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Bruno Reikdal de Lima

AS RAÍZES RELIGIOSAS DA RACIONALIDADE


MODERNA: PARA PENSAR COM MAX WEBER

Editora Instituto Conhecimento Liberta


FICHA TÉCNICA

Título do Livro:
As raízes religiosas da racionalidade moderna:
para pensar com Max Weber

Autores:
Bruno Reikdal de Lima

Produção editorial:
Mariana Paulon e Marielly Agatha Machado

Coordenação de Design Gráfico:


Eduardo Marinho Júnior

Designer gráfico:
Jéssica Teixeira

Capa:
Jéssica Teixeira

Curadoria da Coleção Grandes Pensadores e Pensadoras:


Suze Piza
© Editora Instituto Conhecimento Liberta, São Caetano, 2022

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode


ser reproduzida, transmitida ou arquivada, desde que levados
em conta os direitos do autor.

Dados I nt er naci onai s de Cat al ogação na Publ i cação ( CI P)


( Câmar a Br as i l ei r a do Li vr o, SP, Br as i l )

Li ma, Br uno Rei kdal de


As r aí z es r el i gi os as da r ac i onal i dade moder na
[ l i vr o el et r ôni c o] : par a pens ar c om Max Weber /
Br uno Rei kdal de Li ma. - - São Caet ano do Sul , SP :
I ns t i t ut o Conhec i ment o Li ber t a, 2022. - - ( Col eç ão
gr andes pens ador es e pens ador as )
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Bi bl i ogr af i a.
I SBN 978- 65- 85030- 02- 1

1. Rac i onal i dade 2. Rel i gi ão e s oc i ol ogi a


3. Weber , Max, 1864- 1920 I . Tí t ul o. I I . Sér i e.

22- 134259 CDD- 306. 6


Í ndi ces par a cat ál ogo s i s t emát i co:

1. Rel i gi ão e s oc i ol ogi a 306. 6

El i et e Mar ques da Si l va - Bi bl i ot ec ár i a - CRB- 8/ 9380

Editora Instituto Conhecimento Liberta

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Cerâmica, São Caetano do Sul, SP

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Tel: (11) 94172- 8439

E-mail: contato@institutoliberta.com.br

ISBN:
Sumário

Apresentação................................................................................................................ 6

Introdução........................................................................................................................ 7

1. Alguns pressupostos importantes....................................................... 10

2. O estudo das raízes religiosas da racionalidade


moderna capitalista............................................................................................... 14

3. O mediador evanescente............................................................................. 20

4. A ciência na legitimação da ordem................................................... 26

Referências...................................................................................................................... 31

Sobre o autor.................................................................................................................. 33
Apresentação

As raízes religiosas da racionalidade moderna: para


pensar com Max Weber é parte da coleção Grandes
Pensadores e Pensadoras, da Editora Instituto Conhecimento
Liberta. A coleção tem por objetivo contribuir com a
introdução ao estudo de grandes pensadoras e pensadores
de diversas matrizes culturais que são fundamentos para
compreensão do nosso tempo e espaço.

O sociólogo alemão Max Weber é junto de Marx, como


constata Jessé Souza, “um dos mais importantesintelectuais
no Ocidente moderno”. De sua produção teórica, talvez a
obra mais conhecida e apresentada seja “A ética protestante
e o “Espírito” do capitalismo”, cuja tese central é o influxo do
modo de conduzir a vida religiosa do protestantismo ascético
no modo de viver moderno e racionalizado capitalista.

Contudo, muitas das interpretações desse texto e


algumas das tradições que se popularizaram, e por vezes
chegaram até nossos ouvidos, estão cobertas de ares
científicos que, a bem da verdade, são conteúdos que
legitimam a ordem social vigente e uma série de problemas
estruturais que a constituem. Trata-se, por um lado, das
teorias da modernização e, por outro, da ideologia
conservadora brasileira.

Desse modo, é preciso que retomemos alguns


pressupostos importantes para a leitura crítica de Weber e
alguns elementos que nos auxiliem a remontar o sentido da
análise das raízes da racionalidade moderna e capitalista no
ascetismo protestante.

Nesse sentido, o volume As raízes religiosas da


racionalidade moderna busca oferecer recursos que
contribuam para uma aproximação de um dos temas da
produção teórica weberiana, sempre tendo como pano de
fundo a possibilidade de trato crítico com as interpretações
do Brasil e da realidade brasileira.

Boa leitura,
Suze Piza

6
Introdução

Como humanos, somos seres comunitários,


necessariamente relacionais e interdependentes. Nossa
espécie progride e permanece com seu modo de realidade
próprio, realizado a partir de condições vigentes, recursos
disponíveis, habilidades adquiridas pelo longo processo de
adaptação e, especialmente, sob dinâmicas de divisão e
coordenação social do trabalho. Chegamos até aqui e ainda
nos mantemos em um emaranhado de relações sociais que
funcionam em torno de um modo de produção que
diariamente é atualizado pela tensão entre repetição e
inovação, que garante a reprodução social e, com ela, um dia
a mais para nossa espécie em seus diferentes grupos e
sociedades.

O modo de produção capitalista, que hoje funciona de


modo globalizado e extremamente complexo, aparece para
nós como inevitável e parte do curso necessário da história. O
reproduzimos diariamente e sua manutenção soa como uma
fatalidade. Contudo, como bem nos chama a atenção Jessé
Souza, em nosso modo de realidade há outro elemento
fundamental: somos animais que se interpretam, o que
significa que “não existe ‘comportamento automático’, este é
sempre influenciado por uma ‘forma específica de interpretar
e compreender a vida’” (SOUZA, 2015, p. 17).

