modo, mandamos que a torne a seu
dono, sem outro algum achadego, e devem-lhe ser pagas as despesas que fez por tolher a coisa.
E não querendo tornar isso que assim tolheu e retendo-o forçosamente contra a vontade de seu
dono, seja havido por cometedor de furto.
[...] 6. E o que achar alguma ave ou alimária fera em laço ou em cepo que outrem armasse em
lugar que, segundo direito e costume, se devem armar, deve entregar isso que achou em laço
alheio, sem outro achadego.”
351
“Título LXXV – Dos que cortam árvores de fruto ou sovereiros ao longo do Tejo.
O que cortar árvore de fruto, em qualquer parte que estiver, pagará a estimação dela a seu dono
em tresdobro. E se o dano que assim fizer nas árvores for valia de quatro mil réis, será açoitado e
degredado quatro anos para a África. E se for valia de trinta cruzados, e daí para cima, será
degradado para sempre para o Brasil.
1. E mandamos que pessoa alguma não corte nem mande cortar sovereiro, carvalho, ensinho,
machieiro por o pé, nem mande fazer dele carvão nem cinza; nem escasque nem mande escascar
nem cernar alguma das ditas árvores de onde entra o rio Elga no termo da vila do Rosmaninhal
até a vila de Abrantes e daí até a foz do rio de Lisboa, nem até dez léguas do Tejo, contadas dele
para ambas as bandas do sertão, desde onde se mete o rio Sever no termo de Montalvão até a
foz do rio de Lisboa, e donde se mete o rio Elga até onde entre o rio Sever. As quais dez léguas se
contarão da banda de Portugal somente. E fazendo o contrário vá degregado quatro anos para a
África e pague cem cruzados, e perca o carvão e cinza, a metade para quem o acusar e outra
para os Cativos. E se for peão, seja além disso, açoitado. Porém, os que tiverem sovereiros
próprios os poderão cortar, não sendo para carvão ou cinza; e cortando-os para isso incorrerão
nas ditas penas. E os juízes dos lugares dos ditos limites tirarão disso devassa ao tempo que tiram
a devassa geral e procederão contra os culpados, como for Justiça.”
352
“Título LXXVIII – Dos que compram colméias para matar abelhas e dos que matam
bestas.
Mandamos que se alguma pessoa comprar alguma colméia ou colméias para somente se
aproveitar da cera e matar as abelhas, se for peão, seja açoitado, e se for pessoas que não
caibam açoites, será degredado dois anos para a África. E assim o que for açoitado, como
degredado, pagará em dobro tudo o que valiam as colméias que assim comprou, de que matou as
abelhas, a metade para quem o acusar e a outra para os Cativos.
1. E a pessoa que matar besta de qualquer sorte que seja, ou boi ou vaca alheia por malícia, se
for na vila ou em alguma casa, pague a estimação em dobro, e se for no campo, pague o
tresdobro, e todo para seu dono: e sendo o dano de quatro mil réis, seja açoitado e degredado

- 114 -
As circunstâncias históricas de cada um dos diversos períodos por
que passou nossa colonização revelam uma intensa devastação do meio
ambiente que, infelizmente, perdura até os dias de hoje, fruto desta mesma
ideologia de superioridade e dominação.

1.6. Modernidade354, Racionalismos e outros “bichos”

“O Senhor Deus não trouxe até nós as criaturas para nosso benefício e
para serem usadas conforme nos pareça melhor para o nosso bem? [...]
Não é guardar a lei usar essas tolas criaturas de tal forma que possam
servir melhor ao nosso benefício, o que eu considero ser o seu uso
correto e a finalidade para a qual foram criadas?”

JOHN LEVETT (1634)355

“A grande maioria dos homens, de fato, considera o resto da natureza e


do Universo como uma espécie de apêndice do nosso mundo e da Terra
(‘pro quadam habet orbis nostri aut telluris appendice’), como algo que
não tem nenhum valor por si mesmo, mas que é adaptado aos usos do
gênero humano, para que possa servir às suas necessidades.”

BURNET (1753)356

quatro anos para a África. E se for de valia de trinta cruzados e daí para cima, será degredado
para sempre para o Brasil.”
353
“Título LXXXVIII – Das caças e pescarias defesas.
Defendemos geralmente em nosso Reino que pessoa alguma não mate, nem cace perdizes,
lebres, coelhos com boi, nem com fio de arames, nem com outros alguns; nem tome, nem quebre
ovos das perdizes, sob pena de pagar da cadeia dois mil réis de cada vez que nisso for achado,
ou lhe for provado dentro de dois meses, e mais perder as armadilhas. Nas quais penas isso
mesmo incorrerão as pessoas em cujo poder ou casas forem achadas as armadilhas, ora sejam
suas, ora alheias [...]
[...] 6. E defendemos que pessoa alguma não pesque em rios nem em lagoas de água doce com
rede, cóvãos, nassas, tesões, nem por outro algum modo nos meses de março, abril e maio,
somente poder-se-á pescar à cana com anzol [...]”
354
Consoante a exposição de HEGEL (1770-1831), o que convencionalmente chamamos de
“moderno” refere-se ao período entre os séculos XVII e XIX. Todavia, vale lembrar que já no
século XIV, GUILHERME DE OCKHAM (1284-1349) e seus seguidores eram conhecidos como os
defensores da via moderna na lógica e metafísica, enquanto que nos primeiros séculos do
cristianismo também já havia a oposição entre os antiqui (aqueles que viveram antes de Cristo) e
moderni.
355
LEVETT, The Ordering of Bees (1634) apud THOMAS, op.cit., p. 27.

- 115 -
1.6.1. Rupturas com o “Antigo Regime”

“A primavera hoje chega sem ser anunciada pelo retorno dos pássaros e
as manhãs são estranhamente silenciosas.”357

RACHEL CARSON (1962)

O conceito de modernidade, nas palavras de DANILO


MARCONDES, “está sempre relacionado para nós ao ‘novo’, àquilo que rompe
com a tradição. Trata-se, portanto, de um conceito associado quase sempre a um
sentido positivo de mudança, transformação e progresso.”358

Conforme se verá, esta perspectiva de ruptura com o “Antigo


Regime”359 trouxe uma série de valorações e projeções de uma época sobre a
outra360. Com efeito, no período compreendido entre 1500 e 1800 percebe-se um
início de mudança e transformação na maneira pela qual os homens percebiam o
meio-ambiente e os seres vivos. De acordo com KEITH THOMAS:

[...] alguns dogmas desde muito estabelecidos sobre o lugar do homem


na natureza foram descartados nesse processo. Surgiram novas
sensibilidades em relações aos animais, às plantas e à paisagem. O
relacionamento do homem com outras espécies foi redefinido; e o seu
direito a explorar essas espécies em benefício próprio se viu fortemente

356
BURNET, Archeologia Philosophica, Londini, 1733, p. 415, apud ROSSI, op.cit., p. 255.
357
CARSON apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 385.
358
MARCONDES, op.cit., p. 139.
359
A expressão “Antigo Regime” foi originariamente utilizada nos idos de 1790 para rotular as
instituições e práticas da época anterior à Revolução Francesa como intrinsecamente injustas e
confusas. Neste sentido ARNO WHELING nos ensina que “a projeção, no plano institucional, dos
modelos político-administrativos posteriores à Revolução Francesa, gerando anacronismos e
incompreensões sobre o estado do Antigo Regime. Essa projeção deve-se, sobretudo, às críticas
feitas pelos liberais e socialistas no século XIX, no contexto de suas lutas ideológicas, ao mundo
pré-revolucionário.” (WHELING, Arno. A Justiça Colonial: Fundamentos e Formas, Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica – SBPH, Curitiba, n.º 17, 2000, p 3).
360
O próprio vocábulo “renascimento” já denota um juízo de valor negativo sobre o período
imediatamente anterior. De fato, a Idade Média é vista sob a ótica de uma “idade das trevas”,
submergida no obscurantismo. FRANCISCO PETRARCA (1304-1374) foi o precursor desta
concepção, tendo elogiado com veemência o esforço dos homens para dissiparem as trevas e
voltarem ao brilho puro e prístino da Antiguidade greco-romana.

- 116 -
contestado. Esses séculos produziram tanto um intenso interesse pelo
mundo natural como as dúvidas e ansiedades quanto à relação do
homem com aquele que recebemos como herança em forma
amplificada.361

1.6.2. Renascença e Revolução Científica

“Retorne à Natureza! Ela irá [...] expulsar de seu coração [...] as


ansiedades que o avassalam [...] os rancores que separam você do
Homem ao qual você deve amar.”362

BARÃO D´HOLBACH (1770)

A filosofia moderna, fortemente marcada pelo humanismo


renascentista do século XV, pela Reforma protestante do século XVI e pela
revolução científica do século XVII, agregadas ao desenvolvimento do
mercantilismo em contraposição à economia feudal e ao surgimento e
consolidação dos Estados nacionais, traz, pois, alguns elementos de inovação no
que diz respeito à relação homem-animal. Tal avanço, conforme se verá, é
marcado por fluxos e refluxos, denotando a dificuldade de sair das amarras do
pensamento clássico sobre o tema.

Nos séculos XV e XVI, o humanismo renascentista, também


chamado de Renascença ou Renascimento363, fiel à valorização dos clássicos, foi
buscar na herança greco-romana sua identidade cultural, tomando como lema a
célebre frase de PROTÁGORAS: “O homem é a medida de todas as coisas.” No
âmbito da filosofia, ARISTÓTELES, por ter sido notadamente venerado pelos
últimos séculos da escolástica, é deixado de lado para dar lugar ao revigoramento
das teorias platônicas364.

361
THOMAS, Keith, op.cit., p. 18.
362
HOLBACH apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 280.
363
GIORGIO VASARI foi o primeiro a empregar o termo rinascità para designar a retomada do
estilo clássico de GIOTTO, rompendo com a arte gótica.
364
Sob a influência de GEMISTO, é criada em Florença a Academia Platônica. Nela se reúnem
artistas e políticos do porte de LORENZO DE MÉDICI e MICHELANGELO BUONARROTI (1475-

- 117 -
O movimento traduziu uma ainda maior valorização da categoria
humana, trazendo, por conseqüência, pouca ou nenhuma mudança relativamente
à condição dos animais não-humanos. O “humanismo” renascentista era, afinal,
humanismo no sentido estrito do vocábulo e não humanitarismo. A passagem de
DANILO MARCONDES é perfeita para ilustrar a nova concepção de mundo:

É nesse contexto que o tema da (dignitas hominis) ‘dignidade do homem’


adquire um novo sentido, opondo-se ao tema medieval da miséria
hominis (“a miséria do homem”), o ser caído, descendente de Adão,
marcado pelo pecado original. Gianozzo Maneti foi autor (1452-53) de
um dos primeiros tratados sobre A dignidade e excelência do homem.
Nicolau de Cusa escreve em seu De conjecturis (1443): ‘O homem é um
Deus e não em um sentido absoluto, porque é homem, mas é um Deus
humano.’ E o humanista Giovanni Pico della Mirandola, provavelmente
influenciado por Nicolau de Cusa, foi autor de uma Oração sobre a
dignidade do homem (1486). Essas obras, de caráter ético, valorizam a
liberdade humana, vêem o homem como centro da Criação, e lhe
atribuem uma dignidade natural, inerente à sua própria natureza
enquanto ser humano. O homem é um microcosmo, que reproduz em si
a harmonia do cosmo.365

Há um regresso à natureza no sentido de que há o abandono da


concepção puramente teocêntrica pela antropocêntrica. Deus deixa de ser a
referência primeira para se pensar o universo. O homem, colocado no centro do
mundo, tende a valorizar de maneira superlativa as suas capacidades intelectuais
em contraste com a natureza limitada dos “animais inferiores”. Era lugar comum a
assertiva de que “nada no mundo pode ser encontrado mais digno de admiração
que o homem”366, afinal ele era “o centro da natureza, o meio do universo, o elo

1564), procurando restabelecer o ambiente artístico, filosófico e cultural que se idealizava a


respeito da antiguidade clássica. Outras célebres figuras fizeram parte deste período como
ERASMO DE ROTTERDAM (1466-1533, THOMAS MORUS (1478-1535), NICOLAU MAQUIAVEL
(1469-1527), MICHEL DE MONTAIGNE (1533-1595), LORENZO VALLA (1407-1457),
LEONARDO DA VINCI (1452-1519) e RAFAEL SANZIO (1483-1520), entre outros.
365
MARCONDES, op.cit., p. 142.
366
SINGER, op.cit., p. 225.

- 118 -
do mundo”367. Apesar de ser um marco do início do pensamento moderno, a
Renascença reproduz os modelos e paradigmas anteriores, no que se refere às
atitudes com os animais368.

Paralelamente, a Reforma, encabeçada por MARTINHO LUTERO


(1483-1546), tal qual visto anteriormente, também proporcionou um campo maior
para a defesa das liberdades individuais ao contestar a autoridade institucional da
igreja. A intermediação eclesiástica é desvalorizada para a compreensão da
mensagem divina. Essas posições serão generalizadas e refletirão um anseio por
autonomia política e liberdade de pensamento. A ética protestante, baseada
nesses princípios, permitirá uma livre iniciativa poderosa e a acumulação de
capital sem grandes questionamentos de natureza ética.

A revolução científica também representa significativa mudança de


paradigma, a começar pela substituição do modelo geocêntrico de PTOLOMEU
(90-168) pelo sistema heliocêntrico, tal qual proposto por NICOLAU COPÉRNICO
(1473-1543) em seu tratado Sobre a Revolução dos Orbes Celestes369. Tal
ruptura é bastante significativa na medida em que interfere na própria maneira
com que o homem via a si mesmo e o mundo. A Terra deixa de ser um astro
imóvel no centro do universo para ser apenas mais um planeta a girar em torno
do Sol, este sim, figura central.

Todavia, a adoção do Sol como centro, não logra superar a


concepção de universo fechado. Tal ruptura só vem em definitivo com a teoria do
espaço infinito oferecida por GIORDANO BRUNO (1548-1600). Tal noção
contrapõe-se frontalmente à arraigada tese ptolomaica de centralidade e

367
Ibid., p. 225.
368
Há, como sempre, algumas vozes dissidentes do pensamento predominante. LEONARDO DA
VINCI (1452-1519) foi duramente criticado por sua preocupação com o sofrimento animal, e
reputa-se que tenha se tornado vegetariano por tal motivo. MICHEL DE MONTAIGNE (1533-
1595), no ensaio “Da Crueldade” toca no tema postulando ser intrinsecamente imoral a crueldade
para com os animais. A seguinte passagem, colocada como citação inicial deste item, é bastante
esclarecedora a esse respeito: “Presunção é nossa doença natural e original ... É pela mesma
vaidade de imaginação que o homem se iguala a Deus, atribuindo-se qualidades divinas, e afasta-
se e separa-se da multidão de outras criaturas.” (MONTAIGNE apud SINGER, op.cit., p. 225).
369
Curioso notar que a idéia de COPÉRNICO era tão inovadora que houve quem propusesse
teorias intermediárias às propostas por ele, tal como a de TYCHO BRAHE (1546-1601) que
defendia um sistema ticônico, pelo qual a Terra permanece como centro do universo e o Sol gira
em torno da Terra e os planetas em torno dele.

- 119 -
excepcionalidade da Terra. O italiano supõe um universo irrestrito, com uma
multiplicidade de sistemas planetários semelhantes ao nosso e povoado de uma
infinidade de seres vivos370.

O pensamento bruniano ultrapassa o de COPÉRNICO no que se


refere à quebra do antropocentrismo pelo fato de que não retira somente a Terra
do centro do universo, mas todo o sistema solar e mesmo a humanidade, que, por
este motivo, deixam de ser únicos. Seu espírito inovador e arrojado não pôde ser
suportado pelo Santo Ofício que, em 1600, após oito anos de prisão, o entregou
para execução às autoridades seculares. Queimado vivo, diz-se que teve a língua
presa ao queixo para ser impedido, até o último instante, de “falar” e de
disseminar suas “perigosas” idéias.

Em 1609, JOHANNES KEPLER, em um contra-fluxo, defende a


idéia de um universo fechado regido por leis matemáticas. Como diria GALILEU
GALILEI (1564-1642), contemporâneo de KEPLER, é o início da concepção da
natureza como mecanismo, constituído por instrumentos que funcionam como
uma máquina, um verdadeiro e preciso relógio de um Deus geômetra. Cabe à
ciência descrever a natureza desses instrumentos que constituem a essência do
funcionamento do cosmos.371 Ante a hipótese de habitantes em outros planetas, a
preocupação antropocêntrica renasce de forma imediata372:

370
Para BRUNO, a possibilidade da existência de outras “humanidades” era evidente por si: “Há
um só espaço universal, uma única e vasta imensidão a que podemos livremente chamar o vazio,
neste estão inumeráveis globos semelhantes a este sobre o qual vivemos e crescemos; e
declaramos ser este espaço universal, visto que nem a razão, nem a conveniência, nem a
percepção sensível, nem a natureza lhe determina limites. Porque não há razão, nem privação dos
dons da natureza, nem potência ativa ou passiva que pudesse impedir a existência de outros
mundos através do espaço que, nos seus caracteres naturais, é idêntico ao mesmo espaço, ou
seja, está por toda parte preenchido de matéria, ou pelo menos de éter” (GIORDANO, Bruno. De´l
infinito universo e mondi, apud ARAÚJO, op.cit., p. 155).
371
“Copérnico, Kepler, Galileu – para além das diferenças, das afinidades e das divergências –
mantiveram uma sólida imagem de um universo como sistema unitário. Vêem no mundo a
expressão de uma ordem divina, a manifestação de princípios ou arquétipos matemático-
geométricos. Deste ponto de vista, sua astronomia ‘geométrica’ contrapõe-se nitidamente à que foi
chamada, não impropriamente, ‘astrobiologia’ de Bruno, de cujas perspectivas fundamentais
Galileu se mantém cuidadosamente afastado, não obstante o entusiasmo comum por Copérnico e
a recusa comum da interpretação hipoteticista das teses copernicanas” (ROSSI, op.cit., p. 221).
372
PAOLO ROSSI afirma que “a Terra então, para Kepler, ocupa um lugar que é único na
estrutura do sistema solar e na do Universo. Sobre a Terra vive a ‘criatura contemplativa’, criada à
imagem e semelhança de Deus, capaz de reconstruir racionalmente aquela perfeita arquitetura na
qual se exprime a grandeza de Deus, capaz de reconstruir aquelas ‘leis arquetípicas’ que, em
Deus, presidiram à criação do mundo. Em função desta criatura contemplativa foi criado o

- 120 -
Se existem no céu globos semelhantes à nossa terra, talvez tenhamos
que entrar em disputa com eles, para saber quem ocupa o melhor lugar
no mundo (meliorem mundi plagam)? Se de fato os globos daqueles
planetas são mais nobres, já não somos as mais nobres de todas as
criaturas racionais. Como todas as coisas podem ser então para o
homem? E como podemos nós sermos os senhores das obras de
Deus?373

Para MARCONDES, o humanismo renascentista havia colocado o


homem no centro de suas preocupações éticas, estéticas, políticas, enquanto que
a Reforma protestante valorizara o individualismo e o espírito crítico, bem como a
discussão de questões éticas e religiosas. A revolução científica, por sua vez:

pode ser considerada uma grande realização do espírito crítico humano,


com sua formulação de hipóteses ousadas e inovadoras e com sua
busca de alternativas para a explicação científica; porém, ao tirar a Terra
do centro do universo e ao trazer para o primeiro plano a ciência da
natureza, se afasta dos temas centrais do humanismo e da Reforma,
sofrendo em muitos casos a condenação tanto de protestantes quanto
de católicos. O homem deixa de ser o microcosmo que reflete em si a
grandeza e a harmonia do macrocosmo, as novas teorias dissociando
radicalmente a natureza do universo da natureza humana.374

Como se pode perceber, a alteração dos paradigmas clássicos é


lenta. Trata-se, evidentemente, de um longo movimento de transição que envolve
a superação da visão tradicional de que o mundo fora criado para o bem estar do
homem e de que todo o restante da criação deveria se subordinar às suas
necessidades.

Universo e em função do homem operaram as leis do Matemático Divino.O homem e a sua casa
permaneciam para Kepler no centro do drama cósmico da criação e da redenção” (ROSSI, op.cit.,
p. 237).
373
KEPLER apud ROSSI, op.cit., p. 235 (grifos nossos).
374
MARCONDES, op.cit., p. 153.

- 121 -
As resistências a esta mudança ainda eram muito fortes. Segundo
afirma KEITH THOMAS, “um leitor que se aproximasse, inocente, dos escritos
morais e teológicos dos séculos XVI e XVII poderia ser perdoado por inferir que o
principal propósito deles era definir a condição especial do homem e justificar seu
domínio sobre as outras criaturas.”375

Não obstante, na prática, o relacionamento com os animais


domésticos era mais estreito do que se imagina. Nos séculos XV e XVI era
comum a existência do que se convencionou chamar de “casa ampla” (long
house) que era habitada por homens e animais domésticos que conviviam
literalmente sob o mesmo teto.376 Mesmo nos tempos modernos, a presença dos
animais era marcante nas grandes cidades. Os esforços das autoridades para
impedir que os cidadãos soltassem seus porcos nas ruas ou ordenhassem suas
vacas em público eram ineficazes. Conta-se que em Londres, até o século XIX,
eram comum ver animais dormindo no interior das casas de seus donos.377

1.6.3. Responsabilidade Animal: A Roupagem Legalista dos


Julgamentos de Animais

“[...] em diversos lugares e tempos se encarou a possibilidade de um


contínuo jurídico que legitimasse os julgamentos de animais – seja no
sentido de os excluir da comunidade da espécie humana, sancionando-
os pela lesão de particulares interesses humanos, num puro gesto de
cruel arrogância especista, seja no sentido de os proteger através de
uma consideração niveladora dos seus interesses com os dos
humanos.”378

FERNANDO ARAÚJO

375
THOMAS, op.cit., p. 30.
376
A criação doméstica era aceita com normalidade. JOSEPH HALL, em 1590, descreve os
hábitos dos agricultores ingleses das Highlands: “At his bed´s feet feeden his stalled team;/His
swine beneath, his pullen o´er the beam./ A starved tenement, such as I guess/ Stands straggling
in the wastes of holderness.” (HALL apud THOMAS, op.cit., p. 113).
377
Em 1842, EDWIN CHADWICK relata que eram criadas aves em quartos de dormir, e que não
apenas cães, como também cavalos, bois e porcos viviam no interior das moradias urbanas.
(CHADWICK apud THOMAS, op.cit., p. 114).
378
ARAÚJO, op.cit., p. 77.

- 122 -
A proximidade com os homens fazia com que muitos destes animais
fossem, efetivamente, tratados como indivíduos e mesmo como moralmente
responsáveis pelos seus atos. O julgamento de animais homicidas se insere neste
contexto379.

Em 1522, uma petição foi endereçada à justiça francesa, contendo


reclamação formal contra os ratos que estavam causando sérios transtornos em
algumas localidades. As engrenagens da corte eclesiástica da diocese de Autun
foram ativadas e o então renomado BARTHOLOMÉ CHASSENÉE foi nomeado
advogado dos roedores. Na visão do ilustre causídico, os ratos deveriam ser
julgados com todas as formalidades e garantias exigíveis. Quando os seus
clientes não lograram aparecer na data marcada para a audiência, levantou-se a
questão de como se faria para citar os inúmeros roedores para responder às
acusações contra eles levantadas. A audiência foi adiada para possibilitar a sua
convocação em tempo hábil. Além disso, ordem judicial foi dada para que
soassem as trombetas dos púlpitos de todas as paróquia da região para que os
animais ouvissem o chamado. Apesar dos contínuos esforços, nenhum deles
apareceu. Após a quarta tentativa frustrada, os magistrados decretaram a sua
revelia e deram continuidade ao julgamento.380

O caso pode parecer risível em uma análise mais apressada, mas


revela uma realidade inexorável, qual seja a enorme quantidade de julgamentos e
conseqüente condenações de animais desde o final da Idade Média até o século
passado. As obras de EVANS (1831-1917) - The Criminal Prosecution and Capital
Punishment of Animals: The Lost History of Europe´s Animal Trials381 - e de

379
Alguns identificam a origem destes julgamentos no direito israelita, no célebre e já citado caso
do “boi que marra”. A própria legitimação de tal conduta parece realmente advir de prescrições
bíblicas que davam suporte a essas práticas (cf. Gn 9, 5; Gn 3, 14-15 e 2 Sm 1, 21). No âmbito da
Common Law, a regra da noxal deditio parece ter sido desenvolvida tomando-se por base tais
determinações. De acordo com ela, o proprietário de qualquer instrumento, animado ou
inanimado, que acidentalmente viesse a causar a morte de um ser humano, teria de pagar uma
quantia em dinheiro a título de compensação e ter seu “instrumento” declarado deodante (do latim
deodandum: que precisa ser entregue a Deus).
380
Este relato está contido na obra de EVANS, Edward Payson. The Criminal Prosecution and
Capital Punishment of Animals: The Lost History of Europe´s Animal Trials. Londres: Faber and
Faber Ltd., 1987. p. 31 (1ª edição em 1906).
381
EVANS compila um total de 191 julgamentos de animais. Por meio da análise das datas dos
referidos julgamentos, percebe-se uma maior incidência nos séculos XV, XVI e XVII. O primeiro
caso citado pelo autor data de 824, quando toupeiras foram processadas e excomungadas em

- 123 -
WALTER WOODBURN HYDE382 - The Prosecution and Punishment of Animals
383 384
and Lifeless Things in the Middle Ages and Modern Times - nos dão conta
de que toda sorte de criaturas foram solenemente julgadas por tribunais leigos ou
eclesiásticos em todos os cantos da Europa, incluindo cobras, moscas,
caramujos, lesmas, sanguessugas, lagartas, besouros, gafanhotos, cavalos,
galos, cães e gatos, entre outras tantas espécies. Tais obras nos trazem outros
exemplos bastante curiosos. Um deles advém de uma infestação de besouros na
cidade de St.Julien, em 1546. Inicialmente, os cidadãos fizeram uma série de
procissões, orando pelo arrependimento de seus pecados que, até então,
entendiam ser a razão da infestação dos pequeninos visitantes. Não logrando
êxito, o caso tornou-se uma célebre contenda judicial entre FRANÇOIS FAY,
advogado da comunidade, e PIERRE REMBAUD e ANTOINE FILLIOL,
advogados dos insetos. Todos estavam concordes quanto à hierarquia que
distinguia os seres humanos dos demais seres vivos, mas não sabiam como
utilizar o argumento para expulsar os réus. Em desespero, os cidadãos da
localidade concordaram em ceder parte de suas terras para a morada dos

Aosta. Todavia, este caso não tinha por objeto direto o julgamento dos aludidos animais. Por tal
motivo, elenca como primeiro caso a execução de um porco em Fontenay-aux-Roses. O último
caso pesquisado pelo autor refere-se ao julgamento de um cão em Nova Iorque em 1906. Frise-
se, entretanto, que este não é, em realidade, o último caso existente, haja visto ser o último por ele
elencado tão somente pelo fato de que a primeira edição de sua obra ser datada daquele ano.
Ainda em 1994, o Governador de New Jersey baniu de seu Estado um cão sob a acusação de que
tinha mordido alguém. Longe de declinarem, houve, em verdade, um aumento significativo destes
casos. A meu juízo, a permissão de matar outorgada pelo Estado aos centros de controle de
zoonoses constitui igual forma de condenação oficial. Mais grave e alarmante é que, em nossos
dias, ao invés de serem “executados” por supostos crimes cometidos contra seres humanos,
animais são mortos sumariamente de maneira silenciosa, praticamente invisível e sem qualquer
defesa, por “crimes” tais como “não terem dono” ou “vadiagem”.
382
Há também excelentes trabalhos de BERMAN, Paul Schiff. “An Anthropological Approach to
Modern Forfeiture Law. The Symbolic Function of Legal Actions Against Objects”, Yale Journal of
Law & the Humanities, n. 11, 1999; Id., “Rats, Pigs, and Statues on Trial: The Creation of Cultural
Narratives in the Prosecution of Animals and Inanimate Objects”, New York University Law Review,
n. 69, 1994; Id., “An Observation and a Strange but True ‘Tale’: What Might the Historical Trials of
Animals Tell us About the Transformative Potential of Law in American Culture?”, Hastings Law
Journal, n. 52, 2000.
383
HYDE, Walter Woodburn. “The Prosecution and Punishment of Animals and Lifeless Things in
the Middle Ages and Modern Times”, University of Pennsylvania Law Review, n. 64, 7, 1916, p.
696-730.
384
Na opinião de HYDE, a origem deste tipo de prática (julgamento de animais) teria origens ainda
mais remotas. Os persas consideravam os animais responsáveis por seus atos e os puniam,
conseqüentemente, por suas eventuais “faltas”. Menciona que em Atenas havia uma corte
especial para o julgamento de animais e objetos inanimados – o Prytaneum. Era possível mover
uma ação contra os implementos que dessem origem a danos ao homem sem que se soubesse
efetivamente quem os teria manipulado.

- 124 -
insetos, desde que estes lá permanecessem. O acordo, por motivos óbvios, não
prosseguiu, pois houve discussão a respeito da qualidade das terras oferecidas.
Nunca saberemos o resultado final, pois a última página do julgamento parece ter
sido devorada, muito provavelmente pelos próprios réus.

Os lobos que, já na época, diminuíam consideravelmente de


número, também eram usualmente acusados e enforcados em praça pública pelo
suposto cometimento de homicídios. O próprio SHAKESPEARE, no Mercador de
Veneza, deixa clara a ocorrência da punição nos seguintes versos: “Thy curish
spirit / Governed a wolf who, hanged for human slaughter, / Even from the gallows
did his fell soul fleet”.385 A morte de um ser humano por uma “besta” invertia a
ordem natural e quebrava os mandamentos divinos.386

STEVEN WISE, além destes casos, nos traz outros tantos. Segundo
o jurista, em 1266, um porco foi queimado vivo em Fontaneaux-aux-Roses,
localidade próxima a Paris, por ter supostamente comido uma criança. Outros
casos similares são por ele relatados:

Em 1386, um suíno foi sentenciado à morte, mutilado e enforcado na


cidade de Norman por ter matado um menino. Em 1394, outro porco foi
condenado e enforcado publicamente por ter matado um bebê em
Roumaygne. Em 1403, várias porcas foram executadas por terem
comido crianças em Mantes e Meullant. Em 1474, um porco, enforcado
em Lausanne por ter assassinado um homem, foi deixado dependurado
no poste como aviso aos outros porcos. Em 1499, um outro suíno foi
enforcado perto de Chartres por ter supostamente matado uma criança.
Todavia, não eram somente os porcos que eram sentenciados e
executados. Em 1314, um touro que matou um homem foi enforcado em
Moisy, na França. Cães foram executados por matar um noviço
franciscano. Ecoando o antigo caso do boi marrão, uma vaca foi morta,

385
SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. New York: Signet Classics, 2004 (act 4,
scene 1, II).
386
EVANS traz um relato ocorrido no Brasil. Segundo o autor, em 1713, no Maranhão, houve caso
de um julgamento de formigas que estavam destruindo os alicerces de um convento franciscano
(EVANS, op.cit., p. 123-4).

- 125 -
cortada, despelada e enterrada por ter matado uma mulher perto de
Leipzig 387.

A fundamentação ontológica para esses julgamentos encontrava-se


na crença de que o universo era organizado cosmologicamente sob a égide de
uma rígida hierarquia de seres vivos. Apesar de a maior parte dos juristas não
acreditar que os animais poderiam, assim como os homens, formar o necessário
e imprescindível elemento volitivo caracterizador da conduta ilícita, sustentavam,
entretanto, que, baseado nas leis bíblicas derivadas do caso do “boi que marra”, a
ausência de dolo não poderia servir de escusa para isentá-los de eventual
responsabilização pelo dano ocorrido (há uma espécie de aplicação tácita da lex
talionis). Os animais não eram punidos porque moralmente culpados, mas sim
porque, na qualidade de seres inferiores, ao matarem ou lesarem uma criatura
dita superior, ameaçavam a “ordem natural” imposta por Deus. Como bem
observa NEWMAN388, os julgamentos de animais eram apenas uma faceta de
uma ampla rede de controle social construída pelas autoridades religiosas na
tentativa de dominar e estabilizar as relações entre a sociedade e o mundo
natural. Os animais representavam um desafio não menos relevante que o
oferecido por outros grupos marginais, como mulheres, hereges e ateus. O elo
entre essa prática e a religião é, pois, intenso e importante demais para não ser
notado. A proximidade conceitual entre os julgamentos por “bestialidade” e
“bruxaria” é enorme e, muitas vezes, se interpenetram pelo rompimento das “leis
naturais”.

387
WISE, op.cit., p. 37, tradução nossa.
388
NEWMAN, Graeme. The Punishment Response. Philadelphia: J. B. Lippincott, 1978. p. 89-94.

- 126 -
1.6.4. A “Navalha de Occam” e o Mecanicismo

“Tão ridículo como negar-se uma verdade evidente é empregar-se muito


esforço a defendê-la; e nenhuma verdade se afigura mais evidente do
que a de que os animais não são tão dotados de pensamento e de razão
como os homens. Os argumentos neste sentido são tão óbvios que nem
mesmo os mais estúpidos e ignorantes deixam de compreendê-los.”389

DAVID HUME

“Na Holanda discute-se agora, em alto e bom som, se os animais são


máquinas. As pessoas até se divertem a ridicularizar os cartesianos, por
estes conceberem que um cão que é agredido emite um som que é
similar ao de uma gaita de foles quando é comprimido.”390

GOTTFRIED LEIBNIZ

O antropocentrismo teleológico continuava forte com a idéia central


de que o plano divino tinha no homem seu único protagonista. JEREMIAH
BURROUGHES escreveu em 1657 que “Ele fez os outros para o homem e o
homem para si próprio”. RICHARD BENTLEY, em 1692 corrobora a passagem de
BURROUGHES ao afirmar que “Todas as coisas foram criadas principalmente
para o benefício e prazer do homem”. THOMAS WILCOX bem sintetizou a
questão ao declarar que “O único propósito dos animais é prestar serviço ao
homem, para cujo benefício foram feitas todas as criaturas que existem”. A partir
desta arcaica visão de que tudo fora feito para o bem estar humano, surgiam
justificativas legitimadoras as mais absurdas possíveis. O clérigo PHILIP
DODRIDGE, já no século XVIII concluiu que o instinto que trazia os peixes em
cardumes até o litoral “parece uma sugestão de que eles se destinam ao uso
humano”. As explanações mais esdrúxulas continuavam a ser feitas. Em 1705, o
médico GEORGE CHEYNE asseverou que o Criador fez o excremento dos
cavalos terem odor suportável porque sabia de antemão que os homens estariam

389
HUME apud LOVEJOY, op.cit., p. 247.
390
LEIBNIZ apud ARAÚJO, op.cit., p. 83.

- 127 -
sempre em sua companhia. Até mesmo o piolho, no entender de WILLIAM
KIRBY, tinha a sua função como incentivador dos hábitos de higiene. A visão
predominante, ainda era a de que a natureza fora criada com o tão só propósito
de servir ao homem. O naturalista WILLIAM SWAINSON sintetiza esse
pensamento na seguinte frase: “[...] Deus criou o boi e o cavalo para labutar a
nosso serviço, o cão para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir
perfeita satisfação em um estado de parcial confinamento.”391

A religião ocidental continuava, pois, atrelada ao fornecimento dos


alicerces morais para a justificação do domínio humano. THOMAS FULLER bem
observa tal fato ao mencionar, em 1642, que o alvará dado ao homem para
dominar as criaturas servia de justificativa para toda a sorte de práticas cruéis
como o açulamento de ursos e rinhas de brigas de galo e de cães: “O cristianismo
nos fornece a insígnia que permite usar esses esportes.”392 O historiador
americano LYNN WHITE, por sua vez, afirma ser o cristianismo “a religião mais
antropocêntrica que o mundo já viu.”393

A ciência também passou a chancelar todo o tipo de prática abusiva


com relação aos já marginalizados animais. O império da espécie humana
traduzia-se também sob a forma de controle científico do homem sobre a
natureza. Neste sentido, para o empirista394 BACON (1561-1626), a finalidade
última da ciência era devolver ao homem o domínio sobre a criação que ele
perdera com o pecado original: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e
entende quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente,
sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais.”395 Reflexo disto é o
próprio sistema classificatório de animais e vegetais que, em última análise,
levava em consideração sempre a utilidades destes para com o homem. Além dos

391
Todas as referências deste parágrafo foram retiradas da obra de THOMAS, op.cit., p. 24-5.
392
FULLER apud THOMAS, op.cit., p. 27.
393
WHITE apud THOMAS, op.cit., p. 28.
394
O empirismo, ao lado do racionalismo, constituia uma das principais correntes de pensamento
do século XVI. A experiência (método experimental) é guia e critério de validade de toda e
qualquer afirmação no campo da teoria do conhecimento e da filosofia. “Nada está no intelecto
que não tenha passado pelos sentidos.” Os principais empiristas, além de BACON, foram:
THOMAS HOBBES (1588-1679), JOHN LOCKE (1632-1704), GEORGE BERKELEY (1685-1753)
e DAVID HUME (1711-1776).
395
BACON apud MARCONDES, op.cit., p. 179.

- 128 -
parâmetros relativos à estrutura anatômica, habitat e modo de reprodução, os
primeiros zoólogos modernos levavam também em consideração fatores como o
valor alimentício e medicinal dos animais. O naturalista francês GEORGES
BUFFON (1707-1788) defendia abertamente que a ordem “natural” de
classificação zoológica deveria obedecer ao grau de relacionamento destes para
com o homem, corroborando a linha adotada por seus principais predecessores,
tais como KONRAD GESNER (1516-1565) e ULISSES ALDROVANDI (1522-
1605), que dedicaram grande parte de suas obras ao estudo de animais que, no
seu entender, possuiriam maior utilidade para a humanidade, tais como cavalos,
bois e cães. Essa abordagem é difundida por LINEU, fundador da taxonomia
moderna com sua nomenclatura binominal. No século XVIII, o zoólogo
classificaria os cães em cães fiéis (Canis familiaris), subdivididos em cães
pastores (Canis domesticus) e cães de cozinha (Canis vertegus).

No mesmo período, procurava-se legitimar a domesticação pelo fato


de que seria benéfica aos animais. O gado ficava melhor aos cuidados do homem
do que se ficasse à mercê dos predadores. O seu abate, de acordo com
THOMAS ROBINSON, tratava-se de uma gentileza, em vez de crueldade, já que
o seu fim era rápido e se lhes poupava os sofrimentos da idade396. O “animal mais
nobre”, o ser humano, era diferente dos seres brutos e, portanto, era melhor que
permanecessem sob seu domínio.

A convicção da singularidade humana era marcante. Segundo


destaca THOMAS:

[...] o homem foi descrito como animal político (Aristóteles); animal que ri
(Thomas Willis), animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin);
animal religioso (Edmund Burke); e um animal que cozinha (James
Boswell antecipando Lévi-Strauss). Como observa o Sr. Cranium do
romancista Peacock, o homem já foi definido como bípede implume,
como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um
bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem
uma polaridade entre as categorias ‘homem’ e ‘animal’ e que
invariavelmente encaram o animal como inferior. Na prática, obviamente,

396
ROBINSON apud THOMAS, op.cit., p. 25-6.

- 129 -
o objetivo de tais definições nunca esteve tanto em distinguir os homens
dos animais quanto em propor algum tipo de comportamento humano,
como quando Martinho Lutero e o papa Leão XII afirmaram, um em
1530, e outro em 1891, que a propriedade privada constituía a diferença
essencial entre os homens e animais. [...] o esteta Uvedale Price
chamava especial atenção para o nariz. ‘Creio que o homem é o único
animal que possui uma saliência pronunciada no meio da face. Alguns
viam os animais como totalmente irracionais. Robert Lovell, em 1661,
dividia o conjunto da criação animal em duas categorias, ‘racionais’ e
‘irracionais’, situando só o homem na primeira. Gervase Markham
registrou a ‘opinião convicta’ de ‘inúmero veterinários’, para quem os
cavalos não tinham cérebro de espécie alguma; ele próprio abrira os
crânios de vários desses animais, nada encontrando em seu interior.397

Como se percebe, embora a atribuição de sensitividade e percepção


aos animais, bem como de graus diferenciados de racionalidade já façam parte do
senso comum, nem sempre assim se pensou.

O médico espanhol GOMEZ PEREIRA (c.1500-1558), em 1534,


antecipando DESCARTES, conduziu a ampliação das diferenças a níveis nunca
antes vistos com a publicação da obra Antoniana Margarita. Nela trata da teoria
do “automatismo das bestas”, pela qual os animais não teriam “alma racional” e,
tampouco, “alma sensitiva”. Seriam meros autômatos ou meras máquinas, tal qual
um relógio, capazes de comportamento complexos, mas absolutamente
impossibilitados de falar, raciocinar, ou até mesmo de sentir (brutus sensa
carere). Tal construção seria o embrião do materialismo de LA METTRIE e de
outros pensadores do século XVIII.

GOMEZ PEREIRA, a partir destas constatações, conclui que é


impossível a admissão do dualismo entre a alma sensível e a alma racional, pois
esta destruiria a distinção essencial entre o homem e os animais. O autor advertiu
que “quem concedia aos brutos as faculdades de ver, ouvir, sentir e desejar,
deveriam conceder-lhes também o entendimento e a vontade, a bem dizer, a
‘alma racional”. Para evitar esta conseqüência, argumenta que as ‘semelhanças’
entre homens e animais como meras aparências: os brutos não vêem, não
397
Apud, THOMAS, Keith, op.cit., p. 37-38.

- 130 -
ouvem, não sentem, ou seja, são máquinas. Somente o homem, que é espírito,
pode ver, ouvir, sentir. Os animais possuem olhos e ouvidos e nem por isso
enxergam e ouvem. GALENO (a quem, em outros aspectos, GOMEZ PEREIRA
havia criticado) já havia dito: “Não é o olho que vê, e sim a alma por meio do olho.
Não obstante, o espírito não consiste unicamente em ver, ouvir e sentir [...] O
espírito se mantém também na consideração de sua própria substância, com
independência do corpo; pode manter-se tendo consciência de si mesmo
mediante o exercício do pensamento”. Quiquid noscit est, ergo sum, afirmou
GOMEZ PEREIRA, Cogito; ergo sum, dirá DESCARTES.”398

Quando se imaginava que o status moral dos animais fosse tão


baixo que só pudesse tender a melhorar, surgem as formulações cartesianas, que
representam um verdadeiro nadir ideológico em relação à sua condição.

Ciente ou não das formulações de GOMEZ PEREIRA, o fato é que


RENÉ DESCARTES (1596-1650) dá continuidade e amplia a teoria mecanicista.
Seu projeto filosófico parte em defesa da nova concepção científica inaugurada
por COPÉRNICO, KEPLER e GALILEU. Cristão fervoroso, DESCARTES combina
a mecânica e a matemática para sustentar que tudo aquilo que é composto de
matéria, é governado por princípios puramente mecanicistas. Neste sentido, os
seres humanos seriam “máquinas”, pois eram constituídos de matéria tal qual um
relógio ou uma bomba hidráulica. No entanto, DESCARTES, evitando introduzir o
ridículo e herético conceito de que seres humanos seriam também “máquinas”,
apropriou-se da idéia religiosa de alma para diferenciá-los das demais criaturas.
Identificando e embaralhando o conceito de “alma” (criada por Deus) com o de
“consciência”, o filósofo argumentava que se a consciência era imaterial e se
somente os seres humanos eram possuidores de uma “alma imortal”, decorre que
não poderiam ser tidos como autômatos. Desta maneira, na filosofia cartesiana, a
doutrina cristã de que os animais não possuiriam alma tem também o condão de
negar-lhes, como em um passe de mágica, também a consciência. Não tendo
consciência/alma, seriam matéria em estado bruto, inanimados no sentido puro do

398
PEREIRA, GOMEZ. Trechos disponíveis em: <http://www.filosofia.org/perreira.htm>. Acesso
em 02 jun. 2005.

- 131 -
vocábulo, seres sujeitos às leis mecânicas tal como qualquer outro objeto. Não
sentiriam dor, prazer, absolutamente nada.

Em sua clássica obra Discurso do Método, erige o método como um


caminho que objetiva a garantir o sucesso do conhecimento399, conhecimento
este baseado na racionalidade, característica natural do homem, e somente dele.
O argumento do cogito, “Penso, logo existo”, está intimamente relacionado à
tomada da razão como ponto de partida para o conhecimento.

Nesta mesma obra, ao tratar sobre a constituição dos nervos dos


músculos do corpo humano, DESCARTES discorre sobre a teoria da automação
dos animais nos seguintes termos:

[...] O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo
quantos autômatos diferentes, ou máquinas que se movem, o engenho
dos homens pode fazer só empregando muito poucas peças, em
comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos,
artérias, veias, e todas as demais partes que há no corpo de cada
animal, considerarão esse corpo como uma máquina que, feita pelas
mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si
movimentos mais admiráveis que qualquer uma das que podem ser
inventadas pelos homens.

E detiveram-me particularmente neste ponto mostrando que, se


houvesse máquinas assim que tivesse os órgãos e o aspecto de um
macaco ou de qualquer outro animal sem razão, não teríamos
nenhum meio de reconhecer que elas não seriam, em tudo, da
mesma natureza desses animais; ao passo que, se houvesse algumas
que se assemelhassem a nossos corpos e imitassem as nossas ações
tanto quanto moralmente é possível, teríamos sempre dois meios muito
certos para reconhecer que, mesmo assim, não seriam homens
verdadeiros. O primeiro é que nunca poderiam servir-se de palavras nem

399
As quatro regras, ou preceitos, fundamentais do método seriam: (a) “jamais aceitar uma coisa
como verdadeira que eu não soubesse ser evidentemente como tal [...]”; (b) “dividir cada uma das
dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias para
melhor resolvê-las”; (c) “conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos objetos mais
simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por graus, até
o conhecimento dos mais complexos [...]”; (d) “fazer em toda parte enumerações tão completas e
revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido” (DESCARTES, René. Discurso
do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 23).

- 132 -
de outros sinais, combinando-os como fazemos para declarar aos outros
nossos pensamentos. Pois pode-se conceber que uma máquina seja
feita de tal modo que profira palavras, e até profira algumas a propósito
das ações corporais que causem alguma mudança em seus órgãos,
como por exemplo ela perguntar o que lhe queremos dizer se lhe
tocarmos em algum lugar, se em outro, gritar que a machucamos, e
outras coisas semelhantes, mas não é possível conceber que as
combine de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto
dissermos em sua presença, como os homens mais embrutecidos
podem fazer. E o segundo é que, embora fizessem várias coisas tão
bem ou talvez melhor do que algum de nós, estas máquinas falhariam
necessariamente em outras, pelas quais se descobriria que não agiam
por conhecimento, mas somente pela disposição de seus órgãos. Pois,
enquanto a razão é um instrumento universal, que pode servir em todas
as circunstâncias, esses órgãos necessitam de alguma disposição
particular para cada ação particular; daí ser moralmente impossível que
haja numa máquina a diversidade suficiente de órgãos para fazê-la agir
em todas as ocorrências da vida da mesma maneira que nossa razão
nos faz agir.

Ora, por estes dois meios também se pode conhecer a diferença


que há entre os homens e os animais. Pois é uma coisa fácil de se
notar que não há homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem
excetuar nem mesmo os dementes, que não sejam capazes de
combinar diversas palavras e de com elas compor um discurso no
qual possam expressar seus pensamentos; e que, pelo contrário,
não outro animal, por mais perfeito e bem nascido que seja que faça
o mesmo. Isto não acontece por lhe faltarem órgãos, pois as pegas
e os papagaios podem proferir palavras como nós; entretanto não
podem falar como nós, isto é, atestando que pensam o que dizem;
ao passo que os homens surdos e mudos de nascença e privados
dos órgãos que servem aos outros para falar, tanto ou mais que os
animais, costumam eles mesmos inventar alguns sinais pelos quais
se fazem entender por quem, convivendo habitualmente com eles,
tem ensejo de aprender sua língua. E isto não prova somente que
os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm
absolutamente nenhuma.400.

400
DESCARTES, op.cit., p. 62-4 (grifos nossos).

- 133 -
Muito embora a questão central para DESCARTES seja a ausência
de razão401 dos ditos “seres brutos”, seus seguidores usualmente utilizavam sua
doutrina para também negar aos animais as capacidades sensitivas mais básicas,
tal como a dor. Assim, para ANTHONY LE GRAND, “o gemido de um cão que
apanha não constitui prova do sofrimento animal, assim como o som de um órgão
não atesta que o instrumento sente dor quando tocado.”402 Nada mais natural
para a doutrina do cogito (“penso, logo existo”), afinal, como a própria
nomenclatura sugere, os animais não eram sujeitos cognitivos, desprovidos que
seriam de razão. Sem ela, conseqüentemente, não pensariam e sem o
pensamento não possuiriam existência como indivíduos. A inexistência como
indivíduos, por sua vez, os tornaria objetos, coisas suscetíveis de apropriação e
uso irrestritos.

O cartesianismo, a esse respeito, foi bastante assimilado e aceito


pelas instituições religiosas da época, dado que a concessão às “bestas” de
quaisquer capacidades de percepção abria caminho para a igual concessão de
uma alma imortal, o que era, por evidente, uma afronta à ordem natural das

401
DESCARTES também discorre sobre questões metafísicas em relação aos animais: “Pois vê-
se que basta muito pouca razão para saber falar; e visto que se observa desigualdade tanto entre
os animais de uma mesma espécie quanto entre homens, e que uns são mais fáceis de adestrar
que os outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, mesmo um dos mais perfeitos de sua
espécie, se iguale nisso a uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, a uma criança de
cérebro perturbado, se a alma deles não fosse de uma natureza completamente diferente da
natureza da nossa. E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que
expressam as paixões e podem ser imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem
pensar, como alguns autores antigos, que os animais falam, embora não entendamos a sua
linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos correspondentes aos nossos,
poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes. É também notório que,
embora haja muitos animais que demonstram mais engenhosidade do que nós em algumas das
suas ações vê-se, contudo, que os mesmos não demonstram nenhuma em muitas outras; de
modo que o que fazem melhor que nós não prova que tenham espírito; pois, desta forma, tê-lo iam
mais do que qualquer um de nós, e agiriam com mais acerto em todas as outras coisas; mas, pelo
contrário, prova que não o têm, é que a natureza que neles opera de acordo com a disposição de
seus órgãos, assim como se vê que um relógio, composto apenas de rodas e de molas, pode
contar as horas e medir o tempo com muito mais exatidão que nós, com toda nossa prudência. [...]
Aliás, neste ponto prolonguei-me um pouco sobre o tema da alma, por ser ele dos mais
importantes, pois, depois do erro dos que negam Deus, o qual penso já ter suficientemente
refutado, não há outro que afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que
imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza da nossa, e que, por
conseqüência, nada temos a temer nem a esperar depois desta vida, como ocorre com as
formigas; quando se sabe o quanto elas diferem, compreende-se muito melhor as razões
que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e que, por
conseguinte, não está sujeita a morrer com ele [...]” (Ibid., p. 65. Grifos nossos).
402
LE GRAND, Anthony. An Entire Body of Philosophy According to the Principles of the Famous
Renate Des Cartes, 1694, II, p. 252, apud THOMAS, op.cit., p. 40.

- 134 -
coisas. A negativa de alma aos animais conjugada com a elevação do homem
acima da categoria dos autômatos seduziu a muitos, pois, segundo LEIBNIZ,
“parecia necessário ou atribuir almas imortais às bestas ou admitir que a alma do
homem podia ser mortal.”403 Além disso, eliminava-se o dilema teológico do
motivo pelo qual um Deus justo permitiria o sofrimento de criaturas que não
herdaram o pecado original. Elas simplesmente não sofriam. Conforme ressalta
MALEBRANCHE, a negação cartesiana da capacidade de dor e de sofrimento
dos não-humanos é justificada ideologicamente como necessária para não se por
em crise a noção da “justiça divina”, pois atribuir aos animais tal capacidade
significaria a experimentação de um “injusto castigo de inocentes”404.

THOMAS alude a este fato quando afirma que o cartesianismo, ao


mesmo tempo em que absolvia a Deus da acusação de causar injusta dor às
bestas inocentes, ao permitir que os homens as maltratassem; também justificava
o predomínio do homem, ao libertá-lo de “qualquer suspeita de crime, por mais
freqüentemente que pudessem comer ou matar os animais.” Segundo o
historiador:

Ao negar a imortalidade dos bichos, ele afastava qualquer dúvida


remanescente quanto ao direito do homem a explorar a criação bruta.
Pois, como os cartesianos observavam, se os animais realmente
tivessem um elemento imortal, as liberdades que os homens tomavam
como eles seriam injustificáveis; e admitir que os animais tivessem
sensações era fazer do comportamento humano algo intoleravelmente
cruel. A sugestão de que um animal pudesse sentir ou possuir uma alma
imortal, comentava Locke, tinha preocupado alguns homens a tal ponto
que eles ‘preferiram concluir que todos os bichos eram máquinas
perfeitas, a conceder que suas almas fossem imortais.’ O propósito
explícito de Descartes fora fazer dos homens ‘senhores e possuidores da
natureza’. Adequava-se bem à sua intenção que ele descrevesse as
outras espécies como inertes e desprovidas de toda dimensão espiritual.
Ao fazê-lo, instaurou um corte absoluto entre o homem e o restante da

403
LEIBNIZ apud THOMAS, op.cit. p. 41.
404
MALEBRANCHE, Nicholas. De la Recherche de la Verité. In Oeuvres, Paris: Galimard/Plêiade,
1979. p. 467.

- 135 -
natureza, limpando dessa forma o terreno para o exercício ilimitado da
dominação humana405.

Como bem acrescenta SINGER, a doutrina cartesiana tinha ainda


outro resultado bastante infeliz. Nesta época a prática da experimentação em
animais vivos tornou-se amplamente difundida em toda a Europa. Segundo relata
o autor:

Como então não havia anestésicos, esses experimentos devem ter feito
os animais se comportar de tal forma que indicaria, para a maioria de
nós, estarem sofrendo dor intensa. A teoria de Descartes permitia aos
experimentadores que desconsiderassem quaisquer escrúpulos que
pudessem ter nessas circunstâncias. O próprio Descartes dissecou
animais vivos com o objetivo de aumentar seus conhecimentos de
anatomia, tendo muitos dos fisiologistas renomados da época se
declarado cartesianos e mecanicistas. O seguinte testemunho de um
desses experimentadores, que trabalhava no seminário jansenista de
Port-Royal, no final do século XVII, deixa clara a conveniência da teoria
de Descartes: ‘Batiam nos cães com perfeita indiferença e zombavam
dos que sentiam pena das criaturas como se elas sentissem dor. Diziam
que os animais eram relógios; que os gritos que emitiam quando
golpeados não passavam do ruído provocado por alguma molinha que
haviam acionado, mas, que o corpo, como um todo, não tinha
sensibilidade. Pregavam as quatro patas dos pobres animais em tábuas
para praticar a vivisseção e observar a circulação do sangue, tema que
era motivo de muitas discussões’ 406.

DESCARTES chega ao auge da dissimulação e ironia quando


responde às críticas afirmando que: “Minha opinião não é tão cruel para os
animais como condescendente com os homens – pelo menos com aqueles que

405
THOMAS, op.cit., p. 41.
406
Apud SINGER, op.cit., p. 227-28.

- 136 -
não são dados às superstições de Pitágoras – uma vez que os absolve da
suspeita de crime quando comem ou matam animais.”407

O princípio da “navalha de Occam” (princípio da parcimônia), assim


chamado em homenagem ao monge medieval GUILHERME DE OCCAM, é a
formulação segundo a qual quando duas teorias concorrentes podem ser ambas
adequadas para explicar um dado fenômeno, deve-se preferir a mais simples.
Parece que, no que se refere ao comportamento animal, a alternativa mecanicista
obedeceria melhor a tal princípio na medida em que consiste em uma explicação
mais simples e com menos premissas do que a “não-mecanicista”. Todavia, a
“navalha” é um método de trabalho e como tal não pode ser mantida no caso de a
explicação mais simples ser demonstravelmente falsa.

JULIEN OFFAY DE LA METTRIE sugere um meio simples de


desafiar a teoria cartesiana: a alternativa mecanicista prova mais que o realizado
por DESCARTES. Se não devemos ver os animais como conscientes porque
podemos explicar seu comportamento mecanicamente, por que não poderíamos
fazer o mesmo com relação aos seres humanos? Certamente ela também será,
de acordo com o princípio da parcimônia, mais simples para explicar nossa
conduta408.

Uma outra objeção que pode ser levantada diz respeito ao “teste de
linguagem”. DESCARTES afirmou que : “[...] Isto me parece um argumento
extremamente forte para provar que a razão pela qual os animais não falam como
nós não é porque sejam desprovidos de órgãos apropriados para tal, mas porque
não têm pensamentos.”409 De acordo com tal interpretação, indivíduos que são
capazes de expressar seus pensamentos por meio da linguagem passam no teste
e seriam, pois, conscientes. Muito embora o exame das questões relacionadas à
natureza da linguagem sejam altamente complexas e fujam ao propósito central

407
DESCARTES apud SINGER, op.cit., p. 227.
408
DESCARTES parece ficar em sérios apuros com tal sorte de contestação. Em uma carta ao
Marquês de Newcastle, escreve que se os animais fossem conscientes como nós teriam também
uma alma imortal. O que ele quer dizer é que os animais não devem ser vistos como conscientes
porque somente nós seríamos “imortais”, eles não. A confusão é total. Conforme assinala REGAN,
“a atribuição de consciência a qualquer indivíduo não implica que tenha ou não uma alma imortal.”
(REGAN, The Case For Animal Rights. Berkeley: University of Califórnia Press, 1989. p. 10).
409
DESCARTES apud REGAN, op.cit., p. 11, tradução nossa.

- 137 -
do presente trabalho, pode-se afirmar, sem qualquer hesitação, que ao menos os
grandes primatas são capazes de manejar o arcabouço lingüístico próprio dos
humanos. Inúmeros experimentos demonstraram que gorilas e chimpanzés
conseguem dominar razoavelmente a linguagem de sinais destinadas aos mudos.
A esse respeito podemos citar o trabalho de ROGER FOUTS, doutor em
psicologia comportamental, que deu origem ao lindíssimo livro O Parente Mais
Próximo410, e HERBERT S. TERRACE, professor de psicologia da Universidade
de Columbia, que durante quatro anos ensinou, com êxito, a linguagem de sinais
a NIM CHIMPSKY, um chimpanzé.411 A par de tal possibilidade, inegável é que a
etologia demonstrou que os primatas, assim como de resto a grande parte dos
animais, possui meios de comunicação (vocalizados ou não) naturais próprios.
Neste sentido, em uma interpretação mais larga acerca do que venha a consistir a
linguagem, podemos certamente afirmar que não é ela um atributo
exclusivamente humano. Por este só motivo, a construção cartesiana cairia por
terra. No entanto, mais do indagar se outros animais possuem tal capacidade,
devemos perquirir sobre a própria adequação do referido “teste de linguagem”.

Se toda consciência dependesse no uso atual de linguagem por


parte de um indivíduo, seríamos obrigados a excluir do rol dos seres conscientes
as crianças em tenra idade e deficientes mentais que não possuam tal
habilidade.412 Conforme analisa REGAN, o uso da linguagem requer, sem sombra
de dúvida, a “recepção consciente” por parte de um aprendiz. A menos que
assumamos que, antes de conseguir dominar a linguagem, a criança seja de certa
maneira consciente, seríamos incapazes de explicar como efetivamente pode

410
FOUTS, Roger. O Parente Mais Próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem
somos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
411
SAMUEL PEPYS, em 1661, já afirmava que: “É um grande babuíno, mas tão parecido com um
homem em tantas coisas que [...] acredito realmente que ele já compreende bastante inglês; e sou
da opinião de que ele pode ser ensinado a falar ou fazer sinais” (FOUTS, op.cit., p. 39). O próprio
LA METTRIE, em 1774, também já assinalava que: “Seria impossível ensinar uma linguagem a um
primata? Não acho [...] Eu escolheria o que tivesse a fisionomia mais inteligente e o colocaria na
escola daquele excelente professor (Amman) que acabo de mencionar. Vocês conhecem, pelo
trabalho de Amman, todas as maravilhas que ele foi capaz de realizar para aqueles que são
surdos de nascença [...] mas os primatas vêem e ouvem, compreendem o que vêem e ouvem, e
aprendem perfeitamente os sinais que lhe são feitos. Não duvido que eles iriam ultrapassar os
pupilos de Amman em qualquer outro jogo ou exercício” (FOUTS, op.cit., p. 39). ROBERT
YERKES, em 1925 já endossava, em seu livro Almost Human, a teoria da possibilidade do ensino
da linguagem de sinais aos primatas.
412
Tal argumentação denomina-se “casos marginais” e será melhor desenvolvida posteriormente.

- 138 -
aprendê-la. O argumento da potencialidade de aprendizado igualmente não é
convincente, pois mesmo que a referida criança seja potencialmente uma futura
usuária dos mecanismos de linguagem, e mesmo que admitamos que para ser
um usuário atual o indivíduo precisa ser consciente, não decorrem de tais
afirmações o fato de que a criança é atualmente consciente porque possui o
potencial de aprender a linguagem. Pelo exposto, não me parece razoável
conceder razão a DESCARTES no que se refere ao aludido “teste de linguagem”
como requisito da consciência.

As teorias evolucionistas, conforme se verá, darão suporte científico


à constatação de que a consciência tem um valor evolutivo intrínseco (“survival
value of consciousness”), ou seja, se admitimos que os seres vivos evoluem a
partir de formas mais simples de vida (incluído aqui o ser humano), e se a
consciência é certamente um instrumento adaptativo e de interação com o meio
ambiente que incrementa as chances de sobrevivência de uma determinada
criatura, não há razão para que esperemos que esteja presente somente no ser
humano e em nenhuma outra espécie413.

Recentemente algumas novas interpretações surgiram no sentido de


que DESCARTES não teria negado toda sorte de consciência aos animais. O
filósofo inglês JOHN COTTINGHAM414 sugere que algumas passagens
demonstram que ele admitia que os não-humanos fossem conscientes de
determinadas coisas tais como fome ou medo, negando que possuíssem
pensamentos sobre estes estados de consciência415. Seja como for, parece-me

413
“It thus becomes almost a truism, once one reflects upon the question, that conscious
awareness could have got adaptative value, in the sense that this term is used by evolutionary
biologists. The better the animal understands its physical, biological, and social environment, the
better it can adjust its behavior to accomplish whatever goals may be important in its life, including
those that contribute to its evolutionary fitness. The basic assumption of contemporary behavioral
ecology and sociobiology […] is that behavior is acted upon by natural selection. […] From this
plausible assumption it follows that - insofar as any mental experiences animals have are
significantly interrelated with their behavior – they, too, must feel the impact of natural selection. To
the extent that they convey an adapatative advantage on animals, they will be reinforced by natural
selection” (DONALD GRIFFIN apud REGAN, op.cit., p. 19).
414
COTTINGHAM, John. “A Brute to the Brutes? Descartes Treatment of Animals”. Philosophy 53,
n. 206, out. 1978, p. 551-559.
415
Em resposta a HENRY MOORE, DESCARTES teria escrito que: “I am speaking of thought, not
of life and sensation. I do not deny life to animals, since I regard it as consisting simply in the heat
of the heart; and I don not deny sensation, in so far as it depends on a bodily organ” (DESCARTES
apud REGAN, op.cit, p. 3).

- 139 -
inafastável admitir que DESCARTES nos deixou dois legados particularmente
terríveis e perenes: o de que a dor e o sofrimento seriam exclusivos da
experiência humana - o que tornava os animais passíveis de qualquer destino
nas mãos dos homens416 - e o dualismo “corpo/alma”, negando a “animalidade”
ao homem, tornando-o um ser absolutamente “desnaturalizado”417.

Tal como afirma o biologista de Harvard, DONALD GRIFFIN a maior


parte dos animais são, de fato, portadores no mínimo de uma consciência
perceptiva sobre seu próprio corpo e ações:

Quando um animal percebe conscientemente a corrida, a escalada, ou a


caçada perpetrada por outro animal, deve necessariamente estar ciente
de quem pratica estas ações. E se o animal percebe conscientemente
seu corpo, então é difícil excluir reconhecimento análogo de que percebe
que ele também está a praticar determinadas ações. [...] se conferimos
aos animais ao menos a capacidade de perceber o seu entorno, negar
que possuam um nível básico de auto-percepção ou consciência
consistiria em uma restrição injustificada e arbitrária418.

O prestigiado neurologista ANTONIO DAMASIO, professor da


Universidade de Lisboa, que trabalha com humanos que sofreram danos
cerebrais severos, sustenta que mesmo essas pessoas possuem o que denomina
de “consciência fundamental” (“core consciousness”), que não depende da

416
Como já mencionado, a lógica cartesiana proporcionou particular estímulo às práticas da
vivissecção e à perpetuação da indiferença e crueldade.
417
O posicionamento de DESCARTES mereceu reações imediatas. HENRY MORE, por exemplo,
dirá que a doutrina cartesiana encontra obstáculos empíricos evidentes (“illa vulpium canumque
astutia et sagacitas”). PIERRE GASSENDI objetará também às sua proposições insistindo que as
diferenças entre humanos e não-humanos são intrinsecamente de grau (animais raciocinam ainda
que não tão complexamente quanto o homem) e que nem por isso poderíamos reduzi-los a
autômatos. Os clássicos de TOM REGAN (The Case For Animal Rights. Berkley: University of
California Press, 1983), BERNARD ROLLIN (The Unheeded Cry. Animal Consciousness, Animal
Pain and Science. Oxford: Oxford University Press, 1989) e ANDRE ROWAN (Of Mice, Models
and Men. A Critical Evaluation of Animal Research. Albany (NY): Suny Press, 1984), e mais
recentemente de ANTONIO DAMÁSIO (Descartes’ Error. Emotion, Reason, and the Human Brain.
New York: Putnam, 1994; The Feeling of What Happens. Body and Emotion in the Making of
Consciousness. New York: Harcourt Brace, 1999; Looking for Spinoza. Joy, Sorrow, and the
Feeling Brain. Orlando: Harcourt, 2003) desacreditam as arcaicas teses de DESCARTES.
418
GRIFFIN, Donald R. Animal Minds. Chicago: University of Chicago Press, 1992. p. 248-49,
tradução nossa.

- 140 -
memória, da linguagem ou da utilização da razão, que “provê o organismo com
um senso de si mesmo com tempo e local determinados”419. DAMASIO a
distingue do que chama de “consciência estendida” (“extended consciousness”),
que requer a utilização da memória e da razão (mas não necessariamente a
linguagem) e envolve um senso de si mesmo recheado com detalhes
autobiográficos e de auto-representação. Há vários níveis de “consciência
estendida” e embora ela seja encontrada em sua plenitude nos seres humanos,
pode, segundo o autor, ser também encontrada em vários animais como primatas
e cães. Outros animais certamente possuiriam ao menos a chamada “consciência
fundamental”, o que significa dizer que são conscientes.

Além disso, uma variada gama de etologistas cognitivos tais como


GRIFFIN, MARC BEKOFF, CAROLYN RISTAU, tem produzido uma enorme
quantidade de material ilustrando que animais, incluindo mamíferos, aves e até
mesmo peixes, possuem considerável instrumental intelectivo e são capazes de
processar informação de maneiras altamente complexas420.

Apesar das mais variadas críticas, a fronteira que separava os


homens dos animais permaneceu intransponível e imutável. A tradição
racionalista pós-cartesiana também marcava com vigor a linha divisória entre
essas duas realidades. BLAISE PASCAL (1623-1662), pensador religioso ligado
ao movimento de Port Royal, destaca que o homem, apesar de pequeno diante
de Deus e da natureza, eleva-se por sua consciência, tornando-o superior em
relação aos demais seres vivos421:

O homem não é mais do que um caniço (rouseau), o mais fraco da


natureza, mas é um caniço pensante. Não é necessário que o universo
inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota d’água são

419
DAMASIO apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 115.
420
ALLEN, Colin; BEKOFF, Marc. Species of Mind: The Philosophy and Biology of Cognitive
Ethology. Cambridge: MIT Press, 1997; GRIFFIN, Donald R. Animal Thinking. Cambridge: Harvard
University Press, 1984; RISTAU, Carolyn. Cognitive Ethology: The Minds of Other Animals: Essays
in Honor of Donald R. Griffin. Hillsdale, NJ (EUA): Lawrence Erlbaum Associates, 1991.
421
Há que se fazer referência ao fato de que PASCAL, ao contrário de DESCARTES, não via os
animais como meros “autômatos”. Insistia que a competência dos animais pode ser mecânica,
mas não a vontade de utilização dessa competência

- 141 -
suficientes para exterminá-lo. Mas ainda que o universo o esmague, o
homem será mesmo assim mais nobre do que aquilo que o extermina,
porque sabe que morre [...] e o universo nada sabe. Toda nossa
dignidade consiste portanto no pensar.422

O também racionalista GOTTFRIED WIHELM LEIBNIZ (1646-1716),


na sua teoria da continuidade, proclama que não existem descontinuidades na
hierarquia dos seres (as plantas seriam nada mais que animais imperfeitos) e,
tampouco, há vazios no espaço. Quanto ao “princípio dos indiscerníveis”, LEIBNIZ
afirma que não há no universo dois seres idênticos e que sua diferença não é
numérica nem espacial ou temporal, mas intrínseca, isto é, cada ser é em si
diferente de qualquer outro. Em sua obra Monadologia (1714) deixa claro que os
homens diferenciam-se dos animais, pois apesar de todos os organismos serem
agregados de mônadas unidos por uma enteléquia superior, nos animais essa
enteléquia é a alma enquanto que nos homens a alma é entendida como espírito.
Percebe-se, pois, que LEIBNIZ recusava a natureza reflexiva à racionalidade
animal, mas admitia que o próprio ser humano era muitas vezes guiado por este
tipo de “racionalidade não-reflexiva”, predominando na atividade humana a
“animalidade”.423

ESPINOZA (1632-1677), apesar de romper com o dualismo


cartesiano do “corpo/mente” foi talvez mais longe que o próprio DESCARTES,
pois supera a questão do sofrimento animal com o simples argumento da
diferença fática intrínseca relativa à espécie humana, ou seja, o fato de sermos
homens e os demais não, justificaria toda sorte de instrumentalização das
necessidades daqueles aos nossos fins.424

Modernamente, por mais incrível que isto possa soar, há alguns que
tentam reanimar as defasadas teorias mecanicistas425. R.G. FREY426, por

422
PASCAL apud MARCONDES, op.cit., p. 189.
423
Cf. LESTEL, Dominique. Des Animaux-Machines aux Machines Animales. In CYRULNIK, Boris
(org.), Si les Lions Pouvaient Parler. Essais Sur La Condition Animale. Paris: Gallimard, 1988.
424
BERMAN, David. “Spinoza´s Spiders, Schopenhauer´s Dogs”, Philosophical Studies, n. 29, p.
202-209, 1982/83.
425
O realismo científico de CLAUDE BERNARD (1813-1878) pode ser classificado como
representante do cartesianismo no século XIX. A visão bernardiana da fisiologia se baseia

- 142 -
exemplo, sustenta que os animais podem ter interesses, mas somente no sentido
de que um motor de carro tem interesse em receber óleo, ou seja, não possuiriam
desejos e não poderiam ter necessidades que pudessem ser mais ou menos
satisfeitas. Neste sentido, afirma o mencionado autor que:

Assim como cães precisam de água para funcionarem normalmente,


tratores precisam de óleo para funcionar normalmente e tal como os
cães morrerão se a sua sede não for satisfeita, as árvores e a grama e
uma ampla variedade de vegetais morrerá a menos que sua
necessidade por água seja também satisfeita427.

Assim, de acordo com FREY, se bato em meu cão, ele não possui o
desejo de não apanhar. Animais não poderiam ter desejos pelo fato de que
desejos pressupõem crenças acerca da verdade ou falsidade de sentenças. Para
FRANCIONE, os argumentos de FREY nada mais são que a “regurgitação da
teoria cartesiana sem Deus”428.

amplamente em duas crenças: a primeira de que todos os avanços provém do laboratório


(BERNARD é um forte opositor da medicina clínica de sua época que, segundo ele, baseada nos
métodos de observação e comparação, nunca poderia ser considerada verdadeira “ciência”) e a
segunda de que todos os experimentos biomédicos podem e devem ser realizados em animais. A
primazia da experimentação animal é defendida nos seguintes termos por BERNARD:
“Experiments on animals, with deleterious substances or in harmful circumstances, are very useful
and entirely conclusive for the toxicology and hygiene of man. Investigations of medicinal or of toxic
substances also are wholly applicable to man from the therapeutic point of view; for as I have
shown, the effects of these substances are the same on man as on animals, save for differences in
degree” (BERNARD apud LAFOLLETE, Hugh; SHANKS, Niall. “Animal Experimentation: the
Legacy of Claude Bernard”. International Studies in Philosophy of Science, 1994. p. 195-210.
Disponível em: <http://www.stpt.usf.edu>. Acesso em: 13 dez. 2005). Parte do preconceito
bernardiano advém da recusa em aceitar o evolucionismo. Além do debate ético atinente à
legitimidade e moralidade da utilização de animais como recursos para a pesquisa biomédica, o
nefasto legado bernardiano continua a povoar a mentalidade dos pesquisadores que, muitas
vezes, se condicionam a ignorar os limites da pesquisa animal, bem como as diferenças e os
perigos da extrapolação dos resultados entre espécies distintas. Um exemplo bastante claro a este
respeito nos é dado pela terrível experiência proporcionada pelo uso da talidomida entre gestantes
humanas. Quando testada em inúmeras espécies animais (mais de 35 espécies entre roedores,
répteis, primatas, etc.) os resultados teratogênicos não foram observados.
426
FREY é filósofo e dá aulas na Bowling Green State University.
427
FREY, R.G., “Why Animals Lack Beliefs and Desires”. In: SINGER, Animal Rights and Human
Obligations, op.cit., p. 39-40, tradução nossa.
428
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 105.

- 143 -
Para o referido autor, temos que:

[...]pelo fato de os animais supostamente não possuírem a habilidade da


linguagem articulada, seriam nada mais que máquinas sem consciência
e sem a habilidade de sentir dor. Todavia, não há qualquer razão para
que se assuma que, para que se tenha um desejo de não sentir dor, um
ser deva possuir uma crença acerca da veracidade de sentenças, pelo
só fato de que há razões suficientes para que se acredite que um ser
pode ter desejos e preferências na ausência de crenças sobre
sentenças. Se estou dormindo profundamente e me é aplicado fogo
diretamente sobre minha pele, certamente acordarei sentindo dor. Sem
dúvida alguma desejarei que ela cessa e que me parem de queimar e,
definitivamente, pode-se afirmar que possuo o interesse em não ser
queimado – ainda que a minha consciência naquele exato instante se
limite ao desejo de ver a dor dissipada. [...] Além disso, muitos seres
humanos, os muito jovens, os muito idosos, os senis, os severamente
retardados, aqueles com disfunções neurológicas graves, e daí por
diante – são incapazes de formularem crenças, qualquer que seja, sobre
o valor de sentenças, e ainda assim reputamos que estes seres
humanos possuem uma variada gama de interesses como membros da
nossa comunidade moral 429.

FREY falha, portanto, em assumir que animais não possuem


consciência, tal como DESCARTES no século XVII. Dado o baixo nível de
conhecimento científico da época torna-se parcialmente escusável que os
mecanicistas setecentistas acreditassem em tais teorias. No entanto, na
atualidade, onde todas as pesquisas conduzem ao entendimento de que muitas
espécies animais são conscientes a respeito da dor que lhes é infligida, tal
raciocínio não pode ser aceito.

429
FRANCIONE, op.cit., p.105, tradução nossa.

- 144 -
1.6.5. Objetos do Ódio

“Aqui traz o galista inumano a ave infortunada,


Arma o calcanhar rijo e apara as asas douradas;
O espírito impaciente nutre com picante comida
E grita, amaldiçoa enquanto a batalha é ferida.
Trespassado o cérebro, os olhos arrancados,
Até o fim há de brigar o galo derrotado;
Tem que bicar debilmente o vitorioso oponente,
Tremer, cambalear a cada golpe inocente:
Caído, o selvagem cata suas penas salpicadas,
Para outras mortes colhe as armas ensangüentadas,
Maldiz a ave covarde que perdeu o seu dinheiro,
É por ele apenas morreu e se sangrou por inteiro”

GEORGE CRABBLE

Neste período, os animais eram também utilizados pela aristocracia


para simbolizar o triunfo humano, proclamando a superioridade social dos
dominantes e o conseqüente jugo da criação animal. Conforme declarava
THOMAS ELYOT, “o espetáculo de um fidalgo atemorizando um bicho feroz e
cruel criava majestade e terror aos olhos das pessoas inferiores, ao
contemplarem-no acima da marcha comum dos outros homens.”430

Todavia, a população tomou a iniciativa de reivindicar o


compartilhamento dos recursos naturais e do direito a exercer o “natural
predomínio da espécie humana” sobre o restante da criação nos mesmos moldes
da nobreza, pelo fato de que a toda a humanidade, e não somente parte dela,
teria direito sobre as criaturas inferiores. Aliás, principalmente os animais de
estimação sempre foram uma espécie de subclasse inferior que assegurava até
aos mais humildes o consolo de não ocupar o “fundo do poço". Como observou
MARY WOLLSTONECRAFT, as classes subalternas tiranizavam os animais “para
vingar os insultos que são obrigadas a suportar de seus superiores.”431

430
ELYOT apud THOMAS, op.cit., p. 35.
431
WOLLSTONECRAFT, op.cit., p. 190.

- 145 -
Neste sentido, há um relato particularmente pitoresco proveniente da
França pré-revolucionária (1730), protagonizado por dois aprendizes de uma
gráfica e seus patrões que resultaria no denominado “o grande massacre de
gatos na rua Saint-Séverin”. O operário Nicolas Contat contou a história sob a
forma de uma narrativa, na época em que cumprira seu estágio na aludida gráfica
como tipógrafo.432 O episódio é narrado na terceira pessoa, sob a ótica de
“Jerome”, um pseudônimo do próprio Contat. A narrativa do massacre feita por ele
é a seguinte:

[...] Ele está tão cansado, e precisa tão desesperadamente descansar


que a cabana parece-lhe um palácio. Finalmente a perseguição e miséria
que sofreu durante o dia inteiro terminaram, e pode relaxar. Mas não,
alguns gatos endemoniados celebram um sabá das bruxas a noite
inteira, fazendo tanto barulho que lhe roubam o breve período de
repouso conferido aos aprendizes, antes que cheguem os assalariados
para o trabalho, bem cedo, na manhã seguinte, e peçam admissão,
tocando constantemente uma campainha infernal. Então, os rapazes têm
de se levantar e atravessar o pátio, tremendo sob suas camisolas de
dormir, para abrirem a porta. Esses assalariados jamais se mostram
amáveis. Por mais que se faça, sempre acham que estão perdendo
tempo e sempre tratam a pessoa como um inútil preguiçoso. Chamam
Léveillé. Acenda o fogo debaixo do caldeirão! Pegue a água para as
tinas! É verdade que esses serviços deveriam ser feitos pelos aprendizes
iniciantes, que moram em casa, mas só chegam depois das seis ou das
sete. Assim, todos logo estão trabalhando – aprendizes, assalariados,
todos - menos o patrão e a patroa: apenas eles gozam a doçura do sono.
O que dá inveja a Jerome e Léveillé. Decidem que não serão os únicos a
sofrer; querem ver na mesma situação seu patrão e a patroa. Mas, como
produzir o efeito desejado? [...] Armados com cabos de vassoura, barras
de impressora e outros instrumentos de seu ofício, foram atrás de todos
os gatos que conseguiram encontrar, a começar pela grise. Léveillé
partiu-lhe a espinha com uma barra de ferro e Jerome acabou de matá-
la. Depois, enfiaram-na numa sarjeta, enquanto os assalariados

432
A única versão do massacre dos gatos de que se dispõe é a escrita por NICOLAS CONTAT em
“Anecdotes typographiques où l’on voit la description des coutumes, moeurs et usages singuliers
des compagnons imprimeurs”, Giles Barber, Oxford, 1980. O manuscrito original está datado de
1762, algumas décadas depois do episódio.

- 146 -
perseguiam os outros gatos pelos telhados, dando cacetadas em todos
os que estavam ao alcance deles e prendendo, em sacos
estrategicamente colocados, os que tentavam escapar. Atiraram sacos
cheios de gatos semimortos no pátio. Depois, com todo o pessoal da
oficina reunido em torno, encenaram um fingido julgamento, com
guardas, um confessor e um executor público. Depois de considerarem
os animais culpados e ministrar-lhes os últimos ritos, penduraram-nos
em forcas improvisadas.” 433

A tortura de animais pela população, nesse contexto, torna-se


bastante comum em toda a Europa. Nas Etapas da Crueldade, de HOGARTH, há
inúmeras descrições de tais abomináveis práticas. CERVANTES434 e ZOLA435
tratam do tema em seus romances436 437.

Como se percebe, aos animais era usualmente atribuída uma


conotação fortemente negativa, seja pelo ângulo da permissividade, da
passividade ou de características consideradas indesejadas. Não é por acaso que
o “anti-Cristo” fosse usualmente representado por um símbolo bestial, ou que

433
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e Outros e Episódios da História Cultural
Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 4ª edição, 2001. p. 136-39 e 105.
434
Em Dom Quixote, um saco cheio de gatos uivantes interrompe a serenata do protagonista, que
tenta exterminá-los confundindo-os com demônios. (cf. segunda parte, capítulo 46).
435
Em Germinal, uma multidão de operários persegue Maigrat, o inimigo, como se fosse um pobre
gato, exclamando: ‘Peguem o gato! Peguem o gato!’ (cf. quinta parte, capítulo 6).
436
Os gatos, em particular, sempre foram tradicionalmente investidos em um repertório de grande
significação simbólica. No período do carnaval eram jogados vivos nas fogueiras na crença de que
isso pudesse trazer boa sorte. Eram associados ao órgão sexual feminino e seus supostos
poderes secretos eram temidos pela população.
437
Para DARNTON, “Longe de ser uma fantasia sádica de parte de poucos autores meio loucos,
as versões literárias da crueldade para com os animais expressavam uma corrente profunda da
cultura popular, como mostrou Mikhail Bakhtin, em seu estudo de Rabelais. Todos os tipos de
relatórios etnográficos confirmam esse ponto de vista. No Dimanche des Brandons, em Semur, por
exemplo, as crianças costumavam amarrar gatos a varas e assá-los em fogueiras. No Jeu du
Chat, no Corpus Christi em Aix-en-Provence, jogavam os animais para cima, bem alto, e eles se
espatifavam no chão. Eram usadas expressões como ‘paciente como um gato cujas garras estão
sendo arrancadas’ ou ‘paciente como um gato cujas patas estão sendo grelhadas’. Os ingleses
eram igualmente cruéis. Durante a Reforma, em Londres, uma multidão protestante raspou os
pelos de um gato de modo a fazê-lo parecer-se com um padre, vestiu-o com uma batina em
miniatura e enforcou-o no patíbulo, em Cheapside. Seria possível enumerar muitos outros
exemplos, mas a questão é clara: nada havia de incomum na matança ritual de gatos. Pelo
contrário, quando Jerome e seus companheiros operários julgaram e enforcaram todos os gatos
que puderam encontrar na Rua Saint-Séverin, agiam dentro de uma tendência comum em sua
cultura” (DARNTON, op.cit., p. 122-3).

- 147 -
entidades diabólicas fossem normalmente associadas a seres híbridos. A lascívia
e a infidelidade sexual eram comportamentos associados aos animais. Para
GERRARD WINSTANLEY, a liberdade sexual era justamente “a liberdade de
bestas devassas e desprovidas de razão.”438 A luxúria, por sua vez, fazia os
homens “parecerem-se [...] com porcos, cabras, cães e as mais selvagens bestas
do mundo.”439 O professor KEITH THOMAS nos traz vários casos em que se
comparam atividades humanas às animais em caráter nitidamente pejorativo.

