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Filosofia da Libertação e dignidade

humana: um caminho para a justiça?

Introdução
Ao longo dos séculos foram criadas várias teorias visando conceituar a
justiça, não havendo consenso até nossos dias sobre o seu conceito e
efetividade. Através da Filosofia da Libertação é possível, não responder
definitivamente a questão, mas divisar um horizonte para a sua
concretização.
A exclusão é grande fator de injustiças, conseqüentemente, uma teoria
que pretenda a ruptura com a Totalidade, onde excluídos são
considerados apenas como estatística, tende a ser eficaz. Esta é a
finalidade da Filosofia da Libertação; romper com a ordem posta que desconsidera as
pessoas excluídas, criando uma nova situação de inclusão.
Não é pretensão do presente estudo, entretanto, esgotar o assunto, nem mesmo
conhecer profundamente esta Filosofia da Libertação, menos ainda, traçar um conceito
de justiça. Pretende-se apenas contribuir para a discussão de novas idéias, utilizando
para tanto, do princípio da dignidade da pessoa humana e da necessidade de sua
aplicação prática como vetor para atingir o justo.
As idéias de Enrique Dussel caracterizam muito bem este anseio, por isso, a exposição
de sua teoria será utilizada como norte para o desenvolvimento das linhas seguintes,
especialmente por se tratar de autor latino que retrata pensamento próximo da nossa
realidade.
1. Breve noção sobre a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel
Todo o caminho percorrido pela Filosofia da Libertação, esposada por
Enrique Dussel, indica a necessidade de superação da ordem posta,
para a instituição de uma nova situação onde seja possível a inclusão
do pobre, do assalariado, da mulher submissa ao marido da sociedade
machista, visando uma ruptura com o modelo conhecido, tido como
eurocêntrico e a criação de uma nova realidade.
Para o aperfeiçoamento dessa ruptura, o OUTRO ou alter desempenha
papel de relevância, pois a necessidade do estabelecimento dessa
‘libertação’ somente ocorrerá com a atribuição e reconhecimento da pessoa
considerada enquanto e como PESSOA.
O argumento utilizado por Dussel é que todo o conhecimento e todo o sistema
implantado, que nós, ‘representantes dos países do sul’, repetimos, nada mais é do
que a visão e o estabelecimento de um sistema imposto, pelos estudiosos dos países
pertencentes ao norte (o continente Europeu e Estados Unidos), tornando-nos meros
repetidores dos conceitos e pensamentos próprios de quem não vive a realidade do
alter, consubstanciada na nossa realidade, de pobres, latino-americanos,
subdesenvolvidos.
Seguindo este raciocínio, Dussel estabelece como contra-ponto a Teoria da Justiça de
John Rawls, criticando-a duramente por ter como partida a institucionalidade norte-
americana. Com isso, Dussel é um ferrenho defensor da necessidade de ruptura do
modelo filosófico ‘eurocêntrico’, argumentando que o estudo do homem e das culturas,
especialmente da Modernidade, feito pelos cientistas do ‘Norte’, não serve para a