Desse modo, temos que perceber que


essas categorias que constituem
essa forma específica de interpretar e
compreender a vida carregam
consigo as estruturas de justificação
da divisão social do trabalho vigente.
Elas permitem que assimilemos e
reproduzamos conteúdos que dão
sentido à nossas vidas, nossos
7
afazeres, projetos e que justificam o
porquê do mundo ser como é.
Explicam para nós o porquê de um
grupo ter um poder dominante e
outro ser dominado, respondem a
necessidade de determinada classe
ter a função de coordenação da
divisão social do trabalho e outra de
ser coordenada, assim como os
privilégios estarem garantidos a
determinadas parcelas minoritárias
da população.

No caso de uma sociedade de classe como a capitalista,


tal qual indica Franz Hinkelammert, vemos a respeito dos
capitalistas que:

[...] esse grupo precisa ter poder sobre os meios


de produção, a base material da divisão social do
trabalho. Por outro lado, esse poder dos grupos
minoritários precisa ser justificado; são transfor-
mados em valores vigentes da sociedade. Esses
valores precisam ser estabilizados, integrados na
sociedade (HINKELAMMERT, 1970, p. 57)

Nesse processo, é fundamental que haja coerência


interna dos valores para garantir o convencimento dos
demais grupos sociais, assim como se faz necessária a
constituição e o estabelecimento de instituições que
reproduzam esses valores. Sob essas dinâmicas, aparece a
justificação e legitimação dessa divisão social do trabalho e
sua manutenção cotidiana. Com a observação dessas
relações consolidadas, surgem os intérpretes que criticam
e/ou reforçam a legitimação da reprodução social vigente.

8
Tendo uma perspectiva desse tipo,
um dos intérpretes mais importantes
da modernidade capitalista é Max
Weber. Como também nos mostra
Jessé Souza, para a interpretação do
Brasil o sociólogo alemão é
fundamental, de modo que aparece
como um dos “exemplos mais
significativos do caráter bifronte da
ciência: tanto como mecanismo de
esclarecimento do mundo quanto
como mecanismo de encobrimento
das relações de poder que permitem a
reprodução de privilégios injustos de
toda espécie” (SOUZA, 2015, p. 18).

Nesse sentido, nosso texto tem como objetivo discutir


alguns aspectos gerais que possibilitam percebermos o
trabalho desenvolvido por Weber sobre a racionalização
moderna e suas raízes religiosas. Nesse mundo modernizado
que se constitui orientado pela emergência e expansão do
capitalismo, a ciência passa a ocupar o lugar das religiões na
explicação e legitimação das relações vigentes.

9
1. Alguns pressupostos importantes

A tese central da mais conhecida obra de Max Weber, “A


ética protestante e o “Espírito” do capitalismo”, trata da
relação entre o espírito protestante e o espírito capitalista ou
dos influxos da Reforma nas condições para a consolidação
do capitalismo e sua racionalidade. Como comenta Weber:
“o que nos cabe é tornar um pouco mais nítido o impacto que
os motivos religiosos, dentre os inúmeros motivos históricos
individuais, tiveram na trama do desenvolvimento da nossa
cultura moderna especificamente voltada para ‘este
mundo’” (WEBER, 2004, p. 82).

Por outro lado, o sociólogo alemão ainda nos adverte a


termos dois cuidados: a) não imaginar que se pode “deduzir
a Reforma das transformações econômicas como algo
‘necessário em termos de desenvolvimento histórico’”; b)
nem afirmar que o espírito capitalista “pôde surgir somente
como resultado de determinados influxos da Reforma [ou até
mesmo que o capitalismo enquanto sistema econômico é
um produto da Reforma]” (WEBER, 2004, p. 82). Essas
observações já nos afastam de uma interpretação redutiva e
unilateral da análise weberiana do papel do protestantismo
para o espírito do capitalismo.

Como indica Wolfgang Schluchter,


um dos objetivos de Weber era
construir uma investigação que não
caísse em uma armadilha
determinista que colocava em
segundo plano as produções
espirituais humanas que, para um
tipo de empiria vulgar e reducionista,
estariam necessariamente
condicionadas por bens e interesses
10
econômicos. Para esta estrutura de
análise, o elemento ou aspecto bruto
das relações humanas seria o
conteúdo fundamental e relevante no
desenvolvimento histórico e nas
lutas no interior das sociedades. Em
contraposição, com Weber veremos
que “os seres humanos lutam não
apenas pela distribuição dos bens
materiais, mas também pelos bens
espirituais, e a luta por um pode, mas
não precisa, ser meramente uma
função do outro” (SCHLUCHTER, 1985,
p. 26).

Em termos gerais, é preciso considerar que os interesses


materiais e ideais orientam as nossas vidas. Contudo,
trata-se de uma orientação que não é mecânica, mas
sofisticada e dependente de uma série de circunstâncias e
que sofrem com os efeitos intencionais e não intencionais dos
agentes que tem “interesses em felicidade e em salvação”.
Como também comenta Schluchter:

Interesses materiais e ideais, interesses em


felicidade e salvação, governam diretamente as
ações dos seres humanos, mas o termo
“diretamente” não deve ser mal interpretado. Os
interesses são diretos na medida em que
constituem motivações. No entanto, os motivos
sempre são historicamente mediados; eles são
interpretados e institucionalizados. Assim que os
seres humanos saem do estado de “naturalismo
pré-animista”, criam símbolos com a ajuda da
abstração, diferenciação e sistematização.
Assim que atingem esse estado, mais e mais
coisas e processos adquirem significados além

11
dos efeitos que se acredita serem de fato
inerentes a eles ou em conjecturas. Desse modo,
vem à existência um mundo de ideias que
influencia no modo como as pessoas agem. São
esses sistemas simbólicos, que podem ser mais
ou menos abstratos, diferenciados e
sistematizados, que direcionam nossas ações,
pois nos informam para o que e do que queremos
e podemos ser salvos (SCHLUCHTER, 1985, p. 27)

O modo como está colocado o âmbito simbólico, dos


interesses, interpretações, e motivações, possibilita que, ao
mesmo tempo em que não se incorre em uma compreensão
mecânica entre uma estrutura econômica e outros âmbitos
da vida social, esteja aberto um horizonte institucional que
molda a ação dos agentes. Dessa maneira, é rejeitado, como
pressuposto, qualquer concepção de comportamento
automático dos indivíduos (como comentamos em nossa
Introdução) sem que isso implique em uma noção de ações
dos agentes que não estejam sujeitas a condições
disponíveis e ordens vigentes.

