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Arte como experiência religiosa

ADÉLIA PRADO

Experiência religiosa no cotidiano: esse é o tema ou a "teima" do nosso encontro.

A pergunta "para quê?" já é uma pergunta religiosa, porque é uma pergunta pelo sentido. Achar o sentido é achar
uma finalidade. E por que eu pergunto? Por que nós perguntamos? Perguntamos porque é da nossa natureza,
perguntar me constitui como ser humano, é do nosso extrato íntimo perguntar. E a pergunta nasce de onde? A
pergunta nasce de uma orfandade original, eu nasço órfão, eu me vejo existindo numa orfandade que eu percebo que
é original. Então eu quero saber a razão, eu pergunto, e essa pergunta "Para quê?" é a eterna pergunta: o que sou?
De onde vim? Para onde vou? A natureza dessa pergunta é muito especial também porque eu a faço a algo que não
conheço, não vejo, e a resposta é Mistério. Eu me apanho saída de algo misterioso, que não compreendo, e a
resposta continua misteriosa. Quando pergunto: "Por que existo? Qual o sentido da vida?" - essa pergunta, tanto
quanto a resposta, são dadas a mim, são gratuitas também. Você encontra ou não, mas nunca as fabrica. E este
ponto que eu toco e me responde, eu o vejo e sinto como uma unidade; a meu ver uma unidade móvel. É só
observar a história da arte e das religiões. É como se fosse uma molécula mercurial que corre em meu encalço.
Então, é algo que tem uma unidade, mas é móvel, muda de lugar. E é uma pergunta, uma resposta nunca suficiente,
porque "para o desejo do meu coração", para aquilo que eu mais desejo, que eu mais quero, "o mar é uma gota",
qualquer resposta é uma gota para o tamanho da pergunta.

