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Dissertação de Mestrado
II
AGRADECIMENTOS
III
e me incentivou carinhosamente em todos os momentos, gostaria de manifestar
um agradecimento todo especial. Finalmente, como não poderia deixar de ser,
gostaria de deixar expressa toda minha gratidão para com todos os animais não-
humanos com os quais tive e tenho a maravilhosa oportunidade de conviver (a
minha família não-humana - EVIE, CHEIDE, CHILA, MIGUELITA, LOIRINHA,
ELVIS, CHAYLA, LARA e FREDDO – mostrou-me que animais podem pensar,
sentir, sofrer e interagir conosco em níveis muito profundos) e a todos os demais
que, continuamente, fazem da minha vida um eterno aprendizado de amor,
sinceridade, admiração, lealdade e respeito.
IV
“Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a
adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não
ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro
da pele não é motivo para que um ser humano seja
irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É
possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a
vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões
igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao
mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A
faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um
cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e
comunicativos do que um bebê de um dia, uma semana, ou até
mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim,
que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de
raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são
capazes de sofrer?’”
1
BENTHAM, The Principles of Morals and Legislation, apud SINGER, Peter. Libertação Animal.
Tradução por Marly Winckler. Porto Alegre, São Paulo: Lugano, 2004. p. 8-9. Jeremy Bentham
nasceu em Londres, em 15 de fevereiro de 1748. Estudou em Oxford, no Queen´s College.
Começou o estudo do Direito em 1763, em Londres, tendo, mais tarde, se integrado ao King´s
Bench, uma divisão da Corte Suprema Britânica. A obra supracitada foi originalmente publicada
em 1789, época em que, embora grandes mudanças começassem a surgir, os escravos das
possessões inglesas e demais colônias ainda eram tratados quase do mesmo modo como hoje
tratamos os animais.
V
RESUMO
VI
ABSTRACT
This work is about non-human animal rights. This issue was brought
up while I was young when, for the first time, I came across Peter Singer’s work,
Animal Liberation. The main goal is to demonstrate that both ethical and lawful
treatment of non-human animals are based upon completely misled premises. The
dialectic approach based on the idea of a world with a “human” center and a
“natural” periphery (anthropocentrism) is on crisis and rapidly fading away, giving
space to the consolidation of a “biocentric” paradigm, in which life, as a whole, is
at the center of all concerns. As a consequence, human life, being only one of the
numerous forms of life manifestation, shall not be the only one to deserve a worthy
and respectful treatment. Moreover, it shall not have the exclusivity of bearing the
guarantee of rights. In the first chapter I sketch the history of speciesism, which, in
the legal system, has influenced, decisively, the fusion between the concepts of
human being, person and right-holders. I conclude that the parallels between
speciesism, sexism and racism have become clearer over the years. In the second
chapter, I deal with the ethical response to the questions that were raised. Direct
and indirect theories are presented as alternatives to the conception that animals
are mere things. The work’s third chapter addresses the insufficiency of the ethical
discourse detached of a pragmatic realization. The law has a fundamental role as
a legitimacy structure, at which the animals shall be entitled as subjects of rights.
Finally, in the fourth chapter, I state the conclusions I have drawn, as well as
frequent questions addressed to the animal rights theory.
VII
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................... X
1.2.2. Sócrates............................................................... 24
1.3. Os Romanos................................................................. 47
1.3.1. A Dicotomia “Pessoa/Coisa”................................. 49
1.3.2. Servidão Humana: O Status Jurídico dos
50
Escravos.........................................................................
1.3.3. Servidão Não-Humana: O Status Jurídico dos
52
Animais...........................................................................
1.3.4. Direito Natural....................................................... 54
VIII
1.5. Idade Média e Tempos Coloniais............................... 97
1.5.1. O Poder Eclesiástico............................................ 98
IX
2.2.2. Teorias Indiretas – Contratualismo: Clássicos e
240
Naverson........................................................................
2.2.3. Teorias Indiretas – Contratualismo: Rawls e o
244
“Véu da Ignorância”........................................................
2.2.4. Teorias Indiretas - Kant e o “Imperativo
250
Categórico”.....................................................................
2.2.5. Teorias Indiretas - Estatutos Protetivos e “Legal
260
Welfarism”......................................................................
2.3. Teorias Diretas............................................................. 269
2.3.1. Teorias Diretas: “Crueldade-Compaixão””............ 269
2.3.2. Teorias Diretas: A Defesa Ética dos Animais por
276
Humphry Primatt e seus Herdeiros................................
2.3.3. Teorias Diretas: O Utilitarismo Clássico e o
283
“Princípio da Maior Felicidade Possível”........................
2.3.4. Teorias Diretas: O Utilitarismo de Singer e o
288
“Princípio da Igual Consideração de Interesses”............
X
INTRODUÇÃO
“Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que
outros.” 2
GEORGE ORWELL
2
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. Tradução por Heitor Aquino Ferreira. Rio de
Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. p. 92.
3
Ibid., p. 10.
4
Neste sentido, foram elaborados os sete princípios do animalismo, quais sejam: “Qualquer coisa
que ande sobre duas pernas é inimigo. O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupa. Nenhum animal dormirá em cama. Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal. Todos os animais são iguais” (Ibid., p. 19).
XI
Será realmente que “todos os animais são iguais”? A humanidade
vem sofrendo sucessivos “descentramentos” ao longo da sua história. O primeiro
deles se deu com COPÉRNICO, que logrou retirar do imaginário popular a Terra
como centro do universo5. A segunda “virada” veio com DARWIN por meio da
demonstração científica da natureza animal do homem, pela qual as diferenças
entre ele e os outros animais são apenas de grau e não de categoria. Assim
sendo, não ocuparíamos lugar privilegiado ou especial na “ordem da criação”. O
terceiro “abalo” ao antropocentrismo veio com o questionamento da crença
iluminista do “poder absoluto da razão”, realizado por MARX e FREUD nos
séculos XIX e XX, respectivamente. MARX, por meio da teoria do “materialismo
histórico”, explicitou que as nossas crenças (morais, religiosas, filosóficas e
políticas) são diretamente relacionadas à posição social ocupada pelo indivíduo e
às relações de trabalho e produção. A razão, sob esta ótica, não é inteiramente
fruto da liberdade individual, mas, sim, dos valores subliminarmente incorporados
pelas pessoas no jogo do processo produtivo (poder da “ideologia”). FREUD, por
sua vez, afirma que o homem não é senhor absoluto sequer de sua vontade, de
seus desejos e instintos (poder do “inconsciente”)6. O quarto “descentramento” é o
objeto do presente trabalho, que consiste justamente na ampliação, para além da
fronteira humana, do rol dos seres vivos agraciados com a personalidade jurídica.
Pretende-se examinar criticamente como se construiu, ao longo do tempo, a
identificação dos conceitos de “pessoa” com o de “humanidade”, perfilhando e
consolidando uma proposição radicalmente antropocêntrica dentro do sistema do
Direito. Após tal exame, que tem como objetivo deixar evidenciado que a
apropriação humana do mundo natural não é um fato incontroverso e tampouco
incontestável, será demonstrado que a mudança do paradigma, do
5
A teoria “heliocêntrica” de COPÉRNICO foi apresentada oficialmente com a publicação de sua
obra As Revoluções dos Orbes Celestes em 1543, em substituição à teoria geocêntrica de
PTOLOMEU. Foi posteriormente complementada pela teoria do “universo infinito” de GIORDANO
BRUNO que, entre outras coisas, postulava pela “pluralidade de mundos habitados” (teoria
originalmente sustentada por NICOLAU DE CUSA em 1440).
6
“Mas a megalomania humana terá sofrido o seu terceiro e mais contundente golpe da parte da
pesquisa psicológica atual, que procura provar ao ego que nem mesmo em sua própria casa é ele
quem dá as ordens, mas que deve contentar-se com as escassas informações do que se passa
inconscientemente em sua mente” (FREUD, Sigmund. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin
Claret, 2005. p. 59).
XII
antropocentrismo para o biocentrismo7, conduz a uma necessária ampliação de
nossos horizontes morais. Esta ampliação deve ser seguida de uma também
imprescindível extensão de direitos fundamentais para não-humanos, na
qualidade de sujeitos de direito, não havendo argumentos sólidos para que
continuemos a relegá-los à categoria meramente instrumental de coisa ou objeto8.
7
LIDIANE ELUIZETE CARVALHO esclarece que: "O antropocentrismo se contrapõe ao
biocentrismo pelo qual, ao invés do homem, é a própria natureza que está no centro das
preocupações com o meio ambiente, inclusive na esfera jurídica. Em face desta idéia radical de
superação do antropocentrismo clássico por uma visão biocêntrica de meio ambiente, defendem
alguns autores um caminho do meio, ou seja, a superação da idéia do homem senhor absoluto e
utilizador e destruidor dos recursos naturais pelo reconhecimento do valor intrínseco do meio
ambiente e a conseqüente inclusão de valores bioéticos na sua proteção jurídica, tornando-se uma
espécie de antropocentrismo alargado (JOSÉ RUBENS MORATO LEITE, PAULO DE BESSA
ANTUNES, JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, entre outros)" (CARVALHO, Lidiane Eluizete.
Direito Ambiental Constitucional: Meio Ambiente na Constituição da República de 1988. Rio de
Janeiro: FGV, 2005. p. 6). No entanto, conforme bem observa DANIELLE DE ANDRADE
MOREIRA, a visão tradicional de meio ambiente, antropocêntrica mostrou-se incapaz de garantir
uma proteção ambiental adequada. "A visão estritamente utilitarista do meio ambiente,
caracterizada pela ótica antropocêntrica, cede lugar, então, ao biocentrismo, que, por sua vez,
privilegia a vida em todas as suas formas. Retirando o foco exclusivamente dos interesses do ser
humano, busca-se, por meio da visão biocêntrica, proteger tudo o que seja expressão da vida,
com o objetivo final de manter a harmonia e equilíbrio nas inter-relações do sistema ambiental -
promovendo-se, dessa forma, também o melhor atendimento das necessidades do próprio ser
humano, que integra a natureza, assim como os demais seres vivos. À luz de uma ótica
biocêntrica, torna-se viável a proteção completa do meio ambiente, uma vez que reconhecido -
além dos valores econômicos por ele e por seus elementos representados - o seu valor intrínseco,
entendido como inerente ao reconhecimento do meio ambiente como macrobem, sendo de
natureza, portanto, essencialmente imaterial." (MOREIRA, Danielle de Andrade. Dano Ambiental
Extrapatrimonial. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, área de concentração “Direito da Cidade”, jan. 2003. p. 186).
8
A respeito dos três primeiros “abalos” teóricos sobre a humanidade verificar o excelente artigo de
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos de Um Novo Direito Constitucional
Brasileiro: Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador,
CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 6, setembro, 2001.
Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 29 set. 2005.
XIII
ainda hoje, acabam por, na maior parte das vezes, contribuir significativamente
para negligenciar os negros à condição de cidadãos de “segunda classe”. O
impacto desse movimento serviu de modelo para diversos outros tais como o
movimento dos grupos hispânicos nos EUA, das populações indígenas e nativas,
dos homossexuais, entre tantos outros. No entanto, segundo bem observa o
filósofo PETER SINGER9, quando um grupo, desta vez majoritário, as mulheres,
começaram a sua campanha “emancipadora/abolicionista”, alguns pensaram que
tínhamos chegado ao final da batalha contra a opressão. A discriminação com
base no “sexo”, dizia-se, seria a última fronteira discriminatória a ser
definitivamente rompida e banida de nosso meio. Todavia, como se pretende
demonstrar, essa proposição não é totalmente verdadeira, pois, tal como adverte
SINGER, é sempre bastante arriscado falar-se em “a última forma de
discriminação.”10
9
REGAN, Tom; SINGER, Peter. Animal Rights and Human Obligations. New Jersey: Prentice-Hall,
1989. p. 148.
10
“Quando as mulheres começaram a reivindicar o direito ao voto ou à igualdade genérica de
direitos, não faziam idéia ao certo onde é que as suas reivindicações nos conduziriam. Não sabem
ainda; nem eu o sei. Mas estou confiante de que se trata de uma mudança para melhor, mesmo
que muitas implicações particulares das alterações verificadas só venham a tornar-se claras com o
tempo. O mesmo pode dizer-se do nosso tratamento dos animais” (LA FOLLETE, Hugh; SHANKS,
Niall. “The Origin of Speciesism”, Philosophy, n. 71, 1996).
11
WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of the Rights of Women. New York: Dover
Publications, 1996 (primeira edição pela London: J.Johnson, 1792).
12
TAYLOR, Thomas. A Vindication of the Rights of the Brutes. Sequim, WA (USA): Holmes
Publishing Group LLC, 2001.
XIV
emancipação feministas de WOLLSTONECRAFT afirmando que se as
tomássemos como válidas, não haveria razão para que não as estendêssemos
também aos animais. O princípio da igualdade de tratamento também deveria
desdobrar-se para ser aplicado a cães, gatos, cavalos e outros animais13.
13
A retórica de TAYLOR fundamenta-se na adoção incondicional da doutrina a que denomina de
“igualdade perfeita” (“doctrine of perfect equality”), justificada nas seguintes bases: “Mas tudo isso,
no entanto, é somente uma aproximação da grande verdade, a que este ensaio se destina a
promulgar e provar, a de que não há tal coisa no universo, como a superioridade inata, e que tudo,
quando minuciosamente e acuradamente examinado, por mais vil ou abjeto que possa falsamente
parecer, é, em realidade, de inestimável valor e intrinsecamente igual a uma coisa tida como de
grande magnitude e valor” (TAYLOR, op.cit., p. 5, tradução nossa).
14
Participo da tese de que a utilização do vocábulo “animais” em contraposição a “seres humanos”
é perniciosa na medida em que sugere, subliminarmente, uma separação puramente artificial da
vida e o caráter supostamente incomparável da espécie humana. A dicotomia “animais
humanos/animais não-humanos” é, pois, preferível, haja vista a comunhão da característica da
animalidade por ambas as categorias. Essa é a razão porque se preferiu, ao longo do presente
trabalho, adotar a nomenclatura de “animais não-humanos” (“nonhuman animals”) para designar
os animais que não os seres humanos. Muito embora a pureza terminológica devesse ser
preservada, nota-se que, em diversos momentos, propositadamente, foi adotado somente o termo
“animal”, pagando-se tributo à convenção lingüística e à realização de uma comunicação mais
eficiente.
15
Todos os dados são relativos a pesquisas feitas pela Associated Press e encontram-se no livro
de FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or The Dog? Philadelphia:
Temple University Press, 2000. p. xix.
XV
rápido exercício matemático, somente nos EUA, são abatidos cerca de 23 milhões
de animais por dia para alimentação, ou cerca de 260 a cada segundo16.
Caçadores matam aproximadamente 200 milhões de animais, também nos EUA
(números que não incluem uma enorme quantidade de animais que sobrevive
mas com lesões permanentes e desabilitantes), e outro tanto é utilizado em
experimentos científicos e na indústria do “entretenimento” como zoológicos,
circos, corridas, shows, rodeios, touradas, etc... Nem se fale da indústria da moda
que, ainda hoje, abate cerca de 40 milhões de animais/ano para a confecção de
peças de vestuário. A esmagadora maioria destes animais vive vidas miseráveis,
povoadas de intensa agonia psíquica e sofrimento físico.
16
“Há no mundo 1,35 bilhão de bois e vacas. Criamos 930 milhões de porcos. 1,7 bilhão de
ovelhas e cabras. 1,4 bilhão de patos, gansos e perus, 170 milhões de búfalos. Some todos eles e
teremos uma população de animais quase equivalente à humana dedicando sua vida a nos
alimentar – involuntariamente, é claro. Isso sem incluir 14,85 bilhões de frangos e galinhas. No
Brasil existem 172 milhões de cabeças de gado bovino, uma para cada cabeça humana. Nosso
rebanho bovino só é menor do que o da Índia, onde é proibido matar vacas. Somos o quarto país
do mundo onde mais se come carne bovina. Um brasileiro médio consome também 32 quilos de
frango e 11 quilos de porco todo ano” (BURGIERMAN, Denis Russo. Deveríamos parar de comer
carne? Revista Superinteressante, São Paulo: Abril, n. 175, 2002. p. 43).
17
SINGER, Peter. Animal Liberation. New York: Haper Collins, 2002 (primeira edição em 1975). A
obra foi publicada recentemente no Brasil sob o título de Libertação Animal (Tradução por Marly
Winckler. Porto Alegre: Lugano, 2004).
XVI
alguns dos principais responsáveis pelo abalo à inércia acadêmica sustentando
teses baseadas na “igual consideração de interesses”, (“equal consideration”)
caracterizando e configurando o “especismo”18 como manifestação social análoga
18
O termo “speciescism” (equivalente em português a “especismo” ou “especiesismo”) foi
originariamente cunhado por RICHARD D. RYDER, psicólogo e professor da Universidade de
Oxford, em um artigo intitulado “Experiments on Animals”, datado de 1970, e posteriormente
publicado como parte do livro Animals Men and Morals (Godlovitch, Godlovitch and Harris, 1971).
Posteriormente, consolidou a utilização do termo no livro “Victims of Science: the Use of Animals in
Research” (1975). O referido autor utilizou o neologismo para designar uma forma de injustiça que
significa tratamento diferenciado para aqueles que não integram a mesma espécie. RYDER
procurava, então, traçar um paralelo de nossas atitudes perante as demais espécies e as atitudes
racistas e sexistas. Segundo o autor, todas essas formas de discriminação são fundamentalmente
baseadas em características arbitrárias sendo, por tal motivo, insustentáveis: o “especismo se
presta “[...] para descrever a discriminação generalizada praticada pelo homem contra outras
espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de
preconceito que se baseiam em aparências −se o outro indivíduo tem um aspecto diferente deixa
de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas
inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também
para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até
mesmo sexismo) não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e
aqueles contra quem este discrimina. Ambas as formas de preconceito expressam um desprezo
egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento” (RYDER apud FELIPE, Sônia T. Crítica
ao especismo na Ética Contemporânea; a Proposta do Princípio da Igual Consideração de
Interesses. Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 08 nov. 2005).
Posteriormente, RYDER publicou outras obras tais como Animal Revolution: Changing Attitudes
Towards Speciescism, (Oxford: Basil Blackwell, 1989) e The Political Animal: The Conquest of
Speciescism, (Jefferson-USA: McFarland & Company Inc., 1998). Outros brilhantes autores
começaram, a partir daí a fazer uso desta nomenclatura para designar o fenômeno de colocação
do ser humano como “o ápice da cadeia evolutiva” em detrimento dos outros seres vivos. O
próprio PETER SINGER, em sua obra Animal Liberation (1975), ressalta que deve a utilização do
termo “especismo” a RYDER. Também em 1975, o renomado psicológo inglês STUART
SUTHERLAND (1927-1998), também professor da Universidade de Oxford, optou por designar
como “espécie-centrismo” a atitude de arrogância e egoísmo inatos que faz com que atribuamos
consciência e autopercepção unicamente à nossa espécie. (cf. The Times Literary Supplement –
TLS de 26 de dezembro de 1975). FERNANDO ARAÚJO, autor da obra portuguesa A Hora dos
Direitos dos Animais (Almedina, 2003) utiliza o termo “especismo”. O termo encontra-se
dicionarizado no THE OXFORD ENGLISH DICTIONARY (2ª edição, Oxford: Clarendon Press,
1989), assim como no WEBSTER ENCYCLOPEDIC UNABRIDGED DICTIONARY (New York:
Random House Value Publishing Inc., 1996). Entre nós, temos a sua presença no DICIONÁRIO
HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). Em tal obra, optou-se por
“especiesismo”, que tem por significado: “s.m. (1973) 1. preconceito ou discriminação com base na
espécie <e. contra os lobos>; 2. pressuposto da superioridade humana no qual se baseia o
especiesismo (acp.1). ETM ing. speciecism (1973) ‘id., der. de species, ver espec-“ (HOUAISS,
op.cit., p. 1226). A tradução da obra de RICHARD DAWKINS, O Capelão do Diabo, feita por
Rejane Rubino, corrobora a utilização do vocábulo “especiesismo” (São Paulo: Cia das Letras,
2005, p. 44), muito embora HERON JOSÉ DE SANTANA prefira “especismo” (SANTANA, Heron
José de. Abolicionismo Animal. Revista de Direito Ambiental, São Paulo – RT, 2004, n. 36, p. 85-
109). De minha parte, acho mais razoável a opção da forma “especismo” para designar o referido
fenômeno. A formação do vocábulo se dá pelo encontro (formação por derivação sufixal) entre o
substantivo “espécie” e o sufixo “ismo”. “Espécie”, por sua vez, vem do latim specie que, da
mesma forma, origina-se do elemento compositivo antepostivo “spec” ou “spic” (por apofonia).
Assim, a meu juízo, não haveria problemas na adoção de “especismo”, ao invés de
“especiesismo”, preferível a este por questões de facilidade de pronúncia, preservados que
estariam o radical e o sufixo. A adoção de uma nomenclatura apropriada para designar o
XVII
ao racismo e ao sexismo. As atitudes discriminatórias em relação a membros de
outras espécies seriam, pois, uma forma de preconceito não menos objetável que
o preconceito racial ou sexual. Outros estudiosos começaram a questionar os
critérios sobre os quais se assentam as éticas tradicionais, chegando a
conclusões similares partindo de argumentos filosóficos diversos, consolidando a
premente necessidade de revisão do tratamento que dispensamos aos animais
não-humanos. Em se tratando de animais, a disparidade entre o que falamos e
aquilo que fazemos é enorme.
fenômeno é importante, pois a sua não existência contribui para a naturalização irrefletida das
condutas por ele abrangidas.
19
Atualmente a National Association for Biomedical Research – NABR
(<http://www.nabr.org/AnimalLaw/LawSchools/AnimalLawCourses.htm>), elenca as principais
universidades norte-americanas que oferecem cursos de Animal Law, valendo destacar além das
já citadas,Yalel, Stanford, New York University, University of Washington, UCLA,, Michigan State,
Columbia, Lewis & Clark, Rutgers, De Paul e Case Western, entre outras tantas.
20
A grande quantidade de referências bibliográficas servirá como demonstrativo da amplitude e
seriedade com que o assunto vem sendo tratado. No Brasil a literatura ainda é incipiente, mas
temos sido agraciados com excelentes trabalhos de PAULA BRÜGGER, EDNA CARDOZO DIAS,
LAERTE FERNANDO LEVAI, HELITA BARREIRA CUSTÓDIO, HERÓN SANTANA, VÂNIA
XVIII
pelos interesses dos animais tem adquirido foros de irreversibilidade em muitos
meios, sendo praticalmente impensável que um filósofo moral apele à sua
instrumentalização, defendendo uma ética puramente antropocêntrica.
XIX
do especismo é bastante simples e, ao mesmo tempo, por incrível que pareça,
extremamente eficaz: os humanos são humanos e os animais, animais. Há um
abismo insondável entre eles, de sorte que praticamente uma única vida humana
possui valor intrinsecamente superior à vida de todas as outras espécies, em
qualquer caso e em qualquer condição. A aposição da “etiqueta” Homo sapiens
tem um peso poderoso e é tida como legitimadora de um tratamento infinitamente
diferenciado.
XX
mundo. O empreendimento prometéico de conquista e sujeição do mundo diz
respeito ao poder e à dominação, seja do homem para com a natureza, seja do
homem para com o próprio homem (“homo homini lupus”)21. HORKHEIMER, a
esse respeito, assinala que:
21
“Em Asinaria de Plauto o mercador afirma que não pode dar dinheiro a um desconhecido
porque, quando desconhecido, Lupus est homo homini non homo, ‘o homem é lobo, e não
homem, para outro homem’. Portanto, nesse contexto, a expressão tem acepção limitada, ao
passo que hoje tem fama como símbolo da concorrência feroz e da luta pela vida no
relacionamento humano: esse tipo de comportamento dos seres humanos já era difundido entre os
antigos, expresso às vezes com o politptoto homo e, com mais freqüência, de modo diferente;
muitas vezes também se põe em evidência a diferença entre os animais, que não fazem mal aos
da mesma espécie, e os homens, que agem de modo diametralmente oposto. Essa frase está
registrada como proverbial em todas as línguas européias, mas também ficou conhecida por ter
sido usada por Thomas Hobbes como símbolo das cruéis relações humanas no estado de
natureza, antes da intervenção de uma organização estatal; retorna num epigrama de John Owen,
que faz um paralelo entre ela e uma expressão diametralmente oposta de Cecílio (Homom homini
deus) [...]” (TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. São Paulo: Martins Fontes,
1996. p. 538.)
22
ROSSI, Paolo. A Ciência e a Filosofia dos Modernos. São Paulo: Unesp, 1992. p. 15.
XXI
insustentável com relação a seres que também sentem e, sobretudo, que também
sofrem. Essa luta só tem sentido, é certo, e só poderá ser feita, em um contexto
que promova o reconhecimento dos interesses do animal humano também,
inclusive como titular do direito de conviver em um ambiente ecologicamente
equilibrado conjuntamente com a biota e demais recursos naturais. O
redimensionamento das relações entre animais humanos e não-humanos, com a
conseqüente defesa da inclusão animal como sujeito-de-direito não significa,
portanto, fazer pouco caso da humanidade. Pelo contrário, significa fornecer
fundamentação teórica para o estatuto moral do próprio homem, na medida em
que, como se verá, “é no mesmo tecido moral que se costuram o direito de
ambos”.23 Em última análise, tal como afirma SINGER, “a Libertação Animal é
uma Libertação Humana”.24
23
STERBA, James P. Earth Ethics: Introductory Readings On Animal Righst And Environmental
Ethics. New Jersey: Prentice Hall, 2000. p. 72.
24
SINGER, op.cit., p. 24.
XXII
morais livres, os animais são sujeitos morais. Nossos deveres para com eles não
são apenas de solidariedade, mas de justiça. A indiferença em relação à sua
causa revela uma escolha voluntária de relegá-los à margem do direito e de
qualquer ordem de consideração moral.
a torneira seca
(mas pior: a falta de sede)
a luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)
a porta fechada
(mas pior: a chave por dentro)
25
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2003. p. 331.
26
TOM REGAN lembra que até recentemente, há menos de um século, o neurologista norte-
americano CHARLIS LOOMIS DANA levantava a tese de que os partidários da causa animal
sofriam de um suposto distúrbio mental denominado de “psicose zoofílica” (zoophil-psychosis)
(REGAN, Tom. Defending Animal Rights. Chicago: University of Illinois, 2001. p. 1). Muito embora
pessoas de boa fé possam discordar sobre as questões relativas à moralidade do uso dos animais
XXIII
Parafraseando o brilhante RICHARD DAWKINS27, embora
reconheça a presença ocasional de lampejos de irritação (a meu sentir,
inteiramente justificáveis) no decorrer do texto, gosto de pensar que a maior parte
da obra é livre de preconceitos. Onde sou passional, é porque há boas razões
para a paixão estar presente. Onde há raiva, espero que seja uma raiva
controlada. Onde há tristeza, meu desejo é que ela não transborde para o
desespero, mas, ao contrário, mantenha a esperança no futuro. Os seres vivos
são, para mim, uma fonte contínua de alegria e aprendizado, e espero que essas
páginas transmitam isso. Termino este intróito com as sempre sábias palavras do
gaúcho ÉRICO VERÍSSIMO:
[...] tem me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor
pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é
acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo,
evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos
assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea
e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso
toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente,
como um sinal de que não desertamos nosso posto28.
para os mais diversos propósitos, praticamente todos concordam que não se pode mais negar que
sejam questões éticas inescapáveis.
27
DAWKINS, Richard. O Capelão do Diabo. Tradução de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia
das Letras, 2005. p. 11.
28
VERÍSSIMO, Érico. Solo de Clarineta – Memórias. Rio de Janeiro: Globo, 1994, vol. I. p. 58.
XXIV
CAPÍTULO I - O HOMEM E O MUNDO NATURAL: AS
PREMISSAS CULTURAIS DO ESPECISMO
29
SANTAYANA, George. Life of Reason. New York: Prometheus Books, 1905. p. 284, tradução
nossa.
30
CHOMSKY, Noam. Robbing People Blind: The US Economic System. Entrevista (áudio)
concedida a David Barsamian no MIT, em 31 de outubro e 3 de novembro de 1995. (Boulder,
Colo.: Alternative Radio, P.O. Box 551, 80306), tradução nossa.
-1-
um caráter inviolável, quase sagrado. Comumente tornam-se verdades
inquestionáveis para nós, verdadeiros dogmas. A revelação das raízes históricas
de algumas dessas crenças tem o propósito de tentar desmistificar esses
dogmas, tornando-os passíveis de análise crítica e questionamento.
31
THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia Das Letras, 1996. p. 19.
-2-
O mesmo se pode afirmar com relação ao Direito. Neste sentido, a
abordagem histórica é particularmente produtiva, pois nos habilita a compreender
o real valor e alcance de diversos institutos e princípios que alimentam o sistema
jurídico como um todo. Conforme já lecionava o insigne OLIVER WENDELL
HOLMES (1841-1935)32, o estudo racional do direito necessita de se alimentar
constantemente de elementos históricos a fim de que se possa enriquecer o real
valor das normas, pois:
32
HOLMES tornou-se magistrado da Suprema Corte Norte-Americana em 1902 e é célebre pela
frase “The life of the law has not been logic, but experience". Exerceu notada influência no âmbito
da filosofia jurídica, principalmente por ter moldado o que se convencionou denominar de
Realismo Americano. Foi o editor da American Law Review e autor da renomada obra The
Common Law (1882).
33
HOLMES, Oliver Wendell. “The Path of The Law”. Harvard Law Review n. 457, 1897, p. 469.
-3-
1.1. O Paradoxo da Humanidade
34
“Ao que parece, nunca deixamos de ser macacos, e ainda assim, aspiramos ser anjos. Quão
longe realmente fomos no caminho evolucionário? Quão longe termos de ir antes que,
genuinamente, incluamos toda a comunidade humana, e alcancemos uma fronteira viável entre
humanos e outros? Talvez essa busca seja destinada a ser interminável posto que as descobertas
científicas tendem a apagar as nossas crenças pré-existentes” (FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe.
So You Think You´re Human? Oxford University Press, 2004. p. 8, tradução nossa).
35
FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO é um historiador britânico autor de diversos livros populares
de história. Atualmente é professor titular da cadeira de Global Enviromental History na
Universidade de Londres e membro da Faculdade de História Moderna da Universidade de
Oxford.
36
De acordo com o ilustre ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, professor de direito da
Universidade de São Paulo – USP, “Em pelo menos três áreas o avanço do conhecimento
científico pôs abaixo a visão insular da pessoa. Essas áreas são: a biologia, com a explicação da
evolução das espécies; a etologia – estudo do comportamento dos animais na natureza -,
especialmente a primatologia, com o aprimoramento das observações; e as ciências cognitivas,
com as descobertas sobre o cérebro humano” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Estudos e
Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva: 2004. p. 8).
37
ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 1, tradução nossa.
-4-
Conforme já mencionado, o propósito deste capítulo é
eminentemente histórico, possuindo especial enfoque na questão da relação do
ser humano com a natureza, e, correlatamente, nas concepções a que
denominamos “visões de mundo”, referentes às noções de “humanidade” e de
“pessoa”. Pretende demonstrar que os limites do nosso entendimento do que vem
a ser humanidade nunca foram e sequer são tão óbvios ou mesmo universais.
38
NEUNSCHWANDER, Juliana Magalhães. Estrutura e Semântica dos Direitos Humanos. 2004.
Tese (doutorado em Direito) “Universitá degli Studi Lecce – Centro di Studi sul Rischio” de Lecce,
Itália, orientada por RAFFAELE DE GIORGI.
39
Ibid.
-5-
[...] o termo ‘humanidade’ foi utilizado originariamente no sentido de
‘condição humana’ e de ‘caridade’ (Menschlichkeit) e, entre o século XVII
e o século XVIII, passou a ser utilizado também para apontar não mais
apenas o aspecto qualitativo de ‘natureza humana’ do homem, mas sim
como um substantivo de quantidade, no sentido de ‘totalidade dos
homens’ (Menschheit)40. Hodiernamente, a expressão é utilizada nesses
dois diferentes sentidos que, como veremos, na verdade acabaram por
consistir, ambos, em componentes da noção de humanidade. Se o
sentido qualitativo de ‘humanidade’ afirmou-se mediante a distinção da
natureza humana daquilo que, por não ser ‘humana’, é indicado como
diverso – a animalidade (Tierheit) ou a natureza divina (Gottheit), o
aspecto quantitativo do termo passou a ocupar maior espaço,
exatamente, quando o apelo à noção de ‘natureza’ já não produzia
consenso e, portanto, sentido. Também no sentido de ‘natureza
humana’, o conceito de ‘humanidade’ apresentou dois significados. O
primeiro sentido é aquele que se construiu em contraposição à natureza
dos animais ou de Deus, de onde à ‘humanidade’ do homem
corresponde a certeza de que estes, enquanto homens, podem se
diferenciar tanto dos animais quanto de Deus. Por outro lado e ao
mesmo tempo, ‘humanidade’ foi indicada como um ideal ético, para o
qual os homens se auto-determinam. Nesse caso, a evolução da noção
de ‘humanidade’ veio traduzir as transformações na compreensão que os
próprios homens têm do significado de sua humanidade, ou seja, da
idealidade de sua condição humana. Assim que o termo acabou por
adquirir, neste segundo percurso semântico, uma dimensão
propriamente normativa que, posteriormente, estaria presente na
41
associação desse ideal com o conteúdo dos direitos .
40
BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK, Reinhardt. Geschichtliche Grundbergriffe.
Historisches Lexikum zur politisch-sozial Sprache in Deutschland. Stuttgart: Keelt-Cotta, Band 4,
1979. p. 1063, nota da autora.
41
Ibid.
-6-
refere à auto-afirmação da categoria do “humano” e do que não seria abarcado
por essa proposição.
-7-
Nas palavras do ilustre STEVEN WISE42:
42
STEVEN M. WISE é um renomado advogado norte-americano que leciona “Animal Protection
Law” há mais de 20 anos na Harvard Law School, Vermont Law School, John Marshall Law School
e no Mestrado em Animals and Public Policy na Tufts University School of Veterinary Medicine. É
ainda presidente do Animal Legal Defense Fund – ALDF e fundador do Center of Expansion of
Fundamental Rights. Escreveu inúmeros artigos acadêmicos sobre animal rights e é autor de dois
livros de referência na matéria, Rattling The Cage (Perseus Books, 2000) e Drawing the Line
(Perseus Books, 2002).
43
WISE, Steven. Rattling the Cage. Cambridge: Perseus Books, 2000. p. 4, tradução nossa.
-8-
1.2. Mundo Helênico44
1.2.1. Pré-Socráticos
SERGE MOSCOVI
-9-
eram percebidos como seres sencientes, inteligentes, com corpos dotados de
uma alma incorpórea. É geralmente aceito o fato de que o Homo sapiens já
caçava animais selvagens há cerca de 100.000 anos. O Homo habilis ou o seu
antecessor, Homo erectus, provavelmente também já o faziam por volta de 2,5
milhões de anos atrás. Pelo simples fato de ser pré-história, a ausência de
registros escritos não permite que precisemos com clareza o período em que
ocorreu o início da agricultura e da criação animal. Tem-se estimado que tal fase
provavelmente ocorreu há cerca de 11.000 anos, produzindo uma grande ruptura
no balanço de poderes entre os seres humanos e destes para com os animais47.
O registro de domesticação mais antigo de que se tem notícia é o do cão, e data
de aproximadamente 12.000 anos, enquanto que por volta de 9.000 anos atrás as
ovelhas, porcos e o gado também já viviam em regime de domesticação na região
mediterrânea.
47
Cf. SERPELL, J.A.; MANNING, A. Animals and Human Society: Changing Perspectives.
London: Routledge, 1994. p. 36.
48
Há também os que defendem a tese da origem oriental da filosofia grega e aqueles que
defendem que teria surgido na Grécia sem que nada anterior a preparasse.
49
Filosofia vem do grego philo (aquele que tem um sentimento amigável – derivado de philía que
significa “amor fraterno”) e sophía (“sabedoria” que vem de sophós que quer dizer “sábio”).
Conectando os vocábulos teríamos um sentido de “amizade ou amor à sabedoria”. Atribui-se a
PITÁGORAS a invenção da palavra, fazendo uma analogia com os Jogos Olímpicos em que havia
basicamente três tipos de pessoas, as que comerciavam (movidas pela cobiça), as que competiam
- 10 -
Anteriormente a esse processo de sistematização do conhecimento,
os gregos viviam em um universo integrado, regido por uma ordem governada
pelo divino. A religião e o misticismo faziam parte do entendimento da realidade
mundana, e a interação do sobrenatural com o profano, do religioso com o
natural, era uma constante. Segundo o poeta SIMÔNIDES DE AMORGO (séc. VII
a.C.), “Zeus controla a realização de tudo que existe e decide sobre tudo de
acordo com sua vontade. A previsão não pertence aos homens; vivemos como
bestas, sempre à mercê daquilo que o dia trará, sem nada saber dos resultados
daquilo que Deus imporá sobre nossos atos.”51
e as que somente assistiam e julgavam o valor dos atletas. Essa terceira categoria de pessoas
seria como os filósofos, pois não são movidas pela cobiça nem pelo desejo de competir, mas
antes pelo puro desejo de contemplar.
50
Segundo BERTRAND RUSSEL, “Tanto o Egito quanto a Babilônia legaram certos
conhecimentos, mais tarde aproveitados pelos gregos. Mas nenhum desenvolveu ciência nem
filosofia. Não cabe aqui questionarmos se isso se deveu à falta de gênio nativo ou às condições
sociais, ainda que esses fatores tenham contribuído. O significativo é que a função da religião não
conduziu ao exercício da aventura intelectual” (RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento
Ocidental: A Aventura dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 13).
51
AMORGO, Simônides de apud PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2004. p. 59.
52
O vocábulo grego mythos significa um discurso imaginário ou fictício, que pode chegar à
fronteira da “mentira”.
53
As principias fontes de conhecimento dos mitos gregos são os poemas épicos da Ilíada e da
Odisséia de HOMERO (séc. IX a.C.) e da Teogonia e da Erga de HESÍODO (séc. VIII a.C.).
Segundo HOMERO, na Ilíada, no momento em que Agamenon e Aquiles começaram a lutar, “a
vontade de Zeus estava satisfeita”. A breve passagem denota o forte determinismo pelo qual nada
acontecia por acidente ou pelas forças do acaso, muito embora os historiadores já identifiquem
nessas obras não somente a contraposição do sagrado e do profano, como também o embrião da
tensão entre o mythos e o logos.
- 11 -
magia. As causas dos fenômenos naturais, aquilo que acontece aos
homens, tudo é governado por uma realidade exterior ao mundo humano
e natural, superior, misteriosa, divina, a qual só os sacerdotes, magos,
os iniciados, são capazes de interpretar, ainda que apenas parcialmente.
São os deuses, os espíritos, o destino que governam a natureza, o
homem, a própria sociedade. Os sacerdotes, os rituais religiosos, os
oráculos servem como intermediários, pontes entre o mundo humano e o
mundo divino. Os cultos e sacrifícios religiosos encontrados nessas
sociedades são, assim, formas de se tentar alcançar os favores divinos,
de se agradecer a esses favores ou de se aplacar a ira dos deuses.54
54
MARCONDES, op.cit., p. 20.
- 12 -
homens), e que, ao mesmo tempo, é o maior dos bens. Assim, há uma ordem
para os homens e outra para os animais irracionais”55 .
55
DIAS, Edna Cardozo. A Tutela Jurídica dos Animais. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 18.
56
O critério para a definição dos pré-socráticos é, de fato, puramente cronológico. Entende-se que
são aqueles que precederam SÓCRATES (470-399 a.C.). Todavia, o marco é puramente
conceitual dado que muitos dos filósofos tidos como pré-socráticos foram contemporâneos a ele.
As fontes para o conhecimento do pensamento deste período são basicamente a doxografia
(comentários a respeito deles feitos por autores de períodos posteriores) e os alguns fragmentos
de textos originais tais como o Poema de PARMÊNIDES e Da Natureza de HERÁCLITO.
57
O pensamento filosófico não surgiu originariamente nas cidades do continente grego e sim nas
colônias gregas no Mediterrâneo oriental, no mar Jônico, onde hoje fica a Península da Anatólia
na Turquia. Daí o nome Escola Jônica para designar os pensadores da região entre os quais se
destaca TALES DE MILETO (fl.c. 585 a.C) e seus discípulos, ANAXIMANDRO (610-547 a.C.) e
ANAXÍMENES (585-528 a.C.), XENÓFANES DE CÓLOFON (580-480 a.C.) e HERÁCLITO DE
ÉFESO (500 a.C.).
58
O conceito de physis, ou “natureza” deriva-se de um verbo com significado de “crescer”. Servirá
para distinguir o mundo natural do artificial, entre o que se desenvolve autonomamente e o que foi
produzido pelas mãos do homem.
59
Pode-se dizer que o pensamento mítico foi mudando de papel. Foi, gradativamente, deixando
de servir como explicação para os fenômenos naturais, abrindo espaço para o pensamento
científico-filosófico. Uma das explicações para a transformação do modo de pensar grego foi a
mudança de uma economia agrária para uma baseada nas atividades mercantis, deixando pouco
espaço para o campo do místico, passando-se a valorizar a realidade concreta da participação
política e das transações comerciais. No entanto, o mito sobrevive ainda hoje como uma tradição
cultural, mas já não mais como forma básica de entendimento da realidade.
- 13 -
designa não o cosmos como um todo, mas, antes, um princípio existente
em cada parte natural do cosmos. Quando os pré-socráticos
investigavam a ‘natureza’, estavam investigando a ‘natureza das coisas’.
60
60
BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 21-2.
61
Na Ilíada, na narrativa da Guerra de Tróia, os deuses auxiliam abertamente os gregos e troianos
e transformam os acontecimentos, demonstrando que a realidade e, em última análise o próprio
destino, é fruto de sua vontade.
62
O marco tradicional da origem da filosofia grega baseia-se no eclipse solar supostamente
previsto por TALES DE MILETO, que os astrônomos modernos situam em 28 de maio de 585 a.C.
63
ANAXIMANDRO elaborou estudos nas áreas da biologia (origens da humanidade) e na
astronomia (engendrando uma complexa teoria dos corpos celestes e especulando que a Terra se
mantém fixa, no centro do universo, sem nada a sustentá-la).
64
ANAXÍMENES sustentava que por meio da rarefação e da condensação poder-se-iam criar
todas as coisas conhecidas do mundo.
- 14 -
A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma
ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se
constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O
cosmo, assim entendido, opõe-se ao caos, que seria precisamente a
falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização 65.
65
MARCONDES, op.cit., p. 26.
66
O termo é cognato do verbo legein, que usualmente é empregado para designar “afirmar”,
“descrever” ou “enunciar”, de onde posteriormente surgiu o termo logike para designar a “lógica”.
67
Além do famoso eclipse solar que teria sido previsto por ele, TALES também é o suposto autor
de formulações teóricas na área da geometria. É atribuído a ele o conhecido Teorema de Tales
pelo qual “se um feixe de paralelas é interceptado por duas retas transversais então os segmentos
determinados pela paralelas sobre as transversais são proporcionais.”
68
TALES apud BARNES, Jonathan, op. cit., p. 25.
69
PASSMORE, op.cit., p. 60.
- 15 -
Não menos interessantes são as especulações de seu discípulo
ANAXIMANDRO sobre a origem dos animais e dos homens. Segundo
PLUTARCO, “diz Anaximandro que os primeiros animais nasceram na umidade,
envoltos em cascas espinhosas. À medida que cresciam, avançavam para partes
mais secas, rompia-se a casca e, por um breve período de tempo, viviam uma
espécie diferente de vida”70. Ainda segundo PLUTARCO, “[...] assim Anaximandro
tendo declarado serem os peixes a um só tempo pais e mães dos homens, clama
para que não nos alimentemos deles”.71
70
PLUTARCO. Sobre as Idéias Científicas dos Filósofos, 908, D, apud BARNES, op.cit., p. 86.
71
PLUTARCO. Questão de Convivas, 730, DF, apud BARNES, op.cit., p. 86.
72
XENÓFANES, Miscelâneas VII, IV 22.1: B 16, apud BARNES, op.cit., p. 112.
73
A Escola Italiana caracteriza-se por uma maior abstração em relação aos jônios, prenunciando o
surgimento da lógica e da metafísica. Além de PITÁGORAS, integram essa escola ALCMEON DE
CROTONA (séc. V a.C.), FILOLAU DE CROTONA (séc. V a.C.), PARMÊNIDES DE ELÉIA (fl.c.
- 16 -
e sim o seu devir. O número74 passa a ser o elemento primordial que explica a
realidade e, portanto, suas contribuições matemáticas são inegáveis, em um
universo onde as proporções numéricas harmonizam todo o cosmo, garantindo
seu equilíbrio.75
500 a.C.) e a Escola Eleática: ZENÃO DE ELÉIA (fl. c. 464 a.C.) e MELISSO DE SAMOS (fl.c. 444
a.C).
74
De acordo com FREDERICO GUILHERME BANDEIRA DE ARAÚJO, “Na cosmogonia
pitagórica, os números não são representações quantitativas simbólicas (como se tornaram
posteriormente), mas a expressão qualitativa comum da diversidade; mais do que isso, são
concebidos como entes reais, constituídos de unidades compostas por mínimos corpóreos
indivisíveis, separados por intervalos (espaços resultantes da “respiração” do mundo, plenos de ar
infinito, como o pneumo apeiron de Anaxímenes.” (ARAÚJO, Frederico Guilherme. Saber Sobre os
Homens, Saber Sobre as Coisas: História e Tempo, Geografia e Espaço, Ecologia e Natureza. Rio
de Janeiro: DP&A, 2003. p. 58).
75
Segundo EDOUARD SHURÉ, “Pitágoras, ao pregar aos jovens o amor à família, comparava a
mãe à natureza generosa e benfazeja. Ele dizia que ‘a Cibele celeste produz os astros; Démeter,
os frutos e as flores da terra. Assim também, como a mãe alimenta o filho de todas as alegrias.’
Aqui se percebe que ele via a Terra como uma grande mãe. E para ele essa Natureza viva,
eterna, essa grande Esposa de Deus, não é somente a natureza terrestre, mas também a
natureza invisível aos nossos olhos da carne – a Alma do Mundo, a Luz primordial,
alternadamente Maia, Ísis ou Cibele, que, sendo a primeira a vibrar sob a impulsão divina, encerra
as essências de todas as almas, os tipos espirituais de todos os seres. É, em seguida, Demeter, a
terra viva e todas as terras, com os corpos que contêm, em que suas almas vem encarnar: depois
é mulher, companheira do homem.” (SHURÉ, Edouard. Os grandes iniciados. São Paulo: Martin
Claret, 1986, p. 68 apud DIAS, op.cit., p. 20).
76
Do grego metempsychosis, meta (mudança) e psukê (alma). A metempsicose tem origem
debatida, mas é certo que o hinduísmo, nas suas principais vertentes (o Jainismo, o Budismo e o
Vishnuismo entre outras) a adotam, bem como os antigos egípcios. Assim é que se especula ter
sido levada do Egito e Índia para a Grécia por meio da filosofia pitagórica, muito embora já se
admita que essas crenças já fossem também encontradas na Trácia, norte da Grécia, antes
mesmo de Pitágoras. Os druidas, também adotavam a teoria da transmigração. Há um tradicional
poema gaulês, de autoria desconhecida, onde se afirma: “fui um salmão azul, fui um cão, um
cervo, um veado, um tronco [...].”
- 17 -
eles77. EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO (fl.c. 450 a.C.) abraçando a doutrina
pitagórica, afirma que a melhor mudança para um humano é tornar-se um leão, se
acaso a morte vier a transformá-lo em um animal, e um loureiro, caso seja
transformado em planta. Segundo o mesmo pensador, “[...] no passado já fui
menino e menina, e um arbusto, um pássaro e um silente peixe marinho.”78
77
DIÓGENES LAÉRCIO acrescenta que certa feita, o velho mestre passando por um cão sendo
açoitado se apiedou do animal e pronunciou as seguintes palavras “Porém, não lhe batam; porque
é a alma de um estimado amigo – Eu o reconheci ao ouvir o seu ladrido.” (DIÓGENES, Vida dos
Filósofos, VIII, p. 36, apud BARNES, op.cit., p. 96).
78
AGRIGENTO apud BARNES, op.cit., p. 228.
79
Op.cit., p. 42.
80
CALÍMACO, Iambos, Fragmento 191.60-62, apud BARNES, op.cit., p. 100.
81
DIODORO, História Universal X, VI 1-3, apud BARNES, op.cit., p. 103.
82
A doutrina ascética dos pitagóricos não deixou de ser alvo de escárnio retratado em comédias
do século IV, tal como em As Pitágoras de ALEXIS em que o autor afirma que “Os pitagóricos, ao
- 18 -
exortavam-nos à abstenção da carne... Escreve Empédocles algures:
‘Não detereis o assassínio de torpe ressonância? Não percebeis que vos
dilacerais uns aos outros na insensatez de vosso entendimento? Um pai
toma nos braços o filho cuja forma se modificou (para um animal) e o
mata em meio a preces, o insensato, enquanto a vítima dirige súplicas
de compaixão a seu algoz. Mas eis que este, surdo a seus clamores,
mata-o em casa e prepara um abominável banquete. Assim também um
filho se apodera do pai, e as crianças de sua mãe: privam-nos da vida e
ingerem sua própria carne.83
menos é o que se conta, não se alimentam de carne nem de coisa alguma que tenha vida;
também são os únicos que não bebem vinho. Mas Epicárides come cães, e é um pitagórico. Ah,
mas primeiro ele os mata e, portanto, não têm mais vida.” Em O Pitagórico, ARISTÓFANO diz:
“Quanto a passar fome e não comer nada, imagine que está diante de Tímalo ou Filípede. Por
beberem água eles são rãs; por gostarem de tomilho e vegetais, são lagartas; por não se
banharem, urinóis; por permanecerem ao relento por todo o inverno; melros; por suportarem o
calor e matraquearem ao meio-dia, cigarras; por não deitarem vistas sobre o óleo de oliva, nuvens
de poeira; por perambularem ao amanhecer sem sapatos, grous; por jamais dormirem, morcegos.
(ALEXIS; ARISTÓFANO, apud BARNES, op.cit., p. 241-2)
83
EMPÉDOCLES apud BARNES, op.cit., p. 232-3.
84
A idéia de sacrifício sempre foi relacionado à necessidade de entrega aos deuses de uma parte
daquilo que se retirava da natureza. Segundo ARMESTO, “Os presentes são um meio de
estabelecer reciprocidade e cimentar as relações entre os indivíduos e os grupos humanos: por
extensão, o presente também serve para vincular os deuses ou os espíritos aos doadores
humanos, conectando as divindades ao mundo profano e alertando-as para as necessidades e
preocupações deste” (ARMESTO, Felipe Fernández. Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 62).
85
Ibid., p. 231-2.
- 19 -
compreensão, enquanto que às outras criaturas é possível apenas perceber, mas
não compreender ou pensar.
86
HERÁCLITO (c. 500 a.C.) toma o fogo (pyr) como elemento primordial. Já EMPÉDOCLES DE
AGRIGENTO (c. 450 a.C.), por sua vez, cria a doutrina dos quatro elementos (fogo, água, terra e
ar), sintetizando as doutrinas antecedentes dos elemento primordiais. Esses elementos
combinados seriam a raiz de todas as coisas (rizómata). Esse pensamento influenciou fortemente
toda a Antiguidade, chegando até a Idade Média por meio dos alquimistas.
87
A Escola Atomística é tida por muitos como a mãe da física e da química moderna. Seus
maiores expoentes são LEUCIPO DE ABDERA e DEMÓCRITO DE ABDERA (460-370 a.C.).
88
DEMÓCRITO apud DIAS, op.cit., p. 21-2.
89
A denominada Escola Eleática é formada por pensadores como PARMÊNIDES DE ELÉIA (fl.c.
500 a.C.), ZENÃO DE ELÉIA (fl.c. 464 a.C.) e MELISSO DE SAMOS (fl. c. 444 a.C.).
90
Essa concepção da Escola Eleática é denominada de monismo (realidade é única) em
contraposição aos mobilistas, filósofos que entendem que a realidade natural se caracteriza pelo
movimento como que em um fluxo contínuo (HERÁCLITO DE ÉFESO – fl.c. 500 a.C.).
- 20 -
Como se pode perceber, todo o arsenal teórico desenvolvido pelos
pré-socráticos está intimamente relacionado à explicação da realidade tomando
como ponto de partida o mundo natural, em um claro movimento de rompimento
com o pensamento mítico. Muito embora aos nossos olhos as suas idéias possam
soar um tanto quanto primitivas, principalmente se comparadas às complexas
teorias científicas da modernidade, é de se louvar que tenham se dedicado à
tentativa de compreensão dos acontecimentos naturalísticos por meio de uma
fundamentação teórica e crítica. Aliás, não são outras as bases do pensamento
filosófico. Segundo MARILENA CHAUÍ:
- 21 -
eles tanto alma como inteligência, como terá sido claramente demonstrado no
presente tratado; e caso estes lhe falte, perecem eles e sua inteligência se
perde.”92
92
DIÓGENES apud BARNES, op.cit., p. 341.
93
TEOFRASTO apud BARNES, op.cit., p. 345.
- 22 -
deste “jusnaturalismo cosmológico”94 já são marcantes as distinções traçadas
para distinguir a criatura humana das demais. A idéia de ordem natural necessária
e universal, ínsita à origem do pensamento filosófico, ainda que de maneira
incipiente, começa a legitimar, de uma forma ou de outra, a construção de uma
hierarquia entre os seres vivos, atribuindo ao homem às virtudes do caráter e da
razão95 e aos animais a força e o vigor corporal. Em outras palavras, por sermos
racionais, seríamos os únicos capazes de concatenar o pensamento coerente e,
por conseguinte, conhecer a realidade, que, por sua vez, segue as leis
necessárias e universais da natureza. Esse tipo de construção é o pilar central da
legitimação da apropriação dos animais pelos homens. A propósito, veja-se o
seguinte trecho de PLUTARCO (c. 45-120 d.C.), que é bastante elucidativo a esse
respeito:
94
A expressão é utilizada por EDNA CARDOZO DIAS, op.cit, p. 22.
95
Segundo DEMÓCRITO, “A natureza e o menino são semelhantes, acrescentando de maneira
sucinta a razão: pois o ensino transforma o homem, e é transformando que atua a natureza.” Ou
ainda segundo o mesmo autor, ”Para os animais, uma boa formação consiste em vigor corporal:
para os homens, no viço do caráter.” (DEMÓCRITO apud BARNES, op.cit., p. 301 e 329, passim).
96
PLUTARCO apud BARNES,op.cit., p. 279.
- 23 -
consenso nas assembléias populares. A razão sobrepõe-se à utilização da força e
o diálogo pressupõe a apresentação de justificativas e fundamentos para os
argumentos apresentados. O exercício do poder passa a ser controlado pela
atuação da figura política do cidadão.
97
Os principais sofistas foram PROTÁGORAS DE ABDERA (c. 490-421 a.C.), GÓRGIAS DE
LEONTINOS (c.487-380 a.C.), HÍPIAS DE ELIS (c. 433 a.C.), LICOFRON, PRÓDICOS (c.470
a.C.) e TRASÍMACO (c. 459-c.400 a.C.).
98
Por incrível que pareça, até os dias de hoje, há aqueles que fazem reverberar explicitamente a
idéia do “homem-medida”. PAULO DE BESSA ANTUNES, neste sentido, afirma que: “A relação
com os demais animais deve ser vista de uma forma caridosa e tolerante, sem que se admita a
crueldade, o sofrimento desnecessário e a exploração interesseira de animais e plantas. Mas,
evidentemente, não se pode perder de vista o fato de que o homem é a medida de todas as
coisas, como já mencionavam os gregos” (ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 26). A noção do homem como medida é perturbadora não só
porque não reconhece valor intrínseco aos demais seres vivos, como também instala a discussão
acerca dos limites objetivos do que vem a ser humano ou não. Lembro que há pouco tempo atrás,
seres humanos eram mantidos oficialmente como escravos possuindo status de coisa. A idéia me
parece um tanto quanto perigosa.
99
PLATÃO, Teeteto, 152a, apud MARCONDES, op.cit., p. 43.
- 24 -
que nos encontramos e pode, por isso mesmo, variar de acordo com a
situação. Protágoras aproxima-se assim bastante dos mobilistas, de
quem pode ter sofrido influência, e afasta-se da visão eleática de uma
verdade única.”100 Fruto deste relativismo, em que cada homem tem uma
opinião que é, por si, verdadeira, temos a constatação atribuída a
TRASÍMACO (c. 459-c.400 a.C.) segundo a qual ‘a justiça é sempre a
vantagem do mais forte’.
1.2.2. Sócrates
- 25 -
consta de trecho da obra Memorabilia105 de XENOFONTE (c.431-350 a.C),
soldado e historiador grego, SÓCRATES acreditava que o propósito dos animais
era o de servir aos homens. Pode-se dizer que tal afirmação constitui a primeira
manifestação formal do “antropocentrismo teleológico” que, conforme se verá
mais adiante em ARISTÓTELES, constitui a idéia de que tudo na natureza tem
um único propósito, o de servir ao homem.
“Se um homem [...] não admitir que toda coisa individual tem uma forma
determinada que é sempre um e o mesmo [...] ele destruirá o poder do
raciocínio.”106
PLATÃO
105
Edição brasileira da Memorabilia (“Memoráveis”) é encontrada na coleção Os Pensadores, São
Paulo: Abril Cultural, 1975.
106
PLATÃO apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 114.
107
Há várias versões da teoria das idéias de PLATÃO, mas a mais tradicional é a encontrada na
exposição do Mito da Caverna em sua obra A República (VII, 514a-517d). Segundo MARILENA
CHAUÍ, “nesse mito ou alegoria, PLATÃO estabelece uma distinção decisiva para toda a história
da filosofia e das ciências, qual seja, a diferença entre o sensível e o inteligível. O sensível são as
coisas materiais ou corpóreas cujo conhecimento nos é dado por meio de nosso corpo na
experiência sensorial ou dos órgãos dos sentidos e pela linguagem baseada nesses dados. O
sensível nos dá imagens de coisas tais como nos aparecem e nos parecem, sem alcançar a
- 26 -
Em sua dimensão ético-política, o pensamento platônico, defende o
inatismo da razão, pelo qual a concepção da justiça está ligada ao fato de que um
indivíduo é justo quando consegue que seu intelecto domine seus impulsos
irracionais. A razão é a parte superior do espírito e deve controlar a inferior, ligada
aos desejos. Em um raciocínio analógico, politicamente, uma sociedade será,
pois, justa, quando as classes inferiores forem dominadas pelas superiores. Por
meio da dicotomia racional/irracional é criada uma estrutura hierárquica na qual
as classes pretensamente inferiores podem e devem ser controladas pelas
camadas superiores em uma ordem seqüencial. Desta forma, os militares devem
ser controlados pela classe política, enquanto que esta deve ser regulada pelos
“sábios”.
realidade ou a essência verdadeira delas. As imagens sensíveis formam a mera opinião – a dóxa -
, variável de pessoa para pessoa e variável numa mesma pessoa, dependendo das
circunstâncias. O inteligível é o conhecimento verdadeiro que alcançamos exclusivamente pelo
pensamento. São as idéias imateriais e incorpóreas de todos os seres ou as essências reais e
verdadeiras das coisas. Para PLATÃO, a Filosofia é o esforço do pensamento para abandonar o
sensível e passar ao inteligível.” (CHAUÍ, op.cit., p. 43).
108
PLATÃO apud PASSMORE, op.cit., p. 20.
109
Ibid., p. 21.
- 27 -
filosófica”. A maior parte dos homens não pode alcançar o que PLATÃO
denomina de “bondade filosófica”110. O máximo que podem atingir é a “bondade
cívica” pela obediência às leis, e a companhia dos deuses estaria reservada a
poucos afortunados.
110
PLATÃO in A República, op.cit., Livro IX, 494A
111
De fato, PLATÃO afirmou na República que a alma era composta de três partes. Já no Timeu
tal como no Fedro, ele as distingue como constituindo três formas distintas de almas.
112
Passagem extraída do Teeteto, 176-b-c, apud PASSMORE, op.cit., p. 45.
113
O papel da razão é marcante até mesmo no campo místico. Para PLATÃO, a alma se libera do
corpo pela aquisição de conhecimento, pela apreensão das relações entre as formas e idéias.
Assim escreve ele no Fédon que “A alma compreende melhor as razões quando se encontra
principalmente só e à parte, indiferente do corpo” (PLATÃO, Fédon, 65C, apud
PASSMORE,op.cit., p. 80).
114
PLATÃO, Timeu, 29D, apud PASSMORE, op.cit., p. 88.
- 28 -
compartilhamento deste elemento divino faz com que o homem, e somente ele,
pudesse se tornar semelhante aos deuses. Nesta linha de identificação do
homem com a divindade, os outros seres viventes tornam-se inferiores em todos
os sentidos, inclusive estéticos: “não percebeis a verdade da observação de
Heráclito de que o mais belo dos símios é feio quando comparado à espécie
humana?”115
Er dizia ter visto a alma que foi um dia a de Orfeu escolher a vida de um
cisne, porque, por ódio ao sexo que lhe dera a morte, não queria nascer
de uma mulher. Tinha visto a alma de Tâmiras escolher a vida de um
rouxinol, um cisne trocar a sua condição pela alma do homem e outros
animais canoros fazerem o mesmo. A alma chamada em vigésimo lugar
a escolher optou pela vida de um leão: era a de Ájax, filho de Téleamon,
que não queria voltar a nascer no estado de homem, pois não tinha
esquecido o julgamento das armas. A seguinte era a alma de Agamenon.
Tendo também aversão pelo gênero humano, por causa das desgraças
passadas, trocou a sua condição pela de uma águia [...] a do bobo
Tersites revestir-se da forma de um macaco [...] De igual modo os
animais passavam à condição humana ou à de outros animais, os
injustos nas espécies ferozes, os justos nas espécies domesticadas;
faziam-se assim cruzamentos de todas as espécies.116 117
115
PLATÃO, Hípias Maior, 289AB, apud BARNES, op.cit., p. 135.
116
PLATÃO, A República, apud DIAS, op.cit., p. 24-5.
117
No Fédon, PLATÃO sugere que os homens ordeiros, que vivem vidas civicamente de acordo
com o bem, poderiam retornar à terra em vidas futuras como “abelhas ou formigas”.
- 29 -
1.2.4. A Hierarquia Aristotélica
MARGARET CAVENDISH
118
CAVENDISH apud THOMAS, op.cit., p. 348.
119
“We must explain [...] why Nature belongs to the class of causes which act for the sake of
something […] A difficulty presents itself: why should not nature work, not for the sake of
something, nor because it is better so, but just as the sky rains, not in order to make the corn grow,
but of necessity? What is drawn up must cool, and what has been cooled must become water and
descend, the result of this being that the corn grows. Similarly if a man’s crop is spoiled on the
threshing floor, the rain did not fall for the sake of this – in order that the crop be spoiled – but that
result just followed. Why then should it not be the same with the parts in nature, e.g. that our teeth
should come up of necessity – the front teeth sharp , fitted for tearing, the molars broad and useful
for grinding down the food – since the do not arise for this end, but it was merely a coincident result
; and so with all parts in which we suppose that there is purpose? Wherever the all the parts came
about just what they would have been if they had come to be for an end, such things survived,
being organized spontaneously in a fitting way; whereas those which grew otherwise perished and
continue to perish, as Empedocles says his ‘man-faced oxprogeny’ did. Such are the arguments
(and others of the kind) which may cause difficulty on this point. Yet it is impossible that this should
be true view. For teeth and all other natural things either invariably or for the most part come about
in a given way; but of not one of the results of chance or spontaneity is this true. We do not ascribe
to chance or mere coincidence the frequency of rain in winter, but frequent rain in summer we do;
nor heat in the summer, but only if we have it in winter. If then, it is agreed that things are either the
result of coincidence or spontaneity, it follows that they must be for the sake of something; and that
such things are all due to nature even the champions of the theory which is before us would agree.
Therefore action for an end is present in things which come to be and are by nature […]”
(ARISTÓTELES apud WISE, Stephen. “How Nonhuman Animals Were Trapped In A Nonexistent
Universe”. Animal Law Journal, 1995. p. 21-2).
- 30 -
Para se entender o pensamento aristotélico120, é necessário
perceber que foi o principal crítico de seu antigo mestre PLATÃO. Conforme
ressalta BANDEIRA DE ARAÚJO, “o ponto de partida aristotélico privilegia a
diversidade, incorporando das filosofias originárias a idéia de convivência, todavia
não simbiótica, entre deuses, homens e coisas. Contrapondo-se a Platão,
Aristóteles faz do sensível seu objeto por excelência: sua escola torna-se um
centro de investigações empíricas, inclusive com forte acento biologista.”121
ARISTÓTELES pretendendo dar corpo a uma corrente filosófica autônoma,
desenvolve, suas idéias em contraposição crítica à filosofia pré-socrática e
platônica122.
[...] a vida parece ser comum até às próprias plantas, mas estamos
agora buscando saber o que é peculiar ao homem. Excluamos, pois, as
atividades de nutrição e crescimento. A seguir, há a atividade de
percepção, mas dessa também parecem participar o cavalo, o boi e
todos os animais. Resta, portanto, a atividade do elemento racional do
homem [...]123
120
O hábito ambulatório do filósofo, que apreciava expor suas idéias em caminhadas, originou o
nome de “escola peripatética” (de “peripatos”, caminho).