Nesse sentido, podemos tomar o seguinte comentário


de Gabriel Cohn:

O pensamento de Weber tematiza o particular


sem ter como articulá-lo ao geral, que repele. Sua
crítica científica e metodológica, não é do objeto
nem o transcende. Daí a ênfase na dimensão do
poder em suas análises. O objeto particular se
apresenta assim e não de outro modo,
igualmente possível, porque há uma força que o
constrange a ser assim, e essa força é social e
também particular: dominação, poder. (COHN,
1979, p. 148)

Isso significa que com Weber temos um modo de


analisar um fenômeno específico e compreender suas
articulações historicamente desenvolvidas, sem
desconsiderar as tomadas de decisão e ações dos agentes,
que podem ser analisados metodologicamente por tipos
ideais que, por sua vez, tem seu conteúdo e funcionalidade
científica em determinadas situações – em contextos
específicos e sob horizontes institucionais próprios. Trata-se,
portanto, do desenvolvimento de um arsenal teórico e
científico para a observação de certos fenômenos, e não de
uma prescrição de algum projeto ou ação política, de modelo
de sociedade ou de relações universalmente necessárias
e/ou válidas.

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Isto posto, vejamos a definição que Weber utiliza para
apresentar a ciência a partir da qual trabalha os fenômenos
que analisa, a sociologia: “uma ciência que pretende
compreender interpretativamente a ação social e assim
explicá-la casualmente em seu curso e em seus efeitos”
(WEBER, 2014, p.3).

13
2. O estudo das raízes religiosas da racionalidade
moderna capitalista

Como vimos, Weber busca escapar de uma análise


mecânica dos processos e fenômenos sociais. Contudo,
como comenta Wolfgang Schluchter, seu intuito não é
substituir uma análise materialista da realidade por outra de
outro tipo, e sim complementar a interpretação da realidade
a partir do aspecto que aparecia como mais difícil de se
compreender: “Diferentemente da determinação de ideias
por interesses, o inverso não é tão óbvio, especialmente se as
ideias pertencem a diferentes esferas da ordem social”
(SCHLUCHTER, 1985, p. 141).

Desse modo, a pesquisa de Weber buscava “explicar


principalmente a maneira pela qual o ‘espírito capitalista’ e a
ética vocacional moderna foram moldados pela ética
religiosa do protestantismo ascético” (SCHLUCHTER, 1985, p.
141). Não estamos discutindo, portanto, uma história das
ideias religiosas, mas do empenho em “investigar a alavanca
psíquica que converte uma religião ética em um ethos
religioso, ou seja, em uma religião vivida, em um modo de
condução religioso da vida” (SCHLUCHTER: 2017, p. 121).

Nas palavras de Weber em Ensaios de sociologia:

[...] não é a doutrina ética de uma religião, mas a


forma de conduta ética a que são atribuídas
recompensas que importa. Essas recompensas
funcionam na forma e na condição dos
respectivos bens de salvação. E essa conduta
constitui o ethos específico de cada pessoa, no
sentido sociológico da palavra. Para a o
puritanismo, tal conduta era um certo modo de
vida, metódico, racional que - dentro de
determinadas condições - preparou o caminho
para o “espírito” do capitalismo moderno (WEBER,
1984, p. 368)

14
Na primeira versão de A ética protestante e o “Espírito”
do capitalismo, publicada em duas partes entre 1904 e 1905,
Weber delimita sua análise entre os séculos XVI e XVIII,
focando em uma série de expressões religiosas de grupos
reformados reunidos sob o conceito de “protestantismo
ascético”, com um foco especial no movimento de
anabatistas e do calvinismo. Nesse ponto, como comenta
Roland Boer:

Para Weber, um fator crucial na possibilidade do


surgimento do capitalismo estava na estrutura
ideológica, ou teologia, do calvinismo – doutrinas
como o chamado à vida religiosa, a
predestinação, a eleição, a dependência da
graça de Deus por seres humanos que eram
totalmente incapazes de qualquer bem por si
mesmos, ainda que fossem constantemente
impelidos a boas obras em resposta a essa
graça, a disciplina do ascetismo protestante e a
satisfação futura (BOER, 2001, p. 2)

Isso não implica, contudo, em uma redução do estudo


de uma relação direta entre calvinismo e capitalismo, como
por vezes encontramos em comentários à produção
weberiana. O que interessava a Weber era compreender
“como a profissão (Beruf) mundana experimentou uma
valorização ética, como o trabalho se converteu em profissão
e, sobretudo, como a profissão se converteu em vocação”
(SCHLUCHTER, 2017, p. 121). Buscava, portanto, trabalhar a
relação entre a ética vivida do protestantismo e a
emergência do espírito do capitalismo, de modo que:

[...] o calvinismo era para ele um fenômeno


parcial do protestantismo ascético, e o espírito do
capitalismo moderno, um fenômeno parcial do
espírito do tipo humano profissional, tal como
este se desenvolveu a partir da Reforma, para
desembocar em um modo de condução de vida
burguês (SCHLUCHTER, 2017, pp. 121-122)