Então nós repousamos; quando você topa com essa impossibilidade você repousa, e esse repouso só pode ser feito
no Mistério, que está envolvendo pergunta e resposta. Esse repouso ocorre quando eu me prostro, quando eu me
curvo, quando eu me submeto, quando eu adoro. É aqui, a meu ver, que se encontram mística e poesia. Diante de
um poema, ou diante da consolação espiritual ou da desolação, você está diante de algo que te é dado. Por exemplo,
de repente você se apanha extremamente feliz e não há uma causa objetiva, uma causa imediata para a sua
felicidade; você está feliz. Quer dizer, algo acontece que te põe feliz ou infeliz. Essa ausência, essa ausência do
sentido também é uma experiência religiosa, porque é ausência de sentido, de uma unidade fundante na minha vida.
Então, essa experiência - tanto a religiosa como a poética - é algo "inteiro na sua parte", é uma parte que busca não
um entendimento meu, mas o meu consentimento. Eu posso ou não consentir na experiência, seja ela de natureza
poética, seja de natureza religiosa, que é dirigida não à minha inteligência, não ao meu aparelho lógico, ao meu
entendimento, mas ao meu vazio, à minha carência absoluta, à minha pobreza. A experiência de estar feliz sem
motivo chega a ser humilhante para as pessoas muito orgulhosas. A gente fica com raiva de estar feliz, porque não
tem motivo, ela é exterior a você, ela provém de algo externo a você. Assim como a desolação: você amanhece e já
sabe que está desolada, você está precisando de socorro. E fossa, depressão. A experiência da depressão é a
experiência do vazio, exatamente da ausência do sentido. Então são experiências religiosas, porque se referem ao
sentido, a uma unidade fundante. E nenhuma filosofia, nenhuma doutrina, muito menos uma ideologia é ferramenta
para essa experiência fundante, mas a radical pobreza e feminilidade do meu ser, seja eu homem ou mulher. Essa
experiência supõe e necessita de um radical feminino em mim, que aqui é sinônimo de pobreza, para que essa
experiência aconteça e eu estabeleça um contato com esse centro que me persegue como se fosse um aguilhão. Deus
é um aguilhão. Eu não queria falar a palavra Deus, foi sem querer. Essa abertura para um Outro ... (estou entre
psicólogos ... quase, quase heresia!) ... Essa abertura para um Outro, para essa coisa que me torna desolada ou
consolada, me permite o conhecimento de mim mesma, mas é um conhecimento no mistério. Não adianta, não
adiantou até hoje nenhum esforço humano de compreender o que se experimenta tendo uma emoção poética ou
religiosa. Mas a submissão ao que acontece, à própria desolação, à própria depressão, a submissão a isso, a entrega
a isso faz cumprir-se o meu ser e me traz felicidade. Essa experiência, comum a nós todos, possível a nós todos,
precisa e inventa uma língua que a expresse. E essa língua, no caso, é o poema. Quando eu tenho uma experiência
de natureza poética, ela pede um corpo tangível, para que seja guardada e experimentada por mim mesma outra vez,
ou pelo outro: a concretude é o poema. E a poesia, no caso, é pura expressão, ela não vai conotar a experiência, ela
não vai denotar, ela exprime a experiência, e só. É religiosa e de novo me escapa, denota uma ordem e uma beleza
que me transcendem e que estão constantemente além. Einstein teria dito o seguinte: "Uma das coisas mais
estúpidas que eu fiz na vida foi dizer que o universo era estático". De repente a ciência descobre algo e fala:
"Acabou. Chegamos ao fim do conhecimento", e de repente algo absolutamente novo, instigante, mais misterioso
ainda se apresenta. Então, é uma unidade móvel, ela se desloca no seu mistério, ela vela e desvela r o mistério. A
arte é esse desvelar, a experiência mística também. São ordem e beleza inefáveis. E a experiência religiosa no
cotidiano é sempre paradoxal, assim como a experiência mística, porque é uma tentativa de falar do inefável,
daquilo que não pode ser dito e que não tem palavras. Então a peleja humana é essa: é dizer, tentar dizer uma coisa
que não pode ser dita por causa mesmo de sua natureza. O discurso da poesia é o discurso da mística: "Eu vi Nossa
Senhora". Como é que você objeta alguém que fala que viu Nossa Senhora? É a mesma coisa diante do poema,
diante do quadro, diante da música. É uma experiência profunda, de ordem interna, espiritual, que me toma pelos
sentidos, mas que transcende a experiência sensorial. Essa experiência se vale, tanto na arte como na mística, de
uma linguagem muito própria, que é sempre paradoxal. Não precisa, nós não necessitamos nos esforçar para buscar
lógica e sentido num poema ou num quadro. Não tem lógica, a lógica comum. E uma lógica interna da própria coisa
que segura o tempo para mim. A grande experiência é essa. Tem uma menina que fala assim: "A vida não pára pra
gente descansar!" Não pára. Não pára. É permanentemente ... E a arte faz exatamente o seguinte: ela faz um recorte
nessa angústia da temporalidade e me dá o tempo cristalizado. Fala assim: "Olha aqui, tá aqui prontinho pra você
olhar e ver. Pode se fartar". E isso que ela faz. E a experiência dos místicos é exatamente essa, eles ficam fora do
tempo. Se você lê a vida desses santos, loucos, todos esses grandes místicos ... por exemplo, têm um êxtase de três
horas; a hora em que acordam falam: "Ué! O café esfriou?". É mais ou menos assim ... "O café esfriou? Eu nem vi".
Quer dizer, três horas se passaram como se fossem três segundos. Lá como cá na arte. Qualquer poema. Qualquer
obra verdadeira tem esse condão, esse poder de segurar o tempo pra mim. É por isso que a arte me descansa, e a
mística também. Porque eu fico livre do cativeiro do tempo. A rosa morreu no pé, mas ela está vivinha aqui no
poema. Então ela pode morrer sossegada que eu a seguro aqui. O Van Gogh pinta os girassóis lá. Podem acabar
todas as plantações de girassol do mundo, não tem importância, a alma do girassol está ali para eu ver quando eu
quiser. Então eu vejo na arte o quê? Eu vejo o tempo vibrando. O tempo vibra. E é ao mesmo tempo atemporal. E
por isso, por esse simples e único motivo, que a verdadeira arte nunca é datada e nem engajada. Você vê que
Shakespeare está sendo representado até hoje, todo dia. O que é que tem Shakespeare que todo mundo quer montar
uma peça dele? É exatamente aquilo que ele segurou pra nós no tempo, fora do tempo, na arte. E isso não morre.
Continua molhada de orvalho a primeira peça de Shakespeare, está novinha. Qualquer poema, qualquer obra
verdadeira é assim.