121
ARAÚJO, op.cit., p. 72.
122
A sua obra Metafísica é o fruto do seu esforço de elaborar um entendimento próprio da
realidade que não se misturava com o de seus antecessores. Sua crítica principal em relação a
PLATÃO se dá no campo da teoria das idéias. Para ARISTÓTELES, não haveria elementos
comuns entre o mundo das idéias e o mundo sensível. O dualismo platônico é expurgado.
DANILO MARCONDES observa que no pensamento aristotélico “não existem formas ou idéias
puras como no mundo platônico. É o intelecto humano que, pela abstração separa matéria de
forma no processo de conhecimento da realidade, relacionando os objetos que possuem a mesma
forma e fazendo abstração de sua matéria, de suas características particulares. [...] A idéia de
homem é apenas uma natureza comum a todos os homens, não pode existir isoladamente”
(MARCONDES, op.cit., p. 72).
123
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 27 (Livro 1, 1098a).
- 31 -
O filósofo não nega a natureza animal do homem, chegando a defini-
lo como um “animal racional”. Todavia, a comunhão da característica comum
animal, por si, não é suficiente para gerar igualdade de tratamento. De acordo
com ele, por meio da contemplação, o homem é o único a tornar-se semelhante a
Deus. A razão, mais uma vez, desempenha papel fundamental para a elevação
da categoria do humano e, conseqüentemente, para o rebaixamento do que lhe é
distinto, do alter.
124
“A primeira (alma vegetativa) pertence a todos os seres vivos, todos têm um metabolismo, por
assim dizer. A sensibilidade pertence aos animais e aos homens, mas não às plantas, enquanto a
razão é peculiar à espécie humana. A ética só intervém no nível racional. As plantas meramente
vegetam e os animais meramente vivem como animais. A alma, dando unidade ao corpo, é forma
para a sua matéria. Não sobrevive à morte no sentido pessoal embora a razão seja imortal”
(RUSSEL, op.cit., p. 128).
125
ARISTÓTELES. Politics. Londres: J.M. Dent & Sons, 1959. p. 10, tradução nossa.
- 32 -
próximos, e trate os últimos como bestas e plantas”126. Ainda segundo
ARISTÓTELES, em sua visão que encara o não-grego como bárbaro, estes
estariam reduzidos, de fato, a uma condição muito próxima a do animal não-
humano, servindo apenas como “ferramentas animadas”: “A slave is an animate
tool, and a tool is an inanimate slave”127.
126
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, op.cit., p. 187-8 (Livro 8.11, 1161a-1161b).
127
Ibid., p. 187 (1161a). “Um escravo é uma ferramenta animada e uma ferramenta é um escravo
inanimado” (tradução nossa).
128
Ibid., p. 226 (1176a, 5).
129
“A resposta à questão que estamos levantando fica evidente pela nossa definição de felicidade,
pois dissemos que ela é uma certa atividade da alma conforme à virtude. [...] É natural, pois, que
não chamemos feliz nem o boi, nem o cavalo, nem qualquer outro animal, uma vez que nenhum
deles pode participar de tal atividade. Pela mesma razão as crianças tampouco são felizes, pois
não são ainda capazes de praticar aquelas atividades, por causa da pouca idade; e quando se diz
que as crianças são felizes, trata-se apenas de um bom augúrio pelas esperanças que nelas
depositamos. Porque, como dissemos, para a felicidade é preciso não apenas virtude completa,
mas vida completa, visto que muitas mudanças e vicissitudes de toda sorte ocorrem no decorrer
da vida, e o mais próspero poder ser vítima de grandes infortúnios na velhice [...]” [Ibid., p. 31-2
(Livro 1, 1100 a)].
130
Ibid., p. 157 (1150 a).
131
“Por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, nuns, da sensação
não se gera a memória, e noutros, gera-se. Por isso, estes são mais inteligentes e mais aptos para
aprender do que os que são incapazes de recordar. Inteligentes, pois, mas sem possibilidade de
aprender, são todos os que não podem captar os sons, como as abelhas, e qualquer outra espécie
parecida de animais. Pelo contrário, têm faculdade de aprender todos os seres que, além da
memória, são providos também deste sentido. Os outros vivem, portanto, de imagens e
recordações, e de experiência pouco possuem. Mas a espécie humana vive também de arte e de
raciocínios. É da memória que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da
mesma coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se parece com a
ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da
experiência, porque a experiência, como afirma Pólos, e bem, criou a arte, e a inexperiência, o
acaso” Ibid., p. 226 (1176a, 15).
- 33 -
PROTÁGORAS, “a virtude e o homem bom enquanto tais são a medida de todas
as coisas [...]”.
132
NEUENSCHWANDER, op.cit.
133
Em passagem significativa, o filósofo justifica a primazia humana com base na racionalidade,
na política, na linguagem e no senso de justiça: “O homem é um animal político em um aspecto
em que uma abelha não o é, tampouco qualquer outra criatura gregária tal como o gado. Já que a
- 34 -
da “alma racional”, que lhe conferia primazia na Polis sobre os não-homens:
bárbaros, mulheres, crianças, escravos e animais.
natureza não produz nada em vão, somente o homem possui a linguagem. A linguagem é algo
diferente da voz, que é possuída por outros animais e também usada por eles para expressar dor
e prazer; já que a sua natureza lhes permite ter sensações de dor e prazer e transmitir essas
sensações para outros. Mas a linguagem, por sua vez, serve para indicar o que é útil para nós e o
que é danoso, como também serve para indicar o que é justo ou injusto. Nesse particular, o
homem difere de todos os outros animais, pois somente ele possui a percepção do certo e do
errado, do justo e do injusto [...]” (ARISTÓTELES. Politics, op.cit., Livro 7-17, 1253a, tradução
nossa).
134
RUSSEL, op.cit., p. 131.
- 35 -
estariam melhor se governados pelo homem, porque só então seriam
preservados (noção de “escravo por natureza”). De fato:
FERNANDO ARAÚJO
135
ARISTÓTELES apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 215.
136
ARAÚJO, op.cit., p. 53.
- 36 -
Para o brilhante STEVEN WISE, isto era o que podemos chamar de
“antropocentrismo teleológico”. O “teleológico” implica em aceitar que tudo na
natureza era imbuído com um propósito específico, com um destino pré-
determinado. O “antropocentrismo”, como é consabido, significa assumir a
postura de que o mundo e tudo que nele habita foi criado para o uso e benefício
do ser humano.
137
A doutrina que “encadeia” os seres vivos dos mais complexos aos mais elementares foi
estudada por ARTHUR LOVEJOY na década de 30, tendo sido alvo de um trabalho clássico
denominado The Great Chain of Being. Para LOVEJOY, tal teoria consiste em “um dos mais
curiosos monumentos da imbecilidade humana” (LOVEJOY, Arthur. The Great Chain of Being.
Cambridge: Mass, 1936).
138
GOULD, Stephen Jay. O Sorriso do Flamingo. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 261.
139
LOVEJOY, op.cit., p. 242.
- 37 -
acima do homem só haveria Deus, como entidade onipotente, que seria a
encarnação da razão pura.
Pode-se dizer, com efeito, que existem três tipos principais de vida: a
vida que acabamos de mencionar (vida sensorial), a vida política e a vida
contemplativa. A grande maioria dos homens se assemelha a escravos,
preferindo uma vida comparável a dos animais, contudo encontram certa
140
BROWNE apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 244.
141
“[...] Again, the male is by nature superior, and the female inferior; and the one rules, and the
other is ruled; this principle, of necessity, extends to all mankind. Where then there is such a
difference as that between soul and body, or between men and animals, (as in the case of those
whose business is to use their body, and who can do nothing better), the lower sort are by nature
slaves, and it is better for them as for all inferiors that they should be under the rule of a master.
For he who can be, and therefore is, another’s and he who participates in rational principle enough
to apprehend, but not to have, such a principle, is a slave by nature” (ARISTÓTELES, Politics,
op.cit., Livro I, cap. 5).
142
ARISTÓTELES apud BARNES, Jonathan. The Complete Works of Aristotle, Princeton:
Princeton University Press, 1984. p. 2.
- 38 -
justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente
colocadas compartilharem os gostos de Sardanapalo 143 144.
143
Segundo consta Sardanapalo teria sido um rei da Assíria que em seu epitáfio mandou gravar:
“Eu Sardanapalo, filho de Anacindaraxes, construiu Anquial e Tarso em um dia. Comi, bebi, vivi
em orgias. Todo o resto não vale isso.”
144
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, op.cit., p.20-1 (Livro 1, 1094a).
145
Sobre o tema escreveu que: “A arte da guerra é a arte natural da apropriação, dado que a arte
da apropriação inclui a caça, uma arte que devemos praticar contra os animais selvagens, e contra
os homens que, apesar de serem naturalmente feitos para serem governados, se rebelam; uma
guerra deste tipo é naturalmente justa” (ARISTÓTELES em Politics, op.cit., Book 1.8, 1256b,
tradução nossa).
146
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, “silogismo é uma dedução formal tal que, postas duas
proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada,
chamada de conclusão [...]” (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995. p. 1300).
- 39 -
axioma147 (Axioma Aristotélico), e é tido como tal pois seu autor jamais o utilizaria
senão para assinalar um lugar na hierarquia de direitos que não fosse o topo.
THOMAS JEFFERSON
147
Segundo o Dicionário Aurélio,: “axioma é a premissa imediatamente evidente que se admite
como universalmente verdadeira sem exigência de uma demonstração [...]” (BUARQUE DE
HOLANDA, op. cit., p. 168).
148
JEFFERSON apud SINGER, op.cit., p. 07.
- 40 -
O período que sucedeu ARISTÓTELES é marcado pela perda da
hegemonia política de Atenas e a derrocada do sistema das cidades-estado
gregas. Apesar disso, a “união” e aproximação com o Egito, além de parte do
Oriente e da Índia, levada a cabo por ALEXANDRE MAGNO, logrou construir uma
“comunidade internacional” com acentuado sincretismo cultural onde o
pensamento grego exerceu papel de destaque.
149
Os comentários dos “helenistas” são de extrema importância, pois é através deles que o
pensamento clássico tornou-se acessível, com a reprodução e interpretação dos textos dos
antigos mestres.
150
A essência da doutrina cínica era o desapego dos bens mundanos, livre das convenções e do
estado organizado. O cínico mais importante foi DIÓGENES (404-323 a.C). Conta-se que vivia
dentro de um barril e que certa feita, quando estava tomando sol ao lado de sua morada,
ALEXANDRE MAGNO foi visita-lo. Aproximou-se do sábio e lhe perguntou se tinha algum desejo
e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria imediatamente satisfeito. DIÓGENES então
respondeu, “Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol” demonstrando, com isso, ser mais
rico e feliz que o próprio conquistador. A origem do termo “cínico” é também um tanto quanto
curiosa. Por levarem uma vida tão primitiva quanto a de um cão, ganharam o apelido de “cínicos”,
que significa não outra coisa que “caninos”. O problema dos cínicos é que seu desprendimento
também se dava com relação à saúde e ao sofrimento alheio, razão pela qual o termo ganhou o
sentido negativo que até hoje carrega.
151
PIRRO de ELIS (360-270 a.C) é tido como sendo o fundador do ceticismo. Para as correntes
céticas, nem os sentidos nem a razão possibilitam o conhecimento acerca da natureza das coisas.
Diante da impossibilidade de decidir sobre a natureza das coisas, deve-se suspender o juízo,
evitando-se especular sobre o tema. O distanciamento produzido leva à imperturbabilidade e à
felicidade.
152
EPICURO (341-271 a.C) pregava que o principal bem era o prazer, do corpo e da mente. A
felicidade humana é destacada como objetivo a ser perseguido, trazendo o prazer tranqüilo,
evitando a dor e o prejuízo a quem quer que seja. O homem que está em paz não se sente movido
a causar dano a outro homem ou qualquer outra criatura.
153
PLOTINO (205-270 d.C), principal representante da filosofia neoplatônica, desenvolveu uma
metafísica em que dividia o real em três hipóstases: o Uno (transcendente), o Intelecto (nous, que
se caracteriza pela contemplação do Uno, como que em uma analogia ao “mundo das idéias”), e a
Alma do Mundo (psyche, originada do Intelecto). Para PLOTINO, a contemplação, objetivo
primeiro do Intelecto, é uma finalidade não somente humana, mas de todas as coisas. “Todas as
coisas se esforçam pela Contemplação, procurando a Visão como sua única finalidade, não
meramente todos os seres animados, mas até mesmo os animais irracionais, o princípio que
governa as coisas que crescem e a Terra que as produz. Decerto que nem todos eles alcançam a
contemplação da mesma forma e no mesmo grau, mas cada qual tenta possuí-la de sua própria
maneira e em seu próprio grau (...)” (PLOTINO apud PASSMORE, op.cit., p. 131).
- 41 -
chamada Antiguidade Clássica e a Idade Média Cristã, que se dá o encontro entre
o mundo greco-romano e a cultura judaico-cristã, consolidando uma tradição
cultural de que somos herdeiros154.
154
MARCONDES, op.cit., p. 87.
155
EDELSTEIN, Ludwig. The Meaning of Stoicism. Cambridge: Harvard University Press, 1966. p.
73-4.
156
DIAS, op.cit., p. 28.
- 42 -
Todavia, certas diferenças eram mantidas. JULIANA
NEUENSCHWANDER salienta que:
157
NEUENSCHWANDER, op.cit.
158
ZELLER, Eduard. The Stoics, Epicureans and Sceptics. Russel & Russel, 1962. p. 185.
- 43 -
em nós é capaz de ser aperfeiçoada.”159 Deuses e homens eram constituídos da
“mesma substância”.160
159
SÊNECA. Epistulae Morales, 92, apud PASSMORE, op.cit., p. 103-4.
160
Segundo assinala PASSMORE, “os homens diferem de Deus, na visão dos estóicos, apenas
na medida em que um evento natural particular difere da natureza como um todo; o homem, para
usar uma das metáforas favoritas dos estóicos, é ‘uma partícula de Deus’. Já que Deus é um
espírito ardente, o homem é uma ‘partícula ardente’, e já que ele é uma partícula de Deus, a
perfeição encontra-se ao alcance do homem.” (PASSMORE, op.cit., p. 108).
161
CRÍSIPO apud SORABJI, Richard. Animal Minds and Human Morals. New York: Cornell
University Press, 1993. p. 134-5.
162
Comentando CRÍSIPO, CÍCERO (106-43 a.C) declarou que: “[…] as Chrysippus cleverly put it,
just as a shield-case is made for the sake of a shield and a sheat for the sake of a sword, so
everything else except the world was created for the sake of some other thing; thus the corn and
fruits produced by the earth were created for the sake of animals, and animals for the sake of man:
for example the horse for riding, the ox for ploughing, the dog for hunting and keeping guard”
(CÍCERO. De Naturum Deorum. London: William Heineman Ltd., 1933. p. 277).
163
“The dumb animal grasps what it presents by its sense. It is reminded of the past when it
encounters something that alerts its senses. Thus the horse is reminded of the road when it is
brought to where it starts. But in stable, it has no memory of it, however often it has been trodden.
As for the third time, the future, that does not concern dumb animals”. In: SORABJI, op. cit. p. 40.
- 44 -
e dos deuses [...] assim os homens podem fazer uso delas para seu
satisfazer seus propósitos sem causar qualquer injustiça164.
ALBERT SCHWEITZER
164
CÍCERO. De Finibus Bonorum et Malorum. London: Williams Heineman Ltd., 1967. p. 287.
- 45 -
A propósito, o cineasta MEL BROOKS já dizia: “It´s great to be the
King!165”
165
THE History of the World: Part I. Direção de Mel Brooks. EUA: Twentieh Century Fox, 1981.
DVD (92 min.).
166
BOWLER, Peter. Evolution: The History of an Idea. Berkeley: University of California Press,
1989. p. 53.
167
No Brasil, o nosso Código de Processo Criminal de 1841 trazia norma similar (art. 75),
prevendo a impossibilidade do escravo testemunhar em juízo contra seu senhor.
168
Dred Scott v. Sanford, US (19 how) 393, 403, 1856.
- 46 -
poderoso criou as raças como brancas, negras, amarelas, vermelhas e as colocou
em continentes separados [...] O fato de que Ele as tenha separado demonstra o
seu intento de não permitir sua mistura”.169
169
Loving v. Virginia, 388 U.S. 1, 3 (1967).
- 47 -
1.3. Os Romanos
HERMOGENIANO
170
Frase atribuída ao jurista romano HERMOGENIANO. “Todas as leis foram elaboradas pelos
homens e para os homens” (D.1.5.2, tradução nossa). Frase similar consiste em: “O homem é
coisa sagrada para o homem” (Homo sacra res homini - Sen. Ep. 95, 33) apud LLORENTE, Victor-
José. Diccionario de Expressiones Y Frases Latinas. Madrid: Gredos, 1980. p. 105).
171
“sed quae potest homini esse polito delectatio, cum aut homo imbecillus a valentissima bestia
laniatur aut praeclara bestia venabulo transverbertarur?” (M. Tvlli Ciceronis Epistvlarvm Ad
Familiares Liber Septimvs, 1, M. Cícero).
172
RENÉ DAVID enumera ainda as categorias de “família dos direitos socialistas” e de outros
direitos “mistos” como os da Escócia , Israel, Filipinas, etc., além dos direitos muçulmano, hindu e
judaico, entre outros (DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo:
Martins Fontes, 1986. p.19-20).
173
Alguns autores subdividem a história de Roma de acordo com as formas de governo, havendo
o período real (origens de Roma até a queda da realeza em 510 a.C.); período republicano (de
510 a 27 a.C., quando há a investidura de Otaviano pelo Senado como princeps); período do
principado (de 27 a.C. a 285 d.C., com o início do dominato por Diocleciano); período do dominato
(de 285 a 565 d.C., data da morte de Justiniano).
- 48 -
grande prestígio e, com tal fortalecimento, logrou constituir-se a base de diversos
sistemas jurídicos contemporâneos.
174
DAVID, op.cit., p. 40-1.
- 49 -
1.3.1. A Dicotomia “Pessoa/Coisa”
175
CORDEIRO apud ARAÚJO, op.cit., p. 303.
176
“Sabe-se muito pouco da vida de Gaio. Nasceu provavelmente sob o império de Trajano e
morreu pouco depois de 178 d.C. Não ocupava nenhuma atividade política, como era de costume
entre os grandes juristas, mas ocupou-se somente do ensino do direito. O fato de Gaio ser
conhecido por um simples prenome fez surgir a hipótese de que talvez tivesse vivido em uma
província que, como era comum, tivesse adotado um prenome romano. O seu estilo de escrita,
com emprego de formas gregas, e algumas referências suas a normas provinciais de origem
oriental presentes na sua obra, fazem supor que tenha vivido em uma província helenística. De tal
fato, contudo, não se tem prova alguma. As institutiones gaianas foram tomadas por Justiniano
como modelo para as suas instituições, sendo que o dote maior de Gaio é a sua simplicidade,
alcançada através de uma exposição sistemática e plana.” (BRUTTI, M. I Giuristi del II e del II
secolo d.C .In VVAA, Lineamenti di Storia del Diritto Romano, sob a direção de M. Talamanca, 2ª.
ed., Milano, 1989. p. 447 et seq.).
177
Dig. 1, 5, 3 (GAIUS, Institutas, Livro I).
- 50 -
que no decorrer da história, escravos e animais foram submetidos a violências
muito semelhantes, mas salvo entre alguns povos primitivos, o homem ocidental
não costuma se alimentar da carne de seus prisioneiros.”178
“Alguns homens são escravos por natureza, e outros são livres por
natureza. E é justo [...] e adequado que um seja senhor e o outro
escravo, pois o atributo da superioridade também é inerente ao senhor
natural.”181
178
SANTANA, op.cit., p. 86.
179
Às coisas semoventes alude uma constituição de JUSTINIANO (C, 7, 37, 3, 1, d) , do ano de
531 d.C.
180
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1992. Vol. I. p. 170.
181
MAIR apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 150.
182
Costuma-se enumerar como causas de perda da condição de homem livre para a de escravo a
negativa de prestar informações ao recenseamento (incensus); a negativa de prestar serviço
militar (infrequens); o desertor; o extraditado; o ladrão apanhado em flagrante delito; o devedor
insolvente e o filho-família vendido pelo pai. Para produzir a escravidão, estas pessoas eram
vendidas fora do território romano. Posteriormente, estas causas foram desaparecendo e surgindo
outras, como os condenados à morte ou a trabalhos forçados nas minas (in metallum) os quais
eram chamados de servi poenae por serem escravos da própria pena; a mulher livre que tinha
relações com escravo alheio e era notificada e, apesar disto, não cessava a sua prática, tornava-
- 51 -
possuíam natureza jurídica de coisa, de objeto de direito, sendo, pois, destituídos
de personalidade. Ainda assim, o regime jurídico aplicável aos escravos não era
exatamente idêntico ao dos animais não-humanos. De acordo com os
ensinamentos de JOSÉ CARLOS DE MATOS PEIXOTO:
se escrava; os maiores de vinte anos que, fingindo-se escravos deixavam-se vender como tais a
comprador de boa-fé para participarem do preço, tornavam-se escravos do adquirente, etc.
183
PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Haddad Editores,
1955. p. 255.
184
Em matéria religiosa, a eles era permitido participar de cultos domésticos e mesmo públicos;
considerava-se res religiosa a sua sepultura; em certos casos poderia inclusive ser membro de
certas corporações religiosas e nelas exercer cargos. No setor doméstico, era protegido contra as
arbitrariedades da autoridade do seu senhor, que podiam provocar contra este a intervenção do
censor. Poderia ser representante de seu senhor em transações comerciais sendo que tudo o
quanto adquirisse era adquirido para o seu senhor (quadcumque per servum adquiritur, id domino
adquiritur). Poderia também ser encarregado de administrar uma massa de bens (pecúlio). Das
convenções que celebrassem resultavam obrigações naturais. A lei Junia Petrônea (19 d.C.)
vedava a entrega de escravos, salvo justo motivo, ao circo para combater. Havia também ações
- 52 -
Importante frisar que a dicotomia “pessoa/coisa” tornou-se
naturalmente tão arraigada na mentalidade romana que era sempre assumida
como normal e nunca justificada.
“Vós tudo podeis fazer. Mas não devais nem desejais fazer.”
relativas à liberdade, chamadas de causa liberalis, por meio das quais poderia ser reivindicada a
liberdade para uma pessoa escrava (vindicatio in libertatem) e o seu contrário também (vindicatio
in servitutem). Segundo MATOS PEIXOTO, “como o escravo não tinha personalidade, não podia
pleitear em juízo; tão rigoroso era esse princípio que bastava ser contestada a liberdade do
indivíduo, para que ele não pudesse defender-se pessoalmente. Permitia-se-lhe, porém, ser
representado por um terceiro, um adsertor libertatis, o que constituiu notável exceção à regra de
que ninguém podia agir por outrem em juízo (nemo alieno nomine agere potest). Era o adsertor
que depositava a importância do sacramentum ou a garantia por meio de fiadores (praedes litis)“
(PEIXOTO, op.cit., p. 262).
185
O Coliseu servia como um enorme instrumento de propaganda e difusão da filosofia de toda
uma civilização. Variadas são as interpretações para explicar o fascínio dos romanos pelo
espetáculo. Citam-se a oportunidade de se ver o imperador pessoalmente, o castigo aos
criminosos, a ostentação do poderio romano (com o jugo das feras e escravos) e a política do “pão
e circo”. Esta última sustenta que a promoção dos jogos consistia em um meio eficaz de manter os
plebeus afastados das questões políticas e sociais. De fato, o Império Romano foi construído com
guerras de conquista e esse espírito marcial não deixava espaço para sentimentos de piedade
para com os não-romanos. A morte de seres humanos e animais era assistida como fonte
absolutamente normal de entretenimento. Cabe observar que com a conversão do império ao
cristianismo foram proibidos os jogos com mortes humanas (a partir do ano de 404 d.C.). Por outro
lado, matar ou torturar animais, mesmo com o advento do cristianismo, continuava legítimo. Desta
feita, permitiu-se a continuidade dos jogos com animais, que eram chamados de Venationes
(plural de venatio, que significava caça, ou caçada). Esses cruéis combates ainda podem ser
vistos na atualidade sob a roupagem da caça “esportiva”, de rinhas, touradas, vaquejadas,
rodeios, circos, entre tantas outras.
- 53 -
O historiador W.E.H LECKY traça um relato sobre o que
provavelmente consistia o “espetáculo” dos jogos:
186
LECKY apud SINGER, op.cit., p. 216.
- 54 -
1.3.4. Direito Natural
SÓFOCLES
187
SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 25.
188
(D. 1,1,1,3 Ulpianus. 1 inst.). Tradução de: “Ius naturale est, quod natura omnia animalia docuit:
nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium animalium, quae in terrae, quae in mari
nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit mairs atque feminae conjuntio, quam nos
matrimonium apellamus, hinc liberorum procreatio, hinc educatio: videmus etenim cetera quoque
animália, feras etiam istius iuris peritia censeri.”
- 55 -
Desta forma, de acordo com o ius naturale, homens e animais
nasciam livres e a escravidão era abominada, sendo somente permitida no âmbito
do ius gentium, que era a lei posta pelo homem por meio do uso da razão. O
ilustre professor de história de Yale DAVID BRION DAVIS, reconhece que “a
instituição da escravidão foi sempre alvo de uma contradição conceitual que
emergiu da impossibilidade consistente na transformação de um ser consciente
em um ser totalmente dependente e desprovido de consciência, um ser que, em
essência, estaría fadado a constituir mero instrumento e prolongamento da
vontade de seu senhor.”189
189
DAVIS, David Brion. Slavery and Human Progress. Oxford: Oxford University Press, 1984. p.
20.
190
Os filhos tanto dos escravos quanto dos animais eram adquiridos mediante o instituto da
“acessão” pelo qual a propriedade do senhor aumentava pelo nascimento.
- 56 -
No mesmo sentido, corroborando o igual tratamento dispensado a
escravos e animais, temos o exemplo advindo da noção de materialidade do ato
danoso. ARANGIO RUIZ191, partindo desta noção, nos ensina que a sanção da lei
não encontrava lugar quando o dano não derivava de uma conduta positiva do
agente, ou seja, os atos omissivos, próprios ou impróprios192, não eram puníveis.
Desta feita, se o gado era deixado dentro de um celeiro, sem alimentação, para
fazê-lo morrer de inanição, ou acaso se persuadisse um escravo a subir em uma
árvore extremamente alta e de escalada perigosa, causando-lhe a queda e a
morte, não se aplicava a lei Aquilia (Gai. 3, 219)193.
191
ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Istituzioni di Diritto Romano. 14ª ed., Napoli: Jovene, 1978. p. 375.
192
O conceito moderno de omissão é o de abstenção de um comportamento exigido que o
indivíduo tinha a possibilidade de concretizar. A omissão, em regra, só é relevante quando o
sujeito, tendo o dever jurídico de agir, abstém-se do comportamento. Nos crimes omissivos
próprios (ou puros), a omissão está descrita no tipo penal, tal qual nos arts. 135, 236, 244 e 246
do Código Penal. Nos crimes omissivos impróprios (ou comissivos por omissão), a conduta
descrita no tipo é comissiva, de fazer (matar, por exemplo), mas o resultado ocorre por não tê-lo
impedido o sujeito ativo. Há a necessidade da configuração do dever de agir, ou seja, o dever de
impedir o resultado.
193
“Decidiu-se, além disso, que só se pode exercitar a ação fundada nesta lei, quando alguém
causar o dano com seu próprio corpo; dão-se, portanto, ações úteis pelo dano causado de outro
modo, como no caso de alguém prender um escravo ou um rebanho alheios e matá-los à fome, ou
carregar um animal de carga de modo a vir ele a morrer. O remédio é o mesmo contra quem
persuadir um escravo alheio a subir numa árvore ou descer num poço e o escravo cair, subindo ou
descendo, resultando-lhe da queda a morte ou um ferimento em qualquer parte do corpo; mas
quem lançar ao rio um escravo alheio, empurrando-o da ponte ou da margem, e o escravo se
afogar, não é difícil compreender que tal pessoa, pelo fato de empurrar, causa um dano com o
próprio corpo”.
194
ONIDA, Pietro Paolo. Studi sulla condizione degli animali non umani nel sistema giuridico
romano. Disponível em: <www.dirittoestoria.it/dirittoromano/Onida-Animali-parteI-capIII.htm>.
Acesso em: 18 jan. 2005.
- 57 -
entrado para a história195, infelizmente não se pode dizer o mesmo sobre a sua
proposição acerca do direito natural que abraçaria todas as criaturas sensíveis.
195
Diz ULPIANO no Digesto, I, 1, 10 (ou no 1 reg., ou Inst. I, 1, pr. e 3, 1): “A Justiça é a vontade
constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. Os preceitos do Direito são os seguintes: viver
honestamente, não prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu. A Jurisprudência é o
conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do injusto.”
196
WATSON, Alan. The Law of Property in the Later Roman Republic. Oxford: Oxford University
Press, 1968. p. 215-16.
197
ARAÚJO, op.cit., p. 50.
- 58 -
“ironicamente, tornou-se uma força poderosa para a liberdade humana e para a
manutenção da escravidão animal.”198
“Quanto aos homens penso assim: Deus os põe à prova para mostrar-
lhes que são animais. Pois a sorte do homem e a do animal é idêntica:
como morre um, assim morre o outro, e ambos têm o mesmo alento; o
homem não leva vantagem sobre o animal, porque tudo é vaidade.Tudo
caminha para um mesmo lugar: tudo vem do pó e tudo volta ao pó.
Quem sabe se o alento do homem sobe para o alto e se o alento do
animal desce para baixo, para a terra?” (Ecl 3, 18-21)
“Todas essas moralidades [...] o que são senão [...] receitas contra as
paixões?”201
FRIEDERICH NIETZSCHE
“Que quimera será, então, o homem? Que novidade, que monstro, que
caos, que tema de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas,
imbecil minhoca; depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro;
glória e refugo do universo.”202
PASCAL
198
WISE, op.cit., p. 34.
199
O título do presente capítulo foi parcialmente inspirado no título da obra Monoteísmos e
Dualismos: As Religiões de Salvação de FILORAMO, Giovanni. São Paulo: Hedra, 2005.
200
“Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.”
201
NIETZSCHE apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 312.
202
PASCAL apud MORIN, op.cit., p. 138.
- 59 -
Os animais sempre tiveram seu lugar na jornada da fé. Conforme
salienta MARIANA IWAKURA, “do carneiro ao elefante, do peixe à pomba,
animais de todo o tipo estão presentes nas várias religiões do mundo para
relembrar o ser humano de que ele não está sozinho em sua jornada pela
vida.”203
203
IWAKURA, Mariana. Santa Bicharada, Revista das Religiões, n.º 16. Disponível em:
<http://super.abril.com.br/religioes/edicoes/16/especial/conteudo_religioes-54892.shtml>. Acesso
em 02 mar. 2005.
204
De acordo com o Dicionário das Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, “o termo
religião e, de modo quase geral, relacionado com o verbo latino religere: cumprimento
consciencioso do dever, respeito a poderes superiores, profunda reflexão. O substantivo religio,
relacionado ao verbo, refere-se tanto ao objeto dessa preocupação interior quanto ao objetivo da
atividade a ela relacionada. Outro verbo latino posterior é citado como fonte do termo, religare, que
implica um relacionamento íntimo e duradouro com o sobrenatural. As escrituras das várias
religiões raramente contêm termos gerais para a religião. A etimologia do termo não é fortuita: a
complexidade e a diversidade das religiões humanas, bem como os sentimentos profundos e
ambivalentes que provocam, produziram um corpo heterogêneo de definições científicas do
fenômeno [...]” (SILVA, Benedicto; NETTO, Antonio Miranda (Coord.). Dicionário das Ciências
Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 1058.).
205
Por meio de escavações, os antropólogos já determinaram que os caçadores mesolíticos, em
Stakeholm, no Báltico, aceitavam seus cães como verdadeiros membros da sociedade,
enterrando-os com toda a cerimônia e, em determinados casos, com mais sinais de nobreza que
os dos próprios homens. A respeito, verificar ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p.
38.
- 60 -
intercâmbio entre eles é intenso. Nesse tipo de manifestação, a relação a um
dado animal tem importância central, pois define o grupo ao qual pertence
determinada pessoa. O totem torna-se um autêntico mecanismo de
“inclusão/exclusão” social gerando um ritual comum. Os indivíduos que se
classificam de acordo com afiliações totêmicas geralmente partilham ritos de
veneração para com um animal específico e observam tabus particulares a seu
respeito206, como a proibição dentro do grupo de não caçá-lo e de sequer
pronunciar seu nome em vão. São verdadeiros símbolos sagrados207 208. CLAUDE
LÉVI-STRAUSS, a respeito do tema afirmava com propriedade que: “Os outros
sistemas de classificação são concebidos ou praticados [...] O totemismo é vivido
[...] vincula-se a grupos reais e a seres reais.”209
- 61 -
aos quais eram associadas. Os egípcios cultuavam uma miríade de deuses e
divindades caracterizadas por um zoomorfismo evidente, prática esta denominada
de teriomorfia. O deus Rá, criador da vida na Terra, é ligado à figura do gato,
animal que era notadamente admirado por proteger a lavoura e os grãos. De fato,
percebe-se como característica predominante das deidades egípcias, a fantástica
miscigenação entre humanos e os mais variados animais, tais como pássaros,
répteis, mamíferos, insetos, entre outros210. A esse respeito, PAOLO SCARPI
destaca que:
Hórus é o deus falcão, mas por vezes é representado por um sol alado,
destinado a tornar-se a encarnação da realeza; Hathor, cujo nome
significa ‘a casa de Hórus’, é representada pela vaca; Anúbis, divindade
responsável por cuidar dos mortos, tem um aspecto canino; Apis, o
touro; Bastet, interpretada pelos gregos como Afrodite, é deusa primeiro
leoa e depois gata; Sobek é o crocodilo, Thot, o deus da sabedoria e
senhor da escrita, tem o aspecto de um íbis. A esse complexo grupo de
seres que temos o hábito de chamar de divindades estão associados
animais correspondentes, que se tornavam destinatários de um culto,
dando lugar a uma verdadeira zoolatria, bastante difundida. É possível
que os animais exprimissem uma qualidade específica do deus a quem
eram associados: Anúbis, por exemplo, divindade funerária dos
cemitérios, era ‘como’ um chacal. Essa teoria do ‘como se’ parece
possível apenas quando em um determinado contexto cultural tenha se
desenvolvido uma consciência difundida que dissocia a qualidade
transcendente do ser divino de sua representação e, por isso, pode ter
se produzido apenas em época recente, o que, no entanto, para ser
contestado pela distribuição regional do culto atribuído a algumas
210
O panteão egípcio é riquíssimo em divindades híbridas. A deusa Hathor possuía orelhas e
chifres bovinos. Os deus Thot, da sabedoria, tinha cabeça de pássaro, enquanto que Hórus, deus
do céu e da realeza, era representado por um corpo humano em cabeça de falcão, assim como
Rá, o deus-Sol. Sekhmet era uma mulher com cabeça de leoa, análoga a Maahes, homem com
cabeça de leão. Harmakhis, por sua vez, caracterizava-se pelo contrário, corpo de leão e cabeça
de homem (figura popular da esfinge). Bastet, mulher com cabeça de gato, era tida como
encarnação de Osíris e Rá. A própria Cleópatra teria sido a encarnação da deusa Bastet.
Hibridismo total encontra-se em Ammut, divindade fruto da combinação de cabeça de crocodilo
com corpo metade leão e metade hipopótamo (sua função era a de devorar a alma dos
condenados). Geb, representado por um ganso, era marido de Nut, representada por uma mulher
com asas de pássaro, tal como Nekhbet, deusa com traços de um abutre branco. Sobek era um
homem com cabeça de crocodilo, enquanto que Anúbis, deus das necrópoles, era um ser humano
com cabeça de chacal ou de cão. Até mesmo os insetos eram representados como divindades,
como é o caso de Khepna, homem com cabeça de escaravelho, protetor de Rá.
- 62 -
espécies de animais e divindades correspondentes, ligada ao caráter
evidentemente arcaico da prática e da tradição – que remonta pelo
menos ao Pré-Dinástico, no qual está provada a existência de um rei
Escorpião -, leva a pensar na persistência de figuras de seres sobre-
humanos afins ao antepassado mítico (morte, antepassado, xamã), que
em muitos casos tem conotações animais.211
211
SCARPI, Paolo. Politeísmos: As Religiões do Mundo Antigo. São Paulo: Hedra, 2004. p. 67.
212
Sakkara é uma localidade situada ao sul de Cairo, muito conhecida e admirada por sua riqueza
arqueológica.
213
SMITH, H.S. A Visit to Ancient Egypt: Life at Memphis & Saqqara. London:Aries & Phillips,
1974.
- 63 -
DIODORO DA SICÍLIA (c. 475 a.C.), escrevendo a respeito da
prática da mumificação animal, ressaltou a ligação quase que mística do povo
egípcio para com os animais. Segundo ele, “essa fantástica adoração de animais
dos egípcios, que supera todas as crenças, deixa em apuros qualquer um que
indague as causas de tais coisas. A opinião que os sacerdotes têm a respeito,
como já foi dito quando tratamos da crença em seus deuses, deve ser mantida
em segredo; o povo egípcio, no entanto, dá as três seguintes razões, sendo que a
primeira é totalmente lendária e correspondente apenas à ingenuidade dos
tempos antigos. Eles dizem que os deuses primordiais, que devido a seu pouco
número, foram dominados pela quantidade e atrevimento das pessoas nascidas
na Terra, teriam assumido a forma de determinados animais, conseguindo assim
escapar da crueza e brutalidade dos homens. Quando então mais tarde
alcançaram o domínio sobre todos os seres que vivem nele, provaram ser
agradecidos àqueles que foram a causa de sua salvação, e declararam sagradas
as espécies animais. Eles dão como segunda causa o seguinte: antes da época
antiga, dizem, os egípcios teriam perdido muitas batalhas devido à
desorganização de suas hordas, e por isso tiveram a idéia de dar um emblema a
cada bando. Então teriam feito imagens dos animais que agora adoram,
espetando-as em lanças e entregando-as aos principais para levá-las, e dessa
maneira cada um sabia a que secção pertencia [...]. Como terceira razão
esclarecedora, mencionam a utilidade que cada um desses animais tem para a
sociedade humana e o indivíduo [...].”214
214
DIODORO apud DANIKEN, Erich Von. Os Olhos da Esfinge. São Paulo: Melhoramentos, 1991,
p. 43.
215
Apesar de justificativas religiosas, alguns sacrifícios tinham nítido caráter econômico, como o
do antílope (oryx), que havia arrancado o olho de Osíris e cuja pela era requisitada para a
confecção de vestimentas, ou o da tartaruga, que era abatida para que a barca do sol não
encalhasse nas suas costas, e cujo casco era bastante utilizado para a produção de escudos e
ferramentas.
- 64 -
A teriomorfia, no entanto, não é um privilégio egípcio. A simbologia
divina dos animais está presente, por exemplo, na cosmogonia hindu, por meio do
Deus Ganesh (corpo humano e cabeça de elefante) e em Narisima (leão-homem),
avatar de Vishnu, entre outros216. A vaca, associada à fertilidade, o cavalo, citado
nos Vedas, o urso e o macaco, personagens do épico Ramayana, são venerados
na índia até os dias de hoje. No final do texto sagrado Mahabharata, por exemplo,
o deus Krishna encarna em um cão a fim de ajudar um príncipe que permaneceu
fiel ao hinduísmo.
216
Matsia, o peixe de chifres que representa a intercessão de Vishnu num tempo de dilúvio
universal. O peixe avisou Manu (que é o Noé hindu) e salvou-o num barco preso ao seu
chifre.Curma, a tartaruga. O segundo avatar de Vishnu que apareceu na Terra depois do dilúvio
para recuperar tesouros. Varaa, o Javali. Originalmente o porco sagrado de um culto primitivo que
se tornou um avatar de Vishnu depois de um segundo dilúvio. Cavando sob a água com as
presas, fez subir a terra e restabeleceu a terra firme.Hanuman, o rei dos macacos que emprestou
sua agilidade, a sua velocidade e a sua força a Rama para ajudar a salvar Sita de Ravana. Pediu
em troca que pudesse viver enquanto os homens se lembrassem de Rama. Assim Hanuman
tornou-se imortal. Garuda, a montada de Vishnu, é uma ave mítica de cara branca, de cabeça e
asas de águia e corpo e membros de homem. Transportando o deus no seu cintilante dorso
dourado, era às vezes, confundida com o deus do fogo, Ágni. Nandi, o touro sagrado para o povo
do Indo como um símbolo de fertilidade. Foi absorvido no hinduísmo como o companheiro
constante de Shiva , de quem é montada, camarista e músico. Informações disponíveis em:
<http://www.geocities.com/Athens/2506/dhindu.html. Acesso em 05 mar. 2005.
- 65 -
1.4.2. A Concepção Bíblica
(Gn 1, 26-28)217
217
BÍBLIA SAGRADA DE JERUSALÉM. São Paulo: Edições Paulinas, 1986, p. 32.
218
Tanto a Bíblia hebraica (composta de 39 livros divididos em três partes, a saber, (a) a lei – em
hebraico Torá, “ensinamento” – que compreende a parte normativa mais relevante consistente no
Pentateuco – Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio; (b) Profetas que são divididos
em livros históricos, posteriores e os doze menores; e (c) Escritos), que contém um cânon de
livros específicos (só se aceitam os livros em hebraico, excluídos os escritos em grego), quanto a
Bíblia grega (que já incorpora alguns livros que não pertencem à Bíblia hebraica) e, por fim, a
Bíblia cristã (composta pelo Antigo Testamento – Pentateuco, Livros Históricos, Livros Poéticos e
Sapienciais e Livros Proféticos – e pelo Novo Testamento – Evangelhos de Mateus, Marcos,
Lucas e João, Atos dos Apóstolos, Epístolas de São Paulo, Epístolas Católicas e Apocalipse),
contém o relato da criação nos mesmos moldes.
219
A interpretação ortodoxa chega a afirmar que seria clara a intenção da bíblia em proclamar a
humanidade como a criação mais perfeita de Deus. Isto se derivaria do fato de que a criação da
luz, da terra, da vegetação e dos animais são precedidas somente pela frase “E Deus disse: Faça-
se [...]”, enquanto que no caso do ser humano, o Criador teria parado e ponderado acerca da
tarefa a ser realizada.
220
Outras passagens do Antigo Testamento consolidam essa posição de domínio incondicional do
homem sobre todas as criaturas. Veja-se a respeito: “Iahweh Deus modelou então, do solo, todas
as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as
chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os
animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou auxiliar
que lhe correspondesse.” (Gn 2, 19-20); ou “E o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o
- 66 -
Corroborando o texto anterior, o primeiro comando de Deus dirigido
aos homens é:
(Gn 1, 28-31)
de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo colocaste: ovelhas
e bois, todos eles, e as feras do campo também; a ave do céu e os peixes do oceano que
percorrem as sendas dos mares.” (Sl 8, 6-9);ou “Concluirei com elas uma aliança de paz e
extirparei da terra as feras de modo que habitem no deserto em segurança e durmam nos seus
bosques.” (Ez 34,25); ou “Se pelo caminho encontras um ninho de pássaros – numa árvore ou no
chão – com filhotes ou ovos e a mãe sobre os filhotes ou sobre os ovos, não tomarás a mãe que
está sobre os filhotes; deves primeiro deixar a mãe partir em liberdade, depois pegarás os filhotes,
para que tudo corra bem a ti e prolongue os teus dias.” (Dt 22, 6-7). Em contraposição, contra a
crueldade para com os animais não-humanos há algumas poucas passagens: “Se vês o asno ou o
boi do teu irmão caídos no caminho, não fiques indiferente: ajuda-o a pó-los em pé” (Dt. 22, 4); ou
“Não amordaçarás o boi que debulha o grão.” (Dt. 25, 4); ou “Iahweh mandou o profeta Natan falar
com Davi. Ele entrou e lhe disse: ‘Havia dois homens na mesma cidade, um rico e o outro pobre.
O rico possuía ovelhas e vacas em grande número. O pobre nada tinha senão uma ovelha, só
uma pequena ovelha que ele tinha comprado. Ele a criara e ela cresceu com ele e com os seus
filhos, comeu do seu pão, bebeu no seu copo, dormindo no seu colo: era como sua filha.” (2 Sm.
1-3).
221
Para a maior parte da doutrina religiosa, o comando contido Gênesis 1 é, de fato, diverso do
contido no comando esculpido em Gênesis 9. A questão, a meu juízo, vai um pouco além dessa
aparente contradição. Com relação ao disposto no Gn 1, como pessoas que não eram
vegetarianas, e tampouco pacifistas, imaginam e relatam na bíblia um “começo dos tempos” onde
não era permitida a ingestão de carne nem a matança de animais? A resposta parece ser a de que
estavam intimamente convencidas de que a violência entre humanos e animais, e mesmo entre as
próprias espécies animais, não era o intento original da divindade. A ambígua permissão contida
em Gn 9 deve ser examinada com cautela. A leitura dos versículos 4 e 5 nos faz perceber que tal
passagem, em realidade, não concede um pretenso “direito” de matar. Deus o permite, é verdade,
- 67 -
Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. Sede o medo e o pavor de
todos os animais da terra e de todas as aves do céu, como de tudo o que
se move na terra e de todos os peixes do mar: eles são entregues nas
vossas mãos. Tudo o que se move e possui vida vos servirá de alimento,
tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas. Mas não
comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue222
- 68 -
permanente com o divino. Há uma legitimação do ser humano como fazendo
parte de uma categoria supranatural, semi-divina, que tem o poder e o dever de
subjugar as demais criaturas.
225
A inexorabilidade de tal contastação nos é relatada por HERMES EGÍPCIO, de alcunha
TRISMEGISTO, figura lendária que supostamente teria vivido por volta de 2.270 a.C., que já se
pronunciava no mesmo sentido, asseverando que: “Porque tratamos dos laços de sociedade e
aliança formados entre os homens e os deuses, aprende a conhecer ó Asclépio, os privilégios e o
poder do homem. Assim como o Senhor, ou o Pai, ou o que é supremo, Deus, em suma, é o autor
dos deuses celestes, assim o homem é o autor dos deuses que se encontram nos templos,
contentes da proximidade dos homens. [...] Causam menos maravilha, embora maravilhosas, as
coisas ditas sobre o homem. Supera a admiração de todas as maravilhas o haver o homem podido
inventar a divindade e fazê-la” (TRISMEGISTO apud AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Bragança
Paulista: São Francisco, 2003. p. 329-31).
226
SINGER, op.cit., p. 212.
227
AVELEZA, Manoel. Interpretando Algumas Fábulas de Esopo. Rio de Janeiro: Thex, 2003. p. 7.
- 69 -
a bois, as figuras dos deuses, e esculpiriam os corpos deles, cada um
em conformidade com o próprio aspecto.228
228
XENÓFANES apud SOUZA, Eudoro. Filosofia Grega. Brasília: Universidade de Brasília, 1978.
p. 10.
229
Segundo GIOVANNI FILORAMO, “o termo judaísmo não aparece na Bíblia hebraica; lê surge
pela primeira vez, em grego, num texto (Judaísmos: II Macabeus 2,21) que entrou no cânone da
Bíblia católica. Nos textos bíblicos, o povo em seu conjunto é chamado pelo nome de ‘Israel’,
enquanto ‘Judá’ é o nome de uma tribo e do homônimo reino meridional. Depois do exílio
babilônico, a denominação ‘povo de Judá’ foi estendida a todo o povo hebraico e surge também o
adjetivo ‘judaico’; como conseqüência, a rigor se deveria falar em ‘Israel’, em ‘israelitas’’ e em
‘religião de Israel’ para a época bíblica mais antiga e em ‘judeus’ e ‘judaísmo’ para o período
posterior ao exílio babilônico.” (FILORAMO, op.cit., p. 41.)
230
IWAKURA, op.cit.
231
Um exemplo bastante significativo de repúdio aos cultos de divindades animais se faz presente
no Livro do Êxodo, constante do Velho Testamento. Após chegar ao Sinai, no momento em que
Moisés retorna do cimo da montanha com o decálogo, se depara com o povo cultuando um
- 70 -
sofreu sucessivas dominações por longos períodos232. Tais episódios possuem
inúmeras implicações. Uma delas, de ordem psicológica, é a da rejeição e
aversão a qualquer das práticas levadas a cabo pelos antigos senhores,
principalmente as de ordem ritualística e religiosa. O monoteísmo (do grego
monos, “único”, e théos, “deus”) ético judaico traz consigo uma concepção
particular da sua própria história, com a exclusão categórica de qualquer outro
deus.
BERGER (1980)
- 71 -
em que somente os homens são dotados de inteligência, vontade e poder,
participando da natureza pela graça. Há a construção de um dogma de fé no qual
o homem se coloca à frente das demais criaturas em sua relação com o divino.
Se algum boi chifrar homem ou mulher e causar sua morte, o boi será
apedrejado e não comerão a sua carne; mas o dono do boi será
absolvido. Se o boi, porém, já antes marrava e o dono foi avisado, e não
o guardou, o boi será apedrejado e o seu dono será morto. Se lhe for
exigido resgate, dará então como resgate da sua vida tudo o que lhe for
exigido. Que tenha chifrado um filho, que tenha chifrado uma filha, esse
julgamento lhe será aplicado. Se o boi ferir um escravo ou uma serva,
dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor destes e o boi será
apedrejado.”
234
De acordo com o Dicionário Aurélio, marrar significa “arremeter com a cornada (animal
cornígero) [...]” Daí o adjetivo “marrão” que serve para qualificar a rês bravia (BUARQUE DE
HOLANDA, op.cit.)
235
Segundo comentadores bíblicos, o “Código da Aliança” é uma coletânea de leis e costumes
dos primeiros tempos da instalação da comunidade hebraica no Canaã. “Por aplicar o espírito dos
mandamentos do Decálogo, foi considerado a carta magna da Aliança do Sinai, e por essa razão
inserido aqui, na seqüência do Decálogo. Os seus contatos com o Código de Hamurabi, o Código
Hitita e o Decreto de Remheb não atestam uma derivação direta e sim uma fonte comum: um
antigo direito costumeiro que se diferenciou segundo os ambientes e os povos. Pode-se distribuir
as prescrições do Código, segundo o conteúdo, em três capítulos: o direito civil e penal (21,1-
22,20); regras para o culto (20,22-26; 22,28-31; 23,10-19); moral social (22,21-27; 23,1-9). De
acordo com a sua forma literária, estas prescrições dividem-se em duas categorias: “casuística” ou
condicional, no gênero dos códigos mesopotâmicos, “apodítica” ou imperativa, no estilo do
Decálogo e dos textos da sabedoria egípcia.” (Bíblia de Jerusalém, op.cit., p. 136).
- 72 -
morto. Se, porém, o dono sabia que o boi marrava já há algum tempo e
não o guardou, pagará boi por boi; mas o boi morto será seu. (grifos
nossos)
236
WALZER, Michael. “The Legal Codes of Ancient Israel”. Yale Journal of Law and The
Humanities, n. 4, 1992. p. 335.
237
Um “siclo” (sheqel) era o equivalente a 11,4 gramas de material valioso, como ouro ou prata.
- 73 -
política retributiva do “olho por olho, dente por dente”, aplicava tão somente penas
pecuniárias a casos como este238.
238
O artigo 251 do Código de Hamurabi afirma que: “Se o boi de alguém dá chifradas e se tem
denunciado seu vício de dar chifradas, e, não obstante, não se tem cortado os chifres e prendido o
boi, e o boi investe contra um homem e o mata, seu dono deverá pagar uma meia mina de prata”.
O artigo subseqüente, 252, determina que, na mesma hipótese, se a vítima fosse um escravo, o
pagamento será o de um terço de uma mina de prata. Uma “mina” é o equivalente a
aproximadamente 571 gramas de metal precioso.
239
É curioso notar que no panteão das deidades mesopotâmicas há lugar para deuses com
formas animais. Um deles é Oannes, metade homem, metade peixe, responsável pela introdução
do homem no mundo da cultura.
240
O gado era de importância visceral para a economia israelita. Eram usados de todas as formas
e para os mais diversos propósitos, tais como para a colheita, abate, e para alimentar os
sacrifícios religiosos. O preço de uma cabeça de gado era equivalente a de um escravo. Por que
razão se puniria com tal severidade o ato de um animal destemperado? A morte por
apedrejamento, de acordo com a tradição bíblica, era reservada para crimes especiais, tidos como
uma frontal ofensa aos valores maiores da comunidade, tais como a adulação de deuses
estrangeiros, o sacrifício de crianças, magia, blasfêmia, entre outros. A aplicação de tal pena aos
- 74 -
Segundo FINKELSTEIN, professor de teoria política da Universidade
De Paul em Chicago, “o verdadeiro crime do boi é que, por matar um ser humano,
– seja de forma voluntária ou involuntária – cometeu uma insurreição contra a
hierarquia estabelecida pela Criação segundo a qual o Homem foi criado por
Deus para submeter e dominar todos “os peixes do mar, as aves do céu e todos
os animais que rastejam sobre a terra.” Não era somente que o dano causado à
pessoa fosse de maior gravidade quando comparado com o cometido contra a
propriedade, mas que as duas realidades pertenciam a concepções
completamente distintas. Diferentes escalas são usadas para medir os dois tipos
de delito, e a medida correlativa prescrita são de diferentes qualidades.”241
bois corrobora a assertiva de que a morte de um ser humano por um animal era tida como
violadora da “ordem cósmica”, até mesmo no caso do boi matar um escravo.
241
FINKELSTEIN, J.J. “The Ox That Gored”. American Philosophy Society, n. 71, 1981, p.17.
242
FILORAMO, op.cit., p. 38.
- 75 -
A aceitação irrefletida da posição de dominação humana sobre toda
a natureza e os animais deve ser rechaçada. Qualquer um que fundamente a
utilização de animais como coisas baseando-se, para tanto, em argumentos
puramente bíblicos, deveria ser chamado a se explicar por que razão outras
formas de discriminação que também são encontradas nos textos “sagrados” são
claramente rejeitadas pela sociedade contemporânea. Inúmeras passagens do
Antigo Testamento suportam a escravidão como instituição legítima243, e nem por
isso a aceitamos. Outras passagens fundamentam uma sociedade fortemente
patriarcal, o que, felizmente, também é amplamente contestado244. Deste modo, o
argumento bíblico puro e simples não oferece bases suficientes para justificar a
dominação humana sobre os animais, ou do contrário, baseados também em uma
interpretação literal, deveríamos ser forçados a defender ferrenhamente a
escravidão e o sexismo. As interpretações literais são sempre perigosas e
normalmente se prestam a justificar toda sorte de prática. Não é por acaso que o
Cristianismo já foi utilizado como instrumento para legitimar a pena de morte, as
guerras, a condenação ao homossexualismo e à prostituição, e até mesmo
sistemas econômicos.
“Todo animal que tem o casco fendido, partido em duas unhas, e que
rumina [...] todos os animais de quatro patas que caminham sobre a
planta dos pés [...] todo réptil que anda de rasto sobre a terra [...] não vos
contamineis com eles.”
243
Cf. Ex., 21; Gn 9, 25, entre outras.
244
Cf. Gn. 3, 16. A própria escolha por JESUS de onze discípulos homens, em princípio serve
para justificar, até os dias de hoje, a exclusão das mulheres aos cargos eclesiásticos.
- 76 -
proibição do incesto. Os alimentos nutrem a identidade da maioria das
sociedades.
245
As “regras referentes ao puro e ao impuro” contidas no Levítico são bastante extensas (todo o
capítulo 11), embora simultaneamente, bastante inexatas sob o ponto de vista biológico (o coelho
é considerado um ruminante e os insetos alados são designados como quadrúpedes para serem
distinguidos dos pássaros) e mesmo incertas quanto à identificação de muitos dos animais lá
elencados. Os animais puros são aqueles que podem ser oferecidos a Deus (Gn 7,2) enquanto
que os impuros são aqueles que os pagãos consideram como sagrados ou que possuem
aparência repugnante ou má para o homem e, portanto, seriam “desagradáveis” a Deus. O contato
com os ditos “impuros” acarretaria na contaminação da sua impureza. “Contraireis impurezas
deles; todo aquele que tocar o seu cadáver ficará impuro até a tarde. Todo aquele que transportar
o seu cadáver deverá lavar as suas vestes e ficará impuro até a tarde. Quanto aos animais que
têm casco, porém não dividido, e que não ruminam, considerá-los-eis impuros; todo aquele que os
tocar ficará impuro. Todos os animais de quatro patas que caminham sobre a planta dos pés serão
para vós impuros; todo aquele que tocar o seu cadáver ficará impuro até a tarde, e todo aquele
que transportar o seu cadáver deverá lavar as suas vestes e ficará impuro até à tarde. Eles serão
impuros para vós.” (Lv 11, 24-28).
246
Outras referências bíblicas às restrições dietéticas podem ser encontradas em Êxodo, 22, 31;
23, 19 e Deuteronômio, 12, 21-25. Na primeira parte do Talmude – “estudo da lei” (contém vasta
coleção de material jurídico, ritualístico e discussões sobre a interpretação da Torá) – denominada
Mishná, também há normas específicas sobre a pureza e impureza de pessoas e “coisas”
(animais).
- 77 -
morada da vida -, esses animais devem ser abatidos exclusivamente segundo
regras determinadas que impõem, entre outras coisas, o corte completo do
esôfago e da traquéia por meio de uma faca afiadíssima, de maneira que seja
derramado, rapidamente, o máximo possível do sangue.”247
247
FILORAMO, op.cit., p. 57.
248
ROÇA, Roberto de Oliveira. Abate Humanitário: o ritual Kasher e os métodos de
insensibilização de bovino – tese de livre-docência apresentada à Faculdade de Ciências Agro-
Econômicas da Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 1999. Disponível em:
<http://www.suino.com.br>. Acesso em: 06 fev. 2004.
249
O médico-veterinário esclarece no mesmo artigo que “o atordoamento consiste em colocar o
animal em um estado de inconsciência, que perdure até o fim da sangria, não causando
sofrimento desnecessário e promovendo uma sangria tão completa quanto possível (Gil & Durão,
1985) [...]. Após a insensibilização, o animal desliza sobre a grade tubular da área de vômito e é
suspenso ao trilho aéreo por um membro posterior, com o auxílio de um gancho e uma roldana.
Neste momento, pode ocorrer regurgitação, devendo o local ter água em abundância para
lavagem (Mucciolo, 1985). Na canaleta de sangria deve ser observada a eficiência da
insensibilização. Os sinais de uma insensibilização deficiente são: vocalizações, reflexos oculares
presentes, movimentos oculares, contração dos membros dianteiros. Grandin (2000) adota o
seguinte critério para análise do processo de insensibilização em bovinos:
- Excelente: menos que 1 por 1.000 de animais insensibilizados parcialmente.
- Aceitável: menos que 1 por 500 de animais insensibilizados parcialmente.
Os únicos processos de atordoamento de animais previstos na Convenção Européia sobre
Proteção dos Animais são: a) meios mecânicos com a utilização de instrumentos com percussão
ou perfuração do cérebro; b) eletronarcose; c) anestesia por gás. Foram abolidas as técnicas da
choupa, do prego ou estilete, do martelo de cavilha, máscara de cavilha e armas de fogo. São
exceções o abate segundo rituais religiosos e o abate de emergência (Gil & Durão, 1985). A
concussão cerebral é permitida na Bélgica, França e Luxemburgo, porém proibida desde 1920 na
Holanda (Lambooy et al., 1981; Leach, 1985). No Estado de São Paulo, foi aprovado na
Assembléia Legislativa, o Projeto de Lei número 297, de 1990 (São Paulo, 1990), e na Câmara
dos Deputados tramitou o Projeto de Lei número 3929 de 1989 (Brasil, 1989), que dispõem sobre
os métodos de abate de animais destinados ao consumo. Por eles, é permitido somente a
utilização de métodos mecânicos através de pistolas de penetração ou pistolas de concussão,
eletronarcose e métodos químicos com o emprego do dióxido de carbono, proibindo o uso da
marreta ou choupa. O Projeto de Lei n.º 297 foi sancionado pelo Governador do Estado e
publicado como Lei número 7705 (São Paulo, 1992) de 19 de fevereiro de 1992, regulamentado
através do Decreto nº. 39.972 de 17 de fevereiro de 1995 (São Paulo, 1995), e o Projeto de Lei
número 3929 foi vetado na Comissão de Agricultura da Câmara Federal, em 29 de outubro de
1991. Em 1999, a Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura (Brasil, 1999),
apresentou a Instrução Normativa nº. 17, de 16 de julho de 1999, sobre Regulamento técnico de
métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue, estabelecendo o
prazo de 90 dias para sugestões ou críticas sobre a proposta apresentada. Após as sugestões
realizadas pela comunidade científica, houve uma reunião onde foi definido o Regulamento, sendo
publicado em janeiro de 2000 (Brasil, 2000)” (ROÇA, op.cit.)
- 78 -
disso, tal método de abate é denominado pelos veterinários de “jugulação” ou
“degola cruenta”. O ritual Kosher, compreende, em realidade, várias etapas. Tal
como elucida ROÇA:
250
A suspensão de um animal de grande peso, por si só, já acarreta normalmente o rompimento
de sua musculatura traseira, o que, indubitavelmente, acarreta terrível sofrimento. A literatura
veterinária sobre o tema acresce ainda que o gado costuma também resistir fortemente à
inversão, movimentando freneticamente a cabeça para cima na tentativa de realinhamento,
favorecendo o aumento significativo do estresse no animal.
251
ROÇA, op.cit.
- 79 -
vivenciam intenso processo de sofrimento que se traduz, em última instância, em
crueldade.”252 Para a professora e bióloga FERNANDA MALAGUTTI TOMÉ,
“quanto à degola cruenta253, sem prévia insensibilização – muito freqüente no
abate ritual – acarreta intenso sofrimento físico e psíquico aos animais”.254
252
LEVAI, Laerte Fernando; IBARRECHE, Vanessa.Frigorífico. Abate por meio de extrema
crueldade. Necessidade de que a empresa se submeta a aprimoramento técnico e profissional, de
modo a minimizar o sofrimento dos animais, Revista de Direito Ambiental, n. 28.
253
Mesmo o abate não-ritualístico, revela-se de grade sofrimento para os animais. Segundo
LAERTE FERNANDE LEVAI, “[...] o médico veterinário AIRTON MORAIS DA SILVA, conclui que
os animais ali submetidos ao abate vivenciam processo de sofrimento mental, não apenas pela
condução operada mediante estímulos elétricos, mas acima de tudo, pela antecipação da morte
do animal manejado em grupo, seja no boxe de contenção, para os bovinos, seja na sala de
choques para os suínos. É significativa – afirma ele – a possibilidade de que a vocalização de
outros animais e o odor de sangue impregnado no ambiente aterrorizem s bois desde o corredor
para o abate, conforme se pode observar da fotografia que mostra a fila indiana de bovinos em
que o primeiro animal tenta, a todo custo, retornar em sua forçada marcha. As pupilas dilatadas,
nesse contexto, representam aquilo que se denomina Síndrome de Emergência de Cânon,
característica da sensação de pânico no animal aterrorizado, gerando assim um processo de
midríase ocular que, em síntese, é fator indicativo de sofrimento [...]” (Ibid., p. 28).
254
TOMÉ apud LEVAI; IBARRECHE, op.cit., p. 29.
255
SOLOMON, Norman, Judaism, apud ARMSTRONG; BOTZLER, op.cit., p. 222-3 (grifos
nossos).
256
Casher (em hebraico) e Kosher (em Yidish) significam o mesmo: produto apropriado para ao
consumo. Kashrute é o conjunto das leis dietéticas outorgadas por Deus ao povo israelita,
enquanto que o método de abate é denominado de Shehitah.
- 80 -
e à necessidade de diferenciação e de auto-identificação257 do povo israelita.
Conforme consta do Levítico 11, 43-46:
Não vos torneis, vós mesmos, imundos, com todos estes répteis que
andam de rasto, não vos contamineis com eles e não sejais
contaminados por eles. Pois sou eu, Iahweh, o vosso Deus. Fostes
santificados e vos tornastes santos, pois que eu sou santo; não vos
torneis, portanto, impuros com todos esses répteis que rastejam sobre a
terra. Sou eu, Iahweh, que vos fiz subir da terra do Egito para ser o
vosso Deus: sereis santos, porque eu sou santo.
257
O conceito de que "a alimentação molda o caráter" ou "o homem é o que come” serve,
comumente, como justificativa para a prescrição de comida kosher, que teria como objetivo
plasmar nossa personalidade. Na realidade, menos do que preocupações de ordem terapêutica ou
de cunho moral, as prescrições judaicas estão muito mais associadas à necessidade sociológica
de diferenciação pela via da adoção de práticas ritualísticas peculiares, separando-os do ambiente
gentio. A antropóloga inglesa MARY DOUGLAS e o estruturalista francês JEAN SOLER defendem
que as proibições dietéticas são uma espécie de linguagem simbólica destinada a transmitir um
“sendo de realidade”, refletindo o conceito de santidade de Deus que Israel tem de compartilhar.