Segundo o autor:

Era bestial que o homem tivesse o cabelo indevidamente longo: ‘Os


bichos são mais peludos que o homem’, escrevia Bacon, ‘e os homens
selvagens mais que os civilizados.’ Era bestial trabalhar á noite, pela
mesma razão que a invasão noturna de domicílio era um crime pior que
o roubo à luz do dia; a noite, como explicava sir Edward Coke, era ‘o
momento em que o homem deve descansar, e em que os bichos vagam
à busca de sua presa’. Até mesmo nadar era bestial, pois, além de ser
aos olhos de muitos puritanos uma forma perigosa de semi-suicídio,
representava um método não-humano de locomoção. Como observou
um teólogo de Cambridge em 1600: os homens andam, os pássaros
voam; somente peixes nadam [...]. Ao mesmo tempo, as histórias
tradicionais sobre a metamorfose de seres humanos em bichos eram
condenadas ou como fantasias poéticas ou como ficções diabólicas.
Uma das razões pelas quais os pássaros monstruosos causavam
tamanho horror era de que eles ameaçavam a linha divisória entre
homens e animais440.

Desnecessário afirmar que quaisquer relações de aproximação com


os animais eram desaprovadas. De fato, quando o Dr. EDMUND KING tentou
realizar uma transfusão sanguínea entre uma ovelha e um ser humano em 1667,
o experimento foi imediatamente interrompido, sob a acusação de imoralidade. A
própria vacinação, já no século XIX, foi fortemente resistida com argumentos no

438
WINSTANLEY apud THOMAS, op.cit., p. 45.
439
THOMAS, op.cit., p. 45.
440
Ibid., p. 46.

- 148 -
sentido de que a inoculação de “fluidos animais” no corpo do homem poderia
conduzir à sua “animalização”.

A bestialidade era tida como o pior entre todos os crimes sexuais.


Para se ter uma idéia, foi punido com pena capital de 1534 até 1861 na Inglaterra.
Entre nós ocorria idêntico fenômeno. Até o século XIX, de acordo com as
disposições penais das Ordenações Filipinas, consoante anteriormente verificado,
o crime de “sodomia” com animais era também punido com a pena capital.
Segundo um moralista do período dos Stuart, a bestialidade era tão severamente
punida pelo fato de que “transforma o homem no próprio bicho, tornando-o um
exemplar da criação bruta.”441 Essa concepção de punição severa do enlace
homem/animal, mais uma vez, tem origens bíblicas. No Antigo Testamento, em
Levítico 18, 23-24442 e Deuteronômio 27, 21443 há a expressa proibição da prática,
enquanto que em Êxodo 22, 18444 e Levítico 20, 15-16445, fica clara a cominação
divina consistente na pena de morte para os praticantes, homem e animal.

JONAS LILIEQUIST nos dá conta de que entre 1630 e 1780, cerca


de setecentos suecos foram efetivamente executados e que outros tantos foram
condenados a duras penas religiosas e a trabalhos forçados por este tipo de
delito446. Os dados colhidos das cortes suecas revelam que outro não era o
destino dos animais, usualmente mortos na qualidade de cúmplices com a
finalidade de obliterar a memória do ato ultrajante.447

441
Apud THOMAS, op.cit., p. 47.
442
“Não te deitarás com animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um
animal para se ajuntar com ele. Isto é uma impureza. Não vos tornei impuros com nenhuma
dessas práticas: foi por elas que se tornaram impuras as nações que expulso diante de vós.”
443
“Maldito seja aquele que se deita com um animal! E todo o povo dirá: Amem!”
444
“Quem tiver coito com um animal será morto.”
445
“O homem que se deitar com um animal deverá morrer, e matareis o animal. A mulher que se
aproximar de um animal qualquer, para se unir a ele, será morta, assim como o animal. Deverão
morrer, e seu sangue cairá sobre eles.”
446
LILIEQUIST, Jonas. “Peasants Against Nature: Crossing the Boundaries Between Man and
Animal in the Seventeenth and Eighteenth-Century Sweden”. Focaal: Tijdschrift voor Anthroplogie
28, 1990. p. 50-1.
447
Era crença difundida, até o início do século XVIII, de que era possível o nascimento de filhos
entre homem e animal. Assim é que a bestialidade era tida como a causa do surgimento de
monstros abomináveis. “Esse tipo de cópula antinatural, dizia William Ramesey, produziria ‘um
monstro, contando em parte com os membros do corpo humano e em parte com os do animal.”
(RAMESEY apud THOMAS, op.cit., p. 161).

- 149 -
Os procedimentos das cortes eclesiásticas ou seculares envolvendo
o julgamento e a conseqüente condenação de animais eram conduzidos com toda
a seriedade e solenidade exigidas. As demandas envolvendo o tema refletiam a
doutrina religiosa que condenava quaisquer desnivelamentos contrários à
“hierarquia natural/divina dos seres vivos”. Na eventualidade de rompimento da
fronteira “homem/animal”, um reparo havia de ser realizado para apaziguar a
justiça divina, conforme já anteriormente exposto no caso do “boi que marra”.
Segundo FINKELSTEIN, havia:

[...] um gigantesco abismo entre a humanidade e o restante da criação,


e, além disso, uma sensibilidade aguda contrária à quebra das barreiras
entre os dois mundos [...] Animais que matavam pessoas deveriam ser
eliminados porque o mero fato de terem assim se conduzido perturbava
de maneira intolerável o ambiente cosmológico: o ato aparentemente
negava a diferenciação hierárquica da criação segundo a qual ao homem
foram garantidos o domínio e o reinado do mundo físico. As evidências
materiais da quebra desta ordem deveriam ser removidas – e removidas
em procedimentos públicos solenes – para que o equilíbrio cosmológico
fosse restaurado de forma mais ampla possível.448

448
FINKELSTEIN, op.cit., p. 31, tradução nossa.

- 150 -
1.6.6. Despersonalização

“Vimos em mais de uma ocasião que o bem-estar público pode pedir a


vida dos seus melhores cidadãos. Seria estranho se não pudesse pedir
estes sacrifícios menores àqueles que já sugam a força do Estado. [...]
Seria melhor para todo o mundo, se, em vez de esperarmos para
executar por causa de crime a prole degenerada, ou deixar que ela
morra de fome por causa da imbecilidade, a sociedade pudesse impedir
de propagar a sua espécie, os que são manifestamente incapacitados. O
princípio que sustenta a vacinação compulsória é bastante abrangente
para incluir o corte das trompas de Falópio. Três gerações de imbecis
são suficientes.”449

OLIVER WENDELL HOMES

A constituição de uma linha divisória sólida entre o homem e os


animais procurava legitimar atividades exploratórias tais como a domesticação, a
caça, a alimentação, os experimentos científicos (a vivisseção começou a ter
inúmeros adeptos no final do século XVII) entre outras. Todavia, esse
distanciamento também trouxe conseqüências nefastas para a própria
humanidade, pois se havia uma “essência humana” facilmente identificável e
definível, então qualquer homem que supostamente não se encaixasse nela
poderia ser enquadrado em uma categoria “sub-humana”. Segundo destaca a
antropóloga MARY DOUGLAS, “Em todo o mundo natural mentalmente
elaborado, o contraste entre o homem e o não homem fornece uma analogia para
o contraste entre o membro da sociedade humana e o estranho a ela.450”
RODNEY NEEDHAM acresce: “É freqüente que tribos se reservem o título

449
A campanha de “esterilização eugênica” atingiu o seu auge em 1927 com a chancela da lei de
esterilização da Virgínia pela Suprema Corte, no caso Buck v. Bell. O supracitado trecho revela a
possibilidade de esterilização de CARRIE BUCK, uma mulher branca, de dezoito anos que vivia
em uma Colônia para Epilépticos e Deficientes Mentais na Virgínia. Estudos posteriores,
realizados na década de oitenta, pelo Dr. RAY NELSON, então diretor do Lynchburg Hospital,
onde CARRIE foi esterilizada, revelaram mais 4.000 operações similares, a última em 1972. Mais,
quando repórteres e especialistas visitaram CARRIE, já idosa, constatou-se que era uma mulher
de inteligência e comportamento absolutamente normais, tendo ido para a mencionada Colônia
por imposição familiar em virtude de uma gravidez indesejada fruto de violência sexual.
450
DOUGLAS, Implicit Meanings, 1975, p. 289, apud THOMAS, op.cit., p. 49 (grifos nossos).

- 151 -
arrogante de ‘homem’, referindo-se a outros povos como ‘macacos’.”451 KEITH
THOMAS, a esse respeito, destaca com clareza que “uma vez percebidas como
bestas, as pessoas eram passíveis de serem tratadas como tais. A ética da
dominação humana removia os animais da esfera de preocupação do homem.
Mas também legitimava os maus-tratos àqueles que supostamente viviam uma
condição animal.”452

Muito embora a maior parte dos historiadores considere que a


escravidão negra precedeu as teorias de inferioridade racial, o sistema
escravagista dificilmente poderia ter sido bem sucedido sem que aos negros
fossem atribuídas características animais, em um autêntico processo de
desumanização e de despersonalização. O antropólogo francês CLAUDE
MEILLASSOUX, destacando as relações primárias da escravidão, demonstra
claramente que aos olhos dos dominadores, o discurso era de que:

[...] essas populações tinham uma característica comum: uma rusticidade


vizinha da bestialidade, e que se manifestava pela rudeza, pela
ignorância, pela inferioridade intelectual, pela amoralidade e pela prática
de atos de selvageria (como o canibalismo, geralmente), traços que os
predisporiam à captura e a uma exploração semelhante à que os animais
sofrem. Predisposição e até predestinação, segundo os Peul do Futa
Djaló, que agradeciam a Deus por ter criado ‘pagãos de crânio duro mas
de braços fortes destinados a servir os crentes’ (Vieillard, in Balde, 1975,
198). Acima de tudo, esses povos indiferenciados eram percebidos como
inexistentes social e politicamente, como provava, aos olhos dos seus
raptores, a ausência de chefes. Essa carência política, além da sua
suposta incapacidade para o entendimento, impedia qualquer
comunicação. Ora, essas representações, por mais grosseiras que
pareçam, refletem corretamente a natureza das relações políticas que os
caçadores de escravos tinham que manter com as sociedades
escravizadas, para preservar a relação escravagista, pois era essa
relação de alteridade, mantida tanto pela prática quanto pela ideologia,
que determinava todas as outras. Ela era a base da relação de produção
escravagista e da exploração específica do trabalho que lhe estava

451
NEEDHAM, Primordial Characters, 1978, p. 5, apud THOMAS, op.cit., p. 49.
452
THOMAS, op.cit., p. 53.

- 152 -
associada. Na verdade, era a expressão ideológica de uma relação de
dominante para dominado que opunha o conjunto dos cidadãos francos
das sociedades escravagistas ao conjunto das populações escravizadas,
esvaziadas, no passado, no presente e no futuro. Percebida como
negativa, essa relação era, na realidade, o meio seguro de manter a
distância social, que é a condição da escravidão. A alteridade,
combinada com a relação de classes que se estabelecia pela exploração
no seio da sociedade escravagista, gerou uma reação de tipo racista
para com os escravos. Racista, pois ao estado de escravos são sempre
associados traços somáticos (feiúra, deselegância, ...) e traços de
caráter (estupidez, preguiça, dissimulação, ...). Por sua origem
estrangeira, os escravos eram definitivamente seres de uma espécie
diferente, e naturalmente inferior, tolerados, se reconhecessem o seu
lugar, expelidos, se manifestassem a menor veleidade de identificação
com os ‘humanos.’ 453 454

Um exemplo clássico sobre o delineamento do círculo de


humanidade se deu com a descoberta dos pigmeus nas florestas do Congo pelos
colonizadores europeus. Foram citados inúmeras vezes como criaturas marginais
ou mesmo “anormais”.455 Os hotentotes ou boximanes456 (povos de baixa estatura
provenientes do sul da África), de acordo com Sir THOMAS HERBERT, em 1634,

453
MEILLASOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: O Ventre de Ferro e Dinheiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 59-60.
454
“Encontra-se freqüentemente essa identificação do escravo com o animal. Segundo Heródoto,
‘os Guaramantes vão à caça dos trogloditas egípcios [...] ligeiros na corrida. Alimentam-se de
lagartos e de todo o gênero de répteis. Sua linguagem não pode comparar-se a nenhuma outra,
mas apenas ao grito do morcego’ (in Dechamps, 1971; p. 11-12). Na mesma obra, o autor lembra
que na Grã-Bretanha os domésticos escravos, no século XVIII, eram tratados como animais
favoritos nos quais se atava uma coleira. Farias (1980; 128) observa que zang, o esteriótipo que
designa os escravos, tem o sentido de enslavable barbarian. No país soningué, dizia-se que ‘o
escravo é como o gado’, porque, como para os Sonhrai, eles entravam no patrimônio, no mesmo
nível que os animais de criação (missão, 1965, e J.P. Olivier de Sardan, 1973. Ver também
Cícero, in Daubigney, 1957; 58).” (apud MEILLASOUX, op.cit., p. 61.
455
Acresça a isto que o preconceito contra os negros remonta à Idade Média na qual a cor preta
era a preferida dos artistas para caracterizar as entidades demoníacas. Quando o cronista
português GOMES EANES DE ZURARA encontrou pela primeira vez escravos negros em 1440
comparou-os a “moradores de regiões infernais”.
456
“Na escala racista do progresso humano, os boximanes e os hotentotes disputavam com os
aborígines australianos o degrau mais baixo, logo acima dos chimpanzés e orangotangos. Alguns
estudiosos dizem que a primeira designação aplicada pelos colonizadores holandeses do século
XVII – Bosmanneken ou boximane – era uma tradução literal de uma palavra malaia que eles
conheciam muito bem – Orang Outan, ou ‘homem da floresta’.” (GOULD, Stephen Jay. O Sorriso
do Flamingo. op.cit., p. 273-4.

- 153 -
“não tem outra ascendência que não a de macacos”457. MATHIAS GUENTHER
relata que o igualamento foi tão grande e arraigado que um grupo de colonos
holandeses chegou mesmo a matar e comer um boximane, no entendimento de
que fosse um ser análogo ao orangotango malaio458.

EDWARD LONG justificou a escravidão em 1774 sob o argumento


de que os negros diferenciariam-se de outros povos pela “fraca capacidade
intelectual e pelo cheiro bestial”459 de modo que praticamente constituiriam outra
espécie. HENRY HOME, no mesmo ano, foi mais longe ao afirmar que os homens
seriam um gênero que abrigaria várias espécies, dentre elas os negros.

Não eram somente os negros a receberem tratamento equivalente


ao dispensado aos animais. De acordo com o sempre preciso KEITH THOMAS:

Em 1969, Edmund Hickerignill, um clérigo inglês que estivera nas Índias


Ocidentais, falava desdenhosamente dos ‘pobres e tolos índios nus’
como estando ‘apenas a um passo (se tanto) dos macacos.’ [...] Na
década de 1650, um capitão no regimento do general Ireton contou de
que modo, quando uma guarnição irlandesa foi destroçada em Cashel,
no ano de 1647, os vencedores encontraram entre os mortos ‘vários que
tinham caudas de quase vinte centímetros.’ [...] ‘O que é um bebê’,
perguntava um autor jacobiniano, ‘senão uma besta rude na forma de
homem? E o que é um jovem senão (por assim dizer) um burrico
selvagem sem modos e sem freios?’ [...] Também as mulheres estavam
perto do estado animal. Durante vários séculos os teólogos tinham
discutido, em parte frívola, em parte seriamente, se o sexo feminino tinha
alma ou não, debate que acompanhava de perto a polêmica sobre os
animais e que, às vezes, produzia ecos no nível popular. Os intelectuais
costumavam encarar as pessoas não letradas como sub-humanas. No
início dos tempos modernos esta atitude persistia. ‘Os membros da vasta
ralé que parece portar os sinais do homem no rosto’ explicava sir
Thomas Pope Blount, em 1693, ‘não passam de seres rudes em seu
entendimento [...] é por metáfora que os chamamos homens, pois na

457
HERBERT apud ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 78-9.
458
GUNTHER, Mathias, The Changing Western Image of the Bushmen, apud GOULD, op.cit., p.
274.
459
LONG apud ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 86.

- 154 -
melhor das hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes,
molduras e sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para
justificar seus direitos à racionalidade.’ [...] Em Madeley, Shropshire, o
vigário John Fletcher, refletia em 1772 sobre a condição dos barqueiros:
‘Presos às suas cordas como cavalos a seus tirantes, em que ponto eles
diferem dos seres rudes e laboriosos? Não na postura ereta do corpo,
pois, na intensidade de seu esforço, eles se curvam para frente,
adiantando a cabeça, suas mãos apoiadas ao solo. Se é que há
diferença, ela consiste nisso: os cavalos são favorecidos com um arreio
para poupar o seu dorso; já aqueles, como se o seu não valesse ser
poupado, puxam sem qualquer auxílio; os animais mourejam em
paciente silêncio e em mútua harmonia ritual; já os homens, em
barulhentas disputas e horríveis imprecações.’ [...] Um ourives londrino
do século XVIII anunciava ‘cadeados de prata para pretos ou
cachorros’.460

Não era raro que o discurso do preconceito se distanciasse das


discussões sobre características físicas e/ou aptidões mentais para se centrar no
exame do tipo de sociedade humana a que pertenciam determinados grupos. A
“humanidade”, sob esta ótica, é uma categoria na qual se pode sair ou entrar de
acordo com os vários degraus de desenvolvimento social ou civilizatório e as
sociedades que ocupavam os postos inferiores eram prontamente identificadas
como “bestiais”. Esta etnologia comparativa foi utilizada pelos ingleses na
conquista da Irlanda no século XVI, tendo sido afirmado que os irlandeses, por
levarem uma vida essencialmente rural e não construírem grandes centros
urbanos, seriam como que “selvagens”. A “guerra” contra os homens “primitivos”,
contra as “bestas” e os “monstros” era um tema recorrente como sendo o objetivo
último da atividade dos cavaleiros e nobres em favor da defesa da civilização
contra a selvageria.

Em 12 de outubro de 1492, quando COLOMBO se deparou, pela


primeira vez, com os nativos ameríndios, descreveu-os utilizando referências,
analogias e imagens disponíveis em seu tempo para classificar outras culturas.
Comparou-os aos habitantes das ilhas Canárias, tidos como “monstruosos” e

460
THOMAS, op.cit., p. 53.

- 155 -
“sub-humanos”. Conforme nos relata ARMESTO, “durante suas viagens para o
Novo Mundo, Colombo permaneceu indeciso entre as diferentes percepções dos
habitantes locais – como cristãos potenciais, como exemplos de virtude pagã,
como seres a serem explorados, como meros selvagens, como civilizados, ou
ainda como figuras objeto de escárnio.”461

Neste período da colonização européia das Américas afirmava-se


que os índios não poderiam ser senhores de suas terras pois estariam “em
pecado mortal” por serem “infiéis” e seriam, portanto, “hereges”. Além disso,
discute-se sobre o fato de serem “despossuídos de razão”, condição esta que
também os inabilitaria à propriedade da terra que ocupavam. De acordo com essa
tese, o domínio é um direito dos seres racionais, e somente deles. A Relectis de
Indis, do teólogo espanhol FRANCISCO DE VITORIA (1486-1546), elaborada
logo após a descoberta do “Novo Mundo” trata do assunto ao afirmar que: “O
domínio é um direito [...] as criaturas irracionais [...] não podem receber injustiça,
logo carecem de direitos [...] E se confirma a tese com a autoridade de Santo
Tomás, o qual disse que unicamente as criaturas racionais têm o domínio sobre
seus atos, pois como afirmou ‘alguém é dono de seus atos quando pode escolher
isto ou aquilo.” Ao tratar da condição dos povos nativos, VITORIA deixa claro que
“[...] o principal no homem é a razão, e é inútil a potência que não se reduz ao ato
... Por isto creio que o fato de que nos pareçam tão idiotas provém, em sua maior
parte, de sua educação má e bárbara, pois também entre nós vemos que muitos
homens do campo bem pouco se diferenciam dos animais.” 462

Entre 1550 e 1551 deu-se o famoso debate entre JUAN GINÉS DE


SEPÚLVEDA e BARTOLOMÉ DE LAS CASAS463 acerca da legalidade da
conquista e conseqüente domínio, pela Espanha, dos povos nativos americanos.
SEPÚLVEDA chegou a afirmar que os “índios” eram idólatras, pecadores, e
pertencentes a uma “categoria inferior” à humana. LAS CASAS, por sua vez,
considerava as conquistas espanholas uma “violação da justiça natural”, pois os
nativos eram seres merecedores de respeito e consideração tanto quanto os
461
ARMESTO, Felipe Fernández, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 109, tradução nossa.
462
VITORIA apud ATTIÉ, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 144-5.
463
HANKE, Lewis. Aristotle and the American Indians. London: Hollis & Carter, 1959. p. 30-43.

- 156 -
europeus. Com o transcorrer do debate, ficou claro que o ponto nodal era, de fato,
precisar se os “índios” seriam humanos ou não e, a partir daí, como os europeus
deveriam se comportar e interagir com aqueles povos.464

Este tipo de debate e de retórica serviu para legitimar a “missão


civilizadora” européia e justificar os excessos e arbitrariedades eventualmente
cometidos pelo homem branco na corrida imperialista. HERNÁN CORTÉZ (1485-
1547) e FRANCISCO PIZARRO (1478-1541) que o digam465.

A agenda da desumanização é evidente. NATALIE ZEMON DAVIS


destaca corretamente que “Desumanizar a vítima reclassificando-a como um
animal era, muitas vezes, uma preliminar mental indispensável”466. Como já
comentado, tomando por base que os sentimentos e atitudes para com os
animais são, de fato, projeções de atitudes diante do homem, o domínio animal
reforça o domínio do próprio homem sobre o homem.

Como destacado por EVANS, um homicídio cometido por “judeus ou


bestas” contra um cristão era punido com enforcamento, geralmente de cabeça
para baixo para que a inversão retornasse a situação ao status quo467.

A despersonalização continua no século XVII com a formulação de


diversas teorias “científicas” para explicar a suposta existência de uma
diferenciação racial. A doutrina do poligenismo468, sustentada inicialmente por

464
A questão de se determinar se os povos nativos eram totalmente humanos, providos de almas
racionais, foi decidida positivamente pelo Papa Paulo III em 1530. A qualificação dos nativos como
humanos atendia a uma necessidade premente da igreja de expandir seu círculo de influência
também nos novos territórios. Qualificando os índios como humanos, justificaria sua presença
missionária, pois estes seriam potencialmente conversíveis à cristandade, o que não ocorreria se
fossem tidos como meros animais.
465
CORTÈZ e PIZARRO foram conhecidos por levarem a cabo a conquista das regiões que hoje
representam o México e o Peru, respectivamente. A brutalidade e o extermínio dos povos nativos
foram as marcas registradas da atuação destes conquistadores espanhóis.
466
DAVIS, Natalie Zemon. Society and Culture in Early Modern France, Stanford, 1975, cap. 6,
apud THOMAS, op.cit., p. 57.
467
EVANS, op.cit., p. 165.
468
HUME (1711-1776) chegou a afirmar: “Inclino-me a suspeitar que os negros, e em geral todas
as outras espécies de homens (pois existem quatro ou cinco delas), são naturalmente inferiores
aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada cuja tez não fosse branca, como tampouco houve
qualquer indivíduo que se destacasse em ação ou especulação. Entre eles, não existem
manufaturadores engenhosos, nem arte, nem ciência [...] Uma diferença tão uniforme e constante
não poderia acontecer em tantos países e épocas se a natureza não houvesse estabelecido uma
distinção original entre essas raças de homens. Para não mencionar nossas colônias, há escravos
negros em toda a Europa, e ninguém conseguiu descobrir neles qualquer sintoma de gênio,

- 157 -
ISAAC DE LA PEYÉRE, sugeria que não haveria uma origem comum para a
humanidade. Assim sendo, as diversas “raças” eram espécies biologicamente
diferenciadas em todos os aspectos. Outra tese foi a do monogenismo, que
advogava uma criação única da raça humana. No entanto, devido a fatores de
ordem ambiental, tal como o clima, o homem, acreditava-se, teria se degenerado
em níveis diferente de acordo com a sua “raça” (degeneracionismo). JEAN
BAPTISTE DE LAMARCK (1744-1829) serviu de instrumento para estas
doutrinas, na medida em que se apropriavam das suas afirmações no sentido de
que as características fenotípicas adquiridas seriam passíveis de transmissão via
genótipo às gerações subseqüentes.

O determinismo biológico possuiu várias vertentes ao longo do


tempo. Todas essas vertentes, de um modo ou de outro, infelizmente,
consolidaram uma mentalidade fortemente separatista consubstanciada em uma
hierarquização racial crescente durante os séculos XVIII e XIX.469

embora entre nós haja pessoa de baixa condição e sem cultura que chegam a se destacar em
todas as profissões. De fato, na Jamaica fala-se de um negro que possui talento e cultura; mas é
possível que essa admiração se refira a uma habilidade sem importância, como a de um papagaio
que é capaz de dizer com clareza umas poucas palavras.” (HUME apud GOULD, Stephen Jay. A
Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 28).
469
Para citar apenas alguns dos colaboradores, diretos ou indiretos, para a propagação de idéias
não igualitárias, podemos acrescer em listagem LOUIS AGASSIZ (1807-1873), teórico americano
da poligenia; SAMUEL GEORGE MORTON (1799-1851), empírico da poligenia que começou a
introduzir o método da craniometria em seus estudos para justificar as pretensas diferenças
raciais; FRANCIS GALTON (1822-1911), tido como o criador da expressão eugenia (“bem
nascer”) e PAUL BROCA (1824-1880), que levaram as falsas teses da craniologia ao apogeu;
FRANZ JOSEF GALL (1758-1818), tido como pai da “frenologia”, ciência que se dispunha a
estudar as diferentes capacidades intelectuais baseando-se no tamanho de diferentes regiões do
cérebro; o zoólogo ERNST HAECKEL (1834-1919) e o célebre paleontólogo americano E.D.COPE
(1840-1897), com suas teses sobre a “recapitulação”, segundo a qual a “ontogenia recapitula a
filogenia” (que serviram de base para estudos antropométricos); o médico italiano CESARE
LOMBROSO (1835-1909), com sua disparatada tese da criminalidade inata; ALFRED BINET
(1857-1911) com a medição da inteligência e o surgimento do tese do QI; HENRY GODDARD
(1866-1957) e a teoria da inteligência como gene mendeliano e as tentativas de se evitar a
propagação dos débeis mentais; LEWIS MADISON TERMAN (1877-1956) e a tecnocracia do QI
inato; ROBERT MEARNSYERKES (1876-1956) e CARL C.BRIGHAM com a psicologia militar e as
restrições à imigração; o psicólogo CYRIL BURT (1883-1971) com as pesquisas sobre gêmeos
univitelinos e teses hereditaristas; CHARLES SPEARMAN (1863-1945) e a correlação entre os
testes mentais por meio da análise fatorial, entre outros tantos. As idéias eugenistas tiveram início
nos EUA (instituições de prestígio, como a Fundação Rockefeller e o Instituto Carnegie doaram
fundos para pesquisas eugênicas conduzidas pelas mais famosas universidades americanas,
como Stanford) e fizeram enorme sucesso entre as elites intelectuais de grande parte do Ocidente.
EDWIN BLACK, jornalista americano, autor de A Guerra Contra os Fracos (2003) sustenta que o
pior momento ocorreu quando as idéias saíram do papel para tornarem-se políticas públicas de
eliminação das gerações tidas como “geneticamente incapazes” (pessoas com deficiências
mentais, cegos, surdos, órfãos, inúteis, desabrigados, mendigos, alcoólatras, etc.), em uma

- 158 -
É sempre prudente advertir que seria infantil analisarmos as obras e
escritos produzidos em um determinado século com as lentes política e
ideologicamente tingidas de outro século. As obras devem ser entendidas no
contexto de sua época. Toda, impossível é ler textos como os que se seguem
sem sentir repugnância. A disseminação destas idéias de que os próprios seres
humanos poderiam pertencer a categorias ditas “inferiores” na escala da natureza
coube a muitos dos heróis da cultura norte-americana. BENJAMIN FRANKLIN
(1706-1790) expressou seu desejo de “branqueamento” da América na seguinte
passagem:

Desejaria que aumentassem em números. E visto que, por assim dizer,


estamos limpando nosso planeta, livrando de florestas a América e, com
isto, fazendo com que este lado do globo reflita uma luz mais brilhante
para quem o contempla de Marte ou Vênus, por que deveríamos
escurecer seu povo? Por que incrementar o número dos Filhos da África
transportando-os para a América, onde nos é oferecida uma
oportunidade tão boa de excluir todos os negros e escuros, e de
favorecer a multiplicação dos formosos brancos e vermelhos?470

Na mesma linha se situa THOMAS JEFFERSON (1743-1826) que


escreveu: “Sugiro, portanto, apenas como conjectura, que os negros, quer
constituindo originalmente uma raça distinta, quer diferenciados pelo tempo e
pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos tanto física como

eugenia negativa. (a eugenia positiva, tal qual proposta por GALTON não consistiria na eliminação
dos indesejáveis, mas no incremento dos desejáveis, o que também, a nosso ver, não deixa de
criar uma esfera de privilégio injustificável). Segundo BLACK, cerca de 60 mil pessoas foram
esterilizadas à força nos EUA. Em seguida, outros países como a Suécia e Finlândia começaram
programas parecidos. Em 1921, EUGEN FISCHER, ERWIN BAUR e FRITZ LENZ publicam O
Ensino da Hereditariedade Humana e da Higiene Racial, dando corpo à eugenia na Alemanha,
inaugurada em 1880 com ALFRED PLOETZ. Deste modo, quando a Alemanha de HITLER
implementou a utopia nazista dos três erres, reich (império), raum (espaço) e rasse (raça),
consubstanciado no infame Erbgesundheitsrecht, não estavam inventando nada, e sim utilizando a
falsa chancela da “ciência” para cometer as maiores atrocidades em escala nunca antes vista.
Vários carrascos nazistas, como CARL CLAUBERG, HORST SHUMANN, JOHANN PAUL
KREMER, JOESPH MENGELE, FRIEDRICH ENTRESS, HELMUTT VETTER, EDUARD WIRTHS
e AUGUST HIRT, conduziram diversas experimentações relacionadas à vã tentativa de
comprovação da suposta superioridade da “raça” ariana.
470
FRANKLIN, Benjamin. Observations Concerning the Increase of Mankind, 1751 apud GOULD,
op.cit., p. 20.

- 159 -
mentalmente.”471 ABRAHAM LINCOLN (1809-1865) não é menos enfático ao se
posicionar no sentido de que:

Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha
opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições
de igualdade social e política. E, na medida em que não podem viver
dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma
posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto
qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de
superioridade seja conferida à raça branca.472

THEODORE ROOSEVELT (1858-1919) também era adepto de


concepções discriminatórias. Com efeito, entendendo que a América deveria ter
permanecido racialmente homogênea, asseverou que “concordo plenamente com
a idéia de que, como raça, são inferiores aos brancos.”473

Os cientistas mais renomados do período sentiram-se atraídos pela


perigosa idéia discriminatória de separação de espécies e raças. LINEU (1707-
1778), em seu Systema Naturae, de 1758, classificou taxonomicamente o homem
em duas espécies distintas, a saber, Homo sapiens e Homo troglodytes474
(chegou mesmo a cogitar de uma terceira que seria o Homo caudatus). Mesmo
entre os “sapiens”, distinguiu-os pela suposta diferenciação racial, afirmando com
relação ao Homo sapiens afer (negro africano) que seria “comandado pelo
capricho”, enquanto que o Homo sapiens europaeus seria “comandado pelo
costume”. As mulheres africanas, eram descritas como as “feminae sinus pudoris;

471
JEFFERSON apud GOULD, op.cit., p. 20.
472
LINCOLN apud GOULD, op.cit., p. 21.
473
ROOSEVELT, Theodore. Letters of Theodore Roosevelt, ed. Morison, V, p. 226. Disponível em:
<http://www.mdcbowen.org/p2/rm/20th.htm>. Acesso em: 01 mar. 2005.
474
A curiosidade fica por conta do fato de que em 1799 o naturalista alemão JOHANN FRIEDRICH
BLUMENBACH (1752-1840) ter descrito o chimpanzé comum dando-lhe o nome científico de Pan
troglodytes, retirando-o, a nosso ver, equivocadamente, do gênero homo. A primeira descrição
desta espécie foi feita por EDWARD TYSON, em 1669, em estudo no qual tomou a criatura como
humana, categorizando-a como um “pigmeu” ou um “Homo sylvestris”.

- 160 -
mammae lactantes prolixae”, ou seja, mulheres dotadas de grandes saliências
genitais e de seios fartos para a produção de leite475.

Dois dos maiores naturalistas do século XIX não viam no negro um


igual. Assim é que GEORGES CUVIER (1769-1832) afirmou que “a mais
degenerada das raças humanas, cuja forma se aproxima da do animal e cuja
inteligência nunca é suficientemente grande para chegar a estabelecer um
governo regular.”476 CHARLES LYELL (1797-1875), fundador da moderna
geologia, mostrava que a concepção de um universo hierárquico chegava
intocada no que se refere a homens e animais: “O cérebro do bosquímano...
remete ao dos Simiadae (macacos). Isto implica uma ligação entre a falta de
inteligência e a assimilação estrutural. Cada raça do Homem tem seu lugar
próprio, como acontece entre os animais inferiores.”477

Com GOBINEAU (1816-1882), a justificação científica do racismo e


do determinismo biológico chegou ao seu auge no século XIX. No seu Ensaio
Sobre a Desigualdade Humana, tida como a bíblica do racismo moderno, defende
que haveria uma hierarquia de raças na qual os “arianos” ocupariam o topo e os
negros o elo inferior478. A miscigenação e a mistura havida entre as raças seria a
causa da decadência dos povos.

Paralelamente, no campo zoológico, o incremento da criação


seletiva dos animais domésticos colaborou também para concretizar uma visão
hierarquizada do gado, dos cavalos, dos cães, aves canoras, pombos, etc ... A
ênfase na “raça” marca o perfil nitidamente eugênico de tal atitude. Um canil em
Yorkshire (1691-1720) continha a seguinte anotação em seu manual: “três dessa
475
Ao contrário do que dá a entender, “sinus pudoris” não significa despudorada ou sem-vergonha
(que seria sine pudore). O “sinus pudoris” era a “cortina do pudor”, que seria uma estrutura
anatômica integrante da genitália feminina das mulheres negras. O fato é fartamente demonstrado
no capitulo “A Vênus Hotentote” de STEPHEN JAY GOULD (GOULD, O Sorriso do Flamingo,
op.cit., p. 271-283).
476
CUVIER apud GOULD, op.cit., p. 23.
477
LYELL apud GOULD, op.cit., p. 24
478
O fisiologista THOMAS HENRY HUXLEY (1825-1895) chega até mesmo a afirmar que
“nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro médio seja igual, e muito menos
superior, ao branco médio. E, se isto for verdade, é simplesmente inadmissível que, uma vez
eliminadas todas as incapacidades de nosso parente prógnato, este possa competir em condições
justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitado a competir com êxito com seu rival de
cérebro maior e mandíbula menor em um confronto em que as armas já não são as dentadas, mas
as idéias.” (HUXLEY apud GOULD, op.cit., p. 65)

- 161 -
ninhada dados ao irmão Thornhill, os restantes enforcados, porque não
agradaram.”479 A noção hierarquizante da vida ocupou precioso tempo dos
zoólogos do século XVII e XVIII. Discutia-se, avidamente, qual o posto que cada
animal ocupava na escala da criação e mesmo se seria o chimpanzé, o golfinho,
ou o leão a ocupar o topo desta hierarquia. Consta que o rei Henrique VII teria
ordenado a matança de todos os cães mastins, quando soube que estes teriam
matado um leão. Tal fato teria lhe causado profunda indignação, haja vista a
vilania de terem tais simples criaturas abatido o poderoso leão, “rei” de todas as
feras.

Conforme bem ressalta KEITH THOMAS:

Os estudos de muitos antropólogos sugerem que é uma tendência


constante do pensamento humano projetar, no mundo da natureza (e
particularmente no reino animal), categorias e valores derivados da
sociedade humana, que criticarão ou defenderão, justificando
determinado arranjo social ou político com base em que de algum modo
seria mais ‘natural’ que os outros possíveis. A diversidade das espécies
animais foi usada, inúmeras vezes, para dar apoio conceitual à
diferenciação social entre os seres humanos; e devem ter existido
poucas sociedades nas quais a ‘natureza’ nunca tenha sido solicitada a
conferir legitimidade ou justificação. Certamente seria um exagero
sustentar, como fazem alguns marxistas que ‘todas as afirmações sobre
a natureza expressam aspectos da ordem social’, mas algumas delas é
certo que o fazem, e nunca de modo mais intenso que nos primeiros
tempos modernos, quando a crença universal na analogia e na
correspondência tornou normal discernir no mundo animal uma imagem
especular da organização social e política humana480. Com efeito, não

479
THOMAS, Keith, op.cit., p. 72 (grifos nossos).
480
Os insetos sociais, como as abelhas e formigas, por exemplo, eram tomados como autêntico
símbolo do poder monárquico, governadas obedientemente por uma rainha, tal que, por tal motivo,
estariam propensas naturalmente à aceitação deste tipo de governo. A própria estrutura física das
colméias era utilizada analogicamente para justificar as pretensas vantagens do regime
monárquico sobre os demais. Um clérigo hanoveriano (ordem atualmente conhecida por pertencer
à “Casa de Windsor”) afirmara certa vez que: “Em toda colméia, existem uma rainha, os nobres e
a plebe (commonalty), agindo todos em seus respectivos lugares, e os mais humildes cumprindo
seu dever com tanto zelo como os maiores. Não entre eles queixosos ou resmungões, cismáticos
ou separatistas [...] Quisera Deus, nós, homens, fôssemos tão sábios.” (apud THOMAS, op.cit., p.
76). A tendência de se enxergar nos animais meros símbolos para o homem é facilmente
perceptível com a atribuição de qualidades humanas aos animais. O mundo natural era investido

- 162 -
somente a hierarquia das espécies naturais era invocada para justificar
as desigualdades sociais no seio da espécie humana. Mesmo no interior
de cada espécie natural acreditava-se que havia divisões sociais e
políticas estreitamente semelhantes às presentes no mundo dos
homens.481

A hierarquia entre os animais justifica e reforça a hierarquia entre os


homens. Verifica-se que a demarcação de linhas divisórias entre o homem e o
mundo natural proporcionou o surgimento e conseqüente justificação do mesmo
comportamento do homem para com o próprio homem. O propósito dos
parágrafos anteriores foi o de demonstrar que a concepção de universos
marcadamente distintos traduz-se em uma ideologia que se reproduz com
facilidade e que está sempre correlacionada à dominação de um grupo sobre
outro. O racismo e o especismo são faces de uma mesma moeda. Possuem, pois,
motivação de ordem prática, qual seja a de justificar a manutenção de vantagens
e privilégios de uma determinada categoria, dita dominadora, sobre as demais.
Essas formas de discriminação fornecem a justificação para a vitimização,
persecução, opressão e extermínio do que é diverso.

de rica simbologia e até os dias de hoje algumas pessoas associam à figura da cadela à lassidão,
a formiga à previdência, o porco à sujeira, a cobra à traição, o lobo à voracidade, etc... Na
taxonomia, a analogia entre os mundos humano e animal tinha implicações hierárquicas
evidentes. LINEU classificava o “reino vegetal” em “tribos” e “nações”. Alguns vegetais mais fáceis
de serem encontrados, tais como as gramíneas, eram “plebeus”, enquanto que outras, como o
lírio, eram “patrícios”. Havia também os “servos” (turfeiras), os “escravos” (gladíolos) e mesmo os
“vagabundos” (fungos). A conotação sociológica é flagrante. BENJAMIN FRANKLIN, seguindo a
linha de se atribuírem qualidades morais humanas aos animais, opôs-se frontalmente à escolha da
águia de cabeça branca como símbolo nacional, pois a ave seria “um pássaro de mau caráter
moral”, “covarde consumado”, vivendo “da trapaça e do roubo” (FRANKLIN apud THOMAS, op.cit.,
p. 81). Esta linha de descrição dos animais e vegetais com juízos morais e estéticos humanos só
foi sendo gradativamente abandonada no século XIX. Em seu lugar surge uma visão mais
romantizada, um point de vue spectaluaire, que se encantava com a diversidade natural.
481
THOMAS, op.cit., p. 73.

- 163 -
1.7. Contratualistas e Iluministas

“The king is not only incapable of doing wrong, but even of thinking
wrong: in him there is no folly or weakness. […] It is well if the mass of
mankind will obey the laws when made, without scrutinizing too nicely
into the reasons of making them.”

WILLIAM BLACKSTONE (1723-1780)482

Paralelamente à visão inaugurada pela Revolução Científica, pelo


Humanismo Renascentista e pela Reforma Protestante, a filosofia política do
liberalismo consagra a necessidade de conciliação das liberdades públicas e dos
direitos individuais, tidos como inerentes à natureza humana.

O contratualismo surge, neste sentido, como alternativa teórica a fim


de conceber uma moralidade que se dá por meio de um contrato em que as
pessoas aderem de forma voluntária. A moralidade emerge da voluntariedade das
limitações e acordos mútuos realizados, ainda que o “contratante” acredite
firmemente que esteja atuando em benefício próprio e não coletivo. De acordo
com tais premissas, pode-se concluir que a moralidade é convencional, criada, e
não-natural.

A convenção, para tais autores, pressupõe a existência da


racionalidade, pois as deliberações, em geral, são movidas por interesses
próprios. A pergunta, via de regra é: “Do ponto de vista do que é melhor para
mim, racionalmente consideradas as alternativas existentes, que limitações à
minha liberdade estaria disposto a aceitar?”

Podemos destacar duas formas básicas de contratualismo. A


primeira delas permite que os ditos “contratantes” participem das deliberações
tendo conhecimento preciso sobre quem são e quais são seus interesses e
expectativas pessoais mais relevantes (abraçada por HOBBES e NAVERSON por

482
BLACKSTONE tornou-se o primeiro professor a cursar Direito Inglês em uma cadeira separada
do Direito Romano. Sua obra Commentaries foi fruto da compilação de suas aulas na
Universidade de Oxford, tornando-se uma poderosa referência para o sistema da Common Law
por mais de um século.

- 164 -
exemplo). A outra abordagem requer que os mesmos “contratantes” se coloquem
em uma posição de ignorância quanto a tais fatos, aderindo ao pacto sob uma
condição a que RAWLS denomina de “véu de ignorância” (veil of ignorance).

1.7.1. Hobbes

“A condição do homem [...] é a condição de guerra de todos contra


todos.”483

HOBBES (1651)

THOMAS HOBBES (1588-1679) publicou diversas obras que


tiveram forte impacto no estudo das relações do indivíduo com o Estado484. Para
o filósofo inglês, a natureza humana era marcada por ser agressiva e propensa às
guerras.485 O “estado de natureza” representava a situação não do homem
primitivo, mas a do homem sem as leis e contratos impostos pela sociedade. Sob
estas circunstâncias teríamos uma luta de todos contra todos pelo poder. Por
meio de uma concepção tipicamente mecanicista, própria de sua época, entendia
o homem como uma máquina solitária que age movida pelas paixões. A liberdade
seria nada mais que “a ausência de impedimento para a ação”. Para solucionar o
problema do conflito inerente ao aludido “estado de natureza”, em nome da
própria sobrevivência, HOBBES sugere que os indivíduos transfeririam, por meio
de um “contrato social”, parte de seus direitos e poderes a um soberano todo-
poderoso a que denomina “Leviatã”486. Interessante observar que, para a

483
HOBBES apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 239.
484
As principais são: Do Cidadão (1642), Elementos do Direito Natural e Político (1650) e o
Leviatã (1651), que chegou a ser censurado pelo Parlamento inglês.
485
“Thus was the life of man, solitary, poor, nasty, brutish, and short” (HOBBES, Leviatã, apud
WISE, op.cit., p. 41).
486
“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los (os indivíduos) das
invasões dos estrangeiros, e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, posam alimentar-se e
viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de
homens, que possam reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.
O que equivale dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de
suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se a cada um como autor de todos os atos que

- 165 -
formação do Estado, o autor toma como elemento fundamental a linguagem. Ela
seria a formadora das capacidades mentais que distinguem o homem dos demais
animais. Sem ela “não haveria homens nem Estado, nem sociedade, nem
contrato, nem paz tal como não existem entre leões, os ursos e lobos.”487 No
entender de EDNA CARDOZO DIAS:

[...] para a formação do Estado, é preciso um pacto, para cuja adesão é


preciso a linguagem. Dessa forma, Hobbes excluiu os animais do pacto
social. Ele afirmava que era impossível fazer pactos com os animais,
porque eles não compreendem a nossa linguagem e, portanto, não
podem nem aceitar qualquer translação de direito, como não podem
transferir qualquer direito a outrem sem mútua aceitação não há pacto
social possível. Isso significa que o estado de natureza e de guerra
permanece entre os homens e os animais após o contrato social. Assim,
um animal irracional está no direito de atacar um ser humano, e vice-
versa. Com esse paradigma hobbesiano ficam explicadas as visões
utilitaristas no pensamento liberal clássico em relação aos animais e à
natureza488.

De fato, levada em consideração a incapacidade de expressarem


seus interesses e negociarem com outros, aos animais não-humanos não era
dado integrar o rol dos potenciais “contratantes”.

aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo que disser respeito à paz e
segurança comuns; todos submetendo, assim, suas vontades à vontade do representante, e suas
decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com
todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e
transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens,
como a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as
suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim,
civitas.” (HOBBES, Leviatã, parte II, cap. XXII, apud MARCONDES, op.cit., p. 199).
487
HOBBES apud DIAS, op.cit., p. 39.
488
DIAS, op.cit., p. 39-40.

- 166 -
1.7.2. Locke

“Plus ça change, plus c´est la même chose.”489

(Quanto mais as coisas mudam, mais permanecem iguais)

ALPHONSE KARR (1849)

JOHN LOCKE (1632-1704)490 tem uma visão mais otimista acerca


da natureza humana, entendendo que a racionalidade permitiria, ao fim, um
entendimento entre os homens. A sociedade civil resulta da união de indivíduos
desejosos de garantir seus bens, tais como a própria vida, a liberdade e a
propriedade propriamente dita. O contrato social é a forma pela qual o governo
compromete-se à proteção destes direitos e destes bens. Ao lado de sua
concepção contratualista, LOCKE também desenvolve uma Teoria da
491
Propriedade, pela qual antes do advento do Estado tudo era comum a todos .
Corroborando uma tradição teológica estabelecida, o pensador afirma que a
natureza era propriedade de Deus “do mesmo modo que a argila é sujeita ao
poder do artesão”492. Todas as criaturas pertenciam a Ele que, na sua eterna
sabedoria, concedeu-as ao homem493. A humanidade, neste diapasão, teria não
somente o direito, mas o dever de utilizar os animais de acordo com a finalidade
divina, que, em última análise, consistia na satisfação da própria humanidade494.

489
KARR apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 273.
490
Suas principais obras são seus dois tratados sobre o governo (1690) dos quais o Segundo
Tratado é considerado o mais relevante.
491
“Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada um é
proprietário da sua própria pessoa, à qual tem direito exclusivo. Podemos dizer que o trabalho do
seu corpo e das suas mãos é propriamente seu. A todas as coisas retiradas do estado em que a
natureza as produziu e libertou ele acrescenta o seu trabalho, dando-lhes algo que é próprio e,
com isso, tornam-se sua propriedade [...] e não é estranho, como talvez pudesse parecer à
primeira vista, que a propriedade do trabalho possa superar a comunidade da terra, porque é
justamente o trabalho que põe em todas as coisas a diferença de valor.” (LOCKE, Segundo
Tratado sobre Governo Civil, Petrópolis: Vozes, Cap. V, § 27, p. 98, apud DIAS, op.cit., p. 42).
492
LOCKE, John. Two Treatises of Government, Cambridge University Press, 1988, p. 168 apud
WISE, op.cit., p. 41, tradução nossa.
493
Ibid., p. 41
494
HARRIS, Ian. The Mind of John Locke, Cambridge University Press, 1994, p. 153, apud WISE,
op.cit., p. 42.

- 167 -
Os animais não teriam qualquer significação moral sendo “commodities” para os
seres humanos. Conseqüência disto é o entendimento de LOCKE no sentido de
que se um agressor viesse a ignorar os ditames da razão, deveria ser aniquilado
automaticamente como um animal495. A professora EDNA CARDOZO DIAS
ressalta que:

Locke coloca o homem, na sua origem, como senhor de todas as


criaturas inferiores, podendo fazer delas o que lhe aprouver. Em
princípio, tudo pertence a todos. Entretanto, a força do trabalho pertence
a cada um individualmente, o que vem constituir a primeira forma de
propriedade privada. Com ela o homem pode se apossar dos frutos da
Terra e das criaturas. Pertence a quem caçar ou pescar o animal
perseguido. Assim, Locke retirou da natureza o animal, tornando-o
propriedade privada. A natureza extra-humana não tem vontades nem
direitos; constitui recursos à disposição de toda humanidade. Pertence a
quem delas tiver o trabalho de se apossar.496 497

Em verdade, LOCKE concebia o direito de propriedade como um


direito natural. Tal direito de propriedade sobre as coisas e sobre os animais eram
análogos, pois estes constituiriam o “degrau mais baixo da Criação” e, portanto,
não teríamos quaisquer obrigações morais para com eles. Acreditava que podiam
sentir dor e sofrer, mas o seu tratamento e manejo só deveriam ser mais gentis se
isso afetasse o tratamento com os próprios homens:

495
No mesmo período, quando o quacre EDWARD BILLING estava sendo atacado por uma
multidão, disseram: “[...] não perturbemos um magistrado como ele. Arranquem-lhe os miolos [...]
eles são como cães em tempo de peste. Devem ser exterminados enquanto andam na rua para
que não nos infetem.” (THOMAS, op.cit., p. 56). De fato, a população canina era implacavelmente
exterminada em tempos de peste, como medida sanitária tomada pelas autoridades locais.
496
DIAS, op.cit., p. 42-3.
497
Importante ressaltar que, apesar da evidente colocação do homem como ser supremo diante
das demais criaturas, LOCKE posiciona-se contra a crueldade imotivada cometida contra elas.
Assim é que advertia: “(that children) be bred up n na abhorrence of killing and tormenting any
living creature […] And indeed, I think people from their cradles should be tender to all sensible [i.e.
sentient] creatures.” (LOCKE apud TURNER, James Crewdson. Reckoning With The Beast.
Maryland: Johns Hopkins University Press, 1980. p. 7).

- 168 -
[…] the custom of tormenting and killing beasts will, by degrees, harden
their minds even towards men; and they who delight in the suffering and
destruction of inferior creatures, will not be apt to be very compassionate
or benign of their own kind 498.

A noção do direito de propriedade elaborada por LOCKE, no sentido


de que a propriedade confere um direito exclusivo ao proprietário sobre
determinado bem, oponível a terceiros, se transformou na pedra-de-toque da
teoria moderna da propriedade privada, tendo influenciado de maneira
significativa a common law. WILLIAM BLACKSTONE a respeito do tema já
afirmava que:

[...] there is nothing which so generally strikes the imagination, and


engages the affections of mankind, as the right of property; or that sole
and despotic dominion which one man claims and exercises over the
external things of the world, in total exclusion of the right of any other
individual in the universe499.

Conforme ressalta FRANCIONE, a visão de LOCKE requer que


aceitemos como fatos: (1) a existência de Deus; (2) que Deus tenha literalmente
criado os seres humanos como um produto final (noção anti-evolucionista); (3)
que Deus tenha conferido a ”alma” somente aos seres humanos; (4) que a posse
de uma “alma imortal” seja um pré-requisito indispensável para que o seu
possuidor tenha relevância moral; e (5) que Deus tenha realmente criado a
natureza e todos os animais exclusivamente como meios/recursos para os fins
humanos. Se não aceitamos uma interpretação tão drasticamente literal da
história da criação, então as justificações de LOCKE caem por terra e o status de
animais como coisas também500.

498
LOCKE apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 53.
499
BLACKSTONE apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 54.
500
RICHARD RYDER traz uma passagem que revela certa piedade por parte de LOCKE: “[...]
children should from the beggining be bred up in abhorrence of killing and tormenting any living
creature” (LOCKE apud RYDER, The Political Animal, op.ci.t, p. 15).

- 169 -
1.7.3. Rousseau e Voltaire

“Aquele que se recusa a obedecer à vontade geral deverá ser obrigado a


tanto por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser
livre.”501

ROUSSEAU (1763)

JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)502, no Contrato Social,


parte do princípio de que “O homem nasce bom, a sociedade o corrompe”.
ROUSSEAU condena o “aprisionamento do homem”, demonstrando que uma
sociedade livre e igualitária é o ideal a ser perseguido por todos. Suas idéias
servirão de inspiração para a vindoura Revolução Francesa. O “estado de
natureza” trazia a beleza para homens e animais porque viviam em plena
liberdade. Apesar de entender que o homem se diferencia do animal por possuir o
“livre-arbítrio” e por entender que a natureza ficaria efetivamente fora do contrato
social, ROUSSEAU, em uma de suas últimas obras, Devaneios de um
Caminhante Solitário, advoga contra as experimentações em animais, por
considerá-las “repugnantes”:

Como observar, dissecar, estudar, conhecer os pássaros no ar, os


peixes na água, os quadrúpedes mais leves do que o vento, mais fortes
do que o homem e que não estão mais dispostos a se oferecer às
minhas pesquisas do que eu a correr atrás deles para submetê-los pela
força? [...] O estudo de animais não é nada sem a anatomia. [...] Não
possuo nem o gosto nem os meios de mantê-los cativos, nem a agilidade
necessária para segui-los em seu andar, quando em libedade. Será,
portanto, necessário estudá-los mortos, rasgá-los, desossá-los, escavar
à vontade suas entranhas palpitantes! Que horrível conjunto é um
anfiteatro de anatomia, cadáveres fétidos, pastosas e lívidas carnes,
sangue, intestinos repugnantes, esqueletos medonhos, vapores
pestilentos! Dou minha palavra de que não é lá que J.J. irá procurar seus

501
ROUSSEAU apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 257.
502
Dentre suas obras pode-se citar: Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens
(1775), Emílio (1762), Contrato Social (1762) e Confissões (1764-1770).

- 170 -
divertimentos. [...] Aliás, nunca julguei que tanta ciência contribuísse para
a felicidade da vida.503

Um pouco antes da Revolução Americana, WILLIAM BLACKSTONE


reafirmou que a natureza jurídica dos animais como coisas era fruto da tradição
romana e israelita e que a fonte legitimadora para os humanos reivindicarem seus
direitos sobre elas estava contida no Livro do Gênesis.504 A sua obra
Commentaries on the Law of England deixa patente a perpetuação do paradigma
quando a divide em quatro partes, a saber: o Livro I é denominado “Rights of
Persons” (Direito Privado em geral), o Livro II “Rights of Things” (Direitos Reais), o
Livro III “Private Wrongs” (equivalente à Responsabilidade Civil) e o Livro IV
“Public Wrongs” (parte destinada ao Direito Público). O Livro II, intitulado “Rights
of Things”, ao contrário do que se poderia imaginar, não trata de eventuais
direitos subjetivos das coisas, mas sim dos direitos das pessoas sobre aquelas,
sendo, em realidade, um capítulo destinado ao estudo tradicional dos direitos
reais.

JAMES KENT (1763-1847), jurista norte-americano, na esteira de


BLACKSTONE, também publicou o seu Commentaries on American Law em 1826
( o próprio título da obra merece nome bastante parecido com o de seu
predecessor). Em seu Livro II, parte V, ao tratar do direito de propriedade, repisa
a colocação dos animais em um universo de não-existência na qualidade de
meras coisas. Tais obras colaboram significativamente para plasmar na Common
Law a equivocada concepção de que os animais seriam meros objetos de direito.

A Suprema Corte Norte-Americana, em Geer v. Connecticut505, já se


pronunciou a respeito da perpetuação das noções de direitos reais ao perceber
acertadamente que: “os princípios fundamentais sob os quais o direito de
propriedade se alicerça não se modificaram desde os tempos romanos”. O
realista OLIVER WENDELL HOLMES (1809-1894), também asseverou que aos

503
ROUSSEAU apud DIAS, op.cit., p. 47-8.
504
BLACKSTONE, Commentaries on the Law of England, apud WISE, op.cit., p. 42.
505
Geer v. Connecticut, 161 U.S. 519, 522, 523, 529 (1896).

- 171 -
animais se aplica o direito romano até os dias de hoje506. O sempre brilhante
STEVEN WISE amplia estes dados para observar que:

[...] com quase nenhuma exceção, a common law a respeito dos animais
selvagens na Inglaterra e nos Estados norte-americanos ainda se
baseia no direito romano, seja: (1) citando diretamente Justiniano; (2)
citando Bracton, Blackstone ou Kent, que incorporaram os fundamentos
do direito romano à common law; (3) citando casos que adotaram tais
fundamentos; (4) identificando e chamando o direito romano de common
law; (5) citando uma regra da common law que tem por base o direito
romano. Uma das enciclopédias jurídicas mais adotas na atualidade nos
EUA declara categoricamente que: ‘geralmente, todos os animais
domésticos são tidos como propriedade, e o seu dono, por via de
conseqüência, possui um direito de propriedade sobre eles tão absoluto
quanto ao dispensado aos objetos inanimados 507’508.

As concepções contratualistas, via de regra, colocam a natureza fora


do âmbito contrato social. O filósofo francês, MICHEL SERRES, percebendo tal
fato, em sua obra “O Contrato Natural”509, preconiza a substituição da noção de
“contrato social” pela de “contrato natural” onde o homem não é o único sujeito de
direito, malgrado as dificuldades do paradigma contratualista, conforme será
demonstrado mais adiante.

A partir da segunda metade do século XVIII, o Iluminismo,


movimento cultural de múltiplas facetas, herdeiro do humanismo renascentista,
entendido não como uma doutrina filosófica específica, procurou enxergar no
conhecimento a única forma de libertação do homem510. Todos os homens

506
HOLMES, Oliver Wendell. The Common Law. Boston: Little Brown & Co. 1963. p. 187.
507
3 A.C.J.S. “Animals”, sec. 4, 475 (1973).
508
WISE, Steven, Rattling The Cage, op.cit., p. 42.
509
SERRES, Michel. O Contrato Natural, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
510
Segundo DANILO MARCONDES, “seus principais representantes são: na França, Jean-
Jacques Rousseau; Voltaire (1694-1778); Fontenelle (1657-1757); Helvétius (1715-1771);
Montesquieu (1689-1775); Holbach (1723-1778); La Mettrie (1709-1751); os enciclopedistas:
Diderot (1713-1784), D´Alembert (1717-1783) e Condorcet (1743-1794); na Alemanha: J. Herder
(1744-1803), o poeta Lessing; Kant, que escreve sobre a idéia de Iluminismo, e, em um primeiro
momento de sua obra o próprio Goethe; na Inglaterra: Hume, o poeta Alexander Pope, o jurista e

- 172 -
seriam, pois, dotados de uma luz natural, de uma racionalidade intrínseca que
lhes permitiria superar as crenças irracionais e as superstições. É um movimento
laico, secular, tornando-se, em alguns momentos, anticlerical. Neste sentido, são
valorizadas filosoficamente a liberdade, o individualismo e a igualdade jurídica
entre os homens. A Declaração de Independência Americana (1776)511 e a
Revolução Francesa (1789)512 são grandemente influenciadas por estes ideais.

A razão, também chamade de “As Luzes”, continua a ser a pedra de


toque para todo o pensamento do período. Segundo MARILENA CHAUÍ,
acreditava-se firmemente que:

pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e


política [...]; a razão é capaz de aperfeiçoamento e progresso, e o
homem é um ser perfectível. A perfectibilidade consiste em liberar-se dos
preconceitos religiosos, sociais e morais, em libertar-se da superstição e
do medo graças ao avanço das ciências, das artes e da moral; o
aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso da civilizações, que
vão das mais atrasadas (também chamadas de ‘primitivas’ ou
‘selvagens’) às mais adiantadas e perfeitas (as da Europa ocidental); há
diferença entre natureza e civilização, isto é, a natureza é o reino das
relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e
imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade
proposta pela vontade lilvre dos próprios homens, em seu
aperfeiçoamento moral, técnico e político. A natureza é o reino da
necessidade (isto é, das coisas e acontecimentos que não podem ser
diferentes do que são); a civilização é o reino da liberdade (isto é, onde

cientista político Jeremy Benhtam (1748-1832); o historiador Edward Gibbon (1737-1794); o


economista Adam Smith (1723-1790); na Itália, o filósofo da história Gianbattista Vico (1668-1744)
e o jurista Beccaria (1738-1794), apenas para citar os mais conhecidos e influentes”
(MARCONDES, op.cit., p. 201).
511
“Consideramos auto-evidentes as seguintes verdades: todos os homens foram criados iguais, e
dotados por seu criador de determinados direitos inalienáveis, dentre os quais se incluem a vida, a
liberdade e a busca da felicidade, e é para assegurar estes direitos que os governos foram
instituídos.”
512
O preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contém a afirmação no
sentido de que: “Os representantes do povo francês constituídos em assembléia nacional,
considerando que a ignorância, o esquecimento e o desprezo pelos direitos do homem são as
únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolvem estabelecer em uma
declaração solene os direitos naturais inalienáveis e sagrados do homem. [...] Os homens nascem
e permanecem livres e iguais em seus direitos [...]”. A liberdade e a igualdade seriam inerentes ao
homem e somente a ele.

- 173 -
os fatos e acontecimentos podem ser diferentes do que são porque a
vontade humana pode escolher entre alternativas contrárias
513
possíveis).

Vale a nota de que muito embora a razão fosse o elemento


diferenciador para a grande parte dos pensadores, alguns poucos, no entanto,
começaram a difundir a idéia de que tínhamos licença para “usar gentilmente”514
os animais, em um reconhecimento gradual de que eles também sofrem e
merecem participar de pelo menos algum nível básico de consideração moral.
Neste sentido, contradizendo os mecanicistas, VOLTAIRE515 afirma:

Que néscio é afirmar que os animais são máquinas privadas do


conhecimento e de sentidos, agindo sempre de igual modo, e que não
aprendem nada, não se aperfeiçoam, etc. É só por eu ser dotado de fala
que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Há bárbaros que
pegam este cão, que tanto excede o homem em fidelidade e amizade, e
o pregam numa mesa para dissecá-lo vivo, só para mostrar-te as veias
mesentéricas! Encontras nele os mesmos órgãos de sensação que
também existem em ti. Responde-me, mecanicista, a Natureza dispôs
todas essas fontes de sentimento nesse animal para que ele não possa
sentir?516

513
CHAUÍ, op.cit., p. 49- 50.
514
DAVID HUME assim afirma: “[...] somos obrigados, pelas leis da humanidade, a usar
gentilmente estas criaturas” (HUME apud SINGER, op.cit., p. 229).
515
O aumento dos sentimentos anticlericais foi benéfico aos animais na França pré-revolucionária.
VOLTAIRE chegou mesmo a condenar a prática da alimentação com base em produtos de origem
animal, muito embora tenha, aparentemente, continuado a praticar tal hábito.
516
VOLTAIRE apud DIAS, op.cit., p. 45-6.

- 174 -
1.8. Pensamento Kantiano

“Não temos deveres diretos com relação aos animais. Eles não possuem
autoconsciência e existem meramente como meios para um fim. Esse
fim é o homem.”

IMMANUEL KANT (1724-1804)

Tal afirmação de KANT, proferida durante uma de suas concorridas


palestras sobre ética517, revela a atitude do pensador para com os animais.
Conforme destaca DANILO MARCONDES, a obra de KANT pode ser vista como
um marco na filosofia moderna.518

A filosofia moral de KANT engloba as questões éticas na dimensão


da razão prática e não mais da razão pura. Assim, o autor escreve
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Crítica da Razão Prática
(1788) e Metafísica dos Costumes (1797). Nestas obras, pretende colocar o
homem como agente livre e racional no âmbito da moralidade e da liberdade
(referindo-se à razão pura, afirma que seríamos limitados pelas nossas
capacidades cognitivas). A moralidade e os princípios éticos, portanto, para
KANT, estariam relacionados à racionalidade humana, aplicando-se a todos os
indivíduos racionais sob quaisquer circunstâncias. Esta ética prescritiva tem por
base o cumprimento do imperativo categórico, lei que se impõe universalmente a

517
KANT, Immanuel. Lectures on Ethcis. Nova York: Harper Torchbooks, 1963. p. 239-40.
518
“Seu pensamento é geralmente dividido em duas fase: a pré-crítica, que vai até a Dissertação
de 1770, e a crítica, a partir da publicação da Crítica da Razão Pura (1ª ed. 1781). Em sua fase
pré-crítica, KANT pode ser considerado um representante típico do chamado ‘racionalismo
dogmático’, caracterizado pela forte influência do sistema ‘Leibiniz-Wolff’, isto é, do predomínio,
sobretudo no contexto alemão, da filosfia racionalista inspirada em Leibniz e desenvolvida e
sistematizada por Christian Wolff (1679-1754). Segundo ele mesmo nos relata em seus
Prolegômenos, foi a leitura de Hume que o despertou de seu ‘sonho dogmático’. Os
questionamentos céticos de Hume abalaram profundamente Kant, que visava empreender uma
defesa do racionalismo contra o empirismo cético. Percebeu, no entanto, a importância das
questões levantadas pelos empiristas, destacadamente Hume, e acabou por elaborar uma filosofia
que caracterizou como racionalismo crítico, pretendendo precisamente superar a dicotomia entre
racionalismo e empirismo. É significativo que Kant, formado no contexto do racionalismo alemão,
tenha dedicado a Crítica da Razão Pura518 a Bacon, o iniciador do empirismo. Em sua Lógica
(Jäsche) (Intr. Cap. III, Ak 25), Kant define a filosofia como ‘a ciência da relação de todo
conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana’ [...]” (MARCONDES,
op.cit., p. 207).

- 175 -
todos os seres racionais no sentido de que: “Age de tal forma que sua ação possa
ser considerada como norma universal”.

Como se percebe, toda a retórica Kantiana no campo da moral do


dever se fundamenta na racionalidade humana e somente nela. As demais
criaturas estariam, assim, alijadas, ab initio, de quaisquer considerações de
ordem ética ou moral. De fato, levando tal concepção às últimas conseqüências,
outra não poderia ser a conclusão do filósofo a não ser que os animais, sendo
desprovidos de razão, seriam meros meios para o fim último que é o homem.

O mundo engendrado por KANT é, neste sentido, um mundo


marcado pela dominação519. A razão submete, pois, a natureza. Segundo KANT:

[...] é mister, pois, que a razão enfrente a natureza, armada, por um lado
de seus próprios princípios unicamente capazes de dar aos fenômenos
concordantes entre si a autoridade de leis e, por outro, da
experimentação excogitada por ela de acordo com tais princípios, a fim
de instruir-se por ela, não como um aluno que aceita docilmente tudo o
que o professor lhe dita, mas como um juiz que, no exercício de sua
função, compele as testemunhas a responderem às perguntas propostas
por ele.

Nesta linha, embora reconhecesse que os animais pudessem sentir


e sofrer, KANT negava que teríamos quaisquer obrigações morais para com eles,
pois não poderiam ser considerados racionais ou auto-conscientes. Seriam meros

519
ALFREDO ATTIÉ, comentando a doutrina kantiana afirma que: “A cultura, porém, não está, por
assim dizer, na natureza, já que o homem, segundo elemento deste mundo, ao ser dotado de
razão – que o distingue do restante das criaturas – vê em seu poder a faculdade de tudo
transformar, sem limites: ‘numa criatura, a razão é a faculdade de ampliar as regras e os
propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece nenhum
limite para seus projetos’. Vemos, portanto, desenrolar-se uma filosofia dominadora: a encarnação
da moral. Um projeto, de livrar o mundo das ‘limitações naturais’ para fornecer ao indivíduo a
plena ‘liberdade’, o inteiro poder de destruir e reordenar o universo, escravizar as forças inferiores
da natureza, pô-las à disposição da ‘razão’, princípio ‘iluminador’. A natureza, pois, adquire dois
significados, distantes da concretude de sua presença: um primeiro que a faz instrumento de ação
humana no mundo, quando deve ser subjugada. Aqui ela fica assimilada à animalidade. Um
segundo, em que é uma ordem ideal, que sobrepuja nosso entendimento. Na verdade, é a
trincheira da ‘razão’ pois quem impõe o fio condutor é o mesmo Kant, que o deseja de tal modo
necessário, afirmando tratar-se de uma imaginada ‘ação natural’. Em verdade, possui ojeriza de
tudo que seja natural: o instinto animal, a sociedade selvagem, que devem ser superados” (ATTIÉ,
op.cit., p. 277-8).

- 176 -
“instrumentos” para os fins humanos, existindo tão somente para o nosso uso e
bem-estar, não possuindo valor intrínseco. O correto tratamento dos animais só
possui relevância para o filósofo por suas conseqüências e impacto sobre o
próprio homem (teoria dos deveres indiretos, tal qual exposta por
520
ARISTÓTELES ). Argumentava que se atirássemos e matássemos um fiel e
obediente cão por sua avançada idade e incapacidade de bem servir, tal ato seria
errado não por violar uma inexistente obrigação para com o cão, mas sim por
enfraquecer a obrigação do homem para com o homem de prestigiar e valorizar
os bons serviços prestados.

A revolução Kantiana, sob o prisma da razão pura, poderia ser


enquadrada como uma colocação do sujeito como senhor do universo; dominador
de todas as coisas. O estabelecimento por ela da inexistência de obrigações
morais para com os animais, conforme se verá, foi refletido diretamente na
mentalidade do século XVIII e XIX e, em especial, na legislação que também não
as reconhecia ou, quando o fazia, não reconhecia o interesse do animal, mas sim
os do próprio homem (que se tornaria cruel para com os seus).

520
A teoria dos deveres indiretos (indirect duties) foi desenvolvida por REGAN para justificar a
necessidade da linguagem dos direitos no que se refere ao tratamento dos animais não-humanos.
O tema será abordado em detalhes em momento posterior do presente trabalho.

- 177 -
1.9. A Era Vitoriana e a Revolução de Darwin

“Tendo provado que os corpos de homens e de seres brutos são de um


só tipo, é quase supérfluo considerar as mentes.”

CHARLES DARWIN (1809-1882)521

“’Por longo tempo’, disse uma dama presente, ‘estive acostumada a


considerar os animais como meras máquinas, acionadas pela mão
infalível da Providência, para fazer aquilo que é necessário à sua própria
preservação e de sua prole; mas à vista do Porco Sabido, recentemente
exposto em Londres, minhas idéias embaralharam-se e não sei o que
pensar.”

SARAH TRIMMER (1741-1810)522

1.9.1. “Coisificação” como Status Quo

“Cristalino é que, com base numa concepção filosófica do Direito de tipo


personalista, as normas jurídicas e todas as atividades que se exercem à
sua sombra visam sempre colocar a pessoa humana no cume dos
respectivos objetivos, e nunca secundarizá-la ou sobrevalorizar outras
realidades que devem estar inferiormente localizadas.”523

JORGE BACELAR GOUVEIA

Como se verificou, o antropocentrismo, nas suas mais variadas


formas e acepções, foi a corrente de pensamento predominante até o século XIX
no que diz respeito ao relacionamento do homem com o mundo natural. De fato, a
maior parte dos teólogos e filósofos endossava a visão de que os animais teriam

521
DARWIN, Charles. Notebooks on Transmutation of Species. Sir Gavin de Beer (org.), Bulletin of
the British Museum (Natural History), Historical Series, 2 (1959-1963), p. 163, apud THOMAS,
op.cit., p. 110.
522
TRIMMER, Sarah. Fabulous Histories Designed for The Instruction of Children, 1788, p. 71,
apud THOMAS, op.cit., p. 110.
523
GOUVEIA apud ARAÚJO, op.cit., p. 63.

- 178 -
sido criados unicamente com o propósito de servirem e de serem úteis ao
homem. A própria história natural corroborou esta noção que, até os dias de hoje,
encontra-se fortemente arraigada em nossas mentes.

No entanto, já nos primórdios do século XVIII, com o advento do


microscópio, vários entomologistas conduziram experimentos para demonstrar e,
ao final, provar, que ao contrário do que amplamente se acreditava, as larvas não
se originavam espontaneamente da carne em decomposição e sim de ovos lá
colocados por insetos diversos. Muito embora neste período possa-se notar uma
tentativa de desvinculação da natureza com o universo moral humano (com
iniciativas de estudo da realidade física como entidade autônoma), o mundo
natural ainda era visto como uma projeção das relações sociais humanas e como
realidade fundamentalmente distinta da sociedade humana. O próprio ADAM
SMITH (1723-1790) via na “economia da natureza” fenômenos como a divisão
compartimentalizada do trabalho, a economia contra o desperdício e a atuação da
chamada “Mão Invisível”.524

O manejo, criação e o trato dos animais ainda era bastante


brutalizado. A hierarquia da Grande Cadeia do Ser fornecia a justificação para o
tratamento cruel sem trazer qualquer carga de culpa. Como ressalta um pregador
do final do século XVII: “[...] esses (animais para alimentação) são criados tão-só
para o abate: nós os matamos e comemos, sem consideração por seus gritos e
convulsões, quando a faca é enfiada em seu coração.”525

A crueldade sem culpa é brilhantemente ilustrada pelo enciclopédico


KEITH THOMAS, que nos traz o seguinte relato:

Como explicaria a Judas Arabella de Thomas Hardy, os porcos não


deviam ser abatidos com muita pressa: ‘a carne precisa sem bem
sangrada e para isso ele deve morrer devagar. [...] Fui criada ali e

524
JOHN DENNE comentou em 1745 que: “Embora exista uma incontável variedade de criaturas e
cada indivíduo pareça estar agindo por si mesmo, tendo em vista seus próprios fins particulares;
ainda assim [...] todos eles conjuntamente [...] de fato conspiram para o poderio e a conveniência,
a beleza, harmonia ou perfeição do conjunto; e, o que é mais importante, contribuem de alguma
maneira e em algum grau para o benefício e felicidade de cada um.” (DENNE apud THOMAS,
op.cit., p. 107).
525
FLAVELL, John. Husbandry Spiritualized, 1669, p. 209, apud THOMAS, op.cit., p. 111.

- 179 -
conheço o assunto. Todo bom açougueiro torna a sangria longa. O
animal deve ficar até oito ou dez minutos morrendo, pelo menos.’ Bem
cedo, além disso, os animais machos criados para alimentação seriam
normalmente castrados. A tripla justificativa para essa antiqüíssima
prática era que tornava o animal de mais fácil manipulação, impedia que
dissipasse suas energias na atividade sexual e ajudava a produzir uma
carne mais gorda, saudável e saborosa. [...] Consideravam-se os touros
não castrados com impróprios para alimento, a menos que fossem
primeiro atacados por cães; o violento exercício ajudaria, segundo se
pensava, a diluir o sangue do animal e a tornar sua carne mais tenra.
Conseqüentemente, no final do período medieval e no início do período
moderno, a maioria das cidades tinha uma lei que obrigava ao
açulamento do touro antes do abate pelo açougueiro. [...] Nos tempos
elisabetanos, a forma usual de ‘engordar’ porcos era mantê-los “num
cômodo tão estreito que não podem virar-se de lado[...] o que os força a
ficarem sempre deitados sobre o ventre’. (‘Depois de engordá-lo de uma
forma adequada’, continua a receita, ‘enfie uma faca num de seus
flancos e deixe o sangue correr até que ele morra [ou] açule-o
gentilmente com cães amordaçados’.) Como disse um contemporâneo,
‘eles se alimentam com dor, deitam com dor e dormem dolorosamente’.
As aves domésticas e de caça eram muitas vezes criadas em escuridão
e confinamento, ocasionalmente sendo também cegadas. ‘O galo
castrado’ explicava-se, ‘é chamado capão, devendo-se empanturrá-lo em
uma gaiola’. Dizia-se que os gansos ganhariam peso se as membranas
de seus pés fossem pregadas ao chão; e era costume de algumas
donas-de-casa do século XVII cortar as pernas de aves vivas, na crença
de que isso faria sua carne mais tenra. Em 1686, sir Robert Southwell
anunciou uma ‘nova invenção de um estábulo no qual o gado [...] se
alimenta e bebe na mesma manjedoura e não se mexe até que esteja
pronto para o abate.526

O mais incrível é que a situação da criação e do abate de animais


para o consumo não se modificou significativamente desde então. Mesmo os
animais tidos como extremamente úteis, e aqueles que eram símbolo de status,
eram tratados de maneira impiedosa. Ainda sob os relatos de KEITH THOMAS,

526
THOMAS, op.cit. p. 112.

- 180 -
temos que os cavalos, quando usados para carga e tração, eram tratados com
muita severidade. ‘

Quantas vezes não os vi sucumbir sob a carga’, exclamava um pregador


em 1669, ‘combalidos das pernas e tombados para um lado, com as
costas em carne viva, pelos campos ou cidades, virando-se em busca de
um pouco de capim. Muitas vezes os ouvi e lamentei, gemendo sob
cargas absurdas e surrados por condutores impiedosos até que, enfim,
graças a tal uso cruel, eles fossem destruídos e atirados em uma vala
para servirem de pasto aos cães.’ [...] Quando gastos, eles eram
rapidamente esquecidos. De um cavalo que não mais servia para o
trabalho, anotava um pregador, ‘todo homem dirá: melhor golpeá-lo na
cabeça que mantê-lo [...]. Sua pele, embora sem grande valor, vale mais
que o animal que ela contém’.527

Apesar de o cão ter sempre ostentado a condição de animal


preferido dos ingleses, muitas vezes não mereciam melhor tratamento que o
dispensado aos cavalos528 529
. Os gatos não tiveram melhor sorte. Tidos como
animais impuros e sujos que viviam da pilhagem e da alimentação de animais
daninhos, eram boicotados por trazerem supostas doenças respiratórias.
Exemplificativamente temos o caso do conflito entre católicos e protestantes, em
que se constrói, do lado protestante, uma teoria conspiratória chamada “complô”
papista”, que serve de pretexto para a perseguição de católicos. Os eventos que
marcaram o período eram as procissões em que se queimavam efígies do papa.

527
Ibid., p. 120.
528
“Muitos desses cães do século XVII tinham funções práticas. Puxavam carroças, trenós e
mesmo arados. Eram indispensáveis a pastores, tropeiros, agricultores e açougueiros. Nas
grandes mansões serviam de vigias. Alguns deles eram até usados para seguir o rastro de
criminosos. Com freqüência, havia uma ligação estreita entre cão e dono, especialmente no caso
de cães pastores, cujas maravilhosas habilidades eram compreensivelmente admiradas. Mas, em
geral, esses cães trabalhadores parecem ter sido considerados sem maiores sentimentos; e
normalmente eram enforcados ou afogados quando deixavam de ter utilidade. ‘Meu velho cão
Quon foi morto’ escreveu um agricultor de Dorset em 1698, ‘e o cozinhamos para fazer banha, que
rendeu cinco quilos’” (Ibid., p. 123).
529
A relação com os cães foi sempre ambivalente. Do mesmo modo que eram desprezados e
tidos como animais sujos, promíscuos e daninhos (daí as expressões populares como “vida de
cão” e “mundo cão” entre outras), alguns, especialmente os de caça, eram adorados e tidos como
sagazes, fiéis, corajosos e obedientes.

- 181 -
Era costume se encher essas efígies de gatos vivos para “aumentar o efeito
dramático” do evento.

1.9.2. Novas Sensibilidades

“Seres superiores, quando há pouco viram


Um mortal desvendar toda lei da natureza,
Admiraram tamanha sabedoria numa forma terrena
E apresentaram Newton como apresentamos um macaco.”530 531
ALEXANDER POPE

A figura do animal de estimação532 foi sendo lentamente assimilada.


Criar mascotes tornou-se um modismo aristocrático na Idade Média. Tanto é
assim que são relatadas importações de macacos já no século XIII. A acumulação
de riqueza permitia o sustento de animais sem valor produtivo direto. Consoante
sentencia KEITH THOMAS:

Em resposta ao desenvolvimento do animal de estimação, como objeto


de satisfação emocional na vida privada, a própria lei foi se modificando,
para incorporar a nova noção de que um mascote podia ser objeto de
propriedade, mesmo quando não fosse empregado para tração ou
alimento. Num processo de 1521, um juiz negou que pudesse haver
propriedade de animais domesticados cujo único uso estivesse ligado ao
prazer; era possível ter a sua posse, não sua propriedade. Mas os outros
juízes discordaram. ‘Se tenho um papagaio ou um tordo, que canta e me
refresca o espírito’, dizia um deles, ‘é para mim uma grande satisfação e

530
POPE apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 259.
531
Ironicamente, no futuro, acaso sejam descobertas novas formas de vida inteligente, os
partidários da teoria da Grande Cadeia do Ser se veriam forçados, como já antecipa POPE, a se
curvarem diante de criaturas de possível superioridade intelectual. A hipótese ilustra mais uma
fraqueza, dentre tantas outras, de tal corrente de pensamento.
532
O animal de estimação possuía alguns traços distintivos dos demais. Tinha a permissão de
entrar e circular livremente pela casa, de lá dormir e de sair ao lado de seu dono aonde quer que
ele fosse. Além disso, recebia um nome individualizado, muitas vezes, principalmente após o
século XVIII, um nome tipicamente humano. Outra característica, fruto da posição social que o
animal de estimação passou a ocupar na sociedade, é a de que jamais serviam de alimento.

- 182 -
se alguém o rouba causa-me um grande mal.’ Mesmo sem poderem ser
objeto de furto, tais pássaros podiam ser possuídos, cabendo, pois, uma
ação privada para reavê-los. Em 1588, admitia-se que um cão, ‘sendo
coisa doméstica graças à indústria humana’, podia efetivamente
constituir objeto de propriedade, e que a lei reconhecia quatro tipos de
cães, a saber: os mastins, os sabujos (inclusive os galgos), os spaniels e
os cães acrobatas. Outro processo judicial datado de 1611 confirmou
que macacos e papagaios podiam constituir propriedade comercial.
Ainda assim, a lei relutava em perseguir aqueles que furtavam animais
de estimação. A obra de Michale Dalton, Country Justice (Justiça Rural),
explicava, em 1655, que não constituía furto roubar cães, chimpanzés,
esquilos, papagaios e pássaros canoros, se mantidos apenas para o
prazer, mesmo que ‘estejam em casa e domesticados’533 534.

As novas sensibilidades iam se consolidando ao longo do século


XVII e XVIII, moldando uma nova percepção acerca da inteligência dos animais.
DAVID HUME, por exemplo, concedia aos animais o poder de “raciocínio
experimental”, pelo qual poderiam raciocinar e pensar, ainda que de forma inferior
à humana. A maior interação e observação dos animais domésticos e de
estimação contribuiu de maneira decisiva para a incorporação de uma visão mais
positiva acerca dos mesmos e de uma aceitabilidade mínima acerca de suas
capacidades sensíveis mais elementares.

ERASMUS DARWIN (1731-1802), médico, avô de CHARLES


DARWIN, já refutava a antiga crença de que os animais não teriam direitos
porque não estabeleciam contratos ao afirmar que: “Não nos convence a
observação diária de que eles estabelecem pactos de amizade entre si e com a
espécie humana? Quando cãezinhos e gatinhos brincam uns com os outros não é

533
THOMAS, op.cit., p. 135.
534
Os animais de estimação, com o tempo, passaram a realmente ter imenso valor sentimental,
afetivo e econômico. Tanto é que na Londres vitoriana, era muito comum o fenômeno conhecido
por “dog robbery” (roubo de cães), no qual havia o roubo do animal seguido de um pedido de
resgate. Tal fato deu origem ao famoso livro de VIRGINIA WOOLF, Flush, publicado em 1933,
romance que baseia-se na correspondência havida entre ROBERT BROWNING (1812-1889) e
ELIZABETH BARRET BROWNING (1806-1861). Nas centenas de cartas trocadas em um espaço
de quinze meses, o que mais chamou atenção de VIRGINIA WOOLF foi a singular figura de um
cão, “Flush”, fiel companheiro da sempre adoentada ELIZABETH. Baseando-se nessas figuras
reais e históricas, WOOLF escreveu a obra que conta as angústias do casal quando seu amado
cão foi roubado.

