Você está na página 1de 2

A VERDADEIRA SOLIDÃO (II)

“Sê amigo de todos, mas no teu espírito fica só.”


ISAAC, O SÍRIO

Por muito bem que conheçamos uma pessoa, por maior que seja o amor
que dediquemos a alguém, por mais altruísta e desinteressado que seja o puro
sentimento de afeição que nos une a quem muito amamos – um familiar, um
amigo, um amante – não poderemos jamais penetrar nessa alma, não poderemos
unir-nos ao eleito do nosso coração, se não soubermos o que ele(a) é, quem
ele(a) é quando está só, completamente só consigo próprio. Por isso, o amor
humano (nas palavras de quase toda a gente, “o amor”) não é suficiente para nos
proteger do vazio, do sem-sentido, da solidão opressiva da ignorância que tantos
seres repetidamente experimentam nas suas vidas.
É certamente maravilhoso amar e ser amado, mas o que é que
verdadeiramente amamos, a que “coisa” dedicamos o nosso amor? O amor vai e
vem, a amizade que nos une às pessoas mais queridas esboroa-se e desfaz-se e
as mais diversas circunstâncias (exteriores e interiores) encarregam-se de nos
separar, física ou espiritualmente, daqueles que para nós já representaram tanto e
parecem agora ser uma sombra longínqua e distante. É certo que, felizmente,
isto não é sempre assim, mas esta é uma experiência muito vulgar quando somos
incapazes de reconhecer a nossa mais íntima realidade. E se não sabemos quem
somos, também não sabemos quem o outro é, e tudo aquilo que nos possa unir a
ele(a), por muito frondoso ou maravilhoso que pareça, é como uma árvore oca e
sem raízes: cairá, seguramente, quanto soprarem os ventos fortes da provação.
Talvez este quadro demasiado pessimista se possa considerar exagerado,
porque é evidente que qualquer pessoa se conhece a si própria, em maior ou
menor grau. Mas este “conhecimento interior” a que me refiro não é de índole
psicológica ou mental, mas muito mais íntimo, porque espiritual. É dessa
consciência que Krishna fala no Bhagavad Gita: “Por compaixão por eles, Eu,
morando em seus corações, destruo com a luz brilhante do conhecimento a
escuridão nascida da ignorância”.
Mas a solidão é um estado por vezes difícil de suportar ou encarar mesmo
por aqueles que estão habituados a ela ou a cultivam como meio de crescimento
interior. Por isso, é preciso ser paciente e dar tempo ao tempo e compreender
muito claramente que a única companhia com a qual poderemos SEMPRE
contar somos nós próprios. Por mais que amemos e sejamos amados, nunca
poderemos ter a companhia constante, noite e dia, do ser amado. Contudo,
estamos sempre na nossa própria companhia, numa solidão a dois: nós e o nosso
coração, a nossa alma e nós. E este é um amor que podemos sempre cultivar.

1
A Bíblia fala no quarto secreto onde se deve entrar para rezar a Deus em
segredo. Que altar é este que só o devoto e o Senhor conhecem e onde
comunicam um com o outro, sem que ninguém mais saiba, sem que alguém
exterior possa ouvir ou interferir nessa comunicação? Qual é o sacrário mais
sagrado onde podemos adorar constantemente o Santíssimo que nele habita?
Onde está esse templo, esse pagode, essa sinagoga, essa mesquita, o único sítio
digno para orar, para rezar, para meditar, para contemplar o Poder que aí habita?
“Buscamos em todos os lugares santos, quando o mais sagrado de todos os
lugares está dentro de nós”. “Olhei então para o meu coração e foi aí, onde Ele
habita, que O vi; Ele não pode ser encontrado em nenhum outro lugar”
(Jalaluddin Rumi). Estas são apenas duas de entre muitas frases atribuídas aos
santos e aos místicos que realizaram a União Divina e nos tentam comunicar,
por palavras imperfeitas, a sua experiência perfeita. A simples descrição da
Beleza que contemplaram e tão maravilhosamente relatam pode inspirar-nos e
empolgar-nos, mas esse entusiasmo tem de ser real, não uma mera emoção
passageira ou um vago sentimento transitório. Não é de fantasias ou sonhos que
eles falam: é da única Realidade que sempre ansiámos conhecer. E só na
plenitude da vera solidão se pode descobrir o Amor que timidamente em nós se
oculta.
O coração. Dentro. A alma. O íntimo. O recôndito. O secreto. Aí, onde
ninguém mais pode penetrar, é o único sítio onde estamos sós, sozinhos com a
Alma do Mundo, se a conhecermos! É só aí que é possível desvendar o segredo
da Vida, o poder que comanda a respiração, o autêntico sopro da vida a que as
religiões também chamam o Nome de Deus, impronunciável não porque seja
proibido dizê-lo, mas sim porque não é possível fazê-lo!
“Se realmente Me procuras, ver-Me-ás num instante: encontrar-Me-ás no
mais ínfimo momento. Diz-me, o que é Deus? Ele é a respiração da
respiração”. (Kabir)

Rui Vaz da Fonseca, in “Correio da Feira” (30-04-1999)

Você também pode gostar