- 81 -
os animais ocupam um elo destacado na “ordem cósmica”. De fato, segundo
afirmam MARTIN FORWARD e MOHAMED ALAM:
Os seres humanos são criaturas distintas dos demais animais por sua
capacidade de realizar julgamentos morais. Somente eles, dentre todas
as espécies, podem escolher entre obedecer ou desobedecer a Deus, e
consequentemente, ganhar o paraíso ou o inferno. O Islamismo não é
uma religião sentimental. Por meio da permissão divina, os seres
humanos detêm o poder sobre os animais, assim como sobre toda a
criação, que poderão ser utilizados para vários propósitos.258 259
Alá criou para vós animais de carga, outros para o abate. Comei, pois,
de outro com que Alá vos agraciou e não sigais os passos de Satanás,
porque é vosso inimigo declarado (6ª surata, versículo 142)
- 82 -
com animais). Além disso, encontraria barreira insuperável no art. 32 da Lei n.
9.605/98 (artigo da lei dos crimes ambientais que também veda as práticas de
maus-tratos) e, também, no Regulamento de Inspeção Industrial de Produtos de
Origem Animal, aprovado pelo Dec. 30.691/52, alterado pelo Dec. 1.255/62 e,
posteriormente, pelo Dec. 2.244/77, e pela adesão ao Mercosul, que estabelece
em seu art. 135 como requisito para o abate, sem quaisquer exceções, a prévia
insensibilização do animal.
260
Adiante-se que as críticas apresentadas aos abates rituais estendem-se, em sua grande parte,
ao abate também não ritual. Não se pretende, de modo algum, desmerecer ou fazer qualquer
apologia contrária a esta ou aquela crença ou religião. Acredito, contudo, que o direito à liberdade
de culto não é absoluto, possuindo um âmbito de incidência restrito em relação à correlata
liberdade de crença que, esta sim, em princípio, é ilimitada. Por essa razão, pelo princípio da
dicotomia crença-ação (“belief-action”), adotado pela Constituição Federal, um indivíduo pode,
efetivamente, acreditar em tudo aquilo que deseja, sendo-lhe facultado adotar, no plano
metafísico, todas as formas de crença a que a fé o conduzir. Todavia, quando esta liberdade
transmuda-se para o plano fático, físico - agora já estamos tratando da liberdade de culto
propriamente dita - o Estado pode sobre ela ter ingerência, limitando a sua expressão com vistas a
resguardar outras liberdades e valores que com ela entram em conflito. As liberdades individuais,
entendidas sob o prisma principiológico, podem ser ponderadas em casos concretos. Assim é que
um indivíduo pode pautar-se no plano espiritual por seguir quaisquer orientações por mais
absurdas que possam parecer à maioria de nós, mas não poderia, em nome delas, por exemplo,
cometer crimes (não poderia sustentar validamente, em nome da liberdade de crença, que ela
exija a prática da matança ritual de crianças ou de “mulheres castas”). A liberdade de culto não
pode servir de manto escusatório para a manutenção de práticas desconformes a outros princípios
e valores que o ordenamento jurídico tem como igualmente relevantes como por exemplo, o direito
à vida e à intangibilidade e integridade física. Este assunto é abordado com maior clareza e
profundidade em artigo de minha autoria intitulado “Liberdade de Culto e o Direito dos Animais
Não-Humanos” (Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, n. 51, p. 295-318) onde analiso um julgado da Suprema Corte Norte-Americana –
Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah, 508 U.S. 520 (1993) – que trata justamente do problema
dos sacrifícios ritualísticos havido por religiões de matriz africana.
261
Também se adianta que o Brasil, segundo dados fornecidos pela Confederação da Agricultura
e Pecuária do Brasil – CNA, é o maior exportador mundial de carne bovina pelo segundo ano
consecutivo, consolidando a posição alcançada em 2003. De janeiro a outubro de 2004, as
exportações de carne bovina alcançaram 1,504 milhão de toneladas em equivalente carcaça,
apresentando crescimento de 42% em relação ao resultado do mesmo período de 2003, que foi de
1,06 milhão de toneladas. Em receitas, as vendas externas somaram US$ 2,02 bilhões, com
aumento de 69,3% sobre os 10 primeiros meses de 2003, quando atingiram US$ 1,194 bilhão.
Estes resultados já superam as expectativas iniciais para todo o ano de 2004, quando se previa
exportações de 1,5 milhão de toneladas e receitas de US$ 2 bilhões.
- 83 -
1.4.5. Questões de Alma: O Advento da Pregação Cristã
Lucas 14, 23
262
SÃO JOÃO apud ARAÚJO, op.cit., p. 58.
263
O cristianismo, em sentido amplo, pode ser entendido como o conjunto de comunidades, seitas
e grupos que comungam dos preceitos e ensinamentos das palavras de JESUS DE NAZARÉ (o
cânone do Novo Testamento abriga os quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, os
Atos dos Apóstolos, treze cartas de Paulo, a carta aos hebreus, a carta de Tiago, as duas de
Pedro, as três de João, a de Judas e por fim o Apocalipse em um total de 27 escritos). Costuma-
se dizer que é uma religião historicamente fundada, pois sua origem está conectada à ação de um
fundador e a um momento histórico determinado, em que a comunidade judaica estava sob o jugo
do Império Romano. Segundo FILORAMO, “a afirmação da presença no fundador de uma
natureza divina e também de uma natureza humana (razão pela qual o homem Jesus tem
condições de ressurgir, enquanto o Cristo divino se encarna na natureza humana), mesmo dando
origem a complexas controvérsias teológicas e cristológicas, marca uma forte guinada em relação
às esperas messiânicas do judaísmo no tempo de Jesus [...]” (FILORAMO, op.cit., p. 63).
- 84 -
puro/impuro, que estavam na base do respeito às Leis. Por outro lado,
quando Jesus ensina que ‘nada há, fora do homem, que, entrando nele,
o possa contaminar’ (Mc 7, 15; e Mt 15) e que são as coisas que saem
do homem que o contaminam, declarando com isso a pureza de todos os
alimentos, ele tocava na raiz de um dos princípios do sistema cultual
legislativo judaico.264
264
Ibid., p. 64.
265
O episódio relata o caso de JESUS que, ao encontrar um homem “possuído por espíritos
impuros”, expulsou-os e os enviou para uma manada de porcos que ali pastava tranqüilamente: “E
os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos e a manada – cerca de dois mil – se arrojou no
mar, precipício abaixo, e eles se afogavam no mar” (Bíblia de Jerusalém, op.cit., p. 1904).
Ressalte-se que, de acordo com outras passagens bíblicas, JESUS teria o dom do exorcismo sem
que, todavia, fosse necessário “transferir” o mal a outras criaturas, ou mesmo de matá-las.
266
Discute-se, a meu sentir, frivolamente, acerca do fato de ser JESUS vegetariano ou não. Não
há, de fato, nenhuma passagem nos evangelhos fazendo alusão expressa à ingestão de carne.
Há, todavia, passagens em que se depreende que ele teria consumido peixe. Aspectos de tal
ordem pessoal da vida de um JESUS historicizado são quase impossíveis de serem afirmados
com precisão com as fontes atualmente disponíveis.
- 85 -
“Ora, um homem vale muito mais do que uma ovelha!” (Mt 12, 12)267. Os animais,
por serem irracionais e, pois, incapazes de exercer a fé, seriam naturalmente
condenados ao aprisionamento e à morte injustificada, tal como assevera Pedro:
“[...] estes, porém, como animais irracionais, destinados por natureza à prisão e à
morte, injuriando aquilo que ignoram, perecerão da mesma morte, sofrendo
injustiça como salário da sua injustiça268”. As Epístolas de São Tiago, em Tg 3, 7,
trazem à baila a dura constatação do domínio humano: “Com efeito, toda espécie
de fera, de aves, de répteis e de animais marinhos é domada e tem sido domada
pela espécie humana.”
267
Em Lucas 12, 7 também se colhe “ensinamento” sobre a pretensa superioridade humana sobre
os animais: “Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo;
pois valeis mais do que muitos pardais [...].” Há no entanto, quem defenda uma proximidade de
JESUS com os animais nas passagens alusivas ao seu nascimento em um estábulo (Mc 1, 13);
sua entrada em Jerusalém montado em um asno (Mt 21, 4-5); suas prescrições de fazer o bem
durante o sabbath, o que incluía o resgate de animais caídos (Mt 12:10-12); e a lembrança de que
até mesmo os pardais não seriam esquecidos perante Deus (Lc 12, 6).
268
Cf. 2 Pe 2, 9-12.
269
AGOSTINHO, apud SINGER, Peter, Libertação Animal, op.cit., p. 217.
- 86 -
animais em si, mas sim o dos seres humanos. A esse respeito, é límpida a lição
antropocêntrica que se colhe na Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios:
270
O episódio comumente citado para corroborar a assertiva é o constante de Rm 2, 12-16:
“Portanto, todos aqueles que pecaram sem Lei, sem Lei perecerão; e todos aqueles que pecaram
com Lei, pela Lei serão julgados. Porque não são os que ouvem a Lei que são justos perante
Deus, mas os que cumprem a Lei é que serão justificados. Quando então os gentios, não tendo
Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são Lei;
eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e
seus pensamentos que alternadamente se acusam ou defendem... no dia em que Deus – segundo
o meu evangelho – julgará, por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens.”
- 87 -
espiritual, mais despido de ser, e, conseqüentemente, mais malévolo ele era.271
Paralelamente, neste período, percebe-se o início da polarização entre a
ortodoxia e a heresia272. A utilização destas categorias implica em um juízo de
valor, refletindo o modo de pensar de um determinado grupo ou comunidade que,
sendo mais poderoso, considerar-se-á ortodoxo e seus adversários hereges.
271
CLEMENTE apud RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan – The Early Christian Tradition. Cornell
University Press, 1981. p. 110.
272
Ortodoxia deriva do grego orthos, “correto ou justo”, e doxa, “opinião ou doutrina”, enquanto
que heresia também vem do grego háiresis, significando “escolha”. A partir da metade do século II,
com a crise gnóstica, surge uma enorme literatura anti-herege.
273
O pensamento de IRINEU é exposto principalmente no seu tratado Adversus Haereses.
274
Consta que em Alexandria, no séc. I a.C., conviviam a cultura grega, a cultura romana e a
judaica em um ambiente de acentuado sincretismo. Exemplo da convivência entre as diversas
culturas é a Septuaginta, tradução do hebraico para o grego do Pentateuco (cinco livros iniciais do
Antigo Testamento). Para corroborar a tese da união do cristianismo com a cultura grega nada
melhor que verificar que os primeiros filósofos cristãos, tais como CLEMENTE DE ALEXANDRIA
(c.150-215) e ORÍGENES (c.184-254), pertencem à denominada Escola Neoplatônica Cristã de
Alexandria. ORÍGENES, no capítulo XIII de sua obra Philocalia, argumenta em favor da utilização
da filosofia grega pelos cristãos. Segundo o filósofo, “eu teria desejado que tomasses da filosofia
dos gregos tudo aquilo que pode servir como propedêutica para introduzir ao cristianismo [...] e
tudo o que será útil para a interpretação das Escrituras. E, assim, tudo o que os filósofos dizem da
geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares, nós o
aplicaremos também à própria filosofia em relação ao cristianismo.” (ORÍGENES apud
MARCONDES, Danilo, op.cit., p. 108). Apesar dos dogmas religiosos arrefecerem o espírito crítico
- 88 -
acentuado sincretismo. Prova disso se dá com FÍLON DE ALEXANDRIA (25 a.C.-
50 d.C.) que elaborou comentários ao Pentateuco, fazendo uma ponte entre a
cosmologia platônica no Timeu e a criação do mundo no Gênesis, abrindo espaço
para o sincretismo entre o cristianismo e a filosofia grega. Para DANILO
MARCONDES, “Fílon retoma o conceito grego de logos, interpretando-o como um
princípio divino a partir do qual Deus opera no mundo. Essa visão influenciará
fortemente o desenvolvimento da filosofia cristã e se encontra na abertura do
quarto evangelho (de São João), escrito ao final do séc. I, em Éfeso, em que se
lê: “No princípio era o Verbo (logos)”275. Aliás, FÍLON sustentará que, sendo os
animais desprovidos de razão e de capacidade de auto-reflexão, ocupariam uma
posição inferior face aos interesses dos seres racionais.
- 89 -
platônicas sobre a perfeição. Segundo PLATÃO, os homens teriam uma alma
imortal, ao contrário dos animais. Para o referido autor, a alma imortal seria a
sede da razão e a nossa conexão com o divino. Nele, “não há sombra de
incorreção”279 e um homem se aperfeiçoa moralmente por se aproximar da retidão
divina. A perfeição moral reside, pois, no ser “à semelhança de Deus”.
279
PLATÃO, Teeteto, 176-b-c, apud PASSMORE, op.cit., p. 45.
280
DE LAS CASAS apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 235.
281
“Não é sem motivo que em parte alguma, nos livros sagrados e canônicos, se poderia
encontrar que, mesmo em relação à imortalidade, para prevenir ou conjurar algum mal, tenha
Deus ordenado ou permitido que alguém se matasse. Proibição, isso sim, devemos ler na lei que
nos diz: Não matarás, sem acrescentar: o próximo, como acontece com a proibição de falso
testemunho: Não levantarás falso testemunho contra o próximo. Entretanto, o falso testemunho
- 90 -
ausência da razão representaria verdadeiro óbice a qualquer tipo de “conexão”
entre homens e animais/coisas (“nem aos animais faltos de inteligência, aos quais
a carência da razão interdiz qualquer sociedade conosco.”), e as suas vidas estão
em nossas mãos por puro “desígnio da Providência”. Não há como deixar de
traçar um imediato paralelo com a noção estóica de que tudo na natureza fora
criado para servir à humanidade.
contra si mesmo deveremos acreditá-lo isento de crime, se o amor ao próximo está contido na
regra do amor a si mesmo? Com efeito, está escrito: Amarás o próximo como a ti mesmo. Se, por
conseguinte, ninguém é menos culpado por falso testemunho contra si mesmo do que contra o
irmão, embora a lei , por falar apenas no próximo, pareça não estender a proibição ao falso
testemunho levantado a si mesmo, razão muito mais forte existe para pensar que ao homem não é
permitido matar, pois a injunção absoluta: Não matarás não excetua pessoa alguma, mesmo quem
a recebe. Assim, vários procuram compreender no mandamento os próprios animais. E porque
não as plantas e tudo quanto, preso á terra, através de raízes recebe alimento? Apesar de
privados de sensibilidade, de tais seres não se diz que vivem? Então, é possível dizer-se que
morrem e, se morrem por violência, são assassinados? Por isso diz o Apóstolo, falando de
sementes: Nada do que semeais poderia viver, se antes não morresse. E lemos no salmo: Matou-
lhes os vinhedos por meio do granizo. Quer dizer que a palavra da lei: Não matarás transforma em
crime para nós o arrancarmos qualquer arbusto? E seremos insensatos ao extremo de perfilhar o
erro de Mani 281? Se, por conseguinte, rejeitando semelhantes devaneios, não aplicamos o
preceito às plantas desprovidas de sensibilidade, nem aos animais faltos de inteligência, aos quais
a carência da razão interdiz qualquer sociedade conosco (donde se segue que justo desígnio da
Providência pôs a vida e a morte deles à disposição de nossas necessidades), já não teremos de
entender senão do homem a palavra da lei: Não matarás pessoa alguma nem mesmo a ti. Com
efeito, quem se mata não é matador de homem?” (AGOSTINHO, A Cidade de Deus, op.cit., p. 50-
1).
282
“Os animais, nos quais existe alma racional, dizem, dividem-se em três classes: deuses,
homens e demônios.” (Ibid., p. 317)
283
Ibid., p. 320.
- 91 -
racionais”, insiste-se que “os deuses ocupam a região mais elevada; os homens,
a mais humilde; os demônios a do meio. Com efeito, a mansão dos deuses é o
céu; a dos homens, a terra; a dos demônios, o ar. Como é diferente a dignidade
dos lugares, assim o é a das naturezas. Por isso, os deuses são melhores que os
homens e os demônios; os homens são inferiores aos deuses e aos demônios.
Segundo a ordem de elementos, assim a diferença de méritos.”284
Entre os seres que têm algo de ser e não são o que é Deus, seu autor,
os viventes são superiores aos não viventes, como os que têm força
generativa ou apetitiva aos que carecem de tal faculdade. E, entre os
viventes, os sencientes são superiores aos não sencientes, como às
284
Ibid., p. 317.
285
Para AGOSTINHO, o fato de os animais possuírem “vantagens corporais” não os torna
melhores que os humanos, pelo contrário: “[...] Fora assim e teria de pospor-se a muitos outros
animais que se nos avantajam na viveza dos sentidos, em movimento mais leve e fácil, em força
muscular e na robusta firmeza do corpo. Que homem igualará, na vista, às águias e aos abutres?
Quem, no olfato, aos cães? Quem, na velocidade, às lebres, aos cervos e a todas as aves? Quem,
na força, aos leões e aos elefantes? Quem, na longevidade, às serpentes, que, ao mudarem o
couro, dizem que depõem a velhice e tornam à juventude? Mas, assim como, pelo entendimento e
pela razão, somos superiores a todos os animais [...] Por isso a providência divina deu aos
animais, a que somos, sem dúvida, superiores, certas vantagens corporais ensinando-nos, assim,
a cultivar, de preferência ao corpo, a parte de nós mesmos que nos torna superiores aos animais e
a desprezar, pela perfeição moral que nos torna superiores aos demônios, a perfeição corporal
que os demônios possuem” (Ibid., p. 319).
286
AGOSTINHO apud ATTIÉ, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade,
Diversidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. p. 103.
- 92 -
árvores os animais. Entre os sencientes, os que têm inteligência são
superiores aos que não a têm, como aos animais os homens. E, ainda,
entre os que têm inteligência, os imortais são superiores aos mortais,
como aos homens os anjos. Tal gradação parte da ordem de natureza
287
.
287
AGOSTINHO. , op. cit., 35 e 36.
288
A obsessão classificatória coloca o teólogo em apuros quando confronta as teorias
classificatórias clássicas com aquelas por ele propostas, criando conflitos aparentemente
insolúveis. Veja-se: “A própria ordem e harmonia que Platão estabelece nos quatro elementos,
inserindo entre os dois extremos (a atividade do fogo e a inércia da terra) os dois meios (o ar e a
água), para que, quanto o ar fica acima da água e o fogo acima do ar, tanto fique a água acima da
terra, ensina-nos, na apreciação moral dos seres vivos, a não seguir a hierarquia dos elementos.
O próprio Apuleio, como os demais platônicos, antepõe o homem, animal terrestre, aos animais
aquáticos, apesar de Platão preferir a água à terra. Evidentemente, quando se trata de julgar o
valor dos seres animados, convém a gente não apoiar-se na escala graduada dos corpos, pois
alma superior pode habitar corpo inferior e corpo superior pode ser habitado por alma inferior.”
(Ibid., op.cit., p. 320).
289
Ibid., p. 36.
- 93 -
Seguindo cegamente os estóicos, AGOSTINHO priva os animais
não-humanos do campo das emoções, e, conseqüentemente, de qualquer
capacidade de raciocínio. A adaptação dos dogmas aristotélicos e estóicos para o
pensamento cristão mais uma vez excluiu os animais da possibilidade de
integrarem uma comunidade de direitos e os polariza em uma relação de nítida
inferioridade290.
290
Em outros momentos AGOSTINHO também explicita a noção de dominação e de
superioridade do homem frente às demais criaturas: “Assim, a criação do Sol, da Lua e das
estrelas e a criação da água, dos animais, aves, peixes e cetáceos; assim, a dos animais que se
arrastam e rastejam na terra e a do homem, que supera todos os seres da terra.” (Ibid., p. 51;
grifos nossos); “Quanto ao mais, é ridículo pensar serem condenáveis os defeitos dos animais
irracionais, árvores e outros seres mutáveis e mortais privados de entendimento, sentido, ou vida,
defeitos que fazem com que sua natureza dissolúvel esteja sujeita à corrupção. [...] Quando,
perecendo alguns seres, nascem outros, para ocupar os lugares que correspondiam àqueles, e os
inferiores sucumbem ante os superiores e os vencidos se transformam em qualidades dos
vencedores, então se dá a ordem dos seres transitórios.” (Ibid. p. 65; grifos nossos); “Se digo que
existiram sempre as criaturas para dominá-las quem é sempre senhor e nunca deixou de
sê-lo, mas umas agora e depois outras, a intervalos, com o propósito de não admitir criatura
alguma coeterna com o Criador [...]” (Ibid., p. 78; grifos nossos); “Quanto ao homem, chamado,
por criação, natural, a ocupar lugar entre os anjos e os irracionais, Deus criou apenas um.”
(Ibid., p. 88; grifos nossos); “Deus fez o homem à sua imagem e deu-lhe alma, dotada de razão e
inteligência, que o tornava superior a todos os restantes de animais terrestres, nadadores e
voadores, destituídos de mente.” (Ibid., p. 89, grifos nossos);
291
ARISTÓTELES, Politics, op.cit., p. 1994.
- 94 -
nós e as bestas e árvores, Ele mandou os demônios para um manada de porcos
e amaldiçoou uma árvore que não dava frutos.”292
292
Conforme verificado anteriormente, o episódio dos porcos encontra-se relatado em Mc 5, 2-13
e o da árvore em Mt 21, 19 e também em Mc 11, 13-14.
293
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Bragança Paulista: São Francisco, 2003.
294
BANDEIRA DE ARAÚJO, op.cit., p. 132.
- 95 -
antigo e o medieval295. A sua obra e a sua doutrina influenciam de maneira
decisiva a filosofia vindoura.
295
BOÉCIO (470-525) também não pode ser olvidado como importante para esta transição entre o
mundo antigo e o medieval. São suas as mais antigas traduções latinas dos escritos aristotélicos.
296
Interessante perceber que justamente SÃO BASÍLIO destaca-se como um dos poucos filósofos
cristãos a se preocupar com a condição dos animais. Uma oração escrita por ele incentiva o
comprometimento com os animais: “The Earth is the Lord´s and the fullness thereof. O God,
enlarge within us the sense of fellowship with all living things, our brothers the animals to whom
thou has given the earth as their home in common with us. We remember with shame that in the
past we have exercised the high dominion of man with ruthless cruelty, so that the voice of the
earth, which should have gone up to Thee in song, has been a groan of travail. May we realize that
they live, not for us alone, but for themselves and for Thee, and that they love the sweetness of life”
(BASÍLIO apud RYDER, op.cit., p. 12). A visão usual de que SÃO FRANCISCO DE ASSIS (1182-
1226) inicia uma “tradição” de compaixão para com toda a criação é equivocada. Ele é importante,
mas um dos últimos a se debruçar sobre o tema. Antes dele, SANTO ISAAC, o Sírio, respondendo
à questão do que seria um coração misericordioso, afirma que: “It is a heart which is burning with
love for the whole creation, for men, for the birds, for the beasts [...] for all creatures. He who has
such a heart cannot see or call to mind a creature without his eyes being filled with tears by reason
of the immense compassion which seizes his heart; a heart which is softened and can no long bear
to see or learn from others of any suffering, even the smallest pain being inflicted upon a creature.
That is why such a man never ceases to pray for the animals […] He is moved by the infinite pity
which reigns in the hearts of those who are becoming united with God” (apud RYDER, Richard,
op.cit., p. 11). A SÃO CRISÓSTOMO (347-407) é atribuída a passagem: “The Saints are
exceedingly loving and gentle to mankind and even to brute and beasts […] Surely we ought to
show them great kindness and gentleness for many reasons, but above all, because they are the
same origin as ourselves” (CRISÓSTOMO apud RYDER, op.cit, p. 12). SÃO FRANCISO DE
ASSIS de fato, também pleiteava a extensão da compaixão para com todas as criaturas. Segundo
afirma: “Se ao menos eu pudesse ser apresentado ao imperador, rogaria, pelo amor de Deus, e
por mim, que emitisse um edital proibindo a todos de pegar ou prender minhas irmãs, as cotovias,
e ordenando a todos os que possuem um boi ou burro que os alimentassem particularmente bem
no Natal” (ASSIS apud SINGER, op.cit., p. 223). O seu deleite com os animais não o impedia,
contudo, de abraçar o antropocentrismo na medida em que afirma que “Toda criatura proclama:
‘Deus fez-me para te servir, ó homem.” (Ibid., p. 223). Neste sentido, talvez seja por isso que o seu
amor pelos bichos não parece tê-lo impedido de comê-los quando elaborou as normas de conduta
para os frades na ordem que fundou.
297
As suas principais obras são o tratado Sobre a Formação do Homem, conhecido na Idade
Média sob o título De hominis opficio; o Comentário sobre o Cântico dos Cânticos e sobre as oito
Beatitudes, e o Diálogo com Macrina sobre a Alma e a Imortalidade.
- 96 -
[...] abaixo dele (do homem) escalonam-se os animais, que possuem
apenas a sensibilidade, o movimento e a vida; depois, os vegetais, que
não possuem uma alma perfeita, pois só podem crescer e nutrir-se;
enfim, os corpos inanimados, desprovidos de força vital [...] O homem
contém em si todos os graus da vida: ele vegeta como as plantas, move-
se e percebe como os animais, e raciocina porque é homem.298
298
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 68.
299
Ibid., p. 68.
300
“E disse-lhes: ‘Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e
for batizado será salvo; o que não crer será condenado’”.
301
Neste sentido, podemos encontrar no texto bíblico algumas passagens que ilustram a
concessão de caráter moral a seres não-humanos, como consagrado no episódio da “jumenta de
Balaão”, encontrado em Números 22, 22-35, do qual se lê: “A sua partida excitou a ira de Iahweh e
o Anjo de Iahweh se colocou na estrada, para barrar-lhe a passagem. Ele montava a sua jumenta,
e os seus dois servos o acompanhavam. A jumenta viu o Anjo de Iahweh parado na estrada, com
a sua espada desembainhada na mão; desviou-se da estrada, em direção ao campo. Balaão,
contudo, espancou a jumenta para fazê-la voltar à estrada. O Anjo de Iahweh se pôs então em um
caminho estreito, no meio das vinhas, com um muro à direita e outro muro à esquerda. A jumenta
viu o Anjo de Iahweh e encostou-se ao muro, apertando neste o pé de Balaão. Ele tornou a
espancá-la outra vez. O Anjo de Iahweh mudou de lugar e se colocou em uma passagem
apertada, onde não havia espaço para passar nem à direita nem à esquerda. Quando a jumenta
viu o Anjo de Iahweh, caiu debaixo de Balaão. Balaão ficou enfurecido e espancou a jumenta a
golpes de bordão. Então Iahweh abriu a boca da jumenta e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, pare
me teres espancado já por três vezes?’ Balaão respondeu à jumenta: ‘É porque zombaste de mim!
- 97 -
[...] no caráter parcelar e incompleto do esforço iconoclástico contra os
‘ídolos pagãos’, que deixou ainda a iconografia cristã repleta de animais
nos mais diversos degraus da hierarquia teológica – num culto que
abomina o ‘Bezerro de Ouro’ mas venera o Messias como ‘Cordeiro de
Deus’, que deixa o leão simbolizar São Marcos, a águia o apóstolo São
João, que se coenvolve em infinitas ‘nuances’ animistas e panteístas, até
o sabor de ritos locais, que transforma athleta Dei São Cristóvão, um
gigante cinocéfalo e antropófago, que adota a fábula de Androcles e do
leão como episódio da vida de São Jerônimo, que admite que São
Roque tenha sido alimentado por um cão, que multiplica exemplos de
‘patronos de animais’ na sua hagiografia.
Se eu tivesse uma espada na mão já te haveria matado.’ Disse a jumenta a Balaão: ‘Não sou eu a
tua jumenta, que te serve de montaria toda a vida e até o dia de hoje? Tenho o costume de agir
assim contigo?’ Respondeu ele: ‘Não’. Então Iahweh abriu os olhos de Balaão. E viu o Anjo de
Iahweh parado na estrada, tendo a sua espada desembainhada na mão. Inclinou-se e se prostou
com a face em terra. Disse-lhe o Anjo de Iahweh: ‘Por que espancaste assim a tua jumenta, já por
três vezes? Sou eu quem vim barrar-lhe a passagem; pois com a minha presença o caminho não
pode prosseguir. A jumenta me viu e, devido à minha presença ela se desviou por três vezes. Foi
bom para ti que ela se desviasse, pois senão já te haveria matado. A ela, contudo, teria deixado
com vida.”
302
O termo Idade Média é tido como originariamente cunhado por FRANCESCO PETRARCA
(1304-1374), que introduziu o vocábulo medium aevum para designar o período histórico de
transição entre a Antiguidade Clássica e os novos tempos. De acordo com DANILO
MARCONDES, “podemos dividir o período medieval em duas fases totalmente distintas do ponto
de vista filosófico e cultural. A primeira corresponde ao período que se segue à queda do Império
Romano (séc. V) praticamente até os sécs. IX-X, quando a situação política e econômica começa
a se estabilizar. A fase final (sécs. IX-XV) equivale ao desenvolvimento da escolástica e à grande
produção filosófica que se dá com a criação das universidades (séc. XIII, até a crise do
pensamento escolástico e o surgimento do humanismo renascentista (sécs. XV-XVI)” (op.cit., p.
103). É, pois, normalmente associada ao fim do Império Romano do Ocidente (século V) até à
ascensão das monarquias nacionais e o início do repovoamento demográfico e reestruturação
económica após a Peste Negra, os Descobrimentos Marítimos e o ressurgimento da cultura
clássica conhecido precisamente como Renascimento, por volta do século XV, bem como a
Reforma Protestante, ocorrida em 1517. Alguns historiadores mencionam a tomada de
Constantinopla pelos turcos (1453 d.C.) como marco de fim deste período.
- 98 -
1.5.1. O Poder Eclesiástico
“I do not like animals. Of any sort. I don’t even like the idea of animals.
Animals are no friends of mine. They are not welcome in my house. They
occupy no space in my heart. Animals are off my list [...]”304
- 99 -
famílias e possuíam personalidade própria. Como se verá mais adiante, eram até
mesmo eventualmente processados e condenados em nome próprio pela prática
de crimes.
307
“Por isso, vemo-las aparecerem numa espécie de hierarquia, cada uma no lugar que sua
perfeição própria lhe atribui [...]. Entre os seres assim produzidos, a maioria não tem outra história
além daquela que sua essência lhe atribui. Eles só podem ser o que são e como são. Outros, ao
contrário, são capazes de determinar em certa medida a posição que ocuparão na hierarquia dos
seres. Isso também é eternamente previsto e querido” (MÁXIMO apud GILSON, op.cit., p. 92).
308
BOÉCIO apud GILSON, op.cit., p. 165.
- 100 -
submeter o poder político e secular do imperador ao poder religioso e de
recuperar a unidade territorial e política do Império Romano. A vinculação à
Antiguidade greco-romana e ao papel e influência da Igreja são marcantes no
período.309 A partir dos séculos XI e XII, a filosofia medieval passou a ser
designada por escolástica310. A difusão da filosofia ocorre graças aos mosteiros
que mantinham escolas para formação do clero, sendo utilizada basicamente
como forma de legitimar e de justificar questões religiosas e teológicas311.
309
O monge ALCUÍNO DE YORK (730-804) e o teólogo JOÃO ESCOTO ERÍGENA (810-870) são
figuras proeminentes nesta época.
310
Escolástica no sentido de vinculação a determinada escola de pensamento.
311
Exemplo disso é a construção do argumento ontológico por SANTO ANSELMO, monge
beneditino que propunha provar a existência de Deus por meio da passagem do campo lógico-
semântico para o campo ontológico, ou seja, entendido o conceito não se poderia deixar de aceitar
a existência desse ente supremo. Há uma nítida tentativa de conciliação entre razão e fé, típica do
pensamento escolástico.
312
ERÍGENA apud GILSON, op.cit., p. 258.
- 101 -
Não se pode deixar de observar o caráter neoplatônico de um
universo em que os seres vivos são valorados de acordo com as formas de que
cada um deles participa.313
[...] a qual ninguém pode recusar. Para por em dúvida que o cavalo é
superior à árvore, ou que o homem o é ao cavalo, seria preciso não ser
um homem. Ora, se não se pode negar que as naturezas sejam
superiores umas às outras, há de se admitir ou que existe uma infinidade
de seres e que nunca se encontra um ser tão perfeito que não haja outro
ainda mais perfeito, ou que há um número finito de seres e, por
conseguinte, um ser mais perfeito que todo o resto. Ora, não se afirmará
que existe uma infinidade de seres, pois é absurdo, e só alguém
demasiado absurdo poderia sustentar tal coisa. Portanto, existe
necessariamente uma natureza que é superior às outras sem ser inferior
a nenhuma. Resta, é verdade, a hipótese de várias naturezas iguais
situadas no ápice da hierarquia universal. Mas, se elas são iguais, elas o
são pelo que têm em comum, e se o que têm em comum é sua essência,
na realidade são uma só natureza, superior a elas, e que, por sua vez, é
mais perfeita que todas.314
313
De acordo com a interpretação cosmogônica de SALOMÃO GABIROL (1021-1058), “o que
distingue um corpo particular de outro corpo particular é uma ou várias formas complementares,
em virtude das quais ele é determinado como simples mineral, como planta, animal, ou homem.
Portanto, há em todo ser composto, como se dirá mais tarde, ‘pluralidade das formas’, todos os
seres criados se encaixando, por assim dizer, uns nos outros de acordo com o grau de
generalidade das formas que os determinam. Podem-se distinguir nove graus principais nessa
ordem segundo a qual os seres subsistem uns nos outros. Em primeiro lugar, todos residem e
subsistem na ciência de Deus; em segundo lugar, as substâncias simples umas nas outras; em
quarto lugar, os acidentes simples nas substâncias simples; em quinto lugar, a quantidade na
substância ; em sexto, as superfícies nos sólidos, as linhas nas superfícies e os pontos nas linhas;
em sétimo, as cores e as figuras nas superfícies; em oitavo, as partes dos corpos homogêneos
uns nos outros; em nono, todos os corpos uns nos outros, e é esse seu modo comum de
existência que se conhece sob o nome de lugar” (GABIROL apud GILSON, op.cit., p. 456-57).
314
CANTUÁRIA apud GILSON, op.cit., p. 296.
- 102 -
No mesmo sentido, temos o posicionamento de PEDRO
ABELARDO315 (1079-1142), JOÃO DE SALISBURY316 (1110-1180), e ALBERTO
DE BOLLSTADT317 (1206-1280). A Europa dos séculos XI a XIII começa a sofrer
intensas e significativas transformações. Surgem núcleos urbanos importantes
devido à migração do campo em razão da crise agrícola. As futuras cidades-
estado italianas como Florença, Bolonha, Milão, entre outras, já começam a se
desenhar, em um movimento de ruptura com o “Antigo Regime”. A atividade
artesanal e comercial permite a acumulação de riqueza, ao contrário do que
ocorria no regime feudal, no qual a estagnação social era imperativa. Os artesãos
começam a se organizar nas corporações do ofício, antecipando as profundas
transformações nos séculos vindouros. A criação das ordens religiosas
(franciscanos e dominicanos) e o surgimento das universidades surgem em um
movimento concatenado. De fato, as universidades têm suas raízes no
desenvolvimento das escolas das abadias e catedrais. A demanda por educação
aumenta justamente em conseqüência do crescimento destes núcleos urbanos318.
315
“[...] o que a experiência atesta é que as espécies são realmente distintas umas das outras;
ora, elas não poderiam sê-lo se possuíssem em comum o mesmo gênero. Se o mesmo universal,
‘animal’, existe realmente e por inteiro na espécie ‘homem’ e na espécie ‘cavalo’, o mesmo animal
que é racional na espécie homem é não-racional na espécie cavalo. Assim, uma só coisa é, ao
mesmo tempo, ela mesma e seu contrário, o que é impossível” (ABELARDO apud GILSON,
op.cit., p. 345).
316
“os animais dão prova de certa inteligência, ora, o homem é mais inteligente que o animal, logo,
é falso que sejamos incapazes de conhecer o que quer que seja. Na realidade, podemos haurir
conhecimentos certos de três fontes diferentes: os sentidos, a razão e a fé. Quem não tem um
mínimo de confiança em seus sentidos é inferior aos animais [...]” (SALISBURY apud GILSON,
op.cit., p. 335).
317
“a vida normal de um ser verdadeiramente humano é atualizar assim seu intelecto possível,
elevando-se progressivamente do sensível aos conhecimentos inteligíveis mais elevados [...]. Os
que não se preocupam em conhecer, mas passam a vida como simples intelectos possíveis, não
vivem como homens, vivem como porcos” (BOLLSTADT apud GILSON, op.cit., p. 638).
318
No final do século XII já havia surgido a Universidade de Bolonha (1088) e a de Salerno (1050).
Em 1214 surgiu a Universidade de Paris, seguindo-se a de Oxford, Toulouse, Cambridge, etc.
- 103 -
1.5.2. A Filosofia Tomista
MIGUEL TORGA
319
TORGA apud ARAÚJO, op.cit., p. 116.
320
AERSTEN, Jan. Filósofos da Idade Média. São Leopoldo: Unisinos, 2000. p. 251-52.
321
TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, Pt. II, i, c.3, a.8.
- 104 -
ressalta que a perfeição de todas as coisas reside na sua proximidade e em sua
semelhança com Deus. Nesse particular, o homem seria a criatura que estaria
mais próxima a essa alegada condição de perfectibilidade deiforme.
322
AQUINO apud GILSON, op.cit., p. 666.
323
Cf. Bíblia de Jerusalém, Rm 13,2.
- 105 -
(ARISTÓTELES) afirma que a caça de animais selvagens é justa e
natural, porque o homem ao assim fazê-lo, exerce um direito natural. Em
segundo lugar, é provado pela ordem da divina providência que as
coisas inferiores são governadas pelas superiores. Na qualidade de
homens, feitos à imagem de Deus, somos superiores a eles, que estão
justamente submetidos a nosso jugo 324.
Não há pecado em usar algo para o fim a que se destina. Ora, a ordem
das coisas é tal que o imperfeito é feito para o perfeito [...] Assim, coisas
como plantas, que meramente têm vida, são para os animais, e todos os
animais são para o homem. Portanto, não é proibido aos homens utilizar
plantas para o bem de animais, e animais para o bem do homem, como
afirma o Filósofo325 (Política, I, 3).
324
AQUINO, Tomás. The Summa Theologiae of St. Thomas Aquinas. Translated by Fathers of the
English Dominican Providence. London: Barnes, Oates and Washbourne, 1922, 7a, Question 96.
Tradução nossa.
325
SÃO TOMÁS considerava ARISTÓTELES tão relevante que a ele simplesmente se referia
como “o Filósofo”.
326
AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 220.
- 106 -
os seres “mais perfeitos” (homens) poderiam fazê-lo por consistir tal fato em ato
de justiça. Todavia, o inverso não é verdadeiro, ou seja, os seres humanos,
porque dotados de razão, podem matar para se alimentarem, mas os animais, ao
fazê-lo cometem ato de “selvageria” e “brutalidade”:
327
AQUINO, Tomás. Tratado da Justiça. Portugal: Coleção Resjurídica, p. 104, apud DIAS, op.cit.
p. 31-2.
328
A única concessão que TOMÁS de AQUINO faz com relação aos animais é a de que
deveríamos evitar a crueldade para com eles, pois ela pode levar à crueldade com seres
humanos: “Ora é evidente que se um homem sente afeição piedosa pelos animais, estará mais
inclinado a sentir piedade por seus semelhantes, razão pela qual está escrito: ‘O justo olha pela
vida de seus animais.’ (Provérbios 12, 10)” (AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 221).
329
AQUINO apud SINGER, op.cit., p. 221.
- 107 -
Conforme assinala FERNANDO ARAÚJO, também na Summa
Contra Gentiles São Tomás de Aquino, retomando um entendimento já
consagrado em Orígenes e em Santo Agostinho, se afadiga na demonstração que
a Providência Divina deu preferência às criaturas racionais sobre as demais, dado
que aquelas sobressaem na “perfeição da sua natureza” e na “excelência dos
seus fins”. As criaturas racionais são causa sui, as demais são geradas como
escravas das criaturas livres, como se demonstraria através das dotações
naturais com que são providas pelo Criador. E daí a ilação de que seria de refutar
a opinião daqueles que julgavam ser pecado matar animais irracionais330.
330
ARAÚJO, op.cit., p. 55.
331
SINGER, op.cit., p. 222.
332
Foi apenas em 1988 que surge uma afirmação piedosa para com os animais no âmbito do
catolicismo. Na encíclica Solicitudo Rei Socialis (Sobre a Solicitude Social), João Paulo II prega o
“respeito pelos seres que fazem parte do mundo natural”, afirmando que: “O domínio conferido ao
homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem pode alguém falar de uma liberdade para ‘usar
e abusar’ ou dispor das coisas como lhe aprouver [...] Quando se trata do mundo natural, estamos
sujeitos não apenas a leis biológicas, mas também a leis morais, que não podem ser
transgredidas impunemente.”
- 108 -
1.5.3. A Reforma Protestante
“We know less of what that other world is like than this little girl knows of
the empires or powers of this world. But of this we are sure, the world to
come will be no empty, lifeless waste […] God will make new heavens
and a new earth. All poisonous and malicious and hurtful creatures will be
banished there, all that our sin has ruined. All creatures will not only be
harmless, but lovely and joyful, so that we might play with them. The
suckling child play on the hole of the asp and the weaned child shall put
his hand on the cockatrice´s den. Why, then, should there not be little
dogs in the new earth, whose skin might be as fair as gold, and their hair
as bright as precious stones.”333
MARTINHO LUTERO
333
LUTERO apud PRICE, Rod (ed.). Awe For The Tiger, Love For The Lamb: A Chronicle of
Sensibility to Animals. London: Routledge, 2002. p. 95.
334
A Reforma Protestante é caracterizada por constituir um movimento de renovação evangélica
surgido na Alemanha no século XVI, insurgindo-se contra o papado e a igreja de seu tempo. Duas
são as bases da doutrina luterana: (a) as pessoa se medem por sua fé e são salvas não por seus
atos, mas pela graça divina; (b) a autoridade da Bíblia é superior à autoridade do papa, pois ela é
a fonte originária da palavra de Deus.
335
LUTERO apud PASSMORE, op.cit., p. 22.
- 109 -
por não verem a vida maravilhosa que Deus deu a vocês comparada à
nossa 336.
336
LUTERO. Disponível em: <http://www.lutero.com.br>. Acesso em: 09 set. 2005.
337
SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Insultar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 41-2.
338
SCHOPENHAUER, Arthur. The Basis of Morality. Dover Publications, 2005, p. 118.
- 110 -
Não foi somente o filósofo alemão a perceber a pesada influência da
religião sobre a maneira com que tratamos os animais. Em 1900, WILFRID
SCAWEN BLUNT (1840-1922) também imputou ao cristianismo a culpa “pela
cruel teoria de que animais e pássaros foram feitos exclusivamente para uso e
prazer do homem, e de que este não tinha deveres diante daqueles.”339 Na
mesma linha, o teólogo de Oxford HASTINGS RASHDALL (1858-1924) também
atribuía a indiferença dos filósofos com relação ao tratamento cruel dos animais a
“preconceitos de origem teológica”.340
MICHELET
339
BLUNT, Wilfrid Scawen. My Diaries, 1932, p. 343, apud THOMAS, op.cit., p. 28.
340
RASHDALL, Hastings. The Theory of Good and Evil, 1924, p. 214, apud THOMAS, op.cit., p.
28.
341
MICHELET apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 236.
- 111 -
antiguidade, o primeiro século, o século feudal da colonização é nossa indecisa
idade média” 342.
342
ROMERO, Sylvio. A Historia do Brazil ensinada pela biographia dos seus heroes, p. 19, apud
JUNIOR, Martins. História do Direito Nacional. Pernambuco: Cooperativa Editora e de Cultura
Intelectual de Pernambuco, 1941, 2ª edição (edição original de 1895). p. 147.
343
A famosa carta de PERO VAZ DE CAMINHA ao el-Rey Dom Manuel já prenunciava os
objetivos exploratórios dos colonizadores: “Esta terra, Senhor, me parece tamanha, toda cheia de
grandes arvoredos. Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma
cousa de metal, nem de ferro, nem lho vimos. A terra, porém, em sim, é de muitos bons ares.
Águas são muitas, infindas. Mas o melhor fruto que nele se pode fazer me parece que será salvar
esta gente.”
344
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais: o Direito deles e o nosso Direito sobre eles.
Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 1998. p. 37.
345
MARTINS JUNIOR, op. cit., p. 144.
- 112 -
Pisando, pois, em solo pátrio, na qualidade de colônia portuguesa, o
Brasil viu transplantados para sua realidade a legislação e os institutos então
vigentes na metrópole. Em um primeiro momento, aplicaram-se as Ordenações
Manoelinas346 e, a partir de 1603, até o início do séc. XIX, estiveram em vigor as
Ordenações Filipinas.
346
O Direito português, ultrapassando a sua fase dos períodos foraleiro e das denominadas Leis
Gerais, entra em sua fase orgânica, consubstanciada na tríplice codificação Affonsina, Manoelina
e Filipina. Sinteticamente, podemos dizer que as Ordenações Affonsinas vigoraram de 1446 a
1490, enquanto que as Manoelinas vigeram desta última data até 1603, quando, sob o domínio
espanhol (1580-1640) foram editadas as Ordenações Philippinas
347
As “Ordenações e Leis do Reino de Portugal, recopiladas pelo mandado do mui alto, católico e
poderoso rei Dom Philipe, o primeiro” foram promulgadas, como o próprio título sugere, pelo
monarca espanhol e constituíram um verdadeiro código legal para Portugal e, por transplante,
para o Brasil, até o início do século XIX. O Livro V das Ordenações destina-se a compilar a
legislação penal e processual penal da época.
348
“Título IV – Dos que benzem cães ou bichos sem autoridade Del-Rey ou dos prelados.
Defendemos que pessoa alguma não benza cães ou bichos nem outras alimárias, nem use disso
sem primeiro haver nossa autoridade ou dos prelados para o poder fazer. E que o contrário fizer,
seja publicamente açoitado se for peão; e pague mil réis para quem o acusar. E se for escudeiro
ou daí para cima, seja degredado por um ano para a África e pague dois mil réis para quem o
acusar. E sendo mulher será degredada por dois anos para Castro-Marim e pagará os ditos dois
mil réis.”
349
“Título XIII – Dos que cometem pecado de sodomia e com alimárias.
[...] 2. Outrossim qualquer homem ou mulher que carnalmente tiver ajuntamento com alguma
alimária, seja queimado e feito em pó.”
- 113 -
apregoam”350, “Dos que cortam árvores de fruto ou sovereiros ao longo do
Tejo”351, “Dos que compram colméias para matar abelhas e dos que matam
bestas”352 e “Das caças e pescarias defesas”353.
350
“Título LXII – Da pena que haverão os que acham escravos,aves ou outras coisas e as
não entregam a seus donos nem as apregoam.
[...] 3. E todo aquele que achar ave alheia ou outra qualquer coisa, tanto que souber cuja é, lhe
entregue logo, posto que requerido não seja. E não a entregando e usando dela sem vontade de
seu dono, seja constrangido que lhe torne e mais seja punido como se a princípio lha furtara. E
não sabendo cuja é, a mandará apregoar por espaço de trinta dias em lugares públicos e
costumados. E não mandando apregoar e usando dela depois do dito tempo, seu dono lha poderá
demandar, e lhe será julgada; e será outrossim punido de furto. E vindo seu dono a demandar
essa coisa achada, no caso, onde o achador não cometeu furto, pagará primeiro ao achador todas
as custas e despesas que fez por achar e guardar essa coisa que achou. E mais, se for caçador,
pagar-lhe-á achadego, convém a saber do açor prima cem réis e, pelo açor terçó e falcão prima
cinqüenta réis, e por gavião prima vinte réis.
[...] 5. E se algum achar lobo ou ave caçador que leve preso algum cordeiro ou outra coisa
alguma, e lha tolher com seus cães ou por outro qualquer modo, mandamos que a torne a seu
dono, sem outro algum achadego, e devem-lhe ser pagas as despesas que fez por tolher a coisa.
E não querendo tornar isso que assim tolheu e retendo-o forçosamente contra a vontade de seu
dono, seja havido por cometedor de furto.
[...] 6. E o que achar alguma ave ou alimária fera em laço ou em cepo que outrem armasse em
lugar que, segundo direito e costume, se devem armar, deve entregar isso que achou em laço
alheio, sem outro achadego.”
351
“Título LXXV – Dos que cortam árvores de fruto ou sovereiros ao longo do Tejo.
O que cortar árvore de fruto, em qualquer parte que estiver, pagará a estimação dela a seu dono
em tresdobro. E se o dano que assim fizer nas árvores for valia de quatro mil réis, será açoitado e
degredado quatro anos para a África. E se for valia de trinta cruzados, e daí para cima, será
degradado para sempre para o Brasil.
1. E mandamos que pessoa alguma não corte nem mande cortar sovereiro, carvalho, ensinho,
machieiro por o pé, nem mande fazer dele carvão nem cinza; nem escasque nem mande escascar
nem cernar alguma das ditas árvores de onde entra o rio Elga no termo da vila do Rosmaninhal
até a vila de Abrantes e daí até a foz do rio de Lisboa, nem até dez léguas do Tejo, contadas dele
para ambas as bandas do sertão, desde onde se mete o rio Sever no termo de Montalvão até a
foz do rio de Lisboa, e donde se mete o rio Elga até onde entre o rio Sever. As quais dez léguas se
contarão da banda de Portugal somente. E fazendo o contrário vá degregado quatro anos para a
África e pague cem cruzados, e perca o carvão e cinza, a metade para quem o acusar e outra
para os Cativos. E se for peão, seja além disso, açoitado. Porém, os que tiverem sovereiros
próprios os poderão cortar, não sendo para carvão ou cinza; e cortando-os para isso incorrerão
nas ditas penas. E os juízes dos lugares dos ditos limites tirarão disso devassa ao tempo que tiram
a devassa geral e procederão contra os culpados, como for Justiça.”
352
“Título LXXVIII – Dos que compram colméias para matar abelhas e dos que matam
bestas.
Mandamos que se alguma pessoa comprar alguma colméia ou colméias para somente se
aproveitar da cera e matar as abelhas, se for peão, seja açoitado, e se for pessoas que não
caibam açoites, será degredado dois anos para a África. E assim o que for açoitado, como
degredado, pagará em dobro tudo o que valiam as colméias que assim comprou, de que matou as
abelhas, a metade para quem o acusar e a outra para os Cativos.
1. E a pessoa que matar besta de qualquer sorte que seja, ou boi ou vaca alheia por malícia, se
for na vila ou em alguma casa, pague a estimação em dobro, e se for no campo, pague o
tresdobro, e todo para seu dono: e sendo o dano de quatro mil réis, seja açoitado e degredado
- 114 -
As circunstâncias históricas de cada um dos diversos períodos por
que passou nossa colonização revelam uma intensa devastação do meio
ambiente que, infelizmente, perdura até os dias de hoje, fruto desta mesma
ideologia de superioridade e dominação.
“O Senhor Deus não trouxe até nós as criaturas para nosso benefício e
para serem usadas conforme nos pareça melhor para o nosso bem? [...]
Não é guardar a lei usar essas tolas criaturas de tal forma que possam
servir melhor ao nosso benefício, o que eu considero ser o seu uso
correto e a finalidade para a qual foram criadas?”
BURNET (1753)356
quatro anos para a África. E se for de valia de trinta cruzados e daí para cima, será degredado
para sempre para o Brasil.”
353
“Título LXXXVIII – Das caças e pescarias defesas.
Defendemos geralmente em nosso Reino que pessoa alguma não mate, nem cace perdizes,
lebres, coelhos com boi, nem com fio de arames, nem com outros alguns; nem tome, nem quebre
ovos das perdizes, sob pena de pagar da cadeia dois mil réis de cada vez que nisso for achado,
ou lhe for provado dentro de dois meses, e mais perder as armadilhas. Nas quais penas isso
mesmo incorrerão as pessoas em cujo poder ou casas forem achadas as armadilhas, ora sejam
suas, ora alheias [...]
[...] 6. E defendemos que pessoa alguma não pesque em rios nem em lagoas de água doce com
rede, cóvãos, nassas, tesões, nem por outro algum modo nos meses de março, abril e maio,
somente poder-se-á pescar à cana com anzol [...]”
354
Consoante a exposição de HEGEL (1770-1831), o que convencionalmente chamamos de
“moderno” refere-se ao período entre os séculos XVII e XIX. Todavia, vale lembrar que já no
século XIV, GUILHERME DE OCKHAM (1284-1349) e seus seguidores eram conhecidos como os
defensores da via moderna na lógica e metafísica, enquanto que nos primeiros séculos do
cristianismo também já havia a oposição entre os antiqui (aqueles que viveram antes de Cristo) e
moderni.
355
LEVETT, The Ordering of Bees (1634) apud THOMAS, op.cit., p. 27.
- 115 -
1.6.1. Rupturas com o “Antigo Regime”
“A primavera hoje chega sem ser anunciada pelo retorno dos pássaros e
as manhãs são estranhamente silenciosas.”357
356
BURNET, Archeologia Philosophica, Londini, 1733, p. 415, apud ROSSI, op.cit., p. 255.
357
CARSON apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 385.
358
MARCONDES, op.cit., p. 139.
359
A expressão “Antigo Regime” foi originariamente utilizada nos idos de 1790 para rotular as
instituições e práticas da época anterior à Revolução Francesa como intrinsecamente injustas e
confusas. Neste sentido ARNO WHELING nos ensina que “a projeção, no plano institucional, dos
modelos político-administrativos posteriores à Revolução Francesa, gerando anacronismos e
incompreensões sobre o estado do Antigo Regime. Essa projeção deve-se, sobretudo, às críticas
feitas pelos liberais e socialistas no século XIX, no contexto de suas lutas ideológicas, ao mundo
pré-revolucionário.” (WHELING, Arno. A Justiça Colonial: Fundamentos e Formas, Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica – SBPH, Curitiba, n.º 17, 2000, p 3).
360
O próprio vocábulo “renascimento” já denota um juízo de valor negativo sobre o período
imediatamente anterior. De fato, a Idade Média é vista sob a ótica de uma “idade das trevas”,
submergida no obscurantismo. FRANCISCO PETRARCA (1304-1374) foi o precursor desta
concepção, tendo elogiado com veemência o esforço dos homens para dissiparem as trevas e
voltarem ao brilho puro e prístino da Antiguidade greco-romana.
- 116 -
contestado. Esses séculos produziram tanto um intenso interesse pelo
mundo natural como as dúvidas e ansiedades quanto à relação do
homem com aquele que recebemos como herança em forma
amplificada.361
361
THOMAS, Keith, op.cit., p. 18.
362
HOLBACH apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 280.
363
GIORGIO VASARI foi o primeiro a empregar o termo rinascità para designar a retomada do
estilo clássico de GIOTTO, rompendo com a arte gótica.
364
Sob a influência de GEMISTO, é criada em Florença a Academia Platônica. Nela se reúnem
artistas e políticos do porte de LORENZO DE MÉDICI e MICHELANGELO BUONARROTI (1475-
- 117 -
O movimento traduziu uma ainda maior valorização da categoria
humana, trazendo, por conseqüência, pouca ou nenhuma mudança relativamente
à condição dos animais não-humanos. O “humanismo” renascentista era, afinal,
humanismo no sentido estrito do vocábulo e não humanitarismo. A passagem de
DANILO MARCONDES é perfeita para ilustrar a nova concepção de mundo:
- 118 -
do mundo”367. Apesar de ser um marco do início do pensamento moderno, a
Renascença reproduz os modelos e paradigmas anteriores, no que se refere às
atitudes com os animais368.
367
Ibid., p. 225.
368
Há, como sempre, algumas vozes dissidentes do pensamento predominante. LEONARDO DA
VINCI (1452-1519) foi duramente criticado por sua preocupação com o sofrimento animal, e
reputa-se que tenha se tornado vegetariano por tal motivo. MICHEL DE MONTAIGNE (1533-
1595), no ensaio “Da Crueldade” toca no tema postulando ser intrinsecamente imoral a crueldade
para com os animais. A seguinte passagem, colocada como citação inicial deste item, é bastante
esclarecedora a esse respeito: “Presunção é nossa doença natural e original ... É pela mesma
vaidade de imaginação que o homem se iguala a Deus, atribuindo-se qualidades divinas, e afasta-
se e separa-se da multidão de outras criaturas.” (MONTAIGNE apud SINGER, op.cit., p. 225).
369
Curioso notar que a idéia de COPÉRNICO era tão inovadora que houve quem propusesse
teorias intermediárias às propostas por ele, tal como a de TYCHO BRAHE (1546-1601) que
defendia um sistema ticônico, pelo qual a Terra permanece como centro do universo e o Sol gira
em torno da Terra e os planetas em torno dele.
- 119 -
excepcionalidade da Terra. O italiano supõe um universo irrestrito, com uma
multiplicidade de sistemas planetários semelhantes ao nosso e povoado de uma
infinidade de seres vivos370.
370
Para BRUNO, a possibilidade da existência de outras “humanidades” era evidente por si: “Há
um só espaço universal, uma única e vasta imensidão a que podemos livremente chamar o vazio,
neste estão inumeráveis globos semelhantes a este sobre o qual vivemos e crescemos; e
declaramos ser este espaço universal, visto que nem a razão, nem a conveniência, nem a
percepção sensível, nem a natureza lhe determina limites. Porque não há razão, nem privação dos
dons da natureza, nem potência ativa ou passiva que pudesse impedir a existência de outros
mundos através do espaço que, nos seus caracteres naturais, é idêntico ao mesmo espaço, ou
seja, está por toda parte preenchido de matéria, ou pelo menos de éter” (GIORDANO, Bruno. De´l
infinito universo e mondi, apud ARAÚJO, op.cit., p. 155).
371
“Copérnico, Kepler, Galileu – para além das diferenças, das afinidades e das divergências –
mantiveram uma sólida imagem de um universo como sistema unitário. Vêem no mundo a
expressão de uma ordem divina, a manifestação de princípios ou arquétipos matemático-
geométricos. Deste ponto de vista, sua astronomia ‘geométrica’ contrapõe-se nitidamente à que foi
chamada, não impropriamente, ‘astrobiologia’ de Bruno, de cujas perspectivas fundamentais
Galileu se mantém cuidadosamente afastado, não obstante o entusiasmo comum por Copérnico e
a recusa comum da interpretação hipoteticista das teses copernicanas” (ROSSI, op.cit., p. 221).
372
PAOLO ROSSI afirma que “a Terra então, para Kepler, ocupa um lugar que é único na
estrutura do sistema solar e na do Universo. Sobre a Terra vive a ‘criatura contemplativa’, criada à
imagem e semelhança de Deus, capaz de reconstruir racionalmente aquela perfeita arquitetura na
qual se exprime a grandeza de Deus, capaz de reconstruir aquelas ‘leis arquetípicas’ que, em
Deus, presidiram à criação do mundo. Em função desta criatura contemplativa foi criado o
- 120 -
Se existem no céu globos semelhantes à nossa terra, talvez tenhamos
que entrar em disputa com eles, para saber quem ocupa o melhor lugar
no mundo (meliorem mundi plagam)? Se de fato os globos daqueles
planetas são mais nobres, já não somos as mais nobres de todas as
criaturas racionais. Como todas as coisas podem ser então para o
homem? E como podemos nós sermos os senhores das obras de
Deus?373
Universo e em função do homem operaram as leis do Matemático Divino.O homem e a sua casa
permaneciam para Kepler no centro do drama cósmico da criação e da redenção” (ROSSI, op.cit.,
p. 237).
373
KEPLER apud ROSSI, op.cit., p. 235 (grifos nossos).
374
MARCONDES, op.cit., p. 153.
- 121 -
As resistências a esta mudança ainda eram muito fortes. Segundo
afirma KEITH THOMAS, “um leitor que se aproximasse, inocente, dos escritos
morais e teológicos dos séculos XVI e XVII poderia ser perdoado por inferir que o
principal propósito deles era definir a condição especial do homem e justificar seu
domínio sobre as outras criaturas.”375
FERNANDO ARAÚJO
375
THOMAS, op.cit., p. 30.
376
A criação doméstica era aceita com normalidade. JOSEPH HALL, em 1590, descreve os
hábitos dos agricultores ingleses das Highlands: “At his bed´s feet feeden his stalled team;/His
swine beneath, his pullen o´er the beam./ A starved tenement, such as I guess/ Stands straggling
in the wastes of holderness.” (HALL apud THOMAS, op.cit., p. 113).
377
Em 1842, EDWIN CHADWICK relata que eram criadas aves em quartos de dormir, e que não
apenas cães, como também cavalos, bois e porcos viviam no interior das moradias urbanas.
(CHADWICK apud THOMAS, op.cit., p. 114).
378
ARAÚJO, op.cit., p. 77.
- 122 -
A proximidade com os homens fazia com que muitos destes animais
fossem, efetivamente, tratados como indivíduos e mesmo como moralmente
responsáveis pelos seus atos. O julgamento de animais homicidas se insere neste
contexto379.
379
Alguns identificam a origem destes julgamentos no direito israelita, no célebre e já citado caso
do “boi que marra”. A própria legitimação de tal conduta parece realmente advir de prescrições
bíblicas que davam suporte a essas práticas (cf. Gn 9, 5; Gn 3, 14-15 e 2 Sm 1, 21). No âmbito da
Common Law, a regra da noxal deditio parece ter sido desenvolvida tomando-se por base tais
determinações. De acordo com ela, o proprietário de qualquer instrumento, animado ou
inanimado, que acidentalmente viesse a causar a morte de um ser humano, teria de pagar uma
quantia em dinheiro a título de compensação e ter seu “instrumento” declarado deodante (do latim
deodandum: que precisa ser entregue a Deus).
380
Este relato está contido na obra de EVANS, Edward Payson. The Criminal Prosecution and
Capital Punishment of Animals: The Lost History of Europe´s Animal Trials. Londres: Faber and
Faber Ltd., 1987. p. 31 (1ª edição em 1906).
381
EVANS compila um total de 191 julgamentos de animais. Por meio da análise das datas dos
referidos julgamentos, percebe-se uma maior incidência nos séculos XV, XVI e XVII. O primeiro
caso citado pelo autor data de 824, quando toupeiras foram processadas e excomungadas em
- 123 -
WALTER WOODBURN HYDE382 - The Prosecution and Punishment of Animals
383 384
and Lifeless Things in the Middle Ages and Modern Times - nos dão conta
de que toda sorte de criaturas foram solenemente julgadas por tribunais leigos ou
eclesiásticos em todos os cantos da Europa, incluindo cobras, moscas,
caramujos, lesmas, sanguessugas, lagartas, besouros, gafanhotos, cavalos,
galos, cães e gatos, entre outras tantas espécies. Tais obras nos trazem outros
exemplos bastante curiosos. Um deles advém de uma infestação de besouros na
cidade de St.Julien, em 1546. Inicialmente, os cidadãos fizeram uma série de
procissões, orando pelo arrependimento de seus pecados que, até então,
entendiam ser a razão da infestação dos pequeninos visitantes. Não logrando
êxito, o caso tornou-se uma célebre contenda judicial entre FRANÇOIS FAY,
advogado da comunidade, e PIERRE REMBAUD e ANTOINE FILLIOL,
advogados dos insetos. Todos estavam concordes quanto à hierarquia que
distinguia os seres humanos dos demais seres vivos, mas não sabiam como
utilizar o argumento para expulsar os réus. Em desespero, os cidadãos da
localidade concordaram em ceder parte de suas terras para a morada dos
Aosta. Todavia, este caso não tinha por objeto direto o julgamento dos aludidos animais. Por tal
motivo, elenca como primeiro caso a execução de um porco em Fontenay-aux-Roses. O último
caso pesquisado pelo autor refere-se ao julgamento de um cão em Nova Iorque em 1906. Frise-
se, entretanto, que este não é, em realidade, o último caso existente, haja visto ser o último por ele
elencado tão somente pelo fato de que a primeira edição de sua obra ser datada daquele ano.
Ainda em 1994, o Governador de New Jersey baniu de seu Estado um cão sob a acusação de que
tinha mordido alguém. Longe de declinarem, houve, em verdade, um aumento significativo destes
casos. A meu juízo, a permissão de matar outorgada pelo Estado aos centros de controle de
zoonoses constitui igual forma de condenação oficial. Mais grave e alarmante é que, em nossos
dias, ao invés de serem “executados” por supostos crimes cometidos contra seres humanos,
animais são mortos sumariamente de maneira silenciosa, praticamente invisível e sem qualquer
defesa, por “crimes” tais como “não terem dono” ou “vadiagem”.
382
Há também excelentes trabalhos de BERMAN, Paul Schiff. “An Anthropological Approach to
Modern Forfeiture Law. The Symbolic Function of Legal Actions Against Objects”, Yale Journal of
Law & the Humanities, n. 11, 1999; Id., “Rats, Pigs, and Statues on Trial: The Creation of Cultural
Narratives in the Prosecution of Animals and Inanimate Objects”, New York University Law Review,
n. 69, 1994; Id., “An Observation and a Strange but True ‘Tale’: What Might the Historical Trials of
Animals Tell us About the Transformative Potential of Law in American Culture?”, Hastings Law
Journal, n. 52, 2000.
383
HYDE, Walter Woodburn. “The Prosecution and Punishment of Animals and Lifeless Things in
the Middle Ages and Modern Times”, University of Pennsylvania Law Review, n. 64, 7, 1916, p.
696-730.
384
Na opinião de HYDE, a origem deste tipo de prática (julgamento de animais) teria origens ainda
mais remotas. Os persas consideravam os animais responsáveis por seus atos e os puniam,
conseqüentemente, por suas eventuais “faltas”. Menciona que em Atenas havia uma corte
especial para o julgamento de animais e objetos inanimados – o Prytaneum. Era possível mover
uma ação contra os implementos que dessem origem a danos ao homem sem que se soubesse
efetivamente quem os teria manipulado.