- 183 -
por um acordo tácito de que não se machucarão? E o teu cachorro favorito não
espera que lhe dê sua refeição diária, pelos serviços e pela atenção que te
prestou?”535

Pode-se dizer que o lento e gradual movimento de reação à visão


ortodoxa dos animais como seres inferiores teve duas correntes principais.
Poderíamos classificar uma delas por ser a do “rebaixamento”, ou seja, os
homens é que deveriam se voltar para seus instintos naturais, pois não eram
moralmente melhores que as demais criaturas, sendo talvez até piores536. Outra
corrente era a da “elevação”, caracterizada pelo argumento de que os animais
eram intelectualmente equiparáveis aos homens.

Todo esse início de mudança de mentalidade foi acompanhado de


intenso debate. Tanto é assim que, em 1615, os professores JOHN PRESTON e
MATTHEW WREN travaram debate fervoroso na Universidade de Cambridge
sobre a questão de se os cães poderiam ou não raciocinar.

No final do século XVII, a visão de HUME era predominante, ou seja,


pensava-se que os animais podiam efetivamente pensar e raciocinar, embora de
forma notadamente inferior. Segundo o deão de Winchester, em 1683, “Mesmo
naquilo que imaginamos ser nossa prerrogativa exclusiva, o raciocínio, eles
parecem ter uma parte [...] . Seu conhecimento estende-se não somente a objetos
simples, mas, o que fica evidente pela sutileza e mansidão tão maravilhosas em
muitos deles, a hipóteses e deduções.”537

535
DARWIN, Erasmus, apud THOMAS, op.cit., p. 146.
536
Os “céticos” adotavam a idéia de que o destino do homem e das demais criaturas era idêntico,
indiscernível. Apegavam-se, para tanto, aos dizeres do Eclesiastes, 3, 18-19, pelo qual: “Quanto
aos homens penso assim: Deus os põe à prova para mostrar-lhes que são animais. Pois a sorte
do homem e a do animal é idêntica: como morre um, assim morre o outro, e ambos têm o mesmo
alento; o homem não leva vantagem sobre o animal, porque tudo é vaidade. Tudo caminha para
um mesmo lugar: tudo vem do pó e tudo volta ao pó.” Os mortalistas, por sua vez, rejeitavam o
dualismo entre corpo e alma. Ao assim pensarem colocavam em cheque o sistema da
imortalidade do homem, colocando-o em pé de igualdade, neste aspecto, com os animais. “Afirmar
a mortalidade da alma, concordava sir kenelm Digby, ‘afasta toda a moralidade e faz dos homens
animais.’” (THOMAS, op.cit., p. 148). Os heréticos e materialistas acreditavam que os homens não
passavam de meros animais. Como exemplo podemos citar LA METTRIE (“Dos animais aos
homens a transição não é violenta”), o visconde de BOLINGBROKE e o antiquarista MARTIN
FOLKES.
537
Ibid., p. 150.

- 184 -
A própria linguagem também passou a ser creditada a algumas
espécies animais. O já comentado MONTAIGNE chega a afirmar: “Nós não os
entendemos mais do que nos entendem. Pela mesma razão eles podem nos
considerar tão animais quanto eles.”538 539
Todavia, os juristas jacobinos,
resistentes à incorporação das novas idéias, aclamavam não só a impossibilidade
do “diálogo” homem-animal como propugnavam pela declaração legal de “idiota” a
quem se dispusesse a tais práticas.

Ainda no século XVII, a anatomia comparada540 e a neurologia


desvelam as enormes semelhanças anatômicas entre os órgãos humanos e
animais, desferindo mais um duro golpe contra a idéia de que seríamos
estruturalmente diversos do restante da criação. O próprio cérebro humano, tido
como a sede da razão, não divergia fundamentalmente daqueles encontrados em
outras espécies. Sir THOMAS BROWNE chegou mesmo a comentar que “No
cérebro, que chamamos sede da razão, não há nada importante que eu não
possa descobrir no crânio de um animal.”541 O próprio LINEU (1707-1778), em
seu Systema Naturae, não fazia mais a distinção entre animais “racionais” e

538
MONTAIGNE apud THOMAS, op.cit., p. 153. O mesmo autor nos relata também o caso de
NATHANIEL HOMES que, em 1661, afirmou: “Todo homem pode observar que, através de seu
conhecimento sensível, eles mostram uma vontade suficiente de aceitar ou recusar um objeto; de
comunicar seus desejos mediante sons ou notas vocais; de expressar suas afeições de amor e
ódio mediante a sociabilidade e conflitos, de alegria e pesar por outras notas e ruídos. O fato de
que os humanos normalmente não entendessem a linguagem animal nada provava; afinal,
quantos ingleses compreendiam o japonês?” (Ibid., p. 153)
539
Na sua “Apologie de Raimond Sebond”, de 1580, MONTAIGNE coloca ênfase na vertente ética
de consideração pelos animais, destoando da tradição dos bestiários medievais (de CONRAD
GESSNER e ULISSE ALDROVANDI). Nela chegou a afirmar: “A Natureza acolheu universalmente
todas as criaturas; e não há nenhuma que ela não tenha fornecido plenamente de todos os meios
necessários à conservação de seu ser” (MONTAIGNE apud ARAÚJO, op.cit., p. 58).
540
EDWARD TYSON (1650-1708), tido como o melhor anatomista comparativo da Inglaterra,
publica em 1669 o seu “Orang-Outang, sive Homo sylvestris: or, the anatomy of a pigmy compared
with that of a monkey, an ape, and a man” (“Orang-Outang, sive Homo sylvestris: ou, a anatomia
de um pigmeu comparada com a de um macaco, a de um grande símio e a de um homem”).
541
De fato, a introdução, em massa, na Europa dos primatas africanos trouxe uma série de
experimentações que levavam às mesmas conclusões. Entidades renomadas de medicina como a
Surgeon´s Hall de Londres realizavam dissecações e demonstravam a similitude entre as peças
anatômicas humanas e animais. (Ibid., p. 155). A par deste fato, a descoberta, no século anterior,
dos ditos “selvagens nus do Novo Mundo” também serviu para estreitar na mente colonizadora a
linha divisória do homem com o animal. Os filósofos setecentistas nutriam também especial
atenção às chamadas wolf children (crianças-lobo), crianças que eram descobertas vivendo em
aparente isolamento nas florestas e ambientes inóspitos.

- 185 -
“irracionais”542. O homem era inclusive classificado na mesma ordem (primates)
que incluía os primatas e até mesmo morcegos, e no mesmo gênero do
orangotango543 (homo).

Importante ressaltar que ao mesmo tempo em que a anatomia


comparada fornece bases para o reconhecimento da afinidade entre homens e
animais, também ampara, ao menos em seus primórdios, os princípios
continuativos da Grande Cadeia do Ser. As lacunas existentes entre os grupos de
seres vivos perturbavam intensamente os seus defensores, especialmente as
havidas entre os símios e o homem. Colocar os primatas modernos como
ancestrais diretos do homem, ou mesmo como formas intermediárias544, quando
na verdade são membros de um ramo evolutivo lateral, consiste em uma
manutenção falaciosa daquela teoria. Segundo GOULD, “os cientistas buscavam
formas intermediárias com avidez (e inquietude); a descoberta de Tyson produziu
uma confirmação bem-vinda de uma teoria estabelecida – a cadeia do ser -, não
um desafio baseado numa idéia radicalmente diferente – a evolução -, a qual não
seria ampla e seriamente discutida por mais de um século. A obra de Tyson
recebeu poucos comentários porque era confortadora e não polêmica.”545 546

Pode-se afirmar que a única categoria taxonômica que não é


arbitrária é a referente à espécie. As demais, tais como família e gênero, são
totalmente arbitrárias. Nós as “inventamos” devido ao auxílio que elas

542
LINEU contou com inúmeras críticas ao seu pensamento inclusivo. BUFFON, por exemplo, era
partidário da tese de absoluta descontinuidade entre os primatas e o homem. O pensamento da
cristandade era, também, em geral, absolutamente contrário à teses igualitárias e evolucionistas.
543
O orangotango era o Homo sylvestris. JEAN JACQUES ROUSSEAU, anos antes, reconhecera
que os orangotangos eram homens sem desenvolvimento. Essa noção tornou-se recorrente. Em
1774, o lorde escocês MONDODDO desfilava tese idêntica.
544
Humanos e primatas se dividiram em espécies diferentes há cerca de 5 milhões de anos, com
uma parte evoluindo para os atuais chimpanzés e bonobos e outras para os demais símios e
também para os primatas bípedes eretos dos quais descendemos diretamente (Homo
Australopithecus, Homo Ardipithecus, Homo Paranthropus, por exemplo).
545
GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 248-9.
546
Prova disto é a assertiva de TYSON no sentido de que: “Trata-se de uma observação
verdadeira, a qual não se pode fazer sem admiração, de que a transição dos minerais para as
plantas, das plantas para os animais, e dos animais para o homem é tão gradual, que parece
haver uma similitude bastante grande entre as plantas mais humildes e alguns minerais, assim
como entre a categoria mais inferior dos homens e o tipo mais alto de animais. O animal do qual
forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do gênero humano, parece ser o nexo entre o
animal e o racional” (TYSON apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 249).

- 186 -
proporcionam para a o estudo sistemático da taxonomia. Ao julgamento subjetivo
de cada pesquisador fica a tarefa de delimitar, através de diferentes
metodologias, as fronteiras entre os diversos gêneros e demais categorias
superiores.

Desde a década de 60, diversos estudos e pesquisas vêm sendo


conduzidos no sentido de classificar a espécie humana com maior rigor
científico547. Na atualidade, com o surgimento da tecnologia de análise de material
genético (mapeamento cromossômico e de DNA), a tendência é privilegiar uma
taxonomia “genética” que, por sua vez, permite que se demonstre, com maior
exatidão, as relações evolutivas e de similaridade havidas os seres vivos em
detrimento de uma análise meramente morfológica. No ano de 2005 houve a
finalização do seqüenciamento do genoma do chimpanzé548, tido como nosso
parente mais próximo. A proximidade constatada foi espantosa549. O estudo
confirma as previsões anteriores de que muito pouca coisa separa as duas
espécies em termos genéticos. As diferenças no DNA de humanos e chimpanzés
são de apenas 4% dos quase 3 bilhões de bases que compõem ambos os
genomas. Quando tomamos como base os genes propriamente ditos, a
similaridade sobe para estonteantes 99%. Segundo TARJEI MIKKELSEN,
matemático do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), “É natural pensar
que, se os humanos são tão ‘especiais’, isso deveria ser refletido em
características ‘especiais’ da seqüência do genoma. Mas agora que nós temos o
genoma completo, é impressionante ver que os processos que levaram à
evolução da espécie humana são os mesmos, e ocorreram no mesmo ritmo, que
os que modelaram a evolução de outros mamíferos.”

547
Um dos primeiros a verificar a proximidade do parentesco dos homens e chimpanzés foram os
biólogos norte-americanos VICENT SARICH (1934-) e ALLAN WILSON (1934-1991) que,
coletando dados sobre a proximidade protéica entre as espécies, concluíram que divergiram há
somente 5 milhões de anos.
548
O aguardado seqüenciamento foi divulgado pela revista NATURE de 01/09/2005.
549
Somente para exemplificarmos a enorme proximidade, humanos e chimpanzés são
geneticamente 10 vezes mais parecidos que ratos e camundongos.

- 187 -
O biólogo DANIEL ZANELLA KANTEK defende a tese segundo a
qual:

[...] os dados genéticos relativos à proximidade entre as espécies em


questão nos fornecem uma proposta diferente da tradicional sobre a
taxonomia deste grupo. Os índices de similaridade genética propostos
para identificar diferenças entre várias espécies crípticas (dificilmente
discerníveis por caracteres morfológicos) de Drosophila são maiores que
os propostos para a comparação entre humanos e chimpanzés. Deste
modo, ao utilizarmos como critério taxonômico de separação das
espécies em gêneros, o grau de diferença em nível molecular, conclui-se
Homo e Pan devem ser agrupados em apenas um gênero. Não devemos
adotar uma postura para humanos e outra para outros organismos.”550

De acordo com os estudos mais recentes, não se justifica, pois, a


existência de dois gêneros apartados para classificar esses organismos. Segundo
o referido autor, “A existência de dois gêneros separados para esses organismos
é decorrente das diferenças apontadas acima (diferenças morfológicas), e é claro
pelo fato de que os classificadores são seres humanos. Além disso, existe a
dificuldade social de aceitar um ‘mero’ chimpanzé como um Homo.”551

Nosso ancestral comum com os chimpanzés e gorilas é muito mais


recente que o existente entre eles e os seus primos asiáticos tais como gibões e
orangotangos552, de modo que biologicamente seria artificioso manter uma
categoria natural que os inclua e exclua a espécie humana553. A ilustração
fornecida por RICHARD DAWKINS é primorosa e vale ser transcrita:

550
KANTEK, Daniel Luis Zanella. Homo troglodytes? Apontamentos sobre a relação evolutiva
entre homens e chimpanzés. Disponível em: <http://www.evoluindo.biociencia.org/homo-pan.htm>.
Acesso em 01 jul. 2005.
551
KANTEK, op.cit.
552
Os homens e os grandes primatas são mais próximos entre si do que os chamados macacos.
De acordo com evidências fósseis, os macacos se separaram dos grandes primatas entre 25 a 30
milhões de anos atrás, enquanto os orangotangos se separaram dos chimpanzés e dos gorilas
entre 12 e 16 milhões de anos atrás. Os gorilas, por sua vez, se separaram dos chimpanzés por
volta de 9 milhões de anos atrás. Os homens divergiram da linha evolucionária dos chimpanzés há
aproximadamente 5 a 7 milhões de anos e os bonobos há 3 milhões de anos.
553
O tema é bastante controverso, mas é razoável fixar-se que o gênero Homo teria surgido há
cerca de 3 milhões de anos com o trio Homo habilis, Homo Ergastere e Homo rudolfensis.

- 188 -
Em certas ocasiões se organizam happenings nos quais milhares de
pessoas se dão as mãos formando uma corrente humana, por exemplo,
de costa a costa dos Estados Unidos, em apoio a alguma causa ou
instituição de caridade. Imaginemos uma corrente deste tipo, distribuída
ao longo da linha do equador, atravessando o nosso continente natal, a
África. Trata-se de um tipo especial de cadeia, envolvendo pais e filhos e
teremos que fazer alguns truques em relação ao tempo para poder
imaginá-la. Você fica na costa do oceano Índico na região Sul da
Somália, voltado para o norte, e com sua mão esquerda segura a mão
direita da sua mãe. Esta, por sua vez, segura a mão da mãe dela, ou
seja, de sua avó. Sua avó segura a mão da mãe dela, e assim por
diante. A corrente segue junto à praia, atravessa a savana e continua
seu percurso para o oeste na direção da fronteira do Quênia. Que
distância teremos que percorrer até encontrarmos nosso ancestral
comum com os chimpanzés? Uma distância surpreendentemente curta.
Concedendo cerca de um metro para cada pessoa, chegaremos ao
ancestral partilhado com os chimpanzés em menos de quinhentos
quilômetros554.

Desta feita, de acordo com as novas tendências taxonômicas,


surgidas principalmente com o advento e aprimoramento dos estudos de genética
e de similaridade anatômica, existem argumentos científicos de sobra para que
possa afirmar que o homem e os grandes primatas pertencem à mesma família
(hominidae) e ao mesmo gênero (Homo). 555 556

Nesta mesma linha, THOMAS HUXLEY (1825-1895), em sua obra


Evidence as to Man´s Place in Nature (1863), e o seu brilhante compatriota
CHARLES DARWIN (1809-1882), em seu clássico The Descent of Man (1871), já

554
DAWKINS, op.cit., p. 47.
555
Em 1971, GEORGE G. SIMPSON (1902-1982), renomado paleontólogo de Chicago, em sua
clássica obra “Princípios de Taxonomia Animal”, classificou os humanos e chimpanzés sob a
mesma superfamília, chamada Hominoidea. MORRIS GOODMAN (1918-) também propôs, em
1985, que essas espécies fossem abarcadas sob a mesma família (Hominidae).
556
O SmithSonian Institute, uma das mais respeitáveis instituições científicas, já adota essa nova
taxonomia e nas últimas edições da publicação Mammals Species of the World, todos os grandes
primatas já estão como integrantes da mesma família (hominidae): Homo troglodytes
(chimpanzés), Homo paniscus (bonobos), Homo gorilla (gorilas) e Homo sapiens (homem) (cf.
BURGIERMAN, Denis Russo. Chimpanzés São Humanos. Revista Superinteressante, São Paulo:
Abril, 2003, p. 24).

- 189 -
reconheciam amplamente a afinidade entre humanos e símios. Demonstraram
que cada vez mais o homem era, e continua sendo considerado pela ciência
como somente uma espécie animal dentre tantas outras, relacionando-se com
elas por meio de relações de proximidade e parentesco. Percebe-se que o
paradigma científico modifica-se gradualmente na direção de retirar do homem a
condição de “ser único e especial”, tendo sido gerado pelos mesmos processos
evolutivos e inserido na natureza, assim como todos os demais. A relação de
descontinuidade entre humanos e não-humanos começa a desmoronar.

1.9.3. Idéias Embrionárias

“A palavras ‘monos’ geralmente se refere a chimpanzés, gorilas,


orangotangos, gibões e siamangues. Admitimos que somos parecidos
com os macacos, mas raramente nos damos conta de que somos
macacos.”557

RICHARD DAWKINS

O estreitamento conceitual da humanidade com o reino animal abria,


sutilmente, espaço às conjecturas, ainda embrionárias, acerca da evolução das
espécies. O já citado ERASMUS DARWIN (1731-1802), respeitado médico e avô
do ainda mais renomado CHARLES DARWIN, não por coincidência, foi talvez o
primeiro a se dedicar formalmente à revolucionária idéia558. Era um dos expoentes
científicos do século XVIII, interessando-se por botânica, filosofia e pela poesia.
Como naturalista formulou uma das primeiras teorias formais sobre a evolução

557
DAWKINS, op.cit., p. 47.
558
Antes dele são citados pensamentos de filósofos da Antiguidade que propunham a
descendência animal do homem. Em 1661, JOHN BULWER relatou que um amigo lhe
confideciara que “o homem era uma simples criatura artificial e, de início, não passava de uma
espécie de macaco ou de babuíno [...]” (BULWER apud THOMAS, op.cit, p. 158) LORD
MONBODDO, apesar de enxergar no homem o “ápice da criação” já percebia a idéia evolutiva
quando afirmava: “Não[...] de uma só vez, mas gradativa e sucessivamente; pois parece que, de
início, foi pouco mais que um mero vegetal, mal merecendo o nome de um zoófito; então, adquiriu
o senso, mas de forma a ser pouco melhor que um mexilhão; em seguida, se tornou um animal de
tipo mais complexo; depois, uma criatura racional; e, finalmente, um homem de intelecto e ciência,
ápice e conclusão de nossa natureza.” (MONBODDO apud THOMAS, op.cit., p.159).

- 190 -
em sua obra Zoonomia, or, The Laws of Organic Life (1794-1796). Apresentou
também as suas idéias sob a forma de versos em outra obra chamada The
Temple of Nature (1802), na qual se lê:

Organic life beneath the shoreless waves/ Was born and nurs'd in
ocean's pearly caves;/ First forms minute, unseen by spheric glass,/
Move on the mud, or pierce the watery mass;/ hese, as successive
generations bloom,/ New powers acquire and larger limbs assume;/
Whence countless groups of vegetation spring,/ And breathing realms of
fin and feet and wing.559

Ainda que sutilmente, a poderosa noção de evolução das espécies


começa a romper com a noção de singularidade humana na medida em que
propõe um elo contínuo entre todos os seres vivos. Paralelamente, no imaginário
popular, a linha divisória entre os animais e o homem era diuturnamente
ultrapassada com a convivência íntima havida entre eles. Os “bestiários” de seres
híbridos, que se acreditava existirem (homens-lobo ou lobisomens, trogloditas,
sereias, centauros, minotauros), e as lendas clássicas (tais como Leda e Europa)
fortaleciam essa concepção560.

As noções “erudito/científicas” e populares rumavam conjuntamente


para o fim da noção de perfectibilidade e separação do homem do restante da
criação. Todavia, conforme já tratado anteriormente, a noção de hierarquia entre
os seres era reforçada e ainda se fazia notar especialmente no campo das

559
Disponível em: <http://www.ucmp.berkeley.edu/history/Edarwin.html>. Acesso em: 01 jul. 2005.
560
“Na Inglaterra, sempre existiram famílias que traçavam sua descendência dos animais
selvagens, como Siward, conde de Northumberland sob o reinado de Eduardo, o Confessor, cuja
avó fora violentada por um urso; ou a família dos Sucpitches de Devonshire, que sustentava no
século XVIII que seu ancestral fora encontrado nas florestas da Prússia mamando em uma cadela.
O início do período moderno estava repleto de elos perdidos, meio-homens, meio animais. Os
homens selvagens que supostamente rondavam as florestas da Europa medieval, levando uma
vida de bestial auto-satisfação, não tinham sido esquecidos, mas sobreviveram na escultura, na
gravura, na iconografia e na heráldica, bem como na ficção popular. Em seu sistema
classificatório, Lineu deixou lugar para o homem selvagem (Homo ferus), ‘quadrúpede mudo e
peludo’ e citou dez exemplares encontrados nos dois séculos anteriores. Na Cleveland do rei
Jaime, relatava-se como um Homem Marinho fora trazido à tona por pescadores locais e mantido
a uma dieta de peixe cru até conseguir escapar. A correspondência de sir Joseph Banks revela
que entre 1797 e 1811 pelo menos três sereias foram avistadas ao largo da costa escocesa”
(THOMAS, op.cit., p. 161).

- 191 -
doutrinas racistas, que preservavam a falaciosa superioridade européia
baseando-se na suposta gradação regular vinda desde o homem branco europeu
até os seres ditos “brutos”. Na medida em que a humanidade supera os animais,
os europeus superariam os chamados “povos selvagens”.561 Curioso observar
também que o processo racista de “empurrar” os negros e outras etnias para
baixo rumo às camadas animais (animalização do alter como estratégia de
inferiorização) tendia, simultaneamente, a trazer os animais para próximo da
humanidade, em um movimento de “mão-dupla”.

1.9.4. Tímido Alargamento Moral

“Fala-se na organização de uma sociedade protetora dos animais. Tenho


pelos animais um respeito egípcio. Penso que eles têm alma, ainda que
rudimentar, e que têm conscientemente revoltas contra a injustiça
humana. Já vi um burro suspirar depois de brutalmente espancado por
um carroceiro que atulhava a carroça com carga para uma quadriga, e
que queria que o mísero animal o arrancasse do atoleiro”562

JOSÉ DO PATROCÍNIO (1854-1905)

“[...] não havia echos que repetissem suas lamentações nem seus
gemidos. Todo mundo ignorava se ele sentia; a todos parecia impossível
que pensasse, e pareceria ridículo que cogitasse na liberdade.”563

LUÍS ANSELMO DA FONSECA (1887)

O século XVIII experimentou o apogeu do crescimento da História


Natural e das ciências de modo geral. As discussões de WIILLIAM SMELLIE
sobre as “sociedades animais” e os argumentos de LORD MONBODDO acerca
da “humanidade dos orangotangos” são incluídos como exemplos de novas
561
A noção de que a humanidade abrigava várias espécies diferentes entre si foi fortemente
influenciada pelos relatos das viagens ultramarinas. No século XVIII foi aceita e difundida por
vários filósofos do Iluminismo e tornou-se parte da ortodoxia antropológica européia.
562
PATROCÍNIO apud SANTANA, op.cit., p. 85.
563
FONSECA apud SANTANA, op.cit., p. 85.

- 192 -
visões sobre os animais e sobre a natureza, ocorridas principalmente na virada
para o século XIX. Muito embora nenhum dos autores acima referidos defendesse
abertamente o bem-estar animal, ambos demonstraram a importância do estudo
dos arranjos políticos e sociais dos animais como meio de conhecimento do
humano e não-humano.

O jesuíta GUILLAMUME HYACINTHE BOUGEANT (1690-1743)


ganhou notoriedade com a publicação de sua obra “Amusement Philosophie sur
les Languages des Bêtes” em 1739. Após a publicação, BOUGEANT foi exilado
para La Flèche. Suas teses controvertidas foram sintetizadas posteriormente em
artigo constante da Encyclopédie (1751, v. 1) sob o título “Ame des Bêtes” (“Alma
dos Animais”). O autor sustentava a tese de que os animais eram plenamente
capazes de utilizar a linguagem de maneira extremamente eficaz. Segundo
BOUGEANT, as teorias cartesianas e aristotélicas então prevalentes deveriam ser
rejeitadas, pois as relações passionais é que definem o que é um mero
mecanismo e o que não o é, pelo que seria um absurdo fazer equivaler animais e
objetos inanimados:

Imagine yourself a man who should love his Watch as we love a Dog,
and caress it because he should think himself dearly beloved by it, so as
to think that when it pounds out Twelve or One o´clock, it does knowingly
and out of ternderness for him.564

Mas se animais e homens são seres similares em todos os


aspectos, a eles também deveria ser garantido o acesso à vida eterna e ao
paraíso. BOUGEANT, tentando se ver livre dos embaraços teológicos que sua
teoria poderia lhe causar, constrói a extravagante noção de que os animais
corporificariam entidades demoníacas, razão pela qual restaria explicada a sua
brutalidade e a crueldade com a qual usualmente são defrontados, sendo-lhes,
por tal motivo, negado o acesso aos mesmos privilégios metafísicos humanos.

564
BOUGEANT apud GARRET, Aaron. “Introduction”. In: Animal Rights and Souls in the
Eighteenth Century. Bristol: Thoemmes Press, 2000, v. 1. p v. Disponível em:
<http://www.thoemmes.com/ 18cphil/animal_intro.htm>. Acesso em: 07 nov. 2005.

- 193 -
JOHN HILDROP (1682-1756), em 1743, publica “Free Thoughts
upon the Brute Creation”. Famoso por suas polêmicas, formado pelo St. John´s
College, Oxford, mestre pela Royal Free Grammar School, e articulista regular da
Weekly Standard, tal como BOUGEANT, utiliza a sátira para ridicularizar as
posições mecanicistas. Acreditava que animais possuíam linguagem, e criticava
abertamente BOUGEANT por sua infame teoria das “almas demoníacas”,
advogando pela concessão da vida eterna também com relação a eles. Criticava
também LOCKE, propondo uma escala leibniziana do ser, onde os limites entre
humanos e não-humanos eram fluidos, o que levaria à necessidade imperiosa de
tratá-los eticamente:

Now I would venture to say, that the partition betwixt the lowest degree of
human and the highest degree of brute understanding, is so very slender,
that it is hardly perceptible, and could not in any degree be distinguished
but by a greater fluency of language; which though in the main it may be
considered an advantage to our species in general, yet is it none to those
who seldom make any other use made of it, than to discover the
emptiness of their heads, the perverseness of their wills, or the iniquity of
their hearts, and show how little the real difference is (shape only
excepted) betwixt a sagacious, good-natured, governable, useful animal,
which we agree to call a brute; and a wrong-headed, vicious,
ungovernable, mischievous brute, whom we agree to call a man; and
what authority we have to strike out of the system of immortality so great
a part of the creation, without an absolute and evident necessity, exceeds
my comprehension. If both reason and revelation assure us, that in their
first creation they were all very good: as perfect in their several kinds, as
beautiful in their several orders, as necessary to the universal harmony,
as infinite power and wisdom could make them; if by the special
benediction of their Maker they were to increase and multiply, and
perpetuate their several species, before sin and death entered into the
world; how dare we pretend to reverse this blessing, to correct infinite
wisdom, to alter the established order of things, and pronounce a
sentence of utter extinction upon numerous ranks and orders of beings,
created by infinite wisdom […]565

565
HILDROP, John, op.cit. Disponível em: <http:www.all-creatures.org/ca/ark-195-free.html>.
Acesso em: 07 nov. 2005.

- 194 -
WILLIAM SMELLIE (1740-1785), editor da Universidade de
Edimburgo, foi o responsável pela publicação de “Philosophy of Natural History”,
onde analisa a vida social dos animais, concluindo serem possuidores de
inteligência, personalidade, docilidade e grandes capacidades adaptativas.
Apesar de considerar os seres humanos como o “ápice da cadeia evolutiva”,
SMELLIE admitia expressamente que existiriam laços de parentesco entre nós e
os outros seres vivos.

A preocupação de ALEXANDER POPE com os oprimidos e, em


particular, com os animais, era tema recorrente de sua poesia e o levou a publicar
em 1733-4 seu “Essay on Man”566. POPE sustentava serem os animais feitos para
servir ao homem, mas o domínio incondicional e abusivo dos seres vivos levaria à
tirania do homem contra o próprio homem. Para o autor, quanto maior a
disparidade de forças entre o homem e determinada criatura, maior deveria ser o
cuidado e respeito para com ela.

SOAME JENYNS (1703-1787), membro do Parlamento Britânico por


Cambridge, também enfrenta o problema da crueldade, reputando-a como sendo
algo intrinsecamente ruim, mau. Em “A Free Inquiry into the Nature and Origin of
Evil” (1757), sustenta, ainda em um modelo fortemente hierarquizado, que a
crueldade não deve ser tida como uma condição ou um meio para nosso
prazer567. O famoso escritor SAMUEL JOHNSON (1709-1784) em “Review of
Soame Jenyns, A Free Enquiry into the Nature and Origin of Evil” critica a posição
de JENYNS por entender que corroboraria uma visão de dominação dos mais
fortes por meio do sofrimento:

That, if man, by exaltation to a higher nature, were exempted from the


evils which he now suffers, some other being must suffer them; that, if
man were not man, some other being must be man, is a position arising
from his established notion of the scale of being. A notion to which Pope
has given some importance, by adopting it, and of which I have,
therefore, endeavoured to show the uncertainty and inconsistency. This

566
Também de autoria de POPE é o artigo “Against Barbarity to Animals”, Guardian, n. 61, 1713.
567
JENYNS também é autor de dois artigos intitulados “On the Chain of Universal Being” e ”On
Cruelty to Inferior Animals”, in Disquisitions on Several Subjetcts (1782).

- 195 -
scale of being I have demonstrated to be raised by presumptuous
imagination, to rest on nothing at the bottom, to lean on nothing at the
top, and to have vacuities, from step to step, through which any order of
being may sink into nihility without any inconvenience, so far as we can
judge, to the next rank above or below it. We are, therefore, little
enlightened by a writer who tells us, that any being in the state of man
must suffer what man suffers, when the only question that requires to be
resolved is: Why any being is in this state.568

RICHARD DEAN (1727-1778) escreve, em 1768, “An Essay on the


Future Life of Brutes”. Para o autor a dor e o sofrimento seriam meros acidentes,
nem inevitáveis, tampouco necessários. O mal físico e sofrimento proporcionado
aos animais são vistos como conseqüência direta do espírito malévolo do próprio
homem. Defende ainda a imortalidade da alma animal criticando as posições
mecanicistas com severidade.

Os filósofos ingleses do século XVIII estavam, de modo geral, mais


atentos aos problemas relacionados à condição animal que seus companheiros
de outras localidades, muito embora existam contribuições louváveis de
franceses, tais como DAVID BOULLIER (1699-1759), e do naturalista suíço
CHARLES BONNET (1720-1793).

Em 1776 surgiu, de fato, o primeiro livro de que se tem notícia que


tratava especificamente do dever de compaixão para com os animais. De autoria
do reverendo Dr. HUMPHRY PRIMATT, a obra chamada “A Dissertation on the
Duty of Mercy and Sin of Cruelty to Brute Animals”, lançada em Londres no
mesmo ano dos clássicos Wealth of Nations, The Decline and Fall of The Roman
Empire e da própria Declaração de Independência Norte-Americana569, consistia

568
JONHSON, Samuel. A Review of A Free Inquiry into the Nature and Origin of Evil by Soame
Jenyns. Disponível em: <http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Texts/jenyns.html/>. Acesso em 07
nov. 2005.
569
A Declaração da Independência Americana, tornada pública em 16 de junho de 1776 é tida
como o marco histórico do nascimento formal dos direitos humanos. Como não poderia deixar de
ser, trata unicamente dos direitos do homem, como ser possuidor de uma natureza notadamente
especial. Seu artigo primeiro, neste sentido, dispõe claramente que: “Todos os seres humanos
são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos
quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou
despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de

- 196 -
num autêntico tour de force a respeito da exegese bíblica de piedade para com
todos os seres vivos. Pela sua importância será tratado no capítulo dedicado às
denominadas “teorias diretas”.

Antes do fim do século XVIII, surge o utilitarismo, corrente filosófica


ligada à figura dos eminentes JEREMY BENTHAM (1748-1832) e JOHN STUART
MILL. A “moralidade utilitária” era reduzida ao equacionamento do
“custo/benefício” das relações dicotômicas entre prazer e sofrimento. Neste
sentido, ficava difícil excluir os animais de considerações morais, pois a ciência já
havia corroborado a noção de que, de fato, eram seres sensíveis. Desta
concepção surge a candente observação de BENTHAM, feita em 1780, colocada
como citação inicial desta obra, que vale ser aqui reprisada:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a


adquirir os direitos aos quais jamais poderiam ter sido privados, a não
ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da
pele não é motivo para que um ser humano seja irremediavelmente
abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia
se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a
terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para se
abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria
traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a
capacidade da linguagem? Mas, para lá de toda comparação possível,
um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem
mais sociáveis e comunicativos do que um bebê de um dia, uma
semana, ou até mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não
fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são
capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim, ‘Eles
são capazes de sofrer?’570

Os animais estavam, formalmente, pela primeira vez, sendo objeto


de considerações de ordem moral igualitária, representando uma linha divisória

adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a


segurança.”
570
BENTHAM, op.cit., p. 66.

- 197 -
em relação ao aristotelismo e à filosofia moral de KANT. A capacidade de ser
senciente (capacidade de experimentar dor e prazer) e não a capacidade de
raciocinar, de ser autônomo ou de ser lingüisticamente competente é que intitula
qualquer indivíduo à consideração moral direta. MILL chega mesmo a questionar
a moralidade do princípio da utilidade com relação aos animais:

[...] Granted that any practice causes more pain to animals than it gives
pleasure to “man”: is that practice moral or immoral? And if, exactly in
proportion as human beings raise their heads out of the slough of
selfishness, they do not with one voice answer “immoral”, let the morality
of the principle of utility be foverer condemned.571

Todavia, a assertiva de BENTHAM não se resume ao aspecto moral.


Propugna mesmo pela extensão efetiva de direitos básicos similares aos
atribuídos aos homens, direitos estes que “jamais poderiam ter-lhe sido negados,
a não ser pela mão da tirania”.

O ardor revolucionário da época fez com que surgisse a proposição


de alargamento do universo moral humano, transferindo também aos animais os
recentemente propagados Direitos do Homem572. Os Direitos dos Animais
surgem, pois, neste contexto de contestação do status quo. JOHN OSWALD,
movido por este espírito, escreve The Cry of Nature; or, An Appeal to Mercy and
to Justice, on Behalf of the Pesecuted Animals (1791), uma obra em que
propugna pelo fim do abate indiscriminado e do sofrimento dos animais, tida por
muitos como a primeira a discutir diretamente a questão do abate de animais para
alimento573. JOHN LAWRENCE, também dedicou capítulo específico em seu

571
REGAN, Tom. All That Dwell Therein: Animal Rights and Environmental Ehtics. Berkeley:
University of Califórnia Press, 1982. p. 9.
572
Treze anos após a Declaração de Independência Americana, em 1789, a concepção de
igualdade e liberdade entre os seres humanos é mais uma vez afirmada na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. Seu artigo primeiro reza que: “Os homens nascem e
permanecessem livres e iguais em direitos.”
573
A conexão entre os movimentos revolucionários e a doutrina inicial do movimento dos Direitos
dos Animais fica clara quando OSWALD afirma que em uma época na qual o homem “observes on
all hands the barbarous governments of Europe giving way to a better system of things”’ ele
poderia somente esperar que estaríamos também perto do dia “when the growing sentiment of
peace and good-will towards men will also embrace, in a wide circle of benevolence, the lower

- 198 -
tratado sobre cavalos, Horses, de 1796, aos Direitos dos Animais, intitulado
“Rights of Beasts”. O abolicionista THOMAS PAINE (1737-1809), no clássico The
Age of Reason (1794-1796), obra marcadamente anti-clerical e anti-religiosa,
escrita enquanto estava preso na França, também propôs a abertura de direitos a
todos os seres sencientes574. O pintor e escritor GEORGE NICHOLSON (1760-
1825), influenciado por ROUSSEAU, publica On The Conduct of Man to Inferior
Animals (1797) e JOSEPH RITSON (1752-1803), o inovador An Essay on
Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, (1802)575, ambas obras que

orders of life”. Disponível em: <http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 03 jul. 2005.


As diferentes causas - direitos do homem, direito das mulheres, direitos das classes
marginalizadas e mesmo dos direitos dos animais – estavam intimamente interligadas e presentes
na mente dos reformadores do período. Cite-se o caso de ROUSSEAU (1712-1778) que em Emile
(1762) advogava expressamente por um dieta livre de alimentos de origem animal. Outro exemplo
da interligação dos temas é já citado na introdução da presente obra com a publicação da obra
feminista Vindication of the Rights of Women (1792) por MARY WOLLSTONECRAFT que deu
origem a irônica resposta de THOMAS TAYLOR nomeada A Vindication of The Rights of the
Brutes. A conexão entre mentes revolucionárias e abolicionistas com o movimento de defesa dos
animais parece ser de ordem pessoal e fática. Os fundadores da RSPCA, WILLBERFORCE,
BUXTON, MACKINTOSH e MARTIN, já eram conhecidos reformistas sociais, opondo-se à
escravidão e à banalização da pena capital. Veja-se também o caso de SAMUEL GRIDLEY
HOWE, educador de deficientes auditivos e primeiro diretor da primeira sociedade protetora de
animais de Massachusetts. Os escritores anti-escravagistas HARRIET BEECHER STOWE e
LYDIA MARIA CHILD também emprestaram suas canetas ao socorro dos animais. GEORGE
ANGELL, fundador da referida sociedade protetora de Massachusetts, dividiu, por quatorze anos,
escritório com o advogado abolicionista SAMUEL SEWALL. CAROLINE WHITE, membro da
sociedade protetora de Filadélfia, e criadora da American Anti-Vivissection Society em 1883, era
filha do brilhante advogado abolicionista THOMAS EARLE, e neta de PLINY EARLE, um dos
médicos mais influentes e inovadores no tratamento de deficientes mentais. A conexão de atuação
também é flagrante. Em 1874, HENRY BERGH, fundador da Sociedade de Proteção Animal de
Nova York, recebeu a denúncia de maus-tratos cometidos contra uma criança e atuou
imediatamente no sentido de retirá-la de tal condição de abuso, o que serviu de inspiração para
que, conjuntamente com ELBRIDGE GERRY, fundasse a primeira Sociedade de Prevenção de
Crueldade Contra Crianças de Nova York. Por influência de BERGH, o mesmo se sucedeu na
Inglaterra com a criação da National Society for the Prevention of Cruelty to Children (NSPCC). A
lista de paralelos continua indefinidamente [...]. No Brasil o mesmo fenômeno ocorreu. Conforme
ressalta HERON JOSÉ DE SANTANA, “Foram os abolicionistas os primeiros a romper o absoluto
silêncio que reinava no seio da nação brasileira, e até mesmo a Igreja católica, que desempenhou
um papel importante no processo de humanização dos escravos romanos, durante muito tempo
ignorou o sofrimento do elemento servil brasileiro” (SANTANA, op. cit., p. 85). A citação inicial de
JOSÉ DO PATROCÍNIO ressalta este importante aspecto sociológico de correlação entre a defesa
da liberdade humana e animal.
574
“The moral duty of man consists of imitating the moral goodness and benificence of God
manifested in the creation towards all his creatures. Everything of persecution and revenge
between man and man, and everything of cruelty to animals is a violation of moral duty.” - The Age
of Reason. Disponível em: <http://www.ivu.org/history/northam18/paine.html>. Acesso em 03 jul.
2005. "I believe the equality of man, and I believe that religious duties consist in doing justice,
loving mercy, and endeavoring to make our fellow-creatures happy." – The Age of Reason.
Disponível em: <http://www.punkerslut.com;critques;schulman/50.html>. Acesso em 05 jul. 2005.
575
RITSON se apoiou em BERNARD MANDEVILLE (1670-1733), médico e filósofo inglês que
escreveu The Fable of the Bees, or Private Vices Public Benefits publicado em 1714, uma alegoria
a respeito da vida nas colméias, onde a sociedade, como um todo, prospera por meio dos vícios

- 199 -
postulavam uma dieta vegetariana em face do dever moral existente para com os
demais seres vivos.576

Apesar da sinalização de uma nova mentalidade577, o tratamento e


manejo dos animais continuava extremamente bruto. As rinhas de briga de galos
(eventos eram chamados de “cockpit” ou “to pit aganist”)578, de cães, o

individuais. MANDEVILLE argumenta que é somente “[…] this tyranny which custom usurps over
us’, which makes the slaughter of animals tolerable to humans.” (Disponível em:
<http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 07 jul. 2005). Diz-se que o editor de
RITSON, RICHARD PHILLIPS (1767-1840), fundador da Monthly Magazine, era também um
vegetariano convicto.
576
O famoso poeta PERCY BYSSHE SHELLEY (1792-1822) escreveu A Vindication of Natural
Diet (1813-1814) no qual descreve a ingestão de carne nos seguintes termos: “It is only by
softening and disguising dead flesh by culinary preparation, […] that the sight of its bloody juices
and raw horror, does not excite intolerable loathing and disgust. Let the advocate of animal food,
force himself to a decisive experiment on its fitness, and […] tear a living lamb with his teeth, and
plunging his head into its vitals, slake his thirst with the streaming blood; when fresh from the deed
of horror let him revert to the irresistible instincts of nature that would rise in judgment against it,
and say, Nature formed me for such work as this. Then, and then only, would he be consistent”
(Disponível em: <http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 05 jul. 2005). Em 1824, o
inventor e filósofo LEWIS GOMPERTZ (fl. 1861), publicou o livro Moral Inquiries on the Situation of
Man and of Brutes, condenando não só a utilização dos animais como alimento como também
diversos outros usos que reputava eticamente indevidos, tal como o uso para vestuário e
acessórios.
577
Símbolo dessa mudança se deu com a acesa discussão nos meios religiosos acerca da
existência de uma “alma animal”, expressão aparentemente paradoxal e redundante. A esse
respeito PLUTARCO já advertia que: “[...] não será uma prova temível a atribuição de razão a
animais que não dispõem de um conhecimento intrínseco de Deus?” (PLUTARCO apud ARAÚJO,
op.cit., p. 85). No entanto, se a anatomia, a linguagem e a posse da razão deixam de ser
exclusivamente humanas, a única barreira até então não contestada era a de que o homem seria
o único animal religioso, provido de uma alma imortal. No âmbito popular era corrente a noção de
que os animais possuíam instintos religiosos. As antigas teorias da metempsicose tinham versões
“adulteradas” em todas as regiões da Europa. A “salvação” animal, via ressurreição, começou a
ser discretamente veiculada com a interpretação bíblica de Rm 8, 21, segundo a qual: “[...]
também a criatura será liberta da sujeição à corrupção, para participar da liberdade da glória dos
filhos de Deus.” Em 1722, debateu-se em Harvard sobre o tema no encontro patrocinado pelo Spy
Club intitulado: “Whether the Souls of Brutes are Immortal”. Tempos depois, em 1827, o próprio
CHARLES DARWIN, ainda um jovem estudante de medicina, assistiu a uma palestra na
Universidade de Edimburgo na qual se tentava provar que os animais possuíam toda as
faculdades e propensões da mente humana. De fato, a teoria da evolução, tal como
posteriormente formulada, colocava o dilema com maior gravidade, já que se os homens
descendiam diretamente dos animais, como sustentar que somente eles possuiriam almas
imortais? No campo das artes os quadros seqüenciais de WILLIAM HOGARTH chamados de “The
Four Stages of Cruelty” (1751) representavam a degeneração de torturadores de animais nas
grandes metrópoles da época. Em Goody Two Shoes (1765), primeira obra de ficção infantil
inglesa em forma de livro, MARGERY MEANWELL dedica boa parte do tempo a exortar as
crianças a terem compaixão pelos animais. Na mesma esteira pode-se citar a obra de SARAH
KIRBY TRIMMER, Fabulous Histories (1786), livro infantil de muito sucesso na época.
578
Segundo nos relata KEITH THOMAS, “O galo, mantido sob rigorosa dieta, era especialmente
treinado para a rinha. Suas asas eram cortadas, as barbelas e a crista aparadas e os pés
equipados com esporas artificiais. [...] As competições muitas vezes duravam vários dias e se
faziam acompanhar de pesadas apostas, com todas as camadas sociais, embora somente
homens, pois nesse esporte claramente não cabiam as mulheres. [...] quando Pepys compareceu

- 200 -
açulamento de touros (“bull baiting”), ursos e outros animais selvagens579 e as
“corridas de touros”580 integravam o rol de diversões dos ingleses na feiras e
festas rurais (“baiting sports”).

A caça era tida como “esporte aristocrático” e a perseguição de


animais selvagens como gamos, coelhos, raposas581, lobos e outros era praticada
de forma corriqueira, sem que houvesse qualquer preocupação com o sofrimento
imposto à vítima. No Inner Temple582, no dia de santo Estevão, era costume trazer
ao salão uma raposa e um gato, e açular sabujos contra eles. A morte do animal
era o clímax destas práticas, comparada por MONTAIGNE ao orgasmo sexual583.
PETER BECKFORD exclamava: “Quando capturada (raposa), gosto de ver como
os cães a devoram raivosamente”. 584

O sempre brilhante KEITH THOMAS afirma que:

Além desses métodos elegantes e muito formais de atormentar os


animais, havia uma infinidade de modos informais. Era corriqueiro os

a uma rinha de galos em 1663, viu tudo o que era gente, de ‘parlamentares’ até ‘os mais pobres
aprendizes, padeiros, cervejeiros, açougueiros, carroceiros e não sei quem mais [...] todos em
grande camaradagem, em meio a xingamentos, pragas e apostas.’ Os galos tinham vida curta,
sendo difícil que mesmo os melhores sobrevivessem a mais que uma dúzia de disputas”
(THOMAS, op.cit., p. 172).
579
O açulamento ocorria com as vítimas (além de touros e ursos, há também relatos desta prática
contra lobos, texugos, cavalos, macacos, mulas, etc...) presas a pesadas cordas ou correntes.
Eram então atacadas sucessivamente ou em conjunto por cães (os bull-dogs) que,
estrategicamente, na grande parte das vezes, investiam contra as partes mais sensíveis, como o
focinho, olhos, lábios e orelhas, que eram impiedosamente dilacerados. Os cães agressores
também eram usualmente atingidos pelas manobras defensivas do animal acuado.
580
As referidas “corridas de touros” eram embriões das até hoje praticadas “touradas”,
“vaquejadas” e “farras-do-boi”. O animal tinha as suas orelhas e rabo cortados, o focinho
lambuzado de pimenta e o corpo ensaboado. Era então solto com o objetivo de ser contido por
uma multidão que cometia toda sorte de barbaridades contra o pobre animal.
581
O aforismo de OSCAR WILDE sobre a caça à raposa é perfeito. Segundo o autor, trata-se do
“inqualificável em plena perseguição ao incomível” (SAGAN, Carl. Bilhões e Bilhões. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 33).
582
As Inn Courts eram hospedarias de aprendizes de Direito e serviam muitas vezes como centros
de atividades culturais.
583
WILLIAM HINDE recorda-se de um episódio em que “Certa vez um fidalgo prestes a alimentar
seu falcão, tirou um pombo vivo de sua sacola de falcoaria e, tomando-o primeiramente pelas
duas asas, com grande violência as rasgou do corpo; depois, tomou os pés e arrancou-os aos
pedaços da mesma maneira, o corpo da pobre criatura tremendo em sua mão, enquanto o falcão
se fartava com as outras partes, para seu grande prazer e contentamento.” (HINDE apud
THOMAS, op.cit., p. 174).
584
BECKFORD apud THOMAS, op.cit., p. 173.

- 201 -
meninos pequenos se divertirem com a perseguição e tortura de
criaturas vivas. Nas escolas secundárias, o apedrejamento de galos era
um ritual amplamente observado no calendário. Na Terça-Feira de
Carnaval, a ave era acorrentada a um toco ou enterrada até o pescoço,
enquanto os alunos abriam fogo contra ela até que morresse. [...] Fora
da escola, as crianças roubavam ninhos de passarinhos, caçavam
esquilos com ‘tambores, gritos e alarido’, capturavam pássaros para lhes
arrancar os olhos, amarravam garrafas ou latas às caudas de cães,
matavam sapos colocando-os num dos extremos de uma alavanca e
golpeando a outra ponta, derrubavam gatos de grande altura para ver se
aterrisariam em pé, cortavam rabos de porcos como troféus e inflavam
os corpos de rãs vivas soprando dentro delas com canudos de palha.
Era um ‘experimento comum entre os meninos’, segundo o relato de
Thomas Willis, em 1664, ‘atravessar uma agulha na cabeça de uma
galinha’ a fim de verificar quanto tempo esta sobreviveria à
585
experiência .

A atitude das crianças nada mais era do que reflexo dos modelos
adultos que possuíam. Em geral, percebe-se que os relatos de caçadas, abates
de bois, mortes a pedradas, castrações e uma infinidade de práticas cruéis não
mereciam qualquer comentário especial por parte de seus perpetradores,
revelando que, muito provavelmente, tais pessoas não se sentiam
emocionalmente afetadas por eles.

A dor e o sofrimento animal eram, pois, na maior parte das vezes,


solenemente ignorados, permanecendo fora da esfera emocional das pessoas586.
Quando muito, a piedade e a compaixão eram reservadas aos seres humanos
somente. O homem, no dizer de Hamlet continuava sendo “o paragão (modelo)
dos animais”, o centro e o propósito de toda a realidade física.

O historiador W.E.H. LECKY explica que havia dois tipos distintos de


crueldade, “um, proveniente do descuido ou indiferença; e outro, do espírito de
vingança. No caso dos animais, a crueldade mais corrente, no início do período
moderno era a da indiferença. Para a maioria das pessoas, os bichos estavam

585
Ibid., p. 175.
586
A obra Gentleman´s Recreation (1674) recomendava a captura de um cervo com redes para
que, posteriormente, fosse cortada uma de suas patas e fosse solto para ser perseguido por cães.

- 202 -
fora dos termos de referência moral. As pessoas da época recordam esses povos
‘primitivos’ que, diz um antropólogo nosso contemporâneo, nem buscam infligir
dor aos animais nem evitam fazê-lo: ‘a dor nos seres humanos fora do círculo
social ou a dor nos animais tende a ser um assunto de interesse menor.’”587

No século XVIII, e principalmente no início do século XIX, o


movimento iniciado no século XVII, de inclusão dos animais dentro do universo
moral, vai ganhando mais força e projeção. A elevação do padrão moral da média
dos cidadãos permitiu que o círculo de humanidade também se expandisse à
grande parte dos animais. A consideração para com os animais foi deixando de
ser meramente uma preocupação que alguns moralistas tinham de que os maus-
tratos a eles impingidos tivesse efeitos negativos para o caráter humano, tornando
o indivíduo cruel também para com o homem588, tornando-se, efetivamente, uma
preocupação com os bichos por seu valor intrínseco. O próprio debate deslocou-
se de argumentos inicialmente teológicos para outros horizontes.

Os argumentos de compaixão teológica pelos animais eram, muitas


vezes, também antropocêntricos. Não havia contestação do domínio humano
sobre as demais criaturas. Fundavam-se, antes, na premissa de que este governo
não deveria ser tirânico ou absoluto, mas sim gentil e útil às necessidades reais
do próprio homem. A misericórdia baseava-se no fato de que a humanidade seria
a tutora da criação divina, depositária fiel de um poder que não deve, em hipótese
alguma, ser abusado.589

587
LECKY apud THOMAS, Keith, op.cit., p. 176.
588
Esta concepção é nitidamente antropocêntrica na medida em que somente devemos proteger
aquilo que nos afeta. A Bíblia contém algumas passagens em que se fala em ajudar o animal de
carga quando prostrado (Ex 23, 5; Dt 22, 4), em permitir o descanso aos sábados para os animais
(Ex 23, 12), e em não amordaçar o boi que debulha o grão (Dt, 25, 4) [...] TOMÁS DE AQUINO, a
respeito de tais passagens, endossando a visão acima exposta, entendia que “Se alguma
passagem nas Sagradas Escrituras parece proibir-nos de ser cruéis com os animais brutos, isso
ocorre ou [...] por temor de que através da crueldade aos animais chegue-se a ser cruel também
com os seres humanos, ou porque a agressão a um animal acarreta dano temporal ao homem” (in
Summa contra Gentiles, III, p. 113). Tal concepçaõ foi amplamente incorporada pela legislação.
Quando, em 1809, Lord ERSKINE propôs uma lei contra os maus-tratos, justificou-a por visar, em
realidade, impedir o cometimento de crimes entre homens. A maior parte dos autores, incluindo-se
DIX HARWOOD com o seu brilhante Love for Animals and How It Developed in Great Britain
(1928) e PETER SINGER, entendem que até o século XVIII a condenação da crueldade para com
animais, quando havia, era por motivação antropocêntrica, pois somente tornava ilícitas as
condutas que eventualmente trouxessem lesão aos interesses e bens humanos.
589
Mesmo que antropocêntrica e paradoxal, a doutrina da “gerência do homem”, consubstanciada
na atitude de compaixão religiosa, foi importante para possibilitar a expansão de uma nova atitude

- 203 -
A sensibilidade burguesa, ao lado da compaixão religiosa, também
se fazia notar pela adoção das teses de MONTAIGNE, amplamente divulgadas e
traduzidas no século XVII, pela quais: “uma espécie de respeito e de dever geral
de humanidade obriga-nos [...] para com os animais brutos dotados de vida e
sentido [...]. Aos homens devemos justiça e, a todas as outras criaturas capazes
disso, graça e bondade.”590 Começa a ser utilizado o argumento da “fellow-
creature” (criatura semelhante) segundo o qual todos foram criados pelo mesmo
Deus e, portanto, todos são semelhantes em direitos, rompendo com a idéia
hierarquizada da Grande Cadeia do Ser.

1.9.5. Primeiras Manifestações Legislativas

“Talvez haja algum apoio no fato de a crença na santidade das bases da


idiossincrasia de um grupo, reforçada não-raro pela adulação recíproca
dos seus membros, frequentemente evoluir par uma crença na sua
superioridade, um ‘narcisismo de espécie’ que não seria maligno se não
degradasse num ‘autismo de espécie’, que nos responsabiliza e
insensibiliza face a outras formas de vida e a outras formas de
consciência e de realização.”591

FERNANDO ARAÚJO

Para KEITH THOMAS, o século XVIII presenciou grande volume de


protestos contra práticas como a de retalhar o peixe (isto é, cortar o animal ainda
vivo, para tornar a sua carne mais firme), ou depenar aves vivas:

perante os animais. Exemplo disto é a interpretação segundo a qual a ferocidade animal, sendo
fruto do pecado original humano, pois até então todos os animais eram mansos e pacíficos, não
deveria ser incentivada (condenação dos esportes animais, como as práticas de rinhas de briga,
açulamentos, arremesso de paus, etc..). Essa posição tornava cada vez mais indefensável a
justificação da matança de animais por mero prazer (só havia autorização para o abate para
obtenção de alimento ou por defesa pessoal).
590
MONTAIGNE apud THOMAS, op.cit., p. 189.
591
ARAÚJO, op.cit., p. 37.

- 204 -
Mesmo William Cobbett, de modo geral muito realista, sustentava que
fazer os animais sofrerem para melhorar o paladar humano constituía um
abuso da autoridade que Deus concedera ao homem. Na última fase do
século, os métodos de abate também sofreram um escrutínio crítico. O
tratamento do gado no mercado de Smithfield foi posto sob vigilância
legal em 1781. Em 1786, os matadouros passaram a ter que funcionar
sob licença e houve muita polêmica sobre o abate com métodos mais
humanos. Enquanto isso, crescia o clamor por uma legislação contra
toda sorte de crueldade para com animais. Em fins do século XVIII,
algumas escolas secundárias introduziram normas contra maus-tratos
aos animais; e, mesmo antes do Parlamento começar a agir, houve
processos por crueldade baseados em violação de propriedade.592

Deste modo, podemos perceber que, ainda que com o pensamento


de viés antropocêntrico, a mentalidade ia se modificando para condenar o baixo
status moral dos animais não-humanos. De fato, o progresso intelectual
proporcionou melhorias de ordem prática aos animais, sob a forma de leis
contrárias à crueldade. É interessante observar que os primeiros estatutos
protetivos, ao coibir as práticas de abuso e crueldade, têm, em realidade, o
propósito de proteger a moralidade humana, e não a integridade animal, em
autêntica adoção da teoria dos chamados “deveres indiretos”.

STEVEN WISE cita como a primeira lei de proteção animal no


ocidente o “Body of Liberties” (1641) da Massachusetts Bay Colony. A sua seção
92 continha disposição segundo a qual: “Homem algum deve exercer qualquer
tirania ou crueldade para com qualquer criatura bruta que seja em geral criada
para uso do homem.”593 Há certa discussão se, tecnicamente, o “Body of
Liberties” constituía, efetivamente, “lei” em sentido estrito, mas é certo que o
diploma merece atenção por sua influência pioneira.

Apesar disso, a mentalidade puritana ainda se via envolta com a


teoria tradicional da Grande Cadeia do Ser, ao corroborar as práticas bíblicas do
“boi que marra” e da condenação capital por sodomia. PETER SINGER elenca
como a primeira proposta de lei para impedir maus-tratos a proibição do “esporte”
592
THOMAS, op.cit., p. 213.
593
WISE, op.cit., p. 43.

- 205 -
da luta de touros com cães (“bullbaiting”). Segundo o autor, em 1800, a proposta
oferecida por Sir WILLIAM PULTENEY, apesar de contar com o apoio de
ROWLAND HILL, RICHARD SHERIDAN e RICHARD MARTIN, foi rejeitada por
se entender que “o que quer que interfira na disposição privada e pessoal do
tempo ou da propriedade do homem é tirania. Desde que outra pessoa não seja
atingida, não há lugar para a interferência do poder constituído.”594

Posteriormente, WILLIAM WILBERFORCE tentou reativar o projeto,


que novamente veio a falhar. De acordo com STEVEN WISE, em 1809 a House
of Lords, por intermédio de THOMAS ERSKINE (1750-1823), elaborou o primeiro
projeto de lei visando proteção animal genérica contra a crueldade (“wanton
cruelty”). Apesar dos esforços de Lord ERSKINE, vigoroso amante da natureza, o
projeto parou na House of Commons. Em 1821, Lord ERSKINE juntou forças com
RICHARD MARTIN (1754-1834), fazendeiro irlandês e membro do Parlamento
por Galway, propôs uma lei para tipificar como crime os maus-tratos
habitualmente cometidos contra cavalos e outros animais de tração por
carroceiros e outros proprietários insensíveis (“to wantonly beat, abuse or ill-treat
any horse, donkey, sheep, cow or other cattle”). A reação dos parlamentares à
proposta de MARTIN ilustra com perfeição a dualidade de posições dentro do
mesmo período:

Quando Alderman C. Smith sugeriu que se deveria proteger os burros,


houve tanta algazarra e gargalhadas que o repórter do ‘The Times’
quase não ouviu o que foi dito. Quando o presidente repetiu a proposta,
as risadas aumentaram. Outro membro disse que, da próxima vez,
Martin legislaria a favor dos cães, o que provocou nova explosão de
risos, e o grito ‘E gatos!’ fez a Casa entrar em convulsão 595.

594
SINGER, op.cit., p. 230.
595
Apud SINGER, op.cit., p. 231.

- 206 -
Todavia, em 1822, houve êxito na aprovação da referida lei que
tipificava como crime os maus-tratos injustificados contra animais domésticos596
597
, então chamada de Martin´s Act em homenagem a um de seus principais

596
Exatos cem anos depois, foram apresentados os primeiros projetos legislativos relativos ao
tema no Brasil. LEVAI, citando DIAS, lembra que “o mais remoto projeto legislativo brasileiro
referente à crueldade contra animais foi apresentado em 1922, pelo senador Abdias Neves, não
logrando, contudo, êxito na aprovação. Dois anos depois, porém, passou a vigorar o Decreto
Federal n.º 16.590, de 10 de setembro de 1924 (Regulamento das Casas de Diversões Públicas),
cujo artigo 5º vedava a concessão de licenças para “corridas de touros, garraios, novilhos, brigas
de galo e canários e quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimento aos
animais. [...]” Posteriormente, continua o autor, “durante o Governo Provisório, expediu (Presidente
Getúlio Vargas) o Decreto n.º 24.645, de 10 de julho de 1934, proibindo a prática de maus-tratos
contra animais. [...] Dentre as hipóteses de maus-tratos contempladas em seu minucioso art. 3º,
podemos relacionar as seguintes condutas: praticar atos de abuso ou crueldade em qualquer
animal, golpeando-o, ferindo-o ou mutilando-o; manter animais em lugares insalubres; sujeitá-los a
trabalhos insalubres; abandonar animal doente ou ferido; não promover morte rápida aos animais
destinados ao consumo; atrelar animais, em condições irregulares, aos veículos de tração e
carroças, bem como infligir-lhes castigo imoderado; utilizar dos serviços de animal enfermo e, se
sadio, fazê-lo trabalhar sem descanso ou alimento suficientes; manter ou transportar animais em
cativeiros anti-higiênicos; deixar de ordenhar vacas leiteiras; depenar ou despelar animais vivos;
promover a engorda mecânica de aves; expor pássaros em gaiolas sujas ou utilizá-los para
sortilégios e acrobacias; praticar tiro ao alvo ou lutas envolvendo animais, assim como touradas e
seus simulacros.” (LEVAI, op.cit., p. 40-1). A evolução legislativa, vale dizer, passou ainda pela
inclusão na Lei de Contravenções Penais – Decreto n.º 3.688, de 3 de outubro de 1941 – de
dispositivo penal acerca da crueldade contra animais (art. 64). Destacam-se ainda a elaboração de
leis, de âmbito federal, que contemplavam a proteção à fauna tais como: Decreto n.º 23.793/34
(Código Florestal), Lei n.º 4.771/65 (Código Florestal), Decreto n.º 24.643/34 (Código de Águas),
Decreto n.º 794/38 (Código de Pesca), Decreto n.º 5.894/43 (Código de Caça), Lei n.º 5.197/67
(Lei de Proteção à Fauna - que trata da proteção aos animais silvestres, complementada pela Lei
n.º 7.653/88), Decreto-Lei n.º 221/67 (Código de Pesca), Lei n.º 6.638/79 (Vivissecção), Lei n.º
6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), Lei n.º 7.173/83 (Jardins Zoológicos), Lei n.º
7.643/87 (Cetáceos), Lei n.º 7.679/88 (Pesca em Períodos de Desova), Lei n.º 9.605/98 (Sanções
Penais e Administrativas de Condutas Lesivas ao Meio Ambiente), Lei n.º 3.179/99 (Infrações
Administrativas) e Lei n.º 10.519/2002 (Rodeios) (os diplomas legislativos destacados em negrito
encontram-se atualmente em vigor). A Constituição Federal em seu art. 225, § 1º, VII dispõe que:
“Art. 225. Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VII – proteger a fauna e a flora, vedados,
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais à crueldade.”
597
Na França se tem notícia da elaboração da chamada “Lei Grammont” de 1850 (que ganhou
este nome em homenagem a JACQUES DE GRAMMONT, criador da Sociedade Protetora dos
Animais em 1845) que proibia os maus tratos. Esta lei encontra-se atualmente derrogada pelo
Decreto n.º 5961051 de 7 de setembro de 1959, que sanciona a crueldade para com animais. A
abrangente obra “La Protection Pénale Des Animaux Dans Les Législations Française et
Étrangères”, do juiz francês EDMOND BOCQUET, datada de 1924, traz um estudo histórico
comparativo entre os mais diversos marcos legislativos a respeito da proteção animal. Menciona o
autor que, em verdade, antes da mencionada Lei Grammont, havia proteção via Código Penal
Francês, datado de 25 de setembro de 1791. Em seus artigos 451 a 455 e 479 a 482 podem ser
encontradas diversas normas tipificando condutas de maus-tratos. Além da França e da já citada
Inglaterra, o autor elenca alguns marcos legislativos importantes: na Itália (arts. 9º e 491 do
Código Penal de 1913 e arts. 727 do Código Penal de 1930); na Bélgica (art. 527, § 6º do Código
Penal de 1929); em Portugal (Decreto de 19 de setembro de 1886 que alterou os arts. 478 a 481
do Código Penal); na Alemanha (art. 360, XIII do Código Penal de 1933); na Suíça (capítulo II do

- 207 -
mentores598. Os burros, apesar da reação anterior contrária, foram também
incluídos (assim como “cavalos, éguas, mulas, asnos, bois, vacas, bezerros,
ovelhas ou qualquer outro tipo de gado”), muito embora cães e gatos tenham
ficado de fora599.

Interessante também perceber que, em função de sua aprovação e,


principalmente, em razão das vítimas não possuírem um órgão representativo
apropriado, foi criada, em 16 de junho de 1824, em uma coffee house londrina
que, por ironia do destino chamava-se “Old Slaughter´s” (velho abatedouro), a
primeira entidade destinada ao bem-estar animal, que receberia o nome de SPCA
- Society for the Prevention of Cruelty to Animals 600 601.

Código Penal de 1881); no Japão (art. 2º, § 14 do Decreto de 1908); na Noruega (art. 382 do
Código Penal de 1902); na Rússia (art. 43, § 1º do Código Penal), entre tantos outros (BOCQUET,
Edmond. Protection Pénale des Animaux Dans Les Législations Française et Étrangères. Paris:
Recueil Sirey, 1934). Há também um estudo bastante interessante sobre a Lei Grammont e seus
antecedentes de AGULHON, Maurice. Le Sang des Bêtes. Lê Problème de la Protecion des
Animaux em France aux XIX Siècle. In CYRULNIK, op.cit.
598
Os maus-tratos eram punidos com uma pena pecuniária substancial acrescida de uma penda
restritiva da liberdade de até três meses. Além do Martin´s Act de 1822, há outros diplomas
subseqüentes importantes tais como os de 1835 (fim do “bullbaiting com a lei proposta por
JOSEPH PEASE), 1849 (maus-tratos contra animais domésticos), 1854 (trabalhos excessivos a
animais de tração e carga), 1876 (regulamentando a vivisseção), 1880 (animais selvagens), 1900
(animais em cativeiro), 1904 (uso de armadilhas), 1906 (animais na experimentação científica,
também chamado de Dog´s Act), 1911 (definição legal de ‘ato de crueldade’), 1921 (proibição do
tiro ao pombo), 1925 (maus-tratos a aves), entre outros.
599
KEITH THOMAS ressalta, a esse respeito, que “só houve legislação quando esteve presente o
interesse econômico. Os sentimentos tão expressos para com os pássaros silvestres, lebres ou
insetos permaneceram ignorados, e a legislação do início do século XIX protegia exclusivamente
cavalos, bois, cães, aves domésticas e outros animais de criação. Analogamente, a preocupação
com o bem-estar dos animais não impediu muitas pessoas de continuar a comer carne. Se o
animal era comestível, então somente a crueldade ‘desnecessária’ era proibida. Assim, o final do
século XVIII foi rico em contradições das mais visíveis. Alguns animais eram de estimação, outros
eram ‘daninhos’. Os críticos da caça não relutavam em pescar. Até os caçadores combinavam o
seu gosto pela matança de animais selvagens com uma grande ternura por cães e cavalos.
Livretos contra briga de galos eram encadernados com couro de vaca” (THOMAS, op.cit., p. 227).
600
JAMES TURNER (op.cit., p. 17) cita a Society for the Suppression of Vice, fundada em 1802,
como sendo a primeira a incluir em seus objetivos a erradicação de algum tipo de crueldade com
animais (no caso, possuía a erradicação dos “esportes animais” como um de seus diversos
propósitos). Cita também uma tentativa frustrada de fundação de uma sociedade protetora dos
animais em Liverpool no ano de 1809. Em razão de divergências sobre a política de combate a
crueldade (foco na punição ou na educação), dois membros dissidentes saíram e fundaram, em
1831 a “Association for Promoting Rational Humanity Toward the Animal Creation”. Em 1832,
GOMPERTZ, antigo diretor da SPCA, também optou por fundar a sua própria entidade, chamada
de “Animals Friend Society”. Com a saída da ala mais radical, a SPCA aumentou o número de
associados, contando com apoios de peso. Em 1835, a então princesa VICTORIA e sua mãe, a
duquesa de Kent associaram-se, seguidas do poderoso banqueiro SAMUEL GURNEY. Denotando
forte prestígio, em 1840 a rainha VICTORIA requereu a alteração do nome da associação para
“Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals - RSPCA”. Várias sociedades protetoras

- 208 -
Todos estes diplomas legislativos, bem como os vindouros, eram
interpretados à luz de que eram feitos tendo por objeto a integridade humana e
não animal (teoria dos “deveres indiretos”). De fato, em 1888, um juiz da Suprema
Corte de Mississipi deixa claro que, apesar dos estatutos protetivos, os animais
não eram sujeitos de direito e que a sua proteção visava, em verdade, evitar a
degradação humana:

Such statutes were not intended to interfere, and do not interfere, with the
necessary discipline and government of such animals, or place any
unreasonable restriction on their use or the enjoyment to be derived from
their possession. The common law recognized no rights in such animals,
and punished no cruelty to them, except in so far as it affected the rights
of individuals to such property. Such statutes remedy this defect, and
exhibit the spirit of that divine law which is so mindful of dumb brutes as
to teach and command, no to muzzle the ox when he treadeth out the
corn; not to plow with an ox and an ass together, not to take the bird that
sitteth on its young or its eggs; and not to seethe a kid in his mother milk
[…]. Cruelty to them manifests a vicious and degraded nature, and it
tends inevitably to cruelty to men […] The dominance of man over them,
if not a moral trust, has a better significance than the development of
malignant passions and cruel instincts. Often their beauty, gentleness,
and fidelity suggest the reflection that it may have been one of the
purposes of their creation and subordination to enlarge the sympathies
and expand the better feelings of our race. But, however this may be,

foram fundadas em seguida: Dresden (1839), Berlin (1841), Munich (1843), Paris (1845) e Vienna
(1846). Posteriormente, em Nova Iorque, no dia 10 de abril de 1866, foi fundada a “American
Society for the Prevention of Cruelty to Animals – ASPCA”, seguida da “Pennsylvania Society for
the Prevention of Cruelty to Animals – PSPCA” (em 21 de junho de 1867), da “Massachusetts
Society for the Prevention of Cruelty to Animals – MSPCA” (em 31 de março de 1868) e em San
Francisco em 1868. Em 1877 houve o primeiro encontro da American Humane Society, em
Cleveland, Ohio, com o propósito de formar uma federação das entidades de proteção de animais
e crianças. Conforme nos relata LEVAI (op.cit., p. 40), no Brasil, também a partir da segunda
metade do século XIX, houve a criação da primeira sociedade protetora dos animais em São
Paulo, a UIPA – União Internacional dos Animais. Sua criação se deu em 30 de maio de 1895 por
iniciativa conjunta de HENRI RUEGGER e pelo então senador IGNACIO WALLACE DA GAMA
COCHRANE.
601
Muitos dos anseios para banir os maus-tratos e os chamados “esportes cruéis” tinham por base
o desejo aristocrático de disciplinar as classes menos favorecidas segundo padrões mais elevados
de urbanidade, mais convenientes ao espírito industrioso do período. De fato, parece que, ao
menos inicialmente, a SPCA parece ter processado, em sua maioria, indivíduos das classes
trabalhadoras. Por essa razão, em 1868, JOHN STUART MILL recusou a vice-presidência da
entidade.

- 209 -
human beings should be kind and just to dumb brutes; if for no other
reason than to learn to be kind and just to each other 602.

Da mesma forma, as leis que vieram a banir os mencionados


“baiting sports” tinham como propósito central a salvação das pessoas da
“brutalização” e da “degradação” que a prática constante de tais atividades
acabaria por acarretar603. Apesar de, conceitualmente, o bem-estar animal ficar
relegado a segundo plano, percebe-se que, de fato, esses “esportes” tornavam-se
progressivamente anacrônicos em uma sociedade que, principalmente a partir do
século XIX604, deixava de ser puramente agrária para entrar na era industrial605. O
afastamento do campo e o “trauma” da modernização são comumente citados
como constituindo uma das principais causas da modificação do aumento da
aproximação do homem com o mundo natural. De fato, percebe-se o surgimento
de uma visão mais romantizada da natureza606 em lugar da anterior posição
notadamente racionalista e de cunho exploratório. O crescimento das cidades e a
emergência de uma nova ordem empresarial com o advento da Revolução
Industrial iria, gradativamente, reduzir a dependência do homem para com os

602
Apud WISE, op.cit., p. 44 (grifos nossos).
603
O primeiro projeto de ERSKINE contou com o apoio de PULTENEY, não por se sensibilizar
com a proteção dos animais, mas por entender que a prática, alem de cruel, ocupava o tempo útil
dos trabalhadores, tornando-os pessoas desocupadas e desordeiras. Veja-se: “The reasons in
favor of such a motion as this were obvious. The practice was cruel and inhuman; it drew together
idle and disorderly persons; it drew also form their occupations many who ought to be earning
subsistence for themselves and families; it created many disorderly and mischievous proceedings,
and furnished examples of profligacy and cruelty. In short, it was a practice which ought to be put a
stop” (PULTENEY apud TURNER, op.cit., p. 26).
604
A Revolução Industrial inglesa é associada ao período que vai do ano de 1750 a 1850.
605
Os “blood sports” chocavam-se com os emergentes valores urbanos e industriais que prezavam
cada vez mais por valores como a prudência, a regularidade e organização, que passavam a ser
internalizados pela população. A Revolução Industrial traz uma dinâmica diferente da
experimentada sob os auspícios da economia agrária. A velocidade das comunicações, dos
transportes e o aumento da jornada de trabalho não deixava margem para tempo ocioso. Os
ambientes desordeiros das rinhas começavam, pois, a ser vistos com maus olhos. Some a isto o
fato de que a densidade demográfica aumenta consideravelmente, limitando os grandes espaços
exigidos para tais eventos.
606
A literatura infantil encampa a tese de características morais apreciáveis nos animais como a já
mencionada obra de SARAH TRIMMER, Fabulous Histories Designed for the Instruction of
Children (1788). Mesmo os livros para adultos refletiam essa visão. Exemplo disso são as obras
The General Character of the Dog (1804) de JOSEPH TAYLOR; Canine Gratitude e Four-Footed
Friends (antecedendo a era das exposições caninas e partir de 1860 e a fundação do Kennel Club
em 1873).

- 210 -
animais, tornando-os marginais ao processo de produção (força hidráulica e
utilização do vapor), particularmente aqueles de carga e tração607.

A ligação com o mundo “idílico” da fazenda ainda povoava a mente


dos trabalhadores da metrópole. Tal como verificado no Martin’s Act, não é por
acidente que as primeiras tentativas de proteção focaram quase que
exclusivamente em animais provenientes do campo, tais como bois, ovelhas,
cabras e cavalos. Cães e gatos, por exemplo, permaneceram negligenciados por
bastante tempo. Conforme observa TURNER, “Ao defenderem os animais que
seus ancestrais deixaram para trás, os habitantes das grandes cidades
amenizavam a necessidade de possuírem um senso de conexão com o seu
passado rural608”.

É de se notar que, principalmente a partir da segunda metade do


século XIX, a própria sensibilidade social vai se modificando para exigir uma
atenuação dos rigores da dura vida industrial. Cresce o número de reformas de
cunho humanitário tais como a educação de deficientes auditivos e visuais,
redução e regulamentação da jornada de trabalho (especialmente para menores e
mulheres), implementação de medidas de saneamento básico, melhoria das
bibliotecas públicas, fundação de hospitais e casas de assistência a idosos e
necessitados, entre outras. Houve, inclusive, uma humanização do código penal
inglês. Este ingrediente “humanitário” também fez parte da “receita” de
modificação do status dos animais.

Paralelamente ao incipiente surgimento de diplomas legislativos


contemplando o bem-estar animal e o aparecimento das primeiras sociedades
protetoras, chama a atenção a divulgação do vegetarianismo como alternativa
dietética. Na modernidade, os primeiros a advogar abertamente a favor da não-
ingestão de alimentos de origem animal foram naturalistas, como JOHN RAY e
cientistas como os proeminentes médicos GEORGE CHEYNE e WILLIAM
LAMBE, além dos renomados NEWTON e SHELLEY. Todos eles compartilhavam
da idéia de que uma dieta vegetariana seria mais saudável que a carnívora, mas,

607
BOERSEMA, J.J. The Torah and the Stoics on Humankind and Nature. Leiden: Brill, 2001, p.
237.
608
TURNER, op.cit., p. 33, tradução nossa.

- 211 -
ao que parece, não se preocupavam, ao menos em um primeiro momento, com a
questão filosófica do abate animal. A moralidade de se matar animais para servir
de alimento começou a ser questionada por alguns cristãos “excêntricos” que
pregavam que o princípio da piedade vedava que a morte fosse meio de saciar os
prazeres humanos.609 De fato, conforme já mencionado anteriormente (quando
falamos sobre a influência dos movimentos revolucionários sobre o movimento de
libertação animal) o primeiro protesto não-religioso contra a matança de animais
para alimento veio da obra do soldado inglês JOHN OSWALD, The Cry of Nature;
or An Appeal to Mercy and to Justice on Behalf of the Persecuted Animals (1791).
Seguiram-se as obras de JOHN LAWRENCE, THOMAS PAINE, GEORGE
NICHOLSON e JOSEPH RITSON.

A segunda metade do século XVIII presenciou um culto à


sensibilidade e a aceitação geral do princípio de que “transmitir felicidade é a
característica da virtude”610. Tais ideais foram fundamentais na construção do
“utilitarismo” como filosofia moral, pois o benevolente, na definição de COWPER,
desejava que “todos aqueles que são capazes de prazer tenham prazer.” Os
maus-tratos passam a ser condenados com base no argumento utilitário de que
diminuem a sua felicidade. Os animais teriam sentimentos e, neste sentido,
deveriam ser respeitados. Os argumentos utilitaristas serão objeto de análise
mais pormenorizada no capítulo segundo do presente trabalho.

No século XIX o mesmo espírito se consolidava por meio dos


reformadores sociais. Em 1894, HENRY SALT escrevia:

Somente a difusão do mesmo espírito democrático permitirá que os


animais gozem dos ‘direitos’ pelos quais até os homens lutaram, por
tanto tempo, em vão. A emancipação humana da crueldade e da
injustiça trará consigo, no devido tempo, a emancipação também dos

609
O quacre norte-americano JOSHUA EVANS era um desses pregadores, assim como os
ingleses WILLIAM COWHERD e WILLIAM METCALFE. Este último chegou a publicar em 1827,
fundamentado-se em doutrinas religiosas, a obra Abstinence from the Flesh of Animal.
610
Cf. R. CRANE, S. R. “Suggestions toward a Genealogy of the ‘Man of Feeling’”, ELH – A
Journal of English Literary History, 1934.

- 212 -
animais. As duas reformas estão inseparavelmente vinculadas, e
nenhuma pode ser plenamente realizada sem a outra611.

Há que se observar, no entanto, que apesar dos avanços, a


delicadeza e o respeito para com os animais, por vezes, consistiam em um “luxo”
que muitas pessoas não podiam se dar. A maior parte dos trabalhadores
continuava a enxergar os animais sob uma perspectiva meramente funcional e
não sentimental. Nesta linha, o trabalho de conscientização é de suma
importância e ganha grande peso com a consolidação das teorias evolucionistas.
Como bem afirma THOMAS, “concordava-se já que era errado causar sofrimento
desnecessário a certos animais, mas não estava claro a que animais, ou em que
ponto o sofrimento se tornava ‘desnecessário’. O que estava claro era que o
abismo entre as necessidades humanas, por um lado, e as sensibilidades do
mesmo homem, por outro, se ampliara muito.”612

1.9.6. A Ancestralidade Comum: Darwin Triunfante

“Falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde


tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos
senhores como a minha está distante de mim. Mas faz cócegas no
calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra – do pequeno
chimpanzé ao grande Aquiles.” 613

FRANZ KAFKA (1937)

“No zoológico do Bronx, em Nova York, há um grande pavilhão


especialmente dedicado aos primatas. Lá é possível ver os chimpanzés,
gorilas, gibões e muitos macacos do novo e do velho mundo. Chama a
atenção, porém, que no fundo existe uma jaula separada, com fortes
grades. Quando nos aproximamos, vemos uma inscrição que diz: ‘O

611
SALT apud THOMAS, op.cit., p. 221.
612
THOMAS, op.cit., p. 228.
613
KAFKA apud SANTANA, op.cit., p. 86.

- 213 -
PRIMATA MAIS PERIGOSO DO PLANETA’. Ao olhar por entre as
grades, vemos com surpresa nossa própria cara: o letreiro esclarece que
o homem já matou mais espécies no planeta que qualquer outra espécie
conhecida.” 614

HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA

Prova de que o antropocentrismo ainda habitava as mentes dos


cidadãos do século XIX, mesmo que de maneira já mais atenuada, se deu com o
grande debate acerca das teorias evolucionistas. A reação ao pensamento
darwiniano foi gigantesca, pois as implicações morais advindas do fato de que
todos os seres vivos tinham uma origem biológica comum eram igualmente
avassaladoras. Tais teorias lograram desconstruir, bloco por bloco, o lugar da
humanidade no universo natural, subvertendo a noção de como o mundo era visto
e, em última análise, a própria humanidade.

A inclinação científica de DARWIN tinha raízes genéticas. Como já


mencionado, o avô de CHARLES DARWIN (1809-1882), ERASMUS, foi um dos
primeiros a abordar a idéia de evolução das espécies.

Alguns anos após o famoso Martin’s Act, DARWIN já escreveria em


seu diário que: “O homem, em sua arrogância, acredita ser uma grande obra,
merecedora da intermediação de uma divindade. É mais humilde e, penso eu,
mais verdadeiro considerar que foi criado a partir dos animais.”615 Para se ter uma
noção de como o dedicado DARWIN chegou a esta primeira conclusão, é válido
fazer rápidas pinceladas biográficas a seu respeito. A sua iniciação com o estudo
do mundo natural se deu por meio de ROBERT GRANT, zoólogo pertencente à
Sociedade Pliniana de História Natural. Ambos tinham verdadeira obsessão pela
coleta de espécimes e GRANT endossava as idéias do francês JEAN LAMARCK,
pelas quais as espécies animais não eram estáticas, mas evoluíam. LAMARCK
pensava que as características adquiridas (fenótipo) são herdadas pelas gerações
subseqüentes (genótipo). Importante ressaltar que a maioria avassaladora dos

614
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: As Bases
Biológicas da Compreensão Humana. São Paulo: Palas Athenas, 2004. p. 28.
615
DARWIN apud SINGER, op.cit., p. 232.

- 214 -
biólogos da época não era adepta destas teses e acreditava na versão bíblica de
criação simultânea de todas as espécies (criacionismo).

Enviado a Edimburgo para estudar medicina, DARWIN mostrou-se


mais interessado na pesquisa botânica do que nas ciências médicas. Foi então
transferido pelo pai para estudar teologia em Cambridge. Lá se aproximou do
reverendo HESLOW, professor de mineralogia e botânica, tomando-o como figura
de referência paterna. Nesta época ofereceram a HESLOW o cargo de naturalista
a bordo do HMS Beagle, pequeno navio que rumava para a América do Sul em
viagem de pesquisa para o Almirantado.

O professor de Cambridge não pode ir, dando lugar ao curioso


DARWIN, que ocupou boa parte do espaço disponível do navio com sua
biblioteca. Dentre as obras, DARWIN trazia a bordo o primeiro volume dos
Princípios de Geologia, de CHARLES LYELL, obra que sustentava, com
originalidade, que as características geográficas da Terra haviam sido geradas
por um processo gradual por meio de modificações em etapas, não tendo surgido
de uma única vez.616

Ao estudar geologia, deparou-se com ossos fossilizados de animais


até então desconhecidos. Surge então um forte indício de que as espécies
também não seriam permanentes. A grande quantidade de novos espécimes e
comentários enviados para a Inglaterra, antes de retornar, tornaram-no uma
celebridade nos círculos científicos.