Para esse modo burguês de reger a vida, foi


fundamental a doutrina da predestinação, que excluía do
indivíduo qualquer possibilidade de decidir sobre sua
salvação, realizando um bem merecedor da graça divina ou
um mal condenatório. As decisões sobre a salvação estariam
nas mãos de Deus em sua sabedoria, e insondáveis pelos
fiéis, que jamais saberiam sobre seu destino. Para Weber,

15
como comenta Pierucci, tal doutrina “afetava de forma
radical a concepção cristã de salvação”, de modo que:
Compactada nesse dogma estava a noção da
absoluta liberdade de Deus para salvar ou
condenar, exercida sempre-já muito acima do
mérito ou da culpa das criaturas humanas, e
muito além de sua capacidade de influenciá-lo
com rituais e rezas, súplicas, chantagens,
prestações ou oferendas. Muito além da magia,
fosse qual fosse (PIERUCCI, 2003, p. 195)

Para nossos fins, destaquemos dessa avaliação da


transformação dos valores que orientam a conduta dos
sujeitos a desmagificação em relação ao mundo: indivíduos
fiéis não encontram nenhum elemento ou ação específica
que seja capaz de garantir sua salvação. Não há recurso
externo que possa ser acionado e nem um modo de agir
estrito que conecte diretamente realizações mundanas ou
rituais que encaminhem à salvação e mesmo à garantia de
felicidade – postergara para a eternidade, em caso de
sofrimentos terrenos.

Assim, já em sua primeira versão de A ética protestante


e o “Espírito” do capitalismo vemos com Weber:
Ora, em sua desumanidade patética, essa
doutrina não podia ter outro efeito sobre o estado
de espírito de uma geração que se rendeu à sua
formidável coerência, senão este, antes de mais
nada: um sentimento de inaudita solidão interior
do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida
nos tempos da Reforma - a bem-aventurança
eterna - o ser humano se via relegado a traçar
sozinho sua estrada ao encontro do destino
fixado desde toda a eternidade. Ninguém podia
ajudá-lo. Nenhum pregador: pois somente o
eleito é capaz de compreender spiritualiter [em
espírito] a palavra de Deus. Nenhum sacramento:
pois os sacramentos, com certeza ordenados por
Deus para o aumento de sua glória e sendo por
conseguinte invioláveis, não são contudo um
meio de obter a graça de Deus, limitando-se
apenas a ser, subjetivamente, externa subsidia
[auxílios externos] da fé. Nenhuma Igreja: pois
embora a sentença extra ecclesiam nulla salus
implique como sentido que quem se afasta da
verdadeira Igreja nunca mais pode pertencer aos
eleitos de Deus, resta o fato de que também os
réprobos fazem parte da Igreja (externa), mais
que isso, devem fazer parte dela e sujeitar-se à
sua disciplina, não para através disso chegar à
bem-aventurança eterna - isso é impossível -,
16
mas porque, para a glória de Deus, eles devem
ser além do mais obrigados pela força a observar
os mandamentos. E, por fim, nenhum Deus: pois
mesmo Cristo só morreu pelos eleitos, aos quais
Deus havia decidido desde a eternidade dedicar
sua morte sacrificial (WEBER, 2014, p. 95)

Na angústia solitária do fiel rumo ao destino insondável


e pré-fixado de sua danação ou salvação eterna, entra em
jogo o papel da doutrina da crença individual, na qual a
certeza da salvação é individual e uma prática cotidiana do
fiel que conduz sua vida como salvo ou na certeza de que faz
parte dos eleitos – crendo mesmo diante da incerteza. Do
ponto de vista ético, o protestantismo ascético exigia "um
modo de condução ascético da vida". A capacidade de viver
sob a orientação desse ethos não garantia, mas expressava
sinais da salvação que apenas seriam suportáveis e
realizáveis por eleitos, condição que:

[...] mostrava, portanto, no êxito que era possível


ter na profissão. Em todo caso, isso gerava a
certeza à qual se aspirava. Weber esclarece isso
com o conteúdo dos escritos teológico-pastorais
[...], esses escritos assumiam a angústia dos
crentes e buscavam superá-la teologicamente
mediante a doutrina segundo a qual o êxito
profissional é um signo da eleição. A partir daí, há
apenas um passo a ser dado para pôr, no lugar
da base cognitiva, a base real para a
predestinação e para a salvação (SCHLUCHTER:
2017, p. 124)

Desse modo, vemos como desse espírito ou dessa ética


religiosa ascética nasce o espírito do sujeito profissional.
Nessas dinâmicas, surgem novos valores, novos critérios
para a orientação da vida que são internalizados e
reproduzidos pelos agentes e por novas instituições que se
constituíam historicamente. Em todo esse processo, também
se tornará vigente uma nova racionalidade, cada vez menos
dependente de recursos “externos” para a realização de suas
ações racionais, fruto da desmagificação do mundo, que em
1920, na segunda versão publicada por Weber de “A ética
protestante e o “Espírito” do capitalismo”, aparecerá como
fruto de suas pesquisas desenvolvidas a partir de 1913
ressignificada e articulada à tese do desencantamento do
mundo.