E a arte, então, tem uma linguagem nova. Como é que eu vou contar isso? Como é que eu conto uma experiência
poética pra alguém? Eu preciso de uma linguagem nova. A gente vê, por exemplo, o físico, o químico, o
matemático; se forem falar da água, eles têm uma forma muito própria de falar: água é H20, água é isso, água é
aquilo. Uma forma quantitativa de falar. Agora a mística e a poesia vão falar da água também, mas de maneira
absolutamente diversa. E só elas vão me dar a natureza da água. Porque você falar que água é H20 não muda nada.
Mas se você fala assim: "Do seu coração brotam rios de água viva ... ", eu sou transportada a uma natureza de água,
que essa água aqui no copo, fisicamente, uma linguagem puramente física, é incapaz de me dar. Mas a linguagem
poética desvela o ser e me dá ele na sua palpitação íntima, na sua transcendência. Quando eu falo, por exemplo: "A
rosa, a rosa, a rosa ... " A rosa é um ser de natureza arquetípica. É tão formidável uma rosa! O ser dela nos remete a
algo anterior à criação do mundo. Por isso todo mundo fala da rosa, faz poesia sobre a rosa. O célebre "é uma rosa,
uma rosa, uma rosa ... " não tem o que dizer sobre a rosa. A linguagem cristã fala: Rosa Mística. É um termo, uma
imagem atribuída a Maria, a Rosa Mística, a rosa indestrutível, a virgindade, a coisa virgem por excelência,
inconspurcável. A gente estava brincando com essa palavra hoje. Inconspurcável. Não há como conspurcar a rosa, a
alma da rosa. Então todas as rosas podem morrer, mas essa linguagem que me apresenta a rosa assim, ela é eterna,
ela nasceu numa outra margem, não é da inteligência, não é da razão, é do espírito mesmo que vem essa linguagem.
Eu conheço, por exemplo, a palavra "entranha". É uma palavra até vulgar: as entranhas do porco, as entranhas da
galinha. E conheço a palavra "misericórdia", que é compaixão. Mas quando o salmista fala assim: "As_entranhas de
misericórdia do nosso Deus", é fortíssima essa rmagem. E uma misericórdia que não está só no coração, ela está nas
entranhas. Quer dizer, é uma linguagem reveladora, epifânica mesmo. Falo: "O Deus que eu adoro tem entranhas de
misericórdia". Então eu sou levada, tomada por essa compaixão por força de uma linguagem. Não é à toa que a
Bíblia e todos os livros fundadores de todas as religiões que permaneceram, permaneceram por causa da linguagem.
Não tem jeito de não falar assim, fazer um livro de revelação com outra linguagem que não seja a linguagem
poética. Você vê, por exemplo, Salmos, Isaías, Jó. O salmista está profundamente em depressão, em depressão
profunda quando escreve esse salmo, então ele diz assim: "A minha língua cola-se ao palato como barro cozido".
Tem coisa mais terrível? A língua com gosto de terra ... É quando você está ... (os psicólogos sabem disso, lidam
com isso cotidianamente. O Lexotan não vale mais nessa altura) ... Você está na mais negra desolação ... A língua ...
Mas eu preciso de linguagem para falar isso. Então eu invento, eu falo: "A língua me cola à boca como barro cozido
... ". Assim, toda vez que você tem uma experiência de natureza fundante, você precisa de uma linguagem nova. A
criança que viu o mar pela primeira vez ficou deslumbradíssima, chamou a pessoa que estava junto com ela e falou:
"Me ajuda a ver o mar!" É um poeta. Quando a gente não tem a palavra, a gente inventa, a gente arrasa com a
gramática, a gente inventa uma gramática, um léxico, mas a gente fala do inefável, e fala com as palavras mais
corriqueiras. "Me ajuda a ver o mar". É imenso demais, não dou conta de ver sozinho. Essa é a experiência de
natureza poética e mística. Daí a importância da liturgia: ter uma linguagem que apresenta e representa o Mistério.
Liturgia é celebração do Mistério. Por isso tem que ser bela, poética, não é uma lei, uma lei da Sagrada
Congregação dos Ritos, não é lei da CNBB, é uma lei da própria coisa. Eu não posso adorar Deus numa liturgia
com uma linguagem barateada que não fala, não diz do sentimento. Por isso às vezes em capela de roça, até hoje,
acontece que pessoas cantem em latim, latim ruim, mas em profundo estado de adoração, porque algo naquela letra,
naquela cadência, naquela melodia me leva ao prostrar-se. A minha alma só quer isso, a alma humana precisa (eu
vou usar um termo ruim, mas não sei o que dizer agora) prestar vassalagem. O nosso descanso é esse, é ter alguém
maior que nós. Dá muito descanso quando você encontra aquilo que você pode adorar. Por isso uma poesia que é
decifrável é uma má poesia. Eu nem sei se a gente pode falar de poesia que é má, eu não sei se isso também é um
paradoxo, uma contradição. Deus é Mistério, um mistério que se for entendido acaba. Eu não posso entender Deus.
No momento em que eu O entender eu serei maior que Ele, não é não? Tudo o que eu entendo eu posso dominar,
não é verdade? Então com a arte não acontece isso, não tem jeito. Você faz leitura, abordagem psicológica do livro;
você lê o livro e fala: "Mas deve ser bem pirado mesmo, puxa vida!" Você faz leitura sociológica, você fala: "Deve
ser de baixa extração, da classe Z, da classe C ... " A obra guarda esses registros humanos, sociais, você vê muita
coisa através da obra, você pode ver meus traumas, as taras, as obsessões e projeções, tudo, tudo pode ser visto,
menos, graças a Deus, o mistério da criação, porque ele continua e permanece misterioso, inclusive para o próprio
autor da obra. "Ah! Como é que você cria?". Não sei, não sei. Você é levado a produzir o texto, a música, o quadro.
Por isso a adesão à pessoa de Cristo é chamada sempre por São Paulo, pelos místicos todos, de "loucura da cruz". É
loucura, não tem jeito de entender. Você adere ou não. É loucura mesmo. É a mesma loucura da arte, é a loucura de
um quadro de Picasso em que ele põe a bem-amada com três olhos, um no umbigo, um na nuca, e a gente sabe que
ele não está brincando. Ele deforma para informar.