O ponto culminante de sua viagem se deu com a visita às ilhas


Galápagos, onde, observando tartarugas, iguanas marinhas e as notáveis
variações entre os tentilhões, formulou a tese de que uma espécie poderia ser
modificada (usa a expressão “linhagem modificada”) para melhor adaptar-se ao
meio ambiente. A natureza era dinâmica e mutável e a criação não ocorrera de
uma só vez, tal como imaginavam os criacionistas.

616
A teoria geológica em voga na época era a do catastrofismo, pela qual o substrato geográfico
havia sido formado em tempos remotos por meio de convulsões de grande magnitude. Em São
Tiago, nas ilhas de Cabo Verde, DARWIN explorou um antigo vulcão e, aplicando os princípios de
LYELL, deduziu que o fundo do mar fora coberto por uma torrente de lava. Mais tarde essa
torrente fora pressionada e levantada para formar o rochedo da ilha. Seduzido pela geologia,
iniciou um trabalho sobre o tema durante a referida viagem.

- 215 -
Outro livro que influenciou o pensamento de DARWIN foi o Ensaio
Sobre o Princípio da População de THOMAS ROBERT MALTHUS. A obra
ressaltava o conflito pelos recursos naturais com o aumento da demanda em
virtude do desmedido crescimento populacional. A noção de “luta pela
sobrevivência” cristalizou-se em sua mente para que desenvolvesse a idéia de
que “nessas circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a ser preservadas
e as desfavoráveis, a ser destruídas. O resultado disso seria a formação de novas
espécies.”617 Os indivíduos competiam dentro das próprias espécies e os de
características dominantes sobreviveriam pela melhor adaptação (evolução por
“seleção natural”).

Em 1844, a teoria da evolução natural entrou definitivamente no


cenário do debate acadêmico com a publicação de obra anônima618 intitulada
“Vestígios da História Natural da Criação”, sugerindo que as obras da criação
divina evoluíam com o passar do tempo. Em 24 de novembro de 1859 era
publicada a primeira edição de “Sobre a Origem das Espécies por meio da
Seleção Natural ou A Preservação da Raças Privilegiadas na Luta pela
Sobrevivência619.” Nesta magnífica obra, DARWIN não deixava clara a
descendência animal dos seres humanos, preferindo apenas citar que ela serviria
para esclarecer “a origem do homem e sua história”. Meia palavra para bom
entendedor basta, mas somente em 1871, quando muitos já aceitavam as bases
da teoria da evolução, publicou The Descent of Man (A Origem do Homem), no
qual explicita o que antes havia dito nas entrelinhas.

Apesar de ter sido acolhida com alívio por grande parte da


comunidade científica, houve objeções pertinazes e contundentes, principalmente
vindas de setores ligados à Igreja. As idéias de DARWIN deixavam pouco ou

617
DARWIN apud STRATHERN, Paul. Darwin e a Evolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.
51.
618
Especula-se que o autor teria sido por um editor escocês chamado ROBERT CHAMBERS.
619
Em 1º de julho de 1858, DARWIN e ALFRED RUSSEL WALLACE (também chegara a algumas
conclusões importantes sobre a teoria de evolução paralelamente aos estudos de DARWIN.
Apesar disso, sustentava pontos de vista diversos, tal como que a maior capacidade mental dos
seres humanos não poderia ser explicada sem o auxílio de uma intervenção divina não-biológica)
publicam um artigo na Sociedade Lineana intitulado “Sobre a Tendência das Espécies para
Formarem Variedades; e sobre a Perpetuação das Variedades e Espécies por Meios Naturais de
Seleção.”

- 216 -
nenhum espaço para a intervenção divina e “reduzia” os seres humanos à
condição de meros animais. A antiga e arraigada noção de que a humanidade
integrava um grupo privilegiado e seleto de seres dentro de uma hierarquia
permanente e divinamente ordenados perde completo sentido.

De acordo com JONATHAN MILLER:

Darwin, embora desconhecedor do processo genético em ação,


reconheceu muito precocemente que não havia maneira de excluir a
humanidade do processo evolucionário que ele havia descrito. Em 1871,
após ter vindo a adiar o que ele sabia que iria ser também uma
conclusão controversa, tornou finalmente claro que também o homem
não era mais do que o descendente modificado de antepassados
mamíferos620. Não afirmou, como tantas vezes levianamente se tem dito,
que o homem descendesse dos macacos, mas, sim, que o homem e os
macacos eram descendentes modificados de um primata seu
621
predecessor.

A teoria da evolução mostra, portanto, que o lugar especial dos


homens no mundo é uma grande falácia. No entanto, a própria teoria
evolucionista foi utilizada de forma absolutamente deturpada para justificar a
colocação do homem como entidade superior às demais, na medida em que o
mecanismo da “sobrevivência dos mais aptos” conduziria o homem a ocupar lugar
de destaque. Em realidade, tal retórica pretende, mais uma vez, retornar ao
arcaico esquema teórico da “Grande Cadeia do Ser”, onde todos os seres vivos
são vistos como “inferiores” ao homem e colocados como meros instrumentos das
suas finalidades. O mais incrível é que pessoas esclarecidas ainda sancionam tal
posicionamento que, do ponto de vista biológico, constitui verdadeira
aberração622. Conforme salienta THOMAS KELCH, “estar atrás ou na frente no

620
Tal obra é “A Descendência do Homem”, também conhecida como “A Origem do Homem”.
621
MILLER, Jonathan; VAN LOON, Borin. Darwin para Principiantes. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1982. p. 175.
622
Um exemplo completamente equivocado e infeliz acerca da compreensão biológica da teoria
evolucionista nos é dado por FÁBIO KONDER COMPARATO em sua obra A Afirmação Histórica
dos Direitos Humanos (São Paulo: Saraiva, 2003). É surpreendente a “proficiência
antropocêntrica” das colocações do autor no sentido de que “tudo gira em torno do homem e de

- 217 -
tempo evolucionário não concede qualquer valor moral específico às espécies,
vez que não se pode conceder valor moral a fatos científicos que, no máximo,
podem ser utilizados como premissas fáticas para argumentos éticos.”623 O
argumento cronológico/valorativo é tão infantil que por meio dele poderíamos
chegar à conclusão de que um camundongo (mamífero) fosse superior a um
crocodilo (réptil) ou que nós mesmos fôssemos “melhores” e mais “evoluídos” que
nossos antepassados. Além disso, segundo MATURANA, “do ponto de vista
histórico o mesmo vale para todos os seres vivos e todas as células
contemporâneas: compartilhamos a mesma idade ancestral.“624

Além de, do ponto de vista científico e biológico, ter demonstrado


que também os seres humanos eram animais, e não criaturas de algum modo
especiais, DARWIN publicou, em 1872, “A Expressão das Emoções nos Homens
e nos Animais” que trouxe à baila as enormes similaridades emocionais e
psicológicas entre humanos e não-humanos. As detalhadas pesquisas que
desenvolveu por meio da análise das expressões e reações dos animais permitiu
que chegasse à conclusão de que também estas criaturas tinham, de fato, a

sua eminente posição no mundo” (op.cit., p. 1). Para ele, as justificativas para que o homem ocupe
tal “posição eminente” são de ordem religiosa (“a criatura humana ocupa uma posição eminente
na ordem da criação” – op.cit., p. 2), filosófica (afirmação da natureza racional do homem como
atributo de valor que lhe conferiria superioridade sobre as demais criaturas, op.cit., p. 3 e 4), e
“científica” (“a justificativa científica da dignidade humana sobreveio com a descoberta do
processo de evolução dos seres vivos [...] apesar da aceitação geral das explicações darwinianas,
vai aos poucos abrindo caminho no mundo científico a convicção de que não é por acaso que o
ser humano representa o ápice de toda a cadeia evolutiva das espécies vivas. A própria dinâmica
da evolução vital se organiza em função do homem [...]. Nestas condições, é razoável aceitar-se
como postulado científico, que toda a evolução das espécies vivas se encaminhou aleatoriamente
em direção ao ser humano” – op.cit., p. 5). Pobre DARWIN! Como não posso acreditar que o autor
tenha feito tais assertivas com deliberada má-fé, só posso creditar sua retórica ao mais absoluto
desconhecimento científico. É triste perceber que a aristotélica proposição da “Grande Cadeia do
Ser” conta com discípulos fiéis em pleno século XXI. Mesmo para os teólogos mais esclarecidos, o
antropocentrismo “[...] revela uma visão estreita e atomizada do ser humano, desgarrado dos
demais seres. Afirma que o único sentido da evolução e da existência dos demais consiste na
produção do ser humano, homem e mulher. Lógico, o universo inteiro se fez cúmplice na produção
do ser humano. Mas não apenas dele, mas dos outros seres também” (BOFF, Leonardo. Ecologia:
Grito da Terra, Grito dos Pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. p. 40). Quase quatrocentos anos
depois ainda há aqueles que se agarram às teses mecanicistas e negam aos animais o
reconhecimento de direitos e interesses básicos, por meio de argumentos equivocados e falciosos.
623
KELCH, Thomas G., Toward a non-property status for animals, 1998, apud SANTANA, op.cit.,
p. 91.
624
MATURANA, op.cit., p. 66.

- 218 -
capacidade de sentimentos complexos, como o sofrimento, a angústia, a
ansiedade, o prazer, o medo, o desespero, entre outros tantos625.

Aos descrever os movimentos de expressões dos animais, DARWIN,


reparando a similitude de reações entre humanos e as demais criaturas626,
procura conjugar a etologia com a teoria evolucionista para concluir pela
ancestralidade comum. A respeito, veja-se a seguinte passagem, bastante
esclarecedora:

Sem dúvida, enquanto considerarmos o homem e todos os outros


animais como criações independentes, não avançaremos em nosso
desejo natural de investigar até onde for possível as causas da
Expressão. De acordo com esta doutrina, toda e qualquer coisa pode ser
igualmente bem explicada; e isso se provou tão pernicioso com respeito
à Expressão quanto com respeito a qualquer outro ramo da história
natural. Nos humanos, algumas expressões, como o arrepiar dos
cabelos sob a influência de terror extremo, ou mostrar os dentes quando
furioso ao extremo, dificilmente podem ser compreendidas sem a crença
de que o homem existiu um dia numa forma mais inferior e animalesca.
A partilha de certas expressões por espécies diferentes ainda que
próximas, como na contração dos mesmos músculos faciais durante o
riso pelo homem e por vários grupos de macacos, torna-se mais
inteligível se acreditarmos que ambos descendem de um ancestral
comum. Aquele que admitir que, no geral, a estrutura e os hábitos de
todos os animais evoluíram gradualmente, abordará toda a questão da
Expressão a partir de uma perspectiva nova e interessante.627

625
A repercussão no meio acadêmico e a preciosidade da obra foram tantas que afirma-se ser a
principal responsável pelo surgimento das disciplinas fisiológicas e comportamentais tais como a
etologia, a neurobiologia e a comunicação psicológica.
626
Segundo o autor, “Quando tentamos desempenhar alguma tarefa que, pela sua dificuldade,
requer precisão, como o passar uma linha numa agulha, geralmente apertamos os lábios com
força, na tentativa, imagino, de não atrapalhar os movimentos com nossa respiração. Percebi a
mesma atitude num orangotango. O pobrezinho estava doente e se distraía tentando matar
moscas nas vidraças com os dedos. Era difícil, pois as moscas voavam para todos os lados, e a
cada tentativa, ele apertava os lábios com força fazendo bico.” (DARWIN, Charles. A Expressão
das Emoções no Homem e nos Animais. São Paulo: Companhia Das Letras, 2000. p. 136).
627
Ibid., p. 231.

- 219 -
O autor analisa as mais diversa formas de manifestação das
emoções nos animais e no homem, afirmando que:

Em quase todos os animais, até mesmo nos pássaros, o terror provoca


tremores pelo corpo. A pele empalidece, o suor aparece e os pelos se
arrepiam. As secreções do canal alimentar e dos rins aumentam, e eles
são involuntariamente esvaziados, por causa do relaxamento dos
músculos esfíncteres, como sabemos acontece com o homem, e como
observei com gado, cachorros, gatos e macacos. [...]628

Continua o renomado autor:

Quando os animais agonizam de dor, eles geralmente se contorcem


terrivelmente, e aqueles que habitualmente usam a voz soltam soluções
e uivos penetrantes. Praticamente todos os músculos do corpo são
intensamente acionados. No homem, a boca comprime-se fortemente,
ou mais comumente os lábios retraem-se, com os dentes cerrados. Diz-
se que há ‘ranger de dentes’ no inferno; e eu ouvi claramente o ranger
de dentes de uma vaca que sofria intensamente de uma inflamação no
intestino 629 630.

628
Ibid., p. 79.
629
Ibid., p. 73.
630
Ainda sobre a dor e o medo escreve o biólogo: “A dor, quando intensa, provoca depressão ou
prostração extremas; mas ela é inicialmente estimulante, induzindo à ação, como vemos quando
chicoteamos um cavalo, e como se demonstra pelas terríveis torturas infligidas em terras
estrangeiras aos exaustos animais dos carros de boi, para desapertá-los para renovados esforços.
Novamente é o medo a mais depressiva das emoções; e ele logo provoca uma aguda e
irreversível prostração, como se em conseqüência, ou associada, aos mais violentos e
prolongados esforços para escapar do perigo, mesmo nenhum esforço tendo sido feito [...].” (Ibid.,
p. 83). “O gado e os cavalos agüentam fortes dores em silêncio; mas quando a dor é excessiva, e
especialmente quando é acompanhada por medo, soltam sons terríveis. Muitas vezes reconheci
de longe nos pampas o agonizante urro de morte do gado, quando laçado e imobilizado. Parece
que os cavalos, quando atacados por lobos, soltam fortes e peculiares gritos de desespero.” (Ibid.,
p. 86). “A agonia da dor é expressa pelos cães quase da mesma maneira que por muitos outros
animais, ou seja, uivando, estremecendo e se contorcendo.” (Ibid., p. 118). “Nos macacos, a
expressão de uma dor pouco intensa, ou de qualquer emoção dolorosa, como tristeza,
aborrecimento, ciúme, etc., não se distingue muito da expressão de raiva moderada; e esses
estados de espírito se alternam rapidamente. A tristeza, no entanto, em algumas espécies
manifesta-se certamente pelo choro.” (Ibid., p. 131).
No que se refere ao prazer, “Muitos animais chamam incessantemente pelo sexo oposto no
período de cio; e não são poucos os casos em que o macho o faz para agradar ou excitar a

- 220 -
Como conclusão de seus detalhados estudos comportamentais,
DARWIN afirma que:

Fatos suficientes já foram apresentados a respeito das expressões de


diversos animais. É impossível concordar com Sir C. Bell quando ele diz
que os ‘rostos de animais parecem capazes de exprimir principalmente
raiva e medo’, e também quando diz que todas as suas expressões
‘podem ser relacionadas, com maior ou menor clareza, aos seus atos
volitivos ou a instintos necessários.’ Aquele que observar um cão
preparando-se para atacar outro cão ou um homem, e o mesmo animal
acariciando seu dono, ou a expressão de um macaco quando provocado
e quando afagado pelo seu tratador, será forçado a admitir que os
movimentos de seus traços e gestos são quase tão expressivos quanto
os dos humanos 631.

Ainda segundo o biólogo:

Vimos o estudo da teoria das expressões confirma até certo ponto a


conclusão de que o homem descende de alguma forma animal inferior, e
reforça a crença na unidade específica ou subespecífica das inúmeras
raças. Mas até onde eu sei, essa confirmação não era necessária. Vimos

fêmea. Esse parece realmente o uso primevo e o meio de desenvolvimento da voz, como tentei
demonstrar em meu The Descent of Man. Assim, o uso dos órgãos vocais parece ter se associado
com a antecipação do mais intenso prazer que os animais são capazes de sentir.” (Ibid., p. 86)
Quanto à raiva e o medo, observa DARWIN que: “Nos carnívoros, o eriçar dos pêlos parece ser
praticamente universal, muitas vezes acompanhado de movimentos ameaçadores, como mostrar
os dentes e soltar uivos selvagens. No mangusto, vi o pêlo eriçado em praticamente todo o corpo,
inclusive a cauda; na hiena e no protelo, a crista dorsal ergue-se de uma maneira bastante
chamativa. O leão enfurecido levanta sua juba. O arrepiar do pêlo no pescoço e dorso do cão, e
no corpo todo do gato, especialmente no rabo, é conhecido de todos. Com o gato isso ocorre
aparentemente apenas quando sente medo; com o cão quando sente raiva e medo, mas não até
onde observei, com um medo covarde, como quando um cão vai ser chicoteado por um treinador
severo.” “[...] Pássaros de todas as ordens eriçam suas penas quando assustados ou
enraivecidos. Todos já devem ter visto dois galos, mesmo bem jovens, preparando-se para lutar
com sua penugem do pescoço arrepiada.” (Ibid., p. 96-7). “Um cão aterrorizado joga-se no chão,
uiva e solta suas excreções; mas o pêlo, acredito, não fica arrepiado a não ser que ele sinta
alguma raiva. Eu vi um cão muito amedrontado com uma banda de músicos que tocava alto fora
de casa, cada músculo de seu corpo tremendo, o coração palpitando tão forte que mal dava para
contar os batimentos e a boca aberta com a respiração ofegante. Igual a um homem
amedrontado.” (Ibid., p. 119).
631
Ibid., p. 139.

- 221 -
também que as expressões por si mesmas, ou a linguagem das
emoções, como por vezes são chamadas, certamente têm importância
para o bem-estar da humanidade. Entender, na medida do possível, a
fonte ou origem das várias expressões que a todo momento podem ser
vistas nos rostos dos homens à nossa volta, sem mencionar nossos
animais domesticados, deveria ter um enorme interesse para nós. Por
essas muitas razões, podemos concluir que a filosofia do nosso tema fez
por merecer a atenção dispensada por inúmeros excelentes
observadores, e que ela merece ainda mais atenção, especialmente por
parte de fisiologistas habilitados 632.

E, por fim:

Vimos que os sentimentos e a intuição, as várias emoções e faculdades,


tais como amor, memória atenção e curiosidade, imitação, razão, etc.
das quais o homem se orgulha, podem ser encontradas em estado
incipiente, ou mesmo, por vezes, numa condição bem desenvolvida nos
animais inferiores 633.

Neste ponto do presente trabalho, cabe, mais uma vez, citar


textualmente trecho da obra de SINGER, segundo o qual:

A idéia de que somos produto de um ato especial da criação e que os


outros animais foram criados para nos servir não seria abandonada com
facilidade. No entanto, as provas científicas quanto a origem comum dos
seres humanos e outras espécies eram esmagadoras. Com a aceitação
final da teoria de Darwin, chegamos a uma compreensão moderna da
natureza, que, desde então, mudou mais em detalhes do que em
fundamentos. Somente aqueles que preferem a fé religiosa a crenças
assentadas em raciocínio e em provas podem ainda afirmar que a
espécie humana é a ‘queridinha’ especial de todo o universo, que os

632
Ibid., p. 341.
633
DARWIN, A Origem do Homem, p. 193, apud SINGER, op.cit., p. 233 (grifos nossos).

- 222 -
demais animais foram criados para fornecer-nos alimentos ou que temos
autoridade divina sobre eles e permissão divina para matá-los.634

No entanto, como será abordado nos próximos capítulos os animais


continuam sofrendo enormemente. Conforme bem adverte DENIS RUSSO
BURGIERMAN:

Há uma contradição no mundo de hoje. Nunca na história prezamos


tanto a vida – e, ainda assim, há, espalhadas pelo mundo, fábricas de
cadáveres, onde bilhões de vidas são exterminadas para agradar a
nossos paladares. Nunca valorizamos tanto os direitos individuais – e,
mesmo assim, dezenas de bilhões de indivíduos de outras espécies
levam vidas miseráveis por nossa culpa. Nunca tivemos tanta certeza da
condição animal do homem, certeza confirmada pela ciência desde
Darwin – e, no entanto, tratamos espécies próximas como coisas. Nunca
antes fomos tão descrentes da superioridade humana concedida por
Deus – e, mantemos na Terra a condição de espécie suprema,
devorando as outras. Nunca tivemos tanta confiança na tecnologia para
suprimir a dor e o sofrimento – e mantemos funcionando verdadeiras
salas de torturas industriais.635

Diante de tais estarrecedores fatos, tomo como minha a indagação


feita por SINGER: “Afinal, o que deu errado?”

634
SINGER, op.cit., p. 233-4.
635
BURGIERMAN, Denis Russo. Vegetarianismo. São Paulo: Abril, 2003. p. 10.

- 223 -
CAPÍTULO II - ENTRE O FORMALISMO E A REALIDADE ÉTICA

“A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua


pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam
força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais
radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao
olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é,
com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o
‘desaire’ fundamental que está na origem de todos os outros.”636

MILAN KUNDERA

“Temos o direito de sermos iguais todas as vezes que a diferença nos


inferioriza. Temos direito de sermos diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza.”

BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS

2.1. Teoria da Opressão e a Estratégia de Inferiorização

“Vocês sabem, tanto quanto nós, que no mundo dos homens os


argumentos jurídicos são respeitados unicamente quando os adversários
em presença dispõem de meios de coação equivalentes; quando isso
não ocorre, os mais fortes sempre se aproveitam ao máximo de sua
potência, enquanto os mais fracos são constrangidos a se inclinar.”637

(Conferência havida entre os chefes militares atenienses e os dirigentes


da Ilha de Melos, em meio à Guerra do Peloponeso)

“He who does not posses power loses the right to life.”638

ADOLF HITLER

636
KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.
329.
637
COMPARATO, op.cit., p. 254.
638
HITLER apud PATTERSON, Charles. Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals And The
Holocaust. New York: Lantern Books, 2002. p. 231.

- 224 -
O individualismo e o egocentrismo são alimento constante para o
antropocentrismo. Como bem destaca SAVATER, todo o nosso psiquismo brota
de uma megalomania primária e narcisista (a que denomina de “homopotência”)
onde antes de nascer nos vemos como deuses (“imago-Dei”) e depois somos
fanáticos no sentido hegeliano: consideramos toda existência positivamente
alheia (isto é, não assimilado de imediato à sua) como um limite. Este limite
conduz, na maior parte das vezes, a táticas de dominação e opressão do alter 639.
FERNANDO PESSOA sintetiza poeticamente a idéia:

[...] És importante para ti, porque é a ti que te sentes.


És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
satélites de tua subjetividade objetiva.
És importante par ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?640

A maior parte dos sociólogos chegou à inarredável conclusão de que


o racismo, o sexismo, o classicismo e outras formas análogas de opressão
possuem raízes históricas e causas estruturais que estão largamente moldadas
em arranjos sociais não-igualitários. Os comportamentos individuais refletem
estes arranjos sob a forma de preconceito e discriminação. Esta tese tem
recebido considerável suporte acadêmico e inúmeros estudiosos afirmam que a
discriminação contra grupos oprimidos é induzida e mantida por estas causas
estruturais. Segundo DANIEL ROSSIDES:

Moreover, the oppression of various devalued groups in human societies


is not independent and unrelated; rather, the arrangements that lead to
various forms of oppression are integrated in such a way that the

639
Cf. SAVATER, Fernando. Ética como Amor-próprio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 88.
640
PESSOA, Fernando. Se Te Queres, Poesias de Álvaro de Campos (heterônimo).

- 225 -
exploitation of one group frequently augments and compounds the
mistreatment of others 641.

Nesta mesma linha, MARGARET ANDERSON e PATRICIA HILL


COLLINS sustentam que as categorias de raça, classe e sexo são “sistemas
interativos” que devem ser analisados à luz das instituições sociais e dos
sistemas de crença de uma dada sociedade642. Consoante assinala SUZANNE
PHARR:

It is virtually impossible to view one oppression [...] in isolation because


they are all connected. […] They are linked by a common origin –
economic power and control – and by common methods of limiting,
controlling and destroying lives. There is no hierarchy of oppressions.
Each is terrible and destructive. To eliminate one oppression
successfully, a movement has to include work to eliminate them all or
else success will always be limited and incomplete 643.

A afirmação de PHARR certamente pode ser expandida para fazer


incluir a libertação dos animais. A opressão humana também se faz sentir em
relação aos animais e o abuso destes serve, muitas vezes, de combustível para a
exploração do homem pelo homem.

Conforme nos ensina DAVID NIBERT644, o termo “grupo minoritário”,


inicialmente cunhado para se referir às minorias étnicas, hoje se presta para se
referir a qualquer grupo diverso daqueles que “controlam” a sociedade.
Infelizmente, houve uma tendência generalizada de se agregar à noção de
controle valores de normalidade e tipicidade, enquanto que os ditos “grupos
minoritários” foram quase sempre retratados como “especiais” ou “anormais”. Por

641
ROSSIDES, Daniel W. Social Stratification: The Interplay of Class, Race, and Gender. Upper
Saddle River, NJ (USA): Prentice Hall, 1997. p. 19.
642
ANDERSON, Margaret L.; COLLINS, Patrícia Hill. Race, Class, and Gender: An Anthology.
Belmont, CA (USA): Wadsworth, 1992. p. xii e xiii.
643
PHARR, Suzanne. Homophobia: A Weapon of Sexism. Little Rock, Ark. (USA): Chardon, 1988.
644
NIBERT, David. Animal Rights, Human Rights: Entanglements of Oppression and Libertation.
Lanham, MA (USA): Rowan & Littlefield, 2002.

- 226 -
este motivo, o termo foi amplamente aceito e utilizado por ser ascético e não
carrear qualquer sorte de crítica ao status quo, razão pela qual a nomenclatura
mais adequada seria a de “grupos oprimidos”645.

A inclusão dos animais como membros de “grupos oprimidos” se fez


pela construção teórica acerca do “especismo”. Os autores que primeiro
escreveram sobre o termo a ele se referiram como formas de “preconceito”646 ou
“discriminação”647. No entanto, a maior parte dos sociólogos tende a descrever o
racismo, o sexismo, e outros “ismos” como ideologias, ou seja, como uma gama
de crenças sociais compartilhadas que legitimam uma ordem social desejada ou
existente. O preconceito e a discriminação são encarados como formas
comportamentais individuais. Até a década de sessenta, muitos acreditavam que
o racismo, por exemplo, era conseqüência do preconceito individual. Todavia,
esta perspectiva reducionista foi amplamente desafiada na década seguinte por
estudiosos como ROBERT BLAUNER que em sua obra Racial Oppression, de
1972 deixa claro que:

[...] I would not deny that ideas of white superiority are powerful in their
impact, and that stereotypes of racial minorities have a tenacious hold on
the conscious and unconscious mind. But prejudiced attitudes are not the
essence of racism. […] racism is institutionalized. The processes that
maintain domination – control of whites over nonwhites – are built into the
major social institutions. These institutions either exclude or restrict the
participation of racial groups by procedures that have become
conventional, part of the system of rules and regulations 648.

645
IRIS YOUNG assim define o termo “grupos oprimidos”: “Grupo que compartilha características
físicas, culturais ou econômicas e que é sujeito, aos ganhos econômicos, políticos e sociais de um
grupo privilegiado, por meio de um sistema que institucionaliza a exploração, a marginalização, o
empobrecimento, a privação ou a vulnerabilidade à violência” (YOUNG apud NIBERT, op.cit., p. 6-
7, tradução nossa).
646
RICHARD RYDER e PETER SINGER.
647
Para o OXFORD ENGLISH DICTIONARY, “especismo” é: “discrimination against or exploitation
of certain animal species by human beings, based on an assumption of mankind’s superiority”.
648
BLAUNER apud NIBERT, op.cit., p. 8.

- 227 -
JAMES VANDER ZANDEN corrobora a visão anteriormente exposta
por BLAUNER, expondo que o preconceito emerge primariamente para dar
suporte à exploração e opressão racial. O preconceito visto sob este enfoque
seria um mecanismo de proteção dos privilégios adquiridos por um determinado
grupo em detrimento de outros:

Prejudice arises [...] through a collective process in which spokesmen for


a racial or ethnic group – prominent public figures, leaders of powerful
organizations, and intellectual and social elites – operating chiefly
through the mass media publicly characterize another group. Such
spokesmen foster feelings of racial superiority, racial distance, and a
claim to certain rights and privileges. Other members of the dominant
group, although having different views and feelings, fall into line fearing
in-group ostracism. The sense of group position serves as a special kind
of social norm, especially for individuals who strongly identify with the in-
group. In this fashion a sense of group position – with its encompassing
matrix of prejudice – becomes a general kind of orientation. It is a
hypothesis, then, that views the dominant group as having a vested
interest in another group’s subordination; the dominant group has a stake
in preserving an order characterized by privilege and advantage.
Prejudice becomes an instrument for defending this privilege and
advantage 649.

Segue-se que o “especismo” é uma forma de ideologia que suporta


arranjos sociais opressivos. Como mencionado anteriormente, inúmeros autores,
já se debruçaram no estudo comparativo das formas de opressão entre humanos
(racismo, sexismo, etc.) com o especismo. A importante obra de MARJORIE
SPIEGEL, The Dreadded Comparison, explora tal analogia criticando o sistema
econômico que serve de sustentáculo para estas práticas:

To a large extent, the heightened institutionalization of oppression of


blacks (in the form of legalized slavery), and animals (in factory farming
and vivisection), can be attributed to the profit motive. Indeed, eighteenth

649
ZANDEN apud NIBERT, op.cit., p. 9.

- 228 -
– and nineteenth – century anti-abolitionists contended that the end of
slavery would bring with it the collapse of the economic structure of the
United States, while in our own century C.W. Hume wrote that ‘the major
cruelties practiced on animals in civilized countries today arise out of
commercial exploitation, and the fear of losing profits is the chief obstacle
to reform 650.

A estratégia de despersonalização serviu para colocar o escravo na


condição análoga ao do animal não-humano. Nas sociedades escravagistas, as
mesmas práticas usadas para controlar os animais, tais como a castração651, a
marcação, a mutilação e o encarceramento, foram também utilizadas para
controlá-los. A ética de opressão e dominação que removeu os animais da esfera
da consideração moral humana também legitimou o mesmo tratamento a seres
humanos. A barreira que separa os homens dos demais animais serviu de padrão
para a formulação de juízos valorativos sobre a própria condição humana. Se a
essência da humanidade podia ser definida como a posse de determinadas
qualidades, tais como a razão, a linguagem, a religião, a cultura, os hábitos,
segue-se que qualquer um que não fosse plenamente capaz de desenvolver uma
ou algumas destas aptidões poderia ser julgado como menos humano, ou “sub-
humano”.652

As populações indígenas nativas das Américas, também conforme já


mencionado anteriormente, sofreram incrivelmente com a apologia da ideologia
racial européia. Em 1890, pouco antes do massacre de Wounded Knee, em South

650
SPIEGEL apud NIBERT, op.cit., p. 11.
651
Um método bastante comum de castração de animais é deitar o animal e, com uma faca, retirar
a bolsa escrotal expondo os testículos, que são arrancados com o rompimento do duto deferente.
Outro método usual é o uso de um anel que comprime fortemente toda a base da bolsa escrotal
obstando a circulação sanguínea. Os dois sistemas são tidos como profundamente agonizantes
para o animal. Nos EUA, especialmente nas colônias das Carolinas, Vírginia, Pennsylvania e New
Jersey, a castração de escravos era uma prática regular com vistas à “restrição do espírito
bárbaro” dos negros. WINTROP JORDAN afirma que “a castração de negros indica claramente
uma necessidade do homem branco no sentido de se convencer sobre sua suposta posição de
mando e ilustra dramaticamente a facilidade com que os brancos tratavam os seus escravos como
bois e cavalos cujo ‘espírito podia ser contido por meio da emasculação’” (JORDAN apud
PATTERSON, op.cit.. p. 14, tradução nossa).
652
LEO KUPER assinala que “o mundo animal sempre foi particularmente fértil como fonte de
metáforas de desumanização, por meio das quais as pessoas designadas como ‘animalescas’
foram frequentemente perseguidas como animais” (KUPER apud PATTERSON, op.cit., p. 26,
tradução nossa).

- 229 -
Dakota, L. FRANK BAUM, editor do periódico Aberdeen Saturday Pioneer, mais
conhecido posteriormente pela publicação do clássico The Wizard of Oz,
advogava pela exterminação dos índios nos seguintes termos:

The nobility of the Redskin is extinguished, and what few are left are a
pack of whining curs who lick the hand that smites them. The Whites, by
law of conquest, by justice of civilization, are masters of the American
continent, and the best safety of the frontier settlements will be secured
by the total annihilation of the few remaining Indians. Why not
annihilation? Their glory has fled, their spirit broken, their manhood
effaced; better that they should die than live the miserable wretches that
they are. 653”

Diversos outros povos e etnias foram retratados da mesma forma.


Os judeus, em particular, desde a antiguidade, foram muitas vezes injustamente
perseguidos sob acusações desta ordem. O patriarca de Constantinopla, SÃO
JOÃO CRISÓSTOMO (347-404) a eles se referia como “bestas selvagens”654.
MARTINHO LUTERO (1483-1546), por sua vez, abençoava os judeus por não
seguirem os ensinamentos papais, mas, após verificar que não se converteriam à
sua vertente do cristianismo, denunciou-os como “porcos” e “cachorros loucos”.
Em 1575 um livro alemão declarava que uma judia, perto de Augsburg, teria dado
a luz a dois pequenos porquinhos655. HEGEL (1770-1831) sustentava que os
judeus não poderiam ser assimilados pela cultura germânica, pois o seu
materialismo os conduzia a seguir uma “existência animal”656. PAUL DE
LAGARDE (1827-1891) chamava os judeus de “bacilos” e dizia que eram
portadores de uma decadência capaz de poluir a cultura de qualquer nação657.
Nos idos de 1900, o príncipe alemão WILLIAM II (1859-1941) se referiu aos

653
BAUM apud PETTERSON, op.cit., p. 36.
654
CRISÓSTOMO apud PETTERSON, op.cit., p. 44.
655
Apud GOSSET, Thomas F. Race: The History of an Idea in America. New York: Oxford
University Press, 1997. p. 12.
656
HEGEL apud WEISS, John. Ideology of Death: Why the Holocaust Happened in Germany.
Chicado: Ivan R. Dee, 1996. p. 67.
657
LAGARDE apud PETTERSON, op.cit., p. 45.

- 230 -
judeus refugiados da Rússia como “porcos”658. O compositor RICHARD WAGNER
(1813-1883) usualmente os denominava de “vermes” e “insetos”659. Como não
poderia deixar de ser, HITLER se apropriou desta odiosa terminologia para
descrever os judeus como “a aranha que lentamente suga o sangue dos
indivíduos, um bando de ratos que luta entre si até conseguir obter sangue, o
parasita que infesta o corpo de outras pessoas, eternos sanguessugas.”660

ISAAC BASHEVIS SINGER (1904-1991), ganhador do prêmio Nobel


de Literatura em 1978, em The Letter Writer, deixou expressa a analogia entre a
ideologia nazista e o tratamento dos animais:

In his thoughts, Herman spoke a eulogy for the mouse who had shared a
portion of her life with him and who, because of him, had left this earth.
‘What do they know – all these scholars, all these philosophers, all the
leaders of the world – about such as you? They have convinced
themselves that man, the worst transgressor of all the species, is the
crown of creation. All other creatures were created merely to provide him
with food, pelts, to be tormented, exterminated. In relation to them, all
people are Nazis; for the animal it is an eternal Treblinka.

A propaganda nazista de desumanização dos judeus e as correlatas


práticas de extermínio tornam a comparação com a realidade dos animais
inevitável. Um médico prisioneiro em Aushcwitz, MAGDA V., afirmou que JOSEF
MENGELE travava os judeus como “animais de laboratório” já que “éramos
realmente biologicamente inferiores aos seus olhos”661. As horrendas práticas nos
campos de concentração se tornavam mais “fáceis” na medida em que os
prisioneiros eram vistos como diferentes, como inferiores. Conforme bem
descreve JUDY CHICAGO, quando visitou Auschwitz e viu um modelo em escala
de um crematório, “eles eram na verdade plantas de processamento gigantes –

658
WILLIAM apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
659
WAGNER apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
660
HITLER apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
661
Apud PETTERSON, op.cit., p. 47.

- 231 -
com exceção de que ao invés de processar porcos, processavam pessoas que
haviam sido definidas como porcos”662. Na mesma linha PATTERSON afirma:

What was so unnerving about being at Auschwitz, she writes [JUDY


CHICAGO], ‘was how oddly familiar it seemed. Since some of the things
the Nazis did in the camps are done all the time in the rest of the world,
the ‘processing’ methods used at Auschwitz were ‘a grotesque form of
the same modern technologies upon which we all depend. Many living
creatures are crowded together in despicable quarters; transported
without food or water; herded into slaughterhouses, their body parts
‘efficiently’ used to make sausages, shoes, or fertilizer’663.

A tirania dos animais humanos sobre os não-humanos causa dor e


sofrimento só comparáveis com as maiores atrocidades cometidas ao longo dos
tempos. Como afirma o filósofo THEODOR ADORNO (1906-1963), “Auschwitz
começa quando alguém olha para um abatedouro e pensa: eles são somente
animais”.

Em 1968, DONAND NOEL propôs um sistema teórico para explicar


a estratificação étnica664. De acordo com o autor, três forças básicas produzem o
resultado separatista: (a) competição por recursos materiais (exploração
econômica); (b) poderes desiguais entre grupos; (c) etnocentrismo – entendido
como a visão que coloca um grupo como o centro das preocupações e os demais
referenciados a ele. Uma versão modificada da teoria de NOEL deu origem à
denominada “teoria da opressão”. O primeiro fator continua sendo a promoção de
interesses econômicos, conjugado com o desequilíbrio de poderes entre os
agentes e à condicionante de controle ideológico. Conforme assinala NIBERT, em
termos gerais, os seres humanos tendem a eliminar ou a explorar um
determinado grupo que percebem como diferente sempre que o interesse
econômico assim o ditar. O grupo dito “opressor” deverá possuir “ferramentas” de
subordinação. A força física, embora constitua a forma mais evidente de controle,

662
CHICAGO apud PETTERSON, op.cit., p. 49.
663
PETTERSON, op.cit., p. 49-50.
664
NOEL, Donald. “Theory of Ethnic Stratification”, Social Problems 16, 1968. p. 157-172.

- 232 -
é geralmente mascarada pelo controle político. Aqueles que exercem o controle
político, geralmente por meio do aparato estatal, reforçam as instâncias legais de
modo a legitimarem as atitudes discriminatórias que protegerão este arranjo. Todo
o mecanismo é sistêmico e circular. A eliminação ou exploração do “outro” produz
arranjos sociais desenvolvidos com base em tratamentos opressivos chancelados
pelo Estado que, por seu turno, possibilitam a propagação de idéias que
diminuem e menosprezam os grupos “oprimidos” (formação de ideologias
discriminatórias); fornecendo combustível para o “cultivo” do preconceito
(discriminação como “lugar comum”); que permite a aceitação e normatização da
opressão e a preservação do status quo que reforça a eliminação ou exploração
do “outro”.

Tal teoria pode ser aplicada com perfeição para o caso da “opressão
animal”. A disparidade na distribuição de bens e riquezas gera um mundo
comprometido com a manutenção da exclusão. Cálculos sugerem que se todos
os seres humanos tivessem o mesmo padrão de consumo de um americano
médio, necessitaríamos de quatro planetas Terra para suprirmos tal demanda. A
proporção entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre da população mundial
era de 30 para 1 em 1960; 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1997. Hoje, cerca
de apenas trezentos e cinqüenta bilionários acumulam tanta riqueza quanto cerca
de metade dos habitantes do globo665. Ao mesmo tempo, bilhões de animais com
os quais dividimos o planeta sofrem atos indizíveis e sofrimentos atrozes para se
encaixarem no sistema produtivo. Parece-nos que a construção de EDGAR
MORIN é cada vez mais atual no sentido de qualificar o homem como “Homo
sapiens demens”666. Como bem assinala SCHOPENHAUER:

Numa palavra, o “eu” tem duas qualidades: é injusto em si, com o que se
faz centro de tudo; é incômodo para os outros, como o que quer subjuga-

665
MCCHESNEY, Robert W. Rich Media, Poor Democracy: Communication Politics in Dubious
Times. New York: New Press, 2000. p. 299.
666
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina
Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez, 2000. p. 52.

- 233 -
los: porque cada “eu” é inimigo e gostaria de ser to tirano de todos os
outros.667

2.2. Teoria dos “Deveres Indiretos”, “Transbordamento Moral” e


“Casos Marginais”

“Insista-se no fato de que o ser humano é, sempre, o foco central das


ações de preservação do meio ambiente. Só ele representa, como
mostrou Kant, um fim em si mesmo não podendo ser utilizado como
meio ou instrumento para a consecução de outros fins. Algumas vezes,
no entanto, a preocupação em preservar a biodiversidade tende a nos
fazer o princípio de que o homem é o ponto culminante da evolução
biológica e que, embora dependente do equilíbrio ecológico para
sobreviver, sua posição ética não se iguala à de nenhum outro ser vivo.
A UNESCO cometeu, assim, uma impropriedade técnica ao aprovar em
1978 uma assim chamada ‘Declaração dos Direitos dos Animais’. A
expressão ‘direitos do animal’, em vez de ser tomada ao pé da letra,
deveria servir como uma indicação dos deveres da humanidade para
consigo mesma, na preservação da biodiversidade.”668

FÁBIO KONDER COMPARATO

Diante do exposto neste primeiro capítulo, e de acordo com a


diagramação teórica tal como proposta por REGAN, podemos agrupar as teorias
éticas com relação à nossa interação com os animais em três categorias básicas
distintas: a primeira delas é a dos chamados abolicionistas. Os defensores de tal
posição são favoráveis à interrupção de toda sorte de práticas que utilizam
animais como meros instrumentos para fins humanos. A posição reformista
aceita, via de regra, grande parte de tais práticas, mas entende que devam ser
melhoradas. Os conservadores, por sua vez, defendem o status quo, aceitando as
condutas tais como são, sem reconhecer a necessidade de alterá-las em
quaisquer de seus aspectos.

667
SCHOPENHAUER apud SAVATER, op.cit., p. 3.
668
COMPARATO, op.cit., p. 430.

- 234 -
Uma segunda distinção que podemos traçar do ponto de vista
didático diz respeito à resposta que se dá à indagação relativa à justificativa para
a possibilidade de limitação da esfera dos interesses humanos quando em
confronto com os interesses dos não-humanos. Uma primeira corrente sustentará
que a justificativa para a limitação encontra-se no fato de que as práticas
humanas afetam diretamente os próprios animais, que sob este prisma,
possuiriam valor intrínseco, próprio, sendo portadores de interesses que devem
ser protegidos. Tal visão, conforme se verá, será utilizada para fundamentar a
viabilidade dos denominados “Animal Rights” (“direitos dos animais”) mas, por
enquanto, chamá-la-emos de “concepção dos deveres diretos” (“direct duties
view”). Uma outra posição – a que denominaremos de “concepção dos deveres
indiretos” (indirect duties view) -, defenderá que as restrições morais às condutas
humanas têm por justificativa não os animais em si, mas tão somente o próprio
interesse humano de não se tornar cruel com elas669, como que se a atenção para
com os animais fosse uma propedêutica à humanização das relações entre os
homens. Haveria deveres que “envolvem” animais, mas não deveres para com
eles670. ROBERT NOZICK dá a esse fenômeno de interferência indireta da

669
Atos de violência e abuso contra animais há muito tem sido reconhecidos como indicadores de
perigosos desvios de comportamento. Três excelentes obras abordam a conexão da violência
contra os animais e contra humanos: PEREZ, Linda Merz. Animal Cruelty: Pathway to Violence
Against People. Providence, Rhode Island (USA):AltaMira Press, 2003; ASCIONE, Frank. Child
Abuse, Domestic Violence, and Animal Abuse: Linking the Circles of Compassion for Prevention
and Intervention. Purdue (USA): Purdue University Press, 1999; LOCKWOOD, Randall. Cruelty to
Animals and Interpersonal Violence: Readings in Research and Application. Purdue (USA): Purdue
University Press, 1998. De acordo com ROBERT K. RESSLER, que desenvolveu estudos de
assassinos em série para o FBI-Federal Bureau of Investigation, inúmeros estudos já
estabeleceram a comprovação empírica da existência de uma correlação entre a crueldade
cometida contra animais e atitudes de violência e de propensão criminal humana. Incontáveis
assassinos seriais contam com passado de violência animal. Entre eles podemos citar os casos de
DAVID BERKOWITZ, (conhecido pela alcunha de “Son of Sam”), ALBERT DE SALVO (o
estrangulador de Boston), o canibal JEFFREY DAHMER, TED BUNDY, etc. Para EDILSON
MOUGENOT BONFIM, promotor de justiça de São Paulo, atuante no conhecido caso do “maníaco
do parque”, elenca como características de tais criminosos: “A superficialidade das relações
sociais, a falta de remorso, a não-introjeção de valores, a vivência no ‘mundo errante’ da
criminalidade, a crueldade para com animais ou pessoas aperfeiçoada desde a infância, o
margeamento das regras sociais, fazem com que os assassinos-em-série elaborem em suas
fantasias sangrentas um mundo onde se sintam senhores, plenipotentes proprietários da vida dos
‘outros’, aos quais ‘coisificam’, na busca do próprio prazer” (BONFIM, Edílson Mougenot. O
Julgamento de um Serial Killer. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 81).
670
REGAN nos traz um exemplo bastante ilustrativo do que consista tal atitude indireta. Segundo
o autor, pode ser sustentado que não temos deveres diretos para com as obras de arte em geral,
digamos, a Guernica de Picasso. Teríamos, em tal caso, deveres (diretos por assim dizer), com os
próprios seres humanos, incluindo as futuras gerações, de preservação e proteção de tais
manifestações culturais. Assim, teríamos um dever que envolve a obra Guernica, mas não em

- 235 -
conduta cruel cometida contra animais pelos homens de “transbordamento moral”
(“moral spillover”)671.

Em uma análise interativa entre a primeira classificação proposta e a


segunda, perceberemos que, na maior parte das vezes, a categoria dos
abolicionistas estará mais fortemente vinculada à concepção dos deveres diretos,
enquanto que a dos reformadores (“welfaristas”672) e conservadores à dos
deveres indiretos.

Uma posição de “deveres indiretos” mais sofisticada sustenta a


diferenciação entre “agentes morais” e “pacientes morais”, que não se confunde
com a existente entre sujeito ou objeto de direito. De acordo com REGAN, um
agente moral, de acordo com a concepção tradicional, é aquele indivíduo que
possui uma variada gama de habilidades, incluindo a de balancear princípios
morais abstratos na formulação de juízos de valores que irão servir de guia para
sua conduta pessoal. A própria noção de imputabilidade corrobora a noção de
que ausentes algumas dessas capacidades, o indivíduo torna-se, eventualmente,
não-responsável pelo seu agir. Os seres humanos adultos são considerados,
paradigmaticamente, agentes morais673.

Os ditos “agentes morais” não se colocam apenas diante da


possibilidade de atuar conscientemente no sentido de saber e fazer o que é
“certo” ou “errado”, mas também na posição passiva dos atos de outros “agentes
morais”. Por isso, pode-se dizer que haveria uma “comunidade moral”
congregando-os. Neste sentido, quaisquer deveres de “agentes morais” para com
agentes que não reúnem aqueles requisitos seriam tão-somente “deveres
indiretos”. Em contraste com os “agentes morais” temos os denominados

relação à obra por si mesma. O dever de preservá-la seria, em realidade, um dever indireto para
com a humanidade (REGAN, The Case For Animal Righst, op.cit., p. 151).
671
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. p. 51.
672
O “welfarismo” animal é definido por FRANCIONE como a corrente que sustenta que seria
moralmente aceitável, sob determinadas circunstâncias, matar animais ou sujeitá-los ao
sofrimento, desde que precauções sejam tomadas para garantir que eles sejam tratados tão
“humanamente” quanto possível. Uma posição “welfarista” clássica geralmente sustenta que não
há interesse animal que não possa ser superado se as conseqüências da superação forem
suficientemente benéficas para os seres humanos (FRANCIONE, Gary. Animals, Property and The
Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995. p. 6).
673
Fugiria ao escopo do presente trabalho discutir sobre a existência de uma “vontade livre” de
fato.

- 236 -
“pacientes morais” que seriam os indivíduos que são desprovidos das habilidades
de formulação de princípios morais abstratos e, via de conseqüência, de juízos
morais sobre seus atos. Desta maneira, são incapazes de conscientemente,
saber de antemão o que é “certo” ou “errado”. Seres humanos em tenra idade e
portadores de deficiências mentais congênitas são exemplos clássicos de
“pacientes morais”674. Certamente que tais indivíduos diferenciam-se
qualitativamente entre si, havendo aqueles que além da capacidade de
consciência e senciência, possuem também outras habilidades cognitivas como
por exemplo a memória, ainda que todas estas características possam se
apresentar em níveis fortemente diminuídos dependendo do caso concreto. Como
mencionado, os pacientes morais não podem pautar sua conduta em termos de
valoração moral própria, mas certamente podem se situar no pólo passivo dos
atos perpetrados pelos “agentes morais”.675 Ao contrário do que ocorre entre os
“agentes morais”, a relação entre eles e os “pacientes morais” não é recíproca. Os
últimos não podem fazer nada, “certo” ou “errado”, que afete ou envolva os
primeiros, mas estes podem efetivamente pautar sua conduta naqueles termos
em seu relacionamento, qualquer que seja ele.

A visão dos “deveres indiretos” limita o pertencimento da


“comunidade moral” aos “agentes morais”. Os “pacientes morais”, mesmo no caso
dos mais paradigmáticos tais como crianças e deficientes mentais, não possuem
significância moral direta ou própria, pelo que não teríamos “deveres diretos” para
com eles. Por meio desta mesma construção, podemos perceber a razão pela
qual os animais também estão alijados de toda sorte de consideração mediata.
De fato, as filosofias morais tradicionais, ao vincularem o agir moral à posse de
determinadas características do paciente, relativizam o dever de moralidade.

674
Discussão maior envolve a categorização dos fetos e das gerações futuras como “pacientes
morais”.
675
REGAN ilustra a hipótese com a seguinte situação: um surra brutal infligida contra uma criança,
por exemplo, é errada, ainda que a criança por si própria não possa formular juízos de valor sobre
o ato sofrido (cf. REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 154)

- 237 -
Além disso, conforme destaca SÔNIA T. FELIPE:

Um segundo erro cometem ainda as filosofias morais tradicionais,


quando, ao constatarem que os critérios estabelecidos acabam por
excluir a maior parte dos próprios seres humanos do âmbito da
moralidade, decidem, para não questionarem seus próprios critérios de
fundamentação da ação moral, incluir, sem justificar moralmente, todos
os sujeitos da espécie Homo sapiens no âmbito da comunidade moral,
usando, para isso, critérios meramente biológicos de diferenciação e
classificação a partir da “aparência” dos organismos – critérios, pois,
especistas, e não critérios morais de distinção entre sujeitos que podem,
e seres que não podem ser prejudicados por ações dos agentes
morais.676

O argumento dos chamados “casos marginais” ou “não-


paradigmáticos” contesta justamente tal situação, sendo correntemente utilizado
por aqueles que propugnam pela consideração moral direta para com os animais
como forma de demonstrar a ilogicidade e incoerência da exclusão destes da
comunidade moral. O raciocínio básico dos ditos “casos marginais” pode ser
resumido da seguinte maneira: se é possível fazer incluir na comunidade moral
humana seres destituídos das capacidades que comumente são exigidas para
justificar a caracterização de determinado indivíduo como agente moral humano
(caso dos pacientes morais humanos)677, qual é a razão que impossibilita a que
outros seres, em todos os aspectos relevantes similares àqueles (caso dos

676
FELIPE, Sônia T. Direito Animais. O Recurso à Analogia e a Exigência do Princípio da
Coerência na ética de Tom Regan. Artigo parte do estudo “Por uma questão de direitos
(obrigações) ou por uma questão de princípios (deveres); alcance e limites das teorias éticas de
Tom Regan e de Peter Singer na defesa dos animais; um estudo crítico”, desenvolvido em nível de
Pós-doutoramento com a supervisão de Cristina Beckert, do Centro e Departamento de Filosofia
da Universidade de Lisboa, no período de 01 de Set. de 2001 a 29 de Ago. de 2002. Disponível
em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 08 nov. 2005.
677
Por seres humanos não-paradigmáticos entende-se aqueles indivíduos que, por doença ou
acidente, perdem definitiva ou temporariamente, ou mesmo não possuem, de maneira também
definitiva ou temporária, as faculdades pelas quais os seres humanos adultos “normais” são
usualmente considerados como fazendo parte de uma “comunidade moral humana”. São
comumente citados como exemplos de seres humanos não-paradigmáticos os recém-nascidos e
crianças em tenra idade, os idosos que sofrem de distúrbios relacionados à senilidade, pessoas
com sérios transtornos neurológicos e patologias cerebrais degenerativas, bem como os
portadores de graves deficiências mentais (congênitas ou não).

- 238 -
pacientes morais não-humanos), possam comungar dos mesmos benefícios e
estar na mesma categoria? Não seria inconsistente ou incoerente, incluir seres
humanos não-paradigmáticos no mesmo patamar moral dos ditos paradigmáticos
e negar a mesma possibilidade com relação aos animais?

2.2.1. Teorias Indiretas - Breve Recapitulação: Aristóteles e a


Posição Religiosa

“Não importa como o homem se comporta com relação aos animais,


porque Deus sujeitou todas as coisas ao poder do homem e é nesse
sentido que o Apóstolo diz que Deus não se importa com bois, pois Deus
não pede ao homem para prestar contas do que faz com os bois ou com
outros animais.”678

TOMÁS DE AQUINO

De posse de tais conceitos, passemos à análise das principais


correntes teóricas representativas da doutrina dos “deveres indiretos” tomando
por base a contribuição histórica deste capítulo. Em uma breve recapitulação,
temos que ARISTÓTELES aprimorou a teoria moral do perfeccionismo segundo a
qual a Justiça, enquanto tal, consistiria em dar a cada um o que é seu na medida
de sua “perfectibilidade”. A felicidade, a seu turno, consistiria na otimização da
própria humanidade de cada um. A racionalidade tem um papel central no
cumprimento desta meta, pois o homem é na visão aristotélica, único, justamente
por “pensar”, e a felicidade (ou o “bem”) é justamente utilizar ao máximo essas
suas potencialidades que tão bem definem o que é ser humano. Nesta linha, as
pessoas mais felizes, por merecimento, seriam aquelas que exercitam com maior
eficiência a sua própria racionalidade.

Tal teoria moral, em razão da desigual distribuição de bens em


função da maior ou menor perfectibilidade de um dado indivíduo é,
essencialmente, não-igualitária. O perfeccionismo está longe de conferir aos

678
AQUINO apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 221.

- 239 -
animais não-humanos qualquer tipo de amparo. Muito embora ARISTÓTELES
não tenha negado aos animais determinadas capacidades sensitivas básicas,
incluindo o sofrimento e o prazer, rejeita que teriam qualquer capacidade
cognitiva.

O referido posicionamento, conjugado com a teoria do


antropocentrismo teleológico, leva à conclusão de que os animais existiriam tão
somente para o bem da humanidade (assim como os escravos, mulheres e
crianças679). Utilizando a metodologia acima proposta, é possível afirmar que
reconheceu, quando muito, tão somente deveres indiretos para com eles680. A
que tudo indica, era um conservador no que se refere à melhoria da condição
animal.

A teoria do perfeccionismo aristotélico parece-nos muito pouco


defensável nos dias de hoje. Aceitar que os que possuem mais capacidade
possam merecer, via de regra, maiores recompensas é uma coisa, sustentar que
os menos favorecidos, por essa mesma razão, sejam explorados é outra bastante
distinta. E se o argumento falha com relação aos humanos menos favorecidos,
por coerência, deverá também falhar conceitualmente com relação aos animais,
pois a causa da falha é idêntica em ambos os casos.

Como examinado, mesmo aqueles que conclamavam a “boa


vontade” para com os animais, o faziam quase sempre sob uma perspectiva de
melhoria da própria humanidade. Um exemplo disto é PLUTARCO quando afirma:
“A boa vontade em relação aos animais é um exercício preparatório que nos
conduz ao amor pela humanidade.”681

A visão bíblica, como verificado, traz consigo uma mensagem de


concessão de domínio ao homem da natureza e dos animais. Tal mensagem
pode ser interpretada como sendo concessiva de um domínio incondicional ou

679
“The use made of slaves and of tame animals is not very different; for both with their bodies
minister to the needs of life” (ARISTÓTELES apud REGAN, Defending Animal Rights, op.cit., p. 6).
680
De fato, há uma passagem em que ARISTÓTELES teria afirmado que uma criança que furava
os olhos de uma andorinha, somente por “diversão”, certamente não seria um bom cidadão. A
preocupação não é com a crueldade como tendo atingido um valor intrínseco do animal, mas sim
com a possível perturbação psicológica de um indivíduo que vive em sociedade.
681
SANTANA, op.cit., p. 100.

- 240 -
como uma administração humana dos recursos naturais disponíveis
(“stewardship”). A primeira visão encabeça uma concepção nitidamente
despótica, pois o mundo natural possuiria valor somente na medida em que
serviria aos interesses humanos, ou seja, o ser humano continua como medida de
todas as coisas. A concepção tomista, derivada desta postura, pleiteia que os
animais não possuem valor intrínseco e que a crueldade para com eles somente
deveria ser evitada por incrementar a possibilidade da crueldade com o próprio
homem (teoria dos “deveres indiretos”). A segunda visão, encampada por
pensadores atuais como BARR (1974), LINZEY (1976), MC DANIEL (1989) e
CALLICOT (1993), pretende conferir outra interpretação ao significado do
vocábulo hebraico rada (originariamente traduzido como “ter domínio sobre”)
encontrado nas já mencionadas passagens bíblicas. Para eles, rada deveria ser
entendido como responsabilidade sobre uma criação que é boa
independentemente da presença humana. Os seres humanos, neste sentido,
seriam como que tutores imediatos do meio ambiente. De fato, tal interpretação
leva a crer que os animais não-humanos seriam inerentemente “bons” e que os
nossos deveres para com eles, por tal razão, seriam de ordem direta. A doutrina
do “stewardship” pode enquadrar simultaneamente defensores de posições
reformadoras e abolicionistas.

2.2.2. Teorias Indiretas - Contratualismo: Clássicos e Naverson

“A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos dos que
alegam ter ele ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da
espécie Homo sapiens, ao passo que chimpanzés, os cães, os porcos
não o são. Mas, usar essa diferença como base para conceder direito à
vida ao bebê e não a outros animais é, naturalmente, puro especismo. É
exatamente esse tipo de diferença arbitrária que o racista mais grosseiro
e declarado usa, na tentativa de justificar a discriminação racial.”682

PETER SINGER

682
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21.

- 241 -
Os contratualistas, como regra geral, refutam a possibilidade de os
animais integrarem o rol dos potenciais “contratantes” pela alegada incapacidade
de expressarem seus interesses e, conseqüentemente, de negociarem sua
posição livremente. O contratualismo hobbesiano protege os animais somente
quando são objeto do interesse dos ditos “contratantes” (concepção dos “deveres
indiretos”).

JAN NAVERSON, pensador contemporâneo canadense, adota a


posição “indireta” a que denomina de “egoísmo racional” (“rational egoism”). De
acordo com tal teoria, “todo ser racional tenta maximizar suas utilidades,
quaisquer que sejam, isto é, satisfazer seus desejos, interesses, etc.”683 Para
NAVERSON, os indivíduos “egoístas racionais” necessitam entrar em acordo a
fim de maximizar tais utilidades e proporcionar ganho efetivo684. As restrições
advindas de tal pactuação consistiriam na própria moralidade. A conseqüência
primeira da adoção da tese de NAVERSON é a de que indivíduos que são
incapazes de entrar em “posição de acordo” e de construir proposições “egoístas”
(“self-interested”) não podem ser sujeitos de direitos. Já que os animais, de
acordo com o autor, não possuem tais requisitos, não podem ser portadores de
direitos. Mais do que isso, pensa que não podem ser alvo de consideração moral
direta, já que tal perspectiva “coloca os animais fora do alcance da moralidade,

683
NAVERSON, Jan. “Animal Rights”, The Canadian Journal of Philosophy 7, n. 1, 1977. p. 177.
684
“On the contract view of morality, morality is a sort of agreement among rational, independent,
self-interested persons, persons who have something to gain from entering into such an
agreement. A major feature of this view of morality is that it explains why we must have it and who
is party to it. We have it for reasons of long-run self interest, and parties to it include all and only
those who have both the following characteristics: (1) the stand to gain by subscribing to it, at least
in the long run, compared with not doing so, and (2) the are capable of entering into (and keeping)
an agreement […] Given these requirements, it will be clear why animals do not have rights. For
there are evident shortcomings on both scores. On the other hand, humans have nothing generally
to gain by voluntarily refraining from (for instance) killing animals or ‘treating them as mere means’.
And on the other, animals cannot generally make agreements with us anyway, even if we wanted
to have them do so […] There is an evident problem about the treatment of what I have called
‘marginal cases’ on this view, of course: infants, the feeble-minded, and the incapacitated are in
varying degrees in the position of the animals in relation to us, are they not? True: but the situation
is very different in several ways. For one thing, we generally have very little to gain form treating
such people badly, and we often have much to gain from treating them well. For another, marginal
humans are invariably member of families, or members of other groupings, which make them the
object of love and interest on the part of the members of those groups. Even if there were an
interest in treating a particular marginal person badly, there would be others who have an interest
in their being treated well and who are themselves clearly members of the moral community on
contractarian premises” (NARVESON, Jan. Animal Rights Revisited. In MILLER, Harlan;
WILLIAMS, William. Ethics and Animals. Clifton, NJ (USA): Humana Press. p. 45-59).

- 242 -
sem que se possa afirmar que não sejam capazes de sofrer, etc. Pelo contrário,
ela provê as bases para uma franca e, obviamente, insensível rejeição de seu
sofrimento.”685 Em outra passagem, deixa claro que: “há justificativas para
dizermos que seríamos pessoas melhores se tratássemos melhor os animais, ou
de que os animais são realmente adoráveis e que seria efetivamente melhor que
os considerássemos como companheiros e não como potencial fonte de alimento
e daí por diante.”686 Tal ponto de vista não impede que tenhamos deveres para
com os animais, mas sempre de forma indireta, colocados como forma de
promoção do benefício dos próprios “contratantes” (o óbice que não maltratemos
um gato, por exemplo, não é o de que pensamos que a sua integridade corpórea
importe em um primeiro plano, mas sim o de que, ao fazê-lo, estaríamos lesando
gratuitamente um bem pertencente a um agente moral humano687).

Uma série de objeções pode ser levantada contra tal teoria. A


principal delas diz respeito aos chamados “casos marginais”688 consubstanciada
na possibilidade de engendrar um sistema discriminatório e arbitrário entre as
pessoas. Um exemplo formulado por REGAN dá a idéia de tal colocação:
imagine-se que a larga maioria (digamos 95%) dos “contratantes” seja branca e o
restante negro. Não seria algo irracional para aqueles que constituem a maioria
excluir os membros da minoria da negociação do contrato. Talvez a maioria possa
até mesmo concordar em manter a minoria no contrato na condição de escravos
como forma de otimizar os interesses pessoais de seus membros. Para REGAN,
a injustiça de tal arranjo, com a discriminação baseada na cor da pele, seria tão

685
Id., p. 178.
686
Ibid., p. 178.
687
Tal tese é defendida por CARRUTHERS nos seguintes termos: “Such acts [as torturing a cat for
fun] are wrong because they are cruel. They betray an indifference to suffering that may manifest
itself…with that person's dealings with other rational agents. So although the action may not
infringe any rights…it remains wrong independently of its effect on any animal lover”
(CARRUTHERS, Peter. The Animal Issue: Moral Theory in Practice. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992. p. 153-4).
688
O argumento dos “casos marginais” consiste no argumento que tenta demonstrar que se os
animais não possuem status moral autônomo, então também não o têm seres humanos tais como
bebês, pessoas portadores de deficiências mentais severas, os senis, entre outros. Já que
acreditamos que todos os seres humanos, sem exceção, possuem um status moral autônomo,
deveria haver algo de errado com teorias das quais possa-se inferir que não o possuam. A esse
respeito, cf. DUMBROWSKI, Daniel A. Babies and Beasts: The Argument from Marginal Cases.
Urbana: University of Illinois Press, 1997.

- 243 -
óbvia e flagrante que prescindiria de qualquer outra demonstração. Segundo o
autor:

[...] dado que o justo e o injusto são criados por meio de acordos
alcançados pelos contratantes, esta forma de contratualismo não provê
embasamento teórico para a evidente injustiça envolvida na exclusão da
minoria da possibilidade de participação. A teoria não só falha em não
apontar a injustiça de tal situação, como nos priva dos meios de levantar
esta objeção. Se uma teoria moral é tão fundamentalmente errônea no
tratamento dos seres humanos de cores de pele distintas, o que dizer
com relação ao tratamento de animais de diferentes espécies.689

Além disso, parece-me irrefutável concluir que os mesmos


fundamentos utilizados para se negar “capacidade contratual” aos animais podem
ser apropriados para deixar sem abrigo determinadas categorias de pessoas que
não seriam, pois, “contratantes”, tais como recém-nascidos e outros
absolutamente incapazes.

NAVERSON tenta argumentar no sentido de que:

Há razões para a extensão do âmbito de moralidade aos infantes e


deficientes mentais. Devem ser estendidos porque a maior parte de nós
deseja que as nossas próprias crianças sejam protegidas e não há nada
que ganhar ao se permitir a perturbação das crianças de outrem; temos
o interesse de que estas crianças sejam protegidas para que não
cresçam como criminosos ou delinqüentes, além de desejar que sejam
pessoas interessantes e úteis. No que se refere aos deficientes mentais,
devem ser geralmente respeitados porque nós mesmos poderemos nos
ver em sua condição, tal como devemos respeitar os seus parentes que
possuem um interesse sentimental nestes casos.690

Ao assim se justificar, o autor nitidamente desloca as bases para a


proteção de crianças e deficientes do “interesse egoísta” para outros tal como a

689
REGAN, Defending Animal Rights, op. cit., p. 11.
690
NAVERSON, Animal Rights, op.cit., p. 177.

- 244 -
possibilidade de nos colocarmos em seus lugares no futuro. Há uma contradição
no sentido de que humanos que tenham alcançado um nível de maturidade
intelectual adequado para participarem de acordos baseados em interesses
“egoístas” devam ter seus interesses protegidos se, futuramente, tornarem-se
incapacitados mentalmente; mas esta proteção não pode ser estendida aos seres
humanos que são ou que se tornam enfermos antes de que estejam aptos a
entrar em tais acordos. NAVERSON abre mão de sua congruência original para
dar campo para razões de “ordem sentimental” para que justificássemos a
proteção de pessoas portadoras de deficiência. Ao assim proceder, torna o dever
de proteção destes “pacientes morais” totalmente contingenciais em relação a
outros indivíduos, falhando no tratamento satisfatório dos “casos marginais”.

Há outros problemas envolvendo a redução da moralidade ao


“egoísmo racional”. Uma delas diz respeito à possibilidade de formação de um
sistema não-igualitário (de castas) onde a maioria dos agentes “egoístas
racionais” que detém situação econômica diferenciada venham a instituir políticas
que favoreçam a detenção de riquezas e acesso aos mais diversos bens em
detrimento dos menos privilegiados. A implicação de manutenção de sistemas de
concentração de renda sempre crescentes em favor de uns e em desfavor de
outros é uma implicação bastante questionável para uma teoria da moralidade.

2.2.3. Teorias Indiretas - Contratualismo: Rawls e o “Véu da


Ignorância”

“In this light, what the above thought experiments tell us is that the
concept of moral considerability is not closely tied to the concept of
species membership. In certain circumstances at least, we would be quite
happy to extend the umbrella of moral consideration beyond the
boundary of our species. We would, it seems, be happy to extend moral
consideration to beings like Data, Worf, and ET, if they existed; and,
likewise, to at least some of the things that emerge from the island of Dr.
Moreau. Being a member of the human species, then, cannot be what is
crucial in deciding who has moral rights, or who deserves to be treated

- 245 -
with consideration and respect. So, we cannot rule out the moral status of
other animals simply because they are not human.”691

MARK ROWLANDS

A teoria da “justiça como equidade”, tal como proposta por JOHN


RAWLS em sua “Uma Teoria da Justiça”692, tenta suprimir o problema consistente
no fato de que os “agentes racionais egoístas” poderiam pactuar arranjos que
seriam injusta e explicitamente favoráveis a eles próprios, na medida em que
garantiriam o acesso constante a benefícios e, simultaneamente, negando-os a
outros indivíduos. A inserção do mecanismo do “véu da ignorância” visa garantir a
imparcialidade no momento da “posição original”, preservando o espírito-base do
contratualismo hobbesiano. Nestas condições, o “contratante”, ao participar da
negociação do pacto original, não teria conhecimento prévio das suas habilidades,
capacidades e interesses. Neste aspecto, a formulação rawlsliana apresenta um
progresso em relação à hobbesiana, pois aos participantes não é dado saber se
integram o grupo majoritário ou não, razão pela qual as suas escolhas tendem a
preservar uma certa linha de neutralidade geral nas escolhas dos princípios de
justiça retores do acordo inicial, anulando-se os efeitos das “contingências
específicas”693. No entanto, o problema é que, ao passo que é vedado aos
pactuantes conhecer a maior parte das suas características pessoais específicas,
RAWLS lhes permite conhecer previamente que serão, a algum tempo, membros
de uma sociedade formada pela escolha dos princípios sobre os quais estão
deliberando e que, como futuros membros desta sociedade, serão seres
humanos. O autor inclusive estabelece que são requisitos participativos a

691
ROWLANDS, Mark. Animal Like Us. London: Verso, 2002. p. 41.
692
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
693
“Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou
seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e
habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua
concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços
característicos de sua psicologia, como por exemplo a sua aversão ao risco ou sua tendência ao
otimismo ou pessimismo. Mais ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias
particulares de sua própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política
dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na
posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem.” (RAWLS, op.cit., p. 147)

- 246 -
“racionalidade” e o “senso de justiça”694. Como conseqüência, nem mesmo todos
os seres humanos seriam abraçados pela teoria por ele proposta, pois “It does
seem that we are not required to give strict justice to creatures lacking this
capacity [senso de justiça].695” Mesmo que tomemos essa proposição em um
sentido mais “leve”, no sentido de que ser um “agente moral” é uma condição
suficiente e não necessária, o que não parece ser efetivamente o que RAWLS
afirma, as implicações da mitigação da força do “véu da ignorância” elimina
quaisquer possibilidades de participação dos seres que não sejam humanos.

O autor deixa clara tal posição ao mencionar que:

Aqui o significado da igualdade é especificado pelos princípios da justiça,


que exigem que direitos básicos iguais sejam atribuídos a todas as
pessoas. Podemos presumir que os animais estão excluídos;
certamente eles têm alguma proteção, mas o seu status não é o
mesmo que o dos seres humanos. Mas essa conseqüência ainda
necessita de uma explicação. Temos de considerar a que tipos de seres
se devem conceder as garantias da justiça 696.

Em seu entendimento, portanto, somente os “agentes morais”697


teriam direito à justiça igual. Assim, se as pessoas sabem que serão humanos,o
que julgo ser equivalente a se saber se serão brancos ou negros, do sexo

694
Em algumas passagens RAWLS deixa clara a condição humana como única a ser permitida,
senão vejamos: “Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem é que a
sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e a qualquer conseqüência que possa
decorrer disso. Entretanto, considera-se como um dado que elas conhecem os fatos genéricos
sobre a sociedade humana. [...] Supus até aqui que as pessoas na posição original são
racionais. [...] Assim, de forma genérica, considera-se que uma pessoa racional tem um conjunto
de preferências entre as opções que estão a seu dispor. [...] A suposição da racionalidade
mutuamente desinteressada, portanto, resulta nisso: as pessoas na posição original tentam
reconhecer princípios que promovam seus sistemas de objetivos da melhor forma possível. [...]
Presume-se que as partes são capazes de um senso de justiça, e esse fato é de conhecimento
público entre elas” (RAWLS, op.cit., p. 148-156; grifos nossos).
695
RAWLS apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 165.
696
Ibid., p. 561, grifos nossos.
697
“Distinguimos as pessoas éticas por duas características: primeiro, elas são capazes de ter (e
supõe-se que tenham) uma concepção de seu próprio bem (expressa por um plano racional de
vida); e segundo, são capazes de ter (e supõe-se que adquiram) um senso de justiça, um desejo
normalmente efetivo de aplicar os princípios da justiça e de agir segundo as suas determinações,
pelo menos num grau mínimo.” (Ibid., p. 561)

- 247 -
masculino ou feminino (conseqüência que RAWLS parece não prever), o máximo
que os “contratantes” irão fazer é negociar deveres indiretos para com as demais
criaturas698, pois nunca poderão ter a “boa vida” (“good life”).

Ao que tudo indica, a negativa de que tenhamos deveres naturais de


justiça para com animais entre em conflito com a posição de RAWLS de que
teríamos, ao mesmo tempo, dever de não crueldade para com eles699. Em
benefício da manutenção de coerência de sua teoria, a alternativa que se pode
alcançar é que, para o autor, tais deveres seriam “deveres indiretos”.

A assunção da posição indireta, no entanto, como verificado, possui


uma série de objeções pertinentes. Pretendendo escapar da problemática dos
“casos marginais”, RAWLS estabelece o que chama de “capacidade ética
potencial”, que seria uma condição suficiente para que se tenha direito à justiça
igual. Fica claro o esforço teórico de RAWLS para tentar fugir às implicações
marginais. Tenta, mediante tal construção retórica, incluir, por exemplo, as
crianças700 e as pessoas com algum nível de deficiência mental pelo fato de
possuírem, ao menos no nível potencial, uma personalidade moral. O próprio
RAWLS reconhece as dificuldades de tal esforço: “Vários outros aspectos devem
ser rapidamente observados. Primeiro, a concepção de personalidade ética e do
mínimo exigido podem muitas vezes trazer problemas. Enquanto muitos conceitos
são até certo ponto vagos, o de personalidade ética tende a ser especialmente

698
SCOTT WILSON, mencionando PETER CARRUTHERS, observa que, pela teoria de RAWLS,
os animais não teriam status moral autônomo, “Since the contractors are self-interested, but do not
know who they are, they will accept rules that protect rational individuals. However, the contractors
know enough about themselves to know that they are not animals. They will not adopt rules that
give special protection to animals, therefore, since this would not further their self-interest. The
result is that rational human beings will be directly protected, while animals will not” (WILSON,
Scott. “Carruthers and the Argument From Marginal Cases”. The Journal of Applied Philosophy 18,
2001. p. 135).
699
Em sua Uma Teoria da Justiça, RAWLS afirma que “the capacity for feelings of pleasure and
pain and for the forms of life of which animals are capable clearly imposes some duties on us,
including the duty not to be cruel to them” (RAWLS apud REGAN, The Case For Animal Rights,
op.cit., p. 170).
700
“Fiz a observação de que as exigências mínimas que definem a personalidade ética referem-se
a uma capacidade e não à realização dela. Um ser que tem essa capacidade, esteja ela já
desenvolvida ou não, deve receber plena proteção dos princípios da justiça. Como se considera
que as crianças têm os mesmos direitos básicos (geralmente exercidos em seu nome pelos seus
pais ou responsáveis), essa interpretação das condições exigidas parece necessária para uma
adequação aos nossos juízos ponderados” (RAWLS, op.cit., p. 565).

- 248 -
vago”701. Ainda que se aceite a tese da “capacidade ética potencial” (para os
casos de crianças e senis) um enorme contingente de seres humanos estaria
alijado de qualquer sorte de consideração moral: os permanentemente afetados
por deficiências mentais completamente desabilitantes. Como dirá ANTÔNIO
MENEZES CORDEIRO, “condenar os animais pela não-inteligência é abrir a porta
à morte dos deficientes e incapazes.”702

A esse respeito, RAWLS reconhece a falha teórica, incapaz de tratar


com segurança o tema:

O problema daqueles que perderam temporariamente a sua capacidade


efetiva devido a uma infelicidade, uma acidente ou problemas mentais
podem ser vistos de forma semelhante. Mas aqueles que estão
permanentemente mais ou menos privados da personalidade ética
podem representar uma complicação. Não posso examinar esse
problema aqui, mas suponho que a explicação da igualdade não seria
afetada de forma significativa703.

A teoria indireta não se sustenta com o embate dos “casos


marginais” e, ao contrário do que RAWLS afirma, a explicação da igualdade seria
alterada de forma bastante significativa, já que não haveria garantias de
tratamento igual substantivo entre os próprios seres humanos704 705
. Conforme
denota EVA FEDER KITTAY, “Os vínculos de uma sociedade humana não ligam
apenas aqueles que voluntariamente conseguem assumir obrigações e que são

701
Ibid., p. 565.
702
CORDEIRO apud ARAÚJO, op.cit., p. 131.
703
Ibid., p. 566.
704
Há quem pretenda fazer incluir os animais na “posição original” rawlsliana, sob o argumento da
necessidade de descentramento da bioética. Pondero que os estritos termos nos quais se acham
caracterizadas conceitualmente as bases teóricas da teoria da justiça de RAWLS, infelizmente não
permitiriam que se chegasse a tanto, a não ser com reformulações que, por certo, alterariam seu
conteúdo. (cf. SINGER, Brent A. “An Extension of Rawls Theory of Justice to Environmental
Ethics”, Environmental Ethics, n. 10, 1988, p. 217-231).
705
DONALD VAN DE VEER e PAUL GIMENO alertam que ainda que se alargasse o pacto
rawlsliano para fazer nele caber todos os seres humanos, a exclusão dos animais implicaria em
uma sociedade assente em um pacto intrinsecamente injusto e desigual (VAN DE VEER, Donald,
“Of Beasts, Persons, and the Original Position”, Mind, n. 62, 1979, p. 368-377; GIMENO, Paul,
“L´Animal, l´Environnement et la Justice selon Rawls”, Critique, n. 581, 1995, p. 734-751).

- 249 -
capazes de alcançar igualitariamente os benefícios de cooperação mútua. Não se
encontram nessa posição, nem aqueles que são dependentes, nem aqueles a
quem foi cometido cuidarem dos dependentes.”706 707

ALASDAIR MACINTYRE alerta que quando os estudos de filosofia


moral se deparam com as situações de “incapacidade” ou “dependência”,
referem-se a elas somente como alvos de benevolência da parte dos agentes
morais que supostamente não sofrem de “deficiências” ou “dependência”, o que
leva à conclusão de que os “incapazes” são “os outros”, e que os preceitos éticos
são a nós dirigidos por nossa “invulnerabilidade” e “perfectibilidade” inatas. Tal
proposta fugiria, no entanto, de encararmos a realidade mundana tal como ela se
descortina a nossos olhos, e não como deveria ser. MACINTYRE, criticando os
contratualistas, propõe a superação de nossas “esquizofrenias culturais”
recorrendo, para tanto, aos fundamentos biológicos da ética e negando que ela
seja tão somente uma mera construção social, uma convenção apoiada em nossa
“arrogância de espécie”. Sua proposta é a de que fossem buscadas “afinidades
com a conduta e com a integração ambiental de outras espécies e formas de vida,
por forma a não nos demarcarmos com delas com critérios de superioridade, o
que nos obrigaria a remediar, timidamente e ad hoc, a condição ética dos seres
humanos menos dotados, mais debilitados e dependentes – que somos todos
nós, num qualquer grau, num ou em vários momentos da nossa existência”708.

A HUME são também flagrantes as falhas de tais teorias morais:

[...] o defeito comum dos sistemas que têm sido propostos pelos filósofos
para explicarem o funcionamento do espírito é o de suporem tais sutileza
e requinte no pensamento que eles não apenas excedem a capacidade
de meros animais, mas até a de crianças e de pessoas comuns de nossa
própria espécie, as quais são, todavia, suscetíveis das mesmas emoções
e sentimentos das pessoas mais dotadas de gênio e de entendimento.

706
KITTAY, Eva Feder. Love´s Labor. Essays on Women, Equality, and Dependency. London:
Routledge, 1999. p. 27.
707
Cf. PRTICHARD, Michael; WADE, L. Robinson, “Justice and the Treatment of Animals: A
Critique of Rawls”, Environmental Ethics, n. 3, 1981, p. 55-61.
708
MACINTYRE, Alasdair. Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues.
Chicago: Open Court, 1992. p. 2.

- 250 -
Tal sutileza é prova inequívoca da sua falsidade, porque contrário à
simplicidade com que se manifesta a verdade de um sistema709.

Nenhuma das teorias contratualistas examinadas dá conta, pois, de


incluir os animais no “pactum subjectionis” e de lhes reconhecer interesses
diretos.

2.2.4. Teorias Indiretas - Kant e o “Imperativo Categórico”

“[...] não se humaniza a espécie humana reduzindo as demais à


irrelevância moral, tornando-as ornamentos de uma mundivisão auto-
complacente ou ‘consoladora’, e ignorando-as em todo o resto [...]. E por
isso, para resolvermos a ‘dissonância cognitiva’ que se insinuou nos
quadros de coexistência em meios culturalmente mais evoluídos,
tenderemos crescentemente a aceitar que há limites no modo como
lidamos com não-humanos, e que esses limites derivam da consideração
da própria natureza desses animais, e não de um desejo de acatamento
de puras convenções, ou de uma extrapolação mais ou menos arbitrária
dos sentimentos de comiseração para com outros seres humanos, ou de
um acatamento de puros ditames de ‘humanidade’ cuja revelação
abarcaria, como faceta incidental e caprichosa, o tratamento dos animais
não-humanos.”710

FERNANDO ARAÚJO

A filosofia Kantiana da humanidade como fim em si mesma também


pode ser elencada entre aquelas que servem de instrumento para promoção dos
ditos deveres indiretos. Para KANT os seres racionais são um “fim em si mesmos”
(possuem valor intrínseco, independente), o que os coloca em uma categoria
moral única, distinguindo-os, na qualidade de “pessoas” (“agentes morais”), de
tudo aquilo que existe.

709
HUME apud ARAÚJO, op.cit., p. 40-1.
710
ARAÚJO, op.cit., p. 24 e30.

- 251 -
A interação entre os “agentes morais” deve se pautar pela
obediência ao “imperativo categórico”711. De acordo com ele, as ações individuais
devem ser pautadas em razões que devem ser comuns a todos os outros
“agentes morais”. Por esse motivo, a primeira formulação fruto do “imperativo
categórico” é a chamada “fórmula da lei universal” segundo a qual: “age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torna lei
universal”712. Um dos exemplos comumente trazidos à baila é o das promessas
falsas. De acordo com a “fórmula da lei universal”, não posso fazer uma falsa
promessa esperando tirar vantagem da falsidade, pois se universalizar as minhas
razões, com todos os “agentes morais” podendo fazer o mesmo, então ninguém
mais acreditaria em promessas. Uma outra conseqüência do “imperativo
categórico” é a denominada “fórmula do fim em si mesmo” ou “fórmula da
humanidade” por meio da qual: “Age por forma a que uses a humanidade, quer na
tua pessoa como na de qualquer outra, sempre ao mesmo tempo como fim,
nunca meramente como meio”. Deste modo, pegando emprestado o exemplo das
promessas, se faço uma promessa a alguém que irei lhe devolver o dinheiro que
me emprestou, mas, ao mesmo tempo, escondo minha intenção de não fazê-lo,
então estaria privando-o de uma informação que é relevante para que ele possa
fazer um julgamento racional sobre o fato de me emprestar ou não o dinheiro. Ao
assim proceder, trato tal pessoa tão somente como um meio para a consecução
de meus propósitos, como se ela fosse uma mera coisa, o que violaria a “lei da
humanidade”. Percebe-se, pois, que as duas fórmulas são intimamente
interligadas e, para KANT, qualquer ato que fracasse em qualquer uma delas,
fracassará no outro também.

As visões de NAVERSON e RAWLS partem, de certo modo, de uma


noção de moralidade baseada no interesse próprio, individual. Para KANT, a
moralidade pressupõe que os indivíduos façam o que é “certo” porque é o “certo”
abstratamente falando. O mesmo “dever direto” que tenho para com os outros
“agentes morais” é o que eles terão para comigo.