17
Na busca pelos conteúdos e processos históricos que
garantem um tipo de racionalidade peculiar como a
modernidade ocidental, Weber amplia o escopo da
discussão que em um primeiro momento vinculou a relação
entre o ascetismo protestante e a ética profissional própria
do capitalismo. Agora, temos a problemática das raízes da
racionalidade moderna, que remontam sob a mesma
estrutura de análise das condutas e modos de vida à um
percurso de transformações religiosas de longa duração. Em
1920, Weber acrescenta à citação que a pouco fizemos dele o
seguinte:
Aquele grande processo histórico-religioso do
desencantamento do mundo que teve início com
as profecias do judaísmo antigo e, em conjunto,
com o pensamento científico helênico, repudiava
como superstição e sacrilégio todos os meios
mágicos de busca da salvação, encontrou aqui
sua conclusão (WEBER, 2014, p. 96)

A pesquisa desenvolvida depois da primeira publicação


da obra, levou Weber para o estudo de outros âmbitos no
esforço de compreender interpretativamente e explicar a
ação social, proporcionando uma discussão sobre os
processos de racionalização em novos termos e,
especialmente no Ocidente, sob a tese do desencantamento
do mundo. Esse conteúdo é central para a produção teórica
weberiana, acompanhando todo seu percurso de estudos
das transformações e evoluções históricas de religiões –
tendo como objetivo de fundo a compreensão da
peculiaridade moderna ocidental.

Nesse sentido, como comenta Flávio Pierucci, podemos


afirmar que Weber buscou “manter o controle teórico sobre a
acepção do desencantamento enquanto desmagificação da
prática religiosa, acepção que o delimita como um processo
que começa religioso e termina religioso” (PIERUCCI, 2003, p.
202). Na longa duração que remonta ao profetismo judaico,
temos um quadro no qual se apresentam como “ponto de
partida religioso: o profetismo israelita. Ponto de chegada
ainda religioso: o protestantismo ascético” (PIERUCCI, 2003,
p. 194).

18
No caso do estudo do desenvolvimento histórico que
tem como resultado a modernidade ocidental e sua
racionalidade, destacar as raízes religiosas, é importante
realizar os apontamentos que fizemos. Eles possibilitam
distinguir a pesquisa sobre o influxo do ethos do
protestantismo ascético sobre a vocação profissional
moderna da produção teórica posterior que desemboca no
desencantamento do mundo. Isso é fundamental para que
não tomemos um estudo histórico específico como conceito
geral ou abstração aplicável a outros objetos de estudo.

19
3. O mediador evanescente

O estudo do desencantamento do mundo como um


processo de desmagificação, próprio do mundo religioso e
que para Weber gerou no ocidente condições para uma
racionalização própria, requalifica a análise desenvolvida
primeiramente sobre a relação entre o protestantismo
ascético e o espírito do capitalismo. Assim, é muito
importante que tenhamos sempre em vista que se trata de
um trabalho em torno de um objeto histórico e particular, que
não se propõe a uma tese geral da racionalidade. Nesse
sentido, como comenta Flávio Pierucci:

Ao preencher a noção de desencantamento do


mundo com referências históricas datadas,
Weber dá a entender nitidamente que estamos
diante de um conceito antes de mais nada
histórico; não sociológico em sentido estrito à
maneira de um conceito geral, abstrato, tal como
os conceitos gerais vêm definidos no capítulo I de
Economia e sociedade. Longe disso. O
desencantamento do mundo que o sintagma nos
apresenta é tanto um resultado histórico
determinado e empiricamente verificável,
quanto um processo histórico particular, e ambos
os aspectos dizem respeito a determinadas
religiões históricas, não a todas as religiões e nem
mesmo a todas as religiões chamadas mundiais
(PIERUCCI, 2003, pp. 198-199)

No trecho de “Economia e Sociedade”, indicado por


Pierucci, vemos que para Weber os conceitos sociológicos,
como parte de uma ciência generalizadora, “têm de ser
relativamente vazios quanto ao conteúdo, diante da histórica
realidade concreta” (WEBER, 2005, p. 12). Mesmo que ligados
à história e úteis para a análise de relações de influxos e
causalidades nas dinâmicas históricas, os “tipos puros” dos
conceitos funcionam para dar univocidade a certo fenômeno
complexo, e que auxiliem na compreensão do sentido de
determinados processos para os quais se tornam
adequados.

20
Importante destacarmos esses
pormenores do pensamento
weberiano, ainda que sem
aprofundarmos, para não
incorrermos no erro recorrente de
descontextualizar e perder de vista a
base histórica e material que
acompanha essa produção teórica.
Como demonstra Jessé Souza em
seus trabalhos, o mal uso de Weber
acompanha uma série de estruturas
ideológicas que justificam a
manutenção da ordem social
brasileira e legitimam o poder das
elites, valendo-se de um ar de
ciência.

No caso do Brasil, Souza foca especialmente no conceito


de patrimonialismo (SOUZA, 2015, pp. 33-35), mas com ele
também vem um uso descuidado de relação direta e
esvaziada de conteúdo histórico entre protestantismo e
capitalismo (sem o destaque para a especificidade do
ascetismo em diferentes expressões, e do caráter do
“espírito” ou ethos capitalista e não propriamente o sistema
em sua totalidade como modo de produção). Com isso,
podemos ver tipos de análise que projetam determinados
fenômenos da sociedade brasileira na ausência de
características que seriam historicamente necessárias para
projetos de modernização que, como trabalhado
extensamente por Souza, reproduzem preconceitos e mesmo
racismos com “ares científicos”.

21
De todo modo, ao tratarmos das condições para a
racionalidade propriamente capitalista e de tipo moderno, o
aspecto religioso do protestantismo ascético precisa ser visto
em seu alcance e seus limites históricos. Não é uma etapa
geral necessária, mas que nas raízes da cultura ocidental
observada por Weber, surge como um movimento que dentro
de processos históricos, remontam desde os profetas de
Israel e culminam no protestantismo ascético. Como
comenta Frederic Jameson, a posição de Weber busca deixar
de lado qualquer pensamento ou filosofia que tenta nos
persuadir de algum “movimento teleológico seja imanente
na agitação de outra forma caótica e aleatória da vida
empírica” (JAMESON, 1973, p. 61).