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realidade do OUTRO, representada pela grande massa da humanidade encontrada na
América Latina, Ásia e África, onde estão os verdadeiramente pobres, excluídos e
distantes de integrarem a TOTALIDADE, disposta pelos representantes do Norte.
O grito pela ‘Libertação’ significa estabelecer no mínimo, uma relação de diálogo com a
‘humanidade’, ou melhor, com os representantes da ‘humanidade’ da porção norte,
entretanto, não há sinal de que o processo se aperfeiçoe, pois ausente a inclusão.
2. Direito e dignidade humana para a justiça
Nesse aspecto, caberia perguntar: o direito é um fator de inclusão social ou de
exclusão social? Até onde o direito é capaz de estabelecer critérios de justiça sob a
ótica da Filosofia da Libertação?
O direito posto, o sistema jurídico vigente em nosso país, como legítimo representante
do ‘sul’, está sofrendo, há anos, um verdadeiro desgaste e grande descrença, tornando
a ‘humanidade do sul’ sem perspectiva na consecução dos princípios basilares
estabelecidos, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana.
A dignidade do Outro: do pobre do sistema capitalista, da mulher da sociedade
machista, do filho da sociedade patriarcal, conforme o próprio Dussel afirma, daqueles
que são considerados como TOTALIDADE, mas que fazem parte da periferia, que
devem transcender sua condição para romper com o paradigma vigente.
Mas aqui há necessidade de um breve questionamento, ou melhor, de duas breves
questões: o que se deve considerar como ‘dignidade da pessoa humana’? Como
atribuir ao Outro essa dignidade? Levando em conta, especialmente, a condição
humana de um ser diferenciado de todos os demais seres da natureza, porque é o
único dotado de liberdade, inteligência e vontade, esta diferença nos faz “dignos” da
condição humana. (SOUZA, 2002, p. 179)
Os valores da pessoa humana agregaram-se, historicamente, àquilo que se
convencionou chamar de direito natural ou fundamental. Este é, evidentemente, um
tema mais amplo, uma vez que, na concepção de alguns filósofos – como foi o caso de
Locke – abrangia até mesmo a propriedade privada. (POZZOLI, 2001, p. 105)
Por outro lado, partindo do ponto específico das críticas que Dussel tece a Rawls e aos
filósofos do ‘Norte’ que soam mais como indicação de obstáculos que eles enfrentam, e
que o próprio Dussel sugere, em virtude de sua condição, ‘de filósofos do Norte’ de
quem não tem contato com as mazelas e as injustiças dos latino-americanos, ou ainda,
dos excluídos e oprimidos, para abrigar também os demais ocupantes da ‘humanidade
do sul’: africanos e asiáticos.
Pois, mesmo estando na condição de periferia e desconsiderando as diferenças
naturais que ele refuta, como seria possível, senão por meio de abstração, estabelecer
um contato íntimo com o alter, saber efetivamente o que, como e onde essa
‘dignidade’, para ele OUTRO será relevante, ou seja, a vagueza das necessidades de
cada um, considerado como OUTRO, da sua própria condição, pressuporia o ingresso
em seu ser para responder a estas indagações.
Por outro lado, se estabelecer uma abstração tal, em que se considere a dignidade,
como o mínimo de condições de vida, de satisfação, de direitos e até mesmo de
realizações, estar-se-ia permanecendo em uma abstração compartimentada, impondo-
se dessa forma, não a visão de uma nova TOTALIDADE, mas apenas de uma
‘libertação’ desejada por quem a defende e não conseqüentemente, da humanidade do
‘sul’ excluída, daquela TOTALIDADE inicial.
Ou melhor, as críticas direcionadas aos cientistas do norte têm muito mais amparo nos
obstáculos epistemológicos de sua posição inicial (também não inteiramente rompida

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por Dussel), do que para os critérios estabelecidos pela teoria de cada um, portanto, o
próprio Dussel, ao defender a Libertação da América Latina e dos demais ocupantes da
periferia, o faz na condição de latino-americano, portanto, partidário e que não se viu
capaz de romper com sua condição inicial, nesse aspecto, sua teoria encontra marcada
por esta situação pessoal.
Cabe ainda a dúvida quanto à questão da extensão do princípio constitucional da
‘dignidade humana’, pois se trata de um lugar não pacífico e até mesmo desconhecido,
podendo deduzir que tal discurso legal de índole constitucional, socioideologicamente
construído, ao deixar em aberto os traços do que deva ser entendido como “dignidade
da pessoa humana”, leva-nos a um sentido de ambigüidade e vagueza da expressão
(LOWENTHAL, 2001, p. 333). Porém, levando em conta a situação exposta, onde se
estabeleça critério de dignidade para um certo número de pessoas, de uma certa
localidade, poderia pontuar contornos a essa dignidade, enfim, condições de
‘libertação’ do excluído, que não atingiria a Totalidade, tornando ineficiente o princípio,
especialmente pela ausência de proteção das pessoas que não possuem condições de
dignidade.
Especialmente porque a dignidade de determinadas pessoas (OUTRO), é por eles
desconhecida, tendo em vista que não dispõem do mínimo de condições necessárias
para esse fim, sequer se reconhecem pessoas, menos ainda dignas.
Dessa forma, a tomada de consciência da efetividade do direito e da verdadeira
realização da justiça, segue antes, o caminho da consciência do OUTRO, considerado
em sua individualidade e como pessoa humana, com dignidade e não apenas valor
(KANT, 1986, p. 77), entretanto, há necessidade de um encontro entre o Outro e ele
mesmo, que ocupa paradoxalmente a posição na TOTALIDADE como EXCLUÍDO, para
assim proceder à libertação, considerada como ato ou procedimento prático graças ao
qual o não-livre passa a ser um sujeito atuante da liberdade.(DUSSEL, 1995, p. 111)
Dussel considera ainda, que
são exatamente situações-limites que interessam à Filosofia da Libertação (as guerras,
as revoluções, os processos de libertação das mulheres, das raças oprimidas, das
culturas populares, bem como dessas maiorias que se encontram em situações de não-
direito, dessa Periferia ou mundo colonial que, por definição, se acha subjugado por
uma estrutura de opressão etc.). O princípio ‘Liberte hic et nunc o oprimido!’, ou: ‘Faça
com que o atingido/excluído também participe! exige a realização de um
procedimento, mas não uma ‘aplicação’ propriamente dita do transcendental ao
empírico. (DUSSEL, 1995, p. 117)
Esta conquista do Outro e para o Outro talvez possa responder a todos os
questionamentos feitos ao longo desse estudo, servindo assim, o direito para a
inclusão social e para a conquista da justiça.
Para tanto, a ‘perfectio’ do homem, ao chegar a ser o que pode ser em seu ser livre
para as suas mais autênticas possibilidades (na projeção), é uma obra da
preocupação. (DUSSEL, p. 40). O outro deve ser entendido como Outro e não apenas
como outro, conforme o próprio Dussel esclarece, considerado em sua individualidade,
definido a partir de sua própria realização.
Dessa forma, a afirmação da Totalidade em si mesma é na verdade negação do Outro
injustamente abolido; o não do escravo à dominação é afirmação de si como o Outro.
Por outro lado, a Alteridade é necessariamente rebelião, não dos que dominam na
degradada dialética do ‘se-isso’, mas dos dominados que sofrem a opressão.(...) É por
isso que ‘felizmente logo aprendi a não buscar a origem do mal além do mundo’, o mal
é interior à Totalidade. (DUSSEL, p. 41/42)