711
Imperativo porque é uma ordem inafastável, cogente; categórico porque prescrevem uma ação
por si só necessária. Ex.: “não matar”.
712
Seria como que uma nova “Regra de Ouro” (“Faça para os outros o que gostaria que fizessem
a você”) nos seguintes termos: “Faça para os outros o que gostaria que todos fizessem para
todos”.

- 252 -
Todavia, tais “deveres diretos” só existiriam entre “agentes morais”.
Seres que existem mas são “irracionais” possuem somente um “valor relativo” e
falham como “fins em si mesmos”. Tal como ARISTÓTELES e TOMÁS DE
AQUINO, KANT enxerga nos animais meros meios para os fins humanos713:

[...] we have no direct duties. Animals are not self-conscious and are
there merely as a means to an end. That end is man […] Our duties to
animals are merely indirect duties to mankind. Animal nature has
analogies to human nature, and by doing our duties to animals in respect
of manifestations of human nature, we indirectly do our duties to
humanity. Thus, if a dog has served his master long and faithfully, his
service, on the analogy of human service, deserves reward, and when
the dog has grown too old to serve, his master ought to keep him until he
dies. Such action helps to support us in our duties towards human
beings, where they are bounden duties. If then any acts of animals are
analogous to human acts and spring from the same principles, we have
duties towards the animals because thus we cultivate the corresponding
duties towards human beings. If a man shoots his dog because the
animal is no longer capable of service, he does not fail in his duty to the
dog, for the dog cannot judge, but his act is inhuman and damages in
himself that humanity which it is his duty to show towards mankind. If he
is not to stifle his human feelings, he must practice kindness towards
animals, for he who is cruel to animals becomes hard also in his dealings
with men […] tender feelings toward dumb animals develop humane
feelings towards mankind 714.

713
Para FERNANDO ARAÚJO, tal posição de KANT não chega a surpreender, pois há passagem
em que afirma o filósofo o paradigma da “Grande Cadeia do Ser”, vejamos: “À finalidade da
humanidade está assim ligada na nossa própria pessoa a vontade da razão, por conseqüência o
dever de nos tornarmos dignos da humanidade através da cultura em geral, de adquirir ou
desenvolver a faculdade adequada à realização de todo o tipo de fins possíveis, na medida em
que ela possa encontrar-se no próprio homem, ou seja um dever de cultivar as disposições
primitivas da nossa natureza, aquilo através de que essencialmente o animal ascende até o
homem: sendo por isso um dever em si mesmo.” (KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 198; grifos
nossos).
714
KANT apud REGAN, op.cit., p. 177-8.

- 253 -
Seríamos, pois, moralmente livres para usá-los da forma que
quiséssemos, sujeitos tão somente à injunção de evitar a crueldade, pois poderia
acarretar a crueldade para com o próprio homem:

Relativamente à parte da criação que é viva apesar de desprovida de


razão, a violência mesclada de crueldade no modo de tratar dos animais
é ainda mais profundamente contrária ao dever do homem para consigo
mesmo, visto que isso entorpece no homem a simpatia para com o
sofrimento daqueles, enfraquece e paulatinamente aniquila uma
disposição natural, muito proveitosa para a moralidade na relação com
os outros homens – ainda que, entre outras coisas, seja consentido aos
homens matar os animais de uma forma célere (sem tortura), ou impor-
lhes um trabalho (já que os próprios homens têm que se lhe submeter)
na condição de que ele não exceda as suas forças; em contrapartida há
que condenar as experiências no decurso das quais os animais são
martirizados por meros objetivos especulativos, quando se poderia
atingir os mesmos fins sem recorrer a elas 715.

Poderíamos elencar uma série de objeções “de mérito” contra a


retórica kantiana. É bastante questionável, à luz dos conhecimentos
comportamentais e biológicos atuais, dizer que os animais não seriam “auto-
conscientes”. É também altamente perturbadora a sua afirmação de que animais
seriam incapazes de realizar “julgamentos”, a menos que se opte por uma
definição extremamente restrita do conceito do que venha a ser “julgar”. Além
disso, dizer que os animais são meros “meios” para os “fins” humanos é
desconsiderar algo que para a ciência é evidente, os animais possuem uma vida
própria que pode ser incrementada para melhor ou pior, independentemente de
seu valor relativo em função de outros animais ou do homem.716

715
KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 17.
716
Para uma abordagem concisa, porém muito bem feita, sobre as questões atinentes à
“consciência animal” e “teoria da linguagem” sugiro a leitura dos capítulos I (“Animal Awareness”)
e II (“The complexity of Animal Awareness”) do livro de REGAN, The Case For Animal Rights,
op.cit. Outros excelentes trabalhos poderiam ser igualmente citados tais como: ACHIM, Stephan.
“Are Animals Capable of Concepts?”, Erkenntnis, n. 51, 1999, p. 79-82; ALLEN, Colin; HAUSER,
Marc D. “Concept Attribution in Nonhuman Animals: Theoretical and Methodological Problems in
Ascribing Complex Mental Processes”, Philosophy of Science, n. 58, 1991, p. 221-240; COLLIN,

- 254 -
Além das objeções de ordem meritória, há também diversas
contestações que dizem respeito à consistência teórica da construção kantiana.
Os filósofos contemporâneos ALEXANDER BROADIE e ELIZABETH M. PYBUS
trazem a afirmação de que apesar de a premissa de que os maus-tratos
conduziriam a uma tendência de insensibilidade racional frente aos próprios seres
humanos (utilizando-os também como meios) ser em boa parte verdadeira do
ponto de vista psico-social, traz uma contradição interna com a própria teoria ética
por ele proposta. Se os animais para o autor são tecnicamente “coisas” e,
conseqüentemente, são precisamente o que poderíamos usar como meros
“meios”, ao generalizarmos esta assertiva teremos que, em razão do efeito
provocado em outras pessoas, não poderíamos utilizar qualquer coisa como
“meio”, o que seria evidentemente contrário ao afirmado na sua construção do
“imperativo categórico”. Continuam os autores, “o que quer que não seja um “fim
em si mesmo” não pode ser objeto de uma preocupação moral direta. Mas KANT
sustenta que animais não são “fins em si mesmos”. Ao maltratarmos um animal
estaríamos maltratando algo que não é um objeto de consideração moral direta.
Maus-tratos é um conceito moral, por se referir a um modo de tratamento de
objetos que desatende à sua natureza. Mas se animais não são alvo de
consideração moral direta, então no que consistiriam os aludidos maus-tratos?”717

Certamente concordo com REGAN quando afirma que a proposição


de BROADIE e PYBUS não é inteiramente acertada, pois KANT não sustenta que
é errado usar animais como meios, mas sim que o seu maltrato é errado por
conduzir os que o praticam a fazê-lo também com relação aos “agentes morais”.
Poder-se-ia dizer, em uma tentativa de sustentar a coerência da teoria kantiana,
que os maus-tratos das “coisas” que possuem somente valor relativo consiste em

Allen; BEKOFF, Marc. “Do Dogs Ape or Do Apes Dog: And Does It Matter? Broadening Deepening
Cognitive Ethology”, Animal Law, n. 3, 1997, p. 13 e ss.; CARRUTHERS, Peter. Language,
Thought and Consciousness. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 133-163;
BUYTENDIJK, F.J.J. O Homem e o Animal: Ensaio de Psicologia Comparada. Lisboa: Livros do
Brasil, 1979; LORENZ, Konrad. Três Ensaios Sobre o Comportamento Animal e Humano. Lisboa:
Arcádia, 1975; WALKER, Stephen. Animal Thoughts. London: Routledge, 1983; GRIFFIN, Donald.
Animal Thinking. Cambridge: Harvard University Press, 1984; LINDEN, Eugene. Apes, Men and
Language. New York: Penguin, 1976; entre tantos outros.
717
BROADIE, PYBUS apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 180.

- 255 -
tratá-las de formas que reduzem o seu valor como “meios” o que, dadas as suas
características peculiares, equivaleria a desatender “ sua natureza”.

Todavia, sustentar a coerência teórica de KANT é uma posição,


entendê-la como correta ou adequada é bastante diferente. Considerar os animais
como “coisas” é um tanto quanto questionável. Embora a maior parte deles possa
não ter todas as aptidões de autonomia exigidas para a caracterização da
“agência moral plena”, certo é que seria absolutamente falso dizer que por tal
motivo não possuiriam autonomia alguma. Animais possuem preferências e agem
de modo a satisfazê-las a todo instante.

Além disso, podem ser levantadas contra a teoria kantiana


argumentos de ordem “marginal” por meio dos quais todos os seres humanos que
se encontram em uma posição de “pacientes morais” seriam tidos como “coisas”,
com valor apenas relativo. Como já mencionado, nem todos os humanos são
plenamente racionais e, tampouco, absolutamente autônomos (bebês, portadores
de deficiências mentais severas, senis, etc.). Todos os deveres para com eles
seriam, por tal motivo, e de acordo com as bases teóricas de KANT, “deveres
indiretos”. Mas não seriam acaso eles também “fins em si mesmos”? Se KANT
viesse a responder afirmativamente à esta indagação, então as características da
“racionalidade” e da “autonomia” não poderiam servir de base para a concessão
do mencionado status de “agente moral” daquele ser. Como parece que a
resposta kantiana só poderia ser negativa (do contrário tais categorias de seres
humanos não poderiam ser sujeitos de direitos), temos que há uma falha
estrutural em sua fundamentação. FRANCIONE ilustra com perfeição o
insuperável obstáculo trazido por meio da analogia marginal na seguinte hipótese:
assumamos que um pesquisador tenha criado um experimento que poderá trazer
dados cruciais sobre a cura de uma doença terminal, tal como o câncer. O
experimento, todavia, somente funcionará se utilizarmos um ser humano nos
testes. Não há alternativas. Nenhuma espécie animal poderia ocupar o seu lugar
e modelos computadorizados seriam de igual ineficiência. Imagine-se também
que nos seria permitido concluir, com certeza absoluta, que o ser humano
utilizado na pesquisa experimentaria sofrimento terrível e eventualmente poderia
até mesmo vir a morrer. Suponhamos, com bastante plausibilidade, que nenhum

- 256 -
voluntário se oferecesse como cobaia de tal experimentação. Seria aceitável,
então, sob estas premissas, utilizar-se um órfão humano portador de gravíssima e
irreversível doença mental para tal finalidade? A resposta negativa deve ser
imperativa. Não importa o benefício que receberíamos derivados da exploração
deste indivíduo, o fato o utilizarmos como simples meio para um fim, ainda que
legítimo (cura de uma doença terminal), como uma coisa, agride frontalmente o
senso comum e as normas internacionais sobre a utilização de seres humanos
em pesquisas biomédicas sem o consentimento informado718. Como se verá
posteriormente, o princípio da “igual consideração de interesses” nos traz como
conseqüência que a igualdade é uma idéia moral e não factual. Assim, a razão
para que protejamos os interesses dos humanos em não serem tratados como
meros meios ou recursos para outros humanos é o de que o interesse de não
sofrer possui significância moral autônoma.

A posição kantiana não é somente implausível como também


arbitrária. REGAN traz a seguinte hipótese para ilustrar tal afirmação: como
resultado do prazer que um indivíduo tem em fazer “pacientes morais” humanos
sofrerem, também desenvolve o hábito sadístico de causar sofrimento a “agentes
morais” humanos. Ao se admitir que fazer algo com uma “coisa” (“pacientes
morais”) pode conduzir a que se tenha o mesmo comportamento face a “não-
coisas” é porque há uma similaridade de reações entre “coisas” e “não-coisas”,
pois em caso negativo não haveria como desenvolver a insidiosa prática com
base em uma que lhe é anteriormente dependente. Assim sendo, para que o
“nexo causal” entre as práticas seja válido, devemos supor que os “pacientes
morais” respondem ao sofrimento de forma análoga aos “agentes morais”. Se o
seu comportamento diante da inflição de dor é parecido, é razoável inferir que o
seu sofrimento também deve ser similar. Mas se o sofrimento é equivalente e, se
causá-lo a “agentes morais” viola um dever direto de consideração moral, então
como, a não ser de modo totalmente arbitrário, podemos pensar de modo diverso
com relação aos “pacientes morais”? A resposta de que somente os “agentes

718
O “Código de Nuremberg”, produzido após a experiência nazista veda expressamente a
pesquisa não consentida. A “Declaração de Helsinki”, de 1964, adotada pela World Medical
Association, também a proíbe. Em 1997, o então presidente norte-americano BILL CLINTON,
tendo em vista as experiências não consentidas com a sífilis realizadas em negros no Alabama
entre as décadas de 30 e 70, se desculpou publicamente pelas barbáries cometidas.

- 257 -
morais” poderiam se pautar de acordo com o “imperativo categórico” é
absolutamente irrelevante para escapar a tal incongruência, pois a questão
envolve a capacidade de sofrimento, que é comungada por “agentes” e
“pacientes” e não a diferença de habilidades havida entre eles.

Alguém poderia redargüir que a fórmula da humanidade trata da


humanidade como um todo e não somente dos “agentes morais” humanos. Tal
conclusão não se casa com as premissas erigidas por KANT como necessárias à
configuração da qualidade de “agente moral”719. Além disso, não se poderia, a
não ser com base em um argumento puramente especista e insustentável, supor
que haveria diferenças relevantes entre “pacientes morais” humanos e não-
humanos, pois compartilham todas as características, em todos os aspectos
relevantes.

De fato o argumento dos “casos marginais” parece ser bastante útil


para a destruição da maior parte do arsenal filosófico que se opõe à teoria dos
deveres diretos. Tal argumento poderia ser resumido na estrutura que se segue:
(1) acaso a racionalidade, a autonomia, ou a consciência sejam tomadas como
base para a concessão de valor moral direto para os seres humanos; (2) e se é
factual que nem todos os seres humanos são possuidores destas características
(“casos marginais”); (3) e de igual maneira se entende que é justificável negar
status moral aos animais; então (4) é justificável negar status moral aos “casos
marginais”; (5) como a maioria esmagadora das pessoas não entende plausível
sustentar a conseqüência elencada no número anterior, não sendo possível negar
status moral aos “casos marginais”; (6) não se pode igualmente negar status
moral aos animais.

Em outros termos, se ser racional (ou autônomo, consciente, ou


possuir linguagem...) é o que nos permite negar status moral aos animais, então

719
Com inegável congruência parece que KANT realmente endossava a possibilidade de que
homens pudessem, sob determinadas circunstâncias, se equivaler a “coisas”. Veja-se: “Em estado
de embriaguez, o homem dever ser tratado apenas como um animal, não como um homem”
(KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 192). Ou ainda, ressaltando a importância da presença da razão
para distinção entre animais e homens: “A disciplina transforma a animalidade em humanidade.
Um animal já é tudo pelo seu instinto, tendo uma razão externa providenciado imediatamente tudo
para ele. Por seu lado, o homem necessita da sua própria razão” (KANT apud ARAÚJO, op. cit., p.
193).

- 258 -
analogamente, teríamos que negá-lo a todos os seres humanos não-possuidores
de tais características720.

Outra linha de argumentação que poderia ser levantada contra a


concepção exclusivista do contratualismo é a de que haveria um consenso
fundamentado acerca de uma intuição geral no sentido de que determinadas
coisas não podem ser feitas com “pacientes morais”, sejam eles humanos ou não.
Não poderia torturar meu próprio gato por “diversão”, ainda que ninguém viesse a
tomar conhecimento de tal fato. Esta intuição não pode ser desprezada por
qualquer teoria moral que se preze. Desta intuição generalizada de que seria, de
fato, errado lesar um “paciente moral” advém o princípio da não-lesão. O juízo de
valor sobre tal conduta ser condenável se suporta no fato da própria lesão
perpetrada contra tais indivíduos. A questão não é ponderar se é mais ou menos
errado matar um “agente” ou um “paciente moral” e, sim, se temos deveres
diretos para com eles. Se partimos do pressuposto de que ambos podem ser
lesionados de formas bastante similares, ainda que se faça concessão ao fato de
que por possuírem capacidades cognitivas mais desenvolvidas os “agentes
morais” possam sofrer de maneiras mais variadas (o que é questionável), concluir
que somente temos deveres diretos em relação a uns, mas não a outros, é
fraudar a imparcialidade exigida pela justiça formal. O princípio da “não-lesão”
deve ter por objeto tanto os “pacientes morais” humanos ou não-humanos, pois
eles são, em todos os aspectos relevantes, equivalentes.

O brilhante ROBERT NOZICK, também insatisfeito com a


proposição dos deveres indiretos (os quais prefere designar por “restrições morais
indiretas”), parte do pressuposto de que os animais devem ser levados em
consideração em nossas deliberações e atitudes:

720
Muito embora não concorde, alguns ponderam que bebês e senis não poderiam ser
enquadrados como “casos marginais”. Os primeiros porque, ainda que não racionais, teriam o
potencial de sê-lo. No mesmo sentido, os senis teriam status moral em razão de seus interesses
passados. O raciocínio, a meu sentir, peca pela extrema subjetividade. A análise marginal é
objetiva e leva em consideração as características atuais que o ser objeto de análise possui, como
que numa espécie de “fotografia”. Ainda que assim não se entenda, parece-me que os casos de
pessoas portadoras de severas deficiências mentais congênitas não poderiam ser, de qualquer
maneira, excluídos sob as mesmas bases.

- 259 -
Animais representam alguma coisa. Alguns animais superiores pelo
menos, têm que receber algum peso nas deliberações de pessoas sobre
o que fazer com eles. É difícil provar isso. (É difícil também provar que
pessoas representam alguma coisa)721.

Criticando frontalmente a teoria dos deveres indiretos, por meio da


qual não se deveria fazer mal aos animais, pois isso conduziria a uma brutalidade
com os próprios seres humanos, o autor afirma que há uma evidente falha
conceitual nesta proposição pois se a tese parte da premissa de que haveria uma
nítida linha que dividiria animais e pessoas e que, por tal motivo, animais seriam
meras “coisas”, por que razão haveria de se cogitar de que o fato de matar
animais tenderia a brutalizá-las?

Dizem alguns que pessoas não deveriam fazer isso [causar sofrimento a
animais], porque tais atos brutalizam-nas e tornam mais provável que
elas tirem a vida de pessoas, exclusivamente por prazer. Esses atos que
são moralmente condenáveis em si mesmos dizem, apresentam um
indesejável transbordamento moral. (As coisas, neste caso, seriam
diferentes se não houvesse possibilidade de tais transbordamentos –
como, por exemplo, para a pessoa que sabe que é a última sobre a face
da terra.) Mas por que deveria haver tal transbordamento? Se é em si
mesmo perfeitamente certo fazer qualquer coisa, absolutamente, com
animais, por quaisquer que sejam as razões, então se a pessoa
compreende a clara linha que existe entre animais e pessoas, e a leva
em conta quando age, por que matar animais tenderia a brutalizá-la e
torná-la mais passível de ferir ou matar outros indivíduos? 722

721
NOZICK, op.cit., p. 51.
722
NOZICK, op.cit., p. 51.

- 260 -
2.2.5. Teorias Indiretas - Estatutos Protetivos e “Legal
Welfarism”

“First, I cannot help thinking that our exploitation of animals has a direct
link to our exploitation o four perennial human victims: African-Americans,
poor whites, Latinos, women, lesbians and gays, social activists, Native
Americans, and Asians, to name a few disempowered groups. As Tom
Regan, Peter Singer and other philosophers have argued so
persuasively, ‘speciesism’, or the use of species to determine
membership in the moral community, is no more morally justifiable than
using race, sex, or age to determine who has rights and who does not. If
we are speciesist and feel that we may exploit nonhumans simply
because we are more powerful, and we judge that we will benefit from
that exploitation, the discrimination against other disadvantaged groups
become that much easier.”723

GARY FRANCIONE

A exemplo do que foi dito quando abordadas as primeiras


manifestações legislativas de proteção animal, verifica-se que a grande parte dos
estatutos protetivos continua a incorporar uma visão protecionista “indireta” ou
“reflexa“ dos animais. FRANCIONE denomina tal fenômeno como “legal
welfarism”724, descrevendo-o como consistindo em uma teoria normativa implícita
na lei cujas bases ideológicas quase nunca são reconhecidas pelos operadores
do direito, muito menos discutidas. Ainda que a lei proíba a prática de atos de
abuso e sofrimento “desnecessário” com animais e determine que sejam tratados
de modo “humano”, tais termos são comumente interpretados à luz do status
jurídico clássico de animais como “coisas”. Há uma forte e tradicional tendência
por parte da doutrina civilista de proteger, garantir e maximizar o valor da
propriedade. Conseqüentemente, o que é tido como “tratamento humano” ou
“sofrimento desnecessário”, sob a égide da lei, difere consideravelmente do
emprego e significação vulgar destes termos, na medida em que a maioria das

723
FRANCIONE, Animals, Property and the Law, op.cit., p. X.
724
Ibid., p. 4.

- 261 -
pessoas reconhece que animais são fundamentalmente distintos de objetos
inanimados. O resultado da combinação destes fatores é que a regulação
normativa sobre a proteção animal, via de regra, limita-se a garantir e facilitar a
exploração econômica mais eficiente dos não-humanos.

A concepção do “legal welfarism”, incorporada pela quase totalidade


dos diplomas legislativos ocidentais, é consectária da noção de “animal welfare”
por meio da qual não haveria interesses animais que não pudessem ser
superados se as conseqüências desta superação são “benéficas” aos seres
humanos. Ela está, pois, alicerçada fortemente na conjunção dicotômica de
possessão de direitos por humanos e no endereçamento da qualidade de “coisas”
aos animais.

Pode-se afirmar, sem chance de errar, que tal doutrina abraça o


pensamento kantiano no sentido de os animais possuírem apenas valor relativo,
não constituindo “fins em si próprios”. A utilização de vocábulos pomposos como
“uso responsável”, “práticas abusivas”, entre outras, serve ao único propósito de
mascarar uma realidade subjacente de que a proteção da fauna serviria aos
propósitos humanos sejam eles de não se brutalizarem com a prática de atos
ditos “abusivos” ou de perda da qualidade ambiental por nós usufruída. Os
interesses mais fundamentais dos animais são virtualmente colocados em
segundo plano diante dos mais frívolos interesses humanos.

Os aludidos “estatutos protetivos”, representando uma regulação


legal ou restrição legal ao “uso dos animais” como propriedade, são
completamente ineficientes na efetiva proteção dos animais propriamente ditos,
muito embora tais leis sejam eficazes na proteção do direito de propriedade
encimado nos animais.

No direito pátrio podemos visualizar com nitidez as mais variadas


hipóteses normativas e interpretativas do fenômeno do “legal welfarism”. A
Constituição Federal, em seu art. 225, caput, e inciso VII de seu parágrafo
primeiro, determina que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade

- 262 -
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder


Público:

[...]

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que


coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submeta os animais a crueldade.

O artigo 32 da Lei n. 9.605/98, que dispõe acerca das “sanções


penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente”, regulamentando o inciso VII acima referido, dispõe que:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais


silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou


cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando
existirem recursos alternativos.

O insigne LUIZ REGIS PRADO, corroborando posição predominante


em nossa doutrina, em sua obra “Crimes Contra o Ambiente” assim disseca o
supramencionado artigo 32 da Lei n. 9605/98:

Bem jurídico tutelado: o ambiente, enfocando-se particularmente a fauna


silvestre, doméstica ou domesticada, nativa ou exótica. Sujeitos: sujeito
ativo pode ser qualquer pessoa. Sujeito passivo é a coletividade e não o
animal, pois este é o objeto material da conduta 725 726.

725
PRADO, Luiz Regis. Crimes Contra o Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 68.
726
Idêntico posicionamento é o expressado por outros penalistas tais como PIERANGELLI,
MIRABETE, DAMÁSIO, FREDERICO MARQUES, etc. LUCIANA CAETANO DA SILVA
sintetizando tal corrente, em corajoso exercício profético, de duvidosa certeza afirma: “Quanto ao
sujeito passivo dos delitos faunísticos, ao contrário do que se poderia deduzir num primeiro
momento, não são os animais, muito embora sejam eles que suportam a violência física ou

- 263 -
De acordo com tal interpretação, pode-se afirmar que não haveria
qualquer distinção ontológica entre o tipo do art. 32 supra e, por exemplo, o
consagrado no art. 163 do Código Penal que trata do crime de dano727. Nele, o
sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, o sujeito passivo é o proprietário do bem
destruído ou inutilizado e o objeto material da conduta é um bem móvel, assim
como no caso do art. 32 é o animal. Uma cadeira e um cão estão enquadrados,
sob este prisma, na mesma categoria de objetos materiais da conduta lesiva. A
variação da pena em abstrato estipulada só parece indicar que o tipo do art. 32
cuidaria da proteção de um “objeto” diferenciado, mas ainda assim um “objeto”.728

LUC FERRY, a respeito de tal corrente, afirma que:

A primeira corrente, sem dúvida a mais banal, mas também a menos


dogmática, porque a menos doutrinária, parte da idéia de que através da
natureza é ainda e sempre o homem que se pretende proteger, até de si
mesmo, quando ele resolve brincar de aprendiz de feiticeiro. O meio
ambiente não está dotado, neste caso, de um valor intrínseco.
Simplesmente, a consciência despertou para o fato de que, se continuar
destruindo o meio que o cerca, o homem corre o risco de colocar sua
própria existência em perigo e, no mínimo, de privar-se de uma boa vida
da Terra. Portando, é a partir de uma posição que se pode dizer
humanista, até mesmo antropocêntrica, que a natureza é levada, de um
modo unicamente indireto, em consideração. Ela é apenas o que rodeia

psíquica. Os animais jamais serão sujeitos de delitos” (SILVA, Luciana Caetano da. Fauna
Terrestre no Direito Penal Brasileiro. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001. p. 132).
727
“Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriora coisa alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, ou
multa.”
728
“A lei reflete a visão da sacralidade da vida, quer dizer, da vida de cada ser humano é sagrada.
No entanto, há pessoas que sustentam isso em relação ao bebê, mas não fazem objeção a matar
animais não-humanos” (SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21). Até mesmo o “nascituro”, ser
humano ainda sequer nascido, vai mudando progressivamente o seu status para adquirir proteção
direta, com valor intrínseco. O art. 124 do Código Penal proíbe a realização do aborto. Em suas
diversas formas, o objeto jurídico é a preservação da vida do feto e o sujeito passivo é, como aliás
não poderia deixar de ser, o feto. Até mesmo lançando-se mão da pobre interpretação topológica,
é possível verificar que o crime está inserido no título dos “crimes contra a pessoa” e no capítulo
dos “crimes contra a vida”. Não se vai aqui entrar no mérito da debatida questão do aborto, mas
parece claro que a exceção da exclusão de punibilidade do aborto no caso de gravidez resultante
de estupro afronta a lógica sistêmica do tipo principal. O Código Civil, por seu turno, em seu artigo
2º parece deixar claro que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” A matéria é controvertida, mas é
incontestável ser viável sustentar, com bons argumentos, a possibildiade de o feto ser sujeito de
direitos, principalmente diante da nova redação conferida ao referido art. 2º do Código Civil.

- 264 -
o ser humano, a periferia, portanto, e não o centro. Nesse contexto, não
poderia ser considerada um sujeito de direito, uma entidade possuidora
de um valor absoluto em si mesma 729.

Grande parte de nossa doutrina posiciona-se neste sentido. ERIKA


BECHARA afirma que:

[...] independentemente do título que se queira dar às correntes


filosóficas que explicam a relação direitos-homem-natureza, somos do
entendimento que os recursos naturais merecem a mais ampla proteção,
mas não exatamente por titularizarem esse direito, mas em virtude de
exercerem um papel fundamental no funcionamento de todo ecossistema
e, principalmente, na obtenção da saúde, bem-estar (físico e psíquico) e
dignidade da pessoa humana730.

ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA, NESTOR JOSÉ FOSTER, PAULO


AFFONSO LEME MACHADO, entre outros sustentam o mesmo posicionamento
de colocação do homem como centro das preocupações éticas e jurídicas.

Obviamente, a adesão à tese estritamente antropocentrista leva a


que tais autores postulem, nos moldes dos “deveres indiretos”, que a vedação
constitucional e infra-constitucional da crueldade contra animais (expressão que
encerra um erro tautológico, pois se os animais não figuram como sujeitos
passivos da conduta lesiva, esta não poderia se dar em posição “contrária” a eles)
destina-se à proteção “físico-psíquica” dos próprios seres humanos, entendidos
no aspecto coletivo. A “ginástica intelectual” é gigantesca para se chegar a tal
conclusão. Como verificado, que a coletividade e o próprio ser humano sejam, de
fato, ofendidos em sua dignidade e em seu sentimento comum de simpatia para
com os animais pela crueldade injustificada para com eles é uma coisa, defender
que o sujeito passivo de uma lesão desta ordem seja, por este motivo, o homem e
não o animal, é outra bastante distinta.

729
FERRY apud BECHARA, Erika. A Proteção da Fauna Sob A Ótica Constitucional. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2003. p. 70-1.
730
BECHARA, op.cit., p. 72.

- 265 -
O maior problema das teorias ditas “indiretas” é, de fato, não
reconhecer no animal um “agente moral”, muito menos um “sujeito de direito”. O
“contrato social” vincula tão somente aqueles que possam ser participantes
racionais no momento da “posição original”. O suposto “tratamento humanitário”,
que os estatutos protetivos tanto alardeiam, consiste justamente na ponderação
entre os nossos interesses e os dos animais em razão da determinação de
quando um uso específico ou um tratamento específico é necessário ou exigível.
Porque os animais são tidos como “propriedade”, antes mesmo de iniciarmos a
aludida ponderação, aceitamos previamente que é justificável utilizá-los para uma
vasta gama de práticas, tais como abatê-los para alimentação, para usá-los como
vestuário, para servirem de cobaias para nossos experimentos, etc. Assim, não se
questionam as instituições de utilização dos animais, mas sim se uma dada
prática, parte destas instituições, é necessária. Não questionamos se é acertado
matar animais para deles nos alimentarmos, mas os estatutos protetivos se
preocupam com o fato da castração do gado ser um componente necessário do
processo de abate. O que realmente ponderamos não são os interesses dos
animais contra os dos humanos de maneira abstrata, mas sim o interesse do
proprietário em usar ou tratar os animais de um determinado modo que viola o
melhor “interesse da propriedade”. O resultado do princípio do “tratamento
humanitário” incorporado como parte central da maior parte dos estatutos
protetivos é que priorizamos os interesses mais triviais dos seres humanos em
detrimento aos mais fundamentais dos animais. Confronta-se, em realidade, o
interesse do proprietário e o de uma propriedade.

Muito embora os estatutos protetivos restrinjam em parte a


possibilidade de causação de sofrimento desnecessário aos animais, não são
provedores de um nível de proteção adequado. Muitos dos diplomas legislativos
excluem ab initio a maior parte das práticas institucionalizadas de exploração e
quando não o fazem o Judiciário trata de fazê-lo rapidamente. Além disso, há
sempre as válvulas de escape relativas à imputabilidade do agente que
geralmente comete este tipo de delito ou ainda a grande resistência de se impor o
estigma da sanção penal a um proprietário pelo abuso ou pelo “mau uso” de sua
propriedade. Some-se a isto a presunção, algumas vezes legal, outras judicial, de
que o proprietário, melhor do que ninguém, sabe dosar a quantidade de

- 266 -
sofrimento que pode impor a sua propriedade tendo em vista o princípio da
maximização de seus interesses econômicos e da conservação da propriedade.

Conforme assinala FRANCIONE:

The failure of animal welfare laws should not come as any surprise. If the
animal is property, how can that animal be anything other than a
commodity? How can an animal’s interests be assessed or valued at any
level higher than is necessary to ensure efficient exploitation of the
animal property for its designated purpose? How can anticruelty or
animal welfare laws apply to anything but animal use that is wholly
gratuitous and that represents a completely unproductive use of animal
property? […] The status of animal as property renders meaningless our
claim that we reject the status of animals as things. We treat animals as
the moral equivalent of inanimate objects with no morally significant
interests or rights. We bring billions of animals into existence annually
simply for the purpose of killing them. Animal have market prices. Dogs
and cats are sold in pet stores like compact discs; financial markets trade
in futures for pork bellies and cattle. Any interest that an animal has is
nothing more than an economic commodity that may be bought and sold
when it is in the economic interest of the property owner. That is what it
means to be property. […] In light of the status of animals as property,
there can be no real balance between human and animal interests – and
there is none. We regard all animal interests as having a ‘price tag’ in that
these interests may be ‘sold’ by the property owner. This means that
there is virtually no limit on what humans can do with animals 731.

Mais uma vez, extremamente ilustrativa é a comparação com a


situação da servidão humana. No período moderno, especialmente a partir do
século XVIII, a escravidão sofreu sucessivas regulamentações somadas às já
existentes restrições ao abuso da propriedade privada. Tais regulamentações
estabeleceram alguns limites no uso e no tratamento dos escravos humanos tal
como os designados “estatutos protetivos” o fazem com relação aos animais não-
humanos. Ambos falham ao não reconhecerem qualquer status moral para os
escravos ou para os animais, respectivamente. A legislação da Carolina do Norte,
731
FRANCIONE, Introduction to Animal Rigths, op.cit., p. 73, 79-80, passim.

- 267 -
de 1798, por exemplo, punia a morte intencional de um escravo nos mesmos
moldes com que fazia em relação à morte intencional de uma pessoa livre. No
entanto, de acordo com ela, a lei não se aplicaria aos escravos fugitivos, aos
escravos que tentavam resistir ao encarceramento ou às ordens de seu senhor,
ou ainda aos escravos que morriam sob condições de “correção moderada”.732 Na
Virgínia, outra lei estatuía que o proprietário de escravos que viesse a matar seu
escravo durante um “justo processo disciplinador” não poderia ter sua conduta
caracterizada como maliciosa (“acted with no malice”) e não poderia, por
conseguinte, ser condenado por homicídio. Acresça-se a isso o fato de que
também militava em seu favor a presunção de que um proprietário nunca destrói a
sua propriedade de maneira deliberada 733 734.

Ainda que a maior parte dos estados sulistas tenha, até meados do
século XIX, implementado legislações “welfaristas” com relação aos escravos,
poucos proprietários sofreram qualquer condenação efetiva fruto da aplicação
destas leis, já que os júris eram, na maior parte das vezes, extremamente
conservadores e relutantes em sancionar penalmente os latifundiários, bem como
os escravos, que muitas vezes eram as únicas testemunhas de tais crimes, eram
legalmente impedidos de depor contra seus senhores e os homens brancos em
geral735.

Espero ter conseguido expor as principais fraquezas das teorias


ditas “indiretas”, principalmente com o enfrentamento dos ditos “casos marginais”,
que tornam sobremaneira difícil a sustentação de tal tese em face dos próprios
seres humanos.

732
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 87.
733
Ibid., p. 88.
734
Cf. WATSON, Alan. Slave Laws in the Americas. Athens: University of Georgia Press, 1989;
DAVIS, David Brion. The Problem of Slavery in Western Culture. Ithaca: Cornell University Press,
1966; e ELKINS, Stanley; MCKITRICK, Eric. “Institutions and the Law of Slavery: Slavery in
Capitalist and Non-Capitalist Cultures”. In : HALL, Kermit L. The Law of American Slavery. New
York: Garland Publishing, 1987.
735
No Brasil ocorria o mesmo fenômeno. O Código de Processo Criminal de 1832 prescrevia em
seu art. 75 que os escravos não podiam acusar os seus senhores perante autoridades policiais ou
judiciárias: “Art. 75. Não serão admitidas denúncias: § 2º - do escravo contra o senhor.” Tanto é
assim que nenhum policial cogitava de colher depoimentos de escravos contra seus senhores,
pois eram vedados pela legislação adjetiva penal e mesmo nenhum escravo teria coragem de
fazê-lo, porque sabia antecipadamente que nenhuma denúncia contra o senhor prosperaria e
seriam duramente castigados em virtude disso.

- 268 -
Termino a parte referente às teorias indiretas com a citação de
trecho da obra do ilustre DIOGO FREITAS DO AMARAL que, comentando a Lei
de Bases do Ambiente, de Portugal (1987), bem resume a premente necessidade
de revisão dos nossos conceitos acerca da natureza:

[...] é curioso como ela nos soa já um pouco ultrapassada e, porventura,


demasiado subordinada às necessidades do Homem. Porque ela fala, no
fundo, em proteger a vida do Homem, em garantir a qualidade de vida do
Homem, em assegurar a saúde e o bem-estar do Homem, em garantir a
utilização dos recursos naturais como pressuposto básico do
desenvolvimento do Homem [...] Ou seja, foi uma lei excelente na altura,
mas ainda marcada por uma clara concepção antropocêntrica do mundo
e da vida, uma concepção em que o Homem é o centro de tudo, e em
que tudo gira em torno dos interesses, das preocupações, das
aspirações e das necessidades do Homem. Penso que já não pode ser
mais assim – a Natureza carece de uma proteção pelos valores que ela
representa em si mesma, proteção que, muitas vezes, terá de ser
dirigida contra o próprio Homem. É altura de equacionarmos o que é que
a Natureza representa como tal, independentemente do benefício e da
utilidade que tem e há de continuar a ter para o Homem 736.

Os próximos itens tratarão justamente das alternativas éticas e


jurídicas às visões “indiretas”.

736
AMARAL apud BECHARA, op.cit., p. 72.

- 269 -
2.3. Teorias Diretas

“In one laboratory, a rat placed on a small box had his head immobilized
by a vise. When a postdoctoral vivisector started drilling into his skull, the
rat began to struggle. Held by the head, he attempted to run. His lower
body fell over the box’s edge. The rat dangled there, struggling. The
drilling continued. Some minutes later, the rat kicked the box over, forcing
the vivisector to stop and inject him with some anesthetic. Before the
anesthetic took effect, the vivisector resumed drilling. Again the rat
struggled. Finally, ten minutes into the vivisection, the rat quieted 737.”

JON DUNAYER738

A partir deste tópico passaremos a tratar das correntes que


sustentam que teríamos deveres diretos para com homens e animais. A primeira
a ser examinada será a denominada por REGAN de “cruelty-kindness view”,
traduzida por mim como “teoria da crueldade-compaixão”. Em seguida serão
discutidas as correntes utilitaristas.

2.3.1. Teorias Diretas: “Crueldade-Compaixão”

“Nada existe na Terra tão universalmente sincero quanto o amor que


todas as criaturas capazes de senti-lo professam por si mesmas; e como
não há amor ao que não desvele o cuidado de conservar o objeto
amado, nada há de mais sincero em qualquer criatura, do que sua
vontade, seu desejo, e seu empenho de se conservar a si mesma. É
uma lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da criatura tendam
direta ou indiretamente à preservação tanto de si mesma como de sua
espécie”.739

BERNARD DE MANDEVILLE

737
DUNAYER apud COHEN, Carl; REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham (EUA):
Rowman´& Littlefield Publishers, 2001. p. 177-78.
738
A passagem acima referida descreve observações feitas pela sociologista MARY PHILLIPS
durante o seu estudo de três anos (1985-1987) sobre as práticas de experimentação “científica”
em dois grandes laboratórios de pesquisa na cidade de Nova Iorque.
739
MANDEVILLE apud SAVATER, op.cit., p. 47-8..

- 270 -
“Consideramos como verdades sagradas e inegáveis que todos os
homens são criados com igualdade e independência, que dessa
igualdade na criação dos homens derivam direitos inerentes e
inalienáveis, dentre os quais a preservação da própria vida, a liberdade e
a busca da felicidade.”

THOMAS JEFFERSON (1743-1826), documento original da American


Declaration of Independence.

As teorias morais ditas “diretas” pretendem conferir tratamento


adequado aos “pacientes morais” sem, contudo lançar mão do conceito de
“direitos”.

Conforme nomenclatura e o sistema proposto por REGAN, a


primeira corrente “direta” a ser examinada é a da “crueldade-compaixão” (“cruelty-
kindness”). Os seus defensores propõem que os “pacientes morais”, incluídos os
animais, devem ser tratados gentilmente e sem crueldade, sendo tal dever um
dever direto para com o próprio paciente. Tal visão incorpora duas vertentes
principais: uma positiva, consistente na obrigação de se agir gentilmente, e outra
negativa, consubstanciada na omissão de práticas que possam redundar em
crueldade ou maus-tratos.

O reconhecimento da comiseração e compaixão para com os


animais possui correspondência direta em alguns sistemas religiosos. O manejo
gentil dos animais é sugerido como uma virtude cristã em vários pensadores
antigos tais como SÃO ISAAC, SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, SÃO BASÍLIO, SÃO
BENEDITO e, finalmente, SÃO FRANCISCO DE ASSIS740. Muito embora todos
estes pensadores tenham pretendido ampliar o amor a um âmbito “universal”,
propagando a “irmandade” entre todas as criaturas, isso tudo era feito ainda
dentro de uma perspectiva teológica ortodoxa no sentido de que os animais,
apesar de não poderem ser alvos de crueldade, deveriam servir ao homem, assim
como toda a realidade natural. Estende-se na herança espiritual de SÃO
FRANCISCO DE ASSIS a “teologia da libertação”. Ela pretende inserir e conjugar

740
Por sua grande reputação de compaixão para com os animais, talvez seja surpreendente para
alguns perceber que SÃO FRANCISCO escreveu muito pouco sobre eles, sendo mais conhecido
pelo relato de suas ações feito por seus seguidores.

- 271 -
a questão ecológica (“justiça ecológica”) com a social (“justiça social”) como forma
de libertação dos oprimidos, pressupondo uma “nova aliança dos humanos com
os demais seres, uma nova cortesia para com o criado e a gestação de uma ética
e mística de fraternidade/sororidade para com a inteira comunidade cósmica. A
Terra também grita sob a máquina depredadora e mortífera de nosso modelo de
sociedade e de desenvolvimento. Atender a estes dois gritos de forma articulada,
vendo a mesma causa-raiz que os produz, é realizar a libertação integral.”741 Ao
que tudo leva a crer, a proposta de uma ética de compaixão ilimitada e de co-
responsabilidade levaria a extensão de “direitos” aos animais, pois “ela [moral
convencional] é utilitarista e antropocêntrica e faz da terra um mero depósito de
recursos para satisfazer os desejos humanos, sem o sentido de respeito à
alteridade e dos direitos dos demais seres da natureza742.” Na mesma linha, sob
as mesmas bases da solidariedade (ao lado da liberdade, da igualdade e da
segurança), o jurista espanhol PECES-BARBA743 “chega a dizer que a
solidariedade é dever dos cidadãos. Os carentes teriam direito subjetivo à
solidariedade, seja por força de seu estado pessoal (menores, incapazes), social
(marginalizados, excluídos) ou por sua própria definição (chega a cogitar um
direito subjetivo dos animais à solidariedade). Defende que todos aqueles
juridicamente inferiorizados seriam credores da solidariedade.”744 Na mesma
linha, segundo ENGELHARDT, o respeito às pessoas nasce da preocupação de

741
BOFF, op.cit., p. 156.
742
Ibid., p. 187.
743
PECES-BARBA é qualificado como sendo um “neo-positivista” ao lado de HART e outros, para
os quais o fundamento central do Direito é o poder político. Este, para se legitimar deve organizar-
se sob a forma de Estado, obedecendo a uma lógica de autolimitação de seus próprios poderes e
criando um mecanismo de proteção às minorias. Apesar de positivista, o autor reconhece a
existência de uma moralidade prévia, anterior ao Estado que, todavia, só pode ser garantido caso
venha a ser positivada e garantida pelo Direito. Nesse sentido haveria uma moral crítica, ainda
não transformada em norma, ainda não-Direito, e a moralidade positivada, que seria aquela já
agasalhada pelo ordenamento jurídico. De acordo com MÁRCIO MONTEIRO REIS, resumindo o
modelo proposto pelo autor, afirma que “em uma primeira fase, há um dinamismo externo ao
Direito, no qual a moralidade crítica pressiona o poder buscando incorporar-se ao ordenamento
jurídico existente. Depois da incorporação de determinada regra moral ao Direito, tem início a
segunda fase, caracterizada por um dinamismo interno. A moralidade positivada ganha cada vez
mais espaço no ordenamento, o que se dá principalmente através da atividade de interpretação,
que provoca a consolidação e, muitas vezes, a ampliação do âmbito de aplicação daqueles
valores” (REIS, Márcio Monteiro. Fundamentação dos direitos humanos nas visões de Hart,
Peces-Barba e Dworkin. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.), Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001. p. 131).
744
REIS, op. cit., p. 136.

- 272 -
"agir de maneira que possam ser justificadas como merecedoras de acusação ou
de elogio"745. Analogamente, a preocupação com os animais tem sua origem
marcada no fato de se "ter um mundo que maximiza o bem-estar e sustenta uma
teia de solidariedade". ENGELHARDT hierarquiza a compaixão ao afirmar que "os
animais são protegidos pela moralidade de beneficência", e como os animais
possuem capacidades sensitivas diferentes entre si, a "força dos direitos de
beneficência varia dramaticamente"746.

O princípio norteador da ética da compaixão é “bom é tudo o que


conserva e promove todos os seres em seu equilíbrio dinâmico, especialmente os
vivos e, dentre os vivos, os mais fracos e ameaçados; mau é tudo o que prejudica
e faz desaparecer os seres ou destrói as condições de sua reprodução e
desenvolvimento747”. ALBERT SCHWEITZER já afirmava que “Ética significa a
ilimitada responsabilidade por tudo o que existe e vive.”

A par disso, outras religiões desenvolveram concepções filosóficas


de não-dualidade entre o homem e o mundo natural. No pensamento oriental,
especialmente no Hinduísmo, no Taoísmo, no Budismo e no Confucionismo, o
esquema de compreensão da natureza não funciona com base na dialética
“centro-periferia”, de origem basicamente ocidental, mas sim no reconhecimento
da natureza como um todo interdependente, onde todos os seres possuem seu
lugar e função. A compaixão e o amor para com todos os seres vivos é parte
integrante da própria tradição oriental, pois para ela a diferenciação entre os seres
vivos é uma mera ilusão. No fundo da “Realidade”, tudo é uno. Em que pesem as
distinções entre as diversas correntes de pensamento oriental, a não-dualidade
entre o homem e o animal e entre o animal e reino vegetal é evidente, dado que
todos constituem a mesma “Realidade”. Não há dualidade entre Deus e o Mundo
ou entre a morte e a vida. Tudo flui da mesma “Realidade” e para ela retorna.748

745
ENGELHARDT, H.T. The Foundation of Bioethics. New York: Oxford University Press, 1996. p.
145.
746
Ibid., p. 145.
747
BOFF, op.cit., p. 188.
748
A adoção da “não-dualidade” avança em relação ao dualismo porque enxerga os seres vivos
como inseridos na mesma “roda da vida”, não existindo uma barreira ontológica entre um humano
e um não-humano. Todavia, isso não implica em que não haja a legitimação de uma hierarquia
entre eles, advinda principalmente dos méritos e das ações praticadas em vidas anteriores.

- 273 -
Das teses de “não-dualidade” desprende-se a tese da “não-violência”,
popularizada por meio das belas lições de MAHATMA GHANDI749. O jainísmo,
mais até do que o budismo e o hinduísmo, propõe a reverência a toda e qualquer
forma de vida e estabelece proibições específicas a respeito do uso violento dos
animais. A ética da “não-violência” possui uma meta de propagação de um estado
positivo de amor e de beneficência para com toda a criação. A moral budista, por
sua vez, descansa sob o princípio da responsabilidade e da intenção: só há ação
responsável quando é consciente, refletida e voluntária. A moralidade individual,
neste sentido, compreende o campo da palavra justa, da atividade justa e dos
meios de existência justos. Em sua dinâmica, a conduta moral acarreta a
produção de frutos como a bondade, a benevolência, a compaixão, a alegria, que
devem ser estendidos a todos os seres viventes. A “compaixão universal” budista
transcende a mera filantropia para se encaixar mais em um sentido de “irmandade
universal”.

A recepção intelectual da filosofia da “não-dualidade” no ocidente se


deu a partir da primeira metade do século XIX. HEGEL, bem como os irmãos
FRIEDERICH e WILHELM SXHLEGEL recorrem às teses orientais em seus
escritos. Destaca-se, em particular, a figura do filósofo SCHOPENHAUER, que
introduz em sua teoria idéias próprias do budismo e do hinduísmo. Segundo a
representação metafísica da realidade, o mundo é, essencialmente, “vontade de
viver” (Wille zum leben) e “representação” (Vorstellung). Como indica o título de
sua obra mais conhecida, a realidade é expressão da vontade de viver. Esta
vontade faz os indivíduos serem simétricos e iguais em sua existência. Entre o ser
humano e os animais não existe uma gradação de ordem ontológico/metafísica e
sim uma gradação de caráter fenomênico. A expressão da vontade de viver no
homem possui alguns atributos diferenciadores em relação aos animais, mas isso
não implica em que não devamos estender a moralidade de nossas condutas a
eles. O autor conforme transcrições feitas no curso da obra, identifica a
“abominável” idéia de que não teríamos compromisso moral para com os animais
na tradição judaico-cristã. Segundo afirma, “[...] a comiseração para com os
animais está intimamente ligada à bondade de caráter, de tal sorte que se pode

749
Para GHANDI a vida nada mais é do que a “vibração da presença divina”.

- 274 -
afirmar com segurança que quem é cruel com os animais não pode ser boa
pessoa”750. Assim sendo, na esteira do pensamento budista, SCHOPENHAUER
considera a “compaixão universal” o caminho autêntico de libertação e de
felicidade para o ser humano:

[...] uma compaixão sem limites para com todos os seres vivos é a
garantia mais firme e segura da conduta moral. [...] para o
reconhecimento da compaixão, mostrada como a única fonte as ações
desinteressadas e, portanto, como a verdadeira base da moralidade, não
se precisa de nenhum conhecimento abstrato senão somente o intuitivo,
da mera captação do caso concreto [...]751.

A crueldade é, em princípio, um conceito indeterminado que pode se


revestir de variadas formas. Quando um indivíduo sente prazer em causar
sofrimento a outrem, podemos classificar seu ato como “sádico” (“sadistic
cruelty”). Quando outro indivíduo não sente prazer em causar sofrimento, mas é a
ele indiferente, podemos classificar seu comportamento como sendo “brutal”
(“brutal cruelty”)752. Ambas as formas de crueldade podem se manifestar por atos
comissivos ou omissivos. A questão, no entanto, é: a posição de “anti-crueldade”
fornece bases adequadas para fundamentar o nosso “dever negativo” (de
abstenção de crueldade) em relação aos animais? Tal posição, a nosso juízo, é
insuficiente, pois conduz ao entendimento de que cumpriríamos nossos “deveres
negativos” com o só fato de não sermos cruéis para com eles, ou seja, somente
pelo fato de não sentirmos prazer ou indiferença com o seu sofrimento. Todavia, o
que uma pessoa efetivamente sente com relação ao sofrimento animal é uma
coisa, o juízo moral acerca da conduta praticada é outra bastante distinta.

750
SCHOPENHAUER apud ROSELLÓ, Francesc Torralba. “Filosofía de la no dualidad y derechos
de los animales”. In: LACADEMA, Juan Ramón (org.). Los Derechos de Los Animales. Madrid:
Desclée de Brouwer, 2002. p. 76, tradução nossa.
751
SCHOPENHAUER apud ROSELLÓ, op.cit., p. 77, tradução nossa.
752
As pessoas que são insensíveis ao sofrimento alheio são comumente qualificadas por serem
inumanas ou bestiais, em uma analogia ao comportamento de predadores animais em relação à
sua presa.

- 275 -
Logicamente que o sofrimento animal não pode ser justificado pelo fato de a
pessoa não ser nem indiferente nem sádica com relação a ele.

Do mesmo modo que a noção de crueldade é insuficiente para ser a


matriz dos nossos deveres de abstenção para com os animais, a idéia de
“bondade”, “caridade”, “compaixão” e suas formas cognatas são insuficientes para
fundamentar os nossos “deveres positivos”. A “bondade” está ligada, assim como
a “crueldade”, a estados motivacionais do agente. Neste sentido, cabe a mesma
advertência feita acima no sentido de que a moralidade das ações individuais é
distinta dos respectivos “estados mentais” e “motivações/intenções” pelas quais
seus atos são praticados. Os atos devem ser julgados corretos ou errados
abstraindo-se do conceito de “bondade” ou “crueldade”. Tudo leva a crer que uma
pessoa misericordiosa vá se conduzir acertadamente com relação a terceiros,
mas esta não é uma conseqüência absolutamente necessária. Além disso, parece
haver certa confusão conceitual entre “caridade” e “justiça”. O que aqui se
sustenta é que os animais são merecedores de tratamento justo e não somente
caridoso.

A concepção da “crueldade-compaixão” falha por “confundir


considerações sobre o valor dos agentes morais com considerações sobre a
moralidade de seus atos, supondo que os estados mentais ou disposições dos
agentes (seus motivos e intenções) determinam a correção ou incorreção daquilo
que fazem.”753 Em função de tal visão fundamentar os nossos deveres diretos
negativos para com os “pacientes morais” no fato de não sermos cruéis ou
abusivos, poder-se-ia chegar à conclusão de que as pessoas que os lesassem,
mas que, simultaneamente, nutrissem empatia por eles, estariam fora do círculo
de reprovação moral, o que nos parece um tanto quanto incongruente.

753
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 228, tradução nossa.

- 276 -
2.3.2. Teorias Diretas: A Defesa Ética dos Animais por Humphry
Primatt e seus herdeiros754.

“Não é a violência de poucos que me preocupa, mas sim o silêncio de


muitos”

MARTIN LUTHER KING

"O mundo é lugar perigoso, não devido àqueles que praticam o mal, mas
devido àqueles que observam e nada fazem."

ALBERT EINSTEIN

Como se verificou, a partir do século XVIII, o movimento de ataque


contra o tratamento cruel dispensado aos animais começou a se consolidar por
meio de publicações que as condenavam de maneira expressa.

Gradualmente ia se consolidando a noção, ainda embrionária, de


que poderia se atribuir determinados direitos aos animais. O utilitarista FRANCIS
HUTCHESON (1694-1746), em obra póstuma publicada em 1755, “A System of
Moral Philosophy”, sustentava que teriam “direito de que nenhuma dor ou miséria
desnecessárias lhes sejam infligidas”755. Note-se que talvez seja uma das
primeiras manifestações formais acerca da importância da dor como critério para
a valoração moral, ainda que colocada sob os estreitos limites do paradoxal
“sofrimento desnecessário”. Ainda segundo indica a professora SÔNIA T. FELIPE,
“Em 1760 haviam sido levadas a público pela primeira vez na Inglaterra ‘as
implicações éticas da experimentação animal, pelo fisiologista Ferguson, que

754
O título e o conteúdo deste item foram diretamente inspirados na palestra proferida pela ilustre
professora SÔNIA T. FELIPE no I Seminário dos Direitos dos Animais, realizado em Florianópolis-
SC, em novembro de 2005, chamado “Uma Defesa Ética dos Animais: Humphry Primatt e seus
herdeiros”. SÔNIA T. FELIPE é Professora do Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, e investigadora permanente do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
755
HUTCHESON apud THOMAS, op.cit., p. 215.

- 277 -
descreveu o tratamento bárbaro a que animais eram submetidos em alguns
experimentos’.756

Em 1776, o teólogo cristão HUMPHRY PRIMATT publica em


Londres o seu “A Dissertation on the Duty of Mercy and Sin of Cruelty to Brute
Animals”, ou “Uma Dissertação sobre o Dever de Compaixão e o Pecado da
Crueldade contra Animais Brutos”, no qual, antes mesmo de BENTHAM, elege a
capacidade de sofrer como o parâmetro para a consideração moral.

Apesar de ainda reconhecer que a “Grande Cadeia do Ser” pudesse


efetivamente nos colocar à frente dos demais animais no que se refere às
capacidades intelectivas, PRIMATT afirmava que a capacidade de sofrer era
comum a todos e que, por causa disto, a benevolência e a compaixão deveriam
guiar as condutas de animais e homens do mesmo modo em todos os casos.
Abraça, portanto, uma concepção universalizada de justiça convivendo com o
pluralismo religioso existente ou como diria RAWLS, com as “concepções
privadas de bem”.

Em uma autêntica antecipação do fenômeno posteriormente


reconhecido como “especismo”, PRIMATT narra sua preocupação com a
atribuição de privilégios pelo homem e para o homem, a que denomina de
“preconceito a favor de si mesmo”, capaz de estabelecer indevidas linhas
divisórias baseadas no caráter negativo da alteridade:

Reconhecemos essa importante verdade em todas as questões que


dizem respeito ao homem, no entanto, nós a restringimos à nossa
própria espécie.757

A questão da dor e do sofrimento é explorada com proficiência pelo


autor que afirma que a similitude entre as terminações nervosas e órgãos de
sensação de homens e animais, assim como as manifestações externas de dor,
prova que ambos são sensíveis ao sofrimento da mesma maneira:

756
FELIPE, Sônia T. Crítica ao Especismo, op.cit.
757
PRIMATT apud FELIPE, Direitos Animais, op.cit.

- 278 -
Pain is Pain, whether it be inflicted on man or on beast; and the creature
that suffers it , whether man or beast, being sensible of the misery of it
whilst it lasts, suffers Evil.758

Por esta razão, condena veementemente a denominada “ética da


aparência”, afirmando que a superioridade mental do homem não lhe dá o direito
de abusar das demais criaturas, tal como os brancos não podem tiranizar os
negros em razão da cor de sua pele. Segundo o filósofo:

Superiority of rank or station exempts no creature from the sensibility of


pain, nor does inferiority render the feelings thereof the less exquisite.
Pain is pain, whether it be inflicted on man or on beast; and the creature
that suffers it, whether man or beast, being sensible of he misery of it
while it lasts, suffers Evil […]759

Se a dor, como afirmado, é intrinsecamente tida como indesejável e


ruim, a sua imposição também deve ser condenada, quaisquer que sejam, como
falado, as opções religiosas individuais:

We may pretend to what RELIGION we please; but Cruelty is ATHEISM.


We may make our boast of CHRISTIANITY; but Cruelty is INFIDELITY.
We may trust to our ORTHODOXY; but Cruelty is the worst of
HERESIES.760

PRIMATT cria, com base no “princípio da analogia” e da “não-


maleficência”, uma “regra de ouro”761 segundo a qual, apesar de não sermos

758
PRIMATT apud RYDER, The Politcal Animal, op.cit., p. 18.
759
PRIMATT apud TURNER, op.cit., p. 11.
760
PRIMATT apud TURNER, op.cit., p. 11.
761
A “regra de ouro” clássica que tem pautado a conduta humana poderia ser descrita como: “não
faças a outrem aquilo que, sob as mesmas condições e circunstâncias, não gostaria que fizessem
contigo”.

- 279 -
cavalos, porcos, ou cães, deveríamos tratá-los do mesmo modo como
gostaríamos de sermos tratados caso fôssemos um deles. A professora SÔNIA T.
FELIPE denominada a “regra de ouro” de “princípio da coerência”:

O apelo ao princípio da coerência dita ao ser racional a regra que ordena


o uso de uma mesma linha de raciocínio quando avalia o que o afeta, e
quando avalia o que afeta a um outro, seja lá distinto do modo que o for,
um homem, um coelho, um cão, um cavalo, um elefante, uma baleia... na
aparência, para além da condição igual que o torna capaz de sentir dor,
de sofrer, e de perder a qualidade da vida em meio a experiências que o
impedem de buscar seu bem-estar.762

O que exigimos para nós, devemos respeitar em relação aos outros. Se


argumentamos que ninguém, para levar vantagens, tem o direito de nos
expropriar o bem-estar ou a vida, do mesmo modo devemos sustentar
nossa obrigação de não tirar a vida nem maltratar nenhum outro animal
dotado de sensibilidade, em nome de uma vantagem que queiramos ter
sobre ele.763

A importância do “princípio da coerência” leva o autor, embora não


atribuísse direitos propriamente ditos aos animais, a negar o pretenso direito
natural ao abuso:

Now if amongst men, the differences of their powers of the mind, and of
their complexion, stature and accidents of fortune, do not give to any one
man a right to abuse or insult any other man on account of these
differences; for the same reason, a man can have no natural right to
abuse and torment a beast, merely because a beast has not the mental
powers of a man. A brute is an animal no less sensible of pain than a
man. He has similar nerves and organs of sensation.764

762
FELIPE, Direito dos Animais, op.cit.
763
FELIPE, Sônia T. “Defesa ética dos animais. Humphry Primatt e seus herdeiros: Peter Singer,
Tom Regan e Richard D. Ryder”. Conferência de abertura do I Seminário ÉoBicho! de Direito dos
Animais. Florianópolis: ÉoBicho!; SVB; OAB/SC, 4-5 nov. 2005, 19:00 hs. . Disponível em:
<http://www.eobicho.org>. Acesso em 10 nov. 2005.
764
PRIMATT apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 18.

- 280 -
Apesar de basear todo o seu arcabouço teórico sob bases
compassionais, PRIMATT, com seu “princípio da coerência” dá um passo adiante
em relação aos defensores das teorias indiretas, pois inaugura uma tendência de
julgamento ético imparcial dos animais, tendência esta seguida de perto por
outros pensadores.

A ilustre professora SÔNIA T. FELIPE sintetiza com maestria as


teses centrais da argumentação de PRIMATT, a saber:

1.ª tese: A dignidade humana está erroneamente fundada numa


presunção de superioridade, que discrimina todos os que não têm a
configuração humana.

2.ª tese: As tradições nem sempre são sinônimos de ética, nem sempre
preservam valores morais universais.

3.ª tese: Crítica à complacência dos educadores. Estamos atolados na


moral vigente porque os pais, professores, líderes religiosos e políticos
praticam a crueldade contra os animais, apóiam quem também o faz, e
são complacentes com as práticas de maus tratos, caçadas e
divertimentos às custas dos animais, herdadas na infância.

4.ª tese: Funções públicas implicam em autoridade moral. Quem exerce


uma função na esfera pública tem o dever moral de combater toda forma
de discriminação e preconceito, pois esses expressam a violência das
interações humanas que seguem modelos estabelecidos na tradição.

5.ª tese: A moralidade (cultura de valores que se tornam privilégios


morais), mascara-se de argumentos pseudo-éticos. Ela esconde que
privilegia alguns, no acesso a certos bens, formando a classe
moralmente dominante. Essa hipocrisia vem disfarçada de gentileza fútil,
e por isso esconde tão bem dos vulneráveis, a agressão e violência que
representa.

6.ª tese: Excelência implica em responsabilidade moral. Quanto mais


estudado e refinado, quanto mais acesso à argumentação filosófica, à
religião, à ciência jurídica, à ciência em geral, à arte, maior o dever moral
do sujeito, de denunciar e condenar todas as formas de violência
praticadas contra os animais. Excelência implica em refinamento ético.

7.ª tese: Dominar é saber cultivar, cuidar de algo, seja no âmbito


tecnológico, seja biológico, seja político. O dominium do ser humano
sobre os animais só pode ser legítimo, se for dessa natureza ética:
cuidado e cultivo de seu bem-estar, o contrário de abuso e exploração de
seus corpos, e de execução sumária de suas vidas.

8.ª tese: A não-maleficência e a beneficência são princípios universais.


Se os adotamos em defesa da nossa vida e do nosso bem-estar, o
mesmo deve valer para a defesa de outros.

- 281 -
9.ª tese: Dor é experiência intrinsecamente má, para qualquer ser que a
sofre.

10.ª tese: O malefício da dor e do sofrimento, para quem os sofre, não


depende das diferenças na aparência. Dor é dor, e esta é sempre má,
ainda que seja inevitável, em certos casos, para a recuperação daquele
que a sofre.

11.ª tese: A sensação de dor não depende da atividade do pensar.


Razão, pensamento e linguagem não são habilidades necessárias à
experiência da dor.

12.ª tese: A diferença nas características físicas, ou no poder aquisitivo


(econômico e intelectual), não aumentam nem diminuem a sensibilidade
à dor. Estatura, raça, sexo, riqueza, inteligência ou outras habilidades
não eliminam nem respondem pela sensibilidade à dor, mesmo que essa
experiência seja diferente em cada caso particular.

13.ª tese: Características na aparência natural (específicas) não


resultam de um mérito. Os caracteres da compleição física ou aparência
biológica não resultam do desejo, empenho, trabalho, ou mérito moral do
sujeito.

14.ª tese: Dotes naturais não podem ser confundidos com dotes ou
méritos morais. Por não resultarem do mérito, tais dotes não podem
servir de critério moral para definir quem é digno ou não de
consideração.

15.ª tese: A ética, se coerente, funda-se na razoabilidade e


reciprocidade, cerne da ‘regra de ouro’: não faças a outro aquilo que não
queres que te façam na mesma situação. Essa expressa a coerência do
sujeito, ao agir, com um único princípio moral, não descartável.

16.ª tese: Ser imoral é incoerência. Desrespeitar os animais, alegando


que são inferiores, mas fazer a eles o que não admitidos que nos façam
quando estamos em condições inferiores, é pura irracionalidade. Essa se
manifesta justamente naqueles que se autoproclamam dotados de razão.

17.ª tese: A imparcialidade constitui qualquer princípio ético. Não se


pode abrir exceção para benefício pessoal, e, ao mesmo tempo, esperar
que os outros considerem tal privilégio um sinônimo de justiça. A
imparcialidade é essencial a todo e qualquer princípio moral ou legal.

18.ª tese: Isonomia. A justiça ordena tratar casos semelhantes de forma


semelhante.

19.ª tese: Egoísmo expressa incoerência. O egoísta exige que outros


respeitem sua dor, que a eliminem, que não a provoquem
injustificadamente, mas tende a fazer contra seres vulneráveis tudo isso
que exige que os outros não lhe façam.

20.ª tese: Crueldade significa causar mal (dor ou sofrimento


injustificáveis) a seres vulneráveis.

21.ª tese: Há duas formas de crueldade. A brutal, praticada pelos seres


humanos contra os animais, e a humana, praticada pelos seres humanos
contra os de sua própria espécie.

- 282 -
22.ª tese: Crueldade é covardia, ainda pior quando praticada contra
animais. Esses não têm quem os defenda, quem os vingue, quem os
represente num tribunal. Nem sequer o reconhecimento moral de que
tais atos não devem ser praticados contra eles. Os humanos, pelo
menos, têm tudo isso, como escudo protetor.

23.ª tese: A morte é inexorável para todo ser vivo, o sofrimento, não.
Maltratar animais, antes de matá-los, alegando a necessidade de
alimento, não é argumento. Ainda que um ou outro animal devesse, em
circunstâncias de escassez excepcionais, ser mortos, para servir de
alimento, não haveria razão alguma para infligir-lhes dor e sofrimento. No
caso de a morte ser necessária, ela deve ser fulminante. Enquanto
estão vivos, no entanto, os animais devem ser mantidos ‘happy’.

24.ª tese: Não é verdade que temos necessidade de lucros, por termos
necessidade de sobreviver. Matar animais, argumentando que eles
também se matam uns aos outros, não tem fundamento lógico nem
ético. Os animais, quando o fazem, nunca é para obter lucros, e o fazem
apenas seletivamente, jamais sem estarem premidos pela necessidade.

25.ª tese: Os seres humanos não são superiores aos animais no que
toca à bondade. Somando-se as dores e mortes produzidas pelos
animais contra humanos, os humanos ganham de longe a corrida. Para
cada mal causado a um humano por um animal, aquele responde com
mil outros males, contra esse.

26.ª tese: Imitar o que se repudia é vil. Tratar animais com crueldade,
explorá-los e matá-los, alegando que fazem o mesmo uns contra os
outros ou contra os humanos, é abandonar o estatuto de sujeito moral
que nos concedemos, e buscar, justamente nos animais a quem a moral
tradicional abomina como vis, o modelo de ação que a própria razão
despreza.

27.ª tese: O dever humano mais sagrado, relativamente aos animais, de


não-interferência quando esta representa um malefício, equivale, na
prática, ao dever de os deixar viver em paz.765

HENRY SALT (1851-1939), em “Animal Rights: Considered in


Relation to Social Progress”, publicado em 1892, obra que é considerada por
muitos a primeira a tratar dos direitos para animais em sentido estrito, inspirando-
se expressamente em PRIMATT, e adotando o “princípio da coerência”, afirma:

Our main principle is now clear”, escreve Salt. “If ‘rights’ exist at all −and
both feeling and usage indubitably prove that they do exist− they cannot
be consistently awarded to men and denied to animals, since the same
sense of justice and compassion apply in both cases. ‘Pain is pain’, says
an honest old writer, [PRIMATT] ‘whether it be inflicted on man or on

765
FELIPE, Sônia T., Defesa Ética dos Animais, op.cit.

- 283 -
beast; and the creature that suffers it, whether man or beast, suffers evil;
and the sufferance of evil, unmeritedly, unprovokedly, where no offence
has been given, and no good can possibly be answered by it, but merely
to exhibit power or gratify malice, is Cruelty and Injustice in him that
occasions it.766

2.3.3. Teorias Diretas: O Utilitarismo Clássico e o ”Princípio da


Maior Felicidade Possível”

“[...] the death they [animais] suffer in our hands commonly is, and always
may be, speedier, and by that means a less painful one, than that which
awaits them in the inevitable course of nature.”767

JEREMY BENTHAM

JEREMY BENHTAM e JOHN STUART MILL768 são os principais


pensadores que deram origem à visão do utilitarismo clássico. A posse de
“senciência” e não de racionalidade, autonomia, ou capacidade lingüística, era o
que viria a conferir consideração moral direta a um dado ser. Já que os animais
são sencientes, o dever para com eles deve ser direto, de modo a garantir que
não sofram sem que haja boas razões para tanto. A visão utilitarista clássica
sustenta que a moralidade de nossas ações é determinada pelas suas
conseqüências (“consequencialismo”). Neste sentido, deveríamos escolher as
ações que pudessem trazer os melhores resultados para a maior quantidade de
seres por ela afetados. Sob o mesmo enfoque, tem-se que o prazer é
intrinsecamente bom e a dor/sofrimento intrinsecamente ruim, pelo que devemos
ponderar todas as alternativas existentes na prática de determinado ato e optar

766
SALT, Henry. Animal Rights: Considered in Relation to Social Progress. Pennsylvania: Clarks
Summit, 1980. p. 24-5.
767
BENTHAM apud REGAN, op.cit., p. 205.
768
BENTHAM se opunha à pesca, à caça e às práticas esportivas que envolviam animais. MILL,
como já mencionado, encontrava-se entre os primeiros contribuidores da Royal Society For The
Prevention Of Cruelty To Animals – RSPCA. Todavia, ambos não se opuseram frontalmente às
práticas de vivissecção e não eram vegetarianos. Ainda que seus contemporâneos os tenham
qualificado como “radicais”, podemos dizer que seriam reformadores e não abolicionistas.

- 284 -
por aquele que, em um “balanço ótimo”, produza mais prazer que sofrimento para
todos os atingidos pelo seu resultado. As concepções utilitárias podem ser
subdivididas em duas correntes básicas, quais sejam a do “utilitarismo do ato” ou
direto (“act utilitarianism”) e a do utilitarismo indireto (“rule-utilitarianism”). A
versão direta “leva em consideração prioritariamente as escolhas individuais, no
julgamento a respeito do caminho eticamente desejável para a maximização da
felicidade”769, enquanto que a indireta, “[...] considerando difícil precisar qual ação
individual que levará, de fato, à intensificação máxima da felicidade, prioriza a
escolha moral de regras preestabelecidas de conduta, instituições, deveres
coletivos, etc., capazes de gerar uma satisfação segura, não submetida às
incertezas do destino.”770 771

BENTHAM é geralmente tido como um “act-utilitarian” que


acreditava que em qualquer situação a ação moralmente correta seria aquela que
trouxesse a maximização do maior prazer para o maior número de pessoas
possível. Rejeitava a noção de direitos morais inatos e sustentava que, ao menos
em tese, todo e qualquer interesse humano poderia ser superado caso as
conseqüências de agir desta forma (superação do direito) pesassem mais que as
conseqüências de protegê-los.

769
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, op.cit., p. 2816.
770
Ibid., p. 2816.
771
FRANCIONE traz um exemplo bastante elucidativo a respeito da diferença entre as duas
versões do utilitarismo: “Suponha que SIMON empresta seu carro a JANE e lhe peça para
devolvê-lo, pois quer sair com SUE em um encontro romântico. O problema é que SUE é casada
com BILL, um amigo próximo de JANE, e a tentativa de encontro de SIMON se daria, obviamente,
sem o conhecimento de BILL, que ficaria devastado com a eventual descoberta da infidelidade de
sua esposa. Deveria JANE mentir a SIMON dizendo que perdeu as chaves do carro e que por
conta disso não poderia devolvê-lo naquele dia? Se JANE é uma utilitarista direta, pesará as
conseqüências de mentir quanto a não devolver o carro (SIMON mora longe de SUE e não
poderia sair com ela a não ser utilizando o carro) contra as de não mentir e devolver o carro (BILL
poderá vir a saber do encontro e ficaria emocionalmente abalado). JANE poderia, dadas as
circunstâncias, decidir que mentir a SIMON a respeito do carro seria a coisa certa a se fazer. Se,
ao contrário, JANE é uma utilitarista indireta, pesará as conseqüências de uma regra geral sobre
mentir e perguntaria o que aconteceria se todas as pessoas mentissem nas mesmas
circunstâncias. JANE poderia concluir que, ainda que a devolução do carro a SIMON pudesse
trazer conseqüências negativas no caso particular, se todos os comodatários mentissem quando
perguntados sobre o retorno do empréstimo, ninguém mais emprestaria suas posses a outrem. A
diferença entre o utilitarismo direto e indireto é a diferença entre as conseqüências de um ato
determinado ou as conseqüências de se seguir uma regra abstrata e geral sobre a correção ou
não das condutas individuais” (FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 131-32,
tradução nossa).

- 285 -
O aspecto “gregário/coletivo” do balanço realizado é sobremaneira
importante, pois nem sempre a alternativa que trará mais prazer a um
determinado grupo de pessoas deve ser a escolhida se, no geral, outra a supera
no total absoluto dos outros grupos afetados. É por esta mesma razão que tal
princípio é usualmente referido como sendo o “Princípio da Maior Felicidade
Possível” (“Greatest Happiness Principle”).

Sob os auspícios do benhtanismo a escravidão poderia ser


sustentada sob certas circunstâncias, de acordo com o balanço entre o prazer do
proprietário e o de sua propriedade. Todavia, BENTHAM expressamente rejeita a
instituição da escravidão humana acreditando que o interesse do escravo de não
ser uma coisa superaria os benefícios agregados da escravidão para os
proprietários. Muito embora tivesse esse posicionamento em favor dos seres
humanos, nunca chegou efetivamente a questionar o status de propriedade dos
animais.

Pelo fato de eleger o prazer como o bem supremo a ser perseguido,


esta corrente utilitarista é usualmente classificada como “hedonista”. Como afirma
WILL KYMLICKA, os dois principais atrativos das teorias utilitárias são “que
conformam as nossas intuições no sentido de que o bem-estar humano realmente
importa, e que nossas regras morais necessitam ser testadas por suas
conseqüências sobre tal bem-estar.”772

Ora, se o bem supremo é a capacidade de sentir prazer ou


sofrimento não haveria razão para que pudéssemos, a não ser de uma forma
tendenciosa e parcial, excluir a categoria dos animais não-humanos como
moralmente apta a entrar no balanço de interesses a ser realizado. Ainda mais se
admitimos que em determinados casos, como por exemplo, no caso da dor física,
o sofrimento dos agentes morais humanos possa ser semelhante em todos os
aspectos. Assim sendo, todas as criaturas sencientes seriam membros da mesma
comunidade moral.

Seguindo os passos de FERGUSON e PRIMATT, apesar de


BENTHAM nunca ter questionado diretamente o status de propriedade dos

772
KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy: An Introduction. Oxford: Oxford University
Press, 2002. p. 12.

- 286 -
animais, entendia que também possuíam o interesse de não-sofrer e de ter uma
existência continuada. A conjugação destas posições leva a que o utilitarismo
“hedonista” que, em princípio, aparenta ser uma excelente alternativa teórica às
áridas concepções indiretas, acabe por se revelar também passível de objeções.
A primeira delas diz respeito ao problema da possibilidade de se matar “agentes
morais”. Como verificado, parece indubitável que qualquer teoria moral que se
preze deve se pautar por levar em consideração o dever de não lesionar ou matar
“agentes morais”. A concepção utilitarista clássica oferece um problema a esse
respeito consistente no fato de que apesar de o prazer e sofrimento da vítima
deverem ser levados em conta, não podem ser qualificados como tendo peso
maior que os prazeres e sofrimentos gerais. Em outras palavras, se matar o
agente em questão otimiza o balanço coletivo, nada obstaria a que assim se
procedesse, não havendo que se cogitar de qualquer falha moral em tal ato. O ato
de matar se torna facilmente justificável ao contrário da intuição generalizada de
que só poderia ser feito em condições excepcionais (no caso de legítima defesa,
por exemplo). Os utilitaristas tentam responder a esta objeção afirmando que na
moralidade de se matar devem ser levados em conta não só os prazeres e
sofrimentos das vítimas, mas também todos os derivados de tal ato, tais como
ansiedade e insegurança causados à população. O problema desta resposta é
que, paradoxalmente, ela tenta proteger o agente moral de ser morto pelos efeitos
colaterais da conduta lesiva e não pelo valor intrínseco do próprio agente por ela
afetado, postulando um retorno às concepções indiretas. A matança de “pacientes
morais” também envolve o mesmo tipo de análise, especialmente se for
conduzida de modo a tornar o ato o mais indolor possível. Conforme afirma
BENTHAM, “the death they [animais] suffer in our hands commonly is, and always
may be, speedier, and by that means a less painful one, than that which awaits
them in the inevitable course of nature”773. BENTHAM rejeita expressamente a
noção de que os animais deveriam ser tratados como coisas porque são
supostamente classificados como não-conscientes. Entretanto, concorda com o
fato de que a sua não-consciência (o que, como verificado é altamente discutível)
acarreta uma alteração qualitativa entre eles e os seres humanos e que, por tal

773
BENTHAM apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 205.

- 287 -
razão, poderiam ser eventualmente tratados como coisas no que se refere ao seu
interesse de viver, mas não quanto ao interesse de não sofrer.

If the being eaten were all, there is very good reason why we should be
suffered to eat such of them as we like to eat; we are the better for it, and
they are never the worse. They have none of those long-protracted
anticipations of future misery which we have [...] If the being killed were
all, there is very good reason why we should be suffered to kill such as
molest us: we should be the worse for their living, and they are never the
worse for being dead. But is there any reason why we should be suffered
to torment them? No any that I can see774.

O problema que emerge desta concepção é o de que torna os


indivíduos meros receptáculos dos valores positivos (prazeres) e negativos (dor,
sofrimento). Os indivíduos não possuem valor por si próprios e sim por aquilo que
suportam. REGAN, com o brilhantismo que lhe é peculiar, ilustra a posição
fazendo uma analogia com xícaras de café. Suponha, segundo ele, que cada
indivíduo é uma destas xícaras e que em cada uma delas é derramado um líquido
que pode ser mais amargo (representativo de situações de sofrimento) ou mais
doce (significando maior prazer). Pela lógica utilitarista, não deve ser privilegiada
esta ou aquela xícara, mas o objetivo a ser perseguido deve ser o de se conseguir
o melhor balanço possível entre “doce” e “amargo” entre todos os indivíduos
afetados por uma dada ação. Desta maneira, não haveria como se objetar a
eliminação redistributiva de uma ou algumas das xícaras de modo a tornar o
“gosto” geral melhor. Isto levaria, indubitavelmente, a implicações morais
questionáveis.775

774
BENTHAM apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 134.
775
ROBERT NOZICK desenvolve um argumento igualmente interessante contra a teoria utilitária.
Ele imagina uma situação em que um neuropsicologista tenha criado uma máquina (“experience
machine”) que, mediante a administração de injeções de determinados medicamentos, poderia
manter-nos em estado de constante prazer. Se o prazer é o bem supremo, não se poderia objetar
que todos se voluntariassem a viver eternamente atrelados a tal mecanismo. Muitos, entretanto
haveriam de concordar que este não é um modo de vida que poderia ser razoavelmente defendido
(cf. NOZICK apud KYMLICKA, op.cit., p. 13).

- 288 -
Além disso, dizer que os animais possuem um interesse de não
sofrer, mas que, simultaneamente, sejam reputados como coisas gera o dilema
relativo à impossibilidade de aplicação efetiva do “princípio da igual consideração
de interesses”, a ser examinado no item a seguir. Conforme sintetiza
FRANCIONE:

The result is tat although Bentham regarded his view of animals as more
progressive than that of those who denied any moral significance to
animal interests altogether, his theory, which was incorporated into
animal welfare laws, landed us in exactly the same place as the views he
purported to reject776.

2.3.4. Teorias Diretas: O Utilitarismo de Singer e o “Princípio da


Igual Consideração de Interesses”

“Comporta-te com o teu inferior como gostarias que o teu superior se


comportasse contigo.”777

SÊNECA (4 a.C – 65 d.C)

Como se pôde verificar, não é verdadeiro afirmar que a preocupação


com questões referentes ao tratamento dos animais seja algo absolutamente
recente na filosofia moral ocidental. Todavia, certo é que até meados da década
de setenta, tais preocupações sempre permaneceram, de certa maneira,
periféricas em relação a outros temas. PETER SINGER foi um dos principais
responsáveis pelo surgimento e pelo crescimento do moderno movimento de
“libertação animal”. Nascido em Melbourne, Austrália, em 1946, mestre em
História pela Universidade de Melbourne (1969), e em Filosofia pela Universidade
de Oxford (1971), lecionou na Universidade de Nova York onde dedicou-se à

776
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 134.
777
BARELLI, Ettore; PENNACCHIETTI, Sergio. Dicionário das Citações. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

- 289 -
pesquisa e posterior publicação da candente obra “Animal Liberation778” em
1975779. Após voltar à Austrália para lecionar em Melbourne, nas Universidades
de La Trobe e Monash, retornou aos EUA para se tornar professor titular da
cadeira de bioética em Princeton. Também ministra cursos nas Universidades de
Yale, Stanford, Califórnia, Harvard, entre outras. Publicou uma infinidade de
artigos e livros780 relacionados ao campo da ética e da política, abordando sempre

778
SINGER, Libertação Animal, op.cit.
779
Antes de publicar a supracitada obra, tinha feito uma resenha sobre o livro Animals, Men and
Morals intitulada Animal Liberation, razão pela qual talvez tenha optado pelo mesmo nome
posteriormente (cf. “Animal Liberation”, New York Review of Books, abr. 1973). Também antes da
publicação do livro Animal Liberation, escreveu um artigo chamado All Animals Are Equal
(Philosophical Exchange, vol. 1, 1974, p. 103-116).
780
Democracy and Disobedience, Clarendon Press, Oxford, 1973; Oxford University Press, New
York, 1974; Animal Rights and Human Obligations: An Anthology (co-editor with Thomas Regan)
Prentice-Hall, New Jersey, 1976; Practical Ethics, Cambridge University Press, Cambridge, 1979;
Marx, Oxford University Press, Oxford, 1980; Animal Factories (co-author with James Mason)
Crown, New York, 1980; The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology, Farrar, Straus and
Giroux, New York, 1981; Hegel, Oxford University Press, Oxford and New York, 1982; Test-Tube
Babies: a guide to moral questions, present techniques, and future possibilities, (co-edited with
William Walters), Oxford University Press, Melbourne, 1982; The Reproduction Revolution: New
Ways of Making Babies (co-author with Deane Wells) Oxford University Press, Oxford, 1984;
Should the Baby Live? The Problem of Handicapped Infants (co-author with Helga Kuhse) Oxford
University Press, Oxford, 1985; In Defence of Animals (ed.) Blackwells, Oxford, 1985; Ethical and
Legal Issues in Guardianship Options for Intellectually Disadvantaged People (co-author with Terry
Carney) Human Rights Commission Monograph Series, No.2, Australian Government Publishing
Service, Canberra, 1986; Applied Ethics (ed.) Oxford University Press, Oxford, 1986; Animal
Liberation: A Graphic Guide (co-author with Lori Gruen) Camden Press, London, 1987; Embryo
Experimentation (co-editor with Helga Kuhse, Stephen Buckle, Karen Dawson and Pascal
Kasimba) Cambridge University Press, Cambridge, 1990; paperback edition, updated, 1993;
Companion to Ethics (ed.) Basil Blackwell, Oxford, 1991; paperback edition, 1993; Save the
Animals! (Australian edition, co-author with Barbara Dover and Ingrid Newkirk) Collins Angus &
Robertson, North Ryde, NSW, 1991; The Great Ape Project: Equality Beyond Humanity (co-editor
with Paola Cavalieri) Fourth Estate, London, 1993; How Are We to Live? Ethics in an age of self-
interest Text Publishing, Melbourne, 1993; Ethics (ed.) Oxford University Press, Oxford, 1994;
Individuals, Humans and Persons: Questions of Life and Death (Co-author with Helga Kuhse)
Academia Verlag, Sankt Augustin, Germany, 1994; Rethinking Life and Death: The Collapse of Our
Traditional Ethics, Text Publishing, Melbourne, 1994; The Greens (Co-author with Bob Brown),
Text Publishing, Melbourne, 1996; The Allocation of Health Care Resources: An ethical evaluation
of the "QALY" approach, Ashgate/Dartmouth, Aldershot, 1998 (co-author with John McKie, Jeff
Richardson, PS and Helga Kuhse); A Companion to Bioethics (co-editor with Helga Kuhse),
Blackwell, Oxford, 1998; Ethics into Action: Henry Spira and the Animal Rights Movement,
Rowman and Littlefield, Lanham, Maryland, 1998; Bioethics: An Anthology (co-editor with Helga
Kuhse), Blackwell, Oxford, 1999; A Darwinian Left Weidenfeld and Nicolson, London, 1999;
Writings on an Ethical Life, Ecco, New York, 2000; Unsanctifying Human Life: Essays on Ethics
(edited by Helga Kuhse), Blackwell, Oxford, 2001; One World: Ethics and Globalization, Yale
University Press, New Haven, 2002; Pushing Time Away: My Grandfather and the Tragedy of
Jewish Vienna, Ecco Press, New York, 2003.