Com isso, fica mais sofisticada a


compreensão de como essa base
religiosa do protestantismo ascético
não permanece com o nascimento de
outras condutas sob dinâmicas
novas no capitalismo. Na análise
weberiana, não se trata de uma
escala linear na qual de etapa em
etapa são cumpridos os requisitos
para o surgimento de um tipo de
racionalização específico, mas da
compreensão da caótica relação
histórica que, observada
retrospectivamente, possibilita
articular uma dinâmica paradoxal na
qual uma religião que amplia e
potencializa o alcance doutrinário
para todo o mundo e de toda a vida
22
cotidiana, cria condições para seu
próprio “desaparecimento”.

Frederic Jameson é quem destaca o papel de “mediador


evanescente” que o protestantismo ascético (com especial
atenção ao calvinismo, como vimos) desempenha na
relação entre os polos do mundo sagrado/tradicional, e o
secularizado/moderno. Em sua hipótese, “Weber recupera
algo de sua pretensão original e paradoxal: a transição da
religião para o Entzauberung [desencantamento], do
medieval para o moderno, é efetuada, como ele nos diz, não
tornando a vida menos religiosa, mas tornando-a mais”
(JAMESON, 1973, p. 76).

Na análise específica do protestantismo ascético como


o mediador entre os polos opostos
(medieval-sagrado/moderno-secularizado), o argumento
de Weber destaca que com Lutero, “o fim de uma categoria
separada para homens e mulheres religiosos significava que
todos teriam de se tornar monges ou freiras. Sem instituições
para buscar fins de outro mundo, ocorre uma cristianização
completa da vida cotidiana” (BOER, 2001, p. 2). Contudo, é
com Calvino e sua doutrina da predestinação que criava um
mundo transcendente inacessível por qualquer meio terreno,
que cada momento da vida dos sujeitos se torna um passo de
atenção e planejamento das ações. Como comenta Roland
Boer:
A vida cotidiana se tornou, então, o cenário de
uma racionalização sem precedentes, no qual
cada momento estava sujeito a ordenação,
escrutínio e responsabilidade. O paradoxo aqui é
que Calvino não tornou a vida humana menos
religiosa; em vez disso, toda a vida humana se
tornou um monastério. No entanto, foi
exatamente essa religiosidade abrangente que
produziu tanto as possibilidades para o
capitalismo quanto o fim do protestantismo
calvinista como tal. Pois, sacralizando toda a
vida, o calvinismo também a racionaliza (BOER,
2001, p. 3)

23
Sob essas condições e relações, os agentes não buscam
seus fins terrenos em vista garantias de bens de salvação e
felicidade eterna. A orientação da vida pode realizar e
vivenciar sinais de salvação em acordo com a crença sem
garantias do próprio sujeito, todavia, está agora vinculada
com fins terrenos e o planejamento do êxito de ações na vida
mundana e por meio da vida mundana. Não há meios
mágicos ou práticas que garantam a salvação: condições
ótimas para que as tarefas sejam realizadas por outro modo
de conduzir a vida. Por isso, Gabriel Cohn comenta que no
pensamento de Weber não encontramos uma apresentação

[...] trivial de uma transição para o


“desencantamento” racional do mundo através
do enfraquecimento da religião, mas, ao
contrário, é a intensificação do caráter religioso
da vida pelo calvinismo que, ao converter o
mundo todo no equivalente a um monastério,
ajuda a desencadear as transformações cujo
ponto final é o capitalismo moderno. E apenas ao
reforçar sua presença histórica que a ética
protestante promove coerência entre os fins e
sentidos religiosos e a organização racional dos
meios. Ao fazê-lo, cria, de maneira não
intencional nos seus agentes, as condições para
o seu desaparecimento na cena histórica no que
diz respeito à organização e persistência do
mundo racionalizado em moldes capitalistas. O
capitalismo triunfante dispensa o apoio da ética
religiosa, como diz Weber (COHN, 1979, p. 118)

No interior dessas dinâmicas e contexto específico, o


protestantismo ascético “teria de morrer para o capitalismo
viver” (SOUZA, 2018, p. 24). Ele opera uma função de agente
catalisador que, ao orientar a vida religiosa para uma relação
com um mundo sem magia e uma salvação incerta e
inalcançável pelo esforço humano, abre seu próprio alçapão
ou cava sua própria cova. Não há mais razão de ser religiosa
prática e efetivamente, de modo que “um ascetismo
puramente secular torna-se o resultado lógico da teologia e
prática de Calvino, que é um meio que pode ser descartado”
(BOER, 2001, p. 3).

Obviamente, não se trata de um resultado “lógico” no


sentido de compreender uma lei histórica, e sim de uma
dinâmica notada na análise de um aspecto de todo um
processo ocorrido no Ocidente, no qual aparece e é abordado
por Weber o tema do desencantamento do mundo.
Acompanhando as evoluções e transformações produtivas,

24
emergência e destituição de instituições, as dinâmicas em
torno da divisão social do trabalho e da justificação de sua
coordenação e etc., o protestantismo ascético tem que
“desaparecer”: “Afinal, o capitalismo precisa do consumo e
do hedonismo para funcionar, e ambos eram inimigos do
protestantismo ascético” (SOUZA, 2018, p. 25).

Weber se dá conta disso, e percebe que o movimento de


desencantamento do mundo não conduz a um reino de
transparência e racionalidade positivamente compreendida.
Com o fim da predominância do papel religioso na
orientação da vida dos agentes, de explicação, interpretação
e justificação do mundo e das ações realizadas nele, um novo
ator ocupará essa função: a ciência. Ela desempenha papéis
no interior das novas dinâmicas do capitalismo e sob o chão
posto por uma racionalidade que orienta suas ações para
realizar fins terrenos, ordenados e potencializem o controle
dos agentes nesse único mundo possível de ser manipulado e
dominado.