- 124 -
insetos, desde que estes lá permanecessem. O acordo, por motivos óbvios, não
prosseguiu, pois houve discussão a respeito da qualidade das terras oferecidas.
Nunca saberemos o resultado final, pois a última página do julgamento parece ter
sido devorada, muito provavelmente pelos próprios réus.
STEVEN WISE, além destes casos, nos traz outros tantos. Segundo
o jurista, em 1266, um porco foi queimado vivo em Fontaneaux-aux-Roses,
localidade próxima a Paris, por ter supostamente comido uma criança. Outros
casos similares são por ele relatados:
385
SHAKESPEARE, William. The Merchant of Venice. New York: Signet Classics, 2004 (act 4,
scene 1, II).
386
EVANS traz um relato ocorrido no Brasil. Segundo o autor, em 1713, no Maranhão, houve caso
de um julgamento de formigas que estavam destruindo os alicerces de um convento franciscano
(EVANS, op.cit., p. 123-4).
- 125 -
cortada, despelada e enterrada por ter matado uma mulher perto de
Leipzig 387.
387
WISE, op.cit., p. 37, tradução nossa.
388
NEWMAN, Graeme. The Punishment Response. Philadelphia: J. B. Lippincott, 1978. p. 89-94.
- 126 -
1.6.4. A “Navalha de Occam” e o Mecanicismo
DAVID HUME
GOTTFRIED LEIBNIZ
389
HUME apud LOVEJOY, op.cit., p. 247.
390
LEIBNIZ apud ARAÚJO, op.cit., p. 83.
- 127 -
sempre em sua companhia. Até mesmo o piolho, no entender de WILLIAM
KIRBY, tinha a sua função como incentivador dos hábitos de higiene. A visão
predominante, ainda era a de que a natureza fora criada com o tão só propósito
de servir ao homem. O naturalista WILLIAM SWAINSON sintetiza esse
pensamento na seguinte frase: “[...] Deus criou o boi e o cavalo para labutar a
nosso serviço, o cão para demonstrar lealdade afetuosa e as galinhas para exibir
perfeita satisfação em um estado de parcial confinamento.”391
391
Todas as referências deste parágrafo foram retiradas da obra de THOMAS, op.cit., p. 24-5.
392
FULLER apud THOMAS, op.cit., p. 27.
393
WHITE apud THOMAS, op.cit., p. 28.
394
O empirismo, ao lado do racionalismo, constituia uma das principais correntes de pensamento
do século XVI. A experiência (método experimental) é guia e critério de validade de toda e
qualquer afirmação no campo da teoria do conhecimento e da filosofia. “Nada está no intelecto
que não tenha passado pelos sentidos.” Os principais empiristas, além de BACON, foram:
THOMAS HOBBES (1588-1679), JOHN LOCKE (1632-1704), GEORGE BERKELEY (1685-1753)
e DAVID HUME (1711-1776).
395
BACON apud MARCONDES, op.cit., p. 179.
- 128 -
parâmetros relativos à estrutura anatômica, habitat e modo de reprodução, os
primeiros zoólogos modernos levavam também em consideração fatores como o
valor alimentício e medicinal dos animais. O naturalista francês GEORGES
BUFFON (1707-1788) defendia abertamente que a ordem “natural” de
classificação zoológica deveria obedecer ao grau de relacionamento destes para
com o homem, corroborando a linha adotada por seus principais predecessores,
tais como KONRAD GESNER (1516-1565) e ULISSES ALDROVANDI (1522-
1605), que dedicaram grande parte de suas obras ao estudo de animais que, no
seu entender, possuiriam maior utilidade para a humanidade, tais como cavalos,
bois e cães. Essa abordagem é difundida por LINEU, fundador da taxonomia
moderna com sua nomenclatura binominal. No século XVIII, o zoólogo
classificaria os cães em cães fiéis (Canis familiaris), subdivididos em cães
pastores (Canis domesticus) e cães de cozinha (Canis vertegus).
[...] o homem foi descrito como animal político (Aristóteles); animal que ri
(Thomas Willis), animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin);
animal religioso (Edmund Burke); e um animal que cozinha (James
Boswell antecipando Lévi-Strauss). Como observa o Sr. Cranium do
romancista Peacock, o homem já foi definido como bípede implume,
como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um
bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem
uma polaridade entre as categorias ‘homem’ e ‘animal’ e que
invariavelmente encaram o animal como inferior. Na prática, obviamente,
396
ROBINSON apud THOMAS, op.cit., p. 25-6.
- 129 -
o objetivo de tais definições nunca esteve tanto em distinguir os homens
dos animais quanto em propor algum tipo de comportamento humano,
como quando Martinho Lutero e o papa Leão XII afirmaram, um em
1530, e outro em 1891, que a propriedade privada constituía a diferença
essencial entre os homens e animais. [...] o esteta Uvedale Price
chamava especial atenção para o nariz. ‘Creio que o homem é o único
animal que possui uma saliência pronunciada no meio da face. Alguns
viam os animais como totalmente irracionais. Robert Lovell, em 1661,
dividia o conjunto da criação animal em duas categorias, ‘racionais’ e
‘irracionais’, situando só o homem na primeira. Gervase Markham
registrou a ‘opinião convicta’ de ‘inúmero veterinários’, para quem os
cavalos não tinham cérebro de espécie alguma; ele próprio abrira os
crânios de vários desses animais, nada encontrando em seu interior.397
- 130 -
ouvem, não sentem, ou seja, são máquinas. Somente o homem, que é espírito,
pode ver, ouvir, sentir. Os animais possuem olhos e ouvidos e nem por isso
enxergam e ouvem. GALENO (a quem, em outros aspectos, GOMEZ PEREIRA
havia criticado) já havia dito: “Não é o olho que vê, e sim a alma por meio do olho.
Não obstante, o espírito não consiste unicamente em ver, ouvir e sentir [...] O
espírito se mantém também na consideração de sua própria substância, com
independência do corpo; pode manter-se tendo consciência de si mesmo
mediante o exercício do pensamento”. Quiquid noscit est, ergo sum, afirmou
GOMEZ PEREIRA, Cogito; ergo sum, dirá DESCARTES.”398
398
PEREIRA, GOMEZ. Trechos disponíveis em: <http://www.filosofia.org/perreira.htm>. Acesso
em 02 jun. 2005.
- 131 -
vocábulo, seres sujeitos às leis mecânicas tal como qualquer outro objeto. Não
sentiriam dor, prazer, absolutamente nada.
[...] O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo
quantos autômatos diferentes, ou máquinas que se movem, o engenho
dos homens pode fazer só empregando muito poucas peças, em
comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos,
artérias, veias, e todas as demais partes que há no corpo de cada
animal, considerarão esse corpo como uma máquina que, feita pelas
mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si
movimentos mais admiráveis que qualquer uma das que podem ser
inventadas pelos homens.
399
As quatro regras, ou preceitos, fundamentais do método seriam: (a) “jamais aceitar uma coisa
como verdadeira que eu não soubesse ser evidentemente como tal [...]”; (b) “dividir cada uma das
dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias para
melhor resolvê-las”; (c) “conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos objetos mais
simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por graus, até
o conhecimento dos mais complexos [...]”; (d) “fazer em toda parte enumerações tão completas e
revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido” (DESCARTES, René. Discurso
do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 23).
- 132 -
de outros sinais, combinando-os como fazemos para declarar aos outros
nossos pensamentos. Pois pode-se conceber que uma máquina seja
feita de tal modo que profira palavras, e até profira algumas a propósito
das ações corporais que causem alguma mudança em seus órgãos,
como por exemplo ela perguntar o que lhe queremos dizer se lhe
tocarmos em algum lugar, se em outro, gritar que a machucamos, e
outras coisas semelhantes, mas não é possível conceber que as
combine de outro modo para responder ao sentido de tudo quanto
dissermos em sua presença, como os homens mais embrutecidos
podem fazer. E o segundo é que, embora fizessem várias coisas tão
bem ou talvez melhor do que algum de nós, estas máquinas falhariam
necessariamente em outras, pelas quais se descobriria que não agiam
por conhecimento, mas somente pela disposição de seus órgãos. Pois,
enquanto a razão é um instrumento universal, que pode servir em todas
as circunstâncias, esses órgãos necessitam de alguma disposição
particular para cada ação particular; daí ser moralmente impossível que
haja numa máquina a diversidade suficiente de órgãos para fazê-la agir
em todas as ocorrências da vida da mesma maneira que nossa razão
nos faz agir.
400
DESCARTES, op.cit., p. 62-4 (grifos nossos).
- 133 -
Muito embora a questão central para DESCARTES seja a ausência
de razão401 dos ditos “seres brutos”, seus seguidores usualmente utilizavam sua
doutrina para também negar aos animais as capacidades sensitivas mais básicas,
tal como a dor. Assim, para ANTHONY LE GRAND, “o gemido de um cão que
apanha não constitui prova do sofrimento animal, assim como o som de um órgão
não atesta que o instrumento sente dor quando tocado.”402 Nada mais natural
para a doutrina do cogito (“penso, logo existo”), afinal, como a própria
nomenclatura sugere, os animais não eram sujeitos cognitivos, desprovidos que
seriam de razão. Sem ela, conseqüentemente, não pensariam e sem o
pensamento não possuiriam existência como indivíduos. A inexistência como
indivíduos, por sua vez, os tornaria objetos, coisas suscetíveis de apropriação e
uso irrestritos.
401
DESCARTES também discorre sobre questões metafísicas em relação aos animais: “Pois vê-
se que basta muito pouca razão para saber falar; e visto que se observa desigualdade tanto entre
os animais de uma mesma espécie quanto entre homens, e que uns são mais fáceis de adestrar
que os outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, mesmo um dos mais perfeitos de sua
espécie, se iguale nisso a uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, a uma criança de
cérebro perturbado, se a alma deles não fosse de uma natureza completamente diferente da
natureza da nossa. E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que
expressam as paixões e podem ser imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem
pensar, como alguns autores antigos, que os animais falam, embora não entendamos a sua
linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos correspondentes aos nossos,
poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes. É também notório que,
embora haja muitos animais que demonstram mais engenhosidade do que nós em algumas das
suas ações vê-se, contudo, que os mesmos não demonstram nenhuma em muitas outras; de
modo que o que fazem melhor que nós não prova que tenham espírito; pois, desta forma, tê-lo iam
mais do que qualquer um de nós, e agiriam com mais acerto em todas as outras coisas; mas, pelo
contrário, prova que não o têm, é que a natureza que neles opera de acordo com a disposição de
seus órgãos, assim como se vê que um relógio, composto apenas de rodas e de molas, pode
contar as horas e medir o tempo com muito mais exatidão que nós, com toda nossa prudência. [...]
Aliás, neste ponto prolonguei-me um pouco sobre o tema da alma, por ser ele dos mais
importantes, pois, depois do erro dos que negam Deus, o qual penso já ter suficientemente
refutado, não há outro que afaste mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que
imaginar que a alma dos animais seja da mesma natureza da nossa, e que, por
conseqüência, nada temos a temer nem a esperar depois desta vida, como ocorre com as
formigas; quando se sabe o quanto elas diferem, compreende-se muito melhor as razões
que provam que a nossa é de uma natureza inteiramente independente do corpo e que, por
conseguinte, não está sujeita a morrer com ele [...]” (Ibid., p. 65. Grifos nossos).
402
LE GRAND, Anthony. An Entire Body of Philosophy According to the Principles of the Famous
Renate Des Cartes, 1694, II, p. 252, apud THOMAS, op.cit., p. 40.
- 134 -
coisas. A negativa de alma aos animais conjugada com a elevação do homem
acima da categoria dos autômatos seduziu a muitos, pois, segundo LEIBNIZ,
“parecia necessário ou atribuir almas imortais às bestas ou admitir que a alma do
homem podia ser mortal.”403 Além disso, eliminava-se o dilema teológico do
motivo pelo qual um Deus justo permitiria o sofrimento de criaturas que não
herdaram o pecado original. Elas simplesmente não sofriam. Conforme ressalta
MALEBRANCHE, a negação cartesiana da capacidade de dor e de sofrimento
dos não-humanos é justificada ideologicamente como necessária para não se por
em crise a noção da “justiça divina”, pois atribuir aos animais tal capacidade
significaria a experimentação de um “injusto castigo de inocentes”404.
403
LEIBNIZ apud THOMAS, op.cit. p. 41.
404
MALEBRANCHE, Nicholas. De la Recherche de la Verité. In Oeuvres, Paris: Galimard/Plêiade,
1979. p. 467.
- 135 -
natureza, limpando dessa forma o terreno para o exercício ilimitado da
dominação humana405.
Como então não havia anestésicos, esses experimentos devem ter feito
os animais se comportar de tal forma que indicaria, para a maioria de
nós, estarem sofrendo dor intensa. A teoria de Descartes permitia aos
experimentadores que desconsiderassem quaisquer escrúpulos que
pudessem ter nessas circunstâncias. O próprio Descartes dissecou
animais vivos com o objetivo de aumentar seus conhecimentos de
anatomia, tendo muitos dos fisiologistas renomados da época se
declarado cartesianos e mecanicistas. O seguinte testemunho de um
desses experimentadores, que trabalhava no seminário jansenista de
Port-Royal, no final do século XVII, deixa clara a conveniência da teoria
de Descartes: ‘Batiam nos cães com perfeita indiferença e zombavam
dos que sentiam pena das criaturas como se elas sentissem dor. Diziam
que os animais eram relógios; que os gritos que emitiam quando
golpeados não passavam do ruído provocado por alguma molinha que
haviam acionado, mas, que o corpo, como um todo, não tinha
sensibilidade. Pregavam as quatro patas dos pobres animais em tábuas
para praticar a vivisseção e observar a circulação do sangue, tema que
era motivo de muitas discussões’ 406.
405
THOMAS, op.cit., p. 41.
406
Apud SINGER, op.cit., p. 227-28.
- 136 -
não são dados às superstições de Pitágoras – uma vez que os absolve da
suspeita de crime quando comem ou matam animais.”407
Uma outra objeção que pode ser levantada diz respeito ao “teste de
linguagem”. DESCARTES afirmou que : “[...] Isto me parece um argumento
extremamente forte para provar que a razão pela qual os animais não falam como
nós não é porque sejam desprovidos de órgãos apropriados para tal, mas porque
não têm pensamentos.”409 De acordo com tal interpretação, indivíduos que são
capazes de expressar seus pensamentos por meio da linguagem passam no teste
e seriam, pois, conscientes. Muito embora o exame das questões relacionadas à
natureza da linguagem sejam altamente complexas e fujam ao propósito central
407
DESCARTES apud SINGER, op.cit., p. 227.
408
DESCARTES parece ficar em sérios apuros com tal sorte de contestação. Em uma carta ao
Marquês de Newcastle, escreve que se os animais fossem conscientes como nós teriam também
uma alma imortal. O que ele quer dizer é que os animais não devem ser vistos como conscientes
porque somente nós seríamos “imortais”, eles não. A confusão é total. Conforme assinala REGAN,
“a atribuição de consciência a qualquer indivíduo não implica que tenha ou não uma alma imortal.”
(REGAN, The Case For Animal Rights. Berkeley: University of Califórnia Press, 1989. p. 10).
409
DESCARTES apud REGAN, op.cit., p. 11, tradução nossa.
- 137 -
do presente trabalho, pode-se afirmar, sem qualquer hesitação, que ao menos os
grandes primatas são capazes de manejar o arcabouço lingüístico próprio dos
humanos. Inúmeros experimentos demonstraram que gorilas e chimpanzés
conseguem dominar razoavelmente a linguagem de sinais destinadas aos mudos.
A esse respeito podemos citar o trabalho de ROGER FOUTS, doutor em
psicologia comportamental, que deu origem ao lindíssimo livro O Parente Mais
Próximo410, e HERBERT S. TERRACE, professor de psicologia da Universidade
de Columbia, que durante quatro anos ensinou, com êxito, a linguagem de sinais
a NIM CHIMPSKY, um chimpanzé.411 A par de tal possibilidade, inegável é que a
etologia demonstrou que os primatas, assim como de resto a grande parte dos
animais, possui meios de comunicação (vocalizados ou não) naturais próprios.
Neste sentido, em uma interpretação mais larga acerca do que venha a consistir a
linguagem, podemos certamente afirmar que não é ela um atributo
exclusivamente humano. Por este só motivo, a construção cartesiana cairia por
terra. No entanto, mais do indagar se outros animais possuem tal capacidade,
devemos perquirir sobre a própria adequação do referido “teste de linguagem”.
410
FOUTS, Roger. O Parente Mais Próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem
somos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
411
SAMUEL PEPYS, em 1661, já afirmava que: “É um grande babuíno, mas tão parecido com um
homem em tantas coisas que [...] acredito realmente que ele já compreende bastante inglês; e sou
da opinião de que ele pode ser ensinado a falar ou fazer sinais” (FOUTS, op.cit., p. 39). O próprio
LA METTRIE, em 1774, também já assinalava que: “Seria impossível ensinar uma linguagem a um
primata? Não acho [...] Eu escolheria o que tivesse a fisionomia mais inteligente e o colocaria na
escola daquele excelente professor (Amman) que acabo de mencionar. Vocês conhecem, pelo
trabalho de Amman, todas as maravilhas que ele foi capaz de realizar para aqueles que são
surdos de nascença [...] mas os primatas vêem e ouvem, compreendem o que vêem e ouvem, e
aprendem perfeitamente os sinais que lhe são feitos. Não duvido que eles iriam ultrapassar os
pupilos de Amman em qualquer outro jogo ou exercício” (FOUTS, op.cit., p. 39). ROBERT
YERKES, em 1925 já endossava, em seu livro Almost Human, a teoria da possibilidade do ensino
da linguagem de sinais aos primatas.
412
Tal argumentação denomina-se “casos marginais” e será melhor desenvolvida posteriormente.
- 138 -
aprendê-la. O argumento da potencialidade de aprendizado igualmente não é
convincente, pois mesmo que a referida criança seja potencialmente uma futura
usuária dos mecanismos de linguagem, e mesmo que admitamos que para ser
um usuário atual o indivíduo precisa ser consciente, não decorrem de tais
afirmações o fato de que a criança é atualmente consciente porque possui o
potencial de aprender a linguagem. Pelo exposto, não me parece razoável
conceder razão a DESCARTES no que se refere ao aludido “teste de linguagem”
como requisito da consciência.
413
“It thus becomes almost a truism, once one reflects upon the question, that conscious
awareness could have got adaptative value, in the sense that this term is used by evolutionary
biologists. The better the animal understands its physical, biological, and social environment, the
better it can adjust its behavior to accomplish whatever goals may be important in its life, including
those that contribute to its evolutionary fitness. The basic assumption of contemporary behavioral
ecology and sociobiology […] is that behavior is acted upon by natural selection. […] From this
plausible assumption it follows that - insofar as any mental experiences animals have are
significantly interrelated with their behavior – they, too, must feel the impact of natural selection. To
the extent that they convey an adapatative advantage on animals, they will be reinforced by natural
selection” (DONALD GRIFFIN apud REGAN, op.cit., p. 19).
414
COTTINGHAM, John. “A Brute to the Brutes? Descartes Treatment of Animals”. Philosophy 53,
n. 206, out. 1978, p. 551-559.
415
Em resposta a HENRY MOORE, DESCARTES teria escrito que: “I am speaking of thought, not
of life and sensation. I do not deny life to animals, since I regard it as consisting simply in the heat
of the heart; and I don not deny sensation, in so far as it depends on a bodily organ” (DESCARTES
apud REGAN, op.cit, p. 3).
- 139 -
inafastável admitir que DESCARTES nos deixou dois legados particularmente
terríveis e perenes: o de que a dor e o sofrimento seriam exclusivos da
experiência humana - o que tornava os animais passíveis de qualquer destino
nas mãos dos homens416 - e o dualismo “corpo/alma”, negando a “animalidade”
ao homem, tornando-o um ser absolutamente “desnaturalizado”417.
416
Como já mencionado, a lógica cartesiana proporcionou particular estímulo às práticas da
vivissecção e à perpetuação da indiferença e crueldade.
417
O posicionamento de DESCARTES mereceu reações imediatas. HENRY MORE, por exemplo,
dirá que a doutrina cartesiana encontra obstáculos empíricos evidentes (“illa vulpium canumque
astutia et sagacitas”). PIERRE GASSENDI objetará também às sua proposições insistindo que as
diferenças entre humanos e não-humanos são intrinsecamente de grau (animais raciocinam ainda
que não tão complexamente quanto o homem) e que nem por isso poderíamos reduzi-los a
autômatos. Os clássicos de TOM REGAN (The Case For Animal Rights. Berkley: University of
California Press, 1983), BERNARD ROLLIN (The Unheeded Cry. Animal Consciousness, Animal
Pain and Science. Oxford: Oxford University Press, 1989) e ANDRE ROWAN (Of Mice, Models
and Men. A Critical Evaluation of Animal Research. Albany (NY): Suny Press, 1984), e mais
recentemente de ANTONIO DAMÁSIO (Descartes’ Error. Emotion, Reason, and the Human Brain.
New York: Putnam, 1994; The Feeling of What Happens. Body and Emotion in the Making of
Consciousness. New York: Harcourt Brace, 1999; Looking for Spinoza. Joy, Sorrow, and the
Feeling Brain. Orlando: Harcourt, 2003) desacreditam as arcaicas teses de DESCARTES.
418
GRIFFIN, Donald R. Animal Minds. Chicago: University of Chicago Press, 1992. p. 248-49,
tradução nossa.
- 140 -
memória, da linguagem ou da utilização da razão, que “provê o organismo com
um senso de si mesmo com tempo e local determinados”419. DAMASIO a
distingue do que chama de “consciência estendida” (“extended consciousness”),
que requer a utilização da memória e da razão (mas não necessariamente a
linguagem) e envolve um senso de si mesmo recheado com detalhes
autobiográficos e de auto-representação. Há vários níveis de “consciência
estendida” e embora ela seja encontrada em sua plenitude nos seres humanos,
pode, segundo o autor, ser também encontrada em vários animais como primatas
e cães. Outros animais certamente possuiriam ao menos a chamada “consciência
fundamental”, o que significa dizer que são conscientes.
419
DAMASIO apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 115.
420
ALLEN, Colin; BEKOFF, Marc. Species of Mind: The Philosophy and Biology of Cognitive
Ethology. Cambridge: MIT Press, 1997; GRIFFIN, Donald R. Animal Thinking. Cambridge: Harvard
University Press, 1984; RISTAU, Carolyn. Cognitive Ethology: The Minds of Other Animals: Essays
in Honor of Donald R. Griffin. Hillsdale, NJ (EUA): Lawrence Erlbaum Associates, 1991.
421
Há que se fazer referência ao fato de que PASCAL, ao contrário de DESCARTES, não via os
animais como meros “autômatos”. Insistia que a competência dos animais pode ser mecânica,
mas não a vontade de utilização dessa competência
- 141 -
suficientes para exterminá-lo. Mas ainda que o universo o esmague, o
homem será mesmo assim mais nobre do que aquilo que o extermina,
porque sabe que morre [...] e o universo nada sabe. Toda nossa
dignidade consiste portanto no pensar.422
Modernamente, por mais incrível que isto possa soar, há alguns que
tentam reanimar as defasadas teorias mecanicistas425. R.G. FREY426, por
422
PASCAL apud MARCONDES, op.cit., p. 189.
423
Cf. LESTEL, Dominique. Des Animaux-Machines aux Machines Animales. In CYRULNIK, Boris
(org.), Si les Lions Pouvaient Parler. Essais Sur La Condition Animale. Paris: Gallimard, 1988.
424
BERMAN, David. “Spinoza´s Spiders, Schopenhauer´s Dogs”, Philosophical Studies, n. 29, p.
202-209, 1982/83.
425
O realismo científico de CLAUDE BERNARD (1813-1878) pode ser classificado como
representante do cartesianismo no século XIX. A visão bernardiana da fisiologia se baseia
- 142 -
exemplo, sustenta que os animais podem ter interesses, mas somente no sentido
de que um motor de carro tem interesse em receber óleo, ou seja, não possuiriam
desejos e não poderiam ter necessidades que pudessem ser mais ou menos
satisfeitas. Neste sentido, afirma o mencionado autor que:
Assim, de acordo com FREY, se bato em meu cão, ele não possui o
desejo de não apanhar. Animais não poderiam ter desejos pelo fato de que
desejos pressupõem crenças acerca da verdade ou falsidade de sentenças. Para
FRANCIONE, os argumentos de FREY nada mais são que a “regurgitação da
teoria cartesiana sem Deus”428.
- 143 -
Para o referido autor, temos que:
429
FRANCIONE, op.cit., p.105, tradução nossa.
- 144 -
1.6.5. Objetos do Ódio
GEORGE CRABBLE
430
ELYOT apud THOMAS, op.cit., p. 35.
431
WOLLSTONECRAFT, op.cit., p. 190.
- 145 -
Neste sentido, há um relato particularmente pitoresco proveniente da
França pré-revolucionária (1730), protagonizado por dois aprendizes de uma
gráfica e seus patrões que resultaria no denominado “o grande massacre de
gatos na rua Saint-Séverin”. O operário Nicolas Contat contou a história sob a
forma de uma narrativa, na época em que cumprira seu estágio na aludida gráfica
como tipógrafo.432 O episódio é narrado na terceira pessoa, sob a ótica de
“Jerome”, um pseudônimo do próprio Contat. A narrativa do massacre feita por ele
é a seguinte:
432
A única versão do massacre dos gatos de que se dispõe é a escrita por NICOLAS CONTAT em
“Anecdotes typographiques où l’on voit la description des coutumes, moeurs et usages singuliers
des compagnons imprimeurs”, Giles Barber, Oxford, 1980. O manuscrito original está datado de
1762, algumas décadas depois do episódio.
- 146 -
perseguiam os outros gatos pelos telhados, dando cacetadas em todos
os que estavam ao alcance deles e prendendo, em sacos
estrategicamente colocados, os que tentavam escapar. Atiraram sacos
cheios de gatos semimortos no pátio. Depois, com todo o pessoal da
oficina reunido em torno, encenaram um fingido julgamento, com
guardas, um confessor e um executor público. Depois de considerarem
os animais culpados e ministrar-lhes os últimos ritos, penduraram-nos
em forcas improvisadas.” 433
433
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e Outros e Episódios da História Cultural
Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 4ª edição, 2001. p. 136-39 e 105.
434
Em Dom Quixote, um saco cheio de gatos uivantes interrompe a serenata do protagonista, que
tenta exterminá-los confundindo-os com demônios. (cf. segunda parte, capítulo 46).
435
Em Germinal, uma multidão de operários persegue Maigrat, o inimigo, como se fosse um pobre
gato, exclamando: ‘Peguem o gato! Peguem o gato!’ (cf. quinta parte, capítulo 6).
436
Os gatos, em particular, sempre foram tradicionalmente investidos em um repertório de grande
significação simbólica. No período do carnaval eram jogados vivos nas fogueiras na crença de que
isso pudesse trazer boa sorte. Eram associados ao órgão sexual feminino e seus supostos
poderes secretos eram temidos pela população.
437
Para DARNTON, “Longe de ser uma fantasia sádica de parte de poucos autores meio loucos,
as versões literárias da crueldade para com os animais expressavam uma corrente profunda da
cultura popular, como mostrou Mikhail Bakhtin, em seu estudo de Rabelais. Todos os tipos de
relatórios etnográficos confirmam esse ponto de vista. No Dimanche des Brandons, em Semur, por
exemplo, as crianças costumavam amarrar gatos a varas e assá-los em fogueiras. No Jeu du
Chat, no Corpus Christi em Aix-en-Provence, jogavam os animais para cima, bem alto, e eles se
espatifavam no chão. Eram usadas expressões como ‘paciente como um gato cujas garras estão
sendo arrancadas’ ou ‘paciente como um gato cujas patas estão sendo grelhadas’. Os ingleses
eram igualmente cruéis. Durante a Reforma, em Londres, uma multidão protestante raspou os
pelos de um gato de modo a fazê-lo parecer-se com um padre, vestiu-o com uma batina em
miniatura e enforcou-o no patíbulo, em Cheapside. Seria possível enumerar muitos outros
exemplos, mas a questão é clara: nada havia de incomum na matança ritual de gatos. Pelo
contrário, quando Jerome e seus companheiros operários julgaram e enforcaram todos os gatos
que puderam encontrar na Rua Saint-Séverin, agiam dentro de uma tendência comum em sua
cultura” (DARNTON, op.cit., p. 122-3).
- 147 -
entidades diabólicas fossem normalmente associadas a seres híbridos. A lascívia
e a infidelidade sexual eram comportamentos associados aos animais. Para
GERRARD WINSTANLEY, a liberdade sexual era justamente “a liberdade de
bestas devassas e desprovidas de razão.”438 A luxúria, por sua vez, fazia os
homens “parecerem-se [...] com porcos, cabras, cães e as mais selvagens bestas
do mundo.”439 O professor KEITH THOMAS nos traz vários casos em que se
comparam atividades humanas às animais em caráter nitidamente pejorativo.
Segundo o autor:
438
WINSTANLEY apud THOMAS, op.cit., p. 45.
439
THOMAS, op.cit., p. 45.
440
Ibid., p. 46.
- 148 -
sentido de que a inoculação de “fluidos animais” no corpo do homem poderia
conduzir à sua “animalização”.
441
Apud THOMAS, op.cit., p. 47.
442
“Não te deitarás com animal algum; tornar-te-ias impuro. A mulher não se entregará a um
animal para se ajuntar com ele. Isto é uma impureza. Não vos tornei impuros com nenhuma
dessas práticas: foi por elas que se tornaram impuras as nações que expulso diante de vós.”
443
“Maldito seja aquele que se deita com um animal! E todo o povo dirá: Amem!”
444
“Quem tiver coito com um animal será morto.”
445
“O homem que se deitar com um animal deverá morrer, e matareis o animal. A mulher que se
aproximar de um animal qualquer, para se unir a ele, será morta, assim como o animal. Deverão
morrer, e seu sangue cairá sobre eles.”
446
LILIEQUIST, Jonas. “Peasants Against Nature: Crossing the Boundaries Between Man and
Animal in the Seventeenth and Eighteenth-Century Sweden”. Focaal: Tijdschrift voor Anthroplogie
28, 1990. p. 50-1.
447
Era crença difundida, até o início do século XVIII, de que era possível o nascimento de filhos
entre homem e animal. Assim é que a bestialidade era tida como a causa do surgimento de
monstros abomináveis. “Esse tipo de cópula antinatural, dizia William Ramesey, produziria ‘um
monstro, contando em parte com os membros do corpo humano e em parte com os do animal.”
(RAMESEY apud THOMAS, op.cit., p. 161).
- 149 -
Os procedimentos das cortes eclesiásticas ou seculares envolvendo
o julgamento e a conseqüente condenação de animais eram conduzidos com toda
a seriedade e solenidade exigidas. As demandas envolvendo o tema refletiam a
doutrina religiosa que condenava quaisquer desnivelamentos contrários à
“hierarquia natural/divina dos seres vivos”. Na eventualidade de rompimento da
fronteira “homem/animal”, um reparo havia de ser realizado para apaziguar a
justiça divina, conforme já anteriormente exposto no caso do “boi que marra”.
Segundo FINKELSTEIN, havia:
448
FINKELSTEIN, op.cit., p. 31, tradução nossa.
- 150 -
1.6.6. Despersonalização
449
A campanha de “esterilização eugênica” atingiu o seu auge em 1927 com a chancela da lei de
esterilização da Virgínia pela Suprema Corte, no caso Buck v. Bell. O supracitado trecho revela a
possibilidade de esterilização de CARRIE BUCK, uma mulher branca, de dezoito anos que vivia
em uma Colônia para Epilépticos e Deficientes Mentais na Virgínia. Estudos posteriores,
realizados na década de oitenta, pelo Dr. RAY NELSON, então diretor do Lynchburg Hospital,
onde CARRIE foi esterilizada, revelaram mais 4.000 operações similares, a última em 1972. Mais,
quando repórteres e especialistas visitaram CARRIE, já idosa, constatou-se que era uma mulher
de inteligência e comportamento absolutamente normais, tendo ido para a mencionada Colônia
por imposição familiar em virtude de uma gravidez indesejada fruto de violência sexual.
450
DOUGLAS, Implicit Meanings, 1975, p. 289, apud THOMAS, op.cit., p. 49 (grifos nossos).
- 151 -
arrogante de ‘homem’, referindo-se a outros povos como ‘macacos’.”451 KEITH
THOMAS, a esse respeito, destaca com clareza que “uma vez percebidas como
bestas, as pessoas eram passíveis de serem tratadas como tais. A ética da
dominação humana removia os animais da esfera de preocupação do homem.
Mas também legitimava os maus-tratos àqueles que supostamente viviam uma
condição animal.”452
451
NEEDHAM, Primordial Characters, 1978, p. 5, apud THOMAS, op.cit., p. 49.
452
THOMAS, op.cit., p. 53.
- 152 -
associada. Na verdade, era a expressão ideológica de uma relação de
dominante para dominado que opunha o conjunto dos cidadãos francos
das sociedades escravagistas ao conjunto das populações escravizadas,
esvaziadas, no passado, no presente e no futuro. Percebida como
negativa, essa relação era, na realidade, o meio seguro de manter a
distância social, que é a condição da escravidão. A alteridade,
combinada com a relação de classes que se estabelecia pela exploração
no seio da sociedade escravagista, gerou uma reação de tipo racista
para com os escravos. Racista, pois ao estado de escravos são sempre
associados traços somáticos (feiúra, deselegância, ...) e traços de
caráter (estupidez, preguiça, dissimulação, ...). Por sua origem
estrangeira, os escravos eram definitivamente seres de uma espécie
diferente, e naturalmente inferior, tolerados, se reconhecessem o seu
lugar, expelidos, se manifestassem a menor veleidade de identificação
com os ‘humanos.’ 453 454
453
MEILLASOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: O Ventre de Ferro e Dinheiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 59-60.
454
“Encontra-se freqüentemente essa identificação do escravo com o animal. Segundo Heródoto,
‘os Guaramantes vão à caça dos trogloditas egípcios [...] ligeiros na corrida. Alimentam-se de
lagartos e de todo o gênero de répteis. Sua linguagem não pode comparar-se a nenhuma outra,
mas apenas ao grito do morcego’ (in Dechamps, 1971; p. 11-12). Na mesma obra, o autor lembra
que na Grã-Bretanha os domésticos escravos, no século XVIII, eram tratados como animais
favoritos nos quais se atava uma coleira. Farias (1980; 128) observa que zang, o esteriótipo que
designa os escravos, tem o sentido de enslavable barbarian. No país soningué, dizia-se que ‘o
escravo é como o gado’, porque, como para os Sonhrai, eles entravam no patrimônio, no mesmo
nível que os animais de criação (missão, 1965, e J.P. Olivier de Sardan, 1973. Ver também
Cícero, in Daubigney, 1957; 58).” (apud MEILLASOUX, op.cit., p. 61.
455
Acresça a isto que o preconceito contra os negros remonta à Idade Média na qual a cor preta
era a preferida dos artistas para caracterizar as entidades demoníacas. Quando o cronista
português GOMES EANES DE ZURARA encontrou pela primeira vez escravos negros em 1440
comparou-os a “moradores de regiões infernais”.
456
“Na escala racista do progresso humano, os boximanes e os hotentotes disputavam com os
aborígines australianos o degrau mais baixo, logo acima dos chimpanzés e orangotangos. Alguns
estudiosos dizem que a primeira designação aplicada pelos colonizadores holandeses do século
XVII – Bosmanneken ou boximane – era uma tradução literal de uma palavra malaia que eles
conheciam muito bem – Orang Outan, ou ‘homem da floresta’.” (GOULD, Stephen Jay. O Sorriso
do Flamingo. op.cit., p. 273-4.
- 153 -
“não tem outra ascendência que não a de macacos”457. MATHIAS GUENTHER
relata que o igualamento foi tão grande e arraigado que um grupo de colonos
holandeses chegou mesmo a matar e comer um boximane, no entendimento de
que fosse um ser análogo ao orangotango malaio458.
457
HERBERT apud ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 78-9.
458
GUNTHER, Mathias, The Changing Western Image of the Bushmen, apud GOULD, op.cit., p.
274.
459
LONG apud ARMESTO, So You Think You´re Human?, op.cit., p. 86.
- 154 -
melhor das hipóteses nada mais são que os autômatos de Descartes,
molduras e sombras de homens, que têm tão-somente a aparência para
justificar seus direitos à racionalidade.’ [...] Em Madeley, Shropshire, o
vigário John Fletcher, refletia em 1772 sobre a condição dos barqueiros:
‘Presos às suas cordas como cavalos a seus tirantes, em que ponto eles
diferem dos seres rudes e laboriosos? Não na postura ereta do corpo,
pois, na intensidade de seu esforço, eles se curvam para frente,
adiantando a cabeça, suas mãos apoiadas ao solo. Se é que há
diferença, ela consiste nisso: os cavalos são favorecidos com um arreio
para poupar o seu dorso; já aqueles, como se o seu não valesse ser
poupado, puxam sem qualquer auxílio; os animais mourejam em
paciente silêncio e em mútua harmonia ritual; já os homens, em
barulhentas disputas e horríveis imprecações.’ [...] Um ourives londrino
do século XVIII anunciava ‘cadeados de prata para pretos ou
cachorros’.460
460
THOMAS, op.cit., p. 53.
- 155 -
“sub-humanos”. Conforme nos relata ARMESTO, “durante suas viagens para o
Novo Mundo, Colombo permaneceu indeciso entre as diferentes percepções dos
habitantes locais – como cristãos potenciais, como exemplos de virtude pagã,
como seres a serem explorados, como meros selvagens, como civilizados, ou
ainda como figuras objeto de escárnio.”461
- 156 -
europeus. Com o transcorrer do debate, ficou claro que o ponto nodal era, de fato,
precisar se os “índios” seriam humanos ou não e, a partir daí, como os europeus
deveriam se comportar e interagir com aqueles povos.464
464
A questão de se determinar se os povos nativos eram totalmente humanos, providos de almas
racionais, foi decidida positivamente pelo Papa Paulo III em 1530. A qualificação dos nativos como
humanos atendia a uma necessidade premente da igreja de expandir seu círculo de influência
também nos novos territórios. Qualificando os índios como humanos, justificaria sua presença
missionária, pois estes seriam potencialmente conversíveis à cristandade, o que não ocorreria se
fossem tidos como meros animais.
465
CORTÈZ e PIZARRO foram conhecidos por levarem a cabo a conquista das regiões que hoje
representam o México e o Peru, respectivamente. A brutalidade e o extermínio dos povos nativos
foram as marcas registradas da atuação destes conquistadores espanhóis.
466
DAVIS, Natalie Zemon. Society and Culture in Early Modern France, Stanford, 1975, cap. 6,
apud THOMAS, op.cit., p. 57.
467
EVANS, op.cit., p. 165.
468
HUME (1711-1776) chegou a afirmar: “Inclino-me a suspeitar que os negros, e em geral todas
as outras espécies de homens (pois existem quatro ou cinco delas), são naturalmente inferiores
aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada cuja tez não fosse branca, como tampouco houve
qualquer indivíduo que se destacasse em ação ou especulação. Entre eles, não existem
manufaturadores engenhosos, nem arte, nem ciência [...] Uma diferença tão uniforme e constante
não poderia acontecer em tantos países e épocas se a natureza não houvesse estabelecido uma
distinção original entre essas raças de homens. Para não mencionar nossas colônias, há escravos
negros em toda a Europa, e ninguém conseguiu descobrir neles qualquer sintoma de gênio,
- 157 -
ISAAC DE LA PEYÉRE, sugeria que não haveria uma origem comum para a
humanidade. Assim sendo, as diversas “raças” eram espécies biologicamente
diferenciadas em todos os aspectos. Outra tese foi a do monogenismo, que
advogava uma criação única da raça humana. No entanto, devido a fatores de
ordem ambiental, tal como o clima, o homem, acreditava-se, teria se degenerado
em níveis diferente de acordo com a sua “raça” (degeneracionismo). JEAN
BAPTISTE DE LAMARCK (1744-1829) serviu de instrumento para estas
doutrinas, na medida em que se apropriavam das suas afirmações no sentido de
que as características fenotípicas adquiridas seriam passíveis de transmissão via
genótipo às gerações subseqüentes.
embora entre nós haja pessoa de baixa condição e sem cultura que chegam a se destacar em
todas as profissões. De fato, na Jamaica fala-se de um negro que possui talento e cultura; mas é
possível que essa admiração se refira a uma habilidade sem importância, como a de um papagaio
que é capaz de dizer com clareza umas poucas palavras.” (HUME apud GOULD, Stephen Jay. A
Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 28).
469
Para citar apenas alguns dos colaboradores, diretos ou indiretos, para a propagação de idéias
não igualitárias, podemos acrescer em listagem LOUIS AGASSIZ (1807-1873), teórico americano
da poligenia; SAMUEL GEORGE MORTON (1799-1851), empírico da poligenia que começou a
introduzir o método da craniometria em seus estudos para justificar as pretensas diferenças
raciais; FRANCIS GALTON (1822-1911), tido como o criador da expressão eugenia (“bem
nascer”) e PAUL BROCA (1824-1880), que levaram as falsas teses da craniologia ao apogeu;
FRANZ JOSEF GALL (1758-1818), tido como pai da “frenologia”, ciência que se dispunha a
estudar as diferentes capacidades intelectuais baseando-se no tamanho de diferentes regiões do
cérebro; o zoólogo ERNST HAECKEL (1834-1919) e o célebre paleontólogo americano E.D.COPE
(1840-1897), com suas teses sobre a “recapitulação”, segundo a qual a “ontogenia recapitula a
filogenia” (que serviram de base para estudos antropométricos); o médico italiano CESARE
LOMBROSO (1835-1909), com sua disparatada tese da criminalidade inata; ALFRED BINET
(1857-1911) com a medição da inteligência e o surgimento do tese do QI; HENRY GODDARD
(1866-1957) e a teoria da inteligência como gene mendeliano e as tentativas de se evitar a
propagação dos débeis mentais; LEWIS MADISON TERMAN (1877-1956) e a tecnocracia do QI
inato; ROBERT MEARNSYERKES (1876-1956) e CARL C.BRIGHAM com a psicologia militar e as
restrições à imigração; o psicólogo CYRIL BURT (1883-1971) com as pesquisas sobre gêmeos
univitelinos e teses hereditaristas; CHARLES SPEARMAN (1863-1945) e a correlação entre os
testes mentais por meio da análise fatorial, entre outros tantos. As idéias eugenistas tiveram início
nos EUA (instituições de prestígio, como a Fundação Rockefeller e o Instituto Carnegie doaram
fundos para pesquisas eugênicas conduzidas pelas mais famosas universidades americanas,
como Stanford) e fizeram enorme sucesso entre as elites intelectuais de grande parte do Ocidente.
EDWIN BLACK, jornalista americano, autor de A Guerra Contra os Fracos (2003) sustenta que o
pior momento ocorreu quando as idéias saíram do papel para tornarem-se políticas públicas de
eliminação das gerações tidas como “geneticamente incapazes” (pessoas com deficiências
mentais, cegos, surdos, órfãos, inúteis, desabrigados, mendigos, alcoólatras, etc.), em uma
- 158 -
É sempre prudente advertir que seria infantil analisarmos as obras e
escritos produzidos em um determinado século com as lentes política e
ideologicamente tingidas de outro século. As obras devem ser entendidas no
contexto de sua época. Toda, impossível é ler textos como os que se seguem
sem sentir repugnância. A disseminação destas idéias de que os próprios seres
humanos poderiam pertencer a categorias ditas “inferiores” na escala da natureza
coube a muitos dos heróis da cultura norte-americana. BENJAMIN FRANKLIN
(1706-1790) expressou seu desejo de “branqueamento” da América na seguinte
passagem:
eugenia negativa. (a eugenia positiva, tal qual proposta por GALTON não consistiria na eliminação
dos indesejáveis, mas no incremento dos desejáveis, o que também, a nosso ver, não deixa de
criar uma esfera de privilégio injustificável). Segundo BLACK, cerca de 60 mil pessoas foram
esterilizadas à força nos EUA. Em seguida, outros países como a Suécia e Finlândia começaram
programas parecidos. Em 1921, EUGEN FISCHER, ERWIN BAUR e FRITZ LENZ publicam O
Ensino da Hereditariedade Humana e da Higiene Racial, dando corpo à eugenia na Alemanha,
inaugurada em 1880 com ALFRED PLOETZ. Deste modo, quando a Alemanha de HITLER
implementou a utopia nazista dos três erres, reich (império), raum (espaço) e rasse (raça),
consubstanciado no infame Erbgesundheitsrecht, não estavam inventando nada, e sim utilizando a
falsa chancela da “ciência” para cometer as maiores atrocidades em escala nunca antes vista.
Vários carrascos nazistas, como CARL CLAUBERG, HORST SHUMANN, JOHANN PAUL
KREMER, JOESPH MENGELE, FRIEDRICH ENTRESS, HELMUTT VETTER, EDUARD WIRTHS
e AUGUST HIRT, conduziram diversas experimentações relacionadas à vã tentativa de
comprovação da suposta superioridade da “raça” ariana.
470
FRANKLIN, Benjamin. Observations Concerning the Increase of Mankind, 1751 apud GOULD,
op.cit., p. 20.
- 159 -
mentalmente.”471 ABRAHAM LINCOLN (1809-1865) não é menos enfático ao se
posicionar no sentido de que:
Existe uma diferença física entre as raças branca e negra que, em minha
opinião, sempre impedirá que as duas raças vivam juntas em condições
de igualdade social e política. E, na medida em que não podem viver
dessa maneira, enquanto permanecerem juntas deverá existir uma
posição de superioridade e uma de inferioridade, e eu, tanto quanto
qualquer outro homem, sou a favor de que essa posição de
superioridade seja conferida à raça branca.472
471
JEFFERSON apud GOULD, op.cit., p. 20.
472
LINCOLN apud GOULD, op.cit., p. 21.
473
ROOSEVELT, Theodore. Letters of Theodore Roosevelt, ed. Morison, V, p. 226. Disponível em:
<http://www.mdcbowen.org/p2/rm/20th.htm>. Acesso em: 01 mar. 2005.
474
A curiosidade fica por conta do fato de que em 1799 o naturalista alemão JOHANN FRIEDRICH
BLUMENBACH (1752-1840) ter descrito o chimpanzé comum dando-lhe o nome científico de Pan
troglodytes, retirando-o, a nosso ver, equivocadamente, do gênero homo. A primeira descrição
desta espécie foi feita por EDWARD TYSON, em 1669, em estudo no qual tomou a criatura como
humana, categorizando-a como um “pigmeu” ou um “Homo sylvestris”.
- 160 -
mammae lactantes prolixae”, ou seja, mulheres dotadas de grandes saliências
genitais e de seios fartos para a produção de leite475.
- 161 -
ninhada dados ao irmão Thornhill, os restantes enforcados, porque não
agradaram.”479 A noção hierarquizante da vida ocupou precioso tempo dos
zoólogos do século XVII e XVIII. Discutia-se, avidamente, qual o posto que cada
animal ocupava na escala da criação e mesmo se seria o chimpanzé, o golfinho,
ou o leão a ocupar o topo desta hierarquia. Consta que o rei Henrique VII teria
ordenado a matança de todos os cães mastins, quando soube que estes teriam
matado um leão. Tal fato teria lhe causado profunda indignação, haja vista a
vilania de terem tais simples criaturas abatido o poderoso leão, “rei” de todas as
feras.
479
THOMAS, Keith, op.cit., p. 72 (grifos nossos).
480
Os insetos sociais, como as abelhas e formigas, por exemplo, eram tomados como autêntico
símbolo do poder monárquico, governadas obedientemente por uma rainha, tal que, por tal motivo,
estariam propensas naturalmente à aceitação deste tipo de governo. A própria estrutura física das
colméias era utilizada analogicamente para justificar as pretensas vantagens do regime
monárquico sobre os demais. Um clérigo hanoveriano (ordem atualmente conhecida por pertencer
à “Casa de Windsor”) afirmara certa vez que: “Em toda colméia, existem uma rainha, os nobres e
a plebe (commonalty), agindo todos em seus respectivos lugares, e os mais humildes cumprindo
seu dever com tanto zelo como os maiores. Não entre eles queixosos ou resmungões, cismáticos
ou separatistas [...] Quisera Deus, nós, homens, fôssemos tão sábios.” (apud THOMAS, op.cit., p.
76). A tendência de se enxergar nos animais meros símbolos para o homem é facilmente
perceptível com a atribuição de qualidades humanas aos animais. O mundo natural era investido
- 162 -
somente a hierarquia das espécies naturais era invocada para justificar
as desigualdades sociais no seio da espécie humana. Mesmo no interior
de cada espécie natural acreditava-se que havia divisões sociais e
políticas estreitamente semelhantes às presentes no mundo dos
homens.481
de rica simbologia e até os dias de hoje algumas pessoas associam à figura da cadela à lassidão,
a formiga à previdência, o porco à sujeira, a cobra à traição, o lobo à voracidade, etc... Na
taxonomia, a analogia entre os mundos humano e animal tinha implicações hierárquicas
evidentes. LINEU classificava o “reino vegetal” em “tribos” e “nações”. Alguns vegetais mais fáceis
de serem encontrados, tais como as gramíneas, eram “plebeus”, enquanto que outras, como o
lírio, eram “patrícios”. Havia também os “servos” (turfeiras), os “escravos” (gladíolos) e mesmo os
“vagabundos” (fungos). A conotação sociológica é flagrante. BENJAMIN FRANKLIN, seguindo a
linha de se atribuírem qualidades morais humanas aos animais, opôs-se frontalmente à escolha da
águia de cabeça branca como símbolo nacional, pois a ave seria “um pássaro de mau caráter
moral”, “covarde consumado”, vivendo “da trapaça e do roubo” (FRANKLIN apud THOMAS, op.cit.,
p. 81). Esta linha de descrição dos animais e vegetais com juízos morais e estéticos humanos só
foi sendo gradativamente abandonada no século XIX. Em seu lugar surge uma visão mais
romantizada, um point de vue spectaluaire, que se encantava com a diversidade natural.
481
THOMAS, op.cit., p. 73.
- 163 -
1.7. Contratualistas e Iluministas
“The king is not only incapable of doing wrong, but even of thinking
wrong: in him there is no folly or weakness. […] It is well if the mass of
mankind will obey the laws when made, without scrutinizing too nicely
into the reasons of making them.”
482
BLACKSTONE tornou-se o primeiro professor a cursar Direito Inglês em uma cadeira separada
do Direito Romano. Sua obra Commentaries foi fruto da compilação de suas aulas na
Universidade de Oxford, tornando-se uma poderosa referência para o sistema da Common Law
por mais de um século.
- 164 -
exemplo). A outra abordagem requer que os mesmos “contratantes” se coloquem
em uma posição de ignorância quanto a tais fatos, aderindo ao pacto sob uma
condição a que RAWLS denomina de “véu de ignorância” (veil of ignorance).
1.7.1. Hobbes
HOBBES (1651)
483
HOBBES apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 239.
484
As principais são: Do Cidadão (1642), Elementos do Direito Natural e Político (1650) e o
Leviatã (1651), que chegou a ser censurado pelo Parlamento inglês.
485
“Thus was the life of man, solitary, poor, nasty, brutish, and short” (HOBBES, Leviatã, apud
WISE, op.cit., p. 41).
486
“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los (os indivíduos) das
invasões dos estrangeiros, e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, posam alimentar-se e
viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de
homens, que possam reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.
O que equivale dizer: designar um homem ou uma assembléia de homens como representante de
suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se a cada um como autor de todos os atos que
- 165 -
formação do Estado, o autor toma como elemento fundamental a linguagem. Ela
seria a formadora das capacidades mentais que distinguem o homem dos demais
animais. Sem ela “não haveria homens nem Estado, nem sociedade, nem
contrato, nem paz tal como não existem entre leões, os ursos e lobos.”487 No
entender de EDNA CARDOZO DIAS:
aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo que disser respeito à paz e
segurança comuns; todos submetendo, assim, suas vontades à vontade do representante, e suas
decisões à sua decisão. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com
todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e
transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens,
como a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as
suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim,
civitas.” (HOBBES, Leviatã, parte II, cap. XXII, apud MARCONDES, op.cit., p. 199).
487
HOBBES apud DIAS, op.cit., p. 39.
488
DIAS, op.cit., p. 39-40.
- 166 -
1.7.2. Locke
489
KARR apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 273.
490
Suas principais obras são seus dois tratados sobre o governo (1690) dos quais o Segundo
Tratado é considerado o mais relevante.
491
“Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada um é
proprietário da sua própria pessoa, à qual tem direito exclusivo. Podemos dizer que o trabalho do
seu corpo e das suas mãos é propriamente seu. A todas as coisas retiradas do estado em que a
natureza as produziu e libertou ele acrescenta o seu trabalho, dando-lhes algo que é próprio e,
com isso, tornam-se sua propriedade [...] e não é estranho, como talvez pudesse parecer à
primeira vista, que a propriedade do trabalho possa superar a comunidade da terra, porque é
justamente o trabalho que põe em todas as coisas a diferença de valor.” (LOCKE, Segundo
Tratado sobre Governo Civil, Petrópolis: Vozes, Cap. V, § 27, p. 98, apud DIAS, op.cit., p. 42).
492
LOCKE, John. Two Treatises of Government, Cambridge University Press, 1988, p. 168 apud
WISE, op.cit., p. 41, tradução nossa.
493
Ibid., p. 41
494
HARRIS, Ian. The Mind of John Locke, Cambridge University Press, 1994, p. 153, apud WISE,
op.cit., p. 42.
- 167 -
Os animais não teriam qualquer significação moral sendo “commodities” para os
seres humanos. Conseqüência disto é o entendimento de LOCKE no sentido de
que se um agressor viesse a ignorar os ditames da razão, deveria ser aniquilado
automaticamente como um animal495. A professora EDNA CARDOZO DIAS
ressalta que:
495
No mesmo período, quando o quacre EDWARD BILLING estava sendo atacado por uma
multidão, disseram: “[...] não perturbemos um magistrado como ele. Arranquem-lhe os miolos [...]
eles são como cães em tempo de peste. Devem ser exterminados enquanto andam na rua para
que não nos infetem.” (THOMAS, op.cit., p. 56). De fato, a população canina era implacavelmente
exterminada em tempos de peste, como medida sanitária tomada pelas autoridades locais.
496
DIAS, op.cit., p. 42-3.
497
Importante ressaltar que, apesar da evidente colocação do homem como ser supremo diante
das demais criaturas, LOCKE posiciona-se contra a crueldade imotivada cometida contra elas.
Assim é que advertia: “(that children) be bred up n na abhorrence of killing and tormenting any
living creature […] And indeed, I think people from their cradles should be tender to all sensible [i.e.
sentient] creatures.” (LOCKE apud TURNER, James Crewdson. Reckoning With The Beast.
Maryland: Johns Hopkins University Press, 1980. p. 7).
- 168 -
[…] the custom of tormenting and killing beasts will, by degrees, harden
their minds even towards men; and they who delight in the suffering and
destruction of inferior creatures, will not be apt to be very compassionate
or benign of their own kind 498.
498
LOCKE apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 53.
499
BLACKSTONE apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 54.
500
RICHARD RYDER traz uma passagem que revela certa piedade por parte de LOCKE: “[...]
children should from the beggining be bred up in abhorrence of killing and tormenting any living
creature” (LOCKE apud RYDER, The Political Animal, op.ci.t, p. 15).
- 169 -
1.7.3. Rousseau e Voltaire
ROUSSEAU (1763)
501
ROUSSEAU apud ARMESTO, Idéias que Mudaram o Mundo, op.cit., p. 257.
502
Dentre suas obras pode-se citar: Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens
(1775), Emílio (1762), Contrato Social (1762) e Confissões (1764-1770).
- 170 -
divertimentos. [...] Aliás, nunca julguei que tanta ciência contribuísse para
a felicidade da vida.503
503
ROUSSEAU apud DIAS, op.cit., p. 47-8.
504
BLACKSTONE, Commentaries on the Law of England, apud WISE, op.cit., p. 42.
505
Geer v. Connecticut, 161 U.S. 519, 522, 523, 529 (1896).
- 171 -
animais se aplica o direito romano até os dias de hoje506. O sempre brilhante
STEVEN WISE amplia estes dados para observar que:
[...] com quase nenhuma exceção, a common law a respeito dos animais
selvagens na Inglaterra e nos Estados norte-americanos ainda se
baseia no direito romano, seja: (1) citando diretamente Justiniano; (2)
citando Bracton, Blackstone ou Kent, que incorporaram os fundamentos
do direito romano à common law; (3) citando casos que adotaram tais
fundamentos; (4) identificando e chamando o direito romano de common
law; (5) citando uma regra da common law que tem por base o direito
romano. Uma das enciclopédias jurídicas mais adotas na atualidade nos
EUA declara categoricamente que: ‘geralmente, todos os animais
domésticos são tidos como propriedade, e o seu dono, por via de
conseqüência, possui um direito de propriedade sobre eles tão absoluto
quanto ao dispensado aos objetos inanimados 507’508.
506
HOLMES, Oliver Wendell. The Common Law. Boston: Little Brown & Co. 1963. p. 187.
507
3 A.C.J.S. “Animals”, sec. 4, 475 (1973).
508
WISE, Steven, Rattling The Cage, op.cit., p. 42.
509
SERRES, Michel. O Contrato Natural, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
510
Segundo DANILO MARCONDES, “seus principais representantes são: na França, Jean-
Jacques Rousseau; Voltaire (1694-1778); Fontenelle (1657-1757); Helvétius (1715-1771);
Montesquieu (1689-1775); Holbach (1723-1778); La Mettrie (1709-1751); os enciclopedistas:
Diderot (1713-1784), D´Alembert (1717-1783) e Condorcet (1743-1794); na Alemanha: J. Herder
(1744-1803), o poeta Lessing; Kant, que escreve sobre a idéia de Iluminismo, e, em um primeiro
momento de sua obra o próprio Goethe; na Inglaterra: Hume, o poeta Alexander Pope, o jurista e
- 172 -
seriam, pois, dotados de uma luz natural, de uma racionalidade intrínseca que
lhes permitiria superar as crenças irracionais e as superstições. É um movimento
laico, secular, tornando-se, em alguns momentos, anticlerical. Neste sentido, são
valorizadas filosoficamente a liberdade, o individualismo e a igualdade jurídica
entre os homens. A Declaração de Independência Americana (1776)511 e a
Revolução Francesa (1789)512 são grandemente influenciadas por estes ideais.
- 173 -
os fatos e acontecimentos podem ser diferentes do que são porque a
vontade humana pode escolher entre alternativas contrárias
513
possíveis).
513
CHAUÍ, op.cit., p. 49- 50.
514
DAVID HUME assim afirma: “[...] somos obrigados, pelas leis da humanidade, a usar
gentilmente estas criaturas” (HUME apud SINGER, op.cit., p. 229).
515
O aumento dos sentimentos anticlericais foi benéfico aos animais na França pré-revolucionária.
VOLTAIRE chegou mesmo a condenar a prática da alimentação com base em produtos de origem
animal, muito embora tenha, aparentemente, continuado a praticar tal hábito.
516
VOLTAIRE apud DIAS, op.cit., p. 45-6.
- 174 -
1.8. Pensamento Kantiano
“Não temos deveres diretos com relação aos animais. Eles não possuem
autoconsciência e existem meramente como meios para um fim. Esse
fim é o homem.”
517
KANT, Immanuel. Lectures on Ethcis. Nova York: Harper Torchbooks, 1963. p. 239-40.
518
“Seu pensamento é geralmente dividido em duas fase: a pré-crítica, que vai até a Dissertação
de 1770, e a crítica, a partir da publicação da Crítica da Razão Pura (1ª ed. 1781). Em sua fase
pré-crítica, KANT pode ser considerado um representante típico do chamado ‘racionalismo
dogmático’, caracterizado pela forte influência do sistema ‘Leibiniz-Wolff’, isto é, do predomínio,
sobretudo no contexto alemão, da filosfia racionalista inspirada em Leibniz e desenvolvida e
sistematizada por Christian Wolff (1679-1754). Segundo ele mesmo nos relata em seus
Prolegômenos, foi a leitura de Hume que o despertou de seu ‘sonho dogmático’. Os
questionamentos céticos de Hume abalaram profundamente Kant, que visava empreender uma
defesa do racionalismo contra o empirismo cético. Percebeu, no entanto, a importância das
questões levantadas pelos empiristas, destacadamente Hume, e acabou por elaborar uma filosofia
que caracterizou como racionalismo crítico, pretendendo precisamente superar a dicotomia entre
racionalismo e empirismo. É significativo que Kant, formado no contexto do racionalismo alemão,
tenha dedicado a Crítica da Razão Pura518 a Bacon, o iniciador do empirismo. Em sua Lógica
(Jäsche) (Intr. Cap. III, Ak 25), Kant define a filosofia como ‘a ciência da relação de todo
conhecimento e de todo uso da razão com o fim último da razão humana’ [...]” (MARCONDES,
op.cit., p. 207).
- 175 -
todos os seres racionais no sentido de que: “Age de tal forma que sua ação possa
ser considerada como norma universal”.
[...] é mister, pois, que a razão enfrente a natureza, armada, por um lado
de seus próprios princípios unicamente capazes de dar aos fenômenos
concordantes entre si a autoridade de leis e, por outro, da
experimentação excogitada por ela de acordo com tais princípios, a fim
de instruir-se por ela, não como um aluno que aceita docilmente tudo o
que o professor lhe dita, mas como um juiz que, no exercício de sua
função, compele as testemunhas a responderem às perguntas propostas
por ele.
519
ALFREDO ATTIÉ, comentando a doutrina kantiana afirma que: “A cultura, porém, não está, por
assim dizer, na natureza, já que o homem, segundo elemento deste mundo, ao ser dotado de
razão – que o distingue do restante das criaturas – vê em seu poder a faculdade de tudo
transformar, sem limites: ‘numa criatura, a razão é a faculdade de ampliar as regras e os
propósitos do uso de todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece nenhum
limite para seus projetos’. Vemos, portanto, desenrolar-se uma filosofia dominadora: a encarnação
da moral. Um projeto, de livrar o mundo das ‘limitações naturais’ para fornecer ao indivíduo a
plena ‘liberdade’, o inteiro poder de destruir e reordenar o universo, escravizar as forças inferiores
da natureza, pô-las à disposição da ‘razão’, princípio ‘iluminador’. A natureza, pois, adquire dois
significados, distantes da concretude de sua presença: um primeiro que a faz instrumento de ação
humana no mundo, quando deve ser subjugada. Aqui ela fica assimilada à animalidade. Um
segundo, em que é uma ordem ideal, que sobrepuja nosso entendimento. Na verdade, é a
trincheira da ‘razão’ pois quem impõe o fio condutor é o mesmo Kant, que o deseja de tal modo
necessário, afirmando tratar-se de uma imaginada ‘ação natural’. Em verdade, possui ojeriza de
tudo que seja natural: o instinto animal, a sociedade selvagem, que devem ser superados” (ATTIÉ,
op.cit., p. 277-8).
- 176 -
“instrumentos” para os fins humanos, existindo tão somente para o nosso uso e
bem-estar, não possuindo valor intrínseco. O correto tratamento dos animais só
possui relevância para o filósofo por suas conseqüências e impacto sobre o
próprio homem (teoria dos deveres indiretos, tal qual exposta por
520
ARISTÓTELES ). Argumentava que se atirássemos e matássemos um fiel e
obediente cão por sua avançada idade e incapacidade de bem servir, tal ato seria
errado não por violar uma inexistente obrigação para com o cão, mas sim por
enfraquecer a obrigação do homem para com o homem de prestigiar e valorizar
os bons serviços prestados.
520
A teoria dos deveres indiretos (indirect duties) foi desenvolvida por REGAN para justificar a
necessidade da linguagem dos direitos no que se refere ao tratamento dos animais não-humanos.
O tema será abordado em detalhes em momento posterior do presente trabalho.
- 177 -
1.9. A Era Vitoriana e a Revolução de Darwin
521
DARWIN, Charles. Notebooks on Transmutation of Species. Sir Gavin de Beer (org.), Bulletin of
the British Museum (Natural History), Historical Series, 2 (1959-1963), p. 163, apud THOMAS,
op.cit., p. 110.
522
TRIMMER, Sarah. Fabulous Histories Designed for The Instruction of Children, 1788, p. 71,
apud THOMAS, op.cit., p. 110.
523
GOUVEIA apud ARAÚJO, op.cit., p. 63.
- 178 -
sido criados unicamente com o propósito de servirem e de serem úteis ao
homem. A própria história natural corroborou esta noção que, até os dias de hoje,
encontra-se fortemente arraigada em nossas mentes.
524
JOHN DENNE comentou em 1745 que: “Embora exista uma incontável variedade de criaturas e
cada indivíduo pareça estar agindo por si mesmo, tendo em vista seus próprios fins particulares;
ainda assim [...] todos eles conjuntamente [...] de fato conspiram para o poderio e a conveniência,
a beleza, harmonia ou perfeição do conjunto; e, o que é mais importante, contribuem de alguma
maneira e em algum grau para o benefício e felicidade de cada um.” (DENNE apud THOMAS,
op.cit., p. 107).
525
FLAVELL, John. Husbandry Spiritualized, 1669, p. 209, apud THOMAS, op.cit., p. 111.
