Você está na página 1de 5

Para que serve a arte?

Henri Bergson
(extr. de Le rire)

Tradução de Luiz Roberto Takayama

Qual é o objetivo da arte? Se a realidade viesse impressionar diretamente nossos


sentidos e nossa consciência, se pudéssemos entrar em comunicação imediata com as coisas e
com nós mesmos, creio que ou a arte seria inútil, ou antes seríamos todos artistas, pois nossa
alma vibraria continuamente em uníssono com a natureza. Nossos olhos, auxiliados pela nossa
memória, recortariam no espaço e fixariam no tempo quadros inimitáveis. Nosso olhar
apreenderia de passagem, esculpidos no mármore vivo do corpo humano, fragmentos de estátua
tão belos quanto os da estatuária antiga. Nós ouviríamos cantar no fundo de nossas almas, como
uma música por vezes alegre, o mais das vezes lamentosa, sempre original, a melodia
ininterrupta de nossa vida interior. Tudo isso está em torno de nós, tudo isso está em nós, e
contudo, nada de tudo isso é percebido por nós distintamente. Entre a natureza e nós, mais
ainda, entre nós e nossa própria consciência, um véu se interpõe, véu espesso para o comum
dos homens, véu ligeiro, quase transparente, para o artista e o poeta. Que fada teceu esse véu?
Teria sido por malícia ou por amizade? Cumpria viver, e a vida exige que nós apreendamos as
coisas na relação que elas têm com nossas necessidades. Viver consiste em agir. Viver é aceitar
dos objetos somente a impressão útil para responder a eles por meio de reações apropriadas: as
outras impressões devem se obscurecer ou não nos alcançar senão confusamente. Eu olho e
acredito enxergar, ouço e acredito escutar, eu me estudo e creio ler no fundo de meu coração.
Mas o que vejo e o que ouço do mundo exterior é simplesmente o que meus sentidos extraem
dele para esclarecer minha conduta; o que conheço de mim mesmo é o que aflora à superfície,
aquilo que toma parte na ação. Meus sentidos e minha consciência, portanto, só me entregam
da realidade uma simplificação prática. Na visão que me dão das coisas e de mim mesmo, as
diferenças inúteis ao homem são apagadas, as semelhanças úteis ao homem são acentuadas,
caminhos me são traçados de antemão por onde minha ação se enveredará. Esses caminhos são
aqueles por onde a humanidade inteira passou antes de mim. As coisas foram classificadas
tendo em vista o partido que poderei tirar delas. E é essa classificação que percebo, muito mais
que a cor e a forma das coisas. Sem dúvida, o homem é já bem superior ao animal sobre esse
ponto. É pouco provável que o olho do lobo estabeleça uma diferença entre o cabrito e o
cordeiro; para o lobo, são presas idênticas, sendo igualmente fáceis de pegar, igualmente boas
para devorar. Quanto a nós, estabelecemos uma diferença entre a cabra e o carneiro; mas
1
distinguimos uma cabra de uma cabra, um carneiro de um carneiro? A individualidade das
coisas e dos seres nos escapa todas as vezes que não nos é materialmente útil percebê-la. E
mesmo lá onde nós a notamos (como quando distinguimos um homem de um outro homem),
não é a individualidade mesma que nosso olho apreende, isto é, uma certa harmonia
inteiramente original de formas e de cores, mas somente um ou dois traços que facilitarão o
reconhecimento prático.
Enfim, para dizer tudo, não vemos as coisas mesmas; nós nos limitamos, o mais das
vezes, a ler as etiquetas coladas sobre elas. Essa tendência, fruto da necessidade, é ainda
acentuada sob a influência da linguagem. Pois as palavras (à exceção dos nomes próprios)
designam gêneros. A palavra, que não anota da coisa senão sua função mais comum e seu
aspecto banal, se insinua entre ela e nós, e mascararia sua forma aos nossos olhos, se essa forma
já não se dissimulasse atrás das necessidades que criaram a própria palavra. E não são apenas
os objetos exteriores, são também nossos próprios estados de alma que se furtam a nós naquilo
que têm de mais íntimo, de pessoal, de originalmente vivido. Quando experimentamos o amor
ou o ódio, quando nos sentimos alegres ou tristes, é mesmo nosso próprio sentimento que chega
à nossa consciência com as mil nuances fugitivas e as mil ressonâncias profundas que fazem
dele algo de absolutamente nosso? Se assim fosse, nós todos seríamos romancistas, nós todos
seríamos poetas, nós todos seríamos músicos. Mas, na maioria das vezes, só nos apercebemos
de nosso estado de alma de seu desdobramento exterior. Só apreendemos de nossos sentimentos
seu aspecto impessoal, aquele que a linguagem pôde anotar uma vez por todas porque é quase
o mesmo, nas mesmas condições, para todos os homens. Assim, até em nosso próprio indivíduo,
a individualidade nos escapa. Nós nos movemos por entre generalidades e símbolos, como em
um campo fechado onde nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela
ação, atraídos por ela, para nosso maior bem, sobre o terreno que ela escolheu para si, nós
vivemos numa zona intermediária entre as coisas e nós, exteriormente às coisas, exteriormente
a nós mesmos. Mas, de tempos em tempos, por distração, a natureza suscita almas mais
desprendidas da vida. Não falo desse desprendimento desejado, estudado, sistemático, que é
obra de reflexão e de filosofia. Falo de um desprendimento natural, inato à estrutura do sentido
ou da consciência, e que se manifesta de imediato numa maneira virginal, por assim dizer, de
ver, ouvir ou de pensar. Se esse desprendimento fosse completo, se a alma não aderisse mais à
ação por nenhuma de suas percepções, ela seria a alma de um artista como o mundo jamais viu
ainda. Ela atingiria a excelência em todas as artes ao mesmo tempo, ou antes, ela as fundiria
todas em uma só. Perceberia todas as coisas em sua pureza original, tanto as formas, as cores e
os sons do mundo material quanto os mais sutis movimentos da vida interior. Mas, é exigir
demais da natureza. Mesmo para aqueles dentre nós que ela fez artistas, é acidentalmente, e de