25
4. A ciência na legitimação da ordem

Como vimos, tanto a análise dos influxos da Reforma no


espírito do capitalismo emergente como a tese do
desencantamento do mundo não implicam em uma relação
direta e mecânica entre os fenômenos. Portanto, Weber vê a
“ética religiosa do protestantismo ascético como apenas um
componente constitutivo da conduta moderna”
(SCHLUCHTER, 1985, p. 142). Como comenta Wolfgang
Schluchter, fica estabelecida uma “relação entre a ética do
protestantismo ascético e aspectos importantes da cultura
vocacional moderna, mas não a relação entre essa ética e a
conduta moderna como um todo ou mesmo a relação entre
essa ética e a ciência moderna” (SCHLUCHTER, 1985, p. 142).

A função de “mediador evanescente” do protestantismo


deixa isso bastante evidente: não se trata da conversão do
protestantismo em capitalismo ou a conduta tradicional
religiosa por uma conduta secular moderna. Nas expressões
de Jameson, o protestantismo depois de “permitir que ocorra
uma racionalização da vida extramundana, ele não tem mais
razão de ser e desaparece da cena histórica”, operando
propriamente “uma troca de energias entre dois termos
mutuamente exclusivos” (JAMESON, 1973, p. 78).

Há outros elementos, condições e características para a


cultura moderna que também se desenvolvem ao mesmo
tempo e contribuem para a particularidade da racionalidade
moderna e do capitalismo no Ocidente. De modo que sob
uma série de processos que se desenvolveram, a disciplina
exigida pelas dinâmicas produtivas da sociedade capitalista
não depende de valores religiosos e das justificativas
doutrinárias do protestantismo ascético. Na verdade, “depois
das fábricas e do capitalismo instituído como sistema
dominante, todos nós temos de ser disciplinados senão
morremos de fome” (SOUZA, 2018, p. 25).

A realidade que se impõe, requer novos conteúdos que


justifiquem e legitimem as novas dinâmicas sociais. Por isso
Jessé Souza afirma que:

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[...] a ciência herda o prestígio da religião no
contexto pré-moderno e assume, em boa parte,
pelo menos, o papel de explicar o mundo
moderno. Não existe tema que seja discutido na
esfera pública de qualquer sociedade moderna
que não invoque a "palavra do especialista que
fala pela ciência. Assim, o potencial da ciência de
produzir efetivo aprendizado individual e coletivo
está ligado e muitas vezes condicionado, por
força de seu prestígio público, a servir de
instância legitimadora e primeira e decisiva
trincheira da luta social e política pela definição
legítima de "boa vida" e "sociedade justa". Em
outras palavras: não existe ordem social
moderna sem uma legitimação pretensamente
científica desta mesma ordem (SOUZA, 2015, p.
14)

Por esse motivo destacamos na Introdução de nosso


texto a citação de Franz Hinkelammert, que indicava que o
monopólio sobre os meios de produção e seu decorrente
papel de coordenação da divisão social do trabalho
precisavam ser legitimados. A divisão social do trabalho
funciona porque temos internalizados e reproduzimos
conteúdos ideológicos e valores que orientam nossas vidas
no âmbito ético, e que estão estruturados nas dinâmicas da
reprodução social e sua manutenção.

De modo bastante didático e direto,


Jessé Souza explicita o problema
quando, a partir de Weber, afirma
que “os ricos e felizes, em todas as
épocas e em todos os lugares, não
querem apenas ser ricos e felizes.
Querem saber que têm ‘direito’ à
riqueza e à felicidade” (SOUZA, 2015,
p. 9). Ou seja: é preciso que exista a
legitimação dos privilégios e que ela
esteja garantida para si e

27
compartilhada entre “aqueles que
foram excluídos de todos os
privilégios” (SOUZA, 2015, p. 9).

A classe dominante, portanto, se sustenta em grande


medida “pelo sistema de valores dominantes da sociedade e
pelos mecanismos de controle social” (HINKELAMMERT, 1970,
p. 47). Esse sistema precisa de validade científica e, nesse
momento, entram múltiplos movimentos que disputam pela
manutenção, reforma ou revolução da divisão social do
trabalho, cumprindo com diferentes interesses e utilizando os
recursos e instituições disponíveis.

Saindo do âmbito propriamente da teoria weberiana e


do escopo de sua pesquisa, na tensão entre uma ciência
moderna que pode servir aos interesses dominantes e uma
ciência crítica que coloca em questão a manutenção de
privilégios e da própria ordem vigente, podemos destacar o
papel da ciência como ideologia. O mal uso da teoria de
Weber e o modo como chega a nós é um exemplo claro desse
caráter ideológico do fazer científico.

Em sua versão culturalista modernizante, aparece como


“certo “estoque cultural” das sociedades do ‘Atlântico Norte’
como fundamento da ‘superioridade’ dessas sociedades”
(SOUZA, 2015, p. 19) que teriam a raiz protestante necessária e
cumpririam com os requisitos historicamente
imprescindíveis para a racionalidade moderna e o
capitalismo. Vale-se de um tipo de cientificismo que explica o
mundo por meio de uma separação essencial entre
sociedades que esconde toda a dinâmica das relações de
dominação, produção e reprodução social sob uma capa
moral que diferencia sociedades do centro capitalista de sua
periferia, ou mesmo grupos dominantes e dominados
internamente a essas sociedades, qualitativamente.