E aonde nós precisamos ir para encontrar essa vibração do Mistério? A parte nenhuma, é só abrir os olhos. Às vezes
me perguntam, me perguntam sempre isso: "Você não gostaria de morar num centro grande para produzir livros?
Você teria estímulos maiores". O estímulo é abrir os olhos, é o cotidiano. Eu acho que a metafísica, a poesia, Deus
repousam nas coisas, nos objetos mais inusitados, mais surpreendentes, porque a poesia não recusa absolutamente
nada. Thdo é matéria de poesia. E vocês observem que os místicos são pessoas muito corriqueiras. As vidas de
santos são as coisas mais falsas que eu já vi na minha vida. É falsozinho mesmo vida de santo, não tem vida de
santo desse jeito que nós vemos, não. Os santos são muito corriqueiros, eles são absolutamente encardidos nas. suas
vidas. O que às vezes chama a atenção são dons especiais, de milagre, de levitação, mas fora isso a santidade é um
passeio no cotidiano. E por quê? Porque a coisa mais difícil que tem é você aceitar essa miséria do cotidiano, a
pobreza do cotidiano, com tudo que ele traz: velhice, doença, morte, decepções, frustrações e por aí afora. Esse
cotidiano, esse todo dia, o que todo mundo tem: nós só temos isso, ninguém tem mais nada que isso, nem a rainha
da Inglaterra, não é verdade? Nós só temos as 24 horas, louvado seja, só isso, só isso, só isso ... Então não terá
grandes temas. Dizem que Santo Tomás de Aquino estava no refeitório uma vez e os frades falaram com ele assim:
"Olha, tem um boi voando, corre depressa pra você ver!" E ele não saiu do lugar, porque como teólogo, como
místico, como filósofo ele se admira é do que é natural. Ortega y Gasset fala assim num de seus livros: "Admirar-se
do que é natural é o dom do filósofo". Admirar-se de um boi de duas cabeças qualquer idiota é capaz de fazer isso,
não é? Todo mundo sai correndo atrás. "Olha lá! Olha lá, galinha com três pernas!" Fica no circo, a gente vê ... Mas
admirar-se de uma galinha comum, esse bicho estúpido que é uma galinha, admirável na sua estupidez e na sua
aparente falta de sentido, é o trabalho da arte e da poesia. Tem um quadro de Van Gogh, Os comedores de batatas:
você olha o quadro, é uma maravilha, acho que três, quatro homens comendo batatas, aqueles homens grosseirões
comendo batatas cozidas. O quadro é isso. Mas não é isso. Mas é. Mas não é. Não é verdade? Eu compro o quadro e
ponho na minha sala de visita porque eu quero olhar aquilo, um homem comendo batatas. Mas o que é um homem
comendo batatas? Tem todo um discurso maravilhoso atrás disso: é a vida humana apresentada pra mim, porque a
arte é espelho. Quando eu olho o quadro do Van Gogh, o que ele está mostrando pra mim? A minha cara. Eu sou o
girassol, eu sou o comedor de batatas, não é ver dade? Sou eu, por isso eu fico fixada, eu fico ligada naquilo. Esse é
o poder da arte, o poder de me transcender ao cotidiano e falar: "Oba, que bom! Graças a Deus que tem isso! Como
é lindo comer batatas". Lembro-me de quando encontrei a primeira vez um texto de Guimarães Rosa e de Clarice
Lispector, que são dois autores absolutamente geniais que nós temos. Eu falei: "Ah Graças a Deus. Tem eles. Ai,
que bom! Tem eles, tem eles, tem eles " É isso que a gente faz. Ou então igual a um menino que é aluno da minha
sobrinha, um menino muito esperto, pra mim é um artista mesmo que está crescendo, um menino de curso primário.
Quando a coisa fica muito boa na sala de aula ele fala assim: "Fura meu olho, professora, fura meu olho, fura meu
olho ... !" Não é perfeito? Os psicólogos entendem isso direitinho. Quer dizer: "Está bom demais! Eu não aguento,
me socorre ... " É uma criança que está tendo uma experiência de alta felicidade; nessa hora ela está integrada nesse
todo. É essa integração que a arte propicia. Por isso que é fundamental que as escolas tenham o seu grêmio, o seu
teatro, a sua música ... porque uma peça vale mais do que cem aulas, porque a arte, ela me toma pelo sentimento,
pela emoção; quando eu vejo eu já aprendi, eu já fui, já estou lá, estou voando ... É tão prazeroso! É tão
impressionante como a escola não percebe isso. É tão impressionante!