- 290 -
questões aplicadas, tais como o aborto, a eutanásia e o tratamento ético dos
animais781.

SINGER é tido como um “act-utilitarian”, tal como BENTHAM, no


sentido de que acredita que as conseqüências de determinado ato é que devem
ser levadas em consideração para a contemplação da moralidade do próprio ato.
Toda a sua construção teórica alicerça-se sobre o princípio da “igual consideração
de interesses” (“equality principle”), razão pela qual tentaremos aqui sintetizá-la. A
primeira observação a ser feita acerca do princípio da “igual consideração” é o de
que ele reflete a visão de que os julgamentos morais, a fim de serem os mais
equânimes possíveis, não devem ser baseados em interesses particulares ou de
grupos específicos de pessoas. Exige, ao contrário, uma universalização da
premissa de que casos semelhantes devem, em princípio, ser tratados de
maneira semelhante 782.

O segundo ponto a ser destacado é que a igualdade, para o autor,


deve ser tida como uma idéia moral e não factual, pois:

[...] não existe uma razão obrigatória, do ponto de vista lógico, para
pressupormos que uma diferença factual de capacidade entre duas
pessoas justifique qualquer diferença na consideração que damos a suas
necessidades e interesses. O princípio da igualdade dos seres humanos
não é a descrição de uma suposta igualdade de fato existente entre
seres humanos: é a prescrição de como devemos tratar os seres
humanos783.

781
Foi por meio de sua obra, Animal Liberation, que tive o primeiro contato com o tema do
tratamento ético dos animais. A seriedade e complexidade de sua construção teórica permitiram
ganhos significativos de credibilidade para o movimento pró-animal em todo o mundo.
782
FRANCIONE exemplifica essa primeira observação por meio da seguinte analogia: se tenho
dois filhos, MARIA e JOÃO, e se os dois se comportam de maneira indevida de forma idêntica,
devo responder ao seu comportamento de maneira equivalente. Se decidisse punir JOÃO
restringindo sua “mesada” por uma semana e MARIA por um mês, MARIA estaria em princípio
correta ao me criticar pelo tratamento diferenciado (cf. FRANCIONE, Introduction to Animal Rights,
op.cit., p. 83).
783
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 6.

- 291 -
De fato, apesar da inegável existência de inúmeras diferenças
específicas intra-espécie (variação de atributos físicos, mentais, sensitivos,
comunicativos e psicológicos), a demanda por igualdade não requer e tampouco
se baseia em uma pretensa igualdade fática entre os seres humanos784.

O ilustre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, no mesmo


sentido, afirma que:

Sabe-se que entre as pessoas há diferenças óbvias, perceptíveis a olhos


vistos, as quais, todavia, não poderiam ser, em quaisquer casos,
erigidas, validamente, em critérios distintivos justificadores de tratamento
jurídicos díspares. Assim, ‘exempli gratia’, são nitidamente diferenciáveis
os homens altos dos homens de baixa estatura. Poderia a lei estabelecer
– em função desta desigualdade evidente – que os indivíduos altos têm
direito a realizar contratos de compra e venda, sendo defeso o uso deste
instituto jurídico às pessoas de amesquinhado tamanho? Pois, sem
dúvida, qualquer intérprete, fosse ele doutor da maior suposição ou leigo
de escassas luzes, responderia pela negativa. Qual a razão empecedora
do discrímen, no caso excogitado, se é certo que uns e outros diferem
incontestavelmente? Seria, porventura, a circunstância de que a estatura
é fator em si mesmo inidôneo juridicamente para servir como critério de
desequiparação? 785

O “sexismo” e o “racismo” são exemplos de teorias “não-igualitárias”


que adotam justamente a posição de que algumas desigualdades factuais
específicas (tais como o sexo e a cor da pele) justificariam o tratamento desigual
e diferenciado entre determinados grupos humanos (no caso, entre homens e
mulheres e homens brancos e homens negros). A defesa teórica contra tais

784
No mesmo exemplo de JOÃO e MARIA relatado por FRANCIONE, poderíamos exemplificar
essa segunda abordagem por meio do seguinte caso: suponhamos que MARIA tenha uma enorme
facilidade e talento para a matemática enquanto que o talento de JOÃO na mesma matéria seja
apenas moderado. Apesar da habilidade superior de MARIA na matemática poder vir a lhe ser
extremamente útil para seu futuro profissional em carreiras em que ela seja mais exigida, e isso
poderá até mesmo vir a garantir uma maior remuneração, com relação a JOÃO, se também quiser
seguir a mesma carreira (maior talento, maior remuneração), não poderá servir de base para
justificar tratamento ético diferenciado entre eles (cf. FRANCIONE, op.cit., p. 83).
785
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 16-7.

- 292 -
posições, segundo o autor, não deve se basear no fato de que as mulheres são
factualmente idênticas aos homens ou que brancos são factualmente idênticos a
negros, pois, apesar de tudo indicar que assim o seja, uma eventual comprovação
de diferenças de capacidades entre esses grupos conduziria à absurda
legitimação destas práticas discriminatórias. Os oponentes do racismo e do
sexismo, ao contrário, devem se pautar por defender que o conceito de
“igualdade” não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física ou
de quaisquer outras categorias fáticas. É, portanto, uma implicação direta do
princípio da igualdade que a nossa preocupação com outrem não dependa de
quaisquer características físicas ou de quaisquer habilidades factuais que
possuam.

THOMAS JEFFERSON, responsável pela redação do princípio da


igualdade dos homens na Declaração de Independência Americana786 já percebia
esse ponto ao redigir que:

Tenha certeza de que ninguém deseja de modo mais sincero do que eu


ver a completa refutação das dúvidas que eu próprio nutri e expressei
acerca do grau de inteligência que lhes foi conferido pela natureza
[negros] e chegar à conclusão de que estão no mesmo nível que nós. [...]
porém, o grau de seu talento, seja qual for, não se constitui na medida
de seus direitos. O fato de Isaac Newton ter sido superior a outros
indivíduos, em termos de inteligência, não o tornou senhor das
propriedades, nem das pessoas deles 787.

A pergunta que não se cala é: partindo-se do pressuposto de que a


igualdade é uma idéia moral e não factual (o que me parece bastante razoável), e
se com base neste posicionamento, podemos validamente refutar o racismo e o
sexismo como manifestações inaceitáveis de desigualdade; e ainda, se por esta
mesma razão, a posse de um maior ou menor nível de inteligência não pode
786
Enquanto a Declaração de Independência proclamava: “We hold these truths to be self evident,
that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain inalienable
rights, that among these are life, liberty, and the pursuit of happiness” milhões de pessoas ainda
eram mantidas como escravas.
787
JEFFERSON, Carta a Henry Gregoire, datada de 25 de fevereiro de 1809, apud SINGER,
Libertação Animal, op.cit., p. 7)

- 293 -
servir de base para a concessão de maior ou menor proteção, ou, em outras
palavras, não legitima que um ser humano utilize outros como meros meios para
suas finalidades particulares, como podemos justificar a exploração de não-
humanos com base no mesmo argumento?

Um racista viola o princípio da igualdade por conceder maior peso


aos interesses dos membros de sua própria “raça”788 em todos os momentos em
que há um conflito entre estes interesses e os daqueles pertencentes a outras
“raças”. Os sexistas agem da mesma forma ao privilegiarem os interesses de
membros de seu próprio sexo. O padrão é o mesmo para os “especistas” quando
sobrepõem os seus próprios interesses aos de outros seres vivos porque de
espécies diferentes. Na mesma linha de raciocínio, já em 1906 J. HOWARD
MOORE (1862-1916) afirmava:

The complete denial by human animals of ethical relations to the rest of


the animal world is a phenomenon not differing either in character of
cause form the denial of ethical relations by a tribe, people, or race of
human beings to the rest of the human world. The provincialism of Jews
towards non-Jews, of Greeks towards non-Greeks, of Romans toward
non-Romans, of Moslems toward non-Moslems, and of Caucasian toward
non-Caucasians, is not one thing, and the provincialism of human beings
toward non-human beings another. They are all manifestations of the
same thing.789

A primeira objeção que poderia ser levantada contra a proposição de


SINGER é a chamada “analogia de TAYLOR”. Como já mencionado

788
A genética baniu de vez o conceito tradicional de raça. Indivíduos pertencentes às mais
diversas etnias diferem tanto entre si como dentro de suas próprias etnias. O professor SÉRGIO
DANILO PENA, titular da cadeira de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais
esclarece que: “todos os estudos genômicos realizados até agora têm destruído completamente a
noção de raças. Em outras palavras, a espécie humana é jovem demais para ter tido tempo de se
diferenciar em raças. Do ponto de vista genômico, raças não existem” (Disponível em:
<http://www.gene.com.br/Dr_sergio/publica-atuais05.htm>. Acesso em 14 out. 2005). Parece-nos
portanto, que o conceito de raça está em franca decadência, sobrevivendo apenas sob a
roupagem etnológica de coletividade de indivíduos que se diferenciam por sua especificidade
sociocultural (língua, religião, costumes...).
789
MOORE, Howard J. Universal Kinship, London, 1906. Disponível em: <http://www.animal-rights-
library.com>. Acesso em 10 nov. 2005.

- 294 -
anteriormente, no século XVIII, THOMAS TAYLOR, filósofo de Cambridge,
parodiou o livro de MARY WOLLSTONECRAFT, Vindication of the Rights of
Women (1792), afirmando que acaso verdadeiros, os seus argumentos de
emancipação feminina também deveriam ser aplicados a cães, gatos, e outros
animais. O que se poderia construir a partir da “analogia de TAYLOR” é que,
muito embora homens e mulheres sejam efetivamente similares e, por
conseguinte, devam possuir os mesmos direitos, homens e animais são diferentes
e, conseqüentemente, não poderiam possuir os mesmos direitos.

Tal raciocínio, no entanto, não resiste à confrontação com a tese da


igualdade como idéia moral. Conforme assinala SINGER, há, de fato, diferenças
importantes entre homens e outros animais, nada impedindo que tais diferenças
conduzam à concessão de diferentes garantias e direitos. A extensão do princípio
da igualdade de um dado grupo para outro não implica que necessitemos tratá-los
de maneira absolutamente idêntica790. Neste ponto SINGER, inteligentemente,
desdobra o princípio da igualdade para o da “igual consideração de interesses“:

O princípio básico da igualdade se revela como igualdade de


consideração, e a igual consideração por seres diferentes entre si pode
eventualmente conduzir a tratamentos diferenciados e a direitos
diferenciados.”791

Na passagem de BENTHAM, que serve de intróito ao presente


trabalho, o autor aponta a capacidade de sofrer com a característica vital que
intitularia os indivíduos ao direito de igual consideração. Para SINGER esta seria
efetivamente uma boa escolha, pois apesar de também recair sobre uma
capacidade factual, se a igualdade por acaso se basear em alguma característica
compartilhada por seres humanos e animais, esta característica deve ser de tal
ordem básica que possa ser erigida como um verdadeiro denominador comum
entre todos os seres sencientes:

790
Tal como os homens não possuem o direito de praticar o aborto, onde ele é permitido, por uma
incapacidade intrínseca, pelo mesmo motivo seria ilógico se pensar em direitos de participação
política para animais.
791
SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 75, tradução nossa.

- 295 -
Se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para
deixarmos de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do
ser, o princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado
em pé de igualdade com sofrimentos semelhantes […] 792.

De ARISTÓTELES a DESCARTES, de DESCARTES a


HEIDEGGER, LEVINAS e LACAN, a questão do animal é colocada em termos de
pensamento e/ou linguagem, em um sistema que é no fundo, determinado sob as
bases de poderes, capacidades ou atributos (“pouvoirs-avoirs”). A posição de
BENTHAM torna-se diferente das demais porque é colocada sob o prisma de uma
certa passividade, na medida em que, como afirma DERRIDA, o sofrimento é um
“não-poder”.

A contraposição mais simplória à afirmação de SINGER consiste em


se negar aos animais a capacidade de sofrer e de sentir dor. “De fato, os animais
não-humanos sentem dor? Como podemos saber se o fazem? O único fato certo
é que sabemos que, efetivamente, nós sentimos dor. A dor é um estado de
consciência, um ‘evento mental’ e, como tal, não pode ser observado.
Comportamentos como contorções, gritos, ou o afastar a mão de um cigarro
aceso não constituem a dor em si.793” Infelizmente, não há um “medidor de
sofrimento”. Na maior parte das vezes só podemos inferir que outros sentem dor
por esses sinais externos. Se é justificável inferir que outros seres humanos
sentem dor tal qual sentimos, tal fato também seria justificável para outros
animais, já que quase todos estes sinais pode ser igualmente observados neles.
A par deste fato, os animais possuem sistemas nervosos complexos
(especialmente mamíferos e aves), bastante similares aos nossos, que
respondem fisiologicamente como os nossos, quando em situações em que
sentiríamos dor. Nesta linha, LUDO J. HELLEBRENKERS, doutor e professor de
Medicina Veterinária pela Faculdade de Utrecht afirma que:

A questão permanece: que evidência temos para afirmar que os animais


sentem dor como uma ‘experiência sensorial ou emocional
desagradável’? Quando consideramos a anatomia do sistema nervoso

792
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 10.
793
Ibid, p. 12.

- 296 -
central com a organização do cérebro, espinha dorsal e a rede do
sistema nervoso periférico, juntamente com suas características
neurofisiológicas, existem grandes semelhanças entre o ser humano e
os animais. A principal diferença está no fato de os seres humanos, ao
contrário dos animais, poderem relatar sua experiência dolorosa
verbalmente. Apesar disso, aceita-se, hoje em dia, que os animais de
fato sentem dor. As pesquisas mostraram que muitos dos padrões de
resposta (quantificáveis) dos animais a estímulos dolorosos são
semelhantes aos que ocorrem nos seres humanos que passam por
situações de dor. No homem, como nos animais, a freqüência cardíaca
aumenta, ocorre uma hipertensão (temporária), e as alterações nos
níveis plasmáticos dos diferentes hormônios de estresse demonstram
padrões semelhantes. [...] Para evitar que o sofrimento animal passe
despercebido e, conseqüentemente, não seja tratado, no mundo da
pesquisa animal tem sido habitual, há muito tempo, aplicar o Princípio da
Analogia. A base desse princípio é admitir que as intervenções
(cirúrgicas) consideradas dolorosas nos seres humanos sejam dolorosas
também nos animais. Quando esse princípio é aplicado na decisão
referente ao desenvolvimento do protocolo anestésico ou analgésico, é
ao animal que tem o ‘benefício da dúvida’ e, como conseqüência, sob o
reconhecimento da presença da dor, é obrigatória a realização do alívio
adequado.794

Além disso, a dor, conforme já mencionado anteriormente, possui


uma utilidade biológica evidente, na medida em que aumenta a chance de
sobrevivência de uma espécie, pois faz com que sejam evitados danos físicos
evidentes. Desta maneira, argumenta SINGER que:

Certamente não é razoável supor que sistemas nervosos virtualmente


idênticos do ponto de vista fisiológico (tendo uma origem comum e
funções evolucionárias comuns), que resultam em formas semelhantes
de comportamentos em circunstâncias análogas, devam, de fato, operar

794
HELLEBREKERS, Ludo J. A Dor em Animais. In: HELLEBREKERS, Ludo J. A Dor em Animais.
Barueri, SP: Manole, 2002. p. 12-3.

- 297 -
de uma maneira inteiramente diferente no nível das sensações
subjetivas 795.

Outra contraposição bastante simplória é a que denomino de


argumento da “cadeia alimentar”. Conforme narra SINGER, em sua autobiografia,
BENJAMIN FRANKLIN narra que sua abstinência de carne animal chegou ao fim
quando observava alguns amigos preparando um peixe para fritá-lo. Quando o
peixe foi aberto, descobriu-se que tinha um outro peixe em seu estômago.
FRANKLIN então pensou, se os animais se comem entre si, não haveria razão
pela qual também não pudéssemos comê-los. De acordo com SINGER,
FRANKLIN pelo menos foi honesto ao confessar que só teria feito tal observação
após o peixe estar na frigideira e com um cheiro “delicioso”. A aceitação da teoria
de FRANKLIN constitui um testemunho mais eloqüente do gosto por peixe frito
que da capacidade de raciocínio, pois:

Em primeiro lugar, a maior parte dos animais que mata em busca de


alimento não conseguiria sobreviver se não o fizesse, enquanto nós não
temos necessidade de comer carne animal. Depois, é estranho que os
seres humanos, que normalmente encaram o comportamento animal
como “selvagem”, venham a usar, sempre que lhes convém, um
argumento moral do qual se pode inferir que devemos buscar orientação
moral nos animais. O ponto fundamental, porém, é o de que os animais
não são capazes de refletir sobre as alternativas que se apresentam a
eles, nem de ponderar sobre a ética de sua alimentação. Portanto, é
impossível considerar os animais responsáveis pelo que fazem, ou
concluir que, pelo fato de matarem, “merecem” ser tratados da mesma
maneira. Por outro lado, os que estão lendo estas palavras devem refletir
sobre a justificabilidade de seus hábitos alimentares. Não se pode fugir à

795
O autor traz nas páginas 11 a 17 vários argumentos científicos no sentido de que é irrefutável
que determinados animais têm plena capacidade sensitiva e, neste sentido são, portanto, titulares
de interesses abarcados pelo princípio da igual consideração de interesses. Os neurocientistas
mais proeminentes corroboram tal assertiva. SINGER traz nas páginas 14 e 15 a posição de
LORD BRAIN e de RICHARD SERJEANT, assim como os estudos de STEPHEN WALKER,
Animal Thoughts (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1983); DONALD GRIFFIN, Animal
Thinking (Cambridge: Harvard University Press, 1984) e MARIAN STAMP DAWKINS, Animal
Suffering: The Science of Animal Welfare (Londres: Chapman).

- 298 -
responsabilidade através da imitação de seres que não são capazes de
fazer essa opção.796

O mesmo erro incidiria aquele, segundo SINGER, que quisesse


extrair do mesmo argumento a asserção de uma pretensa “sobrevivência do mais
forte”:

O erro factual está no pressuposto de que o nosso consumo de carne


animal faz parte do processo evolutivo natural. Isso poderia ser
verdadeiro no caso de algumas culturas primitivas que ainda caçam para
obter alimento, mas não tem nada a ver com a produção em massa de
animais nas fazendas industriais. Suponhamos, porém, que caçássemos
para conseguir alimento e que isto fizesse parte de algum processo
evolutivo natural. Ainda haveria um erro de raciocínio no pressupor que,
por ser natural, esse processo é correto. É, sem dúvida, “natural” que as
mulheres gerem uma criança a cada ano ou dois, da puberdade à
menopausa, mas isto não significa que seja errado interferir neste
processo. Precisamos conhecer as leis naturais que nos afetam para
podermos avaliar as conseqüências do que fazemos; mas não temos de
admitir que a forma natural de fazer alguma coisa é incapaz de ser
aperfeiçoada.797

Alguns, todavia, entendem ser importante o fato de se utilizar de


uma linguagem desenvolvida e articulada, especialmente no que tange ao relato
da experiência da dor, ou seja, consideram dor e linguagem conceitos atrelados.
Há uma linha de pensamento, originada em LUDWIG WITTGENSTEIN, que
afirma não se poder atribuir, de modo significativo, estados de consciência a
seres que não possuem linguagem. Em 1958, em suas Philosophical
Investigations, o autor formulou uma frase que ficou famosa como “o leão de
WITTGENSTEIN”: “Se um leão pudesse falar, não conseguiríamos entendê-lo”798.

796
SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 81.
797
Ibid., p. 82.
798
WITTGENSTEIN apud WOLFE, Cary. Zoontologies: The Question of the Animal. Minneapolis,
MN (EUA): University of Minnesota Press, 2003. p. 1.

- 299 -
A fórmula é: sem linguagem, sem subjetividade. Na ausência da linguagem, os
animais estariam trancafiados em um universo cartesiano de reações
automatizadas, em um procedimento de rotinas e sub-rotinas instintivas, muito
mais próximos de máquinas que pessoas, muito mais objetos que sujeitos.

A poetisa norte-americana VICKI HEARNE observa que a afirmação


de WITTGENSTEIN tem como ponto positivo a possibilidade de se perceber que
a suposta mudez do animal é mais um problema nosso que do próprio animal:

This more or less positivist position requires a fundamental assumption


that ‘meaning’ is a homogeneous, quantifiable thing, and that the
universe is dualistic in that there are only two states of meaning in it –
significant and insignificant, and further that ‘significant’ means only
‘significant to me’ […] Such positivism of meaning looks often enough like
an injunction against the pathetic fallacy, but seems to me to be quite the
opposite799.

STANLEY CAVELL, afirma que nossa tendência de enxergar na reticência do


leão de WITTGENSTEIN uma ausência de subjetividade é nada mais que “[...] um
sintoma de nosso mais absoluto terror cético em relação à existência
independente de outras mentes”800, um terror que é, em certo sentido, fruto da
falha em ser Deus.

SINGER refuta tal posicionamento, pois a linguagem pode ser


necessária para o pensamento abstrato, em alguns níveis, pelo menos; mas
estados como a dor são mais primitivos, nada tendo a ver com a linguagem.
JANE GOODALL, em seus estudos de etologia e primatologia, demonstrou à
exaustão em In The Shadow of Man que quando se trata de expressar sensações
e emoções, a linguagem pode ser menos importante do que os modos não
lingüísticos de comunicação. No mesmo sentido, segundo DERRIDA:

799
HEARNE apud WOLFE, op.cit., p. 3.
800
CAVELL apud WOLFE, op.cit., p. 2.

- 300 -
The idea according to which man is the only speaking being, in its
traditional form or in its Heideggerian form, seems to me at once
undisplaceable and highly problematic. Of course, if one defines
language is such a way that it is reserved for what we call man, what is
there to say? But if one reinscribes language in a network of possibilities
that do not merely encompass but mark it irreducibly from the inside,
everything changes. I am thinking in particular of mark in general, of the
trace, of iterability, of différeance. These possibilities or necessities,
without which there would be no language, are themselves not only
human […] And what I am proposing here should allow us to take into
account scientific knowledge about the complexity of ‘animal languages’,
genetic coding, all forms of marking within which so-called human
language, as original as it may be, does not allow us to ‘cut’ once and or
all where we would in general like to cut.801

Segundo SINGER, “a afirmação ‘Estou sentindo dor’ pode ser um


elemento de prova para a conclusão de o falante está com dor, mas não é a única
prova possível, e como as pessoas às vezes mentem, nem mesmo é a melhor
delas.”802 Por acaso negaríamos que crianças e bebês podem sofrer apesar de
não possuírem linguagem? Se a resposta for negativa é porque a linguagem,
obviamente, não pode ser tida como elemento fundamental para marcar a
existência da dor.

Os ilustres MATURANA e VARELA afirmam que o aprendizado e o


que usualmente denominamos de “experiência” são o resultado de alterações
estruturais do sistema nervoso. Ao contrário de sistemas automatizados, os
sistemas biológicos são sistemas auto-alimentadores de inteligência que,
criativamente, reproduzem a si próprios por meio do processo de mudanças
adaptativas. Por essa razão é que, segundo os autores, todos os organismos
vivos são unidades “autopoiéticas” (“continually self-producing unities”). Neste
sentido, mesmo os animais que normalmente são reputados como menos
autônomos ou “plásticos”, como os insetos sociais, são capazes de produzir
comunicação por meio de sinais químicos (“trophallaxis”). Segundo os aludidos

801
DERRIDA apud WOLFE, op.cit., p. 30.
802
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 17.

- 301 -
autores, apesar de a produção do domínio lingüístico propriamente dito ser
humana, evidências cogentes sugerem que outros animais são “capazes de
interagir conosco de maneiras ricas e variadas, inclusive se recorrendo a
domínios lingüísticos”803, sendo capazes de “fazer distinções lingüísticas”. As
categorias de linguagem e espécie são desarticuladas, e o ponto não é, pois,
determinar se os animais são capazes ou não de realizar todas as distinções
lingüísticas que nós somos capazes.

O renomado cientista cognitivo DANIEL DENNETT afirma que,


apesar de a linguagem exercer um papel muito importante na estruturação da
mente humana, a mente de uma criatura que não a possui - e não tem
necessidade de possuí-la – não pode ser considerada como não-consciente por
tal razão, pois isso necessitaria que aceitássemos o pressuposto de que:

The assumption that consciousness is a special all-or-nothing property


that sunders the universe into vastly different categories: the things that
have it … and the things that lack it. Even in our own case, we cannot
draw the line separating our conscious mental states form our
unconscious mental states… While the presence of language marks a
particularly dramatic increase in imaginative range, versatility, and self-
control … these powers do not have the further power of turning on some
special inner light that would otherwise be off.804

WILLIAM FRANKENA em artigo intitulado “The Concept of Social


Justice” propõe o princípio segundo o qual: “todos os homens devem ser tratados
como iguais, não porque são iguais, mas porque simplesmente são humanos.
São humanos porque possuem emoções e desejos, além de serem capazes de
pensar e aproveitar uma boa vida em um senso no qual os outros animais não
são capazes.”805 Para SINGER tal afirmação é altamente questionável. No que
consistiria exatamente essa “capacidade de aproveitar uma boa vida” que
somente os homens teriam? Outros animais possuem indubitavelmente emoções

803
MATURANA; VARELA apud WOLFE, op.cit. p. 38.
804
DENNET apud WOLFE, op.cit., p. 42.
805
FRANKENA apud SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 82.

- 302 -
e desejos próprios e parecem igualmente ser capazes de aproveitarem uma “boa
vida”:

Surely every sentient being is capable of leading a life that is happier or


less miserable than some alternative life, and hence has a claim to be
taken into account. In this respect, the distinction between humans and
nonhumans is not a sharp division, but rather a continuum along which
we move gradually, and with overlaps between the species, from simple
capacities for enjoyment and satisfaction, or pain and suffering, to more
complex ones 806.

Nesta linha, segundo o filósofo, a mesma quantidade de dor é


igualmente ruim em humanos ou não-humanos: “Se os animais sentem dor, não
há justificativa moral para considerar que a dor (ou o prazer) que os animais
sentem seja menos importante que a mesma quantidade de dor (ou prazer)
sentida por seres humanos”807. O autor ilustra esta questão com a analogia que
poderia ser feita entre um cavalo e um bebê. Supondo que pudéssemos saber
qual pancada causaria a mesma quantidade de dor em um bebê e em um cavalo,
“a menos que sejamos especistas, deveremos considerar igualmente errado
infligir gratuitamente a mesma dor a um cavalo.”808

No que se refere à dor, SINGER utiliza a analogia aos “casos


marginais”. Neste tocante, bebês, adultos humanos com severos problemas
mentais e animais não-humanos na mesma categoria. Há que se fazer a distinção
necessária, segundo o referido autor, no sentido de que os seres humanos

806
SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 82.
807
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 17.
808
“Se der um tapa com a mão aberta na anca de um cavalo, ele pode sobressaltar-se, mas
provavelmente não sentirá grande dor. Sua pele é grossa o suficiente para protegê-lo contra um
simples tapa. Contudo, se eu der o mesmo tapa num bebê, ele vai chorar e é quase certo que
sinta uma grande dor, pois tem a pele mais sensível. Portanto, é pior dar um tapa num bebê do
que num cavalo, desde que os dois tapas sejam dados com a mesma força. Mas deve existir
algum tipo de golpe – não sei exatamente qual seria, mas, digamos, um golpe com um pedaço de
pau – que fará o cavalo sentir tanta dor quanto sentiu a criança ao receber um simples tapa. É isso
o que quero dizer com ‘igual quantidade de dor’; e, se achamos errado infligir tanta dor a um bebê
sem nenhum motivo, então, a menos que sejamos especistas, devemos achar igualmente errado
infligir, sem motivo algum, a mesma quantidade de dor a um cavalo” (SINGER, Ética Prática,
op.cit., p. 69).

- 303 -
adultos possuem determinadas capacidades mentais que os fazem sofrer por
antecipação, em um processo de sofrimento psicológico. Por essa razão, talvez
seja melhor, caso seja imprescindível realizar uma experiência com cobaias, que
as cobaias sejam animais não-humanos que, em geral, não gozam dessa
capacidade (afirmação que merece certa restrição). Todavia, esse argumento leva
a que bebês humanos – órfãos talvez – ou seres humanos severamente
retardados também possam igualmente ser usados nas mesmas experiências,
pois também não fazem a menor idéia do que lhes acontecerá:

Portanto, se quisermos usá-lo para justificar experiências em animais


não-humanos, temos de nos perguntar se também estamos dispostos a
admitir que experiências sejam feitas em bebês e adultos retardados.
Porém se fizéssemos uma distinção entre os animais e seres humanos,
em que base poderíamos fazê-la, a não ser em uma descarada – e
moralmente indefensável – preferência por membros de nossa própria
espécie? 809

Na maior parte das vezes, as pessoas dão respostas meramente


evasivas a esta indagação. A maior parte dos filósofos tentam achar
características específicas que nos distinguiriam dos demais animais, tentando,
simultaneamente, não abandonar essas categorias “marginais” de humanos. Essa
linha parece flagrantemente inadequada na medida em que encara a igualdade
humana e a desigualdade animal não como faces da mesma moeda, mas como
realidades totalmente separadas. STANLEY BENN, no artigo “Egalitarianism and
Equal Consideration of Interests” defende a restrição do princípio da “igual
consideração de interesses” aos humanos por entender que:

[…] we respect the interests of men and give them priority over dogs not
insofar as they are rational, but because rationality is the human norm.
We say it is unfair to exploit the deficiencies of the imbecile who falls
short of the norm, just as it would be unfair, and not just ordinarily
dishonest, to steal from a blind man. If we do not think in this way about

809
Ibid., p. 19.

- 304 -
dogs, it is because e do not see the irrationality of the dog as a deficiency
or a handicap, but as normal for the species. The characteristics,
therefore, that distinguish the normal man from the normal dog make it
intelligible for us to talk of other men having interests and capacities, and
therefore claims, of precisely the same kind as we make on our own
behalf. But although these characteristics may provide the point of the
distinction between man and other species, the are not in fact the
qualifying conditions for membership, or the distinguishing criteria of the
class of morally considerable persons; and this is precisely because a
man does not become a member of a different species, with its own
standards of normality, by reason of not possessing these characteristics
810
.

BENN endossa SINGER no que diz respeito à falha de se eleger a


racionalidade como requisito para a “igual consideração” pois, neste caso, nada
obstaria a que usássemos humanos “marginais” para o mesmo propósito para o
qual atualmente usamos cães e ratos. Todavia, BENN propõe uma justificativa
para a diferenciação de consideração de interesses baseada no fato de que muito
embora um “deficiente mental” possa não ter características superiores às de um
cão, tal fato não o torna um membro de uma espécie diferente, tal qual o cão é.
Assim, segundo o autor, seria “injusto” usar o deficiente humano tal qual se usa
um cão. SINGER questiona esse posicionamento, afirmando ser extremamente
difícil de não enxergar nele uma mera defesa de preferência dos interesses de
nossa própria espécie pelo só fato de serem justamente membros da nossa
própria espécie. Tanto o deficiente humano quanto o cão não são responsáveis
pelo seu nível de desenvolvimento mental. A esse respeito, tomando por base a
odiosa discriminação racial entre brancos e negros, sugere que façamos o
seguinte exercício hipotético: assuma-se que tenha sido provado que existe uma
diferença factual no quociente de inteligência médio, ou mesmo normal, entre
duas diferentes etnias, digamos entre brancos e negros. Substitua então o termo
“homem” por “branco” e cada ocorrência do vocábulo “cão” por “negro” na
passagem supracitada. Substitua ainda “racionalidade” por “Q.I. elevado” e
quando BENN fala em “imbecis”, substituta a palavra por “brancos com Q.I.

810
BENN apud SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 84.

- 305 -
abaixo da média” (branca). Finalmente troque “raça” por “espécie”. Agora releia o
texto. Ele se torna uma defesa intransigente de uma rígida divisão entre brancos e
negros, baseada no fator inteligência. A passagem revisada é, obviamente,
absurda, pois já se teve oportunidade de verificar que a defesa da igualdade é
uma defesa moral e não factual. Todavia, o ponto é que na passagem original
BENN estava defendendo uma igualmente rígida divisão na quantidade de
consideração devida a membros de espécies distintas. Se esta primeira leitura
não nos atinge como sendo absurda, tal ocorre com a segunda. Isto se deve ao
fato de que, apesar de não sermos racistas, a maior parte de nós é especista.
BENN permanece como um alerta a respeito da facilidade com que as mentes
mais esclarecidas podem cair vitimadas por uma ideologia que, apesar de
dominante, é absolutamente discriminatória.

SINGER sustenta, entretanto, que a argumentação contra o abate


de animais é diversa da argumentação com relação à inflição de dor e sofrimento.
Segundo ele, as vidas têm, de fato, pesos e valores diferentes de acordo com as
capacidades que um ser venha a possuir tais como autoconsciência, pensamento
abstrato, planejamento do futuro, ações complexas de comunicação, etc... Para a
questão da dor, todas essas capacidades/habilidades são indiferentes, ou seja, a
dor é dor, sejam quais forem os atributos do ser que as sente. Já a questão de se
tirar a vida pode levar em conta esses fatores. SINGER sustenta que, com
exceção de algumas espécies (especialmente os grandes primatas), os animais
não seriam autoconscientes e, em razão disto, não possuiriam uma “existência
mental continuada”, nem aspirações com relação ao futuro. Deste modo, porque
humanos são autoconscientes e têm expectativas futuras, seria, via de regra,
“particularmente ruim” tirar a vida de um de nós pelo fato de que não haveria
como “substituir uma vida humana por outra”.

Para ilustrar tal questão, cita o seguinte exemplo:

Se tivéssemos de escolher entre salvar a vida de um ser humano normal


e a de um deficiente mental, provavelmente optaríamos por salvar a vida
do ser humano normal; mas, se tivéssemos que escolher entre acabar
com a dor de um ser humano normal e de um deficiente mental –
supondo que ambos tivessem sofrido ferimentos dolorosos , mas

- 306 -
superficiais, e dispuséssemos de apenas uma dose de analgésico – não
é tão claro a quem deveríamos escolher. O mesmo acontece quando
consideramos outras espécies.”811 Continua o autor: “Tal como a maioria
dos seres humanos é especista por dispor-se a causar dor a animais por
razões pelas quais não causaria dor similar a seres humanos, a maioria
dos seres humanos é especista , também, por dispor-se a matar um
animal nas mesmas circunstâncias em que se negaria a matar um ser
humano. Todavia, temos de avançar com muita cautela neste terreno,
pois as pessoas têm pontos de vista bastante diferentes sobre as
circunstâncias sob as quais é legítimo matar seres humanos, como
atestam os contínuos debates sobre aborto e eutanásia.812

Para o autor, no que se refere à vedação de não matar, há uma


primeira corrente que defende o ponto de vista da “sacralidade da vida humana”,
sendo por isto sempre errado tirar uma vida humana inocente. A crença de que a
vida humana, e tão-somente ela é sacrossanta, é uma forma de especismo na
medida em que a sua qualificação como especial em relação a outras formas de
vida é arbitrária e puramente subjetiva. As pessoas que sustentam esse
pensamento entendem ser incorreto tirar a vida de um feto, mas não de um
animal não-humano:

A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos do que alegam
ter ele ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da espécie
Homo sapiens, ao passo que os chimpanzés, os cães, os porcos, não o
são. Mas, usa essa diferença como base para conceder direito à vida ao
bebê e não a outros animais e, naturalmente, puro especismo. É
exatamente esse tipo de diferença arbitrária que o racista mais grosseiro
e declarado usa, na tentativa de justificar a discriminação racial.813

811
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 24.
812
Ibid., p. 20.
813
Ibid, p. 21.

- 307 -
Apesar de sustentar que somos especistas ao permitir o abate de
animais por razões em que não mataríamos um ser humano, SINGER não chega
ao ponto de argumentar que, para evitar o especismo, precisemos:

[...] sustentar que é tão errado matar um cão quanto matar um ser
humano em plena posse de suas faculdades. A única posição
irremediavelmente especista é a que tenta fazer a fronteira do direito à
vida correr exatamente paralela à fronteira de nossa própria espécie. [...]
Para evitarmos o especismo, temos de admitir que seres semelhantes,
em todos os aspectos relevantes, tenham direito semelhante à vida. O
mero fato de um ser pertencer à nossa própria espécie biológica não
pode constituir em critério moralmente relevante para que se tenha esse
direito.814

O autor encampa a tese segundo a qual, em linhas gerais, seria, de


fato, pior matar um ser humano que um camundongo, pois os seres humanos
possuem um conjunto de atributos adicionais como autoconsciência plena,
planejamento do futuro, fortes laços familiares e afetivos, etc. No entanto, há
certos animais não-humanos que possuem vidas mais valiosas que determinados
seres humanos.

Um chimpanzé, um cão ou um porco, por exemplo, terão um grau


superior de autoconsciência, e uma maior capacidade de estabelecer
relações significativas com outros, do que um bebê gravemente
retardado ou alguém em estado senil avançado. Portanto, se basearmos
o direito à vida em tais características, precisaremos conceder a esses
animais um direito à vida tão ou mais válido que aquele concedido a
seres humanos retardados ou senis.815

O argumento da “sacralidade da vida” pode se desdobrar em duas


conclusões principais: (a) a primeira, de que os animais têm o direito de viver e

814
Ibid., p. 22.
815
Ibid., p. 22.

- 308 -
que cometemos uma grave ofensa moral sempre quando os matamos mesmo
quando estão velhos e sofrendo e; (b) seres humanos gravemente retardados e
senis, sem recuperação possível ou viável, não têm direito à vida e podem ser
mortos por razões triviais, tal como fazemos agora com os animais. Para
SINGER, nenhuma das duas interpretações é satisfatória para evitar o
especismo. O filósofo defende a adoção de uma posição intermediária, segundo a
qual:

[...] precisamos de uma posição intermediária, que evite o especismo,


mas que não torne a vida de seres humanos retardados ou senis tão
insignificantes quanto a atual vida de porcos e cães, ou torne a vida de
cães tão sacrossanta que pensássemos ser errado não livrá-los de uma
situação irreversivelmente miserável.”816 Essa posição intermediária
poderia ser sintetizada nos seguintes termos: “devemos proporcionar o
mesmo respeito à vida dos animais que conferimos à vida dos seres
humanos com nível mental semelhante”.817

Para SINGER, isto levaria à condenação das práticas de criação


industrial e intensiva de animais. Segundo o autor, a nossa prática de criação e
abate de animais para alimentação é claramente uma instância de sacrifício de
interesses vitais de incontáveis seres sencientes visando tão somente à
satisfação de nossos interesses alimentares, que tendo em vista as alternativas
existentes com relação à dispensabilidade da carne, seriam triviais. Deveríamos
parar com tais práticas e cada um de nós possuiria um dever moral de não dar
suporte a elas, razão pela qual deveríamos nos tornar vegetarianos818.

Para o autor, portanto, as diferenças entre humanos e animais não


acarretam prejuízo para que se considere que entre eles interceda o princípio
básico da igualdade:
816
Ibid., p. 23.
817
Ibid., p. 24.
818
Muito embora SINGER demonstre que uma dieta vegetariana traria benefícios de ordem
econômica (maior produção de grãos seria mais sustentável para a geração de alimentos para a
população global que um criação intensiva de animais) e de saúde, além de proporcionar menos
sofrimento aos animais de abate, vê dificuldades de superar o problema, ainda que meramente
hipotético, de se matar sem dor ou sofrimento, acaso isso fosse viável.

- 309 -
A extensão do princípio básico da igualdade de um grupo para outro não
implica que devamos tratar os dois grupos exatamente da mesma
maneira, ou que devamos conceder-lhes os mesmos direitos. [...] O
princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico,
mas sim, igual consideração. A igual consideração por seres diferentes
pode levar a tratamentos e direitos distintos.

Ao contrário de BENTHAM e de outros utilitaristas clássicos que


sustentavam que o “prazer” seria o valor primário a ser perseguido pelos
indivíduos, SINGER constrói uma concepção particularizada do utilitarismo a que
denomina de utilitarismo preferencial, segundo a qual a “preferência de se
continuar vivendo” deve pautar as nossas ações, pois se um indivíduo a possui,
as ações contrárias a ela devem ser tidas presumidamente como erradas. O que
é intrinsecamente valioso é o que, em um balanço, maximiza os interesses
daqueles afetados por uma determinada ação. Todavia, para que se possua o
referido interesse, é pressuposto que este indivíduo possa elaborar e reter uma
concepção acerca de sua própria mortalidade, o que, em princípio, tornaria
extremamente difícil sua aplicação para as hipóteses “marginais” e dos “pacientes
morais”. Para SINGER, via de regra, os animais têm um interesse direto em não
sofrerem, mas não possuiriam um interesse em continuar vivendo ou em não ser
tratado como recursos dos seres humanos.

Interessante também perceber que apesar de o discurso de SINGER


poder ser sintetizado no sentido de que os animais sencientes possuiriam ao
menos o “direito” à “igual consideração de interesses”, ele não chega a ser
partidário da linguagem dos “direitos” para tratar a questão animal. Isso é em
parte justificado pela constatação de que os utilitaristas, em sua maior parte, não
são afeitos à linguagem dos direitos para tratar os problemas éticos. Entendem
que os “direitos” se apresentam como verdadeiros “muros de proteção” invioláveis
em torno de interesses, que, dadas as circunstâncias, poderiam ser superados
em função da maximização do bem-estar agregado. Os utilitaristas, em especial
os utilitaristas diretos, sustentam que somente as conseqüências dos atos
importam, e que poderíamos romper a barreira erigida pelos “direitos” toda vez
que as conseqüências demandarem. O utilitarismo indireto se aproxima mais de

- 310 -
uma visão de “direitos”, pois, como se viu, de acordo com ele, devemos nos
pautar sempre por seguir uma norma abstratamente formulada ainda que as
conseqüências imediatas derivadas do ato sejam indesejáveis.

Na verdade, assim o autor coloca a questão:

Why is it surprising that I have little to say about the nature of rights? It
would only be surprising to one who assumes that my case for animal
liberation is based upon rights to animals. But this is not my position at
all. I have little to say about rights because rights are not important to my
argument. My argument is based on the principle of equality, which I do
have a quite a lot to say about. My basic moral position (as my emphasis
on pleasure and pain and my quoting Benhtam might have led [readers]
to suspect) is utilitarian. I make very little use of the word “rights“ in
Animal Liberation, and I could easily have dispensed with it altogether. I
think that the only right I ever attribute to animals is the ‘right to equal
consideration of interests, and anything that is expressed by talking of
such a right could equally well be expressed by the assertion that
animals´interests ought to be given equal consideration with the like
interests of humans. (With the benefit of handsihgt, I regret that I did
allow the concept of a right to intrude into my work so unnecessarily at
this point; it would have avoided misunderstanding if I had not made this
concession to popular moral rhetoric) 819.

H.L.A. HART critica a posição de SINGER afirmando que a sua


adoção conduziria ao mesmo problema identificado no utilitarismo clássico.
Pesadas todas as preferências envolvidas de forma equânime, se porventura
descobríssemos que ao matar “X” aperfeiçoaríamos o balanço agregado de
satisfação, é então o que deveríamos fazer820. Por esta visão, os indivíduos
continuariam a ser receptáculos, tal como na orientação “hedonista”, com a
diferença que desta vez seriam “preenchidos” com preferências e não prazeres ou
sofrimentos. Caberiam, pois, as mesmas críticas formuladas anteriormente, no

819
SINGER, Peter. “The Parable of the Fox and the Unliberated Animals”, Ethics 88, n. 2, jan.
1978. p. 122.
820
HART, H.L.A. “Death and Utility”, The New York Review of Books, n. 8, nov.1980. p. 30.

- 311 -
sentido de que a construção falharia no teste de conformidade às nossas
intuições contrárias a se matar um “agente moral”.

A subordinação do princípio da “igual consideração de interesses” ao


princípio da “utilidade” geraria a inconsistência no sentido de que levaria a que a
igualdade, ou desigualdade, dos interesses de dois indivíduos, “A” e “B”, não
dependesse do quão importante estes interesses seriam para eles mas, sim, de
como o interesse de terceiros seria por eles afetado. O resultado disto seria que
os interesses de “A” e “B” poderiam em um dado momento ser tidos como iguais e
em outros desiguais em função do interesse de outros indivíduos e não deles
próprios. Haveria uma distorção do princípio da igualdade como princípio
substantivo e não meramente formal. Em suma, tal crítica quer explicitar a
dificuldade de encaixe do princípio da “igual consideração de interesses” dentro
do “utilitarismo preferencial”.

O problema central parece ser que o princípio da utilidade pode


sancionar condutas extremamente nefastas aos interesses de um determinado
indivíduo, que, neste sentido, poderia ser afetado de maneiras realmente
impactantes (tendo como exemplo máximo a sua morte), se estas condutas
trazem uma melhoria real aos resultados agregados do balanço entre a felicidade
e sofrimento. Apesar de SINGER condenar de forma veemente o sexismo, o
racismo, e outras formas análogas de preconceito, o princípio da “igual
consideração de interesses” não resolve por completo a questão atinente ao
especismo, pois ainda que os interesses sejam computados de forma equânime,
poderiam, em tese, existir hipóteses nas quais a distribuição de bens a
determinado grupo dominante poderia ser justificada com base no fato de que isto
traria as melhores conseqüências gerais para a maximização do bem agregado.
Na opinião de FRANCIONE821, apesar de SINGER condenar a maior parte dos
experimentos com animais, ele assim se posiciona pois pensa que, em sua vasta
maioria, os experimentos não produzem benefícios suficientes que justifiquem o
sofrimento animal por elas gerado. Todavia, sua teoria não pode, e não consegue,
servir de obstáculo a toda sorte de experimentação. Se um determinado uso de
animal fosse levar de forma direta à cura de uma doença que afeta muitos seres

821
FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 14.

- 312 -
humanos, SINGER aprovaria o experimento. O mesmo se poderia dizer se o
objeto da pesquisa fosse um ser humano. A relação que o referido filósofo faz
entre senciência, autoconsciência e interesses é, pois, problemática em alguns
aspectos importantes.

Muito embora o arsenal teórico de SINGER seja bastante


consistente, há o perigo de ser interpretado no sentido de que animais não
deixariam de ser “recursos substituíveis”. Como se viu, o autor sustenta que, por
não serem autoconscientes, os animais não teriam um interesse específico em ter
uma vida continuada e a morte, neste sentido, não lhe traria prejuízo por si
mesma. A morte, todavia, é o maior dano que um ser senciente pode sofrer, e a
senciência implica logicamente em um interesse de se ter uma existência
continuada. De acordo com FRANCIONE,

Ser senciente significa ter um bem-estar experimental. Neste sentido,


todos os seres sencientes têm um interesse não somente na qualidade
de suas vidas, mas também na quantidade delas. Animais podem não
possuir pensamentos abstratos sobre o número de anos que irão viver,
mas como conseqüência de possuírem um interesse de não-sofrer e de
experimentar prazer, têm um interesse em permanecer vivos. Eles
preferem ou desejam permanecer vivos. A senciência não é um fim em si
mesma. Seres sencientes utilizam sensações de dor e sofrimento para
escapar a situações que ameaçam suas vidas e sensações de prazer
para perseguir situações que incrementam seu bem-estar. [...] Negar que
um ser que desenvolveu uma consciência sobre a dor e o prazer não
tem interesse em permanecer vivo é dizer que seres conscientes que
não têm interesse em permanecer conscientes, uma posição bastante
peculiar a ser defendida. 822

Além disso, apesar de um cão poder experimentar um interesse em


viver de modo diverso do que ocorre com um ser humano, isso não significa que
seja indiferente ao que lhe acontece. Se admitimos que pode sentir dor,
admitimos também que para que a dor exista, alguma consciência necessita
existir para que possa percebê-la e para que opte por não experimentá-la. Assim
822
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 137, tradução nossa.

- 313 -
sendo, difícil é sustentar que a grande parte dos animais não seja, ao menos em
certo nível, consciente.

Como também afirma FRANCIONE:

Dizer que um animal é autoconsciente não significa, necessariamente,


que o animal possua uma representação visual de si próprio. Assim, o
fato de que cães não se reconheçam em testes de espelho não prova
que cães não são autoconscientes ou que não possam reconhecer a si
próprios. [...] Eu posso me reconhecer por meio do reflexo de uma
imagem em um espelho, ela (cão) pode reconhecer-se por meio do
olfato. Podem existir diferenças pelo modo com que reconhecemos a nós
mesmos, mas isso não implica que a autoconsciência é algo daquilo que
somente homens são capazes. [...] Da mesma maneira, a asserção de
que a maioria dos animais não é autoconsciente por não possuir um
senso de representação da consciência ou um senso autobiográfico
ignora o fato de que a autoconsciência em humanos não precisa ser
representacional ou autobiográfica (cf. trabalho de ANTONIO DAMASIO
sobre deficientes mentais).823

Mais do que isso, se entendermos que a autoconsciência é um


requisito necessário para um ser senciente possuir um interesse na vida
protegível, então seríamos forçados a concluir, com base nos “casos marginais”,
que parcelas significativas da população humana não o teria e, por conseguinte,
seria apenas uma fonte de recursos. Tal como alega FRANCIONE:

As diferenças entre a autoconsciência de um ser humano e a


autoconsciência animal podem ser interessantes do ponto de vista
científico, mas são de nenhuma relevância moral para a questão de se
tratar animais e certos seres humanos deficientes como recursos para
outrem.824

823
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 139, tradução nossa.
824
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p.142, tradução nossa.

- 314 -
Apesar de algumas objeções poderem ser levantadas contra a
posição “utilitária preferencial”, há que se ressaltar que o trabalho de SINGER é
de importância capital e serve, ainda hoje, como marco teórico para o tratamento
das questões éticas referentes à condição dos animais. O embasamento teórico
de sua doutrina é realmente significativo e a maioria esmagadora de suas
ponderações é absolutamente fundada. Todavia, as razões expostas
anteriormente levam a que não consideremos suficiente a visão utilitária tal qual
proposta pelo autor, pois não dá conta de eliminar por completo a ideologia
especista, principalmente no que se refere ao problema de se matar agentes ou
pacientes morais. O respeito ao princípio da “igual consideração” não traz
garantias efetivas de que os animais serão tratados de forma igualitária se
permanecerem com o status de coisa. Não é suficiente que contemos de forma
equânime os interesses de cães e crianças se não as tratamos igualitariamente
depois de fazê-lo, além do que:

Animais, tal como humanos, têm um interesse em não sofrer de forma


alguma como recursos , por mais ‘humanitário’ que seja o tratamento a
eles dispensado. Um forma mais ‘humana’ de escravidão humana é
moralmente menos objetável que uma menos ‘humana’, mas todas as
formas de escravidão são moralmente condenáveis porque todos os
seres humanos são garantidos com um direito a não serem tratados
propriedade de outrem. Se não protegemos interesses similares dos
animais de um modo similar, falhamos ao aplicar o princípio da ‘igual
consideração’ aos seus interesses, e os retiramos da esfera de
consideração moral.825

825
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 146, tradução nossa.

- 315 -
CAPÍTULO III – A LINGUAGEM DOS DIREITOS

“[...] e o que diz o primeiro versículo? ‘O justo sente compaixão pelo


próprio rebanho.’ - ‘Compaixão!’ – Que expressão! Tem-se compaixão de
um pecador, de um malfeitor, não de um animal inocente e fiel, que
freqüentemente provê o alimento do seu dono e não recebe nada em
troca a não ser uma forragem escassa. Compaixão!” Não compaixão,
mas justiça é o que se deve aos animais!” 826

SCHOPENHAUER

“No curso dos séculos o número de 'sujeitos de direito' tem


consideravelmente crescido. O bárbaro se transforma no peregrino, o
escravo em homem livre, depois o servo em cidadão. A distinção
arbitrária entre as raças de cor branca e preta desapareceu, a
emancipação da mulher é buscada, ela usufrui atualmente da liberdade
do seu salário e pode exercer certas funções públicas. Amanhã, ela terá
plena e inteira disposição dos seus bens e administrará a cidade e o
país. De outro lado, a criança, por meio de inúmeras leis recentes, é
protegida. É assim natural que depois de haver testemunhado a
consideração em relação a seus semelhantes, o coração humano tenha
sido tocado pelo sofrimento do animal e que as nações civilizadas
tenham pensado em punir os maus tratos cometidos contra eles. Um
embrião de direito é assim reconhecido a nossos irmãos inferiores -
embrião que tende cada vez mais a se transformar em direito.”827

EDMOND BOCQUET (magistrado francês em 1934)

“Será assim tão chocante, tão revolucionário, a lei finalmente reconhecer


que um animal não é um saco de cimento?”828

JEAN-CLAUDE NOUËT

826
SCHOPENHAUER. A Arte de Insultar, Martins Fontes, 2003, p. 42
827
BOCQUET, op.cit., p. 1.
828
NOUËT apud ARAÚJO, op.cit., p. 303.

- 316 -
Conforme se verificou ao longo do presente trabalho, as concepções
meramente indiretas de proteção aos animais foram, progressivamente, dando
lugar às teorias diretas. No âmbito destas últimas, vai surgindo, também de forma
paulatina, a inserção do conceito de direitos subjetivos para tratar a questão
animal.

A transição do “animal welfare” para os “animal rights” é


particularmente complexa. Como se teve oportunidade de verificar, segundo
distinção feita por FRANCIONE, a posição que defende o “bem-estar” assume
como legítimo o tratamento instrumental dos animais (como meios para fins
humanos) desde que certas “salvaguardas” sejam utilizadas. Sinteticamente seria
como se os “welfaristas” defendessem a regulamentação da exploração animal,
enquanto que os que postulam pelos “direitos dos animais” buscassem a sua
abolição. A posição do “bem-estar” trabalha com dois conceitos básicos, quais
sejam, o tratamento “humanitário” e a eliminação do “sofrimento desnecessário”,
no sentido de que é aceitável ultrapassar quaisquer interesses animais – inclusive
dor e a morte – desde que o interesse humano envolvido seja reputado
“significativo” e o sofrimento animal não seja “desnecessário”. Em geral, a
“necessidade” do sofrimento é analisada sob o prisma das práticas socialmente
aceitas. As reputadas “cruéis” são, na maior parte das vezes, somente aquelas
que “desperdiçam” os “recursos animais” por meio da imposição de “sofrimento
gratuito”. Permitimos que os fazendeiros castrem e marquem seus animais sem
qualquer tipo de analgésico, apesar de saber que estas são práticas
reconhecidamente dolorosas, mas não permitimos que os mesmos fazendeiros,
sem boas justificativas, deixem o seu gado morrer de fome.

Para FRANCIONE:

They seek [“welfaristas” que se baseiam no custo benefício de tratar


animais como propriedade] only to ensure that animals are used
efficiently and are not wasted through the infliction of gratuitous suffering
or death (defined as that which does not serve any economic interest and
which does not constitute an integral part of a socially accepted
institution). The law requires that animal interests be balanced against
human interests, but in light of the status of animals as property, this is a

- 317 -
balance performed on a rigged scale: virtually every human use of
animals is regarded as “significant” (i.e., more significant than the
animals’ interest in not being so used) because the desires of human
property owners always trump the interests of property. And this is
precisely why, despite general moral agreement that animals ought not to
suffer “unnecessary” pain, animals, are subjected not only to barbaric
practices customary in the meat industry but also to trivial (and not
necessarily any less barbaric) use in circuses, rodeos, and captive
pigeons shoots.829

O chamado “legal welfarism” reflete a visão de que animais são tão


somente meios para os fins humanos, justamente porque são propriedade, e ser
uma propriedade significa justamente isso: ser um objeto, uma coisa, um
instrumento. Assim é que há, por exemplo, leis estaduais que regulam o abate de
animais para consumo, mediante a utilização de métodos de insensibilização do
animal (geralmente pistola de concussão cerebral e eletronarcose) antes da
sangria e retalhação. Tais leis são usualmente denominadas, de forma bastante
paradoxal830, de leis de “abate humanitário”831. Em momento algum do processo
legislativo de sua implementação se discutiu ou se expressou qualquer
preocupação com o fato de que a utilização dos animais para alimentação fosse
moralmente discutível.

A visão dos “direitos”, por sua vez, por rejeitar a premissa de que
animais sejam coisa ou uma mera forma de propriedade, e por entender que ao
829
FRANCIONE, Gary L. Gary L. Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights
Movement. Philadelphia: Temple University Press, 1996. p. 10.
830
HENRY SALT, em 1914 já advertia sobre o fato de que o “abate humanitário” (“humane
slaughtering”) é uma contradição em termos. Segundo o autor: “One thing is quite certain. It is
impossible for flesh-eaters to find any justification of their diet in the plea that animals might be
slaughtered humanely; it is an obvious duty to carry out the improvements firs, and to make the
excuses afterwards. […] The ignorance, careslessness, and brutality are not only in the rough-
handed salughtermen, but in the polite ladies and gentlemen whose dietetic habits render the
salughtermen necessary. […] The cattle-ships of the present day reproduce, in an aggravated
form, some of the worst horrors of the slave-ship of fifty years back. I take it for granted, then, as
not denied by our opponents, that the present system of killing animals for food is a very cruel and
barbarous one, and a direct outrage on what I have termed the “humanities of diet” (cr. SALT,
Henry. The Humanities of Diet. Manchester: The Vegetarian Society, 1914. Disponível em:
<http://www.animal-rights-library.com>. Acesso em: 10 nov. 2005.
831
O Estado de São Paulo, por exemplo, possui a Lei Estadual n. 7.705/92 que regula o abate de
animais. Tal lei sofreu duro golpe em 1999 com a admissão da jugulação cruenta, conhecida como
abate ritual ou religioso.

- 318 -
menos alguns deles possuam interesses efetivamente protegíveis por “direitos”,
não podem ser submetidos a qualquer forma de exploração, ainda que com todas
as pretensas “salvaguardas” para se evitar o paradoxal “sofrimento
desnecessário”.

Conforme alerta o professor FRANCIONE:

[...] sustento que o moderno movimento de ‘direitos’ dos animais rejeitou


explicitamente a doutrina filosófica dos direitos em favor de uma versão
do ‘animal welfare’ que aceita os direitos dos animais como uma situação
ideal que pode ser alcançada somente por meio da adesão continuada
às medidas de ‘bem-estar’. Reputo esta visão híbrida – a meta a longo
prazo são os direitos dos animais, mas a curto prazo é o ‘bem-estar’ – de
‘new welfarism’. Os ‘novos welfaristas’ aparentemente acreditam, por
exemplo, em alguma conexão causal entre gaiolas mais limpas hoje e
gaiolas vazias no futuro.832

Duas concepções básicas estão, pois, inseridas na mentalidade dos


novos “welfaristas”: (a) a reforma por melhores condições ajuda a minorar o
sofrimento dos animais; (b) estas reformas podem gradualmente conduzir à
abolição da exploração animal (argumento do “comer o mingau pelas beiradas”);
(c) consideram a visão dos “direitos” como utópica e incapaz de prover medidas
eficazes e práticas.

Apesar de respeitar e louvar aqueles que procuram garantir uma


maior proteção e bem-estar aos animais por meio de tal visão, considero que são
inúmeros os problemas enfrentados por uma concepção “welfarista”. Se
assumimos que a nova posição “welfarista” está de certa forma atrelada à posição
de “direitos” é porque se acredita que os animais tenham direitos subjetivos.
Seria, portanto, equivocado comprometer estes interesses e direitos hoje por meio
do apoio à implementação de medidas legais que supostamente trouxessem, por
exemplo, um caráter mais “humano” à experimentação científica na esperança de
que tais mudanças viessem a trazer direitos no futuro.

832
FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 3, tradução nossa.

- 319 -
Conforme alerta ALAN WATSON, Professor de História da
Universidade de Georgia:

Quando a escravidão relegava determinadas pessoas à condição de


coisas, a lei não podia prover proteção de modo a determinar que os
proprietários de escravos respeitassem qualquer interesse de seus
servos se era de seu interesse explorar a sua propriedade. Aqueles que
tentaram “humanizar” a escravidão não podiam proteger os escravos
contra os seus senhores no que diz respeito à melhor utilização da
propriedade. Acréscimos paulatinos de liberdade não podiam
efetivamente ser implementados enquanto os escravos fossem mantidos
como propriedades. [...] As reformas humanitaristas não eram
suficientes. A situação só foi remediada com a abolição da escravidão
após um conflito armado e sangrento.833

Segundo RICHARD RYDER, no século XVII aparecem as primeiras


utilizações do vocábulo “direito” no contexto de proteção animal. Segundo o autor,
o Chief Justice MATTHEW HALE (1609-1676), afirmou em 1662 que: “I have ever
thought that there was a certain degree of justice due from man to the creatures,
as from man to man”. THOMAS TYRON, por seu turno, foi provavelmente o
primeiro a usar o conceito de direitos subjetivos (“rights”) de forma ampliativa aos
animais em 1683: “What law have we broken, or what cause given you, whereby
you can pretend a right to invade and violate our part, and natural rights, and to
assault and destroy us?”834

Em 1755, FRANCIS HUTCHESON (1694-1746), em obra póstuma


publicada neste ano, “A System of Moral Philosophy”, sustentava que os animais
teriam “direito de que nenhuma dor ou miséria desnecessárias lhes sejam
infligidas”835. PRIMATT, apesar de não abordar diretamente a questão dos direitos
subjetivos, deixa clara a aceitação de sua face negativa, indireta, ao negar, em
1776, o suposto “contra - direito” humano ao abuso.
833
WATSON apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. x.
834
RYDER, Richard. The Political Animal: The Conquest of Speciesism. London: McFarland, 1998.
p. 16.
835
HUTCHESON apud THOMAS, op.cit., p. 215.

- 320 -
RYDER chama a atenção para o fato de que WILHELM DIETER, ter
escrito na Alemanha, em 1787 que: “animais podem possuir direitos”836 do mesmo
modo que as crianças podem tê-los.

JEREMY BENTHAM, em 1789, em sua “Introduction to the


Principles of Morals and Legislation”, apoiado em muitas das conclusões de
PRIMATT, em passagem por várias vezes citadas ao longo do texto, já escrevia
claramente que:

The day may come when the rest of the animal creation may acquire
those rights which never could have been withheld from them but by the
hand of tyranny [...] A full-grown horse or dog is beyond comparison a
more rational, as well as more conversable animal, than an infant of a
day, or a week or even a month old. But suppose the case were
otherwise, what would it avail? The question is not, can they reason?
Nor, can they talk? But can they suffer? Why should the law refuse its
protection to any sensitive being? The time will come when humanity will
extend its mantle over everything that breathes […]837

HERMANN DAGGETT, em 1791, ao falar sobre “direitos dos


animais” no Providence College, traçando um paralelo com a escravidão humana
afirmou:

That they are sensible beings, and capable of happiness, none can
doubt. That their sensibility of corporal pleasure and pain is less than
ours, none can prove. […] What ideas would we form of superior beings
whose employment, or rather, whose amusement it was, by certain
invisible means, to snare, worry, fatigue and destroy the human race?838

Tal como mencionado na introdução de nossa tese, em 1792, o


filósofo THOMAS TAYLOR, “A Vindication of the Rights of the Brutes” a fim de
836
DIETER apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 18.
837
BENTHAM apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 16.
838
DAGGETT apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 19.

- 321 -
contrapor os argumentos de MARY WOLLSTONECRAFT expressos em seu
“Vindication of the Rights of Woman”, admitiu, satiricamente, que acaso sua tese
em favor dos direitos das mulheres fosse legítima, deveria igualmente ser
estendida aos animais.

Em 1798, THOMAS YOUNG em seu “Essay on Humanity to


Animals” ditava três razões para a abstenção de crueldade para com animais
pois, do contrário, como um ato reflexo encorajar-se-ia a crueldade para com os
próprios homens, bem como tais práticas restariam condenadas pelas escrituras.
Além disso, os animais perseguem a felicidade por si próprios, razão pela qual
devem ser respeitados. Por isto afirmava:

This, I take it, is the foundation of the rights of animals, as far as they can
be traced independently of scripture; and is, even by itself, decisive on
the subject, being the same sort of argument as that on which moralists
found the rights of mankind, as deduced form the light of nature.839

RYDER destaca que esta talvez tenha sido a primeira vez a se


utilizar a expressão “rights of animals” na língua inglesa. JOHN LAWRENCE
(1753-1839), no mesmo ano usou a expressão cognata, mas especista, “rights of
beasts” (direito das bestas ou feras). SCHOPENHAUER (1788-1860) também
defende o princípio de que toda moralidade não depende de idéias
preconcebidas, de religiões, de dogmas, de mitos, de educação ou da cultura,
tomando os animais sob o seu manto protetor:

Insistir na suposta inexistência de direito dos animais, como se nossa


conduta para com eles não tivesse importância moral, porque deveres
humanos em relação aos animais inexistem, é agir de modo
preconceituoso e comum a ignorância revoltante.840

839
YOUNG apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 18.
840
SCHOPENHAUER apud LEVAI, Laerte Fernando. “Crueldade Consentida: A Violência Humana
Contra os Animais e o Papel do Ministério Público no Combate à Tortura Institucionalizada”.
Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/caouma/Doutrina/Amb/Teses/Laerte%20Fernando
%20Levai.htm>. Acesso em: 11 nov. 2005.

- 322 -
Em 1892, HENRY SALT publica o seu “Animal Rights: Considered in
Relation to Social Progress”. Em passagem já citada no curso desta obra, o autor
deixa clara a sua posição no sentido da necessidade de promoção dos direitos
dos animais, em um movimento coordenado de libertação democrática de
humanos e não-humanos. Conseguiu simpatizantes de peso para a causa, como
BERNARD SHAW e MOHATMA GHANDI841.

Na Itália, os teólogos GHIGNONI e LAZZARI se posicionaram


favoravelmente à questão dos “diritti degli animali”:

[...] i doveri dell´uomo verso gli animali non nascono da correlati dirititi
degli animali verso l´uomo, ma dai diritti della legge naturale, riflesso
della legge eterna divina, diritti que impongono all´uomo di non
incrudelire verso nessun essere.842

[...] qualunque sia il significato che può darsi della parola diritti, negli
animali vi é qualcosa, chiamarsi diritto o altro che si voglia che ha un´
intrinseca opposizione alla crudeltà e la rende un peccato [...] 843

Dando prosseguimento à discussão sobre o tema, em 1904, a


Revista “Civiltà Cattolica” dedicou dois artigos a “I diritti degli animali”.844 Segundo
menciona LEVAI, o professor de Filosofia do Direito da Universidade de Ferrara,
CESARE GORETTI (1886-1952), publica um artigo intitulado “L´animale quale
soggeto di diritto” (“Os animais como sujeito de direito”), no qual afirma:

841
GHANDI afirmava que a base de sua dieta vegetariana não era física e sim moral: “If anybody
said that I should die if I did not take beef-tea or mutton, even under medical advice, I would prefer
death. That is the basis of my vegetarianism” (GHANDI, Mohatma. Diet and Diet Reform.
Ahmedabad, Índia: Navajivan Publishing House, 1949. p. 10).
842
GHIGNONI. La Protezione degli animali in rapporto ai progressi della civiltà. Conferência
proferida em Roma em 31 mai. 1903. Disponível em:
<http://www.areematiche/42/documents/manucci _animalediritto.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2005.
843
LAZZARI. Sulla Protezione degli animali in cui si dimostra perchè i forestieri non vengono a
Napoli e come proteggendo gli animali si educano gli uomini. Conferências proferidas em Napoli
em 16 fev. 1899 e 7 mai. 1900. A Sociedade Napolitana de Proteção Animal surgiu em 1907.
Disponível em: <http://www.areematiche/42/documents/manucci_animalediritto.pdf>. Acesso em:
10 nov. 2005.
844
“Civiltà Cattolica”, v. 1, fascicoli 1288 e 1290, pp. 401-414 e 682-695.

- 323 -
Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade
(companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua
participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da
moral?845

O período entre - guerras marcou o ressurgimento de uma ideologia


tipicamente machista, no qual não havia lugar para se pensar no sofrimento alheio
e a compaixão era vista como um absurdo. No pós-guerra, o positivista HANS
KELSEN (1881-1973), em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, reabre as
discussões respeito do conceito de pessoa, concluindo não ser a pessoa física
(natural) uma realidade natural, “mas uma elaboração do pensamento jurídico”846.
Assim é que:

Definir a pessoa física (natural) como um ser humano é incorreto, porque


homem e pessoa não são apenas dois conceitos diversos, mas também
os resultados de dois tipos inteiramente diversos de consideração.
Homem é conceito da biologia e da fisiologia, em suma, das ciências
naturais. Pessoa é um conceito da jurisprudência, da análise de normas
jurídicas.847

Ainda sobre KELSEN, afirma HERON JOSÉ SANTANA que:

Kelsen, por exemplo, não considerava nenhum absurdo que os animais


fossem considerados sujeitos de direito, pois para ele a relação jurídica
não se dá entre o sujeito do dever e o sujeito de direito, mas entre o
próprio dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde. Para o
mestre de Viena, o direito subjetivo nada mais é do que o reflexo de um
dever jurídico, uma vez que a relação jurídica é uma relação entre

845
GORETTI, Cesare. Rivista di Filosofia, n. 19, Itália, 1928.
846
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 100.
847
Ibid., p. 98.

- 324 -
normas, ou seja, entre uma norma que obriga o devedor e outra que
faculta ao titular do direito exigi-lo.848

A origem do termo “pessoa” vem do latim “persona”, máscara usada


no teatro grego que possibilitava o ator “representar um papel” a que o termo
“pessoa” é referente. A máscara ou o invólucro é uma realidade criativa
diferenciada do seu conteúdo. Neste sentido, corroborando as conclusões de
KELSEN, GORDJIN afirma que o conceito de “ser humano” é fruto de uma
construção biológica, enquanto que o de "pessoa" é uma noção filosófica,
psicológica ou jurídica849. GORDJIN adverte ainda quanto aos riscos de
ampliação ou redução do conceito, tornando-se um “instrumento tático" e
ideológico para se aumentar ou diminuir o grupo de indivíduos merecedores de
consideração moral.

Até meados da década de 60, a filosofia política e moral pareciam


condenadas a um segundo plano investigativo. Esse distanciamento da filosofia
começou a se arrefecer quando THOMAS NAGEL, JOHN RAWLS e JUDITH
TRAVIS e deram origem à "Society for Ethical and Legal Philosophy" e passaram
a discutir temas relacionados à ética prática tais como racismo, aborto, ação
afirmativa, etc.850. No mesmo período, emerge um novo paradigma de discussão
no campo moral, o paradigma bioético, que apresenta "um conjunto de questões
de dimensão ética originado pelo poder cada vez maior da intervenção
tecnocientífica no ser vivo"851.

Nota-se que a partir da década de 60, um novo movimento de


combate aos esportes “cruéis” começou a ganhar peso na Inglaterra852. Em 1964,
RUTH HARRISON publica “Animal Machines” (Vicent Stuart, 1964) denunciando
os terríveis males da criação intensiva de animais nas “fazendas industriais”. O
848
KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 180, apud SANTANA, Heron José de, trecho do Habeas
Corpus impetrado em favor da chimpanzé Suíça perante a 9° Vara Criminal de Salvador.
849
GORDJIN, B. “The Troublesome Concept of The Person”. Theoretical Medicine and Bioethics,
n. 20, p. 347.
850
Em 1972 surge a revista "Philosophy and Public Affairs", da Universidade Rockefeller
851
HOTTOIS, G. O Paradigma Bioético. Novas Tecnologias. Lisboa: Edições Salamandra, 1990. p.
136.
852
O jornalista JOHN PRESTIGE sabotou a caça à raposa em várias ocasiões.

- 325 -
escritor BRIGID BROPHY, em 1965, restabeleceu a discussão dos “direitos dos
animais” com a publicação do artigo “The Rights of Animals” no Sunday Times de
10 de outubro.

O brilhante psicólogo RICHARD RYDER, professor de Oxford,


publicou em 1969 uma série de três artigos sobre o tema no Daily Telegraph (7 de
abril, 3 de maio e 11 de maio). No início da década de 70, conforme já
mencionado, o mesmo autor cunha o termo “especismo” para designar a forma de
preconceito contra seres de outras espécies e participou, ao lado de BROPHY, do
primeiro programa televisivo a discutir o tema chamado “The Lion´s Share”
(dezembro de 69). BROPHY, HARRISON, RYDER, JOHN HARRIS e ROSLIN e
STANLEY GODLOVITCH (os três últimos, filósofos de Oxford) produziram uma
coleção de ensaios de “direitos dos animais” intitulada “Animals, Men and Morals”.
Um jovem filósofo australiano, PETER SINGER, ficou então encarregado de fazer
uma “review” do livro para o New York Review of Books, em 1973. Tão bem feita
e recebida foi a revisão de SINGER que ele a expandiu para publicar em 1975 o
candente “Animal Liberation”.

Há que se ressaltar que, por razões já expostas nesta obra, apesar


de a abordagem de SINGER não abraçar expressamente a tese dos “direitos”, em
um debate com KENAN MALIK853 o filósofo afirma a sua posição favorável à
extensão de direitos fundamentais aos primatas (direito à vida, à liberdade, e o de
não ser torturado). De acordo com SINGER, todos os seres capazes de
experimentar prazer e dor têm interesses. No entanto:

[...] tal avanço [direitos para os animais] ainda não é possível para todos
os seres vivos. Em todo o mundo, pessoas estão envolvidas na criação e
abate de animais para consumo. A extensão de direitos para todos os
seres vivos continuará politicamente impossível por um bom tempo, não
importa o quão forte sejam os argumentos éticos. [...] Ainda assim, a
idéia de estender direitos a membros de outras espécies seria um marco
histórico. [...] Seria a primeira brecha na barreira das espécies e, com o
tempo, poderia facilitar a extensão para outros não-humanos. É verdade

853
“Should we breach the species barrier and grant rights to apes?”. Disponível em:
<http://www.kenanmalik.com>. Acesso em 01 mar. 2005.

- 326 -
que nenhum primata pode discutir filosofia, ou reconhecer a si próprio
como portador de direitos. Todavia, meu argumento para seus direitos
não é baseada no fato de que seriam nossos equivalentes. Caso assim
fosse, deveríamos negar os mesmos direitos a muitos seres humanos.
[...] Não enxergar tal fato, é colocar a escravidão dos primatas em
segundo plano. Eles necessitam de direitos fundamentais, garantidos por
lei.

RYDER publica no mesmo ano o livro “Victims of Science”,


condenando abertamente os abusos levados a cabo pela indústria da
experimentação científica. Enquanto isso o grupo original de Oxford854 (BROPHY,
RYDER, HARRIS e os GODLOVITCH) receberam as importantes adesões de
STEPHEN CLARK e do teólogo ANDREW LINZEY, bem como visitas freqüentes
de TOM REGAN, que, junto a SINGER, publicou em 1976 o livro “Animal Rights
and Human Obligations”, contando com a contribuição de vários filósofos, entre
eles MARY MIDGELY. LINZEY publica “Animal Theology” (1976), CLARK, “The
Moral Status of Animals” (1977) e SINGER, “Pratical Ethics” (1979).

Em 1983 TOM REGAN publica o seu “The Case For Animal Rights”.
Outros brilhantes pensadores publicam artigos e livros enfocando o tema, tais
como HENRY SPIRA, KENNETH SHAPIRO, ALEX HERSHAFT, HOLLY
HAZARD, KIM STALLWOOD, PETER e KATHY GERARD, DONALD BARNES,
ANDRE ROWAN, ALEX PACHECO, INGRID NEWIRK, GARY FRANCIONE,
DAVID DE GRAZIA, EVELYN PLUHAR, STEVEN WISE entre outros. O
denominador comum entre todos eles é a pesada crítica ao fato de que a
aplicação do princípio da moralidade, equivocadamente, põe muito mais peso à
análise da qualificação moral (“personalidade moral” segundo RAWLS) daquele
que sofre do que aos danos que efetivamente são gerados.

854
RYDER aduz a interessante observação (The Political Animal, op.cit., p. 32) que,
inconscientemente, o grupo de 1970 repetia, de certa forma, os de 1770 e 1870, quando distintos
clérigos e pensadores de Oxford discutiram acesamente aspectos relacionados à defesa animal.

- 327 -
Segundo o ilustre MIGUEL REALE,

[...] ocorre que determinados valores, uma vez elevados à consciência


coletiva, tornam-se como que entidades ontológicas, adquirindo caráter
permanente e definitivo. São o que denominamos invariantes axiológicas
ou constantes axiológicas, como os valores da pessoa humana, o direito
à vida, a intangibilidade da subjetividade, a igualdade perante a lei
(isonomia), a liberdade individual etc., que constituem o fundamento da
vida ética. A eles correspondem os chamados direitos fundamentais do
homem. O último valor que emerge do processo histórico com a força de
uma invariante é o valor ecológico, não se devendo, porém, olvidar que
se protege o meio ambiente tanto pelo que a natureza é de per si como
pelo que ela significa para o valor da vida humana. 855

A responsabilidade ecológica não deve ser confundida ou tomada


sob o aspecto de uma responsabilidade indireta, entendida como
responsabilidade com as gerações futuras ou como uma preocupação com a
qualidade de vida do próprio ser humano. Deve sim ser tomada como uma
responsabilidade em que o valor da natureza é visto como suficiente em si
mesmo e por isso deve ser preservado. A responsabilidade ecológica, e aí se
compreende a responsabilidade para com todos os seres vivos (incluindo-se o ser
humano), deve ser tomada como uma responsabilidade para com a natureza e
não para com o homem. A ética ecológica não pode ser puramente
antropocêntrica.

Entre nós ilustres juristas já se manifestaram, ainda que


indiretamente, a respeito da tese dos animais como sujeitos de direito. O
tratadista PONTES DE MIRANDA, por exemplo, entendendo que os animais são
colocados fora do Direito como pessoas856, alude expressamente ao fato de que
este não se deformaria por se pensar naqueles como sujeitos de direito857, pois
“são condições sociais de cada momento que determinam quais as pessoas, isto
855
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia, Saraiva, 4ª edição, 2002. p. 182
856
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983,
tomo II. p. 276.
857
Ibid., p. 3.

- 328 -
é, aquelas que têm possibilidade de ser sujeitos de direitos.” Refere-se ao fato de
que apesar de somente se admitir que “seres humanos e sociedades,
associações de homens, fundações e entidades com suporte humano tenham
personalidade” 858, já se tentou a adaptação social dos animais como sujeitos de
direito859. Neste sentido, questionando se haveria direitos sem sujeito, o brilhante
autor cita E.I.BEKKER “que admitiu que também coisas pudessem ser subjeto
(sic) de direito”860. Em determinada época, “impressionava que loucos e ausentes
pudessem ser pessoa”861, afirmando:

[...] é evidente que se confundiam personalidade e capacidade de querer


livre862, o que de modo nenhum se havia de pôr à base da teoria da
personalidade. Mas os resultados a que E.I.BEKKE chegou foram os de
afirmação de poderem ser sujeito coisas e animais (Zur Lehre von dem
Rechtssubjekt, Jahrbücher für die Dogmatik 12, 26), frisando (verdade
parcial) que caracteriza o sujeito de direito o pertencer-lhe algo, e não o
poder.863

858
MIRANDA, op.cit., tomo I, p. 127.
859
Ibid., p. 127.
860
Ibid., p. 164.
861
Ibid., p. 164.
862
Em outra passagem PONTES DE MIRANDA afirma que: “O direito romano não havia percebido
suficientemente que à capacidade de direito não é necessária a capacidade de obrar; e
raciocinava: se não pode obrar não é pessoa. Ora o homem, absolutamente incapaz de obrar, é
pessoa, e não se justificaria que, por isso, não se admitisse a personificação de entidade que não
fosse o homem. Por outro lado, o ‘omne ius hominum causa (factum est)’, que se lê na L. 2, D., de
statu hominum, 1, 5, foi lembrado para se ter como fingida a pessoa jurídica. Ora, tal enunciado
não se há de traduzir como ‘somente o homem pode ser sujeito de direito’ [...]” (MIRANDA, op.cit.,
tomo I, p. 285). Menciona ainda o fato de que o ato humano equivale ao fato do animal e por tal
razão, chega mesmo a incluir os animais quando trata da legítima defesa: Discute-se se pode o
que se defende ignorar a situação de perigo e alguns entendem que se há de ter consciência do
fim de auto-defesa, quer se trate de legítima defesa, quer de estado de necessidade, quer de
justiça de mão própria, o que é baralhar problemas. Quem atua em legítima defesa, vê, ouve,
palpa ou cheira, ou sente o sabor do risco, do perigo; não precisa ter consciência disso, - o reflexo,
com que se defende, pode ser instintivo. A regra jurídica do art. 160, I, 1ª parte, como a do art.
160, II, apanha quaisquer pessoas, capazes ou incapazes. Aquela opinião é errônea; teria o grave
inconveniente de deixar fora da proteção legal (as regras jurídicas pré-excludentes protegem) os
doentes mentais, que, como as pessoas sãs (e os animais), se podem defender (MIRANDA,
op.cit., tomo II, p. 287).
863
MIRANDA, op.cit., tomo I, p. 164.

