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O MUSEU DO CORAÇÃO

“Escute seu coração. Ele conhece todas as coisas, porque


veio da Alma do Mundo e um dia retornará para ela.”
PAULO COELHO

No nosso coração está contido o museu primordial. Este museu representa,


em primeiro lugar, o nosso próprio Eu, e só depois o do outro – o amante, o ser
amado, a alma gémea cuja descoberta se fará aos poucos e sempre com prazer
renovado, pela revelação de novos pormenores, cambiantes e matizes da sua
alma, a nossa Alma! A grande diferença em relação aos museus de arte é que o
coração de cada ser humano é basicamente igual, pois assim foi criado pelo
Artista supremo. Quanto mais aprofundamos o conhecimento do nosso mundo
interior, mais aprendemos acerca daqueles que amamos (e de todos os seres
humanos, na realidade).
Esse museu, com os respectivos quadros, esculturas, paredes e corredores,
é a nossa própria alma. Mesmo quando estamos sozinhos, continuamos sempre
acompanhados pelo nosso Ser mais íntimo (chamemos-lhe Alma, Deus, Amor
ou o que desejarmos). Não é do outro que depende a nossa felicidade: é única e
simplesmente de nós (e do nosso Criador!). E quando conhecemos o nosso
museu, conhecemos todos os museus, naquilo que eles têm de comum. A
descoberta do outro resume-se às suas particularidades próprias, idiossincrasias
pessoais, e é simultânea com a descoberta de nós próprios. É uma aventura
mútua e dupla!
Esse alguém com quem sonhamos e que tanto idealizamos como a “alma
gémea” ou o “príncipe encantado”, somos nós próprios. Ele já reside no
recôndito mais secreto do nosso Ser, e quando nos apaixonamos por alguém é
por esse amor mais íntimo que ansiamos. O tesouro ansiado está em nós. Neste
museu da vida, os quadros e esculturas que queremos apreciar estão já
esculpidos e pintados no nosso coração. É aí que os devemos buscar, reconhecer
e apreciar. Só então poderemos admirá-los no coração do outro. Nessa altura,
saberemos compartilhar sentimentos que são profundos, porque os conhecemos,
e experimentar emoções poderosas, porque verdadeiras, e viver sensações que
emanam da fonte genuína do nosso próprio ser.
É por isso que não existe qualquer tipo de cansaço ou sensação de estar
farto no verdadeiro amor. O que é infinito jamais pode ser totalmente descoberto
ou apreendido, porque há sempre mais para conhecer, todos os dias. Um tal
sentimento de vacuidade ou esgotamento só existe naqueles que não exploram a
sua própria intimidade e não podem, pois, penetrar na intimidade alheia. A
superficialidade acaba naturalmente por cansar, e uma relação em que os