* * * *
Toda obra-prima é insuficiente, porque ela não tem um sentido em si mesma. Ela é uma unidade, mas que remete a
uma unidade maior, a unidade fundante. Por isso que se diz, a meu ver com absoluto acerto, que todo artista, queira
ele ou não, é religioso na sua obra, porque a obra que ele faz remete ao Absoluto, a algo maior. É aquilo que a gente
falou no começo: falar do Absoluto é um moinho moendo sem parar, eternamente. Você fala: "Ah! Pronto. Agora
eu fiz um poema sobre a água que acabou. Ninguém mais vai falar sobre a água". Mentira. Nasce um poeta ali e vai
fazer um poema deslumbrante sobre a água. A água continua água. Água, água, água ... A água e seu mistério. Há
uma angústia, mas há também uma alegria muito grande diante da obra, realizá-la e produzi-la é sempre uma coisa
prazerosa, de alegria, por mais insuficiente ... Água viva, por exemplo, é fascinante. Não parece livro, parece uma
coisa. Clarice Lispector falava: "Coisa, isso é uma coisa". Porque é um texto que foge aos padrões comuns da
literatura. Ela teve até dificuldade de ser assimilada, exatamente por isso, o susto que a gente leva com aquele texto.
Você fala: "Que é isso? Que é isso? Que é isso? ..." E como Guimarães Rosa. Como começa Grande sertão:
veredas? Grande sertão começa mais ou menos assim: "Nonada, tiros que eu vi foram um bezerro com olhos
errosos". Você fica tão perturbado que fala: "Tenho que ler isso até o fim ... Que é isso? Que é isso? ... " É a mesma
experiência de Jung quando leu Joyce. Ele ficou com tanto ódio que escreveu um tratado sobre o Ulysses. Ele falava
assim: "Eu não aguento isso. Que chato! Mas isso me atrai profundamente". Quer dizer, o que o estava atraindo
profundamente? Ele pelejou nesse ensaio para decifrar o Ulysses de Joyce. Ele falou: "Não, isso aqui é algo mais do
que a minha vã psicologia está pensando". A obra é muito maior que o autor. O livro da Clarice é melhor que ela.
Qualquer livro tem obrigação de ser melhor que seu autor. Qualquer livro verdadeiro tem que ser melhor, meu
Deus! A gente tem que sair correndo atrás da obra. Ela é melhor. Então, nesse sentido ela traz paz também. A
experiência da menina que viu a mãe dela autora, com o livro na mão, com o retrato aqui, e falou assim: "Eu não
gosto dessa mãe aí não, eu gosto é dessa aqui do livro". Quer dizer, a criança entendeu direitinho. Aquela mãe que
estava no livro com aquela coisa bonita que ela tinha escrito era muito melhor que a mãe chata que ela tinha todo
dia. Mas isso é o destino humano, esse encardimento da nossa experiência cotidiana. A gente é salvo exatamente
pelos livros da Clarice, do Guimarães Rosa, e pela fé, pelos textos de Santa Teresa, São João da Cruz, povo bom aí.

• • • •

Toda essa metodologia que está aí, por exemplo, que vem assim: "Olha, apareceu um processo novo de a gente
entrar em alfa, tem processos, métodos, exercícios, procedimentos pra você fazer contato com o Mistério, oficinas
de oração, isso e aquilo". É muito bom a gente olhar isso com certa reserva porque você não toca o Mistério nem da
arte nem de Deus a partir de um propósito, de um procedimento, de uma metodologia sua. Essa coisa vem ao
encontro de você, ela é dada. O próprio Jung fala que a invasão de técnicas orientais no Ocidente ganhou status
quase mágico. Por aí se vai mal. Essas técnicas todas você às vezes tem que olhar com bastante suspeição. Afinal, é
mais simples, é um esvaziamento, uma humildade diante do Mistério; não é a ferramentinha da minha cabeça não.
A única coisa que eu acho que é preciso fazer, e isso também não é invenção minha, é um conselho da mística, é
você se despojar e cair na mais absoluta pobreza, uma pobreza diante do Mistério. Você tem que pegar seu aluno e
levar pra ver uma peça de teatro. E só isso, e não mandar fazer depois interpretação, comentários, nada. Passeia com
ele no museu e ele vê o quadro, lê o poema. "Não gostei não". "Então lê outro, lê outro, lê outro ... " Ofereça a
coisa. Ele é tocado pela coisa. Da nossa parte, eu acredito que o movimento é de despojamento de ideologias, de
fIlosofias, de doutrinas e se colocar diante do Mistério. E isso que eu chamo de abrir os olhos com uma humildade
verdadeira. Nesse caso, eu acho que isso, se não estou enganada, é sinônimo do conselho evangélico da pobreza de
espírito. O pobre verdadeiro é o que recusa ter uma interpretação absoluta do mundo a partir de si mesmo. Então,
quando eu me despojo da minha própria opinião, da minha própria visão, esse vazio é o grande "lugar" da mística.
Todo místico prega o vazio: "Eu vou pro deserto, vou fazer retiro"; vou fazer isso pra me colocar numa atitude de
escuta. Eu acho que é a escuta que me permite a conexão no Mistério. Porque a gente fala demais, eu falo com
pensamento meu, eu falo com o pensamento do outro, mas eu não escuto. E o Mistério fala. E fala onde? Nas coisas
e nas pessoas. Eu acho que, de novo, o mundo está barulhento demais. Eu vim de Divinópolis aqui, escolhi um
ônibus direto, que não parava, mas o motorista ligou o rádio numa música de pagode, duas horas de Divinópolis
aqui, duas horas! Nada contra o pagode, mas ... quer dizer, não há possibilidade de silêncio. As igrejas não calam a
boca. Não tem na missa uma hora de silêncio e recolhimento. Na hora suprema que é a hora da celebração pro-
priamente dita, do sacrifício, a hora em que o sacrifício acontece, já estão arrumando umas jaculatoriazinhas pra
gente falar. E o horror ao vácuo que a natureza tem, será isso? O horror ao silêncio. Por que a gente tem tanto horror
ao silêncio? É o medo de se ouvir. O medo da audição de si mesmo é impressionante, então a gente faz barulho, a
gente organiza churrasco, a gente faz piquenique, a gente vai à discoteca, a gente liga a televisão alto, liga o rádio,
reza alto, e grita e canta e bate o pé, até que a igreja caia sobre mim mas eu não fico em silêncio, em silêncio eu não
fico.