- 329 -
Mais à frente continua o prestigiado autor:

A solução, que atribuiu a coisa e a animais a titularidade de direitos,


transformava o pertinere ad aliquem em pertinere ad aliquid; e a que
admitiu existirem direitos sem sujeito ou partiam de que não só o homem
podia ser sujeito de direito ou que só o homem o podia ser. Ora, tinha-se
de perguntar, antes, “que é sujeito de direito”; depois “que é que, no
sistema jurídico de que se trata, pode ser sujeito de direito”. Se o sistema
jurídico , como sistema lógico, atribui direito a animais e a coisas, tais
animais e coisas não são objeto, - são sujeito [...]864

Fazendo nitidamente uma alusão aos ditos “casos marginais”, o


jurista termina por afirmar que:

A ligação da personalidade à vontade esbarraria até a não-personalidade


dos animais, a não-personalidade do escravo e a personalidade dos
menores, loucos, surdos-mudos, pródigos e silvícolas.865

O brilhante constitucionalista JOSÉ AFONSO DA SILVA ao


comentar que dentre os princípios da ordem econômica insculpidos no art. 170 da
Constituição Federal está o da defesa do meio ambiente, explicita a aceitação dos
“direitos dos animais” ao lecionar que:

[...] contra a terminologia direitos do homem, objeta-se que não direito


que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano
pode ser titular de direitos. Talvez já não seja mais assim, porque, aos
poucos, se vai formando um direito especial de proteção aos animais.866

864
Ibid., p. 166.
865
Ibid., p. 286.
866
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001.
p. 176.

- 330 -
ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, professor titular de Direito
Civil da Faculdade de Direito da USP, em brilhante parecer intitulado
“Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana” critica a concepção
insular da pessoa humana. Segundo o referido autor, a utilização da expressão
“dignidade da pessoa humana” no mundo do direito é um fato histórico recente867,
não escondendo, porém, grande desacordo atinente a seu conteúdo. A idéia
dominante do homem como razão e vontade ou como autoconsciência se tornou
insuficiente, pois os animais superiores também as possuem. Para ANTONIO
JUNQUEIRA,

Do ponto de vista ontológico, ou de visão da realidade, a concepção


insular de pessoa humana é dualista: homem e natureza não se
encontram, estão em níveis diversos; são respectivamente sujeito e
objeto. O homem, ‘rei da criação’, vê e pensa a natureza. Somente o
homem é racional e capaz de querer. O homem é radicalmente diferente
dos demais seres; somente ele é autoconsciente. A natureza é fato
bruto, isto é, sem valor em si. A segundo é monista: entre homem e
natureza, há um continuum; o homem faz parte da natureza e não é o
único ser inteligente e capaz de querer, ou o único dotado de
autoconsciência.868

A primeira concepção, a que JUNQUEIRA denomina de insular,


falha ao parar na inteligência, na vontade, ou na autoconsciência, que são
faculdades comuns entre homens e diversos animais. O autor acrescenta que:

[...] a etologia comprova o que qualquer bom observador, não


contaminado pelo racionalismo europeu, sabe: animais, como burros,

867
Cita o autor que a expressão foi originariamente utilizada no “Preâmbulo” da Carta das Nações
Unidas (1945) sob a forma de “dignidade e valor do ser humano”. Na Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948) é também utilizada em seu primeiro “considerando” e em seu primeiro
artigo. A Constituição Italiana de 1947 fala em dignidade social, equanto que a “Lei Fundamental”
Alemã (1949) menciona em seu art. 1.1 que “a dignidade do homem é intangível”. Posteriormente,
em 1965,a declaração sobre liberdade religiosa “Dignitatis Humanae” consagrou o termo frisando
que “Da dignidade da pessoa humana tornam-se os homens de nosso tempo sempre mais
cônscios” (AZEVEDO, op.cit., p. 3).
868
AZEVEDO, op.cit., p. 5.

- 331 -
cavalos, cachorros, macacos, pensam e querem [...] Nesse campo, não
têm nenhuma razão grandes nomes da filosofia, como Descartes e Kant,
o primeiro, ao afirmar que os animas são “máquinas que se movem” e o
segundo, ao reduzi-lo a “coisas”.869

O civilista termina por admitir que animais sejam sujeitos de direito


ao corroborar a noção de que a natureza possui valoração intrínseca,
independente do ser humano:

A vida genericamente considerada consubstancia o valor de tudo que


existe na natureza. Esse valor existe por si; ele independe do homem.
Do primeiro ser vivo até hoje, há um fluxo vital contínuo; todo ser vivo
tem sua própria centelha de vida mas cada centelha individual surge do
fogo que, desde então, queima na Terra e, nesse fogo, cada centelha se
insere como parte do todo. A vida em geral fundamenta o direito
ambiental e o direito dos animais.870

NORBERTO BOBBIO (1909-2004), catedrático de Filosofia de


Direito da Universidade de Turim, também se coloca em posição favorável aos
“direitos dos animais”:

Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do


direito à vida das gerações futuras, cuja sobrevivência é ameaçada pelo
crescimento desmesurado de armas cada vez mais destrutivas, assim
como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum
sempre considerou apenas como objetos, ou no máximo, como sujeitos
passivos, sem direitos. 871

Como se percebe, não são poucos os que advogam pela tese da


extensão de direitos aos animais, dentro de uma ótica que neles enxerga valores

869
Ibid., p. 9-10.
870
Ibid., p. 14.
871
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 63.

- 332 -
intrínsecos que devem ser protegidos pelo Direito. Em seqüência, analisaremos
os principais teóricos que defendem e fundamentam a tese dos direitos dos
animais.

3.1. RICHARD RYDER e o critério da “dorência”

[...] qualquer limite à classe dos sujeitos de direito morais sob a base de
certas propriedades fáticas, tais como pertencer à espécie humana ou
que possuam racionalidade, apresenta uma dificuldade quase
insuperável. Devemos perguntar porque essas propriedades fáticas
deveriam necessariamente ser relevantes para certos princípios
normativos mais elevados. Se não resolvemos este problema, corremos
o risco de incorrer em um dogmatismo análogo ao do racista que
considera moralmente relevante as diferenças físicas sem uma ulterior
justificação moral. [...] No entanto, há classes de animais superiores não-
humanos que podem parcialmente gozar de alguns destes aspectos
desses direitos, tais como os direitos que implicam que a inflição de dor
possui um valor intrinsecamente negativo.872

CARLOS SANTIAGO NINO

O psicólogo britânico RICHARD RYDER, o mesmo que cunhou o


termo “especismo” na década de 70, criou também o vocábulo “painism” ou
“painience” para designar a característica dos seres sencientes que sentem dor.
Como sugere SÔNIA T. FELIPE, poderíamos traduzir o conceito como “dorência”,
ou a capacidade de sentir dor. RYDER, nesta linha, prefere a denominação de
“painient” a “sentient” pois, segundo o autor, a palavra senciente é um termo por
demais amplo e a preocupação principal deveria se dar com relação à parte da
senciência que envolve as sensações desagradáveis ou indesejáveis. Para ele, a
palavra dor deve ser utilizada para descrever todos os estados de sofrimento e
não só os relacionados aos seus aspectos físicos.

872
NINO, Carlos Santiago. La Constitution de la Democracia Deliberativa, Barcelona: Gedisa,
1997. p. 82-83.

- 333 -
A moralidade é algo intimamente relacionado ao modo como
tratamos os outros e por “outros” o autor entende que sejam todos aqueles que
sejam sensíveis à dor. Deste modo, a ética da “dorência”, qualificada como sendo
a preocupação com a dor de outrem – deve ser estendida para todos os seres
sencientes (ou melhor “dorentes”) independentemente de seu sexo, classe social,
raça, nacionalidade ou espécie.

Para RYDER:

Dor é dor independentemente de quem a experimenta. [...] A dorência,


acredito eu, é única base convincente de atribuição de interesses, ou
direitos, para outros. Muitas outras qualidades, tais como ‘valor
intrínseco’, têm sido sugeridas, mais notadamente por TOM REGAN.
Todavia, em minha opinião, o valor não pode existir na ausência de
consciência atual ou potencial. Assim, rochas, rios e casas, não podem
possuir interesses próprios. Isto não significa, é claro, que eles não
tenham valor para nós e para muitos outros seres, incluindo aqueles que
necessitam deles para servir de habitat e que, sem eles, iriam sofrer.873

A ênfase na dor se justificaria pelo fato de que, no entendimento do


filósofo, seria uma forma de experiência mais poderosa que a do prazer. Um dos
pilares da teoria de RYDER está no enfoque individual do sujeito passivo, ou seja,
é o indivíduo, e não a raça, a nação, a espécie, que sente a dor. Por esta razão,
as “dores” e os “prazeres” não poderiam ser agregados em balanceamentos
ponderados, tal como ocorre no utilitarismo:

[...] a minha dor e a dor de outros estão compartimentalizadas de modo


estanque, não se pode realizar operações de adição ou subtração entre
elas. [...] Por exemplo, infligir cem unidades de dor a um indivíduo é, em
minha opinião, bastante diferente e pior que infligir uma única unidade de
dor em milhares ou milhões de pessoas, ainda que o total agregado de
dor seja muito maior no último caso. Em qualquer situação, deveríamos

873
RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 46, tradução nossa.

- 334 -
nos preocupar primariamente com a dor do indivíduo que é o sofredor
máximo.874

No que diz respeito à concepção de “direitos” (“rights”) e “deveres”


(“duties”), RYDER se posiciona no sentido de que são criações humanas que não
possuem realidades independentes. Como um adepto do “painism”, RYDER
afirma que temos um dever de não causar dor ou sofrimento a outrem, dever este
correlato ao direito que terceiros têm de não sofrer ou sentir dor de maneira
injustificada. Os direitos e deveres seriam faces de uma mesma moeda, o que
não o impede de fazer a distinção entre os chamados “direitos ativos” (“active
rights” – e.g. o direito de votar) e os “direitos passivos” (“passive rights” – e.g. o
direito de não ser tratado de uma determinada forma) e de afirmar que, com
relação aos não-humanos, estamos usualmente discutindo a última categoria,
mais especificamente, o direito de não ser submetido involuntariamente à dor ou
ao sofrimento.

É claro que cada espécie é diferente nas suas necessidades e em suas


reações. O que é doloroso para alguns pode não ser necessariamente
doloroso para outros. Assim sendo, podemos tratar as espécies
diferentemente, mas sempre devemos tratar sofrimentos similares de
forma similar. No caso dos não-humanos, são explorados
impiedosamente nas fazendas industriais, em laboratórios e na natureza.
Uma baleia pode levar até vinte minutos para morrer depois de ser
arpoada. Um lince pode sofrer por uma semana com sua pata quebrada
por uma armadilha de aço. Galinhas de granja podem viver uma vida
inteira sem conseguir esticar as suas asas. Um animal submetido a um
teste de toxicidade, envenenado com um produto doméstico, pode
agonizar por horas ou dias antes de morrer. Estes são enormes abusos
que causam enorme quantidade de sofrimento. Ainda assim as pessoas
tentam justificar tais tormentos sob o argumento de que aqueles que
estão sofrendo não pertencem à mesma espécie que a nossa. Parece
que nunca ouviram falar de Darwin! De acordo com Charles Darwin
somos todos relacionados por laços de parentesco por meio da evolução
das espécies. Somos todos animais. Ainda assim tratamos os outros não
como aparentados, mas como objetos desprovidos de sentimento. Não

874
Ibid., p. 47.

- 335 -
sonharíamos, assim espero, em tratar nossos bebês ou pessoas
mentalmente deficientes desta forma, ainda que sejam algumas vezes
menos inteligentes e comunicativos que alguns dos animais que
exploramos. A moeda moral darwiniana está agora começando a virar, e
se somos relacionados pela evolução então deveríamos ser relacionados
moralmente.875

RYDER termina sua breve exposição, retomando um tema já


explorado por KEPLER, a que denomina de “analogia extraterrestre”:

A verdade é que exploramos os outros animais e lhes provocamos


sofrimento porque somos mais poderosos que eles. Isto significa que
acaso alienígenas pousassem com suas naves na Terra e fossem
efetivamente muito mais poderosos que nós, deixaríamos que nos
perseguissem, matassem e nos usassem para finalidades recreativas,
experimentos científicos ou nos criassem em fazendas industriais a fim
de nos transformar em saborosos “hambúrgueres-humanos”?
Aceitaríamos a justificativa de que seria perfeitamente moral fazerem
todas essas coisas porque não seríamos membros de sua espécie?876

Em 1972, DESMOND STEWART já fazia uso de tal analogia877 para


demonstrar o absurdo da retórica de dominação humana sobre os animais em um
ensaio publicado na prestigiada Encounter (fev. 72) intitulado “The Limits of
Trooghaft” onde narra a chegada e posterior conquista da Terra pelos “Troogs”.
Em uma das passagens afirma:

The planet’s new masters had an intermittent sense of the absurd; Troog
laughter could shake a forest. Young Troogs first captured some
surviving children, then tamed them as “housemen”, though to their new

875
Ibid., p. 49.
876
Ibid., p. 51.
877
O brilhante ROBERT NOZICK, já em 1974, também fazia uso desta analogia no seu Anarquia,
Estado e Utopia (op.cit., p. 62-3), por meio da qual questionava se seria legítimo que seres
superiores a nós em artifício e inteligência pudessem nos sacrificar em seu próprio benefício.

- 336 -
pets the draughty Troog structures seemed far from house-like. Pet-
keeping spread. Whole zoos of children were reared on a bean diet. For
housemen, Troogs preferred children with brown or yellow skins, finding
them neater and cleaner than others; this preference soon settled into an
arbitrary custom. Themselves hermaphrodite, the Troogs were fascinated
by the spectacle of marital couplings. Once their pets reached
adolescence, they were put in cages whose nesting boxes had glass
walls. […] Cannibalism was rare. Breeders, by selecting partners, could
soon produce strains with certain comical features, such as cone-shaped
breasts or cushion-shaped rumps.878

A “analogia extraterrestre” é uma forma concreta de tradução da


“ética da coerência”, pois se discordamos da legitimidade da hipótese de abuso
por parte de civilizações supostamente “superiores” a nós, deveríamos,
necessariamente, fazer o mesmo com relação aos animais879. Hoje podemos
estar em uma confortável situação de domínio, amanhã não mais. Como afirma
MANUEL BANDEIRA em seu poema “O Bicho”:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.880

878
STEWART, Desmond. The Limits of Trooghaft. London: Encounter, 1972. Disponível em:
<http://www.animal-rights-library.com>. Acesso em: 11 nov. 2005.
879
Outro exemplo muito próximo da “analogia extraterrestre” é a da “matrix”. O famoso filme narra
uma história em que humanos criam a inteligência artificial - IA. No entanto, sentido-se
desvalorizado em razão de sua óbvia “superioridade”, decide terminar o relacionamento conosco
da maneira mais simples possível, exterminando-nos. Mais, utilizam-nos como fonte de energia,
ou seja, como autênticas pilhas. Para tanto, somos criados em casulos ovóides para servir de
fonte de força para computadores e robôs, em um sistema de criação intensiva muito próximo ao
que hoje experimentam os animais.
880
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 283.

- 337 -
3.2. REGAN e a “Questão dos Direitos dos Animais”881

É possível, me pergunto, que todas as pessoas estejam participando de


um crime de proporções inimagináveis? Estou fantasiando isso tudo?
Devo estar louca! No entanto, todo dia vejo provas disso! As próprias
pessoas, de quem desconfio, produzem provas, exibem as provas para
mim, me oferecem. Cadáveres. Fragmentos de corpos que compraram
com dinheiro.882

J.M. COETZEE

Os animais não existem em função do homem [...] eles possuem uma


existência e um valor próprios. Uma moral que não incorpore essa
verdade é vazia. Um sistema jurídico que a exclua é cego883.

TOM REGAN

O norte-americano TOM REGAN, nascido em 1938, é um dos


principais filósofos contemporâneos a abordar o tema dos “direitos dos animais”.
Ph.D em Filosofia pela Universidade da Virgínia, é atualmente professor da
matéria na Universidade da Carolina do Norte. É autor de inúmeras obras que
abordam o tema dos “direitos animais” entre as quais se destacam: Animal Rights
and Human Obligations em parceria com PETER SINGER (Prentice Hall, 1976),
All That Dwell Therein (University of California Press, 1982), The Case For Animal
Rights (Universtiy of California Press, 1983), The Struggle for Animal Rights
(International Society For Animals, 1987), Defending Animal Rights (University of
Illinois, 2001), The Animal Rights Debate com CARL COHEN (Rowan & Littlefield,
2001), Animal Rights, Human Wrongs: An Introduction To Moral Philosophy
881
O título do item é referência à obra mais conhecida de REGAN, intitulada “The Case For Animal
Rights”, já citada no curso do presente trabalho.
882
COETZEE, J.M. A Vida dos Animais. Tradução de José Rubens Siquiera. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 82-3.
883
REGAN apud LEVAI; IBARRECHE, Frigorífico, op.cit., p. 27.

- 338 -
(Rowman & Littlefield, 2003), Empty Cages (Rowman & Littlefield, 2004), entre
outras.

REGAN afirma que o “princípio da justiça” implica que, quaisquer


que sejam nossas concepções particulares do que venha efetivamente consistir a
Justiça, ela não será feita se tratarmos diferentemente os indivíduos sem que haja
uma razão moral relevante para que assim seja. No entanto, para REGAN o
“princípio da justiça” tem uma natureza muito mais formal que material, pois não
especifica o que é devido, nem a quem é devido, havendo uma necessidade de
uma interpretação normativa acerca de seu conteúdo. Não é surpresa, pois, que
as interpretações variem enormemente entre si. REGAN defende, a esse respeito,
a teoria da justiça como “igualdade individual” (“equality of individuals”) em
detrimento das concepções utilitárias e perfeccionistas884.

884
Ambas as concepções de justiça já foram previamente tratadas no presente trabalho e
refutadas. De acordo com REGAN, entre outras razões, a rejeição ao utilitarismo se dá em razão
de transformar os indivíduos em meros receptáculos, ou seja, o que é intrinsecamente valorado é
alguma qualidade, tal qual o prazer ou, de acordo com SINGER, a preferência, e não o indivíduo.
O valor de cada pessoa é medido em função da posse destas características. Ainda que o
utilitarismo se paute pela adoção da sensibilidade para o critério de igualdade, descuidam do valor
intrínseco dos indivíduos, pois, em razão da “utilidade”, os interesses individuais podem ser
sacrificados em nome da maximização da felicidade, do bem-estar ou da preferência do maior
número. O perfeccionismo, por sua vez, sustenta que o que é devido aos indivíduos depende do
quanto estes indivíduos se aproximam de um padrão de excelência previamente estabelecido, o
que pode gerar tratamento interpessoal altamente desigualitário e diferenciado. O contratualismo
também é rechaçado por REGAN, mesmo na sua acepção rawlsliana, pois, como já analisado,
“não há nada que garanta ou exija que todos terão uma chance de participar igualmente das
regras de moralidade” (REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 68, tradução nossa).

- 339 -
Consoante destaca GABRIELA DIAS DE OLIVEIRA:

Isto posto, tornam-se mais preciosos os argumentos de Tom Regan para


afirmar a superioridade de sua teoria dos direitos frente às teorias do
contrato e às teorias utilitaristas: ao contrário do contratualismo, a teoria
dos direitos nega tolerância moral a toda e qualquer forma de
discriminação; a contrário do utilitarismo, a teoria dos direitos nega
justificação a bons resultados que empreguem meios que violem direitos
individuais.885

REGAN acredita que todos os indivíduos possuem valor intrínseco e


que é totalmente inapropriado tratá-los meramente como meios para o fim de
maximizar o que venha a ser considerado como intrinsecamente valioso por
terceiros. O autor sustenta que vasto material empírico e teórico indica com
segurança que, ao menos alguns animais, sentem dor e prazer, possuem
desejos, memória, percepção, intenção, autoconsciência, e um certo sentido a
respeito do tempo e do futuro. Porque têm tais características físicas e mentais,
seria altamente razoável afirmar que os animais têm uma vida psicológica ao lado
da física: “eles se sentem bem ou mal durante o curso de suas vidas, e a vida de
determinados animais é, mensurável e experimentalmente melhor a de outros”886.
REGAN confere aos animais a característica a que denomina de “autonomia
preferencial”. Seu bem-estar é autônomo e, via de regra, tal como nós, independe
do bem-estar alheio. Neste sentido, as privações e restrições a eles impostas,
impeditivas do comportamento natural de sua espécie, podem acarretar danos
concretos e reais, muito embora possam não estar envolvidas nem a dor nem o
sofrimento em sentido estrito. A morte de um animal saudável, de forma dolorosa
ou não, representa o fim e o desfecho irreversível da satisfação de suas
preferências futuras, frustrando diretamente o seu bem-estar, pois não está no
seu âmbito de interesses ser morto. Como pode-se perceber, o filósofo utiliza um
raciocínio analógico em uma construção refinada da regra de ouro. Em razão da

885
OLIVEIRA, Gabriela Dias. A Teoria dos Direitos Animais Humanos e Não-Humanos de Tom
Regan. Revista Ethic@, Florianópolis, v. 3, n. 3, p. 289.
886
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 82.

- 340 -
“autonomia preferencial” partilhada pelos animais, além da capacidade de bem-
estar experimental, tudo aquilo que reputamos não dever ser feito contra seres
humanos devemos também nos abster de fazer em relação aos animais.

REGAN utiliza a abordagem dos “casos marginais” distinguindo uma


forma a que qualifica como mais forte e outra mais fraca:

(1) alguns animais possuem determinados direitos porque estes


humanos (pacientes morais - casos marginais) têm estes direitos
[concepção mais forte para os direitos dos animais] ou (2) se estes
humanos têm alguns direitos, então determinados animais devem tê-los
também [forma mais fraca de argumentação para os direitos dos animais
– raciocínio analógico].887

O autor sustenta que a forma mais forte conduz a que não


possamos maltratar os pacientes morais humanos porque eles efetivamente têm
direitos. Todavia, o fundamento dos direitos morais básicos residiria na “intuição”
compartilhada por todos de que eles têm direitos, o que torna mais difícil trabalhar
com esta hipótese. Por esta razão, prefere argumentar com a versão mais fraca,
apelando à coerência de considerar de modo equivalente àquilo que é similar.

Ainda sob a ótica dos “casos marginais” REGAN afirma:

Uma inconsistência comum diz respeito às crenças sobre o status moral


das crianças humanas de um lado e crenças sobre o status moral de
animais não-humanos de outro. Como deveríamos julgar o status moral
dos animais não-humanos que se assemelham às crianças humanas em
todos os aspectos relevantes, isto é, aqueles animais que habitam o
mundo e estão cientes de tal fato; que experimentam algumas coisas
como prazerosas e outras como dolorosas; que podem sentir medo e
conforto; que são capazes de comunicar seus desejos, preferências,
expectativas e angústias; que reconhecem aqueles que lhes são
familiares e suspeitam daqueles que lhes são estranhos; e que, tal como
crianças humanas, possuem uma presença psicológica no mundo e um

887
REGAN, All That Dwell Therein, op.cit., p. 116.

- 341 -
bem-estar experimental ao longo do tempo – em resumo, aqueles
animais que são sujeitos-de-uma-vida, vida que pode andar bem ou mal,
independentemente do quão valiosos são para outros animais? Se, via
de regra, é errado matar ou de quaisquer outros modos lesar crianças
humanas tendo tais características para que outras delas pudessem se
beneficiar, e se é fundamento suficiente para que tenham direitos; então
como podemos evitar de chegar à mesma conclusão em relação a todos
aqueles animais não-humanos que são semelhantes a estas crianças em
todos os aspectos relevantes? Se estas crianças têm direitos, de que
forma, podemos consistentemente nos recusarmos a reconhecer os
direitos destes animais?888

Explicando a opção tomada pelo autor, SÔNIA T. FELIPE esclarece


que:

Regan propõe que o critério mais apropriado para servir aos propósitos
da expansão da comunidade moral humana seja o do valor inerente, pois
a atribuição de tal valor a um determinado ser vivo garante ao mesmo
tempo, a expansão dos limites da comunidade moral humana para
englobar seres de outras espécies, e a possibilidade de não transformar
tudo em uma e mesma coisa, ao oferecer um critério para traçar a tal da
necessária linha divisória entre pacientes morais (os que podem ser
prejudicados em seu bem-estar e qualidade de vida por conta de atos de
agentes morais) e pacientes não morais, aqueles em relação aos quais
os atos humanos não podem representar prejuízo algum, porque embora
possam ser vivos, tais seres não são capazes de distinguir entre bem-
estar e mal-estar, não podem, nesse sentido, ter qualquer valor
intrínseco, pois não vivem sua experiência de seres vivos como algo
889
consciente.

Assim sendo, a parte primordial da argumentação de REGAN diz


respeito à postulação de “igual valor intrínseco” (“equal inherent value”). De certo
modo, representa uma visão intermediária entre a teoria utilitarista dos valores

888
REGAN, Defending Animal Rights, op.cit., p. 101-102, tradução nossa.
889
FELIPE, Direitos Animais, op.cit., p. 18.

- 342 -
inerentes ou intrínsecos (o valor dos indivíduos poderia ser determinado pelo
valor intrínseco total de suas experiências) e a concepção perfeccionista de valor
(indivíduos têm valor, mas o nível de valor varia de pessoa a pessoa dependendo
da posse de determinadas características). A teoria do “equal inherent value”
sustenta que os indivíduos possuem um valor moral inerente e autônomo, à parte
de quaisquer outros critérios de valoração, e que este valor moral intrínseco é
distribuído de forma equânime, ou seja: “todos os que possuem valor inerente o
possuem igualmente, sejam animais humanos ou não”.890 Neste sentido, pode-se
afirmar que a perspectiva do autor abraça uma perspectiva kantiana alargada,
adotando uma concepção alargada dos seres que devem ser incluídos na
comunidade moral.

A igual atribuição de valor intrínseco a agentes e pacientes morais


se deve ao fato de que ambos são “sujeitos-de-uma-vida” (“subject-of-a-life”), isto
é, possuem, muito embora em níveis diferenciados, condição de “experimentar
como pior ou melhor a experiência mesma do viver”.891 Ser um “sujeito-de-uma-
vida” é, na visão de REGAN, condição suficiente para se ter valor intrínseco892,
quaisquer que sejam as atribuições de ordem pessoal ou de utilidade dos agentes
ou pacientes morais, sejam eles humanos ou não893. A construção do filósofo visa

890
Ibid., p. 72.
891
Esta frase é de SÔNIA T. FELIPE (Direitos Animais, op.cit., p. 13) e sintetiza corretamente os
argumentos de REGAN no sentido de que: “Ser um sujeito-de uma-vida é ser um indivíduo cuja
vida é caracterizada pelas características exploradas nos capítulos iniciais do presente trabalho:
isto é, indivíduos são sujeitos-de-uma-vida se possuem crenças (“beliefs”) e desejos (“desires”);
percepção, memória, e um certo senso a respeito do futuro, incluindo o seu próprio futuro; uma
vida emocional marcada por sentimentos e experiências de prazer e dor; preferências e interesse
de bem-estar; habilidade de iniciar ações para a perseguição de seus desejos e metas; uma
identidade psicológica ao longo do tempo, e um bem-estar individual no sentido de que as
experiências vividas conduzem a uma melhora ou piora de sua qualidade de vida [...]” (REGAN,
The Case For Animal Rights, op.cit. p. 243). REGAN realmente explora todas estas características
demoradamente nos capítulos iniciais de sua obra The Case For Animal Rights, concluindo que
boa parte dos animais possui tais qualidades.
892
REGAN faz algumas ressalvas quanto a este ponto. Para o autor, a satisfação do conceito de
“sujeito-de-uma-vida” não é condição necessária para que se possua valor inerente e sim
suficiente. A própria possibilidade de se desenvolver uma ética ambiental apartada do uso do
meio-ambiente como recurso, dá margem a que se sustente que determinados objetos naturais,
muito embora não sejam “sujeitos-de-uma-vida”, possam ter valor intrínseco. Mesmo humanos e
animais que inicialmente não se encaixam no conceito podem ser vistos como possuindo valor
inerente.
893
Consoante frisa SÔNIA T. FELIPE, de acordo com a teoria de REGAN, “mesmo os seres com
graves lesões neurológicas, que não podem exercer atividade racional alguma, nem apresentar
uma performance lingüística que indique minimamente a capacidade de compreensão racional de

- 343 -
criar um critério inteligível e não-arbritário para conduzir à análise da concessão
do valor intrínseco. O critério de ser sujeito-de-uma-vida, segundo ele, preenche
os requisitos lógicos de: (1) similaridade relevante em relação àqueles que
postulam valor inerente (agentes e pacientes morais); (2) já que o valor intrínseco
é concebido como um valor categórico, sem níveis ou degraus distintivos,
qualquer similaridade relevante deve também ser categórica (ou se é sujeito-de-
uma-vida ou não: quem o for será de modo igual aos demais); (3) as similaridades
relevantes havidas entre agentes e pacientes morais deve conduzir à conclusão
de que temos deveres e direitos para com ambos.

Para REGAN, é importante destacar que:

Este critério [sujeito-de-uma-vida] é introduzido depois de termos


indicado as razões pelas quais os agentes e pacientes morais possuem
igual valor inerente, não antes; isto é, seu papel não é o de “derivar” o
igual valor inerente dos agentes ou pacientes morais; pelo contrário, seu
papel consiste em especificar uma similaridade relevante entre todos os
indivíduos que, por força do argumento, devem ser vistos como
possuindo igual valor inerente se postulamos isso no caso de todos os
agentes morais, uma similaridade que faz com a atribuição de valor
inerente seja feita de maneira inteligível e não arbitrária.894

O filósofo é usualmente criticado por introduzir a “intuição” como


elemento relevante para a caracterização da categoria “sujeito-de-uma-vida”, por
ser ela um conceito vago e algumas vezes misterioso. Em realidade, REGAN
afirma que um dos critérios da aceitação dos princípios morais é a sua
conformidade com nossas intuições morais, embora utilize o termo “intuição” não
como uma verdade auto-evidente, mas como juízos morais. De acordo com ele,
os princípios morais devem estar de acordo com nossas intuições básicas em
uma situação, tal como descrita por RAWLS, de “equilíbrio reflexivo”. Ainda assim,

sua existência, podem ser sujeitos de uma vida, no sentido de que suas experiências intrínsecas
de prazer, dor, alívio da dor, conforto físico e desconforto, continuam a ser possíveis apesar de
todas as demais incapacidades” (FELIPE, Direitos Animais, op.cit., p. 13)
894
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 248, tradução nossa.

- 344 -
somente depois de termos sujeitado tais intuições a um número de “testes”895 de
modo a assegurar que elas reflitam nossos juízos morais e não somente “palpites”
ou “sentimentos” particulares896. Neste particular, se existe alguma intuição que
seja compartilhada pela quase totalidade de nós é a de que temos uma vida que
nos é cara e extremamente relevante, por mais miseráveis e por mais que
ninguém mais a valorize além de nós mesmos. A maioria esmagadora dos seres
humanos, não importa qual a importância do benefício a ser atingido, não se
submeteria a experimentos científicos dolorosos ou que trouxessem
conseqüências sérias e indesejáveis à nossa saúde. Há uma clara e evidente
intuição generalizada no sentido de valorização da própria vida e de sentido de
auto-preservação que gera um outra poderosa intuição de que,
independentemente do benefício comum a ser alcançado, a vida e a liberdade
individual não podem ser sacrificadas de modo absoluto897.

REGAN introduz em sua argumentação o “princípio do respeito”


(“respect principle”), o qual requer que tratemos os indivíduos que têm valor
intrínseco de modo a respeitar este valor intrínseco, ou seja, os indivíduos que
são “sujeitos-de-uma-vida” não podem ser tratados como meios para a finalidade
de maximizar conseqüências agregadas desejáveis. Sua construção afasta-se,
neste sentido, das postulações kantianas, pois fornece critérios racionais de
conexão entre agentes e pacientes morais, que faz nascer um dever dos agentes
em relação aos pacientes e, simultaneamente, um direito dos últimos em relação
aos primeiros.

895
Em sua visão, as intuições devem preencher os requisitos de: (a) clareza conceitual; (b) bases
empíricas e informacionais adequadas; (c) racionalidade; (d) imparcialidade; (e) tranqüilidade
emocional.
896
REGAN afirma que os princípios morais devem possuir os seguintes atributos: (a) consistência
ou coerência (nenhum princípio moral pode sustentar que um mesmo ato seja simultaneamente
correto e errado); (b) adequação de propósito (um princípio moral deve ser aplicável em variadas
circunstâncias nas quais se exige uma decisão moral); (c) precisão (um princípio moral deve poder
basilar claramente os caminhos a serem seguidos); (d) conformidade com nossas intuições (um
princípio moral deve estar inserido em uma situação de “equilíbrio reflexivo” com nossas crenças
morais, seja coincidindo com elas diretamente ou unificando-as sob bases comuns); (e)
simplicidade (é o princípio da navalha de Occam: sob as mesmas condições e pressupostos, o
princípio mais simples deve ser preferido em detrimento do mais complexo).
897
Um teste bastante simplório a respeito da validade destas intuições se dá com o aumento da
carga tributária. Tais medidas são, em geral, altamente impopulares, ainda que sejam justificadas
por uma retórica de maximização do bem-comum.

- 345 -
REGAN defende a tese segundo a qual os direitos fundamentais
(tratados inicialmente em uma acepção não propriamente jurídica do termo) são
universais no sentido de que se um indivíduo os possui, então qualquer outro
indivíduo em todos os aspectos similar também os deve ter, de maneira
equivalente. Apoiando-se em JOHN SUTART MILL898 e em JOEL FEINBERG899,
REGAN sustenta que os direitos morais (sejam eles fundamentais ou não)
produzem afirmações válidas sobre a sua propriedade, significando que a um
possuidor de um dado direito é garantido, de forma direta e autônoma, um
tratamento específico a ele correspondente. Os agentes e pacientes morais têm,
portanto, o direito a um tratamento digno, pois possuem valor intrínseco. Tal
direito veda a que sejam tidos como meros “receptáculos” de valores, tal como
advogado pelos utilitaristas.

Do direito a um tratamento digno advém o “princípio da lesão” (“harm


principle”), que é melhor percebido em sua faceta negativa como o direito
individual básico de não ser lesionado900. Todos aqueles que, de uma forma ou de
outra, satisfazem o critério de “sujeito-de-uma-vida” possuem o direito de não
serem explorados ou lesionados como meios para finalidades de outrem. De
acordo com a análise proposta por REGAN, tais direitos somente poderiam ser
suplantados em duas situações específicas. Primeiro, quando deparando-se com
a necessária e inafastável escolha entre lesionar poucos ou muitos, seria melhor
que se lesionassem poucos (“miniride principle”). Além disso, na mesma situação,
se a lesão dos poucos fosse gerar um dano de tal monta superior à que seria
gerado em muitos, em termos gerais seria mais apropriado lesionar muitos
(“worse-off principle”).

Como se percebe, tratar os animais como “sujeitos-de-uma-vida”


(possuindo valor intrínseco) traz a conseqüência de que não podem servir de
instrumento, meio ou recurso para a consecução de fins humanos, a não ser pela
flagrante violação ao princípio do respeito. Neste sentido, REGAN coloca-se
frontalmente contra as práticas em que animais são utilizados para abate e
898
MILL, John Stuart. Utilitarianism. New York: Liberal Art Press, 1957.
899
FEINBERG, Joel. Rights, Justice, and the Bounds of Liberty. Princeton: Princeton University
Press, 1980.
900
A positiva consistiria no dever de prestar assistência às vítimas da lesão.

- 346 -
consumo (alimento), caça, educação, entretenimento, testes e pesquisa,
independentemente da questão se há ou não causação de dor e sofrimento901 ou
se há benefícios tangíveis a serem revertidos para o homem. O autor descarta
ainda o argumento segundo o qual o “princípio da liberdade” (“liberta principle”)
pudesse justificar que haveria uma margem residual para se utilizar os animais
para tais finalidades. Segundo o autor, os que exploram animais não possuem tal
alegada “liberdade” em razão do fato de que o “princípio da liberdade” só permite
que indivíduos inocentes sejam lesionados quando seu igual valor intrínseco
tenha sido previamente respeitado, o que, definitivamente, não ocorre nas
atividades que os tratam como meros meios.

A posição de REGAN é bastante coerente e lógica e funciona sob as


bases de um raciocínio de fundamentação dos próprios direitos humanos.
Segundo bem sintetiza GABRIELA DIAS DE OLIVEIRA:

Ao apresentar-se como advogado da causa dos animais, Regan tem em


mira os preconceitos que envolvem o próprio estatuto moral da vida
humana; é por isso que, no trabalho intelectual por ele empreendido, não
está em jogo apenas a inclusão dos animais no âmbito da moralidade
humana, através do redimensionamento das relações entre animais e
não-humanos, mas a própria fundamentação dos direitos humanos.902

De fato, a professora SÔNIA T. FELIPE também destaca este


aspecto na retórica reganiana:

Ao chamar a atenção dos filósofos para o fato de que os direitos


humanos fundamentais independem de quaisquer performances ou
desempenhos individuais, Regan insiste em lembrar que aos humanos

901
REGAN insere-se, pois, como um abolicionista, criticando a “volatilidade” da caracterização da
crueldade. Critica também a posição “welfarista”, pois segundo ele, o dever negativo de não ser
cruel não possui correlação direta com a correção de determinada conduta: “[...] assim como uma
pessoa motivada pela bondade não garante que ele ou ela faz o que é certo, também a ausência
de crueldade não assegura que ele ou ela evita fazer o que é errado” (REGAN apud OLIVEIRA,
op. cit. p. 298).
902
OLIVEIRA, op.cit., p. 283.

- 347 -
gravemente atingidos por lesões neurológicas, que os impedem de
realizar com autonomia as mais simples atividades físicas e ou mentais,
são atribuídos direitos humanos básicos, sem os quais estariam à mercê
de negligência, abandono, maus tratos, abusos e, pois, da dor, do
sofrimento, e da morte violenta. Nesse sentido, e distinguindo-se de
utilitaristas e contratualistas, Regan não considera que o sujeito de um
direito moral deva ser um sujeito de interesses para que possa entrar no
âmbito da moralidade, como o requer a teoria de Singer, por exemplo,
porque para ter interesses é preciso estar apto a realizar algo e ao
mesmo tempo impedido, por força alheia, de o fazer. Antes de poder
desenvolver as capacidades que o habilitam a ser um sujeito de
interesses, o ser humano já deverá estar sendo amparado pelos direitos
humanos, sob pena de não alcançar os meios para tornar-se
efetivamente humano e feliz. Assim, se não se exige dos indivíduos
humanos quaisquer dotes ou habilidades específicas para que sejam
considerados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem do
mesmo modo, não se pode exigir que os animais apresentem
determinadas performances para que sejam considerados dignos de
tratamento respeitoso.903

A circularidade lógica de seu raciocínio consiste no fato de que se os


direitos humanos podem efetivamente ser fundamentados sob o postulado do
valor inerente dos indivíduos, não há como se justificar a exclusão dos animais
não-humanos a não ser por uma flagrante e especista violação do princípio do
respeito (quebra da coerência). De outro lado, somente se forem aceitos os
critérios de inclusão animal (boa parte dos animais são criaturas, assim como os
seres humanos, conscientemente capazes de experimentar bem-estar e de
empreender ações a fim de mantê-lo), podem ser legitimados os direitos humanos
sob a mesma fundamentação (evitando-se o problema dos “casos marginais”).

No entanto, deixa de sinalizar caminhos para os casos de conflitos


entre direitos humanos e animais. Ele não chega a enumerar, tampouco, os
direitos específicos a que os animais fariam jus (além daquele consistente no
impedimento de serem tratados como meros meios) caso a sua exploração
institucionalizada fosse efetivamente abolida. REGAN responde a essa crítica

903
FELIPE, Direito dos Animais, op.cit., p. 10-11.

- 348 -
afirmando que uma das funções da filosofia é a de analisar nossos atos e nosso
comportamento e apontar em que sentido são incoerentes e devem ser
aprimorados. Esta é a razão pela qual considera que o direito é uma ferramenta
importante, para não dizer, essencial, para possibilitar a implementação das
mudanças que se originarem da reflexão filosófica.

DALE JAMIESON, professor no Carleton College904, não questiona o


fato de animais serem titulares de direitos, mas critica a formulação dos deveres
de assistência tal como colocada na teoria dos direitos de REGAN905. Como foi
verificado, do “princípio da lesão” adviria o direito individual de não ser lesado
(aspecto negativo) e o dever de prestar assistência às vítimas de injustiça
(aspecto positivo). Segundo JAMIESON, para REGAN somente os agentes
morais são capazes de cometer injustiças, ao passo que sofrem injustiça os
agentes e pacientes morais que têm seus direitos violados. Neste sentido, o dever
de assistência seria limitado às vítimas de injustiça perpetrada por agentes
morais, pelo que haveria situações não de injustiça, mas nas quais pacientes
morais ficariam desamparados:

A abordagem de Regan leva à conclusão de que nos casos em que


direitos são ameaçados podemos ter deveres de assistência mesmo
quando os custos seriam grandes e os benefícios pequenos, ao passo
que nos casos em que direitos não são ameaçados podemos não ter
deveres de assistência mesmo que os custos sejam pequenos e os
benefícios, grandes.906

REGAN responde a tal sorte de crítica afirmando que, a rigor,


realmente não devemos nada a quem não é vítima de uma injustiça. Outras
razões, que não são baseadas no “princípio da justiça”, podem, no entanto, nos

904
JAMIESON é editor das obras Reflecting on Nature: Readings in Environmental Philosophy.
New York: Oxford University Press, 1994; de Readings on Animal Cognition. Cambridge: MIT
Press, 1995; Singer and His Critics. Blackwell Publishers, 1999; e A Companion to Environmental
Philosophy. Blackwell Publishers, 2003. É autor da obra Morality Progress: Essays on Humans,
Other Animals, and the Rest of Nature. Oxford University Press, 2004.
905
JAMIESON, Dale. “A Critique of Regan´s Theory of Rights”. In: STERBA, op.cit.
906
JAMIESON apud OLIVEIRA, op.cit., p. 292.

- 349 -
levar a ajudar indivíduos nestas situações. Segundo ele, pode-se construir um
dever de solidariedade (nos moldes de PECES-BARBA) ou de beneficência no
sentido de “[...] prestar assistência significativa àqueles que a necessitam sem
culpa própria e que nos obriga independentemente de qualquer outro caso de
violação de direitos”.907

RAYMOND FREY, professor de filosofia na Bowling Green


University908, discorda da tese de animais como sujeitos de direitos. Por essa
razão, não vê como o apelo aos “casos marginais” pudesse levar à conclusão de
que vidas humanas e animais teriam valor inerente. De fato, REGAN defende a
idéia segundo a qual:

Talvez alguns afirmem que os animais possuem algum valor inerente, só


que em níveis inferiores que os nossos. Mais uma vez, todavia, pode-se
demonstrar que as tentativas de defender tal visão carecem de
justificação racional. Qual seria o fundamento para que tivéssemos mais
valor inerente que os animais? A sua ausência de razão, ou autonomia,
ou intelecto? A resposta poderia ser afirmativa somente se estivermos
dispostos a realizar o mesmo tipo de julgamento para os casos de seres
humanos que são igualmente deficientes nestes aspectos. No entanto,
não é verdadeiro que tais seres humanos – as crianças com retardo
mental, por exemplo, ou com outras deficiências mentais – possuem
menor valor inerente que eu ou você.909

Para FREY, no entanto, as vidas humanas possuem valores


diferentes na medida em que o valor de uma determinada vida estaria
diretamente relacionada à sua qualidade, o que sinceramente, me parece uma
afirmação bastante arriscada tanto do ponto de vista teórico como prático.
Segundo FREY:

907
REGAN apud OLIVEIRA, op.cit., p. 292.
908
FREY é autor de Interests and Rights: The Case Against Animals. Oxford: Clarendon Press,
1980; e dos polêmicos artigos “Why Animals Lack Beliefs and Desires” e “The Case Against
Animal Rights”. In: REGAN, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., pp. 39-42 e 115-118.
909
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 23, tradução nossa.

- 350 -
[...] eu não reputo que todas as vidas humanas tenham igual valor; não
aceito que um ser humano com deficiências mentais extremas ou um
idoso sofrendo de demência senil ou mesmo um recém-nascido com
metade do cérebro tenha uma vida cujo valor seja equivalente a de uma
pessoa adulta normal.910

É fato que, infelizmente, pessoas vivem vidas miseráveis e menos


providas de bens materiais e de experiências de bem-estar que outras. Todavia,
isso não as torna menos valiosas ou protegíveis que as demais. Por acaso há
previsão de apenamento maior ou, correlatamente menor, para o homicídio de
pessoas de classes sociais díspares? O resultado da constatação de que há
pessoas que vivem em condições terríveis e indesejáveis não conduz à
necessária conclusão que as suas vidas, por tal razão, valem menos.

Para FREY, no entanto, a qualidade de vida estaria diretamente


relacionada ao seu valor: “Para mim, o valor da vida é uma função da sua
qualidade, sendo a qualidade uma função da sua riqueza e a sua riqueza função
do escopo ou da potencialidade para o enriquecimento”.911 Mais, o autor indica
que “[...] à medida que a qualidade da vida humana cai, trocas entre ela e outros
bens que valorizamos tornam-se possíveis”.912 Se mesmo a vida humana pode
ser valorada, o que dizer com relação aos animais. Com relação a estes, FREY,
como já mencionado anteriormente, adota uma postura mecanicista, fazendo uma
pavorosa analogia entre as necessidades de água e óleo com relação a um cão e
um trator, respectivamente.

O ponto de vista de FREY torna-se particularmente perigoso de ser


sustentado quando sustenta que a vida, seja ela de que natureza for, pode ser
objeto de troca e de negociação.

910
FREY, “The Case Against Animal Rights”, apud REGAN, op.cit., p. 116, tradução nossa.
911
Ibid., p. 116.
912
Ibid., p. 117.

- 351 -
Esta é a razão pela qual alguns autores o qualificam como fascista.
GABRIELA OLIVEIRA DIAS justifica o adjetivo:

Digo fascista porque se pode antever os problemas e as arbitrariedades


colocados por essa valoração da vida pelo vivo. Nietzsche dizia que o
vivo não pode julgar a vida porque ele é parte interessada, e mesmo
objeto de litígio. O critério apresentado por Frey – “potencialidade para o
enriquecimento” – é um exício para o pensamento, tanto do ponto de
vista da filosofia como da ciência (como se alguém soubesse de
antemão o que pode um corpo). Do ponto de vista político, o Reich
alemão é o exemplo moderno das tentativas de implementar a eutanásia
como expressão de compaixão ou “humanismo”, regime de saúde
público e/ou garantia do bem-estar social presente e futuro, através do
aniquilamento de todas as formas de vida consideradas como que a
“imagem ao avesso da autêntica humanidade”. Propondo o conceito de
“vida sem valor” ou “vida indigna de ser vivida” em referência aos
indivíduos considerados “incuravelmente perdidos” (doentes,
acidentados, feridos, insanos), um especialista em direito penal e um
professor de medicina alemães abriram o caminho para o que seria o
“programa de eutanásia para doentes mentais”, que em quinze meses de
operações, entre 1940 e 1941, eliminou cerca de sessenta mil
pessoas.913

REGAN defende sua posição afirmando que:

Deve ficar claro, no entanto, que ao desafiar minha posição do modo que
faz FREY, estabelece-se uma confusão entre a idéia de valor intrínseco
e com outra, dela diversa, do bem-estar individual. Falar em qualidade
de vida é se referir a quão bem se passa uma vida individual, enquanto
falar em valor intrínseco é se referir ao valor (status moral) do indivíduo
cuja vida se discute. Indivíduos que se encontram em situação de
desorientação mental, enfermidade, ou qualquer outra forma de
desvantagem, realmente levam vidas que são de uma qualidade inferior
àqueles que alcançam o mais alto nível na escala de Maslow de auto-

913
OLIVEIRA, op.cit., p. 299.

- 352 -
realização914. Mas isso não implica que aqueles que possuem uma
qualidade de vida inferior não possuam valor intrínseco ou que possam
ser utilizados como meros recursos daqueles que têm uma qualidade de
vida superior.915

Há ainda uma linha de argumentação, a que REGAN denomina de


“feminism indictment”, sustentada por alguns filósofos feministas, que se bate com
o fato de que a idéia dos direitos individuais incorporaria uma concepção
patriarcal de sociedade e, via reflexa, os direitos dos animais também refletiriam
essa concepção. Contra tal posicionamento REGAN desfere três contra-
argumentos: (1) o mais simples deles (“defesa genealógica”) diz respeito ao fato
de que não é razoável concluir que os direitos individuais são patriarcais por
terem sido criados por indivíduos do sexo masculino. Se assim o fosse, outra
idéias importantes também deveriam ser classificadas do mesmo modo
(geometria euclidiana seria patriarcal por ter sido concebida por Euclides?); (2)
outra sorte de contra-argumento (“implementation defense”) refere-se ao fato de
que idéias não devem ser classificadas como patriarcais simplesmente porque
foram utilizadas em algum momento de um modo patriarcal. O uso de uma idéia é
uma coisa, a idéia em pode ser outra bastante distinta (a idéia da “genética” foi
indevidamente apropriada para justificar uma pretensa superioridade entre
“raças”. Tal fato, contudo, não demonstra, por si, que a “genética” seja patriarcal);
(3) a terceira defesa proposta por REGAN (“male mind defense”) critica a outra
idéia comumente disseminada no sentido de que, por serem diferentes, homens e
mulheres pensam de modo distinto, sendo que homens tendem a valorizar a
razão, a objetividade, a imparcialidade, a justiça, a cultura e o individualismo, ao
passo que mulheres tenderiam a dar maior importância à emoção, à

914
A denominada Escala de Maslow traz vários níveis de satisfação das necessidades humanas.
O primeiro deles é o fisiológico (sobrevivência, alimentação, roupa, moradia, ...), o segundo
representa a segurança (proteção da família e estabilidade no lar e no trabalho), o terceiro são as
necessidades sociais (sentimento de aceitação, amizade e associação), o quarto é o ego ou
estima (autoconfiança, independência, reputação), e por último, o quinto nível é a auto-realização
(realização de seu próprio potencial, auto-desenvolviemento, criatividade, auto-expressão). O
psicólogo HAROLD MASLOW (1908-1970) desenvolveu a tese da cadeia das necessidades
quando trabalhava com macacos, quando percebeu que determinadas necessidades tinham
precedência sobre as demais.
915
REGAN, Defending Animal Rigths, op.cit., p. 49.

- 353 -
subjetividade, à parcialidade, ao cuidado, à natureza e à comunidade. Com base
nisso, os homens tendem a desenvolver raciocínios dualistas no qual os seus
valores são colocados em termos de superioridade. A idéia feminista, baseando-
se em tal observação, afirma que a idéia dos direitos individuais é produto da
mente masculina e, portanto, incorpora os ideais masculinos, colocando mais
valor na separação do indivíduo e de seus direitos do que na família ou nas
relações de comunidade. REGAN reputa tal construção absolutamente
controversa por várias razões. A primeira delas é que há grande discussão
empírica sobre as evidências dos fatos acima narrados (pesquisas com a escala
moral de Kohlberg). Segundo, tal raciocínio conforma um paradoxo destrutivo,
qual seja o de que o ataque ao patriarcalismo sustenta um preconceito
(superioridade de uma determinada visão de mundo) que o próprio ataque deseja
suplantar. Terceiro, pelas teorias tradicionais, basear a aquisição de direitos na
capacidade de raciocínio não é um ato patriarcal, desde que, paralelamente, se
sustente que as mulheres sejam igualmente racionais. Quarto: outro dualismo,
justiça e cuidado, baseia-se em premissas equivocadas. Justiça e cuidado são
conceitos absolutamente diferentes e pode haver maneiras de se interpretar a
responsabilidade moral de modo a enfatizar a justiça e, em o fazendo, enfatizar o
cuidado. Os conceitos são distintos, mas não excludentes. Por último, deve-se
dizer que o fato de se basear a defesa dos direitos dos animais em critérios
racionais não deve significar que não há espaço para a emoção.

Parece-me, realmente, que as críticas neste sentido são


injustificadas.Aliás, é o próprio REGAN que menciona o fato de que “a filosofia
pode conduzir a mente até a água, mas somente a emoção tem o condão de
fazer com que a beba”916. Neste sentido:

There are times, and these not infrequent, when tears come to my eyes
when I see, or read, or hear of the wretched plight of animais in the
hands of humans. Their pain, their suffering, their loneliness, their

916
REGAN apud FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 6.

- 354 -
innocence, their death. Anger. Rage. Pity.Sorrow. Disgust ... It is our
hearts, not just our heads, that call for an end to it all.917

3.3. As linhas de Wise

[...] cabe perguntar muito singelamente, porque não haveria a mesma lei
que reconhece já os danos morais resultantes da perda de um animal de
companhia, de atribuir direito a não-humanos, alicerçada na mera
compaixão que alguns deles nos mereçam em função de sua
vulnerabilidade, da sua exposição ao sofrimento e à malícia, da sua
partilha no mesmo meio e dos mesmos recursos em que se move a
espécie humana, da sua proximidade e do seu condicionamento pela
nossa espécie – focalizando nesses direitos um dever geral de respeito,
socialmente sancionável.918

FERNANDO ARAÚJO

Escravo é “aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade


absoluta de um senhor, a quem pertence como propriedade”919

Definição de escravo encontrada no Dicionário Houaiss

O advogado STEVEN M. WISE leciona “Animal Rights Law” na


Harvard Law School, Vermont Law School, John Marshall Law School e no
programa de pós-graduação de “Animais e Políticas Públicas” na Tufts University
School of Veterinary Medicine. Foi também um dos fundadores do renomado
“Animal Legal Defense Fund – ALDF” e do “Center for the Expansion of
Fundamental Rights”. É autor de diversas obras que abordam a questão dos
direitos dos animais, entre os quais podem ser citados: Rattling The Cage:
Toward Legal Rights for Animals (Cambridge: Perseus Books, 2000) e Drawing
the Line (Cambridge: Perseus Books, 2002).

917
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 25.
918
ARAÚJO, op.cit., p. 27-8.
919
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, op.cit., p. 1210.

- 355 -
Será que os animais seriam realmente nossos escravos, escravos
por natureza de acordo com a noção aristotélica? WISE, em Rattling The Cage
explora as razões pelas quais se construiu um contestável e histórico abismo
entre humanos e não-humanos, propugnando por uma urgente revisão desta
ideologia de dominação.

POTTER STEWART, ministro da Suprema Corte Norte-Americana,


afirmou, quando tratava de um caso envolvendo a liberdade de expressão e
pornografia, que temos um senso intuitivo do que sejam “direitos”, do mesmo
modo que sabemos que algo tem conteúdo pornográfico, ainda que não
possamos definir precisamente o que venha a ser a pornografia. WESLEY
HOHFELD, professor de Direito de Yale, buscando aprimorar a noção de
STEWART, procurou encontrar um denominador comum mínimo apto a
caracterizar a realidade dos direitos. Nesta linha, argumentava que os “legal
rights” consistiam em uma vantagem de posição reconhecida por normas
legais920. Assim sendo, uma pessoa somente possui uma “vantagem” porque
outra possui uma “desvantagem” que lhe é correlata. SAMUEL PUFENDORF já
nos trazia o exemplo de que antes de Eva ser criada, Adão não poderia ter
direitos, porque nenhuma outra pessoa habitava o Jardim do Éden.

HOHFELD, com base nestes parâmetros, estabeleceu quatro tipos


de “legal rights”: (1) liberdades (“liberties”): todos os indivíduos possuem uma
infinidade de liberdades de fazer aquilo que bem desejam, mas seu valor prático é
reduzido, pois nem sempre há o correlato dever de obedecê-las921; (2) “claims”922:
uma asserção sobre um direito subjetivo exige o correspondente dever de
respeito para que possua existência. Existindo, pode ter efeito inter-partes ou erga
omnes, dependendo do caso específico. É discutível se é exigível que o seu
proponente deva ser suficientemente capaz para demandá-la ou não. Para não

920
HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental Legal Conceptions as Applied in Judicial
Reasoning. Yale University Press, 1919.
921
O professor de Oxford H.L.A. HART bem descreve a relação entre a liberdade e um “não-
direito” com o exemplo da liberdade que um vizinho tem de olhar para outro por sobre a cerca do
jardim de sua casa, o que não corresponde ao dever do lindeiro de se deixar ser visto ou de não
interferir aumentando o seu lado da cerca para impedir a sua visão
922
“Claim. To demand as one´s own or as one´s right; […]” (BLACK´S LAW DICTIONARY. West
Publishing, 1979. p. 224).

- 356 -
entrar em debates, WISE parte do pressuposto de que animais não possam
validamente fazer uma “claim”; (3) “powers”: uma pessoa pode se utilizar de um
“poder” para afetar os direitos de outrem. O poder de demandar judicialmente
(legitimidade de parte ativa) é comumente citado como um dos principais
“poderes”. WISE mantém a mesma posição anterior no sentido de que animais
não sejam titulares de “poderes”, embora entenda bastante discutível o ponto em
questão; (4) imunidades (“immunities”): elas desabilitam legalmente outra pessoa
de interferir no seu conjunto de interesses individuais. As imunidades mais
comuns na common law correspondem a não ser escravizado e a não sofrer
tortura (uma pessoa seria imune à escravidão e à tortura). Neste sentido, não há
como exigir que alguém seja suficientemente capaz para que lhe sejam
concedidas imunidades.

Logicamente, é com relação às imunidades que o autor desenvolve


seu raciocínio para extensão de direitos aos animais. Segundo WISE, se
imaginarmos que o sistema legal seja representado graficamente por um círculo
(“round hole”), onde animais são atualmente tratados como coisas sem quaisquer
direitos; e a situação de animais como portadores de direitos por um quadrado
(“square peg”) fora do círculo, para conjugar a situação de animais atingindo
efetivamente os direitos dentro do âmbito legal, teríamos de enquadrar o círculo,
ou circular o quadrado. Para ele a melhor opção, ao menos diante das
possibilidades que oferece a common law, seria de circular o quadrado, em um
movimento de alargamento dos direitos para além daqueles que o direito
tradicionalmente reconhece. Essa foi a estratégia utilizada em Brown v. Board of
Education923 pelo famoso advogado dos direitos civis THURGOOD MARSHALL.

Os juízes que se apegam ao “formalismo” baseiam suas decisões


inflexível e exclusivamente no passado por meio dos precedentes, entendendo
que a previsibilidade, a estabilidade e a certeza dos julgamentos deve, em todos
os casos, nortear a adequação das normas legais em abstrato. O jurista
exemplifica a adoção de tal mentalidade em um caso ocorrido nos EUA em junho
de 2001, onde um policial, ilegalmente, atirou e matou um cão em frente a seus

923
Brown v. Bd. of Education of Topeka, 347 US 483 (1954).

- 357 -
proprietários.924 Um juiz da Suprema Corte de Wisconsin sustentou que a lei veda
a que um proprietário obtenha indenização por danos morais (“emotional distress
damages”) em casos como este, pois um cão é uma propriedade, “tal como
ressaltam os precedentes”. Em sentido contrário, WISE afirma que os juízes
“substantivos” rejeitam o passado como paradigma absoluto. Sua visão legal
preocupa-se com a dinamicidade dos valores sociais, tais como a moralidade, a
justiça e o avanço científico. Os princípios e políticas vivem e morrem e, sob este
prisma:

Decisões passadas, ou precedentes, não delimitam normas específicas,


mas princípios gerais, e os juízes não necessitam confinar-se aos modos
particulares pelos quais os seus pares anteriores se pautaram. Se um
princípio de justiça demandar que uma determinada norma deva ser
alterada, os juízes devem usar estes princípios para reconstruir a lei, até
mesmo em um sentido que possa destoar completamente em relação ao
passado.925

WISE discorre sobre os fundamentos dos princípios da liberdade e


da igualdade, detendo-se, em particular, aos aspectos da autonomia e da auto-
determinação que, em última análise, são aspectos da liberdade. Para C.K.
ALLEN, a diferença essencial entre uma pessoa e uma coisa reside na qualidade
da vontade que ela exprime. As criaturas animadas possuem algum atributo
análogo à vontade humana, mas que dela difere pela inexistência de razão.926
Essa visão kantiana incorpora a idéia de que o desejo de uma mula, por exemplo,
não é reconhecido pela lei porque, ainda que seja expressado intencionalmente, é
fruto do instinto, que é a antítese da vontade. As coisas não agem
autonomamente, pois carecem de vontade. Todavia, conforme adverte WISE, um
sem número de seres humanos também não a possuem, o que denota o que
CARL WELLMAN descreve como uma “conclusão monstruosa”. A lei e o sistema
judicial rejeitam expressamente esta visão que exige uma autonomia completa.

924
Rabideau v. City of Racine, 238 Wis. 2d 96, 617 N.W. 2d 678 (2001).
925
WISE, Drawing The Line, op.cit., p. 28, tradução nossa.
926
Ibid., p. 30.

- 358 -
Os mentalmente incapazes, por exemplo, não são objeto de medidas de
segurança a não ser que consistam em uma ameaça concreta à sua própria
integridade ou à de outros. Deste modo, aqueles que negam a personalidade aos
não-humanos agem arbitrariamente no sentido de que atribuem-na a humanos
absolutamente incapazes e até mesmo a pessoas jurídicas.

JOHN CHIPMAN GRAY não vê como se possa pretender que


humanos desprovidos de vontade própria tenham autonomia e determinados não-
humanos não sejam agraciados com o mesmo benefício927. Nem se diga que o
mero potencial para a autonomia justifique tratar alguém como ficticiamente a
possuindo, a menos que o mesmo seja verdade para o caso de que se justifique
tratar alguém como morto porque potencialmente um dia o será. De acordo com
JOEL FEINBEG, alocar direitos com fundamento em um potencial é um erro
lógico928. As ficções, justamente por não terem comprometimento com a realidade
fática, podem servir a propósitos contestáveis e abusivos, razão pela qual
BENHTAM as descreve como uma das principais doenças que habitam o sistema
legal.929

Na visão de WISE, uma alternativa razoável é reconhecer que


existem níveis diferenciados de autonomia, havendo uma autonomia menos
complexa. Em Rattiling the Cage, o autor denomina estas autonomias menos
complexas de “realistas”, mas em Drawing the Line prefere optar pelo termo
“práticas”, isto é, haveria o fenômeno a que nomeia de “autonomia prática”
(“practical autonomy”). Com base neste conceito, um ser vivo pode ser
considerado autônomo desde que: (1) possua desejos; (2) possa
intencionalmente tentar satisfazê-los; e (3) possui um senso de auto-suficiência
que o permita entender, ainda que em nível mínimo, que é ele que quer alguma
coisa e que é ele quem está tentando alcançar essa alguma coisa. A consciência,
não necessariamente a auto-consciência, e a senciência estariam implícitas na
“autonomia prática”.

927
GRAY apud WISE, Drawing The Line, op.cit., p. 32.
928
FEINBERG apud WISE, op.cit., p. 33.
929
Ibid., p. 32.

- 359 -
Assim sendo, se determinados seres preenchem os requisitos da
“autonomia prática”, possuem direitos fundamentais de liberdade a que WISE
denomina de “direitos-de-dignidade” (“dignity rights”).

Em Drawing the Line, o professor WISE constrói uma escala da


“autonomia prática” apoiado em diversos estudos de etologia cognitiva e
comportamental, principalmente de DONALD GRIFFIN. De acordo com tal
construção, as chances de um animal agir consciente e intencionalmente no
sentido de preencher as suas preferências podem ser graficamente
representadas por uma escala que vai de 1.0 (sofisticação mental e cognitiva
máxima, própria de um ser humano adulto e saudável) a 0.0 (nenhuma hipótese
para o preenchimento mínimo de quaisquer dos requisitos da “autonomia
prática”).

A categoria um de animais (que na escala atingem a pontuação de


0.90 a 1.00) abrangeria aquelas espécies que passam no teste de auto-
reconhecimento no espelho (“mirror self-recognition” – MSR), desenvolvido por
GORDON GALLUP na década de 70. Isto significa que podem possuir uma teoria
da mente (entender o que outros vêem ou sabem) entendem símbolos, utilizam
linguagem sofisticada e podem fingir, enganar, imitar e resolver problemas
complexos. Na categoria dois, estão os animais que, apesar de falharem no teste
MSR, possuem nível de consciência que os habilitam a realizar representações
mentais, pensar, utilizar sistemas simples de comunicação e ter um sistema
básico de consciência (na escala tais animais atingiriam o intervalo que vai de
0.51 a 0.89). Na categoria três seriam colocadas as espécies sobre as quais não
possuímos conhecimento científico suficiente e a que não podemos assinalar
nenhum valor abaixo ou acima de 0.5. A categoria quatro envolve aqueles cujo
comportamento nem de longe dá mostras de níveis de consciência mínimos, para
os quais são atribuídos valores abaixo de 0.5. A categoria um (0.90 – 1.0) possui
“autonomia prática” e a tais animais deve, sem sombra de dúvida, ser garantido o
acesso a direitos fundamentais relacionados à liberdade. No que se refere à
categoria dois (0.51 – 0.89), se entendemos ser aplicável o princípio da
precaução ou da cautela (ou o benefício da dúvida), devemos atribuir a tais
animais os mesmos direitos. Caso assim não entendêssemos, a eles deveria ser

- 360 -
negado o mesmo acesso garantido aos da classe primeira. WISE propõe uma
corrente alternativa por meio da qual todos os seres que alcançarem a marca de
0.70 são presumidamente possuidores de tal atributo suficiente para garantir
direitos básicos de modo integral. WISE assume ainda a idéia de que aos seres
que atingirem o score entre 0.50 e 0.70 podem ser garantidos direitos de
liberdade proporcionais. Neste sentido, a personalidade e as liberdades básicas
seriam concedidas em razão do nível de “autonomia prática”. Se as possui,
adquire os direitos básicos por inteiro (0.70 - 1.00). Se estiverem ausentes (0.51 –
0.69), pode receber direitos básicos proporcionais. Esta noção pode conferir
menos direitos a um ser humano que careça de autonomia, mas nem por isso é
transformado em uma coisa. O autor exemplifica sua escala analisando alguns
casos práticos tais como o de Alex, um papagaio (0.78); Christopher, seu filho
(1.00); Marbury, cão de Christopher (0.68), Echo, um elefante africano (0.75);
Phoenix and Ake, dois golfinhos (0.90); Chantek, um orangotango (0.93); Koko,
uma gorila (0.95); e Khanzi, uma bonobo (0.98).

Os mesmos dados obtidos para justificar a garantia da liberdade


para determinados animais pode, na visão de WISE, serem usados para justificar
a garantia da igualdade. Em sua concepção, a igualdade demanda uma
comparação, pois se realidades similares devem ser tratadas de forma similar,
uma realidade somente pode ser similar a outra se a ela comparada. Por essa
razão é que a igualdade sempre foi mais difícil de ser aplicada, pois o
estabelecimento de parâmetros é sempre uma questão delicada neste aspecto.
Em 1858, ABRAHAM LINCOLN e STEPHEN A. DOUGLAS realizaram uma série
de debates quando concorriam a uma vaga no Senado. DOUGLAS classificava
LINCOLN como “abolicionista” o que, na época, soava de forma parecida como
ser considerado “comunista” no período da Guerra Fria. DOUGLAS defendia uma
visão hierarquizada de sociedade, na qual aos homens brancos era concedido o
poder e fez disso uma questão crucial na campanha política. LINCOLN,
enxergando que poderia ver comprometida a sua elegibilidade por tal motivo,
passou a adotar o discurso de que, apesar de ser contrário à escravidão, não era
partidário de uma igualdade absoluta entre brancos e negros. Com isso tentava
sustentar uma posição anti-escravagista mínima, segundo a qual o montante total
dos direitos poderia ser diferente, mas os fundamentais deveriam ser

- 361 -
assegurados aos negros, de modo que seria errado tratá-los como meras coisas
ou como propriedade. WISE, utilizando-se do exemplo estratégico de LINCOLN,
afirma que os direitos dos animais devem ser perseguidos passo a passo sob
pena de nenhum ser alcançado:

A obtenção de quaisquer direitos para os animais não-humanos no


sistema legal atual requer lutar sob a plataforma do mínimo realizável de
Lincoln. Lincoln acreditava que as realidades físicas, históricas, legais,
religiosas, econômicas, políticas e psicológicas de seu tempo sinalizava
que tomar mais de um passo de cada vez para os negros levaria a que
não se obtivesse mudança alguma com relação ao seu status legal. Em
meados de 1850, isso significava que advogar pela igualdade política e
social dos escravos negros, qualquer que fosse a crença pessoal de
Lincoln a esse respeito, resultaria na continuação de sua escravidão.
Hoje, isso significa que advogar muitos direitos para animais em demasia
pode levar a que nenhum animal não-humano consiga adquirir
direitos.930

Alguns autores favoráveis à tese dos direitos para animais criticam


WISE por exigir o preenchimento do atributo de “autonomia prática” para que
indivíduos sejam portadores de direitos. CASS SUNSTEIN questiona se a
capacidade de sofrer não seria requisito suficiente para a concessão de ao menos
alguns direitos básicos para os animais931. WISE sustenta que se fosse ele a
quem fosse acometido o dever de julgar, certamente acataria a noção acima
exposta, mas sua intenção é fornecer bases suficientes para o convencimento do
julgador, que, em última análise, está fortemente atrelado à questão da
autonomia. Seu argumento, por esta razão, estaria mais ligado a uma
fundamentação legal e não filosófica.

Outros o repreendem também por construir, indiretamente, uma


teoria perfeccionista de justiça, na qual os animais são medidos por sua
semelhança com o ser humano. Embora intimamente WISE não concorde com tal

930
WISE, Drawing the Line, op.cit., p. 235, tradução nossa.
931
SUNSTEIN, Cass R. “The Chimp´s Day in Court”, New York Times Book Review, n. 26, 2000.

- 362 -
construção, assume que os direitos à liberdade corpórea e à intangibilidade do
corpo estão positivados na lei justamente porque são fundamentais para o bem-
estar humano, e os valores de autonomia que assinalamos para os não-humanos
estarão baseados sobre as habilidades e valores humanos. Por ora, diz ele,

[...] eu aceito que a lei meça os animais não-humanos com um medidor


humano. [...] O judiciário deve reconhecer que mesmo utilizando este
medidor humano, ao menos a alguns animais deve ser garantido o
reconhecimento como pessoas.932

3.4. FRANCIONE: “Chuva sem trovoada”

“The simple truth is that we exploit the other animals and cause them
suffering because we are more powerful than they are.”933

RICHARD RYDER

“[...] E de novo, e mais uma vez, enquanto observava cada desempenho


brutal, a lição era incutida na mente de Buck. Um homem com um
porrete era um legislador, um mestre a ser obedecido, embora não
necessariamente respeitado.”934

JACK LONDON (1876-1916)

GARY L. FRANCIONE é mestre em filosofia e professor de Direito


da Universidade de Rutgers, em Newark, New Jersey. Publicou diversas obras
relacionadas à área de direitos dos animais entre as quais podemos destacar
Vivisection and Dissection in the Classroom: A Guide to Conscientitous Objection
(American Anti-Vivisection Society, 1992); Animals, Property and the Law
(Philadelphia: Temple University Press, 1995); Rain Without Thunder

932
WISE, Drawing the Line, op.cit., p 45 e p. 240, tradução nossa.
933
RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 51.
934
LONDON, Jack. O Chamado da Floresta. Floresta-RS: L&PM Pocket, 2003. p. 26.

- 363 -
(Philadelphia: Temple University Press, 1996); e Introduction to Animal Rights
(Philadelphia: Temple University Press, 2000).

Na qualidade de abolicionista, reputo que a concepção de


FRANCIONE é aquela que melhor encara o problema relativo à necessidade de
revisão da arcaica visão de animais como coisas, recursos ou objetos.

De acordo com o autor, pela visão tradicional, animais são coisas,


coisas que podemos possuir, commodities que possuem nenhum valor a par
daquele estabelecido pelos seus proprietários. Como se viu ao longo do presente
trabalho, o status de animais como objetos do direito de propriedade não é algo
exatamente novo. O próprio vocábulo pecúnia, que tem significado de unidade
monetária, se origina do latim pecus, que significa gado. Em espanhol, a palavra
para designar dinheiro é ganaderia, e a palavra para gado é ganado. Em inglês,
cattle (gado) vem da mesma raiz da palavra capital. A sinonímia continua em
muitas línguas, valendo concluir que é um indicador seguro de que internalizamos
os animais como unidade de troca, nada mais.

A importância da propriedade dentro do sistema capitalista de


produção é essencial. Tanto é assim que a concepção lockiana, que via a
propriedade privada como um direito natural do homem, tornou-se a pedra de
toque da noção atual dos direitos reais935:

All property rights derive from God´s grant to humans of dominion over
animals “and the resulting Right a Man has to use any of the Inferior
Creatures, for the Subsistence and Comfort of his Life” and “for the
benefit and sole Advantage of the Proprietor, so that he may even
destroy the thing, that he has Property in by his use of it, where need
requires”.936

935
Aliás, sustenta-se que a etimologia de real (empregado no sentido de coisa) vem de res, que
significa cabeça de gado, boi. Dispensável dizer que o Brasil já empregou e ainda emprega o real
como unidade monetária.
936
FRANCIONE citando LOCKE em Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 53.

- 364 -
Os animais, sob a ótica legal atual, continuam aprisionados em um
mundo de quase não-existência, onde são tratados praticamente da mesma
maneira com que tratamos objetos inanimados como automóveis e enceradeiras,
sendo garantido aos seus proprietários a sua posse física, o seu uso para
finalidades estritamente econômicas, e o direito de fazer contratos que os tenham
por objeto.

O tratamento humanitário que o sistema legal supostamente


incorpora se baseia na diminuição do paradoxal “sofrimento desnecessário”, daí o
porquê de FRANCIONE denominar esta concepção de “legal welfarism” (ou
reformismo), conforme já analisado anteriormente. A ponderação de interesses
trazida pelo sistema do tratamento reformista sugere que pesemos os nossos
interesses contra os dos animais de modo a determinar se uma utilização
específica do animal é justificável. Todavia, porque os animais são propriedade, e
nada mais que isso, previamente à realização da ponderação, nós já decidimos
que uma série de usos será sempre legítima, tais como para abate e alimentação,
vestuário, experimentação científica, entre outros. A falácia da ponderação é que
ela é impossível de ser realizada, pois os interesses dos animais são vistos
sempre de forma secundária, justamente por serem itens de apropriação humana
e não pessoas. Em realidade, o que ocorre é o confronto entre os interesses do
proprietário e o da propriedade ou de um aspecto da propriedade. O resultado,
como mencionado, é que escolhemos os interesses humanos como mais
relevantes mesmo em situações as mais triviais possíveis, ainda que, do outro
lado, nos confrontemos com interesses fundamentais, isto é, questões
literalmente de vida e morte.

A esse respeito, FRANCIONE destaca ainda outro efeito nefasto da


retórica reformista, consistente na permissão, inconsciente, de ocultação das
verdadeiras questões relativas à utilização animal. Em momento algum se debate
a moralidade das instituições de uso em si considerada, mas tão somente as
práticas a elas relacionadas. Não se questiona, por exemplo, o abate de animais
saudáveis para consumo, mas sim se práticas evidentemente dolorosas como a
marcação a ferro (“branding”) e a castração são componentes necessários do
processo de trazer os animais até a nossa mesa.

- 365 -
FRANCIONE é claro ao estatuir que as leis de “bem-estar” animal,
também conhecidas sob a alcunha de “estatutos protetivos” ou ainda “leis anti-
crueldade”, ao supostamente proibir o “sofrimento desnecessário” não provêem,
em realidade, qualquer nível significativo de proteção. Para o autor, poderíamos
enumerar pelo menos cinco razões para que isso aconteça:

Em primeiro lugar, muitas destas leis excluem expressamente a maior


parte da exploração institucionalizada dos animais de seu raio de
abrangência, o que significa a maior parte dos animais que utilizamos.
Segundo, ainda que estes estatutos normativos não excluam
expressamente certas formas de exploração animal, o judiciário, ao
julgar, conduz à mesma conseqüência ao interpretá-los em tal sentido.
Terceiro, muitas leis anti-crueldade, que são leis penais, exigem estados
de imputabilidade e de dolo específico, fora do âmbito costumeiro de uso
da propriedade, que são, na maior parte das vezes, dificílimos de serem
provados937. Quarto, há uma presunção no sentido de que os
proprietários agem sempre visando a maximização do valor econômico
de suas propriedades e que, portanto, não infligiriam mais sofrimento do
que o necessário a um animal porque, ao assim proceder, estariam
propiciando a diminuição do seu valor monetário938. Quinto, há sérios
problemas envolvendo as penalidades e sanções destas leis. Constata-
se que há uma mentalidade prevalente no sentido de que somos, na
maior parte das vezes, relutantes em impor o estigma da
responsabilização penal a proprietários por atos cometidos contra a sua
propriedade, e, em geral, censuramos aqueles que não são os

937
A ausência de um tipo penal culposo para a crueldade torna, na maior parte das vezes,
realmente bastante difícil a condenação dos criminosos. FRANCIONE cita inúmeros casos em que
se eximiu a responsabilidade penal com base no argumento da ausência da comprovação de dolo
(Regalado v. United States; State of North Carolina v. Fowler; etc.)
938
O que se percebe é que os proprietários, principalmente aqueles que retiram lucro de
atividades ligadas à exploração animal, tratam suas “propriedades” como tais. Tudo é realizado
em obediência estrita a uma perversa lógica capitalista de maximização da margem de lucro do
negócio. Todo o esforço é feito para que os animais cheguem à fase de abate o mais rapidamente
possível, em um processo extremamente prejudicial às suas morfologias (debicagem,
confinamento, alimentação forçada, privação de luz, água, cio estimulado, descorna, marcação a
ferro, castração, etc.). Os gastos com acomodação e manejo também obedecem a uma curva que
conjuga o menor custo possível que ainda possa manter o valor de mercado do animal. Quase
todas as pequenas “concessões” que são realizadas de forma espontânea são feitas, em
realidade, porque atendem à esta lógica de melhoria da produtividade.

- 366 -
proprietários de questionar um uso ou tratamento específico dispensado
aos animais.939 940

Como exemplo do que acaba de afirmar FRANCIONE, traremos um


exemplo bastante ilustrativo do que efetivamente ocorre com os ditos “estatutos
protetivos”. No dia 22 de julho de 2004, o Governador do Estado do Rio Grande
do Sul lamentavelmente sancionou a Lei Estadual nº. 12.131/04, que acrescentou
um parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº. 11.915/03 (“Código Estadual de
Proteção aos Animais”).

Em cada um dos incisos do art. 2º da referida lei941 podemos


perceber uma infinidade de exceções, tácitas ou expressas, que acabam por se
tornar a regra, senão vejamos: ao inciso primeiro podemos constatar a permissão
legal da vivissecção, dos rodeios, experimentação científica, etc. O inciso
segundo permite o encarceramento, desde que “sob condições de higiene”. O

939
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 56, tradução nossa.
940
FRANCIONE traz um caso interessante para ilustrar este aspecto. Narra que, em 1997, três
jovens invadiram um abrigo para animais no estado de Iowa e espancaram até a morte, com
bastões de beisebol, dezesseis gatos que lá se encontravam e feriram gravemente mais outros
sete animais. Foram condenados por uma “misdemeanor” (delito de pequena gravidade
equiparável a uma contravenção penal), pois o valor dos gatos lesados não excedeu US$ 500,00
– o valor mínimo de danos à propriedade exigível para a condenação por “felony” (crime de maior
gravidade). O fato serve para demonstrar que os animais são vistos exclusivamente como
propriedade: se não têm valor de mercado, não têm valor algum. No Brasil, como já mencionado,
os “maus-tratos” são tipificados como crime pelo art. 32 da L. 9.605/98. Não obstante, conforme
alerta o autor, fazer da crueldade um crime não muda o fato de que a enorme parte da utilização e
exploração de animais continue fora do alcance da lei graças às interpretações equivocadas sobre
a condição e a realidade sensitiva dos animais. Acresça a isso o fato de que a pena cominada em
abstrato pelo tipo do mencionado art. 32 da L. 9.605/98 encaixa-se no conceito de infração penal
de menor potencial ofensivo, defnida nos arts. 61 da L. 9.099/95 e 2º, parágrafo único, da L.
10.259/01, pelo que, caberão, via de regra, todos os institutos previstos na Lei dos Juizados
Especiais, tais como os da transação penal (arts. 72 e 74 da L. 9.099/95) e o da suspensão
condicional do processo (art. 89 da L. 9.099/95). Como em todos os setores, o fundamental é a
alteração da mentalidade e do modo pelo qual as pessoas os enxergam e tratam.
941
“Art. 2º- É vedado: I- ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo
de experiências capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições
inaceitáveis de existência; II- manter animais em local completamente desprovido de asseio ou
que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III- obrigar
animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; IV-não dar morte rápida e indolor a
todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; V- exercer a venda ambulante de
animais para menores desacompanhados por responsável legal; VI- enclausurar animais com
outros que os molestem ou aterrorizem; VII- sacrificar animais com venenos ou outros métodos
não preconizados pela Organização Mundial da Saúde, nos programas de profilaxia da raiva;
Parágrafo único. Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das
religiões de matriz africana.”

- 367 -
terceiro, permite o trabalho forçado, desde que não “exorbitante”. O quarto
permite o abate para consumo, desde que a morte do animal seja “necessária
para consumo”. O quinto, permite o enclausuramento, desde que não seja com
“molestamento”. O sexto permite o sacrifício de animais, inclusive ritualístico942.

Os tipos penais ambientais, por sua natureza, tendem a ser abertos,


e a própria indeterminação normativa a respeito do conteúdo material dos termos
“crueldade”, “maus-tratos”, “sofrimento” tende a ser interpretada
desfavoravelmente aos animais, servindo como um manto de subjetividade que
cerca a norma e que permite interpretações díspares sobre um mesmo fato, o
que, em muitos casos, contraria, o senso comum ou ordinário a respeito destes
conceitos. O jurista nos traz vários precedentes neste sentido, entre os quais vale
citar o de Murphy v. Maning, no qual restou decidido que:

[...] resta induvidoso que todo tratamento de um animal que acarrete dor,
mesmo aqueles relacionados a dores enormes como a mutilação de
membros, que são cruéis no senso comum da palavra, não são
necessariamente proibidos pelo estatuto protetivo.943

O raciocínio interpretativo parece realmente sempre caminhar no


sentido de corroborar as práticas que já estão institucionalizadas. Em Bowyer v.
Morgan944, o judiciário decidiu que a marcação com ferro candente na face de
ovelhas e caprinos não violava as leis “anti-crueldade”, pois, apesar da prática ser
“cruel” no sentido de que causa intensa dor ao animal, é justificável por ser
“razoavelmente necessária” para fins de identificação e porque se tornou
“costumeira entre os criadores”. O mesmo pode ser observado em relação a
castrações sem analgésicos, descorna (com ferro quente, soda cáustica ou
serra), mutilações de órgãos e membros (orelhas, rabos, etc.), treinamento e

942
A esse respeito, me parece flagrante a inconstitucionalidade do dispositivo, pois a liberdade de
culto não é ilimitada (cf. LOURENÇO, “A Liberdade de Culto e o Direito dos Animais Não-
Humanos”, op.cit.).
943
Murphy v. Manning, 2 Ex. D. 307, 314 (1887).
944
Bowyer v. Morgan, 95 L. T. R. 27 (K.B. 1906).

- 368 -
condicionamento de animais de espetáculos públicos e de montaria, etc. Como
bem destaca FRANCIONE:

À medida que aceitamos, sem qualquer questionamento, a legitimidade


de comer os animais, qualquer coisa que seja necessária para facilitar
esta forma de exploração - ainda que cause dor aguda e contínua, como
os veterinários do caso Bowyer concordaram – torna-se justificável e fora
do escopo das leis protetivas.945 946

A ideologia reformista ou “welfarista” representaria, assim, uma


chuva sem trovoadas, título de uma das obras do autor: Rain Without Thunder.

O brilhante professor da Universidade de Chicago CASS R.


SUNSTEIN, incorporando uma visão direta, interpreta os estatutos protetivos
conferindo direitos efetivos e reais aos animais947, embora as pessoas, não
enxerguem ou não queiram enxergar tal fato. Neste sentido, CASS argumenta
que meios criativos podem ser implementados pelas pessoas para conseguirem
reforçar tais direitos. Um deles diz respeito à possibilidade de acesso às
informações governamentais (temos o instrumento constitucional do “habeas
data”) de entidades que trabalham com animais e que, por tal razão são
obrigadas a enviar relatórios periódicos ao poder público948. Outra hipótese diz

945
FRANCIONE, Introduction to Animals Rights, op.cit., p. 59.
946
FRANCIONE traz dúzias de outros casos em que a mesma sorte de argumentos foi expendida
para justificar a não aplicação das leis protetivas: Lewis v. Fermor (castração de vacas sem
analgésico); Callaghan v. Society For The Prevention of Cruelty to Animals; Ford v. Wiley; State v.
Crichton (todos relativos a procedimentos de descorna); Robert v. Ruggiero (confinamento de
vacas para produção de vitela); Taub v. State (vivissecção em macacos) entre outros. Em
Commonwealth v. Anspach, que tratava de um caso em que um comerciante aprisionou suas
galinhas em garrafas para demonstrar a eficácia de um novo tipo de ração, o juiz afirmou
categoricamente que o confinamento das galinhas não constituía uma violação das leis protetivas,
pois o costume da indústria era, de acordo com a Corte, ainda mais desumano.
947
“[…] it would not be a gross exaggeration to say that federal and state law guarantee a robust
set of animal rights” (SUNSTEIN, Cass R., “Can Animals Sue?”. In: SUNSTEIN, Cass R;
NUSSBAUM, Martha C (Orgs.). Animal Rights: Current Debates and New Directions. Oxford:
Oxford University Press, 2004. p. 252).
948
Há que se lembrar que temos a Lei n.º 10.650/03 que dispõe sobre o acesso público,
independentemente de comprovação de interesse específico (art. 2º, § 1º) aos dados e
informações existentes nos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente –
SISNAMA (tais como o CONAMA, Secretaria do Meio Ambiente, IBAMA, órgãos estaduais e locais
de meio ambiente).