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amantes não aprofundem o seu próprio autoconhecimento está condenada ao
insucesso.
Quando falamos de amor, referimo-nos quase sempre ao mero sentimento
que nutrimos por outra pessoa – amigo, familiar, namorado, amante, etc. –, e
ignoramos, porque a desconhecemos, a fonte, a origem e a razão de ser desse
sentimento. O amor que sentimos por alguém não nos é dado pelo outro, pela
sua presença ou pela sua recordação. Esse amor já lá estava e sempre vai estar aí
(no coração, na alma), simplesmente algumas pessoas podem despertá-lo, avivá-
lo em nós, isto é, dirigimos essa afeição natural para alguém em especial, mais
do que para outras pessoas que não conhecemos tão bem ou não nos suscitam
esse enternecimento.
Mas qual é a verdadeira fonte do Amor? De onde é que ele brota, como é
que surge, o que é que o faz nascer, despertar, irradiar do nosso coração e do
nosso ser? Esta é a pergunta. Se nunca soubermos a resposta, continuaremos a
vaguear perdidos pelos museus de todos os corações que a vida nos colocar ao
nosso alcance (isto é, enquanto não nos cansarmos ou desiludirmos). Conhecida
a fonte, conhecemos o rio. Conhecido o rio, conhecemos a foz. Conhecida a foz,
conhecemos o mar. Conhecido o mar, conhecemos o oceano. Conhecido o
oceano, conhecemos tudo. E quando conhecemos tudo, então somos Tudo. O
Amor Divino. O Amor, apenas, sem justificações nem comos nem porquês.
Para ultrapassar a barreira de intimidade entre duas pessoas, é imperioso
conhecer o mais íntimo de nós próprios, caso contrário não atingiremos jamais o
plano espiritual que o verdadeiro amor pressupõe. Se me conheço a mim,
conheço o outro e conhecendo-o, aceito-o. Todas as relações humanas só podem
ser plenamente satisfatórias quando compreendidas ou vivenciadas no plano
espiritual. Não há outra maneira. E essa evocação constante do amado em tudo e
em todo o lado, essa louca identificação do adorado com tudo o que vemos e nos
rodeia, essa maravilhosa e pura divinização panteísta do Amor, são apenas a
evocação, a mera recordação e o longo anseio d’Ele: o Omnipresente Senhor, o
Mestre do Amor!
Por fim, devemos realçar o paralelismo entre a descoberta de nós próprios e
a descoberta do outro. É óbvio que, sendo este processo infinito, não há nele
nenhuma relação de sequência mas sim de simultaneidade. É importante
salientar isto, pese embora a infantil evidência desta asserção, pelo facto de que
a ênfase no autoconhecimento pode ser utilizada como argumento negativo por
aqueles que teimam em não compreender, porque não realizam (tornam real) a
sua importância, e rotulam a busca interior de egoísta ou egocêntrica.
Trata-se apenas de uma questão de foco, do ponto fulcral e central da nossa
atenção. Quando buscamos conhecer o nosso verdadeiro Eu, não estamos a
desprezar o eu do outro, muito pelo contrário, pois estamos, simultaneamente, a
conhecer também o eu dele. A busca do Amor é a procura mais universal que

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existe, no duplo sentido que todo o mundo anda atrás dele e ele é Tudo! Na
realidade, quem provou o fruto do Amor, “a maçã do Paraíso”, não esquece
jamais, não pode esquecer nunca (ainda que queira!) o seu sabor. O que é real
não se pode negar, aquilo que o coração sabe não é possível desmentir, o que
é… É!
Segundo a lenda, quando Deus acabou de criar o mundo, quis deixar ao
Homem uma parte da sua divindade. Receando que o Homem não soubesse
apreciar devidamente o que lhe ia ser dado gratuitamente, procurou um lugar
seguro para esconder esse tesouro, de modo a que o buscássemos com denodo.
Assim, decidiu guardá-lo num lugar bem acessível, mas onde o ser humano
dificilmente o iria procurar. Ele escondeu-se bem no fundo do nosso coração...
Por que não ser fiéis a esse desiderato do Amor-Criador que apenas aguarda (e
sempre aguardará!) que O reconheçamos, aí onde Ele se ocultou para termos a
excelsa alegria de O descobrir? “Procura o mais belo dentro de ti. Deixa-te
atrair pela beleza dentro.” (Prem Rawat)
Para Saint-Exupéry, “Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na
mesma direcção.” E qual é essa direcção? A direcção do Amor só pode ser... o
Amor! É ele o símbolo místico por excelência, o sinal alquímico da serpente que
morde a própria cauda, porque se contém a si próprio e contém tudo. Termina
onde começa, e principia onde acaba. É a ele que a Lenda Pessoal nos conduz, o
Amor é o ideal por trás de todos os ideais, a verdadeira respiração do Mundo
que sustenta o alento vital a que não damos nenhuma atenção e é o nosso
próprio Ser, o Reino dos Céus dentro de nós!

Rui Vaz da Fonseca, in “Correio da Feira” (16-04-1999)

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