2
um só lado, que ela levantou o véu. É somente numa direção que ela esqueceu de ligar a
percepção à necessidade. E, como cada direção corresponde ao que nós chamamos de um
sentido, é por um de seus sentidos, e por esse sentido tão-somente, que o artista normalmente
se consagra à arte. Daí, na origem, a diversidade das artes. Daí também a especialidade das
predisposições. Um se ligará às cores e às formas, e como ele ama a cor pela cor, a forma pela
forma, como ele as percebe por elas e não para ele, é a vida interior das coisas que verá
transparecer através de suas formas e de suas cores. Ele a fará entrar pouco a pouco em nossa
percepção a princípio desconcertada. Por um momento ao menos, ele nos desprenderá dos
preconceitos de forma e de cor que se interpunham entre nosso olho e a realidade. E ele realizará
assim a mais alta ambição da arte, que é aqui a de nos revelar a natureza. – Outros se voltarão
antes sobre si mesmos. Sob as mil ações nascentes que um sentimento esboça ao exterior, atrás
da palavra banal e social que exprime e recobre um estado de alma individual, é o sentimento,
é o estado de alma que eles vão buscar, simples e puro. E para nos induzir a tentar o mesmo
esforço sobre nós mesmos, eles se empenharão a nos fazer ver algo do que viram: por arranjos
ritmados de palavras, que chegam assim a se organizar em conjunto e a se animar de uma vida
original, eles nos dizem, ou antes eles nos sugerem, coisas que a linguagem não foi feita para
exprimir. – Outros escavarão mais profundamente ainda. Sob essas alegrias e essas tristezas
que podem a rigor traduzir-se em palavras, eles vão capturar algo que não tem mais nada em
comum com a palavra, certos ritmos de vida e de respiração que são mais interiores ao homem
que seus sentimentos os mais interiores, sendo a lei viva, variável com cada pessoa, de sua
depressão e de sua exaltação, de seus lamentos e de suas esperanças. Ao destacar, ao acentuar
essa música, eles a imporão à nossa atenção; farão com que nós nos insiramos nela
involuntariamente, nós mesmos, como passantes que entram numa dança. E com isso eles nos
levarão a abalar também, bem no fundo de nós, alguma coisa que esperava o momento de vibrar.
– Assim, quer seja pintura, escultura, poesia ou música, a arte não tem outro objetivo que o de
afastar os símbolos praticamente úteis, as generalidades convencional e socialmente aceitas,
enfim tudo o que nos mascara a realidade para nos colocar face a face com a própria realidade.
É de um mal-entendido sobre esse ponto que nasceu o debate entre o realismo e o idealismo na
arte. A arte certamente nada mais é que uma visão mais direta da realidade. Mas essa pureza de
percepção implica uma ruptura com a convenção útil, um desinteresse inato e especialmente
localizado do sentido ou da consciência, enfim uma certa imaterialidade de vida, que é o que
sempre se chamou de idealismo. De modo que se poderia dizer, sem jogar de modo algum com
o sentido das palavras, que o realismo está na obra quando o idealismo está na alma, e que é
somente à força de idealidade que se toma contato com a realidade.