- 369 -
respeito ao fato de que as empresas que são efetivamente preocupadas em
garantir o maior bem-estar possível aos animais e que, neste sentido,
implementam todas as exigências para garantir que isso ocorra, deveriam poder
demandar judicialmente as suas concorrentes que não o fazem por concorrerem
deslealmente em termos de posicionamento no mercado. Um outro ponto
interessante que o renomado autor cita é a chamada doutrina do “standing”. O
“standing” seria o nosso equivalente processual à legitimidade de parte. É
comumente afirmado que os animais somente podem figurar como objeto da
demanda e nunca como parte, seja ela enxergada sob o pólo ativo (“stand to
sue”) ou passivo (“stand to be sued”) da relação processual. Costuma-se também
dizer que tampouco podem ser representados em juízo, haja vista que na
qualidade de propriedade, não possuem direitos a serem protegidos. No direito
pátrio a ação civil pública é um dos principais instrumentos para proteger os
abusos cometidos contra os direitos difusos e coletivos. Pela concepção
tradicional, certamente que a natureza jurídica dos bens ambientais,
principalmente do ponto de vista da titularidade do objeto, coloca o meio ambiente
como um bem difuso. O direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art.
225, caput da CR/88), e a correlata proteção à fauna, inclusive no que se refere à
proteção contra os maus-tratos e crueldade (art. 225, § 1º, VII da CR/88) incluem-
se nas categorias abarcadas pelo espectro da ação civil pública949 CASS, cita
vários casos em que se admitiu que animais litigassem em nome próprio como
partes950 951
. Em outros casos, apesar de não ter se admitido que demandassem

949
O rol de legitimados é amplo, incluindo União, Estados, Municípios, Ministério Público,
autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e por associações civis
que preencham os requisitos legais (art. 5º da Lei n.º 7.347/85).
950
O autor cita: Northern Spotted Owl v. Hodel, 716 F. Supp. 479 (WD Wash, 1988); Northern
Spotted Owl v. Lujan, 758 F. Supp. 621 (WD Wash, 1991) Mt. Graham Red Squirrel v. Yeutter, 930
F. 2d 703 (9th Cir. 1991);.Palia v. Hawaii Dep. of Land and Natural Resources, 836 F. Supp. 45 (D
Mass. 1993).
951
No Brasil já se tentou usar o instrumento do Habeas Corpus para salvaguardar a liberdade de
locomoção de animais. O RHC n.º 50.343, julgado pelo STF em 03 out. 1972, do qual foi relator o
Min. Djaci Falcão, negou a impetração em favor “de todos os pássaros que se achem na iminência
de encotrarem-se aprisionados em gaiolas em virtude de comercialização, de utilização,
perseguição, caça ou apanha ilegal”, por entende que o remédio constitucional, incluído no
capítulo dos “direitos e garantias individuais” tem como destinatário apenas o homem. Em infeliz e
emblemática colocação, o relator afirma que: “a legislação, tanto cogita do direito que o homem
pode ter sobre os animais, como de especial proteção a estes assegurada. Porém, situam-se eles
como coisa ou bem, podendo apenas ser objeto de direito, jamais integrar uma relação jurídica na
qualidade de sujeito de direito. Não vejo como se erigir o animal como titular de direito”.

- 370 -
em nome próprio, permitiu-se que fossem representados em juízo por terceiros952.
Segundo o emérito professor:

No one makes the ludicrous suggestion that a bird or a dog would be


able to make decisions about whether and how to sue. Any animals that
are entitled to bring suit would be represented by (human) counsel, who
would owe guardianlike obligations and make decisions, subject to those
obligations, on their clients behalf. The important point is that this type of
proceeding is hardly foreign to our law; consider suits brought on behalf
of children or corporations.953

Todavia, imperioso é que se perceba que à qualidade de parte está


íntima e imediatamente relacionada à de sujeito de direito pela simples razão de
somente ele possuir interesses juridicamente tuteláveis via judicial. Não há como
se cogitar acerca de “standing” se não há dano, se o animal é visto como coisa.
De muito pouco adiantará que um animal seja diretamente representado para que
“fale em juízo” se a sua retórica não é acompanhada de um fundo de direitos
subjetivos minimamente garantidos.

O princípio do tratamento humanitário, largamente explorado pelos


partidários do “bem-estar animal” é um passo importante, mas insuficiente para
efetivamente garantir os interesses dos animais de modo eficaz e concreto.
FRANCIONE, com a lucidez que lhe é peculiar, afirma que as únicas vezes em
que a inflição de dor e sofrimento levanta algumas objeções frente aos estatutos
protetivos diz respeito aos abusos cometidos fora do âmbito da exploração
institucionalizada dos animais. Em State v. Tweedie954 houve a condenação de

Recentemente, no ano de 2005, o Ministério Público do Estado da Bahia, por meio de seu
promotor de justiça, Dr. Heron José de Santana e Dr. Luciano Orcha, em conjunto com professores
de direito, ONGs ambientalistas e um grupo de estudantes de direito, impetrou um Habeas Corpus em favor
de Suíça, uma chimpanzé que se encontrava aprisionada no Parque Zoobotânico Getúlio Vargas, numa jaula
com área total de 77, 54 m2. A idéia era liberta-la e transferi-la para o santuário dos grandes primatas em
Sorocaba-SP. Infelizmente, antes de se julgar o mérito da impetração, Suíça veio a falecer solitária em sua
minúscual jaula.
952
Citizens to End Animal Suffering and Exploitation v. New England Aquarium, 836 F. Supp. 45
(D Mass, 1993).
953
CASS, op.cit., p. 260.
954
State v. Tweedie, 444 A. 2d 855 (R. I. 1982).

- 371 -
um indivíduo que colocou seu gato em um forno microondas. Em In re William
G.955, outra condenação foi imposta quando um menor espancou e ateou fogo em
uma cadela por ter se recusado a cruzar com seu cão. Em Motes v. State956, outro
indivíduo queimou seu cão por estar supostamente latindo em demasia. Em Tuck
v. United States957, um dono de uma pet shop foi condenado por colocar os
animais em recintos sem qualquer ventilação em temperaturas altíssimas. Em La
Rue v. State958, uma pessoa foi condenada por ter apanhado cães de rua e os
abrigado sem as mínimas condições, ocasionado a morte de todos eles. Em
People v. Voelker959, julgou-se que cortar a cabeça de três iguanas vivas, “sem
qualquer justificativa” constitui uma violação das leis anti-crueldade.

O problema é que os mesmos atos podem ser permitidos ou


proibidos dependendo do quanto eles fazem parte de práticas de exploração
animal que se encontram institucionalizadas. Se alguém mata um gato em seu
microondas, ou põe fogo em seu cão, a conduta pode ser tida como ilícita face
aos estatutos protetivos vigentes. Contudo, se a mesma conduta integra o
“método de pesquisa” de um experimento em uma instituição de ensino, a mesma
e exata conduta é permitida pela lei pelo fato de o pesquisador estar
supostamente utilizando o animal para gerar um benefício.

SINGER demonstra amplamente no capítulo 2 (“Instrumentos de


Pesquisa”) da sua obra Libertação Animal que os benefícios concretos trazidos
por conta de pesquisas com animais, são mínimos, se não, insignificantes. Traz
exemplos de experimentos militares em que macacos são “treinados” em
aparelhos conhecidos como Plataformas de Equilíbrio de Primatas (PEPs). Os
macacos são presos à plataforma, uma hora por dia, durante cinco dias, até que
fiquem quietos. Após essa fase, são condicionados a utilizarem a alavanca de
comando mediante choques elétricos (a cadeira é continuamente inclinada e os
macacos continuam a receber choques até que coloquem as mãos na alavanca).
Posteriormente o mesmo procedimento de choques é repetido incontáveis vezes
955
In re William G., 447 A. 2d 493 (Md. Ct. Spec. App. 1982).
956
Motes v. State, 375 S.E.2d 893 (Ga. Ct. Spec. App. 1982).
957
Tuck v. United States, 447 A.2d 1115 (D.C. 1984).
958
LaRue v. State, 478 So.2d 13 (Ala. Crim. App. 1985).
959
People v. Voelker, 172 Misc.2d 564 (N.Y.C. Crim. Ct. 1997).

- 372 -
até que os símios aprendam a coordenar a alavanca para frente e para trás.
Depois disso aprendem a controlar a posição da plataforma com choques dados
agora manualmente em intervalos de três a cinco segundos e com duração
aproximada de meio segundo cada um. O objetivo é fazer com que o macaco
coloque a plataforma em um nível quase horizontal, em um treinamento que leva
de dez a doze dias, seguidos de mais vinte dias. Conforme alerta SINGER, todo
esse treinamento envolvendo milhares de choques é apenas preliminar ao
“experimento” propriamente dito: tendo apreendido a “pilotar” a plataforma, serão
expostos a doses subletais ou letais de radiação ou agentes químicos usados na
guerra a fim de testar sua resistência. O autor traz um relatório oficial da Escola
de Medicina Aeroespacial da Força Aérea Americana960 em que são
administradas variadas doses de Soman, um gás neurotóxico que provocou
imenso sofrimento na I Guerra Mundial, muito pouco usado desde então.
Segundo tal relatório:

O animal ficava completamente prostrado no dia seguinte à última


exposição, exibindo sintomas neurológicos que incluíam grave falta de
coordenação, fraqueza e tremores [...] Esses sintomas persistiam após
vários dias, durante os quais o animal não conseguia realizar a tarefa da
PEP.961

O Dr. DONALD BARNES, um dos médicos encarregados dos


referidos experimentos, alega ter submetido mais de mil macacos durante o
período em que ocupou o cargo e afirma:

Durante alguns anos, tive dúvidas sobre a utilidade dos dados que
coletávamos. Fiz algumas tentativas no sentido de averiguar o destino e
o propósito dos relatórios técnicos que publicávamos, mas agora
reconheço minha ânsia em aceitar a garantia dada por meus superiores
que, de fato, estávamos prestando um serviço útil à Força Aérea

960
Primate Equilibrium Performance Following Soman Exposure: Effects of Repeated Daily
Exposures to Low Soman Doses apud SINGER, op.cit., p. 31.
961
Relatório n. USAFSAM – TR – 87 – 19 (out. 87) apud SINGER, op.cit., p. 31.

- 373 -
Americana e, portanto, à defesa de um mundo livre. Usei essas garantias
como viseiras para evitar a realidade do que observava no campo e,
ainda que não as usasse sempre à vontade, quando o fazia, protegiam-
me das inseguranças associadas a uma potencial perda de status e
salário [...] Assim, certo dia, as viseiras caíram e tive um sério confronto
com o Dr. Roy DeHart, Comandante da Escola de Medicina Aeroespacial
da Força Aérea Americana. Tentei mostrar-lhe que, na eventualidade de
um confronto nuclear, seria altamente improvável que os comandantes
da operação utilizassem gráficos e números baseados em dados do
macaco rhesus para estimar a provável força ou a capacidade de se
desferir um segundo ataque. O Dr. DeHart insistiu na idéia de que os
dados teriam valor incalculável, afirmando: “Eles não sabem que os
dados se baseiam em estudos com animais”.962

Outros inúmeros experimentos poderiam ser citados, como o caso


do Laboratório de Pesquisas e Desenvolvimento de Bioengenharia Médica do
Exército Americano, de Fort Detrick, que ministrou doses diárias, durante seis
meses, do explosivo TNT a 60 beagles. “Os sintomas observados incluíram
desidratação, emaciação, anemia, icterícia, baixa temperatura corporal,
descoloração da urina e das fezes, diarréia, perda de apetite e peso, e aumento
do fígado, dos rins e do baço.”963 Não é preciso dizer que os cães começaram a
morrer a partir da 14ª semana em estados lamentáveis de saúde e sofrimento.
Pior, a conclusão do relatório foi no sentido de que “como foram observadas
lesões mesmo com as doses mais baixas, o estudo não pôde estabelecer o nível
em que o TNT não apresenta efeitos observáveis”964.

O professor HARLOW, que trabalhou no Centro de Pesquisas de


Primatas, em Madison, Wisconsin, desenvolveu vários experimentos relativos a
isolamento parcial e total, bem como de privação materna em primatas. Os
animais sofriam completa privação maternal, tendo sido criados, desde o
nascimento até um ano de vida em câmaras de aço inoxidável, não lhes sendo
permitido qualquer contato com qualquer outro animal, humano ou não. HARLOW

962
BARNES apud SINGER, op.cit., p. 32.
963
SINGER, op.cit., p. 34.
964
Ibid., p. 34.

- 374 -
chega à “brilhante” conclusão de que “o isolamento precoce suficientemente
restritivo e duradouro reduz esses animais a um nível sócio-emocional em que a
reação primária é o medo”965. O psiquiatra inglês JOHN BOWLBY esteve
visitando as instalações de HARLOW e afirmou: “Por que estão tentando provocar
psicopatologias em macacos? Já tem mais macacos sofrendo de psicopatologias
no laboratório do que jamais se viu na face da terra.”966 Não obstante, HARLOW
continua “aprimorando” seus métodos de indução de profunda depressão por
meio da privação materna. Criaram mães de pano que se transformavam em
monstros.

O boneco era programado para lançar ar comprimido de alta


pressão, o que:

“[...] praticamente arrancava a pele do animal. O que fazia o macaco


bebê? Ele simplesmente se agarrava mais ao boneco de pano, porque
um bebê com medo se agarra à mãe a todo o custo. Não constatamos
qualquer psicopatologia. Contudo, não desistimos. Construímos outra
mãe monstro, que se sacudia tão violentamente que até a cabeça e os
dentes do bebê chocalhavam. Tudo o que o bebê fez foi agarrar-se cada
vez mais à mãe artificial. O terceiro monstro que construímos continha
uma estrutura de arame dentro do corpo que se inclinava para frente,
jogando o bebê para longe de sua superfície ventral. O bebê levantava-
se do chão, esperava a estrutura voltar ao corpo de pano e agarrava-se
novamente a ela. Finalmente, construímos a nossa mãe porco-espinho.
Como um comando, essa mãe lançava afiados espinhos de bronze de
toda a superfície ventral de seu corpo. Embora os bebês ficassem aflitos
com essa manifestação de repulsa, simplesmente esperavam até que os
espinhos recuassem e então tornavam a agarrar-se à mãe.”967

Conforme narra SINGER, isso não fez HARLOW desistir. Criou a


mãe-monstro verdadeira. Criaram macacas em isolamento e tentaram fazê-las
emprenhar. Como não conseguiam manter relacionamento social e muito menos

965
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 36.
966
BOWLBY apud SINGER, op.cit., p. 36.
967
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 36.

- 375 -
sexual com outros machos os pesquisadores criaram o “rack de estupro”. Depois
que davam a luz, percebia-se que ignoravam os bebês, sendo que algumas
adotavam comportamentos realmente brutais:

Outras macacas tinham comportamento brutal ou letal. Um de seus


truques favoritos consistia em triturar o crânio do bebê com os dentes.
Mas o comportamento realmente doentio consistia em esmagar o rosto
do bebê contra o chão esfregando-o para a frente e para trás.968

Outros experimentos foram desenvolvidos por HARLOW explorando


técnicas extremas de confinamento (“poço do desespero” e “túnel do terror”),
tendo se vangloriado de obterem sucesso na indução de “morte psicológica em
macacos rhesus” com a técnica das mães substitutas. Seus discípulos, tal como
JOHN P. CAPITANIO, realizaram experimentos de privação, obtendo conclusões
igualmente “úteis” e não menos “brilhantes”: comparando o comportamento de
macacos “criados” por cavalinhos de plástico e outros “criados” por cães,
CAPITANIO sentenciou que os macacos criados pelos cães se haviam
socialmente melhor que os criados por brinquedos de plástico. Brilhante, não?
Incontáveis outros exemplos são trazidos por SINGER, que afirmava que só nos
EUA, mais de 250 estudos de privação maternal nos mesmos moldes foram e
estão sendo conduzidos, levando à morte mais de 7 mil animais. O Dr. ANDREW
ROWAN, da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Tufts chegou à
conclusão de que de 25 e 35 milhões de animais são usados anualmente em
experimentos somente nos EUA. Como bem observa SINGER, este número omite
os animais que morrem durante o transporte ou são mortos antes mesmo da
pesquisa começar.

Os estudos de psicologia comumente utilizam choques elétricos em


969
animais . O.S. RAY e R.J. BARRET aplicaram choques elétricos

968
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 38.
969
Em um levantamento de uma ínfima parcela dos experimentos conduzidos na área de
psicologia detectou que entre 608 artigos publicados em revistas da Associação Americana de
Psicologia entre 1979 e 1983, cerca de 10 por cento deles utilizava choques elétricos (SINGER,
op.cit., p. 55).

- 376 -
progressivamente mais intensos nas patas de 1.042 camundongos, provocando
convulsões (eletrodos eram presos aos olhos e orelhas dos animais) e morte na
maioria deles. Outros experimentos colocam os animais em situações de fuga,
permitida ou não, no caso de choques severos. A futilidade e a inutilidade dos
experimentos é gritante, sendo que a maior parte das conclusões é de uma
obviedade igualmente flagrante: “A conclusão geral foi a de que a exposição a
eventos aversivos incontroláveis é consideravelmente mais estressante para o
organismo do que a exposição a eventos aversivos controláveis”970.

Para estudar o fenômeno denominado “desamparo apreendido”, R.


SOLOMON, L. KAMIN e L.WYNNE, todos de Harvard, submeteram quarenta cães
ao aparelho chamado “caixa de esquiva”, que possui dois compartimentos
separados por uma barreira. Choques elétricos eram ministrados
incessantemente em suas patas. Os cães inicialmente conseguiam evitar os
choques se saltassem sobre a divisória. Depois passaram a eletrificar o piso do
outro lado, fazendo com que o cão saltasse de um lado para o outro cem vezes
até terminar a sessão. Relatam que os cães produziam um “latido agudo de
antecipação, que se transformava em ganido quando batia com os pés na grade
eletrificada”. A divisória então foi substituída por um vidro. Os cães saltavam e
literalmente esmagavam sua cabeça contra o vidro:

Inicialmente os cães apresentavam sintomas como ”defecação, urinação,


ganidos e guinchos agudos, tremedeira, ataques ao aparelho e assim
por diante; mas, depois de dez ou doze dias de testes, os cães que eram
impedidos de fugir dos choques, paravam de resistir”. Os
experimentadores declararam estar “impressionados” com isso,
concluindo que a combinação de barreira de vidro e choque nas patas
era “muito eficaz” em eliminar o salto de cães.971

Os estudos de privação e desamparo apreendido são apenas a


ponta de um colossal iceberg. Outros estudos envolvendo temas como etologia,

970
MINEKA apud SINGER, op.cit., p. 49.
971
SINGER, op.cit., p. 51.

- 377 -
modelos de esquizofrenia, comunicação, cognição, relação predador-presa,
motivação, emoção, percepção utilizam amplamente toda sorte de animais. Como
assinala SINGER, “a indiferença é facilitada pela utilização de jargão técnico, que
disfarça a verdadeira natureza do que acontece”972 973.

O psicólogo CHRIS EVANS, em artigo publicado na New Scientist


alega que:

Quando, há quinze anos, matriculei-me num curso de psicologia, um


entrevistador bastante sagaz, ele próprio psicólogo, questionou-me
minuciosamente sobre meus motivos e perguntou-me o que eu achava
que era psicologia e qual era seu tema principal. Pobremente tolo e
simplório como era, respondi que era o estudo da mente e que seu
material bruto eram os seres humanos. Com um brado alegre por poder
dissuadir-me de forma tão efetiva, o entrevistador declarou que os
psicólogos não estavam interessados na mente, que o foco dourado de
seus estudos eram os ratos, e não as pessoas; aconselhou-me, então,
enfaticamente, a dirigir-me ao departamento de filosofia, na porta ao
lado.974

Outras áreas da experimentação animal são tão ou mais cruéis que


as relatadas. Animais são usados para testes de toxicidade aguda por via oral (o

972
SINGER, op.cit., p. 56.
973
Impossível não transcrever o preciso relato da psicóloga ALICE HEIM que se pronunciou contra
a experimentação em animais: “O trabalho sobre ‘comportamento animal’ é sempre expresso em
terminologia científica de conotação higiênica, o que permite a doutrinação do jovem estudante
normal de psicologia não-sádico seguir em frente, em que sua ansiedade seja despertada. Assim,
‘técnica de extinção’ é o termo utilizado par designar o que, de fato, é tortura por privação de água,
quase inanição ou choque elétrico; ‘reforço parcial’ é o termo para o ato de frustrar um animal
respondendo só de vez em quando às expectativas nele despertadas pelos experimentadores, em
treinamento prévio; ‘estímulo negativo’ é o termo usado quando submetem um animal a um
estímulo que ele evita, se possível. O termo ‘evitar’ ou ‘evitação’ é bom, por ser uma atividade
observável. Os termos ‘estímulo doloroso’ ou ‘atemorizador’ são menos bons, pois são
antropomórficos, implicam que o animal tem emoções e sensações – que podem ser semelhantes
às emoções e sensações humanas. Isso não é permitido porque não é behaviorista, nem científico
– e também, porque pode impedir o pesquisador mais jovem e menos calejado de realizar certos
experimentos engenhosos, criando espaço para sua imaginação funcionar. O pecado capital para
o psicólogo experimental, que trabalha no campo do ‘comportamento animal’ é o antropomorfismo.
No entanto, se não acreditasse na analogia entre o ser humano e o animal inferior, é provável que
até mesmo ele considerasse seu trabalho amplamente injustificado” (SINGER, op.cit., p. 57).
974
EVANS apud SINGER, op.cit., p. 58.

- 378 -
mais conhecido deles é o DL50, que significa dose letal para cinqüenta por cento,
ou seja, testes para se saber qual a quantidade de substância necessária para
matar metade dos animais do grupo de estudo), ou por via de contato direto (um
exemplo são os testes Draize de irritação dos olhos são usualmente feitos em
coelhos. Os animais são imobilizados e as substâncias são pingadas em seus
olhos sendo corriqueira a produção de reações alérgicas graves como inchaço,
ulceração, infecção e sangramento. Há ainda testes de toxicidade dérmica,
imersão, etc); ou ainda por inalação. A própria Associação Médica Americana –
AMA afirmou que ”freqüentemente os estudos em animais provam pouco ou
nada, e é muito difícil correlacioná-los a seres humanos”975.

Poderíamos nos estender com inúmeros exemplos de experimentos


com animais que são amplamente contestáveis do ponto de vista científico976.
Além do problema relacionado à possibilidade de extrapolação de resultados de
uma espécie para outra, os experimentos científicos com animais lidam ainda com
um paradoxo insolúvel: em parte se justifica que testes sejam realizados em
animais e não em seres humanos porque os primeiros seriam seres
marcadamente “inferiores”, diferentes dos seres humanos; de outro lado a
necessidade dos experimentos só se explica se tiverem aplicabilidade para os
seres humanos, o que indica, em definitivo, que a primeira conclusão não é
verdadeira, ou como afirma SINGER: “ou o animal não é como nós e, neste caso,
não há razão para fazer o experimento, ou o animal é como nós, e neste caso,
não deveríamos realizar no animal um experimento que seria considerado
ultrajante se realizado em um de nós.”977

Retomando a construção de FRANCIONE, vemos que ele corrobora


as asserções de SINGER, acrescentando ainda que o mesmo ato pode ser aceito
ou proibido dependendo apenas de integrar as instituições de exploração animal

975
SINGER, op.cit., p. 64,
976
RICHARD RYDER em brilhante estudo intitulado “Experiments on Animals” (In: Animals, Men
and Morals, 1972), ao analisar a relação entre o número de experimentos com animais e o número
de inspetores de saúde veterinária, somente na Inglaterra, constatou que em 1885 foram
realizados, oficialmente, 797 experimentos com animais, havendo somente um inspetor para
fiscalizá-los. A partir daí os números de experimentos crescem numa proporção geométrica
assustadora, enquanto que o número de inspetores se mantém praticamente inalterado, para
chegarmos a 1969, quando foram realizados 5.418.929 experimentos para 13 inspetores.
977
Ibid., p. 58.

- 379 -
enraizadas em nosso meio. Cita o exemplo de um vídeo em que pesquisadores
colocam fogo no interior da boca de um porco para estudar os efeitos de
queimaduras profundas na alimentação do animal. O porco foi mantido vivo por
várias semanas sem qualquer anestésico. Se a mesma conduta tivesse sido
praticada por cidadãos comuns é quase certo que seria apenada pelas leis anti-
crueldade. Entretanto, como se trata de um experimento financiado pelo governo,
os animais sacrificados são entendidos como fazendo parte de uma atividade
“produtiva”. O interesse do porco é exatamente o mesmo nas duas situações,
mas a proteção dependerá em última análise do uso ser considerado
“produtivo/justificável” ou não. Como afirma FRANCIONE, “a proteção do
interesse animal é completamente irrelevante para a legislação; a lei preocupa-se
tão somente em proteger os interesses que os humanos têm sobre suas
propriedades”978.

Neste sentido, as mesmas objeções levantadas contra a


experimentação científica podem ser ampliadas para a criação intensiva de
animais. A par da complexa questão atinente à moralidade de se matar animais
para consumo, as práticas relacionadas à criação animal não são geralmente
conhecidas. Aos fazendeiros permite-se marcar suas “propriedades” com ferro
quente, realizar descorna e a castração, criá-las sob condições de incrível
insalubridade e confinamento, mutilá-las e abatê-las de maneira impiedosa e
bárbara, com a decapitação ou com a secção de seus pescoços e jugulares
quando ainda vivas. A imagem idílica e bucólica das fazendas cedeu, há muito,
lugar para o agro-negócio, em que imperam as tradicionais regras capitalistas da
redução de custos e do aumento da produtividade. Isso tudo se reflete nas vidas
dos animais que são criados de maneira intensiva, confinados e submetidos a
uma qualidade de vida realmente ultrajante. A ignorância da avassaladora maioria
das pessoas a respeito dos alimentos de origem animal é a mais absoluta e
devastadora979. O custo da carne que se consome é altíssimo tanto do ponto de

978
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 72.
979
Recomendo com veemência a leitura do capítulo 3 da obra de SINGER, Libertação Animal,
intitulado “Visita a uma granja industrial.... ou o que aconteceu com o seu jantar quando ainda era
um animal”.

- 380 -
vista econômico e ambiental980 quanto ao enorme sofrimento proporcionado os
animais de abate.

A experimentação animal, a criação intensiva, a utilização na


indústria do entretenimento e da moda, entre outras atividades de exploração
animal são faces de uma mesma moeda981. Conforme atestou RUTH HARRISON
em seu histórico Animal Machines, “a crueldade é reconhecida apenas quando
cessa o lucro”982.

Há aqueles que sustentam que se não fosse por nós, animais


domésticos destinados ao agro-negócio e à pesquisa científica não existiriam, e
seria melhor terem a experiência de viver que não ter nenhuma. Este argumento
está intimamente ligado ao da “fungibilidade”, pelo qual a perda provocada por
aqueles que comem carne, e matam animais, é compensada pelo benefício que
conferem a outros, na medida em que provocam a necessidade de que venha a

980
A criação intensiva de animais para consumo gera reflexamente uma enorme quantidade de
dejetos. Tal externalidade, comumente designada por biomassa, ainda é muito pouco aproveitável
ocasionando sérios problemas relacionados ao seu manuseio, estocagem e destinação
final/inutilização. Uma única fazenda de criação de galinhas poedeiras, conforme noticiado no
jornal OGLOBO de 29 de janeiro de 2006 (p. 33, caderno ECONOMIA), gera cerca de 40
toneladas por dia de fezes. A valorização de uma dieta centrada no consumo de carne produz
também o efeito nefasto consistente no fato de 44% de nossa produção de grãos e cereias ser
destinada ao fabrico de ração para alimentação de animais de criação. Cerca de 23% das terras
cultivadas no Brasil destinam-se ao plantio da soja, da qual enorme parcela serve àquele
propósito.
981
O fato de alguns de nós valorarmos nossos animais de companhia como verdadeiros “membros
da família” não significa que não são propriedade. A esse respeito vale dizer que são inúmeros os
abusos dos chamados “pets”. Em geral há a produção em série de animais para serem colocados
no mercado, exaltando-se o modismo de qualidades relacionadas a determinadas “raças” que
posteriormente caem no ostracismo. Não há qualquer estímulo por parte do poder público com
relação ao apoio de instituições que cuidam de animais abandonados e, tampouco, qualquer
colaboração no sentido do fomento da adoção nem da tutela responsável. Muitos criadores, sem
qualquer fiscalização, deixam de providenciar cuidados mínimos para seus cães. Fêmeas são
“incentivas” a terem sucessivas gestações sem qualquer intervalo. Os filhotes são criados sob
condições de alimentação e saúde precárias. Por sua vez, os próprios proprietários tornam-se, por
vezes, extremamente negligentes com relação aos seus animais. Muitos adquirem-nos como
forma de status, ou para finalidades ilícitas (como rinhas e competições esportivas) e
posteriormente os abandonam sem qualquer remorso. Em momento algum se vê qualquer
preocupação com a discussão e o debate sério sobre o controle adequado da população de
animais-de-rua. Tampouco há qualquer preocupação em se rediscutir o papel dos centros de
controle de zoonoses, que se tornaram verdadeiras campos de extermínio modernos, aniquilando
milhões de vidas absolutamente inocentes todos os anos (a simples menção aos vocábulos
“saúde pública” tornam, sem qualquer reflexão, as vidas destes animais como imediatamente
descartáveis).
982
HARRISON apud SINGER, op.cit., p. 111.

- 381 -
existir para substituir o anterior.983 Ora, esse argumento é falacioso em todos os
aspectos. O primeiro ponto é que ele não justifica o tratamento dispensado aos
animais nas fazendas industriais, onde suas vidas tornam-se aflitivas e dolorosas
do início ao fim. O segundo aspecto é que o fato de sermos em alguma medida
responsáveis pela existência de um ser vivo não nos confere o direito de tratar tal
ser como um recurso. Se assim o fosse, seria acaso permitido que tratássemos
nossas crianças como coisas? Afinal de contas seríamos responsáveis diretos por
sua existência. Além disso, o argumento parte do pressuposto discutível de que
animais seriam substituíveis. Será realmente que os animais que normalmente
utilizamos para tais finalidades, em sua maioria mamíferos e aves, são realmente
meros receptáculos, pacotes de carne? Um erro praticado contra um deles não
pode ser compensado por um benefício a ser conferido a um ser que sequer
existe.

O que se pode perceber com facilidade é que os estatutos protetivos


e as leis anti-crueldade oferecem, em realidade, pouca ou nenhuma proteção
efetiva à maior parte dos animais:

Enquanto o uso animal puder ser caracterizado como fazendo parte de


uma prática exploratória institucionalizada, então geralmente permitimos
a utilização – por mais trivial que seja o motivo que a determine – porque
estas práticas são baseadas no status econômico dos animais como
propriedade. [...] Podemos nos opor a que ponha fogo em seu cachorro
somente como forma de entretenimento, mas não colocamos óbices a
que pratique exatamente a mesma ação se fizer parte de um
experimento na sua faculdade local.984

A falha da legislação de “bem-estar”, ou como denomina


FRANCIONE do “welfarismo legal”, consiste em, apesar de propugnar por
melhorias relacionadas à condição de vida dos animais, aceitar o paradigma
destes como propriedade.

983
A mesma sorte de argumento já foi usada para justificar a escravidão humana, pois se não
fosse pela alta demanda de novos escravos, estes sequer existiriam.
984
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 72, tradução nossa.

- 382 -
O fato de se pensar os animais como propriedade gera uma
distorção profunda na ponderação de interesses havida entre homens e animais.
Os interesses da propriedade serão sempre ultrapassados pelos interesses dos
proprietários, o que faz com o que, neste contexto, o princípio da igual
consideração de interesses perca completamente o sentido.

FRANCIONE ressalta que a escravidão humana é estruturalmente


idêntica à propriedade animal. Se um escravo era uma propriedade, o proprietário
podia suplantar todos os interesses dos escravos se tal atitude pudesse ser
justificada economicamente. No mesmo sentido, as leis que limitavam o castigo a
ser imposto aos escravos eram igualmente ineficientes para garantir uma
mudança de status moral para eles:

A lei supostamente regulava o uso da propriedade escrava e, em


princípio, reconhecia que os escravos possuíam alguns interesses que
seus donos eram obrigados a respeitar, estabelecendo,
conseqüentemente, certos limites no uso e tratamento da propriedade. A
lei, no entanto, falhava ao não conferir qualquer status moral aos
escravos, ou ao não criar nenhum limite efetivo no uso e tratamento da
propriedade escrava – e justamente pela mesma razão que o princípio
do tratamento humanitário falha em não estabelecer qualquer limite no
nosso uso da propriedade animal. O status de propriedade dos escravos
sempre os impediu de verem reconhecidos os direitos que supostamente
teriam sob as referidas leis. O princípio da igual consideração não podia
ser aplicado porque os interesses dos escravos e os interesses dos
proprietários de escravos nunca eram julgados como similares.985

Nos dias de hoje rejeitamos amplamente a instituição da escravidão,


assim como rejeitamos a noção de que um ser humano, quaisquer que sejam
seus atributos pessoais, possa ser utilizado exclusivamente como meio para os
fins de outrem, não importa qual o benefício a ser auferido com a exploração.
Para FRANCIONE, duas idéias centrais podem ser extraídas desta proposição,
quais sejam, a de que podemos afirmar que todos os seres humanos têm um

985
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 87, tradução nossa.

- 383 -
direito fundamental de não serem tratados exclusivamente como meios de outros
e a de que os seres humanos possuem igual valor inerente que os impede de
serem tratados como recursos ou objetos.

Em uma visão sintética, porém eficiente, FRANCIONE argumenta


que os direitos, via de regra, servem para proteger interesses. Dizer que um
interesse é protegido por um direito, significa dizer que este mesmo interesse
estará a salvo de qualquer superação baseada em pretensos benefícios
individuais ou gerais que seriam tidos por sua quebra. Incorporando a concepção
de HENRY SHUE986, o autor classifica o direito de não ser tratado como uma
coisa como um direito prévio (“pre-legal right”), um direito básico ou fundamental
para o desfrute de todos os demais.

FRANCIONE entende que o reconhecimento do direito dos seres


humanos de não serem tratados como coisas necessita da linguagem dos direitos
para que se torne efetivo:

A raiz de nossas intuições morais reside no fato de que somos os seres


que possuem valor intrínseco e que tal valor não pode ser medido em
função de quão grande a felicidade geral seria se nos sacrificássemos.
Os marxistas podem evitar a noção de direitos, mas necessitam de
alguma concepção do indivíduo para que as noções coletivas façam
sentido. As feministas, apropriadamente, criticam a forma patriarcal com
que os direitos são utilizados, mas não podem negar que sem uma
noção mínima de interesses não negociáveis não há padrões adequados
para se julgar atos como o estupro e outras formas de abuso como
erradas. Sem alguns limites no que pode ser feito pelas pessoas, não há
como existir organização social. Todas as sociedades devem reconhecer
alguns interesses que não são transacionáveis, a despeito do custo
social de tal atitude. Em nossa sociedade, a maior parte das pessoas
consideraria como indisponível o interesse em não ser encarcerado sem
que haja o devido processo legal em que fique comprovada a existência
de um crime previamente estabelecido na legislação. Tal interesse seria

986
SUE enfatiza que os direitos fundamentais seriam pré-requisitos para o exercício dos direitos
não-básicos, e que a posse de direitos não-básicos na ausência dos básicos seria nada mais que
a posse de direitos em sentido meramente formal ou legalista, incapaz de garantir ao seu
possuidor o uso do conteúdo material do direito.

- 384 -
considerado indisponível qualquer que fosse o benefício eventualmente
adquirido por aprisionar intencionalmente pessoas inocentes. Se cada
interesse deve ser tratado de maneira instrumental e sacrificado quando
alguma pessoa ou grupo de pessoas decide que um benefício geral é
produzido pela sua violação, então é melhor que tenhamos uma grande
confiança em quem vai tomar essa decisão. Ainda que estejamos
dispostos a realizar sacrifícios pessoais para o bem-geral, é
simplesmente contraintuitivo enxergar a nossa liberdade como algo que
pode ser transacionado e posto de lado por razões consequencialistas.
987

O direito fundamental a não ser tratado como uma coisa é condição


primária para a participação na comunidade moral. O escravo não é membro da
comunidade moral por não partilhar deste direito básico, ou seja, por
supostamente não possuir interesses protegíveis ou tuteláveis. A noção do direito
fundamental à vida e à própria integridade corporal e a conseqüente idéia de que
homens não podem ser tratados exclusivamente como meio estão intimamente
relacionadas à concepção de um valor intrínseco da humanidade. Os objetos e as
coisas em geral possuem tão somente um valor relativo e somente são valorados
pela sua importância para a comunidade moral (visão indireta). Neste sentido,
possuir valor intrínseco também seria uma condição básica de pertencimento à
comunidade moral. Para que o conceito de valor intrínseco proteja os seres
humanos de serem tratados como coisas, devemos reconhecer que possuem
valor intrínseco equivalente.

Uma característica fundamental da noção de valoração intrínseca


reside no fato de que ela é autônoma, ou seja, não depende dos atributos fáticos
ou pessoais do ser em questão, e tampouco de que consiga compreender que
possui tais ou quais aptidões. Desta maneira, recém-nascidos, pessoas com
debilidades mentais permanentes, senis, e outros agrupados na mesma
categoria, possuem valor intrínseco e o interesse de não-sofrimento e de auto-
preservação. Deste modo, o autor coloca que o direito fundamental de não ser
tratado como coisa e a valoração intrínseca do sujeito seriam bons critérios de
admissão na comunidade moral:
987
FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 19-20.

- 385 -
Podemos comparar a comunidade moral a um grande teatro. Uma vez
que se é admitido no interior das suas dependências, é garantido um
assento em algum lugar para assistir à performance, mas não
necessariamente o melhor assento ou um assento particularmente bom,
ou mesmo um lugar assentado. Talvez o façamos ficar de pé. Mas estar
no teatro é ter algum espaço para assistir ao espetáculo; do contrário a
admissão tornar-se-ia sem sentido. Logicamente, a admissão ao teatro
para o propósito de ver o evento significa que se tenha algum acesso –
ainda que imperfeito se comparado ao daqueles que se assentam nas
primeiras fileiras.988

Conforme se demonstrou, o princípio da igual consideração de


interesses não funciona em uma realidade híbrida, por exemplo entre homens que
possuam o direito fundamental de não ser utilizados como coisas e que tenham
valor inerente (senhores) e outros homens que não os tenham (escravos). A
ponderação se torna inviável, pois os pesos são prévia e brutalmente
diferenciados.

SINGER tenta aplicar aos animais o princípio da “igual consideração


de interesses”, mas não atenta para o dado fundamental exposto acima, qual seja
o de que a ponderação entre realidades completamente apartadas é fadada ao
fracasso. O status moral de coisa dos animais preclui a discussão acerca do
reconhecimento dos interesses destes, além daqueles que são necessários à
própria satisfação dos interesses humanos. Tão logo haja uma razão, um motivo
apenas, por mais irrelevante que seja, o sofrimento e a vida animal são
prontamente sacrificadas.

A legislação de cunho reformista (“welfarista”), como analisado,


impede a aplicação do princípio da “igual consideração”, em uma realidade em
que humanos e não-humanos, em muitos dos casos, possuem interesses
absolutamente similares.

De acordo com FRANCIONE:

988
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 97.

- 386 -
Deveríamos nos comprometer com a idéia de que quando animais e
humanos tenham interesses similares, deveriam ser tratados de maneira
similar, a menos que houvesse uma razão moral suficientemente
significativa para não fazê-lo. A despeito de todas as diferenças entre as
espécies, todos os seres vivos possuem interesses, em particular o
interesse de não sofrer. Animais, tal como homens, possuem um bem-
estar empírico no sentido de que podem perceber que as coisas se
tornam melhores ou piores dependendo do respeito ou não do interesse
de não sofrer e da facilitação ou frustração do livre exercício dos outros
interesses que têm na qualidade de seres sencientes.989

O princípio da “igual consideração” implica, pois, em que deveríamos


conceder aos animais o direito fundamental de não sofrer e de não ser tratados
como meios, recursos, instrumentos ou objetos. FRANCIONE é enfático ao
afirmar que não há uma terceira via: ou os interesses dos animais são tidos como
moralmente significativos e sujeitos ao princípio da “igual consideração” ou os
animais continuarão a ser tratados como coisas. Melhorar o tratamento
dispensado aos animais é algo de extremamente positivo, mas não que não
guarda correlação direta ou necessária com a modificação de seu status moral. A
restrição de dar chibatadas em um escravo somente uma vez por semana pode
soar melhor que permitir que fossem dadas diariamente (e de fato é), mas isso
não o remove da condição de coisa990.

989
Ibid., p. 99.
990
Como mencionado anteriormente, há uma lei federal que regulamenta a prática do rodeio em
nosso país. Diante de tal fato, alguns promotores de justiça, partidários do reformismo, tomam
como norte a celebração de termos de ajustamento de conduta com as empresas que realizam
estes eventos na tentativa de adequarem as suas práticas à nova lei. Outros, abolicionistas, entre
os quais me insiro, entendem que a regulamentação da prática dos rodeios é flagrantemente
inconstuticonal (art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal) por impingir sérios e continuados maus-
tratos aos animais. A Lei n. 10.519/02, em verdade, regula os maus-tratos (em uma situação a que
LEVAI denomina de “crueldade consentida”), tal qual as leis do século XIX regulavam a
quantidade diária de chibatadas que um escravo podia levar. Ora, levar menos chibatadas, o que
pode ser factualmente melhor que levar muitas, não retira o caráter de ilicitude da chibatada
desferida, nem que seja apenas uma. Ao mesmo tempo em que diversos usos de animais foram
restritos, tais como as rinhas de brigas de cães, galos e canários, bem como diversas
manifestações culturais coibidas, tal como a farra-do-boi, os rodeios permanecem vivos como uma
das manchas negras da crueldade contra seres inocentes em nosso país.

- 387 -
Há, evidentemente, uma implicação necessária de estendermos o
direito fundamental de não-sofrimento aos animais que é o de torná-los “pessoas”.
Como se analisou no capítulo primeiro, há uma clara tendência no sentido de
confusão entre os conceitos de “pessoa” e “ser humano”. Exemplos rápidos
podem ser dados para exemplificar que isso nem sempre é verdadeiro. No
acirrado e acalorado debate que cerca o aborto, nenhuma das correntes nega a
condição de vida humana ao feto, ainda que algumas as sustentem apenas do
ponto de vista potencial. A discussão central é se esse “ser humano” embrionário
é ou não pessoa para os efeitos de ser tutelado e protegido. Outro exemplo
poderia ser dado com a situação do cadáver humano. Certo é que ele representa
um ser humano, mas não é mais tido como pessoa.

O fato é que se admitimos que os animais possuem um interesse


qualificado e relevante no sentido do não-sofrimento, então devemos abolir, e não
apenas regular, a instituição da propriedade animal. Precisamos parar de utilizar
animais para finalidades nas quais não utilizaríamos seres humanos sob as
mesmas condições.

Há que se observar, todavia, que não decorre do fato da afirmação


de que os animais possuam “personalidade jurídica” que terão a mesma gama ou
a mesma extensão dos direitos que tradicionalmente concedemos aos seres
humanos.

Segundo nos relata o professor FRANCIONE, muitas pessoas, ao


tomar conhecimento do argumento de que ao ampliarmos o princípio da igual
consideração não seria justificável tratar os animais como meios, costumam
indagar se ele estaria disposto a sacrificar a vida de um cão para salvar a vida de
seu filho. O autor responde que este tipo de pergunta foge ao ponto da questão.
Isso porque, qualquer que seja a escolha pessoal feita, ela será irrelevante para a
validade do argumento acima referido. Isto é, mesmo que a escolha recaia sobre
o filho em detrimento do cão, tal posição seria inconsistente com o argumento
aduzido. Somente diria algo a respeito do autor e de sua inconsistência moral,
mas nada sobre a invalidade de seu argumento. De fato, há uma tendência
natural de preservação dos entes que amamos em detrimento de outras pessoas
que não conhecemos. O autor cita uma hipótese em que se temos de fazer uma

- 388 -
escolha entre salvar nosso próprio filho ou o filho de um terceiro, é quase que
certo que escolheríamos a primeira opção, ou seja, salvaria meu filho em
detrimento do filho de outras pessoas.

PETER CARRUTHERS, em seu livro The Animal Issue: Moral


991
Theory in Practice , argumenta que em uma situação emergencial, tal como a
hipótese de nossa casa estar pegando fogo com nosso filho e nosso cão,
escolheríamos o ser humano para ser salvo e não o cão. Tal fato levaria a crer
que os animais, em realidade, não possuem significância moral alguma.

A esmagadora maioria das práticas descritas nesta obra como


moralmente objetáveis não envolve um conflito emergencial da natureza do
descrito por CARRUTHERS. Pelo contrário, ao decidirmos por nos alimentarmos
de carne ou não, se um rodeio ou uma tourada são formas de entretenimento
moralmente toleráveis, entre outras situações, não estamos face a decisões sobre
a quem salvar, homens ou animais. O conflito vislumbrado por CARRUTHERS é
um falso conflito, ou um conflito fabricado, e a conclusão de não tratarmos
animais como meros meios para fins humanos não implica que não possamos
preferir proteger interesses humanos em situações de emergência. Significa que
na qualidade de sujeitos de direitos, não poderão mais ser tratados como coisas,
o que não significa assumir que devam ser tratados exatamente da mesma
maneira que tratamos os seres humanos. Segundo FRANCIONE:

Porque animais são propriedade, tratamos cada questão envolvendo o


uso e o seu tratamento como situações emergenciais análogas à casa
em chamas, com o resultado de que escolhemos os interesses humanos
até mesmo em situações onde o sofrimento animal somente possa ser
justificado pela nossa conveniência, entretenimento ou prazer.992

O autor chama a atenção para outras situações que reputa não


refletirem verdadeiros conflitos, tais como o controle de superpopulação de
animais selvagens, vivissecção, animais como cobaias na experimentação

991
CARRUTHERS, op.cit.
992
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 153, tradução nossa.

- 389 -
científica, criação para abate, etc. Em todos estes casos, colocamos os animais
naquela casa hipotética que pega fogo e fingimos levar a sério um exercício de
ponderação que já possui um resultado previamente estabelecido. Essa tática
provê uma pretensa escusa de ordem moral para que se justifique que os
interesses dos animais foram levados em conta, apesar de invariavelmente
preteridos.

Nas situações de conflito real, ressalta FRANCIONE:

E se nos deparássemos com a improvável situação de passar por um


casa pegando fogo contendo um cão e uma criança, com tempo hábil
para salvar somente um deles? Se nos deparássemos na improvável
situação de nos confrontarmos com um leão faminto que está prestes a
nos matar, ou um rato infectado por uma doença que está prestes a nos
morder? O que faríamos se estivéssemos presos em um local que não
dispusesse de recursos vegetais para nos alimentar? Favorecer o
homem em detrimento do animal nestas situações tornar-nos-ia
inconsistentes por reconhecermos que animais possuem valor moral e
que por causa disso não podem ser tratados como meros recursos?
Não, é claro que não.993

Em uma sociedade de risco, qualificada pela escassez e pela


ausência de recursos, muitas vezes nossas decisões podem ser realmente
difíceis e tormentosas. Imagine-se uma situação que ocorre frequentemente com
um médico em que ele se depare com o conflito de poder alocar recursos para
salvar a vida de apenas um de dois pacientes gravemente necessitados. Por
poder ajudar só um deles isso significaria que o outro não tem valor ou que a
partir de então fosse legítimo desconsiderar outros com as mesmas
características? De maneira análoga, ainda que sempre, ou quase sempre, opte
por salvar vidas humanas da casa em chamas ao invés de vidas não-humanas,
isso não significa que elas não têm valor, ou que a partir de então possa vir a
tratá-los como meios para meus fins particulares.

993
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 157, tradução nossa.

- 390 -
O autor posiciona-se claramente no sentido de entender ser
plenamente legítimo e possível que humanos utilizem-se da legítima defesa ou do
estado de necessidade em face dos animais nos casos de terem de matar para se
defender ou para se alimentar, tal como seria similarmente legítimo no caso de
assim procedermos em face de seres humanos. O fato por exemplo de poder me
defender e repelir uma agressão injusta e iminente não implica que possa tornar o
agressor meu escravo. Ou ainda, o fato de me encontrar vítima de um acidente
aéreo numa região remota sem recursos de alimentação não-animal, me
permitiria matar para sobreviver, mas isso não serviria de justificação moral para
que continuasse a fazê-lo após retornar à uma situação normal de vida. As
realidades, como se percebe, são distintas.

Nas situações de conflito real, seria também legítimo teorizar no


sentido de que apesar de pensar que cães são seres conscientes, inteligentes,
têm um senso a respeito do futuro e um interesse em continuar experimentando a
vida. As relações humanas, especialmente as de parentesco, seriam mais
afetadas pela perda de um membro que a perda de um cão (embora isso nem
sempre seja verdadeiro). Seria igualmente ponderável ocorrer o contrário,
preferirmos o animal ao homem. Se nos postássemos diante de uma situação de
escolha entre salvar um ser humano detestável (HITLER, digamos) ou um animal,
certamente a maior parte de nós optaria por beneficiar o último. Se a escolha
fosse recair entre o nosso cão e uma pessoa totalmente estranha, a intuição a
favor da pessoa certamente não seria mais tão forte assim.

Portanto, é de se concluir que as questões relacionadas à escolha


em situação emergencial não são um bom guia para dizer quem tem ou não
direitos. Aliás, esta é uma questão bastante distinta. Como se viu, FRANCIONE
pretende sustentar que os animais possuem interesses moralmente relevantes a
que devemos respeito. Ainda assim, podemos preferir humanos em situações de
conflito real, sem que se abale esta primeira conclusão. A teoria dos direitos dos
animais, tal qual proposta pelo autor, permite que alcancemos um equilíbrio
reflexivo entre estas intuições. O que a teoria dos direitos dos animais exige é que
abracemos a idéia de que é inaceitável tratar seres sencientes exclusivamente
como meios para nossas finalidades. E se é assim, é de pouca valia nos

- 391 -
agarrarmos à visão de que devemos ser mais generosos, solidários ou bondosos
com relação aos animais porque isto nos tornaria pessoas melhores. Estas
preocupações de bem-estar, classificadas de reformistas (“welfaristas”), não
alterarão e tampouco melhorarão, por si só, a qualidade de vida dos animais, pois
estes serão mantidos sob o rótulo de coisas, trancafiados em um universo de não-
existência: são commodities que utilizamos para as finalidades mais frívolas.

Todas as sociedades humanas baniram determinadas atividades ou


usos relacionados à exploração animal. No entanto, infelizmente, isso não quer
dizer que se está reconhecendo que animais possuem valor inerente. A maior
parte dos norte-americanos condena veementemente as touradas nos moldes
ibéricos, que são ilegais na maior parte dos seus estados, mas é adepta dos
rodeios que, por sua vez, são tidos como legais. A sociedade ocidental de modo
geral é bastante crítica no que se refere aos hábitos de alguns países asiáticos de
abate de cães e gatos para alimento, mas se esquece de que comer porcos e
vacas não é algo intrinsecamente diferente. As rinhas de brigas-de-galo são
vedadas em nosso país, o que parece algo surrealista diante dos bilhões de
frangos que são mortos anualmente somente pelo prazer de sentir o gosto de sua
carne. Não se está justificando qualquer das condutas apontadas acima, em um
sentido ou em outro. Pelo contrário, pretende-se esclarecer que a ambivalência
de tratamento repousa no fato de considerarmos os animais nossas propriedades.
Conforme alerta FRANCIONE:

Nós já caminhamos no sentido de acatar, por meio da aceitação do


princípio do tratamento humanitário, que animais são pessoas e não
simples objetos ou coisas. Isto é, rejeitamos as visões pelas quais não
possuiríamos deveres morais diretos para com animais, e usualmente
mantemos que animais têm interesses relevantes. No entanto, se
realmente acreditamos nisso, então somos obrigados a aplicar o
princípio da igual consideração para os animais e rejeitar o seu status de
propriedade. Devemos abolir, e não meramente regular, nosso uso e
exploração institucionalizada dos animais, e não mais utilizar ou criar
animais para consumo, entretenimento, esportes, vestuário,
experimentos, ou como cobaias para testes. A vasta maioria dos
conflitos homem/animal evaporará porque eles são conflitos falsos que

- 392 -
fabricamos do fato de que tratamos animais como recursos
994
econômicos.

994
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 165, tradução nossa.

- 393 -
CAPÍTULO IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, Galileo


supra-dito, pelas coisas deduzidas no processo e por ti confessadas
como acima, te tornaste veementemente suspeito de heresia, a saber,
por teres sustentado e crido doutrina falsa e contrária às Sagradas e
Divinas Escrituras, que o Sol seja centro da Terra e que não se mova de
oriente para ocidente e que a Terra se mova e não seja centro do
mundo, e que se possa ter e defender por provável uma opinião depois
de ter sido declarada e definida por contrária às Sagradas Escrituras
[....]” 995

“Não existe o direito à vida em nenhuma sociedade sobre a Terra hoje


em dia, nem houve tal direito em nenhuma época passada (com algumas
raras exceções, como entre os jainistas da Índia): criamos animais nas
fazendas para a matança; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até
que os peixes não possam mais viver nesses ambientes; matamos
veados e alces por esporte; leopardos pelas suas peles; e as baleias
para fabricar fertilizantes; encurralamos golfinhos, arfando e se
contorcendo, em grandes redes; matamos a pauladas filhotes de focas; e
provocamos a extinção de uma espécie a cada dia. Todos esses animais
e vegetais são vivos como nós. O que é (alegadamente) protegido não é
a vida, mas a vida humana.”996

CARL SAGAN

Inúmeros obstáculos existem na implementação dos direitos dos


animais. O primeiro capítulo do presente trabalho pretendeu justamente tentar
demonstrar as “premissas ideológicas” do especismo, que tem fundações sólidas
na religião, na economia, na política, na tradição, na psicologia e, por
conseqüência, no próprio ordenamento jurídico.

995
Em 22 de junho de 1633, numa sala do convento dominicano de Santa Maria Sopra Minerva,
em Roma, encerrava-se o julgamento de GALILEU GALILEI pela Santa Inquisição com a sua
condenação e subseqüente renúncia à crença de que a Terra gira em torno do Sol. Além da
retratação, o Tribunal do Santo Oficio impôs a Galileu a pena de prisão domiciliar perpétua e a
repetição, semanal, por três anos, dos sete salmos penitenciais.
996
SAGAN, op.cit., p. 183.

- 394 -
Como se visualiza no julgamento de GALILEU, a fé religiosa pode
muitas vezes cegar os seus adeptos à realidade dos fatos. Não obstante a teoria
da evolução possuir diferentes vertentes teóricas, certo é que galgou,
principalmente após o advento de estudos genéticos comparativos, um status de
consolidação perante a comunidade científica mundial. Isso deveria, mas assim
não ocorre, colocar uma pá-de-cal no criacionismo e teorias a ele assemelhadas.
Isso se presta a demonstrar a enorme força das crenças quando elas se tornam
arraigadas na mentalidade popular. O domínio concedido por Deus aos homens
sobre a natureza e sobre os animais é uma destas crenças que fazem do
universo uma fábrica de hierarquias artificialmente criadas. O argumento religioso
trouxe uma situação de legitimação da inferiorização e escravidão de toda uma
enorme gama de criaturas. A mesma ideologia já serviu de base para sustentação
da indiferença com relação à própria humanidade e à hostilidade com relação aos
direitos humanos.

Cerca de 30 bilhões de animais/ano são criados de forma intensiva,


levando vidas absolutamente miseráveis, para serem afinal abatidos para servir
de alimento997. Milhões deles são literalmente “consumidos” na pesquisa
“científica” e outro tanto na indústria de vestuário, entretenimento, esportes, etc.
Os obstáculos econômicos a serem suplantados são, obviamente, gigantescos.
Os produtos de origem animal são tão onipresentes que é praticamente
impossível evitar a sua utilização. Os subprodutos animais são usados para a
elaboração de cosméticos, pneus, fertilizantes, lubrificantes, produtos têxteis,
iogurte, papel, instrumentos musicais, entre tantos outros.

A dependência econômica gera a cumplicidade das forças políticas.


Mais uma vez o paralelo com a escravidão humana é bastante elucidativo a esse
respeito. Cinco dos sete primeiros presidentes dos Estados Unidos eram
proprietários de escravos. A mesma proporção podia ser encontrada no Senado e
na Suprema Corte. Nos dias de hoje, as bancadas “ruralistas” possuem
representação significativa no Congresso e tendem a perpetuar as práticas
relacionadas à maximização da lucratividade de seu negócio.

997
A assustadora cifra nos é dada por STEVEN WISE, em seu artigo “Animal Rights, One Step At
A Time”. In: SUNSTEIN; NUSSBAUM, op.cit., p. 19.

- 395 -
Historicamente, como se viu, a noção do “antropocentrismo
teleológico”, idéia de que tudo existe para o homem e em função dele, já era
senso comum entre os estóicos. Posteriormente, penetrou no direito romano,
sendo encontrada também no Velho e Novo Testamento e em outras legislações
antigas. Um universo hierárquico moldado na “Grande Cadeia do Ser” fez com
que o ser humano viesse a ocupar o topo da escala reservada às criaturas
corpóreas.

As leis, partindo deste pressuposto, dividiram a realidade jurídica


entre pessoas e coisas, sujeitos e objetos de direito, respectivamente. Não é
surpresa que os não-humanos ocupassem o lugar reservado às coisas, assim
como um dia o foram escravos, crianças, mulheres, judeus, ciganos, etc. Como
afirma STEVEN WISE, “homens são tiranos em relação às coisas porque podem
ser. A personalidade é o marco legal que protege a todos, cada pessoa, contra a
tirania dos demais. Sem ela, o indivíduo se torna indefeso.”998

Finalmente, pode-se dizer que toda sorte de obstáculos acabou por


engendrar, como diria HAYEK, “um caminho para a servidão” na mentalidade
humana. Por absoluta ignorância, muitas pessoas acreditam que animais sejam
desprovidos de capacidades cognitivas e sensitivas, corroborando a visão de que
foram feitos para nosso uso. Os obstáculos psicológicos são também enormes. O
encontro com o diferente, com o alter, é sempre problemático e tende a rumar
para uma solução de dominação.

Todavia, mudanças são possíveis e necessárias. É definitivamente


encorajador pensar que as pessoas puderam mudar radicalmente a sua
concepção a respeito da escravidão humana, que foi aceita passivamente durante
milênios.999

998
WISE, “Animal Rights, One Step At A Time”, op.cit., p. 25.
999
“Hoje talvez seja difícil entender como a escravidão foi aceita, desde os tempos bíblicos em
virtualmente todas as culturas, e não foi seriamente desafiada até o final do século XVIII. A
instituição da escravidão estava tão consolidada e arraigada que as atitudes genuinamente
abolicionistas demandaram uma profunda mudança e percepção moral. Isto é, houve a
necessidade de mudanças religiosas e filosóficas fundamentais a respeito das habilidades
humanas, das responsabilidades e direitos.” JAMES apud WISE, Animal Rights, One Step At A
Time, op.cit., p. 26, tradução nossa.

- 396 -
O alerta do historiador DAVID BRION JAMES é no sentido de que
“ainda podemos aprender com a história a preciosa lição de que um mal poderoso
e lucrativo pode ser superado”1000.

A questão central na discussão dos direitos dos animais é a


moralidade de tratar seres sencientes – humanos ou não - como meios para as
finalidades de terceiros. Assim é que a posição de abolição de uso dos animais
como recursos não deve ser encarada como uma “preferência” em favor dos
animais e em detrimento dos seres humanos que poderiam se beneficiar de seu
uso. A problema é maior que isso, trata-se de uma questão de moralidade e não
de benefício. O que se deseja é incrementar o status moral dos animais e não de
diminuir o dos seres humanos, em um movimento que ao aumentar o respeito
pela vida, fortalece as bases de respeito pela vida humana. Como diria
acertadamente SINGER, para evitar o especismo não precisamos chegar ao
ponto de sustentar que matar um cão é mais, menos ou tão errado quanto matar
um homem: “A única posição irremediavelmente especista é a que tenta fazer a
fronteira do direito à vida correr exatamente paralela à fronteira de nossa própria
espécie”. 1001

Com base nisso, as comparações realizadas entre o fenômeno do


especismo e do racismo ou do sexismo, não devem ser interpretadas como
equalizando em sentido literal homens e não-homens. O que se pretendeu
demonstrar é que todas são formas de discriminação que partem da falsa noção
de que características moralmente irrelevantes tais como raça, sexo, ou espécie,
podem ser usadas para excluir seres com interesses da comunidade moral e
torná-los meros objetos, violando o princípio da igual consideração1002.

A questão atinente à demarcação de uma linha divisória entre os


seres que têm direitos e os que não o têm parece atormentar muitas pessoas,
inclusive aquelas que sustentam que a concessão de direitos a animais

1000
Ibid., p. 41.
1001
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21.
1002
Neste sentido, é totalmente irrelevante que a forma mais conhecida de escravização humana
tenha recaído sobre a população negra, ou que a face mais obscura do nazismo tenha ocorrido
com a tentativa de eliminação dos judeus, ou seja, poderiam ser asiáticos, brancos, populações
indígenas, arborígenes, católicos, protestantes, budistas, ou que quer que seja. O que se está
contestando é a legitimação de tais práticas e não sobre a qualidade específica das suas vítimas.

- 397 -
funcionaria com base em um raciocínio de “ladeira escorregadia” onde, por fim, às
bactérias também deveriam ser assegurados direitos. E por que não plantas,
dizem eles? Tal raciocínio é completamente equivocado. Penso que a melhor
alternativa continua sendo traçar a linha a partir do critério da senciência,
entendida em sentido genérico, lato (capacidade de possuir experiências mentais
de dor e prazer, bem como de algum nível de senso, ainda que reduzido, de si
próprio, e de ter interesse de continuar experimentando a vida, ainda que em
sentido basicamente empírico). Admito que o próprio conceito de senciência é
alvo de debates e incertezas. Todavia, embora não possamos precisar na escala
filogenética o local exato no qual não existe mais a consciência, isso não serve de
escusa para nos impedir de afirmar onde certamente ela está presente.1003

Assim, embora não possamos dizer com certeza científica que


insetos ou bactérias possuam senciência, podemos, ao contrário, afirmar que
macacos, vacas, cães, porcos, cavalos, gatos, ratos, e outros seres a possuem. O
fato de não saber precisar onde colocar insetos e bactérias não retira a minha
obrigação moral perante aqueles animais que sei onde estão. Além disso, no que
se refere aos vegetais, até onde se sabe, não são sencientes. Não são
conscientes ou capazes de experimentar dor e prazer. Não têm sistemas
nervosos, não produzem substâncias análogas à endorfina, não possuem
receptores para benzodiazepanos ou qualquer outro indicativo de senciência.

Conforme sustentado, a regulamentação do uso animal


(“welfarismo”) não tem se mostrado adequada à garantia de um “mínimo
existencial” de dignidade para seres que possuem interesses relevantes em ter
uma existência continuada e livre de sofrimento. A posição abolicionista, que
penso ser a mais coerente, advoga pela descontinuidade de práticas de
exploração animal que se encontram institucionalizadas. Alguns podem supor de

1003
Tal como afirma REGAN: “Não precisamos saber exatamente quão grande deve ser uma
pessoa para ser considerada alta, para que saibamos que Shaquille O´Neal é alto. [...]
Analogamente, não precisamos saber com exatidão que lugar um animal ocupa na escala
filogenética para ser sujeito-de-uma-vida, para saber que os animais que nos afetam mais
diretamente - aqueles que são criados para abate, os que são criados ou caçados pelo valor de
sua pele, ou aqueles que são usados como modelos na experimentação científica – são sujeitos-
de-uma-vida. [...] Nossa ignorância sobre o quão longe devemos descer na escala filogenética
para precisar que não há mais consciência não devemos impedir de afirmar onde certamente ela
está presente.” (REGAN; COHEN, The Animal Rights Debate, op.cit. p. 215, tradução nossa).

- 398 -
maneira errônea que pelo só fato de serem “tradicionais” ou “naturais” estes usos
seriam moralmente justificáveis. Em verdade, o fato de algum comportamento ser
descrito como “tradicional” não tem o condão de torná-lo moralmente aceitável. A
noção de “naturalidade” também está interligada ao conceito de “historicidade” de
determinadas práticas. A escravidão foi por muitas vezes justificada sob as bases
de uma pretensa distinção “natural” havida entre senhores e escravos. Como
afirma FRANCIONE, “a questão não é saber se uma conduta é parte de uma
cultura; todas as condutas integram, ao menos em parte, alguma cultura. A
questão é saber se esta conduta é moralmente justificável”. 1004

Outra sorte de argumento afirma que, não fosse a exploração dos


animais, a nossa sociedade não seria como é. Isso também não indica que o uso
destes mesmos animais seja justificável, a não ser que também consideremos
que outras atividades humanas, que contribuíram enormemente para a
construção da sociedade nos moldes atuais, também devam continuar a fazer
sentido, tal como a sociedade estamentária, o patriarcado, a escravidão entre
outras.

A par das controvérsias nutricionais, que parecem indicar


seguramente serem as dietas vegetarianas plenamente sustentáveis e
saudáveis1005, a abolição do uso de animais como alimento levanta algumas teses
aparentemente absurdas. Alguns, para fugir ao debate, afirmam que os nazistas,
entre eles o próprio HITLER, eram vegetarianos. Esse silogismo parte da seguinte
lógica: HITLER era vegetariano; HITLER era mau, logo a conduta vegetariana e
os vegetarianos também devem ser maus. Como afirma FRANCIONE, “Stalin se
alimentava de carne e nem por isso era um anjo”. Vegetarianos não são pessoas

1004
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 172, tradução nossa.
1005
A posição da American Dietetic Association (ADA) é que “dietas vegetarianas apropriadamente
planejadas são saudáveis, adequadas em termos nutricionais e apresentam benefícios para a
saúde na prevenção e no tratamento de determinadas doenças”. A American Heart Association
(AHA) também já se posicionou oficialmente no sentido de que “a maioria das dietas vegetarianas
é pobre em produtos de origem animal. Também costumam ter índices de gordura total, gordura
saturada e colesterol mais baixos que as dietas não vegetarianas. Muitos estudos demonstraram
que os vegetarianos parecem apresentar um risco menor de obesidade, doença coronariana (que
provoca ataques cardíacos), pressão alta, diabete melito e algumas formas de câncer. As dietas
vegetarianas podem ser saudáveis e completas em termos nutricionais quando são
cuidadosamente planejadas para incluir nutrientes essenciais. No entanto, a dieta vegetariana
pode não ser saudável caso contenha calorias em excesso e quantidade insuficiente de nutrientes
importantes”. (Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 09 dez. 2005).

- 399 -
melhores ou piores que as demais. No que se refere ao nazismo, não há provas
seguras de que os nazistas realmente fossem vegetarianos convictos. Segundo,
mesmo que o fossem, isso nada diria sobre o mérito ou não de se abster da
ingestão de produtos animais. Os nazistas, por exemplo, também favoreciam
fortemente a instituição do casamento e das práticas esportivas. Isso por acaso
tem o condão de transformá-las em imorais ou indevidas? Infelizmente para
aqueles que apreciam comer carne, o simples gosto pelo sabor da carne não
serve para justificar a violação de um princípio moral.

Um outro aspecto bastante relevante diz respeito ao fato de as leis


protetivas, que vedam determinados atos considerados abusivos, poderem ser
interpretadas no sentido de que concedessem “direitos” subjetivos aos animais.
Entendo que seria um absurdo se pensar que assim não o fosse1006. As proteções
estatuídas devem ser interpretadas tendo por objeto a tutela do interesse do
animal. Todavia, tal fato não fará qualquer sentido enquanto continuarmos a ver
os animais como propriedade1007. A alteração do status dos animais como coisa

1006
O artigo 1º, III da Lei n.º 9.433/97, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos,
estabelece o dever de dessedentação de animais em situações de escassez. Por acaso os
animais não possuiriam o direito subjetivo do acesso à água, ou teremos que fazer a “ginástica”
retórica para concluir que este acesso só lhes é garantido no interesse da proteção do valor
econômico da propriedade? No mesmo sentido, o próprio art. 32 da Lei n.º 9.605/98, que trata da
criminalização dos maus-tratos cometidos contra animais, deve ser enxergado sob o prisma de
proteção direta da integridade física e psicológica do animal e não somente da coletividade
humana.
1007
JOSÉ ROBSON DA SILVA, por exemplo, sustenta que o inciso VII do parágrafo primeiro do
art. 225 da Carta Magna confere direitos aos animais e não sobre eles: “Entretanto, o preceito
constitucional pode ser compreendido numa outra perspectiva. Neste olhar, a proibição de se
produzir crueldades contra os animais está a garantir um mínimo de tutelas cujo centro é a
integridade física dos animais. Este núcleo está para além de qualquer valor moral. [...] As
garantias jurídicas destinadas à preservação da função ecológica da flora e os direitos dos animais
não são apenas uma manifestação de piedade ou uma afirmação do refinamento ‘espiritual’
humano. As garantias têm como pressuposto que a integridade física do animal é condição do
equilíbrio ambiental e um valor em si.” (SILVA, José Robson da. Paradigma Biocêntrico: do
Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 342-43). Outros
sustentam que quando a Constituição Federal fala “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado [...]” aí estariam abrangidos também os animais como integrantes de
um meio ambiente que deve ser equilibrado, tal qual o ser humano. Propugnaria por uma tese
ainda mais ousada dentro do direito positivo. Todas as vezes que a Constituição Federal quer se
referir a homem, ser humano, utiliza a expressão “pessoa humana”. Exemplo disso encontramos
nos arts. 1º, III; 17; 34 e 226, § 3º. Tal fato pode, à primeira vista, parecer despido de importância
para a maior parte dos intérpretes razão pela qual serviria tão somente para descaracterizar a
concepção patriarcal que se confere ao termo “homem”, agora substituído por “pessoa humana”.
Todavia, uma interpretação mais cuidadosa do termo revela que ao adjetivar o substantivo
abstrato “pessoa”, a norma cria um conceito que lhe é ontologicamente distinto. Partindo do
pressuposto de que constitui um princípio hermenêutico básico o de que a lei não contém
vocábulos ou expressões em vão, pode-se concluir que a própria constituição reconhece a

- 400 -
não depende exclusivamente da alteração das leis, que é um fator importante,
mas principalmente da modificação de nossa mentalidade egoísta.

Há algum tempo, especialmente após a década de setenta, o


movimento dos direitos dos animais deixou a periferia para ocupar o centro dos
debates políticos, filosóficos e legais1008. Conforme noticia o professor ANTONIO
JUNQUEIRA DE AZEVEDO, seguindo a esteira do Código Civil austríaco, o BGB
alemão alterou seu texto em 1990 para fazer constar que o título “Coisas”
(Sachen) da Parte Geral agora intitula-se “Coisas. Animais” (Sachen. Tiere), ou
seja, há uma retirada voluntária dos animais do mundo dos objetos, da não-
existência. Neste sentido, o § 90 do mesmo diploma legal dispõe expressamente
que: “Os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei específica. Se
nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas par as coisas”. Ainda
segundo JUNQUEIRA, “em caso de dano ano animal (§251.2), o juiz não pode
recusar a tutela específica, ainda que os custos da cura sejam maiores que o
valor enconômico hipotético do animal”1009. Em 2002, a Alemanha deu mais um
passo inovador, tornando-se o primeiro país europeu a garantir os direitos dos

existência de uma pessoa que não seja “humana”, do contrário bastaria se referir simplesmente à
pessoa, nada mais. A norma que regulamenta a personalidade civil encontra-se no código civil.
Nosso Código Civil atual, é bom que se diga, posterior à Constituição, também modificou seus
artigos iniciais retirando o vocábulo “homem” e colocando em seu lugar o de “pessoa”. Assim é
que, de acordo com o art. 1º, “toda pessoa é capaz de direitos [...]”. Pelo art. 2º, “a personalidade
civil da pessoa começa do nascimento com vida [...]”. Ora, dado que todas as leis
infraconstitucionais devem ser interpretadas em conformidade com a constituição, o código civil ao
adotar a forma genérica “pessoa” , preterindo a específica “pessoa humana” optou por abraçar
como possuindo personalidade jurídica todas as pessoas, sejam elas “humanas” ou não. Os
animais não-humanos poderiam, a esse respeito, serem encaixados na previsão do art. 3º, III que
trata daqueles que “mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”, recebendo,
via de regra, a tutela estatal na qualidade de absolutamente incapazes. Não acho que esta
interpretação esbarre no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, insculpido no art.
1º, III da Carta Magna, com ele ser harmonizado no sentido de alcançar os propósitos especiais
do art. 225 do mesmo diploma legal, pois as garantias jurídicas de proteção aos direitos dos
animais devem ser vistas como instrumentos de alargamento moral para os animais e não de
diminuição da dignidade do homem. As duas realidades são plenamente compatíveis e não
entram em choque.
1008
Vale lembrar que no âmbito da “soft law” temos a Declaração Universal dos Direitos dos
Animais, proclamada em assembléia da UNESCO em Bruxelas, na Bélgica, em 27 de janeiro de
1978. Apesar de não possuir coercibilidade, nota-se uma nítida mudança de paradigma, passando
os animais a serem encarados como autênticos sujeitos de direito. A esperança é que, por meio
de um processo gradativo e consciente, possam vir a se transformar em “hard law”.
1009
AZEVEDO, op.cit., p. 12.

- 401 -
animais constitucionalmente por meio de norma que coloca em pé de igualdade a
proteção da vida humana e animal1010.

Espero que o presente trabalho tenha sido exitoso no que se refere


a incutir o questionamento e a reflexão sobre um tema que, infelizmente, não vem
recebendo o tratamento teórico que merece em nosso país. Animais são coisas?
Devem as pessoas mudar o seu comportamento? Deve a lei promover o bem-
estar animal? Devem os animais possuir direitos?

Tenho a nítida sensação de que, progressivamente, vamos


adquirindo espaço para esse tipo de discussão. Sinto também que a maior parte
das pessoas, ao menos em certo nível, aceita a idéia de que muitos animais
sejam sencientes e de que existam direitos dos animais, muito embora não
saibam o que realmente significam. LAURENCE TRIBE, grande constitucionalista
norte-americano, considera que os argumentos que normalmente são utilizados
para negar o reconhecimento dos direitos dos animais não passam de mitos. O
Direito chegou ao requinte de desenvolver a teoria da pessoa jurídica, por meio
da qual “personificou” um ente inanimado, concedendo-lhe extensa gama de
direitos1011. Desta maneira, a ampliação do círculo de sujeitos de direito, ou da
esfera da personalidade jurídica, é mais um questão de aculturação do que de

1010
Evoluções constantes, mesmo que sob o prisma apenas reformista, são notadas em alguns
países. Recentemente, segundo veiculado na imprensa, a Áustria adotou uma das legislações
mais severas da Europa em matéria de proteção animal. De acordo com essa legislação, leões,
tigres e demais animais selvagens são terminantemente proibidos de serem utilizados em
espetáculos públicos e em circos. Não será mais autorizada a “amputação estética” de membros
dos animais de estimação (especialmente em cães é comum a amputação da cauda e orelhas em
algumas raças). Não será mais permitido qualquer tipo de treinamento à base de eletrochoques ou
a utilização de coleiras e guias com pontas, tampouco manter os animais presos ou encarcerados
por longo período de tempo. Aliás, a esse respeito vacas, cavalos e cabras terão direito a três
meses de férias por ano, ao ar livre e sem entraves, e a criação de frangos em granjas não será
mais permitida a partir de 2006, três anos antes de sua proibição geral na União Européia. Para
arrematar, haverá um ombudsman em cada província austríaca para zelar pelo bem-estar dos
animais. Os contraventores estarão sujeitos a penas pecuniárias pesadas, que variarão entre 2 mil
a 15 mil euros.
1011
A pessoa jurídica atua em nome próprio desenvolvendo atividades e negócios com terceiros,
possuindo o direito de praticar atos de gestão e representação, celebrar contratos, processar e ser
processada em juízo na qualidade de parte, podendo ainda ser responsabilizada na esfera cível,
criminal e administrativa. Há inclusive intenso debate sobre a possibilidade de a pessoa jurídica
ser sujeito passivo dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). MAGGIORE e
MANZINI sustentam que ela não tem sentimento de dignidade própria, pois é uma entidade
abstrata. Outros autores afirmam que pode ser sujeito de difamação ou injúria, uma vez que
possui patrimônio particular e até mesmo honra. Uma terceira corrente entende que pode ser
vítima de difamação pelo fato de possuir reputação, boa fama, nome consolidado no mercado
(honra objetiva). Cabe lembrar também a discussão pertinente aos direitos das “futuras gerações”.

- 402 -
quebra de barreiras conceituais.1012 De fato, o argumento da “continuidade
histórica” é, de fato, poderoso. O Direito tem ampliado sucessivamente a sua
esfera de proteção: dos escravos, das crianças, das mulheres, chegando até as
sociedades comerciais e associações1013.

A nossa vida atribulada e cheia de preocupações faz com que


automatizemos e perpetuemos determinados comportamentos de forma
irrefletida. O mundo é indivisível e os problemas ambientais têm a característica
da ubiqüidade, afetando a tudo e a todos de forma avassaladoramente difusa.
Utilizando uma expressão de CARL SAGAN, pode-se dizer que todas as formas
de vida são interdependentes e estão intimamente “entrelaçadas” umas às
outras1014.

O homem colocou a si próprio como centro do universo e de toda


sorte de preocupação, subjugando e transformando a natureza de tal forma que
acabou por colocar a sua própria existência e a das gerações futuras em perigo. A
miopia antropocêntirca não nos permite encarar os olhos de um animal que está
prestes a ser abatido, mutilado ou submetido a experiências dolorosas. Não nos
permite deixar o alter tornar-se eu, nem que seja por um ínfimo espaço de tempo.

Diz uma antiga fábula, atribuída ao filósofo chinês MÊNCIO que,


certa vez, um rei estava sentado em seu trono quando viu um homem passar com
um boi. O monarca aproximou-se e perguntou para onde levaria o animal. Foi
esclarecido então que este iria ser abatido em um sacrifício religioso. Pesaroso
1012
“Ampliar o círculo dos sujeitos de direito, ou mesmo ampliar a definição de pessoa, eu admito,
é amplamente uma questão de aculturação. Não é uma questão de quebrar alguma coisa, como
uma conceitual barreira do som” (TRIBE, “Ten Lessons our Constitutional Experience can Teach
us About the Puzzle of Animal Rights: The Work of Steven M. Wise” apud SANTANA, trecho
constante do HC impetrado em favor da chimpanzé Suíça).
1013
O antológico voto do juiz MARSHALL, no famoso caso Sierra Club v. Morton (1972), afirma
que, da mesma forma que nos EUA um navio ou uma corporação podem ser titulares de direitos,
nada impede que a natureza também o seja.
1014
“Na América do Norte, respiramos oxigênio gerado na floresta tropical brasileira. A chuva ácida
das indústrias poluentes no meio-oeste norte-americano destrói florestas canadenses. A
radioatividade de um acidente nuclear na Ucrância compromete a economia e a cultura na
Lapônia. A queima de carvão na China aquece a Argentina. Os clorofluorcarbonetos liberados por
um ar-condicionado na Terra-Nova ajudam a causar câncer de pele na Nova Zelândia. Doenças
se espalham rapidamente até os pontos mais remotos do planeta e requerem um trabalho médico
global para serem erradicadas. E, sem dúvida, a guerra nuclear e um impacto de asteróide
representam um perigo para todo mundo. Gostando ou não, nós, humanos, estamos ligados com
nossos colegas humanos e com as outras plantas e animais em todo mundo. As nossas vidas
estão entrelaçadas.” (SAGAN, op.cit., p. 77-8).

- 403 -
por ver o animal tão assustado a caminho da execução, determinou ao súdito que
o soltasse. Sem ter meios de cancelar a cerimônia ritualística, o rei pediu que
fizesse a substituição do boi por um carneiro. Posteriormente, afligiu-se, pois sua
decisão não teria alterado o fato que outro animal inocente iria ser morto.
Entristeceu-se ao perceber que ao assim proceder, teria cometido a mesma
injustiça, razão pela qual não seria mais digno de governar o seu povo. MÊNCIO
explicou então ao rei que ele fizera a troca por misericórdia, pois só pôde
visualizar o sofrimento do boi, e não o do carneiro.

- 404 -
É difícil mudar, e certamente pagaríamos um preço alto por um
mundo diferente. J.M. COETZEE afirma:

A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum – razão,
autoconsciência, alma – com os outros animais? (E o corolário que se
segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a tratá-los como
quisermos, aprisionando-os, matando-os, desrespeitando seus
cadáveres.) Volto aos campos de extermínio. O horror específico dos
campos, o horror que nos convence de que aquilo que aconteceu ali foi
um crime contra a humanidade, não reside no fato de que a despeito de
os matadores partilharem com suas vítimas a condição de humanos,
eles a terem tratado como piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está
no fato de os matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas
vítimas, assim como todo mundo. [...] Em outras palavras, eles fecharam
seus corações.

Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós
nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida. O ser inteiro do
animal se lança nesta luta, sem nenhuma reserva. Quando o senhor diz
que falta a essa luta um dimensão de horror intelectual ou imaginativo,
eu concordo. Não faz parte do modo de ser do animal experimentar
horrores intelectuais: todo o seu ser está na carne viva.1015

Infelizmente, não foi possível, e tampouco isso seria viável, incluir


muitas outras posições igualmente brilhantes e criativas que sustentam teses
interessantíssimas para fundar os direitos dos animais. Em particular cabe
mencionar as teses de MARTHA NUSSBAUM, JAMES RACHELS e de LESLIE
ROGERS e GISELA KAPLAN sobre as perspectivas e dificuldades a respeito de
traçar parâmetros confiáveis para a inclusão dos animais no âmbito de nossa
comunidade moral. Merecem igualmente ser citados os estudos de RONALD
VANDEVEER e STEVE F. SAPONTZIS defendendo o apelo aos direitos, bem
como os de INGMAR PERSON, MARC BEKOFF e CHRISTOPH ANSTOTZ
fornecendo bases para a igualdade inter-espécies. A contestação das práticas

1015
COETZEE, A Vida dos Animais, op.cit., p. 42 e 78.

- 405 -
relacionadas à agroindústria são muito bem colocadas em ensaios de DAVID
WOLFSON e MARIANN SULLIVAN. Em especial, cabe mencionar a refinada
teoria desenvolvida por DAVID FAVRE, apoiada em analogias feitas a partir da
figura do “trust”, pela qual aos animais seria permitido serem “donos de si
próprios”, construindo a figura da “equitable self-ownership” para não-humanos.
Muitos outros brilhantes autores desenvolvem com proficiência teses relacionadas
ao tema e mereceriam ser aqui relacionados. Considerem-se todos
homenageados por MAHATMA GHANDI (1869-1948), quando profetiza:

Primeiro eles te ignoram, então riem de você, então lutam com você, e
então você vence.

07.12.2005

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DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO MESTRADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO
RIO DE JANEIRO, E APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA PELOS SEGUINTES
PROFESSORES:

PROF. DR.RICARDO LOBO TORRES (ORIENTADOR)


UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF

PROF. DR. FRANCISCO MAURO DIAS


UNIVERSIDADE GAMA FILHO – UGF

PROF. DR. JOÃO RICARDO WANDERLEY DORNELLES


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA – PUC-RIO

Rio de Janeiro, 07 de março de 2006.

Prof. Dr. JOSÉ RIBAS VIEIRA

Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito

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