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Outro dia, conversando com jovens, um deles, jovem - não era pessoa velha como eu, jovem -, falou assim: "0
mundo está ruim demais, o mundo está feio, o mundo está brega". Há uma breguice globalizada, o modo de vestir, o
modo de dançar; não há mais experiências individuais, eu tenho que ser coletivo, todo mundo 'dança "assim", todo
mundo pensa "assim", todo mundo reza "assim". E a mística é exatamente o lugar da mais absoluta originalidade.
Eu acho estes dois lugares, o lugar da fé e o lugar da arte, os espaços onde eu sou eu, diferente de todo mundo,
singular.

É tão interessante a questão da experiência mística! Você vê, por exemplo: Mestre Eckhart andou falando umas
coisas que deixaram o Papa assustado, quase que mandou ele pra fogueira. E tem uma coisa célebre no texto dele,
que é anedótica até, que ele pregando para o povo falava assim: "Gente, mas Deus existe, mas Ele existe tanto que
nem tem Deus, de tanto que Ele existe". Aí o Papa falou: "Oh! Cuidado! Heresias! Está quase negando a existência
de Deus". "Santidade, o povo entende, o povo sabe", ele respondeu. É porque se precisa de paradoxos, na linguagem
da arte e da mística. O paradoxo é para falar algo inefável. Quer dizer: tanto tem Deus que até nem tem, gente, de
tanto que tem. É a mesma coisa do Riobaldo no livro de Guimarães Rosa. O Riobaldo tem uma coisa
interessantíssima: o jagunço, refletindo, falava assim - porque o livro todo do Grande sertão é Riobaldo querendo
saber se tinha capeta, se tem o diabo, se tem o demo - "Ah! Tendo Deus, a gente pode pecar mais descansado". Olha
o que está atrás disso. É um discurso paradoxal, mas absolutamente necessário para se dizer o que é quase
impossível de ser dito. A retórica é exatamente o barulho, o falar bonito. A poesia não é uma fala bonita, não. Não
se trata de escrever bonito, ou falar bonito não, isso é retórica, a arte do convencimento pela palavra bonita. Não se
trata de uma coisa bonita no sentido vulgar da palavra, não.

Veja a coincidência. É muito fácil perceber se você junta a linguagem da mística (vamos chamar isso de experiência
religiosa) e a linguagem da poesia. É uma linguagem só, é uma única língua, é a língua poética. O Cântico espiritual
de São João da Cruz é uma das coisas mais lindas que já se escreveu e ele está relatando uma experiência de
natureza transcendente, espiritual, mística. Eu acredito ou não. "Eu vi Nossa Senhora.'" Eu acredito ou não. Mas a
linguagem em que ele vaza a experiência dele, na qual eu posso acreditar ou não, é a mesma linguagem do poema, é
a mesma linguagem da arte, é linguagem puramente expressiva. Ela faz tum! Sabe? "Deus existe tanto que não
existe." Pronto. Eu tenho que me haver com isso. Então eu acho que a própria linguagem das duas situações, das
duas experiências, prova que se trata de experiências que têm uma origem comum. A experiência mística e a
experiência poética têm uma origem comum, são braços do mesmo rio. Eu queira ou não. Não adianta, vou fazer
uma poesia cerebral?

Onde fica o sujeito? Sabe a única hora em que o homem é sujeito? Para mim eu sou sujeito na hora em que digo
"sim" ao Mistério; eu posso me rebelar e morrer fazendo birra e falando "não"; mas é a hora da minha mais extrema
liberdade, dizer "sim" ao Mistério. Mas isso é muito difícil para o orgulho da razão, porque o que a razão quer? O
ego - vamos ligar ego e razão -, o que o ego tem? O ego só tem certezas, nós temos certezas, várias e variadas
certezas. Então é muito difícil dizer "sim" a algo que não se coloca numa linguagem que eu domino. Essa é a
linguagem da filosofia, tudo bem, vamos filosofar. Vamos fazer ciência, vamos usar linguagem científica, não é
verdade? Mas essas duas experiências que estão sendo tratadas aqui são experiências que se revelam, ou se velam
também, com uma linguagem diferente da linguagem ordinária. Não é filosofia, não é ciência, não é doutrina, não é
catecismo. Poeta fala do que ele viu; acredito ou não. O místico fala do que ele viu; acredito ou não. Mas só que ter
uma experiência dessa é ser levado. E há poetas orgulhosos, há artistas orgulhosos que se recusam e que recusam o
dom, e falam: "Eu não quero, porque eu não domino essa coisa e eu quero mandar nisso". E isso é o desastre
absoluto, é a hora em que a gente fica doente, vai pro psicanalista, tem que tomar remédio ... É uma recusa ao dom,
e o difícil, gente, é aceitar que isso é dom. É muito difícil aceitar que isso é dom. Eu queria chegar aqui e falar:
"Gente, eu sou uma poeta, me tornei poeta, eu escrevi um livro que é uma beleza ... " Não se trata disso. E o dom,
de onde ele vem? O dom, por natureza a própria palavra está dizendo -, é gratuito. Então, há artistas sem caráter,
muito maus como pessoas. São pessoas detestáveis, mas têm uma obra fantástica. Como é que você explica isso?
Artista bom tem que ser necessariamente uma boa pessoa? De jeito nenhum. Quer dizer, que bom que seja, que ele
corra atrás de sua obra e fique igual a ela.