- 179 -
conheço o assunto. Todo bom açougueiro torna a sangria longa. O
animal deve ficar até oito ou dez minutos morrendo, pelo menos.’ Bem
cedo, além disso, os animais machos criados para alimentação seriam
normalmente castrados. A tripla justificativa para essa antiqüíssima
prática era que tornava o animal de mais fácil manipulação, impedia que
dissipasse suas energias na atividade sexual e ajudava a produzir uma
carne mais gorda, saudável e saborosa. [...] Consideravam-se os touros
não castrados com impróprios para alimento, a menos que fossem
primeiro atacados por cães; o violento exercício ajudaria, segundo se
pensava, a diluir o sangue do animal e a tornar sua carne mais tenra.
Conseqüentemente, no final do período medieval e no início do período
moderno, a maioria das cidades tinha uma lei que obrigava ao
açulamento do touro antes do abate pelo açougueiro. [...] Nos tempos
elisabetanos, a forma usual de ‘engordar’ porcos era mantê-los “num
cômodo tão estreito que não podem virar-se de lado[...] o que os força a
ficarem sempre deitados sobre o ventre’. (‘Depois de engordá-lo de uma
forma adequada’, continua a receita, ‘enfie uma faca num de seus
flancos e deixe o sangue correr até que ele morra [ou] açule-o
gentilmente com cães amordaçados’.) Como disse um contemporâneo,
‘eles se alimentam com dor, deitam com dor e dormem dolorosamente’.
As aves domésticas e de caça eram muitas vezes criadas em escuridão
e confinamento, ocasionalmente sendo também cegadas. ‘O galo
castrado’ explicava-se, ‘é chamado capão, devendo-se empanturrá-lo em
uma gaiola’. Dizia-se que os gansos ganhariam peso se as membranas
de seus pés fossem pregadas ao chão; e era costume de algumas
donas-de-casa do século XVII cortar as pernas de aves vivas, na crença
de que isso faria sua carne mais tenra. Em 1686, sir Robert Southwell
anunciou uma ‘nova invenção de um estábulo no qual o gado [...] se
alimenta e bebe na mesma manjedoura e não se mexe até que esteja
pronto para o abate.526
526
THOMAS, op.cit. p. 112.
- 180 -
temos que os cavalos, quando usados para carga e tração, eram tratados com
muita severidade. ‘
527
Ibid., p. 120.
528
“Muitos desses cães do século XVII tinham funções práticas. Puxavam carroças, trenós e
mesmo arados. Eram indispensáveis a pastores, tropeiros, agricultores e açougueiros. Nas
grandes mansões serviam de vigias. Alguns deles eram até usados para seguir o rastro de
criminosos. Com freqüência, havia uma ligação estreita entre cão e dono, especialmente no caso
de cães pastores, cujas maravilhosas habilidades eram compreensivelmente admiradas. Mas, em
geral, esses cães trabalhadores parecem ter sido considerados sem maiores sentimentos; e
normalmente eram enforcados ou afogados quando deixavam de ter utilidade. ‘Meu velho cão
Quon foi morto’ escreveu um agricultor de Dorset em 1698, ‘e o cozinhamos para fazer banha, que
rendeu cinco quilos’” (Ibid., p. 123).
529
A relação com os cães foi sempre ambivalente. Do mesmo modo que eram desprezados e
tidos como animais sujos, promíscuos e daninhos (daí as expressões populares como “vida de
cão” e “mundo cão” entre outras), alguns, especialmente os de caça, eram adorados e tidos como
sagazes, fiéis, corajosos e obedientes.
- 181 -
Era costume se encher essas efígies de gatos vivos para “aumentar o efeito
dramático” do evento.
530
POPE apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 259.
531
Ironicamente, no futuro, acaso sejam descobertas novas formas de vida inteligente, os
partidários da teoria da Grande Cadeia do Ser se veriam forçados, como já antecipa POPE, a se
curvarem diante de criaturas de possível superioridade intelectual. A hipótese ilustra mais uma
fraqueza, dentre tantas outras, de tal corrente de pensamento.
532
O animal de estimação possuía alguns traços distintivos dos demais. Tinha a permissão de
entrar e circular livremente pela casa, de lá dormir e de sair ao lado de seu dono aonde quer que
ele fosse. Além disso, recebia um nome individualizado, muitas vezes, principalmente após o
século XVIII, um nome tipicamente humano. Outra característica, fruto da posição social que o
animal de estimação passou a ocupar na sociedade, é a de que jamais serviam de alimento.
- 182 -
se alguém o rouba causa-me um grande mal.’ Mesmo sem poderem ser
objeto de furto, tais pássaros podiam ser possuídos, cabendo, pois, uma
ação privada para reavê-los. Em 1588, admitia-se que um cão, ‘sendo
coisa doméstica graças à indústria humana’, podia efetivamente
constituir objeto de propriedade, e que a lei reconhecia quatro tipos de
cães, a saber: os mastins, os sabujos (inclusive os galgos), os spaniels e
os cães acrobatas. Outro processo judicial datado de 1611 confirmou
que macacos e papagaios podiam constituir propriedade comercial.
Ainda assim, a lei relutava em perseguir aqueles que furtavam animais
de estimação. A obra de Michale Dalton, Country Justice (Justiça Rural),
explicava, em 1655, que não constituía furto roubar cães, chimpanzés,
esquilos, papagaios e pássaros canoros, se mantidos apenas para o
prazer, mesmo que ‘estejam em casa e domesticados’533 534.
533
THOMAS, op.cit., p. 135.
534
Os animais de estimação, com o tempo, passaram a realmente ter imenso valor sentimental,
afetivo e econômico. Tanto é que na Londres vitoriana, era muito comum o fenômeno conhecido
por “dog robbery” (roubo de cães), no qual havia o roubo do animal seguido de um pedido de
resgate. Tal fato deu origem ao famoso livro de VIRGINIA WOOLF, Flush, publicado em 1933,
romance que baseia-se na correspondência havida entre ROBERT BROWNING (1812-1889) e
ELIZABETH BARRET BROWNING (1806-1861). Nas centenas de cartas trocadas em um espaço
de quinze meses, o que mais chamou atenção de VIRGINIA WOOLF foi a singular figura de um
cão, “Flush”, fiel companheiro da sempre adoentada ELIZABETH. Baseando-se nessas figuras
reais e históricas, WOOLF escreveu a obra que conta as angústias do casal quando seu amado
cão foi roubado.
- 183 -
por um acordo tácito de que não se machucarão? E o teu cachorro favorito não
espera que lhe dê sua refeição diária, pelos serviços e pela atenção que te
prestou?”535
535
DARWIN, Erasmus, apud THOMAS, op.cit., p. 146.
536
Os “céticos” adotavam a idéia de que o destino do homem e das demais criaturas era idêntico,
indiscernível. Apegavam-se, para tanto, aos dizeres do Eclesiastes, 3, 18-19, pelo qual: “Quanto
aos homens penso assim: Deus os põe à prova para mostrar-lhes que são animais. Pois a sorte
do homem e a do animal é idêntica: como morre um, assim morre o outro, e ambos têm o mesmo
alento; o homem não leva vantagem sobre o animal, porque tudo é vaidade. Tudo caminha para
um mesmo lugar: tudo vem do pó e tudo volta ao pó.” Os mortalistas, por sua vez, rejeitavam o
dualismo entre corpo e alma. Ao assim pensarem colocavam em cheque o sistema da
imortalidade do homem, colocando-o em pé de igualdade, neste aspecto, com os animais. “Afirmar
a mortalidade da alma, concordava sir kenelm Digby, ‘afasta toda a moralidade e faz dos homens
animais.’” (THOMAS, op.cit., p. 148). Os heréticos e materialistas acreditavam que os homens não
passavam de meros animais. Como exemplo podemos citar LA METTRIE (“Dos animais aos
homens a transição não é violenta”), o visconde de BOLINGBROKE e o antiquarista MARTIN
FOLKES.
537
Ibid., p. 150.
- 184 -
A própria linguagem também passou a ser creditada a algumas
espécies animais. O já comentado MONTAIGNE chega a afirmar: “Nós não os
entendemos mais do que nos entendem. Pela mesma razão eles podem nos
considerar tão animais quanto eles.”538 539
Todavia, os juristas jacobinos,
resistentes à incorporação das novas idéias, aclamavam não só a impossibilidade
do “diálogo” homem-animal como propugnavam pela declaração legal de “idiota” a
quem se dispusesse a tais práticas.
538
MONTAIGNE apud THOMAS, op.cit., p. 153. O mesmo autor nos relata também o caso de
NATHANIEL HOMES que, em 1661, afirmou: “Todo homem pode observar que, através de seu
conhecimento sensível, eles mostram uma vontade suficiente de aceitar ou recusar um objeto; de
comunicar seus desejos mediante sons ou notas vocais; de expressar suas afeições de amor e
ódio mediante a sociabilidade e conflitos, de alegria e pesar por outras notas e ruídos. O fato de
que os humanos normalmente não entendessem a linguagem animal nada provava; afinal,
quantos ingleses compreendiam o japonês?” (Ibid., p. 153)
539
Na sua “Apologie de Raimond Sebond”, de 1580, MONTAIGNE coloca ênfase na vertente ética
de consideração pelos animais, destoando da tradição dos bestiários medievais (de CONRAD
GESSNER e ULISSE ALDROVANDI). Nela chegou a afirmar: “A Natureza acolheu universalmente
todas as criaturas; e não há nenhuma que ela não tenha fornecido plenamente de todos os meios
necessários à conservação de seu ser” (MONTAIGNE apud ARAÚJO, op.cit., p. 58).
540
EDWARD TYSON (1650-1708), tido como o melhor anatomista comparativo da Inglaterra,
publica em 1669 o seu “Orang-Outang, sive Homo sylvestris: or, the anatomy of a pigmy compared
with that of a monkey, an ape, and a man” (“Orang-Outang, sive Homo sylvestris: ou, a anatomia
de um pigmeu comparada com a de um macaco, a de um grande símio e a de um homem”).
541
De fato, a introdução, em massa, na Europa dos primatas africanos trouxe uma série de
experimentações que levavam às mesmas conclusões. Entidades renomadas de medicina como a
Surgeon´s Hall de Londres realizavam dissecações e demonstravam a similitude entre as peças
anatômicas humanas e animais. (Ibid., p. 155). A par deste fato, a descoberta, no século anterior,
dos ditos “selvagens nus do Novo Mundo” também serviu para estreitar na mente colonizadora a
linha divisória do homem com o animal. Os filósofos setecentistas nutriam também especial
atenção às chamadas wolf children (crianças-lobo), crianças que eram descobertas vivendo em
aparente isolamento nas florestas e ambientes inóspitos.
- 185 -
“irracionais”542. O homem era inclusive classificado na mesma ordem (primates)
que incluía os primatas e até mesmo morcegos, e no mesmo gênero do
orangotango543 (homo).
542
LINEU contou com inúmeras críticas ao seu pensamento inclusivo. BUFFON, por exemplo, era
partidário da tese de absoluta descontinuidade entre os primatas e o homem. O pensamento da
cristandade era, também, em geral, absolutamente contrário à teses igualitárias e evolucionistas.
543
O orangotango era o Homo sylvestris. JEAN JACQUES ROUSSEAU, anos antes, reconhecera
que os orangotangos eram homens sem desenvolvimento. Essa noção tornou-se recorrente. Em
1774, o lorde escocês MONDODDO desfilava tese idêntica.
544
Humanos e primatas se dividiram em espécies diferentes há cerca de 5 milhões de anos, com
uma parte evoluindo para os atuais chimpanzés e bonobos e outras para os demais símios e
também para os primatas bípedes eretos dos quais descendemos diretamente (Homo
Australopithecus, Homo Ardipithecus, Homo Paranthropus, por exemplo).
545
GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 248-9.
546
Prova disto é a assertiva de TYSON no sentido de que: “Trata-se de uma observação
verdadeira, a qual não se pode fazer sem admiração, de que a transição dos minerais para as
plantas, das plantas para os animais, e dos animais para o homem é tão gradual, que parece
haver uma similitude bastante grande entre as plantas mais humildes e alguns minerais, assim
como entre a categoria mais inferior dos homens e o tipo mais alto de animais. O animal do qual
forneci a anatomia, o qual é o que mais se aproxima do gênero humano, parece ser o nexo entre o
animal e o racional” (TYSON apud GOULD, O Sorriso do Flamingo, op.cit., p. 249).
- 186 -
proporcionam para a o estudo sistemático da taxonomia. Ao julgamento subjetivo
de cada pesquisador fica a tarefa de delimitar, através de diferentes
metodologias, as fronteiras entre os diversos gêneros e demais categorias
superiores.
547
Um dos primeiros a verificar a proximidade do parentesco dos homens e chimpanzés foram os
biólogos norte-americanos VICENT SARICH (1934-) e ALLAN WILSON (1934-1991) que,
coletando dados sobre a proximidade protéica entre as espécies, concluíram que divergiram há
somente 5 milhões de anos.
548
O aguardado seqüenciamento foi divulgado pela revista NATURE de 01/09/2005.
549
Somente para exemplificarmos a enorme proximidade, humanos e chimpanzés são
geneticamente 10 vezes mais parecidos que ratos e camundongos.
- 187 -
O biólogo DANIEL ZANELLA KANTEK defende a tese segundo a
qual:
550
KANTEK, Daniel Luis Zanella. Homo troglodytes? Apontamentos sobre a relação evolutiva
entre homens e chimpanzés. Disponível em: <http://www.evoluindo.biociencia.org/homo-pan.htm>.
Acesso em 01 jul. 2005.
551
KANTEK, op.cit.
552
Os homens e os grandes primatas são mais próximos entre si do que os chamados macacos.
De acordo com evidências fósseis, os macacos se separaram dos grandes primatas entre 25 a 30
milhões de anos atrás, enquanto os orangotangos se separaram dos chimpanzés e dos gorilas
entre 12 e 16 milhões de anos atrás. Os gorilas, por sua vez, se separaram dos chimpanzés por
volta de 9 milhões de anos atrás. Os homens divergiram da linha evolucionária dos chimpanzés há
aproximadamente 5 a 7 milhões de anos e os bonobos há 3 milhões de anos.
553
O tema é bastante controverso, mas é razoável fixar-se que o gênero Homo teria surgido há
cerca de 3 milhões de anos com o trio Homo habilis, Homo Ergastere e Homo rudolfensis.
- 188 -
Em certas ocasiões se organizam happenings nos quais milhares de
pessoas se dão as mãos formando uma corrente humana, por exemplo,
de costa a costa dos Estados Unidos, em apoio a alguma causa ou
instituição de caridade. Imaginemos uma corrente deste tipo, distribuída
ao longo da linha do equador, atravessando o nosso continente natal, a
África. Trata-se de um tipo especial de cadeia, envolvendo pais e filhos e
teremos que fazer alguns truques em relação ao tempo para poder
imaginá-la. Você fica na costa do oceano Índico na região Sul da
Somália, voltado para o norte, e com sua mão esquerda segura a mão
direita da sua mãe. Esta, por sua vez, segura a mão da mãe dela, ou
seja, de sua avó. Sua avó segura a mão da mãe dela, e assim por
diante. A corrente segue junto à praia, atravessa a savana e continua
seu percurso para o oeste na direção da fronteira do Quênia. Que
distância teremos que percorrer até encontrarmos nosso ancestral
comum com os chimpanzés? Uma distância surpreendentemente curta.
Concedendo cerca de um metro para cada pessoa, chegaremos ao
ancestral partilhado com os chimpanzés em menos de quinhentos
quilômetros554.
554
DAWKINS, op.cit., p. 47.
555
Em 1971, GEORGE G. SIMPSON (1902-1982), renomado paleontólogo de Chicago, em sua
clássica obra “Princípios de Taxonomia Animal”, classificou os humanos e chimpanzés sob a
mesma superfamília, chamada Hominoidea. MORRIS GOODMAN (1918-) também propôs, em
1985, que essas espécies fossem abarcadas sob a mesma família (Hominidae).
556
O SmithSonian Institute, uma das mais respeitáveis instituições científicas, já adota essa nova
taxonomia e nas últimas edições da publicação Mammals Species of the World, todos os grandes
primatas já estão como integrantes da mesma família (hominidae): Homo troglodytes
(chimpanzés), Homo paniscus (bonobos), Homo gorilla (gorilas) e Homo sapiens (homem) (cf.
BURGIERMAN, Denis Russo. Chimpanzés São Humanos. Revista Superinteressante, São Paulo:
Abril, 2003, p. 24).
- 189 -
reconheciam amplamente a afinidade entre humanos e símios. Demonstraram
que cada vez mais o homem era, e continua sendo considerado pela ciência
como somente uma espécie animal dentre tantas outras, relacionando-se com
elas por meio de relações de proximidade e parentesco. Percebe-se que o
paradigma científico modifica-se gradualmente na direção de retirar do homem a
condição de “ser único e especial”, tendo sido gerado pelos mesmos processos
evolutivos e inserido na natureza, assim como todos os demais. A relação de
descontinuidade entre humanos e não-humanos começa a desmoronar.
RICHARD DAWKINS
557
DAWKINS, op.cit., p. 47.
558
Antes dele são citados pensamentos de filósofos da Antiguidade que propunham a
descendência animal do homem. Em 1661, JOHN BULWER relatou que um amigo lhe
confideciara que “o homem era uma simples criatura artificial e, de início, não passava de uma
espécie de macaco ou de babuíno [...]” (BULWER apud THOMAS, op.cit, p. 158) LORD
MONBODDO, apesar de enxergar no homem o “ápice da criação” já percebia a idéia evolutiva
quando afirmava: “Não[...] de uma só vez, mas gradativa e sucessivamente; pois parece que, de
início, foi pouco mais que um mero vegetal, mal merecendo o nome de um zoófito; então, adquiriu
o senso, mas de forma a ser pouco melhor que um mexilhão; em seguida, se tornou um animal de
tipo mais complexo; depois, uma criatura racional; e, finalmente, um homem de intelecto e ciência,
ápice e conclusão de nossa natureza.” (MONBODDO apud THOMAS, op.cit., p.159).
- 190 -
em sua obra Zoonomia, or, The Laws of Organic Life (1794-1796). Apresentou
também as suas idéias sob a forma de versos em outra obra chamada The
Temple of Nature (1802), na qual se lê:
Organic life beneath the shoreless waves/ Was born and nurs'd in
ocean's pearly caves;/ First forms minute, unseen by spheric glass,/
Move on the mud, or pierce the watery mass;/ hese, as successive
generations bloom,/ New powers acquire and larger limbs assume;/
Whence countless groups of vegetation spring,/ And breathing realms of
fin and feet and wing.559
559
Disponível em: <http://www.ucmp.berkeley.edu/history/Edarwin.html>. Acesso em: 01 jul. 2005.
560
“Na Inglaterra, sempre existiram famílias que traçavam sua descendência dos animais
selvagens, como Siward, conde de Northumberland sob o reinado de Eduardo, o Confessor, cuja
avó fora violentada por um urso; ou a família dos Sucpitches de Devonshire, que sustentava no
século XVIII que seu ancestral fora encontrado nas florestas da Prússia mamando em uma cadela.
O início do período moderno estava repleto de elos perdidos, meio-homens, meio animais. Os
homens selvagens que supostamente rondavam as florestas da Europa medieval, levando uma
vida de bestial auto-satisfação, não tinham sido esquecidos, mas sobreviveram na escultura, na
gravura, na iconografia e na heráldica, bem como na ficção popular. Em seu sistema
classificatório, Lineu deixou lugar para o homem selvagem (Homo ferus), ‘quadrúpede mudo e
peludo’ e citou dez exemplares encontrados nos dois séculos anteriores. Na Cleveland do rei
Jaime, relatava-se como um Homem Marinho fora trazido à tona por pescadores locais e mantido
a uma dieta de peixe cru até conseguir escapar. A correspondência de sir Joseph Banks revela
que entre 1797 e 1811 pelo menos três sereias foram avistadas ao largo da costa escocesa”
(THOMAS, op.cit., p. 161).
- 191 -
doutrinas racistas, que preservavam a falaciosa superioridade européia
baseando-se na suposta gradação regular vinda desde o homem branco europeu
até os seres ditos “brutos”. Na medida em que a humanidade supera os animais,
os europeus superariam os chamados “povos selvagens”.561 Curioso observar
também que o processo racista de “empurrar” os negros e outras etnias para
baixo rumo às camadas animais (animalização do alter como estratégia de
inferiorização) tendia, simultaneamente, a trazer os animais para próximo da
humanidade, em um movimento de “mão-dupla”.
“[...] não havia echos que repetissem suas lamentações nem seus
gemidos. Todo mundo ignorava se ele sentia; a todos parecia impossível
que pensasse, e pareceria ridículo que cogitasse na liberdade.”563
- 192 -
visões sobre os animais e sobre a natureza, ocorridas principalmente na virada
para o século XIX. Muito embora nenhum dos autores acima referidos defendesse
abertamente o bem-estar animal, ambos demonstraram a importância do estudo
dos arranjos políticos e sociais dos animais como meio de conhecimento do
humano e não-humano.
Imagine yourself a man who should love his Watch as we love a Dog,
and caress it because he should think himself dearly beloved by it, so as
to think that when it pounds out Twelve or One o´clock, it does knowingly
and out of ternderness for him.564
564
BOUGEANT apud GARRET, Aaron. “Introduction”. In: Animal Rights and Souls in the
Eighteenth Century. Bristol: Thoemmes Press, 2000, v. 1. p v. Disponível em:
<http://www.thoemmes.com/ 18cphil/animal_intro.htm>. Acesso em: 07 nov. 2005.
- 193 -
JOHN HILDROP (1682-1756), em 1743, publica “Free Thoughts
upon the Brute Creation”. Famoso por suas polêmicas, formado pelo St. John´s
College, Oxford, mestre pela Royal Free Grammar School, e articulista regular da
Weekly Standard, tal como BOUGEANT, utiliza a sátira para ridicularizar as
posições mecanicistas. Acreditava que animais possuíam linguagem, e criticava
abertamente BOUGEANT por sua infame teoria das “almas demoníacas”,
advogando pela concessão da vida eterna também com relação a eles. Criticava
também LOCKE, propondo uma escala leibniziana do ser, onde os limites entre
humanos e não-humanos eram fluidos, o que levaria à necessidade imperiosa de
tratá-los eticamente:
Now I would venture to say, that the partition betwixt the lowest degree of
human and the highest degree of brute understanding, is so very slender,
that it is hardly perceptible, and could not in any degree be distinguished
but by a greater fluency of language; which though in the main it may be
considered an advantage to our species in general, yet is it none to those
who seldom make any other use made of it, than to discover the
emptiness of their heads, the perverseness of their wills, or the iniquity of
their hearts, and show how little the real difference is (shape only
excepted) betwixt a sagacious, good-natured, governable, useful animal,
which we agree to call a brute; and a wrong-headed, vicious,
ungovernable, mischievous brute, whom we agree to call a man; and
what authority we have to strike out of the system of immortality so great
a part of the creation, without an absolute and evident necessity, exceeds
my comprehension. If both reason and revelation assure us, that in their
first creation they were all very good: as perfect in their several kinds, as
beautiful in their several orders, as necessary to the universal harmony,
as infinite power and wisdom could make them; if by the special
benediction of their Maker they were to increase and multiply, and
perpetuate their several species, before sin and death entered into the
world; how dare we pretend to reverse this blessing, to correct infinite
wisdom, to alter the established order of things, and pronounce a
sentence of utter extinction upon numerous ranks and orders of beings,
created by infinite wisdom […]565
565
HILDROP, John, op.cit. Disponível em: <http:www.all-creatures.org/ca/ark-195-free.html>.
Acesso em: 07 nov. 2005.
- 194 -
WILLIAM SMELLIE (1740-1785), editor da Universidade de
Edimburgo, foi o responsável pela publicação de “Philosophy of Natural History”,
onde analisa a vida social dos animais, concluindo serem possuidores de
inteligência, personalidade, docilidade e grandes capacidades adaptativas.
Apesar de considerar os seres humanos como o “ápice da cadeia evolutiva”,
SMELLIE admitia expressamente que existiriam laços de parentesco entre nós e
os outros seres vivos.
566
Também de autoria de POPE é o artigo “Against Barbarity to Animals”, Guardian, n. 61, 1713.
567
JENYNS também é autor de dois artigos intitulados “On the Chain of Universal Being” e ”On
Cruelty to Inferior Animals”, in Disquisitions on Several Subjetcts (1782).
- 195 -
scale of being I have demonstrated to be raised by presumptuous
imagination, to rest on nothing at the bottom, to lean on nothing at the
top, and to have vacuities, from step to step, through which any order of
being may sink into nihility without any inconvenience, so far as we can
judge, to the next rank above or below it. We are, therefore, little
enlightened by a writer who tells us, that any being in the state of man
must suffer what man suffers, when the only question that requires to be
resolved is: Why any being is in this state.568
568
JONHSON, Samuel. A Review of A Free Inquiry into the Nature and Origin of Evil by Soame
Jenyns. Disponível em: <http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Texts/jenyns.html/>. Acesso em 07
nov. 2005.
569
A Declaração da Independência Americana, tornada pública em 16 de junho de 1776 é tida
como o marco histórico do nascimento formal dos direitos humanos. Como não poderia deixar de
ser, trata unicamente dos direitos do homem, como ser possuidor de uma natureza notadamente
especial. Seu artigo primeiro, neste sentido, dispõe claramente que: “Todos os seres humanos
são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos
quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou
despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de
- 196 -
num autêntico tour de force a respeito da exegese bíblica de piedade para com
todos os seres vivos. Pela sua importância será tratado no capítulo dedicado às
denominadas “teorias diretas”.
- 197 -
em relação ao aristotelismo e à filosofia moral de KANT. A capacidade de ser
senciente (capacidade de experimentar dor e prazer) e não a capacidade de
raciocinar, de ser autônomo ou de ser lingüisticamente competente é que intitula
qualquer indivíduo à consideração moral direta. MILL chega mesmo a questionar
a moralidade do princípio da utilidade com relação aos animais:
[...] Granted that any practice causes more pain to animals than it gives
pleasure to “man”: is that practice moral or immoral? And if, exactly in
proportion as human beings raise their heads out of the slough of
selfishness, they do not with one voice answer “immoral”, let the morality
of the principle of utility be foverer condemned.571
571
REGAN, Tom. All That Dwell Therein: Animal Rights and Environmental Ehtics. Berkeley:
University of Califórnia Press, 1982. p. 9.
572
Treze anos após a Declaração de Independência Americana, em 1789, a concepção de
igualdade e liberdade entre os seres humanos é mais uma vez afirmada na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. Seu artigo primeiro reza que: “Os homens nascem e
permanecessem livres e iguais em direitos.”
573
A conexão entre os movimentos revolucionários e a doutrina inicial do movimento dos Direitos
dos Animais fica clara quando OSWALD afirma que em uma época na qual o homem “observes on
all hands the barbarous governments of Europe giving way to a better system of things”’ ele
poderia somente esperar que estaríamos também perto do dia “when the growing sentiment of
peace and good-will towards men will also embrace, in a wide circle of benevolence, the lower
- 198 -
tratado sobre cavalos, Horses, de 1796, aos Direitos dos Animais, intitulado
“Rights of Beasts”. O abolicionista THOMAS PAINE (1737-1809), no clássico The
Age of Reason (1794-1796), obra marcadamente anti-clerical e anti-religiosa,
escrita enquanto estava preso na França, também propôs a abertura de direitos a
todos os seres sencientes574. O pintor e escritor GEORGE NICHOLSON (1760-
1825), influenciado por ROUSSEAU, publica On The Conduct of Man to Inferior
Animals (1797) e JOSEPH RITSON (1752-1803), o inovador An Essay on
Abstinence from Animal Food, as a Moral Duty, (1802)575, ambas obras que
- 199 -
postulavam uma dieta vegetariana em face do dever moral existente para com os
demais seres vivos.576
individuais. MANDEVILLE argumenta que é somente “[…] this tyranny which custom usurps over
us’, which makes the slaughter of animals tolerable to humans.” (Disponível em:
<http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 07 jul. 2005). Diz-se que o editor de
RITSON, RICHARD PHILLIPS (1767-1840), fundador da Monthly Magazine, era também um
vegetariano convicto.
576
O famoso poeta PERCY BYSSHE SHELLEY (1792-1822) escreveu A Vindication of Natural
Diet (1813-1814) no qual descreve a ingestão de carne nos seguintes termos: “It is only by
softening and disguising dead flesh by culinary preparation, […] that the sight of its bloody juices
and raw horror, does not excite intolerable loathing and disgust. Let the advocate of animal food,
force himself to a decisive experiment on its fitness, and […] tear a living lamb with his teeth, and
plunging his head into its vitals, slake his thirst with the streaming blood; when fresh from the deed
of horror let him revert to the irresistible instincts of nature that would rise in judgment against it,
and say, Nature formed me for such work as this. Then, and then only, would he be consistent”
(Disponível em: <http://www.veginfo.dk/eng/texts/3.html>. Acesso em 05 jul. 2005). Em 1824, o
inventor e filósofo LEWIS GOMPERTZ (fl. 1861), publicou o livro Moral Inquiries on the Situation of
Man and of Brutes, condenando não só a utilização dos animais como alimento como também
diversos outros usos que reputava eticamente indevidos, tal como o uso para vestuário e
acessórios.
577
Símbolo dessa mudança se deu com a acesa discussão nos meios religiosos acerca da
existência de uma “alma animal”, expressão aparentemente paradoxal e redundante. A esse
respeito PLUTARCO já advertia que: “[...] não será uma prova temível a atribuição de razão a
animais que não dispõem de um conhecimento intrínseco de Deus?” (PLUTARCO apud ARAÚJO,
op.cit., p. 85). No entanto, se a anatomia, a linguagem e a posse da razão deixam de ser
exclusivamente humanas, a única barreira até então não contestada era a de que o homem seria
o único animal religioso, provido de uma alma imortal. No âmbito popular era corrente a noção de
que os animais possuíam instintos religiosos. As antigas teorias da metempsicose tinham versões
“adulteradas” em todas as regiões da Europa. A “salvação” animal, via ressurreição, começou a
ser discretamente veiculada com a interpretação bíblica de Rm 8, 21, segundo a qual: “[...]
também a criatura será liberta da sujeição à corrupção, para participar da liberdade da glória dos
filhos de Deus.” Em 1722, debateu-se em Harvard sobre o tema no encontro patrocinado pelo Spy
Club intitulado: “Whether the Souls of Brutes are Immortal”. Tempos depois, em 1827, o próprio
CHARLES DARWIN, ainda um jovem estudante de medicina, assistiu a uma palestra na
Universidade de Edimburgo na qual se tentava provar que os animais possuíam toda as
faculdades e propensões da mente humana. De fato, a teoria da evolução, tal como
posteriormente formulada, colocava o dilema com maior gravidade, já que se os homens
descendiam diretamente dos animais, como sustentar que somente eles possuiriam almas
imortais? No campo das artes os quadros seqüenciais de WILLIAM HOGARTH chamados de “The
Four Stages of Cruelty” (1751) representavam a degeneração de torturadores de animais nas
grandes metrópoles da época. Em Goody Two Shoes (1765), primeira obra de ficção infantil
inglesa em forma de livro, MARGERY MEANWELL dedica boa parte do tempo a exortar as
crianças a terem compaixão pelos animais. Na mesma esteira pode-se citar a obra de SARAH
KIRBY TRIMMER, Fabulous Histories (1786), livro infantil de muito sucesso na época.
578
Segundo nos relata KEITH THOMAS, “O galo, mantido sob rigorosa dieta, era especialmente
treinado para a rinha. Suas asas eram cortadas, as barbelas e a crista aparadas e os pés
equipados com esporas artificiais. [...] As competições muitas vezes duravam vários dias e se
faziam acompanhar de pesadas apostas, com todas as camadas sociais, embora somente
homens, pois nesse esporte claramente não cabiam as mulheres. [...] quando Pepys compareceu
- 200 -
açulamento de touros (“bull baiting”), ursos e outros animais selvagens579 e as
“corridas de touros”580 integravam o rol de diversões dos ingleses na feiras e
festas rurais (“baiting sports”).
a uma rinha de galos em 1663, viu tudo o que era gente, de ‘parlamentares’ até ‘os mais pobres
aprendizes, padeiros, cervejeiros, açougueiros, carroceiros e não sei quem mais [...] todos em
grande camaradagem, em meio a xingamentos, pragas e apostas.’ Os galos tinham vida curta,
sendo difícil que mesmo os melhores sobrevivessem a mais que uma dúzia de disputas”
(THOMAS, op.cit., p. 172).
579
O açulamento ocorria com as vítimas (além de touros e ursos, há também relatos desta prática
contra lobos, texugos, cavalos, macacos, mulas, etc...) presas a pesadas cordas ou correntes.
Eram então atacadas sucessivamente ou em conjunto por cães (os bull-dogs) que,
estrategicamente, na grande parte das vezes, investiam contra as partes mais sensíveis, como o
focinho, olhos, lábios e orelhas, que eram impiedosamente dilacerados. Os cães agressores
também eram usualmente atingidos pelas manobras defensivas do animal acuado.
580
As referidas “corridas de touros” eram embriões das até hoje praticadas “touradas”,
“vaquejadas” e “farras-do-boi”. O animal tinha as suas orelhas e rabo cortados, o focinho
lambuzado de pimenta e o corpo ensaboado. Era então solto com o objetivo de ser contido por
uma multidão que cometia toda sorte de barbaridades contra o pobre animal.
581
O aforismo de OSCAR WILDE sobre a caça à raposa é perfeito. Segundo o autor, trata-se do
“inqualificável em plena perseguição ao incomível” (SAGAN, Carl. Bilhões e Bilhões. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 33).
582
As Inn Courts eram hospedarias de aprendizes de Direito e serviam muitas vezes como centros
de atividades culturais.
583
WILLIAM HINDE recorda-se de um episódio em que “Certa vez um fidalgo prestes a alimentar
seu falcão, tirou um pombo vivo de sua sacola de falcoaria e, tomando-o primeiramente pelas
duas asas, com grande violência as rasgou do corpo; depois, tomou os pés e arrancou-os aos
pedaços da mesma maneira, o corpo da pobre criatura tremendo em sua mão, enquanto o falcão
se fartava com as outras partes, para seu grande prazer e contentamento.” (HINDE apud
THOMAS, op.cit., p. 174).
584
BECKFORD apud THOMAS, op.cit., p. 173.
- 201 -
meninos pequenos se divertirem com a perseguição e tortura de
criaturas vivas. Nas escolas secundárias, o apedrejamento de galos era
um ritual amplamente observado no calendário. Na Terça-Feira de
Carnaval, a ave era acorrentada a um toco ou enterrada até o pescoço,
enquanto os alunos abriam fogo contra ela até que morresse. [...] Fora
da escola, as crianças roubavam ninhos de passarinhos, caçavam
esquilos com ‘tambores, gritos e alarido’, capturavam pássaros para lhes
arrancar os olhos, amarravam garrafas ou latas às caudas de cães,
matavam sapos colocando-os num dos extremos de uma alavanca e
golpeando a outra ponta, derrubavam gatos de grande altura para ver se
aterrisariam em pé, cortavam rabos de porcos como troféus e inflavam
os corpos de rãs vivas soprando dentro delas com canudos de palha.
Era um ‘experimento comum entre os meninos’, segundo o relato de
Thomas Willis, em 1664, ‘atravessar uma agulha na cabeça de uma
galinha’ a fim de verificar quanto tempo esta sobreviveria à
585
experiência .
A atitude das crianças nada mais era do que reflexo dos modelos
adultos que possuíam. Em geral, percebe-se que os relatos de caçadas, abates
de bois, mortes a pedradas, castrações e uma infinidade de práticas cruéis não
mereciam qualquer comentário especial por parte de seus perpetradores,
revelando que, muito provavelmente, tais pessoas não se sentiam
emocionalmente afetadas por eles.
585
Ibid., p. 175.
586
A obra Gentleman´s Recreation (1674) recomendava a captura de um cervo com redes para
que, posteriormente, fosse cortada uma de suas patas e fosse solto para ser perseguido por cães.
- 202 -
fora dos termos de referência moral. As pessoas da época recordam esses povos
‘primitivos’ que, diz um antropólogo nosso contemporâneo, nem buscam infligir
dor aos animais nem evitam fazê-lo: ‘a dor nos seres humanos fora do círculo
social ou a dor nos animais tende a ser um assunto de interesse menor.’”587
587
LECKY apud THOMAS, Keith, op.cit., p. 176.
588
Esta concepção é nitidamente antropocêntrica na medida em que somente devemos proteger
aquilo que nos afeta. A Bíblia contém algumas passagens em que se fala em ajudar o animal de
carga quando prostrado (Ex 23, 5; Dt 22, 4), em permitir o descanso aos sábados para os animais
(Ex 23, 12), e em não amordaçar o boi que debulha o grão (Dt, 25, 4) [...] TOMÁS DE AQUINO, a
respeito de tais passagens, endossando a visão acima exposta, entendia que “Se alguma
passagem nas Sagradas Escrituras parece proibir-nos de ser cruéis com os animais brutos, isso
ocorre ou [...] por temor de que através da crueldade aos animais chegue-se a ser cruel também
com os seres humanos, ou porque a agressão a um animal acarreta dano temporal ao homem” (in
Summa contra Gentiles, III, p. 113). Tal concepçaõ foi amplamente incorporada pela legislação.
Quando, em 1809, Lord ERSKINE propôs uma lei contra os maus-tratos, justificou-a por visar, em
realidade, impedir o cometimento de crimes entre homens. A maior parte dos autores, incluindo-se
DIX HARWOOD com o seu brilhante Love for Animals and How It Developed in Great Britain
(1928) e PETER SINGER, entendem que até o século XVIII a condenação da crueldade para com
animais, quando havia, era por motivação antropocêntrica, pois somente tornava ilícitas as
condutas que eventualmente trouxessem lesão aos interesses e bens humanos.
589
Mesmo que antropocêntrica e paradoxal, a doutrina da “gerência do homem”, consubstanciada
na atitude de compaixão religiosa, foi importante para possibilitar a expansão de uma nova atitude
- 203 -
A sensibilidade burguesa, ao lado da compaixão religiosa, também
se fazia notar pela adoção das teses de MONTAIGNE, amplamente divulgadas e
traduzidas no século XVII, pela quais: “uma espécie de respeito e de dever geral
de humanidade obriga-nos [...] para com os animais brutos dotados de vida e
sentido [...]. Aos homens devemos justiça e, a todas as outras criaturas capazes
disso, graça e bondade.”590 Começa a ser utilizado o argumento da “fellow-
creature” (criatura semelhante) segundo o qual todos foram criados pelo mesmo
Deus e, portanto, todos são semelhantes em direitos, rompendo com a idéia
hierarquizada da Grande Cadeia do Ser.
FERNANDO ARAÚJO
perante os animais. Exemplo disto é a interpretação segundo a qual a ferocidade animal, sendo
fruto do pecado original humano, pois até então todos os animais eram mansos e pacíficos, não
deveria ser incentivada (condenação dos esportes animais, como as práticas de rinhas de briga,
açulamentos, arremesso de paus, etc..). Essa posição tornava cada vez mais indefensável a
justificação da matança de animais por mero prazer (só havia autorização para o abate para
obtenção de alimento ou por defesa pessoal).
590
MONTAIGNE apud THOMAS, op.cit., p. 189.
591
ARAÚJO, op.cit., p. 37.
- 204 -
Mesmo William Cobbett, de modo geral muito realista, sustentava que
fazer os animais sofrerem para melhorar o paladar humano constituía um
abuso da autoridade que Deus concedera ao homem. Na última fase do
século, os métodos de abate também sofreram um escrutínio crítico. O
tratamento do gado no mercado de Smithfield foi posto sob vigilância
legal em 1781. Em 1786, os matadouros passaram a ter que funcionar
sob licença e houve muita polêmica sobre o abate com métodos mais
humanos. Enquanto isso, crescia o clamor por uma legislação contra
toda sorte de crueldade para com animais. Em fins do século XVIII,
algumas escolas secundárias introduziram normas contra maus-tratos
aos animais; e, mesmo antes do Parlamento começar a agir, houve
processos por crueldade baseados em violação de propriedade.592
- 205 -
da luta de touros com cães (“bullbaiting”). Segundo o autor, em 1800, a proposta
oferecida por Sir WILLIAM PULTENEY, apesar de contar com o apoio de
ROWLAND HILL, RICHARD SHERIDAN e RICHARD MARTIN, foi rejeitada por
se entender que “o que quer que interfira na disposição privada e pessoal do
tempo ou da propriedade do homem é tirania. Desde que outra pessoa não seja
atingida, não há lugar para a interferência do poder constituído.”594
594
SINGER, op.cit., p. 230.
595
Apud SINGER, op.cit., p. 231.
- 206 -
Todavia, em 1822, houve êxito na aprovação da referida lei que
tipificava como crime os maus-tratos injustificados contra animais domésticos596
597
, então chamada de Martin´s Act em homenagem a um de seus principais
596
Exatos cem anos depois, foram apresentados os primeiros projetos legislativos relativos ao
tema no Brasil. LEVAI, citando DIAS, lembra que “o mais remoto projeto legislativo brasileiro
referente à crueldade contra animais foi apresentado em 1922, pelo senador Abdias Neves, não
logrando, contudo, êxito na aprovação. Dois anos depois, porém, passou a vigorar o Decreto
Federal n.º 16.590, de 10 de setembro de 1924 (Regulamento das Casas de Diversões Públicas),
cujo artigo 5º vedava a concessão de licenças para “corridas de touros, garraios, novilhos, brigas
de galo e canários e quaisquer outras diversões desse gênero que causem sofrimento aos
animais. [...]” Posteriormente, continua o autor, “durante o Governo Provisório, expediu (Presidente
Getúlio Vargas) o Decreto n.º 24.645, de 10 de julho de 1934, proibindo a prática de maus-tratos
contra animais. [...] Dentre as hipóteses de maus-tratos contempladas em seu minucioso art. 3º,
podemos relacionar as seguintes condutas: praticar atos de abuso ou crueldade em qualquer
animal, golpeando-o, ferindo-o ou mutilando-o; manter animais em lugares insalubres; sujeitá-los a
trabalhos insalubres; abandonar animal doente ou ferido; não promover morte rápida aos animais
destinados ao consumo; atrelar animais, em condições irregulares, aos veículos de tração e
carroças, bem como infligir-lhes castigo imoderado; utilizar dos serviços de animal enfermo e, se
sadio, fazê-lo trabalhar sem descanso ou alimento suficientes; manter ou transportar animais em
cativeiros anti-higiênicos; deixar de ordenhar vacas leiteiras; depenar ou despelar animais vivos;
promover a engorda mecânica de aves; expor pássaros em gaiolas sujas ou utilizá-los para
sortilégios e acrobacias; praticar tiro ao alvo ou lutas envolvendo animais, assim como touradas e
seus simulacros.” (LEVAI, op.cit., p. 40-1). A evolução legislativa, vale dizer, passou ainda pela
inclusão na Lei de Contravenções Penais – Decreto n.º 3.688, de 3 de outubro de 1941 – de
dispositivo penal acerca da crueldade contra animais (art. 64). Destacam-se ainda a elaboração de
leis, de âmbito federal, que contemplavam a proteção à fauna tais como: Decreto n.º 23.793/34
(Código Florestal), Lei n.º 4.771/65 (Código Florestal), Decreto n.º 24.643/34 (Código de Águas),
Decreto n.º 794/38 (Código de Pesca), Decreto n.º 5.894/43 (Código de Caça), Lei n.º 5.197/67
(Lei de Proteção à Fauna - que trata da proteção aos animais silvestres, complementada pela Lei
n.º 7.653/88), Decreto-Lei n.º 221/67 (Código de Pesca), Lei n.º 6.638/79 (Vivissecção), Lei n.º
6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), Lei n.º 7.173/83 (Jardins Zoológicos), Lei n.º
7.643/87 (Cetáceos), Lei n.º 7.679/88 (Pesca em Períodos de Desova), Lei n.º 9.605/98 (Sanções
Penais e Administrativas de Condutas Lesivas ao Meio Ambiente), Lei n.º 3.179/99 (Infrações
Administrativas) e Lei n.º 10.519/2002 (Rodeios) (os diplomas legislativos destacados em negrito
encontram-se atualmente em vigor). A Constituição Federal em seu art. 225, § 1º, VII dispõe que:
“Art. 225. Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a
efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VII – proteger a fauna e a flora, vedados,
na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais à crueldade.”
597
Na França se tem notícia da elaboração da chamada “Lei Grammont” de 1850 (que ganhou
este nome em homenagem a JACQUES DE GRAMMONT, criador da Sociedade Protetora dos
Animais em 1845) que proibia os maus tratos. Esta lei encontra-se atualmente derrogada pelo
Decreto n.º 5961051 de 7 de setembro de 1959, que sanciona a crueldade para com animais. A
abrangente obra “La Protection Pénale Des Animaux Dans Les Législations Française et
Étrangères”, do juiz francês EDMOND BOCQUET, datada de 1924, traz um estudo histórico
comparativo entre os mais diversos marcos legislativos a respeito da proteção animal. Menciona o
autor que, em verdade, antes da mencionada Lei Grammont, havia proteção via Código Penal
Francês, datado de 25 de setembro de 1791. Em seus artigos 451 a 455 e 479 a 482 podem ser
encontradas diversas normas tipificando condutas de maus-tratos. Além da França e da já citada
Inglaterra, o autor elenca alguns marcos legislativos importantes: na Itália (arts. 9º e 491 do
Código Penal de 1913 e arts. 727 do Código Penal de 1930); na Bélgica (art. 527, § 6º do Código
Penal de 1929); em Portugal (Decreto de 19 de setembro de 1886 que alterou os arts. 478 a 481
do Código Penal); na Alemanha (art. 360, XIII do Código Penal de 1933); na Suíça (capítulo II do
- 207 -
mentores598. Os burros, apesar da reação anterior contrária, foram também
incluídos (assim como “cavalos, éguas, mulas, asnos, bois, vacas, bezerros,
ovelhas ou qualquer outro tipo de gado”), muito embora cães e gatos tenham
ficado de fora599.
Código Penal de 1881); no Japão (art. 2º, § 14 do Decreto de 1908); na Noruega (art. 382 do
Código Penal de 1902); na Rússia (art. 43, § 1º do Código Penal), entre tantos outros (BOCQUET,
Edmond. Protection Pénale des Animaux Dans Les Législations Française et Étrangères. Paris:
Recueil Sirey, 1934). Há também um estudo bastante interessante sobre a Lei Grammont e seus
antecedentes de AGULHON, Maurice. Le Sang des Bêtes. Lê Problème de la Protecion des
Animaux em France aux XIX Siècle. In CYRULNIK, op.cit.
598
Os maus-tratos eram punidos com uma pena pecuniária substancial acrescida de uma penda
restritiva da liberdade de até três meses. Além do Martin´s Act de 1822, há outros diplomas
subseqüentes importantes tais como os de 1835 (fim do “bullbaiting com a lei proposta por
JOSEPH PEASE), 1849 (maus-tratos contra animais domésticos), 1854 (trabalhos excessivos a
animais de tração e carga), 1876 (regulamentando a vivisseção), 1880 (animais selvagens), 1900
(animais em cativeiro), 1904 (uso de armadilhas), 1906 (animais na experimentação científica,
também chamado de Dog´s Act), 1911 (definição legal de ‘ato de crueldade’), 1921 (proibição do
tiro ao pombo), 1925 (maus-tratos a aves), entre outros.
599
KEITH THOMAS ressalta, a esse respeito, que “só houve legislação quando esteve presente o
interesse econômico. Os sentimentos tão expressos para com os pássaros silvestres, lebres ou
insetos permaneceram ignorados, e a legislação do início do século XIX protegia exclusivamente
cavalos, bois, cães, aves domésticas e outros animais de criação. Analogamente, a preocupação
com o bem-estar dos animais não impediu muitas pessoas de continuar a comer carne. Se o
animal era comestível, então somente a crueldade ‘desnecessária’ era proibida. Assim, o final do
século XVIII foi rico em contradições das mais visíveis. Alguns animais eram de estimação, outros
eram ‘daninhos’. Os críticos da caça não relutavam em pescar. Até os caçadores combinavam o
seu gosto pela matança de animais selvagens com uma grande ternura por cães e cavalos.
Livretos contra briga de galos eram encadernados com couro de vaca” (THOMAS, op.cit., p. 227).
600
JAMES TURNER (op.cit., p. 17) cita a Society for the Suppression of Vice, fundada em 1802,
como sendo a primeira a incluir em seus objetivos a erradicação de algum tipo de crueldade com
animais (no caso, possuía a erradicação dos “esportes animais” como um de seus diversos
propósitos). Cita também uma tentativa frustrada de fundação de uma sociedade protetora dos
animais em Liverpool no ano de 1809. Em razão de divergências sobre a política de combate a
crueldade (foco na punição ou na educação), dois membros dissidentes saíram e fundaram, em
1831 a “Association for Promoting Rational Humanity Toward the Animal Creation”. Em 1832,
GOMPERTZ, antigo diretor da SPCA, também optou por fundar a sua própria entidade, chamada
de “Animals Friend Society”. Com a saída da ala mais radical, a SPCA aumentou o número de
associados, contando com apoios de peso. Em 1835, a então princesa VICTORIA e sua mãe, a
duquesa de Kent associaram-se, seguidas do poderoso banqueiro SAMUEL GURNEY. Denotando
forte prestígio, em 1840 a rainha VICTORIA requereu a alteração do nome da associação para
“Royal Society for the Prevention of Cruelty to Animals - RSPCA”. Várias sociedades protetoras
- 208 -
Todos estes diplomas legislativos, bem como os vindouros, eram
interpretados à luz de que eram feitos tendo por objeto a integridade humana e
não animal (teoria dos “deveres indiretos”). De fato, em 1888, um juiz da Suprema
Corte de Mississipi deixa claro que, apesar dos estatutos protetivos, os animais
não eram sujeitos de direito e que a sua proteção visava, em verdade, evitar a
degradação humana:
Such statutes were not intended to interfere, and do not interfere, with the
necessary discipline and government of such animals, or place any
unreasonable restriction on their use or the enjoyment to be derived from
their possession. The common law recognized no rights in such animals,
and punished no cruelty to them, except in so far as it affected the rights
of individuals to such property. Such statutes remedy this defect, and
exhibit the spirit of that divine law which is so mindful of dumb brutes as
to teach and command, no to muzzle the ox when he treadeth out the
corn; not to plow with an ox and an ass together, not to take the bird that
sitteth on its young or its eggs; and not to seethe a kid in his mother milk
[…]. Cruelty to them manifests a vicious and degraded nature, and it
tends inevitably to cruelty to men […] The dominance of man over them,
if not a moral trust, has a better significance than the development of
malignant passions and cruel instincts. Often their beauty, gentleness,
and fidelity suggest the reflection that it may have been one of the
purposes of their creation and subordination to enlarge the sympathies
and expand the better feelings of our race. But, however this may be,
foram fundadas em seguida: Dresden (1839), Berlin (1841), Munich (1843), Paris (1845) e Vienna
(1846). Posteriormente, em Nova Iorque, no dia 10 de abril de 1866, foi fundada a “American
Society for the Prevention of Cruelty to Animals – ASPCA”, seguida da “Pennsylvania Society for
the Prevention of Cruelty to Animals – PSPCA” (em 21 de junho de 1867), da “Massachusetts
Society for the Prevention of Cruelty to Animals – MSPCA” (em 31 de março de 1868) e em San
Francisco em 1868. Em 1877 houve o primeiro encontro da American Humane Society, em
Cleveland, Ohio, com o propósito de formar uma federação das entidades de proteção de animais
e crianças. Conforme nos relata LEVAI (op.cit., p. 40), no Brasil, também a partir da segunda
metade do século XIX, houve a criação da primeira sociedade protetora dos animais em São
Paulo, a UIPA – União Internacional dos Animais. Sua criação se deu em 30 de maio de 1895 por
iniciativa conjunta de HENRI RUEGGER e pelo então senador IGNACIO WALLACE DA GAMA
COCHRANE.
601
Muitos dos anseios para banir os maus-tratos e os chamados “esportes cruéis” tinham por base
o desejo aristocrático de disciplinar as classes menos favorecidas segundo padrões mais elevados
de urbanidade, mais convenientes ao espírito industrioso do período. De fato, parece que, ao
menos inicialmente, a SPCA parece ter processado, em sua maioria, indivíduos das classes
trabalhadoras. Por essa razão, em 1868, JOHN STUART MILL recusou a vice-presidência da
entidade.
- 209 -
human beings should be kind and just to dumb brutes; if for no other
reason than to learn to be kind and just to each other 602.
602
Apud WISE, op.cit., p. 44 (grifos nossos).
603
O primeiro projeto de ERSKINE contou com o apoio de PULTENEY, não por se sensibilizar
com a proteção dos animais, mas por entender que a prática, alem de cruel, ocupava o tempo útil
dos trabalhadores, tornando-os pessoas desocupadas e desordeiras. Veja-se: “The reasons in
favor of such a motion as this were obvious. The practice was cruel and inhuman; it drew together
idle and disorderly persons; it drew also form their occupations many who ought to be earning
subsistence for themselves and families; it created many disorderly and mischievous proceedings,
and furnished examples of profligacy and cruelty. In short, it was a practice which ought to be put a
stop” (PULTENEY apud TURNER, op.cit., p. 26).
604
A Revolução Industrial inglesa é associada ao período que vai do ano de 1750 a 1850.
605
Os “blood sports” chocavam-se com os emergentes valores urbanos e industriais que prezavam
cada vez mais por valores como a prudência, a regularidade e organização, que passavam a ser
internalizados pela população. A Revolução Industrial traz uma dinâmica diferente da
experimentada sob os auspícios da economia agrária. A velocidade das comunicações, dos
transportes e o aumento da jornada de trabalho não deixava margem para tempo ocioso. Os
ambientes desordeiros das rinhas começavam, pois, a ser vistos com maus olhos. Some a isto o
fato de que a densidade demográfica aumenta consideravelmente, limitando os grandes espaços
exigidos para tais eventos.
606
A literatura infantil encampa a tese de características morais apreciáveis nos animais como a já
mencionada obra de SARAH TRIMMER, Fabulous Histories Designed for the Instruction of
Children (1788). Mesmo os livros para adultos refletiam essa visão. Exemplo disso são as obras
The General Character of the Dog (1804) de JOSEPH TAYLOR; Canine Gratitude e Four-Footed
Friends (antecedendo a era das exposições caninas e partir de 1860 e a fundação do Kennel Club
em 1873).
- 210 -
animais, tornando-os marginais ao processo de produção (força hidráulica e
utilização do vapor), particularmente aqueles de carga e tração607.
607
BOERSEMA, J.J. The Torah and the Stoics on Humankind and Nature. Leiden: Brill, 2001, p.
237.
608
TURNER, op.cit., p. 33, tradução nossa.
- 211 -
ao que parece, não se preocupavam, ao menos em um primeiro momento, com a
questão filosófica do abate animal. A moralidade de se matar animais para servir
de alimento começou a ser questionada por alguns cristãos “excêntricos” que
pregavam que o princípio da piedade vedava que a morte fosse meio de saciar os
prazeres humanos.609 De fato, conforme já mencionado anteriormente (quando
falamos sobre a influência dos movimentos revolucionários sobre o movimento de
libertação animal) o primeiro protesto não-religioso contra a matança de animais
para alimento veio da obra do soldado inglês JOHN OSWALD, The Cry of Nature;
or An Appeal to Mercy and to Justice on Behalf of the Persecuted Animals (1791).
Seguiram-se as obras de JOHN LAWRENCE, THOMAS PAINE, GEORGE
NICHOLSON e JOSEPH RITSON.
609
O quacre norte-americano JOSHUA EVANS era um desses pregadores, assim como os
ingleses WILLIAM COWHERD e WILLIAM METCALFE. Este último chegou a publicar em 1827,
fundamentado-se em doutrinas religiosas, a obra Abstinence from the Flesh of Animal.
610
Cf. R. CRANE, S. R. “Suggestions toward a Genealogy of the ‘Man of Feeling’”, ELH – A
Journal of English Literary History, 1934.
- 212 -
animais. As duas reformas estão inseparavelmente vinculadas, e
nenhuma pode ser plenamente realizada sem a outra611.
611
SALT apud THOMAS, op.cit., p. 221.
612
THOMAS, op.cit., p. 228.
613
KAFKA apud SANTANA, op.cit., p. 86.
- 213 -
PRIMATA MAIS PERIGOSO DO PLANETA’. Ao olhar por entre as
grades, vemos com surpresa nossa própria cara: o letreiro esclarece que
o homem já matou mais espécies no planeta que qualquer outra espécie
conhecida.” 614
614
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: As Bases
Biológicas da Compreensão Humana. São Paulo: Palas Athenas, 2004. p. 28.
615
DARWIN apud SINGER, op.cit., p. 232.
- 214 -
biólogos da época não era adepta destas teses e acreditava na versão bíblica de
criação simultânea de todas as espécies (criacionismo).
616
A teoria geológica em voga na época era a do catastrofismo, pela qual o substrato geográfico
havia sido formado em tempos remotos por meio de convulsões de grande magnitude. Em São
Tiago, nas ilhas de Cabo Verde, DARWIN explorou um antigo vulcão e, aplicando os princípios de
LYELL, deduziu que o fundo do mar fora coberto por uma torrente de lava. Mais tarde essa
torrente fora pressionada e levantada para formar o rochedo da ilha. Seduzido pela geologia,
iniciou um trabalho sobre o tema durante a referida viagem.
- 215 -
Outro livro que influenciou o pensamento de DARWIN foi o Ensaio
Sobre o Princípio da População de THOMAS ROBERT MALTHUS. A obra
ressaltava o conflito pelos recursos naturais com o aumento da demanda em
virtude do desmedido crescimento populacional. A noção de “luta pela
sobrevivência” cristalizou-se em sua mente para que desenvolvesse a idéia de
que “nessas circunstâncias, as variações favoráveis tenderiam a ser preservadas
e as desfavoráveis, a ser destruídas. O resultado disso seria a formação de novas
espécies.”617 Os indivíduos competiam dentro das próprias espécies e os de
características dominantes sobreviveriam pela melhor adaptação (evolução por
“seleção natural”).
617
DARWIN apud STRATHERN, Paul. Darwin e a Evolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.
51.
618
Especula-se que o autor teria sido por um editor escocês chamado ROBERT CHAMBERS.
619
Em 1º de julho de 1858, DARWIN e ALFRED RUSSEL WALLACE (também chegara a algumas
conclusões importantes sobre a teoria de evolução paralelamente aos estudos de DARWIN.
Apesar disso, sustentava pontos de vista diversos, tal como que a maior capacidade mental dos
seres humanos não poderia ser explicada sem o auxílio de uma intervenção divina não-biológica)
publicam um artigo na Sociedade Lineana intitulado “Sobre a Tendência das Espécies para
Formarem Variedades; e sobre a Perpetuação das Variedades e Espécies por Meios Naturais de
Seleção.”
- 216 -
nenhum espaço para a intervenção divina e “reduzia” os seres humanos à
condição de meros animais. A antiga e arraigada noção de que a humanidade
integrava um grupo privilegiado e seleto de seres dentro de uma hierarquia
permanente e divinamente ordenados perde completo sentido.
620
Tal obra é “A Descendência do Homem”, também conhecida como “A Origem do Homem”.
621
MILLER, Jonathan; VAN LOON, Borin. Darwin para Principiantes. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1982. p. 175.
622
Um exemplo completamente equivocado e infeliz acerca da compreensão biológica da teoria
evolucionista nos é dado por FÁBIO KONDER COMPARATO em sua obra A Afirmação Histórica
dos Direitos Humanos (São Paulo: Saraiva, 2003). É surpreendente a “proficiência
antropocêntrica” das colocações do autor no sentido de que “tudo gira em torno do homem e de
- 217 -
tempo evolucionário não concede qualquer valor moral específico às espécies,
vez que não se pode conceder valor moral a fatos científicos que, no máximo,
podem ser utilizados como premissas fáticas para argumentos éticos.”623 O
argumento cronológico/valorativo é tão infantil que por meio dele poderíamos
chegar à conclusão de que um camundongo (mamífero) fosse superior a um
crocodilo (réptil) ou que nós mesmos fôssemos “melhores” e mais “evoluídos” que
nossos antepassados. Além disso, segundo MATURANA, “do ponto de vista
histórico o mesmo vale para todos os seres vivos e todas as células
contemporâneas: compartilhamos a mesma idade ancestral.“624
sua eminente posição no mundo” (op.cit., p. 1). Para ele, as justificativas para que o homem ocupe
tal “posição eminente” são de ordem religiosa (“a criatura humana ocupa uma posição eminente
na ordem da criação” – op.cit., p. 2), filosófica (afirmação da natureza racional do homem como
atributo de valor que lhe conferiria superioridade sobre as demais criaturas, op.cit., p. 3 e 4), e
“científica” (“a justificativa científica da dignidade humana sobreveio com a descoberta do
processo de evolução dos seres vivos [...] apesar da aceitação geral das explicações darwinianas,
vai aos poucos abrindo caminho no mundo científico a convicção de que não é por acaso que o
ser humano representa o ápice de toda a cadeia evolutiva das espécies vivas. A própria dinâmica
da evolução vital se organiza em função do homem [...]. Nestas condições, é razoável aceitar-se
como postulado científico, que toda a evolução das espécies vivas se encaminhou aleatoriamente
em direção ao ser humano” – op.cit., p. 5). Pobre DARWIN! Como não posso acreditar que o autor
tenha feito tais assertivas com deliberada má-fé, só posso creditar sua retórica ao mais absoluto
desconhecimento científico. É triste perceber que a aristotélica proposição da “Grande Cadeia do
Ser” conta com discípulos fiéis em pleno século XXI. Mesmo para os teólogos mais esclarecidos, o
antropocentrismo “[...] revela uma visão estreita e atomizada do ser humano, desgarrado dos
demais seres. Afirma que o único sentido da evolução e da existência dos demais consiste na
produção do ser humano, homem e mulher. Lógico, o universo inteiro se fez cúmplice na produção
do ser humano. Mas não apenas dele, mas dos outros seres também” (BOFF, Leonardo. Ecologia:
Grito da Terra, Grito dos Pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. p. 40). Quase quatrocentos anos
depois ainda há aqueles que se agarram às teses mecanicistas e negam aos animais o
reconhecimento de direitos e interesses básicos, por meio de argumentos equivocados e falciosos.
623
KELCH, Thomas G., Toward a non-property status for animals, 1998, apud SANTANA, op.cit.,
p. 91.
624
MATURANA, op.cit., p. 66.
- 218 -
capacidade de sentimentos complexos, como o sofrimento, a angústia, a
ansiedade, o prazer, o medo, o desespero, entre outros tantos625.
625
A repercussão no meio acadêmico e a preciosidade da obra foram tantas que afirma-se ser a
principal responsável pelo surgimento das disciplinas fisiológicas e comportamentais tais como a
etologia, a neurobiologia e a comunicação psicológica.
626
Segundo o autor, “Quando tentamos desempenhar alguma tarefa que, pela sua dificuldade,
requer precisão, como o passar uma linha numa agulha, geralmente apertamos os lábios com
força, na tentativa, imagino, de não atrapalhar os movimentos com nossa respiração. Percebi a
mesma atitude num orangotango. O pobrezinho estava doente e se distraía tentando matar
moscas nas vidraças com os dedos. Era difícil, pois as moscas voavam para todos os lados, e a
cada tentativa, ele apertava os lábios com força fazendo bico.” (DARWIN, Charles. A Expressão
das Emoções no Homem e nos Animais. São Paulo: Companhia Das Letras, 2000. p. 136).
627
Ibid., p. 231.
- 219 -
O autor analisa as mais diversa formas de manifestação das
emoções nos animais e no homem, afirmando que:
628
Ibid., p. 79.
629
Ibid., p. 73.
630
Ainda sobre a dor e o medo escreve o biólogo: “A dor, quando intensa, provoca depressão ou
prostração extremas; mas ela é inicialmente estimulante, induzindo à ação, como vemos quando
chicoteamos um cavalo, e como se demonstra pelas terríveis torturas infligidas em terras
estrangeiras aos exaustos animais dos carros de boi, para desapertá-los para renovados esforços.
Novamente é o medo a mais depressiva das emoções; e ele logo provoca uma aguda e
irreversível prostração, como se em conseqüência, ou associada, aos mais violentos e
prolongados esforços para escapar do perigo, mesmo nenhum esforço tendo sido feito [...].” (Ibid.,
p. 83). “O gado e os cavalos agüentam fortes dores em silêncio; mas quando a dor é excessiva, e
especialmente quando é acompanhada por medo, soltam sons terríveis. Muitas vezes reconheci
de longe nos pampas o agonizante urro de morte do gado, quando laçado e imobilizado. Parece
que os cavalos, quando atacados por lobos, soltam fortes e peculiares gritos de desespero.” (Ibid.,
p. 86). “A agonia da dor é expressa pelos cães quase da mesma maneira que por muitos outros
animais, ou seja, uivando, estremecendo e se contorcendo.” (Ibid., p. 118). “Nos macacos, a
expressão de uma dor pouco intensa, ou de qualquer emoção dolorosa, como tristeza,
aborrecimento, ciúme, etc., não se distingue muito da expressão de raiva moderada; e esses
estados de espírito se alternam rapidamente. A tristeza, no entanto, em algumas espécies
manifesta-se certamente pelo choro.” (Ibid., p. 131).