No Brasil, em especial, a crítica desse conteúdo fica


explícita na crítica que Jessé Souza faz à construção teórica
de Sérgio Buarque de Holanda em sua interpretação do país:

28
O fundamento implícito de todo o raciocínio de
Buarque no seu principal livro é a oposição entre
duas abstrações: o 'homem cordial', como tipo
genérico brasileiro; e o 'protestante ascético',
como seu contraponto norte-americano. O
homem cordial é simplesmente o corolário do
mito nacional que viemos debatendo até aqui:
um indivíduo emotivo que guia as escolhas por
preferências afetivas e pessoais. O protestante
ascético é percebido como seu contrário
especular: um indivíduo "racional" guiado por
considerações impessoais e comunitárias
(SOUZA, 2015, p. 45)

Esse uso de aparato científico funciona como ideologia


no seguinte sentido: no compromisso implícito com a
manutenção de uma ordem social vigente – especialmente
no que diz respeito à divisão social do trabalho e ao modo de
organizar a coordenação dessa divisão, entre grupos que a
determinam e grupos que acatam a determinação. Os
mecanismos de legitimação dos privilégios e da posição de
execução do poder são limitados e mão suportam uma
avaliação crítica que explicite o fundamento dessa divisão
social do trabalho sob um determinado modo de produção.

Desse modo, na tensão entre o


encobrimento ou explicitação das
dinâmicas de dominação e das
relações sociais e produtivas, uma
ciência que busque escapar do papel
ideológico de conservação passa a
deixar claros esses conteúdos
escondidos pela ordem vigente. No
caso da contraposição entre as
concepções de “homem cordial” e
“protestante ascético” como um tipo
de pensamento hegemonizado, o

29
resultado é uma explicação que
aparece como científica, mas que
interrompe o pensamento e ação
crítica na medida em que
essencializam (ou ainda racializam)
os problemas da reprodução social
brasileira, transportando esses
“tipos” para as instituições.

O resultado, como demonstra Jessé Souza, é um


processo que conduz à demonização o Estado (tido como
âmbito dominado fundamentalmente corrompido) e o
endeusamento o Mercado (tido como espaço privilegiado
dos valores decorrentes do protestante ascético. Essa
aparente explicação científica cumpre um papel mítico de
explicação da realidade que esconde a luta de classes
latente em qualquer sociedade capitalista – como a
brasileira – e legitima a ordem vigente, propondo um projeto
que esfacela instituições responsáveis pela compensação
social e atendimento dos grupos dominados e dos pobres, e
repassa todo o controle sobre a coordenação da divisão
social do trabalho e seu produto total para a elite rica e
dominante.

Em nosso percurso de análise dos pressupostos


necessários para nos apropriarmos do estudo de Weber
sobre os influxos do protestantismo ascético sobre o espírito
adequado às novas dinâmicas capitalistas emergentes,
assim como das distinções entre a preocupação com esse
objeto específico e o modo como se desenvolve a questão do
desencantamento do mundo, oferecemos alguns elementos
que evitam a reprodução das bases de muitos dos mitos
aparentemente científicos. Propomos, nesse processo, a
necessidade de atentarmos para o caráter contextual e
histórico da própria pesquisa de Weber e seu particular
interesse. Como resultado, esperamos ter contribuído mais
do que com a explicação de uma teoria, com um modo de
pensar com Weber.

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Referências

BOER, Roland. “Introduction: Vanishing Mediators?”. In: The


Vanishing Mediator? SEMEIA 88/ The Society of Biblical
Literature, Atlanta-EUA, 2001, pp. 1-12.

COHN, Gabriel. Crítica e resignação: fundamentos da


sociologia de Max Weber. T. A. Queiroz: São Paulo, 1979.
HINKELAMMERT, Franz. Ideologías del desarrollo y la dialéctica
de la história. UCA/Editorial Paidós: Argentina, 1970.

JAMESON, Frederic. “The Vanishing Mediator: Narrative


Structure”. In Max Weber. New German Critique, n. 1, inverno
1973, pp. 52-89.

PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo:


todos os passos do conceito em Max Weber. Editora 34: São
Paulo, 2003.

SCHLUCHTER, Wolfgang. El desencantamiento del mundo:


seis estudios sobre Max Weber. Fondo de Cultura
Económica/Universidad Nacional de Colómbia:
México/Colômbia, 2017.

SCHLUCHTER, Wolfgang. The Rise of Western Rationalism:


Weber's Developmental History. University of California Press,
Los Angeles-EUA, 1985.

SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o


país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Editora Leya,
2015.

SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país


para além do jeitinho brasileiro. São Paulo: Editora Leya, 2018.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da


sociologia compreensiva. 4ª ed. Editora UnB: Brasília, 2009.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. LTC: Rio de Janeiro, 1982.

WEBER, Max. A ética protestante e o “Espírito” do capitalismo.


Companhia das Letras: São Paulo, 2014.

31
WEBER, Max. Textos selecionados: Coleção "Os Pensadores".
Tadução Maurício Tragtenberg, Waltensir Dutra, Calógeras A.
Ajuaba, M. Irene de Q. F. Smzercsányi e Tamás J. M. K.
Szmercsányi. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1997.

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Sobre os Autores

Bruno Reikdal de Lima

Doutorando em Economia Política Mundial pela


Universidade Federal do ABC, sob a linha de pesquisa
trajetórias do sul. Mestre em Filosofia pela Universidade
Federal do ABC na área de Ética e Filosofia Política, sob a linha
de pesquisa de filosofia brasileira e latino-americana (2017).
Pós-graduando em Ciência Política pela Fundação Escola de
Sociologia e Política de São Paulo (2014-2015). Graduado em
Filosofia pelo Centro Universitário São Camilo (2013). Possuo
formação complementar em Teologia pelo Instituto Cristão
de Estudos Contemporâneos (2012). Tenho atuado nas áreas
de Economia Política, Filosofia Política e Pensamento Crítico,
tratando especialmente dos seguintes temas: teoria do
fetichismo, crítica da racionalidade moderna, fundamento
da corrupção, filosofia política latino-americana, crítica da
religião, pensamento crítico latino-americano e pensamento
de libertação.

E-mail: bruno@reikdal.net

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