De repente, quem gosta muito de cascar batata todo dia no mesmo horário, dois quilos, chega à iluminação. É
verdade, isso é verdade. De repente, você chega no convento, quer conhecer o grande santo. O grande santo é o
porteiro, o cozinheiro do convento, a lavadeira lá. Quem é o grande santo das carmelitas? É Teresa de Lisieux. O
que Teresinha fazia no convento? Nada, ficava lá sendo tuberculosa. Só isso. Quer dizer, a verdadeira vida do santo
é u perder-se nesse vazio diante do Mistério. E isso dá uma liberdade pra gente! Eu faço idéia de que maravilha que
é a gente chegar num estado desse; porque são as pessoas mais originais e mais livres, não é verdade? São livres! A
Igreja tem bastante medo dos místicos por causa de sua extremada liberdade. São Francisco foi podado; Santa
Teresa ... "Oh! Cuidado. Não pode não. Cuidado, cuidado!" É uma liberdade extrema, uma liberdade de quem
encontrou a sua filiação, deixou de ser órfão. "Encontrei o dono da casa, agora eu vou-me embora ... " Então, os
métodos são apenas métodos mesmo.

Quanto a esse subjetivismo, a esse estatuto da razão em mim, eu uso isso pra filosofia, pra brigar com as leis, com
político, com não sei o quê. Existe uma linguagem pra isso. Mas eu entrei no terreno da arte ou da fé, da mística - é
um Outro que fala e que pede. E esse Outro tem uma carência enorme, é um Deus carente, ciumento - como diz o
Antigo Testamento -; um Deus ciumento, vingativo e se vinga em mim. Se eu fizer qualquer coisa errada aqui Deus
se vinga em mim, sabe? É muito sério, não é brincadeira, não. E porque exatamente eu não sou dona, eu fico na
maior alegria: "Fui eu, gente, meu nome está aqui". Mas eu de fato não entendo isso não. Porque não há explicação
pra isso. Por que eu faço poesia? Já recebi certos comentários assim: "O quê? A senhora mineira fazendo poesia?"
Quer dizer, não combina. Eu tive dificuldades no começo, quando fiz o Bagagem: eu tinha um forte complexo de
inferioridade, até que, graças a Deus, fui curada disso quando descobri que o masculino em mim é escrever. Então
houve uma união dos contrários. A hora em que eu obedeço e escrevo é a hora em que eu aceito o dom.

O ateu é religioso a despeito de si mesmo. É aquele exemplo célebre que a gente tem quando estuda filosofia: o
vigário vai chamar alguém para pintar a sua igreja. Quem ele deve chamar? O pintor de domingo que é ministro da
Eucaristia, piedoso, bacana, bonzinho? Ou aquele ate); que nunca pisou na igreja, mas é um artista genial? Quem
deve pintaI a igreja? Por que é o artista? O artista está conectada- com esse princípio de transcendência que é por
natureza religioso e isso ele expressa na sue obra a despeito dele próprio; e o outro não. O outro vai pintar: "Olhe
aqui vou fazer um anjinho com uma cara bem assim; um santo com uma cara bem compassiva, outro assim,
assado... " Há uma intenção, há um conspurcamento, então é uma pintura de registro religioso, mas que não tem
unção religiosa, porque ele não está conectado com esse centro. E o outro que não' vai pintar anjo, nem santo
nenhum, pinta uma paisagem lá, todo mundo chega e é levado à experiência religiosa, tem uma unção diferente. Eu
acho que pode acontecer, por exemplo, que o artista não cogite isso, nem lhe passe pela mente ter um
comportamento religioso ou falar disso, mas a despeito dele, ele queira ou não, a obra é religiosa. Para mim - eu
vejo assim -, toda obra verdadeira é religiosa, mesmo a que nega Deus, porque aí ela toca em Deus pela ausência,
pelo vazio, pelo negro, pela desolação. Os artistas mais desesperados são profundamente religiosos; aquele que nega
Deus e dá um tiro na cabeça, é um grito religioso, é uma tentativa de religação. Tudo está na esfera do religioso, não
tem jeito de fugir - eu vejo assim.