No que se refere ao prazer, “Muitos animais chamam incessantemente pelo sexo oposto no
período de cio; e não são poucos os casos em que o macho o faz para agradar ou excitar a
- 220 -
Como conclusão de seus detalhados estudos comportamentais,
DARWIN afirma que:
fêmea. Esse parece realmente o uso primevo e o meio de desenvolvimento da voz, como tentei
demonstrar em meu The Descent of Man. Assim, o uso dos órgãos vocais parece ter se associado
com a antecipação do mais intenso prazer que os animais são capazes de sentir.” (Ibid., p. 86)
Quanto à raiva e o medo, observa DARWIN que: “Nos carnívoros, o eriçar dos pêlos parece ser
praticamente universal, muitas vezes acompanhado de movimentos ameaçadores, como mostrar
os dentes e soltar uivos selvagens. No mangusto, vi o pêlo eriçado em praticamente todo o corpo,
inclusive a cauda; na hiena e no protelo, a crista dorsal ergue-se de uma maneira bastante
chamativa. O leão enfurecido levanta sua juba. O arrepiar do pêlo no pescoço e dorso do cão, e
no corpo todo do gato, especialmente no rabo, é conhecido de todos. Com o gato isso ocorre
aparentemente apenas quando sente medo; com o cão quando sente raiva e medo, mas não até
onde observei, com um medo covarde, como quando um cão vai ser chicoteado por um treinador
severo.” “[...] Pássaros de todas as ordens eriçam suas penas quando assustados ou
enraivecidos. Todos já devem ter visto dois galos, mesmo bem jovens, preparando-se para lutar
com sua penugem do pescoço arrepiada.” (Ibid., p. 96-7). “Um cão aterrorizado joga-se no chão,
uiva e solta suas excreções; mas o pêlo, acredito, não fica arrepiado a não ser que ele sinta
alguma raiva. Eu vi um cão muito amedrontado com uma banda de músicos que tocava alto fora
de casa, cada músculo de seu corpo tremendo, o coração palpitando tão forte que mal dava para
contar os batimentos e a boca aberta com a respiração ofegante. Igual a um homem
amedrontado.” (Ibid., p. 119).
631
Ibid., p. 139.
- 221 -
também que as expressões por si mesmas, ou a linguagem das
emoções, como por vezes são chamadas, certamente têm importância
para o bem-estar da humanidade. Entender, na medida do possível, a
fonte ou origem das várias expressões que a todo momento podem ser
vistas nos rostos dos homens à nossa volta, sem mencionar nossos
animais domesticados, deveria ter um enorme interesse para nós. Por
essas muitas razões, podemos concluir que a filosofia do nosso tema fez
por merecer a atenção dispensada por inúmeros excelentes
observadores, e que ela merece ainda mais atenção, especialmente por
parte de fisiologistas habilitados 632.
E, por fim:
632
Ibid., p. 341.
633
DARWIN, A Origem do Homem, p. 193, apud SINGER, op.cit., p. 233 (grifos nossos).
- 222 -
demais animais foram criados para fornecer-nos alimentos ou que temos
autoridade divina sobre eles e permissão divina para matá-los.634
634
SINGER, op.cit., p. 233-4.
635
BURGIERMAN, Denis Russo. Vegetarianismo. São Paulo: Abril, 2003. p. 10.
- 223 -
CAPÍTULO II - ENTRE O FORMALISMO E A REALIDADE ÉTICA
MILAN KUNDERA
“He who does not posses power loses the right to life.”638
ADOLF HITLER
636
KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.
329.
637
COMPARATO, op.cit., p. 254.
638
HITLER apud PATTERSON, Charles. Eternal Treblinka: Our Treatment of Animals And The
Holocaust. New York: Lantern Books, 2002. p. 231.
- 224 -
O individualismo e o egocentrismo são alimento constante para o
antropocentrismo. Como bem destaca SAVATER, todo o nosso psiquismo brota
de uma megalomania primária e narcisista (a que denomina de “homopotência”)
onde antes de nascer nos vemos como deuses (“imago-Dei”) e depois somos
fanáticos no sentido hegeliano: consideramos toda existência positivamente
alheia (isto é, não assimilado de imediato à sua) como um limite. Este limite
conduz, na maior parte das vezes, a táticas de dominação e opressão do alter 639.
FERNANDO PESSOA sintetiza poeticamente a idéia:
639
Cf. SAVATER, Fernando. Ética como Amor-próprio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 88.
640
PESSOA, Fernando. Se Te Queres, Poesias de Álvaro de Campos (heterônimo).
- 225 -
exploitation of one group frequently augments and compounds the
mistreatment of others 641.
641
ROSSIDES, Daniel W. Social Stratification: The Interplay of Class, Race, and Gender. Upper
Saddle River, NJ (USA): Prentice Hall, 1997. p. 19.
642
ANDERSON, Margaret L.; COLLINS, Patrícia Hill. Race, Class, and Gender: An Anthology.
Belmont, CA (USA): Wadsworth, 1992. p. xii e xiii.
643
PHARR, Suzanne. Homophobia: A Weapon of Sexism. Little Rock, Ark. (USA): Chardon, 1988.
644
NIBERT, David. Animal Rights, Human Rights: Entanglements of Oppression and Libertation.
Lanham, MA (USA): Rowan & Littlefield, 2002.
- 226 -
este motivo, o termo foi amplamente aceito e utilizado por ser ascético e não
carrear qualquer sorte de crítica ao status quo, razão pela qual a nomenclatura
mais adequada seria a de “grupos oprimidos”645.
[...] I would not deny that ideas of white superiority are powerful in their
impact, and that stereotypes of racial minorities have a tenacious hold on
the conscious and unconscious mind. But prejudiced attitudes are not the
essence of racism. […] racism is institutionalized. The processes that
maintain domination – control of whites over nonwhites – are built into the
major social institutions. These institutions either exclude or restrict the
participation of racial groups by procedures that have become
conventional, part of the system of rules and regulations 648.
645
IRIS YOUNG assim define o termo “grupos oprimidos”: “Grupo que compartilha características
físicas, culturais ou econômicas e que é sujeito, aos ganhos econômicos, políticos e sociais de um
grupo privilegiado, por meio de um sistema que institucionaliza a exploração, a marginalização, o
empobrecimento, a privação ou a vulnerabilidade à violência” (YOUNG apud NIBERT, op.cit., p. 6-
7, tradução nossa).
646
RICHARD RYDER e PETER SINGER.
647
Para o OXFORD ENGLISH DICTIONARY, “especismo” é: “discrimination against or exploitation
of certain animal species by human beings, based on an assumption of mankind’s superiority”.
648
BLAUNER apud NIBERT, op.cit., p. 8.
- 227 -
JAMES VANDER ZANDEN corrobora a visão anteriormente exposta
por BLAUNER, expondo que o preconceito emerge primariamente para dar
suporte à exploração e opressão racial. O preconceito visto sob este enfoque
seria um mecanismo de proteção dos privilégios adquiridos por um determinado
grupo em detrimento de outros:
649
ZANDEN apud NIBERT, op.cit., p. 9.
- 228 -
– and nineteenth – century anti-abolitionists contended that the end of
slavery would bring with it the collapse of the economic structure of the
United States, while in our own century C.W. Hume wrote that ‘the major
cruelties practiced on animals in civilized countries today arise out of
commercial exploitation, and the fear of losing profits is the chief obstacle
to reform 650.
650
SPIEGEL apud NIBERT, op.cit., p. 11.
651
Um método bastante comum de castração de animais é deitar o animal e, com uma faca, retirar
a bolsa escrotal expondo os testículos, que são arrancados com o rompimento do duto deferente.
Outro método usual é o uso de um anel que comprime fortemente toda a base da bolsa escrotal
obstando a circulação sanguínea. Os dois sistemas são tidos como profundamente agonizantes
para o animal. Nos EUA, especialmente nas colônias das Carolinas, Vírginia, Pennsylvania e New
Jersey, a castração de escravos era uma prática regular com vistas à “restrição do espírito
bárbaro” dos negros. WINTROP JORDAN afirma que “a castração de negros indica claramente
uma necessidade do homem branco no sentido de se convencer sobre sua suposta posição de
mando e ilustra dramaticamente a facilidade com que os brancos tratavam os seus escravos como
bois e cavalos cujo ‘espírito podia ser contido por meio da emasculação’” (JORDAN apud
PATTERSON, op.cit.. p. 14, tradução nossa).
652
LEO KUPER assinala que “o mundo animal sempre foi particularmente fértil como fonte de
metáforas de desumanização, por meio das quais as pessoas designadas como ‘animalescas’
foram frequentemente perseguidas como animais” (KUPER apud PATTERSON, op.cit., p. 26,
tradução nossa).
- 229 -
Dakota, L. FRANK BAUM, editor do periódico Aberdeen Saturday Pioneer, mais
conhecido posteriormente pela publicação do clássico The Wizard of Oz,
advogava pela exterminação dos índios nos seguintes termos:
The nobility of the Redskin is extinguished, and what few are left are a
pack of whining curs who lick the hand that smites them. The Whites, by
law of conquest, by justice of civilization, are masters of the American
continent, and the best safety of the frontier settlements will be secured
by the total annihilation of the few remaining Indians. Why not
annihilation? Their glory has fled, their spirit broken, their manhood
effaced; better that they should die than live the miserable wretches that
they are. 653”
653
BAUM apud PETTERSON, op.cit., p. 36.
654
CRISÓSTOMO apud PETTERSON, op.cit., p. 44.
655
Apud GOSSET, Thomas F. Race: The History of an Idea in America. New York: Oxford
University Press, 1997. p. 12.
656
HEGEL apud WEISS, John. Ideology of Death: Why the Holocaust Happened in Germany.
Chicado: Ivan R. Dee, 1996. p. 67.
657
LAGARDE apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
- 230 -
judeus refugiados da Rússia como “porcos”658. O compositor RICHARD WAGNER
(1813-1883) usualmente os denominava de “vermes” e “insetos”659. Como não
poderia deixar de ser, HITLER se apropriou desta odiosa terminologia para
descrever os judeus como “a aranha que lentamente suga o sangue dos
indivíduos, um bando de ratos que luta entre si até conseguir obter sangue, o
parasita que infesta o corpo de outras pessoas, eternos sanguessugas.”660
In his thoughts, Herman spoke a eulogy for the mouse who had shared a
portion of her life with him and who, because of him, had left this earth.
‘What do they know – all these scholars, all these philosophers, all the
leaders of the world – about such as you? They have convinced
themselves that man, the worst transgressor of all the species, is the
crown of creation. All other creatures were created merely to provide him
with food, pelts, to be tormented, exterminated. In relation to them, all
people are Nazis; for the animal it is an eternal Treblinka.
658
WILLIAM apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
659
WAGNER apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
660
HITLER apud PETTERSON, op.cit., p. 45.
661
Apud PETTERSON, op.cit., p. 47.
- 231 -
com exceção de que ao invés de processar porcos, processavam pessoas que
haviam sido definidas como porcos”662. Na mesma linha PATTERSON afirma:
662
CHICAGO apud PETTERSON, op.cit., p. 49.
663
PETTERSON, op.cit., p. 49-50.
664
NOEL, Donald. “Theory of Ethnic Stratification”, Social Problems 16, 1968. p. 157-172.
- 232 -
é geralmente mascarada pelo controle político. Aqueles que exercem o controle
político, geralmente por meio do aparato estatal, reforçam as instâncias legais de
modo a legitimarem as atitudes discriminatórias que protegerão este arranjo. Todo
o mecanismo é sistêmico e circular. A eliminação ou exploração do “outro” produz
arranjos sociais desenvolvidos com base em tratamentos opressivos chancelados
pelo Estado que, por seu turno, possibilitam a propagação de idéias que
diminuem e menosprezam os grupos “oprimidos” (formação de ideologias
discriminatórias); fornecendo combustível para o “cultivo” do preconceito
(discriminação como “lugar comum”); que permite a aceitação e normatização da
opressão e a preservação do status quo que reforça a eliminação ou exploração
do “outro”.
Tal teoria pode ser aplicada com perfeição para o caso da “opressão
animal”. A disparidade na distribuição de bens e riquezas gera um mundo
comprometido com a manutenção da exclusão. Cálculos sugerem que se todos
os seres humanos tivessem o mesmo padrão de consumo de um americano
médio, necessitaríamos de quatro planetas Terra para suprirmos tal demanda. A
proporção entre o quinto mais rico e o quinto mais pobre da população mundial
era de 30 para 1 em 1960; 60 para 1 em 1990 e 74 para 1 em 1997. Hoje, cerca
de apenas trezentos e cinqüenta bilionários acumulam tanta riqueza quanto cerca
de metade dos habitantes do globo665. Ao mesmo tempo, bilhões de animais com
os quais dividimos o planeta sofrem atos indizíveis e sofrimentos atrozes para se
encaixarem no sistema produtivo. Parece-nos que a construção de EDGAR
MORIN é cada vez mais atual no sentido de qualificar o homem como “Homo
sapiens demens”666. Como bem assinala SCHOPENHAUER:
Numa palavra, o “eu” tem duas qualidades: é injusto em si, com o que se
faz centro de tudo; é incômodo para os outros, como o que quer subjuga-
665
MCCHESNEY, Robert W. Rich Media, Poor Democracy: Communication Politics in Dubious
Times. New York: New Press, 2000. p. 299.
666
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina
Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cortez, 2000. p. 52.
- 233 -
los: porque cada “eu” é inimigo e gostaria de ser to tirano de todos os
outros.667
667
SCHOPENHAUER apud SAVATER, op.cit., p. 3.
668
COMPARATO, op.cit., p. 430.
- 234 -
Uma segunda distinção que podemos traçar do ponto de vista
didático diz respeito à resposta que se dá à indagação relativa à justificativa para
a possibilidade de limitação da esfera dos interesses humanos quando em
confronto com os interesses dos não-humanos. Uma primeira corrente sustentará
que a justificativa para a limitação encontra-se no fato de que as práticas
humanas afetam diretamente os próprios animais, que sob este prisma,
possuiriam valor intrínseco, próprio, sendo portadores de interesses que devem
ser protegidos. Tal visão, conforme se verá, será utilizada para fundamentar a
viabilidade dos denominados “Animal Rights” (“direitos dos animais”) mas, por
enquanto, chamá-la-emos de “concepção dos deveres diretos” (“direct duties
view”). Uma outra posição – a que denominaremos de “concepção dos deveres
indiretos” (indirect duties view) -, defenderá que as restrições morais às condutas
humanas têm por justificativa não os animais em si, mas tão somente o próprio
interesse humano de não se tornar cruel com elas669, como que se a atenção para
com os animais fosse uma propedêutica à humanização das relações entre os
homens. Haveria deveres que “envolvem” animais, mas não deveres para com
eles670. ROBERT NOZICK dá a esse fenômeno de interferência indireta da
669
Atos de violência e abuso contra animais há muito tem sido reconhecidos como indicadores de
perigosos desvios de comportamento. Três excelentes obras abordam a conexão da violência
contra os animais e contra humanos: PEREZ, Linda Merz. Animal Cruelty: Pathway to Violence
Against People. Providence, Rhode Island (USA):AltaMira Press, 2003; ASCIONE, Frank. Child
Abuse, Domestic Violence, and Animal Abuse: Linking the Circles of Compassion for Prevention
and Intervention. Purdue (USA): Purdue University Press, 1999; LOCKWOOD, Randall. Cruelty to
Animals and Interpersonal Violence: Readings in Research and Application. Purdue (USA): Purdue
University Press, 1998. De acordo com ROBERT K. RESSLER, que desenvolveu estudos de
assassinos em série para o FBI-Federal Bureau of Investigation, inúmeros estudos já
estabeleceram a comprovação empírica da existência de uma correlação entre a crueldade
cometida contra animais e atitudes de violência e de propensão criminal humana. Incontáveis
assassinos seriais contam com passado de violência animal. Entre eles podemos citar os casos de
DAVID BERKOWITZ, (conhecido pela alcunha de “Son of Sam”), ALBERT DE SALVO (o
estrangulador de Boston), o canibal JEFFREY DAHMER, TED BUNDY, etc. Para EDILSON
MOUGENOT BONFIM, promotor de justiça de São Paulo, atuante no conhecido caso do “maníaco
do parque”, elenca como características de tais criminosos: “A superficialidade das relações
sociais, a falta de remorso, a não-introjeção de valores, a vivência no ‘mundo errante’ da
criminalidade, a crueldade para com animais ou pessoas aperfeiçoada desde a infância, o
margeamento das regras sociais, fazem com que os assassinos-em-série elaborem em suas
fantasias sangrentas um mundo onde se sintam senhores, plenipotentes proprietários da vida dos
‘outros’, aos quais ‘coisificam’, na busca do próprio prazer” (BONFIM, Edílson Mougenot. O
Julgamento de um Serial Killer. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 81).
670
REGAN nos traz um exemplo bastante ilustrativo do que consista tal atitude indireta. Segundo
o autor, pode ser sustentado que não temos deveres diretos para com as obras de arte em geral,
digamos, a Guernica de Picasso. Teríamos, em tal caso, deveres (diretos por assim dizer), com os
próprios seres humanos, incluindo as futuras gerações, de preservação e proteção de tais
manifestações culturais. Assim, teríamos um dever que envolve a obra Guernica, mas não em
- 235 -
conduta cruel cometida contra animais pelos homens de “transbordamento moral”
(“moral spillover”)671.
relação à obra por si mesma. O dever de preservá-la seria, em realidade, um dever indireto para
com a humanidade (REGAN, The Case For Animal Righst, op.cit., p. 151).
671
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. p. 51.
672
O “welfarismo” animal é definido por FRANCIONE como a corrente que sustenta que seria
moralmente aceitável, sob determinadas circunstâncias, matar animais ou sujeitá-los ao
sofrimento, desde que precauções sejam tomadas para garantir que eles sejam tratados tão
“humanamente” quanto possível. Uma posição “welfarista” clássica geralmente sustenta que não
há interesse animal que não possa ser superado se as conseqüências da superação forem
suficientemente benéficas para os seres humanos (FRANCIONE, Gary. Animals, Property and The
Law. Philadelphia: Temple University Press, 1995. p. 6).
673
Fugiria ao escopo do presente trabalho discutir sobre a existência de uma “vontade livre” de
fato.
- 236 -
“pacientes morais” que seriam os indivíduos que são desprovidos das habilidades
de formulação de princípios morais abstratos e, via de conseqüência, de juízos
morais sobre seus atos. Desta maneira, são incapazes de conscientemente,
saber de antemão o que é “certo” ou “errado”. Seres humanos em tenra idade e
portadores de deficiências mentais congênitas são exemplos clássicos de
“pacientes morais”674. Certamente que tais indivíduos diferenciam-se
qualitativamente entre si, havendo aqueles que além da capacidade de
consciência e senciência, possuem também outras habilidades cognitivas como
por exemplo a memória, ainda que todas estas características possam se
apresentar em níveis fortemente diminuídos dependendo do caso concreto. Como
mencionado, os pacientes morais não podem pautar sua conduta em termos de
valoração moral própria, mas certamente podem se situar no pólo passivo dos
atos perpetrados pelos “agentes morais”.675 Ao contrário do que ocorre entre os
“agentes morais”, a relação entre eles e os “pacientes morais” não é recíproca. Os
últimos não podem fazer nada, “certo” ou “errado”, que afete ou envolva os
primeiros, mas estes podem efetivamente pautar sua conduta naqueles termos
em seu relacionamento, qualquer que seja ele.
674
Discussão maior envolve a categorização dos fetos e das gerações futuras como “pacientes
morais”.
675
REGAN ilustra a hipótese com a seguinte situação: um surra brutal infligida contra uma criança,
por exemplo, é errada, ainda que a criança por si própria não possa formular juízos de valor sobre
o ato sofrido (cf. REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 154)
- 237 -
Além disso, conforme destaca SÔNIA T. FELIPE:
676
FELIPE, Sônia T. Direito Animais. O Recurso à Analogia e a Exigência do Princípio da
Coerência na ética de Tom Regan. Artigo parte do estudo “Por uma questão de direitos
(obrigações) ou por uma questão de princípios (deveres); alcance e limites das teorias éticas de
Tom Regan e de Peter Singer na defesa dos animais; um estudo crítico”, desenvolvido em nível de
Pós-doutoramento com a supervisão de Cristina Beckert, do Centro e Departamento de Filosofia
da Universidade de Lisboa, no período de 01 de Set. de 2001 a 29 de Ago. de 2002. Disponível
em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 08 nov. 2005.
677
Por seres humanos não-paradigmáticos entende-se aqueles indivíduos que, por doença ou
acidente, perdem definitiva ou temporariamente, ou mesmo não possuem, de maneira também
definitiva ou temporária, as faculdades pelas quais os seres humanos adultos “normais” são
usualmente considerados como fazendo parte de uma “comunidade moral humana”. São
comumente citados como exemplos de seres humanos não-paradigmáticos os recém-nascidos e
crianças em tenra idade, os idosos que sofrem de distúrbios relacionados à senilidade, pessoas
com sérios transtornos neurológicos e patologias cerebrais degenerativas, bem como os
portadores de graves deficiências mentais (congênitas ou não).
- 238 -
pacientes morais não-humanos), possam comungar dos mesmos benefícios e
estar na mesma categoria? Não seria inconsistente ou incoerente, incluir seres
humanos não-paradigmáticos no mesmo patamar moral dos ditos paradigmáticos
e negar a mesma possibilidade com relação aos animais?
TOMÁS DE AQUINO
678
AQUINO apud SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 221.
- 239 -
animais não-humanos qualquer tipo de amparo. Muito embora ARISTÓTELES
não tenha negado aos animais determinadas capacidades sensitivas básicas,
incluindo o sofrimento e o prazer, rejeita que teriam qualquer capacidade
cognitiva.
679
“The use made of slaves and of tame animals is not very different; for both with their bodies
minister to the needs of life” (ARISTÓTELES apud REGAN, Defending Animal Rights, op.cit., p. 6).
680
De fato, há uma passagem em que ARISTÓTELES teria afirmado que uma criança que furava
os olhos de uma andorinha, somente por “diversão”, certamente não seria um bom cidadão. A
preocupação não é com a crueldade como tendo atingido um valor intrínseco do animal, mas sim
com a possível perturbação psicológica de um indivíduo que vive em sociedade.
681
SANTANA, op.cit., p. 100.
- 240 -
como uma administração humana dos recursos naturais disponíveis
(“stewardship”). A primeira visão encabeça uma concepção nitidamente
despótica, pois o mundo natural possuiria valor somente na medida em que
serviria aos interesses humanos, ou seja, o ser humano continua como medida de
todas as coisas. A concepção tomista, derivada desta postura, pleiteia que os
animais não possuem valor intrínseco e que a crueldade para com eles somente
deveria ser evitada por incrementar a possibilidade da crueldade com o próprio
homem (teoria dos “deveres indiretos”). A segunda visão, encampada por
pensadores atuais como BARR (1974), LINZEY (1976), MC DANIEL (1989) e
CALLICOT (1993), pretende conferir outra interpretação ao significado do
vocábulo hebraico rada (originariamente traduzido como “ter domínio sobre”)
encontrado nas já mencionadas passagens bíblicas. Para eles, rada deveria ser
entendido como responsabilidade sobre uma criação que é boa
independentemente da presença humana. Os seres humanos, neste sentido,
seriam como que tutores imediatos do meio ambiente. De fato, tal interpretação
leva a crer que os animais não-humanos seriam inerentemente “bons” e que os
nossos deveres para com eles, por tal razão, seriam de ordem direta. A doutrina
do “stewardship” pode enquadrar simultaneamente defensores de posições
reformadoras e abolicionistas.
“A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos dos que
alegam ter ele ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da
espécie Homo sapiens, ao passo que chimpanzés, os cães, os porcos
não o são. Mas, usar essa diferença como base para conceder direito à
vida ao bebê e não a outros animais é, naturalmente, puro especismo. É
exatamente esse tipo de diferença arbitrária que o racista mais grosseiro
e declarado usa, na tentativa de justificar a discriminação racial.”682
PETER SINGER
682
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21.
- 241 -
Os contratualistas, como regra geral, refutam a possibilidade de os
animais integrarem o rol dos potenciais “contratantes” pela alegada incapacidade
de expressarem seus interesses e, conseqüentemente, de negociarem sua
posição livremente. O contratualismo hobbesiano protege os animais somente
quando são objeto do interesse dos ditos “contratantes” (concepção dos “deveres
indiretos”).
683
NAVERSON, Jan. “Animal Rights”, The Canadian Journal of Philosophy 7, n. 1, 1977. p. 177.
684
“On the contract view of morality, morality is a sort of agreement among rational, independent,
self-interested persons, persons who have something to gain from entering into such an
agreement. A major feature of this view of morality is that it explains why we must have it and who
is party to it. We have it for reasons of long-run self interest, and parties to it include all and only
those who have both the following characteristics: (1) the stand to gain by subscribing to it, at least
in the long run, compared with not doing so, and (2) the are capable of entering into (and keeping)
an agreement […] Given these requirements, it will be clear why animals do not have rights. For
there are evident shortcomings on both scores. On the other hand, humans have nothing generally
to gain by voluntarily refraining from (for instance) killing animals or ‘treating them as mere means’.
And on the other, animals cannot generally make agreements with us anyway, even if we wanted
to have them do so […] There is an evident problem about the treatment of what I have called
‘marginal cases’ on this view, of course: infants, the feeble-minded, and the incapacitated are in
varying degrees in the position of the animals in relation to us, are they not? True: but the situation
is very different in several ways. For one thing, we generally have very little to gain form treating
such people badly, and we often have much to gain from treating them well. For another, marginal
humans are invariably member of families, or members of other groupings, which make them the
object of love and interest on the part of the members of those groups. Even if there were an
interest in treating a particular marginal person badly, there would be others who have an interest
in their being treated well and who are themselves clearly members of the moral community on
contractarian premises” (NARVESON, Jan. Animal Rights Revisited. In MILLER, Harlan;
WILLIAMS, William. Ethics and Animals. Clifton, NJ (USA): Humana Press. p. 45-59).
- 242 -
sem que se possa afirmar que não sejam capazes de sofrer, etc. Pelo contrário,
ela provê as bases para uma franca e, obviamente, insensível rejeição de seu
sofrimento.”685 Em outra passagem, deixa claro que: “há justificativas para
dizermos que seríamos pessoas melhores se tratássemos melhor os animais, ou
de que os animais são realmente adoráveis e que seria efetivamente melhor que
os considerássemos como companheiros e não como potencial fonte de alimento
e daí por diante.”686 Tal ponto de vista não impede que tenhamos deveres para
com os animais, mas sempre de forma indireta, colocados como forma de
promoção do benefício dos próprios “contratantes” (o óbice que não maltratemos
um gato, por exemplo, não é o de que pensamos que a sua integridade corpórea
importe em um primeiro plano, mas sim o de que, ao fazê-lo, estaríamos lesando
gratuitamente um bem pertencente a um agente moral humano687).
685
Id., p. 178.
686
Ibid., p. 178.
687
Tal tese é defendida por CARRUTHERS nos seguintes termos: “Such acts [as torturing a cat for
fun] are wrong because they are cruel. They betray an indifference to suffering that may manifest
itself…with that person's dealings with other rational agents. So although the action may not
infringe any rights…it remains wrong independently of its effect on any animal lover”
(CARRUTHERS, Peter. The Animal Issue: Moral Theory in Practice. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992. p. 153-4).
688
O argumento dos “casos marginais” consiste no argumento que tenta demonstrar que se os
animais não possuem status moral autônomo, então também não o têm seres humanos tais como
bebês, pessoas portadores de deficiências mentais severas, os senis, entre outros. Já que
acreditamos que todos os seres humanos, sem exceção, possuem um status moral autônomo,
deveria haver algo de errado com teorias das quais possa-se inferir que não o possuam. A esse
respeito, cf. DUMBROWSKI, Daniel A. Babies and Beasts: The Argument from Marginal Cases.
Urbana: University of Illinois Press, 1997.
- 243 -
óbvia e flagrante que prescindiria de qualquer outra demonstração. Segundo o
autor:
[...] dado que o justo e o injusto são criados por meio de acordos
alcançados pelos contratantes, esta forma de contratualismo não provê
embasamento teórico para a evidente injustiça envolvida na exclusão da
minoria da possibilidade de participação. A teoria não só falha em não
apontar a injustiça de tal situação, como nos priva dos meios de levantar
esta objeção. Se uma teoria moral é tão fundamentalmente errônea no
tratamento dos seres humanos de cores de pele distintas, o que dizer
com relação ao tratamento de animais de diferentes espécies.689
689
REGAN, Defending Animal Rights, op. cit., p. 11.
690
NAVERSON, Animal Rights, op.cit., p. 177.
- 244 -
possibilidade de nos colocarmos em seus lugares no futuro. Há uma contradição
no sentido de que humanos que tenham alcançado um nível de maturidade
intelectual adequado para participarem de acordos baseados em interesses
“egoístas” devam ter seus interesses protegidos se, futuramente, tornarem-se
incapacitados mentalmente; mas esta proteção não pode ser estendida aos seres
humanos que são ou que se tornam enfermos antes de que estejam aptos a
entrar em tais acordos. NAVERSON abre mão de sua congruência original para
dar campo para razões de “ordem sentimental” para que justificássemos a
proteção de pessoas portadoras de deficiência. Ao assim proceder, torna o dever
de proteção destes “pacientes morais” totalmente contingenciais em relação a
outros indivíduos, falhando no tratamento satisfatório dos “casos marginais”.
“In this light, what the above thought experiments tell us is that the
concept of moral considerability is not closely tied to the concept of
species membership. In certain circumstances at least, we would be quite
happy to extend the umbrella of moral consideration beyond the
boundary of our species. We would, it seems, be happy to extend moral
consideration to beings like Data, Worf, and ET, if they existed; and,
likewise, to at least some of the things that emerge from the island of Dr.
Moreau. Being a member of the human species, then, cannot be what is
crucial in deciding who has moral rights, or who deserves to be treated
- 245 -
with consideration and respect. So, we cannot rule out the moral status of
other animals simply because they are not human.”691
MARK ROWLANDS
691
ROWLANDS, Mark. Animal Like Us. London: Verso, 2002. p. 41.
692
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
693
“Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou
seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e
habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua
concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços
característicos de sua psicologia, como por exemplo a sua aversão ao risco ou sua tendência ao
otimismo ou pessimismo. Mais ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias
particulares de sua própria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política
dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na
posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem.” (RAWLS, op.cit., p. 147)
- 246 -
“racionalidade” e o “senso de justiça”694. Como conseqüência, nem mesmo todos
os seres humanos seriam abraçados pela teoria por ele proposta, pois “It does
seem that we are not required to give strict justice to creatures lacking this
capacity [senso de justiça].695” Mesmo que tomemos essa proposição em um
sentido mais “leve”, no sentido de que ser um “agente moral” é uma condição
suficiente e não necessária, o que não parece ser efetivamente o que RAWLS
afirma, as implicações da mitigação da força do “véu da ignorância” elimina
quaisquer possibilidades de participação dos seres que não sejam humanos.
694
Em algumas passagens RAWLS deixa clara a condição humana como única a ser permitida,
senão vejamos: “Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem é que a
sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e a qualquer conseqüência que possa
decorrer disso. Entretanto, considera-se como um dado que elas conhecem os fatos genéricos
sobre a sociedade humana. [...] Supus até aqui que as pessoas na posição original são
racionais. [...] Assim, de forma genérica, considera-se que uma pessoa racional tem um conjunto
de preferências entre as opções que estão a seu dispor. [...] A suposição da racionalidade
mutuamente desinteressada, portanto, resulta nisso: as pessoas na posição original tentam
reconhecer princípios que promovam seus sistemas de objetivos da melhor forma possível. [...]
Presume-se que as partes são capazes de um senso de justiça, e esse fato é de conhecimento
público entre elas” (RAWLS, op.cit., p. 148-156; grifos nossos).
695
RAWLS apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 165.
696
Ibid., p. 561, grifos nossos.
697
“Distinguimos as pessoas éticas por duas características: primeiro, elas são capazes de ter (e
supõe-se que tenham) uma concepção de seu próprio bem (expressa por um plano racional de
vida); e segundo, são capazes de ter (e supõe-se que adquiram) um senso de justiça, um desejo
normalmente efetivo de aplicar os princípios da justiça e de agir segundo as suas determinações,
pelo menos num grau mínimo.” (Ibid., p. 561)
- 247 -
masculino ou feminino (conseqüência que RAWLS parece não prever), o máximo
que os “contratantes” irão fazer é negociar deveres indiretos para com as demais
criaturas698, pois nunca poderão ter a “boa vida” (“good life”).
698
SCOTT WILSON, mencionando PETER CARRUTHERS, observa que, pela teoria de RAWLS,
os animais não teriam status moral autônomo, “Since the contractors are self-interested, but do not
know who they are, they will accept rules that protect rational individuals. However, the contractors
know enough about themselves to know that they are not animals. They will not adopt rules that
give special protection to animals, therefore, since this would not further their self-interest. The
result is that rational human beings will be directly protected, while animals will not” (WILSON,
Scott. “Carruthers and the Argument From Marginal Cases”. The Journal of Applied Philosophy 18,
2001. p. 135).
699
Em sua Uma Teoria da Justiça, RAWLS afirma que “the capacity for feelings of pleasure and
pain and for the forms of life of which animals are capable clearly imposes some duties on us,
including the duty not to be cruel to them” (RAWLS apud REGAN, The Case For Animal Rights,
op.cit., p. 170).
700
“Fiz a observação de que as exigências mínimas que definem a personalidade ética referem-se
a uma capacidade e não à realização dela. Um ser que tem essa capacidade, esteja ela já
desenvolvida ou não, deve receber plena proteção dos princípios da justiça. Como se considera
que as crianças têm os mesmos direitos básicos (geralmente exercidos em seu nome pelos seus
pais ou responsáveis), essa interpretação das condições exigidas parece necessária para uma
adequação aos nossos juízos ponderados” (RAWLS, op.cit., p. 565).
- 248 -
vago”701. Ainda que se aceite a tese da “capacidade ética potencial” (para os
casos de crianças e senis) um enorme contingente de seres humanos estaria
alijado de qualquer sorte de consideração moral: os permanentemente afetados
por deficiências mentais completamente desabilitantes. Como dirá ANTÔNIO
MENEZES CORDEIRO, “condenar os animais pela não-inteligência é abrir a porta
à morte dos deficientes e incapazes.”702
701
Ibid., p. 565.
702
CORDEIRO apud ARAÚJO, op.cit., p. 131.
703
Ibid., p. 566.
704
Há quem pretenda fazer incluir os animais na “posição original” rawlsliana, sob o argumento da
necessidade de descentramento da bioética. Pondero que os estritos termos nos quais se acham
caracterizadas conceitualmente as bases teóricas da teoria da justiça de RAWLS, infelizmente não
permitiriam que se chegasse a tanto, a não ser com reformulações que, por certo, alterariam seu
conteúdo. (cf. SINGER, Brent A. “An Extension of Rawls Theory of Justice to Environmental
Ethics”, Environmental Ethics, n. 10, 1988, p. 217-231).
705
DONALD VAN DE VEER e PAUL GIMENO alertam que ainda que se alargasse o pacto
rawlsliano para fazer nele caber todos os seres humanos, a exclusão dos animais implicaria em
uma sociedade assente em um pacto intrinsecamente injusto e desigual (VAN DE VEER, Donald,
“Of Beasts, Persons, and the Original Position”, Mind, n. 62, 1979, p. 368-377; GIMENO, Paul,
“L´Animal, l´Environnement et la Justice selon Rawls”, Critique, n. 581, 1995, p. 734-751).
- 249 -
capazes de alcançar igualitariamente os benefícios de cooperação mútua. Não se
encontram nessa posição, nem aqueles que são dependentes, nem aqueles a
quem foi cometido cuidarem dos dependentes.”706 707
[...] o defeito comum dos sistemas que têm sido propostos pelos filósofos
para explicarem o funcionamento do espírito é o de suporem tais sutileza
e requinte no pensamento que eles não apenas excedem a capacidade
de meros animais, mas até a de crianças e de pessoas comuns de nossa
própria espécie, as quais são, todavia, suscetíveis das mesmas emoções
e sentimentos das pessoas mais dotadas de gênio e de entendimento.
706
KITTAY, Eva Feder. Love´s Labor. Essays on Women, Equality, and Dependency. London:
Routledge, 1999. p. 27.
707
Cf. PRTICHARD, Michael; WADE, L. Robinson, “Justice and the Treatment of Animals: A
Critique of Rawls”, Environmental Ethics, n. 3, 1981, p. 55-61.
708
MACINTYRE, Alasdair. Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues.
Chicago: Open Court, 1992. p. 2.
- 250 -
Tal sutileza é prova inequívoca da sua falsidade, porque contrário à
simplicidade com que se manifesta a verdade de um sistema709.
FERNANDO ARAÚJO
709
HUME apud ARAÚJO, op.cit., p. 40-1.
710
ARAÚJO, op.cit., p. 24 e30.
- 251 -
A interação entre os “agentes morais” deve se pautar pela
obediência ao “imperativo categórico”711. De acordo com ele, as ações individuais
devem ser pautadas em razões que devem ser comuns a todos os outros
“agentes morais”. Por esse motivo, a primeira formulação fruto do “imperativo
categórico” é a chamada “fórmula da lei universal” segundo a qual: “age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torna lei
universal”712. Um dos exemplos comumente trazidos à baila é o das promessas
falsas. De acordo com a “fórmula da lei universal”, não posso fazer uma falsa
promessa esperando tirar vantagem da falsidade, pois se universalizar as minhas
razões, com todos os “agentes morais” podendo fazer o mesmo, então ninguém
mais acreditaria em promessas. Uma outra conseqüência do “imperativo
categórico” é a denominada “fórmula do fim em si mesmo” ou “fórmula da
humanidade” por meio da qual: “Age por forma a que uses a humanidade, quer na
tua pessoa como na de qualquer outra, sempre ao mesmo tempo como fim,
nunca meramente como meio”. Deste modo, pegando emprestado o exemplo das
promessas, se faço uma promessa a alguém que irei lhe devolver o dinheiro que
me emprestou, mas, ao mesmo tempo, escondo minha intenção de não fazê-lo,
então estaria privando-o de uma informação que é relevante para que ele possa
fazer um julgamento racional sobre o fato de me emprestar ou não o dinheiro. Ao
assim proceder, trato tal pessoa tão somente como um meio para a consecução
de meus propósitos, como se ela fosse uma mera coisa, o que violaria a “lei da
humanidade”. Percebe-se, pois, que as duas fórmulas são intimamente
interligadas e, para KANT, qualquer ato que fracasse em qualquer uma delas,
fracassará no outro também.
711
Imperativo porque é uma ordem inafastável, cogente; categórico porque prescrevem uma ação
por si só necessária. Ex.: “não matar”.
712
Seria como que uma nova “Regra de Ouro” (“Faça para os outros o que gostaria que fizessem
a você”) nos seguintes termos: “Faça para os outros o que gostaria que todos fizessem para
todos”.
- 252 -
Todavia, tais “deveres diretos” só existiriam entre “agentes morais”.
Seres que existem mas são “irracionais” possuem somente um “valor relativo” e
falham como “fins em si mesmos”. Tal como ARISTÓTELES e TOMÁS DE
AQUINO, KANT enxerga nos animais meros meios para os fins humanos713:
[...] we have no direct duties. Animals are not self-conscious and are
there merely as a means to an end. That end is man […] Our duties to
animals are merely indirect duties to mankind. Animal nature has
analogies to human nature, and by doing our duties to animals in respect
of manifestations of human nature, we indirectly do our duties to
humanity. Thus, if a dog has served his master long and faithfully, his
service, on the analogy of human service, deserves reward, and when
the dog has grown too old to serve, his master ought to keep him until he
dies. Such action helps to support us in our duties towards human
beings, where they are bounden duties. If then any acts of animals are
analogous to human acts and spring from the same principles, we have
duties towards the animals because thus we cultivate the corresponding
duties towards human beings. If a man shoots his dog because the
animal is no longer capable of service, he does not fail in his duty to the
dog, for the dog cannot judge, but his act is inhuman and damages in
himself that humanity which it is his duty to show towards mankind. If he
is not to stifle his human feelings, he must practice kindness towards
animals, for he who is cruel to animals becomes hard also in his dealings
with men […] tender feelings toward dumb animals develop humane
feelings towards mankind 714.
713
Para FERNANDO ARAÚJO, tal posição de KANT não chega a surpreender, pois há passagem
em que afirma o filósofo o paradigma da “Grande Cadeia do Ser”, vejamos: “À finalidade da
humanidade está assim ligada na nossa própria pessoa a vontade da razão, por conseqüência o
dever de nos tornarmos dignos da humanidade através da cultura em geral, de adquirir ou
desenvolver a faculdade adequada à realização de todo o tipo de fins possíveis, na medida em
que ela possa encontrar-se no próprio homem, ou seja um dever de cultivar as disposições
primitivas da nossa natureza, aquilo através de que essencialmente o animal ascende até o
homem: sendo por isso um dever em si mesmo.” (KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 198; grifos
nossos).
714
KANT apud REGAN, op.cit., p. 177-8.
- 253 -
Seríamos, pois, moralmente livres para usá-los da forma que
quiséssemos, sujeitos tão somente à injunção de evitar a crueldade, pois poderia
acarretar a crueldade para com o próprio homem:
715
KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 17.
716
Para uma abordagem concisa, porém muito bem feita, sobre as questões atinentes à
“consciência animal” e “teoria da linguagem” sugiro a leitura dos capítulos I (“Animal Awareness”)
e II (“The complexity of Animal Awareness”) do livro de REGAN, The Case For Animal Rights,
op.cit. Outros excelentes trabalhos poderiam ser igualmente citados tais como: ACHIM, Stephan.
“Are Animals Capable of Concepts?”, Erkenntnis, n. 51, 1999, p. 79-82; ALLEN, Colin; HAUSER,
Marc D. “Concept Attribution in Nonhuman Animals: Theoretical and Methodological Problems in
Ascribing Complex Mental Processes”, Philosophy of Science, n. 58, 1991, p. 221-240; COLLIN,
- 254 -
Além das objeções de ordem meritória, há também diversas
contestações que dizem respeito à consistência teórica da construção kantiana.
Os filósofos contemporâneos ALEXANDER BROADIE e ELIZABETH M. PYBUS
trazem a afirmação de que apesar de a premissa de que os maus-tratos
conduziriam a uma tendência de insensibilidade racional frente aos próprios seres
humanos (utilizando-os também como meios) ser em boa parte verdadeira do
ponto de vista psico-social, traz uma contradição interna com a própria teoria ética
por ele proposta. Se os animais para o autor são tecnicamente “coisas” e,
conseqüentemente, são precisamente o que poderíamos usar como meros
“meios”, ao generalizarmos esta assertiva teremos que, em razão do efeito
provocado em outras pessoas, não poderíamos utilizar qualquer coisa como
“meio”, o que seria evidentemente contrário ao afirmado na sua construção do
“imperativo categórico”. Continuam os autores, “o que quer que não seja um “fim
em si mesmo” não pode ser objeto de uma preocupação moral direta. Mas KANT
sustenta que animais não são “fins em si mesmos”. Ao maltratarmos um animal
estaríamos maltratando algo que não é um objeto de consideração moral direta.
Maus-tratos é um conceito moral, por se referir a um modo de tratamento de
objetos que desatende à sua natureza. Mas se animais não são alvo de
consideração moral direta, então no que consistiriam os aludidos maus-tratos?”717
Allen; BEKOFF, Marc. “Do Dogs Ape or Do Apes Dog: And Does It Matter? Broadening Deepening
Cognitive Ethology”, Animal Law, n. 3, 1997, p. 13 e ss.; CARRUTHERS, Peter. Language,
Thought and Consciousness. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 133-163;
BUYTENDIJK, F.J.J. O Homem e o Animal: Ensaio de Psicologia Comparada. Lisboa: Livros do
Brasil, 1979; LORENZ, Konrad. Três Ensaios Sobre o Comportamento Animal e Humano. Lisboa:
Arcádia, 1975; WALKER, Stephen. Animal Thoughts. London: Routledge, 1983; GRIFFIN, Donald.
Animal Thinking. Cambridge: Harvard University Press, 1984; LINDEN, Eugene. Apes, Men and
Language. New York: Penguin, 1976; entre tantos outros.
717
BROADIE, PYBUS apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 180.
- 255 -
tratá-las de formas que reduzem o seu valor como “meios” o que, dadas as suas
características peculiares, equivaleria a desatender “ sua natureza”.
- 256 -
voluntário se oferecesse como cobaia de tal experimentação. Seria aceitável,
então, sob estas premissas, utilizar-se um órfão humano portador de gravíssima e
irreversível doença mental para tal finalidade? A resposta negativa deve ser
imperativa. Não importa o benefício que receberíamos derivados da exploração
deste indivíduo, o fato o utilizarmos como simples meio para um fim, ainda que
legítimo (cura de uma doença terminal), como uma coisa, agride frontalmente o
senso comum e as normas internacionais sobre a utilização de seres humanos
em pesquisas biomédicas sem o consentimento informado718. Como se verá
posteriormente, o princípio da “igual consideração de interesses” nos traz como
conseqüência que a igualdade é uma idéia moral e não factual. Assim, a razão
para que protejamos os interesses dos humanos em não serem tratados como
meros meios ou recursos para outros humanos é o de que o interesse de não
sofrer possui significância moral autônoma.
718
O “Código de Nuremberg”, produzido após a experiência nazista veda expressamente a
pesquisa não consentida. A “Declaração de Helsinki”, de 1964, adotada pela World Medical
Association, também a proíbe. Em 1997, o então presidente norte-americano BILL CLINTON,
tendo em vista as experiências não consentidas com a sífilis realizadas em negros no Alabama
entre as décadas de 30 e 70, se desculpou publicamente pelas barbáries cometidas.
- 257 -
morais” poderiam se pautar de acordo com o “imperativo categórico” é
absolutamente irrelevante para escapar a tal incongruência, pois a questão
envolve a capacidade de sofrimento, que é comungada por “agentes” e
“pacientes” e não a diferença de habilidades havida entre eles.
719
Com inegável congruência parece que KANT realmente endossava a possibilidade de que
homens pudessem, sob determinadas circunstâncias, se equivaler a “coisas”. Veja-se: “Em estado
de embriaguez, o homem dever ser tratado apenas como um animal, não como um homem”
(KANT apud ARAÚJO, op.cit., p. 192). Ou ainda, ressaltando a importância da presença da razão
para distinção entre animais e homens: “A disciplina transforma a animalidade em humanidade.
Um animal já é tudo pelo seu instinto, tendo uma razão externa providenciado imediatamente tudo
para ele. Por seu lado, o homem necessita da sua própria razão” (KANT apud ARAÚJO, op. cit., p.
193).
- 258 -
analogamente, teríamos que negá-lo a todos os seres humanos não-possuidores
de tais características720.
720
Muito embora não concorde, alguns ponderam que bebês e senis não poderiam ser
enquadrados como “casos marginais”. Os primeiros porque, ainda que não racionais, teriam o
potencial de sê-lo. No mesmo sentido, os senis teriam status moral em razão de seus interesses
passados. O raciocínio, a meu sentir, peca pela extrema subjetividade. A análise marginal é
objetiva e leva em consideração as características atuais que o ser objeto de análise possui, como
que numa espécie de “fotografia”. Ainda que assim não se entenda, parece-me que os casos de
pessoas portadoras de severas deficiências mentais congênitas não poderiam ser, de qualquer
maneira, excluídos sob as mesmas bases.
- 259 -
Animais representam alguma coisa. Alguns animais superiores pelo
menos, têm que receber algum peso nas deliberações de pessoas sobre
o que fazer com eles. É difícil provar isso. (É difícil também provar que
pessoas representam alguma coisa)721.
Dizem alguns que pessoas não deveriam fazer isso [causar sofrimento a
animais], porque tais atos brutalizam-nas e tornam mais provável que
elas tirem a vida de pessoas, exclusivamente por prazer. Esses atos que
são moralmente condenáveis em si mesmos dizem, apresentam um
indesejável transbordamento moral. (As coisas, neste caso, seriam
diferentes se não houvesse possibilidade de tais transbordamentos –
como, por exemplo, para a pessoa que sabe que é a última sobre a face
da terra.) Mas por que deveria haver tal transbordamento? Se é em si
mesmo perfeitamente certo fazer qualquer coisa, absolutamente, com
animais, por quaisquer que sejam as razões, então se a pessoa
compreende a clara linha que existe entre animais e pessoas, e a leva
em conta quando age, por que matar animais tenderia a brutalizá-la e
torná-la mais passível de ferir ou matar outros indivíduos? 722
721
NOZICK, op.cit., p. 51.
722
NOZICK, op.cit., p. 51.
- 260 -
2.2.5. Teorias Indiretas - Estatutos Protetivos e “Legal
Welfarism”
“First, I cannot help thinking that our exploitation of animals has a direct
link to our exploitation o four perennial human victims: African-Americans,
poor whites, Latinos, women, lesbians and gays, social activists, Native
Americans, and Asians, to name a few disempowered groups. As Tom
Regan, Peter Singer and other philosophers have argued so
persuasively, ‘speciesism’, or the use of species to determine
membership in the moral community, is no more morally justifiable than
using race, sex, or age to determine who has rights and who does not. If
we are speciesist and feel that we may exploit nonhumans simply
because we are more powerful, and we judge that we will benefit from
that exploitation, the discrimination against other disadvantaged groups
become that much easier.”723
GARY FRANCIONE
723
FRANCIONE, Animals, Property and the Law, op.cit., p. X.
724
Ibid., p. 4.
- 261 -
pessoas reconhece que animais são fundamentalmente distintos de objetos
inanimados. O resultado da combinação destes fatores é que a regulação
normativa sobre a proteção animal, via de regra, limita-se a garantir e facilitar a
exploração econômica mais eficiente dos não-humanos.
- 262 -
de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[...]
725
PRADO, Luiz Regis. Crimes Contra o Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 68.
726
Idêntico posicionamento é o expressado por outros penalistas tais como PIERANGELLI,
MIRABETE, DAMÁSIO, FREDERICO MARQUES, etc. LUCIANA CAETANO DA SILVA
sintetizando tal corrente, em corajoso exercício profético, de duvidosa certeza afirma: “Quanto ao
sujeito passivo dos delitos faunísticos, ao contrário do que se poderia deduzir num primeiro
momento, não são os animais, muito embora sejam eles que suportam a violência física ou
- 263 -
De acordo com tal interpretação, pode-se afirmar que não haveria
qualquer distinção ontológica entre o tipo do art. 32 supra e, por exemplo, o
consagrado no art. 163 do Código Penal que trata do crime de dano727. Nele, o
sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, o sujeito passivo é o proprietário do bem
destruído ou inutilizado e o objeto material da conduta é um bem móvel, assim
como no caso do art. 32 é o animal. Uma cadeira e um cão estão enquadrados,
sob este prisma, na mesma categoria de objetos materiais da conduta lesiva. A
variação da pena em abstrato estipulada só parece indicar que o tipo do art. 32
cuidaria da proteção de um “objeto” diferenciado, mas ainda assim um “objeto”.728
psíquica. Os animais jamais serão sujeitos de delitos” (SILVA, Luciana Caetano da. Fauna
Terrestre no Direito Penal Brasileiro. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001. p. 132).
727
“Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriora coisa alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, ou
multa.”
728
“A lei reflete a visão da sacralidade da vida, quer dizer, da vida de cada ser humano é sagrada.
No entanto, há pessoas que sustentam isso em relação ao bebê, mas não fazem objeção a matar
animais não-humanos” (SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21). Até mesmo o “nascituro”, ser
humano ainda sequer nascido, vai mudando progressivamente o seu status para adquirir proteção
direta, com valor intrínseco. O art. 124 do Código Penal proíbe a realização do aborto. Em suas
diversas formas, o objeto jurídico é a preservação da vida do feto e o sujeito passivo é, como aliás
não poderia deixar de ser, o feto. Até mesmo lançando-se mão da pobre interpretação topológica,
é possível verificar que o crime está inserido no título dos “crimes contra a pessoa” e no capítulo
dos “crimes contra a vida”. Não se vai aqui entrar no mérito da debatida questão do aborto, mas
parece claro que a exceção da exclusão de punibilidade do aborto no caso de gravidez resultante
de estupro afronta a lógica sistêmica do tipo principal. O Código Civil, por seu turno, em seu artigo
2º parece deixar claro que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas
a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” A matéria é controvertida, mas é
incontestável ser viável sustentar, com bons argumentos, a possibildiade de o feto ser sujeito de
direitos, principalmente diante da nova redação conferida ao referido art. 2º do Código Civil.
- 264 -
o ser humano, a periferia, portanto, e não o centro. Nesse contexto, não
poderia ser considerada um sujeito de direito, uma entidade possuidora
de um valor absoluto em si mesma 729.
729
FERRY apud BECHARA, Erika. A Proteção da Fauna Sob A Ótica Constitucional. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2003. p. 70-1.
730
BECHARA, op.cit., p. 72.
- 265 -
O maior problema das teorias ditas “indiretas” é, de fato, não
reconhecer no animal um “agente moral”, muito menos um “sujeito de direito”. O
“contrato social” vincula tão somente aqueles que possam ser participantes
racionais no momento da “posição original”. O suposto “tratamento humanitário”,
que os estatutos protetivos tanto alardeiam, consiste justamente na ponderação
entre os nossos interesses e os dos animais em razão da determinação de
quando um uso específico ou um tratamento específico é necessário ou exigível.
Porque os animais são tidos como “propriedade”, antes mesmo de iniciarmos a
aludida ponderação, aceitamos previamente que é justificável utilizá-los para uma
vasta gama de práticas, tais como abatê-los para alimentação, para usá-los como
vestuário, para servirem de cobaias para nossos experimentos, etc. Assim, não se
questionam as instituições de utilização dos animais, mas sim se uma dada
prática, parte destas instituições, é necessária. Não questionamos se é acertado
matar animais para deles nos alimentarmos, mas os estatutos protetivos se
preocupam com o fato da castração do gado ser um componente necessário do
processo de abate. O que realmente ponderamos não são os interesses dos
animais contra os dos humanos de maneira abstrata, mas sim o interesse do
proprietário em usar ou tratar os animais de um determinado modo que viola o
melhor “interesse da propriedade”. O resultado do princípio do “tratamento
humanitário” incorporado como parte central da maior parte dos estatutos
protetivos é que priorizamos os interesses mais triviais dos seres humanos em
detrimento aos mais fundamentais dos animais. Confronta-se, em realidade, o
interesse do proprietário e o de uma propriedade.
- 266 -
sofrimento que pode impor a sua propriedade tendo em vista o princípio da
maximização de seus interesses econômicos e da conservação da propriedade.
The failure of animal welfare laws should not come as any surprise. If the
animal is property, how can that animal be anything other than a
commodity? How can an animal’s interests be assessed or valued at any
level higher than is necessary to ensure efficient exploitation of the
animal property for its designated purpose? How can anticruelty or
animal welfare laws apply to anything but animal use that is wholly
gratuitous and that represents a completely unproductive use of animal
property? […] The status of animal as property renders meaningless our
claim that we reject the status of animals as things. We treat animals as
the moral equivalent of inanimate objects with no morally significant
interests or rights. We bring billions of animals into existence annually
simply for the purpose of killing them. Animal have market prices. Dogs
and cats are sold in pet stores like compact discs; financial markets trade
in futures for pork bellies and cattle. Any interest that an animal has is
nothing more than an economic commodity that may be bought and sold
when it is in the economic interest of the property owner. That is what it
means to be property. […] In light of the status of animals as property,
there can be no real balance between human and animal interests – and
there is none. We regard all animal interests as having a ‘price tag’ in that
these interests may be ‘sold’ by the property owner. This means that
there is virtually no limit on what humans can do with animals 731.
- 267 -
de 1798, por exemplo, punia a morte intencional de um escravo nos mesmos
moldes com que fazia em relação à morte intencional de uma pessoa livre. No
entanto, de acordo com ela, a lei não se aplicaria aos escravos fugitivos, aos
escravos que tentavam resistir ao encarceramento ou às ordens de seu senhor,
ou ainda aos escravos que morriam sob condições de “correção moderada”.732 Na
Virgínia, outra lei estatuía que o proprietário de escravos que viesse a matar seu
escravo durante um “justo processo disciplinador” não poderia ter sua conduta
caracterizada como maliciosa (“acted with no malice”) e não poderia, por
conseguinte, ser condenado por homicídio. Acresça-se a isso o fato de que
também militava em seu favor a presunção de que um proprietário nunca destrói a
sua propriedade de maneira deliberada 733 734.
Ainda que a maior parte dos estados sulistas tenha, até meados do
século XIX, implementado legislações “welfaristas” com relação aos escravos,
poucos proprietários sofreram qualquer condenação efetiva fruto da aplicação
destas leis, já que os júris eram, na maior parte das vezes, extremamente
conservadores e relutantes em sancionar penalmente os latifundiários, bem como
os escravos, que muitas vezes eram as únicas testemunhas de tais crimes, eram
legalmente impedidos de depor contra seus senhores e os homens brancos em
geral735.
732
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 87.
733
Ibid., p. 88.
734
Cf. WATSON, Alan. Slave Laws in the Americas. Athens: University of Georgia Press, 1989;
DAVIS, David Brion. The Problem of Slavery in Western Culture. Ithaca: Cornell University Press,
1966; e ELKINS, Stanley; MCKITRICK, Eric. “Institutions and the Law of Slavery: Slavery in
Capitalist and Non-Capitalist Cultures”. In : HALL, Kermit L. The Law of American Slavery. New
York: Garland Publishing, 1987.
735
No Brasil ocorria o mesmo fenômeno. O Código de Processo Criminal de 1832 prescrevia em
seu art. 75 que os escravos não podiam acusar os seus senhores perante autoridades policiais ou
judiciárias: “Art. 75. Não serão admitidas denúncias: § 2º - do escravo contra o senhor.” Tanto é
assim que nenhum policial cogitava de colher depoimentos de escravos contra seus senhores,
pois eram vedados pela legislação adjetiva penal e mesmo nenhum escravo teria coragem de
fazê-lo, porque sabia antecipadamente que nenhuma denúncia contra o senhor prosperaria e
seriam duramente castigados em virtude disso.
- 268 -
Termino a parte referente às teorias indiretas com a citação de
trecho da obra do ilustre DIOGO FREITAS DO AMARAL que, comentando a Lei
de Bases do Ambiente, de Portugal (1987), bem resume a premente necessidade
de revisão dos nossos conceitos acerca da natureza:
736
AMARAL apud BECHARA, op.cit., p. 72.
- 269 -
2.3. Teorias Diretas
“In one laboratory, a rat placed on a small box had his head immobilized
by a vise. When a postdoctoral vivisector started drilling into his skull, the
rat began to struggle. Held by the head, he attempted to run. His lower
body fell over the box’s edge. The rat dangled there, struggling. The
drilling continued. Some minutes later, the rat kicked the box over, forcing
the vivisector to stop and inject him with some anesthetic. Before the
anesthetic took effect, the vivisector resumed drilling. Again the rat
struggled. Finally, ten minutes into the vivisection, the rat quieted 737.”
JON DUNAYER738
BERNARD DE MANDEVILLE
737
DUNAYER apud COHEN, Carl; REGAN, Tom. The Animal Rights Debate. Lanham (EUA):
Rowman´& Littlefield Publishers, 2001. p. 177-78.
738
A passagem acima referida descreve observações feitas pela sociologista MARY PHILLIPS
durante o seu estudo de três anos (1985-1987) sobre as práticas de experimentação “científica”
em dois grandes laboratórios de pesquisa na cidade de Nova Iorque.
739
MANDEVILLE apud SAVATER, op.cit., p. 47-8..
- 270 -
“Consideramos como verdades sagradas e inegáveis que todos os
homens são criados com igualdade e independência, que dessa
igualdade na criação dos homens derivam direitos inerentes e
inalienáveis, dentre os quais a preservação da própria vida, a liberdade e
a busca da felicidade.”
740
Por sua grande reputação de compaixão para com os animais, talvez seja surpreendente para
alguns perceber que SÃO FRANCISCO escreveu muito pouco sobre eles, sendo mais conhecido
pelo relato de suas ações feito por seus seguidores.
- 271 -
a questão ecológica (“justiça ecológica”) com a social (“justiça social”) como forma
de libertação dos oprimidos, pressupondo uma “nova aliança dos humanos com
os demais seres, uma nova cortesia para com o criado e a gestação de uma ética
e mística de fraternidade/sororidade para com a inteira comunidade cósmica. A
Terra também grita sob a máquina depredadora e mortífera de nosso modelo de
sociedade e de desenvolvimento. Atender a estes dois gritos de forma articulada,
vendo a mesma causa-raiz que os produz, é realizar a libertação integral.”741 Ao
que tudo leva a crer, a proposta de uma ética de compaixão ilimitada e de co-
responsabilidade levaria a extensão de “direitos” aos animais, pois “ela [moral
convencional] é utilitarista e antropocêntrica e faz da terra um mero depósito de
recursos para satisfazer os desejos humanos, sem o sentido de respeito à
alteridade e dos direitos dos demais seres da natureza742.” Na mesma linha, sob
as mesmas bases da solidariedade (ao lado da liberdade, da igualdade e da
segurança), o jurista espanhol PECES-BARBA743 “chega a dizer que a
solidariedade é dever dos cidadãos. Os carentes teriam direito subjetivo à
solidariedade, seja por força de seu estado pessoal (menores, incapazes), social
(marginalizados, excluídos) ou por sua própria definição (chega a cogitar um
direito subjetivo dos animais à solidariedade). Defende que todos aqueles
juridicamente inferiorizados seriam credores da solidariedade.”744 Na mesma
linha, segundo ENGELHARDT, o respeito às pessoas nasce da preocupação de
741
BOFF, op.cit., p. 156.
742
Ibid., p. 187.
743
PECES-BARBA é qualificado como sendo um “neo-positivista” ao lado de HART e outros, para
os quais o fundamento central do Direito é o poder político. Este, para se legitimar deve organizar-
se sob a forma de Estado, obedecendo a uma lógica de autolimitação de seus próprios poderes e
criando um mecanismo de proteção às minorias. Apesar de positivista, o autor reconhece a
existência de uma moralidade prévia, anterior ao Estado que, todavia, só pode ser garantido caso
venha a ser positivada e garantida pelo Direito. Nesse sentido haveria uma moral crítica, ainda
não transformada em norma, ainda não-Direito, e a moralidade positivada, que seria aquela já
agasalhada pelo ordenamento jurídico. De acordo com MÁRCIO MONTEIRO REIS, resumindo o
modelo proposto pelo autor, afirma que “em uma primeira fase, há um dinamismo externo ao
Direito, no qual a moralidade crítica pressiona o poder buscando incorporar-se ao ordenamento
jurídico existente. Depois da incorporação de determinada regra moral ao Direito, tem início a
segunda fase, caracterizada por um dinamismo interno. A moralidade positivada ganha cada vez
mais espaço no ordenamento, o que se dá principalmente através da atividade de interpretação,
que provoca a consolidação e, muitas vezes, a ampliação do âmbito de aplicação daqueles
valores” (REIS, Márcio Monteiro. Fundamentação dos direitos humanos nas visões de Hart,
Peces-Barba e Dworkin. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.), Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001. p. 131).
744
REIS, op. cit., p. 136.
- 272 -
"agir de maneira que possam ser justificadas como merecedoras de acusação ou
de elogio"745. Analogamente, a preocupação com os animais tem sua origem
marcada no fato de se "ter um mundo que maximiza o bem-estar e sustenta uma
teia de solidariedade". ENGELHARDT hierarquiza a compaixão ao afirmar que "os
animais são protegidos pela moralidade de beneficência", e como os animais
possuem capacidades sensitivas diferentes entre si, a "força dos direitos de
beneficência varia dramaticamente"746.
745
ENGELHARDT, H.T. The Foundation of Bioethics. New York: Oxford University Press, 1996. p.
145.
746
Ibid., p. 145.
747
BOFF, op.cit., p. 188.
748
A adoção da “não-dualidade” avança em relação ao dualismo porque enxerga os seres vivos
como inseridos na mesma “roda da vida”, não existindo uma barreira ontológica entre um humano
e um não-humano. Todavia, isso não implica em que não haja a legitimação de uma hierarquia
entre eles, advinda principalmente dos méritos e das ações praticadas em vidas anteriores.
- 273 -
Das teses de “não-dualidade” desprende-se a tese da “não-violência”,
popularizada por meio das belas lições de MAHATMA GHANDI749. O jainísmo,
mais até do que o budismo e o hinduísmo, propõe a reverência a toda e qualquer
forma de vida e estabelece proibições específicas a respeito do uso violento dos
animais. A ética da “não-violência” possui uma meta de propagação de um estado
positivo de amor e de beneficência para com toda a criação. A moral budista, por
sua vez, descansa sob o princípio da responsabilidade e da intenção: só há ação
responsável quando é consciente, refletida e voluntária. A moralidade individual,
neste sentido, compreende o campo da palavra justa, da atividade justa e dos
meios de existência justos. Em sua dinâmica, a conduta moral acarreta a
produção de frutos como a bondade, a benevolência, a compaixão, a alegria, que
devem ser estendidos a todos os seres viventes. A “compaixão universal” budista
transcende a mera filantropia para se encaixar mais em um sentido de “irmandade
universal”.
749
Para GHANDI a vida nada mais é do que a “vibração da presença divina”.
- 274 -
afirmar com segurança que quem é cruel com os animais não pode ser boa
pessoa”750. Assim sendo, na esteira do pensamento budista, SCHOPENHAUER
considera a “compaixão universal” o caminho autêntico de libertação e de
felicidade para o ser humano:
[...] uma compaixão sem limites para com todos os seres vivos é a
garantia mais firme e segura da conduta moral. [...] para o
reconhecimento da compaixão, mostrada como a única fonte as ações
desinteressadas e, portanto, como a verdadeira base da moralidade, não
se precisa de nenhum conhecimento abstrato senão somente o intuitivo,
da mera captação do caso concreto [...]751.