3
A arte dramática não constitui exceção a essa lei. O que o drama vai buscar e conduz à
plena luz é uma realidade profunda que nos é velada, muitas vezes em nosso próprio interesse,
pelas necessidades da vida. Qual é essa realidade? Quais são essas necessidades? Toda poesia
exprime estados de alma. Mas entre esses estados, existem aqueles que nascem sobretudo do
contato do homem com seus semelhantes. São os sentimentos os mais intensos e também os
mais violentos. Como a eletricidades se atraem e se acumulam entre as duas placas do
condensador donde se fará jorrar a centelha, assim, pelo simples pôr em presença dos homens
entre si, atrações e repulsões profundas se produzem, rupturas completas de equilíbrio, enfim
essa eletrização da alma que é a paixão. Se o homem se abandonasse ao movimento de sua
natureza sensível, se não houvesse nem lei social nem lei moral, essas explosões de sentimentos
violentos seriam o comum da vida. Mas é útil que tais explosões sejam conjuradas. É necessário
que o homem viva em sociedade, e se submeta por conseguinte a uma regra. E o que o interesse
aconselha, a razão o ordena: há um dever, e nosso destino é obedecer a ele. Sob essa dupla
influência teve de se formar para o gênero humano uma camada superficial de sentimentos e de
ideias que tendem à imutabilidade, que pretenderiam pelo menos ser comuns a todos os homens,
e que recobrem, quando não têm a força de sufocá-lo, o fogo interior das paixões individuais.
O lento progresso da humanidade em direção a uma vida social cada vez mais pacificada
consolidou essa camada pouco a pouco, como a própria vida de nosso planeta foi um
prolongado esforço para recobrir com uma película sólida e fria a massa ígnea dos metais em
ebulição. Mas há erupções vulcânicas. E se a terra fosse um ser vivo, como o queria a mitologia,
ela gostaria talvez, ao repousar, de sonhar com essas explosões bruscas nas quais de repente
ela se recobra no que tem de mais profundo. É um prazer desse gênero que o drama nos
proporciona. Sob a vida tranquila, burguesa, que a sociedade e a razão têm composto para nós,
ele vai revolver em nós algo que felizmente não explode, mas que nos faz sentir a tensão
interior. Ele dá à natureza sua revanche sobre a sociedade. Ora ele irá direto ao alvo; chamará,
do fundo à superfície, as paixões que fazem tudo explodir. Ora ele tomará outra direção, como
o faz frequentemente o drama contemporâneo; ele nos revelará, com uma habilidade por vezes
sofística, as contradições da sociedade com ela mesma; exagerará o que pode haver de artificial
na lei social; e assim, por um meio indireto, dissolvendo dessa vez o envoltório, nos fará ainda
tocar o fundo. Mas nos dois casos, seja enfraquecendo a sociedade, seja reforçando a natureza,
ele persegue o mesmo objetivo, que é de nos descobrir uma parte escondida de nós mesmos, o
que se poderia chamar de o elemento trágico de nossa personalidade. Temos essa impressão ao
sair de um belo drama. O que nos cativou foi menos o que foi contado de outrem do que aquilo
que nos fez entrever de nós, todo um mundo confuso de coisas vagas que queriam existir, e que,
para nossa felicidade, não conseguiram. Parece também que um apelo tenha sido lançado em