O que nós estamos fazendo aqui hoje? Estamos tendo alguma experiência mística? De jeito nenhum. Nós estamos
usando a razão, isso aqui é um exercício de razão. Eu estou falando coisas, vocês estão objetando, concordando ou
não, em função de quê? Na busca de algo que extrapole a razão, porque isso aqui não dá camisa pra ninguém. Nós
estamos atrás da experiência carnal, desse Outro que me subjuga, me atrapalha, morde o meu calcanhar. O que é
que está mordendo o meu calcanhar? O Mistério, o Inefável, o Divino, é o Absolutamente Outro. Mas é uma coisa
tão espantosa porque é um Absolutamente Outro que busca contato e eu quero contato, eu quero, é o desejo mais
profundo da nossa alma. E isso: esse é o tesouro escondido, é a pérola que o lavrador encontrou no campo, é o
Evangelho de Jesus Cristo: um lavrador encontrou uma pérola no campo, vende tudo por causa disso. Nós estamos
atrás disso. Esse é o desejo da alma. Então como é que eu vou achar essa pérola se eu já vou falando: "Ela está aqui,
tem que estar conforme o meu desejo"? Ela é algo que me extrapola. E a razão é uma ferramentazinha.

Santo Tomás de Aquino: eu sempre tive uma dúvida com ele, eu achava ele racional demais, que a teologia dele era
um pensar sobre Deus, e por aí afora, mas uma discípula de Jung rastreou um manuscrito chamado Aurora
consurgens: "Onde é que está o resto, onde é que está o pedaço, onde é que está isso, onde é que está aquilo?". Tem-
se como certo, não se provou ainda, que esse texto é de Santo Tomás de Aquino. Então isso resgata para mim um
santo de quem eu desconfiava um pouco porque pensa, pensa, e dita regras a respeito de Deus. E o texto encontrado
é pura mística. Parece que foi um texto escrito durante um retiro que ele citava pregando, e teve uma experiência de
natureza profunda, mística. Nesse texto está dito: "Tudo o que eu escrevi antes é palha: diante do que eu vivi, o que
eu escrevi é palha". Então, um intelectual que fala assim a respeito da própria obra, depois que tem uma experiência
real, encarnada, ela Transcendência, do Outro ... que ele fez? Como ele poderia escrever? Ele iria escrever a Suma
teológica outra vez? “Bobagem. Suma teológica! Pare de falar que meu livro é bom. Tudo o que eu escrevi é palha."
E ele não é louco. O que é isso? É o que nós estamos buscando também. Todo mundo quer isso. Nós queremos é só
isso. A gente casa, corta o cabelo, vai ao dentista, faz isso e faz aquilo, passeia, tira férias, fica cansado, fica
descansado, numa peleja (é a palavra mais perfeita pra vida: peleja) atrás dessa pérola, desse tesouro escondido. Eu
vou atrás, eu vou atrás ... E esse é o processo da santificação, se nós quisermos usar uma linguagem mística - agora
vamos juntar, olhar o fecho de ouro -, processo da santificação se eu estou falando de mística; se estou falando de
psicologia, é o processo da individuação, que no fundo é um casamento perfeito. As coisas que ficam se digladiando
dentro de mim encontram a paz, eu fico pacificada, eu fico criatura. A coisa que mais descansa é a gente ser
criatura, por isso que a gente tem tanta saudade de pai e mãe. Tem hora que dá vontade de a gente falar: "Bênção,
pai. Bênção, mãe", não dá? É a orfandade nossa, a orfandade original. Mas eu vou atrás do meu pai, coitado, ele
também está querendo um pai; minha mãe também está querendo a minha avó; está todo mundo atrás, atrás, atrás ...
a gente vai até Adão. Já nasce com mil anos a memória da alma. A gente já nasce póstero, a gente carrega essa
saudade original. E em busca disso que a gente está. Filosofias estão atrás disso, o pagode está atrás disso, a dança
do Tchan, todo movimento humano, consciente ou não, está em busca, em busca do outro que me completa, aquele
que me manda calar a boca e que me sossega. Santo Agostinho: "Meu coração não se aquieta enquanto não
descansa em Ti". Que "Ti" é esse? Ele que foi um homem, um grande amante, que conheceu o amor humano, falou:
"Tudo palha, tudo palha".

Eu vi um documentário esses dias, o documentário se chama Fé, sobre todas as manifestações religiosas no Brasil;
então pegaram umas velhinhas lá em Canindé, mas aquelas velhinhas mesmo, espertinhas, velhinhas, e o repórter
perguntou pra ela: "Por que a senhora está aqui no Canindé?" - "Ah! Vim agradecer uma graça, meu filho, porque
nesse mundo a gente tem que sofrer, a gente tem que sofrer." Qualquer psicólogo modernoso vai falar: "Ai, que
complexo de culpa! Leva essa mulher logo ... " Não, ela está certa! Ela estava falando "tem que sofrer" com a cara
mais feliz, mais iluminada do mundo. Como diz o Mestre Eckhart: "O povo entende ... " "Tem que sofrer." O que é
o sofrimento humano? É essa purgação do ego, é essa morte do ego, até que eu chegue a ficar igual essa velhinha:
estar lá na romaria, na maior alegria; criatura, na situação de ser criatura e poder se dobrar diante do Criador. Isso é
que é a felicidade do coração de Santo Agostinho, de Santo Tomás e do nosso. Nós estamos em boa companhia, não
é? E dos artistas todos.

Agradeço de coração.

Texto retirado do livro

MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel (org.). Diante do mistério – psicologia e senso religioso. São Paulo:
Edições Loyola, 1999, páginas 17 a 32.

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