750
SCHOPENHAUER apud ROSELLÓ, Francesc Torralba. “Filosofía de la no dualidad y derechos
de los animales”. In: LACADEMA, Juan Ramón (org.). Los Derechos de Los Animales. Madrid:
Desclée de Brouwer, 2002. p. 76, tradução nossa.
751
SCHOPENHAUER apud ROSELLÓ, op.cit., p. 77, tradução nossa.
752
As pessoas que são insensíveis ao sofrimento alheio são comumente qualificadas por serem
inumanas ou bestiais, em uma analogia ao comportamento de predadores animais em relação à
sua presa.
- 275 -
Logicamente que o sofrimento animal não pode ser justificado pelo fato de a
pessoa não ser nem indiferente nem sádica com relação a ele.
753
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 228, tradução nossa.
- 276 -
2.3.2. Teorias Diretas: A Defesa Ética dos Animais por Humphry
Primatt e seus herdeiros754.
"O mundo é lugar perigoso, não devido àqueles que praticam o mal, mas
devido àqueles que observam e nada fazem."
ALBERT EINSTEIN
754
O título e o conteúdo deste item foram diretamente inspirados na palestra proferida pela ilustre
professora SÔNIA T. FELIPE no I Seminário dos Direitos dos Animais, realizado em Florianópolis-
SC, em novembro de 2005, chamado “Uma Defesa Ética dos Animais: Humphry Primatt e seus
herdeiros”. SÔNIA T. FELIPE é Professora do Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, e investigadora permanente do
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
755
HUTCHESON apud THOMAS, op.cit., p. 215.
- 277 -
descreveu o tratamento bárbaro a que animais eram submetidos em alguns
experimentos’.756
756
FELIPE, Sônia T. Crítica ao Especismo, op.cit.
757
PRIMATT apud FELIPE, Direitos Animais, op.cit.
- 278 -
Pain is Pain, whether it be inflicted on man or on beast; and the creature
that suffers it , whether man or beast, being sensible of the misery of it
whilst it lasts, suffers Evil.758
758
PRIMATT apud RYDER, The Politcal Animal, op.cit., p. 18.
759
PRIMATT apud TURNER, op.cit., p. 11.
760
PRIMATT apud TURNER, op.cit., p. 11.
761
A “regra de ouro” clássica que tem pautado a conduta humana poderia ser descrita como: “não
faças a outrem aquilo que, sob as mesmas condições e circunstâncias, não gostaria que fizessem
contigo”.
- 279 -
cavalos, porcos, ou cães, deveríamos tratá-los do mesmo modo como
gostaríamos de sermos tratados caso fôssemos um deles. A professora SÔNIA T.
FELIPE denominada a “regra de ouro” de “princípio da coerência”:
Now if amongst men, the differences of their powers of the mind, and of
their complexion, stature and accidents of fortune, do not give to any one
man a right to abuse or insult any other man on account of these
differences; for the same reason, a man can have no natural right to
abuse and torment a beast, merely because a beast has not the mental
powers of a man. A brute is an animal no less sensible of pain than a
man. He has similar nerves and organs of sensation.764
762
FELIPE, Direito dos Animais, op.cit.
763
FELIPE, Sônia T. “Defesa ética dos animais. Humphry Primatt e seus herdeiros: Peter Singer,
Tom Regan e Richard D. Ryder”. Conferência de abertura do I Seminário ÉoBicho! de Direito dos
Animais. Florianópolis: ÉoBicho!; SVB; OAB/SC, 4-5 nov. 2005, 19:00 hs. . Disponível em:
<http://www.eobicho.org>. Acesso em 10 nov. 2005.
764
PRIMATT apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 18.
- 280 -
Apesar de basear todo o seu arcabouço teórico sob bases
compassionais, PRIMATT, com seu “princípio da coerência” dá um passo adiante
em relação aos defensores das teorias indiretas, pois inaugura uma tendência de
julgamento ético imparcial dos animais, tendência esta seguida de perto por
outros pensadores.
2.ª tese: As tradições nem sempre são sinônimos de ética, nem sempre
preservam valores morais universais.
- 281 -
9.ª tese: Dor é experiência intrinsecamente má, para qualquer ser que a
sofre.
14.ª tese: Dotes naturais não podem ser confundidos com dotes ou
méritos morais. Por não resultarem do mérito, tais dotes não podem
servir de critério moral para definir quem é digno ou não de
consideração.
- 282 -
22.ª tese: Crueldade é covardia, ainda pior quando praticada contra
animais. Esses não têm quem os defenda, quem os vingue, quem os
represente num tribunal. Nem sequer o reconhecimento moral de que
tais atos não devem ser praticados contra eles. Os humanos, pelo
menos, têm tudo isso, como escudo protetor.
23.ª tese: A morte é inexorável para todo ser vivo, o sofrimento, não.
Maltratar animais, antes de matá-los, alegando a necessidade de
alimento, não é argumento. Ainda que um ou outro animal devesse, em
circunstâncias de escassez excepcionais, ser mortos, para servir de
alimento, não haveria razão alguma para infligir-lhes dor e sofrimento. No
caso de a morte ser necessária, ela deve ser fulminante. Enquanto
estão vivos, no entanto, os animais devem ser mantidos ‘happy’.
24.ª tese: Não é verdade que temos necessidade de lucros, por termos
necessidade de sobreviver. Matar animais, argumentando que eles
também se matam uns aos outros, não tem fundamento lógico nem
ético. Os animais, quando o fazem, nunca é para obter lucros, e o fazem
apenas seletivamente, jamais sem estarem premidos pela necessidade.
25.ª tese: Os seres humanos não são superiores aos animais no que
toca à bondade. Somando-se as dores e mortes produzidas pelos
animais contra humanos, os humanos ganham de longe a corrida. Para
cada mal causado a um humano por um animal, aquele responde com
mil outros males, contra esse.
26.ª tese: Imitar o que se repudia é vil. Tratar animais com crueldade,
explorá-los e matá-los, alegando que fazem o mesmo uns contra os
outros ou contra os humanos, é abandonar o estatuto de sujeito moral
que nos concedemos, e buscar, justamente nos animais a quem a moral
tradicional abomina como vis, o modelo de ação que a própria razão
despreza.
Our main principle is now clear”, escreve Salt. “If ‘rights’ exist at all −and
both feeling and usage indubitably prove that they do exist− they cannot
be consistently awarded to men and denied to animals, since the same
sense of justice and compassion apply in both cases. ‘Pain is pain’, says
an honest old writer, [PRIMATT] ‘whether it be inflicted on man or on
765
FELIPE, Sônia T., Defesa Ética dos Animais, op.cit.
- 283 -
beast; and the creature that suffers it, whether man or beast, suffers evil;
and the sufferance of evil, unmeritedly, unprovokedly, where no offence
has been given, and no good can possibly be answered by it, but merely
to exhibit power or gratify malice, is Cruelty and Injustice in him that
occasions it.766
“[...] the death they [animais] suffer in our hands commonly is, and always
may be, speedier, and by that means a less painful one, than that which
awaits them in the inevitable course of nature.”767
JEREMY BENTHAM
766
SALT, Henry. Animal Rights: Considered in Relation to Social Progress. Pennsylvania: Clarks
Summit, 1980. p. 24-5.
767
BENTHAM apud REGAN, op.cit., p. 205.
768
BENTHAM se opunha à pesca, à caça e às práticas esportivas que envolviam animais. MILL,
como já mencionado, encontrava-se entre os primeiros contribuidores da Royal Society For The
Prevention Of Cruelty To Animals – RSPCA. Todavia, ambos não se opuseram frontalmente às
práticas de vivissecção e não eram vegetarianos. Ainda que seus contemporâneos os tenham
qualificado como “radicais”, podemos dizer que seriam reformadores e não abolicionistas.
- 284 -
por aquele que, em um “balanço ótimo”, produza mais prazer que sofrimento para
todos os atingidos pelo seu resultado. As concepções utilitárias podem ser
subdivididas em duas correntes básicas, quais sejam a do “utilitarismo do ato” ou
direto (“act utilitarianism”) e a do utilitarismo indireto (“rule-utilitarianism”). A
versão direta “leva em consideração prioritariamente as escolhas individuais, no
julgamento a respeito do caminho eticamente desejável para a maximização da
felicidade”769, enquanto que a indireta, “[...] considerando difícil precisar qual ação
individual que levará, de fato, à intensificação máxima da felicidade, prioriza a
escolha moral de regras preestabelecidas de conduta, instituições, deveres
coletivos, etc., capazes de gerar uma satisfação segura, não submetida às
incertezas do destino.”770 771
769
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, op.cit., p. 2816.
770
Ibid., p. 2816.
771
FRANCIONE traz um exemplo bastante elucidativo a respeito da diferença entre as duas
versões do utilitarismo: “Suponha que SIMON empresta seu carro a JANE e lhe peça para
devolvê-lo, pois quer sair com SUE em um encontro romântico. O problema é que SUE é casada
com BILL, um amigo próximo de JANE, e a tentativa de encontro de SIMON se daria, obviamente,
sem o conhecimento de BILL, que ficaria devastado com a eventual descoberta da infidelidade de
sua esposa. Deveria JANE mentir a SIMON dizendo que perdeu as chaves do carro e que por
conta disso não poderia devolvê-lo naquele dia? Se JANE é uma utilitarista direta, pesará as
conseqüências de mentir quanto a não devolver o carro (SIMON mora longe de SUE e não
poderia sair com ela a não ser utilizando o carro) contra as de não mentir e devolver o carro (BILL
poderá vir a saber do encontro e ficaria emocionalmente abalado). JANE poderia, dadas as
circunstâncias, decidir que mentir a SIMON a respeito do carro seria a coisa certa a se fazer. Se,
ao contrário, JANE é uma utilitarista indireta, pesará as conseqüências de uma regra geral sobre
mentir e perguntaria o que aconteceria se todas as pessoas mentissem nas mesmas
circunstâncias. JANE poderia concluir que, ainda que a devolução do carro a SIMON pudesse
trazer conseqüências negativas no caso particular, se todos os comodatários mentissem quando
perguntados sobre o retorno do empréstimo, ninguém mais emprestaria suas posses a outrem. A
diferença entre o utilitarismo direto e indireto é a diferença entre as conseqüências de um ato
determinado ou as conseqüências de se seguir uma regra abstrata e geral sobre a correção ou
não das condutas individuais” (FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 131-32,
tradução nossa).
- 285 -
O aspecto “gregário/coletivo” do balanço realizado é sobremaneira
importante, pois nem sempre a alternativa que trará mais prazer a um
determinado grupo de pessoas deve ser a escolhida se, no geral, outra a supera
no total absoluto dos outros grupos afetados. É por esta mesma razão que tal
princípio é usualmente referido como sendo o “Princípio da Maior Felicidade
Possível” (“Greatest Happiness Principle”).
772
KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy: An Introduction. Oxford: Oxford University
Press, 2002. p. 12.
- 286 -
animais, entendia que também possuíam o interesse de não-sofrer e de ter uma
existência continuada. A conjugação destas posições leva a que o utilitarismo
“hedonista” que, em princípio, aparenta ser uma excelente alternativa teórica às
áridas concepções indiretas, acabe por se revelar também passível de objeções.
A primeira delas diz respeito ao problema da possibilidade de se matar “agentes
morais”. Como verificado, parece indubitável que qualquer teoria moral que se
preze deve se pautar por levar em consideração o dever de não lesionar ou matar
“agentes morais”. A concepção utilitarista clássica oferece um problema a esse
respeito consistente no fato de que apesar de o prazer e sofrimento da vítima
deverem ser levados em conta, não podem ser qualificados como tendo peso
maior que os prazeres e sofrimentos gerais. Em outras palavras, se matar o
agente em questão otimiza o balanço coletivo, nada obstaria a que assim se
procedesse, não havendo que se cogitar de qualquer falha moral em tal ato. O ato
de matar se torna facilmente justificável ao contrário da intuição generalizada de
que só poderia ser feito em condições excepcionais (no caso de legítima defesa,
por exemplo). Os utilitaristas tentam responder a esta objeção afirmando que na
moralidade de se matar devem ser levados em conta não só os prazeres e
sofrimentos das vítimas, mas também todos os derivados de tal ato, tais como
ansiedade e insegurança causados à população. O problema desta resposta é
que, paradoxalmente, ela tenta proteger o agente moral de ser morto pelos efeitos
colaterais da conduta lesiva e não pelo valor intrínseco do próprio agente por ela
afetado, postulando um retorno às concepções indiretas. A matança de “pacientes
morais” também envolve o mesmo tipo de análise, especialmente se for
conduzida de modo a tornar o ato o mais indolor possível. Conforme afirma
BENTHAM, “the death they [animais] suffer in our hands commonly is, and always
may be, speedier, and by that means a less painful one, than that which awaits
them in the inevitable course of nature”773. BENTHAM rejeita expressamente a
noção de que os animais deveriam ser tratados como coisas porque são
supostamente classificados como não-conscientes. Entretanto, concorda com o
fato de que a sua não-consciência (o que, como verificado é altamente discutível)
acarreta uma alteração qualitativa entre eles e os seres humanos e que, por tal
773
BENTHAM apud REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 205.
- 287 -
razão, poderiam ser eventualmente tratados como coisas no que se refere ao seu
interesse de viver, mas não quanto ao interesse de não sofrer.
If the being eaten were all, there is very good reason why we should be
suffered to eat such of them as we like to eat; we are the better for it, and
they are never the worse. They have none of those long-protracted
anticipations of future misery which we have [...] If the being killed were
all, there is very good reason why we should be suffered to kill such as
molest us: we should be the worse for their living, and they are never the
worse for being dead. But is there any reason why we should be suffered
to torment them? No any that I can see774.
774
BENTHAM apud FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 134.
775
ROBERT NOZICK desenvolve um argumento igualmente interessante contra a teoria utilitária.
Ele imagina uma situação em que um neuropsicologista tenha criado uma máquina (“experience
machine”) que, mediante a administração de injeções de determinados medicamentos, poderia
manter-nos em estado de constante prazer. Se o prazer é o bem supremo, não se poderia objetar
que todos se voluntariassem a viver eternamente atrelados a tal mecanismo. Muitos, entretanto
haveriam de concordar que este não é um modo de vida que poderia ser razoavelmente defendido
(cf. NOZICK apud KYMLICKA, op.cit., p. 13).
- 288 -
Além disso, dizer que os animais possuem um interesse de não
sofrer, mas que, simultaneamente, sejam reputados como coisas gera o dilema
relativo à impossibilidade de aplicação efetiva do “princípio da igual consideração
de interesses”, a ser examinado no item a seguir. Conforme sintetiza
FRANCIONE:
The result is tat although Bentham regarded his view of animals as more
progressive than that of those who denied any moral significance to
animal interests altogether, his theory, which was incorporated into
animal welfare laws, landed us in exactly the same place as the views he
purported to reject776.
776
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 134.
777
BARELLI, Ettore; PENNACCHIETTI, Sergio. Dicionário das Citações. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
- 289 -
pesquisa e posterior publicação da candente obra “Animal Liberation778” em
1975779. Após voltar à Austrália para lecionar em Melbourne, nas Universidades
de La Trobe e Monash, retornou aos EUA para se tornar professor titular da
cadeira de bioética em Princeton. Também ministra cursos nas Universidades de
Yale, Stanford, Califórnia, Harvard, entre outras. Publicou uma infinidade de
artigos e livros780 relacionados ao campo da ética e da política, abordando sempre
778
SINGER, Libertação Animal, op.cit.
779
Antes de publicar a supracitada obra, tinha feito uma resenha sobre o livro Animals, Men and
Morals intitulada Animal Liberation, razão pela qual talvez tenha optado pelo mesmo nome
posteriormente (cf. “Animal Liberation”, New York Review of Books, abr. 1973). Também antes da
publicação do livro Animal Liberation, escreveu um artigo chamado All Animals Are Equal
(Philosophical Exchange, vol. 1, 1974, p. 103-116).
780
Democracy and Disobedience, Clarendon Press, Oxford, 1973; Oxford University Press, New
York, 1974; Animal Rights and Human Obligations: An Anthology (co-editor with Thomas Regan)
Prentice-Hall, New Jersey, 1976; Practical Ethics, Cambridge University Press, Cambridge, 1979;
Marx, Oxford University Press, Oxford, 1980; Animal Factories (co-author with James Mason)
Crown, New York, 1980; The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology, Farrar, Straus and
Giroux, New York, 1981; Hegel, Oxford University Press, Oxford and New York, 1982; Test-Tube
Babies: a guide to moral questions, present techniques, and future possibilities, (co-edited with
William Walters), Oxford University Press, Melbourne, 1982; The Reproduction Revolution: New
Ways of Making Babies (co-author with Deane Wells) Oxford University Press, Oxford, 1984;
Should the Baby Live? The Problem of Handicapped Infants (co-author with Helga Kuhse) Oxford
University Press, Oxford, 1985; In Defence of Animals (ed.) Blackwells, Oxford, 1985; Ethical and
Legal Issues in Guardianship Options for Intellectually Disadvantaged People (co-author with Terry
Carney) Human Rights Commission Monograph Series, No.2, Australian Government Publishing
Service, Canberra, 1986; Applied Ethics (ed.) Oxford University Press, Oxford, 1986; Animal
Liberation: A Graphic Guide (co-author with Lori Gruen) Camden Press, London, 1987; Embryo
Experimentation (co-editor with Helga Kuhse, Stephen Buckle, Karen Dawson and Pascal
Kasimba) Cambridge University Press, Cambridge, 1990; paperback edition, updated, 1993;
Companion to Ethics (ed.) Basil Blackwell, Oxford, 1991; paperback edition, 1993; Save the
Animals! (Australian edition, co-author with Barbara Dover and Ingrid Newkirk) Collins Angus &
Robertson, North Ryde, NSW, 1991; The Great Ape Project: Equality Beyond Humanity (co-editor
with Paola Cavalieri) Fourth Estate, London, 1993; How Are We to Live? Ethics in an age of self-
interest Text Publishing, Melbourne, 1993; Ethics (ed.) Oxford University Press, Oxford, 1994;
Individuals, Humans and Persons: Questions of Life and Death (Co-author with Helga Kuhse)
Academia Verlag, Sankt Augustin, Germany, 1994; Rethinking Life and Death: The Collapse of Our
Traditional Ethics, Text Publishing, Melbourne, 1994; The Greens (Co-author with Bob Brown),
Text Publishing, Melbourne, 1996; The Allocation of Health Care Resources: An ethical evaluation
of the "QALY" approach, Ashgate/Dartmouth, Aldershot, 1998 (co-author with John McKie, Jeff
Richardson, PS and Helga Kuhse); A Companion to Bioethics (co-editor with Helga Kuhse),
Blackwell, Oxford, 1998; Ethics into Action: Henry Spira and the Animal Rights Movement,
Rowman and Littlefield, Lanham, Maryland, 1998; Bioethics: An Anthology (co-editor with Helga
Kuhse), Blackwell, Oxford, 1999; A Darwinian Left Weidenfeld and Nicolson, London, 1999;
Writings on an Ethical Life, Ecco, New York, 2000; Unsanctifying Human Life: Essays on Ethics
(edited by Helga Kuhse), Blackwell, Oxford, 2001; One World: Ethics and Globalization, Yale
University Press, New Haven, 2002; Pushing Time Away: My Grandfather and the Tragedy of
Jewish Vienna, Ecco Press, New York, 2003.
- 290 -
questões aplicadas, tais como o aborto, a eutanásia e o tratamento ético dos
animais781.
[...] não existe uma razão obrigatória, do ponto de vista lógico, para
pressupormos que uma diferença factual de capacidade entre duas
pessoas justifique qualquer diferença na consideração que damos a suas
necessidades e interesses. O princípio da igualdade dos seres humanos
não é a descrição de uma suposta igualdade de fato existente entre
seres humanos: é a prescrição de como devemos tratar os seres
humanos783.
781
Foi por meio de sua obra, Animal Liberation, que tive o primeiro contato com o tema do
tratamento ético dos animais. A seriedade e complexidade de sua construção teórica permitiram
ganhos significativos de credibilidade para o movimento pró-animal em todo o mundo.
782
FRANCIONE exemplifica essa primeira observação por meio da seguinte analogia: se tenho
dois filhos, MARIA e JOÃO, e se os dois se comportam de maneira indevida de forma idêntica,
devo responder ao seu comportamento de maneira equivalente. Se decidisse punir JOÃO
restringindo sua “mesada” por uma semana e MARIA por um mês, MARIA estaria em princípio
correta ao me criticar pelo tratamento diferenciado (cf. FRANCIONE, Introduction to Animal Rights,
op.cit., p. 83).
783
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 6.
- 291 -
De fato, apesar da inegável existência de inúmeras diferenças
específicas intra-espécie (variação de atributos físicos, mentais, sensitivos,
comunicativos e psicológicos), a demanda por igualdade não requer e tampouco
se baseia em uma pretensa igualdade fática entre os seres humanos784.
784
No mesmo exemplo de JOÃO e MARIA relatado por FRANCIONE, poderíamos exemplificar
essa segunda abordagem por meio do seguinte caso: suponhamos que MARIA tenha uma enorme
facilidade e talento para a matemática enquanto que o talento de JOÃO na mesma matéria seja
apenas moderado. Apesar da habilidade superior de MARIA na matemática poder vir a lhe ser
extremamente útil para seu futuro profissional em carreiras em que ela seja mais exigida, e isso
poderá até mesmo vir a garantir uma maior remuneração, com relação a JOÃO, se também quiser
seguir a mesma carreira (maior talento, maior remuneração), não poderá servir de base para
justificar tratamento ético diferenciado entre eles (cf. FRANCIONE, op.cit., p. 83).
785
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 16-7.
- 292 -
posições, segundo o autor, não deve se basear no fato de que as mulheres são
factualmente idênticas aos homens ou que brancos são factualmente idênticos a
negros, pois, apesar de tudo indicar que assim o seja, uma eventual comprovação
de diferenças de capacidades entre esses grupos conduziria à absurda
legitimação destas práticas discriminatórias. Os oponentes do racismo e do
sexismo, ao contrário, devem se pautar por defender que o conceito de
“igualdade” não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física ou
de quaisquer outras categorias fáticas. É, portanto, uma implicação direta do
princípio da igualdade que a nossa preocupação com outrem não dependa de
quaisquer características físicas ou de quaisquer habilidades factuais que
possuam.
- 293 -
servir de base para a concessão de maior ou menor proteção, ou, em outras
palavras, não legitima que um ser humano utilize outros como meros meios para
suas finalidades particulares, como podemos justificar a exploração de não-
humanos com base no mesmo argumento?
788
A genética baniu de vez o conceito tradicional de raça. Indivíduos pertencentes às mais
diversas etnias diferem tanto entre si como dentro de suas próprias etnias. O professor SÉRGIO
DANILO PENA, titular da cadeira de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais
esclarece que: “todos os estudos genômicos realizados até agora têm destruído completamente a
noção de raças. Em outras palavras, a espécie humana é jovem demais para ter tido tempo de se
diferenciar em raças. Do ponto de vista genômico, raças não existem” (Disponível em:
<http://www.gene.com.br/Dr_sergio/publica-atuais05.htm>. Acesso em 14 out. 2005). Parece-nos
portanto, que o conceito de raça está em franca decadência, sobrevivendo apenas sob a
roupagem etnológica de coletividade de indivíduos que se diferenciam por sua especificidade
sociocultural (língua, religião, costumes...).
789
MOORE, Howard J. Universal Kinship, London, 1906. Disponível em: <http://www.animal-rights-
library.com>. Acesso em 10 nov. 2005.
- 294 -
anteriormente, no século XVIII, THOMAS TAYLOR, filósofo de Cambridge,
parodiou o livro de MARY WOLLSTONECRAFT, Vindication of the Rights of
Women (1792), afirmando que acaso verdadeiros, os seus argumentos de
emancipação feminina também deveriam ser aplicados a cães, gatos, e outros
animais. O que se poderia construir a partir da “analogia de TAYLOR” é que,
muito embora homens e mulheres sejam efetivamente similares e, por
conseguinte, devam possuir os mesmos direitos, homens e animais são diferentes
e, conseqüentemente, não poderiam possuir os mesmos direitos.
790
Tal como os homens não possuem o direito de praticar o aborto, onde ele é permitido, por uma
incapacidade intrínseca, pelo mesmo motivo seria ilógico se pensar em direitos de participação
política para animais.
791
SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 75, tradução nossa.
- 295 -
Se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para
deixarmos de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do
ser, o princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado
em pé de igualdade com sofrimentos semelhantes […] 792.
792
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 10.
793
Ibid, p. 12.
- 296 -
central com a organização do cérebro, espinha dorsal e a rede do
sistema nervoso periférico, juntamente com suas características
neurofisiológicas, existem grandes semelhanças entre o ser humano e
os animais. A principal diferença está no fato de os seres humanos, ao
contrário dos animais, poderem relatar sua experiência dolorosa
verbalmente. Apesar disso, aceita-se, hoje em dia, que os animais de
fato sentem dor. As pesquisas mostraram que muitos dos padrões de
resposta (quantificáveis) dos animais a estímulos dolorosos são
semelhantes aos que ocorrem nos seres humanos que passam por
situações de dor. No homem, como nos animais, a freqüência cardíaca
aumenta, ocorre uma hipertensão (temporária), e as alterações nos
níveis plasmáticos dos diferentes hormônios de estresse demonstram
padrões semelhantes. [...] Para evitar que o sofrimento animal passe
despercebido e, conseqüentemente, não seja tratado, no mundo da
pesquisa animal tem sido habitual, há muito tempo, aplicar o Princípio da
Analogia. A base desse princípio é admitir que as intervenções
(cirúrgicas) consideradas dolorosas nos seres humanos sejam dolorosas
também nos animais. Quando esse princípio é aplicado na decisão
referente ao desenvolvimento do protocolo anestésico ou analgésico, é
ao animal que tem o ‘benefício da dúvida’ e, como conseqüência, sob o
reconhecimento da presença da dor, é obrigatória a realização do alívio
adequado.794
794
HELLEBREKERS, Ludo J. A Dor em Animais. In: HELLEBREKERS, Ludo J. A Dor em Animais.
Barueri, SP: Manole, 2002. p. 12-3.
- 297 -
de uma maneira inteiramente diferente no nível das sensações
subjetivas 795.
795
O autor traz nas páginas 11 a 17 vários argumentos científicos no sentido de que é irrefutável
que determinados animais têm plena capacidade sensitiva e, neste sentido são, portanto, titulares
de interesses abarcados pelo princípio da igual consideração de interesses. Os neurocientistas
mais proeminentes corroboram tal assertiva. SINGER traz nas páginas 14 e 15 a posição de
LORD BRAIN e de RICHARD SERJEANT, assim como os estudos de STEPHEN WALKER,
Animal Thoughts (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1983); DONALD GRIFFIN, Animal
Thinking (Cambridge: Harvard University Press, 1984) e MARIAN STAMP DAWKINS, Animal
Suffering: The Science of Animal Welfare (Londres: Chapman).
- 298 -
responsabilidade através da imitação de seres que não são capazes de
fazer essa opção.796
796
SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 81.
797
Ibid., p. 82.
798
WITTGENSTEIN apud WOLFE, Cary. Zoontologies: The Question of the Animal. Minneapolis,
MN (EUA): University of Minnesota Press, 2003. p. 1.
- 299 -
A fórmula é: sem linguagem, sem subjetividade. Na ausência da linguagem, os
animais estariam trancafiados em um universo cartesiano de reações
automatizadas, em um procedimento de rotinas e sub-rotinas instintivas, muito
mais próximos de máquinas que pessoas, muito mais objetos que sujeitos.
799
HEARNE apud WOLFE, op.cit., p. 3.
800
CAVELL apud WOLFE, op.cit., p. 2.
- 300 -
The idea according to which man is the only speaking being, in its
traditional form or in its Heideggerian form, seems to me at once
undisplaceable and highly problematic. Of course, if one defines
language is such a way that it is reserved for what we call man, what is
there to say? But if one reinscribes language in a network of possibilities
that do not merely encompass but mark it irreducibly from the inside,
everything changes. I am thinking in particular of mark in general, of the
trace, of iterability, of différeance. These possibilities or necessities,
without which there would be no language, are themselves not only
human […] And what I am proposing here should allow us to take into
account scientific knowledge about the complexity of ‘animal languages’,
genetic coding, all forms of marking within which so-called human
language, as original as it may be, does not allow us to ‘cut’ once and or
all where we would in general like to cut.801
801
DERRIDA apud WOLFE, op.cit., p. 30.
802
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 17.
- 301 -
autores, apesar de a produção do domínio lingüístico propriamente dito ser
humana, evidências cogentes sugerem que outros animais são “capazes de
interagir conosco de maneiras ricas e variadas, inclusive se recorrendo a
domínios lingüísticos”803, sendo capazes de “fazer distinções lingüísticas”. As
categorias de linguagem e espécie são desarticuladas, e o ponto não é, pois,
determinar se os animais são capazes ou não de realizar todas as distinções
lingüísticas que nós somos capazes.
803
MATURANA; VARELA apud WOLFE, op.cit. p. 38.
804
DENNET apud WOLFE, op.cit., p. 42.
805
FRANKENA apud SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 82.
- 302 -
e desejos próprios e parecem igualmente ser capazes de aproveitarem uma “boa
vida”:
806
SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 82.
807
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 17.
808
“Se der um tapa com a mão aberta na anca de um cavalo, ele pode sobressaltar-se, mas
provavelmente não sentirá grande dor. Sua pele é grossa o suficiente para protegê-lo contra um
simples tapa. Contudo, se eu der o mesmo tapa num bebê, ele vai chorar e é quase certo que
sinta uma grande dor, pois tem a pele mais sensível. Portanto, é pior dar um tapa num bebê do
que num cavalo, desde que os dois tapas sejam dados com a mesma força. Mas deve existir
algum tipo de golpe – não sei exatamente qual seria, mas, digamos, um golpe com um pedaço de
pau – que fará o cavalo sentir tanta dor quanto sentiu a criança ao receber um simples tapa. É isso
o que quero dizer com ‘igual quantidade de dor’; e, se achamos errado infligir tanta dor a um bebê
sem nenhum motivo, então, a menos que sejamos especistas, devemos achar igualmente errado
infligir, sem motivo algum, a mesma quantidade de dor a um cavalo” (SINGER, Ética Prática,
op.cit., p. 69).
- 303 -
adultos possuem determinadas capacidades mentais que os fazem sofrer por
antecipação, em um processo de sofrimento psicológico. Por essa razão, talvez
seja melhor, caso seja imprescindível realizar uma experiência com cobaias, que
as cobaias sejam animais não-humanos que, em geral, não gozam dessa
capacidade (afirmação que merece certa restrição). Todavia, esse argumento leva
a que bebês humanos – órfãos talvez – ou seres humanos severamente
retardados também possam igualmente ser usados nas mesmas experiências,
pois também não fazem a menor idéia do que lhes acontecerá:
[…] we respect the interests of men and give them priority over dogs not
insofar as they are rational, but because rationality is the human norm.
We say it is unfair to exploit the deficiencies of the imbecile who falls
short of the norm, just as it would be unfair, and not just ordinarily
dishonest, to steal from a blind man. If we do not think in this way about
809
Ibid., p. 19.
- 304 -
dogs, it is because e do not see the irrationality of the dog as a deficiency
or a handicap, but as normal for the species. The characteristics,
therefore, that distinguish the normal man from the normal dog make it
intelligible for us to talk of other men having interests and capacities, and
therefore claims, of precisely the same kind as we make on our own
behalf. But although these characteristics may provide the point of the
distinction between man and other species, the are not in fact the
qualifying conditions for membership, or the distinguishing criteria of the
class of morally considerable persons; and this is precisely because a
man does not become a member of a different species, with its own
standards of normality, by reason of not possessing these characteristics
810
.
810
BENN apud SINGER, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., p. 84.
- 305 -
abaixo da média” (branca). Finalmente troque “raça” por “espécie”. Agora releia o
texto. Ele se torna uma defesa intransigente de uma rígida divisão entre brancos e
negros, baseada no fator inteligência. A passagem revisada é, obviamente,
absurda, pois já se teve oportunidade de verificar que a defesa da igualdade é
uma defesa moral e não factual. Todavia, o ponto é que na passagem original
BENN estava defendendo uma igualmente rígida divisão na quantidade de
consideração devida a membros de espécies distintas. Se esta primeira leitura
não nos atinge como sendo absurda, tal ocorre com a segunda. Isto se deve ao
fato de que, apesar de não sermos racistas, a maior parte de nós é especista.
BENN permanece como um alerta a respeito da facilidade com que as mentes
mais esclarecidas podem cair vitimadas por uma ideologia que, apesar de
dominante, é absolutamente discriminatória.
- 306 -
superficiais, e dispuséssemos de apenas uma dose de analgésico – não
é tão claro a quem deveríamos escolher. O mesmo acontece quando
consideramos outras espécies.”811 Continua o autor: “Tal como a maioria
dos seres humanos é especista por dispor-se a causar dor a animais por
razões pelas quais não causaria dor similar a seres humanos, a maioria
dos seres humanos é especista , também, por dispor-se a matar um
animal nas mesmas circunstâncias em que se negaria a matar um ser
humano. Todavia, temos de avançar com muita cautela neste terreno,
pois as pessoas têm pontos de vista bastante diferentes sobre as
circunstâncias sob as quais é legítimo matar seres humanos, como
atestam os contínuos debates sobre aborto e eutanásia.812
A única coisa que distingue o bebê do animal, aos olhos do que alegam
ter ele ‘direito à vida’, é ele ser, biologicamente, um membro da espécie
Homo sapiens, ao passo que os chimpanzés, os cães, os porcos, não o
são. Mas, usa essa diferença como base para conceder direito à vida ao
bebê e não a outros animais e, naturalmente, puro especismo. É
exatamente esse tipo de diferença arbitrária que o racista mais grosseiro
e declarado usa, na tentativa de justificar a discriminação racial.813
811
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 24.
812
Ibid., p. 20.
813
Ibid, p. 21.
- 307 -
Apesar de sustentar que somos especistas ao permitir o abate de
animais por razões em que não mataríamos um ser humano, SINGER não chega
ao ponto de argumentar que, para evitar o especismo, precisemos:
[...] sustentar que é tão errado matar um cão quanto matar um ser
humano em plena posse de suas faculdades. A única posição
irremediavelmente especista é a que tenta fazer a fronteira do direito à
vida correr exatamente paralela à fronteira de nossa própria espécie. [...]
Para evitarmos o especismo, temos de admitir que seres semelhantes,
em todos os aspectos relevantes, tenham direito semelhante à vida. O
mero fato de um ser pertencer à nossa própria espécie biológica não
pode constituir em critério moralmente relevante para que se tenha esse
direito.814
814
Ibid., p. 22.
815
Ibid., p. 22.
- 308 -
que cometemos uma grave ofensa moral sempre quando os matamos mesmo
quando estão velhos e sofrendo e; (b) seres humanos gravemente retardados e
senis, sem recuperação possível ou viável, não têm direito à vida e podem ser
mortos por razões triviais, tal como fazemos agora com os animais. Para
SINGER, nenhuma das duas interpretações é satisfatória para evitar o
especismo. O filósofo defende a adoção de uma posição intermediária, segundo a
qual:
- 309 -
A extensão do princípio básico da igualdade de um grupo para outro não
implica que devamos tratar os dois grupos exatamente da mesma
maneira, ou que devamos conceder-lhes os mesmos direitos. [...] O
princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico,
mas sim, igual consideração. A igual consideração por seres diferentes
pode levar a tratamentos e direitos distintos.
- 310 -
uma visão de “direitos”, pois, como se viu, de acordo com ele, devemos nos
pautar sempre por seguir uma norma abstratamente formulada ainda que as
conseqüências imediatas derivadas do ato sejam indesejáveis.
Why is it surprising that I have little to say about the nature of rights? It
would only be surprising to one who assumes that my case for animal
liberation is based upon rights to animals. But this is not my position at
all. I have little to say about rights because rights are not important to my
argument. My argument is based on the principle of equality, which I do
have a quite a lot to say about. My basic moral position (as my emphasis
on pleasure and pain and my quoting Benhtam might have led [readers]
to suspect) is utilitarian. I make very little use of the word “rights“ in
Animal Liberation, and I could easily have dispensed with it altogether. I
think that the only right I ever attribute to animals is the ‘right to equal
consideration of interests, and anything that is expressed by talking of
such a right could equally well be expressed by the assertion that
animals´interests ought to be given equal consideration with the like
interests of humans. (With the benefit of handsihgt, I regret that I did
allow the concept of a right to intrude into my work so unnecessarily at
this point; it would have avoided misunderstanding if I had not made this
concession to popular moral rhetoric) 819.
819
SINGER, Peter. “The Parable of the Fox and the Unliberated Animals”, Ethics 88, n. 2, jan.
1978. p. 122.
820
HART, H.L.A. “Death and Utility”, The New York Review of Books, n. 8, nov.1980. p. 30.
- 311 -
sentido de que a construção falharia no teste de conformidade às nossas
intuições contrárias a se matar um “agente moral”.
821
FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 14.
- 312 -
humanos, SINGER aprovaria o experimento. O mesmo se poderia dizer se o
objeto da pesquisa fosse um ser humano. A relação que o referido filósofo faz
entre senciência, autoconsciência e interesses é, pois, problemática em alguns
aspectos importantes.
- 313 -
sendo, difícil é sustentar que a grande parte dos animais não seja, ao menos em
certo nível, consciente.
823
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 139, tradução nossa.
824
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p.142, tradução nossa.
- 314 -
Apesar de algumas objeções poderem ser levantadas contra a
posição “utilitária preferencial”, há que se ressaltar que o trabalho de SINGER é
de importância capital e serve, ainda hoje, como marco teórico para o tratamento
das questões éticas referentes à condição dos animais. O embasamento teórico
de sua doutrina é realmente significativo e a maioria esmagadora de suas
ponderações é absolutamente fundada. Todavia, as razões expostas
anteriormente levam a que não consideremos suficiente a visão utilitária tal qual
proposta pelo autor, pois não dá conta de eliminar por completo a ideologia
especista, principalmente no que se refere ao problema de se matar agentes ou
pacientes morais. O respeito ao princípio da “igual consideração” não traz
garantias efetivas de que os animais serão tratados de forma igualitária se
permanecerem com o status de coisa. Não é suficiente que contemos de forma
equânime os interesses de cães e crianças se não as tratamos igualitariamente
depois de fazê-lo, além do que:
825
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 146, tradução nossa.
- 315 -
CAPÍTULO III – A LINGUAGEM DOS DIREITOS
SCHOPENHAUER
JEAN-CLAUDE NOUËT
826
SCHOPENHAUER. A Arte de Insultar, Martins Fontes, 2003, p. 42
827
BOCQUET, op.cit., p. 1.
828
NOUËT apud ARAÚJO, op.cit., p. 303.
- 316 -
Conforme se verificou ao longo do presente trabalho, as concepções
meramente indiretas de proteção aos animais foram, progressivamente, dando
lugar às teorias diretas. No âmbito destas últimas, vai surgindo, também de forma
paulatina, a inserção do conceito de direitos subjetivos para tratar a questão
animal.
Para FRANCIONE:
- 317 -
balance performed on a rigged scale: virtually every human use of
animals is regarded as “significant” (i.e., more significant than the
animals’ interest in not being so used) because the desires of human
property owners always trump the interests of property. And this is
precisely why, despite general moral agreement that animals ought not to
suffer “unnecessary” pain, animals, are subjected not only to barbaric
practices customary in the meat industry but also to trivial (and not
necessarily any less barbaric) use in circuses, rodeos, and captive
pigeons shoots.829
A visão dos “direitos”, por sua vez, por rejeitar a premissa de que
animais sejam coisa ou uma mera forma de propriedade, e por entender que ao
829
FRANCIONE, Gary L. Gary L. Rain Without Thunder: The Ideology of the Animal Rights
Movement. Philadelphia: Temple University Press, 1996. p. 10.
830
HENRY SALT, em 1914 já advertia sobre o fato de que o “abate humanitário” (“humane
slaughtering”) é uma contradição em termos. Segundo o autor: “One thing is quite certain. It is
impossible for flesh-eaters to find any justification of their diet in the plea that animals might be
slaughtered humanely; it is an obvious duty to carry out the improvements firs, and to make the
excuses afterwards. […] The ignorance, careslessness, and brutality are not only in the rough-
handed salughtermen, but in the polite ladies and gentlemen whose dietetic habits render the
salughtermen necessary. […] The cattle-ships of the present day reproduce, in an aggravated
form, some of the worst horrors of the slave-ship of fifty years back. I take it for granted, then, as
not denied by our opponents, that the present system of killing animals for food is a very cruel and
barbarous one, and a direct outrage on what I have termed the “humanities of diet” (cr. SALT,
Henry. The Humanities of Diet. Manchester: The Vegetarian Society, 1914. Disponível em:
<http://www.animal-rights-library.com>. Acesso em: 10 nov. 2005.
831
O Estado de São Paulo, por exemplo, possui a Lei Estadual n. 7.705/92 que regula o abate de
animais. Tal lei sofreu duro golpe em 1999 com a admissão da jugulação cruenta, conhecida como
abate ritual ou religioso.
- 318 -
menos alguns deles possuam interesses efetivamente protegíveis por “direitos”,
não podem ser submetidos a qualquer forma de exploração, ainda que com todas
as pretensas “salvaguardas” para se evitar o paradoxal “sofrimento
desnecessário”.
832
FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 3, tradução nossa.
- 319 -
Conforme alerta ALAN WATSON, Professor de História da
Universidade de Georgia:
- 320 -
RYDER chama a atenção para o fato de que WILHELM DIETER, ter
escrito na Alemanha, em 1787 que: “animais podem possuir direitos”836 do mesmo
modo que as crianças podem tê-los.
The day may come when the rest of the animal creation may acquire
those rights which never could have been withheld from them but by the
hand of tyranny [...] A full-grown horse or dog is beyond comparison a
more rational, as well as more conversable animal, than an infant of a
day, or a week or even a month old. But suppose the case were
otherwise, what would it avail? The question is not, can they reason?
Nor, can they talk? But can they suffer? Why should the law refuse its
protection to any sensitive being? The time will come when humanity will
extend its mantle over everything that breathes […]837
That they are sensible beings, and capable of happiness, none can
doubt. That their sensibility of corporal pleasure and pain is less than
ours, none can prove. […] What ideas would we form of superior beings
whose employment, or rather, whose amusement it was, by certain
invisible means, to snare, worry, fatigue and destroy the human race?838
- 321 -
contrapor os argumentos de MARY WOLLSTONECRAFT expressos em seu
“Vindication of the Rights of Woman”, admitiu, satiricamente, que acaso sua tese
em favor dos direitos das mulheres fosse legítima, deveria igualmente ser
estendida aos animais.
This, I take it, is the foundation of the rights of animals, as far as they can
be traced independently of scripture; and is, even by itself, decisive on
the subject, being the same sort of argument as that on which moralists
found the rights of mankind, as deduced form the light of nature.839
839
YOUNG apud RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 18.
840
SCHOPENHAUER apud LEVAI, Laerte Fernando. “Crueldade Consentida: A Violência Humana
Contra os Animais e o Papel do Ministério Público no Combate à Tortura Institucionalizada”.
Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/caouma/Doutrina/Amb/Teses/Laerte%20Fernando
%20Levai.htm>. Acesso em: 11 nov. 2005.
- 322 -
Em 1892, HENRY SALT publica o seu “Animal Rights: Considered in
Relation to Social Progress”. Em passagem já citada no curso desta obra, o autor
deixa clara a sua posição no sentido da necessidade de promoção dos direitos
dos animais, em um movimento coordenado de libertação democrática de
humanos e não-humanos. Conseguiu simpatizantes de peso para a causa, como
BERNARD SHAW e MOHATMA GHANDI841.
[...] i doveri dell´uomo verso gli animali non nascono da correlati dirititi
degli animali verso l´uomo, ma dai diritti della legge naturale, riflesso
della legge eterna divina, diritti que impongono all´uomo di non
incrudelire verso nessun essere.842
[...] qualunque sia il significato che può darsi della parola diritti, negli
animali vi é qualcosa, chiamarsi diritto o altro che si voglia che ha un´
intrinseca opposizione alla crudeltà e la rende un peccato [...] 843
841
GHANDI afirmava que a base de sua dieta vegetariana não era física e sim moral: “If anybody
said that I should die if I did not take beef-tea or mutton, even under medical advice, I would prefer
death. That is the basis of my vegetarianism” (GHANDI, Mohatma. Diet and Diet Reform.
Ahmedabad, Índia: Navajivan Publishing House, 1949. p. 10).
842
GHIGNONI. La Protezione degli animali in rapporto ai progressi della civiltà. Conferência
proferida em Roma em 31 mai. 1903. Disponível em:
<http://www.areematiche/42/documents/manucci _animalediritto.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2005.
843
LAZZARI. Sulla Protezione degli animali in cui si dimostra perchè i forestieri non vengono a
Napoli e come proteggendo gli animali si educano gli uomini. Conferências proferidas em Napoli
em 16 fev. 1899 e 7 mai. 1900. A Sociedade Napolitana de Proteção Animal surgiu em 1907.
Disponível em: <http://www.areematiche/42/documents/manucci_animalediritto.pdf>. Acesso em:
10 nov. 2005.
844
“Civiltà Cattolica”, v. 1, fascicoli 1288 e 1290, pp. 401-414 e 682-695.
- 323 -
Se não podemos negar a eles um princípio de moralidade
(companheirismo, gratidão, amizade), que razão temos em recusar sua
participação em nossa ordem jurídica, que é apenas um esfera da
moral?845
845
GORETTI, Cesare. Rivista di Filosofia, n. 19, Itália, 1928.
846
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 100.
847
Ibid., p. 98.
- 324 -
normas, ou seja, entre uma norma que obriga o devedor e outra que
faculta ao titular do direito exigi-lo.848
- 325 -
escritor BRIGID BROPHY, em 1965, restabeleceu a discussão dos “direitos dos
animais” com a publicação do artigo “The Rights of Animals” no Sunday Times de
10 de outubro.
[...] tal avanço [direitos para os animais] ainda não é possível para todos
os seres vivos. Em todo o mundo, pessoas estão envolvidas na criação e
abate de animais para consumo. A extensão de direitos para todos os
seres vivos continuará politicamente impossível por um bom tempo, não
importa o quão forte sejam os argumentos éticos. [...] Ainda assim, a
idéia de estender direitos a membros de outras espécies seria um marco
histórico. [...] Seria a primeira brecha na barreira das espécies e, com o
tempo, poderia facilitar a extensão para outros não-humanos. É verdade
853
“Should we breach the species barrier and grant rights to apes?”. Disponível em:
<http://www.kenanmalik.com>. Acesso em 01 mar. 2005.
- 326 -
que nenhum primata pode discutir filosofia, ou reconhecer a si próprio
como portador de direitos. Todavia, meu argumento para seus direitos
não é baseada no fato de que seriam nossos equivalentes. Caso assim
fosse, deveríamos negar os mesmos direitos a muitos seres humanos.
[...] Não enxergar tal fato, é colocar a escravidão dos primatas em
segundo plano. Eles necessitam de direitos fundamentais, garantidos por
lei.
Em 1983 TOM REGAN publica o seu “The Case For Animal Rights”.
Outros brilhantes pensadores publicam artigos e livros enfocando o tema, tais
como HENRY SPIRA, KENNETH SHAPIRO, ALEX HERSHAFT, HOLLY
HAZARD, KIM STALLWOOD, PETER e KATHY GERARD, DONALD BARNES,
ANDRE ROWAN, ALEX PACHECO, INGRID NEWIRK, GARY FRANCIONE,
DAVID DE GRAZIA, EVELYN PLUHAR, STEVEN WISE entre outros. O
denominador comum entre todos eles é a pesada crítica ao fato de que a
aplicação do princípio da moralidade, equivocadamente, põe muito mais peso à
análise da qualificação moral (“personalidade moral” segundo RAWLS) daquele
que sofre do que aos danos que efetivamente são gerados.
854
RYDER aduz a interessante observação (The Political Animal, op.cit., p. 32) que,
inconscientemente, o grupo de 1970 repetia, de certa forma, os de 1770 e 1870, quando distintos
clérigos e pensadores de Oxford discutiram acesamente aspectos relacionados à defesa animal.
- 327 -
Segundo o ilustre MIGUEL REALE,
- 328 -
é, aquelas que têm possibilidade de ser sujeitos de direitos.” Refere-se ao fato de
que apesar de somente se admitir que “seres humanos e sociedades,
associações de homens, fundações e entidades com suporte humano tenham
personalidade” 858, já se tentou a adaptação social dos animais como sujeitos de
direito859. Neste sentido, questionando se haveria direitos sem sujeito, o brilhante
autor cita E.I.BEKKER “que admitiu que também coisas pudessem ser subjeto
(sic) de direito”860. Em determinada época, “impressionava que loucos e ausentes
pudessem ser pessoa”861, afirmando:
858
MIRANDA, op.cit., tomo I, p. 127.
859
Ibid., p. 127.
860
Ibid., p. 164.
861
Ibid., p. 164.
862
Em outra passagem PONTES DE MIRANDA afirma que: “O direito romano não havia percebido
suficientemente que à capacidade de direito não é necessária a capacidade de obrar; e
raciocinava: se não pode obrar não é pessoa. Ora o homem, absolutamente incapaz de obrar, é
pessoa, e não se justificaria que, por isso, não se admitisse a personificação de entidade que não
fosse o homem. Por outro lado, o ‘omne ius hominum causa (factum est)’, que se lê na L. 2, D., de
statu hominum, 1, 5, foi lembrado para se ter como fingida a pessoa jurídica. Ora, tal enunciado
não se há de traduzir como ‘somente o homem pode ser sujeito de direito’ [...]” (MIRANDA, op.cit.,
tomo I, p. 285). Menciona ainda o fato de que o ato humano equivale ao fato do animal e por tal
razão, chega mesmo a incluir os animais quando trata da legítima defesa: Discute-se se pode o
que se defende ignorar a situação de perigo e alguns entendem que se há de ter consciência do
fim de auto-defesa, quer se trate de legítima defesa, quer de estado de necessidade, quer de
justiça de mão própria, o que é baralhar problemas. Quem atua em legítima defesa, vê, ouve,
palpa ou cheira, ou sente o sabor do risco, do perigo; não precisa ter consciência disso, - o reflexo,
com que se defende, pode ser instintivo. A regra jurídica do art. 160, I, 1ª parte, como a do art.
160, II, apanha quaisquer pessoas, capazes ou incapazes. Aquela opinião é errônea; teria o grave
inconveniente de deixar fora da proteção legal (as regras jurídicas pré-excludentes protegem) os
doentes mentais, que, como as pessoas sãs (e os animais), se podem defender (MIRANDA,
op.cit., tomo II, p. 287).
863
MIRANDA, op.cit., tomo I, p. 164.
- 329 -
Mais à frente continua o prestigiado autor:
864
Ibid., p. 166.
865
Ibid., p. 286.
866
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001.
p. 176.
- 330 -
ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, professor titular de Direito
Civil da Faculdade de Direito da USP, em brilhante parecer intitulado
“Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana” critica a concepção
insular da pessoa humana. Segundo o referido autor, a utilização da expressão
“dignidade da pessoa humana” no mundo do direito é um fato histórico recente867,
não escondendo, porém, grande desacordo atinente a seu conteúdo. A idéia
dominante do homem como razão e vontade ou como autoconsciência se tornou
insuficiente, pois os animais superiores também as possuem. Para ANTONIO
JUNQUEIRA,
867
Cita o autor que a expressão foi originariamente utilizada no “Preâmbulo” da Carta das Nações
Unidas (1945) sob a forma de “dignidade e valor do ser humano”. Na Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948) é também utilizada em seu primeiro “considerando” e em seu primeiro
artigo. A Constituição Italiana de 1947 fala em dignidade social, equanto que a “Lei Fundamental”
Alemã (1949) menciona em seu art. 1.1 que “a dignidade do homem é intangível”. Posteriormente,
em 1965,a declaração sobre liberdade religiosa “Dignitatis Humanae” consagrou o termo frisando
que “Da dignidade da pessoa humana tornam-se os homens de nosso tempo sempre mais
cônscios” (AZEVEDO, op.cit., p. 3).
868
AZEVEDO, op.cit., p. 5.
- 331 -
cavalos, cachorros, macacos, pensam e querem [...] Nesse campo, não
têm nenhuma razão grandes nomes da filosofia, como Descartes e Kant,
o primeiro, ao afirmar que os animas são “máquinas que se movem” e o
segundo, ao reduzi-lo a “coisas”.869
869
Ibid., p. 9-10.
870
Ibid., p. 14.
871
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 63.
- 332 -
intrínsecos que devem ser protegidos pelo Direito. Em seqüência, analisaremos
os principais teóricos que defendem e fundamentam a tese dos direitos dos
animais.
[...] qualquer limite à classe dos sujeitos de direito morais sob a base de
certas propriedades fáticas, tais como pertencer à espécie humana ou
que possuam racionalidade, apresenta uma dificuldade quase
insuperável. Devemos perguntar porque essas propriedades fáticas
deveriam necessariamente ser relevantes para certos princípios
normativos mais elevados. Se não resolvemos este problema, corremos
o risco de incorrer em um dogmatismo análogo ao do racista que
considera moralmente relevante as diferenças físicas sem uma ulterior
justificação moral. [...] No entanto, há classes de animais superiores não-
humanos que podem parcialmente gozar de alguns destes aspectos
desses direitos, tais como os direitos que implicam que a inflição de dor
possui um valor intrinsecamente negativo.872
872
NINO, Carlos Santiago. La Constitution de la Democracia Deliberativa, Barcelona: Gedisa,
1997. p. 82-83.
- 333 -
A moralidade é algo intimamente relacionado ao modo como
tratamos os outros e por “outros” o autor entende que sejam todos aqueles que
sejam sensíveis à dor. Deste modo, a ética da “dorência”, qualificada como sendo
a preocupação com a dor de outrem – deve ser estendida para todos os seres
sencientes (ou melhor “dorentes”) independentemente de seu sexo, classe social,
raça, nacionalidade ou espécie.
Para RYDER:
873
RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 46, tradução nossa.
- 334 -
nos preocupar primariamente com a dor do indivíduo que é o sofredor
máximo.874
874
Ibid., p. 47.
- 335 -
sonharíamos, assim espero, em tratar nossos bebês ou pessoas
mentalmente deficientes desta forma, ainda que sejam algumas vezes
menos inteligentes e comunicativos que alguns dos animais que
exploramos. A moeda moral darwiniana está agora começando a virar, e
se somos relacionados pela evolução então deveríamos ser relacionados
moralmente.875
The planet’s new masters had an intermittent sense of the absurd; Troog
laughter could shake a forest. Young Troogs first captured some
surviving children, then tamed them as “housemen”, though to their new
875
Ibid., p. 49.
876
Ibid., p. 51.
877
O brilhante ROBERT NOZICK, já em 1974, também fazia uso desta analogia no seu Anarquia,
Estado e Utopia (op.cit., p. 62-3), por meio da qual questionava se seria legítimo que seres
superiores a nós em artifício e inteligência pudessem nos sacrificar em seu próprio benefício.
- 336 -
pets the draughty Troog structures seemed far from house-like. Pet-
keeping spread. Whole zoos of children were reared on a bean diet. For
housemen, Troogs preferred children with brown or yellow skins, finding
them neater and cleaner than others; this preference soon settled into an
arbitrary custom. Themselves hermaphrodite, the Troogs were fascinated
by the spectacle of marital couplings. Once their pets reached
adolescence, they were put in cages whose nesting boxes had glass
walls. […] Cannibalism was rare. Breeders, by selecting partners, could
soon produce strains with certain comical features, such as cone-shaped
breasts or cushion-shaped rumps.878
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.880
878
STEWART, Desmond. The Limits of Trooghaft. London: Encounter, 1972. Disponível em:
<http://www.animal-rights-library.com>. Acesso em: 11 nov. 2005.
879
Outro exemplo muito próximo da “analogia extraterrestre” é a da “matrix”. O famoso filme narra
uma história em que humanos criam a inteligência artificial - IA. No entanto, sentido-se
desvalorizado em razão de sua óbvia “superioridade”, decide terminar o relacionamento conosco
da maneira mais simples possível, exterminando-nos. Mais, utilizam-nos como fonte de energia,
ou seja, como autênticas pilhas. Para tanto, somos criados em casulos ovóides para servir de
fonte de força para computadores e robôs, em um sistema de criação intensiva muito próximo ao
que hoje experimentam os animais.
880
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. p. 283.
- 337 -
3.2. REGAN e a “Questão dos Direitos dos Animais”881
J.M. COETZEE
TOM REGAN
- 338 -
(Rowman & Littlefield, 2003), Empty Cages (Rowman & Littlefield, 2004), entre
outras.
884
Ambas as concepções de justiça já foram previamente tratadas no presente trabalho e
refutadas. De acordo com REGAN, entre outras razões, a rejeição ao utilitarismo se dá em razão
de transformar os indivíduos em meros receptáculos, ou seja, o que é intrinsecamente valorado é
alguma qualidade, tal qual o prazer ou, de acordo com SINGER, a preferência, e não o indivíduo.
O valor de cada pessoa é medido em função da posse destas características. Ainda que o
utilitarismo se paute pela adoção da sensibilidade para o critério de igualdade, descuidam do valor
intrínseco dos indivíduos, pois, em razão da “utilidade”, os interesses individuais podem ser
sacrificados em nome da maximização da felicidade, do bem-estar ou da preferência do maior
número. O perfeccionismo, por sua vez, sustenta que o que é devido aos indivíduos depende do
quanto estes indivíduos se aproximam de um padrão de excelência previamente estabelecido, o
que pode gerar tratamento interpessoal altamente desigualitário e diferenciado. O contratualismo
também é rechaçado por REGAN, mesmo na sua acepção rawlsliana, pois, como já analisado,
“não há nada que garanta ou exija que todos terão uma chance de participar igualmente das
regras de moralidade” (REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 68, tradução nossa).
- 339 -
Consoante destaca GABRIELA DIAS DE OLIVEIRA:
885
OLIVEIRA, Gabriela Dias. A Teoria dos Direitos Animais Humanos e Não-Humanos de Tom
Regan. Revista Ethic@, Florianópolis, v. 3, n. 3, p. 289.
886
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 82.
- 340 -
“autonomia preferencial” partilhada pelos animais, além da capacidade de bem-
estar experimental, tudo aquilo que reputamos não dever ser feito contra seres
humanos devemos também nos abster de fazer em relação aos animais.
887
REGAN, All That Dwell Therein, op.cit., p. 116.
- 341 -
bem-estar experimental ao longo do tempo – em resumo, aqueles
animais que são sujeitos-de-uma-vida, vida que pode andar bem ou mal,
independentemente do quão valiosos são para outros animais? Se, via
de regra, é errado matar ou de quaisquer outros modos lesar crianças
humanas tendo tais características para que outras delas pudessem se
beneficiar, e se é fundamento suficiente para que tenham direitos; então
como podemos evitar de chegar à mesma conclusão em relação a todos
aqueles animais não-humanos que são semelhantes a estas crianças em
todos os aspectos relevantes? Se estas crianças têm direitos, de que
forma, podemos consistentemente nos recusarmos a reconhecer os
direitos destes animais?888
Regan propõe que o critério mais apropriado para servir aos propósitos
da expansão da comunidade moral humana seja o do valor inerente, pois
a atribuição de tal valor a um determinado ser vivo garante ao mesmo
tempo, a expansão dos limites da comunidade moral humana para
englobar seres de outras espécies, e a possibilidade de não transformar
tudo em uma e mesma coisa, ao oferecer um critério para traçar a tal da
necessária linha divisória entre pacientes morais (os que podem ser
prejudicados em seu bem-estar e qualidade de vida por conta de atos de
agentes morais) e pacientes não morais, aqueles em relação aos quais
os atos humanos não podem representar prejuízo algum, porque embora
possam ser vivos, tais seres não são capazes de distinguir entre bem-
estar e mal-estar, não podem, nesse sentido, ter qualquer valor
intrínseco, pois não vivem sua experiência de seres vivos como algo
889
consciente.
888
REGAN, Defending Animal Rights, op.cit., p. 101-102, tradução nossa.
889
FELIPE, Direitos Animais, op.cit., p. 18.
- 342 -
inerentes ou intrínsecos (o valor dos indivíduos poderia ser determinado pelo
valor intrínseco total de suas experiências) e a concepção perfeccionista de valor
(indivíduos têm valor, mas o nível de valor varia de pessoa a pessoa dependendo
da posse de determinadas características). A teoria do “equal inherent value”
sustenta que os indivíduos possuem um valor moral inerente e autônomo, à parte
de quaisquer outros critérios de valoração, e que este valor moral intrínseco é
distribuído de forma equânime, ou seja: “todos os que possuem valor inerente o
possuem igualmente, sejam animais humanos ou não”.890 Neste sentido, pode-se
afirmar que a perspectiva do autor abraça uma perspectiva kantiana alargada,
adotando uma concepção alargada dos seres que devem ser incluídos na
comunidade moral.
890
Ibid., p. 72.
891
Esta frase é de SÔNIA T. FELIPE (Direitos Animais, op.cit., p. 13) e sintetiza corretamente os
argumentos de REGAN no sentido de que: “Ser um sujeito-de uma-vida é ser um indivíduo cuja
vida é caracterizada pelas características exploradas nos capítulos iniciais do presente trabalho:
isto é, indivíduos são sujeitos-de-uma-vida se possuem crenças (“beliefs”) e desejos (“desires”);
percepção, memória, e um certo senso a respeito do futuro, incluindo o seu próprio futuro; uma
vida emocional marcada por sentimentos e experiências de prazer e dor; preferências e interesse
de bem-estar; habilidade de iniciar ações para a perseguição de seus desejos e metas; uma
identidade psicológica ao longo do tempo, e um bem-estar individual no sentido de que as
experiências vividas conduzem a uma melhora ou piora de sua qualidade de vida [...]” (REGAN,
The Case For Animal Rights, op.cit. p. 243). REGAN realmente explora todas estas características
demoradamente nos capítulos iniciais de sua obra The Case For Animal Rights, concluindo que
boa parte dos animais possui tais qualidades.
892
REGAN faz algumas ressalvas quanto a este ponto. Para o autor, a satisfação do conceito de
“sujeito-de-uma-vida” não é condição necessária para que se possua valor inerente e sim
suficiente. A própria possibilidade de se desenvolver uma ética ambiental apartada do uso do
meio-ambiente como recurso, dá margem a que se sustente que determinados objetos naturais,
muito embora não sejam “sujeitos-de-uma-vida”, possam ter valor intrínseco. Mesmo humanos e
animais que inicialmente não se encaixam no conceito podem ser vistos como possuindo valor
inerente.
893
Consoante frisa SÔNIA T. FELIPE, de acordo com a teoria de REGAN, “mesmo os seres com
graves lesões neurológicas, que não podem exercer atividade racional alguma, nem apresentar
uma performance lingüística que indique minimamente a capacidade de compreensão racional de
- 343 -
criar um critério inteligível e não-arbritário para conduzir à análise da concessão
do valor intrínseco. O critério de ser sujeito-de-uma-vida, segundo ele, preenche
os requisitos lógicos de: (1) similaridade relevante em relação àqueles que
postulam valor inerente (agentes e pacientes morais); (2) já que o valor intrínseco
é concebido como um valor categórico, sem níveis ou degraus distintivos,
qualquer similaridade relevante deve também ser categórica (ou se é sujeito-de-
uma-vida ou não: quem o for será de modo igual aos demais); (3) as similaridades
relevantes havidas entre agentes e pacientes morais deve conduzir à conclusão
de que temos deveres e direitos para com ambos.
sua existência, podem ser sujeitos de uma vida, no sentido de que suas experiências intrínsecas
de prazer, dor, alívio da dor, conforto físico e desconforto, continuam a ser possíveis apesar de
todas as demais incapacidades” (FELIPE, Direitos Animais, op.cit., p. 13)
894
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 248, tradução nossa.
- 344 -
somente depois de termos sujeitado tais intuições a um número de “testes”895 de
modo a assegurar que elas reflitam nossos juízos morais e não somente “palpites”
ou “sentimentos” particulares896. Neste particular, se existe alguma intuição que
seja compartilhada pela quase totalidade de nós é a de que temos uma vida que
nos é cara e extremamente relevante, por mais miseráveis e por mais que
ninguém mais a valorize além de nós mesmos. A maioria esmagadora dos seres
humanos, não importa qual a importância do benefício a ser atingido, não se
submeteria a experimentos científicos dolorosos ou que trouxessem
conseqüências sérias e indesejáveis à nossa saúde. Há uma clara e evidente
intuição generalizada no sentido de valorização da própria vida e de sentido de
auto-preservação que gera um outra poderosa intuição de que,
independentemente do benefício comum a ser alcançado, a vida e a liberdade
individual não podem ser sacrificadas de modo absoluto897.
895
Em sua visão, as intuições devem preencher os requisitos de: (a) clareza conceitual; (b) bases
empíricas e informacionais adequadas; (c) racionalidade; (d) imparcialidade; (e) tranqüilidade
emocional.
896
REGAN afirma que os princípios morais devem possuir os seguintes atributos: (a) consistência
ou coerência (nenhum princípio moral pode sustentar que um mesmo ato seja simultaneamente
correto e errado); (b) adequação de propósito (um princípio moral deve ser aplicável em variadas
circunstâncias nas quais se exige uma decisão moral); (c) precisão (um princípio moral deve poder
basilar claramente os caminhos a serem seguidos); (d) conformidade com nossas intuições (um
princípio moral deve estar inserido em uma situação de “equilíbrio reflexivo” com nossas crenças
morais, seja coincidindo com elas diretamente ou unificando-as sob bases comuns); (e)
simplicidade (é o princípio da navalha de Occam: sob as mesmas condições e pressupostos, o
princípio mais simples deve ser preferido em detrimento do mais complexo).