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São questões formuladas por Dussel: Quem é bom? Qual é o homem perfeito? Ou
seja, o homem perfeito, plenamente realizado em seu poder-ser, é a medida que mede
todo o projeto humano ontológico. (DUSSEL, p. 43)
Finalmente conclui que o homem perfeito será aquele que por sua bondade, sua
plenitude antropológica, pode abrir-se ao Outro gratuitamente como outro, não por
motivos fundados em seu próprio projeto de Totalidade, mas por um amor que ama
primeiro alternativamente: o amor-de-justiça. (DUSSEL, p. 43)
Para a Filosofia da Libertação o que importa é o ser do Outro, daquele que está fora da
Totalidade, fora do sistema, como pobre; havendo pois, a necessidade do amor, um
amor gratuito, um amor criador, amor este que vai além do horizonte ontológico; ser
ateu na Totalidade é a condição negativa para poder amar o Outro como outro com
amor-de-justiça, que nada tem a ver com a compaixão schopenhaueriana que não é
mais do que um egoísmo do nós, um egoísmo compartilhado na Totalidade. (DUSSEL,
p. 137)
3. Para concluir
Dessa forma, a Filosofia da Libertação pretende uma justiça que leve em consideração
o Outro e não apenas o outro, sua condição de oprimido, sua condição de fora do
sistema, baseado na Alteridade.
Para essa consideração há necessidade de que ao outro, como ocupante da Periferia,
seja levado o conhecimento e a consciência da necessidade de romper com aquela
ordem da Totalidade, para assim estabelecer o ‘grito’ de ‘libertação’, através da
interpelação do ocupante da Totalidade, que considera o outro apenas como valor
estatístico, desconsiderando sua condição humana, seu direito àquela dignidade
referida.
O conhecimento e a amplitude da dignidade humana, pelo OUTRO, como valor
fundamental para o estabelecimento da Justiça, pois somente com dignidade e
inclusão se poderá falar em distribuição da Justiça.
Não que a Filosofia da Libertação e o Direito, possam estabelecer definitivamente um
conceito de justiça, pois como o próprio Kelsen afirmou, é grande a dificuldade de
conceituá-la, com o fracasso de muitos estudiosos que pretenderam conceituá-la
(KELSEN, 2001, p. 25). Entretanto, o caminho para este fim, certamente é o diálogo e
a realização prática dos princípios e garantias estabelecidos legalmente, como o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Com esta vontade, dispensando ao Outro o amor que se tem por si, a justiça possa ser
alcançada, ou quem sabe seja a justiça um sonho distante do homem...

http://www.espacoacademico.com.br/061/61angeluci.htm
Acesso em 29/03/2010.

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