4
nós a lembranças atávicas infinitamente antigas, tão profundas, tão estranhas a nossa vida atual,
que essa vida nos aparece durante alguns instantes como qualquer coisa de irreal ou de
combinada, da qual será preciso fazer um novo aprendizado. É bem, portanto, uma realidade
mais profunda que o drama foi buscar abaixo de aquisições mais úteis, e essa arte tem o mesmo
objeto que as outras.
Segue-se daí que a arte visa sempre o individual. O que o pintor fixa sobre a tela é o que
ele viu num certo lugar, num certo dia, a uma certa hora, com as cores que jamais se tornarão a
ver. O que o poeta canta é um estado de alma que foi o seu, e o seu somente, e que nunca mais
será. O que o dramaturgo nos põe sob os olhos é o fluir de uma alma, é uma agitação viva de
sentimentos e de acontecimentos, alguma coisa enfim que se apresentou uma vez para nunca
mais se reproduzir. Em vão daremos nomes gerais a esses sentimentos; numa outra alma eles
não serão a mesma coisa. Eles são individualizados. Por isso sobretudo eles pertencem à arte,
pois as generalidades, os símbolos, os tipos mesmos, se assim quisermos, são a moeda corrente
de nossa percepção cotidiana. De onde vem portanto o mal-entendido sobre esse ponto?
A razão disso é que se têm confundido duas coisas muito diferentes: a generalidade dos
objetos e a dos julgamentos que nós fazemos sobre eles. De que um sentimento seja reconhecido
geralmente como verdadeiro, não segue daí que seja um sentimento geral. Nada mais singular
que o personagem de Hamlet. Se ele se assemelha por certos aspectos a outros homens, não é
por isso que ele mais nos interessa. Mas ele é universalmente aceito, universalmente tido como
vivo. É somente nesse sentido que ele é de uma verdade universal. Do mesmo modo para os
outros produtos da arte. Cada um deles é singular, mas ele acabará, se trouxer a marca do gênio,
por ser aceito por todo mundo. Por que o aceitamos? E se ele é único em seu gênero, por qual
sinal reconhece-se que é verdadeiro? Nós o reconhecemos, creio eu, pelo próprio esforço que
ele nos leva a fazer sobre nós par ver sinceramente em nossa volta. A sinceridade é
comunicativa. O que o artista viu, nós não o veremos de novo, sem dúvida, pelo menos não
completamente a mesma coisa; mas se ele bem o viu, o esforço que fez para tirar o véu se impõe
a nossa imitação. Sua obra é um exemplo que nos serve de lição. E pela eficácia da lição se
mede precisamente a verdade da obra. A verdade carrega em si, portanto, uma potência de
convicção, de conversão mesmo, que é a marca através da qual se reconhece. Quanto maior é a
obra e mais profunda a verdade entrevista, tanto mais o efeito poderá se fazer esperar, mas mais
também esse efeito tenderá a se tornar universal. A universalidade está, portanto, aqui no efeito
produzido, e não na causa.

Você também pode gostar