897
Um teste bastante simplório a respeito da validade destas intuições se dá com o aumento da
carga tributária. Tais medidas são, em geral, altamente impopulares, ainda que sejam justificadas
por uma retórica de maximização do bem-comum.
- 345 -
REGAN defende a tese segundo a qual os direitos fundamentais
(tratados inicialmente em uma acepção não propriamente jurídica do termo) são
universais no sentido de que se um indivíduo os possui, então qualquer outro
indivíduo em todos os aspectos similar também os deve ter, de maneira
equivalente. Apoiando-se em JOHN SUTART MILL898 e em JOEL FEINBERG899,
REGAN sustenta que os direitos morais (sejam eles fundamentais ou não)
produzem afirmações válidas sobre a sua propriedade, significando que a um
possuidor de um dado direito é garantido, de forma direta e autônoma, um
tratamento específico a ele correspondente. Os agentes e pacientes morais têm,
portanto, o direito a um tratamento digno, pois possuem valor intrínseco. Tal
direito veda a que sejam tidos como meros “receptáculos” de valores, tal como
advogado pelos utilitaristas.
- 346 -
consumo (alimento), caça, educação, entretenimento, testes e pesquisa,
independentemente da questão se há ou não causação de dor e sofrimento901 ou
se há benefícios tangíveis a serem revertidos para o homem. O autor descarta
ainda o argumento segundo o qual o “princípio da liberdade” (“liberta principle”)
pudesse justificar que haveria uma margem residual para se utilizar os animais
para tais finalidades. Segundo o autor, os que exploram animais não possuem tal
alegada “liberdade” em razão do fato de que o “princípio da liberdade” só permite
que indivíduos inocentes sejam lesionados quando seu igual valor intrínseco
tenha sido previamente respeitado, o que, definitivamente, não ocorre nas
atividades que os tratam como meros meios.
901
REGAN insere-se, pois, como um abolicionista, criticando a “volatilidade” da caracterização da
crueldade. Critica também a posição “welfarista”, pois segundo ele, o dever negativo de não ser
cruel não possui correlação direta com a correção de determinada conduta: “[...] assim como uma
pessoa motivada pela bondade não garante que ele ou ela faz o que é certo, também a ausência
de crueldade não assegura que ele ou ela evita fazer o que é errado” (REGAN apud OLIVEIRA,
op. cit. p. 298).
902
OLIVEIRA, op.cit., p. 283.
- 347 -
gravemente atingidos por lesões neurológicas, que os impedem de
realizar com autonomia as mais simples atividades físicas e ou mentais,
são atribuídos direitos humanos básicos, sem os quais estariam à mercê
de negligência, abandono, maus tratos, abusos e, pois, da dor, do
sofrimento, e da morte violenta. Nesse sentido, e distinguindo-se de
utilitaristas e contratualistas, Regan não considera que o sujeito de um
direito moral deva ser um sujeito de interesses para que possa entrar no
âmbito da moralidade, como o requer a teoria de Singer, por exemplo,
porque para ter interesses é preciso estar apto a realizar algo e ao
mesmo tempo impedido, por força alheia, de o fazer. Antes de poder
desenvolver as capacidades que o habilitam a ser um sujeito de
interesses, o ser humano já deverá estar sendo amparado pelos direitos
humanos, sob pena de não alcançar os meios para tornar-se
efetivamente humano e feliz. Assim, se não se exige dos indivíduos
humanos quaisquer dotes ou habilidades específicas para que sejam
considerados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem do
mesmo modo, não se pode exigir que os animais apresentem
determinadas performances para que sejam considerados dignos de
tratamento respeitoso.903
903
FELIPE, Direito dos Animais, op.cit., p. 10-11.
- 348 -
afirmando que uma das funções da filosofia é a de analisar nossos atos e nosso
comportamento e apontar em que sentido são incoerentes e devem ser
aprimorados. Esta é a razão pela qual considera que o direito é uma ferramenta
importante, para não dizer, essencial, para possibilitar a implementação das
mudanças que se originarem da reflexão filosófica.
904
JAMIESON é editor das obras Reflecting on Nature: Readings in Environmental Philosophy.
New York: Oxford University Press, 1994; de Readings on Animal Cognition. Cambridge: MIT
Press, 1995; Singer and His Critics. Blackwell Publishers, 1999; e A Companion to Environmental
Philosophy. Blackwell Publishers, 2003. É autor da obra Morality Progress: Essays on Humans,
Other Animals, and the Rest of Nature. Oxford University Press, 2004.
905
JAMIESON, Dale. “A Critique of Regan´s Theory of Rights”. In: STERBA, op.cit.
906
JAMIESON apud OLIVEIRA, op.cit., p. 292.
- 349 -
levar a ajudar indivíduos nestas situações. Segundo ele, pode-se construir um
dever de solidariedade (nos moldes de PECES-BARBA) ou de beneficência no
sentido de “[...] prestar assistência significativa àqueles que a necessitam sem
culpa própria e que nos obriga independentemente de qualquer outro caso de
violação de direitos”.907
907
REGAN apud OLIVEIRA, op.cit., p. 292.
908
FREY é autor de Interests and Rights: The Case Against Animals. Oxford: Clarendon Press,
1980; e dos polêmicos artigos “Why Animals Lack Beliefs and Desires” e “The Case Against
Animal Rights”. In: REGAN, Animal Rights and Human Obligations, op.cit., pp. 39-42 e 115-118.
909
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 23, tradução nossa.
- 350 -
[...] eu não reputo que todas as vidas humanas tenham igual valor; não
aceito que um ser humano com deficiências mentais extremas ou um
idoso sofrendo de demência senil ou mesmo um recém-nascido com
metade do cérebro tenha uma vida cujo valor seja equivalente a de uma
pessoa adulta normal.910
910
FREY, “The Case Against Animal Rights”, apud REGAN, op.cit., p. 116, tradução nossa.
911
Ibid., p. 116.
912
Ibid., p. 117.
- 351 -
Esta é a razão pela qual alguns autores o qualificam como fascista.
GABRIELA OLIVEIRA DIAS justifica o adjetivo:
Deve ficar claro, no entanto, que ao desafiar minha posição do modo que
faz FREY, estabelece-se uma confusão entre a idéia de valor intrínseco
e com outra, dela diversa, do bem-estar individual. Falar em qualidade
de vida é se referir a quão bem se passa uma vida individual, enquanto
falar em valor intrínseco é se referir ao valor (status moral) do indivíduo
cuja vida se discute. Indivíduos que se encontram em situação de
desorientação mental, enfermidade, ou qualquer outra forma de
desvantagem, realmente levam vidas que são de uma qualidade inferior
àqueles que alcançam o mais alto nível na escala de Maslow de auto-
913
OLIVEIRA, op.cit., p. 299.
- 352 -
realização914. Mas isso não implica que aqueles que possuem uma
qualidade de vida inferior não possuam valor intrínseco ou que possam
ser utilizados como meros recursos daqueles que têm uma qualidade de
vida superior.915
914
A denominada Escala de Maslow traz vários níveis de satisfação das necessidades humanas.
O primeiro deles é o fisiológico (sobrevivência, alimentação, roupa, moradia, ...), o segundo
representa a segurança (proteção da família e estabilidade no lar e no trabalho), o terceiro são as
necessidades sociais (sentimento de aceitação, amizade e associação), o quarto é o ego ou
estima (autoconfiança, independência, reputação), e por último, o quinto nível é a auto-realização
(realização de seu próprio potencial, auto-desenvolviemento, criatividade, auto-expressão). O
psicólogo HAROLD MASLOW (1908-1970) desenvolveu a tese da cadeia das necessidades
quando trabalhava com macacos, quando percebeu que determinadas necessidades tinham
precedência sobre as demais.
915
REGAN, Defending Animal Rigths, op.cit., p. 49.
- 353 -
subjetividade, à parcialidade, ao cuidado, à natureza e à comunidade. Com base
nisso, os homens tendem a desenvolver raciocínios dualistas no qual os seus
valores são colocados em termos de superioridade. A idéia feminista, baseando-
se em tal observação, afirma que a idéia dos direitos individuais é produto da
mente masculina e, portanto, incorpora os ideais masculinos, colocando mais
valor na separação do indivíduo e de seus direitos do que na família ou nas
relações de comunidade. REGAN reputa tal construção absolutamente
controversa por várias razões. A primeira delas é que há grande discussão
empírica sobre as evidências dos fatos acima narrados (pesquisas com a escala
moral de Kohlberg). Segundo, tal raciocínio conforma um paradoxo destrutivo,
qual seja o de que o ataque ao patriarcalismo sustenta um preconceito
(superioridade de uma determinada visão de mundo) que o próprio ataque deseja
suplantar. Terceiro, pelas teorias tradicionais, basear a aquisição de direitos na
capacidade de raciocínio não é um ato patriarcal, desde que, paralelamente, se
sustente que as mulheres sejam igualmente racionais. Quarto: outro dualismo,
justiça e cuidado, baseia-se em premissas equivocadas. Justiça e cuidado são
conceitos absolutamente diferentes e pode haver maneiras de se interpretar a
responsabilidade moral de modo a enfatizar a justiça e, em o fazendo, enfatizar o
cuidado. Os conceitos são distintos, mas não excludentes. Por último, deve-se
dizer que o fato de se basear a defesa dos direitos dos animais em critérios
racionais não deve significar que não há espaço para a emoção.
There are times, and these not infrequent, when tears come to my eyes
when I see, or read, or hear of the wretched plight of animais in the
hands of humans. Their pain, their suffering, their loneliness, their
916
REGAN apud FRANCIONE, Rain Without Thunder, op.cit., p. 6.
- 354 -
innocence, their death. Anger. Rage. Pity.Sorrow. Disgust ... It is our
hearts, not just our heads, that call for an end to it all.917
[...] cabe perguntar muito singelamente, porque não haveria a mesma lei
que reconhece já os danos morais resultantes da perda de um animal de
companhia, de atribuir direito a não-humanos, alicerçada na mera
compaixão que alguns deles nos mereçam em função de sua
vulnerabilidade, da sua exposição ao sofrimento e à malícia, da sua
partilha no mesmo meio e dos mesmos recursos em que se move a
espécie humana, da sua proximidade e do seu condicionamento pela
nossa espécie – focalizando nesses direitos um dever geral de respeito,
socialmente sancionável.918
FERNANDO ARAÚJO
917
REGAN, The Case For Animal Rights, op.cit., p. 25.
918
ARAÚJO, op.cit., p. 27-8.
919
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, op.cit., p. 1210.
- 355 -
Será que os animais seriam realmente nossos escravos, escravos
por natureza de acordo com a noção aristotélica? WISE, em Rattling The Cage
explora as razões pelas quais se construiu um contestável e histórico abismo
entre humanos e não-humanos, propugnando por uma urgente revisão desta
ideologia de dominação.
920
HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental Legal Conceptions as Applied in Judicial
Reasoning. Yale University Press, 1919.
921
O professor de Oxford H.L.A. HART bem descreve a relação entre a liberdade e um “não-
direito” com o exemplo da liberdade que um vizinho tem de olhar para outro por sobre a cerca do
jardim de sua casa, o que não corresponde ao dever do lindeiro de se deixar ser visto ou de não
interferir aumentando o seu lado da cerca para impedir a sua visão
922
“Claim. To demand as one´s own or as one´s right; […]” (BLACK´S LAW DICTIONARY. West
Publishing, 1979. p. 224).
- 356 -
entrar em debates, WISE parte do pressuposto de que animais não possam
validamente fazer uma “claim”; (3) “powers”: uma pessoa pode se utilizar de um
“poder” para afetar os direitos de outrem. O poder de demandar judicialmente
(legitimidade de parte ativa) é comumente citado como um dos principais
“poderes”. WISE mantém a mesma posição anterior no sentido de que animais
não sejam titulares de “poderes”, embora entenda bastante discutível o ponto em
questão; (4) imunidades (“immunities”): elas desabilitam legalmente outra pessoa
de interferir no seu conjunto de interesses individuais. As imunidades mais
comuns na common law correspondem a não ser escravizado e a não sofrer
tortura (uma pessoa seria imune à escravidão e à tortura). Neste sentido, não há
como exigir que alguém seja suficientemente capaz para que lhe sejam
concedidas imunidades.
923
Brown v. Bd. of Education of Topeka, 347 US 483 (1954).
- 357 -
proprietários.924 Um juiz da Suprema Corte de Wisconsin sustentou que a lei veda
a que um proprietário obtenha indenização por danos morais (“emotional distress
damages”) em casos como este, pois um cão é uma propriedade, “tal como
ressaltam os precedentes”. Em sentido contrário, WISE afirma que os juízes
“substantivos” rejeitam o passado como paradigma absoluto. Sua visão legal
preocupa-se com a dinamicidade dos valores sociais, tais como a moralidade, a
justiça e o avanço científico. Os princípios e políticas vivem e morrem e, sob este
prisma:
924
Rabideau v. City of Racine, 238 Wis. 2d 96, 617 N.W. 2d 678 (2001).
925
WISE, Drawing The Line, op.cit., p. 28, tradução nossa.
926
Ibid., p. 30.
- 358 -
Os mentalmente incapazes, por exemplo, não são objeto de medidas de
segurança a não ser que consistam em uma ameaça concreta à sua própria
integridade ou à de outros. Deste modo, aqueles que negam a personalidade aos
não-humanos agem arbitrariamente no sentido de que atribuem-na a humanos
absolutamente incapazes e até mesmo a pessoas jurídicas.
927
GRAY apud WISE, Drawing The Line, op.cit., p. 32.
928
FEINBERG apud WISE, op.cit., p. 33.
929
Ibid., p. 32.
- 359 -
Assim sendo, se determinados seres preenchem os requisitos da
“autonomia prática”, possuem direitos fundamentais de liberdade a que WISE
denomina de “direitos-de-dignidade” (“dignity rights”).
- 360 -
negado o mesmo acesso garantido aos da classe primeira. WISE propõe uma
corrente alternativa por meio da qual todos os seres que alcançarem a marca de
0.70 são presumidamente possuidores de tal atributo suficiente para garantir
direitos básicos de modo integral. WISE assume ainda a idéia de que aos seres
que atingirem o score entre 0.50 e 0.70 podem ser garantidos direitos de
liberdade proporcionais. Neste sentido, a personalidade e as liberdades básicas
seriam concedidas em razão do nível de “autonomia prática”. Se as possui,
adquire os direitos básicos por inteiro (0.70 - 1.00). Se estiverem ausentes (0.51 –
0.69), pode receber direitos básicos proporcionais. Esta noção pode conferir
menos direitos a um ser humano que careça de autonomia, mas nem por isso é
transformado em uma coisa. O autor exemplifica sua escala analisando alguns
casos práticos tais como o de Alex, um papagaio (0.78); Christopher, seu filho
(1.00); Marbury, cão de Christopher (0.68), Echo, um elefante africano (0.75);
Phoenix and Ake, dois golfinhos (0.90); Chantek, um orangotango (0.93); Koko,
uma gorila (0.95); e Khanzi, uma bonobo (0.98).
- 361 -
assegurados aos negros, de modo que seria errado tratá-los como meras coisas
ou como propriedade. WISE, utilizando-se do exemplo estratégico de LINCOLN,
afirma que os direitos dos animais devem ser perseguidos passo a passo sob
pena de nenhum ser alcançado:
930
WISE, Drawing the Line, op.cit., p. 235, tradução nossa.
931
SUNSTEIN, Cass R. “The Chimp´s Day in Court”, New York Times Book Review, n. 26, 2000.
- 362 -
construção, assume que os direitos à liberdade corpórea e à intangibilidade do
corpo estão positivados na lei justamente porque são fundamentais para o bem-
estar humano, e os valores de autonomia que assinalamos para os não-humanos
estarão baseados sobre as habilidades e valores humanos. Por ora, diz ele,
“The simple truth is that we exploit the other animals and cause them
suffering because we are more powerful than they are.”933
RICHARD RYDER
932
WISE, Drawing the Line, op.cit., p 45 e p. 240, tradução nossa.
933
RYDER, The Political Animal, op.cit., p. 51.
934
LONDON, Jack. O Chamado da Floresta. Floresta-RS: L&PM Pocket, 2003. p. 26.
- 363 -
(Philadelphia: Temple University Press, 1996); e Introduction to Animal Rights
(Philadelphia: Temple University Press, 2000).
All property rights derive from God´s grant to humans of dominion over
animals “and the resulting Right a Man has to use any of the Inferior
Creatures, for the Subsistence and Comfort of his Life” and “for the
benefit and sole Advantage of the Proprietor, so that he may even
destroy the thing, that he has Property in by his use of it, where need
requires”.936
935
Aliás, sustenta-se que a etimologia de real (empregado no sentido de coisa) vem de res, que
significa cabeça de gado, boi. Dispensável dizer que o Brasil já empregou e ainda emprega o real
como unidade monetária.
936
FRANCIONE citando LOCKE em Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 53.
- 364 -
Os animais, sob a ótica legal atual, continuam aprisionados em um
mundo de quase não-existência, onde são tratados praticamente da mesma
maneira com que tratamos objetos inanimados como automóveis e enceradeiras,
sendo garantido aos seus proprietários a sua posse física, o seu uso para
finalidades estritamente econômicas, e o direito de fazer contratos que os tenham
por objeto.
- 365 -
FRANCIONE é claro ao estatuir que as leis de “bem-estar” animal,
também conhecidas sob a alcunha de “estatutos protetivos” ou ainda “leis anti-
crueldade”, ao supostamente proibir o “sofrimento desnecessário” não provêem,
em realidade, qualquer nível significativo de proteção. Para o autor, poderíamos
enumerar pelo menos cinco razões para que isso aconteça:
937
A ausência de um tipo penal culposo para a crueldade torna, na maior parte das vezes,
realmente bastante difícil a condenação dos criminosos. FRANCIONE cita inúmeros casos em que
se eximiu a responsabilidade penal com base no argumento da ausência da comprovação de dolo
(Regalado v. United States; State of North Carolina v. Fowler; etc.)
938
O que se percebe é que os proprietários, principalmente aqueles que retiram lucro de
atividades ligadas à exploração animal, tratam suas “propriedades” como tais. Tudo é realizado
em obediência estrita a uma perversa lógica capitalista de maximização da margem de lucro do
negócio. Todo o esforço é feito para que os animais cheguem à fase de abate o mais rapidamente
possível, em um processo extremamente prejudicial às suas morfologias (debicagem,
confinamento, alimentação forçada, privação de luz, água, cio estimulado, descorna, marcação a
ferro, castração, etc.). Os gastos com acomodação e manejo também obedecem a uma curva que
conjuga o menor custo possível que ainda possa manter o valor de mercado do animal. Quase
todas as pequenas “concessões” que são realizadas de forma espontânea são feitas, em
realidade, porque atendem à esta lógica de melhoria da produtividade.
- 366 -
proprietários de questionar um uso ou tratamento específico dispensado
aos animais.939 940
939
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 56, tradução nossa.
940
FRANCIONE traz um caso interessante para ilustrar este aspecto. Narra que, em 1997, três
jovens invadiram um abrigo para animais no estado de Iowa e espancaram até a morte, com
bastões de beisebol, dezesseis gatos que lá se encontravam e feriram gravemente mais outros
sete animais. Foram condenados por uma “misdemeanor” (delito de pequena gravidade
equiparável a uma contravenção penal), pois o valor dos gatos lesados não excedeu US$ 500,00
– o valor mínimo de danos à propriedade exigível para a condenação por “felony” (crime de maior
gravidade). O fato serve para demonstrar que os animais são vistos exclusivamente como
propriedade: se não têm valor de mercado, não têm valor algum. No Brasil, como já mencionado,
os “maus-tratos” são tipificados como crime pelo art. 32 da L. 9.605/98. Não obstante, conforme
alerta o autor, fazer da crueldade um crime não muda o fato de que a enorme parte da utilização e
exploração de animais continue fora do alcance da lei graças às interpretações equivocadas sobre
a condição e a realidade sensitiva dos animais. Acresça a isso o fato de que a pena cominada em
abstrato pelo tipo do mencionado art. 32 da L. 9.605/98 encaixa-se no conceito de infração penal
de menor potencial ofensivo, defnida nos arts. 61 da L. 9.099/95 e 2º, parágrafo único, da L.
10.259/01, pelo que, caberão, via de regra, todos os institutos previstos na Lei dos Juizados
Especiais, tais como os da transação penal (arts. 72 e 74 da L. 9.099/95) e o da suspensão
condicional do processo (art. 89 da L. 9.099/95). Como em todos os setores, o fundamental é a
alteração da mentalidade e do modo pelo qual as pessoas os enxergam e tratam.
941
“Art. 2º- É vedado: I- ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo
de experiências capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições
inaceitáveis de existência; II- manter animais em local completamente desprovido de asseio ou
que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III- obrigar
animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; IV-não dar morte rápida e indolor a
todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; V- exercer a venda ambulante de
animais para menores desacompanhados por responsável legal; VI- enclausurar animais com
outros que os molestem ou aterrorizem; VII- sacrificar animais com venenos ou outros métodos
não preconizados pela Organização Mundial da Saúde, nos programas de profilaxia da raiva;
Parágrafo único. Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das
religiões de matriz africana.”
- 367 -
terceiro, permite o trabalho forçado, desde que não “exorbitante”. O quarto
permite o abate para consumo, desde que a morte do animal seja “necessária
para consumo”. O quinto, permite o enclausuramento, desde que não seja com
“molestamento”. O sexto permite o sacrifício de animais, inclusive ritualístico942.
[...] resta induvidoso que todo tratamento de um animal que acarrete dor,
mesmo aqueles relacionados a dores enormes como a mutilação de
membros, que são cruéis no senso comum da palavra, não são
necessariamente proibidos pelo estatuto protetivo.943
942
A esse respeito, me parece flagrante a inconstitucionalidade do dispositivo, pois a liberdade de
culto não é ilimitada (cf. LOURENÇO, “A Liberdade de Culto e o Direito dos Animais Não-
Humanos”, op.cit.).
943
Murphy v. Manning, 2 Ex. D. 307, 314 (1887).
944
Bowyer v. Morgan, 95 L. T. R. 27 (K.B. 1906).
- 368 -
condicionamento de animais de espetáculos públicos e de montaria, etc. Como
bem destaca FRANCIONE:
945
FRANCIONE, Introduction to Animals Rights, op.cit., p. 59.
946
FRANCIONE traz dúzias de outros casos em que a mesma sorte de argumentos foi expendida
para justificar a não aplicação das leis protetivas: Lewis v. Fermor (castração de vacas sem
analgésico); Callaghan v. Society For The Prevention of Cruelty to Animals; Ford v. Wiley; State v.
Crichton (todos relativos a procedimentos de descorna); Robert v. Ruggiero (confinamento de
vacas para produção de vitela); Taub v. State (vivissecção em macacos) entre outros. Em
Commonwealth v. Anspach, que tratava de um caso em que um comerciante aprisionou suas
galinhas em garrafas para demonstrar a eficácia de um novo tipo de ração, o juiz afirmou
categoricamente que o confinamento das galinhas não constituía uma violação das leis protetivas,
pois o costume da indústria era, de acordo com a Corte, ainda mais desumano.
947
“[…] it would not be a gross exaggeration to say that federal and state law guarantee a robust
set of animal rights” (SUNSTEIN, Cass R., “Can Animals Sue?”. In: SUNSTEIN, Cass R;
NUSSBAUM, Martha C (Orgs.). Animal Rights: Current Debates and New Directions. Oxford:
Oxford University Press, 2004. p. 252).
948
Há que se lembrar que temos a Lei n.º 10.650/03 que dispõe sobre o acesso público,
independentemente de comprovação de interesse específico (art. 2º, § 1º) aos dados e
informações existentes nos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente –
SISNAMA (tais como o CONAMA, Secretaria do Meio Ambiente, IBAMA, órgãos estaduais e locais
de meio ambiente).
- 369 -
respeito ao fato de que as empresas que são efetivamente preocupadas em
garantir o maior bem-estar possível aos animais e que, neste sentido,
implementam todas as exigências para garantir que isso ocorra, deveriam poder
demandar judicialmente as suas concorrentes que não o fazem por concorrerem
deslealmente em termos de posicionamento no mercado. Um outro ponto
interessante que o renomado autor cita é a chamada doutrina do “standing”. O
“standing” seria o nosso equivalente processual à legitimidade de parte. É
comumente afirmado que os animais somente podem figurar como objeto da
demanda e nunca como parte, seja ela enxergada sob o pólo ativo (“stand to
sue”) ou passivo (“stand to be sued”) da relação processual. Costuma-se também
dizer que tampouco podem ser representados em juízo, haja vista que na
qualidade de propriedade, não possuem direitos a serem protegidos. No direito
pátrio a ação civil pública é um dos principais instrumentos para proteger os
abusos cometidos contra os direitos difusos e coletivos. Pela concepção
tradicional, certamente que a natureza jurídica dos bens ambientais,
principalmente do ponto de vista da titularidade do objeto, coloca o meio ambiente
como um bem difuso. O direito ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art.
225, caput da CR/88), e a correlata proteção à fauna, inclusive no que se refere à
proteção contra os maus-tratos e crueldade (art. 225, § 1º, VII da CR/88) incluem-
se nas categorias abarcadas pelo espectro da ação civil pública949 CASS, cita
vários casos em que se admitiu que animais litigassem em nome próprio como
partes950 951
. Em outros casos, apesar de não ter se admitido que demandassem
949
O rol de legitimados é amplo, incluindo União, Estados, Municípios, Ministério Público,
autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e por associações civis
que preencham os requisitos legais (art. 5º da Lei n.º 7.347/85).
950
O autor cita: Northern Spotted Owl v. Hodel, 716 F. Supp. 479 (WD Wash, 1988); Northern
Spotted Owl v. Lujan, 758 F. Supp. 621 (WD Wash, 1991) Mt. Graham Red Squirrel v. Yeutter, 930
F. 2d 703 (9th Cir. 1991);.Palia v. Hawaii Dep. of Land and Natural Resources, 836 F. Supp. 45 (D
Mass. 1993).
951
No Brasil já se tentou usar o instrumento do Habeas Corpus para salvaguardar a liberdade de
locomoção de animais. O RHC n.º 50.343, julgado pelo STF em 03 out. 1972, do qual foi relator o
Min. Djaci Falcão, negou a impetração em favor “de todos os pássaros que se achem na iminência
de encotrarem-se aprisionados em gaiolas em virtude de comercialização, de utilização,
perseguição, caça ou apanha ilegal”, por entende que o remédio constitucional, incluído no
capítulo dos “direitos e garantias individuais” tem como destinatário apenas o homem. Em infeliz e
emblemática colocação, o relator afirma que: “a legislação, tanto cogita do direito que o homem
pode ter sobre os animais, como de especial proteção a estes assegurada. Porém, situam-se eles
como coisa ou bem, podendo apenas ser objeto de direito, jamais integrar uma relação jurídica na
qualidade de sujeito de direito. Não vejo como se erigir o animal como titular de direito”.
- 370 -
em nome próprio, permitiu-se que fossem representados em juízo por terceiros952.
Segundo o emérito professor:
Recentemente, no ano de 2005, o Ministério Público do Estado da Bahia, por meio de seu
promotor de justiça, Dr. Heron José de Santana e Dr. Luciano Orcha, em conjunto com professores
de direito, ONGs ambientalistas e um grupo de estudantes de direito, impetrou um Habeas Corpus em favor
de Suíça, uma chimpanzé que se encontrava aprisionada no Parque Zoobotânico Getúlio Vargas, numa jaula
com área total de 77, 54 m2. A idéia era liberta-la e transferi-la para o santuário dos grandes primatas em
Sorocaba-SP. Infelizmente, antes de se julgar o mérito da impetração, Suíça veio a falecer solitária em sua
minúscual jaula.
952
Citizens to End Animal Suffering and Exploitation v. New England Aquarium, 836 F. Supp. 45
(D Mass, 1993).
953
CASS, op.cit., p. 260.
954
State v. Tweedie, 444 A. 2d 855 (R. I. 1982).
- 371 -
um indivíduo que colocou seu gato em um forno microondas. Em In re William
G.955, outra condenação foi imposta quando um menor espancou e ateou fogo em
uma cadela por ter se recusado a cruzar com seu cão. Em Motes v. State956, outro
indivíduo queimou seu cão por estar supostamente latindo em demasia. Em Tuck
v. United States957, um dono de uma pet shop foi condenado por colocar os
animais em recintos sem qualquer ventilação em temperaturas altíssimas. Em La
Rue v. State958, uma pessoa foi condenada por ter apanhado cães de rua e os
abrigado sem as mínimas condições, ocasionado a morte de todos eles. Em
People v. Voelker959, julgou-se que cortar a cabeça de três iguanas vivas, “sem
qualquer justificativa” constitui uma violação das leis anti-crueldade.
- 372 -
até que os símios aprendam a coordenar a alavanca para frente e para trás.
Depois disso aprendem a controlar a posição da plataforma com choques dados
agora manualmente em intervalos de três a cinco segundos e com duração
aproximada de meio segundo cada um. O objetivo é fazer com que o macaco
coloque a plataforma em um nível quase horizontal, em um treinamento que leva
de dez a doze dias, seguidos de mais vinte dias. Conforme alerta SINGER, todo
esse treinamento envolvendo milhares de choques é apenas preliminar ao
“experimento” propriamente dito: tendo apreendido a “pilotar” a plataforma, serão
expostos a doses subletais ou letais de radiação ou agentes químicos usados na
guerra a fim de testar sua resistência. O autor traz um relatório oficial da Escola
de Medicina Aeroespacial da Força Aérea Americana960 em que são
administradas variadas doses de Soman, um gás neurotóxico que provocou
imenso sofrimento na I Guerra Mundial, muito pouco usado desde então.
Segundo tal relatório:
Durante alguns anos, tive dúvidas sobre a utilidade dos dados que
coletávamos. Fiz algumas tentativas no sentido de averiguar o destino e
o propósito dos relatórios técnicos que publicávamos, mas agora
reconheço minha ânsia em aceitar a garantia dada por meus superiores
que, de fato, estávamos prestando um serviço útil à Força Aérea
960
Primate Equilibrium Performance Following Soman Exposure: Effects of Repeated Daily
Exposures to Low Soman Doses apud SINGER, op.cit., p. 31.
961
Relatório n. USAFSAM – TR – 87 – 19 (out. 87) apud SINGER, op.cit., p. 31.
- 373 -
Americana e, portanto, à defesa de um mundo livre. Usei essas garantias
como viseiras para evitar a realidade do que observava no campo e,
ainda que não as usasse sempre à vontade, quando o fazia, protegiam-
me das inseguranças associadas a uma potencial perda de status e
salário [...] Assim, certo dia, as viseiras caíram e tive um sério confronto
com o Dr. Roy DeHart, Comandante da Escola de Medicina Aeroespacial
da Força Aérea Americana. Tentei mostrar-lhe que, na eventualidade de
um confronto nuclear, seria altamente improvável que os comandantes
da operação utilizassem gráficos e números baseados em dados do
macaco rhesus para estimar a provável força ou a capacidade de se
desferir um segundo ataque. O Dr. DeHart insistiu na idéia de que os
dados teriam valor incalculável, afirmando: “Eles não sabem que os
dados se baseiam em estudos com animais”.962
962
BARNES apud SINGER, op.cit., p. 32.
963
SINGER, op.cit., p. 34.
964
Ibid., p. 34.
- 374 -
chega à “brilhante” conclusão de que “o isolamento precoce suficientemente
restritivo e duradouro reduz esses animais a um nível sócio-emocional em que a
reação primária é o medo”965. O psiquiatra inglês JOHN BOWLBY esteve
visitando as instalações de HARLOW e afirmou: “Por que estão tentando provocar
psicopatologias em macacos? Já tem mais macacos sofrendo de psicopatologias
no laboratório do que jamais se viu na face da terra.”966 Não obstante, HARLOW
continua “aprimorando” seus métodos de indução de profunda depressão por
meio da privação materna. Criaram mães de pano que se transformavam em
monstros.
965
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 36.
966
BOWLBY apud SINGER, op.cit., p. 36.
967
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 36.
- 375 -
sexual com outros machos os pesquisadores criaram o “rack de estupro”. Depois
que davam a luz, percebia-se que ignoravam os bebês, sendo que algumas
adotavam comportamentos realmente brutais:
968
HARLOW apud SINGER, op.cit., p. 38.
969
Em um levantamento de uma ínfima parcela dos experimentos conduzidos na área de
psicologia detectou que entre 608 artigos publicados em revistas da Associação Americana de
Psicologia entre 1979 e 1983, cerca de 10 por cento deles utilizava choques elétricos (SINGER,
op.cit., p. 55).
- 376 -
progressivamente mais intensos nas patas de 1.042 camundongos, provocando
convulsões (eletrodos eram presos aos olhos e orelhas dos animais) e morte na
maioria deles. Outros experimentos colocam os animais em situações de fuga,
permitida ou não, no caso de choques severos. A futilidade e a inutilidade dos
experimentos é gritante, sendo que a maior parte das conclusões é de uma
obviedade igualmente flagrante: “A conclusão geral foi a de que a exposição a
eventos aversivos incontroláveis é consideravelmente mais estressante para o
organismo do que a exposição a eventos aversivos controláveis”970.
970
MINEKA apud SINGER, op.cit., p. 49.
971
SINGER, op.cit., p. 51.
- 377 -
modelos de esquizofrenia, comunicação, cognição, relação predador-presa,
motivação, emoção, percepção utilizam amplamente toda sorte de animais. Como
assinala SINGER, “a indiferença é facilitada pela utilização de jargão técnico, que
disfarça a verdadeira natureza do que acontece”972 973.
972
SINGER, op.cit., p. 56.
973
Impossível não transcrever o preciso relato da psicóloga ALICE HEIM que se pronunciou contra
a experimentação em animais: “O trabalho sobre ‘comportamento animal’ é sempre expresso em
terminologia científica de conotação higiênica, o que permite a doutrinação do jovem estudante
normal de psicologia não-sádico seguir em frente, em que sua ansiedade seja despertada. Assim,
‘técnica de extinção’ é o termo utilizado par designar o que, de fato, é tortura por privação de água,
quase inanição ou choque elétrico; ‘reforço parcial’ é o termo para o ato de frustrar um animal
respondendo só de vez em quando às expectativas nele despertadas pelos experimentadores, em
treinamento prévio; ‘estímulo negativo’ é o termo usado quando submetem um animal a um
estímulo que ele evita, se possível. O termo ‘evitar’ ou ‘evitação’ é bom, por ser uma atividade
observável. Os termos ‘estímulo doloroso’ ou ‘atemorizador’ são menos bons, pois são
antropomórficos, implicam que o animal tem emoções e sensações – que podem ser semelhantes
às emoções e sensações humanas. Isso não é permitido porque não é behaviorista, nem científico
– e também, porque pode impedir o pesquisador mais jovem e menos calejado de realizar certos
experimentos engenhosos, criando espaço para sua imaginação funcionar. O pecado capital para
o psicólogo experimental, que trabalha no campo do ‘comportamento animal’ é o antropomorfismo.
No entanto, se não acreditasse na analogia entre o ser humano e o animal inferior, é provável que
até mesmo ele considerasse seu trabalho amplamente injustificado” (SINGER, op.cit., p. 57).
974
EVANS apud SINGER, op.cit., p. 58.
- 378 -
mais conhecido deles é o DL50, que significa dose letal para cinqüenta por cento,
ou seja, testes para se saber qual a quantidade de substância necessária para
matar metade dos animais do grupo de estudo), ou por via de contato direto (um
exemplo são os testes Draize de irritação dos olhos são usualmente feitos em
coelhos. Os animais são imobilizados e as substâncias são pingadas em seus
olhos sendo corriqueira a produção de reações alérgicas graves como inchaço,
ulceração, infecção e sangramento. Há ainda testes de toxicidade dérmica,
imersão, etc); ou ainda por inalação. A própria Associação Médica Americana –
AMA afirmou que ”freqüentemente os estudos em animais provam pouco ou
nada, e é muito difícil correlacioná-los a seres humanos”975.
975
SINGER, op.cit., p. 64,
976
RICHARD RYDER em brilhante estudo intitulado “Experiments on Animals” (In: Animals, Men
and Morals, 1972), ao analisar a relação entre o número de experimentos com animais e o número
de inspetores de saúde veterinária, somente na Inglaterra, constatou que em 1885 foram
realizados, oficialmente, 797 experimentos com animais, havendo somente um inspetor para
fiscalizá-los. A partir daí os números de experimentos crescem numa proporção geométrica
assustadora, enquanto que o número de inspetores se mantém praticamente inalterado, para
chegarmos a 1969, quando foram realizados 5.418.929 experimentos para 13 inspetores.
977
Ibid., p. 58.
- 379 -
enraizadas em nosso meio. Cita o exemplo de um vídeo em que pesquisadores
colocam fogo no interior da boca de um porco para estudar os efeitos de
queimaduras profundas na alimentação do animal. O porco foi mantido vivo por
várias semanas sem qualquer anestésico. Se a mesma conduta tivesse sido
praticada por cidadãos comuns é quase certo que seria apenada pelas leis anti-
crueldade. Entretanto, como se trata de um experimento financiado pelo governo,
os animais sacrificados são entendidos como fazendo parte de uma atividade
“produtiva”. O interesse do porco é exatamente o mesmo nas duas situações,
mas a proteção dependerá em última análise do uso ser considerado
“produtivo/justificável” ou não. Como afirma FRANCIONE, “a proteção do
interesse animal é completamente irrelevante para a legislação; a lei preocupa-se
tão somente em proteger os interesses que os humanos têm sobre suas
propriedades”978.
978
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 72.
979
Recomendo com veemência a leitura do capítulo 3 da obra de SINGER, Libertação Animal,
intitulado “Visita a uma granja industrial.... ou o que aconteceu com o seu jantar quando ainda era
um animal”.
- 380 -
vista econômico e ambiental980 quanto ao enorme sofrimento proporcionado os
animais de abate.
980
A criação intensiva de animais para consumo gera reflexamente uma enorme quantidade de
dejetos. Tal externalidade, comumente designada por biomassa, ainda é muito pouco aproveitável
ocasionando sérios problemas relacionados ao seu manuseio, estocagem e destinação
final/inutilização. Uma única fazenda de criação de galinhas poedeiras, conforme noticiado no
jornal OGLOBO de 29 de janeiro de 2006 (p. 33, caderno ECONOMIA), gera cerca de 40
toneladas por dia de fezes. A valorização de uma dieta centrada no consumo de carne produz
também o efeito nefasto consistente no fato de 44% de nossa produção de grãos e cereias ser
destinada ao fabrico de ração para alimentação de animais de criação. Cerca de 23% das terras
cultivadas no Brasil destinam-se ao plantio da soja, da qual enorme parcela serve àquele
propósito.
981
O fato de alguns de nós valorarmos nossos animais de companhia como verdadeiros “membros
da família” não significa que não são propriedade. A esse respeito vale dizer que são inúmeros os
abusos dos chamados “pets”. Em geral há a produção em série de animais para serem colocados
no mercado, exaltando-se o modismo de qualidades relacionadas a determinadas “raças” que
posteriormente caem no ostracismo. Não há qualquer estímulo por parte do poder público com
relação ao apoio de instituições que cuidam de animais abandonados e, tampouco, qualquer
colaboração no sentido do fomento da adoção nem da tutela responsável. Muitos criadores, sem
qualquer fiscalização, deixam de providenciar cuidados mínimos para seus cães. Fêmeas são
“incentivas” a terem sucessivas gestações sem qualquer intervalo. Os filhotes são criados sob
condições de alimentação e saúde precárias. Por sua vez, os próprios proprietários tornam-se, por
vezes, extremamente negligentes com relação aos seus animais. Muitos adquirem-nos como
forma de status, ou para finalidades ilícitas (como rinhas e competições esportivas) e
posteriormente os abandonam sem qualquer remorso. Em momento algum se vê qualquer
preocupação com a discussão e o debate sério sobre o controle adequado da população de
animais-de-rua. Tampouco há qualquer preocupação em se rediscutir o papel dos centros de
controle de zoonoses, que se tornaram verdadeiras campos de extermínio modernos, aniquilando
milhões de vidas absolutamente inocentes todos os anos (a simples menção aos vocábulos
“saúde pública” tornam, sem qualquer reflexão, as vidas destes animais como imediatamente
descartáveis).
982
HARRISON apud SINGER, op.cit., p. 111.
- 381 -
existir para substituir o anterior.983 Ora, esse argumento é falacioso em todos os
aspectos. O primeiro ponto é que ele não justifica o tratamento dispensado aos
animais nas fazendas industriais, onde suas vidas tornam-se aflitivas e dolorosas
do início ao fim. O segundo aspecto é que o fato de sermos em alguma medida
responsáveis pela existência de um ser vivo não nos confere o direito de tratar tal
ser como um recurso. Se assim o fosse, seria acaso permitido que tratássemos
nossas crianças como coisas? Afinal de contas seríamos responsáveis diretos por
sua existência. Além disso, o argumento parte do pressuposto discutível de que
animais seriam substituíveis. Será realmente que os animais que normalmente
utilizamos para tais finalidades, em sua maioria mamíferos e aves, são realmente
meros receptáculos, pacotes de carne? Um erro praticado contra um deles não
pode ser compensado por um benefício a ser conferido a um ser que sequer
existe.
983
A mesma sorte de argumento já foi usada para justificar a escravidão humana, pois se não
fosse pela alta demanda de novos escravos, estes sequer existiriam.
984
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 72, tradução nossa.
- 382 -
O fato de se pensar os animais como propriedade gera uma
distorção profunda na ponderação de interesses havida entre homens e animais.
Os interesses da propriedade serão sempre ultrapassados pelos interesses dos
proprietários, o que faz com o que, neste contexto, o princípio da igual
consideração de interesses perca completamente o sentido.
985
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 87, tradução nossa.
- 383 -
direito fundamental de não serem tratados exclusivamente como meios de outros
e a de que os seres humanos possuem igual valor inerente que os impede de
serem tratados como recursos ou objetos.
986
SUE enfatiza que os direitos fundamentais seriam pré-requisitos para o exercício dos direitos
não-básicos, e que a posse de direitos não-básicos na ausência dos básicos seria nada mais que
a posse de direitos em sentido meramente formal ou legalista, incapaz de garantir ao seu
possuidor o uso do conteúdo material do direito.
- 384 -
considerado indisponível qualquer que fosse o benefício eventualmente
adquirido por aprisionar intencionalmente pessoas inocentes. Se cada
interesse deve ser tratado de maneira instrumental e sacrificado quando
alguma pessoa ou grupo de pessoas decide que um benefício geral é
produzido pela sua violação, então é melhor que tenhamos uma grande
confiança em quem vai tomar essa decisão. Ainda que estejamos
dispostos a realizar sacrifícios pessoais para o bem-geral, é
simplesmente contraintuitivo enxergar a nossa liberdade como algo que
pode ser transacionado e posto de lado por razões consequencialistas.
987
- 385 -
Podemos comparar a comunidade moral a um grande teatro. Uma vez
que se é admitido no interior das suas dependências, é garantido um
assento em algum lugar para assistir à performance, mas não
necessariamente o melhor assento ou um assento particularmente bom,
ou mesmo um lugar assentado. Talvez o façamos ficar de pé. Mas estar
no teatro é ter algum espaço para assistir ao espetáculo; do contrário a
admissão tornar-se-ia sem sentido. Logicamente, a admissão ao teatro
para o propósito de ver o evento significa que se tenha algum acesso –
ainda que imperfeito se comparado ao daqueles que se assentam nas
primeiras fileiras.988
988
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 97.
- 386 -
Deveríamos nos comprometer com a idéia de que quando animais e
humanos tenham interesses similares, deveriam ser tratados de maneira
similar, a menos que houvesse uma razão moral suficientemente
significativa para não fazê-lo. A despeito de todas as diferenças entre as
espécies, todos os seres vivos possuem interesses, em particular o
interesse de não sofrer. Animais, tal como homens, possuem um bem-
estar empírico no sentido de que podem perceber que as coisas se
tornam melhores ou piores dependendo do respeito ou não do interesse
de não sofrer e da facilitação ou frustração do livre exercício dos outros
interesses que têm na qualidade de seres sencientes.989
989
Ibid., p. 99.
990
Como mencionado anteriormente, há uma lei federal que regulamenta a prática do rodeio em
nosso país. Diante de tal fato, alguns promotores de justiça, partidários do reformismo, tomam
como norte a celebração de termos de ajustamento de conduta com as empresas que realizam
estes eventos na tentativa de adequarem as suas práticas à nova lei. Outros, abolicionistas, entre
os quais me insiro, entendem que a regulamentação da prática dos rodeios é flagrantemente
inconstuticonal (art. 225, § 1º, VII da Constituição Federal) por impingir sérios e continuados maus-
tratos aos animais. A Lei n. 10.519/02, em verdade, regula os maus-tratos (em uma situação a que
LEVAI denomina de “crueldade consentida”), tal qual as leis do século XIX regulavam a
quantidade diária de chibatadas que um escravo podia levar. Ora, levar menos chibatadas, o que
pode ser factualmente melhor que levar muitas, não retira o caráter de ilicitude da chibatada
desferida, nem que seja apenas uma. Ao mesmo tempo em que diversos usos de animais foram
restritos, tais como as rinhas de brigas de cães, galos e canários, bem como diversas
manifestações culturais coibidas, tal como a farra-do-boi, os rodeios permanecem vivos como uma
das manchas negras da crueldade contra seres inocentes em nosso país.
- 387 -
Há, evidentemente, uma implicação necessária de estendermos o
direito fundamental de não-sofrimento aos animais que é o de torná-los “pessoas”.
Como se analisou no capítulo primeiro, há uma clara tendência no sentido de
confusão entre os conceitos de “pessoa” e “ser humano”. Exemplos rápidos
podem ser dados para exemplificar que isso nem sempre é verdadeiro. No
acirrado e acalorado debate que cerca o aborto, nenhuma das correntes nega a
condição de vida humana ao feto, ainda que algumas as sustentem apenas do
ponto de vista potencial. A discussão central é se esse “ser humano” embrionário
é ou não pessoa para os efeitos de ser tutelado e protegido. Outro exemplo
poderia ser dado com a situação do cadáver humano. Certo é que ele representa
um ser humano, mas não é mais tido como pessoa.
- 388 -
escolha entre salvar nosso próprio filho ou o filho de um terceiro, é quase que
certo que escolheríamos a primeira opção, ou seja, salvaria meu filho em
detrimento do filho de outras pessoas.
991
CARRUTHERS, op.cit.
992
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 153, tradução nossa.
- 389 -
científica, criação para abate, etc. Em todos estes casos, colocamos os animais
naquela casa hipotética que pega fogo e fingimos levar a sério um exercício de
ponderação que já possui um resultado previamente estabelecido. Essa tática
provê uma pretensa escusa de ordem moral para que se justifique que os
interesses dos animais foram levados em conta, apesar de invariavelmente
preteridos.
993
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 157, tradução nossa.
- 390 -
O autor posiciona-se claramente no sentido de entender ser
plenamente legítimo e possível que humanos utilizem-se da legítima defesa ou do
estado de necessidade em face dos animais nos casos de terem de matar para se
defender ou para se alimentar, tal como seria similarmente legítimo no caso de
assim procedermos em face de seres humanos. O fato por exemplo de poder me
defender e repelir uma agressão injusta e iminente não implica que possa tornar o
agressor meu escravo. Ou ainda, o fato de me encontrar vítima de um acidente
aéreo numa região remota sem recursos de alimentação não-animal, me
permitiria matar para sobreviver, mas isso não serviria de justificação moral para
que continuasse a fazê-lo após retornar à uma situação normal de vida. As
realidades, como se percebe, são distintas.
- 391 -
agarrarmos à visão de que devemos ser mais generosos, solidários ou bondosos
com relação aos animais porque isto nos tornaria pessoas melhores. Estas
preocupações de bem-estar, classificadas de reformistas (“welfaristas”), não
alterarão e tampouco melhorarão, por si só, a qualidade de vida dos animais, pois
estes serão mantidos sob o rótulo de coisas, trancafiados em um universo de não-
existência: são commodities que utilizamos para as finalidades mais frívolas.
- 392 -
fabricamos do fato de que tratamos animais como recursos
994
econômicos.
994
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 165, tradução nossa.
- 393 -
CAPÍTULO IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS
CARL SAGAN
995
Em 22 de junho de 1633, numa sala do convento dominicano de Santa Maria Sopra Minerva,
em Roma, encerrava-se o julgamento de GALILEU GALILEI pela Santa Inquisição com a sua
condenação e subseqüente renúncia à crença de que a Terra gira em torno do Sol. Além da
retratação, o Tribunal do Santo Oficio impôs a Galileu a pena de prisão domiciliar perpétua e a
repetição, semanal, por três anos, dos sete salmos penitenciais.
996
SAGAN, op.cit., p. 183.
- 394 -
Como se visualiza no julgamento de GALILEU, a fé religiosa pode
muitas vezes cegar os seus adeptos à realidade dos fatos. Não obstante a teoria
da evolução possuir diferentes vertentes teóricas, certo é que galgou,
principalmente após o advento de estudos genéticos comparativos, um status de
consolidação perante a comunidade científica mundial. Isso deveria, mas assim
não ocorre, colocar uma pá-de-cal no criacionismo e teorias a ele assemelhadas.
Isso se presta a demonstrar a enorme força das crenças quando elas se tornam
arraigadas na mentalidade popular. O domínio concedido por Deus aos homens
sobre a natureza e sobre os animais é uma destas crenças que fazem do
universo uma fábrica de hierarquias artificialmente criadas. O argumento religioso
trouxe uma situação de legitimação da inferiorização e escravidão de toda uma
enorme gama de criaturas. A mesma ideologia já serviu de base para sustentação
da indiferença com relação à própria humanidade e à hostilidade com relação aos
direitos humanos.
997
A assustadora cifra nos é dada por STEVEN WISE, em seu artigo “Animal Rights, One Step At
A Time”. In: SUNSTEIN; NUSSBAUM, op.cit., p. 19.
- 395 -
Historicamente, como se viu, a noção do “antropocentrismo
teleológico”, idéia de que tudo existe para o homem e em função dele, já era
senso comum entre os estóicos. Posteriormente, penetrou no direito romano,
sendo encontrada também no Velho e Novo Testamento e em outras legislações
antigas. Um universo hierárquico moldado na “Grande Cadeia do Ser” fez com
que o ser humano viesse a ocupar o topo da escala reservada às criaturas
corpóreas.
998
WISE, “Animal Rights, One Step At A Time”, op.cit., p. 25.
999
“Hoje talvez seja difícil entender como a escravidão foi aceita, desde os tempos bíblicos em
virtualmente todas as culturas, e não foi seriamente desafiada até o final do século XVIII. A
instituição da escravidão estava tão consolidada e arraigada que as atitudes genuinamente
abolicionistas demandaram uma profunda mudança e percepção moral. Isto é, houve a
necessidade de mudanças religiosas e filosóficas fundamentais a respeito das habilidades
humanas, das responsabilidades e direitos.” JAMES apud WISE, Animal Rights, One Step At A
Time, op.cit., p. 26, tradução nossa.
- 396 -
O alerta do historiador DAVID BRION JAMES é no sentido de que
“ainda podemos aprender com a história a preciosa lição de que um mal poderoso
e lucrativo pode ser superado”1000.
1000
Ibid., p. 41.
1001
SINGER, Libertação Animal, op.cit., p. 21.
1002
Neste sentido, é totalmente irrelevante que a forma mais conhecida de escravização humana
tenha recaído sobre a população negra, ou que a face mais obscura do nazismo tenha ocorrido
com a tentativa de eliminação dos judeus, ou seja, poderiam ser asiáticos, brancos, populações
indígenas, arborígenes, católicos, protestantes, budistas, ou que quer que seja. O que se está
contestando é a legitimação de tais práticas e não sobre a qualidade específica das suas vítimas.
- 397 -
funcionaria com base em um raciocínio de “ladeira escorregadia” onde, por fim, às
bactérias também deveriam ser assegurados direitos. E por que não plantas,
dizem eles? Tal raciocínio é completamente equivocado. Penso que a melhor
alternativa continua sendo traçar a linha a partir do critério da senciência,
entendida em sentido genérico, lato (capacidade de possuir experiências mentais
de dor e prazer, bem como de algum nível de senso, ainda que reduzido, de si
próprio, e de ter interesse de continuar experimentando a vida, ainda que em
sentido basicamente empírico). Admito que o próprio conceito de senciência é
alvo de debates e incertezas. Todavia, embora não possamos precisar na escala
filogenética o local exato no qual não existe mais a consciência, isso não serve de
escusa para nos impedir de afirmar onde certamente ela está presente.1003
1003
Tal como afirma REGAN: “Não precisamos saber exatamente quão grande deve ser uma
pessoa para ser considerada alta, para que saibamos que Shaquille O´Neal é alto. [...]
Analogamente, não precisamos saber com exatidão que lugar um animal ocupa na escala
filogenética para ser sujeito-de-uma-vida, para saber que os animais que nos afetam mais
diretamente - aqueles que são criados para abate, os que são criados ou caçados pelo valor de
sua pele, ou aqueles que são usados como modelos na experimentação científica – são sujeitos-
de-uma-vida. [...] Nossa ignorância sobre o quão longe devemos descer na escala filogenética
para precisar que não há mais consciência não devemos impedir de afirmar onde certamente ela
está presente.” (REGAN; COHEN, The Animal Rights Debate, op.cit. p. 215, tradução nossa).
- 398 -
maneira errônea que pelo só fato de serem “tradicionais” ou “naturais” estes usos
seriam moralmente justificáveis. Em verdade, o fato de algum comportamento ser
descrito como “tradicional” não tem o condão de torná-lo moralmente aceitável. A
noção de “naturalidade” também está interligada ao conceito de “historicidade” de
determinadas práticas. A escravidão foi por muitas vezes justificada sob as bases
de uma pretensa distinção “natural” havida entre senhores e escravos. Como
afirma FRANCIONE, “a questão não é saber se uma conduta é parte de uma
cultura; todas as condutas integram, ao menos em parte, alguma cultura. A
questão é saber se esta conduta é moralmente justificável”. 1004
1004
FRANCIONE, Introduction to Animal Rights, op.cit., p. 172, tradução nossa.
1005
A posição da American Dietetic Association (ADA) é que “dietas vegetarianas apropriadamente
planejadas são saudáveis, adequadas em termos nutricionais e apresentam benefícios para a
saúde na prevenção e no tratamento de determinadas doenças”. A American Heart Association
(AHA) também já se posicionou oficialmente no sentido de que “a maioria das dietas vegetarianas
é pobre em produtos de origem animal. Também costumam ter índices de gordura total, gordura
saturada e colesterol mais baixos que as dietas não vegetarianas. Muitos estudos demonstraram
que os vegetarianos parecem apresentar um risco menor de obesidade, doença coronariana (que
provoca ataques cardíacos), pressão alta, diabete melito e algumas formas de câncer. As dietas
vegetarianas podem ser saudáveis e completas em termos nutricionais quando são
cuidadosamente planejadas para incluir nutrientes essenciais. No entanto, a dieta vegetariana
pode não ser saudável caso contenha calorias em excesso e quantidade insuficiente de nutrientes
importantes”. (Disponível em: <http://www.vegetarianismo.com.br>. Acesso em 09 dez. 2005).
- 399 -
melhores ou piores que as demais. No que se refere ao nazismo, não há provas
seguras de que os nazistas realmente fossem vegetarianos convictos. Segundo,
mesmo que o fossem, isso nada diria sobre o mérito ou não de se abster da
ingestão de produtos animais. Os nazistas, por exemplo, também favoreciam
fortemente a instituição do casamento e das práticas esportivas. Isso por acaso
tem o condão de transformá-las em imorais ou indevidas? Infelizmente para
aqueles que apreciam comer carne, o simples gosto pelo sabor da carne não
serve para justificar a violação de um princípio moral.
1006
O artigo 1º, III da Lei n.º 9.433/97, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos,
estabelece o dever de dessedentação de animais em situações de escassez. Por acaso os
animais não possuiriam o direito subjetivo do acesso à água, ou teremos que fazer a “ginástica”
retórica para concluir que este acesso só lhes é garantido no interesse da proteção do valor
econômico da propriedade? No mesmo sentido, o próprio art. 32 da Lei n.º 9.605/98, que trata da
criminalização dos maus-tratos cometidos contra animais, deve ser enxergado sob o prisma de
proteção direta da integridade física e psicológica do animal e não somente da coletividade
humana.
1007
JOSÉ ROBSON DA SILVA, por exemplo, sustenta que o inciso VII do parágrafo primeiro do
art. 225 da Carta Magna confere direitos aos animais e não sobre eles: “Entretanto, o preceito
constitucional pode ser compreendido numa outra perspectiva. Neste olhar, a proibição de se
produzir crueldades contra os animais está a garantir um mínimo de tutelas cujo centro é a
integridade física dos animais. Este núcleo está para além de qualquer valor moral. [...] As
garantias jurídicas destinadas à preservação da função ecológica da flora e os direitos dos animais
não são apenas uma manifestação de piedade ou uma afirmação do refinamento ‘espiritual’
humano. As garantias têm como pressuposto que a integridade física do animal é condição do
equilíbrio ambiental e um valor em si.” (SILVA, José Robson da. Paradigma Biocêntrico: do
Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 342-43). Outros
sustentam que quando a Constituição Federal fala “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado [...]” aí estariam abrangidos também os animais como integrantes de
um meio ambiente que deve ser equilibrado, tal qual o ser humano. Propugnaria por uma tese
ainda mais ousada dentro do direito positivo. Todas as vezes que a Constituição Federal quer se
referir a homem, ser humano, utiliza a expressão “pessoa humana”. Exemplo disso encontramos
nos arts. 1º, III; 17; 34 e 226, § 3º. Tal fato pode, à primeira vista, parecer despido de importância
para a maior parte dos intérpretes razão pela qual serviria tão somente para descaracterizar a
concepção patriarcal que se confere ao termo “homem”, agora substituído por “pessoa humana”.
Todavia, uma interpretação mais cuidadosa do termo revela que ao adjetivar o substantivo
abstrato “pessoa”, a norma cria um conceito que lhe é ontologicamente distinto. Partindo do
pressuposto de que constitui um princípio hermenêutico básico o de que a lei não contém
vocábulos ou expressões em vão, pode-se concluir que a própria constituição reconhece a
- 400 -
não depende exclusivamente da alteração das leis, que é um fator importante,
mas principalmente da modificação de nossa mentalidade egoísta.
existência de uma pessoa que não seja “humana”, do contrário bastaria se referir simplesmente à
pessoa, nada mais. A norma que regulamenta a personalidade civil encontra-se no código civil.
Nosso Código Civil atual, é bom que se diga, posterior à Constituição, também modificou seus
artigos iniciais retirando o vocábulo “homem” e colocando em seu lugar o de “pessoa”. Assim é
que, de acordo com o art. 1º, “toda pessoa é capaz de direitos [...]”. Pelo art. 2º, “a personalidade
civil da pessoa começa do nascimento com vida [...]”. Ora, dado que todas as leis
infraconstitucionais devem ser interpretadas em conformidade com a constituição, o código civil ao
adotar a forma genérica “pessoa” , preterindo a específica “pessoa humana” optou por abraçar
como possuindo personalidade jurídica todas as pessoas, sejam elas “humanas” ou não. Os
animais não-humanos poderiam, a esse respeito, serem encaixados na previsão do art. 3º, III que
trata daqueles que “mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”, recebendo,
via de regra, a tutela estatal na qualidade de absolutamente incapazes. Não acho que esta
interpretação esbarre no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, insculpido no art.
1º, III da Carta Magna, com ele ser harmonizado no sentido de alcançar os propósitos especiais
do art. 225 do mesmo diploma legal, pois as garantias jurídicas de proteção aos direitos dos
animais devem ser vistas como instrumentos de alargamento moral para os animais e não de
diminuição da dignidade do homem. As duas realidades são plenamente compatíveis e não
entram em choque.
1008
Vale lembrar que no âmbito da “soft law” temos a Declaração Universal dos Direitos dos
Animais, proclamada em assembléia da UNESCO em Bruxelas, na Bélgica, em 27 de janeiro de
1978. Apesar de não possuir coercibilidade, nota-se uma nítida mudança de paradigma, passando
os animais a serem encarados como autênticos sujeitos de direito. A esperança é que, por meio
de um processo gradativo e consciente, possam vir a se transformar em “hard law”.
1009
AZEVEDO, op.cit., p. 12.
- 401 -
animais constitucionalmente por meio de norma que coloca em pé de igualdade a
proteção da vida humana e animal1010.
1010
Evoluções constantes, mesmo que sob o prisma apenas reformista, são notadas em alguns
países. Recentemente, segundo veiculado na imprensa, a Áustria adotou uma das legislações
mais severas da Europa em matéria de proteção animal. De acordo com essa legislação, leões,
tigres e demais animais selvagens são terminantemente proibidos de serem utilizados em
espetáculos públicos e em circos. Não será mais autorizada a “amputação estética” de membros
dos animais de estimação (especialmente em cães é comum a amputação da cauda e orelhas em
algumas raças). Não será mais permitido qualquer tipo de treinamento à base de eletrochoques ou
a utilização de coleiras e guias com pontas, tampouco manter os animais presos ou encarcerados
por longo período de tempo. Aliás, a esse respeito vacas, cavalos e cabras terão direito a três
meses de férias por ano, ao ar livre e sem entraves, e a criação de frangos em granjas não será
mais permitida a partir de 2006, três anos antes de sua proibição geral na União Européia. Para
arrematar, haverá um ombudsman em cada província austríaca para zelar pelo bem-estar dos
animais. Os contraventores estarão sujeitos a penas pecuniárias pesadas, que variarão entre 2 mil
a 15 mil euros.
1011
A pessoa jurídica atua em nome próprio desenvolvendo atividades e negócios com terceiros,
possuindo o direito de praticar atos de gestão e representação, celebrar contratos, processar e ser
processada em juízo na qualidade de parte, podendo ainda ser responsabilizada na esfera cível,
criminal e administrativa. Há inclusive intenso debate sobre a possibilidade de a pessoa jurídica
ser sujeito passivo dos crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). MAGGIORE e
MANZINI sustentam que ela não tem sentimento de dignidade própria, pois é uma entidade
abstrata. Outros autores afirmam que pode ser sujeito de difamação ou injúria, uma vez que
possui patrimônio particular e até mesmo honra. Uma terceira corrente entende que pode ser
vítima de difamação pelo fato de possuir reputação, boa fama, nome consolidado no mercado
(honra objetiva). Cabe lembrar também a discussão pertinente aos direitos das “futuras gerações”.
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quebra de barreiras conceituais.1012 De fato, o argumento da “continuidade
histórica” é, de fato, poderoso. O Direito tem ampliado sucessivamente a sua
esfera de proteção: dos escravos, das crianças, das mulheres, chegando até as
sociedades comerciais e associações1013.
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por ver o animal tão assustado a caminho da execução, determinou ao súdito que
o soltasse. Sem ter meios de cancelar a cerimônia ritualística, o rei pediu que
fizesse a substituição do boi por um carneiro. Posteriormente, afligiu-se, pois sua
decisão não teria alterado o fato que outro animal inocente iria ser morto.
Entristeceu-se ao perceber que ao assim proceder, teria cometido a mesma
injustiça, razão pela qual não seria mais digno de governar o seu povo. MÊNCIO
explicou então ao rei que ele fizera a troca por misericórdia, pois só pôde
visualizar o sofrimento do boi, e não o do carneiro.
- 404 -
É difícil mudar, e certamente pagaríamos um preço alto por um
mundo diferente. J.M. COETZEE afirma:
A pergunta a ser feita não deveria ser: temos algo em comum – razão,
autoconsciência, alma – com os outros animais? (E o corolário que se
segue é que, se não tivermos, estamos autorizados a tratá-los como
quisermos, aprisionando-os, matando-os, desrespeitando seus
cadáveres.) Volto aos campos de extermínio. O horror específico dos
campos, o horror que nos convence de que aquilo que aconteceu ali foi
um crime contra a humanidade, não reside no fato de que a despeito de
os matadores partilharem com suas vítimas a condição de humanos,
eles a terem tratado como piolhos. Isso é abstrato demais. O horror está
no fato de os matadores terem recusado a se imaginar no lugar de suas
vítimas, assim como todo mundo. [...] Em outras palavras, eles fecharam
seus corações.
Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós
nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida. O ser inteiro do
animal se lança nesta luta, sem nenhuma reserva. Quando o senhor diz
que falta a essa luta um dimensão de horror intelectual ou imaginativo,
eu concordo. Não faz parte do modo de ser do animal experimentar
horrores intelectuais: todo o seu ser está na carne viva.1015
1015
COETZEE, A Vida dos Animais, op.cit., p. 42 e 78.
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relacionadas à agroindústria são muito bem colocadas em ensaios de DAVID
WOLFSON e MARIANN SULLIVAN. Em especial, cabe mencionar a refinada
teoria desenvolvida por DAVID FAVRE, apoiada em analogias feitas a partir da
figura do “trust”, pela qual aos animais seria permitido serem “donos de si
próprios”, construindo a figura da “equitable self-ownership” para não-humanos.
Muitos outros brilhantes autores desenvolvem com proficiência teses relacionadas
ao tema e mereceriam ser aqui relacionados. Considerem-se todos
homenageados por MAHATMA GHANDI (1869-1948), quando profetiza:
Primeiro eles te ignoram, então riem de você, então lutam com você, e
então você vence.
07.12.2005
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DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO MESTRADO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE GAMA FILHO, NO
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PROFESSORES:
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